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IMAGINAÇÃO VENCIDA: UM ESTUDO SOBRE AS FONTES
DO PENSAMENTO POLÍTICO DE PLÍNIO SALGADO (1926-1937)
José de Britto Roque
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Ciência Política.
Orientador: José Paulo Bandeira da Silveira
Rio de Janeiro
Maio de 2003
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ii
IMAGINAÇÃO VENCIDA: UM ESTUDO SOBRE AS FONTES
DO PENSAMENTO POLÍTICO DE PLÍNIO SALGADO (1926-1937)
José de Britto Roque
Orientador: José Paulo Bandeira da Silveira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Ciência Política.
Aprovada por:
___________________________________
Presidente, Prof. José Paulo Bandeira da Silveira
___________________________________
Prof. Charles Pessanha
___________________________________
Prof. Francisco Carlos Teixeira da Silva
___________________________________
Prof. Francisco Martins de Souza
Rio de Janeiro
Maio de 2003
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Roque, José de Britto.
Imaginação vencida: um estudo sobre as fontes do
pensamento político de Plínio Salgado (1926-1937)/ José de
Britto Roque. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2003.
x, 291f.
Orientador: José Paulo Bandeira da Silveira
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política, 2003.
Referências Bibliográficas: f. 253-260.
1. Perspectiva superhumanista. 2. Ideologia de Plínio
Salgado. 3. Integralismo. 4. Imaginário político. 5. Brasil. I.
Silveira, José Paulo Bandeira da. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-graduação em Ciência Política. III.
Imaginação vencida: um estudo sobre as fontes do
pensamento político de Plínio Salgado (1926-1937).
iv
RESUMO
IMAGINAÇÃO VENCIDA: UM ESTUDO SOBRE AS FONTES
DO PENSAMENTO POLÍTICO DE PLÍNIO SALGADO (1926-1937)
José de Britto Roque
Orientador: José Paulo Bandeira da Silveira
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência
Política.
Em pleno modernismo artístico-literário, da segunda fase, Plínio Salgado
elaborou o seu imaginário político a partir de elementos extraídos principalmente do
espiritualismo católico, do intuicionismo bergsoniano e do nacionalismo torrista-
indianista, os quais se fundiram numa síntese ideológica que, assumindo uma
perspectiva superhumanista da cultura e da política, resultaria na criação do
integralismo, em 1932.
Palavras-chave: perspectiva superhumanista, ideologia de Plínio Salgado,
integralismo, imaginário político, Brasil.
Rio de Janeiro
Maio de 2003
v
ABSTRACT
THE DEFEATING IMAGINATION: A SURVEY CONCERNING THE SOURCES
OF PLÍNIO SALGADO’S POLITICAL THOUGHT (1926-1937)
José de Britto Roque
Orientador: José Paulo Bandeira da Silveira
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência
Política.
In the literary-artistic modernist peak of the second wave, Plínio Salgado has
elaborate his political imaginary from the catholic spiritualism, Bergson’s
intuicionism, Alberto Torres nacionalism and indianist approach, fusing them an
ideological synthesis, with a superhumanist perspective of politics and culture, that
has made the integralism beginning in 1932.
Key words: superhumanism, Plínio Salgado’s ideology, integralism, political
imaginary, Brazil.
Rio de Janeiro
Maio de 2003
vi
AGRADECIMENTOS
Muitos são aqueles a quem sou grato pela conclusão deste trabalho. De algum
modo, deram sua parcela de contribuição, uns mais diretamente, outros de maneira
mais discreta, porém, em todos pude encontrar espírito de colaboração e
solidariedade animando ora o gesto, ora a palavra.
De sorte, que seria injusto dispor em ordem de importância o nome de todos
esses, não podendo escapar à tirania da memória que nos faz correr o risco das
omissões, restando, portanto, mencionar arbitrariamente, apenas alguns dentre
muitos, que ficarão porém resguardados pelo apreço e minha sincera gratidão.
Os primeiros agradecimentos devo dirigi-los aos meus pares, professores do
Departamento de Ciência Política do IFCS, que não faltaram em estímulos e
incentivos para que prosseguisse na conclusão de minha formação acadêmica.
Um agradecimento especial e caloroso a Ingrid Sarti, colega, professora e
gestora do Programa de Mestrado em Ciência Política, pelo espírito solidário, pelo
apoio e dedicação, pelo empenho e responsabilidade com que conduziu o PPGCP,
desde a fase de projeto acalentado pelo DCP, até à realização concreta de um
trabalho efetivo.
Aos jovens colegas do PPGCP que me acolheram num ambiente sempre
afetuoso e receptivo, bem como aos professores do Programa agradeço a
consideração e o apreço que me dedicaram.
Destaco, em particular, minha gratidão à meiga Rosane, sempre tão afável,
tão solícita, pelo muito que me ajudou na computação gráfica dos trabalhos do
curso e que me perdoe pela irrisória retribuição, que me tornou um eterno devedor
da sua boa vontade. Também à Ana Lúcia, constantemente disposta em ajudar aos
colegas, sou grato.
Por trabalho similar de digitação, agradeço também a colaboração valiosa do
funcionário José Carlos, bem como ao Secretário do Programa Francisco Lemos,
sempre atencioso com os que o procuram.
Meu agradecimento aos professores Charles Pessanha e sua esposa Elina
pelo trato sempre afetuoso e pelas palavras de encorajamento que jamais
negacearam.
vii
A Isabel Ribeiro de Oliveira, professora e colega, cuja energia, otimismo e
espírito elevado são fortes estimuladores de grandes empreendimentos.
A Valter Duarte Filho, também colega e professor no DCP que soube ser
prestativo e encorajador em algum momento de dificuldade no curso desta
empreitada.
A Aluízio Alves Filho, colega no DCP e professor no PPGCP agradeço a
colaboração pelo material bibliográfico valioso que me franqueou, e até mesmo pela
controvérsia e o ceticismo de algumas intervenções, que foram afinal absorvidas
como boas conselheiras na definição de rumos mais seguros a esta pesquisa.
A Marcelo Ferreira, nosso jovem colega e professor no DCP, pela ajuda
inestimável e pelo ânimo à colaboração, meu agradecimento sincero.
Fora do DCP, quero agradecer ao professor Francisco Carlos Teixeira pelo
estímulo e a oportunidade em participar nos seus grupos de estudo do Laboratório
de História do Tempo Presente.
A meus familiares, pela paciência com que suportaram minha dedicação
minuciosa a este trabalho, em detrimento do tempo que lhes poderia ter dedicado.
Por fim, meu agradecimento à banca e, em particular, ao meu orientador, o
professor José Paulo Bandeira da Silveira, verdadeiro inspirador intelectual deste
trabalho, mente fértil, estimulador de criações intelectuais; a ele também peço que
me perdoe pelos atrasos cometidos.
viii
Dedico
À memória de meus pais, Antonio Roque e Preciosa de Brito Roque, que me deram
a vida e o sustento espiritual necessário às grandes caminhadas.
Ao meu querido filho Felipe, que vem suportando o ônus maior desta empreitada,
mostrando grande compreensão, a que não o obriga, contudo, a pouca idade que tem.
ix
LISTA DE SIGLAS
AIB – Ação Integralista Brasileira.
DCP – Departamento de Ciência Política.
DCS – Departamento de Ciências Sociais.
IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.
NSDAP – Partido Nacional-socialista Alemão dos Trabalhadores.
PPGCP – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política.
PRP – Partido Republicano Paulista.
SEP – Sociedade de Estudos Políticos.
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
x
SUMÁRIO
Introdução 1
Capítulo 1. Uma leitura em perspectiva superhumanista 10
Plínio e Nietzsche
O ideal da cultura e do homem em Nietzsche
Wagner e o sentido da sua obra artística
A teoria do superhumanismo de Giorgio Locchi
Desdobramentos do superhumanismo
O criacionismo de Bergson
Capítulo 2. A elaboração ideológica de Plínio Salgado 70
O ritmo da construção
O nacionalismo na República
A renovação modernista
O espiritualismo: a reação com Farias Brito
A filosofia da história
A questão política contemporânea
Capítulo 3. A revolução integral 201
O Integralismo como revolução do espírito
O superhumanismo pliniano
A construção da brasilidade
Referências bibliográficas
253
Anexo I. Manifesto de fundação da AIB 261
Anexo II. Diretrizes integralistas (1933) 264
Anexo III. O caso Nietzsche 271
Introdução
As palavras nada valem sozinhas.
Vivem em sociedade como os homens e
só podem triunfar tirando efeitos do contato.
É preciso saber realizar esse contato
1
Esta pesquisa dá continuidade a estudos que iniciei a partir dos anos 90, no campo
da chamado pensamento social brasileiro, que cobre o período da Primeira
República e a década inaugurada com a Revolução de 1930, mais precisamente
sobre a cultura política brasileira. Tomo aqui este conceito na perspectiva em que
foi pensado e formulado por Oliveira Vianna
2
em suas elaborações teóricas
pioneiras na interpretação sociológico-política do Brasil. Uma elucidação explicativa
e funcional deste conceito da escritura viannista é possível obtê-la em José Paulo
Bandeira da Silveira, que o traduz como laço social, historicamente criado no Brasil,
que espelharia um sistema social de produção de identidade. Esta interpretação, de
resto, vale-se dos elementos extraídos do próprio texto de Vianna, cujo conjunto se
articula na forma de um complexo, tal como ele o representa:
(...) um conjunto objetivo de fatos, signos ou objetos, que,
encadeados num sistema, se correlacionam a idéias, sentimentos,
crenças e atos correspondentes (...).
3
A partir, então, deste campo referencial da cultura política brasileira, é que
privilegiamos um estudo particular da atuação de Plínio Salgado, no período
compreendido entre 1926-1937, tal como essa atuação se fez presente tão
enfaticamente naqueles agitados anos. Salgado, atuou não só no campo das artes
cênicas, nos tempos de juventude, mas, principalmente, na atividade literária: da
poesia, à prosa e ao romance. Mas foi como um produtor de idéias, um formulador
doutrinário, além de protagonista de ação política prática que culminaria no
1
SALGADO, Plínio, Discurso às estrelas: 81.
2
Esse conceito nuclear da análise de O. Vianna parece despontar em
Populações meridionais do Brasil, v. II (1948), o qual, somente seria
publicado, em 1952, como obra póstuma. Contudo, em Instituições
políticas brasileiras, v. I., 1ª edição de 1949, tal conceito aparece
claramente formulado pelo autor, exposto numa apresentação técnica, tal
como transcrevemos acima.
3
BANDEIRA da Silveira, J. P. Política brasileira em extensão: Para além da
sociedade civil: 137.
2
movimento integralista brasileiro, do qual foi o fundador e único chefe nacional, nos
anos da sua vigência, que Plínio Salgado adquiriu notoriedade nacional e
internacional.
Nas três últimas décadas vários foram os estudos acadêmicos, na forma de
teses, dissertações e ensaios sobre a Ação Integralista Brasileira - AIB, alguns
desses orientados basicamente para explicar e tentar caracterizar a dimensão
ideológica quer do integralismo como um todo, ou mesmo, restringindo a
investigação às posições dos seus principais líderes, como Plínio Salgado, Gustavo
Barroso e Miguel Reale.
4
Há, pode-se dizer, uma constante, observável nesses
estudos que consiste em inserir aquelas produções ideológicas num mesmo
invólucro ao qual se afixam alguns rótulos para embalagem, tais como:
pensamento autoritário brasileiro, dos anos 20 e 30, pensamento conservador,
pensamento fascista, pensamento de direita, e tudo isso aplicado a outras tantas
produções ideológicas, daquele mesmo período, que nada tiveram que ver com o
integralismo - e que, por suas próprias razões até se distanciaram dele - como
foram as de Azevedo Amaral, Francisco Campos e Oliveira Vianna. No caso mais
específico de autores integralistas, como Plínio salgado, por exemplo, algumas
dessas análises insistem em caracterizar o seu irracionalismo e o chamado
mimetismo do fascismo europeu. E bastam-se, em alguns casos, com essas
rotulações superficiais, sem se obrigarem a maiores exigências de argumentação
que conduza a um esclarecimento, a uma compreensão da estrutura do
pensamento que apela ao irracional e ao mimético para formular uma via de
comunicação; pois é disso realmente que se trata. Mas não vamos aprofundar aqui
nenhum balanço crítico desses estudos que, apesar de no geral, os julgarmos
insuficientes em alguns aspectos importantes, têm, todavia contribuído para o
debate no campo das idéias políticas e das alternativas de ação e de transformação
4
Destaco em especial, os estudos de: TRINDADE, H. Integralismo, o
fascismo brasileiro na década de 30; MEDEIROS, J. Plínio Salgado;
CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade do
capitalismo hiper-tardio; VASCONCELOS, G. A ideologia Curupira; CHAUÍ,
M. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira.
3
na história republicana. Todos esses esforços intelectuais são produtivos e devem
prosseguir, e foi pensando em dar continuidade a essa linha de pesquisas que este
trabalho deu os seus primeiros passos.
É de justiça lembrar, porém, que a motivação deste estudo deve-se, em
grande parte, a alguns eventos que foram decisivos á sua realização, ambos
ocorridos no final dos anos 80 e início dos 90.
O primeiro deles, foi o acesso que tive ao livro recém lançado na época, do
historiador e antropólogo Ricardo Benzaquen de Araújo, Totalitarismo e revolução,
O Integralismo de Plínio Salgado, e que sacudiu completamente as minhas idéias
até então já bem arrumadas acerca das posições do chefe integralista. O texto
fornecia uma interpretação inusitada, quase audaciosa, sobre a formulação pliniana
do integralismo, contrastando-a com todas as interpretações e estudos críticos
anteriores; como oferecia uma documentação referencial e um roteiro bibliográfico
atualíssimo e diversificado de estudos sobre o fascismo e variantes desse
movimento.
Assim como Benzaquen de Araújo relata a necessidade intelectual que o
impeliu a rever anteriores expectativas e conceitos acerca do ideário de Plínio
Salgado, motivando-o a reler a obra de Plínio; de modo similar, a leitura do seu
ensaio compeliu-me a investigar os autores integralistas e, em particular, a obra de
Plínio Salgado que eu só conhecia por meio de interpretes e estudiosos do seu
pensamento.
Algum tempo depois tive a boa oportunidade de consultar em coletânea da
Evolução do Pensamento Político brasileiro, o ensaio de Francisco Martins de Souza
Três vertentes do integralismo, que trouxe também nova luz sobre o pensamento
de Plínio Salgado; trabalho que merece destaque pela isenção e sobriedade no
tratamento do assunto.
Paralelamente, recebi na mesma ocasião um honroso convite do professor
Francisco Carlos Teixeira para participar do laboratório de História do Tempo
4
Presente, no IFCS, onde tive acesso a um farto material de linhas de pesquisa
sobre o fascismo e movimentos neo-fascistas contemporâneos, participando,
também de seminários e palestras sobre o tema.
Mas o evento decisivo ocorreria em 1991, quando me veio às mãos uma
publicação em espanhol do pesquisador, historiador e filósofo ítalo-francês, Giorgio
Locchi, intitulado La esensia del fascismo, livro esse que iria complementar a série
de estudos e reflexões que vinha fazendo desde a leitura de Totalitarismo e
revolução. O livro de Locchi completava algumas das lacunas que mesmo o
trabalho renovador de Benzaquen de Araújo não conseguiu preencher.
Particularmente, no tocante à compreensão da linguagem às vezes simbólica e
metafórica, aos componentes de natureza mítica que entram nos discursos e na
liturgia dos movimentos de tipo fascista, e que aparecem, não raro na composição
da representação integralista de Salgado.
Locchi, trazia uma abordagem do fascismo a partir da linguagem que
identificaria como um laço social comum a unir formas e expressões diversas, tanto
européias, quanto extra-européias, como um fenômeno das primeiras décadas do
século XX, como primeira manifestação política, cujas raízes, porém são meta-
políticas, ou seja, são de natureza espiritual e cultural e brotaram de um rico filão
filosófico e cultural europeu que se desenvolveu na segunda metade do século XIX;
ao qual se deve chamar de superhumanismo.
Dito em outros termos, o fascismo (ou os fascismos, quaisquer que tenham
sido suas denominações) fora apenas a expressão política assumida no século XX,
de uma tendência epocal superhumanista - fenômeno de natureza espiritual e
cultural - que emerge na Europa (inicialmente, na Alemanha, com as obras de
Nietzsche e Wagner) e se difunde num vasto campo filosófico-cultural, na segunda
metade do século XIX.
A exposição e caracterização do superhumanismo - no seio do qual devem
ser inseridos os diversos tipos e modalidades de regimes e movimentos
5
historicamente conhecidos como fascismo, mas não se esgotando neles - permite
que assim se possa inserir, senão o integralismo como um todo, pelo menos a
versão de alguns dos seus líderes, como a de Plínio Salgado, por exemplo. Também
possibilita, creio eu, que se esclareça uma série de problemas freqüentemente
deixados na sombra, apesar de recorrentes nas análises conhecidas sobre o
integralismo e a ideologia de seus chefes. Como, por exemplo, quanto à sua
natureza aparentemente ambígua conservadora e revolucionaria, quanto à
racionalidade ou irracionalidade do seu discurso, quanto à questão da originalidade
ou do mimetismo em face dos fascismos europeus, da natureza ou caráter
autoritário, democrático ou totalitário da sua organização e de suas propostas
políticas.
De outro modo, a possibilidade que a perspectiva superhumanista faculta de
interligar intimamente o campo da cultura com o da política, tornou compreensível
os signos de comunicação contidos na linguagem discursiva e entender o significado
da atuação de Plínio e o trânsito fácil que estabeleceu entre essas duas esferas,
conectando-as ou mesmo fundindo-as num projeto político novo de transformação
completa do país. Como, também, a própria idéia de revolução, de espírito
revolucionário, que sendo extraída do plano estético, é transposta para o plano da
política, mas também pensada como revolução interior.
Ao mesmo tempo em que se ampliava minha reflexão sobre o pensamento
de Plínio e o modo como engendrara e comunicara sua imaginação política, mais
ficavam nítidos os vínculos dessa construção com o modo de pensar e sentir de
feição super-humanistas.
Paralelamente, o estudo da obra de Oliveira Vianna e dos trabalhos de
pesquisa na teoria política que o professor Bandeira da Silveira vinha
desenvolvendo envolveram-nos em frutíferas discussões e ricos insights, em que
aos poucos foi emergindo a postulação de Plínio Salgado, que agora poderia ser lida
e compreendida como uma interlocução no âmbito da cultura política brasileira,
6
enquanto problemática. Cheguei por fim à conclusão de que a proposta política de
Plínio Salgado, de promover a revolução nacional por meio de uma mobilização
intensa e permanente do povo brasileiro - e não apenas por meio dos recursos
simbólicos, mas de participação efetiva, através do movimento do sigma -
correspondia, de fato, a uma alternativa bem distinta das concepções de Oliveira
Vianna e que este rejeitara.
Vianna, não confiava em nenhuma transformação efetiva da vida nacional
que se nutrisse de base popular, sustentada em movimentos de massa. Sua
proposta de Estado-forte era a de um Estado tutelar, tecno-burocrático,
desmobilizante, que recrutasse os quadros competentes e empreendesse as
reformas que o país necessitava. Seu autoritarismo conservador, desmobilizador,
contrapunha-se à proposta de Plínio que incluía - para além do Estado forte,
necessário - usar da mobilização popular permanente para desencadear uma
revolução do espírito que baseada rigorosamente na aplicação e obediência
irrestrita à doutrina integralista fosse removendo os aspectos perversos, nefastos e
anti-sociais da velha cultura política brasileira, secularmente arraigada.
Por todas essas razões, senti-me compelido a explorar, com base na
investigação da obra literária e doutrinária de Plínio Salgado, as raízes que
subjazem na sua cosmovisão e que lhe facultaram a elaboração de uma imaginação
política cujos traços constitutivos parecem valer-se de uma configuração
superhumanista, guardando, porém, uma peculiar feição propriamente pliniana de
apresentação.
Não se tratará, portanto, de enfocar diretamente o integralismo neste
estudo, sendo o seu objetivo restrito à produção ideológica do seu fundador e
chefe, e no período específico de elaboração e desenvolvimento da sua doutrina
política.
Assim, este estudo se apresenta dividido em três capítulos. No primeiro,
antecipamos os elementos filosófico-culturais que irão compor o esquema
7
intelectual sobre o qual se apóia a perspectiva superhumanista que dá suporte
teórico à pesquisa. Ainda aqui, a teoria do superhumanismo é apresentada em seus
fundamentos teóricos e nas configurações políticas que assume. Bem como os
desdobramentos subseqüentes que esta teoria experimenta no plano da filosofia da
cultura, permitindo, para além da original matriz germânica (de Nietzsche e
Wagner) uma inserção criacionista (via Bergson), à qual se permite vincular o
espiritualismo de Plínio Salgado.
No segundo capítulo, será apresentada a elaboração ideológica de Plínio
Salgado, precedida de sua trajetória no ambiente cultural brasileiro dos fins da
Primeira República, o debate modernista, os principais temas que irão figurar como
eixos centrais da sua reflexão, a argumentação e o tipo de linguagem que entram
na sua produção doutrinária até á fundação da AIB.
O terceiro capítulo, chega finalmente à Revolução Integral: a expressão
completa na construção ideológica de Plínio Salgado, como revolução do espírito,
forma atípica da idéia de superhumanismo, como construção da brasilidade. Para,
então, trazermos algumas considerações sobre o significado maior da elaboração de
Salgado, sua originalidade de construção no conjunto do pensamento autoritário
daquele período, enquanto proposta política diferenciada com relação a outras de
talhe similar.
Podemos crer que até a Segunda Guerra Mundial o Zaratustra e A vontade
de potência eram as obras, provavelmente, de maior difusão do pensamento de
Nietzsche junto ao público leitor. Nessa hipótese, os intelectuais brasileiros,
especialmente os mais ativistas ligados ao modernismo dos anos 20 e início dos 30
— alguns como Graça Aranha, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Plínio
Salgado e muitos outros — devem certamente ter tido acesso ao pensamento
nietzscheano por meio dessas obras e de excertos das mesmas.
No caso particular de Plínio, ao lermos suas obras doutrinárias encontramos
várias referências explícitas a Nietzsche, quase sempre resguardando uma
8
ambivalência entre a condenação recriminatória e a admiração ao filósofo. Tais
referências, contudo, nunca são acompanhadas de indicação bibliográfica, embora,
as figuras de Zaratustra e do Super-homem estejam presentes em alguns textos; o
que nos permite supor que - além de certa familiaridade e domínio da cosmovisão
nietzscheana - Plínio Salgado tivesse feito leituras da obra do filósofo alemão,
particularmente do Assim falou Zaratustra.
Estas ilações são pertinentes, desde que se considere que ao objeto central
deste trabalho se inclui, necessariamente, um tópico que nos remete ao encontro
fatal entre Plínio e Nietzsche e que, a meu juízo, foi tão decisivo quanto os que teve
com as idéias de Alberto Torres e as de Farias Brito - para o ulterior
desenvolvimento da sua cosmovisão da qual extrairia sua doutrina política, nos
anos 30.
Anexamos também, ao final deste trabalho, um relato resumido acerca do
rumoroso Caso Nietzsche, em suas linhas gerais. Pretendemos com isto prevenir
contra supostas objeções que resultem de mal-entendidos, quanto ao fato desta
pesquisa vir amparada num conceito de superhumanismo que, não obstante tendo
em Nietzsche um dos seus pilares mais originais e mais vulgarmente conhecidos,
de resto é, pouco usual na linguagem corrente da filosofia política.
Esclarecendo melhor, estamos nos utilizando de uma interpretação
competente (a de Locchi) para o fascismo, que se vale de uma leitura hermenêutica
e singular das obras filosófico-culturais de Nietzsche e de Wagner. Aparentemente
nada há de novidade - na vasta historiografia, particularmente, sobre o
nacionalsocialismo - em revelar apropriações ideológicas desses autores. Por outro
lado, exegetas pós-modernos do legado nietzscheano empenham-se em resgatar
Nietzsche daquele mundo de sombras, que teria facilitado aos ideólogos nazis
pescarem nas águas turvas do nietzschismo.
Devemos considerar que todos os esforços de pesquisa sobre a obra de
Nietzsche são importantes e necessários à produção do conhecimento - e o
9
empreendimento de Giorgio Locchi é um deles - contudo, nada nos autoriza crer,
que estejamos próximos de uma elucidação definitiva e clara da obra daquele
pensador e dos enigmas do seu espírito. Ademais, qualquer pretensão de nomear
um verdadeiro Nietzsche a pretexto de livrá-lo de certas ou espúrias manipulações
ideológicas - criando uma espécie de reserva de mercado de suas idéias - não deixa
de encobrir com tal ilusão o fato de torná-lo, ainda uma vez, disponível à captura
ideológica; qualquer que ela seja. O que, de resto, ocorre com todo e qualquer
grande pensador que haja influído com grande força criativa - como foi o caso de
Nietzsche - no curso da história das idéias.
Como nosso objetivo não é empreender estudo específico sobre Nietzsche e
sua produção filosófica, mas tem por horizonte o campo teórico da política e do
pensamento político brasileiro, em particular - as notificações apresentadas aqui
neste trabalho com referências à problemática nietzscheana, servem apenas como
orientação, como esclarecimento e subsídios para situar uma compreensão melhor
do objeto próprio desta pesquisa. Nada além disto.
Capítulo 1
Uma leitura em perspectiva superhumanista
Numa coletânea de textos dos anos 30 que foram alinhados sob o título de
Madrugada do espírito
5
Plínio tece considerações sobre o pensamento de Nietzsche,
onde se vê transparecer um misto de admiração, mas também de objeção aos
extremismos do filósofo alemão, particularmente, quanto ao seu anti-cristianismo.
Plínio reproduz nesse texto algo que virá sistematizado, em forma de livro, em
1934, ao publicar A quarta humanidade. Trata-se de uma postura intelectual de
crítica incisiva, contundente, à modernidade que se exibe aos nossos olhos - a
despeito de todos os avanços técnicos e progressos materiais descrita como um
triste painel de desesperanças, de incertezas e de sofrimento humano. Em meio aos
arranha-céus que se erguem soberbos nas grandes metrópoles, multidões se
apinham nas ruas e praças rumores das máquinas e sons estranhos se misturam
tentando abafar a dor e a solidão profunda que se abate sobre o homem moderno.
Para Plínio, esse painel de contrastes psico-sociais profundos, de euforias e
desânimos, de riqueza em abundância e miséria gritante, de busca ingente de
todos os prazeres sensuais, de desequilíbrios agudos e também de fuga da
realidade; resulta como obra mais acabada do triunfo do materialismo.
Nós estamos assistindo à morte do século XIX.
Os séculos não são limitados pelo calendário. Interpenetram-se.
Enquanto um nasce, outro morre. O século XIX está morrendo em
pleno século XX. Há uma surda tristeza na civilização
contemporânea (...)
(...) Esta tristeza está no século XX, mas não lhe pertence. É a
angústia do século XIX que se debate contra a morte. Já alguns
espíritos descobrem o sentido novo da Alegria e da Força. São os
vanguardeiros. O resto da Humanidade é o século XIX, que
agoniza.
6
5
Trata-se de uma compilação de artigos diversos escritos por Plínio Salgado
para jornais (como A Razão e A Ofensiva), de conferências ou mesmo de livros,
entre 1931 e 1936. SALGADO, P. Obras Completas- Volume 7.
6
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Madrugada do espírito: 359.
11
Plínio e Nietzsche
A eleição do cientificismo experimentalista, sob o manto de um racionalismo
absoluto, cultivado nos séculos XVII e XVIII, é levada às últimas conseqüências no
século XIX, com a rejeição e abandono do espiritualismo. Todos os entraves
econômicos e sociais são abolidos para a plena consolidação do capitalismo.
Sustentada politicamente no regime liberal-democrático, emerge a moderna
sociedade burguesa, pintada neste cenário, com as fortes cores da decadência.
Nestes textos, Plínio remete a Freud, Nietzsche e Marx,
7
e os apresenta
como intérpretes quase mediúnicos, cada qual, segundo seu ponto-de-vista, desta
sociedade moderna, com todos os seus triunfos e todas as suas misérias; produto
mais refinado do materialismo levado a dominar todas as expressões da existência
humana. Plínio vai designar esse complexo humano contemporâneo, como a
Terceira Humanidade - a humanidade ateísta - a qual estaria chegando, no século
XX, aos seus estertores. Duas forças, segundo Plínio, atuam e interagem no
movimento contínuo da história: são as forças cegas da matéria e as do Espírito.
Todas as sociedades e civilizações, das mais primitivas às mais complexas
apresentam índices de materialismo e de espiritualismo.
Todavia, a predominância de uma dessas forças em detrimento da outra,
dentro de uma mesma sociedade ou de um conjunto de sociedades, instaura o
sentido de uma época; novos ritmos sociais e humanos, novos planos e novas
finalidades.
8
Plínio escreve:
A História deve revelar-nos as posições do Ser Humano na sua
permanente gravitação. No desenvolvimento desses ritmos é que
7
Plínio, aponta a subjetividade do homem moderno - que se pretendeu liberta
dos preconceitos religiosos - como prisioneira de terrores íntimos do seu
subconsciente. No seu registro, a psicanálise freudiana é interpretada como o
esforço racional de decifrar esse complexo tumultuado dos instintos que
assomam perturbadores e incontidos: como outrora os povos primitivos
procuravam conhecer o mundo exterior através dos seus sortilégios e
superstições.
8
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade e Psicologia
da revolução.
12
vamos surpreender as três etapas, que poderemos denominar de
adição, de fusão e de desagregação.
9
Cada uma dessas etapas corresponderá a um tipo de humanidade; porém.
Plínio acrescenta que:
as sociedades espiritualistas acusam índices de materialismo; das
sociedades materialistas despontam traços de espiritualismo.
A formação das sociedades obedeceu a esses movimentos. A
Primeira Humanidade veio da caverna; até a criação do Politeísmo;
a Segunda, vem do Politeísmo ao Monoteísmo; a Terceira vem do
Monoteísmo ao Ateísmo; e a Quarta, que é a nossa, encontra-se
na mesma situação trágica da Primeira, diante do mistério
universal.
Depois da adição, da fusão e da desagregação, chegou a hora da
síntese.
10
É esta Terceira Humanidade, Ateísta, regida pelo signo da desagregação ou
de negação, pois subtrai das cogitações humanas a dimensão transcendental e
espiritualista da finalidade humana - que corresponde à época moderna, com todos
os seus prodígios, todos os seus dramas, seus delírios, possibilidades e erros.
Assim, Marx e Nietzsche soam, aos olhos de Plínio, como aquelas vozes cuja
inteligibilidade é perfeitamente adequada ao cenário da humanidade moderna que
negando a Deus, pretende preencher o espaço vazio deixado no coração do homem
pela positividade da Ciência, com seu senso analítico. Mas Plínio enxerga que há
algo de profundamente distinto a diferenciar esses dois grandes profetas da
negação extrema no Mundo Moderno. São ambos frutos maduros do mesmo
individualismo burguês exacerbado. Pois enquanto Marx se submete às leis do
determinismo evolucionista da filosofia burguesa naturalista e, inserindo nesta a
dialética hegeliana, chega à conclusão extrema do comunismo, isto é, da negação
absoluta dos últimos resquícios que ainda dão suporte á dignidade do individuo - a
moralidade, a Família a Propriedade - para submergi-lo completamente na grande
massa coletiva. O resultado final deverá então concluir pelo amesquinhamento
definitivo da personalidade humana.
9
Idem: 20.
10
Ibidem.
13
Nietzsche expressa, em relação ao individuo a mesma posição radical só que
no sentido oposto, inverso ao de Marx. Plínio observa que o clamor nietzscheano é
de um desesperado grito de revolta
contrapondo-se à mediocridade do pensamento burguês e ao
oportunismo conformista dos partidários de Marx.
Plínio assim define o que lhe parece o sentido político dessa revolta do
poeta-filósofo alemão:
Contra o individualismo rasteiro, egoístico da democracia liberal, e
contra o coletivismo, anulador da personalidade humana, o
pensamento gritante do criador de Zaratustra tem o valor de uma
revolta, sibilando como um chicote de fogo às faces do século
científico.
11
Esse o valor político principal que Plínio não deixa de reconhecer, ao fazer
sua leitura de Nietzsche, ainda que tenha de deplorar o seu anti-cristianismo de
desprezo aos humildes, de glorificação dos homens superiores. Poder-se-ia objetar
nessa ressalva que Plínio talvez estivesse sendo contraditório, pois ele mesmo em
sua doutrina reconhece o valor das personalidades excepcionais, daqueles que se
projetam no curso da história da civilização como gênios criadores, guias
exemplares, que em todos os campos das atividades humanas: do serviço, das
artes, das ciências, da política ou da mística religiosa, destacam-se das grandes
maiorias e erguem no plano superior do espírito a singularidade do humano em
suas possibilidades de grandeza. Mas o que Plínio reprova em Nietzsche é que sua
glorificação dos homens superiores se faça a partir de uma apostasia injuriosa anti-
cristã, saída da boca de Zaratustra, a impugnar contra o cristianismo, acusando a
este de ser a doutrina da tristeza, da humilhação, da subserviência, contrária à
livre expansão das forças heróicas do homem.
A voz de Nietzsche clamava que o Cristianismo era triste; que
imprimia um sentido deprimente á vida do Homem, quando este
devera ser alegre e forte.
O Cristianismo, porém, produziu Miguel Ângelo; o Anticristianismo
apresenta-nos as telas dadaístas, a pintura e a escultura de
deformidades e desesperos.
12
11
Idem: 100.
12
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Madrugado do espírito: 361.
14
O cerne da acusação de Nietzsche aponta para o senso moral do
Cristianismo, responsabilizando-o pela moral de decadência da era moderna. Com o
que, obviamente, Plínio não pode concordar, porquanto está convicto dos valores
essenciais do cristianismo como exaltantes e não depreciadores da dignidade
humana. Pois não lhe parecia haver maior exemplo na História de heroicidade e de
grandeza, na coragem e destemor e na determinação dos Santos e mártires
cristãos, no enfrentamento da morte, ao mesmo tempo em que conservavam o
mesmo espírito de serenidade, de brandura, de caridade e de compaixão para com
seus algozes. Não seriam esses, afinal, verdadeiros exemplos da força vivificadora
da Fé cristã; e que nada têm a ver com humilhação, subserviência ou tristeza,
imputados por Nietzsche ao cristianismo?
Todavia, ainda que se mostre patente tamanha discordância de pontos-de-
vista sobre a natureza da moral cristã e sua influência negativa (para Nietzsche) ou
positiva (para Plínio) na construção dos valores espirituais da cultura e da
civilização do Ocidente, essa dissonância resulta, em parte, das diferentes
perspectivas filosóficas em que se situam, na consideração última dos problemas
humanos - especialmente, quanto ao significado e sentido da existência humana.
Pois, enquanto Plínio permanece fiel ao tronco realista do aristotelismo fundido à
tradição católica, ou seja, de uma concepção dualista da vida (natural e
Sobrenatural), Nietzsche, rompido com toda a tradição teológica - pois não
encontra mais lugar para ela no mundo moderno - sente-se impelido para o
pessimismo mais atroz, tendo diante dos olhos o dilema de optar entre o
decadentismo do mundo moderno e o absoluto niilismo. Mas, desviando-se da trilha
do pessimismo absoluto de Schopenhauer, opta pelo niilismo, porém, para extrair
dele, num último esforço, algo de positivo.
13
Da radical destruição dos velhos ídolos
espera, então, que possam nascer novos valores, uma nova cultura urdida da
valorização do que a vida possa ter de imanência criativa e de vontade. E desse
13
LOCCHI, G. La esencia del fascismo: 4-5.
15
vitalismo nascido da irremediável morte de Deus (por assassinato, dirá Nietzsche)
que, inapelavelmente, arrasta o homem para a miserável condição moderna de
decadência, é que se deve erguer o ideal do Super-homem com sua afirmativa
Vontade de Poder.
Mas, apesar dos pontos fortes divergentes que separam Plínio desse modo
de pensar de Nietzsche - particularmente, com respeito ao cristianismo - e das
implicações profundas que isso acarreta, o diagnóstico nietzscheano sobre a
modernidade é, ainda assim, amplamente endossado pelo Chefe integralista.
Atitude condenável de orgulho, de superdivínízação dos heróis, ela
teve o mérito, porém (tão certo é que Deus fala pela boca de seus
próprios inimigos), de mostrar, no instante em que se delineava a
marcha coletivizadora, a anulação completa do individuo, prestes a
transformar-se em peça de máquina, esta verdade suprema: - O
Homem existe!
14
O erro, pois, em Nietzsche, não está na natureza e no sentido das verdades
que ousa proclamar, porém, na tonalidade das tintas, nas cores, talvez excessivas -
pela ausência de um senso de proporções - como modela e escolhe os alvos justos
e injustos da sua critica demolidora. Todavia, Plínio reconhece, uma vez mais, o
valor revelador, oracular de Zaratustra:
E Nietzsche é a grande lente de aumento, na hora em que o
homem começa a perder a estatura moral e a desaparecer
escravizado na massa.
Eis porque hoje verificamos que Nietzsche foi também um trecho
da verdade, deturpada pelas projeções exageradas com que se
apresentou.
15
Na comparação com Marx - intérprete da sociedade burguesa, mas cuja
linguagem, segundo Plínio, soa estranha e irreconhecível à própria sociedade
materialista - a voz de Zaratustra ecoa como um anátema contra o mundo burguês
do maquinismo avassalador que animaliza o homem ao extremo, reduzido à pura
fração das multidões coletivas que marcham para a proletarização e cujo desfecho
14
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade: 100.
15
Ibidem.
16
resultará no espectro aterrador do socialismo. Para Plínio, tal como para Nietzsche,
esse seria o último estágio de aniquilação do individuo livre.
Sobre esse panorama da miséria, reboa a voz de Zaratustra que
desce da montanha.
Mas ele, sendo também o êrro, é o contra-veneno de Marx.
16
Mas qual a posição do marxismo diante desse panorama atual?
O marxismo quer exatamente que não se interrompa esse curso evolutivo
dos processos materiais da produção e das relações sociais que engendra - por
mais dilacerantes e desumanas que possam parecer. Ao contrário, quer exacerbá-
las como lógica dialética da luta de classes que levará fatalmente à revolução
marxista e ao comunismo. Conta para tanto com essa matéria-prima essencial para
a revolução: essa massa de indivíduos proletarizados, desesperados, anulados na
sua personalidade, para quem: Deus, família, pátria, são sentimentos que nada
mais significam. Assim considerando, Plínio chega, então, ao último termo de
comparação entre Marx Nietzsche, e a posição do Integralismo:
O marxismo quer os anões de Niebelungen; Nietzsche conclama os
gigantes da Montanha.
Nós, os integralistas, não queremos nem, o anão, nem o gigante,
mas, apenas, o Homem.
O Homem Integral.
17
Mas podemos e devemos indagar se será apenas quanto ao diagnóstico do
decadentismo moderno que se podem encontrar afinidades entre Plínio e Nietzsche.
Creio que não apenas aí. Os lineamentos da psicologia desenvolvida pelo filósofo
alemão influenciaram uma vasta geração de homens de pensamento, além de sua
época. Plínio, sem dúvida, foi um deles. Estava convencido não só das verdades
parciais proclamadas com necessário vigor por Nietzsche, quanto as julgou
compatíveis com a visão que tinha da autêntica mensagem cristã. A imagem do
Cristo, não apenas pacífico, diligente e acalentador de esperanças - mas também a
do Cristo viril que brande sua ira sagrada contra os hipócritas e oportunistas
16
Idem: 101.
17
Ibidem.
17
vendilhões do Templo e os expulsa a golpes firmes da Casa do Senhor. Ou que
admoesta os fariseus sobre suas virtudes de fachada, sua falsa moral hipócrita e os
denuncia como sepulcros caiados - tal imagem enérgica e assertiva parece
nitidamente presente e marcante na compreensão que Plínio dá a doutrina de Jesus
Cristo: como mensagem e ação renovadora, e mesmo revolucionária, de uma luta
que há de ser constante e destemida contra toda iniqüidade dos que trapaceiam,
dos que se valem de privilégios de sua posição para humilhar; uma luta pela
justiça, pelo coração do homem e sua elevação espiritual ao plano de Deus.
Para Plínio, o cristianismo, na sua essência continua a ser o farol de Deus
que, embora esmaecido pelos descaminhos do orgulho e da soberba, do lucro
egoístico e do culto idólatra ao prazer, tornados dogmas do materialismo moderno,
recobrará um dia o seu vigor e brilho como fonte inexaurível da Verdade; da
restauração da harmonia e equilíbrio no mundo. Essa crença e confiança na
positividade do cristianismo que, ao contrário do parecer pessimista de Nietzsche, -
que o julga como fermento destruidor das fontes da Vida, da alegria e da força -
encontra em Plínio um sentido radicalmente oposto, isto é, de afirmação e de
vitalidade, de alegria e de esperança. Justamente, porque é a única religião
monoteísta em que o elo entre Criador e criatura fundiu-se no mistério da
encarnação do Verbo-divino na Pessoa - ao mesmo tempo humana e divina - do
Cristo-Salvador. E essa humanização do divino encarnado revelou-se como o
propósito de erguer o homem de suas misérias e fraquezas, não para subjugá-lo e
aterrorizá-lo, mas para que, nesse mistério da transfiguração, possa o homem
elevar-se e dignificar-se como a mais livre e superior das criaturas do plano de
Deus. Esse sentido da Revelação do destino transcendental reservado pelo Criador
ao Homem, trazido pelo cristianismo - que, entretanto, pode ser rejeitado pelo
livre-arbítrio humano (como faz Nietzsche) - impõe, no plano moral, o imperativo
de uma tomada de consciência clara dos deveres do Homem para com Deus, ainda
18
na existência terrena. Essa é a contra-resposta de Plínio, tanto a Marx, quanto a
Nietzsche.
18
De todo modo, quando Plínio se refere a Nietzsche como portador de parte
da Verdade e enfatiza os seus limites por estar ela condicionada pelo erro da
unilateralidade - razão pela qual pode e deve ser colocado ao lado de outra
unilateralidade: a de Marx; e que é também o erro - o que Plínio pretende é
demarcar que o erro essencial dos dois grandes pensadores do século XIX, não é
outra coisa senão o Ateísmo, por ambos invocado. Todavia, por estar mais próximo
das preocupações culturais e espirituais de Nietzsche (quanto à decadência do
homem moderno) e em oposição á lógica de Marx, compartilha daquele
diagnóstico, sem contudo deixar de deplorar a sedução do ateísmo desta Terceira
Humanidade. O mesmo ateísmo que leva o filósofo de Zaratustra a resvalar para
um materialismo, que ao mesmo tempo em que apostasia e calunia o cristianismo,
vai se ocultar sob o manto delirante de um neo-paganismo.
Plínio compreendia o grito lancinante de um Nietzsche desesperado pelo
Eterno Retorno, de depositar no neo-paganismo a esperança derradeira de salvar o
indivíduo e a cultura do naufrágio fatal no niilismo e no coletivismo massificante
que o tecnicismo avassalador fomentava. Compreendia o desideratum nietzscheano
do Super-Homem, nascido desse grito, desejoso de afirmar-se como força dos
instintos básicos da vontade de domínio, das personalidades livres que se recusam
a engrossar o rebanho tangido pelas falsas crenças da embriaguez niveladora e
igualitarista; dos que se rebelam contra o conformismo despersonalizante do
homem-plural. Faz suas, as mesmas reservas e a mesma desconfiança, nos planos
social e político, das de Nietzsche, quanto à democracia e o socialismo;
18
Em textos como O Sofrimento universal, Páginas de combate, Palavra nova
dos tempos novos (escritos nos anos 30) como em quase toda a sua obra
doutrinária, Plínio empenha-se em demonstrar que a sociedade moderna e
contemporânea é, em essência, anti-cristã, ainda que artificialmente, as elites
sociais cultivem uma exterioridade religiosa e muitos dos seus líderes se utilizem
da religiosidade popular e a explorem com interesses inconfessáveis. Por isso
entende que somente quem luta pelos valores cristãos autênticos é, hoje,
verdadeiro revolucionário; no seu duplo sentido de restauração e inovação.
19
particularmente enquanto fórmulas abstratas derivadas do intelectualismo
racionalista, não-orgânicas, aprisionadas ao fanatismo do dogma moderno: todos
os homens iguais.
Já num ensaio de Plínio, intitulado Literatura e política, datado de 1927 -
cinco anos antes do Manifesto Integralista de 1932 - ao qual ele mesmo atribuirá
importância significativa como preparação mental para a formação ideológica do
integralismo brasileiro, encontra-se esta referência ao clima de agitação modernista
que movia e sintonizava anseios e esperanças renovadoras em amplos setores da
intelectualidade nacional, dentre os quais destacava-se Plínio Salgado como
romancista consagrado,
19
ensaísta e poeta. Assim, fala Plínio:
Procurando novas formas e motivos na literatura, poesia,
romance, crônica... - acabamos por desejar um pensamento
próprio na esfera político-social. E como aquele individualismo
exaltado de Nietzsche, desbordando aqui da concepção do Super-
Homem, deu-nos a ânsia de nos afirmarmos como Super-
nacionalidade, quisemos também uma filosofia nova, uma nova
política, novos costumes, nova estética, novo sentido social. Dando
um balanço no que havíamos feito, verificamos nossa triste
condição de colônia mental.
20
Mas o que, afinal, propunha Nietzsche com sua filosofia?
O ideal da cultura e do homem em Nietzsche
Friedrich Nietzsche foi, mais que tudo, um filósofo da cultura. Como tal, propôs-se
a um ideal de cultura e um ideal para o homem, contrário ao curso que os
iluministas - particularmente, com suas crenças racionalistas no progresso contínuo
dos homens e na igualdade natural - haviam imprimido aos contornos sócio-
culturais da época moderna. Para Nietzsche, essas tendências eram nefastas e
destrutivas para as condições de uma cultura elevada, cujos remanescentes jaziam
soterrados no Ocidente europeu, desde um processo milenar e contínuo, cujo
sentido final conduzira, de modo irreversível à decadência e ao niilismo. Nietzsche
considerava que o início desse processo teria começado já na Antiga Grécia clássica
19
SALGADO, P. Obras completas - Volume 11. O estrangeiro.
20
SALGADO, P. Obras completas - Volume 19. Literatura e política: 41.
20
com o período socrático, sendo continuado e aprofundado com o triunfo do
Cristianismo o qual, como lhe parecia, era uma doutrina que exaltava a submissão,
que adotara uma moral de escravos e, portanto, hostil à Vida. O que a época
contemporânea demonstrava, segundo o filósofo, era a culminância desse processo
de perversão e declínio dos elementos superiores da alta cultura européia, em que
o homem moderno é rebaixado na força dos seus instintos criadores e genuínos,
para nivelar-se a todos os demais, despersonalizado como no ‘rebanho’; assumindo
valores de decadência e de negação à Vida.
Embora Nietzsche ao longo de sua trajetória intelectual intensa e da sua
vida tumultuada e trágica jamais tivesse demonstrado qualquer interesse ou apreço
maior pela política e, até mesmo a desqualificasse por julgá-la uma atividade
desviante e, em muitos casos, ameaçadora para os altos objetivos de uma cultura
elevada, contudo ele não desconhecia os vínculos íntimos entre ambas. Assim é
que, em muitos de seus escritos, deixou manifestas suas considerações sobre
temas políticos strictu senso, ainda que, conservando sempre o foco de atenção
principal sobre o seu objeto que era a cultura. Externou, portanto, opiniões
bastante depreciativas (bem conhecidas e vulgarmente citadas) acerca dos
Alemães e de sua pretendida e orgulhosa superioridade cultural, sobre o Estado
prussiano ou sobre o anti-semitismo que repudiava como pura inveja dos talentos e
da vitalidade imanente dos judeus. Do mesmo modo, Nietzsche jamais ocultou seu
desprezo pela democracia e pelo socialismo os quais julgava serem ideais
decadentes, típicos de uma época de decadência que pugna pelo nivelamento e
submissão dos fortes à grande massa submersa na mediocridade. Na verdade, seu
critério de avaliação política fazia jus ao seu ideal aristocrático da vida que estendia
tanto à cultura quanto à concepção que fazia do homem.
O ideal de cultura em Nietzsche envolve uma concepção da Moral e do
Homem sob um critério aristocrático. De tal modo que as concepções e ideais de
21
cultura contemporânea encontram nele um adversário resoluto e decidido. Ele di
num ensaio crítico que escreveu sobre David Strauss:
A cultura é, acima de todas as coisas, a unidade de estilo artístico
em toda expressão da vida de um povo. Os conhecimentos e o
saber em grande escala não lhe são essenciais nem são um sinal
de sua existência. E, em caso de necessidade, esses
conhecimentos e esse saber podem coexistir mais
harmonicamente com aquilo que se opõe à cultura - o barbarismo
- isto é, com uma absoluta falta de estilo ou com uma
desordenada amálgama de todos os estilos.
21
Assim, para Nietzsche, a cultura não se reduz simplesmente a saber, ciência,
Wissenchaft. Obviamente que Nietzsche ao desmerecer a cultura contemporânea -
e em particular aquilo que os homens cultos da Alemanha orgulhosamente podiam
exibir como excelência de suas pesquisas e métodos científicos - incluía também a
educação, a crítica e os padrões literários, as artes e a música. No critério de
Nietzsche, todo esse saber punha de lado algo essencial que escapa a uma pseudo-
cultura e que é o elemento vital de uma cultura verdadeira. Esse elemento vital e
essencial, para Nietzsche, não seria outra coisa que o autodomínio, a luta e a
vontade forte e que, simplesmente, significa Vida. Pois é a vida que tem de
dominar o conhecimento: não é o conhecimento que tem de dominar a vida –
A vida é o mais alto poder dominador, porque o conhecimento que
aniquilasse a vida aniquilar-se-ia também a si. O conhecimento
pressupõe a Vida.
22
Em resumo, cultura não é para o poeta-filósofo alemão simples erudição,
acúmulo de informações e saberes do passado que se avolumam como pedras
superpostas e erguidas numa babélica construção, como os monstruosos edifícios
modernos - construções imponentes, porém mortas, sem alma e sem vida. Ao
contrário, cultura significa um processo de vida, natural, original, criador e genuíno
e não um conjunto de conhecimentos historicamente acumulados. Poderá, sem
dúvida, incluir conhecimentos dessa natureza, mas esses não devem ser
considerados essenciais para constituir verdadeira cultura.
21
COPLESTON, F. S. J. Nietzsche. Filósofo da cultura: 57 a 61.
22
NIETZSCHE, F. Considerações extemporâneas - Vol. II: 96.
22
Como e quem será o construtor da cultura verdadeira e autêntica? Nietzsche
aponta para o homem novo que deverá erguê-la, dotado de uma nova moral,
ambas nascidas das ruínas da velha cultura e da velha moral que devem ser
destruídas. Todavia, o homem moderno, por sofrer de uma personalidade
enfraquecida, limita-se a saber e a lembrar, não podendo realmente assimilar as
valiosas criações do passado pois para tanto falta-lhe o vigor, a vida, necessários a
essa tarefa grandiosa.
Em O Uso e Abuso da História, Nietzsche aborda a missão da juventude
que constitui a primeira geração de lutadores e matadores do
dragão.
A sua missão é de
abalar até aos alicerces as modernas corrupções de saúde e
cultura e erguer como pendão o ódio e o desprezo por esse
amontoado rococó de idéias.
Realizando esta obra de destruição, a juventude poderá parecer inculta, mas
essa obra é um passo necessário para a cura da humanidade moderna.
Do ponto-de-vista da educação, essa juventude verdadeiramente
revolucionária será desinteressada dos elevados saberes doutos, da ciência e das
coisas famosas e bem consideradas pelo senso comum. Darão as costas a todas
essas coisas tão apreciadas porque buscam um caminho novo e valioso que conduz
à cultura autêntica e verdadeira e não à subcultura filistina que asfixia os espíritos
livres.
Mas, no fim da cura, serão de novo homens e não simples
sombras da humanidade.
Na verdade, essa atitude reclamada por Nietzsche para a juventude
mensageira da nova cultura pode ser tida como niilista, porém, tratar-se-ia aqui de
um niilismo positivo e não de uma atitude irresponsável de uma mocidade
destruidora e bárbara, puramente deracinée. Ao contrário, nesse mesmo ensaio,
fala Nietzsche do poder plástico de um homem, de uma comunidade ou de uma
cultura, afirmando que
23
quanto mais fundas forem as raízes da natureza íntima dum
homem, melhor se apropriará ele do passado; e, ainda, que a
natureza mais forte e mais poderosa se reconhece pelo fato de,
para ela, não existirem limites em que o senso histórico se possa
expandir por forma prejudicial.
Tal natureza deverá chamar a si o passado, digeri-lo e transformá-lo na
própria seiva. Um excesso de conhecimento do passado, um excesso de história,
tornará o homem falto de energia, quando ele necessitar de por esse passado ao
serviço do presente:
Se pudéssemos somente aprender a estudar a história como um
meio para vida!
Mas qual é o alvo próprio da cultura na acepção de Nietzsche?
A produção do gênio - eis o alvo da cultura, sendo esta o alvo da vida.
Sendo Nietzsche um ateu, a vida é por ele compreendida como desprovida de
qualquer fim que lhe tivesse sido dado, no sentido teleológico. Todavia, segundo
ele mesmo considera, nós nos vemos compelidos a lhe dar esse fim: e este é a
produção da mais elevada e superior expressão da raça humana, o gênio, o espírito
verdadeiramente nobre e original, o verdadeiro homem de cultura - que Nietzsche
acabaria por concretizar no Übermench ou o Super-Homem. A verdadeira e
autêntica cultura é, portanto, essencialmente, aristocrática: somente ela tornará
possível favorecer e promover o desenvolvimento de espíritos livres, os verdadeiros
aristocratas do espírito.
No seu ensaio sobre O Estado Grego, Nietzsche insiste sobre a base
aristocrática da cultura:
Para que possa haver um solo vasto, profundo e frutuoso para o
desenvolvimento da cultura, a enorme maioria deve, em serviço
da minoria, sujeitar-se servilmente à luta pela vida, num grau
mais elevado do que as suas próprias necessidades exigem.
23
Não hesitará em afirmar mesmo que a escravatura é da essência da cultura.
No livro Humano, Tudo Demasiadamente Humano, aparece a mesma idéia:
Só se poderá originar uma cultura mais elevada, quando houver
duas castas distintas na sociedade: a classe dos que trabalham e a
23
NIETZSCHE, F. A filosofia na época trágica dos Gregos.
24
classe dos ociosos que possam entregar-se ao verdadeiro ócio; ou,
em termos mais precisos, a classe do trabalho obrigatório e a
classe do trabalho livre.
24
Uma das principais denúncias acusatórias contra a cultura moderna filistina
é que esta é uma cultura negativa, uma barreira imposta no caminho de todos os
poderosos criadores, as cadeias que manietam aqueles que buscam metas mais
elevadas,
o orvalho envenenado que faz estiolar todas as esperanças que
começam a germinar, a areia que cresta todos aqueles pensadores
alemães que procuram uma nova vida e por ela estão ansiosos.
25
A cultura filistina não vê com simpatia qualquer pesquisa que se faça, mas,
pelo contrário, teme-a e a odeia. O espírito nobre, aristocrático e livre, aquele que
investiga e que descobre, aquele que ousa lançar-se por novos caminhos é a bête
noire da cultura filistina, que se agarra ao passado no que ele tem de morto, que se
apega às normas estabelecidas e que se julga como o edifício firme e estável da
cultura.
Quanto às possibilidades de unir o ideal da cultura ao ideal de sua
democratização por meio da educação, que era, sem dúvida, o ideal racionalista
básico dos iluministas, Nietzsche descarta-o completamente. Nos seus ensaios
Sobre o Futuro das Nossas Instituições Educacionais, ele fala do número
incrivelmente pequeno de pessoas realmente cultas e acrescenta:
E mesmo este número de pessoas realmente cultas não seria
possível, se uma prodigiosa multidão, devido a razões opostas à
sua natureza e levada unicamente por uma aliciante ilusão, se não
devotasse à educação.
Mas, logo a seguir diz:
Todo o segredo da cultura reside neste fato: há uma inumerável
legião de homens que lutam para a adquirir e se esforçam quanto
podem para esse fim, ostensivamente no seu próprio interesse;
quando afinal, trabalham apenas para tornar possível que poucos a
alcancem.
24
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 66-
67.
25
NIETZSCHE, F. Considerações extemporâneas – Vol. I: 13.
25
Nesta breve súmula sobre o ideário nietzscheano que, como vimos, centra-
se na problemática da cultura, devemos assinalar os dois pontos cruciais que
singularizam e tornam tão original quanto esclarecedor aquilo que se pode chamar
de a sua Weltanschauung. Trata-se, em primeiro lugar, da fonte primordial de seu
ideal de cultura e, em segundo, da rejeição de Nietzsche ao Cristianismo; como
paradigma oposto àquele ideal de cultura.
Para nosso mister, que não inclui uma exposição sistemática da obra de
Nietzsche, mas apenas situar os elementos mais significativos no seu pensamento
para a perspectiva superhumanista, bem como avaliar comparativamente o
pensamento de Plínio Salgado em referência a ela, seguimos assim numa
abordagem mais sintética e despretensiosa de dar conta da vasta obra do autor de
Zaratustra, porém, sem prejuízo do que lhe é essencial.
Como já assinalamos, foi na Antigüidade Clássica Greco-romana que
Nietzsche buscou seu ideal de cultura e do homem. Mais precisamente na antiga
Grécia pré-socrática, encontrou Nietzsche a mais bela, expressiva, profunda e
original manifestação da cultura superior já produzida no Ocidente. Viu nascer os
fundamentos dessa cultura elevada na Origem da Tragédia, onde se fundiram os
elementos afirmativos da vida, de mais vida, num triunfo verdadeiro sobre o
pessimismo.
26
Tais elementos teriam modelado a atitude dos gregos homéricos na
mais absoluta afirmação da Vida. Criaram assim seus deuses do Olimpo, todas as
artes, a ciência, e o sentido aristocrático de harmonização e equilíbrio do gosto e do
estilo sobre todas as coisas terrenas.
Não é, pois a Grécia do século V a.C. - do período de Péricles e do apogeu
ateniense - que é tomada como marco da grande cultura helênica, Nietzsche
prefere eleger a Grécia primitiva pré-socrática como o berço da verdadeira cultura -
época dos grandes homens. E esse fato vem ao encontro de um dos requisitos que,
26
Destaque-se a relação de Nietzsche com Schopenhauer quanto à questão do
pessimismo, ponto decisivo no roteiro nietzscheano em direção ao Super-
homem e que será esclarecido mais adiante.
26
segundo Nietzsche, se coloca para a verdadeira cultura - ser um meio para a
produção do gênio, isto é, do homem superior. Os grandes homens típicos desse
período são os filósofos pré-socráticos, os aristocratas do intelecto. Na sua A
Filosofia durante a era trágica dos Gregos escrevera ele:
Qualquer nação sente-se envergonhada, quando lhe apresentam
uma plêiade de filósofos tão admiravelmente idealizada como a
dos primitivos mestres gregos: Tales, Anaximandro, Heráclito,
Parmênides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates.
Todos esses homens são íntegros, completos, pouco comunicativos
e talhados dum só bloco. Há, entre eles a sua maneira de pensar e
o seu caráter, uma severa coação. São homens que não vivem
amarrados a qualquer convenção, porque nesse tempo não havia
classe alguma profissional de filósofos e sábios.
27
São aristocratas, de espírito livre e criador, procuram ver o mundo como ele
é e não olham para ele através da bruma dourada de uma moral idealista. São
essencialmente e instintivamente honestos, tornando-se assim a justificação da
primitiva cultura grega.
Se os primitivos filósofos gregos representam o período realmente grandioso
da Grécia, Sócrates e Platão representam o começo da decadência desse povo;
coube-lhes atraiçoar as melhores tendências do espírito grego e, por isso, são
fundamentalmente anti-helênicos.
A aparição dos filósofos gregos a partir do tempo de Sócrates é um
sintoma de decadência, os instintos anti-helênicos tornaram-se
soberanos.
28
No período anterior e primitivo da Grécia, o ideal é o espírito livre, o homem
nobre e não o dialético.
Instinto e Autoridade são suficientes; não havia lugar para a dialética.
Sócrates, contudo, introduziu o espírito dialético que representa não só a revolta da
razão contra o instinto, como também, o triunfo das massas populares sobre o
aristocrata.
27
NIETZCHE, F. A filosofia na época trágica dos Gregos: 79.
28
NIETZCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 87-
88.
27
A ironia do dialético é uma das formas da revindita do povo; a
ferocidade dos oprimidos reside nas frias punhaladas do silogismo.
Nietzsche pode ainda dizer que:
Sócrates conseguiu triunfar sobre um gosto mais nobre, ou seja,
sobre o gosto dos nobres, e a população tira da dialética o seu
partido.
29
A Grécia primitiva é a idade do instinto, a idade da aristocracia, a idade dos
Tiranos; a Grécia posterior é a idade da razão, da dialética, da democracia. Em vez
de nobreza - o ideal aristocrático - o conceito é divinizado e apresentado por Platão
como o novo ideal.
A grande objeção que Nietzsche opõe a Sócrates e Platão - e chegamos
então ao cerne da questão - é a noção que estes filósofos têm de uma moral
absoluta. Negando o ideal aristocrático do instinto e a relatividade da moral,
estabelecem como conceitos estáveis, padrões absolutos do bem e do mal. Ensinam
a imortalidade da alma, a doutrina do Além e a negação dos sentidos, voltam as
costas ao mundo e preparam o caminho para o cristianismo.
30
Enquanto os sofistas mantêm a relatividade da moral, Nietzsche exalta-os:
Os sofistas eram gregos; quando Sócrates e Platão perfilharam a
causa da virtude e da justiça, tomaram-se judeus, ou não sei o
que. A tática de Grote na defesa dos sofistas é uma tática falsa;
desejaria elevá-los a categoria de homens de honra e
moralizadores, quando a sua honra seria não transigirem, por
maio de grandes palavras e virtudes, com qualquer espécie de
charlatanismo.
31
Platão e Sócrates pertencem a esse conjunto: - considerando o prazer do
domínio como imoral, não tiveram a coragem suficiente e necessária para
identificar a felicidade com a vontade de domínio.
Ao acusar Platão de ter colocado a razão acima do instinto e ensinar a
imortalidade da alma e o caráter estável dos valores transcendentes, Nietzsche
apenas antecipou o ataque frontal que iria desfechar mais tarde á moral cristã
29
Idem.
30
Plínio Salgado faz aqui uma leitura diferente. Considera a posição de Platão
dúbia referente á imortalidade da alma.
31
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 88.
28
tomada por ele como corolário que amplia e aprofunda o sentido de decadência já
manifestado no platonismo.
O grande inimigo da Antigüidade, portanto, foi - segundo a conclusão de
Nietzsche - o Cristianismo. As suas considerações mais duras e arrasadoras sobre a
moral cristã aparecem evidenciadas em várias obras; particularmente, em: O
crepúsculo dos ídolos, Genealogia da moral e O Anticristo. A condenação ao
Cristianismo é um imperativo, um dever, por ser ele hostil à vida. Volta as costas à
vida - e foi sendo assim que destruiu a antiga cultura, exatamente porque era
através dela que a vida florescia. O cristão é um decadente e atua por uma forma
desintegradora, tóxica e estiolante, como uma sanguessuga. Eis porque: O
cristianismo foi o vampiro do imperium Romanum - numa noite estilhaçou a
estupenda realização dos Romanos.
32
O Império Romano foi assim definido:
(...) a mais magnificente forma de organização, sob difíceis
condições, que alguma vez foi realizada e comparado com o qual
tudo que o precedeu e tudo que se lhe seguiu é simplesmente de
retalhos, obra de fancaria e diletantismo foi destruído sem que
ficasse pedra sobre pedra, até que mesmo os Teutões e outros
labregos pudessem tornar-se senhores dele.
33
No parecer de Nietzsche, a organização romana era suficientemente firme
para poder resistir a personagens corruptos e maus imperadores:
mas não foi bastante firme para assistir a uma corrompida forma
de concepção, ou seja, ao Cristianismo.
Os cristãos destruíram a organização aristocrática de Roma, enfraquecendo
o sentimento da vida, sobrepuseram a sua religião dum outro mundo, pregaram o
ascetismo e uma moral que suga a sua força e vigor. E assim foi baldado todo o
trabalho do antigo mundo.
Mas esse trabalho de preparação foi posto de parte pelo
Cristianismo e privado do seu significado. Tudo isso foi em vão!
Numa noite converteu-se numa simples recordação! Os Gregos! Os
Romanos! A nobreza instintiva, o gosto instintivo, a pesquisa
32
NIETZSCHE, F. O Anticristo: 222.
33
Idem: 221.
29
metódica, o gênio da organização e da administração, a fé, a
vontade do futuro da humanidade, o sim a todas as coisas
materializadas no imperium romanum, tornadas acessíveis a todos
os sentidos, o grande estilo já não manifestado na simples arte,
mas na realidade, na verdade e na vida - tudo soterrado numa
noite, sem que tal fato fosse devido a qualquer catástrofe natural!
(...) Tudo destruído por uns vampiros audaciosos, furtivos,
invisíveis e anêmicos! A sede recalcada da vingança, da miserável
inveja, convertida em Senhor! Tudo quanto era digno de lástima,
tudo quanto no seu íntimo, se via avassalado pela dor, tudo
quanto se via possuído dos mais ignóbeis sentimentos, todo esse
mundo de almas judaicas se viu, dum momento para outro,
elevado à supremacia...
34
Mas a crítica da moral da qual a crítica ao Cristianismo se constitui no alvo
principal, no centro sintético de uma empreitada que é ao mesmo tempo, como já
observamos, de destruição e de criação, deve pavimentar o caminho da
transmutação dos valores, de todos os valores. Nietzsche, que odiava a moral
tradicional e acima de tudo a moral cristã, não propugnava pela destruição de todos
os padrões de comportamento e muito menos ensinava a imoralidade, mas seu
empenho consistia em substituir a tábua cristã de valores por julgá-la uma
falsificação perversa e oposta a verdadeira tábua. E não é menos significativo que a
obra de Nietzsche A Vontade de domínio traga como subtítulo, Ensaio de uma
transmutação de todos os valores. Ele mesmo declara que não é nenhum mero
niilista ou anarquista na esfera moral, mas que deseja substituir por novas tábuas
as antigas, não simplesmente desmascarar a moral, mas estabelecer um novo
ideal, ou antes restabelecer um velho ideal - que no seu modo de ver, foi
obscurecido pelo inferior e pervertido ideal da moral cristã. O seu radicalismo
aristocrático é, então, oferecido ao mundo como um ideal mais elevado do que o
ideal de decadência.
Em Ecce Homo, Nietzsche refere-se à sua campanha aberta contra a moral,
por ele inaugurada em a Aurora, dizendo-se o iniciador nesse desmascaramento da
moralidade cristã em sua essência.
Ninguém, até agora, sentiu a moral cristã indigna de si; para isso
havia necessidade de altura, de uma largueza de vista e de uma
34
Idem: 225-226.
30
profundidade psicológica que, até agora, não se acreditava ser
possível. (...) O que me define, o que me fez estar aparte de todo
resto da humanidade, é o fato de que desmascarei a moral
cristã.
35
Citando Zaratustra, diz:
que ele há de ser um criador no bem e no mal, um destruidor que
há de espatifar os valores.
Há de ser um criador de valores, mas para criar, é preciso primeiramente
destruir. O alcance dessa destruição envolve uma dupla negação: a negação do tipo
de homem que até, aqui tem sido considerado como superior - o bom, o amável e o
caridoso - e a negação da moral cristã, como moral da decadência. Nos diz
Nietzsche que esta segunda negação é mais decisiva - desde que a superestimativa
da bondade e da amabilidade é uma conseqüência da decadência e um sintoma de
fraqueza; é
incompatível com qualquer vida ascendente e plenamente
afirmada.
Eis a chave do ódio de Nietzsche à moral, que não é outra senão a
decadência ou fraqueza, isto é, uma atitude negativista perante a vida. Em Uma
tentativa de auto-crítica que serve de introdução ao Nascimento da tragédia,
Nietzsche indaga:
Que é a própria moral? Não pode a moral ser um desejo de
renegar a vida, um instinto secreto para o aniquilamento, um
princípio de depreciação, um começo do fim?
A moral cristã revela-se como um crime contra vida: ela ensina - de acordo
com Nietzsche - o desprezo por todos os instintos principais da vida. A moral cristã
é a moral da auto-renúncia e a auto-renúncia revela o desejo de insignificância,
renegando a vida até às suas próprias raízes. Essa moral contém como seu motivo
básico e força inspiradora, uma hostilidade para com a vida e é a criação dos
decadentes, dos homens que odeiam a vida e a renegam e que, no seu desejo de
se vingarem dela, estabeleceram uma tábua de valores e um código moral capaz de
algemar as forças ascendentes da mesma vida, de obstar ao crescimento e
35
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: 138-139.
31
desenvolvimento dos homens superiores e de tornar impossível o aparecimento do
Super-Homem. Nietzsche propõe-se, então, a definir a moral:
Moral é a idiossincrasia dos decadentes, impulsionados por um
desejo de se vingarem da Vida com resultado.
36
Tanto os moralistas como os teólogos têm falado da sua intenção de
aperfeiçoar o homem, mas isto é apenas um pretexto piedoso, um estratagema
para esconderem sua real intenção de drenarem a vida da sua energia e sangue.
Esta moral, portanto, longe de ser um meio de aperfeiçoamento do homem, é, na
realidade, vampirismo. O homem que, sendo na verdade fraco, doente e mal
concebido, deveria ser liquidado, é apresentado como um homem bom e é
considerado como o verdadeiro ideal, em vez do homem orgulhoso e bem
constituído, que diz Sim à vida. Este último tipo de homem é considerado pelos
moralistas como um mal. Esta perversão de valores, inspira absoluta repugnância a
Nietzsche.
Como se viu, Nietzsche identifica a vida com a vontade de domínio e
declarou que, em toda parte, encontrou essa vontade, tanto no escravo como no
senhor. A moral é, pois, uma expressão da vontade de domínio; mas de quem é
essa vontade de domínio? Esta é a questão crucial. No entender de Nietzsche, a
moral expressa a vontade de domínio do rebanho: sendo completamente distinta
da moral do senhor, a qual expressaria a vontade de domínio do homem superior,
do tipo nobre. Desmascarando a moral, Nietzsche descobriu três poderes que se
colocam ocultos por trás dela: 1) O instinto do rebanho, oposto ao forte e
independente; 2) o instinto de todos os que sofrem e de todos os abortos, em
oposição aos felizes e bem constituídos; 3) o instinto dos medíocres opostos às
excepções.
37
Assim, na história da moral, uma vontade de domínio tem o seu
significado; por meio dela, os escravos, os oprimidos, os falhados
e os esfarrapados, aqueles que sofrem de si próprios e os
36
Idem: 141.
37
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 149.
32
medíocres procuram fazer prevalecer aqueles valores que
favorecem a sua existência.
