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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
ALEX CRIADO
Falares: a oralidade como elemento construtor
da grande-reportagem
São Paulo
2006
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1
ALEX CRIADO
Falares: a oralidade como elemento construtor
da grande-reportagem
Tese apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo para obtenção do título de
doutor em Ciências da Comunicação.
Área de concentração: Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Edvaldo Pereira
Lima
São Paulo
2006
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Folha de Aprovação
Alex Criado
Ciências da Comunicação
Tese apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo para
obtenção do título de doutor.
Área de concentração: Ciências
da Comunicação.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _____________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
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Para Edilene Cruz,
por existir em minha vida.
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Agradecimentos
Ao Edvaldo Pereira Lima, por ter desmontado tão honestamente minha desistência e
por ter acreditado.
A Alice Mitika Koshiyama, pela preocupação constante e pelo firme apoio.
A Monica Martinez, pelas sugestões enriquecedoras.
A Jaqueline Lemos, pela generosidade em me apresentar Maria e pelos incontáveis
socorros.
A Cristina Sato, pela permanente disposição em me ajudar nos momentos de
desespero.
A Maria Vieira, por ter cedido sua história de forma tão carinhosa.
A Elaine Silva, que interrompeu suas férias para transcrever as entrevistas e o fez
com todo o cuidado.
Aos amigos Renata Carraro, Bernadete Toneto, Denise Casatti e Sérgio Vilas Boas,
pela entusiasmada torcida.
A Dimas Künsch, pela cobrança irredutível.
A Denise Carreira, Fred Ghedini e Julinha, que da África do Sul acompanharam tudo.
Aos familiares e amigos, pela compreensão.
Ao Fernando Cortese, por ter ouvido todos os desabafos.
A Tatiana Tanaka, pela ajuda de última hora.
Aos meus colegas de trabalho, Graciela, Ana Cláudia, Agueda, Ana, Gledson e
Luciene, por suportarem minha tensão e, ainda assim, me ajudarem.
A Editora Salesiana, na pessoa do Pe. Ailton dos Santos, pela compreensão.
A Edilene, leitora, crítica, ouvinte, enfim, companheira que ajudou em tudo.
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Resumo
CRIADO, Alex. Falares: a oralidade como elemento construtor da
grande-reportagem. 2006. 144 f. Tese (doutorado). Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Esta tese discute a incorporação da oralidade de falantes excluídos social e
culturalmente na grande-reportagem. O foco desta pesquisa é refletir como a
grande-reportagem no Brasil, em sua missão de desvendamento do real, tem lidado
com a questão da oralidade. Discute os desafios para a incorporação dos registros
orais de pessoas com baixa escolaridade, tendo em vista o preconceito que existe na
sociedade em relação aos falantes que se utilizam de modalidades diferentes da língua
padrão. Propõe algumas reflexões e procedimentos para o jornalista ao incorporar a
fala de protagonistas de baixa escolaridade em sua reportagem. E realiza um
experimento prático de construção de História de Vida de uma faxineira de São
Paulo, oriunda do meio rural de Minas Gerais.
Palavras-chave: Jornalismo – Reportagem – Oralidade – Narrativa – História de Vida
– Jornalismo Literário – Epistemologia – Ética jornalística.
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Abstract
CRIADO, Alex. Ways of speaking: orality like a constructor element of
reporting. 2006. 144 f. Thesis (doctoral). Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
This thesis discusses the incorporation into reporting of the orality of speakers
who are sociallly and culturally excluded. The focus is upon considering how
reporting in Brazil, in its mission of tapping into reality, has dealt with the orality
issue. It discusses the challenges to incorporate oral records from people with low
educational level, by considering the prejudice that exists in society against speakers
who use different variations of standard idiom. It proposes analysis and procedures
regarding how journaliss can introduce into reporting the speeches from main
characters with low educational level in. There is also a practical experiment that
comprises the writing of a cleaning woman’s life history.
Keywords: Journalism – Reporting – Orality – Life History – Literary Journalism –
Epistemology – Journalistic Ethics.
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Sumário
Introdução ................................................................................. pág. 08
1- A Pesquisa: .............................................................................. pág. 15
2- Conceitos: ................................................................................ pág. 27
3- Análise .................................................................................. pág. 66
4- Pesquisa empírica.................................................................... pág. 83
5- Conclusões ............................................................................... pág. 131
Referências ................................................................................. pág. 140
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Introdução
A justificativa de uma pesquisa deveria abordar a importância daquele tema
para a ciência, relacioná-la com outras investigações já feitas etc. Não é impossível
buscar razões objetivas que justifiquem determinadas escolhas. Mas isso é apenas
uma fina película da realidade. As razões são pessoais e, mesmo quando tentamos
materializá-las, estaremos descortinando somente tênues camadas da verdade.
Contudo, é este o caminho aqui apresentado. As razões da escolha deste tema
são sobretudo pessoais. De paixão, afinidades, busca de auto-entendimento, de
encontros e reencontros.
As raízes
De tempos em tempos, sonho com meu pai. Cheguei a me perguntar se nisso
havia algum remorso pelo fato de termos vivido sempre tão distantes, de não termos
conversado mais, de não termos partilhado nossas vidas de forma mais intensa. Mas
os sonhos, todos eles, têm um clima agradável, trazem consigo uma sensação
reconfortante. Talvez seja apenas uma indicação de que ele está a meu lado e o que
vivemos era o que era para ser vivido.
Quarenta e seis anos de diferença, uma língua e uma cultura a nos separar.
Nosso mundo não era feito de palavras. Elas quase não existiam. O momento mais
agudo foi o da adolescência. Perguntava-me por que razão aquele senhor calvo era
meu pai. Cheguei a sentir inveja de alguns colegas que conversavam, discutiam,
passeavam, desabafavam com seus jovens pais. Às vezes sentia raiva daquele sotaque
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que o tornava tão diferente dos demais, e que, na infância, era motivo de chacota para
as outras crianças.
Não me dava conta de que o fosso entre nós era cavado diariamente também
por mim e que ele apenas respeitava os limites que eu próprio impunha.
Freqüentemente, controlava a vontade dele de estar mais próximo, de compartilhar
mais. Cuidadosamente, me perguntava sobre minha vida, meus projetos, planos e, às
minhas respostas lacônicas, sorria e compreendia.
A tímida aproximação se deu quando fiz 20 anos. Fiquei sabendo que ele
visitaria a irmã muito doente na Espanha. Disse que iria junto. O objetivo consciente
era apenas viajar. Hoje sei que uma força diferente me impulsionava para aquela
jornada. Enquanto acertávamos a documentação, comecei a lhe perguntar sobre o
país, os parentes e fui conhecendo sua história.
Primogênito de uma família de camponeses de Salamanca, teve que trabalhar
muito cedo. Com seis anos, já madrugava para ajudar o pai, severo e rígido, no trato
do campo. O marquês utilizava Arauzo somente para veraneio e durante as
temporadas de caça. Ainda assim, tudo devia estar impecável, porque o patrão podia
aparecer a qualquer momento.
O garoto adorava ir à escola. Talvez para fugir do trabalho e da vida difícil, os
estudos passaram a ser o refúgio preferido. Esmerava-se na caligrafia. Dedicava-se
com afinco aos cálculos. Lia tudo o que o professor lhe emprestava. Com isso,
conseguiu a afeição do mestre, que no geral distribuía elogios com bastante
parcimônia. Porém a decepção veio ao fim dos estudos elementares. O pai havia
decidido que estudo era para gente rica e que ele precisava do menino no campo. O
professor chegou a aconselhar a continuidade, mas nada demoveu o pai inflexível.
Aos 19 anos, uma nova possibilidade de fuga da presença asfixiante do pai: o
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serviço militar. A Guerra Civil havia acabado fazia apenas dois anos. Mesmo a vida
dura da caserna era mais interessante que a aridez do campo. Pretendia seguir a
carreira militar, mas novamente o destino pregava suas peças e impunha reviravoltas.
Dois anos depois, recebe a notícia de que o pai havia morrido de uma pneumonia
fulminante.
Tem que voltar imediatamente para Arauzo. A partir daquele momento, teria
que assumir o controle da família: duas irmãs mais jovens, um irmão de 10 anos e a
caçula, com apenas 3 meses. O marquês lhe propõe assumir o posto do pai, mas ele
recusa. Recebe o dinheiro que a família tem direito e vai viver no pequeno pedaço de
terra que o pai havia comprado nas proximidades alguns anos antes.
A partir daí, passa a se dedicar ao comércio de produtos. Com o final da
Guerra Civil e a Europa mergulhada nos confrontos da 2ª Guerra, a Espanha
enfrentava uma grave crise econômica, miséria e falta de todo tipo de produto. O
jovem camponês, então, junto com alguns amigos, passa a realizar longas jornadas até
a fronteira com Portugal, para trazer clandestinamente produtos que faltavam nos
povoados castelhanos. Por ser ilegal, o trabalho tinha que ser feito à noite, muitas
vezes enfrentando os gelados ventos da meseta central espanhola ou borrascas de
neve.
Resignava-se ao trabalho, pois tinha uma família para sustentar. Suportou essa
vida durante 13 anos. Casou as duas irmãs mais velhas e quando o irmão voltou do
serviço militar, decidiu. Iria tentar a sorte em outro país. Deixou a mãe e a caçula aos
cuidados do irmão e alistou-se no serviço de emigração. Tinha duas opções: EUA ou
Brasil. Disseram-lhe que no Brasil a língua era parecida. Estava decidido. Aos 34
anos desembarcava no Porto de Santos. Chegou no início da industrialização da era
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Kubitschek. Foi conseguindo melhores empregos e, assim, ficando no país,
abandonando pouco a pouco o desejo de voltar à terra de origem.
Mas tudo isso não saiu apenas de sua boca. Muitas descobertas vieram pelos
relatos dos irmãos, dos cunhados. E eu fui descobrindo uma pessoa que eu não
conhecia. Fui construindo raízes, origens e, de repente, aquele sotaque que tanto me
desagradara, agora servia de alicerce para o domínio rápido e preciso da nova língua.
A posse do outro idioma me conferia uma nova identidade, mais ampla, mais
alargada que a anterior.
Depois de dois meses, voltamos. A aproximação não significou uma mudança
radical na nossa relação. Isso seria artificial. Continuamos modestos nas palavras.
Mas a partir daí, percebi que muitas delas eram desnecessárias. Havia algo muito
mais sutil que nos ligava, uma compreensão não-verbal. Compreendi que grande
parte de minha trajetória tinha sido acompanhada com verdadeira devoção por ele.
Que eu tinha sido apoiado, sem sequer me dar conta disso, em momentos cruciais.
Que a sua presença era discreta, mas firme. E que nosso entendimento prescindia do
discurso, estava implícito num acordo prévio e pacífico. Quanta tranqüilidade isso me
trouxe!
Só me lembro que, quatro anos depois, no dia da sua morte, ao receber a
notícia pelo telefone, o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi: que sorte eu
havia tido por ele, exatamente ele, ter sido meu pai. Senti isso tranqüilo, sem lágrimas
ou desespero. E que isso não era passado. Ele continuava sendo e sempre seria meu
pai.
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Línguas e Culturas
A Língua Portuguesa e a Língua Espanhola são filhas do mesmo casamento,
do Latim com a Península Ibérica. Foram se formando ao mesmo tempo que seus
povos iam erigindo nações. Os portugueses, com seu espírito comerciante,
lançaram-se ao mar, conquistaram o mundo. Foram às Índias, estiveram na África,
chegaram ao Brasil. Tiveram que conhecer o outro, convencê-lo, seduzi-lo. O poder
estava na troca, na capacidade de convencer. Na fôrma de seu caráter, moldaram uma
fala macia, suave, rebuscada.
Os espanhóis também se tornaram potência. O poder, entretanto, encontrava
sua expressão na posse. Posse da terra, para dela extrair o ouro. Havia que impor a
vontade, conquistar, submeter pela cruz e pela espada. O outro se transfigurava em
inimigo. Portanto, era preciso derrotá-lo, eventualmente destruí-lo. Povo orgulhoso,
forjou uma língua áspera, cortante, incisiva, cuja beleza está na aridez.
A Língua Espanhola, por exemplo, tem dois tipos de erres. O primeiro é
trepidante, forma-se com a vibração da língua. O segundo, grafado como jota ou gê, é
gutural. Forma-se na garganta. Ambos, marcantes, tão diferentes do discreto erre
português (e mais ainda do brasileiro), produzido na boca.
Já a Língua Portuguesa distingue o som do Esse (caça) do de (casa), este
mais sutil, mais ambíguo. O espanhol só tem o Esse firme, claro e transparente.
Tampouco há na Língua Espanhola nossas vogais abertas, tão caprichosas e alegres.
Falta-lhes o fonema , esse som fricativo que se forma pela serena passagem do ar
pelos lábios. Há sim o outro som labiodental: Efe, de café, de maior intensidade. Já o
transforma-se quase que numa oclusiva, confundindo-se com o .
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Os Tês e Dês espanhóis são cristalinos e explosivos. Nós atenuamos alguns
dos nossos. No sudeste, muitas vezes tornam-se tchi” (leite ou pente) e “dji” (dia).
No nordeste viram “tcho” (oito) e “tchu” (muito). Ganham, assim, graça e leveza.
Nós também temos uma irrefreável tendência pela nasalização de alguns fonemas. E,
entre nós, os mineiros são campeões. Pronunciamos “larãja”, enquanto os espanhóis
dizem “naranra” (com o a bem aberto). O primeiro, dengoso, o segundo claro.
Um ciclo
Enfim, são duas línguas que, apesar de serem irmãs, têm musicalidade,
balanço e ritmo distintos. Embora se assemelhem, têm personalidades bastante
diferentes. E são expressões de culturas que se mesclam em mim e das quais sou
herdeiro. Portanto, ao reconhecer minhas raízes, foi inevitável sentir a força dessas
línguas, sentir como expressam as oralidades de povos dos quais sou depositário.
Conhecer o Espanhol me fez redescobrir o Português. Já tinha uma forte
ligação com nossa literatura. Deliciava-me com o estilo, com a sonoridade do texto,
com a leveza das palavras, com as combinações sofisticadas e elegantes. Agora era a
vez de enamorar-me com nossa oralidade. Ou melhor, com nossas oralidades.
Entretanto, a observação e as leituras me fizeram ver como vivemos uma
cisão. Uma cisão em que apenas uma modalidade do português brasileiro é
reconhecida e legitimada socialmente e as demais são relegadas à periferia da cultura.
Vivemos um verdadeiro apartheid lingüístico, em que falantes que não expressam a
modalidade padrão da língua são considerados seres humanos inferiores.
O encontro com Marcos Bagno e seu combate indignado ao preconceito
lingüístico uniu em mim duas paixões: a língua portuguesa e o desejo de mudanças.
Já vinha acalentando desde a juventude a vontade por transformações sociais, que
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possibilitassem a construção de uma sociedade mais justa e mais humana. Ao longo
do tempo, fui construindo a convicção de que o jornalismo pode ser uma das
ferramentas dessa transformação. Um jornalismo mais abrangente, mais humano.
Uma prática jornalística que tenha como pressuposto ético desvelar o real, penetrar
nas camadas mais profundas da realidade e da cultura. E, sobretudo, ter como foco a
dignidade humana.
Os estudos da sociolingüística me fizeram ver que a exclusão social no Brasil
não se restringe à perversa distribuição de renda nem ao restrito acesso às políticas
públicas, ao consumo ou à cultura. Há uma exclusão lingüística, em que parcelas
enormes da população não têm legitimados os seus modos de falar. E, por isso,
tampouco têm reconhecida a sua dignidade cultural e humana. Não teria sido meu pai
um desses excluídos, com seu “portunhol” estropiado?
Também fui construindo a percepção de que o jornalismo convencional, em
vez de penetrar na realidade, trata de legitimar a diferença, a exclusão e o privilégio.
Numa refinada operação ideológica reforça preconceitos e estereótipos. Caberia,
assim, a uma outra prática jornalística, resgatar a legitimidade dos diversos falares
existentes em nosso país.
Assim, da compreensão silenciosa entre eu e meu pai à defesa de todas as
formas de comunicação humana, de todas as variedades lingüísticas, de toda a riqueza
oral do nosso português brasileiro, um ciclo se completa.
Portanto, esta pesquisa busca reconhecer, nos meios de comunicação de
massa, modos de expressar a língua fora do padrão, porque isto significa também
conferir cidadania a milhões de brasileiros. Incorporar as oralidades brasileiras à
reportagem é uma missão a que um jornalismo mais humano não pode se furtar. Eis a
paixão que move este trabalho.
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Capítulo 1
A pesquisa
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1- Objeto:
Se um jornalismo que se pretende mais humano e abrangente não pode abrir
mão de resgatar as diversas oralidades brasileiras, algumas questões se colocam:
a) Como o jornalismo brasileiro vem lidando com a questão da oralidade?
b) Como a oralidade de setores excluídos pode ser incorporada à reportagem
jornalística?
Dessas questões resultam outros questionamentos: qual o espaço ideal para a
incorporação da Língua falada? Exatamente o que chamamos de oralidade? Qual a
real importância de se incorporar o modo de falar dos personagens no texto
jornalístico? Existe um procedimento metodológico para a incorporação dos diversos
falares na reportagem? Quais os desafios para a incorporação dos registros orais de
falantes com baixa escolaridade?
Nesta pesquisa, trabalhamos com a grande-reportagem. Partimos do
pressuposto de que a grande-reportagem é o espaço privilegiado para a incorporação
dos diversos modos de falar. Se a grande-reportagem tem a ambição de aprofundar
um tema, lançar uma luz sobre um fenômeno, desvendar uma realidade, ela é o
gênero jornalístico por excelência para que aflorem as maneiras de falar de setores
excluídos econômica e culturalmente.
Por isso, num primeiro momento, estudamos como a oralidade é incorporada
ou não em grandes reportagens brasileiras. Procuramos saber quais foram as soluções
encontradas pelos autores-repórteres e quais os obstáculos por eles enfrentados. Por
meio de algumas dessas grandes-reportagens, também procuramos refletir sobre o
papel que os falares cumpriram naqueles trabalhos jornalísticos. E, a partir daí, que
relevância a oralidade pode assumir na grande-reportagem de maneira geral.
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A investigação sobre a presença da oralidade no jornalismo permite variados
enfoques. Por isso, ao se falar de oralidade, é preciso diferenciá-la da coloquialidade,
que são marcas da Língua oral presentes num texto ou num discurso que, apesar de
falado, possui uma estrutura elaborada.
O texto jornalístico é uma narrativa. Mas uma narrativa que se difere de outros
textos como a literatura, por tratar-se de não-ficção, isto é, cujo conteúdo corresponde
ao real. Por isso, a narrativa jornalística cumpre, predominantemente, a função
referencial da linguagem e utiliza-se do foco narrativo em terceira pessoa. O uso deste
foco narrativo revela e delimita o papel do narrador, que no caso é o jornalista-autor
da reportagem. O texto em terceira pessoa pode assim conter elementos da oralidade,
no sentido de coloquialidade.
Neste trabalho, porém, interessa estudar a incorporação das falas dos
personagens à narrativa jornalística, por meio de diálogos, depoimentos em primeira
pessoa, declarações. Isso exclui trabalhar com elementos da oralidade no texto
jornalístico como um todo. Isto é, este não é um trabalho para detectar e descrever
marcas da oralidade no texto do narrador, do jornalista-autor da reportagem.
Após estudar como algumas grandes reportagens incorporam ou não os
diferentes modos de falar, e refletir sobre as possibilidades de incorporação da
oralidade no jornalismo, realizamos um experimento prático de reportagem de
História de Vida.
Neste exercício, buscamos lançar mão das propostas teóricas desenvolvidas
nesta pesquisa e incorporar a oralidade de uma mulher, oriunda do interior de Minas
Gerais e com pouca escolaridade. Na construção dessa personagem e de sua
identidade, o desafio foi superar a possível estigmatização a que ela estava sujeita.
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2- Justificativa:
No jornalismo cotidiano impresso (diário ou semanal, no caso de revistas), a
expansão de um modelo surgido no final do século XIX e sua quase hegemonização
no período posterior à 2ª Guerra Mundial reduz ou limita muito a presença da
oralidade. O texto jornalístico segue fórmulas preconcebidas, nas quais as declarações
dos entrevistados aparecem sinteticamente, introduzidas por verbos dicendi (disse,
declarou, afirmou etc.).
A utilização de declarações entre aspas cumpre duas funções no jornalismo
convencional. A primeira, dar credibilidade ao chamado fato jornalístico, mostrando
ao leitor que aquela informação é atestada por uma fonte do poder, por um
especialista no assunto ou por uma testemunha ocular.
A outra função, talvez menos nobre, mas que está explícita em diversos
manuais de redação, é isentar o repórter e, sobretudo, o veículo, da responsabilidade
por aquela informação. Ou seja, o órgão de imprensa apenas está reproduzindo uma
opinião ou testemunho de alguém, mas não garante a sua veracidade.
Ocorre que, muitas vezes, as declarações são introduzidas na notícia apenas
para confirmar aquilo que o repórter/narrador já apresentou como verdade, ou para
contrapor-se a outra declaração e exercer aquilo que o jornalismo tradicional
considera objetivo e ético: ouvir os dois lados, como se a realidade comportasse
apenas dois lados.
Mesmo nas entrevistas, no formato pergunta-resposta, as falas são geralmente
editadas e transformadas para se adequarem ao padrão da língua escrita. Na maioria
19
das vezes, não existe uma permeabilidade para modos de falar distintos daquele
considerado o padrão da norma culta.
Em realidade, as falas populares praticamente não aparecem na chamada
grande imprensa. O modo de produção do jornalismo tradicional somente concede
voz aos detentores do poder, seja econômico, político ou cultural. Assim, quase que
naturalmente, constrói-se nos grandes veículos de informação um modo de falar
estandardizado (na televisão isso é ainda mais patente, por meio da imposição de um
sotaque paulista-carioca), que pouco tem a ver com a língua realmente falada nos
variados rincões do país.
No jornalismo impresso, mesmo entre os chamados falantes cultos, as falas
são corrigidas e aproximadas do padrão escrito da língua. Com isso, o jornalismo
praticado pela grande imprensa suprime as nuances contidas, não só nos discursos dos
entrevistados, mas sobretudo nos distintos modos de falar. Em síntese, o relato
jornalístico convencional não vem incorporando a riqueza, a multiplicidade e o
dinamismo próprios da língua oral.
É no cotidiano que se tecem as epopéias anônimas, os desejos coletivos. É
também no cotidiano que se expressa a riqueza lingüística de qualquer povo. Suprimir
os falares da gente comum significa abrir mão do saber tradicional e, por
conseqüência, da correnteza profunda que move a realidade.
Exilando os múltiplos modos de falar de suas narrativas, o jornalismo
brasileiro limita deliberadamente a pluralidade de vozes. E, assim, reduz as variadas
visões de mundo e simplifica a realidade.
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3- Objetivos:
O jornalismo deveria auxiliar o ser humano a desvendar o mundo, a
elucidá-lo, a compreender os grandes fenômenos, a conhecer a si mesmo e ao outro.
O noticiário cotidiano, contudo, não vem explorando essa possibilidade. É factual,
mostra apenas uma dimensão diminuta da realidade. Por isso, a grande-reportagem
tem o potencial de tornar-se uma lente ampliada sobre o mundo.
Para realizar esse mergulho na realidade, a grande-reportagem procura fazer a
contextualização sócio-econômica-cultural e o resgate histórico do fenômeno, a
reflexão conceitual sobre ele, além de eleger protagonistas, por meio dos quais é
conduzida a narrativa. Ou seja, o relato jornalístico passa a ser feito centrado nas
figuras humanas que protagonizam os acontecimentos.
Se o protagonista é um elemento fundamental da grande-reportagem, ganha
relevância a construção de sua identidade. A maneira de falar de cada personagem é
um importante elemento de sua identidade. Daí a importância da incorporação da
oralidade na grande-reportagem.
Ocorre que, no Brasil, há uma grande dissociação entre a língua falada e a
língua escrita. A primeira obedecendo a dinâmicas específicas e, por isso, construindo
suas próprias normas de funcionamento. E a segunda presa às regras gramaticais mais
rígidas e estáticas. A sociolingüística mostra que os considerados falantes não cultos
da língua sofrem um processo de estigmatização, em virtude das características de sua
fala.
Incorporar a fala considerada errada desses falantes não significa, portanto,
apenas registrar a oralidade do personagem no texto jornalístico. Esse processo pode
reforçar a estigmatização de seres humanos já excluídos socialmente. Como superar
21
esse dilema? Como incorporar o modo de falar de cada personagem, sobretudo dos
falantes populares, sem estigmatizá-los ainda mais? Este é o objetivo desta pesquisa.
22
4- Metodologia:
Nesta pesquisa, a reflexão sobre o papel da oralidade na reportagem de
aprofundamento é feita de duas maneiras. Na primeira, três grandes-reportagens são
analisadas sob esse ponto de vista. Na segunda, é produzida uma história de vida,
como demonstração dos postulados levantados.
A partir da leitura e análise de três grandes-reportagens, verificamos como a
oralidade é incorporada ou não nos textos jornalísticos. Quais os obstáculos
enfrentados pelos autores? Que soluções eles encontraram para superar aquelas
limitações?
Além disso, naquelas reportagens que buscam expressar modos de falar,
procuramos avaliar o papel que a oralidade cumpre. E nas que excluem a oralidade,
verificar se isso as fragiliza de alguma forma, que limitações a ausência de falares
impõe.
Assim, uma das propostas desta pesquisa é construir um referencial teórico
acerca da importância da oralidade na grande-reportagem. Isso é feito a partir das
reflexões sobre o jornalismo de aprofundamento, dos novos paradigmas da ciência e
da epistemologia da complexidade.
Construir um referencial teórico sobre a oralidade no jornalismo significa
sondar suas conexões com a magia e com o cotidiano. E também estabelecer as
relações da oralidade com um jornalismo que ouse aspirar ao desvendamento do
mundo e da realidade.
As reportagens escolhidas são atuais, já que seria muito difícil identificar a
oralidade em reportagens de outras épocas, uma vez que a língua oral é viva,
transforma-se e se recria a cada momento. Foram selecionados dois
23
livros-reportagem, pois nas últimas décadas esse tem sido o veículo no qual a
grande-reportagem vem atingindo todas as suas potencialidades. A reportagem “Um
rio a procura de um país”, de Cláudio Cerri, publicada na revista Globo Rural, nº 180,
de outubro de 2000, também foi incorporada a este estudo.
Como proposta prática deste trabalho, foi construída uma História de Vida, em
que procuramos incorporar a fala da protagonista. Mas não queríamos nos limitar ao
simples registro das falas. Temos a pretensão de que esse registro não reforce o
preconceito em relação à personagem.
O primeiro passo foi definir de que grupo social seria a protagonista da
reportagem. Decidimos eleger mulheres de baixa renda, chefes de família, que vivem
nas periferias de São Paulo.
Segundo o censo do IBGE (2000), as mulheres chefiam um quarto das
famílias brasileiras. Nada menos que 11,2 milhões de mulheres assumem toda a carga
de levar adiante o sustento do grupo familiar. Mais que um acesso igualitário ao
mercado de trabalho, verificado nas últimas décadas, os dados mostram que a maior
parte dessas chefes de família são levadas às atividades econômicas para garantir o
sustento da família. No levantamento de 2002 do IBGE, 53% das chefes de família
contavam com um rendimento domiciliar mensal de até três salários mínimos e a
maioria delas era negra ou parda.
Definido o grupo social ao qual deveria pertencer a protagonista, chegou-se a
três mulheres, todas elas moradoras da Grande São Paulo.
A primeira é Natália Serapião, paulistana, 46 anos, separada, mãe de dois
filhos, negra e funcionária do setor de limpeza de uma ONG na capital paulista. A
segunda é Maria Vieira, mineira, 47 anos, faxineira diarista, casada e provedora de
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sua família. Finalmente, Maria Aparecida dos Santos Rodrigues, paulistana de 23
anos, solteira e ambulante na linha de trens Júlio Prestes–Itapevi.
Realizamos uma primeira entrevista com cada uma delas, sempre gravadas.
Com Maria Vieira e Natália Serapião, o primeiro encontro teve uma longa duração. Já
com Maria Aparecida, o contato foi mais breve, pois teve que acontecer numa das
estações do trem suburbano, durante o seu trabalho. Ficamos de marcar um novo
encontro, que nunca aconteceu.
Feitas as entrevistas, decidimos que elas deveriam ser transcritas por dois
motivos: para melhor identificar as marcas de oralidade, e também para servir de
matéria-prima para a própria reportagem.
A transcrição das entrevistas, porém, não poderia seguir os padrões de outros
trabalhos acadêmicos, nos quais o que importa é o conteúdo da fala. Nesta pesquisa,
tão essencial quanto as informações dadas pela personagem é a maneira como ela as
expressa. Por outro lado, para os objetivos desta pesquisa, tampouco se tratava de
fazer uma transcrição fonética das entrevistas, como é feita pela lingüística.
Procuramos, portanto, estabelecer uma metodologia própria de transcrição,
por meio da qual as falas deveriam ser registradas o mais próximo possível da
maneira como eram expressas. Isto se refere tanto à articulação do discurso
(concordância, estrutura das frases etc.), quanto à pronúncia das palavras.
Aqui, é preciso fazer uma ressalva. Os lingüistas advertem que o texto
resultado de depoimentos e entrevistas nunca será a fala em si, mas apenas um
simulacro. A passagem da fala para a escrita (processo de retextualização) sempre
produz alterações em algumas das especificidades da língua falada. Para Marcuschi,
o texto oral transcrito perde seu caráter originário e pessoal e passa por uma
neutralização devida à transcodificação” (MARCUSCHI, 2000, p. 51).
25
Por isso, quando falamos aqui de incorporação da oralidade no jornalismo,
estamos nos referindo ao esforço de tentar reproduzir, além do conteúdo do discurso,
o modo de falar de cada personagem. E também porque, assim como a fala transcrita,
o jornalismo também é uma representação do real, não o real em si.
