Download PDF
ads:
Maria Auxiliadora Brito Silva
A terra (des)construída na mídia impressa
do Pontal do Paranapanema.
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da
Faculdade de Ciências e Letras da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus
de Araraquara como requisito para a obtenção do título
de Doutor em Letras
Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina
Araraquara 2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Dedico esta tese
Ao meu amor, Joaquim, companheiro de todas a
horas, o sabor para todo saber na lavoura cotidiana;
Aos filhos amados, Elisa, Claudia, Marina e
Saulo, chuva e sol, arco-íris, o viço dos frutos a
justificar a constância do cultivo;
Aos meus irmãos, cunhados e sobrinhos queridos,
sombra, brisa a soprar a aragem nesta semeadura;
especialmente a Eleusa, gota de orvalho em
palavras providenciais;
Ao meu pai e minha mãe, terra firme, chão fértil
para frutificação dos melhores grãos!
ads:
3
Agradecimentos:
aos funcionários, professores e à coordenação do programa de pós-graduação em
Lingüística e Língua Portuguesa da UNESP- Araraquara, a preparar com atenção e
solicitude o terreno para esta semeadura;
ao Prof. Dr. Arnaldo Cortina, assistindo ao movimento do sol, das chuvas, dos ventos,
para só então sugerir de forma amena e segura a melhor terra a ser cultivada, no
oferecimento de ferramentas para a lavra, orientando e incentivando o uso de cada técnica
para a melhor colheita;
aos docentes da UNESP, especialmente às Profsª. Dra. Renata Coelho Marquezan e Dra.
Ude Baldan, que, durante o exame de qualificação, percorreram a aridez do terreno no
primeiro plantio para aí retirar ervas daninhas, podando o que impedisse o melhor cultivo da
terra;
à querida mestra Maria do Rosário Gregolin, a indicar veredas nas terras do saber;
à professora Maria Aparecida Baccega, pelas aulas de comunicação na ECA-USP, o norte
que me conduziu para a leitura das terras do Pontal do Paranapanema;
ao Nelson do Nascimento Filho, nas correções de digitação, percorrendo passo a passo, todo o
terreno e, com serenidade, possibilitou este cultivo;
à Vera, braço amigo de todas as horas, a ofertar o encorajamento sem conta para enfrentar
todas as intempéries;
às amigas, Marina, Marisa, Tânia, Vanete, Veruska; a todos os colegas da UNAERP,
especialmente ao Messias, Sebastião, Sérgio, Álvaro, Rubens, à Juliana, Carmem, Naiá, mãos
estendidas, sempre prontas a colaborar neste labor;
a CAPES pelo apoio financeiro.
4
5
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
1. O tema e sua relevância
2. O Projeto de pesquisa e o plano de trabalho
07
07
10
PARTE I – A LINGUAGEM 18
CAPÍTULO 1 – A COMUNICAÇÃO VERBAL PARA A LINGÜÏSTICA:
ENUNCIAÇÃO E SUBJETIVIDADE
1.1 O Sujeito no texto jornalístico sobre a terra: um difícil lugar a ser
ocupado.
1.2 A posição do sujeito para a semiótica.
1.3 Um balanço no quadro conceptual da enunciação: a movimentação do
sujeito na construção do discurso jornalístico.
23
25
34
49
CAPÍTULO 2 – A COMUNICAÇÃO VERBAL NO JORNALISMO:
SUBJETIVIDADE VERSUS OBJETIVIDADE
67
PARTE II – O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO 99
CAPÍTULO 1 – QUESTÃO AGRÁRIA NO GOVERNO FHC 108
CAPÍTULO 2 – O PONTAL DO PARANAPAN EMA 140
PARTE III – A LEITURA DO CORPUS
3.1. Um olhar para o objeto de análise: O Imparcial e Oeste Notícias
3.2. Os conflitos pela terra
3.2.1. Primeira página
3.2.1.1. A imagem negativa dos sem-terra e a insegurança dos proprietários
rurais
3.2.1.1.1. Em O Imparcial
3.2.1.1.2. Em Oeste Notícias
3.2.1.2. O confronto entre o Prefeito e o MST
3.2.1.3. O olhar de O Imparcial para Oeste Notícias no cenário do conflito
3.2.2. O Texto de opinião
3.2.2.1. Em Oeste Notícias
153
158
172
172
181
192
199
205
208
215
218
6
3.2.2.2. Em O Imparcial
3.2.3. Reportagem
3.2.4. ARTIGO
3.2.4.1. Em O Imparcial
3.2.4.2. Em Oeste Notícias
3.2.5. Editorial
3.2.6. Charge
3.2.6.1. Em Oeste Notícias
3.2.6.2. Em O Imparcial
3.3. Políticas Agrárias
3.3.1. O Agronegócio
3.3.1.1. Primeiras Páginas
3.3.1.2. Editorial
3.3.1.3. Artigo
3.3.1.4. O texto de opinião
3.3.1.5. Notícia
3.3.1.6. Entrevista
3.3.2. Questões Ambientais
3.3.2.1. Primeira Página
3.3.2.2. Reportagem
3.3.2.3. Notícia
3.3.2.4. Editorial
225
235
233
233
240
249
252
253
259
262
262
265
268
276
278
280
282
286
287
288
290
292
CONSIDERAÇÕES FINAIS 294
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 306
ANEXOS 316
7
RESUMO
Nesta tese propõe-se uma leitura dos efeitos de sentido da temática da terra
construídos no jornalismo impresso do Pontal do Paranapanema. Por meio da diversidade de
gêneros textuais, produzidos em 2002, nos dois jornais de maior circulação na região mais
conhecida pelos conflitos agrários, Oeste Notícias e O Imparcial, constituiu-se o corpus para
a leitura, à luz da semiótica greimasiana. Para isso elege-se a práxis enunciativa para
enquadrar e reger, pela discursivização, as dimensões narrativa, figurativa e passional dos
discursos jornalísticos da terra. Pretende-se abordar o papel do sujeito como responsável pelo
fazer perceptivo em relação aos enunciados do jornal, examinando a função do enunciador e
do leitor na ressemantização e/ou dessemantização do sentido. Analisa-se a “figuratividade”
para conduzir a concretização do simulacro do ato de percepção do sentido de terra produzido
nos diferentes gêneros textuais do jornal.
Palavras-chave: efeitos de sentido; sujeito; enunciação; enunciador; leitor; texto
jornalístico
8
RÉSUMÉ
Cette thèse propose une lecture des effets de sens de la thématique de la terre qui ont
été construits dans la presse du « Pontal do Paranapanema ». Par le moyen de la diversité
de genres textuels dont la production date de l’an 2002, dans les deux journaux de la plus
grande circulation de la région très connue par les conflits agraires, Oeste Notícias et O
Imparcial, on a constitué le corpus pour la lecture, à la lumière de la sémiotique française.
Pour cela on élit l’action énonciative pour encadrer et diriger, par la discursive, les
dimensions narrative, figurative et passionnelle des discours journalistiques de la terre. On
prétend aborder le rôle du sujet comme responsable pour le faire perceptif par rapport les
énoncés du journal, en examinant la fonction de celui qui énonce et du lecteur dans la
resémantique et/ou desémantique du sens.
On analyse d’une manière figurative pour mener la concrétion du simulacre de l’acte de
perception du sens de terre qui a été produit dans les differents genres textuels du journal.
Mots-clés: effets de sens; sujet; énonciation; énonciatiataire; lecteur; texte journalistique
9
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
(Carlos Drummond de Andrade)
Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E
foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me
ultrapassou. Qualquer que seja o que quer dizer “realidade”.
(Clarice Lispector In: A Hora da Estrela)
7
INTRODUÇÃO
1. O tema e sua relevância.
A idéia deste trabalho nasceu do desejo de persistir na temática que culminou no
texto que apresentamos como dissertação de Mestrado, em 1999. Com base em falas
recolhidas e transcritas de um grupo de assentados do Triângulo Mineiro, elaboramos a
pesquisa por meio da observação dos discursos orais, tendo como finalidade garimpar
sentidos do signo terra, construído no/pelo discurso daqueles que, tendo enfrentado uma luta
para a conquista de um espaço geográfico, continuavam, então, uma outra luta travada no
cotidiano, compulsoriamente: um embate com a terra, a fim de garantir a (sobre)vivência. Das
falas gravadas e posteriormente transcritas, que constituíram o objeto de análise, brotaram
sentidos vários. Após o término do trabalho, no entanto, a reflexão era sobre o tema da terra,
uma questão que insistia permanecer, como uma paixão que conduzia sempre o nosso olhar
na direção do mesmo tema. Sem relutar, eis-nos novamente diante da antiga questão. Não
porque permanecemos na ilusão de buscar origens, ou soluções para os questionamentos
relativos à terra. O que nos impulsiona é a necessidade de elucidar as práticas discursivas de
um ciclo de vida do qual participamos como leitora nos anos 1980, retomando-o nos idos
1990, sob gestos de análise, de uma outra leitura, de interpretação que “exorciza” a memória
de tempos sempre presentes.
São incontáveis os estudos sobre questões agrárias nos mais diversos campos das
ciências humanas, com publicações que se avolumam, especialmente após a organização dos
movimentos que lutam pela posse da terra, conhecidos como os NMSs (Novos Movimentos
Sociais), de que o MST é um dos exemplos. Mesmo assim, continuamos a insistir nesta
permanência de um olhar fixo na direção das questões relativas à terra. Objeto de disputa,
desde o início da colonização do país, a propriedade da terra é assunto de debate desde o
“descobrimento” e continua sendo até hoje, especialmente neste governo, que se elegeu com
apoio, sobretudo do movimento que reivindica a distribuição de terras, o MST.
Conduzir uma investigação, num campo tão explorado, poderia significar cair no
lugar comum, navegar por mares tantas vezes navegados, sem descobertas para atestar.
8
Teimamos, entretanto, em percorrer este antigo caminho, acreditando na importância de
refletir sobre o tema, relevante no momento em que, sobre ele, transbordam discursos em todo
o Brasil. Se os textos sobre “invasões” de terra constituíam uma descontinuidade no discurso,
uma ruptura na vida da sociedade regida por valores estabilizados da “ordem e do progresso”,
hoje passam a fazer parte da cotidianidade da mídia. Ao lado de acontecimentos
desestabilizadores da ordem urbana, provocados, por exemplo, pelo tráfico de drogas, a
atenção do leitor da mídia é golpeada por textos que têm na terra o tema central, num
cotidiano que vem normatizando a turbulência em supostas águas tranqüilas do oceano social.
Desde a segunda metade da década de 1980, com a abertura política, a sociedade convive com
narrativas, cujos atores protagonizam ações tidas como ameaçadoras à ordem social.
Pensando-se a época colonial, o sentido de disputa pelo espaço geográfico pode
ser tomado como o que coloca a questão do povoamento e do latifúndio: o povoamento
definindo a população e o latifúndio, a posse e o modo de administração da terra. Do ponto de
vista do governo, trata-se de uma organização geral do território brasileiro – progresso da
nação – possibilidades de transformação social e democratização do país.
Como podemos perceber pela realidade brasileira, com políticas que vêm
privilegiando os grandes investimentos no agronegócio, não se pode falar em integração
capitalista para o favorecimento de uma grande maioria do povo brasileiro, que há pouco mais
de cinqüenta anos vivia na zona rural, sobrevivendo de atividades agrárias. Podemos dizer,
então, que a terra é uma questão a ser enfrentada.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo,“Uma reforma estratégica”, de
09/8/2003, o coordenador do setor de Mobilização Social do Programa Fome Zero, Frei Beto,
afirma que “o país possui 600 milhões de hectares cultiváveis, dos quais 250 milhões são
áreas devolutas e 285 milhões, latifúndios; 138 milhões de hectares estão em mãos de apenas
28 mil proprietários; 85 milhões de hectares estão nas mãos de apenas 4.236 proprietários.”
Um país que tem cerca de um terço de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, da
qual mais de 4 milhões de famílias foram expulsas da terra, vai sempre esbarrar em problemas
que clamam por soluções que absorvam a mão de obra que veio do campo e querem ter o
direito à propriedade como espaço de moradia, de trabalho.
Alternando conflitos de toda natureza, o território brasileiro foi sendo definido
arbitrariamente, primeiro com a formação das sesmarias, até que em meados do século XIX a
estrutura de propriedade ganhou uma formulação jurídica básica com a chamada
independência. Algum tempo mais tarde para evitar a “fuga de braços”, ou seja, com a
9
também denominada abolição da escravatura, surgiu a Lei de Terras, que definiu um
princípio: legalmente, o acesso à terra passaria a se dar por doação da Coroa ou por processos
de compra e venda. Depois foi o Estatuto da Terra que gerou o texto da Reforma Agrária.
Na dissertação do mestrado, escolhemos para enfoque de análise, uma das regiões
de Minas como palco dos conflitos pela terra na década de 1980, época em que se uniram
dezenas de famílias da região e das proximidades para disputar, com o gado e com a cana, um
pedaço de chão para a sobrevivência:
Nóis agüentaro a mão e sofremo na bataia, passemo por cima d’ez tudo e
graças a Deus tamo no nosso chãozinho sussegado [...] eu tem meu gadim
[..] e meu animal, o meu carrim [carroça], as minha galinha pr’eu cume a
hora qu’eu quisé [...] crio aqui minha famia [...]” (SILVA, M. A. 1999,
p.160).
Nossas pesquisas do Mestrado colocaram-nos diante de varias questões. Uma
delas foi em relação ao trabalho da mídia impressa. Se essas análises ficaram restritas às falas
dos protagonistas das questões agrárias, isso não quer dizer que não as procuramos em
registros impressos. Bem que tentamos buscar jornais da região. No entanto, as falas dos
sujeitos em sua luta pela terra não haviam sido registradas. A constatação foi a de que os
jornais não dispunham de um lugar para as vozes desses sujeitos. É inegável que registros
como esse transcrito acima, retirado do arquivo do Mestrado como amostra dos sujeitos cujos
discursos foram objeto de nossas análises, e que representam um linguajar o qual golpearia os
ouvidos e os olhos de qualquer leitor de qualquer jornal, obviamente não gozariam de
prestígio para ocupar aí um espaço.
Mas, foi pelas reflexões sobre a significação do silêncio em torno da questão da
terra, operada pela mídia impressa é que resolvemos insistir nessa questão. Ressoava em
nossos ouvidos as vozes que ouvimos pela boca dos protagonistas da luta pela terra, naquela
época da pesquisa (há quase dez anos). Reconhecemos que, se não fosse aquele momento de
escuta, nunca teríamos um olhar menos míope sobre a questão agrária. Daí a insistência de
querer ouvir a voz daqueles para quem a terra é a garantia de sobrevivência. Em todas as
nossas leituras dos veículos de comunicação impressa, o nosso ouvido se pôs então na escuta
para identificar tais vozes e a seguinte pergunta sempre tem direcionado nossas leituras: Qual
o espaço que está sendo reservado aos simples trabalhadores da terra? Não podíamos pensar
em abranger toda a diversidade de veículos de comunicação: rádio, tevê, revistas e jornais.
Realidades de linguagens tão distintas. Procuramos, pois, fixar o olhar para este último
veículo e, desta feita, diferentemente do Mestrado, deixamos o campo da oralidade para ficar
10
com o da escrita.
Este percurso a ser atingido, foi se delineando aos poucos e se concretizou pelo
exercício de leitura de uma parcela da mídia impressa sobre as questões agrárias na sociedade
brasileira.
Desde o governo FHC, quando se reinstalaram as esperanças de um governo
voltado para projetos sociais, tornou-se bastante fortalecido um dos movimentos mais
organizados do país, o MST, que passou a invadir o espaço de toda a mídia nacional. Nos
textos sobre a temática das questões fundiárias, que sempre tinham como personagem o MST,
era possível vislumbrar uma ampla variedade de efeitos de sentido de verdade, o que sugeria
inúmeras questões a serem exploradas como exercício de análise. De fato, no curso da
confecção da pesquisa, ficava cada vez mais evidente que a leitura dos textos jornalísticos
podia levar à compreensão de uma parcela da imensa diversidade das temáticas sobre
questões em torno da significação de terra no universo brasileiro da mídia impressa. Na
materialidade lingüística de jornais, buscamos como campo de trabalho, a coleta de sentidos
para a terra, terreno onde lavoura esta pesquisa.
A questão passava a ser, então: que textos selecionar para constituir um corpus de
análise? Em que jornais?
2. O projeto de pesquisa e o plano de trabalho
Definido o jornal impresso como objeto de trabalho, o problema que se
apresentava era o da escolha dos textos entre os veículos da mídia impressa. Mas, antes dos
textos, era preciso eleger os jornais. Ora, o primeiro passo era delimitar um espaço que
pudesse ser abarcado por um olhar. Referimo-nos não apenas à amplitude de um espaço
geográfico brasileiro que possibilitasse visualizar a temática da terra, mas que representasse
uma fração temporal que permitisse observar as “escolhas” enunciativas, decorrentes das
determinações sociais e históricas do discurso desse tema.