38
Desse modo, a moral desenvolveu-se à custa das classes que governam
(dos que estão naturalmente predispostos a dirigir e comandar), à custa dos bem
constituídos, dos fortes e dos belos, e assim opõe-se aos esforços da Natureza para
chegar a um tipo superior. É ela que nos arrasta a uma desconfiança da vida em
geral, desde que as tendências da vida são, em grande parte, avaliadas como
imorais, e nos arrasta também à hostilidade contra os sentidos. Há pois um conflito
entre a moral e a vida que atinge principalmente o tipo superior dos homens e o
resultado é sua degeneração e auto-destruição. Nos alvos de Nietzsche não se
incluía de nenhum modo a desorganização do rebanho. Ao contrário,
primariamente, visava ele mostrar com evidência aos fortes qual era a verdadeira
natureza da moral, e assim torná-los livres e dar-lhes a coragem necessária para
serem livres, seguindo o curso de uma vida sempre ascendente. O rebanho e os
decadentes podiam guardar a sua moral, contanto que a liberdade dos homens
superiores ficasse assegurada.
39
A moralidade, torna-se, assim, para o rebanho, um meio de auto-defesa
contra o forte. Os instintos fortes, tais como o amor pelos empreendimentos,
temeridade, o espírito de vingança, a astúcia, a rapacidade e o amor ao poder
40
foram a princípio estimulados e cultivados, sendo requeridos para o bem da
sociedade como meios de defesa contra os inimigos comuns; mas quando lhes
faltou esta saída, foram considerados pelo rebanho como perigosos, e assim
foram também gradualmente estigmatizados e passaram a ser
caluniados.
38
NIETZSCHE, F. Ecce Homo: 400.
39
Certamente que esse dualismo moral proposto por Nietzsche, não visava
destruir todos os padrões de comportamento ou consentir na imoralidade.
Tampouco seu ensino aludia a uma classe governante de homens superiores
cujas condutas se orientassem pelo ódio, pelo cinismo ou pelo apego aos
prazeres sensoriais; o que, a seu juízo, são predisposições morais típicas de
decadência e niilismo.
40
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 150.
33
Uma qualidade, uma disposição ou um instinto são coisas que se consideram
boas ou más conforme são ou não vantajosas para a sociedade e para a igualdade
comum, isto é, para o instinto gregário. O medo, portanto, é a mãe da moral. Os
instintos mais fortes e mais elevados, quando seguidos com ardor, arrastam o
indivíduo para além do normal e tendem a quebrar a autoconfiança da comunidade,
por isso tais instintos são condenados e denominados imorais.
Tudo aquilo que eleva o indivíduo acima do rebanho e é uma
origem de medo para o vizinho, é daí por diante, chamado mau;
uma disposição tolerante, modesta, acomodatícia e equilibrada,
bem como a mediocridade dos desejos, são coisas que alcançam a
distinção moral e a honra.
41
Nietzsche acentua o papel desempenhado pelo ressentimento e pelo
despeito na determinação dos valores morais. Os cordeiros tem rancor às aves de
rapina, e por isso dizem que as aves de rapina são más e que os cordeiros são
bons. Por outro lado este ressentimento não é uma reação imediata nascida da
afirmação positiva da própria individualidade (como a vingança do forte), mas é um
abafamento da própria ação afirmativa que a vingança propõe, em face da própria
fraqueza inibidora da coragem de agir. Transforma-se, então, em ressentimento,
cheio de despeito e veneno, nascido da atitude negativista do falto, do dependente
e gregário e da sua atitude de não afirmação perante a Vida. Falta-lhes a força
necessária para afirmar a vida ou estão ressentidos e despeitados com os fortes a
quem receiam. Impelidos por este medo, estabelecem um código moral que é
elevado à categoria de uma moral absoluta e de caráter universal, quando, de fato,
não é mais que um meio de defesa para o rebanho e um modo de expressar seu
ressentimento e despeito contra o forte. A moral, diz Nietzsche, é o inimigo da
Natureza. Todos os antigos propagandistas da moral eram unânimes neste ponto: il
faaut tuer les passions
42
. A Igreja, ao atacar as paixões em suas raízes, ataca a
própria vida. Esse mesmo ataque é instintivamente adotado por aqueles que
demasiado fracos de vontade e degenerados pelo excesso não podem moderar suas
41
Idem.
42
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos: 26.
34
paixões. Apenas os degenerados encontram os métodos radicais indispensáveis. E,
onde nós encontramos tal hostilidade radical contra as paixões, temos razão em
suspeitar da fraqueza de caráter, dos que apelam para tais extremos.
Em suma, sendo a moral hostil à vida e inimiga da natureza, ela é também
uma avaliação; e como tal, uma avaliação negativa da Vida. Ou melhor, de uma
vida depreciada:
da vida em declínio, da vida enfraquecida, da vida exaustiva, da
vida condenada.
Os fracos negam a vida e expressam esta negativa num código moral.
Devido à sua fraqueza, eles estão sentenciados a morrer e o seu código moral
apenas ratifica esta sentença. Aqueles, contudo, em cujas veias corre forte o fluxo
da vida devem erguer-se acima dos mortos e dos que estão morrendo, e afirmar,
com alegria e coragem seu desejo de viver e sua vontade de domínio.
Eis que a demolição da moral é protagonizada pela própria moral. E é isto
que Nietzsche pretende expressar quando atribui à moral cristã um caráter niilista.
No prefácio do primeiro volume de A vontade de domínio, encontramos esta
declaração:
(...) Toda a nossa cultura na Europa vem de há muito debatendo-
se numa agonia em suspensão, que cresce de década para década,
como na expectativa de uma catástrofe; é uma agonia sem
descanso, violenta, em debandada, como uma torrente que vai
atingir o seu termo, que se recusa a refletir e que receia mesmo a
reflexão.
43
Conclui, assim, que o triunfo do niilismo - o repúdio absoluto do valor, da
intenção e da desiderabilidade - é inevitável. Como isto se produziu? Nietzsche
explica que o niilismo se albergou no coração da moral cristã. Desenvolve-se aqui
uma importante explicação: O Cristianismo desenvolveu em alto grau o sentido da
43
Tal passagem poderia ter sido escrita por Plínio. Ela se traduz, provavelmente,
naquilo que o imaginário de Salgado codificou e registrou como a
impossibilidade da filosofia moderna em alcançar um novo espírito de Síntese;
por achar-se subordinada às unilateralidades e ao senso do provisório que
condiciona todas as Verdades oriundas do experimentalismo científico; isto é, do
analiticismo. Avaliação similar nos é fornecida por Locchi, o que sugere ser um
ponto central na epísteme de todo discurso Superhumanista.
35
Verdade e esta verdade por fim, voltou-se contra a própria religião cristã,
descobrindo a falsidade e o caráter fictício da interpretação cristã do mundo e da
sua história. Desta maneira, o ponto-de-vista cristão é, em última análise,
destruído pela moral cristã. Que acontece então? Alguns, vendo cair por terra esta
interpretação que eles julgavam a interpretação, concluem que já não há qualquer
interpretação, que tudo se mostra sem sentido, sem significado e sem um fim e,
desse modo, nada mais tem qualquer valor ou é para desejar. Outros tentarão
agarrar-se aos valores morais tradicionais, mesmo sem qualquer sustentação
metafísica ou teológica. Lançando mão desses valores como um meio de auto-
defesa, resistem, resistem às naturezas fortes e independentes e procuram
tiranizá-las. O resultado é que os fortes voltam-se contra os pretensos tiranos e
contra os seus valores morais, e tratam de os destruir. Em ambos os casos surge o
niilismo, embora no primeiro caso, esse niilismo possa ser de um tipo passivo e, no
segundo, seja ativo e dinâmico. Como resultado, a moral, com seus falsos valores,
conduz, portanto, a um inevitável niilismo.
Todavia, ainda que Nietzsche prognosticasse o triunfo do niilismo, estava
muito longe de o desejar como um fim. Muito pelo contrário. Na verdade
empenhava-se em superá-lo. Considerava-o como um ponto de apoio para a
afirmação de novos valores; a destruição do que é velho deverá preceder a criação
do que é genuinamente novo. O anarquista, ele mesmo, não escapa à condenação
de Nietzsche.
Acreditai-me, amigo Hollaballo! Os grandes acontecimentos não
são as horas ruidosas, mas as mais silenciosas. O mundo gira, não
em volta dos inventores de um ruído, mas em volta dos inventores
de novos valores. E ele gira silenciosamente.
44
Um dos mais significativos capítulos do Zaratustra denomina-se Velhas e
Novas Tábuas, Zaratustra grita:
Quebrai-me, quebrai-me as tábuas dos sempre descontentes!
Quebrai, quebrai as tábuas já velhas dos devotos e aniquilai as
máximas dos caluniadores do mundo.
44
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: 158.
36
Para dar lugar ao novo, o que era velho foi quebrado. Nietzsche quer elevar
os valores nobres ao trono. No lugar, portanto, da decadente moral do escravo ou
do rebanho, deve ser eleita a moral aristocrática ou do senhor:
O fim seria preparar uma transmutação de valores para uma
espécie de homem particularmente forte, mais altamente dotado
de intelecto e vontade e, com esse fim, libertar nele, uma hoste de
instintos caluniadores até então conservados em cheque.
45
Ao falar do Super-homem, Nietzsche estabelece a distinção entre esses dois
tipos de moral: a da classe dos que governam agradavelmente consciente de ser
diferente da classe governada e o outro tipo tendo origem na classe governada - os
escravos e dependentes de todas as espécies. Ele aponta para o fato de que:
(...) nas civilizações superiores e mistas fez-se uma tentativa de
conciliar estas duas espécies de moral, mas encontra-se ainda a
maior parte das vezes a confusão e um mútuo desentendimento
entre elas e, algumas vezes, a sua cerrada justaposição - até no
mesmo homem, dentro de uma só alma.
46
Mas o que, claramente, distingue essas duas espécies de moral?
Na moral do Senhor, aquele que governa é quem determina o conceito de
bom e assim a partir da disposição exaltada e orgulhosa, usando a antítese bom e
mau com a significação de nobre e desprezível. O tipo nobre de homem olha-se
como um determinador de valores; sabendo que é ele próprio apenas quem confere
honra às coisas, apresenta-se como um criador desses valores. Na moral do
escravo, são os escravos, os fracos, os que determinam os valores, usando da
antítese bom e mau, no sentido daquilo que é vantajoso ou desvantajoso para o
rebanho. Assim como a força, a beleza, o poder, a nobreza excedem as qualidades
opostas de fraqueza, fealdade, vulgaridade, mediocridade, etc., assim a moral do
senhor ocupa um lugar superior ao da moral do escravo e o senhor é superior ao
escravo. Temos, desse modo, uma ordem de categoria, em que o homem superior
representa uma linha ascendente da vida e o homem inferior representa a linha
descendente da mesma vida.
45
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 154.
46
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal: 260.
37
Nietzsche insiste continuamente nesta distinção radical e opõe-se a todos os
pontos-de-vista igualitários: democráticos e socialistas que advogam e exaltam a
igualdade dos homens, o que confere como resultado um nível geral de
mediocridade. No Zaratustra, diz ele:
Portanto, ó meus irmãos, há necessidade de uma nova nobreza,
que será a adversária de toda a população e domínio de
potentados, e inscreverá de novo a palavra nobre como novas
tábuas. Há necessidade de muitos nobres, de muitas espécies de
nobres, para uma nova nobreza. Ora, como eu disse uma vez por
parábola, esta é exatamente a divindade: há deuses, mas não há
Deus... A minha filosofia visa uma nova ordem de categoría.
47
O rebanho, porém, odeia toda ordem de categoria, o seu instinto coloca-o a
favor do nivelador; tende para um estado estacionário da sociedade, meramente
conservador e incapaz de criar. O tipo homem pode apenas ser elevado por meio de
uma nova ordem de categoria.
48
Eu ensino que há homens superiores e homens inferiores e que um
simples indivíduo pode, sob determinadas circunstâncias, justificar
milênios completos de existência - se se trata de um homem mais
rico, mais prendado, maior e mais completo, quando comparado
com inúmeros homens imperfeitos e fragmentários. O alvo a
atingir não é a espécie humana, mas o Super-homem.
49
Essa é a meta, o grande alvo de todos os esforços a que se deve mobilizar a
sociedade e orientar a cultura: a criação dos homens superiores. O Übermensch ou
Super-homem, eis o grande ideal, o sentido único pelo qual Nietzsche propugna
como meta criadora do futuro, para além do humano. O homem é, pois, algo que
deve ser
ultrapassado. O homem é uma corda estendida entre o animal e o
super-homem, uma corda sobre o abismo (...). O que há de
grande no homem é ser ele uma ponte, não um fim.
Por outro lado, sabe-se a tensão com a qual Nietzsche seguiu os trabalhos
de Darwin sobre a evolução das espécies. Contudo, para o filósofo alemão, o
Super-homem - o Úbermensch - não é um aperfeiçoamento do homem
47
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 155.
48
Essa postulação por uma nova ordem de categoria, a meu ver, contém a
essência do princípio Superhumanista.
49
NIETZSCHE, F. A vontade de domínio. Vol. II: Afor. 997 e 1001.
38
(übermenschlich). Aponta para um ser estruturalmente diferente, possuindo a sua
própria maneira de ser, a sua própria visão de mundo e de avaliação do sentido das
coisas. O super-homem é aquele cuja afirmação do Eu dá origem a uma nova
espécie. Aquele cuja concepção do mundo impõe-se por si própria com um tal
poder que se não poderá mais, após ele, pensar fora dele. Ele é o final acabado de
um projeto criador do passado no presente, o retorno sob uma outra forma daquilo
que foi. E, ao mesmo tempo, um acabamento. Porque o ser que se realiza, do
mesmo golpe se ultrapassa.
Para Nietzsche, o homem não tem sentido senão quando tende a ir além da
sua condição, isto é, quando não hesita em encarar sua própria desaparição: a
desaparição da sua própria natureza em favor da sobrenatureza que ele a si próprio
dará.
O Super-homem corresponde a um fim, um fim que é dado a todo
o momento e que talvez seja impossível atingir, ou melhor: um fim
que, no próprio momento em que é atingido, se repõe a si próprio
um novo horizonte. Numa tal perspectiva o homem apresenta-se
como um perpétuo ultrapassar do homem pelo homem.
50
Algumas interpretações tomaram a idéia nietzscheana do Super-homem
como a imagem apologética da animalidade feroz, do bárbaro possuído pela
vontade de domínio. O próprio Plínio, quando se refere ao Super-homem de
Nietzsche, deixa transparecer essa impressão. Todavia, o Übermensch, não é o
mesmo que animal feroz ou bárbaro. Nietzsche, sem dúvida, afirma que
no princípio a casta nobre foi sempre uma casta bárbara; uma raça
de homens mais completos (o que até certo ponto implica o
mesmo que feras mais completas);
51
entretanto, o seu ideal não era simplesmente um exuberante selvagem, mas sim
um homem do mais elevado desenvolvimento jamais alcançado em qualquer época,
quer mental quanto físico. E assim, diz-nos Nietzsche, de um modo bem explícito:
A Humanidade deve ultrapassar-se a si mesma, como os Gregos
fizeram sem qualquer indulgência para com estéreis fantasias.
50
LOCCHI, G. apud BENOIST, A. de. Nova direita. Nova cultura: 65.
51
NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal: Afor. 257.
39
Todo o espírito superior que se associa a um temperamento
doentio e nervoso tem de ser suprimido. A meta a atingir deverá
ser uma cultura superior de todo o corpo e não apenas do
cérebro.
52
O Super-homem, será, portanto um homem forte, mas também:
(...) um homem de tolerância, não por fraqueza mas por força,
visto que sabe como há de tirar proveito de tudo aquilo que
arruinaria uma natureza medíocre; um homem para quem nada é
proibido, a não ser a fraqueza, quer como defeito quer como
virtude.
53
O Super-homem chegará assim como o mais alto exemplo do sim, da
afirmação positiva da vida, tanto pelo que diz respeito ao espírito, como pelo que é
relativo ao corpo.
De outro modo, o que distingue o Super-homem dos homens comuns é sua
transcendência da moral (como Alcebíades e Napoleão, que são louvados por
Nietzsche), apresentando uma nova avaliação para além do bem e do mal. Ele
propõe-se, como um criador de valores a substituir a distinção da velha moral:
bem-mal pela nova distinção: nobre-mau. O tipo nobre por excelência olha-se
como um determinador de valores e não requer que o aprovem; pois é ele quem
profere julgamento: Aquilo que é injurioso para mim, é injurioso de per si. Sabe
que é apenas ele próprio quem confere honra às coisas, visto que é um criador de
valores. Por outras palavras: o bem é, originariamente, a classe nobre,
aristocrática; ela cria valores e assim constitui a sua própria moral - que é,
realmente, uma moral de estilo. Mal denota o homem vulgar e escravo, bem como
suas ações.
A moral judaico-cristã é, essencialmente, a moral do escravo ou moral do
rebanho, e Nietzsche exige um regresso à moral do senhor. Este é o significado dos
seus apelos ao homem (superior) para que siga para além do bem e do mal. O
rebanho pode (e até deve) conservar sua moral, mas o homem superior, forte e
viril, tem de quebrar as algemas da moral do escravo que lhe foi imposta e adotar a
52
NIETZSCHE, F. apud COPLESTON, F. S. J.: Nietzsche: filósofo da cultura: 125.
53
NIETZSCHE, F. O crepúsculo dos ídolos: 110.
40
sua própria avaliação, a moral do senhor, segundo a qual o bem = aristocrático,
nobre, assertivo, verdadeiro e poderoso. O homem superior e, acima de todos, o
Super-homem, que virá, não permitirá que o rebanho o engane com suas alegações
falsificadoras de compaixão e auto-renúncia, e saberá afirmar a sua própria moral
investida da categoria de nobreza, que é a moral do aristocrata. E assim como o
aristocratismo não consiste primeiramente em direitos, mas sim em deveres, assim
também a vontade de domínio dos homens superiores, antes de autorizar a tomar
obriga a dar. Sendo pura afirmação de si, essa atitude moral é necessariamente
criadora: ela acrescenta, não retira. O ideal do Super-homem cheio da disposição
do herói trágico não se pergunta mesquinhamente como o faz o burguês (ou o
proletário tal qual Marx o define) aquilo que pode tirar da existência, mas sim o que
pode ele dar à vida.
Mas o rebanho, temendo e odiando o homem excepcional, tem usado de
vários expedientes para conseguir que a sua moral seja a moral absoluta e única,
com a qual todos os homens se devem conformar. Nietzsche advoga o regresso a
uma dupla moral; uma para os homens superiores e outra para o rebanho? Alguns
intérpretes o têm afirmado; todavia isso não se apresenta muito claro na obra
complexa e, ainda, não de todo devidamente compreendida do grande pensador
alemão. O que é certo contudo, é que essa dualidade está posta de um ponto-de-
vista ontológico e demarca idealmente o princípio Superhumanista, o qual, insere-
se historicamente, em contraposição ao princípio igualitarista que conforma a
moralidade moderna.
Wagner e o sentido da sua obra artística
Ao lado de Nietzsche, Giorgio Locchi, coloca Richard Wagner como o segundo
profeta anunciador do princípio Superhumanista; desta vez, em sua outra face,
poético-musical. Tal como em Nietzsche, que fizera ou pretendia fazer da sua
filosofia-poética uma arma de destruição dos valores de decadência da época
moderna e de construção de uma nova tábua de valores - que fosse afirmativa de
41
Vida, nova cultura e nova moral - inspirada nos valores antigos da cultura greco-
romana; de modo análogo atuou Wagner, como artista, poeta e filósofo, na
segunda metade do século XIX.
Num ensaio sobre o festival de Bayreuth do Após-Guerra, Hans-Jürgen Nigra
escreve:
Só em Bayreuth, ou por intermédio de Bayreuth, o mito
wagneriano exerce o seu fascínio mais profundo e evoca com mais
força um mundo e uma humanidade antagônicos do mundo e da
humanidade atuais.
54
Ao mesmo tempo, parece visível que nenhum músico, pelo menos no curso
da História do Ocidente, provocou tanta polêmica e tantas paixões como Richard
Wagner.
Quer enquanto viveu, quer depois de morto, os seus adversários e
os seus defensores não cessaram de afrontar-se com violência
extraordinária.
Exatamente porque Wagner não foi, apenas, um músico mas
também um poeta, um homem de teatro (o maior genio teatral de
todos os tempos, disse Egon Friedell), um filósofo. E mesmo
enunciador da Regeneração dos Tempos. Mas foi também, quando
jovem, um ativista político revolucionário.
55
Poeta dramático, Wagner já o era em sua juventude, bem antes de se fazer
músico.
Em mim, afirmará ele, o elemento poético (másculo) fecundou o
elemento musical (feminino).
Houston Stewart Chamberlain acrescenta:
Declaro que nas obras de Wagner é impossível, realmente
compreender a música ou a poesia ou a encenação ou o jogo das
personagens, seja o que for, salvo se consentirmos primeiro em
considerar tudo sob o ponto de vista da ação dramática.
Mas, ao contrário do que ocorre na ópera italiana - em que a ação é puro
divertimento - de que a música, afinal, é simplesmente, o suporte. A ação
dramática na obra wagneriana forma um todo que precede a composição musical.
Em janeiro de 1859, Wagner escrevia:
54
BENOIST, A. de. Nova direita. Nova cultura: 495 a 505.
55
Idem.
42
As minhas concepções poéticas produziram-se sempre a tal
distância da experiência que devo considerar toda a formação
moral do meu espírito como tendo por causa essas concepções. O
Holandês Voador, Tannhäuser, Lohengrin, Os Niebelung, Wotan,
todos eles existiram na minha cabeça antes de eu os ver na
experiência.
Ainda, em dezembro de 1861, declarava a Matilde Wesendonk:
Só vejo imagens interiores, que querem realizar-se por sons.
A Tetralogia wagneriana é reconhecida como o equivalente musical dos
poemas gregos da Ilíada e da Odisséia, os quais ao serem recitados na Antiga
Grécia, possuíam igualmente um caráter sacral. Tal comparação confere ao drama
musical wagneriano a dimensão - no plano mais extenso da cultura musical
ocidental - de um ponto de chegada, de uma culminância e, ao mesmo tempo, de
uma síntese; tal como a obra de Homero, o foi para a poesia épica da Antigüidade
clássica.
Efetivamente, haveria uma trajetória musical na história ocidental moderna
que se demarca de Bach a Wagner. Plínio Salgado observa essa trajetória como
mutações do espírito no curso da modernidade.
56
No plano do pensamento, a
contrapartida se observa, partindo-se de Lutero para se chegar a Nietzsche. Nesse
aspecto, alguns intérpretes tendem a considerar Bayreuth como uma Reforma
Germânica da Arte. Jean Edouard Spenlé escreve:
Como a Reforma religiosa de Lutero, a arte wagneriana é o
protesto artístico da consciência alemã contra uma tradição
corrompida, o protesto da Fé viva contra as obras mortas, contra o
repertório rotineiro, contra o sacramento oferecido por preço vil.
Bayreuth simboliza a Regeneração e a Redenção da humanidade
pela Arte alemã.
57
Na verdade, importa considerar que essa idéia alemã, da qual Wagner é o
representante, nada possui ou expressa de um nacionalismo, no sentido moderno
deste termo. Ao contrário, origina-se na convicção de que
56
Somente no século XIX é que a obra de Bach foi divulgada. Ele foi para a
música do século XIX o que Kant foi para a filosofia: a grande nebulosa, que
produziu sistemas solares e planetários. Sua linguagem nova, seu poder
inventivo, colocam-no como um contemporâneo da época romântica. SALGADO,
P. Psicologia da revolução: 94.
57
BENOIST, A. de. Nova direita, nova cultura. Antologia crítica das idéias
contemporâneas: 498.
43
doravante, é necessário guiar a humanidade inteira para uma nova
aventura.
Ao que parece, essa transcendência ao especificamente nacional, mostra-se
fiel, no espírito de Wagner, a uma tradição que remonta no movimento romântico a
Fichte, onde se define como alemão todo homem que procede estritamente
segundo as suas convicções.’
58
O mundo fora considerado por Schopenhauer como uma música realizada; e
acrescentava:
Do fato de a música estar no coração das coisas e viver da sua
essência, resulta que ela tem poder sobre todos os objetos,
quaisquer que sejam.
Tanto para Wagner quanto para Nietzsche, a descoberta kantiana dos limites
da razão pura minara, de vez, a ilusão socrática. Ao mesmo tempo, ela revelara a
impotência radical da linguagem para alcançar e descrever a coisa em si. Daí, o
recurso à música, a essa linguagem das linguagens, este sânscrito da alma; esta
metalinguagem que é a única susceptível de exprimir o ser-em-si dos fenômenos,
sem que por isso os deva congelar no presente.
59
Na criação de Wagner, a música, como o drama (ou a tragédia) e o mito,
estão intimamente vinculados, num mesmo parentesco.
A música, diz ele, é uma idéia do mundo e, mais precisamente,
uma idéia do mundo que engloba tudo.
Quer dizer, totalizadora.
60
Esta concepção de uma arte total descende de uma antiga tradição que
remontaria à Idade Média, em que a música alemã aspirava a uma arte integral,
capaz de realizar a síntese e a ultrapassagem das diferentes formas de expressão.
Nesse mesmo sentido, o Tannhäser de Wagner pretende exaltar o poema e a
melodia, cujos desenvolvimentos paralelos já aparecem celebrados no Certame de
58
Idem.
59
Idem.
60
Idem.
44
Wartburg, de 1207. Esse mesmo fenômeno é verificado tanto nas baladas
populares quanto na canção; ao ponto de o poeta Heinrich Heine escrever que:
É preciso ter vivido na Alemanha para compreender, pela
popularidade do canto, e a da poesia a íntima aliança entre um e
outra.
61
Mesmo que esta marcha para a fusão das artes tenha sido temporariamente
interrompida pela difusão das Luzes (Aufklärung), no século XVIII e,
simultaneamente, pelo modo de pensar analítico; encontrará seu novo curso, na
época romântica, com Hölderlin, Novalis e Eichendorf.
Sempre idêntico e, no entanto, sempre renovado, o discurso wagneriano
articula-se em torno de certo número de imagens condutoras (Leitbilder) a
afirmação do Devir (por oposição ao Ser) - como nos esclarece G. Locchi, - o
pressentimento de uma ruptura (ou quebra ou fenda) no tempo histórico (Zeit-
Umbruch), a retirada e concentração sobre um passado mítico associada a um
impulso decisivo para o futuro, a presciência da ligação necessária entre o povo e o
gênio, o desejo nostálgico (Sehnsucht), etc. E a estas diferentes imagens
correspondem os Leitmotiv (motivos condutores) que são as suas transposições
musicais. A abertura já fornece disso uma prefiguração. Graças a eles, a idéia pode
ser sentida (experimentada), não só como uma impressão do presente, mas
também como lembrança (reminiscência) (Erinnerung) e premonição (Ahnung) do
futuro.
62
Certo número de personagens-chaves regressam regularmente: o
deus-pai, senhor-soberano do mundo (Wotan), o herói, símbolo da
função guerreira (Siegfrid, Tannhäuser, Parsifal), os coros
(cavaleiros-cantores do Tannhäuser, Corpos de Menestréis dos
Mestres-Cantores, confraria cavaleiresca do Parsifal, Valquírias da
Tetralogia), etc. Do mesmo modo, os temas são absolutamente
colocados para além do bem e do mal: tema da tragédia interior
(cujos conflitos exteriores são, apenas os reflexos), tema do
desejo sobre-humano (do auto-sacrifício e aspiração ao divino),
tema do gênio popular (da comunhão), tema da verdade da noite
e do poder do destino, tema das fidelidades contraditórias, tema
61
Idem: 499.
62
Idem: 499-500.
45
do começo e do fim de um tempo chamado a regressar
eternamente.
63
A tragédia nasce da música como de um seio materno. Ela re-
presenta, quer dizer, já realiza (sobre a cena) esta ídéia da música
e faz isto regenerando o mito; como única forma que permite
atingir e reencontrar a pureza das origens aquilo que para
Wagner se constitui no puro humano (Rein-Menschlwken). Wagner
não explica esta idéia do mundo. Realiza-a, por meio do Wort-Ton-
Drama, isto é, a associação, no seio da ação dramática, da palavra
e do som. Então, esta idéia organiza o espaço-tempo de um modo
radicalmente novo, instituindo o devir histórico da humanidade sob
a forma de uma tragédia governada pela lei do Retorno. Em todo e
qualquer momento, passado, presente e futuro coincidem. O devir
está aí. Só o seu centro muda e, com ele, as perspectivas que daí
resultam. À concepção do tempo, rejeitada por Wagner - enquanto
linearidade - substitui um tempo tridimensional que é o tempo
específico do devir da humanidade.
64
No drama wagneriano, escreve Giorgio Locchi, a representação
cênica é uma realização cênica da tridimensionalidade do presente
- quer dizer, da presença simultânea do presente, do passado e do
futuro - e também da natureza de perspectiva que cada presente
institui sobre a totalidade do devir representado.
65
A imagem do Anel dos Niebelungen, este Ring que deu o nome à
Tetratologia, é o símbolo vivo desta concepção esférica da história
- desta música do Eterno Retorno. E o acorde em mi bemol maior,
desenvolvido em 136 compassos, que abre o prelúdio do Ouro do
Reno, é, como Tomás Mann dizia, a representação da idéia do
nascimento do tempo.
66
No esforço de representar a idéia da música, Wagner quer ir além do
elemento sonoro. Apela ao conjunto das artes. Aspira pela arte total que não está
longe de considerar como a religião dos tempos novos. Nessa sua concepção há de
unir de modo indissociáveI a nota e a palavra, a música e o poema -
desencorajando antecipadamente qualquer esforço de tradução -, mas, pelo seu
constante recurso ao cromatismo, rompe com o sistema diatônico, demasiado
analítico, que afirma em vez de engendrar verdadeiros eflúvios musicais. Enfim,
Wagner exige a fusão integral dos timbres.
67
Em Bayreuth, o poço da orquestra coberto será precisamente
concebido para facilitar essa míxagem: devolvida à cena, graças a
63
Idem: 500.
64
Idem: 498.
65
L’Ideé de la Musique et lê Temps de l’Histoire, in Nouvelle École apud
BENOIST, A. de. Nova direita. Nova cultura: 499.
66
Idem.
67
Idem.
46
um teto de ressonância, a música chega depois à sala, unida à voz
dos cantores. Assim, surge a melodia infinita que faz do drama
wagneriano a ultrapassagem duma ópera clássica.
68
O mito wagneriano atinge, desse modo, uma expressão de
extraordinária densidade. Sua pujança foi tal que Nietzsche parece
ter tido dela um secreto ciúme, ao ponto de acusar Wagner (após
ter rompido sua amizade com ele) de só ter feito nascer
'sentimentos sobre-humanos para os canalizar para o reino da
imaginação - impedindo-os da realização concreta de uma idéia
desse modo limitada às ficções da cena.
69
Mas a obra de Wagner, em toda a sua criatividade revolucionária, tal como a
de Nietzsche, deitou raízes profundas. O círculo de Bayreuth desempenhará, nos
fins do século passado, um considerável papel na vida intelectual e política de uma
nação alemã que conseguirá enfim alcançar sua unidade. Ele participa, em especial
no desenvolvimento do pensamento nacionalista que atinge então todas as
camadas e classes sociais da Alemanha. Todavia, as ramificações do wagnerismo
ultrapassam as fronteiras alemãs, estendendo-se à França, à Itália, à Inglaterra, à
Escandinávia e inserindo-se, por fim, no patrimônio da alta cultura musical do
Ocidente. Wagner faleceu em Veneza, em 13 de fevereiro de 1883.
No verão de 1923, Adolf Hitler, introduzido por Alfred Rosenberg, dirige-se
pela primeira vez a Bayreuth. É ali recebido por Siegfrid Wagner (filho de Wagner)
e pela mulher, Winifred. Esse fato ocorre algumas semanas antes do fracassado
putsch nazi contra o governo bávaro. Anos mais tarde, após tornar-se chanceler e
chefe do Reich, jamais deixará de comparecer religiosamente a Wahnfried.
70
A teoria do superhumanismo de Giorgio Locchi
Um dos aspectos mais relevantes do estudo de Giorgio Locchi no texto La esensia
del fascismo
71
está na relação que estabelece entre a emergência ou instauração de
68
Idem.
69
Idem: 500.
70
Idem: 501.
71
Todas as referências a Giorgio Locchi ou citações desse autor foram extraídas
desse texto sobre o qual baseamos a exposição e os comentários acerca do
superhumanismo, enquanto categoria filosófico-política. Algumas outras
referências teóricas de Locchi foram extraídas do livro de Alain de Benoist Nova
Direita, Nova Cultura, mas não constam desta resenha, devendo aparecer
apenas em partes posteriores deste trabalho, com a indicação correspondente.
47
uma mensagem filosófico-política calcada num princípio ontológico novo e os
recursos de linguagem a que terá de apelar para sua transmissão, captação e
compreensão. Este seria um momento crucial para a intelegibilidade da origem da
matriz do fenômeno fascista.
Na crítica contundente que faz à mais recente historiografia sobre o
fascismo, chegando mesmo a desqualificá-la no geral, Locchi ressalta exatamente o
fato de tais obras olvidarem todo o vasto campo cultural, filosófico, artístico que é a
matriz do fascismo, que se engendra na segunda metade do século XIX cujas
primeiras formas de expressão política só irão aparecer cinqüenta anos mais tarde;
nas duas primeiras décadas do século XX. E isto, não apenas para aquelas formas
que se instituíram em regimes fascistas na Europa até à Segunda Guerra Mundial,
mas também para toda uma gama de movimentos similares que, não obstante, a
força social maior ou menor que representaram resultaram descomprometidas do
exercício do poder.
Nessa crítica, Locchi ressalta, por outro lado, o papel de algumas obras de
certos autores, nos anos cinqüenta e sessenta, que apesar de inimigos de tudo que
fosse fascismo souberam vez e discernir seu objeto; ainda que o tenham feito de
uma perspectiva hoje considerada inatual. Exemplos típicos por ele citados são: o
ensaio Dai Romantici ad Hitler, de Paul Viereck; Hitler and Nietzsche, de Sadvoss e
o estudo (que ele reputa como fundamental), A Destruição da Razão, de Georg
Lukács, do qual, segundo Locchi informa, existe desse mesmo autor um
compêndio, intitulado Von Nietzsche Zu Hitler. No entender de Locchi, tanto Lukács
quanto Viereck tiveram o grande mérito de destacar a origem primária, a matriz do
fenômeno fascista, reencontrada por ambos, num importante filão da cultura alemã
e européia. Ele descarta de qualquer significação - atribuindo-lhe apenas fins
propagandísticos - o fato desses autores (marxistas), posteriormente, haverem
introduzido em seus discursos o leitmotiv de uma espécie de ruptura qualitativa
entre aquelas origens filosófico-culturais e as manifestações políticas herdada no
48
século XX; caracterizadas segundo esses autores, pela incultura, a barbárie
intelectual e - em última instância - por uma vulgarização dos mestres Friedrich
Nietzsche e Richard Wagner, em particular.
72
Dentre estudiosos que se reconheceram fascistas ou se pretenderam
neutros, Locchi cita pela rara validade de suas teorias, sobretudo o italiano Adriano
Romualdi, que, por sua morte em plena juventude, deixou uma obra incompleta e
fragmentária, porém, com o mérito de ser quase a única na Itália em abordar em
seu estudo a totalidade do objeto, reconhecendo perfeitamente a matriz do
fenômeno fascista no discurso de Nietzsche e - por fim - haver posto em relevo a
lógica conclusão indo-européia a qual - como se poderá ver dos diversos
movimentos desse tipo (inclusive na cosmovisão de Plínio Salgado) - é a típica volta
às origens - projeto de futuro; compreendendo, assim, que para o fascista a nação
acaba sendo reencontrada mais que no presente, num longícuo e mítico; passado
perseguida depois no futuro. Land der Kinder (Nietzsche), terra dos filhos, mais que
a terra dos pais (Pátria, Vaterland).
Outra obra que Locchi relaciona como fundamental, porém, de um ponto de
vista completamente distinto, é o estudo de Armin Möhler Die Konservative
Revolution in Deutschland, 1918-1933. Este autor centra sua atenção sobre todas
as formas não diretamente comprometidas do fascismo alemão e põe
rigorosamente entre parêntesis o nacionalsocialismo, limitando-se a dizer
laconicamente (a expressão é de Locchi)
que a Revolução Conservadora alemã está para o
nacionalsocialismo o que o trotzkismo foi para o leninismo.
No seu comentário, Locchi destaca que isto não significa outra coisa senão
manifestar que de fato está presente a Weltbild (imagem do mundo) comum a
todos os movimentos fascistas (na acepção genérica do termo) que prosperaram na
72
Nesse mesmo contexto crítico sobre a vulgarização e deturpação dos mestres
remetemos à polêmica sobre O Caso Nietzsche, envolvendo a irmã do filósofo
Elizabeth Föster Nietzsche e a obra editada em 1904/1906, sob o título Der Wille
Zur Macht (Vontade de Potência). Veja-se em anexo, no final deste trabalho.
49
Alemanha, precisando admiravelmente como em seu seio se estruturavam toda
uma gama de Leitbilder (imagens guia) que, ao serem acentuadas de uma maneira
ou de outra, produziam como conseqüência as distintas formas ou correntes do
fascismo alemão, ou seja, da Konservative Revolution, nacionalsocialismo incluído,
(ainda que este se ache explicitamente ausente no discurso de Möhler). Locchi
esclarece que os termos Weltbild e Leitbilder se traduzem literalmente como
imagem do mundo e imagem guia ou imagem condutora, respectivamente, todavia,
para uma melhor compreensão, deve-se falar aqui de mito e de mitema, pois é
disso que se trata na realidade.
Mas o que parecia ter faltado no estudo de Möhler, Locchi acaba por
encontrar, como seu complemento, no excelente livro do marxista francês Jean
Pierre Faye Les Langages Totalitaire
73
(o que para o autor equivaleria a fascista,
segundo anota Locchi). Aplicando métodos da lingüística estrutural, Faye preenche
as lacunas deixadas no livro de Möhler, inserido o nacionalsocialismo alemão e o
fascismo italiano em uma bem distribuída topografia da Revolução Conservadora,
colocando o primeiro no centro sintético do campo conservador revolucionário
alemão. Locchi, contudo, faz uma ressalva: o texto de Faye considera tão-somente
o discurso político imediato dos movimentos fascistas de então, com suas
referências a problemas contingentes da época, ignorando a visão de mundo e por
conseguinte os pontos de referência intelectuais a que tais movimentos se
articulam.
Assim, considera Locchi, somente aprofundando o estudo dessas obras e
seus autores (incluindo-se outros similares) será possível alcançar uma real
compreensão do fenômeno fascista. Em síntese, nada se compreenderá do fascismo
se não se levar em conta ou não se quiser admitir que se trata de algo além de
mero acontecimento político. Locchi propõe que se veja o chamado fenômeno
fascista como:
73
Existe versão espanhola deste livro: Los Languages totalitarios’ Ed. Taurus,
Madrid, 1974.
50
a primeira manifestação política de um vasto fenômeno espiritual e
cultural que chamaremos superhumanismo, cujas raízes estão na
segunda metade do século XIX.
Este vasto fenômeno - explica Giorgio Locchi - configura-se como
uma espécie de campo magnético em expansão, cujos polos são
Richard Wagner e Friedrich Nietzsche. A obra artística de Wagner e
a obra poético-filosófica de Nietzsche exerceram uma enorme e
profunda influência sobre o ambiente cultural europeu do fin de
siède e na primeira metade do século XX, tanto em sentido
negativo (provocando rechaços) como em sentido positivo
inspirando seguidores (filósofos e artistas) e desencadeando ações
espirituais, religiosas e também políticas.
74
O que de fato a obra desses autores produziu foi uma atuação
eminentemente agitadora, não somente no âmbito cultural, mas estendendo-se,
depois, à esfera política. Resulta que sua importância, reside - no parecer de Locchi
- muito mais no princípio novo que introduzem no âmbito europeu que em sua
expressão mesma nas primeiras aplicações que deste princípio se hajam realizado.
A noção de princípio nos remete ao plano filosófico-político, devendo ser
entendida aqui como o sentimento de si mesmo e do homem, que enquanto se diz
a si mesmo, se auto-afirma, é um verbo (Logos): enquanto que persegue um fim é
vontade (pessoal e comunitária) e é também, imediatamente depois que
sentimento, um sistema de valores.
O que as obras de Wagner e Nietzsche propiciaram foi por em circulação,
mais que tudo, o princípio que delas imanava, ainda que este viesse a ser muitas
vezes imperfeitamente captado ou recebesse à guisa de sua novidade,
interpretações e aplicações inapropriadas. Pelos meios mais diversos e por vias às
vezes estranhas e subterrâneas este princípio foi sendo transmitido e recebido.
Mas, somente meio século após seu nascimento, quando começa a obter uma certa
difusão social, passando a ser aceito e tornado próprio por certos grupos sociais de
homens que se reconhecem nele, às vezes sem mesmo saberem da sua origem
primordial ou quem havia posto em circulação o novo princípio: assim, pois,
tiveram origem e se criaram os primeiros movimentos inspirados nele - os
movimentos fascistas.
74
LOCCHI, G. La esensia del fascismo. 1991: 24.
51
Locchi estipula assim, uma íntima conexão entre superhumanismo e
fascismo:
mais que a relação eminentemente intelectual que para os
marxistas existe entre a teoria e a praxis, o que existe é uma
relação genética espiritual, uma adesão às vezes inconsciente do
segundo ao princípio superhumanista, com as ações políticas que
dele dimanam.
Daí que se tenha podido dizer, ainda que a expressão seja pouco feliz, que o
fascismo é a ação à qual é imanente um pensamento, ou, ainda se tenha falado
também da mística fascista e do caráter quase religioso do fascismo.
O princípio superhumanista, em referência ao mundo que o circunda, coloca-
se como o inimigo absoluto de um oposto princípio igualitarista que é o que
conforma este mundo.
Se os movimentos fascistas individualizaram o inimigo espiritual
antes que o político nas ideologias democráticas - liberalismo,
parlamentarismo, socialismo, comunismo e anarquismo - é
justamente porque, na perspectiva histórica instituída pelo
princípio superhumanista, estas ideologias se configuram como
outras tantas manifestações aparecidas sucessivamente, porém,
ainda presentes todas, do oposto princípio igualitarista: todas
tendem a um mesmo fim com um grau diverso de consciência e
todas elas causam a decadência espiritual e material da Europa, o
envilecimento progressivo do homem europeu, a desagregação das
sociedades ocidentais.
75
Admite Locchi que, não obstante se possa afirmar terem tido todos os
movimentos fascistas um determinante instinto superhumanista, fica também claro
que tiveram dele um nível de consciência variável, e é precisamente este distinto
grau de consciência o que se reflete na graduada variedade dos movimentos
fascistas e em suas respectivas atitudes políticas.
A esta importante observação, Locchi ainda acrescenta:
Não é de estranhar, pois, que se todos combatem as formas
políticas do igualitarismo, às vezes não se definem contra suas
formas culturais ou se se definem, o fazem em menor grau.
Ademais, como ocorre sempre, entre campo fascista e o
igualitarista se cria um campo intermédio, oscilante com formas
espúreas.
76
75
Idem: 25.
76
É de se presumir que Locchi talvez incluísse nessas formas espúreas a
perspectiva pliniana do integralismo, quer por sua ênfase no espiritualismo
52
Mas o que essencialmente definiria a tomada de posição mítica de um
movimento fascista, consiste, segundo observa Locchi, na análise que se faça sobre
qual é a causa primeira e a origem do processo de decadência e desagregação das
nações européias. Nietzsche assinala que é o cristianismo, como agente
transmissor do princípio judaico que para ele se identifica com o igualitarismo.
Wagner, o outro pólo do campo superhumanista, em troca, só assinalou o princípio
judaico. Segundo ele, o cristianismo não seria mais que uma metamorfose das
ancestrais religiões pagãs, ainda que posteriormente se houvesse contaminado de
elementos do judaísmo, ao recorrer a Igreja e seus teólogos à tradição judia com a
finalidade de estabelecer dogmas à prática religiosa. Entre esses dois pólos (e as
respectivas análises) se inscrevem todas as oscilações do campo fascista, cujas
tendências assumem, por causa disto, atitudes diversas frente ao cristianismo e à
Igreja.
Locchi vê nas experiências italiana e alemã, em particular, como a ação
política se viu condicionada a respeitar os sentimentos de amplos extratos das
camadas populares que não podiam ser simplesmente ignorados. Por outro lado, os
fascistas estavam convencidos do interesse social de um sentimento como o
religioso, que atua como vínculo comunitário nas massas, e não desejariam vê-lo
destruído pura e simplesmente, senão ir progressivamente modificando-o,
reinterpretando-o, até conseguir num futuro, se haja transformado em uma coisa
muito distinta e em uma religião com um conteúdo novo, diferente da atualidade.
Assim, Mussolini (que, segundo se sabe, dizia-se ateu) buscou aproximar-se da
Itália Católica e, alcançado o poder, um modus vivendi se estabeleceu com o fim de
romanizar o cristianismo Roma donde Cristo é romano; ponto de vista ao qual a
Igreja não aderiu, replicando de forma concludente; nós cristãos somos todos
semitas. O III Reich, por seu turno, tolerou a igreja e buscou ainda tentar
cristão e adesão à catolicidade romana, quer pela proposta de uma sociedade
miscigenada como esteio material e espiritual da brasilidade futura. Mas tal não
é certo, é apenas uma conjectura a ser pensada.
53
desjudaizar o protestantismo, estimulando a cisão da Reichshskiche, favorecendo
aos deutsche Cristien e, mais ainda a chamada Gottesglaubigkeit, ou seja, a crença
na divindade, porém, numa divindade que já não era a da Bíblia. Locchi considera
que a posição extrema (que dentro de uma topografia superhumanista/fascista
ocupa, sem dúvida, o lugar central, por ser este o mais afastado das extremidades
do campo igualitário) é aquela propriamente sustentada pelos nietzchianos puros:
sustentando que tudo está apodrecido, rejeitando em bloco dois mil anos de
ocidente cristão (não retendo dele mais do que as manifestações de sobrevivência e
ressurgimento do paganismo greco-romano-germânico), prega um nihilismo
positivo e quer reconstruir sobre as ruínas da Europa uma nova ordem, dando
vida ao terceiro homem. Tudo isto em referência não só às formas políticas, senão
também às culturais, já que a cultura tem estado dominada pelo princípio
igualitarista.
77
Em resumo, com relação ao mundo que o circunda, os fascismos são
revolucionários no sentido mais radical da palavra, o que mesmo a reflexão mais
coerente de seus adversários parece ter reconhecido. O exemplo vem de
Horkheimer - filósofo de formação marxista - e que, segundo Locchi, acabou por
tornar-se apóstolo de um abstrato neo-judaísmo, reconheceu ao final de sua vida
que a revolução somente pode ser fascista, já que só o fascismo considera o mundo
atual do mesmo modo como os primeiros cristãos consideravam o mundo greco-
romano e o Imperium de Roma.
Do que se pode depreender até agora é que - do modo como Giorgio Locchi
expõe - o campo gravitacional gestado pelo princípio superhumanista se desdobra
em formas expressionais de atuação política singularizadas que, entretanto, se
opõem todas (umas com maior drasticidade que outras) à cultura dominante,
77
Locchi faz aqui uma referência à famosa frase atribuída a Goebbels, um
intelectual, que disse: Quando ouço falar de cultura, carrego minha pistola. Essa
frase é vulgarmente citada pelos adversários como demonstrativo do anti-
intelectualismo, do escárnio, da insensibilidade e da brutalidade dos nazistas.
Estes, por seu turno, não se furtavam em condenar como corrompida e
decadente a cultura dominante na Alemanha Weimariana, dos anos 20 e 30.
54
manifestada em todas as suas formas sociais e políticas. Deste modo, o
superhumanismo e suas expressões políticas se apresentam com um discurso que
não pode senão parecer irraciona’ a quantos estejam animados pelo oposto
princípio igualitário. Esta irracionalidade, que serviu a Lukács de principal
argumento filosófico contra o discurso fascista, designa, de fato, duas meias-
verdades confusas e superpostas, considera Locchi. Ele esclarece:
É verdade que o discurso fascista é um discurso mítico, ou melhor,
se baseia - ao menos - em um mito. Muitos autores fascistas
propuseram, explicitamente, um mito. O que isto, afinal, significa?
Retomemos aqui a temática inicial da linguagem e dos meios de
transmissão e veiculação do novo princípio; no exato momento em
que - ao se apresentar como novidade - terá de fazê-lo dentro de
um contexto cultural que lhe é estranho e hostil; por princípio.
A enunciação dessa mensagem, isto é, deste princípio cultural e meta-
político novo far-se-á por via de um recurso que deve apelar - antes do logos - a
certas figuras (por vezes esmaecidas ou simplesmente esquecidas) que catalizam
emoções coletivas num sentido de identificação, ou seja, por via de um mito.
Contudo, o que vem a ser um mito, na visão superhumanista das coisas? Locchi
nos dá a sua resposta:
O mito é um discurso de uma natureza particular, que se concebe
a si mesmo como uma novidade originária a qual, dizendo-se, cria
sua própria linguagem parasitando-se em outro. Existe mito
quando um princípio historicamente novo surge no seio de um
ambiente social e cultural todo ele informado e conformado - e em
primeiro lugar sua linguagem - por um princípio oposto. O princípio
novo, para dizer-se a si mesmo, deve necessariamente - já que
não tem ainda sua linguagem - tomar de empréstimo, por assim
dizer, a linguagem preexistente; porém, esta é uma linguagem
dominada por outro princípio, por outro Logos ou verbo e, sendo
assim, enquanto faz uso dela, deve, sem dúvida, negar-lhe a razão
ou mais exatamente a dialética conceitual que é - precisamente - a
do Logos adversário. Assim [conclui Locchi] o discurso de um
princípio historicamente novo, é sempre discurso mítico que nega
a razão da linguagem usada, e o princípio mesmo - em sua
novidade histórica - se dá como mito: um princípio novo é sempre,
enquanto novo, um mito.
78
78
O mito cristão da igualdade dos homens perante Deus transformar-se-ia, mais
tarde, em plena Idade Média, numa linguagem discursiva, cuja dialética realçava
cada vez mais os múltiplos contrários em disputa, afastando-se gradualmente
da expressão mítica original, dando lugar às diversas ideologias que iriam
compor o campo igualitarista.
55
Os efeitos imediatos dessa novidade geram, inicialmente, um verdadeiro
transtorno no âmbito cultural e político, produzindo embaraços, reações confusas
de ininteligibilidade, de adesão de alguns e de rechaço de outros que assim se
posicionam, ambos bem mais motivados instintivamente que por um discernimento
claro desse processo. Expressões mais drásticas desse transtorno no plano da
linguagem logo serão catalogadas como negativas à racionalidade discursiva, como
queda no irracionalismo, como barbárie.
Mas o que significaria concretamente negar a dialética da linguagem usada
(parasitada)?
Parece querer dizer que os contrários, os opostos instituídos como tais por
esta dialética, já não são sentidos assim, senão, bem mais, como uma parcial
unidade e identidade e de outro modo - podem expressar uma simples diferença,
ainda que não por oposição. Locchi, relembra como exemplo as postulações em
Wagner e mais claramente em Nietzsche, de rejeição da dialética cristã-igualitarista
do bem e do mal, nitidamente manifestada por este autor. Esse mesmo fenômeno
aparece evidente, ainda que no plano estritamente político, no âmbito dos
movimentos da Revolução Conservadora alemã, nos anos 20 e 30, quando estes,
designavam-se a si mesmos fundindo termos conceituais que o jargão igualitarista
da República de Weimar considerada antitéticos, como: nacional-bolchevismo,
nacional-comunismo, nacional-socialismo, conservador-revolucionário etc.
Em resumo, o discurso mítico é, na sua materialidade lingüística, um
discurso do qual está ausente o Logos (Verbo) que se identifica com o mito mesmo
enquanto que princípio. Em outras palavras: porque a materialidade da linguagem
permanece conformada por outro princípio, por outro Logos, nisto reside a
ambigüidade específica do discurso mítico. O que, no parecer de Locchi, foi algo já
assinalado por historiadores e estudiosos desde algum tempo, ainda que, por outro
lado, não tivessem se detido em individualizar as causas do fenômeno. Mas,
ressalva Locchi,
56
se o discurso aparece necessariamente ambíguo e irracional, o
mito não o é, de nenhum modo, na relação consigo mesmo: seu
verdadeiro Logos está, na realidade, bem presente, porém, fora da
materialidade do discurso, em quem o diz e em quem sabe
entende-lo. Um mito sempre pressupõe a existência de homens
que, mais além da linguagem empregada no discurso, o sabem
entender.
79
Explica-se assim, para uma compensação dessa deficiência na linguagem
conceitual (do discurso), a razão de utilização massiva de meios simbólicos
figurativos de comunicação, com ênfase na ritualização das práticas sociais e de
massas - a tão propalada estetização da política, sugerida por Walther Benjamin -
que foi uma característica geral dos movimentos fascistas.
80
Todavia, se o mito, para aqueles que o portam e o proclamam, é sentido
como um ponto de origem, uma novidade (reencontrada), para os que estão fora
dele se lhes aparece necessariamente como uma impossível volta ao primitivo, à
barbárie. Locchi destaca aqui que esta acusação de primitivismo e barbárie foi
lançada menos contra as ações dos fascistas (o que, mais tarde, foi assim
popularizado por meio da propaganda de guerra), senão contra sua concepção de
mundo, contra sua mentalidade. Mas a compreensão definitiva dessa dissonância só
se esclarece, segundo Locchi, quando comparamos as duas concepções da história.
Pois, enquanto a concepção da história derivada do princípio igualitarista é linear,
concebendo a história como um processo contínuo - linearizado - onde o presente é
sempre um momento pontual, dividindo a linha do devir em passado e futuro. Na
concepção superhumanista da história, o presente é uma representação esférica -
uma esfera do tempo - que tem por dimensões o passado, a atualidade e o futuro.
O presente mostra-se, pois, tridimensional: passado, atualidade e futuro; sendo,
79
A propósito, o filósofo e ideólogo do NSDAP, Alfred Rosenberg, punha no
prólogo do seu livro O Mito do Século XX esta sentença atribuída ao místico
alemão Mestre Eckhart: Este discurso se pronuncia só para os que já o dizem
como seu, através de sua própria vida ou, ao menos, já o possuem como
atormentadora aspiração do seu coração.
80
A contrapartida anti-fascista, ao modo de Brecht, talvez fosse responder com
uma politização da arte. Comentário de Philippe Lacoue-Labarthe: pois um
totalitarismo também é perfeitamente capaz de dar conta disso. Logo, para este
autor, estamos diante de uma coisa mais complexa, isto é, de uma fusão da
política com a arte, a produção do político como obra de arte. LACOUE-
LABARTHE & NANCY. O mito nazista.
57
também, totalidade do devir histórico, porém, sempre captado segundo a distinta
perspectiva pessoal de cada consciência.
81
.
Pode-se perguntar sobre a validade ou verdade destas duas visões opostas
da história, a igualitarista e a superhumanista.
Comentário de Locchi:
O historiador pode tão só constatar que uma e outra são reais, no
sentido de que existem historicamente, de que houveram homens
que as sentiram e que as sentem, que as pensaram e que as
pensam. Uma filosofia conformada pelo princípio igualitarista
considera falsa a visão superhumanista da história e falsa a
concepção esférica em que se baseia. Uma filosofia
superhumanística coerente deve considerar em troca a visão
igualitária da história como sendo própria da consciência do
segundo homem e, como tal, superada pela autoconsciência do
terceiro homem.
82
Nesse sentido, Locchi considera que os fascismos tiveram todos uma visão
superhumanista do tempo da história,
o que não significa automaticamente que os fascistas estivessem
plenamente conscientes dele nem - conseqüentemente - hajam
sabido representa-lo; mas é evidente que o juízo fascista sobre o
que é histórico no homem diferiu sempre, e difere, do igualitarista.
Locchi exemplifica que
para o fascista a esfera econômica do humano pertence
fundamentalmente à esfera biológica e não à histórica.
Isto explicaria porque conceitos como regresso, conservação, progresso,
perdem seu significado no uso que deles faz o discurso fascista em que às vezes
aparecem confundidos um com o outro. Locchi busca elucidar tais paradoxos
recorrendo às projeções na linha do tempo histórico superhumanista e às alegorias
nietzschianas do Eterno Retorno e do Zeitumbruch (a fratura do tempo da história)
e da Grande Melodia, lançadas supostamente como enigmas por Nietzsche, no livro
Assim falou Zaratustra. Assim no unidimensional, a projeção da esfera histórica
81
LOCCHI, G. La esensia del fascismo: 31.
82
Na concepção de Plínio Salgado o integralismo deveria superar historicamente
essa etapa fascista, ao projetar os lineamentos de um quarto homem – com o
triunfo do espiritualismo sobre o materialismo (do qual o fascismo é apenas uma
reação inicial) – inaugurando a Quarta humanidade que, do ponto-de-vista
filosófico-político, corresponde ao pós-fascismo.
58
configuraria um ciclo, o Eterno Retorno, sobre o qual todo progresso é também um
regresso: o idêntico que retorna eternamente é de ordem biológica e não é idêntico
senão de um ponto de vista material, não do ponto de vista histórico. O que é
histórico é a diversidade, com a aparição de formas novas, originais e originárias, o
que no limite pode chegar a regenerar a história mesma provocando a
Zeitumbruch. Não é por acaso que o termo genérico com o qual se auto-
designaram em seu conjunto todas as várias tendências e correntes do fascismo,
ou seja, o da Konservative Revolution, fala por si mesmo, qual era a sua visão da
história e que papel esperavam desempenhar nela, qual fosse o de provocar a
Zeitumbruch.
Resta considerar que sobre a base de sua específica visão da história os
projetos históricos dos movimentos fascistas se configuravam sempre como uma
volta, como um replicar sobre uma origem ou um passado mais ou menos longíquo,
que ao mesmo tempo é projetado no futuro como um fim a alcançar: a
romanidade, no fascismo italiano (com várias formulações: romanidade imperial,
republicana ou das origens), germanismo pré-cristão no nacionalsocialismo
hitleriano, monarquia tradicional no maurrasianismo francês...; poder-se-ia
acrescentar, um ideal de brasilidade com retorno às origens no império cristão luso-
tupi, no integralismo pliniano.
No quadro das distintas opções do superhumanismo, o discurso de um
movimento determinado acentua de uma maneira específica as distintas imagens
condutoras do mito, os mitemas. Segundo Locchi, um movimento fascista pode por
em primeiro plano mitemas que um outro coloca em segundo plano ou mesmo
ignora. Este é um dos pontos mais interessantes e comumente sujeito a equívocos
em estudos que abordam o fascismo; sob esse aspecto, as considerações de Locchi
são esclarecedoras:
A diversidade nesta acentuação é também reflexo de uma
densidade na interpretação. Basta pensar no mitema da raça,
assumido por uns como mitemas fundamentais, enquanto que
para outros é secundário e, em todo caso, é sempre entendido de
59
maneiras distintas - inclusive dentro do movimento
nacionalsocialista - pois não é certa a afirmação de Evola,
83
de que
se desse dele uma interpretação exclusivamente biológica: Evola
por outra parte, é reflexo de uma dessas tendências, analisando o
mitema da raça de acordo com as pautas da corrente Volkisch -
espiritualista.
84
Desdobramentos do superhumanismo
Indicamos até agora, uma exposição mais geral das concepções filosóficas de
Nietzsche, bem como do sentido renovador da obra de Wagner na arte Musical -
ambos identificados por Giorgio Locchi, como anunciadores, no século XIX, de um
novo princípio: o Superhumanismo - de natureza metapolítica - inaugurando um
campo cultural - e novas formas de sensibilização e percepção intelectual em
oposição ao igualitarismo moderno. Do campo cultural, as idéias superhumanistas
transmutam-se, no século XX, no plano da política, configurando-se nos diversos
fascismos europeus e, mesmo, não-europeus.
Assim, o princípio Superhumanista, segundo Locchi, introduzia uma unidade
ontológica de natureza mítica nos modos de sentir e agir fascistas - atuando como
um elemento que confere uma essência ao Fascismo. Não há pois, para Locchi,
nenhuma diferença essencial a distinguir o fascismo italiano do nacionalsocialismo
alemão, bem como destes e dos diversos movimentos que nos anos 30 foram
identificados quer por eles próprios, quer por seus inimigos e oponentes do campo
igualitarista (democratas, liberais, comunistas, anarquistas), como fascistas.
85
83
EVOLA, J. Revolta contra o mundo moderno. Este autor italiano (1878-1974),
amigo de Mussoline, recusou-se a aderir ao fascismo. Manteve-se como o mais
fiel representante do puro tradicionalismo europeísta das origens, na linha de De
Maistre, de Donozo Cortes e do esoterismo de Renée Guénon.
84
Parece haver fortes indícios de que a doutrina racialista de Plínio Salgado
sobre a comunhão das raças, traço da espiritualidade do brasileiro, do
matrimônio da Terra e do sangue das três raças, ou ainda da futura quinta raça
cabocla, como resultado material da revolução espiritual a ser promovida pelo
integralismo, inserem a formulação pliniana no âmbito dessa corrente racialista -
espiritualista, conhecida na Alemanha como Volkisch. Contudo, há que
esclarecer que tal inserção, em todo caso, conservou a solução do problema
racial brasileiro, dentro dos marcos do assimilacionismo. LOCCHI, G. La esensia
del fascismo: 35-36.
85
Alguns desses movimentos na Europa foram: Rexistas (Bélgica), Hungaristas
(Hungria), Guardas de Ferro (Romênia), Falangistas (Espanha), Camisas Negras
(Inglaterra). Na América do Sul: Nacionalsocialistas (Chile), Apristas (Peru),
Camisas douradas (México), integralistas (Brasil), etc.
60
Locchi chama atenção quanto à natureza e modo de expressão desse vínculo
essencial, pois sendo ele mesmo de natureza mítica, muitas vezes encobre
naqueles que militam e até assumem posições de liderança nesses movimentos,
uma consciência clara e nítida dessa vinculação. Todavia, essa mesma vinculação,
ainda que nem sempre haja sido manifesta expressamente, podendo mesmo ser
negado o caráter fascista deste ou daquele movimento - até por razões ditadas
pelas especificidades histórico-políticas dos contextos em que atuaram ou possam
vir a atuar - permanece, contudo, o sentir inconsciente desse vínculo. Mas ele
aparecerá, objetivamente, no que Locchi denomina por mitemas, que, do mesmo
modo que pode ser realçado e enfatizado um determinado mitema (como, por
exemplo, o mitema da raça, no nacionalsocialismo alemão; mesmo aí, em acepções
diversas: biologizantes ou espiritualistas ou culturalistas) num discurso fascista
determinado, o mesmo mitema pode aparecer minimizado, relativizado ou até,
ignorado no discurso de um outro movimento fascista. Assim como dentro de um
mesmo movimento podem surgir diversas interpretações distintas (como já
assinalamos) para um mesmo mitema. Em todo caso, porém, a interlocução é
sempre possível e permite a inteligibilidade dos conteúdos de cada discurso que se
traduz, então, por um modo de sentir, uma sensibilidade intelectual, daquilo de que
se está falando. Essa inteligibilidade superhumanista denota o vínculo essencial
expresso nos discursos com sua base mítica que, a despeito das diversidades das
expressões superhumanistas fascistas, possibilita que se anule todo
estranhamento, toda incompreensão dos que compartilham daquele mesmo sentir.
Daí o recurso às imagens poéticas, ao uso das metáforas e os apelos freqüentes à
intuição como antecipações do logos discursivo que se pretende como novo.
Por outro lado, o sentido místico e quase religioso de se valer da arte mais
elevada para mergulhar nas fontes germinais da alma alemã, o sentido ao mesmo
tempo criativo e regenerador da obra musical de Wagner - como arte integral - seu
senso romântico do nacionalismo que se transcende na humanidade: de um
humano tanto mais genuíno quanto mais elevado; por fim seu reencontro com a
61
saga mística cristã, no Parsifal, são alguns dos aspectos do gênio criativo de
Wagner. Sua obra foi um esforço de síntese espiritualista, talvez o mais
extraordinário e singular na história da cultura Ocidental. Religiosidade pagã e
cristã fundem-se por suas sagas e mitos no espírito wagneriano da grande arte
musical, revelando não apenas a alma germânica, mas, ao mesmo tempo, se
expressando como estética mais elevada do espírito europeu e, também, universal.
Esse transbordante sentimento de religiosidade que emana do drama
poético-musical de Richard Wagner, tão determinantemente espiritualista - no que
essa expressão tem de mais significativo e profundamente humano - confere ao
wagnerismo, naquela segunda metade do século XIX, uma dimensão mais
alargada, mais rica de possibilidades temáticas, ao superhumanismo. Permitindo,
inclusive, a assimilação de outras correntes de pensamento espiritualistas,
preocupadas no campo da filosofia da cultura, com os temas da decadência
moderna, da regeneração do homem, de novos valores e da vida mais abundante -
como foi o caso da filosofia intuicionista e vitalista de Bergson. Pois esse filósofo
soube encontrar, no âmago do Cristianismo, sinais afirmativos da Vida, no sentido
heróico dos santos, dos grandes místicos, da ascese cristã, onde a compaixão e o
altruísmo não significariam rebaixamento, perda ou renúncia à vida (como pretende
acusar o ateísmo de Nietzsche) mas, uma superabundância de Vida, e de vida
elevada, nutrida pela dimensão sobrenatural da existência. Sob esse aspecto, tal
heroicidade cristã, cujos exemplares são os Santos e os místicos, revelaria a
imagem de um Super-homem de outra face. Ou, dito de outra forma: de uma outra
face, mais espiritualizada, do Superhumanismo.
No Zaratustra, como já vimos, fixa-se uma posição central que é a idéia do
Eterno Retorno, juntamente com a doutrina do Super-homem e da Transmutação
dos Valores. Para alguns estudiosos da filosofia de Nietzsche - e, para muitos
críticos cristãos - a doutrina do Eterno Retorno implicaria na conclusão de que não
há no Universo um significado ou um sentido dado. O Universo não se pode explicar
62
a si próprio, nem pode por hipótese, ser explicado por qualquer coisa que esteja
fora dele: é um fato que temos de aceitar, renunciando a toda esperança de
explicação - explicação não é mais que um fogo-fátuo, uma ficção de teólogos e
filósofos idealistas. Platão, Kant, Hegel e seus associados, recusando-se a aceitar
esse fato que nos é posto, tornaram-se grandes mitologistas, inventando um
mundo ideal ou uma Razão Absoluta, ou qualquer outra coisa que pudesse explicar
aquilo que não pode ser explicado, mas simplesmente aceito como tal. Nesse
sentido, todos aqueles que têm se esforçado em conferir uma explicação’para o
Universo são, na verdade, caluniadores da Realidade em favor de um mundo fictício
e ideal. Contudo, renunciar de todo a uma explicação do Universo como sugere
Zaratustra não pode impedir que se mergulhe num absoluto pessimismo. Daí o
niilismo moderno. Resta, então, como recurso único: a afirmação da Vida terrena
para além do bem e do mal - o que quer dizer, para além da moral que abastarda a
vida; que a tem rebaixado ao nível do rebanho. Livre das peias da moral de
rebanho a vida, torna-se para os homens superiores, possibilidades de mais vida:
mais potência, mais força, mais inteligência, mais espírito, portanto, cultura mais
elevada, mais criativa. Esse novo potencial de Vontade liberado e erguido à
culminância só pode satisfazer às necessidades dos espíritos mais nobres. E dessa
associação da vontade livre com espíritos nobres e corpos sadios nascerá o
Übermensch - o Super-homem.
Nietzsche, busca operar aqui uma conciliação que combina pessimismo
metafísico com um otimismo psicológico, que conduz a forçar a natureza humana
até o extremo limite. Locchi, refere-se, então, ao que lhe parece ser, em
contraposição ao niilismo da decadência, a resposta de Nietzsche em favor de uma
ruptura radical com a tábua de valores decadentes, mas propondo afirmativamente
uma transmutação dos antigos valores nobres, como sendo um niilismo positivo -
63
porque não apenas nega os valores existentes - porém, instaura uma nova tábua
de valores, uma nova moralidade mais elevada.
86
Todavia, muitos pensadores sérios (e não apenas cristãos) continuarão,
ainda, a objetar contra Nietzsche, indagando-se - porque estão também
interessados não apenas na conservação de valores, mas no estabelecimento de
autênticos valores injetados de mais vida - como ser isso possível, na ausência de
um Alicerce metafísico? E é, exatamente neste ponto, que, a bom entendimento, se
pode compreender as junções e disjunções (sem ser preciso minimizar as
divergências em torno do Judaísmo) que acabaram, por fim, separando Nietzsche
de Wagner. A ruptura daquela amizade foi essencialmente ontológica e metafísica.
O Eterno Retorno wagneriano não era, de nenhum modo, uma opção ateísta, mas
mostrava-se suficientemente místico e até cristão - como se revelava no drama do
Parsifal - para que, aos olhos de Nietzsche, se caracterizasse como enebriante
decadência. Mas caberia à filosofia de Bergson e não a Wagner, desenvolver,
noutra dimensão, o Superhumanismo.
O criacionismo de Bergson
Eis que para Bergson, o Universo tem um Alicerce último e metafísico. O processo
evolucionário da Natureza é, apenas, o desdobramento concreto e material de uma
realidade que tem por trás a Vida Criadora, pois o mundo procede da mão criadora
de Deus. Há, portanto, um significado no Universo, e a realidade que
experimentamos não é um fato cego mas um esforço criador, uma progressiva
manifestação de Deus. E, ao contrário dos deístas, que isolam o homem desse
comprometimento divino para vincá-lo exclusivamente às leis férreas da Natureza,
Bergson afirma o lugar especial destinado por Deus ao homem, no plano divino da
Criação. A função de todas as religiões é sempre, em última instância, relembrar ao
homem esse vínculo especial e direto com a Divindade; isto é, com sua dimensão
transcendental. Mesmo que a natureza se apresente já à nossa experiência e à
86
LOCCHI, G. La esensia del fascismo.
64
sensibilidade do nosso espírito como um prenúncio dessa Vida Criadora, da mão
invisível de Deus, é apenas na religião que a transcendência se revela ao nosso
destino, infundindo no homem o senso profundo da moralidade e dos deveres no
projeto da Criação.
Não nos é possível precisar aqui qual o grau de influência direta ou indireta
exercida pelo pensamento de Nietzsche sobre o espírito de Bergson. Certo, porém é
que no âmbito da chamada filosofia da vida (lebensphilosophie) cada qual imprimiu
rumos diferenciados ao curso de suas reflexões.
Há, sem dúvida, não poucas similaridades no pensamento de Nietzsche e
Bergson. Assim, por exemplo, ambos olham a Vida como o mais elevado produto
da natureza e ambos reclamam sempre mais vida e mais altas formas de vida. Isso
já o pudemos observar em Nietzsche; quanto a Bergson, basta-nos penetrar em
algumas das principais obras desse filósofo, tais como: Matière et mémoire (Matéria
e memória), Évoluction créatice (Evolução criativa) e Les deux sources de la moral
et de la religion (As duas fontes da moral e da religião), para verificarmos o
vitalismo, como elemento central e irradiador de toda a sua reflexão filosófica.