A partir da análise do material coletado, decidimos restringir a reportagem à
História de Vida de Maria Vieira, em virtude de vários fatores. Havíamos perdido
contato com Maria Aparecida, a ambulante. O relato de Natália era bastante confuso e
demandaria mais uma série de encontros para organizar sua história numa narrativa
coerente. O relato de Maria Vieira era o que continha mais elementos da norma
não-padrão da língua. Mas o fator decisivo para restringir a reportagem a uma única
história de vida foi considerar que ela seria o bastante para ilustrar as propostas
defendidas neste trabalho.
Tomada a decisão, fizemos mais uma entrevista com Maria Vieira, para
complementar o primeiro depoimento e para conferir algumas marcas de oralidade.
Com todo o material transcrito, iniciamos o processo de construção da
reportagem. No primeiro momento, seguimos a metodologia adotada pela História
Oral. Isso significa retirar repetições, frases interrompidas, ruídos, suprimir as
perguntas e transformar o texto num depoimento único em primeira pessoa.
Esse procedimento foi adotado para manter, o máximo possível, as marcas de
oralidade da personagem. Com o resultado, chegamos à conclusão de que a história
de vida de Maria Vieira deveria ser predominantemente narrada em primeira pessoa.
Mas o jornalismo não pode prescindir de um narrador que costure os sentidos.
Portanto, algumas passagens foram sintetizadas na voz do narrador em terceira
pessoa.
26
5- Hipóteses:
A incorporação da oralidade no texto jornalístico é fundamental para a
construção da identidade dos protagonistas, um dos pilares de um jornalismo
humanizado e revelador do real. Entretanto, o registro puro e simples da maneira de
falar dos personagens pode levar à estigmatização dos mesmos.
Esse impasse pode ser superado se a reportagem conseguir construir os
personagens de maneira integral. A questão está, portanto, em saber o que é a
integralidade desses personagens. Talvez não haja respostas prontas, mas um caminho
possível é permitir que os personagens apareçam na grande-reportagem em suas
várias dimensões, sobretudo, no que se refere ao imaginário.
Um exemplo disso vem da literatura, com Guimarães Rosa, que incorpora (e
no caso recria) os falares dos sertanejos mineiros, sem com isso reduzir a importância
desses personagens. Ao contrário, os protagonistas do escritor são dotados de toda a
grandeza humana dos grandes personagens da literatura universal.
Ou seja, ao incorporar, além da oralidade, o imaginário dos protagonistas, a
grande-reportagem estará construindo personagens universais. Personagens estes com
os quais cada ser humano pode se identificar, conhecer a si mesmo e ao outro. Desta
forma, estaríamos ultrapassando o limite do factual e penetrando nas dimensões do
social, da cultura e do mito.
27
Capítulo 2
Conceitos
28
1- Revisão bibliográfica/Quadro teórico:
Este projeto foi iniciado no antigo Núcleo de Epistemologia do Jornalismo e
segue as formulações teóricas do professor Edvaldo Pereira Lima acerca do
Jornalismo Literário Avançado. Ele propõe um jornalismo aprofundado que desvende
o mundo e ilumine as várias dimensões da realidade. Também estão presentes as
contribuições de Cremilda Medina sobre a entrevista dialógica, os níveis de
aprofundamento do jornalismo, o diálogo de saberes.
A sintonia dos dois autores se inscreve no aparato conceitual da crise de
paradigmas, apresentada por Fritjof Capra, Boaventura de Souza Santos, Ubiratan
D´Ambrósio, Roberto Crema, entre outros, e na abordagem do pensamento complexo,
de Edgar Morin. Ou seja, os fundamentos da Teoria do Jornalismo com os quais
trabalhamos estão relacionados aos paradigmas científicos construídos a partir da
Física Quântica e outras áreas do conhecimento.
Neste sentido, este trabalho dialoga com outras pesquisas desenvolvidas no
Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da ECA–USP. Eles têm
como linha mestra refletir sobre novas possibilidades do jornalismo, enquanto
mecanismo que desvende a realidade. São pesquisas que trabalham sob a ótica da
complexidade e dos novos paradigmas da ciência, surgidos com a Física Quântica e
outras áreas do conhecimento.
Fernando Resende, em sua tese de doutorado (2002), reflete sobre o fazer
jornalístico, propondo o surgimento de narrador-jornalista, mais próximo das
demandas contemporâneas. Resende já havia enveredado pelas intersecções entre
jornalismo e literatura em sua dissertação de mestrado (2002), desenvolvida na
Universidade Federal de Minas Gerais, sobre o texto de Tom Wolfe.
29
Ana Taís Martins Portanova Barros pesquisa, em sua dissertação (2001), de
que maneira o jornalismo pode iluminar o cotidiano numa pequena comunidade do
interior do Rio Grande do Sul. Ela propõe que o jornalismo enverede pelo campo do
imaginário, pois somente desta maneira será possível criar uma proximidade afetual
entre jornalismo e leitores. No doutorado (2003), Ana Taís aprofunda o estudo do
imaginário, mostrando como o jornalismo tradicional renuncia ao seu papel de
“relacionador de significados”, ao prender-se aos ideais de objetividade e precisão.
Já Dimas Künsch, em sua dissertação (2000) avalia a produção de três revistas
católicas à luz da crise de paradigmas contemporânea. Künsch propõe que a
reportagem é o gênero jornalístico que melhor pode dar conta dos desafios de uma
epistemologia da complexidade. A reportagem tem condições de incorporar uma
polifonia de vozes e, assim, produzir sentidos plurais.
A dissertação de Sérgio Vilas Boas (2001) enfoca a construção de histórias de
vida como uma das vertentes do jornalismo de aprofundamento. Verifica de que
maneira biografias publicadas em livro se utilizam de recursos de outras áreas do
conhecimento como a história, a literatura, a sociologia e a psicologia.
A tese de Mônica Martinez (2002) propõe um novo modelo de construção de
histórias de vida para comunicadores sociais. A partir do método proposto por
Edvaldo Pereira Lima e no contexto do pensamento complexo, Martinez percorre as
proposições de Joseph Campbell sobre a jornada do herói e faz um experimento
prático com estudantes de jornalismo.
Raul Hernando Osório Vargas elabora o conceito de “ensaio-reportagem” em
sua tese de doutorado (2003). O autor reflete como a grande-reportagem pode se
converter em narrativa mediadora de sentidos e, ao mesmo tempo, reflexiva.
30
Em sua dissertação de mestrado (2004), Renato Modernell procura mostrar
que as fronteiras entre fato e ficção são muito mais tênues do que se pode imaginar,
inclusive no jornalismo tradicional, que tanto preza os ideais de objetividade e
precisão.
E Denise Casatti analisa, em sua dissertação de mestrado (2006), como a
proximidade entre repórter e entrevistado pode contribuir na construção de histórias
de vida. De acordo com ela, o aprofundamento no contato entre jornalista e fonte
favorece a construção de narrativas diferenciadas.
A reflexão sobre um jornalismo iluminador da vida e revelador da realidade
também desponta em outras instituições. Diana Damasceno, em sua tese de doutorado
na PUC-RJ (2004), mostra como as biografias escritas por jornalistas se situam num
espaço de complexidade, entre história, jornalismo e literatura. E que para estudar e
compreender essa produção, é preciso lançar mão de teorias complexas.
Algumas outras pesquisas tratam da questão da oralidade, mas não sob o
enfoque que pretendo seguir. O melhor exemplo é a tese de doutorado de Ivete
Roldão (2002). A autora procura identificar o padrão de redação do que ela chama de
linguagem oral no telejornalismo. É interessante notar neste caso, a diferença na
definição do que vem a ser oralidade. Enquanto para Roldão a narrativa
telejornalística se inscreve na oralidade por ser falada, para este projeto, o fato de se
tratar de uma linguagem planejada, redigida anteriormente, ainda que contenha
marcas de oralidade e um certo grau de coloquialidade, afasta a linguagem utilizada
no telejornalismo da língua oral, que tem como uma de suas principais características
a espontaneidade e a improvisação.
No campo da lingüística existe um grande número de pesquisas que procuram
identificar marcas de oralidade na literatura, na publicidade, no cinema e em outros
31
textos. Os lingüistas também procuram identificar e descrever as características da
língua oral nos diferentes grupos sociais, nas diferentes regiões do país, em diferentes
faixas etárias etc. E, em alguns casos, mostrar as proximidades, semelhanças e
transições da língua oral para a língua escrita.
Por esta razão, esta pesquisa se vale das contribuições da Lingüística, no que
se refere à definição e características da língua oral. E, principalmente, da
sociolingüística, que aponta o preconceito lingüístico de que são vítimas milhões de
falantes e articula as razões históricas e sociais do uso da língua, além de mostrar a
lógica do seu funcionamento.
Também buscamos a contribuição da História Oral em dois sentidos. No
primeiro, naquilo que a História Oral converge com o jornalismo de aprofundamento,
enquanto princípios norteadores, métodos de abordagem e ética. No segundo, como
ferramenta de trabalho na construção do trabalho empírico de construção de uma
história de vida.
Finalmente, a Teoria Literária contribui no que diz respeito à estrutura
narrativa e à construção de personagens. À estrutura narrativa, pois, consideramos
que a grande-reportagem possui semelhanças com o romance, no que se refere à sua
articulação interna. E à construção de personagens, pois no jornalismo de
aprofundamento, um dos grandes eixos da reportagem é a presença de protagonistas,
por meio dos quais é conduzida a narrativa.
Este projeto, portanto, complementa as pesquisas que vinham sendo
desenvolvidas no antigo Núcleo de Epistemologia do Jornalismo. Procura mostrar as
possibilidades de riqueza narrativa e de polifonia que a incorporação da oralidade à
reportagem pode trazer.
32
E se diferencia de outros estudos acerca da oralidade, no sentido de não ter por
objetivo somente a identificação de um fenômeno e a sua descrição. Esta pesquisa
pretende apresentar uma proposta de construção ética e estética da
grande-reportagem, por meio da incorporação no texto jornalístico dos modos de falar
de personagens, sobretudo daqueles excluídos social e culturalmente.
33
2- O jornalismo de aprofundamento:
Como bem sintetiza Ana Taís Barros (2001 p. 113), o jornalismo brasileiro
(...) desde o século XIX, tentou constituir um campo
científico e, a exemplo do que já ocorrera em outros países,
adotou a linguagem racionalizante para obter boa
performance no quesito “objetividade”, qualidade esta
requerida para que algo pertencesse à ciência.
É bem verdade que essa visão de ciência está relacionada ao que se
convencionou chamar de Ciência Clássica. As descobertas da Física Moderna no
início do século XX mudaram completamente a visão de mundo que o homem
ocidental havia construído ao longo dos séculos anteriores. O universo deixou de ser
uma grande máquina, em que cada mecanismo podia ser observado e descrito
isoladamente, para ser visto como um conjunto de fenômenos interligados e não
previsíveis.
A nova visão de mundo levou, num primeiro momento, a um certo
aturdimento. Mas não tardou muito para que começasse a se espraiar para outros
campos da Ciência. Seria fácil de supor que essa nova compreensão fosse um alento
para o desenvolvimento das Ciências Humanas. Pois quem, senão elas, sempre teve
dificuldade de separar acontecimentos em laboratório, realizar experimentos passíveis
de reprodução, prever e determinar efeitos futuros?
Assim, quando Fritjof Capra (1983, pp. 21-68) fala da impossibilidade de
separar objetos isolados no mundo físico e estudá-los, isso parece ainda mais claro
nas Ciências Humanas em geral, e no jornalismo em particular. Mas não é o que
acontece. Majoritariamente, o jornalismo contemporâneo mantém a mesma visão de
34
mundo proposta pela Física Clássica. Com isso, o noticiário apresenta a realidade de
forma fragmentada, factual e reducionista.
Está certo que esse modelo de jornalismo acaba cumprindo uma função
importante nas sociedades contemporâneas: informar as pessoas com agilidade e
alguma exatidão sobre eventos corriqueiros. Por exemplo, se os funcionários do
metrô iniciaram ou não uma greve e, portanto, se há ou não transporte público na
cidade. Se há previsão de chuva no feriado, se foram prorrogados os prazos para
entrega da declaração do Imposto de Renda etc.
Entretanto, torna-se bastante claro que a utilidade do jornalismo praticado pela
grande imprensa vai se restringindo cada vez mais à prestação de serviços (e ainda
assim, com ações muitas vezes questionáveis). O modelo construído no último século
tem se mostrado insuficiente em auxiliar o ser humano a se localizar e compreender o
mundo contemporâneo.
No caso brasileiro, a defasagem é ainda mais grave. Ao transplantar
mecanicamente o modelo anglo-saxão da objetividade e do texto racional, a grande
imprensa ignora o caráter relacional do nosso povo, de que fala DaMatta (1984). Esse
caráter se expressa na ambigüidade, no meio-termo, na capacidade de sintetizar
contrários. Segundo o antropólogo, se há algo a valorizar em nossa cultura é “toda
essa nossa capacidade de sintetizar, relacionar e conciliar, criando com isso zonas e
valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança” (DaMatta, 1984, p. 121).
Já a grande-reportagem tem a pretensão de mergulhar na realidade,
aprofundando a compreensão de fenômenos que o jornalismo cotidiano não consegue.
Nas palavras de Edvaldo Pereira Lima, a grande-reportagem busca
35
informar e orientar em profundidade sobre
ocorrências sociais, episódios factuais, acontecimentos
duradouros, situações, idéias, e figuras humanas, de modo
que ofereça ao leitor (...) o sentido, o significado do mundo
contemporâneo.(LIMA, 2004, p. 37)
A reportagem de aprofundamento também está relacionada à dupla ruptura
epistemológica de que fala Boaventura de Souza Santos (1989, pp. 31-45). A primeira
ruptura acontece quando a ciência abandona o senso comum, pois passa a ter controle
do conhecimento sobre o mundo concreto. Consegue estabelecer categorias de análise
e logra descrever a natureza por meio de experimentos passíveis de repetição.
Mas Boaventura de Souza Santos insiste em que está na hora de a ciência
fazer a segunda ruptura epistemológica, que é o regresso ao senso comum. Ou seja, o
estabelecimento do diálogo com o senso comum. Mas é preciso saber de que senso
comum estamos falando.
A primeira ruptura epistemológica com o senso comum representa uma
libertação dos preconceitos, estereótipos e superstições, ainda que aquilo a que
denominamos superstição possa conter algo de sabedoria. A segunda ruptura
epistemológica significa aproximar-se novamente do senso comum, mas aqui
entendido como o saber local, tradicional, que advém do cotidiano, o espaço de
construção das verdades. A segunda ruptura epistemológica, portanto, é a busca da
síntese conflitiva das múltiplas verdades.
Por essa razão, Cremilda Medina denomina de narrativa da
contemporaneidade o texto jornalístico que aprofunda a compreensão do real e de sua
complexidade. Para ela, isso acontece com “a re-humanização das pautas, a
reportagem de aprofundamento, a busca de identidade cultural, a compreensão do
cotidiano, dos tempos e espaços da atualidade” (MEDINA, 2003, p. 37).
36
Segundo Cremilda Medina, a reportagem de aprofundamento, ou
grande-reportagem, deve fazer um mergulho na realidade, atravessando níveis de
desvendamento do real: sociedade, cultura e mito (MEDINA, 2003, p. 76).
Ou seja, a grande-reportagem tem a ambição de ultrapassar a primeira película
da realidade, o factual, que se limita à descrição dos fatos. Muitas vezes, sequer os
compreende como acontecimentos de longa duração. As revistas semanais brasileiras,
por exemplo, que dizem praticar um jornalismo interpretativo, contentam-se em
estabelecer relações simplistas de causa-efeito. Em vez de buscar compreender o
presente, tentam explicar, de forma reducionista, situações e acontecimentos.
O jornalismo de aprofundamento penetra na esfera social, procurando
descortinar os múltiplos nexos entre os fatos e os contextos nos quais estão inseridos.
Ainda assim, essa segunda camada do real é insuficiente. É preciso atingir o nível da
cultura. Nas tradições, costumes, visões de mundo é que se encontram sentidos para o
real.
Mas o jornalismo terá sido revelador se, finalmente, tocar nas dimensões do
mito. Ou seja, se alcançar os elementos universais que falem à alma e ao coração de
qualquer ser humano. Aí estarão os significados simbólicos mais profundos da
realidade.
Metodologicamente, a grande-reportagem se vale da contextualização
socioeconômica, do resgate histórico, do debate conceitual e da construção de
protagonistas. Contextualiza quando traça a rede de forças que interagem sobre
determinado acontecimento. Faz o resgate histórico quando busca os antecedentes, as
origens daquele fenômeno. Realiza o debate conceitual quando se sustenta em suporte
especializado, que não dá veredictos sobre o tema, mas oferece visões inovadoras
37
acerca do assunto. E, finalmente, constrói protagonistas porque são eles que, no
cotidiano, dão significado a toda teia de acontecimentos.
É no cotidiano das ruas, portanto, que se constroem as jornadas dos heróis
anônimos. Ao resgatar os desejos coletivos expressos em cada história de vida
comum e, ao mesmo tempo, única, a grande-reportagem revela o real em suas
múltiplas dimensões. Pois são nas heróicas lutas cotidianas, na superação diária da
sobrevivência e na transcendência pela religiosidade, pela festa e pela arte que se
move a corrente profunda e silenciosa dos anseios de um povo.
Por isso, um dos pressupostos da grande-reportagem é abandonar o ambiente
fechado das redações e ir às ruas. A reportagem de aprofundamento liberta-se do
espaço asfixiante e contaminado da empresa jornalística e recebe a lufada de ar fresco
do mundo real. Na rua, a grande-reportagem encontra um mundo imperfeito e
contraditório. No exercício permanente de saber ouvir, colhe a poesia e esbarra na
violência, sensibiliza-se com a dor e vislumbra a esperança.
No cotidiano das ruas, os protagonistas da grande-reportagem tecem suas
sagas na linguagem, no diálogo, na comunicação. Os falares se misturam e se
recriam. Aquilo que definimos como língua oral, Cremilda Medina chama de Oratura.
E assim o faz para colocá-la no mesmo patamar da prestigiada literatura. Para a
grande-reportagem, o texto construído oralmente pelos heróis anônimos tem a mesma
legitimidade e poética da obra literária.
Se os protagonistas da epopéia humana são os personagens anônimos das ruas,
é primordial reconstruir suas identidades na narrativa jornalística. Ora, o modo de
falar de cada homem, de cada mulher, é um traço perene de sua identidade. Não o
único, é claro, mas fundamental. Ao mergulhar no mar do cotidiano, a reportagem de
aprofundamento acaba tocando nos múltiplos falares, ou na grande oratura.
38
É, portanto, na grande-reportagem humanizada que a oralidade pode florescer.
A incorporação da fala dos personagens, com suas características particulares,
favorece a pluralidade de vozes, preconizada por Medina. Enquanto no jornalismo
tradicional as declarações servem apenas para confirmar ou ilustrar aquilo que o
narrador já apresentou como fatos, na grande-reportagem as vivências dos
protagonistas emergem em toda sua magnitude. Possibilita-se, assim, a convivência
de diferentes visões de mundo, pois elas também estão contidas na linguagem de cada
ser humano, e não apenas a angulação da informação que a empresa jornalística
pretende.
Os objetivos ambiciosos da grande-reportagem lhe possibilitam livrar-se das
amarras do modelo narrativo convencional (a fórmula norte-americana de responder
às perguntas: quem, o quê, quando, onde, como e por quê). Mais que isso, a
grande-reportagem, por sua extensão e aprofundamento, exige soluções narrativas
mais ousadas e criativas.
Ou como aponta Boaventura de Souza Santos (1989, pp. 31-45), a linguagem
é um dos caminhos para efetuar a segunda ruptura epistemológica. Para ele, é preciso
que a ciência, e podemos dizer o jornalismo, busque uma expressão compreensível ao
ser humano comum, que resgate a poesia e a metáfora.
É na grande-reportagem, portanto, que a oralidade pode aflorar como um dos
fatores de fabulação, no conceito construído por Renato Modernell. Isto é, aqueles
elementos que “levam o leitor pelos caminhos da fantasia, sem que ele
necessariamente o saiba” ou “no sentido de direcionar o leitor a um sentimento ou
uma projeção que ultrapassa o fato” (MODERNELL, 2004, pp. 29 e 31).
39
Seja como fator de fabulação, seja como técnica narrativa, a introdução da
fala dos personagens, de acordo com as características próprias da oralidade,
conferem dinamismo ao relato jornalístico. O texto ganha vivacidade ao alternar o
discurso indireto (em terceira pessoa) com o relato em primeira pessoa. Este foco
narrativo pode aparecer tanto em depoimentos, como em diálogos, ou mesmo por
meio do registro de pensamentos do personagem.
Enquanto o discurso indireto, do narrador, segue as normas da língua escrita e
das regras gramaticais, o depoimento ou o diálogo obedecem às características
próprias da língua oral, seja em sua norma-padrão ou não-padrão. Com isso, o texto
jornalístico acaba por ampliar o registro da rica diversidade lingüística de nosso povo.
A própria língua deixa de ser vista como um conjunto de normas rígidas e passa a ser
compreendida enquanto fenômeno social vivo e dinâmico.
40
3- História Oral:
Alguns procedimentos e concepções da grande-reportagem a aproximam de
outro campo da ciência: a História Oral. Ao se pensar no papel e no desempenho do
jornalista que busca construir uma reportagem humanizada, é possível buscar um
diálogo ainda maior entre essas duas áreas do conhecimento humano.
Embora a História Oral moderna seja uma prática muito recente da ciência, a
humanidade conviveu deste a Antiguidade com relatos orais. Com o Iluminismo,
entretanto, essas narrativas passaram a ter questionada sua validade enquanto
documento histórico. Era o nascimento da História enquanto campo da ciência,
moldada dentro do paradigma da objetividade da ciência clássica.
Apenas os documentos oficiais passaram a contar com legitimidade. Em
decorrência, a História passa a narrar exclusivamente a história do poder, pois
somente as classes dominantes produziam tais documentos considerados válidos. O
enfoque da História é a luta política e as grandes transformações econômicas.
No início do século XX, um grupo de historiadores questiona a rigidez na
noção de documento histórico e defende a ampliação desse conceito, com a utilização
de fontes documentais alternativas, como diários, cartas, anúncios etc. Questiona
também a restrição do enfoque histórico nas esferas do poder e da política. Propõe
uma história vista de baixo, uma história do cotidiano.
Está aberto o campo para o ressurgimento da História Oral, que nunca havia
desaparecido, mas que nos dois séculos anteriores não tinha alcançado o status de
produção científica. Multiplicam-se os projetos e produções de narrativas da gente
comum, dos protagonistas anônimos.
41
Com isso, também se alarga enormemente a possibilidade de temas tratados
pela História. Um projeto de História Oral pode resgatar as lembranças de
sobreviventes de um campo de concentração, registrar a memória de idosos acerca do
modo de vida numa determinada cidade, recuperar as trajetórias de migrantes e até
reconstruir as histórias de vida de prostitutas.
A História Oral vai, assim, definindo uma prática muito próxima do
jornalismo de aprofundamento. Ambos vão estruturar suas narrativas nas sagas dos
heróis anônimos, buscando registrar a história, os anseios e esperanças dos de baixo.
A História Oral procura construir a história daqueles que não têm história nos livros.
A reportagem humanizada dá voz aos que não aparecem nos grandes veículos de
comunicação.
Assim como a reportagem de aprofundamento exige que o jornalista saia da
redação, a História Oral obriga o historiador a sair do gabinete. Ambos vão buscar o
material de seu trabalho no cotidiano das ruas. Ou como atesta Paul Thompson (1992,
p. 29), os historiadores “vêem-se também longe de sua mesa de trabalho,
compartilhando de experiências em nível humano”.
Os historiadores deixam de ser arqueólogos de arquivos, museus e bibliotecas
e tornam-se entrevistadores. No caso da grande-reportagem, o repórter abandona a
entrevista burocratizada, feita na maioria das vezes por telefone, e vai às ruas
exercitar aquilo que Medina (1983) chama de entrevista de compreensão.
Com a mudança de enfoque, a História Oral constrói narrativas mais vivas e
comoventes. Ao lançar-se no mundo real e colher as histórias anônimas, o relato
histórico se humaniza. Assim, também, a grande-reportagem se enriquece ao
mergulhar no cotidiano da gente comum.
42
Ao longo do século XX, à medida que se multiplicam as produções, a História
Oral vai construindo também uma metodologia própria. Dois desses procedimentos
interessam muito ao campo do Jornalismo. E, em especial, à grande-reportagem
humanizada.
Na História Oral, todo a narrativa deve ser construída em primeira pessoa,
resultado de entrevistas gravadas e transcritas. Isso é feito para que o relato surja em
sua integridade. Neste sentido, busca-se não somente a fidelidade ao conteúdo
narrado, mas também à maneira como foi relatado.
Esse cuidado com conteúdo e forma deve estar presente também na
reportagem de aprofundamento. Uma reportagem que pretenda desvendar o real por
meio de seus protagonistas não pode se satisfazer em colocar apenas o que ele quis
dizer. É preciso levar em conta a forma como foi dito, pois como diz Marcuschi, “(...)
as construções sintáticas têm valor semântico. (...) Igualmente a questão de estilo é
importante, pois ele se acha semanticamente carregado” (MARCUSCHI, 2000, p.
86).
Outro aspecto importante da História Oral que poderia trazer alguma
contribuição ao Jornalismo é a questão do produto final. O documento oral precisa ser
aprovado pelo entrevistado antes de sua divulgação. Isso implica também a
negociação de vários aspectos acerca do relato, inclusive a forma de divulgação.
No jornalismo convencional isso seria impensável. Em alguns casos, até
antiético. Mas, no caso da História Oral, parte-se do pressuposto de que o dono do
relato é o informante, afinal é a sua história que está sendo divulgada. O historiador é
apenas um facilitador para que esse relato seja conhecido.
43
A autorização do documento final é obrigatória para os oralistas. Dessa forma,
procedimento metodológico e postura ética se fundem e se tornam uma etapa natural
do fazer histórico. A não-observância desse quesito coloca em dúvida a própria
validade do material produzido.
No jornalismo convencional, a ética não está alicerçada em uma metodologia
explícita e consensual. Mesmo alguns procedimentos bastante difundidos podem
variar caso a caso, como ouvir mais de um lado acerca de um tema. Além disso, no
jornalismo brasileiro, a legitimidade do material produzido não é questionada, em
virtude do não-cumprimento de etapas rígidas.
A participação do informante em todas as etapas de produção do relato
também produz uma conseqüência radical na História Oral. Alguns historiadores têm
questionado a idéia de que o oralista seja o autor do material e falam em parceria e até
em co-autoria. A reflexão de Meihy sobre seu próprio trabalho é reveladora: “No
lugar do comando autoral, começava a pensar que meu papel era de mediador de
uma história que tinha impulso próprio e que iria ser contada por seus participantes
(MEIHY, 2006, p. 125).
Esta postulação se aproxima do papel de mediador defendido por Cremilda
Medina. O repórter como mediador dos sentidos produzidos pela grande-reportagem.
Um interlocutor profundamente solidário e identificado com o outro, que partilha com
a gente comum suas dores e anseios.
44
4- A oralidade:
Neste trabalho, é importante definir com clareza o que entendemos por
oralidade. Para isso, torna-se necessário refletir sobre o significado da própria língua.
Os cientistas estimam que os seres humanos desenvolveram uma forma de
comunicação por meio da emissão de sons há mais de 100 mil anos. Essas linguagens,
surgidas concomitantemente em várias regiões, evoluíram de poucos e breves ruídos
para sistemas mais complexos e sofisticados, dando origem a todos os idiomas
contemporâneos.
Somente há cerca de 10 mil anos surgiu a escrita. Isto quer dizer que em 90%
da jornada humana neste planeta, os povos sobreviveram e se desenvolveram sem
qualquer código escrito. Isto não diminui a importância da escrita na civilização
humana. Hoje, é impossível pensar o mundo em que vivemos sem códigos escritos.
Entretanto, fica claro que o surgimento da escrita foi – e continua sendo – uma
tentativa de reproduzir um código que lhe antecede: a linguagem oral. Dessa forma, a
escrita exerce dois papéis nas sociedades que a utilizam. De um lado, procura tornar
perene as informações veiculadas pela língua falada. De outro, busca ampliar as
possibilidades de divulgação dessas informações no tempo e no espaço.
Mas a língua propriamente dita é a língua oral. Somente um idioma falado
pode ser considerado uma língua viva. Idioma que não é falado por ninguém é uma
língua morta, ainda que possua uma infinidade de documentos escritos ou uma vasta
literatura. É o que aconteceu com o latim ou com o sânscrito.
Portanto, em qualquer idioma, seja de uma sociedade dita letrada ou não, é a
língua oral a verdadeira língua viva. É a língua oral que se transforma e se recria a
45
cada momento. Os códigos escritos procuram acompanhar essas transformações da
língua falada, mas sempre sofrem um descompasso nesse esforço de reprodução.
Com a crescente sofisticação e intercâmbio dos idiomas (orais e escritos),
tornou-se necessário descrever como cada um deles se estruturava. Surgiram assim as
gramáticas descritivas, que nada mais são do que tentativas de explicar
exaustivamente os mecanismos de funcionamento interno de cada língua. É claro que
essas gramáticas sempre estarão defasadas, tendo em vista que a língua viva se
modifica a cada dia, em cada espaço social e geográfico, a partir das contribuições de
cada falante.
Como cada grupo social utiliza-se da língua de forma particular, as gramáticas
acabam elegendo uma dessas variantes para servir de modelo. E este modelo não será
outro que não a maneira de falar dos grupos econômica e culturalmente dominantes.
Daí, o surgimento da idéia de norma-padrão. Mas é importante ter claro que norma
culta não significa a variante da língua mais rica ou mais nobre. É apenas uma das
formas como qualquer idioma é articulado, sempre existindo outras formas
igualmente válidas.