A materialidade lingüística, uma via de mão dupla, leva-nos tanto à linguagem
quanto à sociedade. Isso posto, convém explicitar que não cabe discutir a relevância da
inserção social dos textos, especialmente quando pesquisas muito recentes para análises
11
interpretativas estão disponíveis a qualquer estudioso da linguagem. Confirmam-se
especialmente os avanços da semiótica greimasiana que, com o desenvolvimento de uma
teoria da enunciação, põe em relevância a “dupla tarefa de mediação entre as estruturas
sêmio-discursivas e as estruturas discursivas” (BARROS, 1988, p.143), possibilitando
alcançar os fatores sociais na materialidade linguageira, relacionando o discurso e o contexto
social e histórico.
Move-nos, então, a certeza de que o texto jornalístico, por se tratar tanto de
produto de um ato enunciativo quanto de objeto de comunicação, por sua constituição sócio-
histórica, não podem ser tomados isoladamente de qualquer contexto.
Ao incorporar as pesquisas sobre a enunciação na semiótica, reconhecemos a
relevância de ancorar as investigações do tema em questão nos exercícios de análise das
projeções da instância enunciativa nos textos jornalísticos. O modelo desse tipo de análise foi-
se incorporando a cada leitura, à medida que se apresentava o problema da seleção dos textos
para o corpus.
Optamos por trabalhar com jornais do estado de São Paulo, como espaço
geográfico de onde selecionaríamos as leituras sobre o tema da terra, numa fração temporal
compreendida por um ano. A escolha parecia apropriada porque poderíamos coletar os jornais
imediatamente a partir do ano a se iniciar, ou seja, 2002. Definido o ano, só faltava mesmo
optar pelos jornais. Inicialmente a escolha recaiu sobre os de maior tiragem em todo o estado:
O Estado de S. Paulo e Folha S. Paulo. Além desses dois jornais de maior circulação,
incluiríamos outros, de circulação restrita, desde que fossem também do estado de São Paulo.
Por se tratar da temática sobre a terra, decidimos, então, escolher jornais diários do Pontal do
Paranapanema, região bastante conhecida por problemas fundiários.
A princípio, nosso projeto previa que o corpus incluiria O Estado de S. Paulo e
Folha S. Paulo e também os do Pontal do Paranapanema. Dado o volume do material,
tornava-se difícil o recorte nessa imensidão de textos para se obter um conjunto que possa ser
compreendido pelo olhar do analista.
Assinamos três jornais do Pontal do Paranapanema: Jornal da Comarca, O
Imparcial e Oeste Notícias. O primeiro, de uma pequena cidade, Palmital; enquanto os dois
outros, de Presidente Prudente. Optamos por trabalhar com os dois últimos, enquanto que o
primeiro, apesar de ser também da região, foi deixado de lado porque não tinha a mesma
significância dos outros dois diários de maior tiragem do Pontal do Paranapanema.
Com pesar, desprezamos a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, elegendo os
12
dois jornais regionais de Presidente Prudente. Desse modo, de O Imparcial e Oeste Notícias
selecionaríamos o material para o corpus.
Evidentemente que, depois de tantas leituras dos dois grandes jornais da capital,
chegamos a uma riqueza de material sobre a temática da terra, que achamos que não deveria
ser desprezada. Ao constatar a sua importância para a compreensão de muitos dizeres dos dois
jornais regionais, decidimos, então, aproveitar esse material que, ao longo das leituras já
havia sido catalogado a partir da temática da terra.
Por essa perspectiva, definimos que nossa tarefa dar-se-ia a partir de duas
abordagens distintas. Dos dois jornais do Pontal, selecionaríamos os textos para o corpus de
análise. Da Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo teríamos o conjunto de textos a que
recorrer para uma visualização temporal e/ou espacial das questões sobre o tema em questão,
enunciado no corpus, possibilitando relações interdiscursivas, intertextuais para inserir O
Imparcial e Oeste Notícias num contexto sócio-histórico brasileiro mais abrangente.
Devemos sublinhar que isso se deu por acreditarmos que a problemática dos
contextos discursivos pressupostos em todos os textos da mídia do Pontal, a serem analisados,
não nascem do nada, mas, ao contrário, representam sempre uma resposta ao universo textual
com que dialogam, confirmando ou negando discursos. A certeza é a de que esse diálogo com
os dois grandes jornais do estado de São Paulo pode ser valioso para o esclarecimento de
muitas leituras. Se por um lado é preciso pressupor a importância do dialogismo para a
interpretação, a que se referia Bakhtin décadas atrás, por outro, é preciso também reconhecer
a necessidade de buscar, a partir desse conceito, condições que possibilitem o diálogo com os
textos. Trocando em miúdos, ratificamos que os discursos veiculados na grande mídia
impressa da capital, por meio da Folha e do Estado, viabilizam a leitura do panorama da vida
social e política do Brasil, tornando possível o procedimento da caracterização do espaço e do
tempo em que se insere o corpus que se constitui nosso objeto de análise.
Em 2003, com todos os jornais coletados, passamos à seleção dos textos. À
medida que procedíamos à leitura, pilhas avolumam-se. Dezenas, centenas de textos
formaram uma quantidade tão grande, o que exigiu uma organização prévia para possibilitar
os cortes ou recortes.
Na seleção da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo, fizemos uma divisão
de temas e subtemas. Por exemplo, a temática de conflitos, compreendia vários subtemas,
com especificidades bastante diferentes. Assim podemos contemplar a questão indígena, as
reivindicações dos extrativistas do Norte do país e as dos pequenos produtores rurais, os
13
antigos conflitos ou os mais recentes, etc. No entanto, convém destacar que, em nossas
leituras, o MST, apesar de estar compreendido pelo tema dos conflitos, não foi visto como
subtema e, sim, como tema, pelo grande volume de textos encontrados.
Questões governamentais, política agrária, meio ambiente, conflito agrário, o
MST, etc., eram grandes temáticas que possibilitaram a organização do material, cuja leitura
permitia observar questões, tantas delas já bem conhecidas, mas preciosas para abordar o
tema da terra.
No primeiro trabalho de organização, já podíamos flagrar a configuração de
diferentes organizações ideológicas a que remetiam os textos. As cores, bastante distintas de
cada jornal, saltavam aos olhos, até mesmo do leitor menos avisado, cuja perspicácia podia
notar matizes, que concretizam a significação de um ponto de vista, de uma argumentação
indireta. Encobertos por discursos críticos, da mídia caracterizada como “séria”, determinados
temas apresentavam-se como verdades absolutas. Podemos exemplificar aqueles construídos
para fazer frente à reforma agrária, na defesa dos ideais capitalistas de grandes proprietários
rurais, dentre tantos outros.
Em meio aos mais variados gêneros jornalísticos, fomos selecionando os textos. O
foco de nossas leituras deslocou-se, assim, tanto para reportagens quanto para o jornalismo
opinativo, em que cabem não só os editoriais, mas também uma gama de outros gêneros:
artigo, crônica, opinião ilustrada e opinião do leitor, comentário, arte, resenha, coluna, charge,
etc.
Os recursos visuais (fotos, esquemas, paginação, etc.) interessaram-nos quando
construíam efeitos de sentido, desde que a dimensão icônica pudesse levar à leitura do tema
da terra. Mas demos maior relevância ao verbal.
Em relação a Oeste Notícias e O Imparcial, já separados pela temática da terra, era
preciso lançar mão de critérios para a escolha dos textos que constituiriam o corpus de
análise. Um dos problemas era a delimitação do material. Num universo temático que se
emaranhava por grande parte da produção jornalística, a eleição de um texto, implicava a
recusa de outro. Isso poderia levar a um dilema.
“Partindo da hipótese de que a enunciação é o conceito-chave para explicação do
discurso e de suas relações com as condições sócio-históricas de produção e recepção”
(BARROS, 1988, p.142), propomos examinar o tema da terra com base no aparato conceitual
e metodológico da semiótica de linha francesa. Equivale, assim, a levantar as condições de
cada enunciação, em cada unidade textual selecionada, objeto semiótico a ser trabalhado, de
14
onde emerge a significação construída em O Imparcial e Oeste Notícias.
Convém destacar que o estudo de Discini (2003) sobre estilo nos textos
jornalísticos possibilitou-nos observar o ethos na imprensa séria e na sensacionalista. Com
isso verificamos semelhanças e diferenças na totalidade dos discursos produzidos em um e
outro jornal analisado. À medida que tratarmos dos temas, observaremos também o ethos de
cada jornal, a imagem de seus enunciadores, o que indiscutivelmente nos remete a efeitos de
sentido de muitos temas. Antecipando as leituras, podemos afirmar que os dois jornais do
Pontal constroem a imagem de um enunciador como o proprietário da terra e de seu leitor
cujos interesses estão vinculados aos mesmos interesses do enunciador. No entanto, cada
jornal constrói os sujeitos envolvidos no processo enunciativo, com tons bastante diferentes.
Objeto da construção jornalística, o discurso da/sobre a terra resulta de um certo
número de operações implicadas no jogo da escritura dos acontecimentos, que envolve
procedimentos que obedecem a sucessivas reescrituras. É um objeto semiótico que, para além
dos fatos, tem também a realidade própria do veículo e que deve ser levada em conta em toda
leitura. Por exemplo, a mera passagem de um despacho de agência ao artigo, implica a
transformação de um fluxo ininterrupto de informações em uma “área espacial” que, segundo
Mouillaud (1997, p. 25), é feita “ao custo de uma série de operações que afetam formas e
conteúdos. Um conjunto de marcas faz da página do jornal diário não apenas um texto, mas
uma ‘área espacial’”. Isso afirma o estudioso da comunicação para quem “distinções que eram
imanentes ao discurso do jornal de opinião, tornaram-se, atualmente, uma ordem externa e
sem autor”, considerando que “a produção do sentido começa com a diagramação”.
As afirmações de Mouilllaud (1997) levam-nos a ver que a complexidade da trama
do sentido põe-nos diante da necessidade de tratar, o que poderíamos chamar de morfologia
dos jornais para descrever a materialidade dos dois veículos em questão: papel, formato,
diagramação, etc. Como uma entidade técnica, essa materialidade não pode ser pensada como
um mero “dispositivo”, estranho ao sentido, mas constitutivo dele, já que todo discurso
jornalístico não está solto no espaço, mas envolvido nos dispositivos próprios do veículo.
Seria bastante redutor propormos uma leitura dos jornais a partir da dicotomia “dispositivo” e
“conteúdo” como se se tratasse de dois planos: um externo (suporte/embalagem: formato,
diagramação, etc.) e o interno (idéias/conteúdo). Estamos considerando o dispositivo como
uma forma, que é sua especificidade, em particular, um modo de estruturação do espaço e do
tempo. Não se trata de um “suporte”, mas de uma matriz que impõe formas.
15
Após inquietante hesitação dentre as diversas possibilidades de estabelecer um
recorte para o corpus, optamos por trabalhar os grandes temas a partir dos gêneros
jornalísticos. Assim, organizados os temas e subtemas, era preciso fazer a seleção dos textos,
observando a modalidade do gênero. Curioso dizer que não foi tarefa difícil. Devidamente
separados, os recortes passariam a ser feitos, então, a partir da classificação adotada pelos
jornais diários da mídia impressa: editorial, charge, artigo, reportagem, etc. Essa divisão já faz
parte da construção do jornal que já tem o espaço reservado para todos esses gêneros.
Geralmente obedecendo a polêmica divisão entre os conceitos de texto de informação e texto
de opinião, as páginas são estruturadas para acolher o objeto textual. Não vamos agora tratar
desses conceitos, que serão discutidos ao longo das análises.
Ali, em cada página, disponíveis, costumeiros como em todo jornal diário, tivemos
contato com os fatos, que iam excitando nosso olhar. Lá estavam eles, no objeto semiótico, a
espalhar significados, construindo a materialidade jornalística, contaminados a cada ato
verbal.
Em relação à notícia, lá estavam os fatos sobre a temática da “terra” para serem
desvelados pelo leitor assíduo e fiel que os lê sem se preocupar lhes haver atribuído
julgamento e, desse modo, entra em relação com a significação do tema. Pelos fatos, aceita
discordâncias, concorda com pontos de vista de que pode divergir. Segundo Bertrand (2003,
p.405) “na definição estrutura da figuratividade, o termo ‘correspondência’ traz certas
dificuldades”. Acaba naturalizando a idéia de que cada jornal estabelece “um vínculo de
representação unívoca, mecânica e necessária entre formas fixas, mas deve-se considerar que
a correspondência se faz “pelo crivo cultural” que torna possível a “legibilidade figurativa”.
Aliás, a ninguém surpreende prestar atenção na relação entre coisas, pessoas ou fatos
construídos pela linguagem jornalística. Mas sob o figurativo subjaz o contrato fiduciário de
confiança e crença entre os parceiros da comunicação de que o olhar que capta a suposta
realidade factual não é a de um sujeito, mas de uma organização, capaz de pensar e dispor o
ocorrido, viabilizando o que deve ser posto em circulação para ser conhecido. Ali, onde a
visibilidade da linguagem põe a ver os fatos, é também o espaço de atuação dos sujeitos na
sociedade.
Nesse espaço em que se movimentam os sujeitos no processo para enunciar a
temática da terra é que lançamos nosso olhar inquieto para analisar a movimentação de
sujeitos dados a conhecer em cada enunciado jornalístico. Um olhar para ver e conhecer. Esse
olhar que se apercebe atento, penetrante e atravessador visa a perscrutar, na materialidade das
16
linguagens, os efeitos de sentido que conduzem a imaterialidade dos significados da relação
entre os sujeitos e seu objeto-valor (a terra).
O que pedem os fatos ao olhar do leitor de Oeste Notícias e O Imparcial? Que
desvele os meios invisíveis pelos quais eles são visíveis a seus olhos? Que mostre como eles
se entretecem para construir uma suposta “realidade”?
O olhar do analista interroga a materialidade de linguagens que constrói sujeitos
envolvidos no processamento do discurso jornalístico – o olhar que põe, dispõe, compondo os
acontecimentos. O olhar do sujeito perquiridor, invadido e habitado por simulacros de fatos
construídos na enunciação, vê, então, que é preciso distinguir a movimentação de atores no
cenário jornalístico. Dessa maneira, chega mais perto das palavras, mas não apenas para
contemplá-las (como propunha Drummond), mas para se acercar de seu movimento e
examinar, observar e, assim, atento, lançar seu olhar a fim de enxergar o acontecimento do
discurso no jornal.
Para essa tarefa, com olhos operários obedientes às reflexões adquiridas quando
transitamos por teorias da comunicação, especialmente por aquelas que levam em conta a
enunciação e as relações entre os sujeitos produtores do discurso, deixamo-nos guiar por
alguns pressupostos da semiótica, desenvolvidos nas últimas décadas. O primeiro deles é que
o jornal se configura como um objeto de estudo, como um lugar onde se produzem contínuos
processos de significação e de comunicação. Isso nos leva a adotar a crença de que a notícia
não se trata de mero relato dos fatos, a trazer o “real” constituído historicamente. Elaborada
pela enunciação jornalística, a notícia deve ser vista como um texto que aciona um complexo
sistema de valores, materializados discursivamente. Um gênero textual que se constrói a partir
de critérios de noticiabilidade, mas que devem considerar o partilhamento e o consenso dos
valores de uma dada sociedade. Logo, exige que entre em jogo o caráter da operação dos
sujeitos nesse processo linguageiro. Passa-se de um crer ingênuo para uma atitude analítica,
possibilitando a compreensão e explicação dos efeitos de sentido de verdades, que são postas
em circulação cotidianamente. Criado por meio dos recursos de natureza lingüística, o
enunciado jornalístico é um simulacro de verdades construídas.
A diversidade de figuras que se organizam para cobrir o tema da terra proliferam-
se como senhas, sim; mas, em decorrência dos diversos comprometimentos ideológicos de um
pacto entre um sujeito enunciador e um enunciatário (o leitor), o sentido põe-se em
movimentação, de um pólo ao outro. Nessa movimentação, ao leitor é também reservado o
direito de poder se desviar do contrato de veridicção a que visa o enunciador, responsável
17
pelos valores do discurso. Por se tratar do discurso jornalístico, consideram-se os contratos
propostos e assumidos pela empresa jornalística. O esperado é que o leitor do jornal, que tem
seu lugar instaurado no enunciado, a partir do processo da enunciação daquele que o
pressupõe, assuma a sua posição. Espera-se que ele assuma o seu papel para crer no que se
põe discursivamente, respondendo ao fazer persuasivo do enunciador. Se não responde a esse
fazer, há um desacordo nessas relações, não ocorrendo assim a coincidência entre os sujeitos
da enunciação. Em decorrência de qualquer ruptura no contrato da crença esperada, desejada
do leitor, podem não se sustentar hipóteses que conduziriam ao afastamento do ponto de vista.