87
Tal como em Nietzsche, Bergson assume uma postura anti-racionalista e
antidialética. Não obviamente, para negar o valor intrínseco da razão, porém, para
afirmar que há fontes genuínas de criatividade mais elevada que dispensam o
concurso direto da razão. Os poetas, os artistas, os místicos, os santos, os
fundadores de religiões, os grandes gênios criadores da ciência e da filosofia e
mesmo os grandes estadistas e personalidades excepcionais da história, deixam
impressos em suas obras o marco criativo de uma vontade poderosa e de uma
intuição profunda que os impele a criar; operando sobre a realidade para além da
racionalidade formal.
O modus operandi da filosofia de Bergson segue uma intuição ou ênfase que
guarda alguma analogia com o método de Nietzsche. Todavia, a filosofia
87
COPLESTON, F. S. J. Nietzsche e Bergson: 287-296.
65
bergsoniana se apresenta ancorada, mais fortemente, sobre o fato empírico do que
a de Nietzsche, ao mesmo tempo em que se utiliza de um critério mais cuidadoso
na abordagem da sua filosofia metafísica, ainda que seu estilo não nos ofereça uma
prosa tão eloqüente e versátil quanto a de Nietzsche. Enquanto Nietzsche tende a
expor suas observações particulares e assertivas em função de um ideal
preconcebido que ele afirma sem, de um modo geral, demonstrar qualquer esforço
para apoiá-lo com alguma tentativa de prova científica (ainda que se saiba da sua
atenção para com os avanços da ciência de seu tempo). Bergson, ao contrário,
partindo de um ponto de vista científico e biológico lança-se à tarefa de desbaratar
as postulações positivistas e materialistas, naquilo que o cientificismo modernístico
havia produzido de mais árido e, por que não dizer, de mais predador para a
cultura.
88
Há, no entanto, nesses dois filósofos pertencentes à mesma corrente da
Lebensphilosophie, sinais de identificação que os aproxima pelo estilo poético, pelo
entusiasmo, pelo frescor da atmosfera que envolve a sensibilidade com que captam
e referem a realidade, reagindo tanto contra o racionalismo conceptual de Hegel
como contra o cientificismo árido e puramente analítico do empiricismo. Em ambas
as filosofias, por outro lado, vemos a importância que se atribui quer a ‘vontade’,
quer ao grande homem, ao herói - exaltado tanto em Zaratustra e Vontade de
domínio, de Nietzsche, quanto em Deux sources, de Bergson. Em ambas, a vida
humana na sua ascensão deve culminar na heroicidade.
89
Mas, em que pesem as muitas semelhanças de duas abordagens filosóficas
que afinal emergem de um mesmo plano de sensibilidade intelectual, já tivemos a
oportunidade de apontar diferenças não menos significativas nas filosofias de
Nietzsche e Bergson e que oferecem vivos contrastes. Daí se pode considerar a
88
Idem.
89
Idem.
66
filosofia da vida de Bergson como a outra face do Superhumanismo em sua
dimensão cristã.
Ao contrário da concepção de uma Natureza atéia de Nietzsche que não nos
pode apontar nenhum sentido e nenhum fim e onde a afirmação da vida e de mais
vida e um fim que se determina apenas na e para a existência terrena; sem
qualquer esquema teleológico que a integre. Em Bergson, ao contrário, a vida, tal
como nos é dada deriva de um impulso da própria Vida, como Vida criadora - aquilo
que os aristotélicos chamam de Ato Puro - e que é geradora última de todos os
fenômenos. E essa Vida Criadora, que é Deus, opera constantemente, criando, no
movimento ascendente da mesma Natureza, novas e mais elevadas formas. Ainda
que Bergson só muito cautelosamente se refira ao sentido teleológico na Evoluction
créatice, dá a conhecer mais claramente seu ponto de vista em Les deux sources:
que a vida tem um sentido e que a vida humana opera a sua mais profunda
realização no momento próprio da união com Deus. Embora Bergson não possa
como filósofo tomar o encargo de explicar a teleologia do Universo, deixa contudo
lugar para a teleologia tal como ela é indicada pela Revelação cristã e pela
Teologia. O finalismo contido na filosofia de Bergson decorre, pois, do
reconhecimento daquele Alicerce metafísico que toda tradição clássica dos grandes
filósofos, de Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Tomás de Aquino e São Boaventura,
de Leibniz, Fichte e Hegel também reconheceram - mas que Nietzsche, nega.
90
Assim, ainda que este ou aquele pensador possa divergir quanto á natureza deste
Alicerce, seja este mais ou menos próximo da ficção, desde que se afirme tal
Alicerce, sempre haverá uma razão para se falar de significado. Essa é a diferença
essencial de Nietzsche, pois a recusa radical do filósofo a esse reconhecimento,
anula a razão de ser de qualquer significado; de qualquer sentido.
91
E essa é,
basicamente, a razão para que Plínio Salgado deplore a debilidade delirante do
90
Idem: 291-292
91
Ibidem.
67
recurso ao Super-homem anunciado por Zaratustra do alto da Montanha. Afinal, se
não há sentido, que motivo existe para apelar ao Super-homem? Não seria mais
razoável procurar a felicidade que nos fosse possível conseguir e deixar que a
nobreza se bastasse a si própria; como fazem os agnósticos? Será em nome dos
Valores Superiores? Mas os valores, são tidos por Nietzsche, como relativos; e, em
qualquer caso, faltando-lhes alguma base fundamental, ficam privados não só de
qualquer justificação, como de um critério essencial de seleção que escape ao puro
arbítrio.
Na filosofia de Nietzsche, toda ascensão da vida vai em direção ao Super-
homem e representa a mais fina flor da cultura, a mais elevada expressão da
existência, a ultrapassagem do homem. O Super-homem ergue-se á luz do futuro
no seu solitário esplendor, forte, independente, intelectual e profundo, nobre, com
uma lei moral apenas para si próprio, Senhor egoísta, envolvido na sua férrea
armadura de dureza, livre da brandura e da degeneração cristã. Mas uma pergunta
razoável não parece ocorrer a Nietzsche: por que devemos nós trabalhar e nos
empenharmos para a vinda de tal homem; por que devem ser sacrificados tantos e
tantos homens em escala colossal a um egoísta, por muito nobre e isento de
pequenez que esse homem possa ser?
92
Aos olhos de Plínio, também, o Super-
homem anunciado por Zaratustra é apenas o homem natural elevado a n graus:
nele estão por realizar alguma das mais elevadas potencialidades e a mais alta
vocação do homem; ele não pode ser levantado como um ideal, sem ao mesmo
tempo, abater, amesquinhar e injuriar o homem. Ele não pode ser o Gigante da
Montanha, sem pressupor os anões de Niebelungen.
93
92
Idem.
93
Plínio enxerga na proveniência do naturalismo que consagrara o
individualismo moderno, tanto Nietzsche quanto Marx, os quais - ainda que por
meio de formulações radicalmente opostas, - acabariam convergindo para
idênticas conseqüências. Se no primeiro, deve-se erguer sobre o rebanho a
aristocracia dos Super-homens, no segundo, a massa coletiva informe deve
engendrar os revolucionários conscientes condutores seletos, duros e
determinados da ditadura proletária para alcançar o comunismo. Ambos,
portanto, prescreviam o homem-massa como índice a pressupor suas
formulações idealizadas.
68
Comparativamente, bem diverso é o herói de Bergson, cuja preeminência é
conferida ao Santo e místico cristão. Formam estes Super-homens um poderoso
exército da espiritualidade do mundo á frente do qual encontram-se os
fundadores e reformadores da religião, os místicos e santos, heróis
obscuros da vida moral, que nós temos encontrado no nosso
caminho e que, aos nossos olhos são iguais aos maiores.
94
São conquistadores, mas eles o são, porque
quebraram a resistência natural e elevaram a humanidade a um
novo destino.
São homens de ação e não meros degenerados passivos porque estão cheios
daquela vida que vem de Deus.
Seguros de si próprios, porque sentem dentro de si alguma coisa
melhor do que eles próprios, provam ser grandes homens de ação,
com surpresa daqueles para quem o misticismo não passa de
arrebatamentos, visões e êxtases. O que eles consentiram que
corresse dentro deles é uma corrente em sentido descendente e
que procura, por intermédio deles, chegar aos outros homens seus
companheiros; a necessidade de espalharem à sua volta aquilo
que receberam e apoderar-se deles como, um ataque de amor.
São eles os recipientes da vasta corrente da Vida e da sua
crescente vitalidade irradia uma extraordinária energia, audácia e
poder de concepção e realização...
95
E Bergson, vê esse amor como um amor que cada um deles imprime em sua
personalidade, e se expande para além desses portadores exemplares e lhe permite
sugerir que:
Se uma palavra de um grande místico ou de alguns dos seus
imitadores encontrar eco num ou noutro de nós, não poderá
acontecer que haja dentro de nós um dormente místico que estava
apenas à espera de uma ocasião em que o acordassem?
96
Num texto dos anos da guerra, ainda durante seu exílio em Portugal, intitulado
Aliança do Sim e do Não, Plínio escreve: Entretanto, para existir o Super-
Homem de Nietzsche, é necessário que exista a massa coletiva dos Sub-Homens
de Marx. E para que exista o coletivismo marxista é forçoso existirem Super-
Homens dirigentes, de fisionomia, estrutura, sensibilidade e concepção de vida
exatamente as mesmas descritas no tipo dominador, engendrado pela poderosa
alucinação de Nietzsche. (SALGADO, P. Obras completas - Volume 6. Aliança do
sim e do não: 42). E concluindo: É aqui que se encontram Nietzsche e Marx.
Partiram de extremidades opostas, mas atingiram o mesmo ápice. Ambos filhos
do individualismo de Rousseau e do materialismo científico, e tomando como
base de seus raciocínios o egoísmo implacável do Homem na ânsia de satisfazer
seus instintos...
94
BERGSON, H. apud COPLESTON, F. S. J. Nietzsche: filósofo da cultura: 293.
95
Ibidem.
96
Idem: 294.
69
E o sentido deste amor, tal como Bergson o percebe, é o amor da
humanidade, o amor de todos os homens, um amor que é verdadeira participação
do amor de Deus pelos homens.
Porque o amor que o consome (ao Santo e místico) já não é mais
o amor do homem por Deus, mas o amor de Deus que se estende
a todos os homens. Por intermédio de Deus, na força de Deus, ele
ama toda a humanidade com um divino amor. Não se trata da
fraternidade que nos é recomendada pelos filósofos em nome da
razão, partindo do princípio de que todos os homens partilham
pelo nascimento de uma essência racional...
97
Para Bergson, o amor místico é algo bem diferente da fraternidade ainda
que esta como a extensão de um instinto que se origina numa idéia, seja um bem
desejável e merecedor de respeito. Esse amor místico, não pertence nem ao
sensitivo, nem ao racional. Contém ambas as coisas, porém, ele vai além;
coincidindo com o amor de Deus pela Sua obra;
um amor que foi a fonte de todas as coisas, esse amor descobrirá,
a todo aquele que o saiba interrogar, o segredo da Criação.
E Bergson resume a finalidade última dessa comunhão superhumanista do
amor cristão místico:
O que ele deseja fazer, com a ajuda de Deus, é completar a
criação da espécie humana e fazer da humanidade aquilo em que
ela imediatamente se tornaria, se tivesse sido capaz de tomar a
sua forma final sem a ajuda do próprio homem.
98
Desnecessário seria, indagarmos qual das duas aristocracias seria mais
nobre - se a de Bergson ou a de Nietzsche - aos olhos de um homem, como Plínio,
que, embora admirasse a honestidade de Nietzsche, e visse - parte da Verdade nas
palavras de Zaratustra - jamais deixou de proclamar sua profunda adesão e
confiança na Verdade do Cristianismo.
97
Idem: 294-295.
98
Ibidem.
Capítulo 2
A elaboração ideológica de Plínio Salgado
Comecemos por alguns dados biográficos.
Plínio Salgado nasceu na pequena cidade do interior paulista de São Bento do
Sapucaí, em 22 de janeiro de 1895. De uma família tradicionalista, de firmes
convicções católicas, seu pai era farmacêutico de profissão, Francisco das Chagas
Esteves Salgado e sua mãe, Ana Francisca Rennó Cortez, era professora da Escola
Normal. Os avós paternos de Plínio eram de descendência portuguesa, tendo o avô
estudado humanidades em Coimbra. Os avós maternos eram de descendência
espanhola, sendo seu avô, professor de línguas latinas e membro do partido
conservador do Império; e sua avó materna, filha de um capitão-médico da
cavalaria de Baden que emigrara para o Brasil, nos tempos da guerra de
independência. O pai de Plínio Salgado era, também Coronel da Guarda Nacional e
com o advento da República, tornou-se um ardoroso partidário de Floriano Peixoto
e fez-se membro do partido republicano local. Era muito admirado e respeitado na
região onde exercia forte influência política na vida municipal. Na educação dos
filhos procurava despertar neles sentimentos nacionalistas, relatando-lhes os fatos
e façanhas heróicas de Caxias e de Osório, bem como narrando fatos da vida dos
grandes estadistas do Império.
A mãe de Plínio, professora enérgica, mas amorosa, ensinou-lhe as
primeiras lições de história, geografia, aritmética, francês e história sagrada; tarefa
da qual também participava o seu avô materno. Depois, Plínio foi estudar no
Externato São José e finalmente foi estudar humanidades no Ginásio Diocesano de
Pouso Alegre, em Minas Gerais. Em 1911 com o falecimento do pai, Plínio teve de
interromper seus estudos e retornar à cidade natal.
99
A partir de então, passa por
99
Plínio Salgado teve nesse período uma breve estadia na capital de São Paulo,
onde esteve em contato com as correntes do materialismo científico, do
evolucionismo e do positivismo que predominavam na inteligência republicana
da época. Ele mesmo diz que nesse tempo, deixara-se seduzir pelo
materialismo.
71
sérias dificuldades financeiras, tornando-se autodidata. Vai devorar as obras de
Gustave Le Bon, Spencer, Haeckel, Lamarck, estabelecendo seu primeiro contato
com o pensamento materialista, naturalista e positivista. Exerce, ao mesmo tempo
uma multiplicidade de atividades. Em 1914, torna-se professor, dirige um pequeno
jornal local e um grupo teatral, cria um clube de futebol, ingressa no tiro de guerra
local e torna-se membro do Real Gabinete Português de Leitura.
Seus pendores para a vida pública se manifestaram logo, mal atingira a
maturidade. Reúne líderes políticos de várias cidades do Vale do Paraíba e com eles
vai fundar o Partido Municipalista visando a defesa dos interesses municipais locais,
contra a prepotência do governo estadual, isso já em 1918.
Mas o ano de 1918 foi extremamente rico e significativo para os
desdobramentos ulteriores da vida de Plínio, sendo marcado por grandes impactos
que se iriam refletir nas suas futuras elaborações mentais. Nesse ano, além do
envolvimento direto com sua primeira experiência política, chegava ao fim a Grande
Guerra na Europa, notícias da Rússia, com a tomada do poder pelos revolucionários
bolcheviques, traziam um misto de entusiasmo e inquietação. Plínio adoece
gravemente pela gripe espanhola que assola o Brasil, mas logo se recupera. Ainda
nesse mesmo ano, casa-se com Maria Amália Pereira. Todavia, em menos de um
ano, Plínio vê sua esposa falecer, deixando-lhe uma filha com 14 dias de nascida.
Golpeado tão duramente pelo infortúnio, com a pequena filha para manter e cuidar,
Plínio transtornado, reencontra-se com os antigos sentimentos religiosos que
herdara do ambiente familiar. Vai em busca do espiritualismo, através das leituras
de Farias Brito e Jackson de Figueiredo, pensadores que se posicionavam em luta
aberta contra o spencerianismo e o positivismo e todas as correntes do
materialismo moderno. A partir daí, Plínio fará uma transição das antigas posições
do materialismo positivista que o haviam influenciado após ter sofrido a perda de
seu pai, para uma nova concepção de espiritualismo que irá inspirá-lo, mais
adiante, na sua visão do integralismo. Ele mesmo, tempos depois, irá revelar esse
72
processo, o sentido em que considerou essas duas postulações antípodas. De resto,
essa reconversão ao espiritualismo, deu os primeiros frutos intelectuais, quando em
1919, ele publicou seus dois primeiros livros, Thabor, uma coletânea de poemas
líricos, sociais e religiosos e A Boa Nova, uma reflexão em prosa sobre a vida de
Jesus.
100
O ano de 1920, marcará um passo decisivo em sua vida e carreira pública.
Durante a campanha do partido municipalista às eleições locais, ocorre um tiroteio
com a polícia e Plínio acaba sendo preso. Tão logo posto em liberdade, Plínio sentiu
não haver mais clima propício para exercer suas atividades jornalísticas e políticas
com um mínimo de segurança em sua pequena cidade, e parte em viagem
definitiva para a capital.
Em São Paulo, Plínio irá passar os próximos dez anos, com ausências apenas
temporárias, levando à frente com grande pertinácia as duas atividades que, além
do jornalismo, mais o entusiasmavam e para as quais sentia-se vocacionado: a
literatura e a política. Ambas fariam dele um nome nacionalmente conhecido.
Chegando a São Paulo, Plínio Salgado foi trabalhar como suplente de revisor
no Jornal Correio Paulistano, órgão oficial do Partido Republicano Paulista - PRP, a
força política hegemônica, contra a qual, ironicamente, Plínio havia se confrontado
nas suas refregas políticas em São Bento do Sapucaí. Um ano depois, foi trabalhar
na redação do jornal, a convite de Menotti del Picchia, redator-chefe e um dos mais
ativos divulgadores das novas idéias estéticas e que logo se interessou pelos
trabalhos literários de Plínio e o introduziria na Semana de Arte Moderna, de 1922.
Plínio teve uma participação discreta na Semana Modernista, embora alguns
poemas seus tivessem sido ali apresentados com sucesso. Contudo, já na segunda
fase do modernismo, após 1925, a sua presença se amplia. No final de 1922, Plínio
teceu um comentário crítico sobre os rumos que lhe pareciam pouco salutares e
ambíguos nos trabalhos da semana:
100
CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: 196-197.
73
as revoluções de arte moderna serão um perigo para os povos sem
cultura, agirão como elemento dissolúvel, em vez de construtor,
desorientarão completamente os novos e corresponderão para o
senso estético das turbas a um movimento de anarquia e
regresso.
101
Enquanto se manteve contido em relação à Semana Modernista, sua atuação
no jornal proporcionou-lhe contatos com intelectuais e políticos do estado, abrindo-
lhe novas perspectivas. Nesses encontros, Plínio aproxima-se de um grupo que
tentava formar uma ala dissidente, dentro do PRP, ansiando por uma renovação
nos métodos de atuação política do partido. Essa dissidência, chamada Coligação,
opunha-se ao presidente do estado Washington Luís. Neste grupo estava Alfredo
Egídio de Souza Aranha, um rico advogado e empresário que firmaria uma sólida e
proveitosa amizade com Plínio Salgado. Essa dissidência abalou a hegemonia do
perrepismo no estado, mas fez crescer a imagem política de Plínio no seio da ala
renovadora, capitaneada por Júlio Prestes, que logo sairia candidato à sucessão de
Washington Luís no governo estadual. Sentindo-se moralmente comprometido na
dissidência perrepista, Plínio demitiu-se da redação do Correio Paulistano e, a
convite de Souza Aranha, foi trabalhar no seu escritório de advocacia. Nesse
período, Plínio prosseguiu em sua atividade literária e jornalística, agora,
dedicando-se à prosa e menos à poesia, escrevendo crônicas e ensaios que seriam
publicados mais tarde, na coletânea Discurso às estrelas.
102
O ritmo da construção
Em 1926, Plínio realizou um sonho que vinha acalentando, publicou o seu romance
O estrangeiro, que alcançou enorme sucesso, inclusive de boa parte da crítica que o
considerou o primeiro romance brasileiro de feição e estilo modernos. O evento
tornou Plínio Salgado um dos autores mais famosos e prestigiados do movimento
modernista da segunda fase. Na repercussão do sucesso literário, além da inovação
101
SALGADO, P. Obras Completas - Volume 19. Literatura e Política: 143. Todas
as citações de Plínio Salgado, ao longo deste trabalho, são extraídas das Obras
Completas, em 20 volumes, publicadas pela Editora das Américas, em 1956.
Quando houver citação extraída de publicações avulsas desse autor,
excepcionalmente, faremos a devida indicação.
102
SALGADO, P. Obras Completas - Volume 20. Discurso às estrelas.
74
estética, na forma estilística, havia uma mensagem política no conteúdo da
narrativa. Mais tarde, Plínio diria, já nos anos da década seguinte, que aquele
romance fôra o seu primeiro manifesto integralista. Essa era a concepção totalista
de arte engajada que Plínio Salgado reclamava estar ausente nos modernistas da
Semana, que só se preocupavam com as meras questões de forma e de estilo, sem
estenderem sua preocupação para novos conteúdos de expressão da realidade.
O estrangeiro é uma obra de ficção que, em síntese, apresenta o cenário das
transformações econômicas e sociais da vida paulista e seus reflexos nos valores e
costumes da antiga sociedade patriarcal de base rural, já agora em decadência. Os
novos vetores dessa transformação são ali mostrados: o industrialismo e o
urbanismo acelerados das grandes metrópoles, sem qualquer controle, no seu ritmo
próprio que é impulsionado por um terceiro vetor, o cosmopolitismo — a adesão
sem peias a valores e costumes importados. Nesse painel de fundo, cheio de
incertezas para a nacionalidade, silhuetam as levas de imigrantes, na maioria
europeus, quase todos italianos, mas também de outras terras, como Ivã, o
imigrante russo, que chega a São Paulo numa leva, em busca de refazer sua vida
nesta terra jovem. Ele é personagem central do romance, encarnando o título da
obra. O desafio que se coloca na saga desse forasteiro é: conseguirá Ivã,
desprender-se de suas velhas raízes, de seus preconceitos e velhos fantasmas
europeus e integrar-se aqui, e tomar a terra jovem do Brasil como sua nova pátria?
A narrativa descreve o curso do destino trágico de Ivã em tentar responder a esse
desafio. Além do russo, duas personagens também se destacam, entre outras de
menor expressão. São elas, o mestre-escola Juvêncio, um jovem cheio de ardor
nacionalista, que se encanta em relatar aos seus alunos os feitos heróicos da
história-pátria, em ministrar suas lições em campo aberto, no contato íntimo com a
exuberância da natureza brasileira, que despreza todos os sinais do cosmopolitismo
e todos os estrangeirismos que insistem em nos colonizar. Ao lado deste, aparece a
figura imponente do caboclo Zé Candinho, com seu corpo amorenado, homem
simples que abandona a vida insípida da grande cidade, para refazer na roça, na
75
criação de gado, uma vida rejuvenescida. Nesse caboclo, adormece latente a alma
futura do Brasil. Zé Candinho e Juvêncio são os tipos que prefiguram, na ficção
literária, o espírito de resistência e de criação de um Brasil futuro; essa a
mensagem desse primeiro romance de Plínio.
O que prefigura Ivã e seu desenlace trágico? Plínio, dirá que
Ivã — figura culminante do livro, [representa a] Síntese de todos
os personagens. Consciência de todos os males. Ação norteada por
um idealismo a priori anulado pelos cepticismos cruéis, em face do
utilitarismo ambiente e do preconceito esmagador. Pletora de
personalidades contrastantes e incapazes.
103
Em outras palavras, Ivã, é a encarnação do niilismo que corrói o homem
moderno, debatendo-se num mar de contradições internalizadas; que impedem o
caminhar firme no presente (que exige a ruptura com os preconceitos trazidos do
passado) para a construção de um futuro novo. O idealismo, por ser desenraizado,
é anulado pelo individualismo egoístico e cede espaço ao ceticismo. O resultado,
será a desesperança, a recusa, a rejeição à vida em lugar da afirmação: o ato
extremo de niilismo que firma um laço social trágico entre o ato criminoso do
assassinato massivo e a auto-anulação pelo suicídio. Protagonizando os dois, Ivã
sai da cena, como que expelido da Terra jovem, como o anti-tipo do futuro que ela
almeja. Este, terá como intérprete a última página do romance, com Juvêncio, que
expressando um nacionalismo reativo, ainda provisório, arde em febre, no fundo do
sertão e delira por
uma Pátria grande e boa, sobretudo, uma Pátria que soubesse
sonhar. Não o sonho-indivíduo, o sonho parcela, das experiências
de Ivã, oriundas de um sonho pessoal; mas o sonho-país, filho
espontâneo da terra e da raça. Porque ele é o milagroso equilíbrio,
que mantém de pé os homens e os países, evitando a explosão de
latentes forças em luta, nos irremediáveis desmoronamentos da
personalidade!
104
De fato, o seu primeiro romance O estrangeiro parece soar como uma
primeira clarinada da Grande Véspera a anunciar o despertar da Nação do pesadelo
niilista, para o sonho de um porvir com o integralismo. Não sem razão, Plínio o
103
SALGADO, P. Obras Completas - Volume 11. O estrangeiro: 12.
104
Idem: 352-353.
76
considerou como manifesto. Todos os mitemas principais da futura doutrina que
seria anunciada no Manifesto de outubro, seis anos depois, já aparecem esboçados
neste romance. Os mitemas racialistas da terra e da raça jovem, cabocla, esteio da
brasilidade a ser construída; derivando como imagens ou figuras que espelham ou
configuram, permitem identificar pela forma (estética) a identidade da Nação
brasileira - o grande mito condutor de todos os mitemas. Também, se fazem
presentes os inimigos que impedem a realização do mito condutor e, ao serem
identificados, devem ser combatidos e expurgados, como por exemplo: o
materialismo e suas derivações e o cosmopolitismo - o capitalismo desenfreado, o
liberalismo e, por acréscimo, virá depois o comunismo -, cujas resultantes sociais
mais graves são: o charlatanismo da política imperante e a alienação dos
intelectuais, de resto, o sofrimento das massas, no completo abandono, à mercê do
charlatanismo e da demagogia.
Plínio Salgado escreveria mais três romances e os publicaria na década
seguinte, também como mensageiros políticos. Assim, ainda em 1926, ele vai unir-
se à tendência nacionalista do modernismo, no grupo de intelectuais do Verde
Amarelo. Mais tarde, para dar ênfase maior à problemática política como pauta da
revolução estética, Plínio funda o Grupo da Anta. Recebe adesão de outros
intelectuais do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, depois,
também, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Mas, o centro da polêmica em torno
das idéias nacionalistas continuou sendo São Paulo. Contra o nacionalismo luso-tupi
do manifesto da Anta, Oswald de Andrade lança o seu manifesto Antropofágico,
nascendo daí o grupo modernista rival de Antropofagia.
Contudo, se o prestígio de Plínio Salgado havia se tornado crescente nos
meios artísticos e literários, seu desempenho na política era ainda medíocre,
circunscrito à esfera estadual e aos limites dos quadros perrepistas. Nessa ocasião,
a convite de Júlio Prestes que liderava a ala renovadora do PRP e se lançava à
sucessão do Governo estadual Plínio lança-se como candidato a deputado estadual,
77
depois de ter obtido de Júlio Prestes a promessa de empunhar, caso este fosse
eleito à presidência de São Paulo, as antigas bandeiras plinianas de estímulo aos
pequenos agricultores e de reforçar os vínculos do partido com suas bases
municipais. Desse modo, ao ser eleito em 1928, deputado estadual, com apoio de
Júlio Prestes, os vínculos de Plínio com o perrepismo se conservaram, pelos menos
nos dois anos próximos. Por essa razão, ele se manteria formalmente ao lado da
candidatura de Júlio Prestes na campanha sucessória à Presidência da República e
contra os candidatos da Aliança Liberal opositora a Washington Luís, nas eleições
de março de 1930. Disse formalmente porque, na verdade, Plínio, a despeito de sua
amizade e do apreço que devotava a Júlio Prestes, já não alimentava ilusões
quanto a uma renovação política efetiva saída dos quadros oligárquicos do PRP.
Enquanto o período de 1928 a 1930 foi de acomodação dentro do quadro
partidário perrepista, a verdadeira senda política da estratégia pliniana ia sendo
elaborada fora do âmbito partidário, no campo do jornalismo político e do debate
cultural. Embora se houvesse desligado do Correio Paulistano, seus artigos
continuavam a ser publicados nesse jornal e em jornais de outras capitais, bem
como na Revista Novíssima, dirigida por Augusto Frederico Schmidt, no Rio de
Janeiro.
Nessas matérias, Plínio ia expondo idéias sobre os temas mais amplos que
envolviam uma tomada de posição, buscando atrair as elites intelectuais para o
debate cultural e político. Uma coletânea desses artigos será reunida em 1927, no
livro Literatura e política, onde Plínio faz um balanço das produções intelectuais
daquelas duas décadas no país: na poesia, na prosa, o sentido de renovação
criadora que parecem reclamar. Introduz, também a discussão dos problemas
nacionais, seguindo de perto os autores que lhe parecem ter captado a essência
daquela problemática: Alberto Torres e Oliveira Vianna. No alvo da crítica às
instituições, o artificialismo do regime liberal, da sua ideologia, em contraste com a
realidade do país, a insuficiência da representação mediante o mecanismo do
78
sufrágio universal que é um entrave à organização de elites dirigentes, por
processos seletivos. Crítica à concepção formal de democracia, quando a
preocupação deveria ser não com seus aparatos formais meramente, mas em
conferir à democracia maior substância, imprimindo-lhe um sentido novo e
condizente com as realidades históricas e sociais. Denúncia do igualitarismo,
portanto, como princípio oriundo da Revolução Francesa:
O século findou com este contraste: metodização igualitária dos
direitos políticos, livre expansão do individualismo na vida cívil e
comercial.
O plano internacional também é focalizado. O pacifismo falacioso do Tratado
de Versalhes (com suas anexações, requisições e humilhações) é denunciado.
Parece a Plínio que a Europa, após a Grande Guerra, adoece gravemente dos males
de uma paz que não se inspirou em conciliação de interesses e princípios de justiça
equânime, mas na vingança e nos interesses egoísticos. Contra esses males da
doença européia aparecem o comunismo e o fascismo. Ambos, materialistas,
decretam a falência da democracia. O julgamento de Plínio sobre esses dois
regimes é ainda muito cru nesse texto:
ou triunfa o imperialismo econômico baseado no nacionalismo, no
fascismo, na ditadura militar; ou vence o imperialismo político da
Terceira Internacional.
105
Ao que parece esse julgamento duro e peremptório sobre os dois regimes
antagonistas na disputa ideológica mundial, permitia a Plínio flanquear essas duas
opções e afirmar, numa primeira avaliação crítica, a independência de suas idéias e
angariar legitimidade às suas postulações. Claro, que suas opiniões sobre o
comunismo continuariam a rejeitá-lo em bloco, porém, no futuro breve, seu juízo
sobre o fascismo se modificaria, se tornaria mais mediatizado, mais reflexivo, não
para se deixar absorver nele, inteiramente, mas para compreender melhor o seu
princípio. Entendo que essa percepção, Plínio só a teve com suficiente clareza, com
a sua viagem que faria à Europa, nos idos de 1930. Por enquanto, Plínio via essas
105
SALGADO, P. Obras completas - Volume 19. Literatura e política: 64.
79
duas alternativas como absolutamente estranhas, porém, já as compreendia como
reptos poderosos às insuficiências do liberalismo. Ele lança a pergunta no ar:
Será esse o dilema para os jovens povos da América? Que rumo
devem seguir os países novos como o Brasil? Se pretendemos
empreender a defesa da democracia, em face das prementes
realidades econômicas dos povos, devemos colocar o problema
sob o ponto de vista retardatário do liberalismo dos nossos
partidos oposicionistas?
106
Mas ele mesmo ensaia a resposta.
A nossa obra não é, e não pode ser ainda, de sistematização
filosófica, mas será de integração espiritual da nacionalidade. É o
bandeirismo num sentido novo. Nosso trabalho é mais de ação do
que de pensamento. Precisamos agir no sentido de fundar sobre a
pura tradição brasileira um espírito de independência e de
afirmação.
107
De resto, inspirado em Alberto Torres, aponta a solução estratégica para
pautar o desenvolvimento nacional com base nesse espírito bandeirante (outro
mitema forte, na figuração pliniana). Trata-se, a meu ver, não de mero retorno à
terra, à ruralização. A construção parece mais sofisticada porque presidida pela
idéia de totalidade do nacional, em todas as suas expressões econômicas, sociais e
culturais, traduzida na forma e no espírito da integração. Consiste em integrar as
possibilidades materiais e civilizatórias da Cidade, que
deve ser um índice de possibilidades do Sertão. O Sertão deve dar
à Cidade a sua alma (o espírito de brasilidade) e receber desta os
benefícios da civilização.
Que benefícios práticos e urgentes seriam estes?
O que cumpre fazer agora são estradas, escolas rurais, postos de
profilaxia, desenvolvimento da agricultura, educação nacional
baseada em instintos e sentimentos, não em teorias e fórmulas;
108
eis a postulação de Plínio. Mas todos esses são os meios práticos necessários,
objetivos, para realizar o fim subjetivo, a Pátria sonhada, em O estrangeiro, por
Juvêncio, o herói nacionalista. Em Literatura e política, Plínio traduz esse sonho:
Embalados pelas mesmas lendas nativas - que as crianças devem
desde cedo aprender -, pelos cantos da terra e da raça, pelas
106
Idem: 64-65.
107
Idem: 68.
108
Idem: 80. Grifos meus.
80
nossas histórias heróicas, que não podemos deixar que se
extingam; unidos por estradas e escolas, a Cidade e o Interior
manterão essa força de integração brasileira... [E, ainda:] Uma e
outro devem respirar, mercê de uma educação sistemática e
intensiva, que deverá ser estudada, numa atmosfera de tradições
históricas e aspirações comuns.
109
O ano decisivo para a história do país e para a trajetória de Plínio foi 1930. A
candidatura de Júlio Prestes havia saído vitoriosa no resultado oficial das eleições
presidenciais de março, contra a chapa opositora da Aliança Liberal, encabeçada
por Getúlio Vargas. Todavia, os aliancistas recusando-se a acatar o resultado
oficial, começaram a se articular com várias forças políticas, inclusive, do
tenentismo, para um movimento revolucionário. Plínio permaneceu fiel no seu apoio
a Júlio Prestes, usando artigos na imprensa para desacreditar os ideais liberais dos
aliancistas. Em abril do mesmo ano, Plínio viaja para a Europa acompanhando como
preceptor o enteado de Alfredo Egídio de Souza Aranha. No embarque, diz a um
grupo de amigos que o foram acompanhar: voltarei para fazer a nossa revolução.
Plínio, nessa viagem de seis meses, visitou o Egito, a Palestina, a Turquia e
cerca de oito países europeus. Essa foi uma oportunidade muito proveitosa para
ampliar a sua visão, amadurecendo suas concepções sobre qual deveria ser o
caráter e o sentido do movimento revolucionário nacionalista que pretendia
promover, tão logo retornasse ao Brasil. Sua visão do integralismo assumiu
contornos mais nítidos, mais precisos, pelas observações que pôde extrair da
estadia em Portugal, na Espanha, na França e principalmente na Itália, onde lhe foi
possível examinar, durante um mês, o fascismo italiano - chegando a entrevistar-se
com Mussoline - convencendo-se definitivamente de que a solução para os
problemas do Brasil passava por transformação profunda, radical na vida
brasileira.
110
109
Idem, 80-81.
110
O período que vai de 1927 a 1930 revelou-me a impossibilidade de fazer algo
de novo dentro dos velhos quadros partidários e sociais do país. SALGADO, P.
Obras completas - Volume 10. Despertemos a Nação: 19. Durante a viagem,
Plínio Salgado escreveu diversas cartas a amigos no Brasil e ao Correio
Paulistano. Nessa correspondência relata suas impressões sobre os diversos
países que visitava, referindo-se, em algumas dessas cartas às realizações do
81
Plínio chega de sua viagem, no dia seguinte em que foi deflagrada a
Revolução de 1930, isto é, em 4 de outubro. Mas não era esse tipo de movimento
que ele considerava como necessário à renovação da vida brasileira. Sua relação
com o movimento outubrista, foi, na verdade, de expectativa e ambigüidade. Pois,
se por um lado, condenava e rejeitava os princípios liberais inspiradores da
Revolução, logo percebeu a indefinição ideológica dos seus promotores e procurou
tirar partido desse vácuo, usando do jornalismo para influir na orientação do
movimento,exortando o Chefe do Governo Provisório e os autênticos
revolucionários a largarem de mão as velhas idéias liberais e se orientarem por
novos princípios na direção de um Estado forte e interventor que combatesse o
regionalismo, e promovesse as mudanças econômicas, sociais, culturais e,
principalmente, políticas necessárias a uma nova ordenação do país.
Esse período que vai de 1930 a 1937, foi realmente de disponibilidade
ideológica, permitindo uma movimentação de idéias e de organizações de
tendências várias, desde aquelas de cores liberais e constitucionalistas - que
reclamavam por uma imediata convocação de uma Constituinte - até às de
coloração conservadora, como os monarquistas patrionovistas, os de tendência
proto-fascista, como as legiões revolucionárias distribuídas em vários estados, as
correntes democráticas que oscilavam entre o centro e a esquerda socialista, até
chegar na extrema-esquerda comunista. Essa fase de indefinição política, da falta
de rumos definitivos até ser encerrada pelo golpe de estado de 1937 que
implantaria o Estado Novo, resultando no fechamento do sistema político, facilitou,
sem dúvida, a atuação de Plínio Salgado para o surgimento do integralismo e sua
expansão como movimento político de massas, com incrível repercussão.
Já em 1931, em meio a contatos com intelectuais em São Paulo e no Rio de
Janeiro, Plínio desenvolvia intensa atividade de articulação política, inclusive com
regime fascista italiano com grande entusiasmo e admiração. Numa carta a
Manoel Pinto, diz: É necessário agirmos com tempo de salvar o Brasil. Tenho
estudado muito o fascismo; não é exatamente esse regime que precisamos aí,
mas é coisa semelhante. SALGADO, P. Obra Coletiva: 19.
82
líderes da Legião Revolucionária de São Paulo. Sua pretensão imediata era a de
fundar seu próprio jornal a fim de expandir com mais vigor uma campanha
doutrinária, Nesse mesmo ano, veio a público seu segundo romance, O esperado.
Este segundo romance político de Plínio Salgado, teve alguns de seus
capítulos escritos quando da sua viagem ao exterior, então já decidido a criar um
movimento político ideologicamente definido. Ao contrário do anterior romance, O
estrangeiro, onde a mensagem do nacionalismo é deixada explicitamente,
anunciada como a utopia no sonho delirante de Juvêncio, em O esperado nada é
proposto como finalidade. Trata-se de uma narrativa que expõe um diagnóstico do
país, mergulhado na crise das suas instituições políticas, na decadência dos
costumes, na agitação dos espíritos sem perspectivas de futuro, uma indefinição e
um mal estar que atinge a todas as classes. Um país largado em absoluta
disponibilidade, condição propícia para as negociatas de todo tipo, em particular,
dos poderosos grupos capitalistas estrangeiros: quer ingleses (como Mr. Sampson),
quer o seu rival americano (como Mr. Hyggins), manobrando cada qual em prol de
exclusivos interesses imperialistas. Se em O estrangeiro, o título sugere uma
personagem central na trama - que é Ivã - em O esperado, não há uma
personagem - eixo da narrativa, o título sugere um estado de espírito, uma
expectativa salvacionista, aliás, correspondente a um padrão da cultura política
brasileira que é herdado do sebastianismo português. Alguns críticos apontaram
esse dado como uma proposta do livro em favor de um messianismo como solução
à problemática da crise brasileira. Na verdade, trata-se de uso literário e ficcional
de um mito forte contido no imaginário da cultura brasileira, de raíz nos séculos XVI
e XVII, que Plínio utiliza para dar coerência à forma de solução buscada, quando
num estado de crise generalizada, nenhum grupo social organizado consegue se
impor e ser reconhecido como portador de determinadas idéias claras, nítidas,
capazes de viabilizar um projeto político nacional de aspirações comuns. Essa
ausência, somada à desesperança, engendra condições objetivas para o
messianismo.
83
No mais, a história do romance gira em torno de um projeto de lei em
discussão no Legislativo que propõe conceder a um poderoso truste inglês o
controle sobre a comercialização do café brasileiro no mercado internacional. O
projeto que parece ser prejudicial aos interesses do Brasil, contudo é apoiado por
um senador da República, que deverá valer-se de sua influência e de expedientes
corruptos para manipular a máquina política e, assim, conseguir a aprovação do
projeto no Legislativo. Em face das implicações econômicas, sociais e políticas que
envolvem esse projeto, desencadeia-se uma luta entre grupos diversos, com
interesses contraditórios, uns a favor e muitos outros contra a aprovação do
projeto. No ímpeto da disputa, entram em cena grupos e camadas sociais de
recente formação no processo de desenvolvimento urbano: operários, estudantes,
intelectuais, facções ideológicas. Assim, personagens diversas e contrastantes
ocupam o cenário e participam da trama. Eles expressam as mudanças e
transformações na sociedade brasileira. Além dos velhos políticos, ao estilo do
senador Avelino Prazeres (oportunista, corrupto e sem ideologia definida) e do
deputado oposicionista Dr. Becca (moralista, republicano formalista) e seus
respectivos aliados, os dois adversários: o capitalista inglês Mr. Sampson e o
capitalista americano, Mr. Hyggins; entram no palco: Solidônio, o operário
sindicalista contestador; os esquerdistas Manfredo e Mano; o burocrata Camurça; o
jornalista oportunista Gavião Teixeira e o cabo eleitoral Conrado, aos serviços do
corrupto deputado Laurentino Canoa.
Uma figura elucidativa e que dá suporte ao título desse romance é o Clube
Talvez. Lugar de reunião de pessoas de várias categoriais sociais, onde se discutem
os problemas do país, buscam-se saídas para a insatisfação generalizada; mas tudo
num clima de diletantismo. Cada idéia manifestada, cada opinião, é logo sucedida
pela dúvida, pela incerteza, reinando sempre, por último, o ceticismo. Na
desesperança geral, anseia-se que apareça alguém, o homem providencial... o
Desejado. Seu anunciador é uma figura carismática, profética, delirante:
Evangelino Tupã que é músico, e cuja música parte da terra em direção ao Infinito.
84
Plínio, usa esse personagem para falar através dele. Como por exemplo: Evangelino
Tupã, compreendia que toda a agitação da cidade, como todo o anseio do País
resultam do afastamento do homem das forças elementares, dos
agentes obscuros da natureza. O homem moderno, pensava, vem
perdendo o ritmo da marcha para o Infinito... E era na música que
Tupã encontrava o segredo das forças cósmicas, da integração do
Ser na harmonia do todo, da afinação das almas segundo um
sentido de Absoluto arrebatador.
111
Assim, também
Evangelino Tupã acreditava (...) na aparição misteriosa do
Esperado. Mas, para ele, não era um homem, a transplantação do
velho messianismo lusitano: era uma voz. Faltava uma voz na
tormenta do mundo.
112
Outros personagens vão sendo inseridos no contexto do romance, como
Edmundo Milhomens,
com sua sensibilidade mediúnica em ligação com os pesares e
desesperos que o rodeiam.
Como o grande industrial Infantini de claras visões práticas, o pequeno
industrial Corrégio, sufocado, comprimido, arrastado à falência; o banqueiro
Lentier, que nunca vira as estrelas (antípoda de Evangelino Tupã), o fazendeiro
Gomes de Barros que pretende explorar o Governo, ou Marcos, que é todo força e
beleza pagã. Outros trazem seus dramas pessoais para compor na ficção a parte
que lhes cabe no geral drama humano, Pluto é o tipo do irremediável humano, com
a sua concunda que
é menos uma desgraça pessoal do que uma fatalidade humana; a
dor de Pluto é síntese de todas as dores.
Além das jovens Nina e Graciosa, Miss Katy, as prostitutas Naná e Cozette,
Padre Azambuja, Rodrigo Jorge, encarregado por Canoa de ser o relator do projeto
na Câmara dos Deputados e que, afinal define os rumos da história.
111
SALGADO, P. Obras completas - Volume 12. O esperado: 335, 336-344.
112
Essa voz que é transfiguração do mito do Encoberto vai reaparecer no
romance posterior de Plínio, A Voz do Oeste, de 1934, numa associação ao
fenômeno do bandeirismo vicentino.
85
O romance culmina com o dia da votação do projeto polêmico na Câmara
dos Deputados. Clima de grande tensão, multidões se movimentando, uma ameaça
de greve geral, perplexidades no Clube Talvez. Em meio à tumultuosa votação e a
conflitos sangrentos nas ruas que a polícia não consegue conter, uma violenta
tempestade se abate sobre a cidade, num dilúvio de água e relâmpagos cortando
os céus. Tudo parece ser tragado na imensa confusão;
É o ofício das Trevas! Gritou Evangelino Tupã, com sua voz
profética.
Mas o último ato é reservado para fechar a cena a Edmundo Milhomens,
aquele que compreende tudo e que, em delírio, tem a premonição da marcha de
todo o povo brasileiro.
Parecia uma procissão vagarosa. Numerosa. De todos os lados da
carta geográfica do Brasil. Eram pés nas calçadas, nas estradas,
nas campanhas, nos pântanos. Que vinham do Nordeste, que
vinham da Amazônia; que se espraiavam pelos planaltos do
Centro; que se multiplicavam nas campinas, nas planuras de
Goiás, de Mato Grosso. Pelas pastagens de Minas, pelas ruas de
café de São Paulo, na ondulação das coxilhas meridionais.
113
Revela-se, então, personagem novíssimo que só entra na história para
concluí-la - o povo brasileiro em marcha, vindo de todos os rincões do País - indo
em alguma direção, como que atraído por uma voz, pela voz que chama.
Respondendo ao chamado, o povo caminha.
Quarenta milhões de seres humanos andando. Em meio à febre
que o consumia, Edmundo Milhomens, balbucia, Ouço passos
andando... Todavia, o romance terminará com o enigma do
sentido dessa caminhada do Povo deixado sem resposta; ficando
no ar a pergunta lançada à última página: Para onde?
114
Ainda nesse mesmo ano de 1931, Plínio deu prosseguimento à sua intenção
de atuar decisivamente naquele vácuo ideológico do processo revolucionário
inaugurado em 30. Carecia, porém, de meios políticos próprios. Fez ver a Souza
Aranha, o rico advogado e empresário, seu amigo, e solidário com a causa
113
SALGADO, P. Obras completas - Volume 12. O esperado: 387-390.
114
Idem: 390-391. O mito da Voz que chama só revela o sentido de sua
direção, no romance A Voz do Oeste, que trata da conquista dos sertões
interioranos do centro-oeste pelos bandeirantes paulistas em lutas com os
indígenas, no início do século XVII. Sobre esse tema e seu significado
comentaremos mais adiante, ao tratarmos da ‘Brasilidade’ no discurso pliniano.
86
nacionalista, a necessidade de uma tribuna, de um jornal independente para a
divulgação das suas idéias, de um modo sistemático e constante. Ao mesmo
tempo, atendendo à solicitação dos tenentes João Alberto e Miguel Costa, para que
redigisse um manifesto para a Legião Revolucionária de São Paulo, que fixasse uma
firme posição contrária ao liberalismo ortodoxo da Constituição de 1891 Plínio, que
havia redigido, em Paris, um esboço para um futuro manifesto a ser lançado,
apresentou-o aos líderes legionários que o aceitaram, exigindo, porém, que ele
também firmasse a sua assinatura. Plínio concordou em fazê-lo e, assim, em 3 de
março, o Manifesto da Legião Revolucionária foi divulgado na imprensa. Em linhas
gerais o manifesto propunha em tom radical e revolucionário, após fazer a denúncia
do imperialismo internacional e seu principal agente, o capitalismo financeiro, que o
país retomasse as fontes originais da nacionalidade; criando as bases de um
desenvolvimento autônomo. Para tanto, defendia: um Estado forte e centralizado.
Um legislativo de técnicos e não de políticos, ao lado de um Poder Judiciário
unificado e autônomo. O intervencionismo estatal nas esferas da produção e do
comércio, a nacionalização da rede bancária e de alguns setores básicos da
economia. Propõe a organização das classes pelo Estado, a eleição indireta do
presidente da República e um vasto programa de recuperação e ocupação de
terras, de ensino agrícola, de liquidação do latifúndio particular, dos trusts e
monopólios, dos sindicatos estrangeiros que absorvem os patrimônios nacionais,
tudo isso a partir da formulação de um novo direito público e de um governo
tipicamente brasileiro. Os objetivos colimados seriam: a unidade política, o Estado
forte, a defesa do indivíduo, da família e da classe organizada; dentro do caráter
essencialmente brasileiro da sociedade.
115
O manifesto teve uma repercussão extraordinária. Favorável em certos
setores intelectuais, como por exemplo, Oliveira Vianna, que o considerou um
115
CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: 106.
87
documento de uma importância vital para a Nação. Desfavorável na maioria da
imprensa, que acusa principalmente seu mentor, de ser
verde-amarelista, de pendores reacionários e de fascista brilhante.
Plínio vem ao Rio de Janeiro em busca de apoios ao manifesto visando, junto
a intelectuais como Augusto Frederico Schmidt, Raimundo Padilha, Madeira de
Freitas, San Tiago Dantas, Lourival Fontes e outros (alguns desses se tornariam
futuros dirigentes integralistas)
formar uma corrente de opinião em defesa dos ideais do
manifesto.
Buscou também o apoio de círculos tenentistas do Rio, como o Ministro
Oswaldo Aranha, primo de Souza Aranha. Porém, o desenrolar dos acontecimentos
acabou por isolar Plínio, na medida em que a Legião Revolucionária de São Paulo -
sob intensa pressão de grupos paulistas tradicionais e do Governo Provisório -
acabou recuando na sustentação do documento. As legiões revolucionárias
entravam em fase de dissolução irreversível.
Em junho de 1931, Souza Aranha, finalmente, fundava em São Paulo o
jornal A Razão, tendo como redatores Plínio Salgado e San Tiago Dantas. O jornal
destacou-se por promover campanha aberta contra a convocação de uma nova
assembléia constituinte, que era a principal reivindicação das forças políticas
tradicionais de São Paulo - o centro principal de oposição ao Governo Provisório,
chefiado por Vargas - mas também dos grupos dirigentes, tanto de Minas Gerais,
quanto do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, Plínio exaltava as iniciativas
administrativas do novo Governo e conclamava Vargas e tornar-se o bom tutor
desse povo infantil. Mais que tudo, Plínio e os setores nacionalistas radicais temiam
um retorno ao velho regime da Primeira República, sob o manto de disfarce do
constitucionalismo. Outros intelectuais passaram também a colaborar no A Razão,
como Nuto Santana, Mário Graciotti, Gabriel de Barros e José Maria Machado;
todavia Plínio era o seu editor-chefe e, através do uso desses editoriais promovia
intensa difusão das suas idéias. Cerca de trezentos artigos diários chamados Notas
88
Políticas, foram publicados até fins de maio de 1932, sempre versando sobre uma
matéria da conjuntura nacional ou internacional de relevância. Através desses
artigos, Plínio firmava um gancho para a divulgação dos pontos essenciais da sua
doutrina, já em fase de maturação. De tal sorte, que boa parte desse material
acabará constando em livros editados por Plínio, já em pleno integralismo, como
por exemplo, O sofrimento universal (1934) e Despertemos a nação (1935).
Motivado pelo êxito e repercussão de uma conferência que fizera na
Faculdade de Direito de São Paulo, sob o título A Quarta Humanidade, Plínio vai
fundar a Sociedade de Estudos Políticos - SEP, em 24 de fevereiro de 1932, e em
sessão definitiva, em 12 de março desse ano. A sociedade, congregava intelectuais,
numa ação de estudos sistemáticos e coordenados sobre os problemas brasileiros à
luz dos princípios fundamentais que norteavam filosófica e politicamente a
entidade; basicamente: o espiritualismo, o anti-materialismo, o nacionalismo. No
mês de maio, em sessão sob a presidência de Plínio e por sua recomendação, foi
votada e aprovada a proposta para a criação de uma secretaria da SEP que se
encarregasse de empreender
uma campanha de ação prática no sentido de se infiltrar em todas
as classes sociais, o programa político da SEP,
a qual receberia a denominação de Ação Integralista Brasileira.
116
A SEP tem sido considerada pelos estudiosos do Integralismo como um
verdadeiro laboratório ideológico, pois ali se confeccionaram os pilares do futuro
movimento. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista mais particular, Plínio
encontrou na sociedade uma ambiência fértil e adequada para desenvolver mais
fundo e amplamente certos aspectos da doutrina nacionalista integral tal como a
deduzia da sua cosmovisão. A interlocução com outros componentes da SEP, bem
como o contato com outras fontes e autores estrangeiros tornou isso possível.
Assim, aprofundaram-se estudos de autores tidos como canônicos para a
construção de um pensamento nacional e que deveriam ter o máximo de
116
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 21-22.
89
divulgação e propaganda, como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha,
Octávio de Faria, Tristão de Athayde, Oliveira Lima, Alberto Faria e Nabuco. Dos
autores estrangeiros, buscou-se apreender
a literatura fascista do Rocco, do Gentile, do Mussoline, do
Prezzoline, as obras de Sardinha que é o que Portugal nos oferece
de mais interessante, e, com tempo, os trabalhos de escritores
franceses, ingleses, americanos e alemães.
117
Além do que, os Princípios Fundamentais da SEP que formulavam seu
pensamento político traziam princípios já expressos no manifesto legionário, como
muito do que viria ser apresentado no futuro Manifesto Doutrinário. Estavam
explicitamente reafirmados a Unidade da Nação, o Estado Forte, o princípio da
Autoridade, a Organização Corporativa das classes e da produção, o repúdio ao
liberalismo, ao capitalismo internacional e, indiretamente, ao comunismo. A SEP
possibilitou, também uma capacidade maior de articulação de Plínio Salgado com
setores do pensamento revolucionário conservantista, como Severino Sombra, que
liderava um movimento operário católico, de tendência fascista - a Legião Cearense
do Trabalho; no Rio de Janeiro, nos contatos com Augusto Frederico Schmidt, e em
Minas Gerais, nas cartas enviadas a Olbiano de Mello, que havia fundado uma
organização sindicalista-revolucionária, de inspiração fascista. Numa dessas cartas,
em que lhe falava dos preparativos para a unificação de um movimento nacional
revolucionário a ser lançado em todo o país, Plínio assim resumia quais deveriam
ser os objetivos mais gerais a serem perseguidos nessa ação política:
Sobre três bases deve assentar a obra da construção nacional: a) -
base geográfica (Município); b) - base econômico-social (classe);
c) - base moral (tradição religiosa e patriarcal). Fora disso será
tudo mentira.
118
Em 23 de maio de 1932, o jornal A Razão foi incendiado por estudantes
constitucionalistas. Salgado comentaria mais tarde:
A destruição do jornal em que eu ia formando adeptos, precipitou
a transformação do instituto cultural, que foi absorvido por uma de
suas secções, aquela à qual, de propósito, dei sempre menor
117
MELLO, O. de. Como Conheci o Chefe: 192.
118
Idem: 193.
90
importância. Essa secção chamava-se Ação Integralista Brasileira -
AIB. Era o fruto que irrompia da flor.
119
Do que restou do incêndio do jornal, Plínio aproveitou alguns papéis
referentes à SEP e a AIB e consegue redigir em fins de maio o Manifesto
Integralista que é submetido à consulta da sociedade em junho, sendo tiradas
várias cópias datilografadas. Cada membro da SEP recebeu um exemplar a fim de
examiná-lo e assumindo o compromisso de assiná-lo. Às vésperas da impressão
final do documento, porém, eclode a Revolução Constitucionalista de 1932, o que
leva Plínio a suspender a iniciativa, decidindo aguardar ocasião mais oportuna para
divulgá-lo. Em 3 de outubro a revolução estava terminada. Em 7 de outubro, o
Manifesto, já impresso, foi dado a público numa sessão aberta no Teatro Municipal
de São Paulo, sendo logo distribuído e enviadas cópias para outros estados.
Com esse Manifesto de 7 de outubro de 1932, também conhecido como
Manifesto Doutrinário, fundava-se, oficialmente, a Ação Integralista Brasileira, cuja
ação prática logo a transformaria num vigoroso e sempre crescente movimento
político de massas.
No ano seguinte ao Manifesto, vinha a público o terceiro romance político de
Plínio Salgado, da série Crônicas da Vida Brasileira, O cavaleiro de Itararé.
A conjuntura ideológica de indefinição, após a Revolução de 1930, e a
decepção de Plínio com a Legião Revolucionária de São Paulo, marcam a motivação
psicológica e o sentido político do autor na confecção do romance, que é destinado
à juventude civil e militar do Brasil. Plínio, no prefácio da 1ª edição, refere-se ao
seu estado de espírito ao escrever a obra:
Este livro é, principalmente, um livro sentido. Ele foi escrito em
horas amargas de desilusão, diante de uma Pátria aviltada pela
ignorância, pelo egoísmo, pela má-fé de uma geração infeliz, em
que poucos valores avultam no meio dos corrilhos de aventureiros
de toda sorte e de mediocridades irritantes.
Plínio define o romance como
119
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 23-24.
91
um livro apaixonado. Um livro de ironia e de revolta. Um livro de
sarcasmo e de violência (...) composto atropeladamente, aos
pedaços, muitas vezes nos instantes mais dramáticos de uma vida
de obscuros heroismos.
120
Oscilando entre o ceticismo quanto aos destinos incertos do país, conturbado
pelas sucessivas rebeliões tenentistas da década anterior e agravado pela
indefinição de rumos da Revolução de 1930, a reação fratricidade de 1932, e uma
vaga esperança de que a juventude brasileira atendesse ao seu apelo,
abandonando as rebeldias ocasionais e buscasse
o sentido exato de uma coordenação de inquietudes e de
angústias, fundindo suas almas num destino comum. Plínio exorta
os jovens, a mocidade civil e militar, a criar alguma coisa nova,
que exprimisse uma nova partida de forças.
121
Na conclusão do prefácio, seu tom é dramático:
Porque se a juventude civil e militar não assume um papel
decisivo; se continuarmos a assistir, de braços cruzados, à
confusão dos espíritos, ao jogo das intrigas, ao desencadear das
ambições dos mil grupos que desarticulam a opinião nacional,
então nada mais resta a tentar pela salvação do Brasil. E este livro
pode muito bem ser o epitáfio de uma Pátria.
122
E dando o sentido do romance, na trilogia, Plínio diz que:
O Estrangeiro foi um aviso. O Esperado foi um prognóstico. O
Cavaleiro de Itararé deverá ser: ou uma glorificação, ou um
anátema à Nacionalidade.
123
Em prefácio à 2ª edição do romance, datado de 1936, Plínio Salgado
sintetiza o espírito da obra, como o fantasma das revoluções sangrentas, e, ainda:
é o espetáculo dos títeres que se movem por cordas invisíveis.
124
A saga desse romance, merece um relato, ainda que breve:
A trama é aparentemente banal: seu eixo é montado em torno de uma
situação insólita que se cria a partir do nascimento de duas crianças, num mesmo
dia, numa mesma localidade, porém, em lares de origem social totalmente
120
SALGADO, P. Obras completas - Volumes 13 e 14.O cavaleiro de Itararé: 9-
10.
121
Idem: 211.
122
Idem: 11.
123
Ibidem.
124
SALGADO, P. Obras completas - Volume 12. O esperado: 19.
92
distintos. De modo absolutamente acidental, eis que essas crianças são trocadas
por ocasião do nascimento. Assim, o filho da família aristocrática (neto de um rico
barão do café) vai ser criado e educado por uma família de um modesto artesão
(Capistrano), família numerosa, de muitos filhos e parcos recursos, que não
podendo suportar o encargo de mantê-los, acaba destinando um deles ao seminário
(Frei Chico) e o outro ao Exército (Urbano). Desse modo, Urbano vai seguir a
carreira militar e será como capitão que, mais tarde, adere à movimentação
revolucionária da Coluna Prestes, acabando por se exilar no Paraguai. Enquanto
isso, Teodorico, filho natural do humilde Capistrano, vai receber sua educação em
Paris, tornando-se um bom vivant e aproveitador. Pedrinho, seu irmão de sangue
(sem que nenhum dos dois soubesse) e que era ferroviário, vem a se enamorar da
jovem Elisa, pretendendo com ela se casar. Teodorico, por sua vez, tem intenção
de fazê-la uma de suas amantes, contando para isso com a colaboração de uma
alcoviteira. Sabedor da trama, Pedrinho fica furioso e agride a tal mulher, e acaba
sendo preso. Na cadeia, cheio de revolta, sentindo-se injustiçado, vítima de sua
própria condição social de operário, sem maiores perspectivas, começa a ler obras
comunistas e ao ser posto em liberdade vai dedicar-se à atividade política, como
militante. Será novamente preso, desta vez, por denúncia de Teodorico, contra o
qual Pedrinho jurará vingança. O capitão Urbano, que já tomara conhecimento do
segredo que envolvia seu nascimento, sabendo do ódio de Pedrinho por Teodorico,
retorna do exílio disposto a impedir o enfrentamento dos dois irmãos. No derradeiro
momento em que viu Pedrinho e Teodorico avançarem armados um contra o outro,
Urbano interpôs-se entre eles e acaba atingido mortalmente pelos golpes que se
destinavam aos dois desafetos. Urbano, consegue ainda revelar-lhes o segredo e os
dois irmãos então se reconciliam.
O desfecho trágico do romance é uma metáfora através da qual Plínio faz a
crítica velada às revoluções armadas, particularmente àquelas que há décadas
ensangüentavam o país. Todas lhe pareciam expressar um caráter fratricida e
absurdo. Plínio explica, então, o significado do título da obra.
93
O Cavaleiro de Itararé é um fantasma (segundo uma lenda do
sertão paulista) que aparece de madrugada e bate nas portas das
fazendas e onde ele vai, no dia seguinte vem a peste, vêm as
moléstias, todas as desgraças. Então eu simbolizo nele as
revoluções brasileiras. É o fantasma. Tem sido constantemente o
fantasma. Como análise é o melhor dos meus livros.
125
Apesar da crítica pliniana abranger no romance os movimentos da década de
20, incluindo o Levante dos Dezoito do Forte de Copacabana de 1922, a marcha da
Coluna Prestes de 1924-1926, a Revolução de 1930 e a Revolução
Constitucionalista de 1932, a ênfase maior recai sobre o movimento de 30.
Todavia, Plínio ressalva com uma certa admiração a coragem e o heroísmo
dos tenentes rebelados
penetrados do espírito imortal do sacrifício e que se exprimia neles
o imenso caos da alma brasileira, mantido nas frágeis comportas
de uma ordem política precária.
126
Mas, lançava a pergunta, através de Urbano:
Quem tinha, no Brasil, a consciência dos passos que dava, dos
gestos que fazia? Quem saberá por que morreu, ou por que matou
seu irmão?
127
A intervenção dos militares na política é justificada, quando o capitão
Urbano pensando nessa circunstância, lhes atribuía uma missão:
a de redentor da nacionalidade, não a de instrumento nas mãos de
oposicionistas astutos, nem de capacho aos pés de governistas
prostituídores e humilhadores.
128
A crítica sobre a Coluna Prestes, porém, é mais acerba. Assim, quando o
capitão Urbano chama de ‘libertas’ às populações que deram acolhida favorável à
Coluna, Plínio indaga:
Mas libertadas de quê? Qual o pensamento da Coluna? Que
remédio poderia dar? Aquela marcha, acaso, não constituiria um
novo anestésico, para o esquecimento de realidades pungentes,
que ainda não estavam reveladas? Que falava a Coluna? Nada.
Que propunha à Nação, como remédio aos seus males? Nada.
129
125
TRINDADE, H. Integralismo: 74.
126
SALGADO, P. Obras completas - Volumes 13. O cavaleiro de Itararé: 215.
127
Idem: 215-216.
128
Idem: 210.
129
Idem: 309.
94
O que se deduz, segundo Plínio, que
A marcha era, realmente, sem destino; porque as almas também
não tinham, a despeito de todas as caminhadas, se fundido num
destino.
130
Contudo, Plínio divisa como que um impulso inconsciente que conduz a
marcha da Coluna para o interior, para os sertões do Oeste, como que atraída por
uma força misteriosa.
Que estranha força os conjugava nas marchas torturantes? Que
estrela os atraía, caravana de reis magos, batendo às portas do
sertão, como a inquirir montanhas, rios, florestas e charnecas?
131
Urbano, ao exilar-se, por fim, no Paraguai, demonstrou seu desacordo com
Prestes que, na Bolívia, havia assumido o Marxismo. Ele mesmo, nunca chegara a
ser um comunista. Mas também ele, tal como Prestes, logo desconfiou do sentido
daquela revolução de 1930.
Aquela guerra de governadores não podia interessar o espírito
inquieto da Coluna. Divergindo do chefe, que dera o próprio nome
à horda errante e agora se deixava empolgar por uma doutrina tão
contrária ao sentimento brasileiro, Urbano, entretanto, não aderia
a uma nova revolução, indefinida, como a própria indefinição da
Coluna.
132
Ao final do romance, um dos irmãos de Urbano, Cesário, que há anos havia
deixado São Paulo para viver como agricultor no sertão, perfeitamente integrado na
vida dos campos, quer materialmente, quer espiritualmente, tornando-se um
autêntico caboclo, acaba por se tornar a grande vítima da movimentação
revolucionária de 1930.
De repente ele é atingido por uma sucessão de infortúnios, perdendo a
mulher, a roça, endividado, terminando como mendigo, quase cego e louco. Uma
obsessão trágica, estava gravada na sua imaginação doentia, era o espectro
fantasmagórico e fúnebre do Cavaleiro de Itararé. Andava pelas ruas, desvairado,
exclamando:
130
Idem: 306.
131
Idem: 316.
132
Idem: 322.
95
Escute! É o tropel do Cavaleiro! Foi ele quem me desgraçou (...)
Ele anda galopando agora por toda parte!.
A simbologia dessa figura fica estampada pelo próprio Plínio que conclui ao
fazer um balanço das destruições causadas pelo Cavaleiro sinistro, metáfora de
todas as revoluções sangrentas:
O Cavaleiro de Itararé, fantasma cruel, símbolo das revoluções
malditas, galopava sinistramente na amplidão do Brasil.
133
Além das personagens centrais da trama, o contexto do romance põe em
destaque uma figura estranha e visionária, com ares de filósofo, que é Pedro
Maranduba. Tem sido visto por alguns críticos, como alguém que acaba encarnando
uma quase caricatura autobiográfica de Plínio, com intuições proféticas sobre sua
atuação política futura.
134
Maranduba é um nacionalista exaltado, entusiasmado
com as coisas do Brasil. Desde os cinco anos, ao ouvir o Hino Nacional ser tocado
no realejo de um cego, tornara-se patriota: o Velho Maranduba lhe explicara que
aquela música era a alma do país. Depois, vieram as histórias heróicas das guerras,
das figuras dos bravos, como Osório, Caxias, Tamandaré, poesias de Gonçalves
Dias e de Casimiro de Abreu. A mãe de Maranduba lhe dizia:
Abençoados os que morrem nos campos de batalha, desfraldando
a bandeira Deus-Pátria-Família-Liberdade.
Esta seria a divisa do integralismo, excluindo-se a palavra liberdade. Aos
onze anos, as impressões patrióticas vão esmaecendo e cedendo lugar ao
sentimento religioso e místico,
chorando a infância pobre de Jesus e amaldiçoando os judeus. Aos
vintes anos, encontramo-lo patriota exaltado, mas um tanto
literário, admirando Rui Barbosa e fazendo discursos.
135
Viajara por todo o Brasil, lera centenas de livros, aos poucos, Maranduba
convenceu-se de que havia uma Pátria-oficial, escondendo uma Pátria-real. Tal
como, pensava ele, o hino nacional
133
SALGADO, P. Obras completas – Volume 14. O cavaleiro de Itararé: 109.
134
TRINDADE, H. Integralismo: 75.
135
SALGADO, P. Obras completas – Volume 13. O cavaleiro de Itararé: 176.
96
era uma marcha que entusiasmava (...) mas vinha de fora para
dentro, nunca do íntimo das almas.
E assim, analogamente,
aquela Pátria-exterior era como o realejo a cuja manivela
imprimiam o giro, pobres cegos incapazes de ver a linda manhã do
sol.
136
A partir dessas reflexões, Maranduba vai elaborar suas concepções
filosóficas, evoluindo, então,
do patriotismo essencial para a idéia absoluta, e desta para a
energia criadora.
137
Nessas reflexões, Maranduba - que já exerceu uma variedade de profissões
e agora, garante sua subsistência, como violinista, num bar - atesta que a
variedade dos ofícios serviu-lhe para ver o mundo de uma maneira completa e
insuspeita. Deduz daí um valor cognoscente que deve existir na relação entre
atividade profissional e opinião, concluindo, então
que é preciso examinar as opiniões segundo o critério profissional
que as emite.
138
Exemplificava:
Um homem (...) que só foi, por exemplo, carpinteiro, terá uma
certa noção do sistema planetário, ou do recente campeonato de
futebol; essa noção varia no cozinheiro, no advogado, no médico,
no professor, no ferrador de animais. E quando digo noção, quero
dizer sentimento da idéia, porque uma idéia pode ser concebida e
não ser sentida, e isso é importante para a posse integral do
mundo pela consciência. Afirmo que a emoção do banqueiro não
pode ser a mesma do engenheiro, do padre ou do poeta, acerca do
mesmo objeto. Os fatos giram no mundo psicológico, na razão
direta do exercício profissional.
139
Todavia, Maranduba, faz um esclarecimento em tom de advertência:
Enorme é o perigo de se deixar alguém absorver pela profissão.
Não aconselho, é claro, que mudem de ofício, porque isso é
próprio dos vagabundos e dos desgraçados. Mas, por favor,
preservem a personalidade, porque antes de existirem as
profissões, existiu o Homem e o Homem é digno de viver.
140
136
Idem: 177.
137
Ibidem.
138
Ibidem.
139
Idem: 178.
140
Idem, ibidem.
97
Desdobrando o sentido da sua prédica, esclarecia:
Bem sinto as angústias proletárias e a dor do roceiro; o desespero
do comerciante e o drama do caixeiro que pretende impingir uma
mercadoria; a ojeriza dos revisores pelos que não sabem
gramática, as raivas dos peões pela incompreensão dos muares,
dos quais são preceptores. Não iremos, porém, construir uma
sociedade segundo um desses relatos isolados; é apreciando-os
em conjunto que verificamos o valor extraordinário do Homem.
Valorizemos o Homem, dando-lhe a vida heróica.
141
Não se pode deixar de observar nas palavras e mais ainda no raciocínio de
Maranduba, o quanto ele é a personificação de Plínio e porta-voz da sua
cosmovisão superhumanista.
A começar com a sua concepção totalista ou totalitária da vida e da
existência. Compatível com ela é, num primeiro plano, a percepção da necessidade
de se ordenar a sociedade levando em conta o critério das profissões para
representar os interesses materiais específicos e suas respectivas opiniões,
(insinuando-se aqui um corporativismo), num somatório que forneça a raiz, o
alicerce sobre o qual se deve edificar a sociedade. Contudo, se essa é só a base
concreta, o patamar do edifício social, é necessário, num segundo plano, completar
o sentido dessa totalização inicial, de sensos relativos, pela penetração de um
sentido único, uniforme de vida (o senso absoluto) capaz de superar a simples
soma das parcelas, integrando-as num produto superior que é a Nacionalidade
integral.