A lingüística contemporânea classifica os falantes em cultos e não cultos. São
considerados falantes cultos da língua todos os detentores de nível superior de
escolaridade e os não cultos, aqueles que têm escolaridade inferior ao ensino superior
completo. Essa divisão estanque, que num primeiro momento parece absurda, já que
existem maneiras de falar bastante distintas no interior desses dois grupos, acaba por
se tornar muito interessante, na medida em que não classifica os falantes pela maneira
como manejam o idioma materno, o que seria uma forma de classificar pelo resultado
final, pelo sintoma, e não por características apriorísticas. O termo culto, utilizado
46
para os falantes, portanto, não tem conotação de falante eficiente, correto, mas tão só
de falante com escolaridade máxima.
Dessa forma, os estudos lingüísticos são capazes de dissociar o conceito de
falante culto do conceito de norma-padrão da língua. Por meio da classificação acima,
a lingüística é capaz de estudar e descrever a maneira como cada um daqueles grupos
articula o português falado no Brasil.
Já é senso comum tanto nos meios acadêmicos como na cultura em geral que
os falantes de baixa escolaridade não seguem a norma-padrão da língua. Entretanto,
um dos estudos mais interessantes de Marcos Bagno (2000) mostra que os ditos
falantes cultos tampouco seguem as regras da norma-padrão da língua.
É aqui que entra a sociolingüística. Ela se utiliza dos estudos descritivos da
lingüística para estabelecer relações entre o uso da língua e a estrutura social vigente.
Ou seja, a lingüística grava e descreve o modo de falar de cada grupo social. A
sociolingüística avalia e interpreta esses dados.
A partir dos estudos de Marcos Bagno e de outros é possível concluir que não
existe uma forma correta de falar, associada erroneamente à norma-padrão, e formas
erradas de falar, resultante do desrespeito às regras da norma-padrão. Estritamente,
nenhum falante nativo é capaz de articular errado seu próprio idioma, pois a língua
materna é apreendida num processo tão natural quanto andar.
Um falante nativo articula seu idioma das mais variadas formas, mas todas
elas com sentido e lógica. Um estrangeiro, sim, pode falar errado, porque pode
manejar o idioma de forma equivocada e construir estruturas sem significado algum,
já que a língua estrangeira é aprendida por meio de técnicas artificiais.
47
Portanto, no universo dos falantes de uma língua, o que existe são formas
diferentes de falar de cada grupo social. Diferentes formas regionais, sociais, etárias,
de gênero, todas elas legítimas e eficazes dentro de seus contextos.
Em última análise poderíamos dizer que cada ser humano tem uma língua
própria, um idioma particular, pois a maneira de cada homem e cada mulher se
expressar é única. Para fins de estudos e de manejo dos conceitos, contudo, é preciso
considerar as similitudes dos modos de falar dentro de um grupo social como a
variedade lingüística daquele grupo.
Posto isso, a sociolingüística mostra que, no Brasil, todos aqueles que
subvertem as regras da norma-padrão da língua sofrem diversos tipos de
discriminação social. Gnerre (1985) vai mais além e diz que existe ainda o
preconceito não dito em relação aos sotaques, pois mesmo as pessoas que dominam a
norma-padrão são obrigadas a passar pela “interação face a face, que implica a
produção de uma fonologia e de uma prosódia aceitáveis” (GNERRE, 1985, p. 31).
É evidente que, em outras sociedades, também há discriminação em relação
aos modos de falar de determinados grupos sociais. Nos Estados Unidos, por
exemplo, a fala dos negros sofre discriminação. Na Espanha, a dos ciganos. Mas, ao
que parece, essa discriminação não é associada à idéia de falar errado, em
contraposição a um falar correto.
Além disso, a discriminação lingüística em outras sociedades parece estar
associada a minorias étnicas ou culturais. O que torna emblemático e também
dramático o caso brasileiro é que a discriminação atinge a grande maioria dos
falantes. E essa discriminação se dissemina e é reforçada pelos meios de
comunicação, naquilo que Marcos Bagno chama de comandos paralingüísticos.
48
Ao associar essa discriminação à idéia de “falar errado”, constrói-se um
mecanismo perverso de exclusão: quem fala errado, não domina o idioma, que é a
expressão mais primordial da cultura de um povo. Se essa pessoa não tem
competência para manejar a expressão cultural mais primária, ela acaba por perder
parte de sua dimensão humana.
E, então, perde o direito a ter direitos. Isto é, não é cidadão. Portanto, a
sociedade passa a encarar de forma natural que esses indivíduos não tenham direito
aos empregos mais dignos, a uma saúde e a uma educação de qualidade, não tenham
direito de acesso à Justiça etc., etc.
4.1- Características da língua oral brasileira:
Embora neste trabalho haja uma preocupação em delimitar claramente as
fronteiras entre a língua escrita e a língua falada, as diferenças entre uma e outra não
são absolutas. Antes, há uma continuidade. Ou como aponta Marcuschi: “as
diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas
sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois pólos opostos
(MARCUSCHI, 2000, p. 37).
Isso significa que são duas modalidades de uso da língua, com diferenças
acentuadas, mas que, ao mesmo tempo, mesclam-se em textos híbridos. Uma aula,
por exemplo, pode ser considerada uma produção oral, mas seu conteúdo foi
elaborado, planejado e resultou de leituras. Por outro lado, um bate-papo pela
internet, embora seja escrito, possui diversos elementos da língua falada, como a
49
naturalidade e a espontaneidade. Além disso, tanto fala como escrita possuem
modalidades formais e coloquiais, podem seguir a norma-padrão ou normas
não-padrão.
Se as fronteiras entre fala e escrita são aqui reforçadas, não se trata de adotar
um modelo de dicotomias estanques. As diferenças são assinaladas exclusivamente
em virtude dos objetivos desta pesquisa, que são resgatar a legitimidade dos mais
variados modos de falar.
Tanto Marcuschi quanto Bagno apontam características específicas da língua
oral usada no Brasil. Algumas dessas características são gerais e independem da
classe social, do gênero, da região ou do grau de escolaridade do falante.
O Brasil, por exemplo, é um dos poucos países ocidentais em que, nas
respostas afirmativas, raramente se utiliza o Sim. Em vez disso, os falantes constroem
o que os lingüistas chamam de “respostas ecóicas”: “Fez? Fiz”; “Comprou?
Comprei”.
Alguns tempos verbais são muito pouco utilizados na língua falada. O
pretérito mais-que-perfeito (fizera) é substituído pela forma composta pelo pretérito
imperfeito mais o particípio (tinha feito). Quase nenhum brasileiro usa o futuro do
presente (farei) em situações informais. Em vez disso, utiliza-se o verbo principal no
infinitivo, antecedido do verbo ir no presente (vou fazer). E o futuro do pretérito
(faria), muitas vezes, é trocado pelo pretérito imperfeito (fazia) ou mesmo pela forma
composta do verbo ir no pretérito imperfeito mais o verbo principal no infinitivo (ia
fazer). Em todos os casos, ao contrário do que rege a gramática normativa, os falantes
se fazem entender perfeitamente.
50
Outras características da língua falada no Brasil também subvertem a
norma-padrão. Utiliza-se o verbo ter no lugar de haver e usa-se o mim como sujeito
de infinitivos (pra mim fazer). Esta fórmula só não é usada pelo falante mais
escolarizado, quando submetido a um processo de autovigilância. Em situações
informais, todos os falantes lançam mão dela, o que demonstra que a gramática
normativa não tem conseguido registrar o uso natural da língua.
Também é raro na língua falada no Brasil o uso das formas oblíquas (l)o(s) e
(l)a(s). Em vez disso, é freqüente o uso de “viu ela”, “encontrou com ele”, mesmo
entre falantes escolarizados, quando em situações informais.
Segundo Dino Preti (2000), a gíria é típica da língua oral. Ela surge
geralmente ligada a grupos marginalizados por suas condições econômicas, étnicas ou
culturais ou pelas atividades ilícitas que praticam, como camelôs, negros,
homossexuais ou mafiosos.
Por isso, inicialmente ela cumpre uma função de defesa do grupo. É uma
espécie de código restrito só inteligível pelos membros daquele setor, etnia ou
organização. Em conseqüência, elas variam de acordo com o grupo social a que
pertence o falante. Porém, com o passar do tempo, muitas gírias são incorporadas à
linguagem dominante e algumas delas ingressam, inclusive, na norma-padrão da
língua. Mas no seu estágio de código restrito, o uso de gírias enfrenta grande
preconceito na sociedade.
Características de pronúncia
Algumas características da língua oral estão associadas à pronúncia das
palavras. Aliás, há uma diversificação de pronúncia regional, principalmente das
51
vogais, que em algumas regiões são abertas e em outras, fechadas. Esse é um dos
elementos, somado a outros, que caracterizam os falares regionais.
Contudo, algumas características da língua falada no Brasil, que tornam a
pronúncia de algumas palavras diferente do registro escrito, são generalizadas em
quase todo o país. Torna-se cada vez mais comum, por exemplo, a supressão do R
final dos verbos no infinitivo. Na fala, os verbos são ditos “comprá”, “fazê”, “dividi”,
“propô”.
Outro exemplo de diferença entre a pronúncia e a grafia das palavras está na
supressão dos ditongos OU e EI. Em todas as regiões do país, esses ditongos já
desapareceram em palavras como pouco e beijo, que se transformam em “poco” e
“bejo”. Mas sobrevivem em outras, como beiço, jeito etc.
Além disso, há uma tendência disseminada de desnasalizar as vogais
postônicas. Isto é, eliminar o M que acompanha vogais depois da sílaba tônica, como
em homem, ontem, bagagem, transformadas em “home”, “onte” e “bagage”. Este
fenômeno lingüístico, aliás, é histórico. Inúmeras palavras que, no latim, possuíam
um N final, foram incorporadas ao português sem o som nasal, como exame
(examen), legume (legumen) e nome (nomen).
Há ainda outros fenômenos de pronúncia que não estão presentes em todo o
país. Enquanto na maioria das regiões fala-se “bulacha”, “burracha”, “muleque” e
“murango”, em São Paulo, a pronúncia mais comum é bolacha, borracha, moleque e
morango. Isso não significa, de modo algum, que os paulistas falam mais
corretamente que os demais brasileiros. Trata-se apenas de uma diferença de
pronúncia.
52
Fenômenos estigmatizados
Outros fenômenos lingüísticos ocorrem sobretudo com falantes menos
escolarizados. Apesar disso, é importante ressaltar que há uma tendência dessas
formas serem disseminadas por todos os falantes, como acontece com muitas gírias.
No entanto, como são fenômenos lingüísticos predominantes nos setores
menos escolarizados e também excluídos social e economicamente, estes fenômenos
lingüísticos sofrem intenso preconceito e são vistos como formas erradas de falar,
característicos de “pessoas inferiores”.
Aqui reside, portanto, o grande desafio do jornalista que incorpora a oralidade
em seu texto. Alguns fenômenos linísticos comuns em falantes menos
escolarizados são:
a) Transformação do LH em I
No Português não-padrão, o encontro consonantal LH, geralmente, é
transformado em I, num processo conhecido como assimilação, pois a articulação do I
é semelhante e ao mesmo tempo mais fácil que a do LH. “Trabaiá”, “fia”, “bataia”,
“abêia” são alguns exemplos.
Pode-se considerar que há mesmo uma tendência a essa transformação na
Língua Portuguesa. O mesmo ocorre no Francês e no Espanhol. Na Língua Francesa,
a transformação do LL em I acontece apenas quando ele é precedido de I. Travailler,
fille, bataille, abeille têm pronúncias muito próximas do Português não-padrão.
É interessante verificar o que aconteceu historicamente com a Língua
53
Francesa. Até o final do século XVIII, a pronúncia considerada correta do LL era a
mesma do nosso LH, pois era assim que a aristocracia falava. Com a Revolução
Francesa, em 1789, a ascensão da burguesia faz com que, paulatinamente, a nova
pronúncia (I no lugar de LH) se disseminasse por toda a sociedade. O falar anterior
passou a ser, inclusive, ridicularizado. Hoje, é considerado correto falar I quando
aparece grafado ILL. Isso mostra que o certo e o errado são determinados por quem
controla o poder econômico, político e cultural.
Já no Espanhol, o mesmo encontro LL, equivalente ao nosso LH, também está
se transformando em I, naquilo que é chamado de yeísmo” na Espanha. Calle,
caballo, batalla, paella são pronunciados “caye”, “cabayo”, “bataya” e “paeya”. Aqui
as exceções são a Argentina e o Uruguai, onde o LL assumiu a pronúncia do nosso J:
“caje”, “cabajo”, “bataja”, “paeja”.
No caso da Língua Portuguesa, é relevante notar que este fenômeno
lingüístico já está penetrando em vários estratos da sociedade. É freqüente ouvir
jovens universitários dizerem “véio, aquela muié é muito bonita” ou “amanhã tenho
que trabaiá, véio”. É claro que essas expressões são utilizadas em ambientes e
situações informais, mas mostram que a transformação do LH em I está se
disseminando sobretudo entre os mais jovens, que estão entre aqueles que renovam e
recriam a língua. Não é difícil imaginar que no futuro todos falem assim.
b) Transformação do ND em N
Este fenômeno lingüístico acontece também pela assimilação. Isto é, tanto a
articulação do N quanto do D ocorrem na mesma região da boca. Portanto o N acaba
assimilando o D durante a fala. Surgem assim “falano”, “fazeno” ou “sorrino”.
54
Semelhante a este fenômeno é a assimilação do MB pelo M, em “tamém”.
Mesmo os chamados falantes cultos, em situações informais ou quando falam mais
rápido, assimilam tanto o D quanto o M, transformando ND em N e MB em M.
Ambos os processos de assimilação estão presentes também em outras línguas
latinas, como o Espanhol, o Italiano e o Catalão. Mas nestes idiomas, algumas
palavras, em que houve assimilação, já foram incorporadas às respectivas línguas
padrão.
c) Plural redundante
O fenômeno conhecido como eliminação das marcas redundantes de plural é o
conhecido “erro de concordância”, como por exemplo na frase “as flor é bonita”. Isso
acontece porque na variedade do Português não-padrão, funciona a lógica da
economia e da concisão.
O objetivo primordial da língua oral é comunicar. E para comunicar é preciso
fazer-se entender, ser compreendido. Ora, a partir da lógica da concisão, basta uma
única marca de plural para se fazer entendido. Na frase acima, qualquer interlocutor
compreenderá que o falante refere-se a mais de uma flor. Ou seja, além de conciso, o
Português não-padrão é preciso.
A concisão também é a lógica que rege o Inglês, e no caso o Inglês padrão. As
marcas de plural numa frase em Inglês, em geral, resumem-se a duas, no presente, ou
a uma única em outros tempos verbais. Já no Francês, embora haja várias marcas de
plural na escrita, na língua falada elas não são todas perceptíveis.
Portanto, a eliminação de marcas de plural numa frase falada, em vez de
55
indicar ignorância em relação à língua, demonstra apenas uma variedade lingüística
que ainda não foi incorporada pelo idioma padrão.
d) Simplificação das conjugações verbais
Neste caso, também funciona a lógica da concisão. As seis formas verbais
derivadas do latim, e que se aprendem na escola, vêm sendo simplificadas no
Português brasileiro. E por todos os falantes. Hoje, utilizam-se, no máximo, quatro
conjugações. O “vós” desapareceu há quase um século. O “tu” é utilizado em
pouquíssimas localidades. Em muitas regiões, o pronome “tu” é conjugado na terceira
pessoa, como em Santos, no Rio de Janeiro e mesmo no Rio Grande do Sul. Sobraram
“eu sonho”, “tu/você/ele sonha”, “nós sonhamos” e “eles sonham”, do Português
padrão.
O que acontece é que os falantes menos escolarizados acentuam essa
tendência à simplificação e reduzem as formas verbais a apenas duas: “eu sonho” e
“tu/você/ele/nós/eles sonha”. Aqui novamente impera a funcionalidade do Português
não-padrão. Isto é, basta colocar o pronome para comunicar a quem se refere a frase.
Embora haja uma lógica intrínseca nesse uso, a simplificação das formas
verbais também está sujeita à estigmatização da nossa cultura. Assim como a
eliminação das marcas redundantes de plural, os falantes que simplificam as
conjugações verbais a apenas duas sofrem o preconceito dos demais falantes.
Mas mesmo pessoas escolarizadas, sobretudo os mais jovens, estão
simplificando ainda mais as formas verbais. Utilizando o subterfúgio de colocar “a
gente” como pronome no lugar de “nós”, elimina-se mais uma forma verbal. Assim,
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caminhamos para o uso de apenas três conjugações no Português padrão falado no
Brasil: “eu sonho” e “tu/você/ele/a gente sonha” e “eles sonham”.
Portanto, a diferença entre os mais escolarizados e os menos está apenas na
intensidade da simplificação. Simplificação que é uma tendência do Português falado.
e) Contração das proparoxítonas em paroxítonas
O Português não-padrão tem um ritmo paroxítono. Isto é, praticamente não
existem palavras proparoxítonas nas falas populares. Por isso, há uma tendência a
contrair proparoxítonas do Português padrão em paroxítonas. Daí surgem “arvre”,
“corgo”, “tauba”, “fósfro” e muitas outras. Esse fenômeno lingüístico é muito comum
entre falantes das regiões mais interioranas do país, ou entre habitantes das grandes
metrópoles oriundos do meio rural ou de pequenas cidades.
Embora esse tipo de registro lingüístico seja estigmatizado em nossa cultura, a
História da Língua Portuguesa revela que não é somente no Português não-padrão que
há uma tendência à contração das proparoxítonas. Inúmeras palavras que, no latim,
tinham aquela estrutura foram “simplificadas”. Cálidu virou caldo, cunículu
transformou-se em coelho, frigidu tornou-se frio e assim por diante.
Nestes casos, entretanto, as paroxítonas já estão incorporadas à Língua padrão.
Portanto, a ridicularização que, muitas vezes, aquelas formas de expressão sofrem
estão também relacionadas ao desconhecimento que temos da História da Língua
Portuguesa e das transformações pelas quais ela permanentemente passa. É como se,
ao observar palavras como “bebo” (bêbado), “passo” (pássaro) etc., estivéssemos
vendo uma fotografia do idioma e isso nos causa um estranhamento. Se
57
conseguíssemos ver o ‘filme’ da Língua, teríamos uma compreensão mais clara da
lógica e da riqueza dessas palavras.
f) Rotacização do L
Este fenômeno lingüístico acontece quando, nos encontros consonantais, o
“L” é substituído pelo “R”, como em “probrema”, “incrusive”, “prano”, “craro”. É
um dos fenômenos mais estigmatizados em nossa cultura. Quem o utiliza é
automaticamente tido como “analfabeto”, “ignorante” ou “que fala tudo errado”.
A sociolingüística, entretanto, mostra que esse fenômeno lingüístico está
associado a uma tendência natural da língua portuguesa. Uma série de palavras que,
no latim, possuíam L no encontro consonantal, na Língua Portuguesa moderna
trocaram esse L pelo R, como por exemplo em igreja, praia, escravo, frouxo e muitas
outras.
O interessante é que as palavras latinas ecclesia, plaga, sclavu e fluxu
mantiveram a mesma estrutura, tanto no francês como no espanhol: eglese e iglesia,
plage e playa, esclave e esclavo, flou e flojo. Somente no Português sofreram tal
transformação, o que confirma a tendência natural no desenvolvimento do idioma
(BAGNO, 1997, p. 44).
Se ninguém hoje é considerado ignorante ao pronunciar praia, igreja ou
escravo é porque toda vez que uma variedade lingüística é incorporada pelas classes
dominantes, ela passa a ser considerada correta.
58
5- Fala – identidade – estigma:
Como já foi dito, a reportagem de aprofundamento tem como pressuposto a
humanização do relato. Isso se traduz, dentre outras formas, pela construção de
protagonistas das ações. São eles os condutores da reportagem jornalística.
Ao contrário do que se pensa, o protagonista não aparece apenas nos relatos
biográficos ou nos perfis jornalísticos. Qualquer grande-reportagem pode ser
construída a partir da história de vida dos personagens envolvidos com aquele
acontecimento. A realidade do narcotráfico no Rio de Janeiro pode ser explorada a
partir da trajetória de um traficante, como faz Caco Barcellos em Abusado. A situação
dos presídios femininos em São Paulo pode ser tratada a partir do relato das próprias
detentas, como acontece em Cela Forte Mulher, de Antonio Prado. Até mesmo os
efeitos da bomba atômica podem ser apresentados a partir da história de vida de seis
sobreviventes, opção feita por John Hersey em Hiroshima.
Se a reportagem de aprofundamento é conduzida a partir da trajetória de seus
protagonistas, a fala de cada um deles adquire, assim, importância vital no relato
jornalístico. Não somente o conteúdo das declarações, mas sobretudo o modo de falar
dos personagens é elemento constitutivo de suas identidades. É difícil pensar na
construção de um personagem sem levar em conta o seu modo de falar.
Mas é preciso ter claro que, quando nos referimos à identidade, estamos
levando em conta a complexidade desse conceito. Não estamos falando de uma
identidade unificada e estável, mas em identidades mutantes, contraditórias. Em seu
artigo, Felipe Pena (2004) aponta as três concepções de identidade construídas na
civilização ocidental. A primeira, do iluminismo, relacionava identidade ao sujeito
59
dotado de razão. A segunda, sociológica, definia identidade na relação do indivíduo
com a sociedade. Ambas trabalham com a idéia de essência, de núcleo permanente.
Já a terceira, vinculada à teoria do caos e à complexidade, vê a identidade
como atributo em constante transformação. Na visão de Felipe Pena,
A identidade é descentrada e fragmentada. Tem lugar
para contradições e esquizofrenias. Classe, gênero,
sexualidade, etnia, nacionalidade, raça e outras tantas
nomeações formam uma estrutura complexa, instável e,
muitas vezes, deslocada. (PENA, 2004, p. 99)
E, se por um lado, o modo de falar de cada pessoa é elemento construtor de
sua identidade, múltipla, mutante e até contraditória, por outro, pode gerar estigmas.
Como bem salienta Bagno (1997), alguns fenômenos lingüísticos característicos da
língua oral, sobretudo de falantes não-cultos, são considerados erros pela gramática
normativa e também um modo errado de falar, pelo conjunto da sociedade,
produzindo-se o que ele chama de preconceito lingüístico.
Essa questão torna-se ainda mais dramática no caso de falantes de baixa
escolaridade. Essas pessoas, em geral, já são excluídas do ponto de vista social,
econômico e cultural. A noção de que falam um português errado ou “estropiado” só
faz aumentar a exclusão a que são submetidas.
O preconceito lingüístico é intensificado pelos próprios meios de
comunicação: “é todo esse arsenal de livros, manuais de redação de empresas
jornalísticas, programas de rádio e de televisão, colunas de jornais e de revistas,
CD-ROMs, ´consultórios gramaticais´ por telefone e por aí afora (BAGNO, 1999,
pp. 76 e 77), que reforçam a noção de que existe um falar correto (restrito a poucos) e
um falar errado (comum a milhões).
60
Numa sociedade extremamente hierarquizada como a brasileira, o modo de
falar também serve para indicar a posição social do falante. Não basta o local de
moradia, a maneira de se vestir, a instituição em que se estuda ou se estudou. É
preciso demarcar a origem também pela linguagem. O preconceito e a ridicularização
são resultado dessa valoração prévia. Cumprem, assim, o papel de mostrar ao falante
‘o seu devido lugar’.
Explicitar um falar considerado incorreto pela maioria dos leitores pode
contribuir com o processo de exclusão em que vivem milhões de seres humanos.
Como alerta Marcuschi, “sob o ponto de vista sociolingüístico, (...) deve-se ter o
cuidado de não (...) produzir retextualizações implicitamente preconceituosas
(frisando aspectos morfológicos não-padrão ou escolhas lexicais inusuais)
(MARCUSCHI, 2000, p. 88).
Esse, portanto, é um desafio que a grande-reportagem tem que enfrentar:
como incorporar o modo de falar de personagens não-cultos sem reforçar o estigma
de que são ‘pessoas inferiores’, que ‘não conseguem sequer se expressar
corretamente’?
A hipótese já levantada é que esse obstáculo estará superado se a reportagem
lograr construir os protagonistas da narrativa jornalística dotados de sua grandeza
humana. E isso só será alcançado se a reportagem penetrar nas dimensões do
imaginário, da magia, do mito.
61
6- O imaginário:
A incorporação das falas dos personagens pode conferir ao relato jornalístico,
além de dinamismo e autenticidade, uma pluralidade de visões de mundo. Mas
também pode reforçar o preconceito em relação aos mesmos personagens. Ganha-se
por um lado, mas o esforço terá sido em vão, se os seres humanos, protagonistas da
grande-reportagem, forem submetidos à ridicularização.
Para superar esse risco, a grande-reportagem terá que construir os
protagonistas das narrativas em suas várias dimensões. E isso será feito penetrando
nos campos da magia e do imaginário. Dessa forma, os personagens trarão elementos
universais, que criarão pontos de contato com qualquer leitor, do menos instruído ao
mais intelectualizado.
Tal façanha já foi alcançada no campo da ficção. João Guimarães Rosa, ao
trazer para a literatura todo o universo do sertão mineiro, constrói personagens que,
por mais humildes e pouco instruídos que sejam, carregam elementos universais do
ser humano. É certo que Guimarães Rosa não transcreve literalmente as falas dos
sertanejos. Ele cria uma linguagem própria inspirada no modo de falar daquele povo.
Ao criar, resgata e renova a linguagem da gente comum, por meio de um texto
carregado de poesia e simbolismo.
Vejamos este trecho extraído da novela Campo Geral, publicada em 1956,
como parte da obra Corpo de Baile, depois separada como Manuelzão e Miguilim.
Nesta conversa, o garoto Miguilim acompanha os últimos momentos de Dito, o irmão
mais velho. Dito está acamado em virtude do tétano contraído ao se cortar com uma
lata:
62
Depois a gente cavacava para tirar minhocas, dar
para as perdizinhas. Mas o mico-estrela pegou as três,
matou, foi uma pena, ele abriu as barriguinhas delas.
Miguilim não contou ao Dito, por não entristecer. “As
perdizinhas estão assustadinhas, estão crescendo por
demais... Amanhã é o dia de Natal, Dito!“Escuta,
Miguilim, uma coisa você me perdoa? Eu tive inveja de você,
porque o Papaco-o-Paco fala Miguilim me dá um beijim... e
não aprendeu a falar meu nome...” O Dito estava com jeito:
as pernas duras, dobradas nos joelhos, a cabeça dura na
nuca, só para cima ele olhava. O pior era que o corte do pé
ainda estava doente, mesmo pondo cataplasma doía muito
demorado. Mas o papagaio tinha de aprender a falar o nome
do Dito! “Rosa, Rosa, você ensina o Papaco-o-paco a
chamar alto o nome do Dito?” “Eu já pelejei, Miguilim,
porque o Dito mesmo me pediu. Mas ele não quer falar, não
fala nenhum, tem certos nomes assim eles teimam de não
entender...” (...) “Miguilim, eu sempre tinha vontade de ser
um fazendeiro muito bom, fazenda grande, tudo roça, tudo
pastos, cheios de gado...” “Mas você vai ser, Dito! Vai ter
tudo...” O Dito olhava triste, sem desprezo, do jeito que a
gente olha triste num espelho. “Mas depois tudo quanto há
cansa, no fim tudo cansa... (GUIMARÃES ROSA, João,
1984, pp. 105 e 106)
Com um diálogo sintético, Guimarães Rosa mostra toda a dor da perda, a
urgência do carinho, a esperança lutando contra a morte. Por meio das crianças, o
autor toca nos arquétipos da perda, da fraternidade, da esperança e da dor. Neste
pequeno trecho, as duas crianças do sertão mineiro expressam o mais profundo e mais
universal da dualidade humana: vida e morte.
Além dos diálogos, Guimarães Rosa insere o modo de falar/ver o mundo do
garoto no discurso indireto livre, isto é, no pensamento de Miguilim: quando este não
conta ao irmão sobre a morte das perdizes, quando sente a urgência de o papagaio
aprender o nome de Dito e quando observa a doença do irmão.
Na novela Sarapalha, da obra Sagarana, primeiro livro de Guimarães Rosa,
publicado pela primeira vez em 1946, dois primos de um povoado arrasado pela
malária conversam melancolicamente. Ribeiro acaba revelando que sonhou com a
63
mulher que o abandonara e fugira com um boiadeiro que tinha se hospedado em seu
rancho. Ocorre que Argemiro também era apaixonado pela mulher do primo.
— Por que é que foi, que só hoje é que o senhor
sonhou com ela, Primo Ribeiro?
— Não sei não... Só sei que se ela, por um falar, desse
de chegar aqui de repente, até a febre sumia...
— É... Se ela chegasse, até a febre sumia...
— Também, não sei: eu hoje cansei de sofrer
calado... Vem um dia em que a gente fica frouxo e arreia...
Também, eu só estou falando é com você, que é p’ ra mim
que nem um irmão. Se duvidar, nem um filho não era capaz
de ser tão companheiro, nesses anos todos... (GUIMARÃES
ROSA, João, 2001, pp. 160 e 161)
A fala de Ribeiro dispara todo o processo de culpa em Argemiro por ter
amado a mulher do primo, ainda que em silêncio. Estão colocados aí os arquétipos da
traição, da lealdade, da vingança e do perdão. E Guimarães Rosa consegue no
pequeno diálogo inserir todos os sentimentos juntos, de forma contraditória,
mostrando as sutilezas e os paradoxos da alma humana em seus personagens.
Na ficção, há muitos exemplos de construção de protagonistas que carregam
elementos universais. Alguns se tornam arquétipos da humanidade. Antonio Candido
mostra que “a força das grandes personagens vem do fato de que o sentimento que
temos da sua complexidade é máximo e acrescenta: “o romancista é capaz de dar a
impressão de um ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza” (CANDIDO,
Antonio, 2004, p. 59).