Ora, isso comprova a complexidade da relação entre o texto e seu leitor. Eis-nos então diante
desse desafio da leitura dos efeitos de sentido da temática da terra.
Para a apreensão da temática da terra, acompanhamos a movimentação da
instância enunciativa nos dois jornais do Pontal do Paranapanema. A fim de realizar nossa
tarefa, organizamos este trabalho em três partes.
Na Parte I trazemos um pouco de nossas leituras sobre a linguagem. Não só para
observação da movimentação teórica sobre os estudos da língua, mas para discussão do
conceito de língua como instrumento de comunicação, interação entre interlocutores
(discursos de seres de linguagem e textos) construída no jogo de imagens, simulacros e
avaliações entre sujeitos da comunicação. Dividimos essa primeira parte em dois capítulos. O
Capítulo I traz uma abordagem sobre a comunicação verbal nos estudos lingüísticos e a
natureza lingüística do sujeito, encaminhando a discussão com vistas à subjetividade do ponto
de vista da semiótica.
A discussão sobre a linguagem continua no Capítulo II, num tópico específico
para a comunicação verbal no jornalismo impresso. Para a leitura dos textos jornalísticos,
achamos que ampliaria a nossa compreensão uma abordagem pontual sobre a teia de
significações do jornal. Assim, focalizamos aí esse meio de comunicação chamado Jornal
para tratar do funcionamento do discurso jornalístico, apoiados na leitura de estudiosos dessa
área, possibilitando um direcionamento em algumas especificidades desse gênero discursivo.
Referimo-nos a gênero de discurso segundo Bakhtin (1997), que considera as modalidades da
enunciação articuladas em gêneros discursivos, já que cada esfera da atividade social possui
formas textuais cristalizadas. Os efeitos de sentido que circulam nos discursos produzidos na
sociedade constroem, com as formas discursivas típicas de cada um desses diversos gêneros,
as representações do imaginário de uma certa época.
Na Parte II, voltamo-nos para a constituição de um cenário lingüístico que visa à
18
composição do contexto sócio-histórico, em um panorama nacional, a partir da materialidade
jornalística, tendo como fonte a Folha de S. Paulo e O Estado, para situar nosso objeto, os
textos selecionados de Oeste Notícias e O Imparcial. Essa segunda parte é subdividida em
dois capítulos. No primeiro apresentamos a caracterização da sociedade brasileira, ancorados
nos textos da Folha e O Estado, focalizando o governo FHC em relação a questões agrárias.
No segundo, nosso foco dirige-se para a região do Pontal do Paranapanema para localizá-lo
como espaço eleito para nossas leituras do tema da terra e os efeitos de sentido relativos a ele
produzidos no ato enunciativo.
A terceira e última parte destina-se às análises.
PARTE I
A LINGUAGEM
19
Na comunicação humana, a língua
Nas veias do jornal, a terra
“No princípio era o Verbo, proclama o
prólogo do evangelho de João. No fim
também o será. Verbo que se faz carne e cerne
e, ainda assim, permanece impronunciável.
Inominável. A palavra lavra e semeia, mas
seus frutos nunca serão inteiramente
palatáveis. Polissêmico, verbo é mistério”
(FREI BETO).
“Assim como a língua, a cultura oferece ao
indivíduo um horizonte de possibilidades
latentes – uma jaula flexível e invisível dentro
da qual se exercita a liberdade condicionada
de cada um” (GINZBURG).
Sem querer discutir pressupostos teóricos da Comunicação (o que faremos mais
adiante), apresentamos a seguir uma breve reflexão da linguagem na prática jornalística,
20
tendo em vista o nosso objeto de trabalho, o texto do jornal impresso.
Postula-se que a prática jornalística se sustenta por relações contratuais entre o que
pode e deve ser dito por um enunciador a um enunciatário. Isso, no entanto, não é argumento
para sustentar qualquer afirmação de que a linguagem do jornal constrói cânones da
regularidade, instaurando uma possível unicidade na significação de seus discursos. É
inegável que, tomando a língua como material significante de qualquer texto, o que se tem é a
diversidade, a polissemia, a multiplicidade, bem ao contrário de qualquer noção de unicidade.
Disso também o texto jornalístico não teria como fugir, considerando o dual (o produtor e o
leitor). Não há, portanto, como escapar de prováveis equívocos, de pontos de deriva.
A sociedade contemporânea, invadida por tecnologias de comunicação cada vez
mais sofisticadas, dispõe de recursos que visam ao controle das significações. Poderíamos
dizer que se trata de tentativas de controle adotadas por um modo técnico de escrita para dar a
conhecer certas ações, que inscrevem os sujeitos na lógica de determinadas técnicas
jornalísticas. Estudiosos da comunicação empregam o termo linguagem “tecnificada”. Um
termo que aparece quando se trata de referir à tentativa de circunscrever um determinado
setor do jornalismo a uma linguagem, com a finalidade de restringi-lo. A tradição de estudos
da Comunicação e do Jornalismo leva-nos a crer que, quer se trate de estudos centrados no
emissor, quer voltados para a recepção, ou tomados ambos os pólos como imbricados, vigora
um continuado esforço de instituir uma certa versão da realidade (simulacros do real), sempre
numa insistência na “tecnificação” da linguagem. Sustentando essa afirmação, podemos dizer
que cada caderno do jornal busca os termos para circunscrever as temáticas focalizadas por
ele. Um caderno de Economia de qualquer jornal, por exemplo, sustenta-se cada vez mais por
termos ligados à “língua do economês”, a folha de Esportes busca as especificidades cada vez
mais refinadas de jargões ou de uma linguagem para o domínio do universo esportivo. Para as
reportagens policiais são garimpados termos ou expressões do mundo do crime. Sobre os
termos desse campo da mídia, podemos afirmar que acabam por contaminar, muitas vezes,
muitos outros campos. E, assim, dentro da lógica de cercar o sentido, tendo em vista restringi-
lo à realidade que o veículo quer comunicar, na materialidade lingüística tecida pelo jornal,
vão-se impondo linguagens, naturalizando sentidos, cristalizando-se estereótipos por toda a
sociedade. A conclusão é a de que a lógica baseia-se sempre no controle do sentido que tem
no recurso de uma linguagem tecnificada um ótimo dispositivo para dirigir a significação. Um
outro dispositivo para circunscrever os sentidos, bastante utilizado pela linguagem
21
jornalística, é o uso de um determinado campo semântico de um determinado setor do jornal,
que passa a ser aplicado a outro. A aplicação de significações próprias de um campo a outro,
servem para fixar o leitor no universo dos sentidos pretendidos pelo enunciador.
Desse ponto de vista, os meios de comunicação em geral e, logicamente o
jornalismo, vão sendo moldados a formas significantes que o sustentam, modelando
conteúdos narrativos de notícias, reportagens ou informações. Torna-se visível na
materialidade textual, bastante debatida pelas teorias da comunicação, a concepção de que o
significado do discurso – construído no decurso de sua produção e compreensão – é
susceptível de incorporar opiniões de ideologias subjacentes. Desde o nível da lexicalização
até as estruturas mais complexas de proposições e relações de implicação ou coerência entre
proposições e, ainda, tópicos ou significados globais, as representações de pessoas e
acontecimentos, em modelos mentais subjacentes, podem transmitir, às estruturas semânticas
do discurso, avaliações formuladas com base num grupo. Quando nos referimos à
materialidade do discurso jornalístico, quanto ao universo de onde emergem os dados, não
pode haver dúvida de que os fatos narrados só podem ser considerados por sua existência
semiótica na/pela linguagem. O fato torna-se texto e não referente, passando a ser o que vem
junto, o que leva consigo, o que traz de novo na nova realidade: a materialidade lingüística.
Um ato que, dirigido para a ação de reproduzir, relatar, carrega junto ações de inscrever,
restituir, recolocar, representar. Assim, o referente, no discurso, não está presente, senão
como algo representado, transcrito, inscrito, relatado, mencionado, (ex)posto, anunciado,
semioticamente dizendo, enunciado. É no enunciado lingüístico que se dá a inscrição do
indivíduo na sociedade, possível só pela linguagem, sendo a comunicação o ato responsável
por essa promoção. Logo, é no campo da linguagem, enquanto produtora de dizeres que
simulam “realidades”, que a comunicação vinga, permeando todas as relações sociais,
orientando a visão de mundo de cada ser humano, na formação da consciência de cada um.
Estamos nos referindo à linguagem, que fundamenta o pensamento conceitual, permitindo a
abstração, que leva o homem a desprender-se do concreto para introduzi-lo no domínio da
cultura, cujas ações se desenvolvem entre um projeto verbal e a avaliação lingüística desse
projeto.
Tratar da comunicação no jornal é tratar da linguagem, que constitui o homem e a
sociedade, interpondo-se entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Lefèbvre (1966) fala da
linguagem como instauradora de uma mediação entre o nível “sublingüístico” – o existencial
–, que compreende a dor, o prazer, a necessidade, o desejo, o envelhecimento, a morte, o
22
espaço, o tempo, onde se encontram “representações confusas e comumente admitidas”, e o
nível “supralingüístico”- o essencial - , onde figuram os conceitos, os sentidos, categorias
como juventude, feminilidade, virilidade, historicidade. (LEFÈBVRE, 1966, p.269).
Se adentrarmos o campo da filosofia da linguagem, somos, a cada leitura,
seduzidos pela riqueza das discussões. Entretanto, não é esse o trajeto a seguir. Passando,
então, a alguns comentários neste esboço de reflexão sobre a linguagem, transcrevemos, a
seguir, um extenso trecho, do lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev, por considerá-lo
significativo, já que nos leva a desmontar a opinião comum de que existe um mundo objetivo
com referentes e acontecimentos refletidos pela linguagem, da qual emana o sentido:
A linguagem – a fala humana – é uma inesgotável riqueza de múltiplos
valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus
atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela o seu
pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e
seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base
última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso
último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o
espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo
do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de
nossa consciência, as palavras já ressoaram a nossa volta, prontas para
envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos
acompanhar inseparavelmente através da vida [...] A linguagem não é um
simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do
pensamento; para o indivíduo, ela é um tesouro da memória e a consciência
vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a
marca da personalidade, da terra natal, da nação, o título de nobreza da
humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente
ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da
própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples
reflexo ou se ela não é isso tudo: a própria fonte do desenvolvimento dessas
coisas. ( HJELMSLEV, 1975, p.1-2).
No âmbito da linguagem jornalística, as questões que se colocam quanto aos
efeitos de sentido construídos no jornal, é conveniente ratificarmos que não se referem ao
mundo dos acontecimentos do mundo fenomênico, mas ao universo das significações
linguageiras ‘tecidas’ por esse veículo de comunicação, tendo o sujeito de enunciação no
papel fundamental de produzir as experiências semióticas da sociedade, abolindo qualquer
pressuposta linearidade (GREIMAS e COURTÉS, s/d, p.147).
Obviamente a linguagem jornalística, atividade de comunicação intersubjetiva,
leva-nos para a órbita do sujeito, instância única e exclusiva do que é dito ou extraído por
pressuposição lógica do enunciado, na amplitude dessa atividade produtora de relações
polêmicas, cujo ponto de partida para abordagem é a enunciação. A conseqüência disso é
23
encarar o sujeito no/do discurso jornalístico como uma figura conduzida por procedimentos
discursivos à condição de um ator cujo lugar ocupado, no espaço do jornal, deve ser visto
como um estado que se manifesta na superfície discursiva. Os atores da enunciação, imagens
do enunciador e enunciatário, constituem simulacros do autor e do leitor criados pelo texto
jornalístico, que determinam as escolhas de cada ato enunciativo, quer sejam tomados de
forma consciente ou inconsciente na produção dos discursos. Na observação das imagens dos
sujeitos da enunciação (enunciador e enunciatário) criadas nos discursos sobre a temática da
terra no corpus em análise, acreditamos apreender os efeitos de sentido desse tema na
sociedade brasileira.
CAPÍTULO 1
A COMUNICAÇÃO VERBAL PARA A LINGÜÍSTICA:
ENUNCIAÇÃO E SUBJETIVIDADE
Até aqui fomos conduzidos pela reflexão sobre linguagem, sentindo-nos livres
para transitar não apenas no campo da Lingüística, mas também no campo da Comunicação.
O desafio a que nos lançamos é, a partir da Lingüística, perseguir a linguagem para apreender
essa atividade que, ligada à comunicação, sempre teve e, sobretudo hoje, papel primordial na
sociedade. Em tempos de um mundo globalizado, cujos valores estão centrados na máxima
incontestável do “Quem não se comunica se estrumbica”, o mercado direciona os estudos da
linguagem para o pragmatismo marcante que articule o funcionamento dessa capacidade
humana aos valores mercadológicos. Não vem ao caso, neste momento, fazermos um
levantamento histórico de estudos da linguagem na lingüística nem tampouco discorrer sobre
o funcionamento de mecanismos discursivos e suas relações na ordem das coisas e do mundo.
Vale destacar que, fundadora da sociedade, a comunicação sempre foi considerada
importante, mesmo quando concepções anteriores ao século XX, não a consideravam a não
ser como causa de desorganização, que levava a problemas lingüísticos; num tempo em que a
24
língua era vista como representação do pensamento, que existiria independentemente da
formalização lingüística. Tomamos, aqui, o termo comunicação em sua acepção mais ampla
possível: como atividade produtora de relações sociais.
Uma noção fluida, comunicação remete a questões relacionadas a texto, discurso,
história, sociedade, enunciação. Quanto a este último, interessa-nos precisamente por remeter
ao sujeito. Convém esclarecer que, convocados nos referenciais da teoria semiótica -
sustentação para nossas leituras - serão observados ao longo das análises.
No início de 1900, Sausurre trata língua como instrumento de comunicação,
rompendo com concepções anteriores. Introduzida no quadro das preocupações com a língua,
a comunicação passa a ser examinada pelas teorias saussurianas, à luz da Lingüística.
Nos anos 1950, a partir da Teoria da Informação, surgem modelos para tratar da
comunicação, no entanto, essencialmente lineares, como se fosse um sistema de mão única,
em que a transmissão da mensagem se desse de emissor a receptor unilateralmente, sem
possibilidade de alargamento ou complexidade.
Pensada como um sistema de interação entre emissor e receptor e, não apenas na
linearidade, surgem, nas últimas décadas, estudos que apontam para a reciprocidade da
comunicação. Desde o aspecto da interação, quando se considera o contexto extra-verbal no
enunciado, vêm-se desenvolvendo estudos que levam em conta não apenas os efeitos da
comunicação sobre o receptor, mas efeitos que a reação do receptor produz sobre o emissor,
estudos da interação entre sujeitos postos em comunicação.
É necessário reunir conceitos, métodos para analisar a linguagem, desenvolvidos
não só pela lingüística como por diferentes campos que estudam a linguagem como prática
social. Quando se trata de investigar o sentido engendrado no interior das atividades
discursivas é preciso focalizar a mensagem global do texto, sem se restringir à dimensão da
frase, cujas leis sintáticas reduzem-se a funções meramente localizadas. O trabalho do analista
vai além de uma tarefa de reconhecimento de fenômenos gramaticais, que isso não conduz à
abordagem da situação comunicativa.
Afinal, a linguagem existe para nós, seres em sociedade. Além do exame da
comunicação como interação, em que se localizam enunciadores e enunciatários, emissores e
receptores, interessa-nos, sobretudo, a amplitude das situações comunicativa. Na observância
dos textos jornalísticos, lançamos o olhar para crenças, desejos, preferências, valores,
competência modal de sujeitos que se comunicam, particularidades das situações em que se
envolvem e a amplitude de dimensões históricas e culturais.
25
Para o termo discurso há inúmeras definições formuladas de várias perspectivas
teóricas e disciplinares. Discurso é comumente usado na lingüística com referência a amostras
de linguagem falada ou escrita. Esse sentido enfatiza a interação entre os dois pólos da
comunicação que estão aqui contemplados como enunciador e leitor no processo de produção
e interpretação do objeto semiótico, jornal.
Em relação a diferentes tipos de linguagem, em diferentes tipos de situação social,
há uma certa freqüência do termo: discurso religioso, discurso do jornal, discurso da
publicidade etc., usado amplamente por Michel Foucault em suas análises sociais e nas
teorias, com referência aos diferentes modos de estruturação das áreas de conhecimento e
prática social.