Desse modo, entende-se o sentido da advertência de Maranduba quando
falava:
Mas, por favor, preservem a personalidade, porque antes de
existirem as profissões (sensos relativos), existiu o Homem (senso
absoluto) e o Homem é digno de viver.
141
Idem: 179.
98
É o homem, portanto, em sua personalidade integral, que deve ser, o
referencial - como dirá Maranduba (Plínio) a Unidade Intangível - o valor absoluto
da edificação social.
142
Assim, Maranduba procurava despertar nos ouvintes,
o que ele denominava a voz da certeza, que era um sentido
uniforme de vida. Revelar essa voz em cada indivíduo; e revelar a
grande voz da nacionalidade.
Um literato lhe perguntou: Por que a nacionalidade?. Maranduba respondeu-
lhe:
Acredito em cada instrumento de uma orquestra, nas
diferenciações das partituras, sem renegar a unidade do volume
orquestral. A humanidade deve ser uma orquestra afinada.
Quando lhe perguntaram: E o maestro? Ele respondeu: A Grande
Filosofia.
143
Fascinado pela crença na Vida Heróica, como a grande força criadora,
Maranduba tinha lá suas idiossincrasias pessoais;
Gostava dos militares, dos cientistas, dos caboclos, dos operários,
das crianças. Detestava os literatos, os jornalistas, os políticos e os
chamados eruditos. Destes dizia que nos oferecem consciências
falsificadas, que retardam a revelação da Grande Consciência.
144
Maranduba também ironizava a Revolução de 1930. Quando, então, lhe
perguntaram se era revolucionário, sua resposta foi imediata:
Queria saber o que se entendia pela palavra revolucionário. Se se
tratava de possuir idéias novas, respondia afirmativamente; se se
142
Uma objeção que parece forte à hipótese de a ideologia pliniana do
integralismo ser um totalitarismo, está no fato de que ao considerar Plínio,
intangível a personalidade humana (tal como assim o exige a doutrina católica) -
prescrito na súmula do Reino de César separado do Reino de Deus - fica
automaticamente reconhecida a esfera da liberdade negativa (dos liberais), ou
seja, do exercício da consciência interior, ou do livre-arbítrio. A evidência desse
ponto pode ser encontrada, particularmente, na Carta de Natal, de 1935, aos
militantes do Sigma, onde Plínio diz claramente: É claro que César não deverá
passar os limites do seu Império. Quais são esses limites? Os do respeito à
personalidade humana, ao livre-arbítrio, pois este já pertence ao reino de Cristo.
E por isso, jamais César poderá penetrar os umbrais da consciência de seus
dirigidos, como estes jamais poderão transpor os arcanos da consciência de
César, pois no fundo da consciência o Homem pertence exclusivamente ao reino
de Deus. SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução:
435.
143
SALGADO, Plínio. Obras completas – Volume 13. O Cavaleiro de Itararé: 181.
144
Idem.
99
tratava, porém, de derrubar gente velha para manter idéias velhas
com gente nova, respondia negativamente.
145
A trilogia termina aqui com este romance sarcástico, pessimista, mas
conservando o sentido do trágico, inerente à perspectiva superhumanista do autor,
que acompanhou os dois romances anteriores, O estrangeiro e O esperado,
compondo o que Plínio Salgado intitulou de Crônicas da Vida Brasileira,
compreendendo como se viu o período da década de 20 até 1932. O quarto
romance, fora da trilogia, que Plínio qualificou como romance-poema histórico, será
A voz do Oeste, publicado em 1934, que, na mesma perspectiva superhumanista,
nada apresenta de diagnóstico da sociedade brasileira, porém isto sim, usa da
ficção para, por meio de alegorias configurar o discurso mítico da brasilidade em
suas origens. Dessa obra falaremos mais adiante.
A construção ideológica pliniana parece ter obedecido a um ritmo gradativo
que se pode demarcar em três fases distintas: uma fase inicial, de formação, que é
a da sua infância e da juventude em São Bento do Sapucaí, bem marcada pela
ambiência familiar pelo período dos estudos secundários no Ginásio Diocesano de
Pouso Alegre. Nessa fase ele fixou raízes de uma formação com valores religiosos
do catolicismo tradicionalista; sentimentos patrióticos, culto e respeito às tradições,
à heroicidade, ao sacrifício, gosto e apreço pelo estudo e por toda a atividade
intelectual. Estes últimos, lhe foram especialmente incutidos pela mãe. Nos
deparamos aqui com a estrutura básica do caráter de Plínio, marcada pela
dualidade entre ser homem de ação e homem de pensamento, entre os impulsos
intuitivos da sua personalidade e a necessidade de reflexão. Entre a íntima
necessidade de declarar e exercitar suas crenças e, ao mesmo tempo, de curvar-se
aos impositivos da racionalidade, como meio indispensável na construção da
verdade. Essa dualidade foi uma característica permanente na trajetória política e
intelectual de Plínio e explicam, em parte, os grandes vôos de sua performance -
particularmente na sua atuação política - bem como seus fracassos.
145
Idem: 380.
100
Uma segunda fase, corresponderia à de construção ou edificação, que
começa a partir da sua saída de São Bento do Sapucaí, transferindo-se para a
capital de São Paulo, a partir de 1920. Levava, na partida, as suas primeiras
experiências jornalísticas, literárias e políticas, ainda embrionárias, mas que seriam
plenamente desenvolvidas, nas décadas que se seguiram.
Em São Paulo, trabalhando no jornal perrepista, o Correio Paulistano,
novamente, Plínio se envolverá numa dupla atividade: como intelectual, homem de
letras, envolvido pela renovação modernista, e como político, interessado na
renovação da política estadual, através de uma ala dissidente do Partido
Republicano Paulista, capitaneada por Júlio Prestes. Essa duplicidade de campos de
interesse, tanto nas artes quanto na política, conduzirá Plínio a desenvolver a
construção de um pensamento político novo, que vai aos poucos se revelando,
tendo como principal via a intuição. Esta, contudo, deve recorrer mais uma vez à
razão, mas apenas como um recurso de elucidação, de ordenamento, de
classificação de materiais já selecionados, visando compor um conhecimento
integralizado da realidade social e nacional de modo inteligível. Não é, pois, pelo
método analítico, próprio das ciências, que outros autores como Silvio Romero,
Oliveira Vianna e Mário de Andrade, haviam tomado como vias de acesso para o
conhecimento da realidade social brasileira, mas, ao contrário, é por meio da
faculdade da intuição e pela síntese, que Plínio pretende apreender a totalidade da
unidade nacional.
146
A isto que ele chamará de senso divinatório que possibilitaria
um conhecimento superior e privilegiado, sem mediação. Com estas ferramentas,
Plínio se engaja na segunda fase do Modernismo, levando adiante a empreitada que
tomou a si de organizar um corpo de doutrina política que ele designaria como
Integralismo. Esse período da etapa construtiva, de grande fertilidade intelectual:
146
Oliveira Vianna, comentando em tom laudatório o sucesso de O Estrangeiro,
como obra ficcional, após endossar as opiniões elogiosas de Monteiro Lobato,
sugere a Plínio engajar-se futuramente no domínio dos estudos sociais, em que
fixasse e explicasse o fenômeno paulista dos nossos dias (...) mas posto em
base científica e não em bases de ficção. O Talento lhe sobra. Que faça isto.
OBRA COLETIVA. Plínio Salgado: 259.
101
de atuação no movimento verde-amarelo, no movimento inaugural da revolução da
Anta - de definição de posições ideológicas contra a Antropofagia e pelo
engajamento político nacionalista - do primeiro romance, O estrangeiro (1926) e da
conferência A anta e o curupira, da publicação da coletânea literatura e política
(1927), são todos antecipações da cosmovisão de Salgado em elaboração
doutrinária, no período entre 1926 a 1930.
De 1930 a 1932, Plínio consolidaria a construção doutrinária do integralismo,
aguardando o momento propício a lançá-lo como movimento político. Uma atuação
que vai ser, de fato, estruturada à margem da política tradicional; correspondendo
à fase que se pode considerar de maturação ideológica.
Como bem recorda Francisco Martins de Souza, os grandes movimentos
filosóficos da antiguidade clássica aos tempos modernos, preocuparam-se, tal como
o demonstra a historiografia das idéias, em aliar sempre a um projeto político uma
visão teórica do conhecimento. Tem-se, por exemplo, já em A república de Platão,
a inserção da
melhor parte de sua teoria do conhecimento, expondo como
conhecer o real e organizar a política.
Também, em Aristóteles, verifica-se a mesma preocupação, em que a sua
grande construção lógica que é o Organon precede as duas obras políticas
Constituição de Atenas e A política.
147
Assim também na modernidade, mostra o autor, que John Locke, em 1690,
escrevia e publicava o Ensaio sobre o entendimento humano visando dar
fundamentos ao Liberalismo que seria desenvolvido nos Dois tratados sobre o
governo civil, publicados logo a seguir, nesse mesmo ano. Desse modo, como
constata Martins de Souza; sempre a problemática do conhecimento ligada ao
problema político que se quer solucionar:
Para se construir um arcabouço político, ou se escolhe uma teoria
já experienciada e aprovada — como exemplo temos o empirismo
147
SOUZA, F. M. de. Raízes teóricas do Corporativismo brasileiro: 18.
102
inglês mitigado em Portugal e adotado por Pombal para substituir
o aristotelismo e inserir a Nação na modernidade -, ou se tenta
elaborar nova via para o conhecimento para se estabelecer a
mudança política e daqui os demais fatores como foi tentado a
partir do fenômeno modernista brasileiro.
148
Como organizar o projeto político, segundo fins determinados, provocou a
divisão nas fileiras do modernismo, demarcada, como se verá adiante, pelas duas
posições extremas, a de Plínio Salgado e a de Oswald de Andrade, conservando-se,
porém, a orientação em geral nacionalista.
O caminho foi pois o de formular uma teoria do conhecimento que
possibilitasse uma estratégia de acesso ao ente nacional - a apreensão da
brasilidade em suas raízes formadoras - facultando a
transposição do momento literário à estruturação ideológica do
Integralismo de Plínio e em Oswald, por não significar e
aprofundar bem os conceitos, vai dirigir-se à utopia do Matriarcado
de Pindorama.
149
Plínio, melhor que Oswald, soube aproveitar adequadamente o momento
modernista e com um desempenho intelectual que associava talento criativo e
disciplina na elaboração das idéias, permitiu-lhe compor uma obra doutrinária que
reforçava e reafirmava os valores da nacionalidade dentro do espírito do
cristianismo; ambos interpretados sob uma ótica singular.
Essa composição fez-se pois pela conjugação de elementos estéticos e éticos
que lhe permitiram ir da
literatura e da arte em geral à ordem moral e filosófica, do
espiritualismo cristão à ordem social e econômica;
da articulação de ambos à concepção de uma filosofia política. Estes seriam os
marcos através dos quais se definiria o pensamento pliniano.
Em 1930, esses marcos estavam alcançando a fase de sua maturação. O
ano, será de grandes transformações no cenário nacional e de aspectos marcantes
148
Idem.
149
Ibidem.
103
também no plano internacional, fatores que irão influir na maturação ideológica de
Plínio bem como na estratégia de sua atuação política ulterior.
Assim, nesse ano o fascismo se reestrutura e se consolida como regime, na
Itália; em Portugal, consolida-se o Estado-Novo, com Salazar; na Alemanha, o
movimento dos camisas-pardas, de Hitler, vai em franca ascensão na direção do
poder. No Brasil, irrompe a Revolução de 3 de outubro, da Aliança Liberal, para
depor Washington Luís. No dia seguinte, Plínio desembarcava no Brasil retornando
da sua viagem de seis meses ao exterior.
Quando Plínio partiu para essa viagem, seis meses antes, já havia se
decidido em organizar um movimento político próprio, distante dos quadros
tradicionais oligárquicos e das práticas tenentistas: voltarei para fazer a nossa
revolução, disse ao partir.
Essa viagem, embora nenhuma significação maior lhe possa ser atribuída
quanto à formação da doutrina política pliniana no que ela tem de essencial,
todavia, se algo contribuiu, foi em completar sua maturação ideológica. O que se
deu pelas experiências que pôde observar e as reflexões que soube extrair nos
países visitados, particularmente, a experiência fascista na Itália, tal como ele
relata nas cartas que remeteu ao Brasil, nessa ocasião. Nesses relatos, Plínio
demonstra a par do seu entusiasmo pelas realizações do regime italiano, um
sentido muito prático, muito objetivo, quanto à avaliação do que considerava como
relevante observar.
Na carta de 4 de julho de 1930, enviada de Milão a Manoel Pinto, seu amigo
em São Bento do Sapucaí, à qual já nos referimos linhas atrás, Plínio dá suas
impressões:
O fascismo aqui, veio no momento preciso, deslocando o centro de
gravidade da política, que passou da metafísica jurídica, para as
instituições das realidades imperativas. O Estado fascista sendo
uma concepção mais ampla do que os limites traçados no conceito
do Estado nos regimes de índole liberal-democrática, veio interferir
em várias atividades, modificando lineamentos anteriores do
104
direito constitucional, do direito administrativo, e influindo mesmo
na esfera civil, comercial e criminal. (...)
150
Assinala, então, as inovações que lhe pareceram mais eficientes e
merecedoras de destaque:
Penso que o Ministério das Corporações é a máquina mais
preciosa. O trabalho é perfeitamente organizado. O capital é
admiravelmente controlado. O parlamento é constituído pela
representação de classes. Esta última coisa seria preciosa num
país novo como o Brasil por dois motivos: teríamos a precisão
TÉCNICA nas leis, e amorteceríamos o espírito regional nos
parlamentos estaduais (...)
151
Já quase ao final da carta, Salgado revela o sentido que julga necessário
imprimir à sua ação política, tão logo regresse ao Brasil:
Uma manhã, no alto do Janículo, junto à árvore de Torquato
Tasso, com o panorama de Roma a meus pés... eu senti uma
saudade imensa do Brasil... e refleti sobre a necessidade que
temos de dar ao povo brasileiro um ideal que o conduza a uma
finalidade histórica. Essa finalidade capaz de levantar o povo é o
Nacionalismo, impondo ordem e disciplina no interior, impondo a
nossa hegemonia na América do Sul; principalmente no Prata.
Voltarei para combater esse combate cheio de entusiasmo.
152
A partir de 1931, portanto, Plínio já se entrega à plena difusão da sua
doutrina política, apreensivo, contudo, quanto à falta de meios próprios para uma
eficaz propaganda ideológica. Em carta escrita a 18 de fevereiro de 1931 a Augusto
Frederico Schmidt, Plínio revela suas dificuldades de atuação política e os planos de
conseguir um jornal para divulgar suas idéias.
Esse jornal será o primeiro impulso. O centro de coordenação dos
LUGARES COMUNS do pensamento conservador (E quando digo
conservador, é por me faltar uma palavra com que designe nosso
movimento, que, positivamente, é também revolucionário, pois
conservar o que temos tido, desde 89, será cair nos mesmos erros
da mentalidade democrática)... Essa afirmação de nacionalidade é
o grande ponto de contato entre todas as correntes que não se
conformam com o materialismo histórico. Acredito que ela
arrastará as multidões brasileiras.
153
Logo em princípios de março, Plínio redige o manifesto para a Legião
Revolucionária de São Paulo, primeira divulgação pública do seu escopo doutrinário,
150
OBRA COLETIVA. Plínio Salgado: 19.
151
Idem: 21.
152
Ibidem.
153
Idem: 31-32.
105
ordenado em linhas gerais. Fracassando, em seus objetivos de obter um apoio
efetivo e decisivo aos ideais do manifesto legionário, Plínio consegue afinal a
tribuna que reivindicava, através do jornal A razão. Com suas Notas políticas,
artigos diários de Plínio, como redator-chefe, permitem a difusão sistemática da sua
interpretação da realidade. Paralelamente, repercutia a publicação do seu segundo
romance, O esperado, principalmente, nos meios intelectuais, alvo imediato da
convocação pliniana. A resposta a essa convocação viria, com a iniciativa de Plínio
em criar a Sociedade de Estudos Políticos, a SEP, que, como vimos foi o embrião e
ponto de partida para Ação Integralista Brasileira, surgida com o Manifesto de 7 de
outubro, de 1932.
Além do Manifesto doutrinário, que inaugurava oficialmente o movimento
integralista, tendo sido redigido por Plínio, a propagação doutrinária que se lhe
seguiu foi marcada, a partir de 1933, pela publicação de diversos livros com essa
finalidade. Os principais foram: seu terceiro romance, O Cavaleiro de Itararé,
seguindo-se Psicologia da revolução, e O que é o integralismo. Em 1934, saiu o seu
quarto romance, A voz do Oeste, e ainda A quarta humanidade e O sofrimento
universal; em 1935, é publicado Despertemos a nação.
Estamos relacionando aqui o conjunto de obras que permitem, a bom juízo,
apreender a doutrina integralista de Plínio em sua formulação própria, em seus
elementos fundamentais, embora deva-se considerar que o pensamento pliniano se
apresenta distribuído e disperso numa vasta coleção que inclui outras obras aqui
não relacionadas. Acreditamos contudo, que para os objetivos deste estudo, os
livros aqui relacionados contenham os materiais necessários e suficientes tanto
para apreender aquele pensamento, quanto para exercitar a reflexão que
pretendemos.
Deste modo, nestas obras em conjunto, as idéias básicas do Nacionalismo e
o espiritualismo (como do seu contrário, o materialismo) estão fartamente
representadas, às vezes, conceituadas e explicadas como categorias-chave do
106
pensamento pliniano, ou simplesmente manifestadas nas obras de ficção através de
ações e atitudes de personagens-tipo; quer no sentido positivo ou negativo, de
afirmação ou de negação dessas categorias. No sentido oposto, adverso a estas,
colocam-se, respectivamente, o cosmopolitismo e o materialismo bem como os
corolários que delas derivam, como sejam: o capitalismo internacional, o
capitalismo financeiro, o imperialismo, bem como o socialismo internacional, o
comunismo, o anarquismo e a liberal-democracia.
Todos esses elementos, no plano das idéias-fato, isto é, segundo Plínio,
objetivadas em ações e expressões concretas de atuação, se constituem num
mesmo e único conjunto-síntese que se poderia designar como o sistema, em sua
dupla dimensão; nacional e internacional. É, pois, contra esse sistema que se deve
erguer a voz do integralismo para afirmar e proclamar num novo sentido os
sagrados direitos dos povos e das nações e os direitos do espírito. Embora Plínio
não se valha da expressão sistema, ela pode ser inferida, creio, do enfoque
pliniano, porquanto seu significado é o de englobar um conjunto de forças que,
apesar de suas reconhecidas diferenças, atuam sob um mesmo princípio de origem.
O nacionalismo na República
Antes da Semana de 22 a questão naciona’ já vinha sendo um objeto em destaque
no interesse da intelectualidade brasileira. É quase um consenso para a maioria dos
estudiosos do pensamento social brasileiro, considerar a obra Os sertões, 1902, de
Euclides da Cunha, como um marco inaugural, na literatura, que instaura o Brasil-
nação como problemática, como objeto por excelência da reflexão dos intelectuais.
A singularidade da obra consiste, particularmente, de por em relevo
questões insuspeitadas aos ideólogos do republicanismo de 89, ao fazer do modo
como o fez, a cobertura daquela trágica Guerra dos Mundos - a Guerra de Canudos
- pondo a descoberto um universo de complexidades ignoradas ou menosprezadas:
contrastes étnicos, sociais, culturais, geográficos, bio-psíquicos e políticos. O livro
107
de Euclides punha ante a República o drama de uma identidade nacional mal
resolvida, incompleta.
Depois de Os sertões, o Brasil republicano deveria despertar do idílico sonho
de uma República idealizada no americanismo e no federalismo, expressões
políticas que se identificariam com a eqüidade e a liberdade.
Na verdade, Os sertões, mais que tudo, revelara a existência de um país-
dual. Dois Brasis: aquele do republicano oficial, triunfante, mais urbanizado, letrado
e litorâneo; e aquele outro, longínquo, obscuro, rural, das populações dispersas nos
vastos sertões interioranos. Este último, completamente esquecido, ignorado em
sua realidade estranha aos olhos e ouvidos das novas elites governantes da jovem
República.
De fato, se a Guerra de Canudos pôde ser uma tragédia impensada, a obra
de Euclides foi, por certo uma denúncia: pois a constatação desse dualismo, de dois
Brasis que mutuamente se estranhavam por modos de existência e de valores
contrapostos, punha em cheque a viabilidade de se pensar a Nação como uma
realidade coesa, homogênea, em que a diversidade das partes é suplantada por
uma escala de valores comuns.
De resto, a imagem do dualismo: de um Brasil oficial e publicista e de outro
ignoto, misterioso, mergulhado no ruralismo, no misticismo e no abandono, porém,
cheio de tenacidade, de energias inaproveitadas, foi a imagem nascida da obra-
prima literária de Euclides da Cunha e que iria perseguir as gerações das três
primeiras décadas do século XX. O primeiro a captá-la e a lhe dar uma
interpretação assertiva e inspiradora para uma crítica às instituições republicanas,
foi Alberto Torres. Ele mesmo, um republicano histórico, porém, inconformado com
os desajustes institucionais decorrentes da Constituição de 1891.
Parece, então, que tudo começa - firmado no gancho deixado pela prosa
eloqüente de Os sertões - justamente com a obra de Alberto Torres (1865-1917),
quando este autor diagnosticando e propondo soluções para os problemas do país,
108
escreve dois livros publicados em 1914: O problema nacional brasileiro e A
organização nacional, contendo este último um projeto de revisão à Constituição de
1891.
O engajamento de Torres em escrever esses dois trabalhos resume-se a
tentar responder ao presumido desafio que se colocara ao modelo institucional
republicano de 1891: superar as insuficiências do antigo regime monárquico,
inserindo o País no contexto das nações modernas e nos padrões da civilização do
Ocidente.
Todavia, o que Torres constatava é que, passados mais de vinte anos da
adoção do regime republicano federalista o Brasil se mostrava longe de ter
respondido àquele desafio e, bem grave, além do atraso profundo em que se
mantinham enormes contingentes populacionais em vastas regiões brasileiras, o
País parecia debater-se num esforço de sobrevivência diante de um quadro crônico
e tempestuoso de sucessivas crises políticas e econômico-financeiras.
O lema Ordem e Progresso inscrito como divisa na bandeira nacional pelos
positivistas, parecia-lhe algo ocioso, em contraposição à realidade do País. Assim a
questão nuclear da reflexão de Torres remete de imediato à imagem do dualismo: o
Brasil real versus o Brasil ideal, oficial, institucional. Essa defasagem que impede a
adequação do modelo institucional do País oficial com o País real, residente então
na Carta republicana de 1891. Todos os problemas do País que o incapacitam
econômica, social, cultural e politicamente decorrem de um só e único problema: a
desorganização da vida nacional em todos os aspectos. Carecemos de: princípios,
modos, técnicas e hábitos de organização. A tarefa que se coloca às elites
intelectuais e às classes governantes responsáveis pelos destinos do País é pois
uma única: organizar o trabalho, organizar a produção, organizar o ensino,
começando pela organização da vida política e administrativa da Nação como um
todo.
109
As experiências político-administrativas na carreira pública de Alberto Torres
haviam-no orientado para um conjunto de estudos com vistas a propor soluções
globais que dessem conta da ambigüidade que decorre do desgoverno e da má
organização política.
Na contra-maré do liberalismo ortodoxo, Torres privilegia, não o
desenvolvimento econômico espontâneo, mas o desenvolvimento político, pois é
nele que se dá forma à sociedade e conseqüentemente todos os fatores que
implicam uma ação social sujeitam-se ao predomínio político e assim, também os
demais fatores subordinam-se a este.
Em O problema nacional brasileiro, Torres escreve:
A fase da evolução humana a que chegamos tem sido
caracterizada pelo predomínio do fator político sobre os fatores
cósmicos e sociais do desenvolvimento. A vontade dos chefes
temporais e dos chefes espirituais - do rei ao caudilho eleitoral, do
sacerdote ao feiticeiro, do homem de ciência ao taumaturgo -
pesou mais sobre os destinos dos povos que seus interesses, seus
sentimentos, suas aspirações e suas necessidades.
Os povos têm sido moldados à imagem e semelhança de seus
chefes, de seus padres e de seus sábios.
154
Esta ênfase no político evidencia que o destino dos povos vai depender
diretamente da boa ou má organização política; em que até os fatores de ordem
cosmológica passíveis do controle humano devem ser tratados politicamente.
Mesmo sendo defensor do sistema representativo, como de resto os
integrantes da facção liberal, Torres entendia imprescindível um fortalecimento do
Poder Executivo. Nesse sentido, contrapunha-se à liderança liberal, mais
preocupada com a independência dos poderes, em especial, com a intangibilidade
da Magistratura,
na esperança talvez de que esta acabasse por exercer uma espécie
de magistério moral - como se supunha fosse o papel da Suprema
Corte nos Estados Unidos - impedindo que a luta política
descambasse para o arbítrio e a ilegalidade.
155
154
TORRES, A. O problema nacional brasileiro: 116.
155
SOUZA, F. M. de. Raízes teóricas do corporativismo brasileiro: 14.
110
A posição de Alberto Torres mostra-se bem contraposta a essa, dizendo em
A organização nacional:
O Espírito liberal enganou-se reduzindo a ação dos governos, a
autoridade, isto é, o império, a majestade, o arbítrio devem ser
combatidos; mas o governo, forte em seu papel de apoiar e
desenvolver o indivíduo e de coordenar a sociedade, num regime
de inteira e ilimitada publicidade e de ampla e inequívoca
discussão, deve ser revigorado com outras atribuições. A política
precisa reconquistar sua força e seu prestígio fazendo reconhecer-
se como órgão central de todas as funções sociais, destinado a
coordená-las e harmonizá-las e regê-las, estendendo a sua ação
sobre todas as esferas de atividade, como instrumento de
proteção, de apoio, de equilíbrio e de cultura.
156
Muitas destas linhas foram lidas e relidas por Plínio Salgado, quando na
década seguinte, sua geração entrou em contato com a obra de Alberto Torres e fez
dele seu mestre. Algumas das linhas acima aparecem quase que transcritas na
íntegra em textos de Salgado, sendo, portanto, incontestável a influência poderosa
que o pensamento torrista exerceu diretamente na configuração ideológica do
integralismo em geral e, em particular, do imaginário político pliniano. Embora,
essa influência tenha se estendido, sem dúvida, a um espectro ideológico muito
mais amplo, abarcando intelectuais liberais e de esquerda.
157
Mas a grande idéia penetrante do pensamento de Alberto Torres, no sentido
da mobilização e do ativismo político foi sua compreensão do nacionalismo como a
grande força impulsionadora e dinamizadora das nações jovens. Ao contrário das
velhas nações seculares em suas tradições, em seus costumes, em que a
experiência acumulada contribui para o zelo espontâneo pelos seus bens, suas
riquezas e seu patrimônio, os povos jovens, antigas colônias e agora ingressos na
esfera das nações modernas carecem desse longo aprendizado que só o tempo
histórico, com seus embates e desafios forja na consciência das gerações que se
sucedem. Nas nações jovens, como o Brasil, esse sentimento de solidariedade,
inexiste da forma instintiva como ocorre nas velhas nações
156
TORRES, A. A organização nacional: 231.
157
LIMA SOBRINHO, B. Presença de Alberto Torres. Este autor identificava-se
com o pensamento socialista democrático, sendo um dos fundadores do Partido
Socialista Brasileiro - PSB.
111
onde é obra secular de relações, de trocas e de apoio mútuo, só
pode surgir, em novas e extensas nacionalidades, com a forma de
um móvel consciente e como conhecimento objetivo das
necessidades permanentes do país, superiores às divergências e
divisões do presente e à sucessão das gerações.
Concluirá dizendo:
No Brasil, com mais forte razão, o estudo da síntese nacional, e o
trabalho de educação da opinião e de arregimentação dos espíritos
em torno de um programa e de um ideal, é, por força da nossa
conformação geográfica, mais difícil e mais necessário.
158
É, portanto, um nacionalismo ativista, construtor de necessários
empreendimentos práticos, que há de ser programático, um roteiro permanente
das elites governantes que ultrapasse as divergências dos interesses passageiros e
crie as bases e alicerces de uma nacionalidade jovem, desse
espírito nacional prático, da solidariedade patriótica fundada na
consciência dos interesses comuns a todos os agrupamentos
políticos, religiosos, econômicos, geográficos, comerciais e
industriais.
159
Ao Estado cabe pois ser a cabeça orientadora e propulsora desse
nacionalismo que, num país novo como o Brasil, não pode esse Estado praticar o
absenteísmo. Deve, ao contrário, ser atuante e intervencionista. A natureza própria
desse intervencionismo, na visão de Torres, é promover os estímulos necessários
ao progresso tendo sempre em vista as peculiaridades da terra e do seu povo, sem
violentá-las por artificialismos estranhos aos nossos caracteres, para que possamos
assimilar a civilização dando-lhe uma feição própria e singular. Essa compreensão é
indicada de modo preciso em A organização nacional:
Acima de tudo isto, cumpre, porém, ter em vista que, se as
instituições políticas precisarem ser sempre subordinadas às
condições peculiares à terra, ao povo e à sociedade, a natureza
especial desses elementos, no Brasil, ainda maior cuidado e
atenção impõe ao estudo de seus caracteres. Nosso país, por sua
situação geográfica, pela natureza da sua terra, por seu clima e
população, por todo o conjunto de seus caracteres físicos e sociais,
tem uma situação singular em todo o globo. Não há outro país
soberano que lhe seja comparável.
160
158
TORRES, A. O problema nacional brasileiro: 85.
159
Idem.
160
TORRES, A. A organização nacional: 248.
112
Nesse mesmo livro, Alberto Torres, ensaiou a reforma institucional do país
visando o reaparelhamento do Estado.
No projeto proposto por Torres, um Estado forte pressupõe um
aperfeiçoamento no sistema da representação. Procura combinar, para esse fim, a
experiência de outros países onde regem os poderes clássicos com as
particularidades nacionais.
A Câmara dos Deputados seria eleita por sufrágio direto, mas a
metade de seus membros receberia o mandato dos distritos
eleitorais, um quarto dos estados e o restante através de eleição
nacional. Queria combinar o sistema proporcional, da preferência
da maioria, com a eleição majoritária.
161
Com relação ao Senado, Torres sugere que se complete a representação
mediante o sufrágio fazendo-se a indicação de mandatários das organizações
religiosas. instituições científicas, profissionais liberais, industriais, agricultores,
banqueiros, operários urbanos e rurais e funcionários públicos. Mas ele adverte,
quanto a qualquer falsa presunção por parte do Senado:
A representação das classes e das províncias não significa que
estes senadores se devam considerar advogados exclusivos dos
grupos de eleitores e das províncias que representaram, senão
seus órgãos no conjunto e na continuidade da vida nacional.
162
Finalmente, quanto ao poder Executivo, Torres propõe para o mandato do
Presidente o período de oito anos (o dobro do vigente), por escolha indireta,
através de um colégio eleitoral composto não só por parlamentares, mas também
por mandatários dos vários segmentos da sociedade.
Uma última inovação no projeto constitucional de Alberto Torres foi a
instituição de um Poder Coordenador - para funcionar com atribuições similares às
do poder moderador que vigiu no império: representar a totalidade da Nação,
preservando a integridade territorial e política do País. Similar a um Conselho de
Estado, era composto pelo Presidente da República, representantes da Câmara e do
Senado, das Forças Armadas, das organizações religiosas, culturais e ministros de
161
SOUZA, M. F. de. Raízes teóricas do corporativismo brasileiro: 15.
162
Ibidem.
113
Estado. Somente se reunia por convocação do Presidente da República, ou por
sugestão de um dos poderes constituídos, na maioria de seus membros. Todas
essas propostas de alteração na representação, o governo forte, inclusive,
deveriam resguardar as liberdades individuais.
Todavia, o nacionalismo de Torres não se restringiu à crítica institucional e a
denunciar a ausência de organização da vida econômica e política do país; da falta
de objetivos claramente definidos na administração pública. Ele foi um defensor
convicto da tese do destino agrícola do Brasil. Empenhou-se em considerar que era
no retorno à terra, na valorização do trabalho agrícola, na pesquisa dos solos, na
diversidade das produções, no estímulo pelo crédito rural e pela assistência aos
produtores agrícolas que residia a fonte verdadeira e genuína do progresso e da
riqueza nacionais.
Essa marcada posição ruralista de Alberto Torres, na primeira década do
século XX, contrapunha-se à segunda fase do surto industrial, ainda incipiente, pós
1890, que sofreria os efeitos restritivos de capitais em face da desastrosa política
do Encilhamento (1891-92) projetada por Rui Barbosa, nos primórdios da
República. O industrialismo, nesse período, ressentia também da política das
valorizações do café, inauguradas pelo Convênio de Taubaté (1906) e nas medidas
recessivas impostas no Governo de Campos Sales, pelo ministro da fazenda
Joaquim Murtinho.
Nesse quadro desfavorável às iniciativas industriais, estas apelavam para a
proteção alfandegária, pela elevação das tarifas de importação, justificando-as
como único meio disponível de salvaguardar as indústrias nacionais e seus produtos
da concorrência desigual dos artigos importados. Nesse contexto, os defensores do
protecionismo, empunhavam a bandeira nacionalista, considerando e
argumentando que a defesa e proteção à indústria nacional era um pré-requisito da
soberania do país e que só a industrialização nos colocaria em igualdade de
condições com as demais nações, no mercado internacional.
114
Todavia, os capitais que serviram à industrialização nessa fase, vieram da
acumulação de renda gerada pela economia agro exportadora do café, não direta,
mas indiretamente através da expansão do setor de serviços que ela propiciava.
163
Os ruralistas, bem ao contrário, opunham-se ao protecionismo e defendiam
o livre-câmbio. Argumentavam que o protecionismo acobertava excessivos lucros
dos industriais enquanto a população era penalizada pela carestia dos preços
elevados das mercadorias.
Nessa polêmica, a posição de Alberto Torres ia mais além, denunciando o
que considerava ser um industrialismo artificioso, dependente de matérias primas
estratégicas que ainda não possuímos em estoques suficientes e que teriam de ser
importadas, tornando essas indústrias onerosas, e sua contribuição para o esforço
produtivo nacional quase inútil. Além disso ele denunciava que esse industrialismo
artificial era um estímulo cada vez maior ao crescimento desordenado das grandes
e médias cidades, o qual, se beneficia do abandono da agricultura deixada ao
descaso, forçando o êxodo rural dos trabalhadores atraídos pela miríade da vida
urbana. Em conseqüência desse artificialismo industrial que não corresponderia às
reais condições e necessidades de organização natural do trabalho - que deve ser
orientado para as atividades verdadeiramente produtivas, isto é, na agricultura, ou
em agro-indústrias - temos, então, o chamado mal-urbano, com todo o cortejo de
seqüelas materiais e morais que ele propiciaria; como o banditismo, a prostituição
e o parasitismo social, afinal sub-produtos do cosmopolitismo.
164
Alguns críticos têm enfatizado, talvez excessivamente esse aspecto em
Alberto Torres apontando-o como ideólogo do ruralismo, quando deve-se considerar
a marca por demais datada dessa sua postura. Numa fase em que as iniciativas
industriais eram ainda fortuitas e ignorávamos quase por completo nosso potencial
de reservas de matérias-primas necessárias à produção industrial, além do
163
TRINDADE, H. Integralismo: 17-19.
164
TORRES, A. O problema nacional brasileiro: 100-101.
115
mercado interno ainda restrito e de termos a maioria da nossa população ainda no
meio rural. Não é portanto incoerente, a visão de Torres de pautar-se por um
realismo como ponto de partida, ou seja, tomar a realidade da vida produtiva
agrícola do país e fazer o seu diagnóstico geral, a partir dela.
A morte repentina de Alberto Torres, em 1917, interrompeu no auge sua
carreira promissora de escritor, analista e intérprete dos problemas nacionais e
internacionais. Os dois livros aqui mencionados, O problema nacional brasileiro e A
organização nacional tiveram um cunho filosófico-social que se considerou como
realista e, embora Torres reunisse em torno de si um reduzido grupo de discípulos
e admiradores, suas teses e propostas não chegaram a se constituir num corpo
doutrinário definido. Na verdade, em seu tempo, além do seleto grupo de
admiradores, suas idéias não despertaram maior interesse. Nos anos vinte,
somente um autor e jovem discípulo de Torres - Oliveira Vianna - daria de público
testemunho da influência recebida do mestre, no esmulo à pesquisa histórico-
sociológica da formação social brasileira. Nos anos trinta, contudo, as idéias de
Alberto Torres passaram a ser estudadas com crescente entusiasmo.
165
Referindo-se ao significado da obra de Alberto Torres, segundo a sua
interpretação, Oliveira Vianna resume com estas palavras:
Ao planejar uma reforma constitucional para o Brasil, Torres fez
esta coisa inédita e simplíssima: abriu calmamente este grande
livro de direito público, que eram os vinte e tantos anos de regime
federativo nesta terra, e pôs-se a lê-lo com a mesma atenção e
seriedade com que para o mesmo fim, Rui Barbosa iria ler a
República, de Bruce e Teixeira Mendes e a Política positiva, de
Comte.
166
É ainda, Oliveira Vianna, quem considera o período da Grande Guerra, de
1914-1918, marcado por uma crescente consciência nacionalista. A guerra,
165
Nesse período surgiram as obras: de; MOTTA FILHO, C. Alberto Torres e o
tema da nossa geração e, de GENTIL, A. As Idéias de Alberto Torres.
166
VIANNA, O. Problemas de Política Objetiva: 13; citado por Francisco Martins
de Souza: 16. Nesse mesmo livro de Oliveira Vianna, este autor, referindo-se a
Alberto Torres, diz: nenhum, como ele, consolidou um tão vasto corpo de
conclusões positivas, práticas, experimentadas sobre a verdadeira orientação da
nossa política e dos nossos governos: 233- 34.
116
segundo Vianna, punha em evidência as nossas fraquezas, nossa dependência
externa brutal, ou a necessidade de uma revisão da nossa política.
(...) No Brasil, uns achavam que o remédio estaria na incorporação
imediata do País a um dos grupos de contendores, para ir buscar,
nas armas alheias, a segurança ou a proteção, que a nação não
poderia esperar de seus próprios recursos.(...) Outros entendiam
que, antes de tudo, era preciso fortalecer o Brasil, para que
pudesse aspirar a uma posição de independência e autonomia.
167
Sinais desse despertar nacionalista vão aparecer, a partir, logo, de 1915,
quando são lançadas duas revistas e três organizações de inspiração nacionalista. A
Revista do Brasil (1916) e a revista Braziléa (1917) e as associações: Ação social
nacionalista (1915), a Liga da defesa nacional (1916) e a Liga nacionalista (1917).
Personalidades do mundo das letras aparecem com destaque nessa
movimentação, como por exemplo, Luís pereira Barreto, Júlio Mesquita, Alfredo
Pujol e Jackson de Figueiredo: fundadores e editorialistas da Revista do Brasil.
168
No editorial de seu lançamento, evidencia-se a tonalidade nacionalista da revista:
O que há por trás do título desta revista e dos nomes que a
patrocinam é uma coisa simples e imensa: o desejo, a deliberação,
a vontade firme de constituir um núcleo de propaganda
nacionalista. Ainda não somos uma nação que se conheça, que se
baste, ou, com mais acerto (...) somos uma nação que ainda não
teve o ânimo de romper sozinha para a frente, numa projeção
vigorosa e fulgurante da sua personalidade. Vivemos, desde que
existimos como nação, quer no Império, quer na República, sob a
tutela direta ou indireta, senão política, ao menos moral do
estrangeiro.
Mais adiante, no artigo O nacionalismo da arte, a perspectiva desse
nacionalismo ficará mais nítida:
Nós não somos um povo inferior, nem decadente. Apenas não
atingimos ainda a maturidade de nação, no sentido científico do
vocábulo, isto é, de agremiação política e social, tendo um
pensamento, um sentir, uma ação, que sejam verdadeiramente a
síntese da energia coletiva.
169
167
LIMA SOBRINHO. B. apud TRINDADE, H. Integralismo: 29.
168
Jackson de Figueiredo, recém convertido ao catolicismo, tornar-se-á o
protagonista principal da renovação católica, fundando com apoio do arcebispo
de Olinda e Recife Dom Sebastião Leme, o Centro D. Vital e a revista A ordem,
em 1922; foi ainda, o autor do programa da Ação social nacionalista. Jackson
teve morte prematura, em 1928.
169
TRINDADE, Hélgio. Integralismo: 30.
117
Outras personalidades do mundo literário em destaque, nesse período,
foram Monteiro Lobato e Olavo Bilac. Com Lobato, que dirige a revista Braziléa, o
nacionalismo torna-se mais exaltado e prosélito, desfraldando o pendão do
brasileirismo puro e integral. O mote dessa revista era o combate à interferência
dos portugueses na vida do país, defendendo uma política patriótica,
exclusivamente brasileira.
Este nacionalismo, segundo observa Hélgio Trindade, é provavelmente
menos abrangente do que o de Alberto Torres porque enfatiza,
sobretudo, a atitude antilusitana existente no Rio de Janeiro e em
outras capitais, onde os portugueses tinham influência marcante.
No artigo Emancipação Nacional, publicado na Brazélia, o antilusismo é
manifesto:
Brasileiros! Precisamos criar uma pátria para nós. E, portanto,
todo o esforço deve convergir para libertar-nos da pesada ditadura
lusitana que se exerce disfarçadamente pelo poder do ouro e pela
força mágica da imprensa. Ditaduras intelectual e material.
170
Ou antilusismo dessa fase inicial é, ainda, um prolongamento das facções
radicais do republicanismo jacobino que, nos fins do século XIX, prevaleciam na
imprensa mais exaltada e identificavam o monarquismo com os interesses
mercantis portugueses, ainda dominantes nas grandes cidades, como o Rio de
Janeiro.
171
Olavo Bilac, já então um escritor de prestígio, empenhou-se na publicidade
da campanha nacionalista junto à Liga de Defesa Nacional. Nos estatutos da Liga,
definiam-se os seus objetivos:
manter em todo o Brasil a idéia da coesão e integridade nacional...
propagar a educação profissional e popular; propagar em todas as
escolas a educação cívica, o amor à justiça e o culto do
patriotismo.
172
170
Emancipação nacional apud TRINDADE. H. Integralismo: 31.
171
Nessa vertente nacionalista do início do século encontrava-se Manoel Bonfim
(1965-1932), cujo ensaio América Latina, Males de origem (1903), reproduz em
sua interpretação esse mesmo sentimento antilusitano. Ele atribui um caráter
parasitário à colonização portuguesa, depois herdado pelas elites brasileiras e
que vem se reproduzindo desde a independência até à República.
172
CARONE, E. apud TRINDADE. H. Integralismo: 32.
118
Bilac promove conferências, escreve livros, usando de seus talentos de
escritor e de sua oratória em favor de intensa campanha cívica. Em sua coletânea A
defesa nacional, Bilac não apenas exalta as glórias e méritos das Forças Armadas
brasileiras, como faz a defesa entusiasta do serviço militar obrigatório,
considerando que este é o triunfo completo da democracia, porque propicia o
nivelamento das classes, a escolha da ordem, da disciplina, da coesão. Nesse
sentido,
organizar a defesa nacional é necessário, porque a coesão é
indispensável, a disciplina é imprescindível. A verdadeira defesa
nacional é a consciência nacional.
173
Como bem observa Hélgio Trindade, o propósito de Bilac de integrar as
Forças Armadas e a Nação dentro de uma mesma concepção democrática, em que
o serviço militar se torna uma escola de cidadãos, faz com que este nacionalismo
cívico diferentemente do nacionalismo contemplativo do fim do século XIX
simbolizado no livro de Afonso Celso Porque me ufano do meu país?; se mostre
menos lírico e mais assertivo, porquanto se fixa menos nos aspectos físicos (a
paisagem, as riquezas naturais, etc.) do apego à Pátria e investe na formação de
uma consciência nacional e na integração dos cidadãos à Nação, por sua
participação na educação da caserna.
O desdobramento dessa campanha do nacionalismo cívico resultou, já em
1917, na fundação da Liga Nacionalista por estudantes de São Paulo; em sua
maioria, da Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco. Dentre seus objetivos,
segundo Edgar Carone, dedicam-se a
empreender luta contra atentados civis ou militares à soberania
nacional e desenvolver o sentimento da unidade nacional; obter a
efetividade do voto (voto secreto), promover a organização e o
desenvolvimento da defesa nacional pelo escotismo, linhas de tiro
e preparo militar.
Numa enquete feita à época pelo jornal O Estado de São Paulo junto aos
estudantes dirigentes do Centro Nacionalista (Júlio de Mesquita Filho, Sarti Prado,
173
BILAC, O. apud TRINDADE: 32.
119
Clóvis Ribeiro, Pereira Lima e Joaquim Salles Jr., formavam a comissão diretora) a
posição nacionalista da entidade foi assim definida:
Nós nada temos que conquistar e o nosso grupo étnico está
perfeitamente constituído em Nação. O desenvolvimento da nossa
riqueza, da nossa força e o nosso prestígio como nação - os três
fins principais a que tende o nacionalismo, não pode ser levado a
cabo com intuitos agressivos de qualquer espécie.
Consideram, porém, que:
a anarquia social é infelizmente um fato entre nós, e o
nacionalismo pregando uma ética nova, segundo a qual a noção
dos deveres de cada um com a sociedade deve sobrepor-se, em
muitos casos, aos direitos individuais, vem afirmar a prevalência
absoluta dos interesses da coletividade nacional sobre quaisquer
outros.
No depoimento, os estudantes concluem, por fim que
É preciso preparar o advento de uma geração nova, culta,
enérgica, prática, que tenha civismo, que seja capaz de construir
sobre as tristes ruínas do presente o novo Brasil, um Brasil
consciente de sua força, livre da tutela econômica e do arrocho do
capital estrangeiro.
174
Percebe-se que a idéia nacionalista não se apresenta com uma dimensão
única, mas, ao contrário ela sofre mutações ao longo do correr do século. Partindo
a princípio, dos fins do século XIX, com o advento da República, à primeira década
a do século XX de uma conotação fortemente antiportuguesa e ilustrada por um
patriotismo ufanista, para ir aos poucos esmaecendo estas cores e inserindo outros
valores mais contemporâneos e assertivos, exaltando as virtudes cívicas e militares
e, já na segunda década, incorporando uma dimensão econômica e antiímperialista.
Deve-se notar, pelo depoimento acima feito pelos estudantes (que parece ter sido
menosprezado, nesse aspecto, por Hélgio Trindade) que o elemento ético, ou seja,
de uma ética nova, que enfatiza a noção dos deveres para com a coletividade sobre
os direitos individuais, acaba por ser incorporado, também, como dimensão nova
ao nacionalismo. Obviamente que, não tendo todos os grupos e segmentos da
sociedade uma mesma compreensão do nacionalismo pluridimensional nos anos 20
174
TRINDADE, H. Integralismo: 33.
120
e 30, nem todas essas dimensões serão igualmente enfatizadas por todos quanto
se envolveram ou foram envolvidos por essa maré montante.
Fecharemos esta parte com as palavras de Hélgio Trindade que expressam
igualmente nossa conclusão:
O importante é ressaltar que este nacionalismo constitui-se na
atmosfera intelectual que vai modelar o pensamento do chefe
integralista. O nacionalismo cívico e econômico torna-se com o
integralismo na década de 1930, mais radical e a revolução
modernista lhe acrescentará uma nova dimensão: a exaltação
nacional pelo retorno às origens do povo brasileiro.
175
Apenas reforçaríamos o adendo às conclusões de Trindade: a dimensão
ética, que Plínio Salgado acrescenta à estética da revolução modernista,
transformando-a numa perspectiva de ação política nacionalista e de evolução do
Espírito; isto é da cultura política brasileira.
A renovação modernista
O grande arauto do nacionalismo no pensamento político brasileiro havia sido
Alberto Torres, nos seus trabalhos de 1914-15 como foi visto. Mas, como bem
observa Francisco Martins de Souza, Torres,
não teve a pretensão de projetar categorias ou conceitos novos,
numa obra ideológica ou filosófica, mas tão somente reorganizar a
vida nacional com os dados disponíveis da observação em nível
sociólogo - o fato social.
176
Na verdade, os materiais positivos propostos naquela reflexão: a Revisão
Constitucional e o nacionalismo haviam sido deixados como instrumentais políticos,
como premissas básicas, postos em disponibilidade, à espera de que sobre eles se
assentasse
outro projeto mais amplo que comportasse já um pensamento
político elaborado em nível de doutrina. Restauração conservadora
e reorganização são, portanto, fundamentos para desenvolver
posteriormente o pensamento em nível de uma filosofia política.
177
175
Idem.
176
SOUZA, F. M. de. Raízes Teóricas do Corporativismo Brasileiro: 16.
177
Idem: 17.
121
Realmente, foi preciso esperar uma década para, em meio a um grande
movimento renovador da cultura nacional, entre intelectuais das diversas regiões
do país e que não tinham, em geral, antecedentes políticos, viessem as teses de
Alberto Torres a ser retomadas, discutidas e reatualizadas, porém, já agora dentro
de um escopo doutrinário. O ponto inaugural desse movimento se coloca com a
Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em 1922. Esse movimento terá vários
desdobramentos até encerrar-se na década seguinte. O ano inaugural da Semana,
sintomaticamente, foi também o ano da ascensão do fascismo, na Itália, enquanto
no Brasil, um grupo de anarco-sindicalistas e maximalistas fundava o Partido
Comunista do Brasil - PCB; em meio a greves operárias e agitações nos quartéis;
estas últimas originando o chamado tenentismo.
O movimento modernista, foi um complexo de interferentes de origem
externa, européia e interna que se intercruzaram nas consciências da
intelectualidade brasileira, que nos anos 20 se mostra insatisfeita com a decadência
nas letras e nas artes, especialmente com as formas estéticas passadistas, do
Parnasianismo e do Simbolismo.
Para a maioria dos estudiosos, todavia, o movimento modernista,
particularmente, o literário, apresenta já sinais precursores, por volta de 1917;
quando da famosa polêmica travada em torno da exposição da artista plástica Anita
Malfatti, entre Oswald de Andrade, defendendo a obra da pintora e Monteiro
Lobato, no ataque à mesma; polêmica que ocupou as páginas da sessão Artes e
Artistas, do jornal O Estado de São Paulo.
Se como vimos, Alberto Torres foi o precursor do nacionalismo político-
econômico, Monteiro Lobato foi a expressão literária do nacionalismo cultural,
daquela geração do imediato após-guerra. Lobato, escritor de grande talento e
ensaísta estava na linha de frente do espírito modernista que se encubava na
consciência dos intelectuais de vanguarda. O personagem-símbolo do nacionalismo
temático precursor, de Lobato, foi a figura emblemática do Jeca-Tatu,
122
subalimentado, apático, sentado de cócoras à beira dos caminhos empoeirados das
roças do interior, encarnando o homem brasileiro do meio rural abandonado à sua
própria desdita, porém, resignado. Lobato fez-se também um incansável defensor
das riquezas minerais do país, empenhando-se na luta em favor do petróleo.
O próprio Oswald de Andrade, polemista de Lobato, no caso de Anita
Malfatti, não deixava de reconhecer o pioneirismo do escritor, afirmando que
Monteiro Lobato
foi o Gandhi do Modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesse
e noutros setores, a mais eficaz resistência passiva de que se
possa orgulhar uma vocação patriótica.
178
Ainda, no rastro do ensaísmo sociológico deixado por Torres, a preocupação
temática com a formação social brasileira em suas bases originais reaparece,
agora, já em 1920, quando vem à luz o primeiro volume de Populações Meridionais
do Brasil, livro de Oliveira Vianna - um discípulo do realismo de Alberto Torres. Esse
trabalho teve muito boa repercussão no seio da intelectualidade nacional, sendo
logo seguido de outras publicações nos anos subseqüentes, que não só conferiram
prestígio a Vianna mas, também, tornaram-no alvo de intensa polêmica.
Contudo seria mesmo no âmbito do modernismo artístico-literário,
inaugurado na Semana de 22, que a ebulição intelectual foi mais intensa, o debate
mais rico e seus desdobramentos mais decisivos e conseqüentes para os rumos do
país. Segundo Eduardo Jardim de Morais, o modernismo divide-se em dois
momentos distintos: o período de 1922 a 1924, que corresponde à fase de
preocupação dos literatos e artistas em romper com o chamado passadismo das
formas e estilos, reivindicando uma nova estética mais espontânea. Essa é a fase
em que os intelectuais modernistas estão mais expostos às manifestações e
expressões das vanguardas européias: do futurismo, do cubismo, do dadaísmo, do
surrealismo e do primitivismo. Estas expressões se manifestavam em declarações,
conferências, manifestos, debates, polêmicas, por meio dos quais idéias e
178
ANDRADE, O. apud TRINDADE, H. Integralismo: 28.
123
sentimentos eram, com respeito à criação artística - comunicados e dados ao
público. É, ainda, nesse período inicial que Oswald de Andrade toma ciência do
manifesto futurista, do italiano Mario Marinetti, que lhe foi revelado em Paris.
Particularmente, São Paulo e depois o Rio de Janeiro tornaram-se centros difusores
dos debates aos quais se juntariam os gaúchos, os mineiros e nordestinos. Uma
vasta rede de publicações como revistas, boletins, conferências, manifestos e
centros de estudos iam divulgando os rumos do movimento nessa fase anti-
passadista, de atualização moderna das formas e estilos de expressão estética.
A partir de 1924/25 ainda segundo Jardim de Moraes, começará o segundo
período modernista, estendendo-se até 1929. Esta segunda fase, no entender
desse autor, corresponde à maturidade da revolução modernista com sua
caracterização plenamente nacionalista. Sua preocupação não se limita apenas às
questões da forma e estilo nas letras e nas artes, porém, avança na busca de um
projeto amplo de uma cultura nacional autêntica a ser elaborado. O nacionalismo é,
então, posto em evidência, na objetivação dos temas e das produções artístico-
literárias, colocando-se, somente a partir daí a questão da brasilidade, como eixo
central das discussões.
Essa nova tendência de imprimir nexos entre a cultura e a política parece
refletir o momento nacional de conturbação e divisionismo em que se lançou o País
com a revolta militar paulista de Isidoro Dias Lopes, em 1924. Há ainda o contato
com as vanguardas intelectuais européias; do cubismo, dadaísmo, expressionismo,
surrealismo e, em especial, com os primitivistas franceses. Estes últimos
forneceriam possíveis pistas para o reencontro com os materiais simples e rústicos
que engendraram a alma da cultura brasileira original, nativa, anterior às
deturpações da cultura européia importada.
É esse sentir intuitivo que leva Oswald de Andrade a admitir que a sua
redescoberta do Brasil se deu em Paris do alto de um ateliê da Clichy.
179
Assim, o
179
MORAES, E. J. de. A brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica: 80.
124
primeiro passo para a introdução da problemática do nacionalismo e da questão da
brasilidade na literatura e artes modernistas vai ser dado por Oswald de Andrade,
lançando o manifesto pau-brasil, em 18 de março de 1924. A redescoberta do
Brasil proposta por Oswald no manifesto produz um deslocamento brusco no
movimento da renovação cultural. Uma intensa polêmica, resultou da repercussão
do documento, despertando prós e contras, acirrando posições contrapostas quanto
à definição e sentido a ser dado ao nacionalismo literário e artístico.
Nesse período, Plínio Salgado, em plena atmosfera modernista, escreve um
conjunto de ensaios que são publicados no Correio Paulistano, um período de
experiência do estilo moderno, como ele dirá, marcando já sua transição da poesia
à prosa.
180
Referindo-se a essa fase, entre 1921 e 1923, Salgado comenta:
Estávamos em plena revolução literária e artística. Até aquele
momento, muito se discutia, mas nada ainda se havia realizado
em prosa moderna (...). Comecei minhas experiências nas colunas
do Correio Paulistano.
181
Sobre as leituras dessa época, nos diz que:
De 1922 a 1926, eram tão absorventes as leituras que fazíamos de
Marinetti, Soffici, Govani, Apollinaire, Cocteau, Max Jacob,
Cendrars, como, de 1926 a 1930, foram as leituras de Marx, Sorel,
Lenine, Trostski, Riazanov, Pleckanov, Feuerbach.
182
Referindo-se às influências e reflexos das disputas ideológicas no contexto
do movimento modernista, Hélgio Trindade comenta sobre as opções políticas que
começam a dividir os grupos que
se distribuem tanto na esquerda como na direita, da mesma forma
que na Europa certos futuristas italianos inclinam-se para o
fascismo e a maior parte dos surrealistas franceses para a
extrema-esquerda.
183
Nessa segunda fase do modernismo, após o manifesto do pau-brasil de
Oswald de Andrade, as principais tendências foram assumindo maior nitidez e
singularidade, tendo Alceu do Amoroso Lima feito uma caracterização, que cobriria
180
SALGADO, P. Obras completas - Volume 20. Discurso às estrelas: 9.
181
SALGADO, P. apud TRINDADE. H. Integralismo: 50.
182
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 11.
183
TRINDADE, H. Integralismo: 50.
125
todo o período de 1922 a 1930. Teríamos: a tendência primitivista de Oswald e
Alcântara Machado, a tendência dinamista de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e
Guilherme de Almeida; a tendência mística de Tasso da Silveira, Andrade Muricy,
Murilo de Araújo e Cecília Meirelles e, por fim, a tendência nacionalista de Menotti
del Picchia, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e outros.
184
Contrapondo-se, pois, à perspectiva do nacionalismo oswaldiano, quanto a
suas teses substantivas, surgiu o grupo dos verde-amarelistas liderado por Plínio
Salgado e incluindo Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Cândido Motta Filho;
todos homens das letras, da poesia e da prosa identificados com o mesmo ideal
nacionalista literário, porém, com uma visão divergente do pau-brasil. Para afirmar
com mais ênfase a sua perspectiva, Salgado, dentro do próprio verde-amarelismo,
promoveu o que ele mesmo chamou de
revolução da Anta - uma espécie de ala esquerda do verde-
amarelismo, constituída por mim e Raul Bopp.
Ele esclarece o sentido desse movimento:
Pela mesma maneira como, com os verde-amarelos rompi contra
os chamados modernistas porque se desviavam do rumo de uma
revolução necessária, também senti que o verde-amarelo se
estacionava num nacionalismo demasiadamente exterior e
pictórico. Urgia um nacionalismo interior intuitivo.
185
Na proposta do Manifesto da Anta - nome que incorpora o animal sagrado,
totêmico, venerado pelos Tupis, porém animal pacífico - está toda a simbolização
estetizante de uma pacífica integração cósmica do homem indígena com seu
entorno natural.
Em resposta ao verde-amarelismo do grupo da Anta, Oswald de Andrade
contrapõe seu manifesto antropofágico, em cujo texto é mencionado o Jaboti - que
bem ao contrário da pacífica anta - é um animal forte, vingativo, violento e
devorador. Ele devora, destruindo as formas de consciência e experiências
184
Idem: 51.
185
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 14.
Chamou-se, Nheengaçu verde-amarelo - Manifesto do verde-amarelismo, ou da
Escola da Anta, lançado em 1929. Também, In JARDIM DE MORAES, E. A
brasilidade modernista: 32.
126
alienígenas. Mas ele também integra os detritos dessas experiências,
transformando-as e assimilando esse produto transformado.
Em ambas as visões desse nacionalismo modernista da segunda fase, que
abandonara as preocupações meramente estéticas e se voltavam decididamente
para o projeto de uma elaboração da cultura nacional, apesar de seus enfoques
quanto à problemática da brasilidade serem bem diferenciados; porém, com pontos
em comum que podem ser destacados. Os dois, por exemplo, tanto Oswald de
Andrade, quanto Plínio Salgado recusam como já mencionamos os métodos da
reflexão analítica próprios da ciência, como insuficientes e inadequadas ferramentas
para o conhecimento e a atuação transformadora da complexa realidade brasileira,
em particular, daquilo que a psicologia social chamava de alma nacional; e que
seria para o substrato profundo da realidade nacional, isto é, do nosso caráter de
povo - ou daquilo em que consiste a brasilidade. E esta, segundo Oswald e Plínio,
só pode ser alcançada em sua realidade profunda, por meio do método privilegiado
da intuição que nos permite obter então a caracterização sintética da brasilidade.
O segundo passo é, também, dado por ambos: pois percebem que a
produção cultural no Brasil é desenraizada do solo da Nação. Ela não passa de uma
fina camada de eruditismo (cosmopolita dirá Plínio; lianas da saudade universitária,
dirá Oswald) a esconder o verdadeiro substrato da alma nacional, com seu original
componente bárbaro. Esse diagnóstico exige refutar tal condição pela ruptura do
véu que oculta e mais que isso recalca artificiosamente a realidade da Nação. É
preciso regenerar a alma brasileira, libertando-a dos condicionamentos alienígenas
que impedem a produção cultural autêntica, capaz de expressar com nitidez o
nacional, no plano do universal. Tanto Plínio Salgado como Oswald de Andrade se
propõe a esse trabalho de regeneração e de cura.
Ambos se valem da categoria de integração, fundamental em duas etapas do
processo. Na primeira, trata-se antes de mais nada, de integrar a produção cultural
do País em seu solo, isto é, à terra-pátria - eis o primeiro nível de integração.
127
Numa segunda etapa, caberá integrar os brasileiros entre si, numa comunidade de
sentimentos - o índio aparece aqui, nas visões dos dois autores, quer na
Antropofagia, quanto no grupo da Anta, como o ente simbólico que realiza
simbolicamente o caráter integrado dos brasileiros. Como corolário destas
percepções, ambos sustentam a idéia fundamental de definir a verdade por critérios
distintos daqueles utilizados pelos saberes sistemáticos que são assim identificados
à perspectiva alienígena. Nesse sentido, ambos, por sinal, estão muito próximos,
daquilo que alguns estudiosos de Nietzsche têm revelado como sendo, a sua
concepção perpectivista da verdade e de todo conhecimento.
O perspectivismo opõe, portanto, à imparcialidade de um
conhecimento desinteressado a inexorabilidade das determinações
históricas, sociais, culturais, psicofisiológicas e lingüísticas que
condicionam o conhecer, o julgar e o agir humanos.
186
Assim, enquanto na visão antropofágica - tomando-se aqui as conclusões de
Jardim de Morais - a cura a partir da utilização da categoria de
integração se expressa de forma violenta, no verde-amarelismo, a
cura se faz de forma pacífica e incruenta.
A resultante em ambos os casos seria propiciar a construção de uma cultura
nacional em comunicação e contato íntimo com o solo pátrio. O nacionalismo
afirmaria o caminho seguro pelo qual atingiríamos múltiplas integrações até a
integração mais geral: nos comunicarmos com o universo inteligente, sendo então
por ele reconhecidos em nossa singularidade com a capacidade de enriquecê-lo por
nossas criações culturais próprias.
Contudo, fica a observação que, em ambas as visões, não se dá a rejeição e
negação total da contribuição alienígena, pois tanto em Plínio quanto em Oswald, o
processo civilizatório brasileiro deve comportar a absorção de traços positivos do
lado europeu colonizador. Quer seja no matriarcado de Pindorama, da versão
antropofágica de Oswald ou na instauração de uma nova ordem política na linha
proposta por Plínio Salgado.
186
JUNIOR, O. G. Nietzsche, perspectivismo, genealogia, transvaloração: 50.
128
Os sinais, como vimos, permanecerão diferentes. Plínio acredita que o índio
é destruído pelo colonizador, mas se mantém vivo na alma brasileira: objetivado na
terra, na cultura e no sangue. Oswald e a Antropofagia acreditam que o índio
devora o português e absorve os elementos úteis presentes na civilização invasora.
A figura do índio também se mantém, ainda que menos objetivamente do que na
Anta. O índio é um símbolo. Ele é a alma do brasileiro. Não do brasileiro pré-
cabralino, mas do brasileiro índio, integrando os elementos civilizatórios.
187
A volta
ao estado natural, isto é, ao índio, manifesta tanto numa versão como noutra, a
exigência de recorrer àquilo que é genuíno, portador de um valor de autenticidade
por estar ligado à terra como substrato da brasilidade. Por isso mesmo, no
nacionalismo de ambos os grupos, quer na Antropofagia, como na Anta, o índio é o
denominador comum que define o espírito brasileiro, sendo ele, aquele que deve
ser intuído no contato imediato da realidade.
No proveitoso estudo de Eduardo Jardim de Moraes (1978) que nós estamos
utilizando nestas considerações sobre o modernismo — a análise do autor sobre a
brasilidade modernista, tomada do ponto de vista da sua dimensão filosófica,
considera que as duas opções propostas quer pela Antropofagia, quer pela Escola
da Anta se constituíram em respostas diferenciadas às questões colocadas no
âmbito da filosofia da cultura brasileira, por Graça Aranha, em A estética da vida,
em 1921. Questões essas que não só teriam antecipado o debate modernista da
Semana de 22, como seriam retomadas na dimensão e sentido que Graça Aranha
lhes conferiu, somente a partir da segunda etapa modernista, após 1924.
Jardim de Moraes aponta que tanto as categorias da intuição e da integração
quanto a questão da necessidade de enraizamento da cultura nacional como pré-
condição para sua futura universalização, foram herdadas pela Antropofagia e pela
Escola da Anta, da elaboração filosófica de Graça Aranha, do qual assimilaram,
também, seu caráter de filosofia da ação.
187
JARDIM DE MORAES, E. A brasilidade modernista: 162.
129
Assim vê-se na análise que Graça Aranha faz do caso brasileiro, dois planos:
o do diagnóstico e o da cura. O diagnóstico indica que, no Brasil, a cultura é
desenraizada, sendo por esta razão, uma falsa cultura. A cura consiste em, por via
da integração enraizar a cultura no solo da nação. No diagnóstico, a intuição é a
mola que nos possibilita o acesso à realidade. No processo da cura, isto é, da
integração, é também o caráter intuitivo do povo brasileiro que deve prevalecer.
Por outra parte, a possibilidade de integração do Brasil no concerto das nações
deve passar pela afirmação do singular, ou seja, a construção da cultura nacional.
O pensamento de Plínio revela essa mesma perspectiva geral, dizendo ele, em A
revolução da Anta:
Proclamando nós a nossa procedência do índio, como ele o fez
dizendo-se filho da anta, rompemos com todos os compromissos
que nos têm prendido indefinidamente aos preconceitos europeus.
E só no dia em que se tiver formado uma consciência nacional,
forte e definitivamente caracterizada, poderemos pensar pelas
nossas cabeças, oferecendo ao mundo um pensamento, uma arte
e uma política genuinamente americanas.
188
Todas as linhas do nacionalismo cultural indianista estão presentes de modo
exemplar no pensamento pliniano aqui expresso nessa passagem de O curupira e o
carão: A idéia da cultura nacional autêntica de origem indianista em oposição ao
saber importado e as formas livrescas de saber, também a formação de uma
consciência de nós mesmos, na nossa singularidade, proveniente dessa cultura
nacional formada, e que nos possibilita participarmos no concerto internacional dos
países, vistos com personalidade própria.
Nesse mesmo texto, Plínio estende um apelo à intelectualidade nacional:
Por isso mesmo o que nos interessa, a nós escritores brasileiros do
século XX, não é mais a figura de Pery ou de Iracema, e sim a sua
sombra, o que ficou atrás deles e é o imenso substrato da
nacionalidade. São os fatores comuns de que resultou a unidade
nacional e que podem constituir uma força de ação invencível, na
destruição a que nos propomos, dos ídolos estrangeiros.
189
188
SALGADO, P. apud JARDIM DE MORAES, E. A brasilidade modernista: 135.
189
Idem: 97.
130
Assim, a realização de qualquer dos dois projetos: fosse a instauração do
matriarcado da Pindorama ou da nação governada pela quinta raça
190
, exigiam a
implementação de um trabalho intenso, sistemático e direcionado para além dos
limites das artes e da literatura. Apenas restrito ao plano intelectual, o trabalho
exigido para uma intervenção transformadora da sociedade, jamais alcançaria seus
objetivos. A questão da brasilidade, tanto para Oswald de Andrade, quanto para
Plínio Salgado ultrapassava os limites de natureza puramente intelectual exigindo
uma filosofia de ação, uma concretização política. A década de 30 revelaria os
caminhos diferenciados que cada um desses grupos iria seguir.
Contudo, nem todos que participaram no movimento modernista adotaram a
perspectiva já sustentada na obra de Graça Aranha. É o caso, por exemplo, deste
que acabou por ser considerado na opinião geral dos críticos como o ícone do
modernismo brasileiro, que foi Mário de Andrade. Ele teve uma maneira de definir a
brasilidade diversa daquela que vem sendo aqui exposta. Em 1931, ele assim iria
esclarecer sua posição, em Carta a Manuel Bandeira:
achei das observações mais finas que já fizeram sobre mim essa
sobre o lado analítico da minha concepção de realizar o Brasil.
191
Como se pode ver, Mário de Andrade, pretende expressar nessas palavras
sua preocupação em preservar o patrimônio cultural da nação, através de um
levantamento vasto e sistemático dos seus elementos. Nesse caso, parece-nos
concordar com Jardim de Moraes que aproxima a perspectiva de Mário de Andrade
da de Sílvio Romero e, por outro lado, a visão de Oswald e Plínio daquela que havia
sido defendida por Graça Aranha em A estética da vida, em particular na parte
intitulada Metafísica brasileira, que Mário de Andrade declarava desconhecer:
190
O mitema da quinta raça enuncia a raça futura brasileira, produto da
miscigenação das três raças fundadoras originais: o português, o índio e o
negro, acrescidas a partir da independência, dos fluxos de imigrantes europeus,
e depois, não-europeus, cujo complexo étnico e bio-psico-social plasmaria a
brasilidade futura. Plínio Salgado a ela se refere pela metáfora do Caboclo.
191
Mário de Andrade apud JARDIM DE MORAES, E. A brasilidade modernista:
124. Grifo nosso.
131
Detesto o Graça. Essa a influência que ele tem sobre mim. Mas
nunca há de aparecer nos meus gestos porque, apesar de tudo, o
que ele está pregando atualmente é bom, está quase sempre certo
e deve ser ouvido. Se eu contar pra você que nunca li a parte
brasileira de A Estética da Vida, você me acredita? Pois é a
verdade.
192
Assim, opondo-se à visão sintética, de base intuitiva que, produzida
inicialmente por Graça Aranha, vai ser assumida e estará presente nas obras de
Oswald de Andrade e de Plínio Salgado, a visão analítica assumida por Mário de
Andrade, será também o caminho adotado por alguns escritores mais próximos das
ciências sociais; por volta de 1930, como é o caso por exemplo de Oliveira Vianna.
Aliás, essa tendência acabará sendo plenamente vitoriosa no duplo aspecto:
ideológico-político e institucional. Quanto ao primeiro, pela vitória, no final dos anos
30 da tendência positivista-castilhista que conduz à solução autocrática do Estado
Novo. E, quanto ao segundo aspecto, o surgimento na década de 1940 das
faculdades de filosofia que vão formar os primeiros grupos de cientistas sociais do
país, cujo material de pesquisa utilizado pelos novos acadêmicos, será muitas
vezes, aquele mesmo que tinha sido levantado dentro de uma certa orientação do
modernismo.
Contudo, nos limitamos a identificar essa outra tendência, não cabendo
aprofundar aqui uma análise mais minuciosa do embate dessas tendências no
âmbito do movimento modernista; embora essa discussão mereça uma ocasião
oportuna em tempo e espaço para ser feita.