A grande-reportagem, portanto, deve procurar construir protagonistas com a
mesma complexidade. No caso desses personagens reais, o caminho é ultrapassar o
meramente factual. É preciso ir além e tocar nos elementos universais, arquetípicos
que todos carregam. Para isso, a reportagem deve incorporar a magia e o imaginário.
64
Este processo, contudo, não é simples. A própria ciência que almeja
compreender além das fórmulas reducionistas encontra a mesma dificuldade. Ao
narrar as grandes descobertas da Física Moderna e também as grandes vivências dos
místicos orientais, Capra (1983, pp. 21-68) mostra a impossibilidade de descrever
esses fenômenos utilizando a linguagem ordinária. Servir-se apenas dessa linguagem
é limitar-se à construção de conceitos lógicos e comuns, sem penetrar, portanto, nas
dimensões da profundidade da vida.
Novamente Capra lança uma possibilidade. Ao tratar das maneiras
encontradas pelas filosofias orientais para comunicar seus conhecimentos, diz que o
fazem através de mitos, símbolos, imagens poéticas ou afirmações paradoxais, pois os
místicos têm consciência de que as descrições verbais da realidade são imprecisas e
incompletas.
Se buscar a linguagem adequada para tratar dos mistérios da vida já é um
esforço, antes é preciso buscar instrumental para captar essa magia no próprio
processo de apuração da reportagem. Onde buscar o imaginário, a magia? Ana Taís
Barros (2001) nos diz que é no cotidiano de nossos personagens:
No dia-a-dia, eivado pelo anódino, por milhares de
desimportâncias, o furta-cor das histórias cotidianas é o
verdadeiro sustentáculo da vida. O mundo material passa a
ser suportável, agradável e por fim desejável quando a
anima (...) lança, sobre o banal, sua numinosidade.
(BARROS, 2001, pp. 177 e 178)
São, portanto, as histórias simples, os sofrimentos, os sonhos, as pequenas
lutas diárias, os desejos, as fantasias, os gestos singelos, como o de Miguilim pedindo
a Rosa que ensine logo o papagaio a pronunciar Dito, que serão universalmente
partilhados. Como diz Ana Taís “A magia é uma reivindicação por um jornalismo
65
que promova o encontro dos saberes e a partilha de afetos. Que contribua para o
encantamento do mundo” (BARROS, 2001, p. 189).
66
Capítulo 3
Análise
67
A utilização da oralidade no texto jornalístico coloca uma série de desafios.
Nos veículos da chamada grande imprensa, seu uso é restrito ou inexistente, em
função da própria padronização que as empresas impõem. Por essa razão, tratamos da
reportagem de aprofundamento, em geral, mais livre das limitações empresariais.
Entretanto, mesmo na grande-reportagem, na qual o repórter tem a liberdade de
imprimir a sua marca de autor, existem alguns nós a serem desatados.
O primeiro passo é a tomada de consciência. É necessário que o jornalista
conheça a natureza distinta da língua oral. Não basta dominar as regras da gramática
normativa. É preciso conhecer as características intrínsecas da oralidade, saber que
ela possui uma dinâmica própria. Ou seja, ter consciência de que língua escrita e
língua oral são duas expressões do mesmo sistema lingüístico, mas com
características particulares.
O segundo passo consiste em assumir uma postura em defesa da legitimidade
da língua oral e, principalmente, das variedades não-padrão da língua. Para isso, é
preciso superar a visão dicotômica e equivocada de que a língua escrita é a língua
correta e superior e a língua falada, incorreta e inferior.
O terceiro passo implica na auto-sensibilização. Aqui é preciso abrir um
parênteses sobre o processo de produção da reportagem. Pois para incorporar a
oralidade na narrativa jornalística não basta simplesmente gravar os depoimentos e
transcrevê-los.
Classicamente dividida em etapas, a reportagem abarca a pauta (planejamento
prévio), a captação das informações, a redação do texto e a edição. Por ora, o que nos
interessa é a captação das informações. Ela pode ser feita por meio de pesquisa,
68
entrevistas ou observação. O texto jornalístico irá trazer dados e informações oriundas
dessas três formas de captação.
No caso da entrevista, ela pode ser gravada, anotada pelo repórter ou
simplesmente ouvida (no jornalismo contemporâneo, aceita-se ainda a entrevista
respondida por escrito pelo entrevistado – neste caso, não há como falar em
oralidade).
Ou seja, mesmo em entrevistas anotadas ou realizadas exclusivamente pela
escuta do que diz o entrevistado, o repórter terá de ter sensibilidade para observar “o
modo de falar” de cada personagem. Sem essa sensibilidade, o jornalista poderá
desprezar traços de oralidade até em depoimentos gravados.
O quarto passo exige o desenvolvimento de uma técnica particular para
registrar a oralidade. Ciente das características da língua oral, o jornalista terá então
de fazer opções estilísticas. Isto é, entre as inúmeras características da oralidade,
quais serão mantidas e quais serão relevadas.
Trata-se aqui de encontrar o tênue equilíbrio entre a legibilidade e a
manutenção da identidade do personagem. Por exemplo, o autor irá registrar a
supressão do R final dos verbos no infinitivo (“fazê”, “brincá”, “produzi”), a
desnasalização das vogais postônicas (“garage”, “bagage”, “homi”), a redução dos
ditongos (“poço”, “troxa”)? Caso faça essa opção, por que não registrar também
outras variedades de pronúncia, como “minino” (no lugar de menino) e “culégio” (em
vez de colégio)?
A introdução da oralidade no texto jornalístico, assim como em textos
literários, pode levar a um impasse, como observa Dino Preti, citado por Urbano:
69
Ao tentar, pois, descrever o ato falado, esbarra o
escritor com esse primeiro entrave. Se quiser superá-lo (e
alguns o fizeram, em todas as épocas, conforme veremos),
caminhará certamente para uma ortografia fonética
individual, nem sempre uniforme e razoável, que poderá até
impedir a compreensão do leitor, habituado à transcrição
convencional dos signos sonoros. (URBANO, 2000, p. 129)
Finalmente, o jornalista que pretende incorporar a oralidade em seu texto
enfrenta um desafio ainda maior: como registrar o ‘modo de falar’ dos personagens
sem reforçar o preconceito? Mas como não estigmatizar o personagem, mantendo sua
dignidade de ser humano e, ao mesmo tempo, registrar uma fala que represente a sua
identidade cultural? Eis o grande dilema do jornalista que incorpora a oralidade na
reportagem.
Veremos a seguir como três profissionais da grande imprensa trabalharam essa
questão ao produzir reportagens de aprofundamento. Cláudio Cerri publicou Um rio à
procura de um país, na revista Globo Rural de outubro de 2000, que discute a
transposição das águas do São Francisco. Caco Barcellos, jornalista da TV Globo,
desvenda o universo do narcotráfico no Rio de Janeiro, tendo como fio condutor a
trajetória de Juliano VP, líder do Morro Dona Marta, no livro-reportagem Abusado.
Antonio Carlos Prado, repórter da revista IstoÉ, penetra no mundo dos presídios
femininos em São Paulo, traçando o perfil de dezenas de internas, no
livro-reportagem Cela Forte Mulher.
Embora possam ser consideradas três grandes reportagens no que diz respeito
aos níveis de aprofundamento propostos por Cremilda Medina e também na busca de
sentidos e significados mais abrangentes, como propõe Edvaldo Pereira Lima, os
trabalhos lidam de forma bastante distinta no que se refere ao uso da oralidade na
narrativa.
70
É certo que cada um dos repórteres deparou-se no trabalho de campo com a
questão da oralidade. Cada um deles encontrou diferentes modos de falar. E essas
oralidades, além de constituintes das identidades dos personagens com os quais os
autores se relacionaram, traziam particulares e diferentes visões de mundo. De que
maneira cada um deles lidou com esse fenômeno na narrativa jornalística é o que
veremos nos exemplos a seguir.
71
1- Um rio à procura de um país:
Cláudio Cerri constrói uma verdadeira obra prima do jornalismo de
aprofundamento. Por meio de uma linguagem extremamente elaborada e poética,
ocupa vinte páginas da revista Globo Rural de outubro de 2000, para discutir a
transposição das águas do rio São Francisco.
O autor faz o resgate histórico da questão, desde a descoberta do rio pelos
europeus até os projetos mais recentes de transposição. Realiza a contextualização,
desvendando a realidade social, econômica e cultural de toda a região banhada pelo
rio. Neste sentido, é interessante o registro das tradições religiosas das comunidades
ribeirinhas. Dona Maria da Rosa, 70 anos, guardiã da imagem de São Gonçalo, o
santo violeiro, personifica a tradição, a fé e a cultura de um povo.
A reportagem também provoca o debate conceitual de que fala Cremilda
Medina. É interessante observar que para refletir sobre a situação da bacia e as
possíveis conseqüências da transposição, Cerri não se vale apenas do saber científico
(nele comparecem o geógrafo Milton Santos, falecido em 2001, o biólogo Hugo
Godinho, estudioso do rio há 30 anos, os agrônomos José Theodomiro de Araújo e
Otomar de Carvalho, o engenheiro João Cezar Pierobom e o historiador Bernardo
Mata Machado), mas também do artístico (os escritores Sávia Dumont, Olavo Celso
Romano e Wilson Lins e o violeiro Manuel Neto de Oliveira), do religioso (o bispo
de Barra, na Bahia, dom Luiz Cappio) e, inovadoramente, do próprio saber popular.
Seu Bininho, de 90 anos, e o capataz baiano Manuel Charuto, entre outros, discutem a
piscosidade do rio.
72
A sabedoria local também aparece nas histórias do beiradeiro Lauro de Assis
(junto com seu cão Mata Grande), do pescador Albertino de Deus, do boiadeiro João
Henrique Ribeiro, o seu Zito (que acompanhou uma comitiva cujo capataz era
Manuelzão e da qual participou o escritor João Guimarães Rosa), do vaqueiro Lázaro
Pereira e do agricultor Antonio Ruço.
Um dos pontos luminosos da reportagem é o resgate da memória viva da
resistência negra nas barrancas do São Francisco. Por meio das histórias de Chico
Tomé, 106 anos, dona Joana Camandaroba, 86, e Maria de Moura, 78, habitantes das
margens mineiras e baianas do rio, Cerri reconstrói a formação racial e resgata o
papel de “coito” de negros revoltosos e índios fugidos que a região exerceu. Esses
três seres humanos são os depositários da história e da luta de um povo por liberdade
e sobrevivência.
Ao longo da reportagem, Cerri chega mesmo a atingir as profundezas do mito
e toca metaforicamente nos arquétipos do movimento (a corredeira do rio), da
sobrevivência (o peixe), e da transcendência e da superação (o horizonte).
Entretanto, apesar de introduzir uma dezena de personagens populares, Cerri
se mantém preso à estrutura narrativa tradicional. A reportagem é praticamente toda
ela conduzida em terceira pessoa. As falas desses ricos personagens populares
aparecem de forma limitada, introduzidas entre aspas e verbos dicendi.
É verdade que autor tenta incorporar algo de oralidade, como na fala do jovem
pescador Marcos dos Santos; “Pra ganhar melhor, só com profissão muito
autorizada, que meu estudo não alcança” (CERRI, 2000, p. 44), ou do violeiro
Manuel Neto de Oliveira, o Manelim: “Virou dessarumação. Aquilo foi usura (...).
73
Metade da mata do Urucuia virou carvão (...) vai junto a umidade e a chuva
(CERRI, 2000, p. 49). Praticamente só isso.
Dessa forma, a reportagem de Cerri acaba por não construir protagonistas. Há
personagens sim, ricos, variados, representativos das várias facetas que o tema
transposição do São Francisco comporta. Mas não surgem protagonistas no sentido de
a reportagem ser conduzida por meio deles. Protagonistas que, em todas as suas
dimensões, tornem-se pilares da grande-reportagem e expressem sentidos universais
da relação do ser humano com o rio e, assim, lancem conexões profundas com os
leitores.
O jornalista fez a opção de deixar homens e mulheres em segundo plano. Estes
formam um mosaico humano que acompanha o rio. O São Francisco torna-se, assim,
protagonista mítico de sua reportagem.
Não se quer aqui estabelecer uma relação de causa-efeito entre a incorporação
da oralidade e a construção dos protagonistas. Apenas levantar a hipótese de que a
não-construção de protagonistas está de alguma forma entrelaçada com o fato de o
autor não ter aberto as comportas de seu texto para que jorrassem os modos de falar
de seus personagens.
É claro que, em virtude profundidade desta reportagem e do virtuosismo do
autor em compor a narrativa, a ausência da oralidade não a compromete. Mas até por
conta da riqueza estilística, cabe questionar se não seria o caso de incorporar mais os
falares regionais e, assim, dar legitimidade a eles.
74
2- Cela Forte Mulher:
No caso do livro-reportagem de Antonio Carlos Prado, o autor enfrentou um
outro desafio. Ao tornar-se personagem do próprio livro, Prado teve que decidir como
registrar sua própria fala. Essa questão ganha relevância, sobretudo, quando
confrontado o modo de falar do repórter com os falares das presidiárias. Como alerta
Marcuschi,
Há também questões éticas envolvidas, já que a
transcrição pode reproduzir preconceitos na medida em que
discrimina os falantes, deixando, para uns, evidências
socioletais em marcas gficas, anulando essas evidências,
para outros. (...) Essa distinção faz supor que o entrevistador
tem uma “fala culta” ao passo que seu informante, não.
(MARCUSCHI, 2000, p. 53)
O autor opta, então, por corrigir a fala das personagens, adotando o padrão da
língua escrita culta em todos os registros, tanto do repórter/narrador, quanto das
presidiárias/personagens. No processo de retextualização, faz novas opções léxicas,
reordena concordâncias, redefine sintaxes.
Mas acho que só entende o que é essa adrenalina
quem também a
possui. Mesmo algumas bandidas não a
compreendem porque não a têm – adrenalina é um jeito
especial de estar no mundo, conseqüentemente é um jeito
especial de estar no crime, é tentar conseguir tudo o que se
quer, na hora em que se quer.
Eu seqüestro porque gosto, não há explicação.
Mutilar é conseqüência do seqüestro relâmpago.
Eu fui molestada sexualmente pelo meu padrasto
quando era criança e isso pode ter acelerado a minha
entrada na vida do crime. Mas não foi o motivo principal.
Ninguém se torna bandida porque foi estuprada quando era
criança, porque passou fome na infância, porque apanhou
muito da mãe ou do pai – pode acreditar. Achar que alguém
vira bandida por causa da família ou por causa de outra
pessoa qualquer é teoria de quem estuda só nos livros mas
nunca visitou com freqüência uma cadeia. Na verdade eu já
75
tentei matar o meu padrasto mas não consegui. Quando sair
daqui, eu o
mato.
Parar de seqüestrar eu não vou, mas não precisarei
fazer dois ou três seqüestros por semana.
Essa pena enorme que eu tenho de cumprir
corresponde aos crimes que cometi dos dezoito aos dezenove
anos.
As pessoas costumam se chocar, ficam
escandalizadas.
Eu não me julgo uma pessoa ruim. Não seqüestro por
ruindade, faço porque gosto. Um empresário, teimoso que
era, me forçou a cortar-lhe
três dedos e um pedaço da
língua.
Quando eu era criança, minha mãe me dava dinheiro
para
ir à papelaria. Tinha dinheiro para comprar lapiseiras,
gosto muito de lapiseiras, mas eu sempre preferia roubá-las.
Eu sempre penso o seguinte: se nós não existíssemos,
muita gente não teria a menor função. (PRADO, 2003, pp.
37 e 38, grifos nossos)
Nos trechos acima, extraídos do depoimento da personagem Bela, 20 anos,
condenada a 48 anos de prisão por seqüestro e homicídio, Prado utiliza vocábulos
incomuns na língua oral (corresponde, molestada, conseqüentemente), insere o futuro
do presente (precisarei) e o futuro do pretérito (teria), corrige concordâncias e opta pelo
pronome pessoal “nós”, em vez do disseminado “a gente”.
Ainda que a personagem possa ter um certo nível de escolaridade, os elementos
inseridos pelo autor não corresponderiam sequer à fala informal de falantes cultos da
língua. E é preciso levar em conta que se trata de uma jovem, quase adolescente.
O mesmo acontece com o trecho abaixo, um diálogo entre o autor e a
personagem Ivoneide, paraibana, com passagens pelo manicômio judiciário. É
interessante notar que na fala do repórter os imperativos seguem a norma gramatical,
quando na língua oral, mesmo de falantes cultos, eles assumem a forma do indicativo.
O autor perde a oportunidade de tornar a sua própria fala mais próxima da língua oral.
76
Com, isso, a oralidade ganharia legitimidade, por tratar-se de um falante de nível
superior e prestígio social.
No caso da personagem, há o uso do pronome pessoal “nós”, com o reflexivo
“nos”, gramaticalmente correto. Não aparece a simplificação da conjugação do verbo
amar. Os plurais também estão todos explicitados, ao contrário do que acontece na fala,
principalmente de falantes de baixa escolaridade.
— Ivoneide, tome cuidado. Olhe nas mãos de quem
você está colocando o seu pescoço.
— Não tem perigo. Nós nos amamos e o amor é lindo.
— Mas é bom lembrar que seu grande amor gosta de
tentar estrangular as noivas.
— Isso ele fez com as outras mulheres frouxas. Com a
baianinha aqui vai ser diferente, sou arretada que só vendo!
(PRADO, 2003, p. 43, grifos nossos)
O autor ainda tenta dar um colorido à fala da personagem com a expressão ‘sou
arretada que só vendo’, mas é quase nada se comparado com o restante do depoimento
dela.
A retextualização que altera o modo de falar do personagem fica mais evidente
no trecho abaixo, um diálogo entre o autor e Eulália, condenada a 20 anos de prisão por
homicídio. Eulália nasceu e foi criada na rua. Portanto, supõe-se que possui pouca ou
nenhuma escolaridade. No texto, contudo, produz concordância correta e utiliza o
futuro do presente (serei/seguirei).
— Eu? Trabalhar de doméstica, vendedora, ficar
nessas
merrecas? Nem morta. Volto para o crime, só que
dessa vez não deixo a casa cair, jamais serei presa
novamente.
Mas você vai sair daqui com trinta e quatro anos,
e assim mesmo em liberdade condicional. Não vai dar para
ser modelo.
77
— Se não der, não deu. Seguirei na vida do crime.
(PRADO, 2003, p. 61, grifos nossos)
A eliminação de plurais redundantes (concordâncias gramaticalmente
incorretas) e o desuso das formas pronominais oblíquas são características da língua
oral, inclusive em falantes cultos. No texto de Prado, porém, essas formas aparecem
em abundância, mesmo em depoimentos de personagens de origem simples, como no
relato da psicótica apelidada de Latinha:
— Tenho feito muitos jornais dentro da minha
cabeça! Os discos voadores descem, apanham os exemplares
e os levam para o espaço. (PRADO, 2003, p. 101, grifos
nossos)
O depoimento de Gilda, uma jovem de 23 anos e condenada a 59 anos de prisão
por latrocínio, mais parece a avaliação psicológica de um especialista. Não que uma
presidiária não possa ter uma opinião sobre o sistema penitenciário, mas a sofisticação
que o repórter deu ao relato torna a fala deslocada. Além disso, o autor utiliza
novamente o pronome oblíquo, quando praticamente ninguém no Brasil o faz no
discurso oral, e insere o verbo adquirir para dizer que a moça não tem sentimento de
culpa:
— É preciso compreender
as diretoras e as guardas.
Elas não acreditam
no trabalho que fazem nas
penitenciárias, deixaram de acreditar em si próprias, e é por
isso que não mudam a maneira de pensar
nem acreditam que
uma presa como eu possa evoluir. Eu não adquiri sentimento
de culpa nem vou tê-lo
algum dia. (...) (PRADO, 2003, p. 73,
grifos nossos)
Em todos esses trechos, é possível observar que Antonio Carlos Prado não
apenas deixou de incorporar traços da língua oral nas falas de suas personagens, como
78
corrigiu essas mesmas falas. O modo de falar de cada uma delas é padronizado de
acordo com as regras da língua escrita padrão.
Com isso, suas protagonistas perdem identidade, pois deixam de ter
personalidade lingüística. Tanto a presidiária com curso superior quanto a empregada
doméstica, tanto a paulista quanto a paraibana, tanto a jovem de classe média quanto
a garota criada na rua, possuem o mesmo registro oral, o mesmo léxico, a mesma
pronúncia.
Tornam-se, assim, personagens difusas, que fragilizam a própria narrativa.
Neste sentido, cabe a pergunta: por que o autor teria feito essa opção?
Provavelmente, Antonio Carlos Prado decidiu por “corrigir” as falas das
personagens, como uma tentativa de atenuar o estigma que já persegue essas
mulheres. Ressaltar falas consideradas incorretas poderia aumentar ainda mais o
rechaço que a sociedade nutre contra elas.
Se houve uma opção ética no sentido de garantir uma certa “dignidade
lingüística” às presidiárias, por outro lado, os depoimentos tornam-se artificiais, pois
não respeitam a dinâmica e as características intrínsecas da língua oral. O texto perde
dinamismo e, muitas vezes, soa pedante.
Para não correr o risco de estigmatizar ainda mais as presidiárias, Antonio
Carlos Prado simplesmente desiste de enfrentar os desafios de incorporar a oralidade
em sua reportagem. Opta por um texto uniforme, mas artificial.
79
3- Abusado:
Caco Barcellos busca outra postura frente à oralidade. Com ousadia, procura
incorporar a fala de seus personagens, ciente de que elas são tanto construtoras de
identidades quanto porta-vozes de diferentes visões de mundo. Isso ganha relevância
sobretudo tendo em vista que os principais personagens, os moradores do Morro
Dona Marta, são parte de um setor excldo da sociedade, sem acesso aos bens
culturais e materiais que a ordem econômica vigente produz. Vejamos um trecho:
Em seguida, Juliano ouviu tocar a campainha do
celular. Observou o número que estava chamando e abriu um
sorriso. Recebeu uma bronca de Tucano.
— Pelo menos põe no vibrador, Juliano. Esse barulho
todo vai acabá chamando os homi.
Juliano ouviu com atenção a crítica, mas resolveu
atender a quem chamava.
— Luana, sol da minha praia. Tô
numa correria aqui.
Segura aí que eu já já te ligo.
A pedido de Tucano, Juliano saiu rápido dos limites da
favela e entrou na floresta. Antes pediu para alguém desligar a
campainha do celular.
— Quem é bom nisso? Põe pra vibrá essa porra!
Já estavam entrando na mata, quando uma mulher
chegou esbaforida:
— Tu qué destruí minha família, Juliano.
— Destruí o quê, Goretti. Calma mulhé.
Goretti era uma das namoradas de Tucano, tinha um
filho dele.
— Vocês esqueceram da festa do meu filho, legal, hein?
Tucano e Juliano trocaram olhares em silêncio
enquanto Goretti insistia em convencê-los a adiar a missão.
— Deixa pra amanhã, qual é o problema, Juliano?
— Aí, deixa comigo. Sem caô
. Eu que sei da parada
certa. Seguinte, Tucano: tua mina
cabrera. Confio no
instinto de mulher, cara. Tu fica com teu filho. Vô chamá o
Pardal pro
teu lugar, na moral!
80
Pardal tinha 18 anos, embora aparentasse mais. Desde
os sete já prestava serviços esporádicos na boca, ultimamente
na função de soldado. Estava em atividade na área próxima ao
Lixão e vibrou quando soube da decisão de Juliano. Assumiu a
tarefa tão logo recebeu a mochila e a arma de Tucano.
— Que cano é esse, cumpadi! Aí, seguinte: vô sentá o
dedo nos
cara! Não vô mole, não vô mole – disse Pardal,
convencido da importância da missão para a continuidade da
quadrilha. (BARCELLOS, 2003, p. 37, grifos nossos)
Vemos neste trecho que Barcellos registra diversos elementos característicos
do modo de falar de seus personagens: uso de gírias (caô, parada, na moral, mina
etc.), eliminação de plurais redundantes (nos cara, os homi), eliminação do R final em
infinitivos (chamá, qué, destruí etc.), simplificação de conjugações verbais (tu fica),
desnasalização de vogais postônicas (homi), abreviação de alguns vocábulos (vô, tá,
tô).
Com isso, o texto ganha autenticidade e dinamismo. Os personagens são
construídos de forma realista. A linguagem é reveladora do grupo social a que
pertencem. Por outro lado, o uso das marcas de oralidade não cria grandes
dificuldades para a compreensão do leitor.
Mas é interessante observar a opção feita pelo autor em outro trecho. Nele,
Barcellos aponta uma característica do falar do protagonista, exatamente para mostrar
o preconceito sofrido pelos moradores do morro. E constrói uma situação em que o
fenômeno lingüístico do traficante aparece em situação de reciprocidade com a
falante culta. Isto é, a suposta ignorância de Juliano sobre a pronúncia das palavras se
equivale à ignorância da garota da Zona Sul carioca em relação às gírias da favela.
As melhores amigas condenaram antes dos pais.
Sugeriram a Haruno evitar o namoro com um jovem que
cometia erros de português. Algumas, as que o conheceram
pessoalmente, riam de Juliano sempre que ele trocava a
81
pronúncia de algumas letras ou quando convidava a
namorada para passear:
— Haruno, vamo uma volta na avenida Atrântica?
— Atrântica?
Os erros de Juliano não eram o que mais a
incomodava. Afinal, ela também quase nada sabia das gírias
da favela. Um se divertia com a ignorância do outro e
gostavam de trocar informações.
— Você disse que está bolado comigo. Bolado? O que
significa?
— Advinha!
— Gamado, apaixonado...
— Craro que não, Haruno. É bravo, incomodado.
— Não é craro. É claro, certo, Juliano?
— Sem caô.
— Caô?
— Sabe o que é caô, não, aí? Já é demais. Tu nunca
entrô numa favela na sua vida, não?
— Eu não. Dizem que só tem bandido lá em cima...
— Apelá
não vale!. (BARCELLOS, 2003, p. 53, grifos
nossos)
Aqui, é reveladora a opção feita por Barcellos. Este trecho é um dos poucos
em que o autor explicita a “rotacização do L” (Atrântica, craro), feita pelo
protagonista. Como um dos fenômenos lingüísticos da língua oral mais
estigmatizados pela nossa cultura, o autor não o reforça em outras falas, nem do
protagonista, nem dos demais personagens. Ao contrário de ser um descuido de
retextualização, a eliminação dessa característica leva a crer numa decisão do autor
em não reforçar um traço lingüístico que reforça o preconceito em relação aos
personagens.
Caco Barcellos enfrenta os riscos de incorporar a oralidade em seu trabalho.
Seleciona alguns elementos que considera relevantes para construir a identidade de
82
seus personagens, escolhe traços da oralidade que acredita conferir maior dinamismo
e ao texto jornalístico e despreza outros para proteger a dignidade dos personagens
(caso da rotacização do L). Confere, assim, autenticidade a seus personagens.
No que diz respeito à humanização dos protagonistas, é possível afirmar que o
autor consegue resgatar a dignidade desses seres humanos marginalizados em todos
os sentidos. Para aprofundar o tema do narcotráfico no Rio de Janeiro, Barcellos
constrói uma reportagem a partir de um protagonista, Juliano VP. E o faz em todas as
suas dimensões. Ao invés de estereotipar o traficante, como fazem os grandes
veículos de comunicação, humaniza-o. Isso não quer dizer que amenize a violência e
a crueldade das quais o personagem é tanto vítima, quanto produtor.
83
Capítulo 4
A pesquisa empírica
84
1- Uma história de Vida:
“Eu não guardo mágoa de ninguém”
Mulher, negra, 47 anos: Maria Vieira relembra a infância pobre na roça, a morte de
dois irmãos pequenos, o pai maltratando os filhos. Mãe de quatro filhas: Maria Vieira
revive a luta para comprar roupa e material, as crianças em cima da cama nos dias de
chuva forte – o medo da enxurrada que entrava no pequeno cômodo como se fosse
um rio. Diarista, nunca teve carteira assinada: Maria Vieira dependurada em ônibus,
tantas baldeações, tantas patroas.
Mineira, chegou em São Paulo faz trinta anos: Maria Vieira constrói uma geografia
afetiva em que Sabinópolis, onde nasceu, é muito mais real que a cidade de São
Paulo, com seus muitos bairros que servem apenas para identificar as patroas – minha
patroa do Brooklin, minhas patroas do Aeroporto. As referências de tempo e espaço
confundem-se com o eterno ciclo de limpar e arrumar a casa dos outros. Maria Vieira
interpreta sua vida, suas conquistas e seus sonhos, que resistem com coragem à
invisibilidade imposta aos oprimidos.
Tempos de trabalho e luta: São Paulo
Maria, 16 anos. Assim como outros migrantes, acreditava que seu destino era São
Paulo: poderia ganhar dinheiro, ajudar os pais, ter uma vida melhor. Eu cheguei em
São Paulo em setembro de 1976 e eu sempre trabalhei de doméstica. Depois que meu
primeiro marido faleceu eu comecei a trabalhar de diarista, faz uns 18 anos mais ou
menos que eu trabalho de diarista. Muitos familiares e amigos já estavam em São
Paulo, inclusive os irmãos.
Chegô uma vez que veio todo mundo imbora prá cá, minhas amiga, meus irmão. Foi
um cara lá troce meus três irmão pra trabalhar aqui em São Paulo na construção
civil. Depois, meu tio troce a minha tia com os filho dele, a minha amiga também Foi
vindo todo mundo, aí eu fiquei muito triste, sabe.
85
Eles começaram a ficar prá cá foi em 71. Fiquei lá mais cinco ano lutando. Aí, eu
pus na cabeça que aqui em São Paulo eu ia ter um futuro melhor, que ia trabalhar,
comprar uma casa, ter isso e aquilo. Aí coloquei na cabeça que eu queria vimbora.