A semiótica diferencia discurso e texto. Discurso é visto como uma superfície de
níveis de profundidade diferente, articulados segundo um percurso “que vai do mais simples
ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto” (GREIMAS & COURTÉS, s/d, p.
206). Fiorin (1997) afirma que todo discurso é social, “é a materialização de formações
ideológicas. Texto é a união do plano de conteúdo (nível discursivo, narrativo e fundamental)
com o plano de expressão, objeto de significação e de comunicação,
[...] definido por uma organização lingüístico-discursiva e pelas
determinações sócio-históricas, e construído, portanto, por dois tipos de
mecanismos e de procedimentos que muitas vezes se confundem e se
misturam [...] pode ser tanto um texto lingüístico, indiferentemente oral ou
escrito, quanto um texto visual [...] em que sincretizam diferentes
expressões, como nos quadrinhos [...]” (BARROS, 2003, p. 188).
1.1. O Sujeito no texto jornalístico sobre a terra: um difícil lugar a ser ocupado
Produto de relações de contradição, submissão ou usurpação de outros textos, o
texto jornalístico só produz sentido ao ser percebido por um interlocutor-sujeito que
reinterpreta o discurso do outro a partir de seu próprio discurso (AUTHIER-REVUZ, 1982).
Os fatos, objeto dos textos jornalísticos, não são ilhas de acontecimentos nem
podem ser considerados isoladamente. Construção de um ser de linguagem, devem ser vistos
como linhas contínuas que alinhavam o mundo, numa costura que leva o homem a se sentir
parte do objeto que ele mesmo constrói.
26
Dito isso, podemos compreender o papel do sujeito, fonte produtora do processo
de comunicação, da qual se torna responsável como a(u)tor de toda ação comunicativa. O
processo de linguagem implica, então, a dimensão da subjetividade. Na adesão de um sujeito
do dizer, ao enunciar o discurso, desencadeia-se todo o processo linguageiro que conduz o
sujeito ou é conduzido por ele, diante das possibilidades de resistência a qualquer mecanismo
de controle. Paradoxalmente, se de um lado é o lugar de coerções, de outro, distingue a
possibilidade de autonomia, de resistência a mecanismos de coação, mesmo os que se impõem
para fins de poder.
Abordar o sujeito no discurso jornalístico nos impele a deixar de lado noções que
categorizam emissores e receptores em lugares distintos para dar a eles a condição de
enunciadores de atos comunicativos, na compreensão da relação dialógica de
emissor/receptor, pela noção de integração. É no movimento entre sujeitos que se estabelece a
doação de significados ao objeto construído pela linguagem.
Qualquer abordagem sobre o sujeito no discurso jornalístico passa
necessariamente por considerações sobre duas noções: subjetividade e objetividade.
Quando elas se referem ao campo da comunicação jornalística, parecem se
contrapor, advindas da crença de que o jornalismo se divide em opinião e informação. Essa é
matriz teórica para a classificação gêneros textuais como uma condição de suposta “verdade”,
evocada como garantia de rigor na informação. Entretanto, o que os estudos mais atuais vêm
demonstrando é que informação e opinião não se separam, mas se misturam e interagem,
podendo ser observadas, diariamente, em qualquer texto jornalístico. Convém esclarecer que
discutiremos essas questões, pontualmente no capítulo 2: A comunicação verbal no
jornalismo impresso: objetividade versus objetividade.
Sabemos que, no jornalismo, não se podem criar espaços exclusivos ou
excludentes para a opinião e a informação. Até porque isso seria uma impossibilidade, tanto
na dimensão do conhecimento quanto no plano dos mecanismos da linguagem. Qualquer que
seja a obra humana - e aí se incluem, naturalmente, as produções jornalísticas - é a opinião
que elabora, conserva ou destrói, que preserva ou transforma. (CHAPARRO, 1998)
O que seria a objetividade? Talvez a capacidade de enxergar o objeto real, que tem
existência fora do sujeito? Para a construção do texto jornalístico existiria uma maneira de
separar o objeto real do ato de pensar - ato que produz um outro objeto, como a notícia, por
exemplo, objeto semiótico?
27
Certamente por não se poder responder afirmativamente a tais perguntas, isso nos
leva a concluir que a notícia não está, portanto, no território da objetividade.
Embora nessa primeira parte surjam conceitos, a sugerir reflexões, convém
explicar que tantas vezes eles são trazidos para completar o assunto que está em
desenvolvimento. Vão sendo retomados para complementação, ao longo do percurso de todo
este texto. Por exemplo, esboça-se neste momento uma perspectiva discursiva a respeito de
“notícia”. Sem perder de vista a amplitude com que as teorias da comunicação enfrentam o
conceito, vamos retomá-lo mais à frente. Mas, antecipando a abordagem, afirmamos que a
notícia faz parte, sim, do território da noticiabilidade dos fatos. E, para se tornar materialidade
linguageira, deve ser olhada e qualificada em técnicas de apuração e depuração, com a lupa
dos valores, das razões e dos critérios daquele que a enuncia. A notícia é, pois, produto de um
sujeito. A notícia é produto de um olhar. Portanto, assim reconhecida, na sucessão de fatos,
tem-se a imagem da instância que os enuncia. Se é produto resultante de um trabalho da
empresa jornalística, a necessidade que se põe a todo leitor, a todo analista é a de um olho
mais afinado para captar o olhar de um sujeito circunstanciado dentro de limites em que se lhe
impõe sua tarefa.
Todo e qualquer ato comunicativo - literário, jornalístico, ou quaisquer outros –
nasce do fazer de um sujeito, sendo por ele produzido. Em se tratando do jornal, os sujeitos
dão forma ao mundo dos fatos que vão sendo lidos, quer seja na posição do enunciador ou do
leitor.
Ao conceber o sujeito constituído a partir dos lugares de enunciador e leitor, além
de sua valorização enquanto agente da ação comunicativa, existe aí a possibilidade de
incorporar a ele o objeto ou vice-versa. Ou seja, deixa-se de operar com a noção de uma
possível separação sujeito/objeto, para lidar com a indissociabilidade na materialidade
discursiva. O sujeito da enunciação (enunciador/leitor) concebe o mundo que o concebe, lê o
mundo que vive, fala do mundo que lê. Não há uma possível dissociação nessa relação
dialógica, espaço de (inter)subjetividades, de ambigüidades, de (in)certezas.
Exposta pelo enunciador como um processo em que o leitor se insere no jogo de
sentidos estabelecidos, a semiótica considera que “o enunciador propõe um contrato, que
estipula como o enunciatário deve interpretar a verdade do discurso” (BARROS, 1988, p.94).
Entretanto, quando se trata de uma outra atividade, como a de quem participa do
“jogo de sentidos” só pela observação, deve ser considerado um outro processo de leitura.
Tem-se aí o fazer do analista cujo olhar está sempre a perscrutar o que está nesse jogo, sua
28
organização, regras que o mantêm, etc. Entra não com a finalidade de meramente jogar, mas
de observar a estruturação dos sentidos. Estamos aí diante do “leitor-intérprete”, que segundo
Bertrand (2003, p.411) trata-se de um sujeito movido por um “crer crítico”, que, também
leitor, participa da organização textual e “descobre representações semânticas de um outro
grau, mais ‘profundas’ou mais abstratas”.
Evidentemente, nossas atividades de leituras consistem em olhar o que já foi
olhado. Entretanto, conforme o que afirmamos, não quer dizer que consideremos as unidades
de leitura segundo a determinação de um universo de sentido estruturado, atendendo à relação
fiduciária que sustenta compulsoriamente enunciador e leitor. Tratando-se dos sujeitos
envolvidos na enunciação de O Imparcial e Oeste Notícias, que se ligam pela confiança
recíproca, de acordo com a lógica jornalística, podemos afirmar que somos movidos pela
“desconfiança”, na procura de desnaturalizar todo e qualquer sentido, construídos pelo/no
jornal.
Com o olhar direcionado pelos pressupostos teóricos da semiótica, antecipando
discussões do próximo capítulo, afirmamos que o reconhecimento “das projeções da instância
da enunciação no discurso-enunciado” (BARROS, 1988, p.73) como operação sincrética e
conjunta, é uma noção fundamental para nossas leituras. Pela enunciação se produzem os
pontos de vista, sua relatividade, ocultamento ou dissimulação, os simulacros de
presença/ausência, instalando-se as categorias de pessoa, lugar e tempo, conformando
construções da realidade agrária, que podem ou não ser reconhecidos pelo leitor.
Considerando as reflexões acima, podemos discutir até que ponto o contrato
comunicativo que se estabelece nos enunciados dos dois jornais do Pontal é aceito por seus
leitores. Acreditamos que tais questionamentos podem nos levar a reflexões sobre a temática
da terra. O enfoque interpretativo orienta nossa leitura e, assim, é possível desvelar códigos
da mídia impressa, forçando nosso olhar a deixar a comodidade do estabelecido, para entrar
no terreno do deslizamento do sujeito de enunciação. Ratificamos a necessidade de abandonar
qualquer ingenuidade do olhar que se poderia deixar levar pelas relações intrincadas de forças
dos poderes (políticos, econômicos, etc), os quais - não se pode negar - sustentam a voz
jornalística, tecendo a trama discursiva.
O olhar crítico deve ser cônscio de que na esfera jornalística proliferam os
imaginários rurais e as ideologias sobre a terra, incrustando-se na morfologia dos jornais,
configurada em percepções, pontos de vista pertinentes na escala social, mas que devem ser
vistos como “tela do parecer”.
29
Em relação ao imaginário, poderíamos nos referir a diversos conceitos que
remetem à memória como, por exemplo, mundo dos sonhos, realidade criada pela
imaginação. Interessa-nos o conceito de “memória” para relacioná-la à memória coletiva. De
acordo com Pierre Nora, a entendemos como “o que fica do passado no vivido dos grupos ou
o que os grupos fazem do passado” (Apud LE GOFF, 1996, p.472). Ou, podemos fazer nossas
as palavras de Nascimento (2004, p.192): “Imaginário não é, portanto, imaginação; é contra-
imaginação, porque nos remete à coletividade, à cultura. Todo imaginário tem como pano de
fundo um acordo social que se homologa em um recorte cultural que representa uma visão de
mundo, uma ideologia.”
Nesse sentido, sobre a conquista da terra no Pontal, o conceito é frutífero para
pensar em efeitos silenciadores, ou seja, refletir sobre o apagamento de determinados
acontecimentos históricos. Fatos que são postos em cena por alguns veículos de comunicação,
não são convocados em outros. Sabemos que não se trata de desconhecimento do assunto,
mas de um silenciamento. Quanto ao não dizer sobre um determinado tema, exemplificamos
com a questão da “grilagem de terras”, ação naturalizada na região, mas inconveniente para
os que defendem a posse da propriedade. Por se tratar de ação ilegal, não deveria construir
dizeres, pois poderia incorrer na perda da terra. Dizeres que, poderiam levar a um percurso
narrativo contrário ao de antigos ocupantes, que se consideram seus verdadeiros donos,
resultando na perda de seu objeto valor (desapropriação). Ora, sobre a grilagem, nada se
veiculou no ano de 2002, nem no Oeste nem em O Imparcial, enquanto fatos, mesmo
incoerentes com um determinado espaço jornalístico, sem qualquer relação com o assunto,
eram trazidos, para silenciar aquele que não era conveniente. Importante informar que a
grilagem de terras é um tema recorrente em muitos veículos da mídia: jornais, revistas,
internet e em textos científicos, a partir dos quais obtivemos informações.
O campo da produção jornalística pauta-se pelo reconhecimento de que, para a
construção do texto, seu enunciador deve-se colocar no lugar do leitor. Quer dizer assim que
há um saber atribuído a este último, mas a ser previamente assumido pelo primeiro. Para isso
são criados os manuais de redação. Produto das agências dos grandes jornais diários,
estabelecem regras para pautar a conduta dos sujeitos envolvidos no processo da enunciação
jornalística. Quando se trata do leitor e da pressuposição de sua existência, coloca-se aí sua
condição não-discursiva, de passividade daquele que é “agido”.
A Folha deve poupar o trabalho do leitor. Deve relatar todas as hipóteses em
torno do fato em vez de esperar que o leitor as imagine. Deve explicar cada
30
aspecto da notícia em vez de julgar que o leitor está familiarizado com ele.
Deve organizar os temas de modo que o leitor não se surpreenda com
assuntos correlatos em lugares distintos do jornal [...]. Cada texto do jornal
deve ser redigido a partir do pressuposto de que o leitor não está
familiarizado com o assunto. (Manual da Folha de S. Paulo, 2001, p.18).
De um lado, paradigmas cristalizados do poder disciplinador da linguagem
jornalística, a exigir clareza, completude acerca da pretensa “realidade” dos acontecimentos e
a busca do ideal da integração grupal (compreendido pelo poder da sociedade como um todo),
procuram fazer do enunciador uma entidade homogênea e transparente segundo regras
estabelecidas. De outro, a atividade do sujeito. Nesse embate, permeia a subjetividade, a
identidade, tantas vezes negada, construída nos simulacros da materialidade do discurso.
Diante do exposto, podemos afirmar que o desafio é pensar o discurso jornalístico
a partir do paradoxo da negação da presença do sujeito e de seu assujeitamento a normas e na
obediência a regras, tendo em vista a completude de sentidos que se impõem.
O problema da objetividade no texto jornalístico está relacionado à ilusão do dizer
verdadeiro, atividade que não permite ao jornalista se colocar como sujeito mediador. A
crítica que se faz de um possível lugar de distanciamento imputado ao enunciador, em nome
de um efeito de objetividade no texto jornalístico, tem como conseqüência a superficialidade
dos relatos. Ora, tendo que assumir a condição de quem deve narrar a história de um lugar
distanciado, aquele que exerce esse fazer, vê-se obrigado a isolar-se dos fatos. Na crença de
que assim está também distante da ambigüidade e da indeterminação, acredita “higienizar” o
texto dos efeitos de subjetividade, no entanto, as conseqüências dessa conduta é a construção
de um texto que se reduz a meras informações.
Trazendo tais questões para os objetos de análise, podemos dizer que ao nos
colocarmos no mundo das notícias sobre as questões agrárias, que compreende boa parte do
corpus, instalamo-nos na contraditória convivência entre a ilusão de objetividade e de
subjetividade. Porém, o que não nos pode abandonar é a idéia fixa de não perder de vista o
sujeito envolvido em todo o processo.
Não há como negar que as notícias, objetos que discursivizam a vida humana, são
redutos da racionalidade e da lógica, que desvelam valores culturais. Isso posto, habita aí um
reduto exacerbado do racionalismo. A propósito, a notícia, construção jornalística, é produto
do fazer de sujeitos e, por que não, lugar onde habitam desejos e ilusões do ser humano e das
sociedades. Ora, não se pode negar que ali, onde se tem a ilusão de poder expressar com rigor
a suposta realidade, excluindo-a de fantasias, ilusões ou invenções, é também o lugar onde se
situa o mais recôndito do ser social , onde habitam os mitos.
31
Não está ao alcance de nossas reflexões qualquer discussão sobre o poder dos
mitos e sua relevância no desvelamento de tantos efeitos de sentido, especialmente quando se
trata da temática da terra. Mas o que não podemos desconhecer é que, muitas vezes são postos
em cena. E, quando isso acontece, não é o tecido figurativo, a leitura das figuras tomadas em
sua “significância” do tema que constrói o sentido, mas as relações a serem feitas a partir do
que permeia a imaginário de uma determinada sociedade. Portanto, o olho tem que estar
atento para apreender, selecionar e, sobretudo, fazer relações de tudo o que possa se
relacionar à terra. Em se tratando de mitos, pensar, por exemplo, o mito da terra prometida,
que converte subversivamente qualquer racionalidade do discurso jornalístico do Pontal
(conflito agrário, agronegócio) em seu contrário.
Em consonância com essa especificidade, afirma um dos respeitados teóricos da
comunicação, Barbero (Apud SOUSA, 1995, p.35):
[...] modos de viver, fazer, modos de perceber a realidade os diferentes
impugnadores, questionadores - ainda que essa impugnação e esse
questionamento [...] não sejam claros, introduzem na esfera das práticas
sociais cotidianas não apenas a procura das significações e usos sociais
atribuídos às coisas, mas uma postura que busca nos meios de comunicação a
expressão de uma instância pública que indaga e reconhece o jornal como
espaço de construção de valores.”
Buscamos uma voz, mas não queremos dizer que supomos sua preexistência aos
atos de fala do sujeito como se tratasse de uma posição designada, determinante do lugar de
onde se fala.