Enfim, a era modernista encerrava-se com o fim dessa segunda fase, ao
terminar a década dos anos 20, operando-se uma transformação radical na cultura
brasileira. A partir de então, a filosofia, a arte, a literatura, o trabalho intelectual
exigem o engajamento na esfera da política. Mais do que isso, não há mais
distinção entre trabalho literário ou artístico e a ação política que a meta
transformadora a ser alcançada exige. Em 1926, Plínio Salgado consagra-se como
escritor de estilo moderno ao publicar seu romance O estrangeiro, que ele
192
Idem: 121.
132
considerou, depois, como o seu primeiro manifesto integralista. Em 1927, publicaria
o ensaio Literatura e política, obra importante em revelar idéias filosóficas e
políticas e a articulação delas com a arte.
193
Oswald de Andrade, no campo oposto, avança com ensaios poético-satíricos,
divulgando suas idéias na Revista de Antropofagia; logo ingressaria, em 1928, no
Partido Comunista. Em 1932, era a vez de Plínio Salgado firmar de público o laço
social do artista criador com a política: através do Manifesto de Outubro, lançando
a Ação Integralista.
Mesmo admitindo-se como pertinente o vínculo comum da Escola da Anta,
de Salgado e da Antropofagia, de Oswald, com a filosofia precursora de Graça
Aranha, o que Jardim de Moraes nos sinaliza com seu ensaio, através das
categorias de intuição e integração, não há como escapar à pergunta: Por que
esses dois protagonistas que se movimentaram no mesmo âmbito do nacionalismo
cultural, acabaram por assumir perspectivas tão diferenciadas, antagônicas mesmo,
no modo como conceberam a construção da brasilidade e o sentido da integração
que propunham, resultando, por fim, em atuações políticas por campos
francamente opostos? É lícito supor que, apesar do vínculo comum inicial,
aparentemente detectável nos escritos e posturas de Plínio e Oswald, em prol do
modernismo artístico-literário e cultural, no sentido mais amplo, as interpretações e
posições posteriormente assumidas, na segunda metade da década dos 20, em face
da realidade brasileira e do tratamento, ou da terapêutica que lhe fosse mais
adequada, denotam que Plínio Salgado e Oswald de Andrade construíram suas
perspectivas inspirados por princípios ordenadores de suas cosmovisões
193
A conjugação de todas as energias ambientes na geração que vem
alvorecendo, a fusão da arte, de finalidade social, com a política, norteada por
um sentimento de harmonia dos movimentos relacionados da vida nacional, e
uma e outra, fundadas em nossa antropogeografia, fundidas na aspiração da
coletividade - há de provir, como todas as grandes coisas, de uma coisa bem
simples: de uma revolução literária. SALGADO, P. Obras completas - Volume 19.
Literatura e política: 31.
133
substancialmente diferentes, em razão do que orientaram suas ações políticas por
campos ideológicos opostos.
Pode-se conceder que ambos estivessem afetados pela mesma causa de
uma cultura nacional enraizada, ou no empenho em captar a alma nacional, ou
mesmo de rejeitarem em comum os processos sistemáticos de análises por
julgarem-nos como meios, inadequados ao conhecimento desse caráter do povo
brasileiro. Todavia, quando analisamos seus textos com olhar atento, logo
percebemos um estranhamento na comunicação dos sentimentos que esses
escritos destilam. Eis porque o modo como organizavam mentalmente os dados que
colhiam da experiência, embora obedecendo a um temário comum, eram
interpretados e transcritos por linguagens que soavam mutuamente estranhas para
verde-amarelistas e antropofágicos - em razão nem tanto de diferenças conceituais,
mas do modo próprio de sentir o mundo e a vida, ou seja, de cosmovisões distintas
- sendo, então, mutuamente, rejeitadas.
Compreende-se, então, porque Oswald de Andrade recusou de pronto a
interpretação verde-amarelista da problemática cultural brasileira, explicitada no
Manifesto da Anta. A resposta de Oswald foi contrapor-lhe o Manifesto
Antropofágico e a ruptura com o grupo liderado por Plínio Salgado. A coerência do
gesto, fora do histrionismo característico do autor, está em ter percebido na
linguagem e na mensagem do nacionalismo luso-tupi um modo de sentir a história,
uma vontade de atuar e direcionar os fatos e as ações de outros homens, além de
sugerir um sistema de valores que a postura libertária, tanto intelectual quanto
sentimental de Oswald tinha de recusar, por princípio.
Remontando àqueles tempos de pesquisas e redescobertas do Brasil, Plínio
recorda, escrevendo já na década dos 30:
Em conseqüência do estudo do índio, o mistério da Unidade
Nacional absorveu-me. Minhas leituras eram, nesses dias, Alberto
Torres, Euclides, Oliveira Vianna. O político despertara no escritor,
lembro-me que li a obra de Torres, viajando, de canoa e de navio
gaiola pela Ribeira de Iguape. Ali, pude também meditar junto aos
134
sambaquis, sobre a nossa etnografia pré-histórica e sobre o
destino do Continente Americano. A vida infeliz das populações
ribeirinhas acordou no meu coração a antiga revolta contra as
injustiças sociais.
194
Em resumo, as mobilizações de Plínio Salgado e de Oswald de Andrade
assumem sentidos divergentes, na teoria e na práxis, porquanto, orientam-se por
visões-de-mundo diversas que se baseiam fundamentalmente em princípios que,
necessariamente, os colocam em oposição.
O Espiritualismo: a reação com Farias Brito
O espiritualismo é uma componente de igual força e intensidade, tal qual o
nacionalismo, na elaboração ideológica de Plínio Salgado. Na verdade são duas
categorias que se interpenetram e não se justapõe, não podendo ser dissociadas,
sem que se desfigure, se deforme o imaginário político de Salgado. Essas duas
componentes parecem estar tão íntimas e profundamente ligadas que a
intelegibilidade de uma, permite a compreensão e a pertinência da outra e vice-
versa. Todavia, a ênfase que Plínio Salgado confere, particularmente, em suas
obras de cunho doutrinário explícito, ao sentido espiritual do integralismo, da
necessidade de se promover a revolução do espírito, e outras postulações
parecidas, tem levado a maioria dos estudiosos do pensamento de Plínio a buscar
explicações para esse espiritualismo, encontrando as razões da sua formulação no
contexto da revitalização católica brasileira, na segunda década republicana.
É verdade que esse movimento inspirou-se na renovação católica em
França, dos fins do século XIX, com vistas a restaurar os valores espirituais nos
meios cultos da sociedade francesa. Como destaca Hélgio Trindade.
Este movimento de espiritualização dos intelectuais é marcado,
como o da França, no início do século, por um espírito anti-
moderno, anti-burguês pela nostalgia da Idade Média. Começa sob
a influência de um catolicismo reacionário e das correntes contra-
revolucionárias da segunda metade do século XIX e tornando-se
mais liberal entre as duas guerras sob a inspiração do
neotomismo.
195
194
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 16-17.
195
TRINDADE, H. Integralismo: 37.
135
Essa descristianização das camadas cultas e, em particular dos intelectuais,
é um processo que vem lento e disfarçado desde o iluminismo para se aprofundar
com a Revolução Francesa. Depois, se atenua um pouco com o período das
restaurações, após Napoleão, para retornar novo impulso, generalizando-se na
segunda metade do século retrasado, onde apenas o povo comum permanece
conservando sua religiosidade tradicional. O vigoroso avanço das ciências naturais
impulsionava as novas correntes filosóficas, como o positivismo, o naturalismo, o
evolucionismo e o ceticismo, que passam a dominar nos meios intelectuais. De um
modo mais abrangente esse era o fenômeno da laicização da inteligência e da vida
moderna em geral a que Nietzsche havia se referido em a Gaia Ciência, quando
prognosticara a morte de Deus.
Todavia a literatura, particularmente entre 1850 e 1890, é
agnóstica, cética e freqüentemente antiderical.
196
No Brasil, os primeiros sinais de reação espiritualista já se observam no final
do Império, com as pregações de Júlio de Moraes Carneiro (1860-1916), o celebro
padre Júlio Maria, em cujos sermões exortava os fieis: É preciso catolicizar o Brasil.
Mas, foi o advento do novo regime republicano - com a separação entre o Estado e
a Igreja (1891) - que iria impulsionar a renovação espiritual, particularmente na
fase da Grande Guerra e, logo após o conflito.
No princípio do século XX, destaca-se a atuação do filósofo Raimundo de
Farias Brito (1861-1917), cujas obras, embora não possam ser incluídas na relação
direta com a renovação católica, foram, todavia, relevantes no combate cerrado
que Farias Brito travou contra o pensamento filosófico dominante da época,
especialmente, o positivismo. Na verdade, os propósitos de Farias Brito eram mais
ambiciosos ainda, pretendendo por em xeque diversas correntes do pensamento
filosófico moderno, naturalistas, evolucionistas e monistas.
Para alguns, como Alceu do Amoroso Lima, a obra da Farias Brito revela
uma dada evolução:
196
Ibidem.
136
Depois de sofrer o impacto dessa mesma formação objetivista, foi
pouco a pouco operando uma revolução espiritual no sentido
oposto, sob o idealismo Kantiano (...); e, de modo particular, pelo
intuicionismo e pelo criacionismo bergsonianos...
197
Os livros de Farias Brito passam a exercer forte influência sobre jovens
intelectuais daquela geração que já começava a se desencantar da utopia
republicana e das congêneres modernas do cientificismo naturalista.
198
O fato mais
significativo dessa atuação foi, sem dúvida, a conversão ao catolicismo de Jackson
de Figueiredo, (1891-1928), oriundo do anarquismo e do nietzschismo, em 1916. A
conversão de Jackson (que se fez discípulos de Farias) teve enorme repercussão,
atraindo um número crescente de jovens à renovação espiritual católica. Outra
atuação importante nesse período foi a influência espiritual e cultural do padre
Jesuíta Leonel Franca (1893-1948), através de uma fecunda e polêmica atividade
intelectual e evangelizadora.
Mas, o ponto alto espiritualista partiu da Carta Pastoral, do jovem arcebispo
de Olinda e Recife, D. Sebastião Leme (1882-1942), publicada em 1916, que revela
uma tomada de consciência de certos setores da hierarquia católica com relação à
situação da Igreja no Brasil. Na carta, o arcebispo não só apela a que os católicos -
sacerdotes e leigos - façam sua própria autocrítica sobre as deficiências do
apostolado católico no país; como, ao mesmo tempo, faz uma convocação à ação:
a sacerdotes e leigos para, juntos reverterem essa situação, tornando o catolicismo
uma força de fé religiosa entusiasta, atuante e eficiente.
Logo, em 1922, é fundado no Rio de Janeiro, o Centro D. Vital e a revista A
Ordem, que se tornaram o ponto central de convergência e expressão da
intelectualidade católica. No período, duas publicações católicas se mostram
fundamentais como expressão doutrinaria: do Padre Leonel Franca, A Igreja, a
197
AMOROSO LIMA, A. apud TRINDADE, H. Integralismo: 38.
198
Algumas das principais obras de Farias Brito são: A Filosofia como Atividade
do Espírito (1895), Filosofia Moderna (1899), Evolução e Relatividade (1905), A
Verdade como Regra das Ações (1905), A Base Física do Espírito (1912) e O
Mundo Interior (1914).
137
Reforma e a Civilização, e de Jackson de Figueiredo, Pascal e a inquietação
moderna.
Embora Farias Brito não tivesse, ao falecer em 1917, se convertido ao
catolicismo, sua atuação filosófica de combate lhe valeu ser considerado como o
fomentador da reação espiritualista no plano das idéias filosóficas. É inegável a
influência de Farias Brito em muitos jovens intelectuais que abandonaram suas
antigas orientações filosóficas naturalistas e agnósticas e se voltaram para o
espiritualismo, como foi o caso da conversão de Jackson de Figueiredo, que lhe
consagrou um ensaio: Algumas Reflexões sobre a filosofia de Farias Brito, e de
Plínio Salgado, cujas leituras do filósofo influíram na sua formação intelectual;
como ele mesmo reconhece. Todavia, embora alguns pesquisadores hajam se
recusado a reconhecer Farias Brito como um precursor da renovação católica, sabe-
se, com clareza, que Farias, anda que pouco interessado em filosofia política, tinha
uma posição bem crítica tanto à democracia liberal quanto ao socialismo.
Do mesmo modo, Jackson de Figueiredo, como líder do laicato católico, cujo
núcleo era o Centro D. Vital, torna-se porta-voz de uma militância católica, cujas
bases ideológicas se apoiavam no tradicionalismo, de inspiração em De Maistre e
Maurras, defendendo o nacionalismo e contra o liberalismo, a democracia e o
socialismo. O pensamento de Jackson transitava fulgurante em torno de quatro
temas essenciais: catolicismo, contra-revolução, ordem e nacionalismo. De espírito
ardoroso, combativo de inteligência brilhante, Jackson parece encarnar, sobretudo,
o catolicismo ultramontano, de Donozo Cortes, disposto a não fazer nenhuma
concessão de natureza doutrinária. Sergio Buarque de Holanda disse dele, que
pertence
a essa casta de homens cheios de um heroísmo nobre, designados
para estimular, para orientar, para comandar e para combater.
199
199
TRINDADE, H. Integralismo: 40.
138
A intensidade de Jackson de Figueiredo leva-o a combater contra a ameaça
do protestantismo, da maçonaria, dos judeus que controlam o capitalismo
internacional.
Seu nacionalismo, sem se tornar tão radical como o nacionalismo
integral de Maurras ou como o culto estético e afetivo da nação de
Barrès, apóia-se sobretudo no culto do passado nacional e nas
crenças e valores que constituem uma nação.
200
Sem dúvida que a influência ideológica e moral de Jackson de Figueiredo foi
imensa para um renascer do pensamento católico, principalmente no seio dos
jovens intelectuais, cuja maioria provinha das classes sociais superiores e das
camadas médias.
A morte inesperada de Jackson de Figueiredo, em 1920, elevou à posição de
seu herdeiro e sucessor na liderança da laicato católico, o jornalista e ensaísta
recém convertido ao catolicismo Alceu do Amoroso Lima (também conhecido pelo
pseudônimo, de Tristão de Athayde), que, embora tivesse se pautado em manter
vivo o espírito combativo de Jackson, foi mais moderado do que ele, mais
conciliador e, pode-se dizer, mais maquiavélico, em saber manobrar as posições da
Igreja, sem que esta acabasse envolvida, perdendo sua capacidade de autonomia
frente às forças políticas em disputa no cenário nacional dos anos 30.
É verdade, como Hélgio Trindade nos lembra, que Farias Brito é apontado
por Plínio Salgado como o inspirador da concepção filosófica integralista. O próprio
Salgado relembra os tempos em que batalhava nas refregas modernistas, morando
numa pensão da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, em companhia de Plínio Melo,
Fernando Callage, Jaime Adour da Câmara.
Vinham todos os dias, pela manhã e à noite, Augusto Frederico
Schimidt, Raul Bopp, aparecendo às vezes Mário Pedrosa e Araújo
Lima. Estes últimos traziam o comunismo. Nossas leituras eram
todas marxistas. Não cheguei a ficar comunista, porque as
novidades do materialismo histórico já me tinham fascinado aos
dezessete anos, quando lia Buchner, Lamarcke, Halckel, Le Bon,
devorando a filosofia burguesa de Spencer, na qual encontrava,
agora, tanta afinidade com a obra de Marx. A recordação das
200
OLIVEIRA TORRES, J. C. apud TRINDADE, H. Integralismo: 40.
139
páginas de Farias Brito despertava porém no meu espírito. Seria
longo descrever o drama pelo qual passávamos naqueles dias.
201
A formação católica de origem familiar, tradicionalista parece ter
permanecido bem sedimentada, em Plínio, em que pese um breve período ao qual
ele se refere na citação anterior, quando aos dezessete anos, enamorou-se dos
filósofos materialistas, buscando na religiosidade um amparo para a crise
existencial que se abateu sobre ele pela morte abrupta da jovem esposa. Essa
retomada da via espiritualista se deu pela leitura das obras de Farias Brito, filosofo
anti-spenceriano e de Jackson de Figueiredo. Isto quer dizer que Plínio Salgado
reata seus laços com o campo espiritualista e o faz através da restauração de seus
vínculos com a matriz tradicionalista do catolicismo. Plínio não só absorveu o
espiritualismo da filosofia de Farias Brito, mas sendo também um admirador de
Jackson de Figueiredo e do catolicismo militante que este encarnava, é provável
que tenha se voltado para estudar com mais afinco os filósofos-doutores da
doutrina oficial da Igreja, particularmente, Santo Agostinho e Santo Tomás de
Aquino.
Contudo, nenhuma dessas leituras e nenhum desses autores esgotam ou
são capazes de representar, na íntegra, o espiritualismo tal como ele se apresenta
em toda a sua natureza complexa, no imaginário político de Salgado.
Pois uma outra variante a considerar na elaboração do espiritualismo de
Plínio é a do contexto intelectual modernista, do reencontro com o romantismo
literário, artístico e filosófico. O que lhe possibilita pelo exercício intuitivo
vislumbrar e contactar com a dimensão estética do espiritualismo, além da
dimensão ética, que se exprimia no cristianismo. É esse reconhecimento da dupla
dimensão da expressão religiosa, ou seja, do que há de tragicamente belo e
grandioso no espiritualismo cristão, ou seja, do seu potencial estético que leva
Plínio e escrever poemas religiosos e, por fim, escrever A Vida de Jesus; no exílio,
em Portugal.
201
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 17-18.
140
Essas experiências com o romantismo literário e filosófico, no debate
modernista, enriqueceu e tornou mais complexo e horizonte do espiritualismo de
Salgado, fazendo-o mais sutil e refinado. Os estudos da cultura indígena tupi, em
particular da língua geral, deixada pelos jesuítas, contribuiu para esse
enriquecimento da noção de espiritualidade que emerge, assim, como irmã-gêmea
- no mesmo contexto modernista - da outra noção, que é a de nacionalidade, ou
melhor, de brasilidade.
Elucidativo dessa fase de mutação da noção de espiritualismo em Salgado é
a critica velada, mas certeira, ao surgimento da dogmatização filosófica do
cristianismo em plena Idade Média, o que para ele significava um passo decisivo do
materialismo tal como este se expressava naquela fase histórica:
Foi nessa época que apareceu a filosofia cristã, sistematizada,
primeiro abandono do alto milagre da Revelação, fator primordial
da espiritualidade, por uma fé raciocinada que tentava subir a
Deus pelos três degraus do silogismo. Essa necessidade de defesa
do Imponderável e do Inconcebível pelos meios materiais legados
pela filosofia grega é expressiva do materialismo da idade que deu
santos angélicos...
202
Essa desdogmatização do espiritualismo cristão numa fase de redescobertas,
trazidas pela movimentação modernista, possibilitaram a Plínio desvelar novos
índices e formas expressionais de um espiritualismo com raízes étnicas e
condicionado pelo meio cósmico. Essa sutilização espiritual que, de certo modo
ultrapassa a perspectiva em que se debatia Farias Brito, e também aquela
condicionada aos limites dados pela Ortodoxia católica, não só conduz e um
alargamento do espectro do espiritualismo pliniano como lhe confere nova
dimensão. Pois ele agora incluirá as expressões da mitologia indígena, com seus
ritos bárbaros e pagãos, patamares expressivos de uma espiritualidade impregnada
do meio cósmico, de sensibilidade animista - e essa compreensão, teve-a, o jesuíta,
- dirá Plínio Salgado; como de modo similar se deve proceder com relação ao grupo
e sub-grupos africanos aqui chegados com seus ritos e crenças, sua mitologia.
202
Idem: 62-63.
141
Ambos contribuíram e continuaram a contribuir com suas representações, seu
simbolismo para uma expressão de singular espiritualidade, como um valor de
cultura na formação da brasilidade. O que, de resto, não deve ser entendido como
um abandono do cânone católico.
E assim, o espiritualismo como Plínio o considera, alargado e
multidimensionado a partir da experiência estética modernista, mas também no
contato estreito com as linhas diretivas do pensamento católico, desde Jackson de
Figueiredo, Leonel Franca e Tristão de Athayde até Octavio de Faria; adquire não só
sua plena dimensão cultural, mas vai além, como dimensão política que se objetiva
e corporifica no nacionalismo integral.
Assim, dessa associação íntima que Plínio instaura entre espiritualismo e
nacionalismo, desde a origem luso-tupi, decorre a idéia da brasilidade, cujo
fundamento é essencialmente espiritual, embora seus elementos primordiais sejam
raciais e geográficos, depois transfigurados nas misturas étnicas do português, do
índio e do negro - numa base inicial de formação.
E ao definir o seu conceito de nacionalismo, Salgado lhe confere essa
dimensão totalista e integralizadora de elementos diferenciados e que só podem ser
harmonizados se subordinados a uma finalidade humana superior, isto é, espiritual.
Assim, ele define:
Nacionalismo é compreensão intima do meio social e do cósmico.
Nacionalismo é visão total do país e é, ao mesmo tempo, a
consciência particular de cada caráter e de cada tendência, de
cada modo de ver, sentir, estar, resolver, aspirar, trabalhar e viver
dos indivíduos isoladamente e das populações agremiadas sob o
império de uma forma de atividade econômica, uma circunstância
geográfica e uma feição moral.
203
É, assim, o espírito, quem dita o sentido e rumo ao nacional:
O nacionalismo não pode ser apenas um culto ideal e político...
Tem de ser uma soma de qualidades e até de defeitos, policiados,
dirigidos, no rumo de uma finalidade humana superior.
204
203
Idem: 117.
204
Ibidem.
142
Mais adiante, ao criticar os limites ideológicos e políticos da Revolução do
outubro de 1930, afirma:
Mas a Revolução continuará (com o integralismo). Ou nesta ou na
próxima geração. Que saberá derrubar ídolos, como derrubará
preconceitos e realizará a Nação no Estado, como realizará o
Estado numa superior finalidade humana... Essa a direção do
nosso nacionalismo.
205
Finalmente, qualquer um que observe com atenção o sentido da postura
crítica de Plínio feita à passagem do cristianismo da fase mítica - do alto milagre da
Revelação - à fase do discurso teológico da filosofia cristã, ou nas próprias palavras
de Salgado: quando o fator primordial da espiritualidade é abandonado
por uma fé raciocinada que tenta subir a Deus pelos três degraus
do silogismo;
pode perceber aí uma crítica velada que expressa um modo de pensar gnóstico. Na
gnose, a Verdade Revelada é suficiente por si e não necessita recorrer ao logos
discursivo da razão para sustentar-se enquanto verdade, justamente porque se
trata do alto milagre, portanto da verdade que mesmo se revelando ao mundo,
permanece sendo mistério. A razão é aqui identificada por Salgado como o gérmem
do naturalismo trazido da Velha Grécia, como um disfarce do materialismo que só
irá se revelar claramente após o Renascimento, já nos tempos modernos. Mas esse
materialismo moderno, segundo Plínio foi gestado lá nos séculos medievais, nos
embates retóricos, da dialética discursiva dos teólogos nas catedrais e nas
universidades. Em conseqüência, a verdadeira e autêntica espiritualidade cristã, foi
assim sacrificada nos degraus do silogismo, isto é, do saber douto, acadêmico,
analítico que acabou abrindo todos os espaços ao triunfo do materialismo.
A Igreja parece ter percebido claramente o sentido dessa critica pliniana,
inclusive seu conteúdo gnóstico. Desse modo, jamais se identificou com a doutrina
integralista, embora Plínio Salgado tivesse insistido por uma declaração pública do
Laicato católico, junto a Alceu do Amoroso Lima, para que se pronunciasse nesse
sentido. Os líderes católicos recusaram-se a fazer tal declaração de endosso
205
Idem: 131.
143
doutrinário ao integralismo, mesmo porque reconheceram que havia alguns
aspectos do espiritualismo pliniano que escapavam às exigências doutrinarias da
Igreja e do que ela entendia como espiritualismo cristão.
Se como vimos, Bergson ampliou a perspectiva Superhumanista
incorporando-lhe uma visão mística e uma dimensão transcendental às obras da
criação, todavia, foi na filosofia de Farias Brito que Plínio revela ter encontrado - no
contexto da intelectualidade nacional - a luz sinalizadora para a afirmação decidida
do mundo superior do Espírito. Plínio atribui ao filósofo cearense dos fins do século
XIX e início do XX, ter sido, no conjunto de sua obra, o protagonizador de um
renascimento do espiritualismo no seio das elites intelectuais do País. Tal
renascimento emergia, assim, como uma reação, segundo Plínio,
às doutrinas dominantes do positivismo de Comte, do
evolucionismo de Spencer,
no monismo de Haeckel, do idealismo
de Hegel, do racionalismo frio de Renan, das estranhas mensagens
de Nietzsche.
206
Embora não se tendo definido claramente por uma adesão ao espiritualismo
cristão, Farias Brito ergueu-se como um crítico demolidor dos sistemas filosóficos
que predominavam no seu tempo. Não tendo chegado à elaboração de um sistema
próprio, mesmo assim, o sentido de sua filosofia apontava par a afirmação de um
espiritualismo superior. Traduzia uma clara insatisfação que assolava as
consciências cultas daquele fim de século constrangidas pelos limites impostos pelo
cientificismo experimentalista e o anti-finalismo do pensar moderno. Eis a questão
central que se coloca a Farias Brito: o problema da finalidade. A sua consciência
indaga:
Qual o fim a que tende a evolução universal, para onde vai tudo
isto que nos cerca; em que consiste a finalidade do mundo?
Correlata a esta, põe-se a questão primordial: Qual a posição do homem,
dentro do mundo? Plínio chama a atenção para o fato de que a posição
investigativa de Farias Brito privilegiando a filosofia moderna a partir de Bacon e
206
SALGADO, P. A Inquietação espiritual na literatura brasileira: 341.
144
mostrando menor domínio da filosofia medieval, em nada reduziria a
expressividade de seu pensamento crítico, numa época dominada pela linguagem
conceitual do racionalismo e do naturalismo modernos, o que em verdade, bem ao
contrário, permitiu-lhe expor em profundidade, todas as limitações e insuficiências
daqueles sistemas frente às inquietações e angústias dos tempos contemporâneos;
particularmente da intelectualidade brasileira de sua época.
Para responder àquelas perguntas primordiais lançadas ao âmago da
Filosofia Moderna e a partir dela mesma, ou seja, do centro da sua reflexão, que
toma como objeto o homem, Farias Brito coloca como primeiro tema - a inteligência
e suas possibilidades cognitivas. Às categorias mencionadas por Kant (espaço,
tempo e causalidade) Farias Brito acrescenta o sentimento. E é a partir deste que o
filósofo cearense pretende abordar o subjetivo.
À herança do criticismo kantiano que havia excluído as cogitações
metafísicas da interpretação do mundo referentes ao porquê e para que da sua
existência, pela inacessibilidade delas ao conhecimento humano, Farias opõe-se
decididamente. Recusa-se a admitir nossa incapacidade diante dos problemas das
causas primárias e finais, isto é, da razão de ser e do destino do mundo; para nos
contentarmos apenas com o como, isto é, com a aparência fenomênica dos fatos
perceptíveis. Reivindica a necessidade do espírito humano, de nossa inteligência, de
buscar o caminho inverso, subindo do campo dos fenômenos ao plano superior do
Ser em si; subtraindo-se a Filosofia de sua total sujeição à Ciência e restaurando-se
as prerrogativas da Metafísica. Ele afirmará, portanto, a permanência da Metafísica
em face das exigências da inquietude do espírito humano, sempre que o pensar,
penetrando no fundo dos problemas da existência, buscar o sentido das coisas. Ao
relativismo positivista ele se opõe considerando postulado errôneo que o Absoluto
não possa ser objeto do conhecimento. Para Farias Brito, O mundo não é apenas
construção física, mas construção metafísica.
145
No clima intelectual do princípio do século, marcado pelo indiferentismo
religioso, Plínio assinala o que lhe parece ser a preocupação dominante na filosofia
de Farias Brito: a procura de Deus. O exame a que submete todas as principais
correntes filosóficas modernas: do positivismo ao evolucionismo, do monismo ao
transformismo, as várias correntes do racionalismo, do naturalismo e do
panteísmo, todas se apresentam no balanço do filósofo cearense como
insatisfatórias, na explicação dos porquês e, mais ainda quanto ao angustioso para
que e ao misterioso como. A conclusão a que se vê inclinado, será, por exclusão,
tornar patente a existência de um outro campo de Verdades não-parciais e não-
transitórias, mas que ao conter a verdade eterna e imutável, só pode ser percebido
numa concepção espiritualista do Universo e do Homem.
Em Finalidade do Mundo - obra publicada por Farias Brito em três volumes,
entre 1895, 1899 e 1905, - aborda o filósofo, no primeiro volume Estudos de
filosofia e teleologia naturalista, no segundo, ocupa-se da Filosofia moderna, e no
terceiro O mundo como atividade intelectual. Nos três volumes, o filósofo conserva
a constante preocupação de preencher o vazio que as filosofias dos três últimos
séculos teriam deixado no espírito e, ainda mais, no sentimento humano. A
Filosofia, para Farias Brito, não pode subordinar-se à Ciência, ela não pode abrir
mão de um vôo mais alto, porquanto ela é a atividade permanente do espírito. Isto
se traduz na consideração espiritualista segundo a qual a Filosofia deve transcender
os objetos restritos e parciais da Ciência e que esta, por maiores conquistas que
traga ao espírito humano, não pode substituir aquela, porquanto o mesmo espírito
humano jamais chegará a esgotar a natureza.
O tema da Verdade é abordado por Farias Brito em A Verdade como Regra
das Ações, investindo contra as posições agnósticas, quando pretendem deduzir
normas morais de conduta desligadas de qualquer concepção do mundo e da vida.
Questiona que se possa fundar preceitos de moralidade sem que antes se
estabeleça o que se tem como verdade. Como deduzir qualquer conceito de moral
146
sem ligá-lo ao conceito da finalidade, sem considerar os fins, o para que - o porto
seguro - único capaz de imprimir orientação firme a nortear tanto o comportamento
individual quanto social?
Todavia, Farias Brito, ainda que fascinado pelo tema da verdade, não chega
a fornecer dela um conceito preciso. Plínio, na leitura absorvente que fez do
filósofo, deixa transparecer um certo desencantamento à busca da definição
derradeira e esperançosa, percorrendo com avidez as páginas de A Base física do
Espírito e de O mundo interior, mas a expectativa se desvanece nas reticências dos
textos.
207
Apesar da lacuna insatisfatória, contudo, Plínio considera que Farias Brito
teria cumprido a sua missão essencial de restauração do espiritualismo no âmbito
da filosofia e do seu prestigio no pensamento nacional. Ainda na consideração
critica à filosofia moderna Farias Brito aproxima-se daquela concepção da verdade
tão cara à filosofia perene mas tão estranha e ausente às postulações dos filósofos
modernos. Nas páginas de Finalidade do mundo essa aproximação é sinalizada,
quando se lê.
Foi destruído o Deus sobrenatural e invisível, mas nada foi
concebido em condições de substituí-lo e servir de princípio de
explicação para a existência universal. Mesmo Spninoza não pode
prevalecer. É certo que este ilustre pensador foi um pouco mais
longe que os outros, identificando a ordem divina com a ordem da
natureza; mas em resultado o Deus que concebe é um Deus
mecânico e morto, redutível a uma simples fórmula geométrica e
percebido através de concepções abstratas e estéreis.
208
Avançando além dos limites do spinozismo, Farias Brito afirmará sua
concepção do Divino no Universo, na vida e no homem. Ele dirá:
Há pois um principio último que tudo explica, uma verdade
suprema que tudo ilumina: esta verdade é o Deus vivo e real que
mantém em equilíbrio o mecanismo do mundo.
209
E acrescenta:
Negar Deus é negar a razão do mundo. E por negá-lo é que
justamente vemos a que resultados tem chegado o homem
207
Idem: 355
208
Idem: 352.
209
Idem.
147
contemporâneo... debaixo de uma certa aparência de
desenvolvimento e de cultura, em realidade domina por toda parte
a injustiça.
210
Mas é em O mundo interior que Plínio enxerga um posicionamento mais
incisivo e conseqüente de Farias Brito na consideração dos erros e equívocos das
doutrinas filosóficas modernas e em sugerir um renascer do espiritualismo. Plínio
cita estas palavras escritas pelo filósofo:
Realmente é preciso ser cego para não compreender que uma
claridade nova se apresenta no horizonte do pensamento. E é
preciso ser bem duro para não sentir que o momento é trágico e
solene, sendo certo que para todos os sistemas ou modalidades de
ceticismo ou da filosofia do desespero que dominaram no último
período do desenvolvimento histórico da civilização ocidental -
compreendendo o ceticismo e o positivismo, o materialismo e o
pessimismo e, por fim, como conseqüência dos mesmos, a
anarquia -, é chegado o momento da agonia.
211
Completando o cenário que sugere o fim de uma mentalidade típica ou o
desabar de uma tendência epocal, a citação pliniana do texto de Farias termina
dizendo:
[É] o espetáculo grandioso e imponente: a morte das doutrinas
que durante dois séculos encheram a história com o ruído das suas
proclamações violentas e com o estrondo das suas ameaças de
demolição e desmoronamento da obra tradicional do espírito.
212
Na verdade a obra filosófica de Farias Brito - à qual nos referimos em
rápidas pinceladas, através da importância que lhe confere Plínio Salgado na
formulação do seu pensamento político-doutrinário - exerceu poderoso impacto na
mentalidade culta brasileira das gerações posteriores à Primeira Guerra Mundial.
Uma plêiade de notáveis escritores, poetas, literatos e alguns homens da ciência
abriram-se para o espiritualismo, particularmente, no sentido do catolicismo. Não
foi exatamente o caso de Plínio que trouxe desde o berço familiar uma sólida
formação católica. Mas foi o caso de muitos, especialmente da emblemática
conversão de Jackson de Figueiredo cuja repercussão calou fundo nos meios
intelectuais dos anos 20.
210
Idem: 353.
211
Idem.
212
Ibidem.
148
Segundo Plínio, muitos foram os críticos que avaliaram desfavoravelmente
Farias Brito enxergando insuficiências e contradições cm suas análises filosóficas.
Alguns chegaram a vincular sua filosofia ao panteísmo e até ao materialismo. Mas
Plínio rejeita tais avaliações embora reconheça que o filósofo deteve-se no umbral
do espiritualismo sem contudo conseguir transpô-lo numa decisão definitiva:
Tudo, na obra de Farias Brito, revela o anseio de gritar bem alto a
sua crença num Deus pessoal, a sua concepção verdadeiramente
espiritualista da existência. Nos livros há capítulos em que se
espera a confissão luminosa. E ela não vem.
213
Mas essa ressalva, com o verdadeiro sentido de um lamento que se observa
nas palavras de Plínio vem logo acompanhada pelo sentido novo que o
empreendimento filosófico de Farias Brito, aos olhos de Plínio, permite deduzir: o
sentido do espiritualismo como concepção do mundo. O comentário de Plínio sobre
o significado dessa empreitada é eloqüente:
Sua missão na terra parece que era a de criar inquietações,
sugerir, indicar, abrir os olhos dos outros, afirmar que existe um
caminho, que é o verdadeiro caminho, entre os falsos caminhos.
Ele parece dizer: eu sei que há um caminho; procurem-no que o
hão de achar. Muitos espíritos ouviram Farias e procuraram o
caminho anunciado, com seus próprios entendimentos e, mais
ainda, com seus próprios sofrimentos, e o acharam: o caminho de
Cristo.
214
Em síntese, Plínio faz o balanço do alcance da empresa filosófica de Farias:
Ele fechou, como dissemos, todas as portas das ilusões e dos
fanatismos do século, só deixando aberta aquela em cujo limiar
morreu, vendo seus discípulos entrar por ela: a da filosofia perene,
em que Farias, segundo seus críticos, era pouco versado.
Num reconhecimento à importância que a obra filosófica de Farias Brito teve
para a sedimentação das suas idéias e de sua geração, Plínio escreve:
Sua missão foi a de nos dar, numa época de desorientação, de
indiferentismo religioso, de materialismo, de ateísmo, de
fetichismo científico, alguns dados preciosos que deveremos usar
para traçarmos, por nós mesmos, nossos roteiros.
215
213
Idem: 355.
214
Idem: 357.
215
Idem: 351.
149
Plínio resume, então, os ‘dados seguros’ que serão norteadores do combate
e da ação política sustentados no espiritualismo como concepção de mundo:
O homem não pode ser indiferente à sua origem e à sua finalidade;
Conseqüentemente, a filosofia é uma atividade permanente do espírito
humano;
A filosofia não pode ser substituída pela ciência, porque por mais que esta
descubra as leis físicas e desvende, dia a dia, os segredos da natureza estes jamais
se esgotam, ficando sempre uma vasta área para o exercício da ação e do
ministério filosófico;
Todas as filosofias que partiram do racionalismo do século XVII até o
cientificismo de nossos dias, não respondem, senão arbitrariamente as eternas
perguntas que o Homem dirige ao Universo e a si mesmo, quando se introverte no
seu mundo interior;
Não podemos nos orientar com segurança, quer quanto à nossa conduta
pessoal, quer no que concerne às soluções sociais e políticas tendentes ao bem
comum, sem que adotemos uma verdade normativa dos critérios de nossas ações;
Deus existe, sem Ele o Universo não teria explicação;
O homem precisa ter uma religião e esta é uma necessidade social.
Estavam agora vincadas as vigas mestras colhidas por Plínio do arsenal
filosófico de Farias Brito, no longo combate que este travara em prol de um
renascer do espiritualismo. Alicerçado nas suas convicções, municiado com os
argumentos filosóficos que Farias colocara à sua disposição, ao mesmo tempo em
que soube tirar conclusões políticas significativas do que interpretou como missão
do filósofo cearense - tomada, então, como um grito e também como um apelo de
reação contra o niilismo moderno - Plínio parece ter se decidido por encetar o que
julgava ser a sua própria missão: despertar o país para um futuro radioso de
grandeza nacional;
150
construir uma nova ordem social e política na qual todos os
brasileiros se integrassem de modo justo e harmonioso pelo
estímulo e cultivo de superiores valores espiritualistas e cristãos.
O reconhecimento à contribuição de Farias Brito na reestruturação e
atualização do pensamento nacional de matriz conservadora; particularmente
daquele ligado à tradição católica, nunca deixou de ser manifestado por Plínio;
mesmo em tempos posteriores de desilusão e exílio:
Farias Brito foi, incontestavelmente, um homem-síntese do seu
tempo. E todos os defeitos, todas as deficiências, todas as
insuficiências, todas as contradições que certos críticos apontam
na sua obra, não fazem mais do que exaltar a grandeza de um
homem que exprimiu um momento universal na particularidade do
seu próprio país.
216
A filosofia da história
Dois livros doutrinários clássicos do pensamento integralista de Plínio Salgado
vieram a público, após a fundação da AIB, visando a dois públicos diferentes, como
o próprio autor assim considerou no Prefácio às 1
as
edições das respectivas obras,
datadas de 1933. São elas: O que é o integralismo, ‘dedicado à massa popular’, ao
‘brasileiro modesto que trabalha e sofre’. Trata-se, como o próprio título indica, de
uma súmula doutrinária do integralismo, seus objetivos e metas para o Brasil,
escrito de modo sintético, numa linguagem bem simples, num visível esforço de
esclarecer e atingir o homem comum. O outro livro é Psicologia da revolução. Logo
no Prefácio, Plínio Salgado escreve:
Este livro não é um livro para o povo; mas para os que pretendem
influir nos destinos do povo. Aos políticos e intelectuais é que me
dirijo nestas páginas.
Mas logo a seguir acrescenta:
a construção é nacional e nela devem colaborar todos os
brasileiros.
Nesses dois livros encontra-se uma exposição mais sistematizada da
cosmovisão pliniana, da filosofia da história tal como é concebida na concepção
integralista de Plínio Salgado. Na Psicologia da revolução, todavia, a construção é
216
Idem: 355.
151
mais complexa, mais erudita, com referências filosóficas mais aprofundadas, razão
porque, o livro foi destinado a um público mais seleto em recursos intelectuais.
É exatamente em Psicologia da revolução que vamos encontrar as duas
categorias básicas da doutrina integralista, a Matéria e o Espírito - o materialismo e
o espiritualismo. Elas regem todos os aspectos da existência e da vida no mundo e
no universo.
Matéria e espírito são os dois componentes da realidade existente,
consistindo, porém, em planos dotados de ritmos essencialmente diferentes. Ambos
estão sujeito à lei eterna do movimento universal. Atuando sobre a matéria, o
movimento lhe impõe ritmos de evolução, são as leis naturais de desenvolvimento,
leis deterministas que atuam sobre o comportamento do reino animal, do vegetal,
dos fenômenos físicos, e de todos as manifestações de base material; tanto das
sociedades quanto dos indivíduos. Pois, no interior de cada indivíduo humano, as
leis naturais estão presentes, comandando os nossos instintos, isto é nosso
componente corporal mais animalizado.
217
Por outro lado, ao atuar sobre o Espírito, o qual age como um mundo à
parte, perpetuamente criador e modificador, o movimento lhe imprime à ação um
ritmo revolucionário, que age paralelamente ao desenvolvimento das forças
materiais das sociedades, contendo em si mesmo sua própria dialética e
exprimindo-se segundo seu próprio sentido. Em síntese:
De um lado, perpetuando a evolução das Espécies, determinando o
crescimento social, multiplicando os fatos objetivos da história, as
energia cegas da Matéria e da Força, conjugando-se em renovados
efeitos; de outro lado, prolongando indefinidamente o rumo da
Civilização no que esta tem de ético, especulativo, artístico ou
religioso, as energias poderosas do Espírito, exprimindo-se em
Afirmação e em Negação, criando as dúvidas fecundas e as
certezas triunfais.
218
217
Essa concepção das leis da natureza, da qual o homem participa, como
criatura racional, e que foi impressa pela Providência Divina em toda criação,
está na base do Tomismo; sendo mais desenvolvida na Segunda Escolástica, nos
séculos XVI e XVII, com Vitória, Soto, Suarez e Molina, dentre outros. SKINNER,
Q. As fundações do pensamento político moderno.
218
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução: 25.
152
O Espírito é pois uma energia autônoma com capacidade de interferência
sobre o desenvolvimento das forças da matéria; ao contrário do determinismo que
rege a evolução da matéria, o Espírito está pela sua própria condição autônoma,
regido pelo livre-arbítrio. Ambos, em conjugação de suas forças - as do Espírito e
as da matéria - formam a unidade contraditória mas indissolúvel do Universo.
Esse estado de tênue equilíbrio entre os dois campos opostos: das forças
inconscientes e cegas da matéria (regida por leis naturais) e das forças ideais e
conscientes do Espírito (regido pelo livre-arbítrio) pode vir a romper-se. Neste caso,
as leis naturais podem começar a se constituir num perigo para o homem, se
ultrapassarem aquela fronteira, os limites que, dentro de cada um, as separam dos
domínios do espírito. Sendo a matéria por sua própria natureza expansionista, tais
leis naturais tendem a expandir-se para o âmbito da vida social, absorvendo
espaços cada vez mais crescentes, destruído os valores espirituais: éticos,
estéticos, morais, religiosos, os sensos de equilíbrio, de proporcionalidade, noções
de hierarquia, de disciplina, levando a uma absolutização do materialismo. O
resultado concreto para a vida humana é que a partir desse domínio do
materialismo, as relações de convivência passam a ser regidas pelos instintos: a
força bruta e a astúcia regem como ‘leis da selva’, invadindo todos os níveis da vida
social, instaurando a competição, um dos elementos reguladores básicos da vida
natural, como um princípio definidor da vida societária.
219
Ao se completar o triunfo da concepção materialista da existência, os
homens sob o domínio dos instintos, animalizam-se cada vez mais, valendo-se de
todos os meios a seu alcance para acumular o máximo de riqueza, de prestígio e
poder. Os fracos são espesinhados ou simplesmente esmagados pelos mais fortes,
219
Embora a concepção dualista de Plínio Salgado esteja bem explicitada nas
duas obras referidas, em especial, na Psicologia da revolução, nos valemos para
esta exposição da leitura e encaminhamento que Benzaquem de Araújo lhe
conferiu, conseguindo traduzir com fidelidade e clareza aquilo que no texto
pliniano nem sempre preenche tal requisito. Refiro-me ao livro Totalitarismo e
Revolução. O integralismo de Plínio Salgado, do referido autor e que tem sido
citado com freqüência neste trabalho.
153
num verdadeiro cenário darwiniano de Struggle for life, numa desenfreada luta
competitiva pela aquisição máxima de bens materiais. O resultado é a divisão da
sociedade em dois grupos, vencedores e vencidos, ambos porém igualmente
embrutecidos: os primeiros, pela soberba, os últimos, pelo ressentimento.
Se vencedor, o homem materialista esmaga cruelmente o seu
semelhante... cego e surdo aos clamores da massa que geme a
seus pés. Se ao contrário, ele não venceu, torna-se um revoltado,
um sistemático destruidor de todos os valores, assumindo atitudes
de ceticismo e ironia, com que mascara sua fraqueza, a sua
incapacidade para agir.
220
Convém assinalar que apesar de todo o infortúnio e todas as mazelas e
injustiças resultantes da concepção materialista posta em pratica na vida das
sociedades, tal concepção porém, não deve ser julgada em termos morais,
porquanto todos os efeitos destrutivos por ela gerados não resultam de uma
vontade deliberada nem de uma intenção consciente de produzir o mal. Bem ao
contrario, Plínio reafirma que tal julgamento moral não pode ser feito porquanto
estamos lidando com forças cegas e inconscientes que são as leis naturais da
matéria, moralmente desinteressadas, portanto, isentas de erro moral.
221
Na
verdade, os homens que assim agem contra seus semelhantes, são também, de
certo modo, vítimas da situação de desequilíbrio que se operando entre o espírito e
a matéria, permitiu estender os princípios da luta biológica a todos os espaços da
atividade humana. Tais homens comportam-se, pois, como verdadeiros autômatos,
guiados pelas forças instintivas que, sem quaisquer pontos de referência, tornam-
se avassaladoras e impelem os homens a agirem egoisticamente além de quaisquer
limites. Na medida em que as prerrogativas do Espírito foram subjugadas pelas
forças cegas da matéria, a consciência moral se desvanece e a dicotomia entre o
bem e o mal se torna indiscernível ao Espírito.
Em princípio, trata-se de um erro constatável de cálculo, de erro de tipo
matemático (não, ainda, de erro moral) —
220
SALGADO, P. Obras completas - Volume 9. O que é o Integralismo: 22-23.
221
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução: 44; e
BENZAQUEN DE ARAÚJO, R. Totalitarismo e revolução: 31.
154
Erro como resultado da energia autônoma do Espírito, na sua
interferência sobre o desenvolvimento das forças da matéria.
222
.
Contudo, todo erro traz um princípio de verdade. Até certo ponto, podemos
afirmar que a verdade é todo o mundo objetivo em si, e o erro é essencialmente
subjetivo.
Se há erro é porque existe um mundo subjetivo autônomo. O jogo
desses dois mundos é que cria a permanência da revolução.
Revolução é tendência de harmonização de dois mundos. É
procura de um equilíbrio.
223
Neste ponto de desenvolvimento da sua cosmovisão, Plínio esclarece que
tais desequilíbrios no mundo objetivo não existem realmente quando o
consideramos em relação ao absoluto da Inteligência Ordenadora dos sistemas de
movimentos,
mas existem em referência ao relativo do Espírito Humano e no
concernente aos interesses do Homem.
224
Em resumo, esse desequilíbrio: a luta dos seres, o domínio dos mais fortes,
de um ponto se vista naturalista, não altera em nada o ritmo universal dos
movimentos da matéria, nem interessa o sentido matemático do movimento
cósmico. Todavia, é o interesse de afirmação do Homem o que se opõe ao
desinteresse das energias cegas da natureza. É o homem, pois dotado de
inteligência e vontade, quem se interessa por interferir e por modificar aspectos da
natureza e da sociedade; agindo de modo autônomo e criador. Essa atuação do
Homem, essencialmente modificadora, abrange não só o mundo exterior, mas o
seu próprio mundo interior. Essa interveniência consciente do Espírito Humano,
modificando no sentido de recompor equilíbrios, confere a essa atuação o caráter
ético e a finalidade moral que todas as revoluções, qualquer que seja sua natureza,
possuem. Nesse sentido, Plínio define todas as revoluções como atos ideais, uma
vez que corresponderiam a alterações deliberadas da marcha social que só podem
ocorrer pressupondo-se a
222
SALGADO, Plínio. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução: 31.
223
Idem: 31-32.
224
Idem: 32.
155
autonomia da Idéia, o seu valor intrínseco, a sua prevalência sobre
as forças desencadeadas pelo determinismo dos fatos.
225
Assim, para a recomposição daquele equilíbrio e expulsar as leis da natureza
para o reino da matéria, seu domínio legítimo, torna-se necessário combatê-las por
meio dos valores inerentes à concepção espiritualista da existência. Tais valores
implicam essencialmente, no privilégio das idéias associadas à religião: partem da
crença em Deus, na imortalidade da Alma e na transitoriedade da existência
voltada para uma aspiração eterna e superior.
226
Nesta concepção espiritualista, a vida humana terrena não é pensada como
um fim em si mesmo, como na concepção materialista, porem, como um meio,
uma dádiva temporária, instrumento de uma vontade superior. Em lugar do
individualismo egoísta e da supervalorização da riqueza material, do dinheiro,
prevalecem os sentimentos como a compaixão e o espírito de renúncia; a ênfase no
sucesso pessoal vai cedendo lugar a uma proposta que acentua a solidariedade e a
preocupação com o destino dos demais.
Se a competição é inerente ao materialismo, no espiritualismo predomina a
solidariedade e a cooperação. O triunfo dessa concepção espiritualista da vida abre
oportunidade para a construção de um mundo bem diverso do atual, no qual todas
as pessoas estarão reunidas em torno de preceitos e sentimentos que, no pensar
de Plínio, possuem um significado eminentemente religioso, como a fraternidade e
a compaixão.
Mas para que este mundo seja viável é preciso que os valores espirituais
consigam interferir de forma decisiva, nos rumos da sociedade que marcha ao
sabor das leis da matéria. Como essa interferência não se dá de modo automático,
pois a concepção espiritualista, ao contrário da materialista, não é natural, isto é
não tem sua destinação programada e dirigida por leis inconscientes, sua
concretização vai depender inteiramente da vontade dos homens. Quer dizer que
225
Idem: 33.
226
Idem.
156
dependerá da consciência dos homens, ou seja daquele algo que é precisamente o
que nos distingue dos animais e dos instintos, ou melhor, da natureza.
Desse modo, o triunfo do espírito vai depender de um processo de
conscientização e de participação que atinja a todos igualmente e que unidos
possam intervir e alterar o curso ‘natural’ das leis da matéria. É essa intervenção
que visa recompor um quadro harmônico de equilíbrio entre dois mundos: o
material e o espiritual, ou o objetivo e o subjetivo, que Plínio vai chamar de
revolução, como vimos anteriormente. A revolução autentica implica, portanto,num
movimento de idéias, sob a condução e o comando de uma doutrina que seja capaz
de mobilizar todos os seus militantes em torno dos princípios sustentados pela
concepção espiritualista da vida.
Todas as revoluções, de quaisquer tipos são sempre atos de rebeldia, de
sublevação do Espírito irrequieto que interfere no curso do movimento histórico,
desviando-lhe a rota, criando aspectos novos.
A revolução é, pois, o trânsito de uma posição de equilíbrio para
uma nova condição de equilíbrio.
227
Plínio classifica as revoluções objetivas como atos de força decorrentes da
hipersensibilidade social e que parece não obedecerem a qualquer sentido
ideológico, ao contrario das subjetivas que explicitam uma doutrina, uma
formulação intelectual, operam no campo da filosofia, da sociologia e da política,
inauguram novos processos mentais, novos métodos de investigação, novas
concepções da dinâmica social. Foram revoluções subjetivas: a helenização
gradativa do Império Romano, o triunfo do Cristianismo, a Reforma, o
Renascimento e o Enciclopedismo, movimentos profundos tipicamente espirituais.
Nas revoluções subjetivas-objetivas conjugam-se os dois aspectos;
movimentação de idéias junto a atos de força que visam concretizá-las. Plínio
227
Idem: 44.
157
considera que a revolução promovida por Lênin, na Rússia, e a de Mussoline, na
Itália são exemplos de revoluções subjetivas-objetivas.
As revoluções objetivas podem, segundo Plínio, ser reunidas em quatro
diferentes tipos: aquelas que procedem diretamente das revoluções subjetivas, as
que com estas coincidem, as que as antecedem e, finalmente, as que antecedem,
coincidem e continuam as sublevações de caráter subjetivo. Todavia, Plínio insiste
em que
não há entretanto, nenhuma revolução que não se subordine,
direta ou indiretamente, ao desenvolvimento subjetivo de idéias e
sentimentos, de ordem especulativa e relacionados com
modificações de processos de vida.
228
Em síntese, quando o movimento é espontâneo da sociedade temos
Evolução; movimento por interferência do Espírito é Revolução. Esta permanente
revolução que reflete a inquietude do espírito humano, nada mais traduz senão a
luta incessante da consciência humana no sentido de conter a invasão do Espírito e
da sociedade como um todo - pelas leis naturais da matéria.
Assim, se Espírito e matéria são elementos de naturezas distintas, porém
harmonizam-se, cada qual atuando na realidade daquilo que lhe é próprio, contudo,
em se tratando da sociedade humana, ficou claro que, a trajetória da humanidade
tem, segundo Plínio, refletido no contorno das civilizações historicamente
conhecidas, o embate entre essas duas concepções distintas: a materialista e a
espiritualista. Torna-se, portanto, o ponto de partida para se entender o projeto
integralista pliniano, captar o significado desses dois modelos de sociedades em
oposição, quanto aos conceitos de vida e de finalidade. De um lado, uma sociedade
governada por leis naturais, inconscientes, que subtrai dos homens o controle sobre
o seu próprio destino, e de outro lado, uma outra sociedade fundada na
fraternidade, na compaixão, na cooperação e participação de todos.
228
Idem: 47.
158
Assim, a filosofia da história elaborada por Plínio coloca o materialismo e o
espiritualismo como categorias-chave, isto é, conceitos básicos, nucleares, em
condições de explicar, esclarecer qualquer situação ou evento no sentido do seu
significado mais geral, em todos os movimentos e lugares em que circunstâncias
históricas sinalizem para essa dicotomia.
Contudo, essas duas concepções vão se concretizar na História em formas
institucionais, em conceitos de vida muito diversos, originando civilizações
completamente diferenciadas. Nesse processo de concretização a oposição
esquemática entre materialismo e espiritualismo, sai do plano meramente abstrato
e formal de conceitos antagônicos e se reveste de uma configuração onde tais
conceitos aparecem ao longo da história: se revesando, ou se antepondo, ou se
conciliando... para de novo se separarem,
229
conferindo ao esquema dicotômico
pliniano uma amplitude mais diversificada, portanto mais aplicável às diversas fases
de transformação histórica.
Essa trajetória é dividida em três etapas, cada uma delas sob o domínio de
uma civilização ou humanidade distinta: a humanidade politeísta, que se
desenvolve pelo signo da adição, a humanidade monoteísta, caracterizada pela
fusão, e a humanidade ou civilização ateísta, que se define pela desagregação,
230
como já tivemos oportunidade de mencionar, muito brevemente, na primeira parte
deste trabalho.
Cada uma dessas humanidades, contudo, não designa um período histórico
singular, ao contrário, elas se superpõem e marcam sua presença,
simultaneamente, nos diversos momentos da atividade humana.
Ainda que uma delas possa, por um certo tempo, sobrepujar as
outras, estas nunca desaparecem por completo, mantendo
continuamente alguma influência sobre o comportamento dos
homens.
231
229
SALGADO, P. Obras completas - Volume 9. O que é o integralismo: 19.
230
BENSAQUEN DE ARAÚJO, R. Totalitarismo e revolução: 34.
231
Idem.
159
Como considera Salgado:
Dentro do mesmo tempo, mas nos diferentes espaços, há
selvagens politeístas, populações de profundo sentimento
monoteísta e civilizações eminentemente ateístas. E isso, que se
dá no espaço geográfico, verifica-se no espaço cronológico.
232
Em síntese, cada uma dessas expressões de humanidades, são no dizer de
Salgado, movimentos do Homem em torno do Absoluto. Nesse trânsito de
movimentos humanos em torno desse referencial fixo, temos afirmação, negação,
adição e fusão de elementos nessas três humanidades, com índices variados de
materialismo e de espiritualismo.
Assim, na humanidade politeísta, tanto o materialismo como o espiritualismo
aparecem combinados, coexistindo, sem que qualquer deles supere o outro. Desse
modo, se por um lado princípios morais e religiosos típicos do espiritualismo são
manifestos e visíveis mesmo nas mais primitivas formas de organização social - em
que prevalece o politeísmo - em que as noções de totem e de tabu implicam nas
idéias respectivamente, de Deus e de cosmos. Por outro lado, também o conceito
materialista de vida estaria presente na subordinação dos homens às forças
naturais, demonstrando a importância das leis da matéria nesse tipo de
humanidade.
O processo de engendramento da humanidade politeísta é extremamente
complexo e diversificado em função dessa combinação aparentemente confusa de
elementos espiritualistas e materialistas. Deuses personificados em totens -
símbolos de identidade e filiação tribal - são representados a partir de seres tirados
da natureza, animais, plantas, vegetais, com suas óbvias expressões tipicamente
materialistas. Essas práticas e ritos religiosos estranhamente misturados por
expressões de matéria e de espírito revela a situação de ambigüidade dos cultos
religiosos politeístas, levando-os à adoção de características típicas do
232
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade: 40. Plínio
enfatiza, nesta passagem: E não podemos negar hoje que foi o Ateísmo que
construiu o mundo moderno. Sim, foram os filhos do homem, e não foram os
filhos de Deus.
160
materialismo: diferenciações extremas entre as divindades, competição e até o
conflito desesperante e aniquilador de entidades divinas.
Essa tensão entre materialismo e espiritualismo prossegue no seio do
politeísmo, até o momento em que, dentro do próprio politeísmo, duas civilizações
vão emergir como mediadoras entre o politeísmo e as duas outras humanidades, a
monoteísta e a ateísta. Essas duas civilizações serão o helenismo e o orientalismo.
Assim Plínio caracteriza a importância desse evento histórico:
O politeísmo está entre dois fogos: o helenismo, que prossegue
nos métodos naturalistas da interpretação e explicação dos
elementos; e o orientalismo, que prossegue no rumo sobrenatural,
estabelecendo em Deus o centro do universo e do mundo interior,
conseqüentemente, o centro dos movimentos sociais.
233
Enquanto o helenismo fará prosseguir e aprofundar os aspectos naturalistas-
materialistas do politeísmo, deixando de considerar os fenômenos espirituais mais
profundos; o orientalismo, caminhará no sentido oposto, desconsiderando os
fenômenos mais imediatos, deixando-se absorver pelo magnetismo sobrenatural
em direção ao monoteísmo.
234
É assim que, segundo Plínio:
Ambos vieram do politeísmo, pelo mesmo caminho, mas
separaram-se porque cada um deveria constituir uma força da
dialética da Historia. Essas duas humanidade deveriam exprimir as
duas faces da verdade, porque impossível seria compreender uma
sem a outra.
Como e onde se expressou a civilização helenista? Deu origem na Grécia a
uma sociedade profundamente condicionada ao fator geográfico: não existem
distâncias imensas para o grego... Daí a ausência de mistérios. Como a natureza
lhe é pródiga e benfazeja, os homens gregos vivem em perfeita euforia, sem se
interrogar demasiadamente. Os romanos herdam dos gregos esse mesmo
condicionamento e estado de espírito. Ambos, não dedicam nenhuma importância
maior a fenômenos sobrenaturais; sua religiosidade é meramente pragmática,
233
Idem: 30.
234
Ibidem.
161
voltada para reverenciar a natureza e a terra. Seus deuses são apenas motivos
artísticos de escultura, arquitetura e poesia. Assim, o helenismo prenuncia o
racionalismo burguês e estabelece vínculo fortes entre o politeísmo e o ateísmo.
Dessa nova cepa brotam o paganismo epicurista e uma concepção de lei em que
ela corresponde mais a uma comodidade do que a uma finalidade. O senso
pragmatista da lei prevalece sobre o senso de um ideal ético.
O culto do direito é o rito da nova religião profana, materialista e
tradicional... é esse culto que justifica o Estado e cria o impositivo
da civilização. E esse impositivo que determina a idéia do Império.
Pois se os deuses justificavam as guerras de conquista, é agora a
idéia do Estado e da civilização que justificam a marcha dos
exércitos.
235
Contemporaneamente, mas num sentido de vida completamente diverso
temos o orientalismo, que irá desenvolver o lado espiritual do politeísmo, ligando-o,
por meio dos hebreus, com a humanidade monoteísta. Nesta se incluirão alem do
Cristianismo, o islamismo e o budismo. Mais uma vez, Plínio enfatiza o
condicionamento geográfico sobre o senso monoteísta dos antigos hebreus:
a nação judaica não tem base física ao nascer. Seu fundamento é
exclusivamente moral. A legislação mosaica nasce no deserto... É
a outra humanidade, na qual o Estado é um prolongamento do
sobrenatural.
236
Enquanto na primeira humanidade, politeísta, se observa uma índole de
adição - somam-se os clãs, somam-se os deuses, somam-se as causas. Na
segunda, a monoteísta, prevalece um caráter de fusão, em que todos aqueles
elementos se fundem numa idéia totalitária, que abarca toda a compreensão do
universo e todos os movimentos humanos. Fonte remota desse sistema de
movimentos, é o povo hebreu, antítese do povo grego. Sendo ele origem da
civilização cristã, influirá também na civilização sarracena.
Dará ao mundo um conceito de autoridade, um objetivo final, uma
estrutura social.
237
235
Idem: 31.
236
Idem: 31-33.
237
Idem: 33.
162
A Idade Média será, ainda que por breve tempo, o contexto histórico-
universal onde brilharam as obras e realizações da humanidade monoteísta: cristã,
islâmica e budista. Nela foi possível unificar povos, tribos e nações dissolvendo
distinções e barreiras que separam os homens, homogeneizando-os por meio de
regras morais-religiosas às quais se submetiam em comportamento. Eram regras
simples que colocavam como valor mais alto, a crença num Deus único como
causa, razão e finalidade do Homem.
O homem procede de Deus e vai para Deus. A terra é uma
passagem, o caminho entre dois infinitos. A vida humana, uma
contingência material do Espírito. E é desse pensamento central
que se origina a organização do Estado, das classes, das famílias,
das comunas geográficas. É desse pensamento que decorre o
conceito da autoridade, da obediência às leis morais e às leis civis.
Esta segunda humanidade vai desdobrar-se, dominando os
âmbitos dos impérios, até cristalizar-se na civilização cristã da
Idade Média, em que a compreensão das contingências
econômicas, materiais, se harmonizam com a idéia das finalidades
sobrenaturais.
238
A piedade, a compaixão e a fraternidade tornam-se os valores sociais
dominantes, nesse período.
Mas, esse triunfo do espiritualismo no contexto do monoteísmo medievalista
não seria permanente. A terceira humanidade, cujo germem havia brotado na
Antiga Grécia, se aproximava e iria brevemente despontar os primeiros sinais das
forças que vão confrontar o espiritualismo, derrotá-lo, e finalmente, instituir o
ateísmo. Deve-se considerar, contudo, que dentro da terceira humanidade também
já se encontram elementos da
quarta humanidade, elementos que estão também na expressão
contrária à do espírito grego.
Chega-se então à terceira humanidade ou civilização ateísta que é marcada
pela tendência dissociativa ou de desagregação. Plínio considera o seu início na
Idade Média. Seu ponto de partida se dá pela elaboração intelectual, em que as
linhas do naturalismo grego são retomadas e se chegará pela filosofia, passando
pelo nominalismo e seu critério dubitativo e relativista, à constituição de um
238
Idem: 32.
163
pensamento racional científico, que se constituirá no veículo de propagação e
difusão do materialismo. O materialismo caracterizará, pois, a civilização ateísta
que constituirá o mundo moderno. Todavia, não devemos esquecer que nesse
mesmo mundo moderno em que pontifica o materialismo e o ateísmo,
permanecem, subjazem, traços de espiritualismo que podem despontar, reflorir de
novo, assumir expressões novas a qualquer tempo e lugar.
O racionalismo, no entender de Plínio, iniciou a obra desagregadora pela
introdução da semente da dúvida que vai por em xeque os princípios religiosos e
morais que eram sustentados pelo monoteísmo.
Com a dúvida cética penetrando no coração dos homens, o pensamento
científico especulativo provoca a ruptura no compromisso que os homens haviam
celebrado, na humanidade monoteísta anterior, com os valores transcendentais do
espiritualismo.
Desse modo, através do privilegio do livre-arbítrio, do relativismo
e da experimentação, os argumentos racionais chegam a abrir
uma brecha e abalar o caráter absoluto e invariável do cristianismo
medieval, dando passagem ao mundo moderno.
239
As forças da razão, além de terem afastado os homens de Deus, agora
dominados pelo ceticismo, pela descrença nos valores superiores da vida
transcendental, açulados pelo questionamento e pela inquietação, também elas
interditaram a possibilidade de eles continuarem a se relacionar com o mundo
como uma totalidade em que o destino dos seus semelhantes se incorporava às
suas preocupações. Ao contrário disto, o pensamento científico e experimentalista
impondo uma mentalidade analítica, exige que tudo seja testado e provado,
empiricamente demonstrado, o que forçosamente conduz à desagregação do todo
em partes separadas, específicas, condição indispensável para que se realize a sua
demonstração.
240
239
BENZAQUEN DE ARAÚJO, R. Totalitarismo e revolução: 39.
240
Idem: 40.
164
Mas, Plínio considera que o mais grave é que o próprio homem passa a se
ver como uma parte, um fragmento, isto é, como um indivíduo, egoísta, solitário,
isolado, perdendo, desse modo, aquela perspectiva de vida solidária e fraterna que
se inspirava e sustentava pelo espiritualismo. Nas sociedades da civilização ateísta
os homens se auto-glorificam e não mais a Deus, em decorrência a mentalidade
humana tende a fragmentar-se em inúmeras concepções de existência. No geral,
passam a compor o humanismo burguês moderno.
Esse processo de formação e consolidação da humanidade ateísta passam
pelos momentos iniciais de construção da racionalidade filosófico-cientifica,
chegando ao humanismo, com o Renascimento. Nos séculos XVII e XVIII, a
humanidade ateísta desenvolve-se através dos importantes processos da revolução
inglesa, do Enciclopedismo e da Revolução Francesa, eliminando inclusive os
resíduos sociais culturais e políticos que obstaculizavam um avanço mais decisivo
do ateísmo. O ponto mais decisivo para essa consolidação chega no século XIX,
com o triunfo do capitalismo e a expansão espetacular da burguesia. Ao mesmo
tempo, filosofias naturalistas gregas como o epicurismo e o estoicismo, que foram
cultivadas durante a Renascença, reaparecem em plena era do capitalismo, da
sociedade burguesa, para se encarnarem no estado constituído sob o prisma
ateísta: o Estado liberal-democrático. Segundo Plínio, tal estado, orientando-se pela
doutrina liberalista do laisser-aller, laisser-passer, vai manter-se o mais afastado
possível da sociedade, assistindo com total indiferença, de braço, estoicamente
cruzados, ao espetáculo de competição desenfreada e de injustiças e todos os
sinais desagregadores que tipificam a humanidade ateísta.
Todavia, embora essa atitude do estado democrático-liberal de passividade
possa ser moralmente condenável como cínica, na verdade, essa frieza e
indiferença tem sua explicação lógica nos próprios princípios que orientam e
delimitam a atividade política na civilização ateísta: o conceito do homem cívico e o
de soberania nacional que é a expressão das vontades dos homens cívicos
165
somadas, e sendo o voto ou sufrágio universal, o elo de ligação entre esses dois
conceitos.
Mas, na consideração de Plínio tal sistema político é completamente absurdo
e irreal, porque as noções nas quais se baseia são puras abstrações, criações
artificiosas da filosofia jurídica especulativa e que não atendem a qualquer interesse
real e direto dos homens e mulheres que trabalham, produzem e vivem na
sociedade. Isso decorre do simples fato de que na sociedade liberal, gerada pelo
ateísmo, a competição sem limites e o individualismo exacerbam a fragmentação
social opondo os indivíduos uns aos outros e grupos em antagonismo, cada qual na
busca de realizar unicamente suas aspirações e desejos privados, sem nenhuma
senso de aspirações coletivas.
Em tais condições, num tipo de sociedade assim tão fragmentada em visões
de mundo particulares, completamente divergentes nos seus interesses concretos,
como pretender que seja possível sustentar uma proposta política apoiada em
conceitos tão gerais e abstratos como são o homem cívico e a soberania nacional,
sem se pensar sequer na necessidade de uma transformação radical e profunda
nessa sociedade que viesse acompanhar tal proposta política? Na verdade, para
Plínio o discurso da cidadania, da representação democrática e do sufrágio
universal, nas condições reais da civilização ateísta-liberal, não passa de um
embuste.
Nesta paródia levada a público pela doutrina liberal, indivíduos diferentes,
com seus interesses particulares absolutamente incompatíveis, se vêem diante do
sufrágio universal que os obriga a votar em candidatos cuja bandeira erguida por
todos é somente a da defesa de valores universais como a razão, o direito e a
liberdade, classicamente vinculados à figura do homem cívico. E isto ocorre
exatamente porque tal figura falsa e artificial, inventada, segundo Plínio, pelos
filósofos iluministas e completada pelos juristas liberais no século XIX, é a única
que tem suas vontades e projetos reconhecidos dentro do jogo político liberal. A
166
soberania nacional, em razão disto, torna-se uma ilusão, sem qualquer substância
de interesses concretos e reais, e o Estado liberal, ordenado a partir da
representação de interesse inexistentes, quiméricos, acaba por perder toda a
eficácia e qualquer base legítima.
Esse artificialismo, ou melhor, esse desfibramento do Estado liberal pairando
estoicamente por sobre uma sociedade fragmentada pelo individualismo, dominada
pelo materialismo, será respondido pelo epicurismo dessa mesma sociedade. É a
busca pela satisfação de todos os prazeres materiais, uma vez que a ciência
cumpriu já o seu papel de afastar os princípios espirituais da consciência dos
homens e da justiça social, e o Estado encontra-se imobilizado em razão do sistema
político liberal, restando às leis da matéria seguir em campo aberto, livres para
expandir-se, extrapolar seus limites e submeter todos a seu domínio.
A civilização ateísta fará a apoteose da matéria. Com ela assistimos ao
incrível progresso industrial e mercantil, multiplicam-se os negócios em escala
planetária, prodígios tecnológicos gerados pelos avanços científicos são colocados à
exposição nas feiras industriais das grandes capitais do mundo, como símbolos do
progresso ininterrupto do capitalismo. Mas, paralelamente, paradoxalmente, esse
regime de riqueza e progressos materiais inusitados, expõe também um cenário de
milhões de homens submetidos às mais cruéis e desumanas injustiças sociais. No
capitalismo, expressão econômica do materialismo ateísta, os homens,
transformados em meros indivíduos, valem apenas pelo que possuem pelo que
podem ostentar, não pelas suas virtudes. A riqueza e sua busca por quaisquer
meios tornou-se a meta central e finalidade única desta civilização. Não obstante,
de todos os cantos da terra se ergue o clamor da Humanidade.