Meu pai não queria deixar. Eu falei pra minha mãe, minha mãe falou, Maria o que
você vai fazer em São Paulo? Você não tem nem aonde ficar... Meus irmão tava aqui,
mas morava junto com um monte de amigo. Então, lógico que não ia morar com eles
né?
Maria pediu a uma tia que a acolhesse, e a tia concordou em recebê-la: Fui e vendi
minhas coisa, milho, feijão, tudo pra arrumar o dinheiro. Incrusive, tinha um moço
que trazia as pessoa aqui pra São Paulo de perua.
Meu pai judiava muito da gente, hoje em dia eu não tenho mágoa dele, eu tenho
muita dó dele, eu cuido dele, gosto muito dele, o que passou já passou, mas ele foi
cruel com a gente. Minha mãe não, Deus que tenha ela no que lugar que ela esteje,
mas ela foi muito boa com a gente, fiquei com muita pena de deixar minha mãe.
A viagem tornava-se uma realidade, o sonho começava a se realizar: Combinei tudo
com o rapaz E no dia da minha madrinha viajar, eu pedi pra ela me trazer. Meu
dinheiro não dava pra passage e pra trazer um dinheirinho pra cá, aí eu fui num cara
lá que emprestava dinheiro, ele me emprestou um pouco, e eu vim embora com minha
madrinha. Me falaram pra pôr uma pedrinha na boca quando visse a estátua do
Borba Gato, imagina que eu vim com uma pedrinha e fiz isso. Minha madrinha falou:
que que cê tá fazeno? É que eu acreditei, era pra dar sorte, sei lá... Agora eu passo
por lá, vejo a estátua e ainda lembro.
Chegano em São Paulo fiquei na casa da minha madrinha uma semana, depois
minha tia foi lá me buscar, eu fiquei morano na minha tia. Minha tia arrumou
emprego pra mim. Eu nem sabia atravessar a avenida, minha prima que me levava
todo dia e buscavaAí teve um dia que eu falei pra Léia não precisa ir me levar, pode
deixar que eu vou sozinha, vou com Deus. Mas você não sabe atravessar! Eu falei,
sei.
86
Eu fui atravessá a avenida, quando o farol fechô pros carro eu não atravessei,
quando o farol abriu pros carro é que eu fui atravessá. Veio um carro em cima de
mim e eu comecei a ficá tremeno, tremeno, e o cara gritou: Cê é loca! Cê vai morrê!
Só deu tempo pra eu dá um pulo na otra calçada Fiquei até zonza Tinha uma senhora
que falou assim pra mim: olha, quando você for atravessá, você espera o farol fechá,
quando os carro pará, você atravessa, aí quando ficá verde pros carro, cê não
atravessa, que é perigoso, cê morre. Ela me ensinô. Depois disso eu aprendi, e ia e
voltava, e comecei a estudar à noite, que eu queria continuar o estudo.
Maria logo começa a trabalhar como empregada doméstica e, com exceção de breves
períodos, nunca mais deixaria de limpar e arrumar. Trabaiei o primero mês e mandei
dinhero pro moço lá, que eu tava deveno... Paguei.. Aí no segundo mês, trabaiei,
ganhava dinhero, mandava um pouco pro meu pai mais minha mãe. Ajudava minha
tia em casa, fazer compra tamém, que ela tinha cinco filho e meu tio trabaiava num
taxista e ela num trabalhava. Então eu tinha que ajudá também. Aí fui tratá dos meus
dente, porque tava tudo um pobrema, né. E fui levano a vida assim.
Depois da chegada a São Paulo, saudades da família, principalmente da mãe. Escreve
cartas, que alguém lá em Minas lia para os pais – na época tudo se resolvia com
cartas, fossem notícias, envio de dinheiro. Divertimento, apenas nas poucas horas que
aproveita para sair com amigas e visitar os parentes. A vida pessoal da jovem Maria,
da mulher Maria, nunca mais vai se dissociar dos humores e rompantes dos patrões. A
gravidez da primeira filha, Maria esconde da patroa. Maria pouco comenta do
namoro, não há imagens românticas nem revela se tinha o sonho de se casar com o
namorado: Primeiro eu arrumei o namorado que era o pai da Tatiana. Aí eu fiquei
grávida da Tatiana. Quando minha patroa foi saber que eu tava grávida eu já tava de
cinco pra seis mês. Eu apertava a barriga, escondia. Só minhas amiga que ficou
sabeno. Fui escondeno, escondeno, até que ela descobriu.
O dia em que contou a verdade para a patroa é recordado com detalhes : Teve um dia
que eu fui na mercearia buscar as coisa pra ela. Eu lembro que ela ficava sempre me
reparano. Quando eu cheguei, ela perguntou: Maria, eu tô achano você tão diferente,
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cê tá gorda, ocê ta grávida? Aí eu falei pra ela: É, tô grávida. Nem eu sabia de
quanto tempo tava, porque nem pré-natal eu fiz.
Maria continuou morando com os patrões até dar à luz. Tinha então vinte anos. Fala
sem ressentimento do pai de sua primeira filha: Esse rapaz era de Minas. Quando
chegou no mês d’eu ganhá a Tatiana ele sumiu. Depois que ela tava acho que com
uns dois mês, por aí, ele apareceu. Aí queria registrar ela no nome dele, só que aí eu
num aceitei. Na hora que eu mais precisei dele, ele num tava presente. Eu era uma
pessoa muito simpres... Eu era tão tonta... Eu gostava dele, só que depois eu percebi
que ele num gostava de mim, só queria zuá mesmo, sabe?
A decisão de ter a filha
Mesmo solteira, e sabendo das dificuldades que enfrentaria, Maria decidiu ter uma
filha. O namorado queria que abortasse: Tem uma amiga minha que foi numa crínica
aí em Pinheiros e abortou o filho dela. Eu que fui com ela nessa crínica. Ele queria
que eu fosse nessa crínica. E eu tava grávida de cinco pra seis mês e eu falei: Não!
A amiga entrou numa sala, e ficou muito, muito tempo, lá nessa sala. Depois é que
ela saiu. Aí a gente veio embora. Aí passou uns dois, três dia, ela teve esse aborto, na
casa da patroa dela. Eu num sei o que eles fizeram lá. Diz que tinha uma sonda que
eles coloca, sei lá, que a pessoa fica dois, três dia, ou quatro dia, com essa sonda,
que a pessoa depois aborta, né. Eu acho que ela fez foi isso.
Para Maria, aborto, de jeito nenhum: Eu sentia que num devia de fazer, que era uma
vida, né. Onde cubé eu, cabe minha filha. Eu pensava comigo assim, quando eu for
ganhá ela, eu nem vou vim morá aqui na casa da minha patroa, que meu patrão num
vai aceitá. Eu vou pro hospital, ganho ela e depois vou morá embaixo da ponte com
minha filha. Meus irmão também não vão me aceitá. Minha família nenhuma vai me
aceitá. Quê que eu faço? Ganho minha filha e vou morá embaixo da ponte! Na minha
cabeça era assim.
A patroa de Maria chamou sua tia e combinaram que a moça trabalharia até ganhar o
bebê. Depois disso, Maria iria para a casa da tia com a criança. Apesar das dúvidas e
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ansiedade pelas quais passou, Maria relembra com alegria dessa primeira gravidez. A
minha tia ficou triste porque aconteceu isso. E eu toda feliz, que eu tava esperano a
Tatiana E eu ia no Pão de Açúcar, lá perto da casa da minha patroa, e ia comprano
as ropinha escondida. Todo pagamento que eu recibia, eu ia lá comprá ropinha
escundida, Tava gostano de ser mãe. Incrusive que eu achava uma graça... Eu
achava tão bonitinho nenêm...
A tia internou Maria num hospital de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. A
moça ficou em trabalho de parto durante três dias. Como a menina não nascesse, os
médicos decidiram pela cesareana. Mãe e filha correram risco de morrer: Eu sofri pra
caramba pra mim ter a TatianaQuase que eu vô eu e ela também, porque passou da
hora d’ela nascer. Depois eu tive compricação na minha cesária. Eu fiquei dezoito
dia no hospital internada. Só que graças a Deus ela nasceu bem, com saúde, né.
No tom calmo que marca sua fala, as situações desagradáveis que enfrentou parecem
amenidades. Nenhuma crítica às pessoas que lhe causaram sofrimento, em nenhum
momento assume o papel de vítima. Cenas dramáticas são descritas com
tranqüilidade, sem rancor: Depois do parto eu fiquei na casa da minha tia. Eu fiquei
oito dia na casa da minha tia. Depois as minhas prima começô a impricá comigo,
porque a Tatiana chorava. Porque ela num deixava dormi de noite. Uma das minhas
primafalou: Ah, vai dormi lá no terraço com essa menina pra ela pará de chorar.
Embora revele gratidão pela tia, Maria, sempre discreta, nunca se sentiu à vontade
com seus parentes; lá não era sua casa.
Para Maria, a situação era insustentável. Mesmo com a filha recém-nascida de poucos
dias, ela pede para voltar para a casa da patroa. Eu fiquei tão triste com isso, aí eu
falei pra minha tia, eu quero ir embora pro meu seuviço. Aí minha tia: Não, você
num terminô a dieta, como é que cê vai trabalhá? Eu falei, Vou. Aí a minha tia troce
eu pra minha patroa, eu fiquei. Quando eu mudei da minha patroa pra onde eu moro
hoje, a Tatiana tinha um ano e dois mês. Até então eu fiquei morano aí com ela, com
a minha filha.
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O pai, em Minas, não aceitava ter quea filha fosse mãe solteira: Acho que com dois
mês, eu fui em Minas, levei ela pra batizá. Meu pai num queria nem me vê pintada de
oro. Diz que ele falô que não me aceitava mais, num me considerava como filha. Aí
minha mãe começô a falá um monte com eleaí ele aceitô. Incrusive ele batizô a minha
filha. Maria havia ido a Minas para ficar de vez, mas acabou retornando para São
Paulo, pois a patroa a chamava de volta, precisava dela. Essa patroa é tia Fina, com
quem Maria trabalhou como empregada doméstica por mais de sete anos.
A tia Fina, nossa, era dez. Só que o meu patrão era ruim demais. Eu fiquei lá esse
tempo todo por causa da tia Fina e das menina, que ela tinha três fio, Marcelo,
Elaine e Eliana. Eis era um amô de pessoa, mais o meu patrão, pelo amor de Deus.
Seu Guido era terrível! Ele era tão ruim que as banana passava de madura, já tava
pra aprudecê e queria que eu comesse aquelas banana.
Eram muitas as implicâncias do patrão: O Marcelo, o filho dele era pequeno, ele era
muito danado. Eu deixava a cozinha tudo limpinha, sem um galfo na pia, tudo
arrumadinho, o Marcelo chegava e fazia aquela bagunça, que era muleque, né.
Quando ele via a pia lá suja, o galfo lá, ele já vinha me chamano a atenção. Vixe, ele
falava um monte! Tem que lavá esses copo! Eu falava, Seu Guido, tava tudo
limpinho, o Marcelo chegô e bagunçô. A tia Fina falava tamém, mais num adiantava.
Ele era muito ruim. Tanto pra mim quanto pra tia Fina. Mas a minha patroa já tá de
idade, há pouco tempo memo eu fui visitá ela. Tia Fina tá até meia coisa da cabeça.
Ele tamém, acho que de tanta coisa ele tá meio tantã da cabeça, entendeu? Mais eu
fiquei muito tempo morano lá com eles.
A patroa foi se apegando à Tatiana: Ela carinhava minha filha, queria que eu desse
minha filha pra ela de qualquer jeito. E eu num quis dá. Nossa, era apegada com a
minha filha, que eu nunca vi assim. Ela cuidava da minha filha como se fosse uma
filha dela. Dia de sábado, ela falava assim, Maria, cê num quer sair, passear um
pouco? Pode sair, eu fico com a Tatiana. Aí eu fazia a mamadera da Tati, dexava a
Tatiana dormino, tudo direitinho. Eu saía, passear com as minhas amiga, tinha um
parquinho lá perto de onde eu trabaiava, a gente ia e passeava no parquinho. Aí
quando eu chegava, ela tava lá deitada no sofá abraçadinha com a Tatiana.
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Segundo a mãe coruja, a Tatiana era bem moreninha do cabelo bem enroladinho, era
uma graça quando era pequena. Aí depois ela foi cresceno, no dia que ela começou a
andar foi uma festa lá na casa da minha patroa. Tia Fina ficô numa felicidade só. Aí
depois meu patrão começou falá que ela tava fazeno arte, porque criança faz, né? Aí
eu conheci o pai da Nice e mudei lá pra onde eu moro. Eu mudei pra lá em setembro
de 1980
O primeiro marido, violência e tragédia
Maria conhece outro rapaz, também de Minas Gerais, e passa a morar com ele. A
filha Tatiana tinha pouco mais de um ano. Não foi exatamente um casamento feliz: O
nome dele era Adelino, que já faleceu. Na verdade, nunca fui casada. Aí fui morar
com ele, só que ele judiô muito de mim, que lá em Minas a família dele é uma família
de gente muito ruim, matadô, que estapeia as pessoa. Incrusive os tio dele aqui em
São Paulo já matô muita gente, já saqueô a gente, já fez barbaridade. É uma família
terrível, ele morreu tamém por causa disso que ele foi. Que ele era muito mau... Aqui
em São Paulo eles já mataram gente de bens, assim gente de família.
Com esse marido Maria viveu seis anos e teve a filha Ivanice, a Nice: Ele brigava e
ameaçava de matá as pessoa. Ele era muito ruim pra mim. No começo eu gostava
dele, mais depois, com o passar do tempo, ele ficô muito ciumento, sabe? Eu num
podia olhá pra homi nenhum, num podia andá com saia, era aquele tipo de pessoa
que tinha que andá assim ó, cabeça baixa. O tipo de roupa que eu usava era aquelas
saiona cumprida, vestido com aquelas saiona comprida, ele num dexava eu usar
calça comprida Eu era assim isolada dentro de casa, num podia sair. Não trabaiava,
ficava em casa. Quando eu ganhei a Nice, eu continuei em casa, mas passava
necessidade em casa.
Ciumento, violento, Adelino tinha epilepsia, outro fato que desconhecia até ir morar
com o marido: Ele ficô na Caixa, depois ele aposentou. Cum vinte e três ano, ele
aposentô por causa desse pobrema. Ele trabaiava assim fazeno bico, assim, igual
numa chácra que tinha lá perto de casa. Só que ele era um cara assim, tipo tarado,
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sabe? Mexeu com a patroa dele. Maria desconhecia o histórico violento do marido,
que já era assim em Minas: Antes d’eu vim pra cá eu num tinha visto, eu quase num
via ele. Depois que eu vim pra cá, passô muito tempo, nem lembrava dele mais, fui
ver ele lá na casa da tia dele. Aí ele já começô a ficá no meu pé. Mais eu num sabia
de nada o que tinha acontecido com ele.
Então depois que eu tava junto com ele, que a tia dele contô que ele estrupou a irmã
dele lá em Minas. Veio aqui pra São Paulo corridoE muita coisas e eu num sabia que
ele tinha, mais eu já tava morano com ele. Aí começô a judiá de mim, batia, falava
que ia me matá e ia jogá num poço que tinha lá em casa.
Foram anos difíceis para Maria. Além das agressões, o marido era mulherengo e
mentiroso: Ele pegava o pagamento dele, a aposentadoria dele e gastava tudo com as
mulher. Bebia cerveja, gastava tudo com a mulherada. Mentia pra mim que num
tinha recibido, que a perícia dele tinha marcado pra num sei quando, que num tinha
dinhero pra comprá as coisa. E eu, vou daqui, vou dali, muita ajuda... Quando eu
ganhei a Nice, eu ganhei muita coisa de enxoval. Teve uma senhora lá que uma filha
dela teve um filho que morreu, aí o enxoval do nenê ela deu tudo pra minha filha, a
Nice. E eu ia daqui, dali, conseguia ajuda pra mim tratá das minhas filha.
Maria passa a viver o conhecido ciclo de separações, reconciliações, privações e
muita violência: Depois que ele começô a judiar de mim, das minhas filha, eu separei
dele. Saí de casa com as minhas duas filha, fui pra casa da minha tia, aí ele foi atrás
de mim. Minha tia mandô eu voltá, eu voltei e ele começô a judiá das minhas filha de
novo, de mim tamém. Ele era assim, ele ia pra casa da tia dele e chegava xingano
aqueles nome feio, que só veno. Se eu demorasse dois minuto, dois segundo pra abrir
a porta, ele chutava a porta, estorava a porta, um gênio ruim, que só Deus sabe.
Nova tentativa de separação: Chegô uma hora que eu saí e fui morá com meu tio, lá
no Jardim Ângela, irmão do meu pai, aí depois ele foi me buscá de novo, eu voltei.
Eu voltava porque meus tio mandava eu voltá e eu voltava com ele. Obedecia, eu era
uma boba tamém, fazia tudo, tudo que os otro mandava fazê. Aí voltei pra casae
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continuô. Aí então ele foi trabaiá numa construção, uma reforma ali perto do
Hospital Santa Paula na avenida Santo Amaro, com um vizinho que chamô ele.
Parecia um dia como outro
Nada parecia indicar que naquele dia o marido provocaria uma briga e acabaria muito
machucado: Diz que começô uma brinquedaiada com um rapaz que era baiano e o
baiano num gostô das brincadera, e ele ameaçô matá o baiano. Maria tinha ido
trabalhar de diarista, mesmo contrariando o marido, sempre ciumento e desconfiado.:
Até esse dia ele num queria que eu trabaiasse de doméstica. Eu fui a contragosto
dele, eu tava trabaiano lá na casa do seu Joaquim. Eu chegava, eu destrancava
Porque toda vida o meu seuviço, foi um seuviço assim que todo mundo teve confiança
ni mim. Todo canto que eu trabaiei eu tive chave do seuviço, das casa.
A calmaria antes da tempestade: Nesse dia ele saiu de casa e falô pra mim fazê um
frango ensopado, fazê uma maionese, arroz e feijão, que ele queria comê quando
chegasse do serviço. Ele saiu de manhã, depois eu saí. Levei minhas menina pra
escolinha e fui trabalhá. Quando foi à noite eu cheguei, correno, pegava ônibus
dipindurado na porta a ponto de caí e batê a cabeça na guia. Chegava em casa fazê
comida e buscá minhas menina lá na escola, lá no prezinho, tadinha. Num era escola,
era um lugar que a mulher cuidava das criança. Diz que era um prezinho, mais num
era mesmo um prezinho.
Eu cheguei, fiz tudo o que ele pediu pra fazê, maionese, fiz arroz, feijão, frango. Aí
fiquei esperano, tava até passano ropa. Era oito hora da noite quando um vizinho
chegô avisano que ele tinha tido um acidente no serviço e tava internado no Hospital
Santa Paula. E que ele num tava nada bom. Aí eu saí da minha casa, dexei minhas
menina na casa da vizinha e fui lá pro hospital. Quando eu cheguei lá , ele tava com
a cabeça toda enfaxada, amarrado em cima duma cama, que toda hora ele tinha
convulsão e precisô deles amarrá ele na cama.
Eu conversei com o médico e o médico mandô eu ir pra casa. Fui pra casa, aí no
outro dia eu vim de manhã, procê vê... Ele judiava, judiava de mim e eu ainda vim
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trazê sabonete, trazeno pijama que a minha patroa deu, um monte de coisa pra ele
ficá no hospital. Quando eu chego, ele já tava no UTI. O médico foi perguntá pra
mim o que tinha acontecido. Meu vizinho que trabaiava com ele me falô que num era
pra mim falá que tinha tido um acidente com ele no serviço. Mandô falá que ele tava
arrumano o telhado na minha casa e caiu e bateu a cabeça. Aí o médico falô: Dona
Maria, mais o acidente que aconteceu com ele num foi de queda, foi pancada que ele
levô. Fala a verdade dona Maria. Aí eu falei: - Não, ele tava trabalhano aqui numa
rua atrás do hospital e diz que teve uma briga com um rapaz, um baiano. Diz que o
baiano saiu mais cedo do serviço e ele tava lá pono massa quando o cara chegô por
trás e deu uma sarrafada na cabeça dele.
Muita correria, mas o desfecho foi rápido; o médico avisara da gravidade da situação:
Ele falô assim ó: Ele tá na UTI e a senhora pode ir visitá ele, mais ele tá bem mal, já
fizemo uma cirugia na cabeça dele, mais se ele resistí ele vai dá trabaio pro resto da
vida. Aí ficô na UTI, isso aí foi na quinta-fera, né. Na sexta meu cunhado foi lá
comigo pra visitar ele. Aí eles mandaram eu pra delegacia fazê a ocorrência que não
tinha feito ainda. Quando foi no domingo, que a gente juntô os parente dele pra ir
visitá, quando chegamo lá ele tinha acabado de falecê. Aí vai, eu corrê daqui, corrê
dali, meu patrão mais minha patroa me ajudô, até a ropa do enterro pra vestir nele
pra enterrá a minha patroa deu. Eles me ajudaram muito, foi umas pessoa muito boa
pra mim.
Adelino morreu jovem, aos 25 anos. Maria, igualmente jovem, 26 anos, ficou viúva
com as filhas Tatiana, de cinco anos, e Nice, de três. Depois do enterro dele, eu caí
doente, eu e as minhas menina adoeceu Eu esmagreci, mais eu sei porque eu
esmagreci, num foi assim de tristeza, não Foi mais de correria, de trabalho, que eu
tava trabaiano direto, corre daqui, corre dali. Peguei muita friage mexeno com o
negócio do enterro dele. A gente sem dinhero, né, minhas patroa que tinha que
arrumá dinhero, que a família nenhuma dele num deu apoio nenhum, nenhum
centavo, tudo foi eu, na correria.
Era o fim de um cotidiano triste, sem esperanças. Maria confessa que pediu a Deus
que desse um fim ao seu sofrimento: Ele judiava muito de mim e das minha filha.
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Teve um dia que eu levantei de manhã e fui no banhero, joelhei lá no banhero, oiei
pra cima e pedi pra Deus, falei mesmo, que se Deus vesse que eu merecesse sofrê
igual eu tava sofreno... Se eu merecesse tudo bem, se eu num merecesse, que Deus
desse o castigo que ele merecesse. De tanto ódio que eu tava... Tinha ódio dele, pelo
que ele fazia com a gente.
Então Com duas semanas que eu joelhei no chão e olhei pra cima e pedi a Deus,
aconteceu o que aconteceu com ele. Mais num foi praga minha, não. Eu pedi a Deus,
que se Deus vesse que eu merecesse, tudo bem, se ele vesse que eu num merecesse,
que desse o castigo que ele merecesse. Deus fez o certo.
Maria retoma as rédeas de sua vida
Com a morte do marido, o pai de Maria insiste que ela volte a morar com a família
em Minas: Meu pai veio aqui me buscá pra í embora, eu num quis í. Eu falei não pai,
não vô dexá minha casa e meus fio aqui não.
A recuperação de Maria é lenta: Quando eu comecei a melhorá um poquinho eu
comecei a trabaiá. Fui trabaiá com a dona Nete. A dona Nete separô tudo de mim,
tralheres, copo, faca, prato, que diz que eu tava com tuberculose. É que eu esmagreci
muito e fiquei rôca, num falava. Depois me ensinaram a tomá gengibre cum pinga,
ferver a gengibre cum pinga no meio e tomá que voltava a voz né. E num podia tomá
friage. Aí eu fiz isso, graças a Deus, voltei minha voz.
Depois que ficou viúva, Maria diz que começou sua vida, indicando um novo
recomeço. Com a morte do marido, tornou-se realmente uma diarista – faz dezoito
anos que está nesta profissão. Fui recuperano aquilo que eu tinha perdido e voltei ao
normal. Daí pra cá começô minha vida, né. A minha luta até hoje. Começô a
melhorar porque eu comecei a trabaiá como diarista. O grande sonho de sua vida,
que é ter uma casa adequada para a família, também começou a se concretizar com o
trabalho: Eu comecei a construir a minha casa... Na época que o meu marido morreu
tinha muito bandido lá onde eu morava. E eu tinha medo de dexá minhas filha
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sozinha num barraco de tauba. Aí eu comecei a trabalhá, comprei material, construí
uma cozinha, depois...
Hoje só falta fazer uma cozinha maior e terminar o piso. Foram dezoito anos de muito
trabalho para ir aumentando a casa pouco a pouco. As etapas de construção, cada
pequena reforma, os materiais de acabamento são relatados com precisão de quem
constrói insistentemente o maior dos sonhos. Cada vizinho, amigo, que colabora com
esse sonho é relembrado com a gratidão sincera de quem sabe o valor da
solidariedade. Na época em que foi morar no Jardim São Bernardo o cômodo original
era um barraquinho de tauba, pequenininho que só cabia minha cama, fogão, e uma
caminha de soltero assim. Se entrasse quatro pessoa dentro do barraco num dava pra
ficar. E quando chuvia escorria água assim dentro do meu barraco. Eu forrava todo
o barraco de revista, de jornal, pra noite num entrá vento nas minhas menina. Eu
morei ali durante uns três ano por aí, depois eu comecei a trabaiá numa firma.
Quando eles me dispensaram, eu comprei material e fiz um cômodo de broco, nem
telha comprei, ganhei umas telha véia lá, cobri e fiquei com a cozinha de maderite e
um cômodo de broco.. E o banhero era do lado de fora.
Um novo casamento. E a casa continua a ser construída.
Uma nova etapa de sua vida (e da construção da casa) começa quando conhece José:
Eu chamo ele de Pretoe ele me chama eu de Preta. Com ele, Maria teve mais duas
filhas: Carina e Camila, hoje com 19 e 18 anos. Aí ele foi me ajudano, que ele
trabalhava e tudo. Aí eu construí a sala, coloquei o banhero, pus o banhero dentro
de casa. Fiz um otro quarto. E fui aumentano, fui aumentano a minha casa
devagarinho. Fui aumentano minha casa, e ele começô a trabaiá e eu trabaiava
tamém. Aí depois engravidei da Carina. Até na época que eu engravidei da Carina
ele num morava comigo ainda não. Eu trabaiava no São Judas, trabaiava no
Morumbi, trabaiava no Brooklin. Cada dia numa casa. Eu trabaiava de segunda a
segunda, direto, até os domingo. Foi quando eu fiquei grávida da Carina. Aí ele foi
morá comigo. Aí foi melhorano, de vida, graças a Deus.
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Quando a Carina fez um ano e cinco mês eu ganhei a Camila. Foi uma atrás da otra.
Duas de fralda, duas de mamadera... A Tatiana já tinha oito, que ela já tava
estudano, e a Nice ia fazê sete. Então foi assim, eu pagava pra olhá a Carina.
Depois, eu dexava com a Tatiana e a Nice, eu revezava, quando uma ia pra escola, a
otra ficava com a Carina, quando a otra chegava, a otra ia pra escola.
Maria não tem medo de qualquer trabalho, por mais duro que seja. Apesar da
disposição, o cotidiano estafante maltrata o corpo, que já cobrou o preço da correria e
da má alimentação. Eu trabalhava de domingo a domingo, mais depois eu fiquei tão
ruim, chegô uma hora que eu num güentava mais. Ah, eu peguei anemia, porque eu
num comia, né. Eu comia pão com salsicha, alguma coisa assim. Só na dona Odete,
que eu comia, mais tamém num era assim aquela comida, que ela também era
sozinha. Tive que dexar de trabaiá aos sábado, domingo, direto. Diminuí porque eu
tava muito duente.
A bebida e o desemprego do marido foram grandes problemas para Maria nos últimos
anos. Carpinteiro de profissão, nem bico estava conseguindo fazer, mas felizmente
conseguiu emprego numa construtora há algumas semanas. Ele tava trabalhano, aí
depois ele ficô desempregado, porque antes ele bebia muito tamém. Então ele
destruiu muito a vida dele, né, com bebida. Só que agora ele é evangélico, tá na
igreja, já tem mais de um ano, quase dois ano. Parô de bebê, num bebe mais. Agora,
graça a Deus tem paz na minha casa, que tem um tempo lá que tava em guerra,
quase separano, é... Ele em guerra com as minhas filha também, com as filha que
num é dele. Mais graças a Deus agora tá tudo em paz.
O árduo trabalho doméstico, alegrias e decepções
As passagens de Maria por muitas famílias em São Paulo revelam os bastidores da
limpeza e arrumação das casas de classe média. Sua própria trajetória mostra a
existência das empregadas que dormem no emprego e mais modernamente, daquelas
que trabalham por dia para diferentes patroas. A indicação é praticamente a regra:
nenhuma vez Maria se refere a agências de emprego ou anúncios de jornal. A
intimidade gerada por este trabalho doméstico tanto pode proporcionar um
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relacionamento estreito e de colaboração de longo prazo como levar à decepção com
atitudes injustas ou humilhantes, próprias de inseguras relações trabalhistas.
Num dos seus primeiros empregos em São Paulo, Maria recorda vivamente deste tipo
de situação a que são submetidas as empregadas domésticas: Trabalhei bastante
tempo lá na Fátima. Ela era vendedora de ropa e era assim, tinha a Fátima, o filho
dela, Alessandro, e o marido dela, esse era vendedô de ropa. E tinha o seu Manuel, o
pai dela, que já tava meio caduco, incrusive tinha uma sobrinha dela, a Berenice, que
num saía de lá. Aí, a Fátima saiu c’aquele bando de amiga dela e dexô um bucado
de ropa, corte de pano lá no quarto. A Fátima sumia, c’aquela muierada atrás dela,
enchia o carro, era um fusca que ela tinha, e saía pra fazê evento. Aí teve um dia que
seu Manuel tava na área lá, a Berenice entrô, diz que tinha uma festa pra ir, a
Fátima num tava, ela pegô calça da Fátima, que ela vendia calça, sabe aquelas calça
de tergal antigamente? Que o pessoal usava calça de tergal feita, e ela vendia corte.