Falamos em lingüístico, mas também não quer dizer que as linguagens não-verbais
– códigos diferentes da palavra (imagem, cor, forma, movimento, sons, etc.), sejam menos
importantes, especialmente com os recursos tipográficos que vêm possibilitando um novo
visual à mídia impressa. Indiscutível, no entanto, é reconhecer a supremacia do código
lingüístico, dos signos verbais sobre a qual Lefèbvre se pronuncia:
[...] certos campos parciais não se bastam (a imagem). Outros bastam-se (a
música, a pintura, bem diferente da imagem). Uns voltam para a linguagem;
a linguagem volta para os outros. Ela explora os campos, perscruta o real e o
possível, o próximo e o horizonte. Verifica lacunas, rupturas, vazios, pausas
do texto social. A linguagem permite preencher esses vazios,
momentaneamente ou duravelmente, por meio de interpretações ou
hipóteses. Situa-se no centro, mediação entre os campos, caminho para
passar de um para outro. É uma função relacional. Desse conjunto resulta a
comunicação, sempre recomeçada, jamais detida, jamais completa.
(LEFÈBVRE, 1966, p. 290).
Tomamos a questão da presença da subjetividade na linguagem jornalística. Para
32
desenvolvê-la vamos, grosso modo, apresentar um panorama para situar o sujeito no interior
das ciências da linguagem. Não pretendemos polemizar sobre questões teóricas, até mesmo
porque não é essa nossa tarefa, que tem como objetivo principal fazer a leitura de textos
jornalísticos. Vamos operacionalizar conceitos teóricos, sim, mas sem a obrigatoriedade de
nos sentirmos aprisionados a eles.
Em seu fazer discursivo, o enunciador do texto jornalístico é aquele que amplia,
reformula, renova, revoluciona a matéria significante de que dispõe. Assim, toda
subjetividade se constrói a partir do, com o e no universo da sociedade, no confronto ou na
complementação. Ora, nessa dinâmica das relações do “eu” e do “outro” está a reformulação
de padrões valorativos, emocionais e cognitivos do sujeito: das estruturas e dos processos, dos
condicionamentos e das ações, dos estereótipos e dos paradigmas, da prática enunciativa,
enfim.
Considerando o cenário social da atualidade, como refletir sobre o sujeito, tendo
em vista as transformações por que passa o trabalho produtivo, quando, cada vez mais, “uma
força de trabalho intelectual, imaterial e comunicativa preenche o espaço ocupado pela força
de trabalho de operários (...)?” (PAIVA, 2000, p. 48).
Inegável que, em tempos de “globalização”, novas configurações de subjetividades
surgem, quando corporações industriais e financeiras multinacionais e transnacionais
estruturam as sociedades em espaços globais. No campo da comunicação, assegura Martín-
Barbero (1997, p. 36) que “emissor e o receptor se situam [...] não tanto com relação a um
canal, a um meio, porém com relação a necessidades e problemas”.
Ao constatarmos essas realidades, podemos dizer que é necessário, então, eleger
um lugar do sujeito da/na comunicação, para buscar um eixo da subjetividade. Para as teorias
da comunicação, ela é considerada no pólo da emissão e da recepção (termos caros a essas
teorias), constituída a partir da materialidade discursiva. A subjetividade é o resultado da
polifonia que enunciador e enunciatário carregam, cujo universo é formado pelo diálogo entre
os discursos, em que se insere o cotidiano.
Por mais que se possa compreender que a fala seja um exercício individual, é
inegável que ela deva ser determinada por seu uso social. Na interação entre a produção do
discurso por um sujeito enunciador e a apreensão por um outro sujeito, as pesquisas mais
recentes em lingüística vêm procurando apreender o sentido, na busca desses interlocutores,
aproximando-se da realidade do discurso em ato. A propósito, a materialidade do discurso
pressupõe a realidade social, ou é esta que pressupõe aquela?
33
A problemática da subjetividade, não apenas restrita à lingüística, esteve sempre
amalgamada às reflexões de todas as ciências humanas. De fato, o sujeito interessa às
pesquisas no campo da produção e leitura dos fenômenos culturais e comunicacionais.
Lopes (1997) afirma que a subjetividade não é uma discussão de agora. Ao se
referir àquele a quem chama de “principal teórico da literatura do estruturalismo de Praga”,
Mukarovski, afirma que é discutida desde a primeira metade do século XIX.
Nos estudos do semioticista brasileiro, ao concluir que “o belo não é propriedade
do objeto, mas da relação sujeito contemplante versus objeto contemplado”, de que “o belo é
um efeito de leitura intersubjetivo” (p. 301), Lopes leva-nos a observar que, há meio século, o
deslocamento do “posto do observador, do sujeito contemplante, do lugar do autor para o
lugar do leitor” (p. 302), longe de uma acepção psicologizante de sujeito, que levasse a uma
subjetividade solipsista, estava no centro de estudos lingüísticos.
Interessados na focalização do sujeito, a leitura de Lopes (1997) levou-nos ao
caráter social da “significabilidade e da comunicabilidade do texto”, conduzindo para
reflexões sobre o descentramento do sujeito na especificidade do texto jornalístico, “uma
nova via de acesso à intersubjetividade social”. Do autor e leitor da mensagem artística,
fomos levados a pensar o enunciador e o leitor na mensagem utilitária da notícia de jornal:
[...] nem a arte nem o artista se criam jamais encapsulados na bolha de um
espaço ermo e isolado, senão que surgem nos quadros de um ambiente social
determinado, do qual provêm e para o qual retornam. Diante disso, o leitor,
que é apenas outro nome para o público, a coletividade visada pela obra,
encontra-se sempre incluído nela.”( p. 302).
Na crítica ao reducionismo do pensamento descartiano da identidade radical do
pensamento e da linguagem centrados no sujeito, como sede da subjetividade, Lopes chama a
atenção para o sujeito, que não passa de efeito dos pensamentos de um eu:
[...]‘eu’, o indivíduo são outros tantos falsos conceitos, que transformam em
substâncias unidades e construtos fictícios, antes da razão que possuem
unicamente uma existência lingüística [...] palavras não etiquetam mais do
que simulacros, personagens interiores que mascaram o fato de que cada um
de nós é ‘um drama de gente’[...] uma pluralidade de forças em luta,
concorrentes e co-concorrentes, que se forjaram um centro arbitrariamente
coerente e substancial a partir da sua ‘realidade’no espaço da língua [...]. (p.
304).
Conclui o autor que o estético, em Mukarovski, se identifica com um certo efeito
de leitura de um sujeito plural, “não mais uma entidade de categoria psicológica, mas uma
entidade semiológica, via de acesso à intersubjetividade social, que lê um efeito de sentido
34
programado no discurso como um efeito de leitura dominante” (p. 302), independentemente
de se tratar de uma mensagem artística ou mensagem utilitária. Assim, podemos trazer para
essas reflexões o texto jornalístico.
Leva-nos a entender que, com a introdução da subjetividade social do destinatário
coletivo, o público visado pela obra – público esse que incluía (por que não?) o próprio autor
- o ponto de vista que preside à construção do significante e do significado da obra faz um
giro copernicano e vai se situar, primeiro, em algum lugar entre o escritor e o leitor, para
fixar-se a seguir no posto desse último, insinuando a construção de uma estética da recepção.
Retomando a epígrafe deste capítulo, o trecho de Ginzburg: “Assim como a língua,
a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e
invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um”.
Se considerarmos a metáfora “jaula”, somos arremessados para uma noção de
sujeito e de linguagem como forma de restrição, coação ou coerção, que se dá por modos de
controle, seleção, organização e redistribuição do que pode ser sabido e dito. A ênfase recai
sobre sistemas de interdição, de razão e “desrazão”, de verdade, de disciplina, de
redistribuição do saber ou comentário, do autor ou autoridade que tem a permissão para falar.
As afirmações acima nos remetem para Foucault. Importante para estudos do
discurso, o legado desse autor tem relevante contribuição para as análises, especialmente para
aquelas cujas áreas necessitam de reflexões para questionar a relação entre discurso e poder,
conceitos desenvolvidos por ele. Para exemplificar, podemos citar os conceitos de “formação
discursiva”, “formação ideológica”, que auxiliam na busca de efeitos de sentido,
especialmente quando se trata da especificidade dos discursos produzidos pelas empresas
jornalísticas.
Transcrevemos a seguir uma das afirmações do pensador francês, desencadeadora
de reflexões sobre a necessidade de olhar para as propriedades socialmente construtivas do
discurso, cujos sujeitos não podem ser considerados entidades de categoria psicológica, mas
interpretadores de diversos contextos, que se interpenetram no interior de cada comunicação.
“Sim, existem sujeitos: são grãos dançantes na poeira do visível, lugares móveis
num murmúrio anônimo [...] Eles nascem e se esvaem na espessura do que se diz, do que se
vê.” Essas palavras são de Foucault, mas foram proferidas por Deleuze numa entrevista
concedida em 1986 a Claire Parnet.
Chamou-nos a atenção a metáfora “grãos dançantes”, por remeter à diversidade e
dispersão de sujeitos, “lugares móveis”, colocando-nos diante das posições várias assumidas
35
por quem é o responsável pelo ato linguageiro. A expressão “poeira visível” figurativiza a
idéia do termo “discurso”, ressonância de um coro de vozes, tendo em “murmúrio anônimo”,
a representação da práxis social.
Para pensar todo o conhecimento materializado jornalisticamente, na sua
produção, acumulação e distribuição, implica focalizar a extensa área do conhecimento
humano, mas, sobretudo, implica pensar o homem, sujeito em que se articulam estruturas e
processos, tornando-se presentes tanto os resultados do percurso histórico quanto os processos
de ações, a efetivação de comportamentos.
1.2. A Posição do sujeito para a semiótica.
Há pouco mais de três décadas (no fim dos anos 70), a semiótica de Greimas, que
deixava pouco espaço para o sujeito, reconhece textualmente a sua importância nas pesquisas
lingüísticas, trazendo para suas reflexões o estatuto da “enunciação”.
Bertrand (2003, p.78) apresenta um histórico da teoria semiótica: “Greimas
declarava em 1976 que ‘a reflexão sobre o estatuto da língua esteve, desde o começo,
indissoluvelmente ligada à dimensão discursiva de sua manifestação enquanto fala’”. Aponta
rumos para os estudos lingüísticos da contemporaneidade, apresentando ao leitor a
importância da enunciação, no reconhecimento de “sujeitos” (enunciador/enunciatário), como
um “dos pontos de discussão essenciais da semiótica com as outras disciplinas da linguagem e
do sentido.” (p. 80).
Enquanto a semiótica do enunciado estuda as formas da estruturação do
enunciado, numa herança formalista, na busca das articulações internas ao texto, a semiótica
da enunciação centra-se nas operações de discursivização, para uma situação extralingüística.
A essa última, Bertrand (2003) caracteriza como “semiótica da leitura”, endereçando uma
crítica à primeira:
O desnudamento das estruturas formais quebra a ligação do discurso com
seu sujeito, arranca a obra da realidade histórica de sua produção e de sua
recepção, ignora a cronologia, a historicidade, as condições de leitura [...] e
sua eficácia comunicativa. (p. 19).
Tendo ignorado as questões relativas ao sujeito enunciador até a década de 70,
36
num momento de se construir a “objetivação do texto”, o conceito de enunciação, se limitava
a espelhar a dicotomia saussureana langue/parole, explica Bertrand (2003, p. 51). Mas em um
dos artigos do próprio Greimas (1975, p. 26), se reconhece a necessidade de “determinar o
estatuto e o modo de existência do sujeito da enunciação”:
Ou a enunciação é um ato produtor não lingüístico e, como tal, escapa à
competência do semiótico, ou então ela se acha presente, de uma maneira ou
de outra, - como um pressuposto implícito no texto, por exemplo – e, neste
caso, a enunciação pode ser formulada como um enunciado de um tipo
particular, isto é, como enunciado dito enunciação, por comportar outro
enunciado como seu actante-objeto, vendo-se, portanto, reintegrada na
reflexão semiótica que vai procurar definir o estatuto semântico e gramatical
de seu sujeito. (GREIMAS, 1975, p. 26).
Na semiótica greimasiana, a enunciação, pressuposta pela existência do enunciado,
é reconhecida, tendo no sujeito “uma pura e simples posição”, um sujeito “lógico”. Quando as
pesquisas sobre os diferentes níveis de estruturação do sentido se estabilizaram, no final dos
anos 1970, coube à enunciação a função de organizar a passagem das estruturas elementares e
semiovirtuais – consideradas como um estoque de formas disponíveis anteriores a ela (uma
gramática) – às estruturas discursivas (temáticas e figurativas) que as atualizam e as
especificam no interior do discurso enunciado. No cruzamento entre as coerções sintáticas e
semânticas que circunscreve a competência do enunciador e o espaço de relativa liberdade,
pressuposta pela efetuação do discurso, eis aí o campo do sujeito da enunciação, cuja prática
enunciativa vem das práticas sociais da linguagem. Nesse aspecto, Bertrand (2003) observa
que a perspectiva da semiótica atual é a do domínio das codificações do uso, de um lado, e a
que remete à singularidade da efetuação do discurso, de outro.
A nós, que nos interessamos por apreender os efeitos de sentido da temática da
“terra” no discurso jornalístico, é importante destacar que a apreensão desse gênero prende-se
à espessura enunciativa resultante da ação de um sujeito, que insere no mundo sua percepção,
suas emoções como sujeito do inteligível e, por que não, do sensível. Na prática da
linguagem, o objeto significante é significante para o sujeito que o apreende, o vê, o sente, o
compreende, modulado por afetos intersubjetivos na eficácia da comunicação praticada na
linguagem, em geral, utilitária (se nos referimos a gêneros como reportagens, notícias,
editoriais, etc). Ator tematizado e figurativizado, o sujeito da enunciação do texto jornalístico
toma corpo para ocupar um espaço social. O conceito “corpo” entra para a teoria semiótica a
partir dos estudos dedicados à paixão, dada a insuficiência das teorias para explicar a riqueza
discursiva, regida por sujeitos de estado (“sujeitos inquietos”) ou por sujeitos do fazer (que
37
podem ou não ter uma vontade para realizar a ação). Vamos a Maingueneau (1995, p.145) e
encontramos a noção de corpo, quando se refere à “conformidade estreita entre uma maneira
de se inscrever carnalmente no mundo”. Para essa noção ele busca o conceito de ethos.
Consultamos também Fiorin ( 1996, p. 90 ), que se refere ao termo “corpo”, chamando a
atenção para a necessidade de se desenvolver uma teoria para observar o modo de dizer, “o
tom associado a um certo caráter e a uma certa corporalidade, que se manifestam na
enunciação enunciada”:
Os tons podem ser moderados ou agressivos, alegres ou tristes, monótonos
ou vibrantes etc. Cada um deles está associado a uma imagem do corpo do
enunciador, que não estará representada para o olhar no enunciado
enunciado, mas que se percebe no modo de dizer. Esse corpo veste-se de
uma dada maneira etc. Temos, assim, o corpo jovem vestido de maneira bem
moderna do enunciador da Folha Ilustrada; o homem rude e grosseiro, com
corpo enorme, da direita mais bruta; o barbudinho do PT; o corpo bem
cuidado vestido com elegância clássica da nova direita etc. (FIORIN, 1996,
p. 90).
O princípio que anima o procedimento metodológico de análise dos textos
jornalísticos é o de que a enunciação, sempre pressuposta, pode enunciar-se no enunciado,
tornando-se acessível a partir de marcas aí deixadas. Sujeitos constroem o mundo, o objeto
semiótico, que é significante na inter-relação entre sujeitos que transpõem os efeitos de
sentido para compreendê-los. Para tanto é necessário lançar mão de recursos para apreender
os mecanismos das operações enunciativas. Dentre elas destacam-se a “debreagem” e a
“embreagem” como mecanismos estabelecidos por Greimas, citados nos trabalhos dos
semioticistas franceses atuais, tanto Fontanille & Zilberberg (1998), como Bertrand (2003) e
em incontáveis estudos realizados no Brasil.
O mecanismo da debreagem é “a operação pela qual a instância da enunciação
disjunge e projeta para fora de si, no ato de linguagem [...] os elementos que servem de
fundação ao enunciado-discurso”(Greimas & Courtés, s/d, p. 95). Essa cisão “fundadora,
portanto, da instância do discurso, atualiza, simultaneamente, as categorias enunciativa
(dêiticas) e as categorias do discurso (ator, espaço, tempo)” (BERTRAND, 2003). Logo,
temos três tipos de debreagem: actorial, espacial e temporal.
A embreagem, que também se decompõe em embreagem actancial, espacial e
temporal, é definida por Greimas & Courtés (s/d, p. 140) como “o efeito de retorno à
enunciação, que se reproduz pela neutralização da oposição entre certos termos da categoria
da pessoa e/ou do espaço e/ou do tempo, bem como pela denegação da instância do
38
enunciado”.