Nunca houve tanta fome, tanto desconforto; e, entretanto -
suprema ironia - nunca os povos produziram tanto, nunca houve
maiores Stocks de manufaturas e frutos agrícolas.
241
Essa aparente contribuição decorre da própria natureza da civilização
ateísta: pois os homens dominados pelo materialismo, obcecados em satisfazer
241
SALGADO, P. O sofrimento universal: 36.
167
seus instintos de aquisição e de gozo dos prazeres materiais, lançam-se numa
disputa constante e crescente, competindo pela posse de sua conquista. Por outro
lado, a multiplicação das máquinas, mecanizando quase completamente a
produção,
em vez de trazerem a abolição completa das preocupações
materiais, elas agravaram essas preocupações, puseram fora de
combate o trabalho humano e mataram todo o sentido espiritual
da existência.
242
A competição desenfreada certamente beneficiará os mais poderosos,
alijando os mais fracos. As desigualdades, a opressão e as injustiças que possam
daí decorrer serão, todavia, plenamente acobertadas e legalmente sustentadas pelo
regime liberal-democrático, porquanto o liberalismo, enquanto doutrina filosófica e
jurídico-política pressupõe uma ampla gama de salvaguardas às liberdades
individuais que acabam por coonestar e promover a extrema desigualdade, dando
origem a uma sociedade cindida em grupos opostos: os que venceram na disputa e
os que se viram derrotados; ou seja, os burgueses e o proletariado.
Absorvidos pela satisfação de seus apetites corporais, sob o domínio dos
instintos, os burgueses não demonstram nenhum sentimento de compaixão nem de
fraternidade para com os operários em suas condições de exploração e de miséria.
Sob a mesma perspectiva materialista imperante na civilização ateísta, se o
burguês vale pelo quem tem, por suas posses, o operário vai valer somente pelo
que pode produzir, o que faz com que seu trabalho e sua própria vida sejam
transformados em mercadorias, as quais podem ser utilizadas pelo seu possuidor,
como melhor lhe convier. Plínio não esconde as condições de degradação a que o
homem moderno vem sendo submetido:
O homem é a mercadoria mais desvalorizada nos dias de hoje.
Ninguém deixa morrer de fome um cavalo, um cão de raça, um
papagaio, porque valem dinheiro. Mas nos porões miseráveis,
morrem criancinhas por falta de alimento!.
243
242
Ibidem.
243
Idem: 52.
168
Encarado como mercadoria, o homem vê-se lançado à competição com a
máquina, saindo dela duplamente derrotado. Sob um primeiro aspecto, na
civilização ateísta, o homem em sua relação com a máquina acaba sendo por ela
absorvido. Ao contrário da humanidade monoteísta, quando o trabalho estava
subordinado a uma finalidade superior, às exigências espirituais, na sociedade
liberal ele vai ser afastado de qualquer princípio moral, tornando-se uma atividade
autônoma, o trabalho pelo trabalho, cada vez mais subordinado e absorvido pela
máquina.
Não amando mais o trabalho (e só se ama aquilo onde se realiza a
fusão do espírito com as necessidades da matéria); vendo a arte
ser substituída pela técnica; a feição individual anulada pela feição
standartizada; a tendência das vocações contrariada pelas
possibilidades das colocações - o homem moderno vai se tornando
um autômato... que será possivelmente substituído por outro
boneco de aço e ferro, quando o barateamento do custo da
produção e a racionalização do trabalho levada aos extremos que a
técnica sugere, determinar que assim seja.
244
O homem, então, perde aquele sentido do trabalhador artista cuja relação
criativa com a matéria era possível, através da mediação do espírito, conferindo ao
produto do seu trabalho um valor de criação pessoal. Nas atuais condições, ele fica
reduzido a condição de mero autômato, de apêndice da maquinaria, dócil, alienado,
despersonalizado, submisso.
O segundo aspecto desse relacionamento, do homem com a máquina na
civilização liberal-ateísta é ainda mais desolador e dramático. Trata-se da radical
mudança no significado da vida humana operada pelo desenvolvimento do
capitalismo, transformando-a num valor bem relativo e até supérfluo. Como as
máquinas podem realizar com vantagens operacionais, de redução de tempo e
custos a maior parte das tarefas incumbidas a um trabalhador, sua substituição, do
ponto-de-vista do capital torna-se uma opção perfeitamente razoável e mesmo
desejada, desde que seja sob a supervisão da ciência, velha aliada do capitalismo
ateísta moderno, a qual exerce nesse processo um papel de relevante importância.
244
Idem: 14.
169
Acresce o fato ainda mais favorável à maquina sobre o homem, de ela ser
um ente que não faz greve, não tem sentimentos e não protesta e nem importuna
os patrões, produzindo mais, melhor e mais barato. Nestas condições, observa
Plínio,
o monstro de aço conquistou, mais do que a igualdade, - a
superioridade social sobre o homem.
245
Plínio chama atenção para a defesa aberta que se vem fazendo do aborto e
da eutanásia na sociedade liberal; o que parece corresponder à lógica utilitarista
em respeito à existência humana. Pois na ótica do burguês, que só vê sentido na
existência humana se ela servir para a multiplicação da riqueza material e da sua
fortuna, em particular, aqueles que são muitos jovens para o trabalho e os que já
são muitos idosos para fazê-lo são, logicamente considerados como descartáveis,
inúteis, peças obsoletas na engrenagem produtiva.
Concluído em linhas gerais o cenário do triunfo do materialismo com a
humanidade ateísta, a impressão que fica é desoladora. Um quadro social em que a
valorização do conflito e da desordem vem acompanhado pela total diluição dos
padrões morais, sendo que no centro da cena um punhado de burgueses
acumuladores de capital vive da exploração de uma gigantesca massa de operários
assalariados, crescentemente ameaçados pelo fantasma do desemprego.
Ameaçados pela fome e pela doença, levando a incerteza para o recesso dos seus
lares humildes, inseguros, impotentes e desesperançados, estes trabalhadores
acabam por afogar a sua revolta surda nas competições esportivas e no ilusório
jogo político liberal, instrumentos que narcotizam e fazem esquecer a miséria
cotidiana por eles enfrentada. Ricardo Benzaquen de Araújo, a propósito, chama a
atenção para o titulo que Plínio Salgado conferiu ao volume de ensaios sobre o
capitalismo, sugestivamente intitulado de O sofrimento universal, de 1934.
246
245
Idem: 15.
246
BENZAQUEN DE ARAÚJO, R. Totalitarismo e revolução: 44.
170
A concepção materialista foi tão espetacularmente triunfante, que será
justamente em plena civilização ateísta que vai ser inventada a psicanálise. Ainda
que possa surpreender, há, segundo Plínio, uma relação intima entre essas duas
coisas. Bastaria apenas, num breve retrospecto, recordarmos o caráter inconsciente
das leis da matéria e que elas dirigem os nossos instintos, o lado mais físico e
natural dos seres humanos. Tais instintos aninham-se no subconsciente, dando
origem a um mundo caótico, confuso e impreciso, povoado por expressões e
sentimentos informes e monstruosos, capazes de gerar
forças sem controle, forças elas mesmas desordenadas,
heterogêneas, sem direção. Forças telúricas do mundo interior,
amorfas, nebulosas, de ritmos fragmentários, dissociantes.
247
Quando, contudo, a concepção espiritualista da vida consegue se impor e
sobrepujar o materialismo, esse caos interior é disciplinado e contido, por meio da
ação interventora e pedagógica dos valores morais, que leva ao fortalecimento da
consciência. Todavia, com o surgimento do ateísmo, a consciência humana torna-se
alvo preferencial de ataques sistemáticos, sendo conseqüentemente enfraquecida
até ser praticamente anulada, sem capacidade de qualquer reação efetiva. Esse
fato permite, pois, que a expansão das leis da natureza por meios dos instintos,
alcance seu ponto máximo.
Ao mesmo tempo, os prazeres cultivados pela burguesia contribuem em
igual medida para esse movimento que, segundo Plínio, favorece ao
obscurecimento da vontade, como: o uso da álcool, da cocaína, da morfina, a
paixão pelos esportes de sensação, nos excessos dos prazeres sexuais, até mesmo
a música moderna, o jazz, contribuem para entorpecer e anestesiar a mente,
neutralizando suas defesas e facultando a irrupção dos instintos. Mas foi, porém,
com a descoberta e invenção da psicanálise, que se chegou ao ápice desse
processo de liberação das nossas sensações e expressões inconscientes.
247
SALGADO, P. O sofrimento universal: 57-58.
171
Plínio afirma que essa luta pela expansão máxima de todas as liberdades,
primeiro, a liberdade política, depois a liberdade econômica e, por ultimo, a
liberdade moral, teve por alvo principal a atingir, o cristianismo.
Todo o materialismo do século XIX repetiu esta sentença: os
preconceitos entristecem a Humanidade! O amor não é livre; o
trabalho não é livre; o gênio não é livre... Todo o século XIX foi um
movimento nesse sentido: arrancar o homem da tristeza do
Cristianismo. E Freud (última expressão do século XIX) traz novos
subsídios, para demonstrar que a civilização cristã é uma
civilização de recalques.
248
A psicanálise freudiana mais uma vez iria demonstrar a possibilidade de se
dispor da ajuda da ciência para a promoção do que Plínio chama de ‘interesses da
matéria’. Utilizando-se de métodos racionais, a psicanálise vai abrir caminho
através do qual os instintos conseguem suplantar as defesas da nossa consciência,
invadi-la e destruí-la, colocando o espírito humano complementar rebaixado e
indefeso. Parece que, com a psicanálise, aquele longo processo que marcou do
século XIV medieval até o século XIX, já moderno e capitalista, como um
progressivo deslocamento das condutas humanas em direção ao materialismo,
chega agora, no século XX, à fase de vitória final dessa concepção. É então, que
nossas pulsões animais, a marca mais evidente da presença da natureza nos seres
humanos conseguem enfim vir à tona, apresentando-se sob a sua forma mais pura
e transformando os homens em bonecos de carne, prontos a roubar, a matar, a
usar qualquer expediente para a satisfação dos seus apetites. Eis, finalmente, o
corpo controlando a alma e as leis inconscientes da matéria, aniquilando a
consciência, derrotando o espiritualismo e dominando o mundo.
Que conseqüências advirão dessa vitória do materialismo, segundo Plínio?
Será possível prognosticar o futuro? Esse futuro, segundo sua avaliação já se
antecipa para nós, bastando que observemos o que vem ocorrendo na Rússia
soviética dos anos 20 e 30, ou seja, após a chegada ao poder dos comunistas.
248
Idem: 48.
172
Plínio está convencido que o regime dos bolcheviques implantado em 1917
na Rússia, representa o quadro antecipado do que irá ocorrer no resto do mundo,
desde que não se interfira no domínio absoluto que as leis da natureza parecem
exercer, no mundo moderno, sobre os homens. Contrariamente ao senso comum,
que toma o socialismo como uma alternativa à sociedade liberal-democrática, Plínio
inverte completamente essa visão e afirma que o socialismo não passa do resultado
lógico, da conseqüência natural e inevitável da civilização ateísta.
Plínio chega a essa dedução a partir das duas categorias fundamentais
presentes no estudo do materialismo: as idéias de propriedade e de competição;
merecendo destaque alguns aspectos mais surpreendentes e paradoxais, que;
segundo Plínio, podem e devem ser observados nas relações que se estabelecem
entre essas duas categorias.
Logo de início, destaque-se o fato de que essas duas categorias tão
fundamentais no processo formador da sociedade capitalista, acabam por se
contrapor, transformando-se em forças contraditórias e antagônicas.
Isso é possível, antes do mais, porque a propriedade privada, na
humanidade ateísta, passa a ser simples mercadoria, passível de ser comprada,
vendida, negociada a qualquer tempo com qualquer indivíduo, desde que o negócio
seja entendido como lucrativo por ambas as partes. O próprio princípio da
exploração do homem pelo homem, típica do materialismo, leva a propriedade
considerada como um bem móvel, a transferir-se, pouco a pouco, das mãos dos
operários, dos pequenos artífices, dos lavradores para o controle dos grandes
empresários, dos argentários que a utilizarão para aumentar os seus lucros.
249
Salgado argumenta, porém, que esta exploração do homem pelo homem,
não se verifica apenas entre capitalistas e operários, ou entre empregados e seus
patrões. Ela também vai lançar um burguês contra o outro, pois o individualismo, a
desesperada luta pela riqueza e pela fruição particular dos prazeres que ela pode
249
BENZAQUEN DE ARAÚJO, R. Totalitarismo e revolução: 47.
173
proporcionar, provoca a competição no interior de cada classe, generalizando-a de
modo absoluto. No capitalismo ateísta, mais do que em qualquer outra civilização,
a máxima de Hobbes, o homem é o lobo do homem, realiza-se plenamente.
Nessas condições, só se pode concluir que nem mesmo a propriedade da
burguesia está preservada. Pois, os burgueses mais fortes tendem a engolir os mais
fracos, os menos competitivos, num processo que vai fazendo com que o
capitalismo se torne cada vez mais monopolista, deslocando as
riquezas dos pluri-proprietários para o menor numero de
detentores, como será um dia, do menor numero de detentores
para o detentor único, isto, é, o Estado-Capitalista.
250
O ponto culminante é então alcançado pela concentração máxima da
propriedade, com a entrada em cena do Estado. O antigo distanciamento que era
alimentado pela doutrina liberal é abandonado, e o Estado capitalista torna-se
interventor na vida social, suprimindo a liberdade e os conflitos, em seu próprio
benefício, já que ele se tornou agora o único proprietário, o ultimo burguês.
Trata-se, então de um capitalismo monopolista de estado cuja primeira
experiência concreta está em realização, através da sociedade socialista em
construção na União Soviética. Desse modo, o capitalismo é o grande bolchevista,
como Salgado considera, e o comunismo a sua realização final. Embora separados
no tempo - pois a Rússia se apresenta como uma imagem antecipada do que será a
Europa e a América no futuro - estão, porém, ligados em essência,
pois tanto um como o outro, não passam de uma só cabeça com
duas caras, cabeça ligada ao mesmo corpo, que é o
materialismo.
251
Desse modo, para Plínio, a marxismo está longe de ser uma opção
revolucionária ao capitalismo, mas apenas a sua conclusão lógica, a derradeira
forma expressional que assumirá a terceira humanidade ateísta.
250
Idem.
251
Pois tanto um como outro (Capitalismo e Comunismo) não passam de uma
só cabeça, com duas caras, cabeça ligada ao mesmo corpo, que é o
materialismo, a subordinação do Espírito Humano à brutalidade das forças cegas
da Natureza, ou melhor, de uma das faces da Natureza, isto é, a matéria.
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Madrugada do espírito: 399.
174
O sofrimento e a injustiça que caracterizam o materialismo assumem nesta
ultima modalidade, com o comunismo, um nível inédito. Sendo o único patrão, o
estado suprime o individualismo, mas apenas para transformar todos os homens
numa massa coletiva, de anões, pigmeus, obrigados pelo terror a trabalhar sem
cessar para satisfazer as exigências dos seus novos mestres, senhores do estado.
Nesse momento derradeiro, verificamos que algumas das características que
acompanharam o materialismo ao longo da sua trajetória histórica, como a
competição e a propriedade privada individual, acabam por ser eliminadas, fazendo
com que possa, no comunismo, realizar-se o triunfo mais completo, até às últimas
conseqüências, do materialismo. Assim, a civilização ateísta, que a principio exibiu
uma face democrática, de múltiplas liberdades, onde muitos exploravam muitos,
essas civilização vai culminar exibindo sua face autocrática, despótica, em que um
pequeno punhado de criminosos, monopolizando o poder estatal impõe a mais feroz
ditadura, resguardando-se, a fim de saciar seus instintos pela escravidão
generalizada de todos os seres humanos; resultado lógico e fatal do domínio da
sociedade pelas forças da natureza e as leis da matéria, em detrimento da verdade
do Espírito.
Mas, Plínio crê, apesar de tudo, que esse processo de decadência espiritual
brutal que atinge a maioria dos países do Ocidente, ainda pode ser revertido, desde
que partam de amplos movimentos nacionais e populares impregnados de forte
senso espiritualista numa vigorosa ação contrária.
Contra essa cruel civilização, que já agoniza nos estertores das
crises econômicas, levantar-se-á a nova civilização. Depois da
Humanidade Ateísta virá a Humanidade Integralista. É a quarta
humanidade.
252
Como será essa quarta humanidade, que sinais ela traz? Em que lugar do
planeta ela surgirá?
252
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade: 77.
175
Na verdade será um ressurgir, um renascer espiritualista. Plínio nos dá
indicação de alguns sinais que já prenunciam o alvorecer de uma nova
humanidade.
Uma nova luz, se anuncia no mundo. É a Atlântida que ressurge. A
nova civilização realizará a grande síntese. Síntese filosófica.
Síntese política. Mas, principalmente, a síntese das Idades
Humanas.
253
Alguns sinais desse alvorecer, segundo Plínio, são ainda de reação a toda
destruição cultural, moral e espiritual posta em curso pela civilização ateísta, depois
virá a fase propriamente construtora, das criações novas do Espírito, rejuvenescido
pelas conquistas cientificas do século passado. Pois à nova humanidade caberá
fazer a síntese das Idades Humanas.
Esses sinais de reação espiritualista já se fazem notar por diversas nações.
No velho berço da latinidade, ergueu-se o fascio, como adição de
forças nacionais; no Báltico, onde estão os remanescentes arianos,
ergueu-se a cruz suástica expressão de um sentido racial e
símbolo de movimentos humanos; na stepe a bandeira vermelha
desfraldou-se com o velho espírito semita de totalizações
humanas, num sentido de materialismo...
254
Todas essas sinalizações, deixam claro, segundo Plínio, que alguma coisa
muito nova, verdadeiramente revolucionária está para nascer:
(...) aqui, no Brasil, o homem arguto, cheio de instintos
percucientes, que herdou de seus próximos avós selvagens...
plasmado dentro dos puros sentimentos espiritualistas e cristãos,
desfralda a bandeira do Sigma. Essa bandeira afirma a suprema
síntese e desdobra-se num largo sentido humano e universal.
255
O Brasil torna-se, então, para Plínio, o ponto da reversão histórica da
terceira humanidade, isto é, da civilização ateísta-materialista, ou daquilo que
Giorgio Locchi vem chamar de uma tendência epocal, para dar lugar ao nascer da
quarta humanidade; síntese das idades humanas. Vejamos como Plínio a
caracteriza, em linhas gerais:
253
Idem: 77.
254
Idem: 77-78.
255
Idem: 78.
176
Nascerá aqui o novo Direito, a nova política do Estado
Revolucionário, com finalidade moral prefixada. Não será
certamente o Estado totalitário, de um absolutismo absorvente,
mas o Estado Integral, índice ele próprio das relações dos
movimentos sociais. Nele, a revolução deixa de ser a desordem
individualista, classista ou partidária, para ser o direito do espírito
de intervir no desenvolvimento das forças materiais da sociedade,
recompondo equilíbrios segundo um pensamento de justiça.
256
Expostas as linhas gerais dessa nova ordem integral, Plínio destaca alguns
aspectos singulares que lhe parecem relevantes, contrastando, também nesse caso,
com o Estado-liberal-burguês.
A lei deixará de ser o tabu rígido, a cristalização do direito
despótico, para ganhar aquela plasticidade preconizada já
remotamente no Evangelho, quando Jesus afirma: ‘o sábado foi
feito para o homem e não o homem para o sábado’ (S. Marcos,
Cap. II).
257
Por fim:
Partindo de uma concepção espiritual do Universo, o Novo Estado
será, ao mesmo tempo, realista e prático. A contribuição
experimental e científica do século XIX, o subsídio de
conhecimentos naturais que advieram da Humanidade Ateísta,
dará ao Estado Integral os elementos com que jogará no esforço
contínuo de impor equilíbrios morais no mundo material,
concebendo o Homem como uma criatura de Deus, e a Nação e o
Estado como criaturas do Homem. A ciência não é renegada, mas
passa a ser a servidora do Homem, em vez de ser o tirano que o
subjuga.
258
Com essa sumula de reversões da ordem jurídico-política instaurada pelo
liberalismo agnóstico, no curso da civilização ateísta, Plínio Salgado insere o
movimento integralista brasileiro no rol dos movimentos que no liminar do século
XX se propõem a introduzir modificações revolucionárias na ordem política e
econômica mundial: tal como o fascismo na Itália, o nacionalsocialismo, na
Alemanha, e o próprio bolchevismo, na Rússia, são segundo Plínio,
experimentações de um mesmo espírito humano irrequieto, que assume várias
configurações em uma era ansiosa por afirmações e cansada de incertezas. Seriam
os passos da quarta humanidade?
Nas linhas finais do romance O esperado, de 1931, já se tem o prenúncio de
alguma coisa nova se aproximando:
256
Idem.
257
Idem: 78.
258
Idem: 78-79.
177
Escutem... Há um rumor de passos... O Brasil esta andando... são
multidões que crescem de todos os lados. Não são barulhos do
mar, nem das florestas, nem dos ventos. Ouço passos andando...
A questão política contemporânea
Se como foi visto, a disputa entre materialismo e espiritualismo fornecem a chave
para a compreensão das lutas, dos conflitos e das grandes transformações da
Historia da civilização, segunda a concepção de Plínio Salgado, do mesmo modo,
ele vai por em destaque - como uma espécie de corolário resultante daquele
confronto - o que considera ser o mais grave dos problemas contemporâneos: a
falta absoluta de disciplina.
Esse tema, alias é recorrente em Salgado, não apenas em quase todas as
suas obras doutrinárias, artigos jornalísticos, nos seus romances, nos manifestos
políticos, nos estatutos da A.I.B., enfim é um ponto essencial na construção do
imaginário pliniano e da ideologia integralista em geral.
Parece evidente que a metafísica da disciplina/indisciplina, tal como Plínio a
elabora, provém da própria natureza da humanidade ateísta em que está
mergulhado o Ocidente, sob a dominância do capitalismo e do materialismo. Sob o
domínio das leis da matéria e o rebaixamento acabrunhante dos valores do espírito
- que são as forças que imprimem coordenação, direção e sentido, ou seja, um
ordenamento às energias caóticas da matéria - o primeiro de sucessivos golpes é
logo desfechado contra a disciplina, em suas múltiplas formas de expressão: A
derrota imposta pelo materialismo ao espiritualismo no mundo moderno, foi uma
derrota às possibilidades de atuação criativa e ordenadora do mundo, inerentes ao
espírito, dentre essas, essencialmente a sua capacidade de disciplinação.
Observa-se que esse tema de crucial importância no pensamento de Salgado
não apenas se desdobra no plano filosófico da luta entre materialismo e
espiritualismo - que se agrave na etapa contemporânea - mas tem sua
conseqüência mais danosa no plano político, pelo enfraquecimento do Estado e sua
subordinação à esfera da economia, ou seja, do Capital.
178
A constatação de que o mal do século - a carência de disciplina - mais do
que problema moral é uma questão crucial da política contemporânea vem
assinalada por Plínio numa sucessão de artigos publicados ainda no jornal A Razão,
escrito por volta de 1931-32, antes da fundação da AIB, mas que seriam,
posteriormente condensados no livro O sofrimento universal, dado a público, em
1934; isto é, em plena fase de expansão e propaganda do movimento integralista.
Embora, como já destacamos antes, esse livro não tenha a configuração expositiva
e doutrinaria de outras obras de Salgado que datam aproximadamente desse
período, todavia, como tais artigos foram selecionados e condensados na forma de
livro e republicados em plena campanha propagandística do Sigma, deduz-se a
importância que o Chefe nacional estava conferindo à difusão das idéias políticas ali
contidas e de seu caráter doutrinário.
259
A vitória, ainda que temporária da humanidade ateísta, como vimos,
inaugurando a era moderna, levando à derrota do espiritualismo e da expressão
religiosa com seu sentido transcendente da vida, concorreu para o triunfo do
materialismo, da concepção cientifica e experimental, ou seja, do pensamento
analítico. Isto produziu, de imediato o abandono de toda possibilidade de uma nova
idéia de síntese. Entrava-se definitivamente no túnel escuro das hipóteses.
A concepção totalitária do mundo, baseada na Eterna Verdade que
o agnosticismo moderno considera simples hipótese, foi substituída
pelo conceito científico do Universo, que desarmou a inteligência
em face de todas as conclusões de numerosíssimas hipóteses.
260
Plínio observa, a partir daí, a fragmentação, o estilhaçamento do ser
Pensante. Em conseqüência, a quebra do sentido de unidade espiritual, foi
259
Foi essa observação feita já anteriormente por Ricardo Benzaquen de Araújo
em se trabalho sobre o integralismo de Plínio Salgado, Totalitarismo e revolução,
que despertou o interesse por uma releitura mais atenta de outros textos da
obra de Salgado, tidos menos canônicos, do ponto de vista doutrinário; dentre
os quais, O sofrimento universal, que aqui estamos tratando.
260
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução: 36-37. A
instabilidade desse critério hipotético multiplica os ritmos do pensamento
filosófico, sociológico e político: dessa maneira deixamos de ter uma sociedade
humana em permanência uniforme e matemática de movimentos, para termos
uma sociedade complexa e difusa, com ritmos de vida numerosos, engendrados
por hipóteses numerosas.
179
acompanhada de uma expansão econômica sem precedentes em toda a história
humana. Enquanto no século XIX, a inteligência humana se fragmentava e se
desprestigiava, com a filosofia se acabrunhando e cedendo seu espaço cada vez
mais à ciência experimental, a economia se expandia numa unidade cada vez mais
abrangente, mundializando as relações de produção e trocas capitalistas.
Assim, Plínio diagnostica a crise contemporânea como proveniente da
contraposição de sentido em duas esferas: descentralização e fragmentação no
plano mental, das concepções filosóficas, jurídicas, éticas e estéticas, produzindo
verdadeiros feudos mentais; ao passo em que as força econômicas realizam num
sentido inverso, uma agregação progressiva em crescente uniformidade, moldando-
se à standartização e universalização e objetivando uma tendência à unidade.
Como conseqüência, Plínio aponta a lógica inversão de valores: a decadência dos
valores espirituais e a ascendência dos valores econômicos. E os valores
econômicos, hipertrofiados, deflagraram a expansão
cega de suas energias acumuladas, arruinando toda a concepção
ética da sociedade.
261
Ingressamos numa etapa histórica marcada pelo desequilíbrio que nunca
chegou a ser suficientemente pressentido no alvorecer do século XIX, o grande
século do induvidualismo e do liberalismo. Daí a necessidade, agora, de uma
intervenção da inteligência humana para recompor o equilíbrio perdido.
Por isso, a Revolução (direito sagrado do Espírito, interferência da
idéia autônoma, golpe de homens superiores animados pela
soberana força do Pensamento) é hoje, como foi sempre,
universal.
262
Plínio insiste sempre no caráter ético e moral das revoluções, do mesmo
modo que o desequilíbrio que afeta a sociedade contemporânea, tem seus efeitos
261
Idem: 38. Em NOTA, nestas páginas Plínio escreve: É tão impressionante o
contraste entre a marcha contínua, sistemática, da pluralidade para a unidade
financeira, dentro do ritmo capitalista, e a marcha da unidade para a pluralidade
espiritual, dentro do liberalismo, que muitos com fundamento, são levados a
crer num metódico trabalho secreto de ocultas forças interessadas no
predomínio da casta financeira.
262
Idem.
180
mais devastadores na ordem moral. Contudo, para Plínio, a causa mesma desse
desequilíbrio não é de ordem moral, mas é produto da inteligência humana que,
sendo um fenômeno relativo está sujeita a erros de cálculo, erros matemáticos e
não morais, em razão de cujos efeitos se torna possível a dinâmica social.
Nesse plano da dinâmica, do movimento e das condições de equilíbrio na
sociedade fica, então, posta a questão dos direitos e deveres - A primeira
consideração proposta por Plínio é de reconhecer o Homem numa dupla condição:
como centro de movimentos, ao mesmo tempo que é parte também de um sistema
de movimentos. Como centro de movimentos, deve, forçosamente, gravitar, em
torno dele, uma série de coisas que lhe são atributos, direitos; porém, como parte
que é de um sistema geral, o Homem tem de gravitar para um centro que, por sua
vez, lhe impõe deveres em relação aos componentes daquele sistema.
Para que a sociedade possa funcionar sem angústias, segundo Plínio, é
preciso que esse equilíbrio seja perfeito, fazendo com que os contrários se
harmonizem,
tendo os direitos, como centro, o homem, e tendo os deveres,
como centro, a própria finalidade humana,o princípio gerador do
mundo da matéria e da força, e do mundo da afirmação e da
negação, numa palavra - Deus.
263
A não consideração de um desses centros - o dos deveres - é um erro de
avaliação fruto da unilateralidade que induziu a inteligência humana à adoção da
concepção científica do mundo oriunda do Renascimento, ocorrendo, com o
Humanismo, o racionalismo e o experimentalismo científico, um deslocamento do
sentido totalista do universo. A humanidade que considerava o mundo a partir da
idéia de síntese, deu lugar a outra humanidade que passa a considerar o mundo
segundo a idéia da análise. Por conseguinte, o desequilíbrio resultante da ênfase
nos direitos que culmina na Revolução Francesa - e o desconhecimento, a partir de
então, da esfera de gravitação dos deveres, precipita e agrava todos os problemas
econômicos, sociais, políticos e morais que caracterizam a crise contemporânea.
263
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução: 34.
181
Desse desequilíbrio, dessa unilateralidade no modo de se considerar os
problemas do homem, retoma-se a questão da disciplina, de suma relevância na
analise que Plínio faz sobre a política contemporânea. A disciplina, ou melhor a
crise que a envolve em múltiplas expressões da vida contemporânea, fazem da sua
rejeição e da luta que se move contra ela nos planos econômico, político e moral,
um fenômeno dos mais significativos daquilo que Plínio considera ser a crise
contemporânea. Em O sofrimento universal, pode-se dizer que esse tema da
disciplina perpassa as paginas do livro, sendo abordado direta ou indiretamente nos
diversos assuntos de que tratam os capítulos, ou melhor, os títulos das matérias ali
compiladas.
Assim, no título O Século do Jazz-Band, pode-se ler:
A guerra contra a disciplina atingiu hoje em dia o seu ápice. O individualismo
anárquico dominou completamente a terra. O capitalismo renegou o Espírito e
erigiu todo o seu fundamento na finalidade material do homem. Seus processos são
científicos. Sua técnica consulta os interesses meramente econômicos. Sua moral
se baseia no lucro. O lucro cria direitos tão amplos de propriedade que esta perde o
sentido profundo de atributos do Homem. Impessoaliza-se o possuidor. Ele se
chama apenas - o Capital.
264
O capitalismo, com sua índole materialista, aparece aqui como o promotor
maior desse desequilíbrio - cujo motor é a avidez incessante na busca do lucro - e
que se traduz em múltiplas formas e expressões de individualismo anárquico, de
indisciplina generalizada. Plínio chega a traçar como a vida moderna nas grandes
cidades segue o ritmo do materialismo e da ausência de harmonia, desde a
arquitetura - onde a casa é substituída pela maquina de morar, isto é, os
apartamentos de arranha-céu, onde todas as máquinas de habitação são iguais
umas às outras. - até as plantas usadas na ornamentação dos apartamentos, em
geral, cactus, que Plínio identifica como uma nota de aridez de uma época
264
SALGADO, P. O sofrimento universal: 49.
182
sem delicadezas;pois, falta-lhes a harmonia digital das folhas, a
carícia amável.
265
Seu julgamento é definitivo:
A arquitetura moderna é triste como um túmulo... pior que os
cemitérios. Pois nestes existe a alegria das casuarinas, a harmonia
dos arbustos e das flores.
266
No artigo intitulado Sentido da tristeza e da alegria, Plínio vai apontar as
causas remotas da perda desse valor da disciplina, tão rejeitada e menosprezada
na vida contemporânea. Ele faz uma analise do problema de um ponto-de-vista
psico-sociológico.
Plínio, parte da premissa de que:
Nós estamos vivendo no fim do século da civilização anti-cristã. E
essa civilização não trouxe, nem a felicidade, nem a alegria.
Porque uma e outra têm fundamento na compreensão perfeita do
real.
E toda a filosofia, toda a economia, toda sociologia modernas se fundam no
irreal. Parece absurdo, - constata Plínio –
mas do materialismo e do experimentalismo gerou-se a ilusão, ao
passo que do espiritualismo proveio o senso do equilíbrio, da
verdade.
267
Esse estado, se estendeu tanto a indivíduos quanto a nações, ou seja,
expressões coletivas:
Há um fenômeno inicial, que determina as diretrizes do indivíduo e
das nações: o desejo em transito para a posse; em última análise,
a procura da felicidade, que é a coincidência do ritmo entre a
aspiração e o seu objeto.
268
Trata-se de uma procura que desenvolve, por seu turno, uma energia cega e
tumultuosa... ansiando por uma forma de expressão; que entretanto nunca é
encontrada porque ela mesma se manifesta por sentimentos confusos e
disparatados,
265
Idem: 51.
266
Idem.
267
Idem: 67.
268
Idem. Grifos do autor.
183
de todos os arbítrios instintivos que se chocam, que se conjugam,
que se dissociam, que se realizam em minutos fulgurantes de
prazer ou se esboroam, nos tédios profundos e deprimentes.
269
Essa energia, assim impossibilitada de uma conformação expressiva, passa,
numa expansão difusa, a ser considerada em si mesma, como causa e fim,
começando então a perder o ritmo disciplinador.
A sua órbita foi se alargando, até se imprecisar nos limites mais
vagos.
270
Desse modo, tanto os homens, como as nações perderam o senso preciso da
felicidade, pois esta foi tomada num sentido absoluto e condicionada a uma
possibilidade relativa, que é o prazer. Prazer finito passou a ser objetivado por uma
ânsia de felicidade infinita; o que, por sua vez, exigia uma escala crescente de
liberdades maiores.
271
Plínio procura mostrar, a seguir, como tais distorções atuam no curso da
atividade econômica, na mentalidade e conduta dos seus principais agentes. O
capitalista, acumulando e guardando seu dinheiro, ciosamente, como uma reserva
de felicidade em potencial. Como muitas vezes lhe falta tempo e até capacidade
física para comprar prazeres quantos queira, o dinheiro acaba se transformando de
mero instrumento, em finalidade.
E assim como a felicidade se transformou em prazer, também o
prazer se transformou no seu próprio instrumento de aquisição,
que é o dinheiro. Este cedeu seu lugar ao trabalho. O trabalho que
era meio de perfeição, passou a ser sublimação da avareza. O
trabalho deixou de ser um instrumento do Homem, passando o
Homem a ser o seu instrumento.
272
Se para o rico, o trabalho acaba se tornando uma escravidão voluntária do
espírito à matéria, para o pobre, o trabalho se torna um instrumento deformador da
personalidade. Se para o rico, torna-se prazer material sublimado, para o pobre se
constitui em imperiosa humilhação. Plínio detecta aí, em meio a finalidades
269
Idem: 68.
270
Idem.
271
Idem. Grifos do autor.
272
Idem: 69.
184
relativas, de atores sociais distintos, uma ausência comum: a da influência da
disciplina, que objetiva o absoluto. E ele conclui:
E todas essas situações são decorrentes do conceito, que o
Homem se impôs, de uma finalidade em si próprio, e
considerando-se um mero conjunto de sentidos e de instintos, que
se coordenam formando a inteligência.
273
Mas, segundo Plínio, tanto a felicidade quanto a alegria são coisas simples e
alcançáveis, desde que se tracem limites à angustiosa inquietação:
A felicidade não está no saber desejar e possuir, está antes no
saber renunciar. As nações de hoje, como os cidadãos do nosso
século democrático, só aprenderam a desejar, a desejar até ao
infinito.
274
Esse apelo, como se pode ver, é dirigido por Plínio à Inteligência, pois onde
ela atuou
isenta do tumulto dos desejos desordenados, lhe foi possível traçar
limites... e, então, a felicidade começou a existir.
E, mais, essa mesma felicidade tão singela, tão pronta a se revelar na
contensão dos desejos desordenados é ela mesma motivo de uma alegria íntima;
proveniente de pequenas satisfações, e que
ilumina a Vida com a única luz de verdade que se projeta sobre a
imensa confusão do mundo.
275
Mas essa felicidade e essa alegria não podem ser alcançadas no ritmo da
atual civilização cujos confortos materiais instigam múltiplas ambições:
A ambição dos potentados, que exploram os humildes e os pobres;
a ambição dos proletários, que odeiam os ricos, exatamente
porque estes lhes ensinaram, no delírio de suas ostentações... de
que o dinheiro tudo pode, que a ambição não tem limites.
276
A deturpação do senso real das coisas é, segundo Plínio, um sintoma desse
quadro geral de ambições desenfreadas e desequilíbrios contínuos. Os próprios
operários se satisfazem em passar suas privações,
273
Idem: 70
274
Ibidem.
275
Idem: 70.
276
Idem: 71.
185
em suportar qualquer regime escravizador, contanto que os que
hoje o exploram também sofram as conseqüências de uma
concepção integral da economia capitalista.
277
E, enquanto a luta entre a capital e o trabalho se trava no interior dos
países, a grande batalha econômica se trava no âmbito mais amplo das praças, dos
mercados mundiais, entre os poderosos que se enfrentam e os governos que se
odeiam.
Chegamos ao auge da civilização anti-cristã, dessa civilização que
condenou o cristianismo como uma expressão de humildade
aviltante, de indigência e fraqueza. E, entretanto, nunca houve
uma civilização mais humilhada, mais pobre e mais débil.
278
Salgado explica o sentido de cada um dos adjetivos usados na
desqualificação da civilização atual.
Humilhada por uma situação que se torna um quebra-cabeças
insolúvel; paupérrima, porque nunca os países euro-americanos
tiveram tantos milhões de desocupados e de famélicos; fragílima,
porque sente o seu ocaso, rola para o abismo inevitável, e não
encontra em si as forças que poderiam detê-la na marcha
inexorável.
279
Contudo, em meio a esse panorama contemporâneo, desanimador, eis que
Plínio consegue vislumbrar, um sinal tênue, porém, brilhante a lhe indicar, por mais
insólito que lhe pareça, que –
a felicidade ainda existe sobre a terra! Parece incrível, mas
existe!
280
Plínio vai se deparar com ela, no lar modesto de um trabalhador, contente
com sua pobreza, porque se sente confortado pelo amor e pelo carinho de sua
esposa e de seus filhos. O pouco que faz dá para as pequenas alegrias modestas do
lar. Ao levantar-se pela manhã faz sua pequena oração
em que pede o pão de cada dia, perdoa as ofensas que sofreu na
véspera, submete-se a uma vontade superior.
Quando regressa à noite, do trabalho, não vai aos clubes. Nos teatros,
raramente comparece, e com isso, pela raridade do evento, usufrui, sempre, um
277
Ibidem.
278
Idem: 72.
279
Idem.
280
Ibidem.
186
prazer maior. Está à sua espera, nesse regresso ao lar humilde, uma ventura
maior,
que é a sinceridade do carinho, uma coisa ao mesmo tempo tão
simples e tão grande que os ricos e abastados nem sempre
possuem.
Mas final, que quadro é este? De onde provêm tais ritmos de existência? A
explicação dada como resposta a estas indagações vem do próprio Plínio:
A comunhão do sentimento, que provem da própria disciplina das
aspirações, que se origina diretamente da concepção da vida, da
idéia de uma finalidade superior, cria o ambiente amável e
espiritual. E a felicidade é apenas isso. Um senso de limites. De
realidade.
281
A concepção liberalista-democrática do capitalismo (desde Locke, Adam
Smith e seus continuadores) expôs que o indivíduo livre deve buscar nesta
existência a maximização da felicidade. Consiste esta em lutar contra a escassez e,
pelo trabalho, ampliar ao máximo a produção de riqueza. O marxismo, que
prossegue nessa linhagem do pensamento econômico clássico, apenas lhe
acrescenta o dado da distribuição, cuja solução passaria pela supressão da
propriedade privada.
A crítica pliniana (integralista) contrapõe a essa concepção (como estamos
vendo), uma outra da felicidade, como sendo, ao contrario, nada determinado
materialmente quer pela produção ou pela aquisição de bens. Consistiria, isto sim,
numa capacidade tanto individual quanto coletiva de disciplinar aspirações, ligada a
uma finalidade superior de vida. A felicidade é, pois, um senso de limites, de
proporções. De realidades. E Plínio Salgado acrescentará que é a família e só ela
quem cria esse senso de equilíbrio pela comunhão de sentimentos. Dela, deverão
sair os autênticos e verdadeiros Super-Homens, cuja força de caráter e
independência é resultado não da capacidade de adquirir, mas da capacidade de
renunciar.
281
Idem: 73.
187
A contraposição de Plínio não é só frente a liberais e marxistas, mas também
contra Nietzsche que acusava o cristianismo de ser triste, de ter imprimido um
sentido deprimente á vida humana, quando esta deveria celebrar a alegria e a
força.
Assim, aquele trabalhador modesto mostra em seu exemplo de vida que o
senso de disciplina lhe permite experiências de felicidade que nada têm de
resignação humilhante, mas de verdadeira sabedoria. Nada demonstra de fraqueza,
mas, bem ao contrário,
é a mais inexpugnável das fortalezas, porque só a capacidade das
renúncias inspira a verdadeira independência.
Consiste também, segundo Plínio, na pura expressão da força de caráter,
porque consegue impor um condicionado ao complexo interior, tumultuoso,
insuflado por desejos desmedidos. Plínio destaca, ainda um diferencial na vontade
desse trabalhador. Parece consistir numa vontade serenizada, disciplinada, no
equilíbrio do direito e do dever. Plínio sintetiza:
A vontade desse homem não é um cata-vento como a dos super-
homens desesperados da grande civilização. Esse é o verdadeiro
Super-Homem, vencedor de todas as batalhas. Sua casa é a casa
da bondade e da paz, da alegria pura e da felicidade perfeita...
282
Mas a questão da disciplina tem seu agravamento maior quando ela se
transfere para o plano interno das nações e das relações internacionais.
Num tópico intitulado Liberdade, caminho da escravidão, Plínio enuncia, logo
nos primeiros parágrafos:
Todos os sofrimentos do mundo moderno se originam de um só
defeito da grande máquina; a falta de disciplina.
283
Plínio, nesse pequeno artigo articula o conceito da liberdade excessiva, ao
individualismo sem freios, determinando o desequilíbrio social que perturba o ritmo
de vida do nosso século. A origem remonta à Revolução Francesa. Desde então,
outro não tem sido o grito da humanidade... Liberdade! Liberdade!
282
SALGADO, P: O sofrimento universal: 74.
283
Idem: 219.
188
Plínio observa que foi a liberdade
que espalhou pelas nações as doutrinas mais contraditórias, as
afirmativas mais absurdas, os brados mais lancinantes de angústia
do pensamento e do coração.
De repente todos os homens passaram a clamar liberdade! E tratando de
conquistar os meios com que pudessem exercer, com forte base econômica, a sua
faculdade de ser livre.
Liberdade! Clamavam os banqueiros, e foi assim clamando que
dominaram as nações, escravizaram as indústrias e o comércio,
humilharam os produtores.
Liberdade! Clamaram os industriais e comerciantes, e, entregues à
lei da concorrência, livraram-se da disciplina do Estado mas caíram
no cativeiro dos agiotas. Liberdade! Clamavam os patrões, e, em
nome da liberdade de contrato, passaram a explorar os pobres, e o
trabalho humano transformou-se em mercadoria sujeita às leis da
oferta e da procura.
Liberdade! Clamavam, por sua vez os proletários, os quais
assistindo ao espetáculo de luxo e paganismo de seus chefes,
endureceram o coração e lançaram-se nas tremendas lutas de
classe, feitas de ódio e revolta.
284
Esse clamor invadiu e deformou todos os ambientes:
Liberdade! Clamavam os pais, os esposos, os filhos, e ruiu a
estrutura dos velhos lares felizes e tranqüilos.
Liberdade! Clamava a imprensa, e na livre concorrência,
comercializou-se ao gosto depravado das turbas, que precisou
agradar, e dos argentários aos quais precisou vender-se.
285
O resultado geral é que, segundo Plínio, cada avanço da liberdade, cada
nova conquista dela é um passo do gênero humano para a ruína total, porque vai
sendo destruído o ritmo de sua existência com a morte da disciplina.
O que tem produzido, a indisciplina?
Ela destrona a modéstia e erige em ídolo a vaidade e o orgulho;
transforma o amor em puro instinto sexual; reduz a amizade a
uma questão de oportunidade; considera a honra como um ponto
de vista; examina os costumes como relatividade de
conveniências... Mas o homem não consegue defender-se dos
vícios. Libertando-se da disciplina do espírito, torna-se escravo dos
instintos.
284
Idem: 220.
285
Idem: 221.
189
O homem, agora, é livre. Livre de todos os preconceitos. Não tem
sentimento nem religioso, nem cívico. A Pátria, que é a Pátria,
depois que lhe deram a significação meramente política de vontade
geral? A Pátria é uma convenção.
Assim a julga a mentalidade capitalista. Assim também a imagina a classe
operária.
É que a Pátria, ela mesma, é uma expressão de disciplina. E, tendo
desaparecido a disciplina, desaparece a Pátria.
286
Perseguindo o senso de todas e novas liberdades a humanidade marchou
assim até à Grande Guerra. Ponto máximo do seu grande delírio. Depois a dolorosa
desilusão, a insatisfação.
Nenhum regime, seja qual for, aplacará essa insatisfação, julga Plínio. O
próprio comunismo lhe parece uma ilusão. Pois, devendo impor uma severa
disciplina, virá contrariar o individualismo que é quem busca nele o derivativo
máximo. Plínio está pensando aqui na alegada atração que o ideário da esquerda
parece exercer sobre a pequena burguesia mais letrada, esnobe e culta.
Todavia, considera Plínio que nunca o gênero humano foi tão prisioneiro...
nem mais escravo.
Ocorre que a liberdade é, na verdade, o supremo dom do ser humano. É a
dignidade da nossa Espécie. É nossa honra, nossa aspiração superior. Então, como
se tornou uma enfermidade e um opróbio, uma degradação? Foi obra do
liberalismo, e só salvaremos a liberdade, pela disciplina; conclui Plínio.
A seguir, no artigo Cortemos as amarras, Plínio investe diretamente numa
critica cerrada ao sistema capitalista mundial, sob a égide do liberalismo, mantendo
como eixo da análise o tema da disciplina.
Seu ponto de partida é de que o cenário das relações internacionais
demonstra o absoluto domínio das forças da economia sobre a política. Os governos
vão sendo
286
Idem: 222.
190
transformados em meros agentes comerciais das diretrizes impositivas das
forças econômicas. O Estado moderno perdeu todo o sentido de finalidade a ditar
aos povos. Tornou-se uma caixa de ressonância dos interesses industriais,
comerciais e financeiros.
E estas forças econômicas, impondo uma direção ao Estado,
absorvem-lhe a autoridade, destroem-lhe toda a capacidade
volitiva. O governo deixa de ser o comerciante que pretendia ser,
para se tornar um preposto de comerciantes. E financistas, mais
do que os agentes de produção, assumem o absoluto predomínio,
não sendo mais possível detê-los na sua marcha irrefreável e
desnorteada.
287
Os governos estão diante das forças produtoras do mundo contemporâneo
completamente submissos à espera de ordens do que fazer. A prioridade econômica
sobrepôs-se ao conceito da autoridade do Estado e os fatores da produção e do
comércio adquiriram uma amplitude de ação tão vasta, quanto a própria idéia da
liberdade, consagrada pelos ‘princípios imortais’ de 1789. E o diagnóstico de Plínio é
tão premonitório que chega a provocar constrangimento para quem o lê, passados
tantos anos:
O Estado moderno tornou-se um mero caixeiro do capitalismo e a
sua função em face do povo, cuja vontade geral ele exprime, é a
de um feitor de fazenda, zelando pela ordem e disciplina internas,
ao passo que a sua tarefa, em face dos centros financeiros do
mundo é a de um corretor de negócios e cobrador de juros.
288
Assim, os Estados liberais-democráticos do Ocidente, alheiaram-se
totalmente das outras finalidades do homem e da sociedade¸ assumindo como
único objetivo das coletividades nacionais o exercício das funções de produzir,
exportar e importar. Todavia, esses Estados - não assumindo a atitude franca de
patrões e de donos do grande armazém, como no caso da Rússia Soviética -
acabam assumindo uma posição de inferioridade moral em face das nacionalidades
que representam. Ainda porque, argumenta Plínio, tais Estados consagram nas
expressões do direito e na conformidade de hábitos e praxes, as mais completas
287
Idem: 228.
288
Idem: 229.
191
liberdades, ao passo que, o círculo de ação que reservaram a si, não vai além de
serem meros instrumentos de objetivos alheios à sua essência.
289
Plínio mostra o contraste entre o grau elevado de desenvolvimento dos
meios de produção e vias de comunicação, com meios de transporte rápidos
criando sempre novos mercados consumidores, aumentando o potencial produtivo
das nações, e, por outro lado, a crise de superprodução com multidões de homens
e mulheres sem trabalho, muitos morrendo de fome e frio.
Plínio acusa o capitalismo internacional de forjar uma falsa tese (que os
atuais Estados modernos endossam) que afirma a crise das indústrias, do comércio
e da lavoura, por se haver esgotado a capacidade de consumo. Segundo Plínio,
confunde-se, falaciosamente capacidade de consumo com possibilidade de
aquisição...
Deixamos de produzir mais porque não há quem compre; e,
entretanto, todos comprariam, se tivessem dinheiro para
comprar...
290
A situação mundial diante de tais impasses é classificada por Plínio de
delirante e provem, segundo ele mesmo vem considerando,
unicamente da deturpação do Estado e dos Governos. O mundo
sofre os males da indisciplina.
O regime liberal e suas leis levaram a desorganização à produção e ao
comércio,
corroeram a autoridade do Estado e atrofiaram os órgãos
fundamentais da economia humana.
291
Desde a Revolução Francesa, o Estado passa a desinteressar-se pela
finalidade do homem e da sociedade. Os rumos de ambos, por onde queiram ou
possam seguir, não compete mais ao Estado decidir, cabendo-lhe unicamente:
facilitar a expansão do comércio nacional; empreitar as obras
públicas; receber os impostos e com eles pagar os juros do credor
do povo, que os espera em Londres.
292
289
Idem.
290
Idem: 230.
291
Idem: 231.
192
Por outro lado, a escolaridade pública primaria, secundária e superior,
mantida pelo Estado, tem por meta a formação de funcionários, administradores,
técnicos que irão constituir a engrenagem social baseada na prosperidade material.
O Estado democrático torna-se o Estado-Funcionário, o Estado-Caixeiro, o Estado-
Corretor; em linguagem weberiana, o Estado burocrático por excelência.
293
Segundo Plínio, o de que esse Estado contemporâneo carece é de força
moral para impor, no conjunto com outros Estados, uma disciplina às forças de
produção e da circulação das riquezas. É essa a doença grave que atinge a
economia dos tempos atuais:
a falta de ritmo, pois o ritmo presume uma finalidade, como a
finalidade pressupõe uma autoridade.
294
Segundo observa Plínio, essa situação é ainda muito mais grave para os
países da América Latina. Além de sofrermos da crise comum que atinge a todos os
povos - ainda decorrente do crack de 1929 - ela é agravada pelo nosso
depauperamento em cem anos de liberal-democracia no mundo, e de sucessivos
empréstimos onerosos. Antes deste regime mundial de privações a que fomos
empurrados,
fomos sugados pelo capital estrangeiro... fomos amesquinhados
por esta civilização... que chegou ao ponto de desnacionalizar os
hábitos e as tradições da nossa Pátria.
295
No entendimento de Plínio, nós, os latino-americanos, somos vítimas e
estamos sendo arrastados no turbilhão da crise mundial por europeus e norte-
americanos que são os verdadeiros culpados e aos quais estamos ligados pelos
mesmos princípios políticos. É hora da América Latina assumir uma atitude.
Que atitude tomar? Plínio sugere que cortemos as amarras. Como?
Afirmando princípios antagônicos aos consagrados pela civilização materialista do
Ocidente. Que proclamemos a finalidade superior do Homem, subordinando a ela os
292
Idem. Grifos do autor.
293
Idem: 231. Grifos do autor.
294
Idem: 232.
295
Idem.
193
lineamentos das instituições e do Estado. Por fim, subjugar à disciplina moral do
Estado o desvario de uma sociedade sem objetivos.
Resulta que a solução do problema econômico é um corolário do conceito do
Estado. Pois, se o mundo precisa do Estado Forte, mais necessitados dele estamos
nós as nações escravizadas da América do Sul.
Ao Brasil compete, dar o exemplo e, num grande sentido de
império moral, restaurar a antiga hegemonia no Continente,
salvando do cativeiro os povos do Novo Mundo.
296
A luta dos homens que têm sobre seus ombros a responsabilidade
dos destinos universais, assume as proporções de um grande
drama. Porque falta aos heróis de hoje a força que provem de uma
concepção de finalidade do Estado.
Finalidade de aperfeiçoamento e de justiça humana, que deve
sobrepairar às contingências dos interesses materiais das classes
em conflito, que inspiram o roteiro das Nações.
297
Mas, Plínio sabe que haverá fortes resistências ao caminho que propõe. Suas
soluções são drásticas:
É preciso destruir a direita reacionária, como a esquerda que se diz
revolucionária.
Destruir todos os partidos intermediários do centro, velhos
oportunistas e charlatães.
E realizar, na finalidade superior do Estado, a verdadeira finalidade
do homem integral, o pequeno mundo em si mesmo e parte do
mundo na Nação; ser essencial, como personalidade, e ser
contingente, como fator de produção, de riqueza coletiva e de
grandeza nacional...
Pois é dessa a concepção do Homem e do Estado que virá a
concepção do Governo capaz de disciplinar, de dirigir e de
equilibrar o mundo.
298
Nessa série de artigos sobre problemas políticos contemporâneos, merece
destaque Nacionalismo e colaboração internacional, cuja primeira parte é dedicada
ao fascismos italiano, sob o título Índole do Estado Fascista. Considero este artigo
um dos mais elucidativos textos de Plínio Salgado acerca da sua compreensão
296
Idem: 233.
297
Idem: 103.
298
Idem: 103. Grifos do autor.
194
sobre o fascismo e do significado dessa força ideológico-política no contexto
mundial, daqueles conturbados anos 30.
299
O artigo difere na sua composição da grande parte dos demais dessa
coletânea, que, em geral, são marcados por muitas frases de efeito retórico, porque
são em verdade artigos de combate, de pregação de idéias novas, suscitantes de
polêmica, carregados de imagens dramáticas e, ao mesmo tempo, e
principalmente, voltados para doutrinar; daí serem extremamente repetitivos em
suas proposituras.
Já este artigo sobre o fascismo, segue uma outra disposição, outro ritmo.
Prevalece não o tom emocional, mas o desdobramento das idéias, a reflexão
pontuada, o encadeamento explicativo e quase demonstrativo.
Plínio começa identificando Estado fascista como um Estado que visa mais
que tudo ser a expressão de Superamento de todas as doutrinas, diretrizes e
energias, realizando ou procurando realizar a síntese - que, mais tarde, ele mesmo
irá identificar no integralismo - de todas as fisionomias nacionais e de todas as
aspirações humanas, no conjunto harmônico de sua estrutura.
O fascismo surge após a Grande Guerra, como um vértice de correntes de
pensamento. Quer dizer: um ponto de convergência que aglutina idéias
conservadoras e ideais revolucionários. Desse ápice, que é a concepção teórica do
Estado, partem as grandes linhas da política, decorrentes de um modo novo de
encarar os fenômenos sociais e a significação da nacionalidade.
Plínio está querendo dizer que o fascismo abre um novo caminho de
interpretação da modernidade, diferente daquele inaugurado com a Revolução
Francesa de 1789.
A seguir, Plínio faz uma breve interpretação da filosofia da história assumida
pelo Estado fascista:
299
SALGADO, P. O sofrimento universal: 117.
195
Ele transporta o passado para o primeiro plano, para o presente,
fundindo duas épocas históricas e atualizado-as: o espírito do
Estado Romano e o mecanismo do Estado Medieval. Essas duas
fisionomias não se afirmam isoladamente, nem propriamente se
cruzam, porém se realizam numa forma nova, que consulta, a um
tempo, o sentido democrático originado da Revolução Francesa e a
evolução da tendência sindicalista dos tempos modernos.
300
Plínio nos revela aqui, mais do que em qualquer outro escrito seu sobre o
regime de Mussoline, na Itália, que ele captou perfeitamente, com justeza, o
sentido de fusão e superação de etapas históricas, num processo de síntese a ser
pretendida politicamente pelo novo Estado fascista; similar às teorias de Rocco e
Gentile.
A seguir, Plínio comenta o sentido de historicidade tradicionalista das novas
instituições criadas pelo fascismo:
O fascismo é romano porque conserva o Senado, porque restaura
tradições da expansão latina, porque cultiva o espírito militar e de
hierarquia, porque submete a formação da Itália Nova a um senso
histórico que vai buscar as remotas raízes no Império.
301
Ao mesmo tempo:
O fascismo é, também, medievalista porque funda a organização
do trabalho na estrutura das corporações, considera a religião
como uma força inerente ao conjunto social e restaura o senso do
deveres, que constituía o fundamento da sociedade anterior à
Revolução Francesa, demarcando os limites do Estado, os limites
das corporações e dos indivíduos.
302
Por sua vez, também,
O fascismo é democrático porque estabelece no terreno político, a
representação, e mantém o sufrágio, ao mesmo tempo que
sustenta, no terreno econômico, o princípio garantidor da iniciativa
particular, que é o cerne mesmo das democracias liberais, apenas
limitando essas iniciativas segundo as impositivas necessidades do
Estado nacional e da Coletividade.
303
Culminando,
300
Idem: 118.
301
Ibidem. E na República Romana, também; e mesmo na arcaica Etrúria.
302
Idem: 118. Plínio remete aos teóricos tomistas e neo-tomistas, à teoria da
subsidiariedade do Estado, defendida pela Igreja, que preserva a autoridade do
Soberano, porém, impõe limites a ele, oriundos do direito natural.
303
Idem: 119. Democrático, porém, não no sentido nivelador e numérico, mas
de incorporação totalitária e orgânica do conjunto da nação ao Estado Fascista.
196
O fascismo é revolucionário, porque a sua tendência, cada vez
mais, é para atingir o Estado Integral, chegar até ao integralismo,
cuja base política é o funcionamento dos sindicatos como
veiculadores da opinião e dos interesses profissionais, que
circulam no organismo vivo e dinâmico das corporações.
304
Mas, Plínio vê agora o fascismo, além de doutrina e realização política
também como um movimento cultural, no qual, a sua trajetória:
traça um caminho, que decorre daquele vértice, onde vêm ter as
diferentes projeções intelectuais do século passado, que, podemos
dizer, terminou em 1918.
305
Esta é uma percepção atenta de Plínio, que percebe com clareza que o
fascismo tinha raízes intelectuais originárias e profundas e que lhe conferiam
potencialmente uma dimensão cultural, bem além da expressão meramente política
com que se apresentava.
Assim, o fascismo tem qualquer coisa de Nietzsche, na sua
concepção de vida, de energia e de força. O espírito romano tinha-
se transladado da península para a Alemanha, inspirando toda a
obra anti-cristã da Kultur, traduzida, já agora no conceito da
superioridade racial do tipo dólico-louro. Esse movimento tem sua
origem no sonho de restauração pagã de Juliano, o apóstata, e
torna-se culminante em Nietzsche, transbordando, depois, por
toda a Europa. Reflete-se na poesia de Carducci e inflama o verbo
de Gabriel d’Annunzio. Este poeta sem discípulos, mas de
fascinante prestígio na Itália, é o divulgador de uma concepção de
vida que produz o rifão do fascio: meglio vivere un giorno da leone
que cento anni da pecora.
306
E isto é todo sentimento animador
da marcha dos camisas-pretas, como já tinha sido na epopéia de
Fiume, que o próprio Mussoline exaltou num artigo vibrante.
307
Bem, Plínio constata evidentemente o profundo nacionalismo que inspira o
fascismo,
não apenas no senso romano e na exaltação nietzscheana, mas no
senso político-geográfico da compreensão da Itália-Unida,
atualizando, cada vez mais, o sonho de Cavour, de Garibaldi, de
304
Idem: 119. Neste aspecto, Plínio considera o Estado Integral um degrau
acima do Estado Fascista, por causa da sua feição mais espiritualista.
305
Ibidem. Coincide aqui de certo modo com as interpretações mais renovadas
do fascismo, incluindo-se, sem dúvida, as de Locchi, de Benzaquen, de Lacoue-
Labarthe, e de vasta bibliografia atualizada sobre o tema.
306
Ibidem.
307
Idem: 120.
197
Victor Emmanuele e principalmente de Mazzini, mestre supremo
da Itália Nova.
308
Mas esse nacionalismo do fascio não quer o país reduzido ao museu
universal, cheio de estátuas e de telas, onde o mundo vem admirar as gerações
mortas. Não mais a Itália das luas de mel internacionais, como diz D’Annunzio,
porém, uma Itália viva, presente, em movimentos enérgicos e originais. Daí a
ligação do fascismo com o futurismo de Marinetti.
309
Plínio examina as relações entre futurismo e fascismo:
O futurismo é, ao mesmo tempo, reação e revolução. O que o
cubismo faz para condensar os elementos artísticos diluídos no
estado de espírito dadaísta, em formas geométricas cristalizadas, o
futurismo faz para aproveitar as forças esparsas do fim do século,
numa expressão de movimento.
Marinetti é todo o dinamismo do país renascente. Os seus
processos artísticos, desde o manifesto de 1909, baseiam-se nas
forças novas da civilização. Sua escultura, sua pintura, seus
poemas, são sintéticos e ágeis. Esse espírito de renovação se
funde às novas tendências políticas do fascismo.
310
E na relação entre futurismo e nacionalismo:
O futurismo apareceu com caráter quase universal, porém,
transformou-se em expressão nacional e chegou a extremos
exageros... indo às raias do jacobinismo.
Essa atitude é um grito de angústia da nacionalidade. Exprime o
desejo de salvar a Itália do snobismo, da desnacionalização
completa, da absorção da península pelo cosmopolitismo
avassalador.
Marinetti lançou uma proclamação violenta de nacionalismo. É o
manifesto que contém onze proposições fortes e incisivas e que
ganham uma oportunidade extraordinária nos dias de hoje.
311
Salgado sugere que nós brasileiros apreciemos e examinemos esse
manifesto,
como exemplo de um velho povo a um povo jovem como o nosso
e que, cada vez mais, se deixa submeter à dominação estrangeira.
País de imigração, país em situação de insolvabilidade; país fiscalizado,
vigiado em seus mínimos movimentos, pelos banqueiros da City e de Wall Street;
308
Idem.
309
Idem. 121
310
Ibidem.
311
Idem: 121-122.
198
país dominado pelos costumes que o cinema impõe, de Hollywood e de Los
Angeles; país que adora a educação francesa; país que perde dia-a-dia, a sua
personalidade, prestemos atenção às propostas de Marinetti.
Plínio, pergunta: Que quer ele? E dá a resposta, baseada nos onze pontos do
manifesto de Marinetti:
Que sejam condenados os italianos que se casam com mulheres
estrangeiras; que tomam parte em concertos onde não predomina
a música italiana; que participam de torneios esportivos
internacionais onde as máquinas e equipamentos não sejam
italianos; que bebem bebidas estrangeiras; que compram
mercadorias estrangeiras em vez de nacionais; que, sendo
escritores, depreciam os esforços literários da Itália moderna; que,
escultores, pintores, músicos ou escritores, acompanham mestres
estrangeiros; que, sendo hoteleiros, empreguem língua
estrangeira nos cardápios.
312
Plínio, sugere que estudemos essa atitude em face da situação mundial e,
em seguida, tiremos conclusões para o caso brasileiro. De fato, o manifesto de
Marinetti foi um dos documentos mais inspiradores nos debates do modernismo e,
em particular, do verde-amarelismo.
Curiosa, todavia, é a ponderação que Plínio - depois de ter, em diversas
ocasiões, sustentado ser o nacionalismo, a única doutrina saneadora dos males
contemporâneos - faz, no final do seu estudo atento ao fascismo italiano, sobre a
necessidade deste ultrapassar seu extremado nacionalismo e buscar uma dimensão
universalista para sua doutrina
Trata-se da parte II, Sentido da Política do Mundo, que sucede Índole do
Estado Fascista, no qual Plínio expôs com clareza uma síntese da doutrina
fundamental do fascismo:
Cooperação das classes, superação de todas as tendências e
teorias sociais, de todos os processos políticos, e de realização, na
expressão total da Nação, de todas as energias do país, quer
sejam materiais, intelectuais ou morais.
313
312
Idem: 123.
313
Desde já se pode observar que todas essas características identificadas por
Plínio na doutrina do fascismo são também extensivas à doutrina do
integralismo e são facilmente encontradas em obras doutrinárias de Salgado,
indicadas neste trabalho.
199
Em seguida, Salgado afirma conter o fascismo, como doutrina de Estado,
uma síntese cultural e a possibilidade de restauração da autoridade governamental,
sem a qual nada será possível fazer, nem no interior dos países,
nem no panorama da vida internacional.
314
Contudo, apesar de reconhecer tais aspectos do Fascismo como exemplares,
com orientações positivas a serem examinadas e com possibilidades de instruírem
um ordenamento novo nas relações internacionais, Plínio alerta para os desafios
que uma política nacional fascista terá de enfrentar
em face das realidades pragmáticas da vida comercial e social do
país, [e, por isso, o novo regime italiano] encontra-se no mesmo
bêco sem saída em que se debatem as nações democrático-
liberais.
315
A Itália, segundo Plínio, não pode pretender resolver seu problema
econômico nacional, isoladamente, sem considerá-lo como parte do grande
problema universal, e isso significa a necessidade da sua projeção, não como
política nacional, mas como doutrina de Estado.
O que Plínio, em verdade, está propondo é que o fascismo se coloque no
plano das idéias, não como uma doutrina política que serve apenas à nação
italiana, mas como uma doutrina de Estado que, pela dimensão cultural que
encerra, tem possibilidades de aspirar um caráter de universalidade. Na falta dessa
dimensão, Plínio é categórico em seu prognóstico:
Se o fascismo é apenas nacional, se lhe falta caráter de
universalidade, não poderá subsistir. A pressão do mundo se
exercerá sobre ele.
316
Salgado, toma o liberalismo como um paradigma da universalização de uma
doutrina que, ultrapassando os limites da política com que se configurou na França,
e o campo da economia em que floresceu na Inglaterra, o liberalismo acabou por
314
Idem.
315
Idem: 131.
316
Nota-se, por sinal, essa mesma preocupação de universalização com a
doutrina do nacionalsocialismo, em Hitler, quer no Mein Kampf, quer em
discursos proferidos, posteriormente, após a chegada ao poder, na Alemanha.
Essa também foi uma questão técnica levantada pelo jurista e cientista político
alemão Carl Schmitt, nos anos 30.
200
dominar o mundo por mais de um século, porque pôde expandir seu caráter de
universalidade.
Ele foi a arma com que o individualismo econômico solapou todos
os governos da terra. Hoje, uma nova concepção de Estado que se
oponha aos desígnios da liberal-democracia, deverá também
encerrar em si própria uma essência universal.
317
Plínio encerra essa sua perspicaz observação sobre os limites e
possibilidades doutrinárias do fascismo, com referência a esse importante aspecto
da dicotomia nacional / universal, remetendo
à proclamação de Marinetti e certas atitudes do governo italiano,
que revelam a face nacionalista do fascismo com laivos de
Jacobinismo bem acentuados e alarmantes.
Plínio fecha o tema fazendo uma nota de referências ao comportamento que
lhe parece dúbio, de certos italianos imigrantes no Brasil.
É comum encontrarmos italianos que são fascistas quanto à Itália
e liberais quanto ao Brasil. É o caso dos grandes industriais de São
Paulo e alguns intelectuais. Para a Itália um governo forte, para o
Brasil, uma zurrapa liberalesca! Muitos, chegam a estipendiar
revoluções liberais-democráticas em nosso país...
318
Esse comportamento atestaria um baixo índice de universalização desses
simpatizantes fascistas.
317
Idem: 132.
318
Ibidem.
Capítulo 3
A revolução integral
Deste modo, se no imaginário de Salgado interferem influências intelectuais
diversas: desde hegelianas (o primado da idéia e de seus movimentos) a
românticas (o sentido do trágico, do épico e da ação nascida da vontade); do
intuicionismo bergsoniano (vitalista e criacionista) ao realismo aristotélico e
neotomista (da unidade na diversidade), a síntese final é buscada na confluência de
todas essas vertentes para um espiritualismo cristão que se afirma como fonte
regeneradora de nova ordem de categoria. Esta, a grande meta da propositura
nietzscheana e de toda postulação superhumanista.
Assim, a interlocução primordial do discurso integralista de Plínio já não
deve ser com Marx, nem com o marxismo - desde então considerado por ele, um
produto obsoleto da mentalidade própria do século XIX - mas com a metafísica do
Super-homem de Nietzsche, construída sobre os escombros da crítica da
decadência. Portanto, torna-se o empenho crucial de Salgado, resgatar o que lhe
parece ser o original e inexaurível patrimônio espiritual do cristianismo - a religião
do Amor - retirando-o do atoleiro mortal no qual fora confinado pelos erros e
descaminhos da modernidade; desta Terceira humanidade, agnóstica e ateísta. Mas
não basta negar a Nietzsche ou o que seria sua versão caluniosa do cristianismo.
Pois Plínio está convencido de que os exageros delirantes que impelem Nietzsche a
apelar para um Super-homem paganizado, os erros de incompreensão que o teriam
levado a rejeitar o cristianismo em bloco, derivam exclusivamente do ateísmo, e
este, das influências do materialismo do século que afinal se abateram sobre as
preocupações legitimas do filósofo alemão, desvirtuando-as.
Se Plínio, todavia, reconhece que a Voz de Zaratustra foi, ainda assim, um
trecho da Verdade, não há mais o que debater com ele; mas, convicto de que o
erro de Nietzsche resulta da unilateralidade típica do seu século, resta incorporar o
que nele há de verdadeiro como crítica e denúncia da decadência moderna (no
202
niilismo) e da condição do indivíduo despersonalizado. Mais que tudo, porém, a
valiosa contribuição de Nietzsche será reconhecida, apenas neste século XX - o
século das grandes sínteses do pensamento - quando se pode melhor entender a
Voz de Zaratustra no que ela tem de inspiração profética, ao anunciar que a
chegada dos Tempos Novos far-se-á por uma regeneração de todos os valores.
Neste ponto do imaginário de Plínio, a interferência de Nietzsche cessa para dar
lugar - ainda no âmbito da mesma lebensphilosophie - ao criacionismo de Bergson.
Pois este, contrapondo-se ao ateísmo nietzscheano, afirma não só a ‘Vontade
criadora’ como geradora de mais Vida, mas encontra-a, em sua expressão mais
elevada, nas manifestações da religiosidade mística e, em particular no
Cristianismo. A Santidade, o fervor místico, definem um tipo de heroicidade cristã
como fomentadores de uma elevação da Vida e do Homem. Essa perspectiva
restaura o valor e a dignidade do cristianismo no contexto da filosofia moderna.