Eu tinha ido levá o Lessandro na escola. Tem foto do Alessandro té hoje lá em casa,
Eu tinha que levá o Lessandro na escola, chegá, fazê almoço, dá almoço pro seu
Manuel.
Aí no otro dia eu cheguei e a Fátima: Maria, você viu alguém entrá aqui onte e pegá,
que tá faltano uma calça. Eu falei: Fátima, num sei, eu saí pra levá Alessandro na
escola, voltei, fui lavá ropa, fazê almoço, Elias veio almoçá, que é o marido dela, e
saiu com um monte de ropa aí, pra vendê, quem sabe o Elias levô... Aí quando o Elias
chegô, e procura, procura, nada.
Depois é que o seu Manuel, o pai dela, falô pra ela: a Berenice teve aqui, entrô lá no
quarto e pegô uma calça, que diz que tinha uma festa na escola pra ir, e ela disse que
depois vem acertá com você. Era mocinha tamém, tinha o quê, tinha uns catorze,
quinze anos, essa menina. Aí que a Fátima foi descubrí que a Berenice que tinha
levado a calça. A Fátima ainda falô: Por que cê num falô, papai, comigo? E ele falô:
Eu nem lembrei. É que o véio já tava de idade.
Pelo que ela falô, ela achô que foi eu, só que aquilo ali me feriu, eu nem tinha visto a
Berenice ir lá. Aí aquilo eu me senti ofendida, eu pensei assim, ela tá disconfiano de
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mim. Os assunto que ela falava, cunversano com Elias, conversano cas amiga dela,
dava pra percebê que ela tava jogano pra mim, que era eu que era a culpada, né. Aí
eu fiquei chateada. Aí eu falei, não, num vô ficá. Aí minha tia arrumô um serviço pra
mim aqui na Lapa e eu fui trabaiá aqui na Lapa e a muié fazia eu de escrava
também. Nessa época eu durmia no emprego. Ela fazia eu saí cinco hora da manhã,
com aquele escuridão, pra ir numa padaria, que eu tinha que descê uma viela assim,
casa de um lado e do otroa padaria lá embaxo, escuridão, buscá pão pra eis tomá
café. Ah, exprorava muito de mim. Ela punha eu pra dormi num quartinho que tinha
um monte de passarim, quando dava quatro e meia, cinco hora, os passarim danava
gritá e cantá lá, e farelo de coisa em cima de mim. Eu num dormia mais porque os
passarim num dexava, cantano.
Sofrer discretamente
Difícil encontrar referências explícitas ao sofrimento, e quando isso acontece, Maria
prontamente contemporiza: Precisa tanto sofrimento? Mas Deus dá o frio conforme o
cobertô, e graças a Deus eu sempre lutei e fui conquistano o que queria... Ou então:
Eu sofri aqui em São Paulo tamém. Mas eu sô uma pessoa assim, do jeito que eu sô,
levo minha vida assim, não me aborreço com nada. A minha vida é assim, trabaiá,
sustentá minha casa, ouví minhas música, que eu adoro ouví música...
Se alguns empregos foram rápidos e desagradáveis, outros foram duradouros e
gratificantes. Mesmo quando as relações se desgastam, Maria consegue relembrar os
gestos de afeição, a compreensão dos patrões em caso de doenças na família, a ajuda
que deles recebeu. Na época que eu trabaiei lá no Brookli com o Toninho, trabalhei
onze ano lá, no consultório dele. Eu sempre trabaiei em casa assim de rapaz soltero,
moça soltera, né. E eu trabalhava com ele, trabalhava com o Fernando, trabalhava
com o Fábio. E a minha filha, a Camila ficô doente, quando era pequena, e ele me
deu muita força, me ajudô muito, né. Quando eu ia pro médico, eu chegava onze,
meio dia lá no serviço, pra trabaiá. E eu trabaiei onze ano com ele, mais depois ele
casô, que ele era soltero.
99
Ele era um amô de pessoa, procê vê como é que é as coisa, as pessoa muda. Ele era
muito legal, ele me chamava de Preta. Se eu tava fumano um cigarro ele chegava,
tomava o cigarro de mim, fumava. Se eu levava comida de casa pra mim comê lá,
esquentava a comida eu e a secretária, ele ia comê da comida da gente, junto com a
gente e tudo. Quando ele era soltero, ele era um amô de pessoa, nossa. Depois, ele
arrumô uma namorada, a Priscila, uma pessoa muito legal tamém, num tenho que
recramá dela. Casô, ele ficô chato. Aí, mudô de consultório, comprô uma casa, aí eu
fui lá, pus aquela casa em orde.
Aí chegô o casamento dele, nóis ajudamo pra caramba no casamento dele. Ele viajô
pra Portugal, eu ficava tomano conta do consultório dele. E tinha uma cachorra, eu
cuidava da cachorra, eu tinha as chave da casa dele todinha. Eu que recibia os
presente, eu e a secretária, recibia os presente do casamento dele. Nós ficamo
tomano conta da casa dele, eu e a secretária, até durmi lá com a secretária, pra
ajudar a cuidá da casa, dos cachorro dele.
Depois que ele casô, passô um ano mais o meno, ele começô assim, a humilhar a
gente, sabe? Num sei se o pobrema dele foi o casamento, se ele casô e sentiu o peso
do casamento, que a Pri era adevogada, ela levantava de manhã, tomava banho,
trocava ropa e ia pro escritório. Então ele tinha que dá conta de tudo, né. Ele tinha
que fazê compra, tinha que lavá ropa, que ele tinha a secretária só e eu, que
trabaiava limpano, né. Então ele tinha um monte de coisa, eu num sei se ele ficô
assim por causa da responsabilidade muita pra ele.
E nisso ele num tratava a gente como tratava antes. A gente fazia de tudo por ele,
mais nada tava bom pra ele. Aí eu comecei a entrá em depressão também, eu ia
trabaiá na casa dele, aí eu só chorava, chorava. Eu ia pegá nas coisa dele pra limpá,
eu começava me tremê assim, as coisa caía e quebrava. E aí ele humilhava a gente
assim na frente dos paciente, e olha que os paciente tudo conhecia a gente. Quando
ele saía pra almoçá, eu ficava no consultório, os paciente ligava, eu remarcava
consulta pros paciente, eu anotava recado pra ele, muitas vez ele ficô sem secretária
e eu que ajudava ele.
100
Aí chegô num ponto, que até hoje eu tomei bronca, quando eu tô varreno, que cai a
vassora, o rodo e faz aquele baruião, pra mim é o fim do mundo. Nossa, eu fico tão
irritada. Porque, lá eu tinha que varrê, fazê a limpeza, se caísse um rodo no chão ou
a vassora, nossa, ele já gritava de lá do consultório, êta, tá ca mão quebrada aí? E
ele humilhô muito a gente e fez eu chorá muito também, que eu sô uma pessoa assim,
eu sô uma pessoa que trabaia, eu sô muito boa e tudo, mais eu num sei respondê as
pessoa, vingo chorá, só choro.
Eu um dia tava lavano o banhero, tinha um tantinho assim de perfume num vidro lá e
eu num sei que que foi, a escada esbarrô lá na partilera, caiu esse vidrinho e quebrô
um tantinho assim de perfume. Esse home caiu em cima de mim... nem eu falano pra
ele, Toninho, não foi por culpa minha, eu num vi, me desculpa, ele num atendeu. E
ocê vai pagar... Aquela época, ele me pagava cinqüenta reais, ele cobrô um dia de
serviço nesse perfume, um tantinho assim. Ele me humilhô tanto por causa desse
perfume, que eu chorei, chorei, que na hora d’eu ir embora, eu falei assim, ó, o dia
que eu trabalhei você disconta aí, é cinqüenta reais, vai ficá na conta do perfume. Ele
nem pra falá assim, eu vô cobrá não, ele num falo nada, aí descontô.
E eu continuei trabalhano purque eu precisava, né. E eu num queria saí de lá porque
eu gostava deles, eu adorava eles. Aí foi ino, foi ino, teve um dia que eu tava limpano,
ele tava lá em cima. Parece que aquele dia ele tava até brigado com a Priscila, eu
num sei. Aí eu tava varreno e eu encostei a vassora assim, a vassora caiu no chão. E
com aquele barulho, ele tava lá em cima, na casa dele, na parte de cima, ele desceu a
escada. Fez um escândalo, e me xingô, e falô um monte pra mim, que eu tinha
derrubado o telefone, eu falei, que telefone? Toninho, eu nem mexi no seu telefone, eu
tava na porta da entrada do consultório. Ele jurô que eu tinha derrubado o telefone.
Eu falei: Tonin, foi a vassora, ele falô num foi, nem a secretária falano pra ele que
foi a vassora, aquele dia parece que ele tava, e me humilho e me xingo tanto.
E eu tamém vinguei chorá, e eu falei, só que de hoje em diante eu num volto aqui. Saí
lá cum o coração na mão... trabalhano onze ano com eles, né. E aí eu num fui mais
trabaiá com eles. Fiquei trabalhano na dona Cida. Ele me ligô, pedino pra mim
voltá, eu falei, não volto mais. Com o coração na mão, né, apesar de gostá deles,
101
num fui. E eu tava com as chave da casa dele todinha. E eu trabaiava do lado da
casa dele, pro Fernando, que era vizinho dele. Aí quando foi no dia que eu fui lá no
Fernando, eu liguei lá, falei com a Dália. A Dália falô assim, ah, o Toninho foi
almoça. Eu falei, quando ele chegá eu entrego a chave pra ele. Aí quando ele chegô,
ele nem entrô no consultório, ele foi direto lá no Fernando e tocô a campanhia; eu
vim atendê. Eu falei, ah, cê veio buscá a chave, ele falô vim. Aí com aquele olho
assim vermelho, sabe. Aí chegô eu fui, peguei a chave, entreguei pra ele, chorano,
cas lágrima que chegava caí, até hoje eu fico triste. Aí ele olhô pra mim e chorô e
falô assim: É, eu desejo que você arrume um patrão melhor do que eu, né, e que seja
feliz, falô pra mim assim, eu falei, tudo bem.
Antigas patroas e rede de amizades e apoio
A ruptura com Toninho marcou o fim de um longo relacionamento de onze anos de
trabalho não só com ele, mas com toda uma rede de parentes e amigos que Maria tem
em comum com o dentista: Trabalhei com a mãe dele, trabalhei com a tia, pra otra
tia. A vida daquela turma ali, participei da vida do seu Zé, o pai dele, que teve um
pobrema lá, de má circulação, que teve que amputá as perna. O sofrimento deles,
nossa, o sofrimento do avô deles, o seu César, que caiu, quebrô o fêmur, foi
operado... Eu trabalhava na casa do avô dele. Trabalhei com a família toda,
trabalhei com a irmã dele, a Luzia, participei da vida da Luzia, coitada, um
sofrimento a dona Luzia, incrusive eu levei ela até numa benzedera. A irmã dele. Ah,
eu participei a vida dessa turma toda, sabe. Foi assim. E sai de lá, porque eu num
güentei mais. É... esse dia foi a gota d’água pra mim.
Essas relações, pela longa duração e confiança mútuas, tornam-se ambíguas e
extrapolam o meramente profissional: Eu saí de lá, mas eu continuo seno amiga dele.
Eu ligo lá, ele chama eu de Preta, eu chamo ele de Tô, somo amigo a mesma coisa.
Ele fez aniversário agora dia 29 de abril, e eu liguei e dei parabéns pra ele. Às vez
ele liga lá na minha patroa, procurano minha patroa e eu atendo. Ele fala: Ô Preta,
tudo bem, eu falo, tudo. Às vez eu ligo pra falar com ele.
102
Quando eu saí de lá, ele num tinha fios, já tem dois fios. Eu quero ir lá cunhecê os fio
dele. Qualquer hora eu vô lá. Eu num tenho mágoa dele, num tenho raiva dele e
nada. Mais a minha vida foi assim, sabe, e vô levano, vô continuano. Só que eu num
tenho mágoa de ninguém, das minha patroa que eu trabaiei. Nunca saí brigada,
nunca saí com pobremas nos meus serviços.
Nas outra patroa que eu trabaiei eu saí por causa de pobrema na coluna, que eu tive
muito pobrema de coluna sério. Mas qualquer hora que eu chegá eu sô bem recebida.
Tem a dona Cida lá no Aeroporto que eu trabaiei muito tempo com ela, tem a dona
Odete aqui, na Chácara Flora. Tem a dona Nila, mais seu Nelso, que eu trabaiei
muitos ano com eles. Eles mora nos Estados Unidos, sempre quando eles vêm aqui no
Brasil eles vêm aqui na dona Cida, eles pergunta por mim tamém. São pessoas
maravilhosa que eu trabaiei. O bom recordamento é a recordação que eu tenho dos
meu patrão, porque sempre eles me tratô bem.
Mesmo o problema que enfrentou com o patrão dentista, Maria busca contornar: Eu
num cheguei a discuti com ele nem nada. Só resolvi pará porque eu tava com
pobrema de depressão tamém. E outra, eu devo muita obrigação a ele, que ele me
ajudô muito. Ele que arrumô médico pra mim. Eu fui num amigo dele que é médico
homeopático, fez esse remédio pra mim e eu tô bem hoje, num tô mais com pobrema
de depressão. Muita coisa ele me ajudô. Eu sô uma pessoa assim, se a pessoa fez um
bem pra mim, nem que num fizé, eu jamais, num esqueço que a pessoa fez comigo.
Apesar de tudo que aconteceu entre eu e ele, de ficá do jeito que ele ficô, eu agradeço
ele, devo muita obrigação pelo que ele tem feito pra mim tamém.
Minas Gerais, início de tudo
Sempre que pode, Maria volta para visitar a família em Minas Gerais. Com o
falecimento da mãe há um ano, ficaram lá o pai, que está com 82 anos e um dos
irmãos. Diferentemente dos últimos trinta anos em São Paulo, uma repetição de
acontecimentos objetivos, em que sobra pouco espaço para a delicadeza, a infância e
adolescência no interior de Minas são trazidos lentamente, em uma suave nostalgia
que enriquece as cenas, dando-lhes um caráter mais intimista e reflexivo. Mais que
103
dois lugares, Minas e São Paulo representam passado e presente, sonho e realidade,
identidade e exclusão. São as duas faces da mesma esperança que Maria consegue
renovar em suas idas e vindas.
São treze horas até Sabinópolis; sua cidade natal. Mais onde meu pai mora mesmo
chama Santo Antônio, por causa do santo padroeiro, em junho as festa são
maraviósa na minha cidade, uma beleza. Quando eu vô pra Minas, assim, fim de ano,
a gente vai nas festa que têm forró, aí eu danço. Gosto muito de viajá tamém, adoro.
Agora num tô viajano muito porque num tá dano. Mais em Minas quando eu viajo
pra lá, nossa, enquanto tem festa eu tô ino. Eu gosto.
Minas é seu porto seguro, referência para o passado e futuro. É para onde quer voltar.
Preocupa-se com as filhas, embora não utilize a palavra “preocupação” nenhuma vez:
Eu penso assim, que elas vai trabaiá, pra elas consegui alguma coisa. Eu falo sempre
pra elas, tem que trabaiá, segurá o dinheiro pro futuro delas. Eu fico muito pensativa
com isso. Hoje em dia tá seno muito difícil, num é igual antigamente, cada dia que
passa, pió tá ficano, é o desemprego, muitas coisa que tá aconteceno com os jovem,
fico muito pensativa sobre isso.
Diante da pobreza de sua infância na roça, os estudos interrompidos na 3
a
série, Maria
considera que a vida de suas quatro filhas é bem melhor que a sua: Essas menina tem
tudo de bom. Falo pra elas: Óia, hoje em dia vocês têm muitas coisa que eu nem
sonhava em ter. Quer uma roupa, vai lá e compra, quer sapato, quer isso, quer
aquilo. Quem dera que eu tivesse o que essas menina hoje têm. Eu falei pra elas:
Quando ocêis era pequena, cêis tinha brinquedo, cêis tinha boneca, eu nunca tive. As
minha boneca era de espiga de mio, que eu quebrava escondido do meu pai. Se o meu
pai descobrisse que eu tinha quebrado uma espiga do pé de mio pra brincar, ele
batia, entendeu?
A família de Maria e a morte dos dois irmãos
Minha mãe era ótima pessoa, meu pai foi assim um pouco meio durão com a gente,
desde a gente criança, sempre, quando ele era mais novo era meio cumpricadinho.
104
Ah, ele batia, brigava, ele judiava um pouco da gente. Minha mãe teve oito fio, aí
morreu três. Eu sou a única mulher.
Então foi aquele pobrema, faleceu meu irmão Leonardo, eu lembro que minha mãe
levou ele pro hospital. Aquela época lá não tinha carro, ela tinha que ir andando
mais de uma hora e meia com a criança nos braço pra consegui pegá um ônibus pra
ir pra cidade levar ele. Só que meu irmão faleceu lá na cidade e ela troce ele lá da
cidade nos braço, andano até na minha casa. Eu lembro que já tava assim
escurecendo quando ela tava chegando com meu irmão e a gente saiu correno, todo
mundo correno. Eu era pequena, esse meu irmão era abaixo de mim. Quando nós
encontramo minha mãe chorando, a gente queria ver meu irmão, ela disse, ele tá
morto. Aquilo foi uma tristeza pra gente, nossa foi uma coisa que abalou muito nós,
mas eu lembro, eu era criança, meus irmão que era mais velho, meus irmão chorou
muito.
Depois eu lembro que deu uma tosse cumprida na gente, em tudo nós, deu sarampo
em tudo nós. Foi aquela locura, minha mãe, meu pai ficou naquela correria, tinha
tris irmão meu que tinha bronquite, que era o Antônio, o João e o David. Então, com
essa tosse cumprida e com o pobrema do sarampo atacou mais ainda, foi os que
ficaram mais ruim.
Eu lembro que minha mãe estendia umas estera de tauba, e a gente deitava no chão e
ela dava remédio pra um, dava remédio pra outro, que naquela época não existia
vacina, essas coisa. Essa esteira de tauba, ela dá no brejo, assim onde tem água, rio,
que é úmido assim. A gente vai no brejo corta as tauba e põe elas pra secar, depois
que elas seca, a gente pega uma corda, e vai trançando e fazendo as esteira. Era isso
que a gente usava pra dormir quando a gente era criança, não existia colchão. Meu
pai fazia os cavalete de pau e colocava as esteira de tauba em cima. A gente tinha
aquelas coberta de sete semana, aquelas coberta bem fininha. Minha mãe fazia as
cama pra gente e a gente dormia tudo incuidim, ela punha a gente tudo junto pra não
senti frio. Era muito frio, meu pai fazia aquelas foguera e fomo levano assim.
105
Teve um dia que nós tava assim, eu e meus dois irmão já tava mió, só meus três
irmão tava ruim mesmo. Meu pai foi pra roça mais minha avó com os trabaiadô. E
minha mãe ficou em casa. Como a gente tava duente, ela não foi pra roça. Minha
mãe foi lavá roupa e eu fiquei sentada na porta da cozinha com meu irmão caçula no
colo. Meu irmão tava ruim, ele tinha uns três anos por aí. Deu aquela tosse muito
cumprida nele, ele foi ficando sem fôlego, sem respiração. Daí a pouco começou a
sair escuma pra boca. Eu comecei a gritar: Minha mãe, mãe, mãe corre, meu irmão
tá morreno! Minha mãe veio correno, nisso meu pai tava chegano da roça mais
minha avó, que já era umas cinco da tarde.
Minha mãe pegô ele, batia nas costa dele, chamava pelo nome dele. E nada. Eu
fiquei desesperada, meus outro dois irmão tudo caído lá, deitado. A gente sem sabê o
que fazia, Meu pai chegô, minha vó pegô meu irmão no colo e nada dele voltá.
Minha mãe gritava, ficou desesperada, mas não teve jeito, aí meu irmão faleceu. Na
mesma hora passô um fazendero lá de carro, aí meu pai pegô os outro dois irmão e
levô pra cidade pro hospital.
Antigas lembranças: a velha casa, o primeiro calçado
Dali pra cá, continuamo a vida, aí comecemo a estudá. A vida da gente era muito
difícil porque meu pai não tinha condição de dar um sapato, não tinha condição de
dar roupa. Ele vinha aqui pra São Paulo e trabalhava, mas quando chegava lá tinha
que pagá as conta, era muito filho que ele tinha que cuidá e tudo. Nós tudo andava
descalço, antigamente a gente não usava sapato, nem chinela nem nada. Eu lembro
que eu fui pôr um sapato no pé, eu tinha uns 7 pra 8 anos. Foi uma conga, que usava
antigamente. Minha mãe comprô, eu fiquei muito feliz. Eu tava estudano e tinha a
coroação de Nossa Senhora de Fátima. Minha professora escolheu a gente, que a
gente vestia de anjo, prá gente coroá Nossa Senhora de Fátima, aí então minha mãe
foi obrigada a comprá uma conga pra mim.
Então eu fiquei numa felicidade total, só que eu colocava a conga e doía o pé, porque
meus dedo era tudo aberto sabe, porque a gente não usava sapato. Conforme a gente
não usa sapato quando era pequeno, os dedo do pé vai se abrindo, e doía, doía
106
aquela conga no meu pé. Incrusive eu tenho meu pé meio largo, agora melhorou. E
eu não via a hora de terminá aquela coroação pra mim tirá. Assim que terminô a
coroação, eu tirei ele porque num guentava de dor no pé. Depois da coroação eu
continuei usando a conga. Doía, doía, mais usava. Eu fui cresceno mais, aí minha
mãe comprô otro sapato pra mim. E eu comecei a trabaiá tamém, aí comprava, não
sapato bom, mas comprava aquelas sandalinha de prástico.
A casa da família de Maria existe até hoje. É a mesma casa em que mora o pai idoso:
Meu pai somente aumentô a casa, porque na época que nós era pequeno, minha casa
é assim feita de barro, o telhado é de telha mesmo. Meu pai forrou o teto todinho
como se fosse um forro, mas de taquara, até hoje é desse mesmo jeito. Quando meu
avô morreu, a casa que era do meu avô tava caindo, aí meu pai desmanchou a casa
do meu avô e fez outra no mesmo lugar. Meu avô foi nascido e criado nesse lugar,
assim como meu pai. Só que meu pai fez uma casa mais pequena, porque a maioria
do material da casa do meu avô já tava estragado. Meu pai aproveitô o máximo,
telha, essas coisa e fez essa casa. Quando a gente era pequeno só tinha três quarto,
que era o meu, o quarto da sala que era dos meus irmão e o quarto do meu pai e da
minha mãe.
Como era a única menina, Maria dormia sozinha quando criança, e sentia muito medo
da escuridão e do silêncio. Quando alguém morria, o pavor era ainda maior. Naquele
tempo era muito forte a crença em assombrações, no sobrenatural: Vixe Maria, minha
mãe tinha um radinho pequenininho, aí eu improrava pra ela me dar o radinho de
pilha. Eu colocava no canto da minha cama a noite inteira ligado. E tamém eu tinha
um gato, um gato preto, chamava até Chiquinho... Ele dormia nos pé da minha cama,
e ele roncava, roncava, roncava e eu ali ouvindo música com a luz acesa. Deixava a
luz do querosene acesa, eu gastava mais ou menos meio litro de querosene ou mais
por noite, quando eu acordava de manhã meu nariz tava todo preto de fumaça do
querosene.
Eu morria de medo quando minha mãe mais meu pai ia passá a noite lá com a
família do falecido, porque eles passava avisando, ah, Fulano faleceu... Aí tinha vez
que meus irmão, um deles vinha dormir no meu quarto, porque eu não dormia
107
sozinha, nossa, eu morria de medo. Eu nunca vi assombração, mas tinha receio
porque muita gente falava que existia e teve muita gente que viu lá na onde eu moro.
Eu não conseguia ver uma pessoa que faleceu. Porque antigamente, quando falecia
uma pessoa, eles deitava num banco, cobria com um lençol branco. Na hora que
chegava aquele monte de gente, que ia lá e puxava o lençol pra ver a pessoa que
faleceu. Aí que dava medo mesmo, e eu não conseguia ver aquela pessoa.
Meus dois irmão, eu vi, eu não sei se foi depois que aconteceu isso com meu irmão...
Eu era pequena, eu alembro mais ou menos, acho que tinha uns 6 anos mais ou
menos, eu não estudava ainda. Depois, com a morte do meu irmão, que faleceu nos
meus braço... Foi nessa época prá cá, que eu comecei a ficar nesse pensamento, ter
medo.
Eu achava que alguém ia aparecer, muita gente falava que eles aparecia vestido de
branco com coisa na cabeça, muita gente já viu. Eu não tinha corage de dormir
sozinha de jeito nenhum, eu chorava, minha mãe falava: Apaga a luz! E eu não
conseguia, tinha que dormir com a luz acesa. Eu amanhecia de manhã com o nariz
todo preto de fumaça de querosene e aquele cheiro... Só que eu era acostumada,
quando não era querosene a gente usava candeia com azeite. Só que a candeia
acabava o azeite logo, eu preferia a lamparina de querosene...
O trabalho na roça, desde pequena. E as lembranças da fome.
Como em muitas famílias pobres do campo, o trabalho das crianças era considerado
essencial para a sobrevivência da família. O pai não entendia a vontade de Maria ir
para a escola:
E foi assim, a vida da gente era aquele pobrema. Eu comecei a estudar,
aí que meu pai começô a ficar meio ruim pra gente. Meu pai batia, não queria dexá
eu ir pra escola, e eu adorava estudá, nossa, eu gostava... A escola era pertinho, eu
tinha uns sete anos. A gente ia pra escola, estudava na parte da manhã. E à tarde, a
gente tinha que chegá em casa, tinha que trabaiá, tinha que moê cana, eu tinha que
buscá água na fonte, tinha que enchê as vasia de água tudo pra minha mãe. Eu
108
lembro, eu era pequena, pequena eu sô até hoje, mais eu era mais pequenininha
ainda, mais menina...
Em toda essa minha vida eu fui assim, pequena mais lutano sabe. Chegava da escola,
aí meu pai as veiz falava assim: vai pra roça ajudá a gente a prantá feijão ou
quebrar mio ou qualqué coisa. A gente ia e quando dava mais ou menos umas duas e
meia, ele mandava a gente pra casa. Aí, uns ia moê cana na gionca e outros ia pro
arto da serra buscá lenha. Gionca, que a gente chama lá, tem um pau assim em cruz,
um cruzado que vai puxano e vai moeno a cana.
Da hora que eu comecei a crescer, eu tinha uns sete, oito anos, aí eu já comecei a
pegá no pesado. Hoje em dia tudo é fácil lá, mais antigamente, criança com cinco
ano já trabaiava, buscava água na fonte, ia lavar vasilha. Minha mãe já colocava a
gente pra pôr comida, rancá inhame e cozinhá pros porco, a gente colocava comida
pros porco, dibuiá o milho pra dar pras galinha. Desde pequenininho, já ia
começano com a gente no caminho certo...
Mesmo com o árduo trabalho de toda a família, muitas vezes a precária situação do
grupo piorava drasticamente. Repete-se o ciclo dos migrantes pobres que buscam
melhores oportunidades em cidades maiores, como São Paulo. Os chefes de família
deixam suas famílias, muitas vezes param de enviar o dinheiro...
Nós passemo muita
fome também. Meu pai veio aqui pra São Paulo, chegô aqui e começô a trabaiá. Eu
lembro que eu tinha nove ano mais ou menos, foi a segunda vez que ele veio para São
Paulo. Não mandava dinheiro pra minha mãe, tava trabaiano, mas gastava todo o
dinheiro aqui em São Paulo. Parece que ele tinha esquecido totalmente da família lá,
minha mãe escrevia carta pra ele, e mandava por arguém que vinha pra cá... E nada
do meu pai mandá dinheiro e nem voltá, e minha mãe com a gente lá passando um
sufoco. A gente ia pra roça mais ela, aí nós comia muito era inhame, a gente rancava
inhame e cozinhava pros porco junto com fubá. Aí nós enfiava a mão na terra e
pegava aquelas cabeça de inhame, a gente descascava, lavava e comia. A gente
achava banana verde e comia. Foi aquela vida...
109
E num podia matá os porco. Eles tava muito novo, tinha que deixá engordá, minha
mãe deixava ele engordá bastante pra podê matá. Tinha galinha, minha mãe às vez
ela matava frango e a gente comia. Arroz antigamente, a gente não comia. Arroz era
prá visita, só quando chegava alguém assim de visita que tinha arroz. Nós comia
muito quirela, chama de canjiquinha lá em Minas, aqui em São Paulo chama de
quirela. A minha mãe fazia aquela panelona de canjiquinha e a gente comia com
feijão. Tinha feijão, era poco, como era meio difícil lá, minha mãe pegava banana
verde, cortava e cozinhava no meio do feijão. Depois ela temperava o feijão bem
amassadinho junto com a banana pra rendê, pra aumentá a quantidade.
E a farinha de mandioca, ela fazia a farinha de mandioca, como era poco, ela
raspava a banana verde e punha pra secá, depois ela colocava pra seca no sol e
punha a gente pra socá aquilo e fazia de polvilho e misturava na farinha de
mandioca, amargava, ave! Nossa, eu não comia farinha, minha mãe falava: Coma
farinha, e eu falava não quero, não quero. Tinha vez que a gente ia comê porque não
tinha mais outras coisa, mas era horrível...
Naquela época tinha muita goiaba. Aquela época tinha manga na casa de uma tia
minha, mas era muito longe, sempre quando a gente ia, era época de manga, a gente
trazia de lá. Meu pai só prantava inhame, prantava cana, banana, essas coisa. Só
tinha banana e goiaba, a gente comia muita goiaba, eu só vivia no pé de goiaba...