Fontanille & Zilberberg (2001, p.148) destacam que, enquanto a debreagem
“instala as condições de enunciação”, a embreagem “só pode operar, e, portanto, simular essa
enunciação, sob as condições impostas pela debreagem”. Logo, do ponto de vista da sintaxe
enunciativa, a embreagem, “apoiando-se nas categorias atualizadas pela debreagem, propõe
apenas um simulacro da instância de discurso, ‘a enunciação enunciada’, [...] potencial, na
medida em que é convencional e, em maior ou menor grau, invariável”.
Imprescindível chamar a atenção para o trabalho minucioso de Fiorin (1999) que
nos oferece um suporte para nossas leituras das categorias discursivas do “eu, aqui, agora”.
Para ilustração, podemos citar as marcas sintáticas como a debreagem resultante do emprego
de um “eu” explícito, narrador, delegado pelo sujeito da enunciação; a embreagem do sujeito
que, sem dizer “eu”, acaba por reforçar o “eu” que fala. São vários mecanismos que, se
observados pelo analista, proporcionam um alargamento do olhar, pondo mais luz em
determinados efeitos de sentido.
Em se tratando da enunciação do discurso jornalístico, a instância geradora do
dizer pode muito bem assumir a responsabilidade pelo que enuncia, sem que se mostre, sem
que, para isso, opte pela primeira pessoa, sem dizer “eu”. Nesse caso, a enunciação se
referencializa nos enunciados, por meio de avaliações e interpretações implícitas de um
narrador implícito a essa totalidade, com um enunciador que chama para si a responsabilidade
pelo dizer. Fiorin (1996) refere-se às “apreciações moralizantes” que, recorrentes, contribuem
para traçar a imagem do ator da enunciação. Assim, as apreciações podem ser entendidas de
acordo com todo e qualquer julgamento, de forma positiva ou negativa.
Mesmo que não haja um eu explicitamente instalado por uma debreagem
actancial enunciativa, há uma instância do enunciado que é responsável pelo
conjunto de avaliações e, portanto, um eu. [...] Há, pois, um narrador
implícito e um narrador explícito. (FIORIN, 1996, p. 65)
Segundo Bertrand, a enunciação tem uma dimensão sócio-cultural, impessoal:
A sedimentação das estruturas significantes, que são fruto da história,
determina todo ato de linguagem. Há o sentido dejà-lá, depositado na
memória cultural, arquivado na língua e nas significações lexicais, fixado
nos esquemas discursivos, controlado pelas codificações dos gêneros e pelas
formas de expressão que o enunciador, durante o exercício individual da
parole, convoca, reitera, renova e transforma. (BERTRAND, 2003, p. 55)
Além das operações enunciativas de debreagem e embreagem centrada sobre as
39
operações do sujeito, Fontanille & Zilberberg (2001) fazem referência a outra operação: a
convocação. Estabelecida por Greimas, ela recobre o processo de discursivização do conjunto
de categorias semionarrativas disponíveis que, segundo os autores “permite às categorias
aceder à presença discursiva, sendo, portanto, controlada pelas modalidades existenciais”.
(FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.148).
Ao se interessar pela competência modal do sujeito, a Semiótica passa a investigar
menos a ação dos sujeitos em busca de determinados valores investidos no objeto (a
narratividade) e mais a manipulação. Afirma Fiorin (2000, p. 174): “parte-se da constatação
de que só pode executar uma ação quem possuir pré-requisitos para isso, ou seja, de que o
fazer exige condições prévias. Só pode realizar uma ação o sujeito que quer e/ou deve, sabe e
pode fazer. É isso que se chama competência modal do sujeito.”. Continua o autor a afirmar
que ao reconhecer que a modalização do fazer é a sobredeterminação de um predicado do
fazer por outro predicado (querer/dever/saber/poder), “a Semiótica começa a realizar uma
tipologia mais fina dos sujeitos. [...] não se procura mais apenas explicar as relações entre
sujeito e objeto, mas entre sujeitos, o que leva ao interesse pela competência modal do sujeito
que realiza a transformação”. Citando Pottier, Fiorin afirma que a Lingüística “tem hoje uma
abordagem enunciativa da modalização, conferindo-lhe o papel de exprimir a posição do
enunciador em relação àquilo que diz” (p. 178). Por meio de um estudo minucioso das
modalidades de base, os modos de existência do sujeito e as relações entre o sujeito do
predicado modal e o do predicado modalizado, o autor fornece definições taxonômicas para as
diferentes modalidades, afirmando que “uma teoria do discurso precisa de uma teoria forte
das modalidades, pois a modalidade é inerente ao ato de dizer e, portanto, um elemento
indispensável para a compreensão da discursivização”. (p. 191). Não vamos aqui resumir esse
estudo, mas quando tratarmos das modalidades, recorreremos a ele.
Afirma Greimas (1983, p. 95) que “manifestações elementares do ser vivo em
relação ao seu mundo” são representadas por um espaço tímico, no nível das estruturas
abstratas. Esse espaço tímico corresponde ao espaço modal, onde aparece o sujeito
modalizado, ou seja, o que se move por desejos ou saberes. Pode se tratar de um aditivo para
o sujeito, que o apresenta de maneira própria, modificando sua enunciação. Esse aditivo
constrói o ator da enunciação, como um “sistema de atrações e repulsões”, conforme admite o
semioticista: “A relação entre o sujeito e o objeto, que define o sujeito enquanto existente
semioticamente, acha-se assim dotada de um ‘excedente de sentido’, e o ser do sujeito se acha
modalizado de uma maneira particular.” (p.95)
40
Eis como Greimas se refere à categoria tímica, considerada, além de primitiva,
proprioceptiva, fundamentando o modo de ser do ator da enunciação:
Trata-se de uma categoria (tímica) primitiva, dita também proprioceptiva,
com a ajuda da qual se procura formular, muito sumariamente, a maneira
como todo ser vivo, inserido num meio, “sente-se” a si e reage a seu
contexto, um ser vivo que é considerado como um “sistema de atrações e
repulsões ”. (GREIMAS,
(1983, p.95)
A proprioceptividade diz respeito aos movimentos de virtualização/realização na
construção do sentido. Por ser “a estrutura axiológica elementar abstrata”, portanto, “pura
virtualidade”, como diz Greimas (1983, p.198), interessa-nos que o “excedente de sentido”
contribui para incorporar o ethos de cada um dos jornais, ou seja, o “projeto editorial” (a que
estaremos tratando especificamente nas reflexões sobre a linguagem jornalística) que firma a
cumplicidade das informações entre enunciador e leitor.
A semiótica vem apresentando estudos que fazem emergir o sujeito. Não se trata
apenas de um “eu” em sua convocação enunciativa em busca do objeto, mas em busca do
fluxo de emoções. Isso não se esgota num esquema narrativo canônico. Considera, então, a
convocação enunciativa que converte timia em modalização, que converte em sensibilização,
retomando assim o sujeito. (GREIMAS, 1993 p.153).
Uma das fases da Semiótica, a paixão, segundo Fiorin (2000, p. 177) é entendida
“como efeitos de sentido de qualificações modais que alteram o sujeito de estado, o que
significa que é vista como um arranjo das modalidades do ser, sejam elas compatíveis ou
incompatíveis”. Explica que é a cultura que determina os arranjos modais que têm um efeito
de sentido passional. Embora as paixões se caracterizem fundamentalmente pelo arranjo das
modalidades, a modalização não é suficiente para produzir efeitos passionais, pois as mesmas
organizações modais podem gerar ou não sentidos patêmicos. Explica ainda que “as
configurações modais estão sobredeterminadas por uma modulação, que gera efeitos de
sentido patêmicos”. Continua o autor: “passa-se, no estudo do componente patêmico, da
modalização à aspectualização e à intensidade. O conceito de aspectualização, entendida não
apenas como processo lingüístico, mas como processo discursivo, não é somente uma
sobredeterminação de todas as categorias de enunciação, o tempo, o espaço e a
pessoa.”(p.190). Afirma também que “o conceito de foria [...] conjugando a intensidade e a
extensão, produz, ao projetar-se no espaço e no tempo, efeitos de andamento e de ritmo
discursivos”. Conclui o autor que “o estudo das paixões passa a convocar, simultaneamente,
grandezas, em geral, discretas e categoriais (modalizações) e grandezas contínuas e
41
articuladas (aspectualização e intensidade).
Procurando fornecer respostas coerentes às questões sobre o engendramento da
significação, a semiótica, na última década do século XX, constituiu conceitos e modelos para
dar conta dessa tarefa. Dessa forma, passou a ter estatuto de rigor e coerência não só para
descrever a lógica narrativa ou as estruturas já discretizadas no discurso, como também
descrever as paixões e as emoções.
Com a Semiótica das paixões (GREIMAS & FONTANILLE, 1993) surgem
questões que conduzem o “sujeito” para o centro das atenções. Podemos considerar, por
exemplo, estudos sobre a identidade modal, que tratam especificamente da existência
semiótica dos sujeitos, levando a considerações sobre “estados de coisas” e também “estados
de alma”. De um lado, os estados de coisas tratavam como “ser” um estado juntivo e, do
outro, os estados de alma abordavam o “ser” como estado modal. O problema era articulá-los,
tratando-os como um objeto “homogêneo” por fazerem parte de uma mesma instância: o
sujeito. Estudos consagrados às paixões, colocam-nos diante da necessidade de tratar os
fenômenos discursivos a partir das manifestações da atividade perceptivo-enunciativa do
sujeito. Segundo os estudiosos da semiótica, não há qualquer possibilidade de se resvalar
numa ontologização do sujeito, afirmando que se trata do sujeito semiótico.
Definida no Dicionário de Semiótica (GREIMAS & COURTÉS, s/d) como
categoria classificatória do semantismo da percepção que o homem possui de seu corpo, a
“protensividade” é a atividade do sujeito de se inscrever num espaço e se perceber reagindo a
ele, possibilitando as manifestações da atividade perceptivo-enunciativa que transita entre as
figuras da superfície discursiva. O sujeito passa a ser reconhecido como instância fundadora
dos fenômenos discursivos provenientes de uma tensividade. O sujeito da percepção instaura
um ponto de vista, na demarcação de um lugar, a partir do qual focaliza o mundo. Na ótica
tensiva o ato perceptivo joga com as forças entre o que é esperado pelo sujeito e o que lhe é
oferecido, criando, do ponto de vista das paixões, um desnível modal. Fontanille (1998) leva-
nos a observar o caráter fundamental do sujeito no engendramento da significação, tendo, na
incompletude do enunciador, um movimento de passagem do enunciado à enunciação, que
instaura as figuras do discurso. Se observada na dimensão do “sentir”, é descrita como
“inquietude”, fundando os valores passionais; na dimensão da experiência estésica, instaura a
“imperfeição” e a estrutura dos valores estéticos; na dimensão narrativa é vista como “falta”;
na dimensão ética, é vista na possibilidade de desenvolver o “excesso ou a insuficiência”. Na
dimensão do discurso é tomada como “coesão ou dispersão”.
42
Bastante fecundo é reconhecer que o “eu semiótico” habita um “espaço tensivo”,
de que falam Fontanille
& Zilberberg (2001):
[...] o espaço em cujo âmago a intensidade e a profundidade estão
associadas, enquanto o sujeito se esforça [...] por ajustar e regular as tensões,
organizando as morfologias que o condicionam. (FONTANILLE &
ZILBERBERG, 2001, p.128).
É preciso relacionar, nesse caso, o observador ao “sujeito perceptivo” e o tempo ao
“centro dêitico” com que a dominância relativa de um sobre o outro traduza gradientes de
intensidade e de extensidade. A partir disso, podemos tratar da semantização das formas e dos
regimes temporais em termos de foco e de apreensão.
Sobre tal questão pronunciam-se Fontanille & Zilberberg
:
No espaço tensivo, que é seu [do sujeito de percepção] domínio privilegiado,
esses gradientes são postos em perspectiva pelo foco ou pela apreensão de
um sujeito perceptivo. Essa orientação dos gradientes em relação a um
centro dêitico e em relação a um observador os converte em profundidades
semânticas. Trata-se, bem entendido, de profundidades que articulam um
espaço mental, às vezes mais, às vezes menos abstrato, o espaço
epistemológico da categorização, mas isomorfo do espaço da percepção e
dele diretamente derivado: a profundidade semântica obedece de fato à
mesma definição que a profundidade figurativa; só muda o grau de
abstração. (FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001, p. 20).
Há uma correlação do conceito de práxis enunciativa ao de norma. Os autores
explicam que a norma limita as possibilidades de atualização da língua, lembrando que o
conceito refere-se a subcódigos específicos de subgrupos pertencentes a uma comunidade
lingüística mais abrangente, pré-determinando a realização de discursos concretos, ou seja, a
fala. Para os semioticistas franceses, o poder de mediação e de seleção da norma pode ser
comparado ao da práxis. Ambos se assentam em usos que, graças à atualização, aparecem
como produtos da combinatória lingüística. No entanto, a título de potencialização,
restringem, de fato, a extensão dos possíveis em uma dada cultura. Todavia, por se tratar de
um conceito que leva à noção de estaticidade, como o de língua, por pressupor um “depósito”
de estruturas fixas, a práxis produz não só tais formas fixas, mas também as formas
inventivas. Assim, a concepção de enunciação, em semiótica, associa-se a um conjunto de
operações que pressupõe a dinamicidade.
Os trabalhos de Zilberberg contribuíram para que a semiótica tomasse uma
configuração mais dinâmica ao abordar as questões do tempo numa ótica tensiva.
Instrumental de grande importância no estudo das paixões, a tensividade vem se constituindo
43
e alargando seu espaço na formulação de um modelo semiótico para abarcar o sujeito no ato
de sua enunciação. O simulacro tensivo ajuda-nos a explicitar e entender o processo de
categorização das figuras do mundo, um tema complexo por colocar em relação sujeito e
objeto.
Para tratar da constituição das figuras do mundo pelo sujeito, Greimas & Courtés
(1986), falam de “fazer seletivo de um sujeito” sobre o objeto, constituindo a categoria da
“presença”. Benveniste focaliza essa categoria em termos de campo posicional (a dêixis
enunciativa aponta para a existência do sujeito lingüístico). Zilberberg & Fontanille a
abordam pela posição em relação ao sujeito, capaz de sentir e perceber, tendo como centro um
“eu”, que instaura o campo perceptivo a partir do foco (visée) e da apreensão (saisie), como
afirmamos acima. O foco engendra a relação do sujeito com o mundo, resultante do efeito de
afetar, que a presença causa ao sujeito; a apreensão resulta da posição e quantidade da
presença na extensão do campo perceptivo. (FONTANILLE, 2001 p.37).
A partir das posições dos actantes da percepção (sujeito e a presença do objeto),
pode-se descrever o campo de percepção. Instala-se assim um campo posicional em que o
sujeito capaz de sentir e perceber é a “fonte” (source) e a presença focalizada é o “alvo”
(cible). As focalizações e apreensões são controladas pelo “actante-controle”. Nesses termos,
temos então a estrutura mínima do ato perceptivo, que fundamenta a percepção. “Foco” e
“apreensão” são atributos do actante fonte, que constituem os atos perceptivos elementares,
podendo, no entanto, ser observados também no actante alvo.
No nível discursivo podemos observar a estrutura da percepção, manifestada
enquanto campo de presença do sujeito do discurso, que instaura a posição enunciativa e a
orientação do discurso. Os limites do campo ou sua profundidade, de acordo com Fontanille
(2001), são dados a partir do “estado tensivo” resultante da relação entre a fonte e o alvo.
É sobre esse estado tensivo da percepção, o foco e a apreensão, que o semioticista
francês se debruça, mostrando as possibilidades de descrição, enquanto campo posicional. O
foco (ato intensivo) de uma presença e sua apreensão (ato extensivo) num determinado campo
posicional para apreender as qualidades de um objeto, é a condição de categorização.
De acordo com Bertrand (2003), ainda que já façam parte de estudos recentes, as
estratégias de apreensão continuam sendo tratadas genericamente dentro do conceito de
“isotopia”, ou seja, formas de organização temática do texto que refletem os pontos de vista e
apreensões no nível das precondições de sentido. A leitura dos textos de Fontanille que tratam
da semiótica tensiva leva-nos a entender que a apreensão do objeto se realiza por meio da
44
correlação entre intensidade e extensidade do ato perceptivo, colocados pelo sujeito
sensível/inteligível, que gera uma profundidade perceptiva, entendida como a articulação do
espaço “cognitivo” e “sensível”. Compreendemos, então, que intensivamente e
extensivamente, pode ser graduada a apreensão do sensível, que regula a presença de figuras.
Elas vão se tornar valores, a partir de posições no sistema discursivo. Fica claro que as figuras
podem ocupar qualquer posição, cujo(s) valor(es) depende(m) das relações que as figuras
mantêm entre si.