Plínio assimilará esse entendimento.
O Integralismo como revolução do espírito
Sob o olhar da filosofia de Bergson, altruísmo, sacrifício, sofrimento, compaixão e
comunhão deixam de ser valores de decadência de uma moral de rebanho, de
escravos,
319
para serem tomados como exigências da mais elevada espiritualidade -
do Amor Cristão - que elevam o homem a um plano superior de transcendência.
Neles, também, o imaginário pliniano enxerga as verdadeiras e poderosas armas de
afirmação e de combate do espiritualismo contra todas as deformações sociais e
humanas geradas pelo materialismo moderno. Tanto em suas expressões
subjetivas: de egoísmo, indiferença, comodismo, cinismo, sensualismo e
indisciplina. Quanto nas suas expressões políticas mais objetivas: da exploração
capitalista internacional, da liberal-democracia e do comunismo apátrida; do
cosmopolitismo, do anarquismo e do oligarquismo.
319
Do mesmo modo, também não o eram para Wagner, como já assinalamos
anteriormente quando expusemos o sentido superhumanista da sua obra.
203
Esses elementos permitem que Salgado, a partir deles, construa a
representação idealizada da Quarta humanidade que virá: do Homem Integral do
Estado Integral, da Humanidade Integral. Bem como do outro, ou seja do inimigo a
combater: o materialismo, sob todas as suas formas, e disfarces - quer
representado pela fermentação comunista, quer representado na fraqueza moral e
política da democracia liberal burguesa. Assim, Plínio identifica quer no liberalismo
quer no comunismo as duas faces do mesmo inimigo: o materialismo naturalista
burguês contra o qual ergue-se o Espiritualismo sob a bandeira do Sigma integral.
Na sua obra O que é o integralismo, Plínio expressa com clareza essa visão:
A Liberal-Democracia concebeu o homem-cívico, a grande mentira
biológica; o Marxismo materialista concebeu o homem-econômico,
mentira tanto filosófica como científica. Nós, Integralistas,
tomamos o homem na sua realidade material, intelectual e moral
e, por isso, repudiamos tanto a utopia liberalista, como a utopia
socialista. A liberal-democracia pretende criar o monstro sem
estômago. O Socialismo Marxista pretende criar o monstro que só
possui estômago e sexo. Em contraposição ao misticismo liberal e
ao molusco marxista, nós afirmamos o homem-total.
320
Antes de tudo, esse espiritualismo cristão deve assumir a vanguarda de
todas as forças espiritualistas, numa atitude de afirmação contra as forças
desagregadoras do materialismo que fomentam a desordem, em todos os planos,
no mundo contemporâneo. Assim é que, no século XX, esse embate entre
espiritualismo e materialismo deve ser levado aos múltiplos campos da atividade
humana: ao econômico, ao social, ao cultural e, especialmente, ao campo
político.
321
No entender de Plínio, o fascismo se apresenta já como uma reação
nacional à desagregação e à desordem que atingiram em cheio as nações européias
após a Grande Guerra. Mas o sentido espiritual do fascismo lhe parece ainda muito
tênue, apenas reativo, ideologicamente pouco desenvolvido para dar conta das
exigências espirituais do homem moderno. Essa tarefa só pode, então, ser levada a
cabo pelo Integralismo. E o Brasil parece, aos olhos de Plínio, ser o campo
320
SALGADO, P. Obras completas - Volume 9. O que é o Integralismo: 29.
321
Plínio entendia que a política autêntica do movimento integralista consistia
em atuar rigorosamente em todas as esferas da cultura, meio pelo qual a
revolução espiritual pretendida deveria forjar também as bases de uma nova
cultura política do povo-nação.
204
experiencial por excelência privilegiado para a revolução do espírito que urge
promover. Ao contrário das velhas e cansadas nações européias é nas terras jovens
da América Latina particularmente no Brasil, que a mensagem trazida pelo
integralismo, anunciadora dos Tempos Novos, deverá falar para o Mundo. Daqui
deverá sair a última palavra. O integralismo será o seu porta-voz. Plasmar no povo
brasileiro – neste povo criança
(...) um povo que ainda não se definiu, que não atingiu a
maturidade, que não cristalizou ainda uma consciência política,
nem um sentimento de nacionalidade (...)
322
novos ritmos sociais, uma nova consciência nítida dos seus direitos e dos seus
deveres, o valor da disciplina.
Assim, a revolução integralista precisava atuar profundamente na alma do
povo brasileiro, despertando-lhe as energias bárbaras e instintivas que repousam
no coração das massas inconscientes, disciplinando-as, dando-lhes uma forma,
uma direção nova, um sentido preciso de atuação histórica, canalizando seu
enorme poder de realização, agudeza dos instintos, extrema bondade, profunda
espiritualidade, tenacidade na luta
323
que, em principio, creditavam o povo
brasileiro a alcançar um futuro grandioso capaz de influir nos destinos do Mundo.
Daí a necessidade de o integralismo considerar primordial a revolução
espiritual (subjetiva) que deve preceder a fase objetiva da Revolução Integral. Pois
caberá a essa etapa iniciada pela Ação Integralista, criar no País
uma consciência uma homogeneidade, uma força que tenha sobre
as formas larvares de todas as outras, a firmeza dos lineamentos
precisos.
324
Transformada a alma do povo massa pela pedagogia disciplinadora, pelo
senso do dever e do sacrifício, do altruísmo e da colaboração de todos os
322
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 115.
323
SALGADO, Plínio. Obras completas - Volume 5. A Quarta humanidade: 73.
324
SALGADO, Plínio. Obras completas - Volume 7. Palavra nova dos tempos
novos: 256.
205
brasileiros, ver-se-á nascer o Povo-Nação pronto à realização de seus destinos
superiores.
325
Salgado exprime o integralismo como movimento da juventude, da
mocidade da nação, com seu espírito rebelde e inconformado com o estado de
coisas atual, capaz de galvanizar vontade firme de ação, força, otimismo e energia
criadora. Só o espírito da mocidade está livre de preconceitos e cheio de disposição
para
guerrear o Passado naquilo que ele tem de tirânico na pretensiosa
perpetuidade das formas.
326
Em seu texto Palavra nova dos tempos novos, Plínio, mais uma vez, refere-
se a esse sentido de força, vigor e desprendimento que o integralismo - como
movimento de apelo aos jovens brasileiros - deveria representar:
Um povo não deve esperar pelo Futuro. Deve marchar para ele.
Deve precipitá-lo. A História escreve-se com pensamentos
transformados em ação.
Só a mocidade realiza esse milagre. Porque ela é força, otimismo e
energia criadora.
327
De fato, a Ação Integralista Brasileira era um movimento que atraía e
mobilizava sobretudo grande massa de jovens. Alguns estudiosos têm chamado
atenção para esse ponto. Hélgio Trindade, particularmente, mostrou como a
presença de jovens (entre 20 e 30 anos, ou com menos de 40 anos de idade) era
dominante nos quadros de liderança nos núcleos integralistas e mesmo na alta
hierarquia do Movimento.
328
Todavia, em que pese esse aspecto, os apelos e
referências constantes de Salgado (e de outros líderes) à juventude e mocidade do
integralismo obviamente remetem menos à idade cronológica dos militantes e
325
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A Quarta humanidade: 85.
326
SALGADO, Plínio. Obras completas - Volume 7. Palavra nova dos tempos
novos: 187-188.
327
Idem: 188-189.
328
Atitude similar é encontrada nos discursos superhumanistas dos diversos
movimentos fascistas. Identificação do movimento com o futuro, com o que é
jovem (não-corrompido). Os jovens são tomados como portadores do destino
nacional (mítico) ainda por realizar, isto é, que se revela apenas como futuro a
almejar. Veja-se, aqui, o papel da juventude em Nietzsche; como destruidora
dos antigos valores decadentes e construtora de novos valores vitais.
206
adeptos que se pretendia conquistar e bem mais aos espíritos jovens, àqueles que
conservam o idealismo, o destemor e a coragem para se lançarem na luta pela
redenção nacional atendendo, assim, ao chamado que lhes fora feito pela bandeira
do Sigma:
Na verdade, existem muitos velhos que são moços e muitos moços
que são velhos. Este movimento de renovação espiritual que
proponho, conquanto aspire à harmonia e solidariedade humanas,
é de energia. Qualquer homem de qualquer idade, tendo de entrar
para ele, que se rejuvenesça primeiro. A Nicodemos, Cristo
afirmou: é preciso nascer de novo para encontrar a Salvação. E
nós gritamos: é preciso iluminar-se de perpétua juventude, para
formar cm nossas fileiras (...).
329
Comparando as movimentações revolucionárias que agitavam o Velho
Continente europeu nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial: a Revolução
bolchevique na Rússia, a revolução fascista na Itália, o hitlerismo na Alemanha, a
revolução portuguesa, a revolução espanhola, com o sentido do Integralismo no
Brasil Plínio atribuía a este uma dimensão revolucionária mais profunda. Sob todos
os aspectos, Salgado considerava que a tarefa dos integralistas era bem mais
árdua, bem como seus objetivos, também mais ambiciosos. Exigiam uma
disposição de sacrifícios, uma aceitação de sofrimentos e de dedicação absoluta dos
militantes à grande causa desfraldada pela bandeira do Sigma. Pois esta revolução
integral, tal como Plínio a considerava em seus propósitos, deveria ser algo mais do
que uma simples mudança de homens no Governo, de métodos administrativos, ou
de política econômica; ou de um programa partidário á busca de uma massa de
eleitores. Ela era tudo isso e mais que isso. Ela era o esforço supremo de
reconstrução da própria Pátria brasileira a partir de uma reconstrução integral do
homem brasileiro. Tomando como ponto de partida os condicionantes bio-psíquicos,
históricos, geográficos e culturais com base na Terra e na Raça, o Integralismo
deveria assumir essa missão de fazer despertar a alma da nacionalidade submersa,
corrigindo todos os obstáculos objetivos e subjetivos que imobilizam, fragmentam e
dispersam as energias do povo brasileiro, impedindo-o de empreender a grande
329
Idem: 222.
207
marcha para alcançar e realizar seu destino. O de ser a grande nação; de se tornar
o sujeito consciente de um papel histórico a cumprir no Continente e no Mundo. Eis
porque, aos olhos de Plínio, a revolução do Sigma é mais profunda, mais ambiciosa
e será, também mais demorada em alcançar e realizar seus objetivos de longo
prazo. Observemos como Plínio sintetiza a dinâmica e o sentido da revolução que
pretende o integralismo.
Revolução é movimento de cultura e de espírito. Transforma-se
uma cultura, assume-se nova atitude espiritual, como
conseqüência, abala-se até aos alicerces os velhos costumes,
destruindo tudo, para construir de novo, porque destruir, apenas,
não é Revolução.
330
Nessa perspectiva nitidamente superhumanista que evoca a natureza
metapolitica da revolução do espírito que o Integralismo visava, Plínio destaca o
papel dos militantes como portadores da nova consciência, que devem atuar como
guerreiros num combate espiritual contra a velha cultura política, os velhos
costumes, os velhos hábitos, as velhas idéias. Mas os camisas-verdes são também
semeadores; trazem a boa nova da esperança, da regeneração, da reconstrução da
Pátria nova e do novo-homem que há de nascer. Por isso, são destruidores, mas
também construtores.
Rompemos hoje, apoiados em milhares de camisas-verdes que já
possuem, disseminados por todo território da Pátria, uma nova
consciência, as baterias da nossa ofensiva contra um estado de
coisas que repugna ao nosso espírito.
331
O sentido Superhumanista dessa luta fica mais claramente manifesto no
imaginário de Plínio pelo modo como ele a representa no seu discurso, quando diz:
Não se trata de ofensiva contra um partido, contra um governo,
contra uma classe; trata-se de uma ofensiva contra uma
civilização.
332
Todavia, Plínio reconhece que as pretensões do Integralismo fatalmente
encontrarão múltiplas resistências decorrentes, em grande parte, do complexo de
inferioridade que as velhas elites, as velhas classes governantes, a velha cultura
330
Idem: 222.
331
Idem. Grifos nossos.
332
Idem. Grifos nossos.
208
política oligárquica que têm dominado o Brasil, instilaram na consciência das
massas quanto às possibilidades do povo brasileiro de projetar seu próprio futuro:
Pode ser petulante esta atitude, olhada com os olhos dos que
envelheceram em espírito e persistem em conviver com os
fantasmas do século XIX. Pode ser ridícula, considerada por
quantos já se habituaram, à força de ouvir os mestres de uma fase
decadente, a considerar os brasileiros incapazes, mental e
moralmente, de assumir atitudes autônomas no mundo. Para os
blasés, para os refinados, para os eunucos e os decrépitos,
seremos ridículos, pretendendo erguer a voz brasileira no meio dos
outros povos.
333
Contudo, os integralistas deverão prosseguir, mesmo que sejam
incompreendidos, ridicularizados, vilipendiados ou perseguidos. Devem buscar
retemperar suas forças, seu ânimo de luta, no espírito recôndito da Pátria
ancestral, na sua história heróica que eles julgam interpretar na sua autenticidade
e que os deve conduzir. O Chefe nacional, então, conclama os camisas-verdes a
prosseguirem em frente no rumo dos seus objetivos; contra a descrença, o
ceticismo e o oportunismo de muitos:
Para nós, porém, esta revolução integralista tem as energias
sagradas do próprio espírito da Pátria em rebeldia, em
agressividade contra uma civilização que criou a luta de classe,
que desorganizou as bases morais das nacionalidades e que nos
amarrou, durante cem anos, como escravos miseráveis, aos pés
da mesa onde o capitalismo internacional se banqueteia, surdo ao
gemido dos povos.
334
Dentre muitos outros textos de Salgado em que ele reproduz igualmente
palavras idênticas contra a civilização burguesa e materialista, este, acima citado, é
por demais eloqüente para que uma interpretação materialista feita por um autor
talentoso pudesse concluir - ainda que um tanto afoito e mecanicista - pelo caráter
regressivo, agrarista e anti-industrialista, do imaginário integralista de Plínio. Esse
foi o resultado a que chegou J. Chasin numa pesquisa alentada sobre a obra
literária e política de Salgado.
335
333
Idem: 223.
334
Idem.
335
CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado.
209
O superhumanismo pliniano
Chegamos, por fim, a algumas conclusões que podem já agora ser formuladas
acerca do Superhumanismo - tomado aqui como um princípio gestor de uma
tendência epocal nova, em contraposição ao princípio igualitarista formador e
conformador da modernidade - tal como Giorgio Locchi assim o enunciou. Como de
origem metapolítica, o Superhumanismo tem sua gênese no legado cultural de
Nietzsche e de Wagner e, em síntese, propõe-se como formulador de uma nova
ordem de categoria; capaz de se contrapor e deter o processo avassalador da
decadência que fomenta o niilismo moderno. Segundo essa concepção, isto é, do
ponto de vista superhumanista, não há mais nada que o humanismo (burguês ou
proletário) possa propor, a não ser mais decadência, mais niilismo. Mergulhado até
o limite no universo mental do econômico-técnico, ancorado no cientificismo, na vã
ilusão de obter na ciência um sucedâneo à metafísica, despojado de todo
argumento teológico em face do assassinato de Deus - o conceito do humano teria
perdido toda a capacidade de afirmação do Ser, ficando reduzido à miserabilidade
de um ente vazio, de objeto da pura Técnica. Depois da morte de Deus, o processo
da decadência e do niilismo aponta para a desnaturação e diluição do homem e do
humano. O Superhumanismo é já a perspectiva derradeira de uma superação da
decadência e do niilismo modernos para além do humano.
Todavia, pelo que pudemos captar da obra filosófica de Bergson, em
comparação com a filosofia de Nietzsche, não há como desconsiderar naquele
também representante da lebensphilosophie, a possibilidade de uma segunda
dimensão metafísica: a do espiritualismo cristão, para o princípio
Superhumanista.
336
Esse redimensionamento do Superhumanismo pelo acrescento
de uma interpretação vitalista e cristã dos problemas do homem moderno e, em
336
Embora sejam apenas passageiras e escassas as referências a Bergson nos
escritos de Plínio, é bem certa a influência que esse filósofo exerceu sobre
muitos intelectuais cristãos e católicos do início do século. Vinculado à corrente
do espiritualismo filosófico mais combativo e militante, o pensamento de Plínio
revela sinais evidentes dessa influência.
210
particular, da filosofia da cultura e do papel da religião nas suas relações com a
cultura; amplia o cenário reflexivo da teoria política. Traz uma possibilidade de
compreensão para expressões políticas de alguns movimentos de tipo fascista
(superhumanistas), bem como dos discursos e da atuação de seus principais
protagonistas, ao se identificarem como defensores de uma nova ordem de
categoria que, pretendiam, baseada num cristianismo que se dizia autêntico.
Essa vinculação íntima entre um modo de sentir e pensar superhumanista
(metapolítico), estilo fascista e tradição cristã, mostra suas evidências em alguns
dos fascismos europeus (abstraindo-se os casos clássicos italiano e alemão),
particularmente, dos chamados fascismos ibéricos - como foi o caso da Falange
espanhola, de José António Primo de Rivera e do Rexismo belga, de Leon Degrelle;
nos anos 30 e 40. E aqui se torna possível incluir, também, o fascismo austríaco e o
fascismo francês; mas especialmente, o integralismo brasileiro. Neste,
singularmente deve-se destacar o imaginário político-doutrinário de Plínio Salgado.
O integralismo pliniano aparece, portanto, comparado às versões integralistas de
Miguel Reale e de Gustavo Barroso, como sendo a mais elaborada, expressiva e
comprometida formulação ideológica superhumanista articulada - em sua dimensão
cristã - à metafísica do catolicismo tradicional.
337
E não é sem razão que os estudos
mais sérios e mais renovados sobre o fenômeno integralista dos anos 30, embora
hajam identificado aquelas perspectivas até certo ponto diferenciadas da matriz
pliniana no âmbito do movimento do Sigma, reconhecem, todavia, que foi esta,
sem dúvida, a mais influente e com a qual o próprio integralismo acabou por se
identificar enquanto doutrina política.
337
O catolicismo de Salgado vincado à tradição tridentina, contudo, expressa um
viés claramente gnóstico que confere à sua postulação do espiritualismo cristão
aquele vigor entusiasta e aguerrido que reclama por uma permanente revolução
interior, de constante reafirmação do valor do combate heróico pelas verdades
da fé, atento as maquinações do inimigo; ao mesmo tempo, disposto a
despojar-se do convencionalismo para investir no essencial do Mistério da
Salvação. Essa dimensão gnóstica parece prevalecer, ademais, em setores do
catolicismo europeu que, por meio dela, absorveram e aderiram ao
Superhumanismo. Sobre o gnosticismo no âmbito da modernidade ver VOEGLIN,
Eric. A Nova ciência da política; e VOLPI, Franco. O niilismo. Leituras filosóficas.
211
O Superhumanismo pliniano deve expressar-se, então pela via de um
catolicismo gnóstico - que ao traduzir a humanidade contemporânea como cenário
de uma luta escatológica entre as forças do Mal (materialismo) e as forças do Bem
(espiritualismo) - interpreta-se a si mesmo como contra-fração ao
Superhumanismo ateu (nietzscheano) da era da morte de Deus, ou seja, da era do
niilismo.
Até aqui, vimos como Plínio absorveu o processo de formação da
modernidade, com o alicerce teológico tradicional sendo, pouco a pouco,
secularizado e neutralizado. Processo que ele traduz como de avanços cada vez
mais firmes e decididos do materialismo até culminar na Humanidade ateísta
contemporânea. Esse modo de sentir e de pensar a vida e o mundo cada vez mais
centrado no espírito de análise, conferiu ao experimentalismo científico o sentido
único que deve balizar toda a atividade racional do homem moderno. E, como um
corolário lógico desse modo de pensar, todo o sentido de transcendência que o
espírito humano pudesse ainda reclamar - como vínculo com o Divino, é
prontamente escorraçado como superstição e denunciado com ataques à Religião.
Esse senso materialista-ateísta que, segundo Plínio, triunfa em toda ordem de
coisas já no século XIX, tem, no cientificismo do pensar econômico-técnico, o eixo
do seu domínio. E o sentido desse século, não se esgota cronologicamente; arrasta-
se, ainda, por dentro do século XX. É um corpo já moribundo que não tem mais
nada a dizer de novo aos homens do século XX, mas que insiste em ser carregado
às costas do século atual. E é o cansaço das perspectivas já ultrapassadas
indutoras de cepticismo, de cinismo, de pragmatismo, de utilitarismo, de descrença
e incerteza absoluta no Homem e no seu destino. Ao mesmo tempo, as aspirações
inelutáveis por um novo espírito de síntese, que não chega; e que produzem esse
estado geral de mal-estar - que o discurso psicanalítico de Freud identificara já
como o modo próprio da civilização - que se constitui, então, no niilismo
contemporâneo.
212
Por isso, ao pretender-se como postulação anti-niilista e decidir-se por uma
luta franca contra as forças desagregadoras da decadência em plena era da
secularização, e do niilismo político, o discurso pliniano da política tem de
inscrever-se num complexo imaginário que vá, também, além do político strictu
senso, ou seja, que se imponha como meta-político. Nesse sentido, não pode
buscar apenas recursos teológicos argumentativos de uma afirmação ou re-
afirmação do Absoluto contra a muralha nevoenta do niilismo. Todavia, em face da
corrosão progressiva da base teológica tradicional da legitimidade pelo
deslocamento e esvaziamento produzido pela secularização, torna-se imperativo
que Plínio produza sua argumentação de modo autônomo; ou seja, pela ficção da
não-existência de Deus (como soube dizer metaforicamente Carl Schmitt) e a
utilização, em seu lugar, de uma argumentação racional, independente dos ditames
teológicos. Esse é, por exemplo, o sentido da correspondência que Salgado envia a
Augusto Frederico Schimidt no Rio de Janeiro às vésperas do lançamento do
Manifesto de Outubro, onde externa seu ponto-de-vista sobre a natureza do
movimento a ser deflagrado no País.
338
Desse modo ao decidir-se por uma argumentação racional (política e não
religiosa) para fundamentar sua postulação anti-niilista, Plínio considera
estrategicamente a necessidade de confrontar o domínio da pura técnica no plano
das idéias, dirigindo-se, primeiramente aos intelectuais, num repto e numa
convocação às elites pensantes, para que se posicionem politicamente frente a uma
configuração geral do mundo moderno que é, em princípio, de natureza meta-
política. Esse é, portanto, o sentido das duas obras doutrinárias, de conteúdo mais
338
Nesta carta a Augusto Frederico Schimidt, datada de 14/10/1930, Plínio
assim se expressa. (...) É que o século econômico, a era da técnica, surgiu
quase de improviso, desnorteando todos os inadaptados. E prossegue: Não é um
século material; ele criou um espiritualismo mais profundo... O que opor à
alternativa comunista: Que forças oporemos á sua ação?, indaga. A religião? É
muito para uma finalidade política; é pouco para uma ação prática, direi mesmo
maquiavélica, uma hábil, aguda, segura mobilização de forças aproveitáveis, de
energias esparsas, contraditórias sob certos aspectos, mas passiveis de
canalização, de captação, de aplicação... CHASIN, J. O integralismo de Plínio
Salgado: forma de regressividade do capitalismo hiper-tardio: 100.
213
erudito, Psicologia da revolução e A quarta humanidade, que Plínio destinou aos
homens de pensamento do Brasil.
Por outro lado, uma postulação anti-niilista que mesmo vinculada ao ideal
cristão não pode apenas afirmar-se por meio de um quadro teológico de referência,
na era da secularização, de que modo pode constituir-se num vórtice
argumentativo capaz de confrontar eficazmente o paradigma técnico-econômico -
eixo em torno do qual se reproduz a dinâmica do niilismo contemporâneo? Como
bem assinala Carl Schmitt, a técnica, por ser aberta a qualquer fim, cria um
desenraizamento de toda referência e orientação, pois sua dinâmica uniformizadora
e ajuntadora impede a identificação e o reconhecimento de qualquer lugar natural
para nele lançar raízes. Portanto, a partir dela, não é possível constituir nenhuma
fundamentação, nenhuma ordem. Nisso reside para Schimitt - e de um certo modo
similar, também para Plínio - a verdadeira condição das utopias modernas e o
niilismo. Mas como já vimos, Plínio vai além de Schmitt, ao considerar que o
domínio da técno-ciência e do pensar econômico (heranças do século XIX) são
apenas as formas objetivadas do triunfo do materialismo com suas derivações
agnósticas e ateístas, resultando, por um lado, nas múltiplas expressões do niilismo
contemporâneo; e de outro, na maior de todas as utopias modernas: O Comunismo
ateu de Marx.
O desafio que se coloca ante o imaginário de Plínio é, portanto, de dupla
feição: afirmar uma regeneração do homem com base no espiritualismo e
implementar uma ação política transformadora do País com base nesses valores,
fomentando uma profunda revolução do espírito que deve começar como revolução
interior; transformadora do próprio homem.
O Integralismo representa, portanto, no imaginário pliniano, essa postulação
mais decidida e enfática contra o niilismo contemporâneo. Todavia Plínio tem
também a convicção de que uma regeneração do homem não pode mais ser
afirmada com recursos ao velho humanismo burguês - cuja lógica naturalista
214
expandiu o materialismo e engendrou o niilismo desde as origens. Dele decorrem
tanto o liberalismo, o democratismo ideológico, como o marxismo que, segundo
Plínio formam o caldo anêmico da cultura política niilista de uma civilização
européia decadente e que nossas elites políticas e culturais vêem importando há
mais de um século, num sinal claro de total subserviência cultural, diletantismo e
alheamento aos problemas reais do Brasil e de seu povo.
339
Assim, somente a lógica de superação do humanismo burguês moderno
pode postular um modo novo de pensar, sentir e agir em prol da regeneração do
homem contra toda decadência e niilismo e suas expressões políticas e meta-
políticas contemporâneas. Portanto essa lógica deve apontar num sentido
superhumanista para o novo-homem, capaz de contrapor-se tanto ao niilismo em
bloco, quanto às doutrinas modernas que nele se inspiram, desde o demo-
liberalismo agnóstico quanto o socialismo ateu de Marx e também o
superhumanismo ateu de Nietzsche em sua versão paganizada.
O Superhumanismo se configura no imaginário pliniano como possibilidade
de um estilo novo e viril de postular os valores cristãos essenciais como afirmativos
e enobrecedores do homem moderno, na era da luta contra o niilismo e a
decadência. Inspirando-se na realidade da Terra e do Povo deve buscar no passado
histórico desde as origens da formação e conquistas de Portugal no mundo, até o
processo colonizador do expansionismo bandeirante e da catequese indígena, os
signos do cristianismo heróico a serem resgatados e transvalorados como alicerces
espirituais do homem futuro: da Quarta Humanidade.
Nesse sentido, a tarefa política mais imediata da postulação pliniana deve
abandonar aqueles limites impostos pelas exigências da argumentação racional, ou
339
Sobre a importação do ideário liberal e das simulações de que se revestiu no
Brasil. Plínio situa-se na mesma linha dos intérpretes realistas, como Alberto
Torres e, particularmente, de Oliveira Vianna, o fundador da Sociologia política
no Brasil. Trata-se, porém, de uma variante pliniana a essa linha numa
construção ideológica peculiar que Plínio Salgado expõe, em particular, em seu
livro Psicologia da revolução, de 1933, como se pretende demonstrar no final
deste trabalho.
215
seja, daquela presumida ficção da inexistência de Deus e dobrar-se às exigências
que uma atuação política de base decisionista e de propósitos revolucionários
impõe. Portanto, a consigna superhumanista de Plínio deve começar por uma
proclamação enfática que, recusando-se á hipótese da morte de Deus, decide-se
por afirmar, logo na abertura do Manifesto de Outubro de 1932 que lança o
Integralismo, o principio de que Deus dirige o destino dos povos. E, como
conseqüência lógica, o movimento inscreverá em suas bandeiras do Sigma os
antigos valores esmaecidos pela desagregação niilista: Deus, Pátria e Família;
agora a serem resgatados do limbo dos formalismos convencionais e do
tradicionalismo sem substância. Serão, pelo integralismo, transmutados em
símbolos rejuvenescidos, dotados de um ritmo novo, (da terra e da raça jovem), de
um novo entendimento, inspiradores de força, sustentáculos de uma ordem nova
com sentido preciso de atuação. A tríade expressaria o sentido novo norteador para
o século XX: o espírito de Síntese; substituindo as visões parciais e unilaterais que
impregnaram o século anterior e que agora deve corresponder à concepção
totalitária e integral do homem restaurado. Síntese dos indivíduos, síntese dos
grupos naturais e síntese dos povos. Ela é, ao mesmo tempo, uma ultrapassagem e
um ponto de partida a toda discussão ulterior.
A dimensão meta-política da postulação pliniana é apresentada,
inicialmente, como de sentido cultural. Assim, afirmará Salgado:
O integralismo brasileiro é um movimento de cultura que abrange:
1º) uma revisão geral das filosofias dominantes até o começo
deste século e, conseqüentemente, das ciências sociais,
econômicas e políticas, 2º) a criação de um pensamento novo,
baseado na síntese dos conhecimentos que nos legou,
parceladamente, o século passado.
340
Neste final de nossas reflexões em que examinamos os componentes
superhumanistas do imaginário pliniano, concluímos que ali se expressa uma
versão cristã, católico-gnóstica do princípio superhumanista que corresponderia, na
medida. a um humanismo integral, - na denominação de Plínio - que se nega
340
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade: 83.
216
peremptoriamente, admitir a finitude do humano. E nesse sentido específico é que
se deve entender não só sua recusa ao humanismo naturalista, mas também, ao
recurso do Super-homem sugerido por Nietzsche como última ratio.
Se o superhumanismo, ainda assim, é uma recusa a toda fragmentação da
imagem do mundo que arrasta consigo um rebaixamento e uma nulificação do
destino humano, o humanismo integral de Plínio também o é. Se o
superhumanismo é, portanto, uma recusa ao relativismo e ao cepticismo
contemporâneos e propõe-se instaurar uma nova ordem de categoria, de todos os
valores éticos e estéticos afirmativos de mais vida; isso também aspira a revolução
interior pretendida por Plínio. Se o superhumanismo, ao reconhecer a diversidade
das formas sociais e das aspirações humanas considera, entretanto, que uma
sociedade para ser sã necessita ordenar-se por um princípio capaz de integrar e
totalizar o sentido das ações humanas; assim também o integralismo pliniano ao
sustentar uma concepção totalitária do Universo e do homem.
Enfim, se o Superhumanismo desponta como uma tendência epocal da
história contemporânea das idéias e da cultura que visa reverter nos planos da
política e da meta-política o curso da decadência e degeneração niilista, postulando
uma nova ordem de categoria dos valores humanos (que retire o homem
contemporâneo da precariedade atual) e que, nesse sentido, opõe-se a todas as
concepções e doutrinas antigas e modernas que apostam no nivelamento e na
uniformidade dos homens; do mesmo modo o integralismo pliniano converge para
essa tendência.
Há que distinguir, todavia, o modo peculiar como Plínio se situa, dentro do
campo superhumanista, com relação ao principio igualitarista. Na sua postura cristã
vinculada ao catolicismo, não trata de denunciar ou recusar dois mil anos de
igualitarismo - tal como Giorgio Locchi define o sentido do Superhumanismo - mas
consiste, isto sim, em denunciar e rejeitar a desnaturação do fundamento teológico
da igualdade dos homens diante de Deus. Coerente com sua filosofia da história,
217
Plínio atribui essa desnaturação ao processo de secularização deflagrado com o
avanço crescente do materialismo através das doutrinas naturalistas e racionalistas
oriundas do nominalismo medieval. Esse processo desembocou na era moderna,
destruindo o fundamento teológico (totalista) do principio da igualdade
transcendental do gênero humano que o Cristianismo havia afirmado. Em
contrapartida, o curso da secularização materialista reduziu aquele principio ao
plano imanentista da sua aplicação prática - obra dos filósofos naturalistas, dos
iluministas, na sua pertinaz luta contra o Cristianismo e, particularmente, contra a
Igreja. O resultado foi o triunfo dessa versão imanentista e corrompida da
igualdade que chega com as revoluções burguesas liberais - especialmente com a
Revolução Francesa - inaugurando concomitantemente, a era do ateísmo e do
niilismo modernos; é um recuo completo do espiritualismo como fundamento da
existência.
Assim, na era ateísta e niilista que marca sinais profundos de decadência da
civilização materialista do Ocidente, a igualdade e a fraternidade podem ser
proclamadas e afirmadas nos planos mais diversos da existência terrena; no social,
no político ou no cultural, até pelas mais antagônicas correntes doutrinárias, por
capitalistas ou socialistas, liberais ou humanistas, porém, uma vez destruído o
fundamento espiritual e transcendente do vínculo que une cada homem e a todos
os homens com o Criador, a natureza humana sofre um rebaixamento, uma
decaída, e a
noção de igualdade perdendo a dignidade que lhe confere o
cristianismo torna-se mera retórica da demagogia e do radicalismo
faccioso; ou mera ficção jurídica.
Tudo de que carece o homem moderno se traduz no imaginário pliniano não
por uma regressão reacionária ou nostálgica ao passado pré-moderno. Nem se
trata de negar a dinâmica e o movimento das idéias que se objetivam na história
em realizações, em novas expressões sociais, políticas e culturais. Trata-se, isto
sim segundo Plínio, de ditar novos rumos que corrijam os erros e descaminhos da
modernidade e que se refletiram na ordem social injusta, instaurada pelo
218
capitalismo liberal, acirrando a luta de classes, a desordem econômica, as crises
políticas, a desorientação das massas e a ameaça crescente do comunismo. E na
visão de Plínio, tais erros, que são essencialmente de ordem moral, se expressam
no plano das idéias, das concepções do homem e da vida, em detrimento dos
valores espirituais eternos e em favor de formas e índices crescentes de
materialismo.
Assim, o integralismo, nessa visão pliniana, era o movimento que,
em resumo, se propunha injetar doses massivas de espiritualismo
em todos os planos de expressão humana e das relações sociais.
Essa meta implicava realmente
numa restauração dos valores cristãos de fraternidade, de
solidariedade, de compaixão, de altruísmo e de disciplina como
fomentadores de uma nova ordem social que projetasse a todos os
seus membros o sentido fixo e determinado de um destino
transcendental último.
Desse modo, parece claro que a versão superhumanista (cristã) que inspira
o imaginário de Plínio Salgado, pretende afirmar e restaurar na dinâmica política
aquele sentido transcendental, espiritualista e de síntese que o Cristianismo confere
à igualdade substancial dos homens como criaturas ligadas ao Criador pelo espírito;
opondo-se, assim, às expressões sociais, políticas e culturais que se mostram como
niilistas, fragmentarias, de rebaixamento e niveladoras do espírito humano, ou
seja, às deformações imanentistas do igualitarismo moderno.
Esse realce espiritualista-cristão do integralismo pliniano sempre tão
enfatizado, parece ser uma característica importante a considerar, diferenciando-o
dentro do campo Superhumanista - de outros fascismos; particularmente, do
hitlerismo nacionalsocialista.
O desdobramento desse espiritualismo cristão produz também diversas
outras diferenças doutrinárias significativas dentro do universo Superhumanista;
como por exemplo, à dimensão e interpretação que se dá ao nacionalismo. Pois os
fundamentos do espiritualismo cristão, em sua versão católico-gnóstica, conferem
ao integralismo pliniano - em que pese sua postulação nacionalista sempre
219
afirmada, também, uma aspiração universalista, por uma ordem mundial do futuro
que venha a ser composta por pátrias integrais regidas por valores espirituais
integralistas e cristãos. Esse era, aliás, um ponto que Plínio costumava ressaltar
para demarcar suas distâncias e diferenças com relação ao fascismo italiano - por
demais restrito às imagens da latinidade Romana; e com o nacionalsocialismo,
preso aos limites de uma perspectiva racista exclusivista - num prejuízo tanto
moral quanto cultural. E é em relação a ambos que Plínio vai afirmar, em
contrapartida, a superioridade do horizonte doutrinal do integralismo; ou, em nosso
entendimento, da sua versão superhumanista da política.
Nesse sentido, na versão superhumanista de Plínio, o universalismo do
espiritualismo cristão não se deve des-substancializar ao tomar a consideração da
humanidade de um ponto-de-vista abstrato-formal como agregado de indivíduos
(como faz o humanismo-liberal), mas, ao contrário, deve exprimir-se
substancialmente no caráter particular, orgânico e singular das pátrias, cuja
diversidade de cultura, costumes, tradições expressam uma
personalidade nacional própria do Espírito universal. O Brasil se
apresentaria, assim, aos olhos de Plínio, como o cenário síntese de
possível realização das duas dimensões: do nacional e do
universal, que a revolução do Sigma encarnaria.
As idéias nítidas do espiritualismo cristão que nos trouxeram os
jesuítas, logo após a Descoberta, ganharam uma forte vitalidade,
impregnando-se do ingênuo espírito de uma raça cósmica. O
cristianismo como revolução espiritual profunda, é a religião por
excelência destinada ao gentio.. Através do processo de
cruzamento étnico, de amálgamas sociais, o monoteísmo cristão
absorveu as forças bárbaras e refulgiu numa expressão
inédita...
341
E ainda:
Uma unidade sentimental assombrosa fixa-se em todas as
latitudes. Ela é a base sobre a qual assenta a nossa superioridade
de vistas, a largueza de nossos gestos fraternos e hospitaleiros,
nosso desprendimento altruísta. Nenhum povo é mais amável,
mais coração-aberto. Eivado de defeitos de educação, esse caráter
persiste em nossa gente, num vasto sentido de universalidade.
342
341
SALGADO, P. Obras Completas – Volume 5. A quarta humanidade: 67.
342
Idem: 68-69.
220
Essa é a matéria-prima, um desafio, e ao mesmo tempo o lastro
esperançoso da utopia pliniana e sobre o qual ele, Plínio, pretendeu tecer os fios da
sua revolução espiritual.
A revolução integralista no imaginário de Plínio encontraria, portanto
possibilidades originalíssimas de construir essa nova humanidade integral apenas a
partir das terras jovens do continente americano. Em particular, na Terra jovem do
Brasil, em razão da profunda unidade sentimental que, segundo Plínio, é um traço
peculiar da nossa formação histórica. Algo inusitado, especialmente original teria se
produzido nestas terras tropicais da América sob a colonização portuguesa:
democracia bárbara, selvagem, confraternização de raças, diluição de todos os
preconceitos, inexistência de ódios e rancores raciais, de casta ou religiosos,
plasmaram ritmos novos de uma morfologia social desconhecida da Velha Europa.
Dois imperativos se impõem, na visão de Plínio, na determinação dessa
original morfologia social brasileira: o fator físico ou geográfico da Terra imensa e
selvagem esse meio telúrico americano de que fala Kayserling - a desafiar todos os
instintos, mas também se impondo como o elemento nivelador de condições de
subsistência a todos, fossem nativos ou adventícios; populações indígenas,
europeus aventureiros ou conquistadores. O outro imperativo estaria no fator ou
meio étnico, ou seja, na construção dessa futura raça brasileira, fruto do
caldeamento das três raças originais que se encontram nos primórdios da
colonização portuguesa: o branco europeu, o indígena nativo e o negro africano.
Dos três grupos, porém, segundo Plínio, coube ao indígena sobrepor-se aos demais,
tornando-se o artífice da profunda comunhão étnica que daria origem ao povo
brasileiro. Para tanto, o indígena cobrou o preço do seu extermínio com a
perpetuação da sua memória na onomatopéia da língua tupi deixada nos acidentes
geográficos e mais que tudo, no lastro imenso do sangue: quer o que foi derramado
nas guerras sertanistas, quer aquele que foi injetar-se nas transfusões das uniões
sexuais inter-étnicas. Assim, segundo Plínio, foi o indígena quem forneceu essa
221
maior dose de sangue a correr nas veias junto ao sangue europeu e ao sangue
africano, das nossas populações interioranas, sertanejas, forjando uma nova raça
forte, mestiça e morena: o caboclo; índice e tipo de uma futura raça brasileira.
Essa raça cabocla que se espalha pelos sertões, dispersa nos campos e
povoados, nos trabalhos agrícolas e pastoris seria a síntese daquela fusão dos
sangues fortes, descendentes dos desbravadores, dos sertanistas e bandeirantes
que rasgaram as matas virgens à busca de riquezas minerais. Guerrearam índios,
fundaram vilas, povoaram e dilataram os domínios de um império luso-tupi na
América. No imaginário pliniano, essa raça cabocla traz o destino da nacionalidade;
ela é o repositório dessa unidade sentimental que se verifica em todos os
quadrantes de Norte a Sul, de Leste a Oeste, e que imprime sentido á idéia da
pátria brasileira.
343
Nada se poderá construir de sólido, de realmente grandioso no
futuro, sem ela. Nada de autenticamente novo de genuinamente brasileiro poderá
surgir sem o concurso dessas populações caboclas, porque elas trazem desde as
origens os sentimentos mais expressivos da alma nacional, da sua brasilidade. É
então, daí, dos sertões que deverá o movimento integralista extrair o sentido
profundo da revolução espiritual na sua fase inicial de apelar para a unidade
sentimental como a grande força mobilizadora de todas as classes, de todos os
segmentos do povo brasileiro na arrancada para a construção do seu grande
destino.
Um terceiro elemento que teria atuado, segundo Plínio, na morfologia social
brasileira, foi o sentido próprio e peculiar que o Cristianismo adquiriu ao ser
assumido pela alma do indígena no processo da catequese. Trazido no bojo das
caravelas, impregnando a alma lusíada desde a Reconquista, imbuído no espírito
cruzadista e universalista dos navegadores portugueses, o cristianismo, ao ser
propagado pelo missionarismo dos jesuítas entre os nativos da América, seria
enriquecido de aspectos novos. Plínio considera que ninguém mais que o indígena
343
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10.Despertemos a nação: 32-109.
222
estava tão apto a absorver a mensagem redentora do cristianismo em sua
essência. Pois, ao contrário de outros povos nativos da América que já dispunham
de uma religiosidade pagã bem mais estruturada e capaz de oferecer resistência à
evangelização, esta, encontraria aqui a
meiga ingenuidade do índio, raça infantil em permanente
comunhão cósmica, raça constituída de homens-árvores, originais
nas suas impressões e nos seus raciocínios...
A estes naturais da terra juntaram-se, além dos conquistadores brancos,
levas e levas de negros africanos, trazidos no bojo dos navios para compor o
cenário único do intercurso e fusão das três humanidades nas terras tropicais da
América. Mas, qual o sentido, afinal, de novidade que encerra esse conúbio das três
raças que aqui se encontraram, segundo o entender de Plínio? Sua interpretação é
incisiva: E o branco arremessou de si todos os preconceitos para abraçar seus
irmãos. O que significa na leitura pliniana da colonização portuguesa da América
que se iria forjar aqui um tipo de sociedade que inaugurava um modo de ser
completamente distinto do modo europeu de viver. Na América selvagem e bárbara
as três raças plasmaram sob o imperativo da luta contra a natureza bravia e sob o
signo de um cristianismo suave, um mesmo espírito de sacrifício e de altivez nos
sofrimentos que a todos irmanava; fazendo decair preconceitos, ruir prerrogativas e
diluir ódios e rancores.
344
Nossa Pátria nasceu da confraternização das raças, das grandes
núpcias históricas que fundiram numa só aspiração e num só
sentimento as três humanidades. Daí, talvez, a origem do
temperamento brasileiro, do nosso gênio hospitaleiro e meigo,
pacífico e bondoso; da nossa sensibilidade lânguida e doce; dos
nossos costumes suaves, da nossa capacidade para o sacrifício.
345
Mas essa simbiose forjou, também, a saga da nacionalidade, nos primórdios
do Nativismo:
344
Salgado vale-se de uma perspectiva racialista-espiritualista para construir o
sentido da história-pátria. A raça cabocla é o mito em torno do qual o imaginário
superhumanista de Plínio se articula. Esse mito central, por sua vez, é o produto
da articulação de três outros mitemas: a saga da lusitanidade no mundo. a saga
indígena (dos povos tupis) na América e a saga universalista do cristianismo
heróico e trágico, no plano da Historia Universal.
345
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade: 126.
223
Nós somos um povo que começou a existir desde a morte de todos
os preconceitos, quando as três raças se fundiram, irmanadas, no
exército selvagem de negros, de índios e de brancos, na aventura
guerreira de Camarão, Negreiros e Henrique Dias...
346
Esse foi o sentido peculiar, a marca originalíssima do Brasil nascente dos
três primeiros séculos da colonização; que segundo Plínio, nos diferenciava
substancialmente da Europa civilizada eivada de preconceitos, de privilégios de
casta, de ressentimentos religiosos, de ódios e rancores.
Mesmo a presença da Metrópole, através de suas autoridades e organismos
administrativos era pouco sentida, pois, a dispersão populacional e a imensa
extensão da terra, facultava os movimentos livres, permitindo que se vivesse aqui
uma autêntica liberdade selvagem, natural e instintiva.
347
No quarto século, com a independência política, esse Brasil sertanejo, rural,
caboclo, agro-pastoril será completamente ignorado do processo de elaboração de
nossas instituições políticas. Esse Brasil real que durante quase três séculos isolou-
se em relação à Metrópole, nas grandes propriedades agrícolas e pastoris auto-
suficientes será, com a independência suplantado por um outro Brasil - artificial,
burocrático cosmopolita, urbano, cheio de abstrações, de idéias filosóficas e
políticas importadas da Europa - que se apresenta como o Brasil oficial. Esse Brasil
europeizado do constitucionalismo, do federalismo, do laicismo, impõe-se como
padrão de civilização para elaborar todas as leis e normas que devem reger
doravante a jovem nação independente. Aquele Brasil rural e sertanejo, caboclo de
alma selvagem, interiorano, puramente orgânico, autêntico representante da
brasilidade na sua genuína expressão e nas peculiaridades próprias que aqui
nasceram, este, será completamente alijado das cogitações dos nossos
constitucionalistas, dos contornos das nossas instituições sociais, jurídicas e
políticas. Esse imenso Brasil real é, então, compungido a vestir a camisa-de-força
artificial do liberalismo doutrinário importado do Velho Continente pelas nossas
346
Idem.
347
SALGADO, P. Obras completas - Volume 7. Psicologia da revolução: 135-139.
224
elites políticas e intelectuais educadas na ilustração européia de olhos voltados para
os modismos exteriores e de costas dadas aos clamores e necessidades da terra e
de seu povo.
Se essa divisão e distanciamento entre Brasil real e Brasil artificia1 se
inaugura com a independência em 1822 e se dramatiza nos primórdios do Império
e nas guerras e revoltas provinciais, para arrefecer na fase de estabilidade política
e prosperidade econômica do Segundo Reinado, irá, contudo, retornar de modo
mais agudo com a República.
348
O advento da República sob o regime federalista e com a roupagem liberal-
democrática, acirrou as disputas entre as oligarquias e suas facções nos estados,
valendo-se do fetichismo do sufrágio para tornar o poder central refém dos seus
interesses e deixando as massas populares absolutamente desamparadas e
expectadoras do aventureirismo, do caudilhismo e do oportunismo das
maquinações políticas. Nesse período, a nação vai beirando o caos, a desordem;
agrava-se o regionalismo e cresce a ameaça do separatismo e da desagregação do
País.
Essa é a hora em que se mobilizam energias novas, inconformadas
intérpretes daquelas vozes da nacionalidade que ficaram emudecidas, ignoradas
pelo artificialismo do Brasil oficial e legal. Vozes que precisam ser reanimadas
porque elas contém o espírito da nação autêntica, emudecido e soterrado por mais
de um século de cosmopolitismo, de diletantismo e de indiferença diante de sua
realidade pulsante. É, então, que nasce o Integralismo, como o intérprete desse
Brasil real, na voz de uma geração nova que se propõe a despertar a Nação - a
nação autêntica, verdadeira, cabocla, sertaneja - para que se erga em sua unidade
sentimental contra tudo que é artificioso, cosmopolita, estranho ou hostil ao caráter
nacional. Nas grandes cidades, porém, regurgitam as multidões, crescem num
ritmo desordenado, onde todos os contrastes se exacerbam, afloram todas as
348
Idem: 155-159.
225
grandezas e misérias da civilização materialista. Mesmo a abolição da escravatura,
segundo Plínio, que a princípio se desdobrou do impulso libertário e lírico dos
nossos poetas e literatos românticos, tão logo se concretizou em fato objetivo, caiu
na perspectiva materialista e cosmopolita dos políticos republicanos que, nada
fizeram para incorporar e integrar essas novas populações no tecido da Nação.
Foram deixadas à margem em nome da mais perfeita liberdade.
Plínio constata que
impera nas cidades um cosmopolitismo dissolvente, embriagam-
nos os prazeres de uma civilização materialista, que nos inspira a
ambição pessoal e ensina, como o mais belo caminho do triunfo, o
caminho mais curto.
Esse mundo urbano, capitalista, cosmopolita, onde impera o egoísmo, a
corrupção, o sensualismo, o gosto das futilidades, o hedonismo, a fraqueza do
caráter, o oportunismo, o ceticismo é bem a antítese daquele outro - do mundo dos
sertões, dos grandes espaços virginais, das grandes matas, das caatingas, dos
pampas, das pequenas vilas e pequenas cidades, das populações caboclas e
sertanejas, do garimpeiro, do vaqueiro e do boiadeiro, do tropeiro e dos peões,
dessas imensas reservas humanas cheias de espírito de afirmação, de energias
heróicas, de fortalezas de caráter, prontas a qualquer sacrifício e temperadas pelo
sofrimento. E é deste último e não do primeiro que Plínio vê a possibilidade de
regeneração, de novos valores, de um novo sentido de vida e de atuação histórica
afirmativa para o povo brasileiro.
Dos sertões para as grandes cidades deve partir o sentido de
afirmação do espírito nacional genuíno, conduzido na grande
marcha dos camisas-verdes - os novos bandeirantes dos tempos
novos - erguendo alto as bandeiras do Sigma, que devem
conquistar as almas dos brasileiros no sentido inverso ao dos
antigos bandeirantes paulistas, que saíram das vilas de São Paulo
para desbravar os sertões.
349
A nova humanidade baseada na fraternidade, na cooperação e no amor
começa a dar os primeiros passos nessa longa marcha encetada pelo movimento
349
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 25-26;
SALGADO, P. Obras completas - Volume 19. Literatura e política: 80-96-101.
226
integralista na busca de rumos próprios para o Brasil e seu povo: novo sentido de
Pátria, nova concepção da política, novo ordenamento econômico e social; nova
cultura e novo sentido de vida. O que corresponde àquela revolução espiritual
empenhada em reconstruir as bases da nacionalidade sob uma nova ordem de
categoria; como fica claro nestas palavras de Plínio:
Erguemo-nos para proclamar um sentido nítido, claro e definitivo
de vida. Para arejar as teias de aranha do confusionismo e
arejarmos o mundo com a luz solar de afirmações categóricas,
irredutíveis, impositivas... rompendo corajosamente com os
deprimentes compromissos de uma mentalidade que se caracteriza
pelo conúbio aviltante da afirmação e da negação, do Sim e do
Não.
350
Ou, ainda, nesta outra convocação de Plínio para o que lhe parece ser o
sentido de missão do povo brasileiro no mundo: o de restauração renovada da
espiritualidade cristã nas relações humanas; daquele Homem integral que aqui
deve nascer:
Esquecemo-nos de que seremos indignos da Humanidade, se não
cumprirmos uma missão que nos cabe; e, esquecendo, aceitamos
todas as expressões da civilização estrangeira, copiando sem
cessar, contrariando tendências próprias para que pareçamos um
povo de refinados.
351
Ainda na fase preparatória que antecedeu o movimento integralista, num
ensaio intitulado A Raça Harmoniosa, do final dos anos 20, Plínio antecipa o sentido
do projeto do futuro tal como ele o concebe em seu desideratum da grande nação a
ser criada:
Saindo da inquietude da Idade Média, como uma resposta ao
espírito atormentado da humanidade, o Novo Mundo está
destinado a ser a grande pátria da raça harmoniosa, resultado de
íntimas correspondências de todas as raças.
E, na América, nenhum país, como o Brasil, se reserva a ser a
pátria universal. Nele se conjugam, como num resumo estupendo,
todas as realidades humanas e geográficas.
352
No imaginário pliniano, portanto, há que considerar que a postulação
Superhumanista do seu discurso, ao assumir uma interpretação racialista-
350
SALGADO, P. Obras completas - Volume 6. Aliança do sim e do não: 72.
351
SALGADO, P. Obras completas - Volume 5. A quarta humanidade: 130.
352
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a Nação: 55.
227
espiritualista (com sentido cósmico e não biológico de raça) da história nacional,
centrada no mito da Raça harmoniosa, impunha-se como uma posição de combate
contra todas as doutrinas e ideologias modernas que cultivavam a pretensa
superioridade racial dos povos nórdicos e anglo-saxãos sobre os povos latinos,
mediterrâneos, morenos e mestiços. Essa versão Superhumanista de Plínio que se
colocava dentro do campo racialista para afirmar a positividade do amálgama das
raças distintas (das três raças formadoras originais) na elaboração de uma futura
raça harmoniosa - condenando, ao mesmo tempo, qualquer postulação, dentro do
integralismo, que sustentasse atitudes de preconceito ou discriminação racial
chegou a se constituir em alvo de criticas de periódicos alemães nacionalsocialistas.
Algumas dessas publicações especializadas chegaram a acusar o Chefe nacional do
integralismo brasileiro de abordar a questão racial no Brasil, de um ponto-de-vista
lusófilo, equivocado e que desconsiderava os estudos científicos da biologia e da
genética sobre o assunto.
353
Embora tais críticas pudessem ser, no mínimo, parcialmente verdadeiras
contudo, para o sentido a que aparentemente se propunham, elas eram inócuas;
qual fosse o de denunciarem o caráter não-científico da postulação racialista de
Plínio. Também, pareciam sugerir veladamente que o movimento do Sigma se
alinhasse com o que se pretendia ser a posição científica correta do racialismo
nacionalsocialista. Todavia, o enfoque pliniano era completamente outro. Por um
lado, Plínio estava absolutamente convencido que as postulações racistas de
supremacia dos povos arianos, mais do que simples hipótese jamais comprovada
cientificamente pela biologia - era, isso sim, uma poderosa arma de combate
político para favorecer e justificar os interesses imperialistas das grandes potências
industrializadas, pelo domínio mundial e subordinação dos povos colonizados. Por
353
HUNSCHE, K. H. Der Brasilianische Integralismus. Trata-se de um estudo
acadêmico, feito na Alemanha, onde o autor avalia o movimento integralista
brasileiro. Sob uma perspectiva crítica, do ponto de vista, do nacionalsocialismo.
Consta esse trabalho como citação bibliográfica, tanto em TRINDADE, H.
Integralismo: 9; quanto em CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma
de regressividade do capitalismo hiper-tardio: 649. Este ultimo, faz comentário
circunstanciado sobre o referido estudo.
228
outro lado - e esse é crucial na compreensão do imaginário de Salgado - a sua
doutrina filosófico-política recusava visceralmente atribuir-se à Ciência a última
palavra no que concerne ao modo. de se organizar a vida social dos povos e o
sentido que deve ser dado às relações entre os homens em escala universal. Ao
contrário, para Plínio, o erro fatal do homem moderno residia exatamente na
distorção dos valores que têm amesquinhado o homem e sua dimensão espiritual e
sobrenatural, escravizando-o ao materialismo das hipóteses científicas. Plínio
marcara com firmeza sua posição no espectro superhumanista das doutrinas
políticas dos anos 30. Pois esse era exatamente o ponto essencial a diferenciá-lo
em sua concepção espiritualista e cristã do homem integral, recusando todas as
unilateralidades que - dentro do campo Superhumanista - culminava por colocá-lo
no pólo oposto à versão alemã do nacionalsocialismo.
A Construção da Brasilidade
Em 1934, já o movimento integralista em franca expansão, Plínio Salgado publicou
seu quarto romance, ou como ele mesmo classificou, um poema histórico em prosa,
A voz do Oeste.
O livro retoma o tema da etnogonia tupi, numa expressão romanceada.
Tema já trabalhado, em sua apresentação inicial na conferência A Anta e o
Curupira, pronunciada no salão nobre do jornal Correio Paulistano, quando da
homenagem prestada a Salgado pelo sucesso da primeira edição de O estrangeiro.
Comentando o tema da conferência, ele vai dizer que:
a última página encerra um pensamento político, o pensamento
central de toda a minha obra posterior.
354
De fato, na última página, encontra-se o subtítulo A volta do Curupira. São
vinte e poucas linhas que encerram a idéia pliniana básica:
O Curupira há de descer um dia do sertão, lá onde está a voz que
chama... montando a anta, seu cavalo e totem da raça tupi, para a
invasão das cidades e a grande revolução do pensamento nacional,
de que somos pobres batedores, destinados ao sacrifício. Só então
354
SALGADO, Plínio. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 10.
229
será proclamada a nossa independência mental... e teremos uma
arte humana e universal, possuindo uma política brasileira, com
raízes profundas na terra americana e na alma da pátria.
355
Que relação há entre essa conferência e, em particular, o subtema A volta
do Curupira e o livro A voz do Oeste, publicado quase sete anos depois? É que a
temática que Plínio considera como central em sua obra é a mesma a reaparecer,
agora em A voz do Oeste, na forma de ficção, numa narrativa romanceada
histórico-poemática, em estilo de prosa.
Significativo é que, ao contrário dos três romances anteriores cujas tramas
ficcionais se passam todas no tempo presente da vida paulista, dos anos 20 e início
dos anos 30, em A voz do Oeste, a história narrada remonta aos primórdios da
colonização; início do século XVII, na Vila de São Paulo de Piratininga. A trama
transcorre, quando do domínio filipino, pela morte trágica de El Rei Dom Sebastião
na batalha de Alcácer-Kibir, no norte da África. O desaparecimento do jovem
monarca português sem deixar herdeiros vai engendrar o mito do Encoberto ou do
Desejado, alimentando o imaginário lusitano, o qual será também transplantado
culturalmente para o Brasil-colônia. Esse mito do reaparecimento de Dom
Sebastião para um renascer de um novo império lusitano nas amplas terras
atlânticas do Novo Mundo, traz o tema do Encoberto - do messianismo português -
para a literatura, reaparecendo, aqui, em A voz do Oeste, ao lado de outros tantos
mitos.
Assim, nessa obra ficcional, de mensagem esperançosa, temos, ao lado do
mito Sebastianista forjado naqueles dias desditosos da Dominação Espanhola,
também, a saga do bandeirismo paulista demandando aos sertões do Centro Oeste
na busca das fabulosas minas de prata de Potosi (Bolívia), o encontro com as
nações indígenas tupis que haviam avançado no sentido oposto, descendo desde as
encostas dos Andes em direção ao litoral atlântico. Desse encontro nascem as lutas
sangrentas entre paulistas bandeirantes e as tribos guerreiras tupis, bem como o
355
Idem: 52-53.
230
matrimônio destas duas raças pela fusão dos dois sangues guerreiros: o do
europeu e o do tupi e destes com a terra.
Mais do que um romance ficcional, a narrativa é entremeada de lendas
indígenas, símbolos, entidades e mitos extraídos da mitologia tupi. O objetivo claro
de Plínio é, exatamente, resgatar a mitologia do selvagem americano, da sua
cultura bárbara, porque está convencido de que uma fatia considerável da alma
brasileira foi penetrada por sentimentos misteriosos da Terra, herdados do sangue
indígena tupi.
Este é um romance que se pode entender como de síntese da imaginação
política e da cosmovisão pliniana expressa em termos de ficção poética. O mito
sebastianista se funde com a mitologia tupi e com o épico bandeirante da conquista
do Oeste e do sonho do Eldorado, cuja resultante é outro mito: o sonho de um
novo império luso-tupi americano.
Desse modo, se os três romances anteriores eram ficções que
diagnosticavam e prognosticavam as transformações e os males da vida brasileira a
partir de situações concretas que o País vivia, nos primeiros decênios da República;
marcados pela incerteza, pela falta de rumos claros e definidos, em A voz do Oeste,
a ficção já sugere simbolicamente uma terapia. Uma terapia que busca inspiração
nas energias de um sonho ancestral mítico, que finca suas raízes na própria cultura
luso-brasileira, que remonta aos primórdios da colonização portuguesa da América.
Não se pode ignorar nem esquecer o fato de que Plínio Salgado partia da
convicção de ser o período colonial, dos três primeiros séculos, aquele em que se
forjaram as raízes mais autênticas, viscerais que iriam definir a alma brasileira, ou
o que o modernismo dos anos 20 chamou de brasilidade. Esse período é, pois, de
singular importância no imaginário de Plínio, porque fez nascer essa brasilidade
como um produto autêntico, original, fruto de três comunhões: a comunhão dos
sangues, a comunhão religiosa e a comunhão com a terra.
231
Dessa convicção nasce o romance, e estas palavras esclarecedoras de Plínio
Salgado:
Nem por ser uma fantasia, deixa, porém este livro de expor em
toda sua força nacional a realidade subjetiva da alma brasileira nos
séculos do desbravamento e da conquista da terra. Sob este
aspecto, os pesquisadores da psicologia social e do processo de
formação da personalidade nacional no vasto império Luso-tupi,
poderão encontrar algo de útil à compreensão da índole do nosso
povo.
356
Aos que pretenderem objetar quanto a precisão dos dados históricos
exigindo verificação minuciosa que é objeto e dever de historiadores e
experimentalistas, Plínio esclarece:
Mas eu lhes direi que, assim como o espírito da Grécia não pode
ser compreendido apenas diante das páginas de Heródoto ou de
Tucídides, mas também, e principalmente, nas estrofes de
Homero, nas odes de Píndaro, nos versos de Anacreonte ou de
Safo, no teatro de Ésquilo, Sófocles om Eurípedes (tudo obra de
pura imaginação)... do mesmo modo o espírito do Brasil não se
apreende tão-somente nas narrativas dos freires Madre de Deus
ou Vicente do Salvador, nas crônicas de Simão de Vasconcelos, na
exposição de Southey ou de Varnhagen, ou mais modernamente
de Rocha Pombo, Capistrano ou Taunay; cumpre complementá-las
com as ficções de um Gonçalves Dias ou de um Alencar, pois as
ficções trazem invariavelmente um conteúdo de realidades
subjetivas indispensáveis a todo aquele que queira animar de vida
a letra morta da história.
357
Plínio refere-se à receptividade que o livro A voz do Oeste vem recebendo
por parte dos jovens, das novas gerações, demonstrando uma consonância da
psicologia atual da juventude brasileira com o espírito que animou aqueles
desbravadores da Grande Terra; em suma - nossa capacidade de sonhar como
imperativo das grandes realizações.
As próximas palavras de Plínio são ainda mais esclarecedoras não apenas
quanto ao significado da obra em si mesma, porém, numa dimensão mais ampla,
esclarecendo sobre a composição da sua imaginação política, sua natureza
essencial. Assim ele revela o sentido daquela ficção:
356
SALGADO, P. Obras completas - Volume 14. A voz do Oeste: 128.
357
Idem: 128-129.
232
Só a ficção, só a fantasia, só a imaginação, só o mito são capazes
de apreender essas realidades profundas. Foi por isso que escrevi
numa página em branco esta legenda: SÓ A ARTE TEM O DIREITO
DE CRIAR A HISTÓRIA. Não quis eu com este dístico dizer que a
História deve ser inventada, pois isso seria a propaganda da
improbidade. O que eu quis dizer é precisamente o contrário, isto
é, que o historiador que faz história, não pode inventar, não pode
adulterar, não pode dar asas à imaginação, numa palavra - não
pode criar a história, pois isso seria desonestidade; mas o artista
pode criar a História, desde que engendre entrechos poemáticos
fielmente ligados à lógica dos acontecimentos objetivos e
exprimindo realidades subjetivas.
358
A fusão da política com arte, ou a produção do político como obra de arte
consiste na construção, formação e produção do povo brasileiro na, pela e como
obra de arte. Só que, agora, não se trata mais de fazê-lo pelo caminho da
revolução estética modernista pura, mas por meio da revolução política, isto é, da
ação integralista; que é, também, de certo modo, não apenas a continuação da
revolução estética anterior, mas sua amplitude e aprofundamento. A meta a atingir
é a construção da brasilidade.
Para construir a brasilidade sonhada (ou elaborada literariamente) é preciso
que Plínio Salgado se aposse dos materiais necessários que vão ser utilizados e
reelaborados nessa confecção. Por isso, Salgado recorre ao tupi, e vai estudar o
idioma indígena, em 1926, com a Alarico Silveira e Raul Bopp. Estuda o indianismo,
lendas e mitos da teogonia tupi, através de Couto de Magalhães e de autores do
romantismo indianista como Alencar e Gonçalves Dias. Mas a posse de todo esse
material, o conhecimento minucioso da língua tupi ou da sua mitologia, não
contribuem, por si só, para a elaboração de uma idéia política, que é o que visa
Salgado. Em outras palavras, Plínio utilizou-se desse estudo da mitologia e da
língua dos povos tupis, para, de posse desse material, selecionar e direcionar
elementos que vão constituir componentes fundamentais do que ele chama de
Alma brasileira, ou de brasilidade.
358
Idem: 129-130.
233
Essa noção de brasilidade ao ser trabalhada para se constituir em sujeito
histórico-político; tendo saído das páginas artístico-literárias, assume a
configuração de sonho, o mito.
Mais uma vez se vê em A Anta e o Curupira nas palavras transcritas
proferidas por Plínio a idéia da articulação entre a arte e a política, união íntima da
qual brotará a utopia pliniana da Grande Política que construirá a Grande Nação. A
obra de arte que nos anos modernistas deveria anunciar uma arte e uma literatura
verdadeiramente nacionais, novo estilo, nova construção estética, novos temas, e
então pleitear o reconhecimento universal, também agora, nos anos da Revolução
Nacional em marcha, o espírito nacional só pode se afirmar politicamente se for
reconhecido, e esse reconhecimento implica na identificação da política enquanto
objeto estético; ou melhor, na identidade da política também enquanto objeto
estético.
A construção da brasilidade que leva Plínio a pesquisar as fontes mitológicas
dos tupi, não significa um retorno ou uma restauração dessa mitologia indígena,
mas é um recurso indispensável para o objetivo de Plínio que é a utilização desse
material a ser reelaborado em um mito político: que é a construção da brasilidade.
A confecção desse mito é complexa, não é apenas o índio, o tupi e sua mitologia e
sua língua, os únicos componentes, nele entram o português, o cristianismo, o
bandeirismo, a miscigenação, o sangue é a terra. Esses elementos formam o núcleo
desse mito. Assim, o mito não é, portanto, o mitológico. De um ponto de vista de
uma interpretação superhumanista, o mito propriamente dito, mais do que uma
coisa, um objeto com uma representação, é uma potência. Aliás, é desse mesmo
modo que George Sorel, apresenta a idéia do mito revolucionário, em Reflexões
sobre a violência, que Plínio leu e cita com alguma freqüência.
O mito é, assim, a potência de reunião das forças e das direções
fundamentais de um indivíduo ou de um povo, a potência de uma identidade
subterrânea, invisível, não empírica, ou seja, como Alma. Contra todas as
234
identidades dissolvidas na abstração, quer sejam os sujeitos pensantes da filosofia
de Descartes, o sujeito coletivo de Rousseau, ou o proletariado de Marx, ou a
humanidade de Comte, o mito designa a identidade como diferença própria e a sua
firmação.
359
Mas também e antes de tudo, o mito designa essa identidade como a
identidade de algo que não é dado, nem como um fato, nem como um discurso,
mas que é sonhado. A potência mítica é propriamente a do sonho, a da projeção de
uma imagem com a qual nos identificamos.
360
Nesse estudo do que consideramos ser a estrutura típica do mito com que
Plínio Salgado elabora a sua idéia-sonho da brasilidade - que é o núcleo central do
seu imaginário político, isto é, do seu integralismo - julgamos pertinente usar aqui,
como algum subsídio analítico, o trabalho recente de filosofia política de Philippe
Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, O mito nazista,
361
em que esses autores fazem
uma transcrição de trechos da obra famosa do filósofo nazista Alfred Rosenberg, O
mito do século XX. Este livro, publicado na Alemanha, em 1930, sob os cuidados e
restrições do próprio autor, para que enquanto ele vivesse jamais fosse autorizada
a sua tradução para outro idioma que não o alemão; foi um livro que já nasceu
polêmico. Claro que esse livro de Rosenberg, além do Mein Kampf, de Hitler
(1927), não foram os únicos de formulação teórica e doutrinária do
nacionalsocialismo, existiram outros, de outros autores, todavia o livro de
Rosenberg talvez tenha despertado maiores controvérsias, mesmo entre os
nazistas (especialmente por seu ataque virulento ao cristianismo e, em particular, à
Igreja Romana). Contudo, sua leitura foi a mais difundida depois de Mein Kampf. O
recurso ao livro de Rosenberg, é justificado por dois motivos: primeiro, por que se
trata de um livro canônico sobre a fundamentação filosófica do nacionalsocialismo,
359
LACOUE-LABARTHE & NANCY. O mito nazista: 49.
360
Idem: 50. Também, LOCCHI, G. La esensia del fascismo.
361
Nas transcrições que fizermos desse livro, as palavras que vierem grifadas
serão mantidas tal qual, só faremos menção quando os grifos forem nossos.
235
com uma leitura interpretativa da idéia de mito, enquanto uma potência, ou uma
idéia-força (usando a expressão de Plínio) que instaura uma criação política nova.
Também porque, essa concepção de Rosenberg veio fornecer a pista para os
estudos teóricos de Giorgio Locchi sobre a essência do fascismo e sua teoria do
superhumanismo; que está conferindo suporte teórico à nossa investigação.
Ainda, porque a leitura e significação da noção de mito tal como lhe confere
Rosenberg com suas propriedades e particularidades, está tão próxima do modo
próprio como Plínio Salgado, segundo nos é dado perceber, elabora a sua noção da
brasilidade, que a utilização de elementos da lógica daquela interpretação pode ser
útil em ajudar na compreensão desta última. Desde já, descartamos a hipótese de
que Salgado tivesse tido qualquer acesso direto ao livro de Rosenberg, no período
em que elaborou e formulou sua doutrina da brasilidade, o que, de resto, nada
significa, a não ser o fato de que o campo de irradiação cultural superhumanista, no
início do século XX, já ultrapassara os limites da sua origem européia e chegara a
outros terras, como esta da Pindorama.
362
Uma questão que subjaz nesta problemática e que reclama ser predicada é:
porque Plínio recorreria ao mito, neste caso particular de sua elaboração da
brasilidade?
Recorrendo ao texto de Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy que estamos
tomando como referência, antes de respondermos à pergunta acima, ficamos
sabendo que:
É de Platão que data a oposição cortante, crítica, entre os dois usos da
palavra ou duas formas (ou modos) do discurso: o mythos e o logos.
363
362
Suponho, além do mais, que a perspectiva superhumanista - tal como Locchi
a define, isto é, principio que estrutura uma nova tendência epocal - não é
fenômeno exclusivamente Alemão (apesar de Nietzsche e Wagner) estando
sujeito a outras variantes culturais; tanto européias, quanto extra- européias;
ainda que preserve seus vínculos originais europeus em termos de teoria. Isto
ficou demonstrado na Parte I deste trabalho.
363
LACOUE-LABARTHE & NANCY. O mito nazista: 32.