Nós chupava tanta cana. Tinha um tipo de cana lá que eles chama de cana caiana
que é bem macia. Aí meu pai falava assim, Eu não quero que vocês tira essas cana,
dexa elas ficá madura, quando elas amadurecê, tudo nós vamos chupá... Mais antes
delas ficá madura, nós robava as cana do meu pai, porque é a cana mais macia que
tinha, as otra era muito dura e meio salgada. A gente ia lá, cortava bem rente na
terra, e depois a gente jogava terra por cima daquele lugar que tirô a cana pra ele
não percebê... E a gente pegava as folha, as coisa e jogava bem longe pra ele não
ver. Mais mesmo assim ele descobria...
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A violência do pai
Maria tem vivos em sua memória os conflitos com o pai, principalmente a oposição
que ele fazia aos seus estudos:
Ele descubria. Nossa, era um coro que a gente levava,
ele batia que só vendo. Meu pai, ele quando era mais novo foi muito ruinzinho pra
gente, foi muito ruim mesmo. Minha mãe não, ela protegia muito a gente. Meu pai,
ele falava assim: Você não vai pra escola, e eu falava eu vou. Que eu queria estudá,
que eu adorava estudá, e ele falava, você não vai! Eu levantava cedinho, me trocava,
aí quando tava saino, ele jogava os balaio atrás de mim, balaio que é feito de
taquara. Ele falava quando você chegá, você me paga. E quando eu chegava, eu
apanhava.
Aí tinha vez que eu chegava da escola e eu nem ia pra dentro de casa, eu ficava no
meio do mato, lá no canavial. Eu não entrava pra dentro pra almoçá, eu ia co
goiaba, chupá cana pra não encontrar com ele, que ele me batia. Minha mãe ficava
preocupada, minha mãe chamava. E eu pensava, vou nada, vou pra apanhá?
Quando nós era mais novo, ele fazia chicote pra batê ni nós. O chicote que ele fazia
era de coro de boi. Ele fazia uma madeira assim e depois fazia o chicote, cortava o
coro assim bem fininho, e trançava. Ele fazia um com trança e outro sem. O sem
trança doía mais, que era muito fininho. Ele terminava de fazê os chicote, ele bebia
umas e queria exprimentá na gente. Às vez nós tava tudo assim na boca da fornaia à
noite esquentano o fogo, e a gente ficava de ôio... Meus irmão falava assim, Ele tá
fazeno o chicote quando ele terminá ele vai batê ni nós... Quando ele terminava o
chicote, minha fia, só via nós correno...
Teve uma vez que ele bateu no meu irmão tanto, que meu irmão ficou todo
calumbado. Nós tinha um maritaca, aqueles passarinho tipo papagaio. Minha mãe
falou pro meu irmão mais velho pegar o mingau de fubá e dar pros passarinho. Tinha
uns uns coxo de bambu pra dar mingau pros passarinho... Meu irmão demorou um
pouquinho, aí meu pai tava rachano lenha, com machado, ele largô o machado no
chão, pegô aquele coxo de bambu curado, e deu uma na cabeça de meu irmão e outra
aqui no ombro. Porque o coxo de bambu curado, muito véio, você pode batê que ele
111
não quebra de jeito nenhum. O ombro do meu irmão chegô a cair, a cabeça do meu
irmão começô a rodá, rodá, a virá o olho... Minha mãe começô a gritá, apavorada.
Aí xingô ele, falô um monte, Você vai matá meu filho!
Meu irmão tinha quinze, dezesseis ano. O ombro dele deslocô, até hoje... Aquela
época não tinha como levá pra engessá, nem nada. Minha mãe fez o que ela pôde,
marrô um pano e começou a colocar santa Maria, uma pranta que tem lá, ela socava
a santa maria com sal e óleo e punha assim no ombro do meu irmão e marrava um
pano... E depois disso, meu irmão ficô meio compricado da cabeça... Depois ele
melhorô um poco, mas sempre ele tem aquela crise. Muita gente não acredita, mas
quando era vorta de lua assim, meu irmão dava crise, ele saía gritano: Mãe, pelo
amor de Deus, me socorre, me socorre! E punha a mão na cabeça e saía correno pro
mato afora e sumia lá pro arto da serra. Minha mãe saía atrás dele, porque lá onde
eu moro é assim, no pé da serra. Meu irmão subia lá pro arto da serra e ficava lá,
depois passado umas duas, três, quatro hora, ele voltava. Até poucos tempo ele tinha
isso.
Depois disso, meu irmão não quis mais ficá em casa. Saiu de casa, foi fazê bico na
fazenda do meu tio. Ficô trabalhando com meu tio e foi ino, foi trabalhar em outras
fazenda e foi andano pelo mundo.... Aí, em casa ficô o Zé, meu irmão, o Geraldo, eu e
o João. Depois meu pai começô a judiá do Zé também. Aí ele também saiu de casa,
foi morá com a madrinha dele, depois foi morá com meu tio, trabalhá na fazenda
dele, tirar leite, de vaqueiro. E meu irmão ficô rodano o mundo tamém. Aí ficou eu, o
Geraldo e o João em casa.
Vou dizê a verdade, hoje em dia meu pai de idade, já tem 81 ano, hoje ele tá um
doce, muito bom... Mas ele arrepende do que fez com a gente. Até hoje ele é
arrependido porque fez isso, nós sofremo bastante.
O cotidiano na terra herdada do bisavô escravo
A casa fica em terras ocupadas pela família há muitas gerações. A situação fundiária,
contudo, é uma das faces da insegurança das populações pobres em relação à posse
112
dos seus bens, especialmente, a terra em que vivem e produzem: Esse lugar que tá a
casa do meu pai, vem do meu bisavô. Só que esse lugar que meu pai mora, era de um
fazendeiro, que meu bisavô morava. Meu bisavô foi escravo. Então foi aquele
negócio, coisa de antigo... Depois meu vô morava lá. Então, essa terra nossa tem a
herança do vô... Foi ali que meu vô teve os filho dele e meus otro tio vendeu tudo a
parte deles. E tem a parte que é do meu pai, meu pai não vendeu a parte dele, que é
aonde meu irmão fez a casa. Depois que meu avô faleceu, meu pai ficô morano lá e
meu pai criô a gente lá.
Depois disso, já trocô de vários dono daquelas terra, e meu pai continua lá. Aquele
pedaço, todo cercado, é aonde é a casa do meu pai. Não é muito pequeno, é grande,
que tem a casa, tem um quintal bem grande, então é um lugar muito bom. Do lado
esquerdo,, cê vê só serra, é muito gostoso lá, um lugar muito gostoso. Incrusive meu
pai só fala que quando Deus levá ele, ele quer que teja um fio dele morano lá, porque
ele não quer desprezá aquele lugar, aquele pedaço de terra ali, que foi desde a época
do vô dele.
A terra num tá no nome do meu pai. Tem o terreno dele mais pra cima da casa dele,
só que meu irmão que construiu lá, mas meu pai não quer sair dali e tamém eles não
pode tirá meu pai dali. Purque ele foi nascido e criado lá, criô a gente, o pai dele foi
nascido e criado, então é como se fosse dele. Tem um dono agora, o João, que é o
dono daquela terra ali, mas eles não manda nada lá naquele pedacinho que tá
cercado, que é a casa do meu pai. Meu pai tem muitos pé de laranja, aqueles pé de
fruta, tudo que tem lá é nosso. É como se fosse nosso, eles não pode tirá meu pai de
lá.
Nessa minha casa tinha os três quartos, a cozinha. Só tinha um fogão à lenha. Não
tinha mesa na cozinha. Cada um sentava na porta da entrada, ou então sentava no
banco, meu pai fazia aquele monte de banquinho assim no quintal, então, nós pegava
seu pratinho, botava no meio das pernas e ia comeno. Minha mãe fazia aqueles tutu
de feijão, às vez com canjiquinha e ia amassano assim – é o capitão de feijão que eles
chama lá em Minas. E a gente comia com a mão, não tinha esse negócio de comê
com galfo.
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Mas em casa os prato era tudo aqueles prato de esmalte... Os copo... Eu tenho muita
saudade do meu tempo de criança, minha mãe tinha umas chalera de esmalte que era
toda pintadinha sabe, branca pintada de preto ou azul. E tinha os bule também, os
copo tudo pintadinho... Minha mãe pegava leite na fazenda e a gente fazia aquele
café com leite e punha ali pra gente tomá, era uma delícia, meu Deus do céu! Ela
fazia o café com leite: ela pegava a rapadura, colocava na panela de ferro, aí dorava
aquela rapadura, ficava bem moreninha e depois jogava o leite ali dentro. Aquele
leite ficava maravilha, aí ela ia e colocava uma pitada de sal, era uma delícia, muito
bom, gostoso demais!
Até hoje eu não consigo tomar café com leite sem uma pitada de sal, eu tenho que
sentir o gosto do sal. Meus irmão já desacostumou, mas eu continuo. Tirando os
pobrema que a gente teve, de passá necessidade das coisa, passá quase fome, só
Deus que tem misericórdia de nós, e do meu pai judiá da gente, tenho boas
lembrança.
Meu pai dexava eu participá de festa, não dexava eu sair. Eu fui ficando jovem, eu
queria sair, eu via minhas amiga toda saindo. Eu trabaiava a semana toda... Eu
limpava a casa pra minha mãe, eu ariava as panela de ferro ficava tudo brilhando a
partilera... Caiava a casa tudinho, que era tudo caiada de barro branco... Caiá é
pegá o barro branco, mexê ele bem na vasilla e fazê aquela água grossa e ir passano
na parede com o pano. Eu caiava toda as parede, ficava branquinha, só veno. No
chão a gente pegava o cocô da vaca, fazia aquela coisa e passava no chão... Que o
chão era de terra, então a gente tem que passá bosta de boi pro chão ficá todo
calmadinho, o chão fica todo verdinho...
Num fica com chero porque o cocô do boi é de capim... E eu fazia aqueles barrado
nos pé da parede assim tudo. Fazia com barro vermelho ou então barro branco
mesmo, passava assim nos pé da parede e depois ia fazendo os recorte assim com a
bosta de boi... Isso aí eu fazia duas vez por semana. Eu caiava as parede no sábado,
que era o dia que de fazê a faxina em casa, e na quarta eu passava otra vez. Toda
semana eu fazia isso.
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Trabalho na roça, trabalho em casa. Maria não pára.
Maria lembra com carinho o trabalho doméstico que realizava quando criança. Em
nada lembra o serviço que vem executando nos últimos trinta anos nas casas da classe
média urbana de São Paulo. A nostalgia serve para amenizar a dureza do cotidiano:
Eu trabaiava a semana toda fora na roça. Quando chegava fim de semana, minha
mãe colocava aquele monte de panela de ferro, e eu com uma bucha de palha de
milho e com areia e cinza, eu ariava aquelas panela, dava um brilho que só veno. Aí
eu punha tudo no girau pra secá no sol. Depois eu limpava todas partilera, que era
de tauba e colocava ali aquelas vazilla tudo limpinha.. Eu trabaiava varreno o
quintal tudim, quintal não, o terrero que eles chama lá. Eu deixava minha casa
impecável.
Minha mãe fazia o sabão, que era preto igual cauvão, minha mãe fazia com mamona
e com um negócio que a gente buscava no mato, bucho. Ela socava e fazia o sabão,
mas um sabão muito bom. Eu lavava a ropa com ele porque não tinha dinhero pra
comprá sabão de quadra, que eles chama lá. Eu ia pra uma lapera que tinha lá perto
da minha casa – lapera é um lugar que tem uma pedra, um monte de pedra e a água
passa por cima. Hoje em dia o fazendero lá fez um tanque pra criá peixe nessa
lapera. Aquela pedra a gente usava de tanque pra esfregá ropa. Juntava eu e minhas
amigas e a gente ia tudo pra lá lavá ropa. A gente montoava lá naquela lapera,
esfregava ropa naquela pedra, depois batia as ropa.
Depois punha prá quará na grama, depois a gente ia tirano aquelas que tava
quarada e já ia passano na água e tornava a por pra quará e era assim que a gente
lavava. Passava o dia inteiro, ali dentro daquela água. Por isso que hoje eu sinto
muita dor nas perna. Acho que algumas coisa que eu sinto é da friage, que eu ficava
o dia inteiro com os pé dentro da água. Lavava a ropa de todo mundo, da famia toda.
Eu pegava a bacia cheiona de roupa e ia pra lá. À tarde eu vinha com as ropa tudo
limpa e seca. Conforme a gente vai quarano a ropa e depois vai esfregano, você
enxágua e vai pondo pra secá no arame, porque lá tinha uma roça que tinha um
monte de arame. A gente ia pondo as ropa pra secá, aquelas que ia secano, você ia
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recolheno e pondo mais, então quando a gente vinha à tarde pra casa já tava tudo
seco.
Engraçado que quando vinha os vaquero trazeno as vaca, aquele monte de boi, a
gente tinha que sair correno pra recolhê as ropa. Porque passava aquele monte de
boi na água, sujava a água toda. Otra, que se deixasse a ropa lá na grama com o
arame, os boi ia e pisava em tudo, aí nós saia que nem doida, corre daqui, corre dali,
corre daqui, corre dali recolheno ropa. Mas era tão legal, era muito bom, era
divertido, sabe.
Na lapera, era só eu e minhas colega. Às vez a gente ficava contano história,
conversano sobre os menino, sobre a escola... Cada uma que estudava, gostava de
um menino na escola. Eu incrusive gostava do meu primo, mas sabe aquele gostá
assim, você gostá da pessoa e você não falá, ele sabia que eu gostava dele, mas
nenhum falava ... Cada uma falava pra outra, eu falava pras menina dos menino,
Fulano gosta de você. Por exempro, da Zinha, da Conceição, tinha a Enedina, tinha
a Roseli, tinha a Angela, que é a menina da minha madrinha Maria, tinha a Helena,
tinha a Cota... Eram muita né, tinha as minhas prima, hoje em dia tá tudo casada,
mas quando a gente encontra, nossa senhora, a gente lembra tudo isso...
Eu sempre lavava ropa na sexta-feira, que durante a semana a gente tava ocupada:
tinha que buscá lenha, tinha que moê cana... Só que nós zoava também, nós ia buscá
lenha no alto da serra, chega lá nós fazia balangô, pra gente ficá balangando... Nós
amassava as taquara e amarrava assim nos pé de ingá. Ia aquele monte de jovem,
moleque, buscá lenha... Eu tinha na faixa de uns 11, 12 anos mais ou menos... Meus
irmão chegô a fazê cabana lá no alto da serra, Levava panela, água, batata doce,
mio pra cozinhá no alto da serra, pra eles comê e ficava zoando... Quando chegava a
tarde, eles num trazia lenha que prestava, trazia os garrancho, aqueles pauzinho.
Chegava em casa, eles apanhava tanto que só vendo. Eles bagunçava, pegava os
cavalo do fazendero, marrava o cipó assim no pescoço do cavalo, montava e saía
correno pro mato adentro...
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Os filhos mais brancos, os xodós do pai
Eu tinha uns 12, 13 anos e trabaiava com meu pai na roça Meu pai era muito ruim e
começô a dar cabada de enxadada na minha cabeça, porque ele queria que eu
trabaiasse junto com ele, capinano, igual a ele, e eu num guentava. Sentia muita dor
nos braço, às vez eu parava e escorava assim no cabo da enxada, aí ele pegava o
cabo da enxada dele e batia na minha cabeça. Minha cabeça fazia tummm... aquela
zuera. Meus irmão ele batia também, só o Geraldo mais o João que foi poupado, que
ele não batia. Não sei, ele puxava o saco deles mais. ele chamava eu de arubu, ele de
nêga, e meu irmão tamém. Os mais preto lá em casa sou eu e um outro irmão meu,
que mora lá em Minas, que incrusive, é o que tá cuidando dele hoje em dia.
Meu pai era bem mais craro; minha mãe era mais ou menos assim das minhas cor.
Então, eu e o meu irmão puxou mais as cor da minha mãe. Então ele chamava a
gente de arubu, de nêgo, assim. Doía tanto, porque meus outro irmão tudo mais
craro... Lembrá disso... Eu fico tão emocionada que eu choro. Minha mãe falava prá
ele não fazê isso com a gente... Incrusive, hoje em dia, nós negro somos os que tá
cuidando dele mais, os que têm mais amor por ele, mais carinho por ele.
Aquilo doía na minha mãe também, minha mãe dizia que nós somos filhos, somos
tudo igual... Mas ele me xingava de arubu, de nega preta, de não sei o que lá, e isso
foi me machucano muito... Meus irmão já tinha saído de casa. Aquilo foi me
aborreceno, aí eu falei pra ele, não vou mais trabalhá pro senhor na roça, vou ajudá
minha mãe em casa e vou trabalhá fora Isso aí eu já tinha 13 para 14 anos mais ou
menos. Ele não deixava eu sair, se tinha um casamento, ele não deixava eu ir. Pra
mim ir, tinha uma vizinha que até hoje ela mora lá, eu tinha que trabalhá pra ela um
dia de serviço pra ela me levar na festa, que ele só deixava eu ir com ela, entendeu?
Então era uma vida sofrida, mas respeitá, a gente sempre respeitô ele.
Eu comecei então a trabaiá pro pessoal lá nas fazenda, ganhava bem poquinho.
Cozinhava, lavava, passava, limpava a casa lá nas fazenda, e fui continuano assim.
Quando não tava mais trabalhando nas fazenda eu ia prá roça, trabalhá no meio de
um mutirão de gente, prantando feijão, rancando feijão... Comprava alguma coisa
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prá mim, ropa, sapato. Aí teve uma época que eu fiquei triste, eu falei que ia morá
sozinha. Meu pai judiava muito da gente, batia muito na gente, eu fui cansano. Aí eu
falei prá minha mãe: Ah! mãe, eu vou fazê um rancho pra mim e vou morá sozinha.
Maria busca sua independência
Comecei a trabalhá numa fazenda que tinha perto de casa, que tinha uma senhora
que chamava eu direto pra trabalhá com ela. Recebia meu dinhero, eu ia comprano
vasia, incrusive quando eu vim de Minas aqui pra São Paulo, eu deixei copo, colher,
um jogo de marmita, panela, jogo de lata, bandeja, deixei tudo... Que eu queria morá
sozinha. Incrusive eu fui no arto da serra e tirei madera prá mim fazê tipo um paiol,
que fazia com as esteira de taquara e cobre as casa. Eu tentei e não consegui, não
tinha força pra fazer aquilo. Aí eu fui trabalhano lá com o pessoal nas roça, e
trabaiei a meia com Maria de Paulo. Eu tinha parado de trabalhá com meu pai,
falei: Agora eu vou trabalhá prá mim, eu vou fazê minha prantação. Então, eu
prantava milho, feijão, fazia horta a meia com ela, eu trabalhava catano café... E eu
comprava despesa, que nem isso ele deixava eu usar, eu tinha que comprá querosene,
porque se eu quisesse acendê uma lamparina à noite, eu tinha que comprá um
querosene, que ele não deixava eu usar o querosene dele... Aí eu fui ficano triste.
Às veis eu levantava de manhã, eu lembro até hoje, aquele frio, eu ficava assim, que
tinha a água que corria da bica, eu abaxava assim e ficava olhano aquela água
cristalina corrê assim no coiso e ia descendo... Aí eu punha a mão entre as pernas,
aquele frio, ficava vendo. Meu pai chegava com aquelas bota sabe, ele levantava
cedo, ele levantava cinco e meia, seis horas, já tava de pé. Com aquelas bota e um
dia me deu um chute que eu caí dentro da água.
Teve uma vez que meu pai chegou bêbo, não sei o que foi que minha mãe falô com
ele, mas ele pegô uma faca e saiu correno atrás da minha mãe. Minha mãe ficou
rodiando um pé de pranta que tinha, de bonina, o pé de pranta era grande. Ela ficava
rodiando e ele com a faca atrás, eu lembro que só tava eu, o Geraldo e o João. Nós
comecemo a gritá, pedi pra ele pará... O Geraldo, meu irmão que era mais velho, deu
um soco assim no braço dele. Como acho que ele tava segurando a faca assim
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folgado, a faca voou longe. Minha mãe foi dormi na casa dos vizinho, e a gente foi
com ela.
Essa briga é que ele chegô em casa e a gente tava brincano, tinha um monte de
criança lá em casa. A gente brincava de pega-pega, de esconde-esconde, brincava
de casamento. Tinha aqueles carrinho de madera, que ia buscá lenha no alto da
serra, sentava um menino e uma menina, com um lenço fininho que tinha na época,
pra dizê que era casamento, e os outro saía cantano atrás.... Aí ele chegava bêbo e
achava todo mundo lá brincano... Aí ele começava a brigá com minha mãe, e aí
começava as briga.
Brincadeiras e diversão
As crianças improvisavam formas de brincar, num mundo sem bonecas ou carrinhos
industrializados:
Tudo pra nós era uma diversão. A gente matava uma lagatixa, pegava
o imbigo da banana, aquele tipo um caixãozinho, a gente punha a lagatixa ali e
tampava ela com um pano. Punha alça naquele negócio e saía aquele monte de
gente, ia fazê o enterro da lagatixa... As muié ia chorano atrás, as menina né, a
gente, ia tudo chorano e os menino homi, levano. Quando chegava lá, já tinha dois
na frente abrindo a cova pra enterrá... A gente pegava gafanhoto, porque lá existe
muito gafanhoto bonito, pegava eles e furava um buraco assim no barranco e punha
eles lá dentro e tampava. Aí todo dia a gente ia lá pôr fubá pra eles, a brincadeira da
gente era essa, era a diversão da gente...
Tinha uma moita de bambu prá cima da minha casa, que eu fiz uma uma cabaninha
de sapé, pequenininha. Ali eu fiz uma fornaia de barro pequenininha e eu brincava
com minhas amiga de cozinhá feijão, fazê arroz, com umas panelinha pequena assim
da minha mãe.. Incrusive até hoje minha mãe num sabe nem aonde foi essas
panelinha. E eu andano lá em Santo Amaro achei um lugar que vende, eu comprei as
panelinha, eu tenho elas na minha casa. Do mesmo jeitinho, as caçarolinha, as
panelinha de ferro, com aquele araminho, eu comprei tudo, tá lá em casa de
lembrança.
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Eu tinha umas três, quatro muda de ropa. Tinha as ropa pra sair, por exempro.
Minha madrinha ia daqui de São Paulo e levava um corte de pano pra mim né, eu
lembro até hoje daqueles pano tudo cheio de frozinha, bem miudinha, umas frozinha
bonitinha. Minha mãe tinha máquina e minha mãe que fazia os vestido pra gente...
Até hoje tem a máquina lá, daquelas de rodar com a mão. Ela fazia pra mim aqueles
vestido de corpinho cumprido com aquela sainha bem pequenininha, toda cheia de
preguinha, era muito gostoso. Pros meus irmão ela fazia calça listrada, do pano
listrado e a camisa daqueles pano bem listradinho também, ou então camisa de
frozinha...
Eu só vestia vestido e saia que minha mãe fazia. As minhas roupa, aliás, era tudo
aqui de São Paulo. Porque o pessoal ia e levava pra minha mãe ropa de criança.
Levava e minha mãe arrumava tudo pra gente. Não era assim comprado lá, que lá
não tinha condições também de comprá. Minhas madrinha, eu tenho duas madrinha
que quando ia levava corte de pano pra minha mãe fazê vestido pra gente. Isso aí já
foi depois com uns dez, onze ano. Depois que comecei a trabalhá, ter meu dinheiro aí
eu comecei comprá, eu mandava fazê, incrusive, eu tenho um vestido de quando eu
tinha catorze pra quinze ano, tenho ele guardado até hoje.
Eu guardei de recordação, de lembrança esse vestido. Eu era bem magrinha, depois
que eu fui engordando. Foi a mãe de uma amiga minha que fez, que até hoje ela é
viva. Ela fez o vestido aberto com aqueles botão bem grande assim na frente. E
minha ex-professora, minha professora bordô duas borboleta assim no bolso, que
tem dois bolso o vestido. O vestido foi pra mim ir no casamento do meu primo.
Ele é cor de vinho, e os botão tamém, só que era uns botão grande que usava
antigamente, até hoje eu tenho guardado. Tenho toalha de rosto tamém, que eu
comprei lá em Minas quando eu trabalhava, acho que eu tinha uns 14 anos, eu tenho
na minha casa guardada de recordação.
Cada recordação traz de volta o passado
Maria demonstra o carinho que tem pelas coisas do passado. Preserva com cuidado
objetos que encerram a memória das dificuldades da infância e juventude. São os
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testemunhos concretos da sua luta e perseverança, convivendo sempre com a
exploração e a necessidade de submissão: Que mais que eu tenho lá? Eu tenho várias
coisa lá que eu truce de Minas prá cá. Guardo de recordação, cada momento que eu
olho aquilo ali, eu lembro do tempo que eu lutei pra ter, pra consegui aquilo ali. Eu
comprava uma toalhinha de rosto, eu comprava uma toalhinha de banho, isso daí foi
depois que comecei a trabalhá mesmo, ganhava muito pouco sabe, mas lutei.
Incrusive quando eu prantei um monte de arroz lá, meu pai dizia que aquilo não ia
dar nada. Ele ia pro alto da serra e ficava olhando o meu arrozal do alto da serra,
que ele falava aquilo ali não vai dar nada, mas deu tanto arroz , tanto arroz...
Eu arrumei trabalhadô, trocava dia, por exempro: os trabaiadô ia trabaiá pra mim e
aí eles marcava o dia e eu ía trabaiá pra eles, ’troca dia’ que eles falava, era assim,
porque a gente não tinha condição de pagar e a gente trocava os dia. Mas esse
arrozal deu muito arroz sabe, eu lembro que foi um dia de finado, eu fui pra capiná
esse arrozal, a minha mãe disse prá mim assim: Não vai trabaiá, hoje é dia de
finado. Aí eu falei, ah não, mãe, eu tenho que ir porque meu arrozal já tá com mato
alto e tem que acapiná um poco, hoje eu vou lá, um poquinho capinado já adianta.
Teimei. Por isso que diz que quando a mãe fala uma coisa, o filho deva ouvir o que a
mãe fala. Eu teimei, peguei a enxada, coloquei nas costa e fui. Quando cheguei lá no
arrozal a primeira enxadada que eu dei, a enxada veio com o bico assim no meu pé,
cortô, afundô assim ó, aqui no peito do pé. Eu só via o sangue esguinchando, aí eu
chamei a dona lá que eu prantava o arrozal a meia com ela né, ela veio correno,
queimou um bocado de arrudão e colocou em cima pra estancar o sangue.
O bico da enxada era bem fininho e fundô mesmo, quase que atingiu o neuvo do meu
pé. Fiquei dois mês com o pé inchado, não aguentava pisá no chão. Aí precisei de ir
na farmácia do Antonio Teixeira e ele foi passando remédio, fazendo curativo, aí que
sarou, tenho marca até hoje. Ela falou duas vez, e eu teimei com ela. E por isso que
eu falo, quando com uma mãe fala pro filho, não faça isso, a gente deve pensar duas,
três vez, porque eu tenho certeza que foi por isso. Era o dia de finado, que é um dia
que a gente tem que respeitá. Aqui em São Paulo, tudo bem, a gente trabaia né, tem
que trabaiá, mas antigamente não trabaiava, a pessoa respeitava.
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Ao final de tudo acabei atrapalhano, porque depois ainda ficô um bom tempo lá o
arrozal no meio do mato. Tive que arrumá uns trabalhadô, e eles capinaram o
arrozal pra mim. Mas esse arrozal deu arroz, deu arroz, aí eu cortava o arroz, fazia
aqueles fexe grande, colocava na cabeça e ia colocando num quarto na fazenda.
Depois eu ia batê aquele arroz, aí eu dividia com a dona lá da terra, metade era dela.
E eu vendia numa cidadezinha lá perto da minha casa.
Antes disso, eu tive empregada com uma família lá numa fazenda. Só que eles
judiaram muito de mim, exprorô muito de mim. A dona Helena mais a Carlota ficava
dormino, e eu quatro hora da manhã tinha que levantá, fazê o tirajejum pros
vaquero da fazenda. É tirajejum que eles fala, porque é de manhã que eles toma
café, é o café da manhã, mas lá eles fala tirajejum até hoje. Café do meio-dia eles
fala merenda.
Aí eu tinha que ir lá no homi buscá fubá, que andava, andava, passava no meio do
mato assim, era bem mais longe, buscá fubá pra fazê esse suado, fubá suado que eles
fala. O fubá suado, você coloca o óleo na panela, lá é gordura de porco, e molha o
fubá. Você deixa ele assim meio soltinho, molhado, e depois coloca um poquinho de
sal e joga no meio daquela gordura, aí você vai mexendo, vai mexendo até ele soltá
da panela. Depois que ele solta da panela, você bate a colher, ele fica suando assim,
é tipo um cuscuz, só que o cuscuz é bem molhado e ele não. Você pode comê ele com
torresmo frito de porco, você pode comê com queijo, você pode comê com ovo frito e
tomá o café junto. Isso era o café da manhã deles, que o povo tomava na base de seis
hora, sete horas, depois ia pra roça. Minha mãe fazia farofa de manteiga, farofa de
rala de quejo, que eles rala o quejo antes de vendê, eles chama de rala. Minha mãe
fazia farofa pra gente tomá café de manhã, era assim, quando foi miorando a
situação. Mais, eu sofri muito, eles judiava muito de mim. Quando era no sábado a
gente tinha que vir de pé até Santa Rita, andava, andava mais de duas hora, duas
hora e pouco pra chegá na cidadezinha onde é a casa deles, da fazenda na casa deles
na cidade.
Não tinha descanso, era direto, direto. Visitá meu pai mais mãe era de quinze em
quinze dia, eu só chegava, dava uma bença pra eles e voltava que não dava pra
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demorá, ia de pé pra roça. Tinha que lavá, passá, cozinhá, tratá das criação e a
Dona Helena mais Carlota ficava bem numa boa, só vendo, e eu tinha que fazê tudo.