Estamos aí diante de dois conceitos bastante profícuos para nossas leituras: “valor”
e “valência” (FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001). Sobre esse estudo, não nos interessa
focalizar particularidades, cujos estudos foram mostrados minuciosamente até mesmo em
gráficos. Grosso modo, entendemos que o modelo tensivo nos permite observar a ação do
sujeito no ato de sua percepção.
Feitas as reflexões, vamos trazer o processo enunciativo do texto jornalístico para
dentro delas, na tentativa de resumir o que apreendemos das leituras sobre o modelo tensivo.
Dessa maneira, os dizeres de um enunciador do tema da terra nos objetos semióticos em
análise, desvela o sujeito cognitivo e sensível, que constitui a função semiótica de um “eu” na
apreensão de um acontecimento, mediação e instância de base da significação desse tema. Por
meio do sujeito organizam-se, no interior de um campo tensivo, o espaço e o tempo. A
atividade perceptiva constitui o “ponto de vista”, na focalização e apreensão, que instauram
um campo de onde se têm as posições relativas de fonte e de alvo. Ao instaurar uma
focalização, a fonte restringe parte daquilo que visa, deixando escapar alguma característica
do alvo, constituindo, assim, no discurso, os actantes da comunicação, do saber sobre o objeto
enunciado e, no interior da narrativa, o sujeito do fazer, o objeto e o anti-sujeito.
(BERTRAND, 2003). O sujeito da enunciação regula a percepção e a organização do
enunciado, instaurando pontos de vista, atribuindo uma perspectiva assumida por ator/atores
(sujeito(s) construído(s) na superfície discursiva).
Segundo Bertrand (2003, p. 116), “o desafio do ponto de vista assenta sobre as
estratégias de apreensão do objeto que podem, ora visá-lo em sua totalidade, de maneira
englobante ou cumulativa, ora visá-lo em suas particularidades [...]”. O autor fala em uma
tipologia para analisar a questão do observador, apresentando-a para seu leitor: o focalizador,
o espectador, o assistente etc. Não nos interessa fazer, aqui, um levantamento dessa tipologia.
Interessa-nos, sim, uma das análises (texto literário de Zola) que focaliza a percepção e o
sujeito do saber. Interessante refletir sobre o que se afirma aí: “o discurso modela uma certa
45
ordem cultural da visão [...], desenvolvendo o imperceptível da percepção, ele a transforma
em significação” ( p. 132).
Essas questões são importantes porque nos colocam diante de algumas discussões
que emergem dos textos jornalísticos. Por exemplo, a noção de estabilização de sentidos. Tão
polêmica para os estudos da linguagem, não é assim problema para as teorias da
comunicação. Nesse campo do saber admite-se que os sentidos estejam estabilizados nos
textos, especialmente quando se trata de certos gêneros jornalísticos. Como forma de
homologar ordens culturais cristalizadas, a enunciação é vista como naturalizadora de
significados solidamente dados pelo jornal e, sobre os quais, não se deve levantar dúvidas.
Ao se referir aos sujeitos do supracitado fragmento de Zola, o semioticista chama a
atenção para o que pode estar encoberto na processualidade do percurso perceptivo. Segundo
esse ponto de vista, vemos, então a necessidade de remexer em significações para (re)pensar o
“já-dado” nos textos jornalísticos.
Ao finalizar as reflexões sobre enunciação, Bertrand (2003) ressalta que a
perspectiva do discurso em ato permite examinar a figuratividade não apenas em termos de
“representação” e “densidade sêmica”, mas vinculada à própria percepção. Essa percepção
relaciona-se ao objetivo de um sujeito enunciador/enunciatário que espelha em seu texto uma
determinada visão de mundo, que só pode ser deduzida da realização do ato enunciativo.
Segundo o autor
a narratividade já não se reduz apenas às operações de transformação dos
enunciados de ação, mas se desdobra em percursos actanciais implicando a
temporalidade e o devir; a dimensão afetiva e passional do discurso não
depende mais somente dos conteúdos modais que definem o estado do
sujeito, seus estados de alma, mas leva em conta as modulações do campo de
presença que esse sujeito “sente” e que o afetam.( p. 108)
Entendemos, então, que a enunciação deve ser interpretada, sobretudo, em termos
de estruturas modais, obviamente, a partir dos enunciados em que se manifesta, de acordo
com os postulados semióticos. Só os enunciados possibilitam reconhecer “os lugares
movediços e instáveis, manifestados ou ocultos que ocupam os sujeitos da comunicação no
jogo de suas respectivas estratégias”. (p. 102).
A enunciação, considerada como um ato qualquer, leva a semiótica a definir
papéis actanciais dos dois sujeitos enunciativos: sujeito da persuasão e sujeito da
interpretação. Assim, enunciador e enunciatário reproduzem a relação destinador/destinatário.
(BARROS,1988, p.92) que, no esquema narrativo canônico, define a fase persuasivo-
46
manipulatória anterior à ação propriamente dita. Conseqüentemente, o enunciatário-
destinatário, exercendo seu fazer/interpretativo, poderá aceitar ou rejeitar a relação
persuasivo-manipulatória, desencadeando ou não outros fazeres e outros discursos.
Para que se efetivem persuasão e manipulação, deve ser firmado um primeiro
contrato de natureza fiduciária entre destinador e destinatário a fim de entrarem em acordo
quanto à troca ou comunicação de valores. Pressupõe-se sempre que haja um acordo tácito
entre os actantes (em relação ao discurso jornalístico, trata-se do Projeto Editorial, que irmana
enunciador e enunciatário), embora tal contrato se estabeleça na comunicação entre os
actantes, a qual se constrói na espessura textual. Quando há acordo, tratando-se de sujeitos
com as mesmas competências, de acordo com Maingueneau (1993, p. 125).
[...] exercício da polêmica presume a partilha do mesmo campo discursivo e
das leis que lhe estão associadas. É preciso desqualificar o adversário, custe
o que custar, porque ele é constituído exatamente do mesmo que nós, mas
deformado, invertido, conseqüentemente insuportável.
Basta, por exemplo, a recusa de um pressuposto colocado pelo jornalista, isso
poderá não levar o enunciatário (o leitor do texto jornalístico) ao consenso, preconizado pelo
discurso consensual da empresa jornalística. Ora, são perfeitamente previsíveis as
descontinuidades entre sujeitos, numa rejeição dos papéis de destinador e destinatário da
comunicação, entre enunciador e leitor. Para que não haja a recusa ao discurso consensual do
jornal, existem as estratégias persuasivas e o contrato fiduciário.
Considerado pela semiótica como um actante de comunicação, o sujeito da
enunciação é o destinador de objetos cognitivos para persuadir o destinatário (enunciatário) a
partilhar de um mesmo saber, por meio da conquista de sua confiança.
Partindo do pressuposto de que o discurso deve produzir o efeito de sentido de
verdade, e que esse sentido está ligado ao que se estabelece no contrato entre enunciador e
enunciatário, Greimas (1983, p.105) fala em “contrato de veridicção”.
O discurso é esse lugar frágil onde se inscrevem e se lêem a verdade, a
falsidade, a mentira e o segredo; esses modos de veridiçcão resultam da
dupla contribuição do enunciador e do enunciatário, suas diferentes posições
não se fixam senão sob a forma de um equilíbrio mais ou menos estável,
proveniente de um acordo implícito entre os dois actantes da estrutura da
comunicação. É esse acordo tácito que é designado pelo nome de “contrato
de veridiçcão”. (p. 105 ).
Estendendo, por conseguinte, a possibilidade de analisar o sujeito da enunciação
em termos semionarrativos, a semiótica, concebe a enunciação como uma ação regida por um
contrato que se estabelece entre enunciador e enunciatário: o contrato enunciativo
47
(BERTRAND, 2003, p. 99). Nesse sentido, consideramos importante trazer algumas
informações sobre a concepção de contrato enunciativo, conforme foi tratado pela semiótica
francesa, desde a década de oitenta.
Greimas (1983, p.103-133) põe-nos diante da antiga discussão sobre “verdade” e
“verossimilhança”, que vem desde a Antiguidade Clássica. O autor atribui relevância ao papel
do destinatário do ato enunciativo, cuja adesão ao parecer-verdadeiro, ou seja, ao simulacro
da verdade construído no discurso, não depende diretamente de seu valor axiológico, mas da
representação que dele faz o enunciador. Dá relevância também ao conhecimento dos valores
entre enunciador e enunciatário no jogo enunciativo, a que denomina contrato, por se assentar
na estrutura da troca entre parceiros. Explica que o valor dos valores, que se troca nesse jogo,
é o que constitui o saber verdadeiro, o que se deve ser considerado.
A partir do estabelecimento do contrato, depois de bem caracterizadas as noções
do fazer persuasivo e fazer interpretativo, pode-se delimitar o lugar da comunicação
enunciativa. Ela pressupõe, do lado do destinador, o “fazer persuasivo” e, do lado do
destinatário, o “fazer interpretativo”. Explicita-se, por conseguinte, o caráter manipulatório da
atividade enunciativa. Greimas considera que, na proposição do contrato, os dois discursos
cognitivos do enunciador e do enunciatário constituem as “preliminares de troca”
(GREIMAS, 1983, p. 111). No entanto, como já vimos, a partilha só se efetivará ao término
do contrato, dependendo da adesão fiduciária do enunciatário. Isso nos leva a ver que, embora
o contrato de veridicção se assente sobre os resultados do fazer cognitivo, é de natureza
fiduciária, ou seja, relaciona-se à modalidade do crer.
As afirmações acima conduzem-nos a observar que o processo de comunicação
não se reduz a meras transferências de saber. Em se tratando de sujeitos em situação
comunicativa, não podem ser considerados neutros, mas dotados de competência modal
variável. Greimas (1983, p. 115) observa que “o fazer-saber que presidia à comunicação
intersubjetiva tornava-se um saber persuasivo, tendo, do outro lado da cadeia, um fazer
interpretativo correspondente e oposto”. Assim, o “fazer-saber”, pressuposto em toda
comunicação, deve ser entendido como um “fazer-crer”. Crença e confiança unem os sujeitos
na relação comunicativa.
O autor apontou a presença e até a necessidade da fidúcia no plano do fazer
interpretativo. O ato de crer é um pressuposto necessário à persuasão e à manipulação:
[...] se a comunicação não é uma simples transferência do saber, mas uma
empresa de persuasão e de interpretação situada no interior de uma estrutura
polêmico-contratual, ela se funda sobre a relação fiduciária dominada pelas
48
instâncias mais explícitas do fazer-crer e do crer, onde a confiança nos
homens e em seu dizer conta mais, certamente que as frases bem feitas ou a
sua verdade concebida como uma referência exterior. (GREIMAS, 1983, p.
119 ).
A “confiança nos homens” refere-se à verdade que já se possui, fruto de um saber
partilhado pela comunidade enunciativa, fruto da práxis enunciativa (GREIMAS &
FONTANILLE, 1993). Existe uma relação fiduciária de confiança e de crença entre os
parceiros da comunicação, que especifica as condições da correspondência, um crer
partilhável e partilhado no interior das comunicações lingüísticas e culturais, que determina a
espessura da linguagem (a jornalística, do nosso interesse ) e enuncia seu modo de circulação.
É esse contrato que tematiza o discurso do jornal e engendra diferentes regimes de persuasão
e de adesão: o verossímil e o inverossímil, o representável e o absurdo, o real e o fantástico.
Assim se estabelece a enunciação de uma perspectiva dinâmica e dialética que enseja uma
práxis, cujo campo coexiste ao campo da cultura, tendo os movimentos observáveis como
operações de interpretação. De um lado um sujeito produtor, de outro, um sujeito de
interpretação.
Podemos dizer que a notícia, como texto jornalístico, por exemplo, é por
excelência, o domínio do discurso em que se expressa o contrato, que oferece a imagem de
uma racionalidade que repousa sobre o desenvolvimento de uma enunciação que visa a criar a
ilusão de realidade. São dizeres que confirmam, interrogam ou denunciam as convenções que
homologam, sem possibilidade de além-sentido. O contrato de veridicção do jornal, no jogo
das crenças estabilizadas, supostamente verdadeiras para o enunciatário-leitor, põe, no
entanto, sempre em questão as formas pelas quais ele apreende o sentido do texto, para
certificar-se da parceria, reassumindo-a.
Vamos mais uma vez a Bertrand (2003) que nos oferece a possibilidade de refletir
sobre a construção do sentido, a partir da relação do leitor com o texto. Não se trata de uma
leitura plural em que o sujeito joga para multiplicar os pontos de vista possíveis, mas de uma
leitura em que ele se vê ao mesmo tempo despossuído e responsável pelo sentido que tem
diante de seu olhar. Examinam-se, no capítulo, os tipos de crença para a leitura, na
fundamentação do regime de adesão do leitor, distinguindo, na construção de textos literários,
quatro posições: “crer assumido”, ”crer recusado”, “crer crítico” e “crer em crise”
(BERTRAND, 2003, p. 407).
A nosso ver, pela primeira via (o “crer assumido”), o leitor do discurso jornalístico
poder-se ia deixar absorver por uma plena confiança diante de um pretenso efeito de sentido
49
de verdade ou ilusão referencial, um “real” da linguagem, estruturada para estabelecer a
crença, numa fusão com ela.
O segundo tipo de leitor é aquele conduzido pelo “crer recusado”. Ao ver-se diante
de um conjunto dos elementos situacionais e contextuais, que se estabelecem por meio da
mise-en-scène narrativa e figurativa, é levado para uma outra ordem de crença, que faz surgir
uma nova definição do ato de leitura. A propósito, o leitor pode se afastar do ponto de vista
referencial, estabelecido (ou silenciado?) pelo enunciador, descobrindo, assim, nessa
escapadela, outra(s) possibilidade(s) de sentido.
Com a terceira posição “a do crer crítico”, é possível chegar àquele tipo de leitor
que busca associações de figuras e imagens a partir da “tela do parecer”, engendrando um
universo de significações. É aí que a significação inteligível pode conduzir à significação
sensível. Por não se tratar de um simples operador, mas, sim de um sujeito afetado por estados
afetivos e intelectuais, o leitor pode se ver arrebatado por seus estados de alma. Delineia-se,
então, o espaço passional, responsável por interpretações, que podem transformar um
acontecimento narrado. Nesse aspecto, uma determinada notícia, pode engendrar efeitos de
sentido bem diversos daqueles a que poderia querer transmitir seu enunciador.
A leitura proposta pelo “crer crítico” põe o leitor num lugar privilegiado, mas a
exigir-lhe um deslocamento: da estabilidade da ilusão referencial para a instabilidade da
ilusão interpretativa, num deslizar-se pelos efeitos de sentido.
O quarto e último modo de apreensão leva à complexidade da relação entre o texto
e seu leitor. Para tanto, transcrevemos as palavras de Bertrand (2003): “o leitor atualiza o
texto e seu sentido, de acordo ou não com suas expectativas e previsões advindas de sua
competência lingüística e cultural” (p. 408). Conclui o autor que a leitura propõe “a
experiência sensível da língua e a experiência cultural do mundo”.
Greimas (1983, p. 124) propôs o procedimento da leitura, que consiste no
confronto da mensagem recebida com o universo do destinatário, mas ressalta, por diversas
vezes, que é “enquanto depositário de formas de organização válidas que o universo cognitivo
interessa e engaja a instância epistêmica integrada no processo de comunicação”.
Cristalizados pelo uso, os saberes vão-se inscrevendo em nossa memória. O processo
interpretativo inaugura um viés para a análise da comunicação midiática e para a avaliação
das informações que os meios de comunicação põem em circulação. Ao incluir o leitor,
podem-se ordenar os interlocutores em estruturas (sintáticas, por exemplo), podendo ser
relacionados em função de suas respectivas competências modais. Na desigualdade de
50
competência podem ser explicados os desvios de entendimento, a necessidade do discurso
autoritário, de dominação.
Cabe ao leitor desestabilizar os sentidos “já dados”, desconstruindo estereótipos,
colocando em xeque o contrato enunciativo, cristalizados em gêneros jornalísticos como
discursos que criam a impressão de “objetividade.
Trazendo a reflexão para o texto jornalístico sobre a terra somos levados a
constatar a importância da presença e do papel do sujeito no discurso. Trata-se, então, de
abordar nas nossas análises os simulacros de sujeitos da enunciação, imagens do enunciador e
do enunciatário, criados pelo texto jornalístico em Oeste Notícias e em O Imparcial. Não se
trata de considerar nesta dimensão uma concepção de subjetividade. Não se considera
enunciador e enunciatário que exprimem “determinadas” intenções de comunicação, mas,
sim, a posição de sujeitos afetados por diversas ordens na complexidade do processo do dizer,
que não podem ser considerados fora de suas paixões. Tão participante quanto o enunciador,
vamos levar em conta, portanto, a imagem do enunciatário criado no/pelo discurso da mídia
impressa no Pontal do Paranapanema, por determinar também as escolhas enunciativas, a
partir das quais seremos conduzidos aos sentidos sobre a “terra”.