236
Essa decisão platônica com relação aos mitos apóia-se numa análise
teológico-moral da mitologia: os mitos são ficções, e essas ficções contam mentiras
sacrílegas sobre o divino. Por conseqüência, Platão propõe que os mitos sejam
expurgados, corrigidos, banindo-se deles todas as histórias de parricídios,
matricídios, violações, incestos, os assassinatos de todos os gêneros, o ódio, as
trapaças.
Não é uma pura e simples exclusão, mas um trabalho de correção,
uma tarefa ortopédica à qual Platão vai se empenhar de modo
tenaz.
Tudo isso, por uma simples razão essencial: os mitos, devido ao papel que
eles desempenham na educação tradicional, devido ao seu caráter de referente
geral na prática habitual dos gregos, levam a más atitudes ou a maus
comportamentos éticos e políticos. Os mitos são nefastos socialmente; assim se
considerava.
Ora, essa condenação do papel dos mitos supõe que se reconheça neles de
fato uma função específica de exemplaridade. Esclarecendo: o mito é uma ficção no
sentido forte, no sentido ativo de fabricação, ou, como Platão afirma, da plástica:
ele é portanto um ficcionamento [fictionnement] cujo papel é o de propor, ou
mesmo de impor, os modelos ou os tipos a serem imitados, dos quais um indivíduo
- ou uma cidade, ou um povo inteiro - pode ele mesmo se apropriar e com eles se
identificar.
364
Dizendo de outro modo, a questão que o mito põe é a do mimetismo, na
medida em que apenas o
mimetismo é capaz de assegurar uma identidade (...) A ortopedia
platônica consiste então em endireitar o mimetismo em proveito
de uma conduta racional, ou seja, lógica (conforme ao logos).
Compreende-se por que, no mesmo movimento, Platão deve também
purificar a arte, ou seja, banir e ritualmente expulsar da sua cidade a arte, na
medida em que ela comporta, no seu modo de produção ou de enunciação, a
364
Idem: 33.
237
mimesis: o que vale essencialmente, mas não exclusivamente, para o teatro e a
tragédia. Desse modo indica-se, de resto, que o problema do mito é sempre
indissociável do da arte, não tanto porque o mito seria uma criação ou uma obra de
arte coletiva, mas antes porque o mito, como a obra de arte que o explora, é um
instrumento de identificação. Ele é mesmo o instrumento mimético por
excelência.
365
Assim, coube em particular à tradição alemã (na filologia clássica, na
estética, na etnologia histórica, etc) reservar uma acolhida especial para essa
análise.
366
Por que os alemães, afora qualquer outro povo europeu empenharam-se
nesse mister? Que teriam eles acrescentado de decisivo nessa análise? Não
podemos entrar aqui nos pormenores que Lacoue-Labarthe e Nancy nos oferecem
para responder a essas duas indagações essenciais, todavia tentaremos
encaminhar o mais sucintamente essa questão, porque ela é primordial, no
esclarecimento da problemática que estamos aqui tratando.
O que de fato chama a atenção é a coincidência das análises de Lacoue-
Labarthe / Nancy e a de Giorgio Locchi, que abordando objetos diferentes, embora
similares, parecem seguir um mesmo roteiro, ou melhor, pisam sobre um mesmo
terreno que parece totalmente familiar a ambos. Os primeiros, com a vantagem de
serem mais especulativos e analíticos, e o segundo, nos oferecendo uma
abordagem mais sintética.
Pergunta Lacoue-Labarthe: por que todo um estrato do pensamento alemão,
ao menos desde o romantismo alemão, ligou-se de modo privilegiado a esse gênero
de problemática - a ponto de postulá-la, como é o caso em Nietzsche, como a
problemática central? E por que ao longo desse trabalho esse pensamento se
dedicou com afinco - ainda segundo uma expressão de Nietzsche - a reverter o
365
Idem: 34.
366
Essa constatação já a tivemos no estudo de LOCCHI, G. La esencia del
fascismo, agora, melhor explicitada neste texto de Lacoue-Labarthe que
estamos examinando.
238
platonismo? Por que o reitor Krieck, ideólogo mais que oficial do regime nazista,
propôs-se a lutar contra o recalque do mito pelo logos (...) desde Parmênides até
os nossos dias.? E por que Heidegger, que no entanto logo cessou de estar a
serviço do nacionalsocialismo (e a quem o mesmo Krieck hostilizava), pôde dizer
que
a razão tão venerada há séculos é o inimigo mais furioso do
pensamento? Ou, ainda, que a História na sua origem não vem da
ciência, mas de uma mitologia?
367
Lacoue-Labarthe reconhece que se trata de uma análise difícil e complexa
que deveria ficar a cargo de uma camada da história bem singular e específica,
talvez de uma história dos ficcionamentos. Indo direto ao assunto, os dados
disponíveis mostram que:
desde o esfacelamento da cristandade um espectro assombrou a
Europa, o espectro da imitação.
O que significa dizer, antes de mais nada: na imitação dos Antigos. É sabido
o papel que o modelo antigo (Esparta, Atenas ou Roma) desempenhou na fundação
dos Estados-Nação modernos e na construção da sua cultura. Desde o classicismo
da era de Luis XIV até à Revolução de 1789 ou ao neoclassicismo do Império,
desdobra-se todo um trabalho de estruturação política, no qual se realiza ao
mesmo tempo uma identificação nacional e uma organização técnica do governo,
da administração, de hierarquização, de dominação etc. É nesse sentido que se
deveria fazer entrar a imitação histórica, como de resto Marx o imaginou, entre os
conceitos políticos.
368
Na história dessa Europa, atormentada pela imitação, continua Lacoue-
Labarthe, destaca-se o caso especial da Alemanha.
O drama da Alemanha não é simplesmente o de ser retalhada ao
ponto de, como é bem conhecido, mal ter uma língua alemã ou
qualquer obra de arte representativa até 1750 ter nascido nessa
língua (já que mesmo a Bíblia de Lutero dificilmente pode ser
considerada uma tal obra). A questão colocada aqui objetivamente
367
LACOUE-LABARTHE & NANCY. O mito nazista: 35.
368
Idem: 36.
239
era: Se os alemães, na realidade, nunca tiveram um Estado, mas
apenas o mito de um império sagrado
369
e esse império queda
destruído, em 1806, por Napoleão, em Iena, que restará a esse
povo-nação, na hora de se lançarem à luta agônica por afirmar sua
identidade cultural e política, senão recorrerem a uma imitação
inautêntica; ou melhor, a uma imitação da imitação?
Essa questão se torna familiar em termos de cultura política quando nos
deparamos com as exigências do nacionalismo no pensamento político brasileiro da
Primeira República e a expressão radical que assumiu nos anos 30, com o
integralismo. Fechado este parêntesis, voltemos à questão alemã.
Desse modo, como Labarthe está nos mostrando, o drama da Alemanha é
também o de sofrer dessa imitação de segundo grau e de se ver obrigada a imitar
essa imitação da Antiguidade que a França e a Itália não cessam de exportar
durante ao menos dois séculos. A Alemanha, em outros termos, não está apenas
privada de identidade, mas também escapa-lhe a propriedade do seu próprio meio
de imitação. Desse ponto de vista, não é nada surpreendente que a querela dos
Antigos e dos Modernos tenha-se prolongado até tão tarde na Alemanha, ou seja,
ao menos até os primeiros anos do século XIX.
E nós poderíamos perfeitamente descrever a emergência do
nacionalismo alemão como a longa história da apropriação dos
meios de identificação (De resto, talvez seja isso que defina em
parte o conteúdo das revoluções conservadoras, marcadas, não
podemos nos esquecer, pelo ódio contra o cosmopolitismo).
370
Em tal condição, o que, portanto, teria faltado à Alemanha, segunda Lacoue-
Labarthe, foi poder ser o sujeito do seu próprio devir (e a metafísica moderna,
sendo metafísica do sujeito, não por acaso realizou-se totalmente aí).
Conseqüentemente, o que a Alemanha quis construir foi um tal sujeito, o seu
próprio sujeito. Daí o seu voluntarismo intelectual e estético e o que Benjamim, um
369
Dürrenmatt, descreve: Os Alemães nunca tiveram um Estado, mas apenas o
mito de um império sagrado. O patriotismo deles sempre foi romântico e, de
qualquer modo, antisemita e também muito piedoso e respeitoso da autoridade.
Citado por LACOUE-LABARTHE & NANCY. O mito nazista: 36.
370
Em nosso caso específico, sabemos o quanto o tema do cosmopolitismo é
caro no discurso pliniano, antípoda ao tema da brasilidade. Além disto, a
questão do mimetismo, da mimesis adquire aqui uma dimensão e um significado
completamente diferente daquele que alguns analistas têm utilizado com relação
ao integralismo.
240
pouco antes de 1930, notou como sendo uma vontade de arte nesse eco da era
barroca que o expressionismo representava aos seus olhos.
O arremate de Lacoue-Labarthe é surpreendentemente próximo da
descoberta de Locchi com respeito ao superhumanismo, quando conclui que:
Se a obsessão ou o medo dos Alemães foi não poderem se tornar
artistas, não puderem ascender à grande arte, se na arte ou na
prática deles freqüentemente encontra-se uma tal aplicação e
tantos motivos teóricos, é porque o que estava em jogo não era
nada menos que a identidade deles (ou a vertigem de uma
ausência de identidade).
371
Que saída buscaram os Alemães?
Lacoue-Labarthe nos encaminha para uma saída que apesar de insólita não
deixa de ser sugestiva e muito contemporânea, recorrendo à leitura psicanalítica da
chamada lógica do double bind (o duplo vínculo contraditório que segundo Bateson,
que segue a Freud, nesse ponto, explicaria a psicose).
Valendo-se dessa categoria, Labarthe assinala que essa lógica do double
bind dominou impiedosamente desse ponto de vista a história alemã, como a
doença da esquizofrenia, sob a qual tantos dos seus artistas teriam sucumbido. A
alegação parece um tanto exagerada se restrita à Alemanha, mas deixa de sê-lo se
o olhar se estender para a atmosfera mental que se irradiou nos grandes centros da
cultura européia, nos fins do século XIX. Deixando de lado esse aspecto, vale
acompanhar o argumento de Labarthe.
Porque os Alemães se valeram da lógica do double bind? Eles o fizeram,
porque a apropriação do meio de identificação, segundo Labarthe, simultaneamente
deve e não deve passar pela imitação dos Antigos, ou seja, dos gregos.
Ela deve, porque não existe um outro modelo senão o dos Gregos
(uma vez esfacelada a transcendência religiosa com as estruturas
371
Locchi, mostra com clarividência como essa demanda se refletia no âmbito
da Revolução Conservadora alemã, nos anos 20 e 30. A controvérsia entre as
diversas facções nacionalistas, aristocratas e monarquistas liderados por Ernst
Jünger e Spengler refratários à facção populista liderada por Hitler, porque se
recusavam a aceitar a inclusão das massas no processo de afirmação da
identidade nacional, de um novo Reich, temerosos da plebeização da Revolução
nacional.
241
políticas correspondentes: temos de recordar que foi o
pensamento alemão que proclamou a morte de Deus e que o
romantismo médio fundou-se sobre a nostalgia da cristandade
medieval). Ela não deve, porque esse modelo grego já serviu a
outros. Como responder a esse imperativo contraditório?
372
Abreviando, muito sinteticamente, Labarthe enxerga no pensamento alemão
duas saídas: uma mais teórica, precisamente especulativa, que é dada pela
dialética, pela lógica da permanência e da supressão, da elevação a uma identidade
superior, e da resolução em geral da contradição. Hegel seria o seu representante
mais visível, porém, há outras ramificações no contexto do idealismo especulativo,
uma das quais irá desembocar particularmente em Marx. Labarthe, ainda no uso do
seu dispositivo psicanalítico considera (contrariamente, ao que pensava Nietzsche)
que essa saída dialética representa a esperança com relação a uma ‘saúde’ (uma
saída saudável, racional controlável). Todavia nem sempre os fatos e circunstâncias
históricas fizeram jus a essa esperança sugerida por Labarthe. De resto, ele parece
ter clareza disto, quando justifica: mas nós não podemos nos demorar aqui nessa
primeira via.
De outro lado, parece ter existido a saída estética ou a esperança em uma
saída estética; e, como propõe Lacoue-Labarthe,
queremos nos concentrar nela, porque não é a troco de nada que
ela está na doença nacionalsocialista.
373
Qual é o seu princípio?
É o do recurso a outros gregos que não os que haviam sido
utilizados até então (ou seja, no neoclassicismo francês) (...) Mas
restava saber o que poderia ser exatamente imitado nos Antigos
de modo a diferenciar radicalmente os Alemães.
Labarthe, recorda que os Alemães fizeram uma decisiva descoberta, por
volta dos fins do século XVIII, quando no alvorecer do idealismo especulativo e da
filologia romântica, nos trabalhos de Schlegel, Hölderlin, Hegel e Schelling,
concluindo que existiram, em verdade, duas Grécias:
372
LACOUE-LABARTHE & NANCY. O mito nazista: 38.
373
Idem: 39.
242
Uma Grécia da medida e da clareza, da teoria e da arte (no
sentido próprio desses termos), da bela forma, do rigor viril e
heróico, da lei, da cidade, do dia; e uma Grécia subterrânea,
noturna, sombria (ou muito ofuscante) que é a Grécia arcaica e
selvagem dos rituais unanimistas, dos sacrifícios sangrentos e da
ebriedade coletiva, do culto aos mortos e à Mãe-Terra - em suma,
uma Grécia mística sobre a qual a primeira se edificou de modo
difícil (recalcando-a), mas que sempre permaneceu surdamente
presente até o esfacelamento final, em particular na tragédia e na
religião dos mistérios.
374
Segundo Labarthe, é a partir do desdobramento dessa dupla Grécia que se
pode identificar no pensamento alemão traços bem significativos, encontráveis, por
exemplo, na análise de Hölderlin sobre Sófocles ou do percurso da Fenomenologia
do Espírito de Hegel até Heidegger, passando por Bachofen, pela Psique de Rohde,
ou culminando na oposição entre o apolíneo e o dionisíaco que estrutura o
Nascimento da Tragédia, de Nietzsche.
Labarthe nos previne que as descrições dos autores sobre essa dupla Grécia
divergem entre si, com avaliações diferentes na maioria das vezes, contudo ele
julga ser possível, mesmo assim, chegar a uma média e a partir daí estabelecer-se
um certo número de conseqüências decisivas.
375
Ele destaca quatro:
1 – Essa descoberta permite, evidentemente, promover um modelo histórico
novo, inédito e por de lado a Grécia neoclássica (a Grécia francesa e, antes dela, a
Grécia Romana e a Renascentista). Esse deslocamento autoriza, assim, uma
possível identificação da Alemanha com a Grécia. Essa identificação dá seu passo
inicial por meio de uma identificação da língua alemã com a língua grega. Esse fato
por si só mostra ser errôneo pensar que a identificação se fez apenas com aquela
outra Grécia mística e esquecida. O que quer dizer que, na verdade, a identificação
com a Grécia foi algo mais complexo e nunca teve a forma privilegiada do culto
dionisíaco. (nem em Nietzsche)
Significa ainda mais que essa identificação, especificamente lingüística na
origem, conjugou-se precisamente com a palavra de ordem de uma nova mitologia
374
Idem: 40.
375
Idem: 41.
243
(como em Hölderlin, Hegel e Schelling em 1795), ou com aquela da construção
necessária do mito do porvir (Nietzsche, via Wagner, nos anos 80). Assinale-se
que, a essência da língua grega original, do mythos, é ser, tal como a língua alemã,
capaz de simbolização, e, desse modo, capaz de produzir ou de formar mitos
condutores (como Locchi já o havia demonstrado) para um povo ele mesmo
definido lingüisticamente.
A identificação deve, portanto passar pela construção de um mito
e não pelo simples retorno aos mitos antigos. De Schelling a
Nietzsche não faltam exemplo de tentativas desse gênero.
376
Aqui a análise de Lacoue-Labarthe parece complementar o estudo de Giorgio
Locchi sobre o modo de constituição do mito moderno. Labarthe acrescenta,
esclarecendo que
a construção do mito será forçosamente teórica e filosófica, ou, se
preferimos, ela será consciente mesmo se ela se fizer dentro do
elemento da poesia.
Em seguida, reproduz-se análise idêntica à de Locchi, quando Labarthe
constata que, essa construção
(...) deverá portanto assumir o modo da alegoria, como no Ring de
Wagner ou no Zaratustra de Nietzsche.
Conseqüentemente
Assim será superada dialeticamente a oposição entre a riqueza da
produção mítica primitiva (que é inconsciente) e a universalidade
abstrata do pensamento racional, do Logos, das Luzes etc.
Segundo um esquema estabelecido por Schiller no seu ensaio
sobre Poesia ingênua e poesia sentimental, a construção do mito
moderno (ou, o que é equivalente, da obra de arte moderna)
sempre será pensada como o resultado de um processo dialético. E
é exatamente por isso que o que nós denominamos a saída
estética é inseparável da saída teórica ou filosófica.
377
2) De igual modo, a mesma lógica (dialética) vai estar trabalhando no que
Labarthe chama de mecanismo de identificação. Ele destaca que nessa relação
devemos distinguir de modo muito rigoroso entre a utilização que é feita de uma ou
376
Idem: 42.
377
Idem: 43.
244
de outra Grécia. Assim, a Grécia mística forneceria não um modelo, mas antes um
recurso, ou seja,
A idéia de uma energia que assegura e faz funcionar a
identificação. Ela está encarregada, em suma, de fornecer a força
identificadora. Nesse sentido, aquilo que na teoria grega clássica
da imitação mítica, da mimesis, como por exemplo, em Platão,
estava apenas em germe, a tradição alemã acrescenta e
desenvolve uma teoria da fusão ou participação mística (da
methexis, como dirá Lévy-Brühl, em outro contexto), da qual a
experiência dionisíaca, tal como Nietzsche a descreveu, no fundo
fornece o melhor exemplo.
378
Mas, esclarece Labarthe,
isso não significa que o modelo a imitar provenha imediatamente
ou seja pensado como devendo provir imediatamente da
indiferenciação mística.
Ele nos mostra que, pelo contrário, ao tomar-se por referência o argumento
nietzcheano, tem-se que na efusão dionisíaca e na saída dessa efusão, o que
aparece é uma imagem simbólica, semelhante como, diz Nietzsche, a uma imagem
de sonho. Trata-se da imagem cênica (a personagem ou sua figuração, a Gestalt)
da tragédia grega. Ela emerge do espírito da música, sendo a música o elemento
próprio da efusão (como já o dissera, Diderot), porém, engendra-se dialeticamente
na luta amorosa desse princípio dionisíaco com a resistência figural apolínea. Desse
modo, o modelo ou o tipo será essa formação de compromisso entre o dionisíaco e
o apolíneo.
Assim explica-se, de resto, o heroísmo trágico dos gregos, devido
em grande parte, segundo Nietzsche (e esse tema não será
esquecido), ao povoamento nórdico dos Dórios, os únicos que se
mostraram capazes de se recuperar diante da dissolução
perniciosa que o misticismo oriental provocava.
379
3) Todo esse percurso desenvolvido pela tradição alemã na problemática da
arte explica o privilégio concedido ao teatro e ao drama musical, quer dizer, à
repetição da tragédia e do festival trágico - em que os temas recorrem agora à
mitologia germânica, extraindo dessa o veículo da universalização; como antes
378
Ibidem.
379
Idem: 44.
245
foram os gregos - tornadas as melhores entre as formas da arte no que tange ao
desencadear do processo de identificação.
Eis por que Wagner, muito mais que Goethe, imaginar-se-á como
o Dante, o Shakespeare ou o Cervantes da Alemanha.
Também a formação de Bayreuth segue um objetivo político como se sabe:
o da unificação do povo alemão por meio da celebração e
cerimonial teatral (unificação comparável àquela da cidade no
ritual trágico). E é nesse sentido que devemos compreender a
exigência de uma obra de arte total. A totalização não é somente
estética: ela acena em direção ao político.
380
4) Assim, Labarthe conclui que se pode melhor compreender o
nacionalsocialismo para além de uma simples estetização da política (como disse
Walter Benjamim), mas como uma fusão da política com a arte, a produção do
político como obra de arte.
381
Já em Hegel, o mundo grego era o da cidade como
obra de arte. Mas o que em geral permanece dentro do primeiro dos dois tipos de
referência à Grécia e, de resto, não abre para nenhuma proposição de imitação,
passou desde então para o segundo tipo de referência e tornou-se uma incitação à
produção.
O mito nazista (...) é a construção, a formação e a produção do
povo alemão na, pela e como obra de arte. O que o distingue
talvez radicalmente, tanto da referência hegeliana que acabamos
de recordar, da simples citação estética própria à Revolução
francesa e ao Império (mas esse fenômeno de massa apenas
começava a despontar), ou mesmo ainda do fascismo italiano.
382
Dessas quatro conseqüências aqui expostas só as duas primeiros são
realmente importantes para a nossa pesquisa, no que toca à elaboração do
processo de identificação entre arte e política, com base numa simbolização
extraída do mito. As outras duas últimas conseqüências apontadas por Lacoue-
380
Idem: 45.
381
Esta expressão usada aqui pelo autor é explicitada por Alberto Torres,
quando ele diz: As nações modernas não se formam espontaneamente: são
obras de arte políticas. TORRES, A. A organização Nacional: 174.
382
Idem: 46. Observa-se aqui, que Lacoue-Labarthe ao descartar o fascismo
italiano desse processo de elaboração meta-político de construção do Estado-
Nação, enquanto sujeito, retrocede em relação a Locchi e à teoria do
superhumanismo. Essa freada brusca e o passo atrás que ele imprime, se
justifica apenas por tentar fixar seu objeto no mito racista do nazismo,
escapando, assim, de ter de se defrontar com o ontológico do fascismo.
246
Labarthe, se mostram mais específicas e restringem o campo de visualização da
identificação pela imitação ao caso alemão do nacionalsocialismo - que afinal é
objeto da tese sustentada no livro: - a de que a ideologia nazista tem por núcleo
um mito que é a raça. Com relação ao suporte teórico que vimos utilizando essa
predicação nada acrescenta de novo, sendo que, para a nossa perspectiva de
análise e para o nosso objeto em questão, é apenas a ponta do iceberg para o qual
todos os olhares se voltam; esquecendo-se da massa volumosa que volve sob as
águas. Pois, na perspectiva teórica de Giorgio Locchi, mais ampliada, como foi visto
na Parte I, a raça é apenas um mitema, podendo ocupar o lugar de núcleo de uma
ideologia superhumanista - como no caso do nacionalsocialismo alemão - ou
concedendo esse lugar a qualquer outro mitema que disponha de maior força
energética de adesão e agregação, isto é, de simbolização.
O momento e o local não são propícios para levar adiante esse debate que é
por demais rico em nuances, bastando-nos recolher de útil o que os estudos de
Lacoue-Labarthe e Nancy nos fornecem para iluminar melhor a respectiva pliniana
da brasilidade.
Fica então posto que se trata, aqui também, de um esforço intelectual de
Plínio Salgado de produção de uma identidade brasileira própria, autêntica que
articula uma saída estética (poético-literária) com uma outra que é teórica e
filosófica: que começa no verde-amarelismo, se afirma no manifesto da Anta e se
deflagra nos manifestos políticos (no Legionário, de 1931 e no Doutrinário, de
outubro de 1932) e na produção doutrinária e na prática política subseqüentes. A
conseqüência lógica desse duplo empreendimento resultará na fusão entre a arte e
a política, e o artista político transformar-se-á no político-artista cuja meta é pôr
em execução a figura-tipo do Povo-Nação (saída da ficção literária, como a raça
cabocla, do futuro) como obra de arte política realizada no Estado-nação integral.
Essa figura tipo do povo-nação é a realização teórico-prática, cuja potência é a
vontade da brasilidade.
247
Em Arte Brasileira (A Anta e o Curupira), Salgado assim define o fim da arte
e a missão do artista:
O fim da Arte escrita não é criar línguas. A Arte não tem outra
finalidade senão a de interpretar o universo e a vida.
383
Mais adiante, definindo o que julga ser a missão do artista (falava antes, da
sua missão) dizia:
O artista é o homem que nasceu para dizer alguma coisa. É uma
espécie de orador oficial de uma série de avós que foram mudos...
Esse é o artista. Ele não veio para impor um idioma, mas para
criar um estilo e expor uma interpretação do mundo.
384
Nesse enunciado, na célebre conferência que pronunciou no salão nobre do
Correio Paulistano, cujo tema foi A Anta e o Curupira (1926) já se percebe nas
palavras do orador que o artista-político prenunciava o futuro político-artista, que
apenas aguardava na Grande Véspera o momento de sua revelação.
Na mesma conferência, Salgado fala agora sobre as Raízes caboclas do
nosso espírito. Ele louva os esforços dos nossos intelectuais modernistas que estão
trabalhando com os materiais filológicos para desvendar nossa língua brasileira,
porém adverte que:
A inteligência especulativa e criadora, sem a colaboração íntima do
sentimento, nunca fará obra de Arte. Por isso, ao mesmo tempo
que devemos lançar mão dos elementos verbais de que dispomos,
devemos integrar-nos no sentimento que determinou a existência
de tais elementos verbais. Conhecer-nos, eis tudo. (...) é
necessário que nos integremos no Brasil. Pelo sentimento de
brasilidade, não de um patriotismo a priori.
Ele esclarece esse conceito:
Esse sentimento tem raízes profundas na nacionalidade porque
provém da primeira raça que aqui viveu. O sangue negro, o
português, o espanhol, o italiano, o alemão, o asiático, tudo aqui
entrou, mas não o destruiu. Modificou-o para melhor; de sorte que
quando ele não atua na imediata colaboração biológica, faz-se
sentir pela presença no meio cósmico-social. Ele se reflete em
todas as manifestações vitais do país. Creio que ao caboclo
brasileiro está destinado um grande papel no mundo. Não já
agora, mas hão de ver. Um dia ele falará: porque, para isso, nós
aqui estamos nos agitando.
385
383
SALGADO, P. Obras Completas – Volume 10. Despertemos a nação: 46.
384
Idem: 47.
385
Idem.
248
A capacidade de simbolização é assim geradora do mito a ser criado: parte
da primeira raça que aqui viveu - o índio, a grande nação tupi com sua vasta e
ainda misteriosa mitologia, - depois prossegue com a mistura dos vários sangues
que aqui entraram mas que não conseguem destruí-lo, permanecendo subjacente
no meio cósmico-social, quando não na colaboração biológica imediata. Por último,
renascerá transfigurado, no tipo neo-racializado do caboclo.
Apenas façamos aqui uma apreciação sem maiores desdobramentos, quanto
à elaboração racialista que Plínio constrói, numa inversão radical do mito racista tal
como este aparece na ideologia nacionalsocialista. Enquanto nesta, a identidade
nacional é buscada, tanto mais autêntica, quanto mais seletiva se mostra em
apontar para um ideal de nordificação a ser alcançado, implicando politicamente
numa biologização da vida sócio-cultural, pela exclusão de anti-tipos raciais e a
culminar na supressão do judeu; o não-tipo por excelência, a racialização de Plínio,
não exclui tipos, funde-os para uma quinta raça.
Na construção racialista pliniana, há também uma raça básica nos
fundamentos da nacionalidade: a raça ancestral dos índios tupi. Todavia, a sua
afirmação se dá não pela via seletiva de exclusão dos sangues adventícios, porém,
ao contrário, pela presença desse sangue difundido na miscigenação com outros
povos e raças, pela presença na onomatopéia que dá nome aos acidentes
geográficos da terra brasileira, tirados quase todos do nheengatu, nas raízes
vocabulares. Mas, o elemento decisivo está em que essa efusão e difusão do
sangue indígena transporta formas primitivas de pensamentos e de sentimentos
que, no processo da miscigenação, penetram no espírito das demais raças e povos
que aqui chegaram, abolindo todos os preconceitos (trazidos de outras culturas) e
abrindo-os a uma comunhão cósmica com o espírito da terra.
386
Essa racialização
tem por vocação histórica criar não um padrão ideal de nacionalidade definido
386
O Tupi teve um grande destino: o de diluir-se no sangue europeu para criar
um espírito de unidade cósmica destinado a servir de base à unidade espiritual
lusitana. SALGADO, P. Obras completas - Volume 14. A voz do Oeste: 132.
249
biologicamente, mas cultural e politicamente pelo sentimento de comunhão com a
terra e suas mais fundas raízes ancestrais, tanto históricas, quanto etno-culturais.
Tomar essa consciência, incrementá-la no estudo e na pesquisa e determinar-se a
implementá-la politicamente, esse era o espírito de brasilidade. Ainda nos anos
trinta, no auge da movimentação do integralismo, Plínio fez o seu diagnóstico sobre
a ideologia racista que empolgava a Alemanha:
a redução do problema racial a aspectos do plasma germinativo
nada produz, a não ser um prejuízo de cultura.
Tempos depois, ainda na mesma época, seu veredito foi contundente:os
excessos que via ocorrerem na Alemanha lhe pareciam descambar para o
paganismo que ele interpretava como uma invasão do materialismo degradando e
corrompendo o espiritualismo alemão.
No romance-poema-ficcional, A voz do Oeste, o mito nuclear que dá
configuração simbólica à noção de brasilidade é apresentado como saga trágica e
epopéia cujas personagens-figura de identificação são: as terras do Oeste lendário,
a marcha dos guerreiros tupi, a penetração dos Bandeirantes paulistas, a lenda do
Encoberto e o vasto império luso-tupi americano, coroado pelo símbolo cristão da
Cruz da Ordem de Cristo.
Vale a pena descrever, nas palavras de Plínio, como ele opera com a
simbologia poética sobre temas que aparecem em outras obras, num tratamento
diferente, teórico-doutrinário; mais filosófico.
Já no Prefácio em 1934, para a 1ª edição do referido livro A voz do Oeste,
Plínio Salgado anuncia:
A história que vai ser narrada, nos sucessivos capítulos deste livro,
é a história da alma brasileira, no alvorecer dos primeiros impulsos
da nação.
387
Depois, ele esclarece sobre os elementos de realce que fornecem o pano de
fundo espiritual e que é a razão mesma da obra:
387
SALGADO, P. Obras completas - Volume 14. A voz do Oeste: 131
250
Eles se ligam à mitologia do selvagem americano e ganham um
sentimento profundo porque explicam a colaboração misteriosa da
Terra nos grandes dramas brasileiros que os séculos
sepultaram.
388
Continuando, é revelado o sentido estético, como ponto de partida a um
desideratum a alcançar:
É tudo, em conjunto, a tragédia do Continente. Dela deverá sair o
poema de uma raça cuja Epopéia não teve o seu cantor... este
Brasil, que espera o seu Poeta, traz consigo o mistério daqueles
primeiros passos, que não foram indecisos, mas seguros, como a
certeza de um destino.
389
Por último, Plínio sugere que a força necessária à criação da Nacionalidade
futura já estava disponível na terra selvagem americana, na sua natureza cósmica,
nos povos tupis com seus ritos, suas crenças, sua mitologia. Essa força, essa
energia cósmica será aproveitada então pelos novos conquistadores europeus,
sertanistas e missionários, numa fusão de todos os elementos díspares,
transformando-se na força identificadora que instaura o sentimento da brasilidade.
O centro de gravidade dessa energia que impulsiona as levas de bandeirantes, a
evangelização missionária e a transumância das tribos tupis, tem sua localização
geográfica nos altiplanos do Oeste. E é para lá que todos marcham. É lá que deve
nascer a Alma da Jovem Nação, o matrimônio de todas as raças, no batismo
místico do sangue generoso dos tupis. Assim, como tragédia e epopéia, mas
também como utopia do ideal cristão, funda-se um império luso-tupi americano.
Está, então, criado e anunciado o novo mito, e Plínio traça poeticamente, na forma
alegórica, os rumos desse desideratum:
Quem decifrou o segredo das marchas Bandeirantes?
Quem explicará aquela irresistível atração dos itinerários
sertanistas no rumo dominador do Oeste? Alguma força
desconhecida animava os ímpetos firmes das entradas. Essa força
estava nos recessos do sangue e respondia a um apelo dos confins
da terra.
Apelo do Oeste, voz do centro da América do Sul, ensinando ao
Brasil o seu papel histórico...
388
Idem.
389
Ibidem.
251
... Voz que falou três vezes: a primeira no ciclo das Bandeiras, a
segunda durante a Guerra do Paraguai; a terceira quando a Coluna
Revolucionária (refere-se à Coluna Prestes) foi encerrar a sua
peregrinação geográfica na terra negra, onde os tupis
nasceram.
390
O gigantesco marco das Ibiturunas
391
é a torre em cujas atalaias
sonhou erguer-se o gênio da raça, dominador do Novo Mundo... É
lá que está a voz que chama...
Nem poderá ser o acaso que nos haja levado tantas vezes no rumo
dos pântanos do Oeste.
Que resta da Nação Tupi?
Os nomes dos rios e das montanhas; os apelidos das madeiras e
das flores; as lendas selvagens da Pátria; e esta vaga tristeza, que
às vezes nos avassala, como uma saudade incompreensível, um
senso esquisito de vida...
392
Na última página desse Prefácio, Plínio esclarece o sentido político
subjacente da obra e sua continuidade, seu vínculo com as lutas nacionalistas no
âmbito do modernismo das letras e das artes brasileiras:
Este livro é um complemento da campanha do segundo indianismo
deflagrada em 1927, da qual resultou, de um lado, um forte
movimento nacionalista que se denominou o verde-amarelismo; e
de outro lado, um movimento surrealista e dadaísta, de dissolução
nacional e diletantismo de estilo.
393
E ainda:
Este livro prossegue a batalha começada no O Estrangeiro;
continuada no O Esperado, no O Cavaleiro de Itararé... e encerra
um pensamento que se dirige às novas gerações brasileiras . . .
Pensamento de ressurreição espiritual. Alegria criadora. Perpétua
mocidade. Força viril. Expansão da raça, em horizontes dilatados.
E, principalmente, capacidade de sonhar, que é tudo, como sinal
da alma e da energia de um Povo.
394
Na finalização desse tópico sobre o tema da brasilidade, tão fundamental e
mesmo a matriz do imaginário integralista de Plínio, que permite distingui-lo, por
exemplo, das vertentes teóricas de um Miguel Reale, ou de um Gustavo Barroso,
nada melhor do que ficarmos com as palavras quase finais proferidas por Salgado
na conferência sobre A Anta e o Curupira, quando procura explicar na dialética
390
Idem: 132.
391
Nota do Autor: Nome tupi da Cordilheira dos Andes.
392
Idem: 133.
393
Idem: 133-134
394
Idem.
252
discursiva os pressupostos e objetivos da sua campanha indianista e do sentido
desse retorno.
É claro que não sugiro voltemos exclusivamente ao tupi: mas
quero significar quanto nos afastaremos da Humanidade,
afastando-nos da Nacionalidade.
Insisto em dizer que Arte é universal, mas o artista é nacional. Ele
será menos humano, quanto menos desenvolver em si as
possibilidades de nacionalismo, as reservas de origem.
395
É evidente, portanto, que não pretendo um novo indianismo: mas
o que tenho para mim é que todos os nossos gestos na vida atual,
objetivamente estudados, ou subjetivamente sentidos, relacionam-
se com gestos ocultos de forças americanas, com formas
primitivas de pensamentos e sentimentos, com tendências que o
urbanismo e as escolas, as bibliotecas e as fábricas, a casaca e o
diploma, inutilmente se esforçam por afogar. E o que eu desejo é a
eclosão do brasileiro em toda a sua força bárbara, não pelo fato de
o submeter brasileiro, mas pela ânsia de o ver como um algarismo
significativo no mundo.
Essa afirmação do homem da nossa terra dar-se-á, em definitivo,
quando as cidades cosmopolitas forem invadidas pelo espírito
nacional. O Curupira - símbolo desse Espírito - dorme no fundo das
brenhas.
396
395
SALGADO, P. Obras completas - Volume 10. Despertemos a nação: 51.
396
Idem: 52.
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Anexo I
Manifesto de fundação da AIB
Manifesto de fundação da AIB
O Manifesto integralista de outubro de 1932, também conhecido como Manifesto
Doutrinário. Dividido em 10 temas fundamentais, aqui resumidos.
À Nação Brasileira - Ao operariado do país e aos sindicatos de classe - Aos
homens de cultura e pensamento - À mocidade das escolas e das trincheiras - Às
classes armadas!
1) Concepção do universo e do homem, totalista e de nítida inspiração espiritualista
e cristã, que se abre com a afirmativa proclamação: Deus dirige o destino dos
povos.
2) Como entendemos a nação brasileira, compreendida a partir do seu povo
organizado em classes profissionais as quais devem compor a estrutura política
e o sistema de representação municipal, provincial e nacional.
3) O princípio de autoridade, afirmado a partir da constatação de que a sociedade
brasileira carece por demais de ‘hierarquia, confiança, paz e respeito’.
4) O nosso nacionalismo, afirmado na valorização das tradições e costumes do povo
brasileiro desde as origens primordiais da nacionalidade, repudiando todas as
formas de cosmopolitismo, de combate tanto ao capitalismo burguês e
apátrida, quanto ao comunismo ateu, instrumento do imperialismo russo,
sendo ambos frutos de uma época moderna de decadência.
5) Nós, os partidos e o governo, em que se procede a uma crítica contundente à
experiência política republicana: ao regime liberal-democrático apoiado no
sistema de partidos e na artificiosa fórmula do sufrágio universal, manipulados
pelos interesses do regionalismo, do oligarquismo e do caudilhismo.
6) O que pensamos das conspirações e da politicagem de grupos e facções, onde se
repudiam tais práticas usuais na vida brasileira e se preconiza que a disputa
política seja travada no plano elevado de princípios e de idéias.
7) A questão social como a considera a Ação Integralista Brasileira, deve ser
resolvida pelo que inspira a doutrina social da Igreja, isto é, pela cooperação de
263
todos e o desejo que cada um nutre de progredir e de melhorar, sustentado no
princípio da justiça equânime e no direito à propriedade, como fundamental à
realização pessoal; crítica cerrada tanto à solução extremada do comunismo,
quanto ao capitalismo liberal.
8) A família e a Nação, sendo a primeira o grupo natural fundamental que precedeu
à própria constituição dos estados, deve ser o sustentáculo de um Estado Forte
que deve conferir toda a proteção à família que é o organismo essencial para
que o futuro Estado integral conduza a Nação a realizar seus destinos.
9) O município: centro das famílias; célula da Nação, livre dos jogos partidários,
sua administração repousará exclusivamente nos interesses e na vontade das
classes locais.
10) O Estado Integralista, prescindindo dos partidos políticos, se apoiará nas
classes produtoras (Sindicatos e corporações) no município e na família,
fazendo funcionar os poderes clássicos (Executivo, Legislativo e Judiciário),
segundo os impositivos da Nação organizada.
Anexo II
Diretrizes integralistas (1933)
Anexo II
Diretrizes integralistas (1933)
Logo após o Manifesto de outubro de 1932, o Chefe nacional da AIB (Plínio
Salgado) mandou editar, no ano seguinte, as Diretrizes Integralistas, visando
esclarecer melhor os princípios contidos no manifesto. Foram elas:
I
O Integralismo pretende construir a sociedade segundo a hierarquia de seus
valores espirituais, de acordo com as leis que regem os seus movimentos e sob a
dependência da realidade, primordial, absoluta, que é Deus.
II
Essa hierarquia, na qual se funda o princípio e o exercício da Autoridade, faz
prevalecer o Espiritual sobre o Moral, o Moral sobre o Social, o Social sobre o
Nacional, e o Nacional sobre o Particular.
III
O Integralismo considera a Autoridade como força unificadora que assegura
a convergência e o equilíbrio das vontades individuais e realiza o aproveitamento
das energias da Nação em razão do bem coletivo.
IV
O Integralismo considera a Sociedade como união moral e necessária dos
seres humanos vivendo harmoniosamente segundo seus superiores destinos.
V
O Integralismo compreende a Nação como uma grande sociedade de
famílias, vivendo em determinado território, sob o mesmo governo, sob a
impressão das mesmas tradições históricas e com as mesmas aspirações e
finalidades.
VI
O Integralismo compreende o Estado como instituição essencialmente
jurídico-política, detentora do princípio da soberania para realizar a unidade integral
da Nação, coordenando e orientando numa diretriz única todos os grupos materiais
que a constituem e todas as forças vitais que a dinamizam.
266
VII
Portanto, na concepção integralista, o Estado reveste-se da suprema
autoridade político-administrativa da Nação, controlando e orientando todo o seu
dinamismo vital, subordinando-se, porém, em tudo, aos imperativos da hierarquia
natural das coisas, da harmonia social e do bem comum dos brasileiros.
VIII
O Integralismo reconhece no homem um ser dotado de personalidade
intangível, com direitos naturais da tríplice esfera das suas legítimas aspirações
materiais, intelectuais e espirituais.
IX
Incumbe ao Estado a obrigação de prover as condições necessárias à
satisfação integral dessas legítimas aspirações da personalidade humana,
respeitando e favorecendo a sua mais ampla expansão, norteando-se sempre pelos
imperativos da harmonia social e dos superiores destinos do homem.
X
O Integralismo, proclamando, assim, os direitos intangíveis da personalidade
humana, e por isso mesmo, insiste na obrigação impreterível que cabe a todo
indivíduo de cumprir à risca todos os deveres que resultam da sua vida em
sociedade; declara, portanto, todo indivíduo subordinado na esfera das suas
atividades, aos interesses superiores da coletividade, que por sua vez, condicionam
e favorecem a legítima expansão da sua personalidade e a satisfação das suas mais
nobres aspirações.
XI
Para o Integralismo, a Família é a primeira e mais importante das
instituições sociais, pois que por sua natureza, ao mesmo tempo biológica e moral,
é o nascedouro da vida social e o repositório das mais lídimas tradições da Pátria.
XII
Cumpre, pois, ao Estado manter o vínculo indissolúvel que a constitui,
proteger e favorecer a sua integralidade, respeitar seus direitos intangíveis e
lastrear a sua autonomia e a sua comunhão de afetos, com bases econômicas
sólidas, por meio de uma legislação familiar, justa e esclarecida, ao invés de
abandoná-la, como até aqui, à míngua de toda estabilidade e segurança, e sem
nenhuma possibilidade de cumprir a sua alta missão social de educação integral da
criança e do seu encaminhamento na vida.
267
XIII
O Integralismo reclama, portanto, para a família, devido à sua nobre e
delicadíssima função social, os direitos que lhe confere a instituição do bem de
família e do salário familiar na ordem econômica, e do voto familiar na ordem
política, como justo reconhecimento da sua alta benemerência social e nacional.
XIV
O Integralismo considera a educação intensiva e integral do povo como um
dever fundamental do Estado, no interesse da sua própria estabilidade e progresso
material e moral. Por isso o Integralismo defende um programa amplamente
educativo: ensino unificado e gratuito nos graus primários e secundários, com
obrigatoriedade de matrícula e freqüência, intensificação do ensino técnico;
barateamento do ensino superior; levantamento do nível econômico, social e moral
do professorado brasileiro; criação de universidades inspiradas nos princípios de
uma filosofia cristã; criação de cursos populares e de alta cultura; estímulo às
pesquisas científicas, às belas artes e à literatura, em suas diferentes modalidades,
respeitados sempre os limites impostos pelos imperativos de ordem moral, social e
nacional; liberdade e estímulo à iniciativa particular em todos os ramos do ensino,
sujeitando-a, porém, à indispensável fiscalização por parte do Estado. O
Integralismo, mantendo justa liberdade científica e didática, condena formalmente
a liberdade descontrolada da cátedra.
XV
Na execução deste vasto e intenso programa educativo, o Estado jamais
poderá ultrapassar a legítima esfera dos seus direitos, aniquilando ou mesmo
cortando os direitos primordiais da família e da religião sobre a educação das novas
gerações, ao invés, procurará enfeixar a participação dessas grandes forças morais
da Nação, num Espírito do mais franco entendimento e da mais ampla cooperação,
a fim de que desta ação conjunta resulte uma formação realmente integral das
novas gerações, consentânea com as tradições e sentimentos do povo brasileiro.
Nas demais questões que se relacionam com os interesses vitais e supremos da
Nação, o Integralismo promoverá sempre idêntica atitude do Estado com respeito
aos direitos e interesses fundamentais da família e da religião.
XVI
Fiscalização direta do Estado sobre o cinema, o teatro, a imprensa, o rádio,
todos os veículos do pensamento que estão hoje atentando contra a liberdade,
forçando o povo a submeter-se aos caprichos de capitalistas internacionais, de
burgueses materialistas, de espíritos anárquicos, de agentes de Moscou. Amparar
268
os artistas nacionais, de modo que possam, com independência, ter a liberdade de
serem brasileiros, auxiliar todos os empreendimentos artísticos, proteger o cinema
nacional, sanear a imprensa, elevando-a e libertando-a dos interesses particulares
que a oprimem – tudo isso será uma obra grandiosa do Integralismo.
XVII
O Integralismo, visando promover o aperfeiçoamento moral e espiritual da
Nação, declara-se pelo espiritualismo contra todas as correntes materialistas de
pensamento e de ação, que acobertadas pelo liberalismo vêm exercendo a sua obra
nefasta de desintegração de todas as forças vivas da Pátria.
XVIII
Dentro desse critério, o Integralismo propõe-se respeitar a liberdade de
consciência e garantir a liberdade de cultos, desde que não constituam ameaça à
paz e à harmonia social.
XIX
O Integralismo manterá todas as reivindicações religiosas consubstanciadas
na Constituição Federal de 16 de julho de 1934 e, posteriormente, fará respeitar os
princípios cristãos em todos os detalhes da legislação nacional.
XX
O princípio do Integralismo em matéria de cooperação religiosa é o do
regime de concordata, sem perda de autonomia das partes e visando sempre a
grandeza nacional dentro do ideal cristão da sociedade.
XXI
O Integralismo mantém o princípio de organização sindical num regime
político orientado por princípios cristãos, porquanto neste os sindicatos deverão
proporcionar integralmente às respectivas classes os meios necessários à satisfação
dos seus legítimos interesses materiais, culturais, morais e espirituais.
XXII
Uma vez organizado o Estado integral, este não poderá permitir que se
formem quaisquer forças que possam ameaçar a independência ou a integridade
moral, econômica ou territorial da Nação.
XXIII
O Integralismo quer a direção da economia nacional pelo Governo, evitando
que o agiotarismo depaupere as forças de produção, que o trabalho seja reduzido a
uma simples mercadoria sujeita à lei da oferta e da procura; que o intermediário
269
asfixie o produtor e esmague o consumidor; que o capitalismo sem pátria os
escravize, cada vez mais, aos grupos financeiros internacionais, não transferindo,
como faz o Estado liberal-democrático, a soberania econômica da Nação a grupos
particulares, o que permite a orgia dos trusts, cartéis, monopólios, espoliações de
toda a sorte através dos juros onerosos, do jogo da bolsa, das manobras com as
quais o capitalismo atenta contra o princípio da propriedade. Essa atitude do Estado
Integral não se deve confundir com o absurdo do socialismo racista ou coletivista,
em que o governo se torna o único proprietário, o único capitalista, o único patrão.
XXIV
O Integralismo defende o direito de propriedade até ao limite imposto pelo
bem comum, estabelecendo, ao lado do direito, também o dever do proprietário. O
Integralismo reconhece na iniciativa privada o fator mais fecundo da produção
econômica; mas, para a salvaguarda das ambições particularistas, o bem-estar e a
liberdade do povo brasileiro, fará a nacionalização dos serviços que por sua
natureza não podem ser explorados com fins de lucro, mas que se destinam ao
desenvolvimento da economia nacional e interesse público, tais como: estradas de
ferro, navegação, minas, fontes de energia e aparelhamento bancário.
XXV
O Integralismo dá plena eficiência e restitui a dignidade ao voto,
transportando-o para as corporações, onde o indivíduo é garantido moral e
materialmente. No Estado integral, todos os brasileiros colaborarão, no grupo a que
pertencerem, para a formação do poder público.
O Integralismo não fere a democracia, uma vez que a democracia
verdadeira é a que se não escraviza às mentiras do democratismo que originam as
oligarquias prepotentes. Todas as facções exclusivistas trazem o fermento de uma
ditadura disfarçada. O falso democratismo ilude as turbas, tornando o voto uma
coisa desprezível. A verdadeira representação nacional é a que se efetua através
das profissões e associações culturais do país, não mais como expressão
quantitativa, mas como índice qualitativo da nação. O Integralismo é pela
organização corporativa não meramente econômica, à maneira do fascismo, porém
econômico-política exprimindo assim a democracia-orgânica.
XXVI
O Município é uma reunião de famílias. A origem do município na família
torna-o sagrado, intangível, em tudo que disser respeito a seus interesses
peculiares. Esses interesses, porém, como os indivíduos, não podem exorbitar, ao
ponto de se ferirem a si próprios. Assim, o Integralismo mantendo a autonomia do
270
município, subordina-o aos interesses da região ou da Nação, em tudo o que se
relacione com serviços de caráter geral e técnico.
XXVII
O Integralismo quer a centralização política e a descentralização
administrativa, de modo que uma pluralidade de meios realize uma unidade de fins.
As províncias devem ter autonomia administrativa, compondo-se todas as forças
das regiões brasileiras no todo nacional sem prejuízo para os seus valores próprios.
A fórmula do Integralismo é: ‘Diferenciação na Unidade’.
Anexo III
O caso Nietzsche
Anexo III
O caso Nietzsche
Friedrich Nietzsche é certamente dos mais polêmicos e controvertidos pensadores
modernos, na medida mesma em que o gênio da sua obra mescla-se a uma
conturbada personalidade a qual não deixou de influir em nenhum instante, tanto
no curso da sua diretiva intelectual, quanto na trajetória traçada em sua vida
pessoal.
Penetrar no estudo da obra de Nietzsche é dar-se ao privilégio de entrar em
sintonia com a eloqüência de um pensamento que nos solicita a caminhar numa
aventura audaciosa, constantemente provocadora, que nada promete a não ser o
risco de conviver com as luzes e as sombras silentes na cultura e em nossas
próprias almas. Daí os prazeres e os incômodos dolorosos que sua leitura
proporciona.
Durante décadas Nietzsche, o filósofo da demolição, foi execrado pelas boas
consciências pensantes. Mais recentemente vem sendo revalorizado, nestes tempos
pós-modernos. Prossegue o empenho em se recuperar o pensamento desse grande
filósofo, até por aqueles que pretendem revelar um verdadeiro Nietzsche, salvo de
falsificações e possíveis deturpações que lhe teriam imposto maquinadores
nazistas, ávidos de usarem da autoridade e prestígio do filósofo para promoverem a
ideologia nacionalista e racista. Nesta suposta trama, apareceria mancomunada a
própria irmã do filosófico Elizabeth Föster-Nietzsche, presumidamente apontada
como a pivot do crime, como a falsificadora-mor da obra do pensador, após a sua
morte.
Esse rumoroso ‘caso Nietzsche’, cheio de rocambolescas manobras
suspeitíssimas em torno do legado do filósofo de Basiléia, foi protagonizado, em
meados dos anos cinqüenta, ou seja, após a Segunda Guerra mundial,
precisamente pelo professor Karl Schlechta – um estudioso da obra de Nietzsche –
que se pôs a inventariar todo o material deixado no Nietzsche – Archiv, em
272
Weimar, desde rascunhos, fragmentos de textos, obras publicadas,
correspondência, etc.
Toda a polêmica que a partir de então (e só a partir daí) passou a envolver o
aparentemente complexo e nebuloso legado intelectual de Nietzsche, se prende a
alusões sobre o que desse legado seria autenticamente original do filósofo, daquilo
que, ulteriormente, lhe teria sido acrescentado, como falsificação e conseqüente
deturpação de seu pensamento.
Pela correspondência de Nietzsche – segundo consideram os maiores
pesquisadores de sua obra – ainda nos últimos anos de sanidade mental,
pretendera ele dar forma a diversas notas que havia reunido visando preparar um
novo livro Para além do bem e do mal, prólogo para uma filosofia do futuro.
Como indica o título, esta obra serviria de prefácio a um possível magnum opus,
que tencionara publicar. Nietzsche chegou inclusive a pensar em lhe dar o título,
em alemão: Die wille Zur macht, isto é, A Vontade de potência; acrescentando-lhe,
em correspondências posteriores, o subtítulo: Versuch einer umwertung aller werte,
isto é, Ensaio para uma transmutação de todos os valores.
397
Este pretendido trabalho de sistematização nunca se completou em razão da
doença que logo acometeria Nietzsche, porém, as notas reunidas pelo filósofo para
essa obra-prima seriam publicadas postumamente com o título único Die wille zur
macht ou A vontade de potência; também traduzido para o português de Portugal,
como A Vontade de domínio. Estava criada a causa, ou melhor, a ocasião, para o
desencadear da imensa celeuma que até hoje envolve a obra de Nietzsche,
lançando seu legado em vicissitudes além daquelas que, desde as origens, sempre
acompanharam a produção desse grande pensador. Mas por que isso ocorreu?
Recapitulemos alguns dados.
397
NIETZCHE, F. W. Assim falou Zaratustra: 9.
273
Ao estrear em Bayreuth, em julho de 1882, o seu Parsifal, Wagner viu
aprofundar a crise, que finalmente, culminaria no rompimento total da antiga
amizade, por parte de Nietzsche. Em fevereiro do ano seguinte, Richard Wagner
morria em Veneza. Mesmo assim, Nietzsche continuaria sofrendo na profundidade
da alma as seqüelas daquele rompimento, num acúmulo de ressentimentos que
jamais se aplacaram. Em julho de 1883, Nietzsche, na Suíça, concluiu a segunda
parte do seu Zaratustra.
398
No outono, o filósofo seguiu para a Alemanha e fixou residência em
Naumburgo, na companhia da mãe e da irmã. Na ocasião, conflitou-se com a
pretensão de Elizabeth em casar-se com Bernhard-Föster, um publicista pan-
germanista e notório anti-semita, que planejava fundar uma empresa de
colonização alemã no Paraguai. Nietzsche não escondia seu desprezo pela retórica
nacionalista e mais ainda pelas pregações anti-semitas. Mas Elizabeth estava
decidida a casar com Föster e a acompanhar o marido ao Paraguai, como veio a
acontecer.
Nietzsche saiu da Alemanha e pôs-se a viajar por várias localidades, fixando-
se, finalmente em Nice, quando ali escreveu a terceira parte do Zaratustra,
publicando-a em princípios de 1884. Em abril desse ano, deslocou-se para Veneza
e, em julho chegava a Zurique, na Suíça, onde se encontrou com a irmã Elizabeth,
já casada, era agora Frau Elizabeth Föster. Nietzsche, sem se perder em
recriminações à irmã, reconciliou-se com ela e passaram algumas semanas em
animada convivência.
399
Nietzsche aproveitou sua boa disposição para escrever a quarta parte do
Zaratustra, vindo a concluí-la em 1885, quando foi publicada em uma tiragem de
apenas quarenta exemplares, custeados por ele mesmo. Nietzsche diz ter
encontrado apenas sete pessoas a quem lhe foi possível enviar um exemplar de seu
398
COPLESTON, F. Nietzsche, filósofo da cultura: 41.
399
Idem: 42.
274
trabalho original, com forte tom profético, eivado de imagens poéticas e, por vezes,
difícil de interpretar. Mas, seja qual for o valor que se possa atribuir à essência da
obra, a habilidade e o talento literário demonstrados por seu autor são incontestes.
Parece que Nietzsche tencionava continuar esta obra, adicionando-lhe outra
ou outras partes, mas nunca o fez. Resolveu-se a partir de então abandonar o
estilo lírico.
Daqui por diante falarei eu e não Zaratustra.
Friedrich Nietzsche mostra claramente nessa quarta parte do Zaratustra que
está escrevendo para discípulos, ou seja, para homens superiores. E o seu grande
desgosto foi exatamente não ter chamado a si alguns discípulos, embora
acalentasse essa pretensão em amizades como as que entabulou com Heinrich Von
Stein (que teve morte prematura) e com Paul Lansky, que havia lido Zaratustra e
escrevera um comentário elogioso sobre o trabalho, num jornal de Leipzig e na
revista Euporéia, de Florença.
Em abril e maio de 1885, Nietzsche esteve em Veneza e depois reecontrou-
se com a irmã em Naumburgo. Antes de partir para a América do Sul a fim de se
juntar ao marido, Elizabeth insistiu com o irmão, como já fizera anteriormente,
para que ele retornasse à Universidade e retomasse suas atividades docentes. Mas
Nietzsche recusou-se a acatar as sugestões e conselhos da irmã, replicando-lhe que
Veneza era a única cidade que podia tolerar. Ainda nesse mesmo ano, às suas
expensas, reuniu uma coleção de aforismos publicados com o título de Para além
do bem e do mal. Aqui aparece manifesto o anseio de Nietzsche por uma Europa
Unida capaz de fazer face a um crescente nacionalismo que, a seu ver, ameaçava
subverter a genuína cultura européia.
400
Nos anos seguintes, trabalhou na sua projetada grande obra, a presumida
A vontade de potência, ensaio para uma transmutação de todos os
valores e preparou as segundas edições das obras Nascimento da
tragédia, Aurora e Gaia ciência,
400
Idem: 44.
275
acrescentando novos prefácios às duas primeiras. Em fins de 1887, apesar do
profundo abatimento com a morte prematura do jovem von Stein, Nietzsche
conseguiu, em quinze dias, aproximadamente, compor o texto Genealogia da
moral. Este era um livro que vinha como resposta ao ataque de um crítico suíço à
obra Para além do bem e do mal.
Cinco anos se haviam passado desde a morte de Wagner, e as cicatrizes do
rompimento daquela amizade profunda mantinham-se vivas na alma cada vez mais
solitária de Nietzsche. O vácuo deixado por aquela ruptura era tão significativo e
profundo que se alargava, agora, num abismo. Todas as tentativas em poder um
dia preencher aquele vazio por uma nova amizade de igual quilate, foram
fracassadas.
Nietzsche encontrava-se então num estado de amargura, extrema tensão
mental e solidão profunda. Devido, em grande parte, à falta de aceitação de suas
obras, ao seu isolamento e, ainda, às constantes insônias que o obrigavam a
recorrer com freqüência ao uso de drogas, particularmente, cloral. Muito da
indisposição contra as obras de Nietzsche provinha, ao que parece, dos círculos
wagnerianos que iam muito além do âmbito musical e operístico, com nítidas
dimensões ideológicas e políticas, não ocultando sua hostilidade e frieza com
relação a Nietzsche.
Em abril de 1888, Nietzsche recebeu em Turim, cartas do amigo Brandes
comunicando-lhe as próximas conferências marcadas para Copenhagne. Depois de
por de lado a composição da sua projetada grande obra, escreveu um virulento
ataque a Wagner – O caso de Wagner – havendo razões suficientes para crer que
mais tarde veio a ter remorsos por ter escrito tal livro. Ficava claro, porém, que
nesse desejo compulsivo de atacar e destruir, se apontava o prelúdio da demência
que se avizinhava e logo o atingiria. Já em fevereiro daquele ano, numa carta ao
amigo Peter Gast, dizia:
276
Encontro-me num estado de irratibilidade crônica que me levam
nos meus piores momentos, a uma espécie de vingança –
vingança essa que reconheço não ser a mais bela, visto que, por
vezes, toma uma forma de excessiva dureza.
401
Depois de trazer a público o ataque a Wagner, pôs-se a atacar as idéias no
Crepúsculo dos ídolos, provavelmente no intuito de preparar o público para a futura
grande obra sobre A vontade de potência. Em seguida compilou o material que iria
constituir a primeira parte dessa almejada grande obra, isto é, O Anticristo.
Estas últimas obras de Nietzsche estão cheias de asserções autoritárias, bem
como de exaltação mental, e todas elas apresentam marcada feição destrutiva,
pois, como é sabido, O Anticristo é um virulento ataque ao cristianismo.
Nos últimos meses de 1888, o comportamento de Nietzsche se mostra
esfusiante, exaltado e hilariante, e ao mesmo tempo, bastante agressivo e
autocomplacente nos textos que escreve. Alguns comentaristas já vislumbram os
sinais incipientes da loucura que vinha
próxima. Escreve, então, seu último trabalho – Ecce Homo – quase uma
autobiografia. Uma atmosfera estranha e uma dose excessiva de autoglorificação e
autoritarismo se desprende ao longo da obra. Pode-se ver isso nos títulos de alguns
capítulos: Por que razão sou tão inteligente, Por que razão sou tão sábio, Por que
razão sou tão fatalista, Por que razão escrevo tão excelentes livros.
402
E o livro
segue nesse tom para concluir com uma reafirmação ainda mais absoluta da sua
hostilidade para com o cristianismo: ao vampirismo da moral cristã. Ecrazes
l’infame!, Haveis-me compreendido?, Dionísio contra Cristo. Nietzsche lançava o
seu derradeiro desafio ao Cristo que conhecera em sua mocidade. Mas, além desse,
um outro espectro ainda o perturbava.
Nietzsche começara a receber algumas recompensas financeiras da venda de
algumas edições de suas obras e ele preparou um novo panfleto - Nietzsche contra
Wagner - mas nenhuma obra importante seria mais escrita, porque os sinais
401
Idem: 49.
402
Ibidem.
277
evidentes da doença começaram a se manifestar. Alguns amigos receberam cartas
dele, onde se assinava como o crucificado. Foi encontrado em Turim, em estado de
colapso mental. É levado a um hospital em Basiléia e depois em Iena, lá ficando por
algum tempo. Mais tarde, a mãe levou-o para a casa de Naumburgo. Em fins de
dezembro de 1888, Nietzsche escreveu uma carta ao amigo Overbeck dizendo-lhe
que estava trabalhando num Promemoria para os cortes da Europa, a fim de que se
organizasse uma liga antigermânica. Desejava, diz ele na carta, que o Reich se
visse posto em foco e provocado para uma luta desesperada. Em princípios de
janeiro de 1889, a demência de Nietzsche foi declarada pelos médicos, embora não
chegassem a formar um diagnóstico preciso, claro e definido do processo da doença
que o acometera.
Nietzsche permaneceu em Naumburgo aos cuidados da mãe e, após a morte
desta, a irmã Elizabeth, que regressara viúva do Paraguai, levou-o para sua
residência em Weimar, e ali ficaram a viver os dois.
O filósofo nunca se restabeleceu, mas continuou a apreciar música e
literatura e chegava a impressionar os que iam visitá-lo por sua paciência e
gentileza. Quando lhe mostravam o retrato de Wagner, costumava dizer: Eu
amava-o, e quando a irmã, sentada a seu lado, começava a chorar, perguntava-
lhe: Por que choras Lisbeth? Não somos felizes? Gostava de palestrar com os
visitantes e sentia-se particularmente feliz, quando Peter Gast chegava e tocava
alguma coisa para ele.
403
Em 25 de agosto de 1900, Friedrich Nietzsche faleceu em Weimar, vitimado
por uma pneumonia; tinha 56 anos de idade.
Concluído este roteiro, talvez demasiado longo, chegamos ao ponto de
partida, como no sentido do Eterno Retorno de Nietzsche, isto é, à questão que nos
interessa de imediato: sobre o legado do autor e toda a celeuma que se criou com
a influência e tutela exercida pela irmã do filósofo.
403
Idem: 51.
278
Na tradução para o português do Assim falou Zaratustra (que estamos
utilizando), na nota introdutória, Mário da Silva, referindo-se ao legado das obras
do filósofo alemão, faz o seguinte comentário:
(...) Ao declarar-se a demência de Nietzsche, numerosos
apontamentos avulsos, notas, máximas, esboços de argumentos
polêmicos, considerações de natureza psicológica, moral, crítica
etc., foram achados em seu papéis; e, como mais tarde se
verificou, incluíam não só, naturalmente ou com toda
probabilidade, escritos destinados - mas quais deles? e na forma
em que se encontravam ou noutra que o autor se reservava a dar-
lhes? – à planejada obra ou parte dela, senão, também, não pouco
refugo de obras já então publicadas, repetições de conceitos nelas
mais sutilmente elaborados e acréscimos aos mesmos. (...)
404
Em síntese, Nietzsche, ao adoecer, não só viu frustrada a presumida
intenção (e o tradutor aqui, também, o admite) de vir a elaborar sua projetada
magnum opus, como deixou em redor de si um vasto e confuso material de escritos
de toda espécie que, a partir de então, corria o sério risco de dispersão e
desaparecimento. Mas, logo em seguida, é o próprio tradutor que nos alerta:
(...) Nada, nesses escritos, permitia distinguir com certeza o que
porventura fossem fragmentos de uma obra de grande
envergadura, mas não levada a término, daquilo que seriam
aforismos soltos ou simples rascunhos sem qualquer relação entre
si.
405
Há nestas ponderações em tom de alerta, um claro sinal de reconhecimento
de que havia em todo aquele material confuso e misturado, algo que poderia de
fato destinar-se à futura grande obra pretendida, além de tudo mais que poderia
ser julgado como irrisório. De resto, quem quer que tivesse afinidades afetivas ou
intelectuais (ou ambas) com Nietzsche e próximo a ele em seus derradeiros dias,
ver-se-ia impelido à responsabilidade de não só zelar por aquele patrimônio, mas
dar-lhe alguma ordenação e, até mesmo, possivelmente, selecionar daquele
conjunto, materiais porventura inusitados, ou que fossem percebidos como de
reconhecida preeminência e destaque no conjunto das cogitações intelectuais do
autor.
404
NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra: 9.
405
Idem.
279
Quem, em tais circunstâncias, poderia fazê-lo, em condições mais
adequadas e não menos legítimas, senão a própria irmã do pensador, que com ele
conviveu e o assistiu nos onze anos, desde declarada a sua doença até sua morte?
E o nosso tradutor, ao revelar aqui essa iniciativa, não oculta a suspeita que
tal fato incorreria:
(...) Mas a senhora Elizabeth Föster-Nietzsche, irmã do pensador,
quando já viúva de Bernhord Föster... tomou sob seus cuidados o
pobre doente das faculdades mentais, avocou a si, também, a
tarefa de preservar, custodiando-o pessoalmente, todo esse
material, bem como a correspondência do irmão. E foi a senhora
Föster-Nietzsche que, um ano antes que Nietzsche morresse,
mandou proceder a uma escolha - de acordo com um critério
sistemático, ou seja, dela e dos colaboradores aos quais confiou a
tarefa - dos escritos que publicaria num volume prefaciado por ela
mesma e intitulado, justamente, Die Wille Zur Macht. Esta obra
tornaria a publicar-se, em edição aumentada, poucos anos mais
tarde, e passaria a ser considerada como uma espécie de epítome
do mais genuíno nietzschismo.
406
Durante três décadas, Elizabeth Föster-Nietzsche manteve-se como guardiã
e zeladora absoluta, responsável pela preservação de todo aquele acervo,
organizando o Nietzsche – Archiv, em Weimar. Em 1935, com o falecimento de
Elizabeth, o governo de Hitler transformou o santuário nietzscheano em acervo
nacional sob a administração do Estado alemão e o franqueou à pesquisa de
estudiosos. A eclosão da guerra interromperia os trabalhos.
Mário da Silva nos esclarece sobre as buscas que durante dois decênios se
fizeram minuciosas em torno do legado do filósofo; intensificadas após a Segunda
Guerra Mundial.
(...) permitiram ao maior conhecedor da obra de Nietzsche, o
professor Karl Schlechta, não apenas descobrir as falsificações
praticadas pela senhora Föster-Nietzsche na correspondência do
irmão (de tal sorte que dali resultasse ser ela a pessoa indicada
por Nietzsche como legatária do seu patrimônio espiritual); mas,
ainda, ao publicar, em 1954, as obras completas do pensador
(com a indispensável justificação crítica), que incluem, com o título
Aus dem nachlass der Achtzigjahre (Do legado da década de 80), o
que de inédito Nietzsche, ao enlouquecer, deixara em seus
cadernos de apontamentos, patentear o critério superficial e
grosseiro com que os colaboradores escolhidos pela senhora
406
Idem: 10.
280
Föster-Nietzsche e ela mesma tinham arrumado, digamos assim,
aquela Die Wille zur macht, já hoje eliminada, tal como foi
publicada, do rol das obras do pensador.
407
Como é visível, nosso tradutor e comentarista carrega nas tintas contra a
senhora Elizabeth, mas além de um certo exagero sobre as propaladas
falsificações’ da senhora Föster-Nietzsche – desnaturando a obra do irmão - o
comentário em pauta, também omite algumas circunstâncias importantes a serem
consideradas sobre o Nietzsche – Archiv.
Posterior à Segunda Guerra Mundial, a URSS apropriou-se dos arquivos
Nietzsche e os entregou à Alemanha do leste (sob administração soviética) que se
tornaria a República Democrática Alemã – RDA. Esta os depositou em Weimar e
interditou seu acesso aos investigadores. A proibição seria suspensa em 1950,
quando todos os manuscritos foram transferidos ao Arquivo Goethe e Schiller.
408
A publicação das obras completas de Nietzsche foi iniciada por dois
professores italianos, Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Esta edição saiu
simultaneamente na Alemanha (Walter de Gruyter), na Itália (Adelphi) e na França
(Gallimard). Em França é dirigida por Gilles Deleuze (Nietzsche. Différence et
répétition, Nietzsche et la philosophie) e Maurice Gandillac. O projeto prevê um
conjunto que englobaria nove tomos em quatorze volumes, sendo que cerca da
metade destes já foram editados. Na verdade esse projeto parece retomar na
forma o que havia sido concebido por Alfred Baeumler a partir de 1933, mas que foi
frustrado por falta de meios.
409
Uma das particularidades da edição Colli-Montinari consiste,
justamente, no desmantelamento de A vontade de potência (Die
Wille zur macht) a que se refere o tradutor Mário da Silva – no
qual haviam sido reunidos, em 1906 e depois em 1911 (edição
Kröner), um certo número de fragmentos redigidos por Nietzsche
entre 1884 e 1888. A apresentação e organização (por temas,
numa ordem não cronológica) destes fragmentos tinham sido
objeto de certas críticas, sobretudo da parte de Karl Schlechta (Le
Cas Nietzsche, Gallimard, 1960), que tinha posto em causa a
407
Idem.
408
BENOIST, A. Nova direita nova cultura: 62.
409
Idem: 61-62.
281
influência abusiva da irmã do filósofo, Elizabeth Föster-Nietzsche.
Apercebemo-nos, porém, graças a uma leitura comparada das da
antiga e da nova versão, que as referidas críticas eram bastante
exageradas.
410
Tais abusos ou presumidas impropriedades cometidas pela senhora Elizabeth
Föster-Nietzsche – definitivamente comprometida aos olhos da crítica e da
suspeição do professor Schlechta, quanto mais não fosse, por ser a viúva do ultra-
nacionalista e anti-semita Bernhard Föster – teriam de fato pervertido o sentido
próprio dos escritos de Nietzsche, ao ponto de desvirtuar e corromper a obra do
irmão?
No fundo, escreveu Jean Michel Palmier, no jornal Le Monde, em 7
de junho de 1969, seria preciso uma singular ingenuidade para
imaginar que a própria imagem de Nietzsche daí sairia modificada.
Não é pelo fato de se acrescentarem alguns aforismos, notas e
esboços suplementares que compreenderemos Nietzsche de um
modo diferente, a menos que nos esforcemos a fazer-lhe dizer
coisas que ele não disse.
411
410
Ibidem.
411
Ibidem.
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