Aí chegou uma hora que eu falei, não, isso não dá prá mim, num vô güentar não, saí
de lá. No dia que eu falei pra ela que ia embora, ela pôs eu pra capiná um quintal lá
da casa dela na cidade. O ônibus passava oito hora, e ela acordô eu era às cinco e
meia da manhã e eu capinei aquele pedaço todinho lá do quintal. Eu tive que capiná
aquele tudo lá rapidinho, prá mim tomá banho e me trocá pra mim pegá o ônibus pra
ir pra casa do meu tio lá na cidade.
Fui pra casa do meu tio, fiquei quinze dia na casa do meu tio e de lá eu vim embora
pra roça, de novo, pra casa do meu pai. Eu comecei a fazê as prantação, e
trabalhava fora, cortando aqueles capim... Sabe aqueles capim meloso que eles fala,
que a gente corta e bate, e tira semente e vende pros fazendero prantá nos pasto pro
gado? Trabalhei muito cortando capim. Depois disso é que comecei as prantação e
o arrozal, e nessa época todos começaram a vir pra São Paulo, que eu pus na cabeça
que eu vinha pra São Paulo tamém.
Enfrentando a vida
Maria nunca se acostumou totalmente com São Paulo. Um dia quer voltar para lá,
depois que a casa estiver pronta e as filhas encaminhadas. Na juventude em São
Paulo, não foi possível grandes sonhos e ambições. Lembra-se de ter ido a um show
do Amado Batista, no Asa Branca, conhecida casa de danças, e só. E tenho medo de ir
em festa aqui em São Paulo. É, porque, principalmente em festa em famia assim, dá
bebo, eles bebe muito. Tem dia que eu ligo o som lá em casa, fico ouvino forró. Aí eu
tô trabaiano e dançano. É muito bom, a vida da gente. A gente tem que levá a vida
assim, tá ótimo. Porque se a gente fica só pensano, a cabeça da gente fica dum jeito
que num dá. E você pensa numa coisa, pensa otra, aquilo vai... Se eu sei que eu tenho
que pagá, mais se eu num tenho condição de pagá, a gente deita na cama, parece que
a cama fica rodano assim, que chega uma hora, que a gente num güenta. Por isso
que eu num gosto nem muito de pensá nas coisas, num gosto não.
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Por isso que eu acho que existe muita gente aí com pobremas sérios, através disso,
fica pensano muita coisa. Eu tento num ficá pensano muita coisa na cabeça. Tento
num ficar fazeno pranos, vou fazê isso. Não. Eu gosto assim, se der pra fazê, vamos
fazê, se num der tamém, disisto logo.
Minhas filhas... A Carina faz curso de cabelerera aqui na Brigadeiro. Dorme até
oito, nove hora. A Camila também. A Nice trabalha na verdade, né, mais elas têm
uma boa vida. Vai, passeia, vai em festa e tudo. Quem diria que eu tinha essa vida.
Num tinha, nunca tive essa vida. Eu fazia boneca de pano. Eu memo fazia. Eu fui uma
criança, que eu sei fiar linha, tinha o parafuso que eles fala, de enfiar a linha com o
algodão. Eu ia fazeno assim, fazeno a linha pra mim costurá. Eu buscava capim no
mato pra fazê colchão pra mim dormi. Eu remendava minhas ropa, eu num tive
infância assim, como essas menina teve. Hoje em dia elas têm tudo.
A Tatiana teve a filha dela, num trabalhava, eu que comprei tudo pra minha neta. Foi
morá com o pai da Graciele, nunca tinha trabalhado com vinte ano. Depois que ela
foi morá com o marido dela, que ele ficou desempregado é que ela arrumou um
seuviço. Que eu arrumei pra ela lá com o Fernando. Quando ele foi morá com a
Luciana, e a Luciana queria uma empregada por mês. Aí eu falei: óia, eu num posso
trabaiá por mês, porque eu tenho minhas outra patroa, então eu vô dexá minha fia
trabaiando com ocêis por mês. Trabalhô acho que uns quatro ou cinco ano lá no
Fernando, depois eu arrumei pra ela numa loja que eu trabaiava com a Cibele, uma
loja de persiana. Depois ela foi trabaiá cum a Sueli. Só que agora ela tá grávida de
novo e nem tá trabalhano mais.
A vida atual: Maria às voltas com a casa, o marido e as filhas
A Nice sempre foi uma menina esforçada pra trabaiá. Com onze ano ela me deu um
liquidificadô de presente no dia das mãe. Com o primeiro dinhero que ela recebeu do
seuviço que ela trabaiô de babá. Sempre trabaiano, sempre lutano, tadinha. A Nice
sempre foi assim. E as outra, igual. A Camila trabaia comigo. A Carina de vez em
quando ela arruma um bico, trabaia em casa, faz trança, faz escova, tá fazeno curso
de cabelerera. Tá arrumano sua vidinha. E eu sempre falo pra elas, junta uns
124
trocadinho, quando arrumá um serviço vai ajuntano um dinherinho, que elas têm o
prano de futuro delas, né, elas sempre fala, eu quero trabaiá pra comprá isso,
comprá aquilo, guardá um dinhero que eu quero fazê um futuro. Então eu falei assim,
minha fia, começa desde agora, e elas lutano. Mas hoje em dia tá difícil.
A Tatiana foi muito levada, ela foi muito baguncera. A Nice também, a Nice foi uma
menina assim muito que respeitava eu e meu marido. Mais depois que ela começô
estudá à noite, acho que ajuntô com umas amiga e começô sair e fazê coisa errada.
Ah, ela saía com as amiga, num falava pra onde ia, saía escondida. Aí depois rumô
um namorado, engravidô dele. Igualzim foi a Tatiana, a mesma coisa, que num ouviu
conselho, o Preto sempre dava conselho pra elas: Cuidado, que os rapaz de hoje em
dia, eles num quer nada sério, eles quer só zuá. Elas achava ruim, pensava que ele
tava dano conselho errado. Ele queria que elas arrumasse um namorado que fosse
um caso sério, casasse, ele disse que tinha o maior prazê de ajudar no casamento
dela, fazê o casamento dela. Só que foi tudo contrário, e nisso transformô em
confusão.
A filha Tatiana não mora mais com Maria, casou-se e vive com o marido e a filha
Graciela. A segunda filha, Nice, tem Laís e ambas moram com Maria: A Tatiana tem
o marido dela, que é o pai da filha dela... Agora a Nice num deu certo com o pai da
filha dela, que não convive junto. Ela que cria a filha dela. Incrusive a minha neta
mora comigo, a da Nice. A da Tatiana mora com ela, que ela tem a casa dela, tem o
marido dela e tudo. Agora a da Nice mora comigo. E a Nice mora comigo também.
Num deu certo com o pai da Laís. Num chegô a casá. Eles tava fazeno os prano tudo,
de casá no civil, de ter a casinha deles, mais depois não deu certo. Ela trabalha,
cuida da filha dela, mais ela mora comigo.
Maria precisou contornar muitos desentendimentos entre o marido e as filhas mais
velhas. Foi uma coisa assim, sabe, foi uma confusão que tinha dia que parecia que eu
ia enloquecê. Nossa! E meu marido brigava com elas porque, meu marido ficô até
com raiva do Adilso, que é o pai da Graciela, ele tomô raiva do Adilso, sabe. Que ele
pensô que o Adilso que tinha responsabilidade dela tá grávida. Aí depois a Tatiana
foi morá com ele, aí voltaram tudo nas boa de novo.
125
A situação agravou-se quando a segunda filha também engravidou: Aí a Nice
engravida da Laís, foi aquela otra confusão. E ele pegô bronca do cara, do pai da
Laís, porque ele diz que ele tinha a responsabilidade. Que ele avisô pra Nice e a Nice
num ouviu ele. E ele num falava com a Nice, hoje em dia eles já se falam, voltô a paz
em casa. Eles se falam, com a Tatiana e tudo, mais antes, foi muita, muita briga.
Maria revela como cumpre o papel de mediadora dos conflitos na família: E eu tinha
que controlá tudo aquilo entendeu, sobrava pra mim. Eu tinha que ficá controlano
um, controlano otro, uma coisa de loco isso... Eu controlava assim, eu dava conselho
pra Nice... Aí eu falava pra ela assim, ó, quando ele chegá bebo, você num fala nada,
se ele começá a falá, você sai fora, entendeu? Aí você num fala nada, num responde
pra num criá caso. E otra hora falava pra ele, ó, você num tem nada que ficá
impricano ela, falano isso, falano aquilo, dexa que eu resolvo isso. Era assim, o
controlamento era assim.
Uma expressão que Maria usa muito é essa, “controlamento”, pois faz parte de sua
vida controlar as finanças da casa, os problemas das filhas, as brigas da família: Otra
hora que a gente via que ele tava bebo, que ele tava chegano, as menina saía,
despistava, pra dexá ele sozinho, eu também, ele chegava falano alguma coisa, eu
saía assim pra rua, eu saía na casa de uma vizinha, dexava ele... Aí ele chegava e
num achava a gente, ele ia direto pra cama, deitava e ia dormir. Aí quando ele
acordava já acordava bom, sabe, pra evitá.
Religiosidade
Maria acredita em Deus, e que foi atendida por Ele nos momentos mais difíceis: Deus
viu que eu num merecia vivê aquela vida, eu olhei pra cima e pedi pra Deus, que se
eu merecesse vivê a vida que eu tava levano, com discussão, magoano as pessoa, que
eu tamém num gosto de fazê isso, que se Deus vesse que eu merecesse, tudo bem, que
se ele vesse que não, que ele fazesse alguma coisa por mim. E foi que Deus ouviu a
minha prece. Fui atendida. Agora, meu marido é evangélico e num bebe mais, graças
a Deus.
126
Eu sô católica. Meu marido ele é evangélico, eu sô católica, mais nós dois se
entende. Ele vai na igreja dele, eu vô na minha igreja. Eu num sô assim de ir na
igreja direto, quando eu dô vontade de ir à missa, eu vô. Eu faço minha oração todo
dia em casa. Todo dia. De manhã, na hora de dormi, se eu tô dentro do ônibus, eu
faço minha oração tamém, qualqué lugá que eu tivé, eu rezo. Pai nosso, Ave Maria,
Creio em Deus Pai e umas oração que eu aprendi quando eu era criança, eu rezo.
Faço minhas promessa, faço minhas novena. Sô muito devota à Nossa Senhora de
Aparecida, São Judas Tadeu, Santo Expedito, e de todos os Santos. Então é assim, eu
vô na igreja dele, eu vô na minha. Ele num importa d’eu fazê minhas oração, eu
tenho meus santo em casa. Ele num se importa. Tem Nossa Senhora da Aparecida,
Nossa Senhora da Conceição, tem uma santa lá que a minha patroa me deu, num
lembro o nome dela. Fica tudo em cima da minha cômoda, dentro no meu quarto, eu
cuido bem delas. Quando eu faço novena, eu acendo vela todos os dia, durante nove
dias. . Todo ano eu vô pra Aparecida, e toda vida eu fui devota, católica...
Além do marido, a mãe também tinha se tornado evangélica. Apesar de ter
freqüentado a igreja da mãe, permaneceu no catolicismo, pois acredita que tem que
ser sincera. Depois, com o passá dos ano minha mãe ficô evangélica. Eu tinha o que,
uns doze ano, minha mãe ficô evangélica. Incrusive em Minas, eu ia pra igreja da
minha mãe, lia a Bíblia pro pastor lá, que ele num sabia lê. Eu e minhas amiga lia a
Bíblia e tudo, mais nunca meu coração pediu pra mim ser evangélica. E eles
tentaram, eu dexá a minha religião católica e ir pra igreja evangélica. Eu falei, num
adianta eu ir pra igreja evangélica fazê a vontade dos otro. Deus tá sabeno que meu
coração num é evangélico, é católico. Num adianta, Deus tá ta lá em cima, tá veno
tudo que nós tamo fazeno aqui. Então, minha mãe era evangélica, foi evangélica até
o final, meus irmão passô a ser evangélico e depois voltô a ser católico. Meu pai é
católico. Minha mãe era evangélica, mais ela ia em reza, novena, que até hoje faz lá
em Minas. Até na igreja, que tem uma igreja lá na roça, que o padre celebra missa lá
direto, ela ia à missa mais meu pai.
A aceitação das coisas como elas são não significa resignação. Maria luta, insiste,
persiste. Busca alternativas, reformula seus sonhos: Depois que eu tive minhas filha,
127
nunca tive vontade de casá, não. Eu sempre quero ser assim, do jeito que eu sô.
Agora eu tenho vontade das minha filha casá. Que eu tenho minhas duas filha
soltera, tem a Carina e a Camila. A Nice tamém é soltera, a Nice tem vontade de
casá, nem que seja no civil, também. Eu falei, eu tenho vontade de ver minhas filha
vestida, principalmente a Carina e a Camila, vestida de noiva... Mas eu falei pra
elas,vamos entregá na mão de Deus.
Hoje em dia recibi uma bença de Deus que tá tudo maravilha em casa. Eu tenho
minha casa, agora eu fiz a minha casa, a minha casa é grande, graças a Deus, dá pra
mim e pros meus filho e quem chegá tem lugá pra eles, que antigamente eu num
tinha. Tenho minhas coisinha, graças a Deus. Num vô recramá, tenho meu serviço
que eu trabalho. Num tenho... dinhero, num vivo aquela vida maravilhosa, mais num
passo fome, sempre tem um dinherinho pra comprá as coisa pros meus filho, pra
quem chegá na minha casa comê e bebê, graças a Deus. E tô levano a minha vida...
A luta continua
A Tatiana num trabalha, quem trabalha é o marido dela. A Nice tá trabalhano,
coitada, mais ganha muito poco, só dá pra ela, mal mal paga a escolinha da filha.
Ela tem que fazê uma cirugia do maxilar, se ela num fizé essa cirugia é perigoso
deslocá. É que cresceu muito o maxilar dela, então ela tem que fazê essa cirurgia, faz
muitos ano que a gente tá lutano. Paguei os quatro ano os dentista pra ela, e eu num
tive condição de pagá mais o aparelho dela, tive que interrompê. Agora ela tá pelo
convênio da firma dela, mais memo assim, ela tem que pagá o dentista separado. Ela
tá muito chateada porque ela num pode me ajudá.
Lá em casa agora quem tá trabalhano sô eu, que tô sustentano tudo, só eu. Incrusive
meu telefone tá pifado essa semana, tá broqueado. Porque a Nice que tava pagano
telefone e eu comandano o resto. Onti que ela conseguiu recebê e pagô o telefone,
mais ficô as otra coisa pra trás. Eu falei assim, olha, vamo levano do jeito que Deus
manda. De primero ficava c’aquela revolta, triste, chorava, comecei entrá em
depressão com tudo isso. Mais hoje em dia eu me conformo com tudo. Eu falei: vamo
devagar que nós consegue chegá lá.
128
2- Considerações sobre as escolhas feitas:
A registrar o modo de falar de Maria Vieira, em sua história de vida, foi
necessário fazer algumas opções. Como não se tratava de uma transcrição fonética de
seu depoimento, era preciso escolher que características da oralidade registrar e que
traços ignorar. Havia, por exemplo, uma série de características de pronúncia que
poderiam ou não ser registradas no texto.
De maneira geral, foram três os critérios utilizados: legibilidade, identidade e
musicalidade. Isto é, elementos que não interferissem na construção da identidade da
personagem nem na musicalidade do texto, mas que pudessem dificultar a
legibilidade foram excluídos. Por exemplo, a pronúncia do I no lugar do E (“minino”,
“piqueno” etc.) ou do U no lugar do O (“cumer”, “puder”) foram desconsiderados.
Embora algumas características sejam comuns a praticamente todos os
falantes do Português brasileiro, elas foram registradas por se considerar que não
dificultariam a legibilidade do texto. E, também, para reforçar as diferenças entre a
língua escrita e a língua falada. Em outras reportagens, contudo, elas poderiam ser
suprimidas sem prejuízo para a construção da identidade do protagonista, em virtude
de serem elementos presentes na fala de qualquer pessoa.
A principal dessas características é a supressão do R dos verbos no infinitivo:
“limpá” “fazê”, “imprimí”. Apesar de ser uma característica da fala de praticamente
todos os brasileiros, e não representar uma característica particular da oralidade de
Maria, nem do grupo social ao qual ela pertence, ainda assim, considerei importante
registrá-la.
Entretanto, optei por não adotar esse procedimento em alguns verbos, em
função da legibilidade, pois são verbos muito curtos: cair, dar, for, ir, pôr, sair, ser,
129
ter, usar e ver. Nestes casos, mantive a grafia da norma-padrão, embora a pronúncia
desses verbos siga a de todos os demais.
Outra característica comum a praticamente todos os brasileiros é a contração
do ditongo OU em O e do EI em E (“poço”, “quejo”, por exemplo). Da mesma forma,
adotei a grafia “num” em relação ao não. Em ambos os casos, a decisão levou em
conta o ritmo e a cadência do depoimento e a harmonia maior com o conjunto da fala
da personagem.
Fenômenos variáveis:
O interessante na observação da fala de Maria Vieira é que alguns fenômenos
lingüísticos variam aleatoriamente. Ou seja, aparecem e desaparecem, independente
dos vocábulos utilizados.
O exemplo mais claro é o da assimilação. Assimilação tanto do LH pelo I,
quanto do ND pelo N e do MB pelo M. Isto é, Maria pode falar, na mesma frase, filha
e “fia”, cantando e “fazeno”, também e “tamém”. Isso pode ter ocorrido em virtude
de uma autovigilância. Isto é, em alguns momentos, Maria se corrigia. Em outros,
acabava relaxando e utilizando seu modo mais usual de falar.
Mas neste caso, pode ser outra a razão. Como o fenômeno da assimilação
acontece quando dois sons são articulados de maneira muito semelhante, é comum a
todos os falantes alternarem os registros. Por isso, talvez seja natural, por exemplo,
que Maria, às vezes, pronuncie o gerúndio com o ND e, às vezes, somente com o N.
Também há uma alternância em alguns vocábulos como alto e “arto”, serviço
e “seuviço”, garfo e “galfo”. Neste caso, pode estar funcionando tanto a
autovigilância quanto uma variação na memória lingüística. Ou seja, em determinada
130
época de sua vida, Maria articulava essas palavras de uma maneira. A convivência
com outras pessoas fez com que ela modificasse o modo de falar. No resgate de sua
própria história, a memória afetiva pode trazer de volta os modos antigos.
Outras considerações:
Ao observar a fala de Maria Vieira, é interessante notar que alguns fenômenos
lingüísticos aparecem em situações bem específicas. Quando seu relato se dirige à
terra natal, Maria recorre, pela primeira vez, ao arcaísmo ‘alembra’. Este vocábulo,
assim como outros relacionados ao Arcaísmo, pertencem a um Português antigo, que
sobreviveu nas regiões mais interioranas do Brasil.
Outro registro importante é que, apesar de Maria pertencer ao grupo de
falantes menos escolarizados e, por isso, articular a língua em uma de suas variedades
não-padrão, ela é capaz de incluir na sua fala termos sofisticados, como cruel,
poupado, dispensar, interromper, e mesmo gírias mais contemporâneas, como o verbo
zoar.
Isso demonstra que, embora haja um padrão predominante, mesmo uma
falante de baixa escolaridade como Maria é capaz de variar seu registro oral e
articular diferentes variedades da língua. Isso torna a questão da oralidade ainda mais
complexa.
131
Capítulo 5
Conclusões
132
1- A importância da oralidade:
Um jornalismo que se pretende revelador do real tem como princípio o ser
humano e como foco, a busca da dignidade de homens e mulheres. Para isso, a
reportagem de aprofundamento se constrói a partir de protagonistas. É por meio deles
que são narrados os acontecimentos e fatos relevantes. Os protagonistas, em suas
jornadas cotidianas, representam a epopéia humana.
E um dos elementos constitutivos da identidade de qualquer ser humano é a
maneira como articula a linguagem. O modo como fala revela não só a origem,
história e universo cultural do falante, como também sua visão de mundo.
No caso do Brasil, as variedades lingüísticas não-padrão sofrem intensa
rejeição na sociedade, na cultura e nos meios de comunicação. Seus falantes são
estigmatizados como “ignorantes” e incapazes de articular “corretamente” o idioma.
Isso provoca um dilema no profissional que pretende incorporar a oralidade de
falantes de baixa escolarização em sua reportagem.
A análise dos livros-reportagem de Caco Barcellos e Antonio Carlos Prado
revelam que a incorporação do modo de falar dos protagonistas é um elemento que
pode, ou auxiliar na própria estruturação da narrativa jornalística, ou destruí-la.
Caco Barcellos, em Abusado – o dono do Morro Dona Marta, enfrenta o
desafio de incorporar a fala dos moradores do morro carioca, apesar do risco de
reforçar os preconceitos de que são vítimas. O autor supera esses riscos ao construir
protagonistas integrais. Personagens que, apesar da violência em que estão inseridos e
de que são reprodutores, têm revelada sua dimensão humana.
Ao incorporar o modo de falar de seus personagens, com tudo aquilo que é
considerado “errado” pela norma-padrão, o autor logra também legitimar variedades
133
lingüísticas desvalorizadas pela sociedade. E acaba, assim, também por estimular a
pluralidade cultural, ao dar visibilidade a expressões específicas da cultura.
Com a incorporação da oralidade, a grande-reportagem de Caco Barcellos se
humaniza e se enriquece.
Orientação diversa é seguida por Antonio Carlos Prado. Em Cela Forte
Mulher, o autor corrige as falas de todas as suas personagens, aproximando-as da
norma-padrão. Com isso, desperdiça a oportunidade de enriquecer sua narrativa com
a multiplicidade de falares de mulheres de diferentes origens, histórias e grupos
sociais.
Mas a operação realizada por Antonio Carlos Prado não significa apenas abrir
mão da possibilidade de ampliação dos níveis de aprofundamento de sua reportagem.
O resultado é ainda mais devastador.
Com falas padronizadas e corrigidas, suas personagens perdem identidade e
autenticidade. Tornam-se frágeis e até irreais. Em conseqüência, a própria
reportagem, em vez de desvendar o real, transforma-se em um simulacro da realidade.
134
2- Sobre a história de vida:
A história de vida de Maria Vieira é uma tentativa de demonstrar a viabilidade
de incorporar modos não-padrão de articular a língua falada à reportagem de
aprofundamento. E de que ao fazer isso, é possível manter a dignidade do
personagem e não reforçar o preconceito lingüístico que a nossa cultura constrói em
relação a esses falantes.
Neste sentido, houve a preocupação de ir além do factual, incorporar a
dimensão social, penetrar no campo da cultura e tocar no mito.
A dimensão social na reportagem foi articulada ao retratar a vida de uma das
milhares de mulheres que garantem a ordem e a limpeza das casas de classe média.
Afloram, na história de Maria, as relações que se estabelecem entre patrões e
empregados. Que vão da cumplicidade, da solidariedade e do espaço quase familiar,
ao autoritarismo, à desconfiança e à exploração, numa reprodução permanente de
uma tradição escravocrata, arraigada em todo o Brasil.
Mentalidade escravocrata presente na fazenda mineira que obriga a empregada
a levantar às quatro da madrugada para preparar o café-da-manhã dos vaqueiros. Que
explora até o limite do concebível ao exigir que a demissionária, antes de partir, limpe
o terreno das ervas daninhas. Não estaria aí uma metáfora da abolição, quando a
oligarquia brasileira foi indenizada pela perda de seus escravos?
Mentalidade presente também na capital paulista, em que a senzala é
modernamente transformada em quarto de empregada, que pode abrigar a serviçal e
os passarinhos. Gente e animais colocados no mesmo patamar de dignidade.
135
O contexto social também aparece na história da migrante, que sai da sua terra
em busca de melhores oportunidades e condições de vida. E que enfrenta novas
adversidades, preconceito, incompreensão, mas também alguma solidariedade.
A história de vida penetra no campo da cultura, ao revelar modos de vida,
tradições, costumes, visões de mundo. Em seus escritos, Roberto DaMatta (1984)
mostra que os elementos mais eloqüentes de nossa cultura são o futebol, a
religiosidade, as festas e a comida.
Na história de Maria sobressai a culinária mineira, mas não aquela culinária
conhecida no restante do país, de pratos elaborados e gordurosos. Surgem hábitos
alimentares da “roça”, como o “capitão de feijão” – que deve ser comido com as
mãos –, passa pelo café com leite, com uma pitada de sal, pela farofa de “rala de
queijo”, até o fubá suado, que compõe o reforçado “tira-jejum” de boiadeiros e
trabalhadores rurais.
A religiosidade também está presente no relato de Maria. Uma religiosidade
não dogmática, intimista por um lado e, por outro, também social, ou relacional,
como afirma DaMatta (1984).
Intimista na devoção e no diálogo direto com Deus, sem a intermediação de
clérigos. Diálogo franco, em que as petições são apresentadas de maneira bastante
objetiva: “se é pra ser assim, que seja, senão, mude!”. Intermediação, somente de
santos e santas, inclusive daqueles que nem o nome se sabe.
Mas religiosidade também social, em que se misturam rituais e tradições
ancestrais: as orações aprendidas na infância, a novena, a missa, as rezas que reuniam
toda a comunidade. Religiosidade relacional também no diálogo e na convivência
com o marido evangélico.
136
Em relação às dimensões míticas do relato, parece ser o campo mais difícil de
avaliação. São aqueles elementos que ultrapassam as fronteiras da cultura e
constituem as referências universais do ser humano. Neste sentido não estaria incluída
aí a enorme capacidade de sobrevivência e transformação demonstrada por Maria?
E a própria dimensão mítica da migração? A repetição de uma saga universal,
que remonta aos tempos imemoriais, quando o ser humano era nômade por natureza e
vocação. Já que o ser humano é obrigado a lidar com os limites da própria existência,
surge o impulso permanente de deslocar-se, transladar-se para, enfim, viver outra
vida.
E o desejo de voltar ao lugar de origem para terminar ali a vida, encerrando o
ciclo da existência? Lugar que talvez já não tenha as mesmas características, os
mesmos costumes, nem as mesmas pessoas, mas que ocupa o espaço mais nobre na
memória afetiva.
Se todos esses elementos estão presentes, então, teria sido atingido o campo
do imaginário e a história de vida construída teria cumprido as ambições da
reportagem de aprofundamento.
Com isso, a reportagem teria superado o risco de estigmatização da
personagem. A construção do protagonista de forma integral, em todas as suas
dimensões, é a garantia de não reforçar preconceitos lingüísticos em relação ao seu
modo de falar. A partir daí, a incorporação da oralidade de uma falante não
escolarizada seria um fator de enriquecimento da grande-reportagem.
137
3- A ausência de oralidade:
A análise da reportagem de Cláudio Cerri, entretanto, levanta uma questão: a
grande-reportagem pode aprofundar um tema desprezando os modos de falar de seus
personagens? Ao que tudo indica, pelo resultado da reportagem “Um rio à procura de
um país”, a resposta é afirmativa.
Isso levaria a uma contradição com o que foi levantado nesta pesquisa. Se é
possível construir uma reportagem de aprofundamento ignorando a maneira como os
protagonistas articulam a língua falada, qual a importância da oralidade brasileira
para o Jornalismo?
Mas é um falso paradoxo. Ocorre que a reportagem de Cláudio Cerri é
estruturada como se fosse um ensaio. A narrativa recorre às funções poética e
referencial da linguagem. A função referencial está expressa na elaboração do
conjunto de informações recolhidas com especialistas, técnicos, lideranças e
populares. Para articular essas informações, o autor não precisa de nada além das
ferramentas do Jornalismo convencional.
Já a função poética surge na arquitetura do texto de Cerri. Ele constrói uma
narrativa em que o rio São Francisco se transforma no grande protagonista. Une,
assim, informação e metáfora. Com isso, ganha relevância a poesia – o texto em si – e
o narrador, que articula os sentidos poéticos.
Homens e mulheres que vivem e sobrevivem às margens do rio acabam
ficando em segundo plano. Continuam sendo personagens, mas não protagonistas da
reportagem. Com isso, a narrativa pode prescindir da oralidade dessas pessoas.
Ou seja, por um lado é possível realizar uma reportagem de aprofundamento
sem priorizar os falares dos personagens. Mas por outro, o trabalho jornalístico que
138
tenha como protagonistas seres humanos e, principalmente, falantes de variedades
lingüísticas não-padrão, não pode abrir mão desse elemento significativo da
identidade dos próprios protagonistas. O desaparecimento ou a adulteração dos
modos de falar dos personagens coloca em risco o próprio projeto de aprofundamento
desse trabalho jornalístico.
139
4- Questões abertas:
Nesta pesquisa, procuramos defender a tese de que a incorporação dos falares,
principalmente da gente comum, de baixa escolaridade, é um dos fatores de
enriquecimento da grande-reportagem. Daquele trabalho jornalístico que tenha a
ambição de desvendar o real. Da reportagem que tenha a ousadia de enfrentar os
modelos estabelecidos e as fórmulas narrativas conservadoras.
Mas o papel que a oralidade pode desempenhar nesse tipo de Jornalismo
ainda pode estimular novas pesquisas. Por exemplo, que laços a narrativa jornalística
embebida nos falares de heróis anônimos pode estabelecer com seus leitores?
Outra questão seria discutir se o jornalismo tem a função de legitimar falares
diferentes da norma-padrão da língua. Como mediador cultural, caberia ao jornalismo
romper as regras das gramáticas normativas e propor novas linguagens, novas formas
de registro da Língua Portuguesa?
É possível ainda levantar a discussão sobre as formas de incorporar a
oralidade na grande-reportagem. É possível estabelecer parâmetros de registro das
falas, sobretudo, de falantes de baixa escolaridade? Existem outras possibilidades de
abarcar distintos modos de falar? Como articular variedades não-padrão da língua
falada com falantes da variedade padrão numa narrativa jornalística?
Enfim, o Jornalismo de aprofundamento e a questão da oralidade são dois
campos tão ricos nas práticas que têm surgido e nas reflexões que têm suscitado, que
uma pesquisa é capaz de lançar apenas um pequeno olhar sobre o tema.
140
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