1.3. Um balanço no quadro conceptual da enunciação: a movimentação do sujeito na
construção do discurso jornalístico.
Em termos semióticos, no nível semionarrativo, que compreende os enunciados
fundamentais, o modelo actancial, os programas narrativos e a teoria modal, projeta-se no
texto jornalístico a problemática dos valores e sua axiologização. A terra comparece como
objeto-valor. Mas é o sujeito que projeta valores, outorgando sentidos.
Falar de “atores” e de “cenários rurais” não é tratar apenas de uma metáfora
produtiva, senão também tratar de uma hipótese de leitura e busca de significação da temática
da terra construída na mídia impressa. Quando se trata de uma região sustentada pelos
problemas fundiários, continuamente ocupam o cenário jornalístico, atores sociais – sujeitos -
envolvidos nas questões fundiárias. Um ator do cenário rural é aquele que pode reunir
historicamente na dimensão do ato de enunciar a terra, as dimensões do ser e do fazer (o
51
cognitivo, o pragmático e o passional). É, pois, o sincretismo do sujeito do ser, do fazer e do
sentir que torna possível, na práxis linguageira, a realização da dimensão polêmica e
contratual das narrações da terra.
As leituras que nos conduziram pela semiótica, levam-nos a considerar que é pela
perfórmance de um “eu”, inserido na materialidade jornalística, que se projetam os valores. É
pelo trabalho da enunciação de sujeitos da linguagem, tendo como atividade a produção dos
textos jornalísticos - objetos semióticos que fazem circular nada mais do que a crença
compartilhada dos valores veiculados na sociedade – que a significação é conduzida.
Numa costura com as discussões sobre o campo jornalístico, vamos retomando
muito do que foi dito sobre a tarefa de colocar o sujeito no centro das investigações para tratar
das questões sobre enunciação na mídia impressa.
A propósito de um tipo específico de construção textual nos jornais diários, a
notícia, como prática cotidiana, longe de qualquer idéia de que possam espelhar a realidade,
estão sendo vistas como operação de um sujeito. Como quer que seja, o pressuposto é de que,
na enunciação jornalística, um sujeito de linguagem dá conta dos acontecimentos de seu
tempo e, por esse motivo, daquilo que ainda não acedeu à memória coletiva, e que poderá ir
gravar-se nela, em primeira mão, precisamente pelo fato de o jornalista enunciar
(
RODRIGUES, 1996). Esse trabalho de enunciação não se reduz a uma mera técnica, a simples
mobilização de regras e normas fornecidas pelos manuais de redação ou aprendidas no
desempenho da atividade profissional. Entendendo que a construção da notícia não pode
desconhecer a dimensão subjetiva, consideramos que a atividade de um “eu” na produção da
notícia não se reduz à de um robô, como se se prestasse a colocar enunciados para in/en-
formar os fenômenos sociais. A seleção dos acontecimentos por um sujeito que enuncia,
pressupõe, é óbvio, um julgamento acerca da relevância e do interesse para o público. A
formação desse julgamento está relacionada implicitamente a uma visão do mundo
interiorizada por um enunciador que a considera, também, universalmente partilhada pelo
leitor. Coloca-se aí a problemática do valor e sua axiologização, tendo no sujeito enunciador
aquele que projeta valores sobre o objeto, atribuindo-lhe sentidos. É a partir do trabalho de
um sujeito, na seleção dos acontecimentos, que o jornalista enuncia, pressupondo um
julgamento, na maior parte dos casos, implícitos acerca da relevância e do interesse para o
leitor.
Sem querer ainda discutir esse gênero textual (o que faremos no próximo
capítulo), nossas leituras partem do pressuposto de que as notícias são relatos de caráter
52
ambíguo, como toda comunicação humana. Nelas estão presentes mecanismos que visam ao
efeito de sentido de verdade, objetivando retratar acontecimentos da “realidade”, ao mesmo
tempo em que se manifestam valores que ampliam significados para muito além daquilo que é
dito explicitamente. No explícito, esconde-se o não-dito. Assim sendo, na análise das notícias
é preciso considerar o diálogo de contrários que permite desvelar o sentido oculto do mero
fluir das aparências. Estamos considerando que, nos relatos das notícias, estão presentes as
contradições entre a intenção explícita de um discurso que se pretende objetivo e a ativação
de significados subjetivos, que afloram de sujeitos em sua prática para trazer o objeto
semiótico à luz. Na sua materialidade linguageira, a notícia agrega, então, à dimensão
cognitiva a porção sensível do enunciador, ser social, que agrega o eufórico e/ou o disfórico.
Pode tratar-se de valores do bem ou/e do mal, remetendo ao passado ou ao futuro, na
exploração das faculdades cognitivas ou no estímulo a afetos, desejos, fantasias, sensações e
utopias.
Vamos ao Dicionário de Semiótica, de onde transcrevemos afirmações que nos
possibilitam refletir sobre a construção da pretensa verdade dos fatos pela mídia :
Não mais se imagina que o enunciador produza discursos verdadeiros, mas
discursos que produzem um efeito de sentido “verdade”: desse ponto de
vista, a produção da verdade corresponde ao exercício de um fazer cognitivo
particular, de um fazer parecer verdadeiro que se pode chamar [...] de fazer
persuasivo. [...] Seria errado vincular o problema da veridição à estrutura da
comunicação intersubjetiva. O enunciador e o enunciatário são para nós
actantes sintáxicos que podem ser – e freqüentemente o são – subsumidos
sincreticamente por um único ator, o sujeito da enunciação [...] A persuasão
e a interpretação, o fazer-crer e o crer-verdadeiro não são senão
procedimentos sintáxicos, capazes de dar conta de uma “busca interior da
verdade”, de uma “reflexão dialética”, chamada ou não à manifestação sob a
forma de discursos [...] (GREIMAS & COUTÉS, s/d, p.487).
A recusa do postulado de que o texto jornalístico retrataria ou refletiria uma
“verdade” sobre os fatos, as ações e as palavras do mundo vivido dos acontecimentos, torna-
os disponíveis para toda espécie de novos sentidos e de novos investimentos significantes.
Desse modo, cada indivíduo que integra o processo da leitura do jornal, pode constituir-se
num sujeito autônomo na estruturação de sentido. Um “eu” transmite um conjunto de saberes,
converte em notícia os fatos ocorridos, informa o que é “relevante”, entretanto, não tem como
controlar a heterogeneidade de sentidos que essas transmissões e esses saberes adquirem.
Nesses interstícios de mundo partilhado entre essas diferentes dimensões da enunciação é que
vemos a importância de trabalhar essa realidade complexa “de papel” a partir da presença da
subjetividade. Nesses espaços estará nosso trabalho a fim de apreender a presença dos efeitos
53
de sentido de terra.
Diremos, assim, que falar em subjetividade no texto jornalístico é reconhecer a
importância do sujeito da enunciação, é buscar a liberdade para fugir da padronização. Ao se
admitir uma instância responsável pelo valor do dito, admite-se aí não só a dimensão do
cognitivo, mas também a dimensão do passional, trazendo para a cena não apenas
personagens revestidos com certos matizes de indicadores sociais, mas atores cujas atividades
internas não podem ser desconsideradas.
Formulando adequadamente o problema do relacionamento entre as instâncias do
cognitivo e do passional, enxergamos a possibilidade de, no processo da enunciação, sem
temor às contaminações subjetivas, buscar uma organização do discurso jornalístico,
procurando nos libertar do monitoramento de eventos e/ou valores noticiosos, vistos em
categorias cristalizadas para admitir a presença do sujeito.
O sentido, na cadeia interativa do texto jornalístico, sob a unicidade de um
enunciador, responsável por um dizer que se pretende verdadeiro, supostamente ancorado na
“objetividade” - um de seus elementos-chave -, arremessou-nos para os deslocamentos do
processo discursivo. Queremos dizer da importância de reconhecer o deslizamento do posto
do observador dos fatos jornalísticos, que vai de seu lugar enquanto enunciador para o lugar
do leitor. Não se trata, aqui, frisando o caráter social da “significabilidade” e da
comunicabilidade do texto construído no/pelo jornal, de um deslocamento de um pólo para o
outro, no eixo da transmissão da mensagem, mas, sim, de um deslizamento de enunciador e
enunciatário para um ponto médio. Isso ocasiona o descentramento dos agentes de produção
(a agência jornalística) e o reconhecimento de uma instância enunciativa que pode estar no
espaço compreendido entre um e outro, onde aí, sim, deve ser observado o espaço em que
habita o sujeito do discurso.
Convém chamar a atenção para o fato de não nos sentirmos presos à terminologia
quando fizermos referência aos interlocutores no/do discurso jornalístico. O sujeito
enunciatário, preferimos nomeá-lo “leitor”, o que não implica desprezar outras denominações:
interlocutor, enunciatário, etc. Importante é afastar qualquer acepção psicologizante, a que o
termo “sujeito” ou qualquer visão de subjetividade possa significar. Segue-se, então, que o
texto jornalístico se identifica com um certo efeito de leitura de um sujeito plural (aquele que
fala e aquele com quem se fala), que lê um efeito de sentido do universo dos fatos, dos
acontecimentos construídos a cada objeto semiótico posto em circulação pela mídia impressa.
Esse gênero textual, na sua função prática e cognitiva de comunicar, ou seja, de construir um
54
procedimento lingüístico que visa a um fazer saber o que acontece na sociedade e fazer crer
nisso, abre-se a todas as relações. Mediante essas relações o texto jornalístico se insere numa
dada formação social, onde se dão as relações sociológicas, políticas, psicológicas etc.,
apreensíveis por sujeitos, que desempenham papéis de atores do/no processo discursivo do
fazer jornalístico.
Ora, se é reconhecida a atuação de sujeitos, ratificamos que é plausível admitir que
os fatos mudam de fisionomia e matizam-se com tintas de suas paixões, que os move por
simpatia ou antipatia, temor ou coragem. A notícia não sendo senão um discurso construído
por sujeitos linguageiros, não pode estar imune desses contágios patêmicos. E nessa relação
com as questões da subjetividade, em consonância com algumas vertentes atuais da semiótica,
mesmo que nos sintamos à vontade para não adotar muitas soluções técnicas que vêm sendo
propostas, especialmente quanto aos procedimentos que fundam a análise das paixões,
reconhecemos a relevância do sujeito da enunciação. Reconhecemos que o horizonte da
subjetividade, moldada pelas formas de expressão que a história cultural deposita na
linguagem de sujeitos de discurso cujos estados de alma se inscrevem na materialidade
jornalística é fundamental no estudo da comunicação.
As questões da “subjetividade”, relativas ao jornalista/enunciador e ao leitor,
mergulhados no processo social, evidentemente, conduzem para a abordagem de questões de
ordem social, ideológica, entramadas todas essas questões no objeto semiótico, produto de um
ato da enunciação jornalística.
Falar em ideologia é tratar de sentidos, que supomos conhecer, pelo menos grande
parte deles, principalmente quando se trata daqueles aprendidos desde cedo como parte de
sistemas de nossa cultura, que internalizamos e vão ficando estocados, constituindo nossa
competência, sem sequer darmos conta disso. São eles que, modalizados eufórica ou
disforicamente, convertem os significados - de categorias semânticas que são inicialmente -
em valores de nosso grupo social, os quais respondem por nossa particular visão de mundo.
Questões da subjetividade filiam-se diretamente às novas pesquisas desenvolvidas
pelos estudiosos do discurso. A semiótica, pelos estudos de conceitos advindos da práxis
enunciativa traz a subjetividade e com ela traz também a questão ideológica. Ao
reconhecerem a importância da realidade do texto, os semioticistas consideram inclusive a
idéia de que ele é criação de um sujeito, por sua vez, inserido em um meio social, cultural que
ressoa em suas manifestações discursivas. Afirma Bertrand (2003, p. 86): “O discurso social é
tecido por configurações já prontas, blocos pré-moldados e prontos para serem utilizados,
55
produtos do uso que se depositam (...) no sistema da língua.” Sem falar em assujeitamento,
Bertrand vai a Greimas e explica ao leitor que, sujeito ao acontecimento, o enunciador traz
para a estrutura material discursiva o sujeito, a língua, a ideologia, a história e a memória:
É, portanto, a utilização da estrutura de significação que define o uso. Quer
esta definição seja vista positivamente – como o conjunto das escolhas
efetuadas – quer negativamente - a partir das coerções e incompatibilidades
semânticas impostas – em qualquer dos casos o uso “designa a estrutura
fechada pela história”(
BERTRAND, 2003, p.86, grifos do autor).
Além das restrições impostas pelo sistema lingüístico que, de acordo com o autor,
pode oferecer, em alguns casos, liberdade de escolha, o mesmo não diz em relação à história,
vista como categoria coercitiva (“estrutura fechada pela história”). Quanto aos “limites de
ordem sociocultural”, o autor conduz à idéia de assujeitamento, a que se refere como “hábito,
ritualizações, esquemas”. Como elemento de coerção aparece o “gênero”. Incluído às outras
categorias citadas por Bertrand (2003, p.87), a ele se refere: “moldam e modelam, sem que o
saibamos, a previsibilidade e as expectativas de sentido”. Concordamos sobre suas
considerações quanto ao gênero, pois, como a ponta de um iceberg, é uma categoria cuja
importância faz emergir a historicidade, levando a conhecer valores sociais. Relacionamos
essas reflexões às de Bakhtin, que também vê o gênero como elemento de coerção, ao qual o
sujeito se assujeita.
Para compreendermos as questões relativas ao sentido e a ideologia a que nos
remete a enunciação jornalística, estamos convictos de que não devemos nos contentar com as
evidências ou as contradições na engrenagem da ideologia reprodutiva dos valores da
sociedade. Reconhecemos que o leitor do jornal não acomoda seu olhar em obediência à
posição econômico-determinista, amarrado aos valores ditados pelo mercado. Fazer a leitura
deste “Todo Poderoso” (mercado), em que se insere a mídia impressa, não seria uma
possibilidade confiável para compreender as contradições no discurso do jornal. Ora, como
desvelar, então, as diversas contradições sobre as intrincadas questões relativas à terra na
sociedade brasileira? Onde se processariam essas contradições?
A preocupação é não ficarmos cegos em relação à história, levando-nos a buscar
na fase enunciativa da semiótica, guiados pela materialidade discursiva, a condição para lidar
com o sujeito. Ele é um ser histórico, sujeito à transformação pelo acontecimento do discurso,
que surge como um lugar de interseção e arbitragem entre tempo e espaço e, portanto, como
agente das seleções de valores em todo o acontecimento discursivo, na inerência da dimensão
passional, aciona as modulações tensivas (ligadas à percepção) e fóricas (ligadas ao
sentimento). Em resumo, um “eu”, que não se resume ao lingüístico, habitando um espaço
56
tensivo. (FONTANILLE & ZILBERBERG, 1998).
No campo das indagações tensivas dos estudos semióticos, que desde os anos
noventa, vêm operando as instabilidades passionais, modalidades e ideologias, vimos o porto
para ancoragem de diversas questões (infelizmente não podemos dizer que se trata de um
“porto seguro”). Com a metáfora “porto”, queremos dizer que, com relação ao horizonte
teórico da semiótica, a tentativa de conseguir um lugar para embarcar em busca das
investigações dos textos jornalísticos - corpus de nossas análises – possibilitou-nos,
certamente, uma abordagem do sujeito. E é conveniente esclarecer que estamos restringindo
esse porto bem especificamente ao campo da semiótica da enunciação, ancorados pela obra de
Bertrand (2003), sem adotarmos as soluções teórico-metodológicas que vêm sendo
desenvolvidas recentemente e que já trouxemos para discussão no item A subjetividade na
semiótica. Sem dispensar as aquisições conceituais trabalhadas por Fontanille e Zilberberg
(1998), acreditamos serem importantes em alguns momentos de nossas análises. Outro autor
cujos estudos têm sido de grande valor para nossas reflexões é Tatit (2001). A sua prática
semiótica, aplicada a canções da música popular brasileira tem-nos ajudado a pensar muitos
conceitos.
Na obra de Bertrand (2003), encontramos a referência a dois campos: o da
“semiótica do enunciado” e o da “semiótica da enunciação”. Quanto à primeira, aí se
apresentam os diferentes níveis do objeto semiótico. Esclarecemos que poderá ser útil tratar
das formas de estruturação articuladas em níveis, utilizando conceitos relativos ao percurso
gerativo, de onde emergem diversas noções - já naturalizadas nas análises – e de cujos
estudos, uma imensidão de trabalhos científicos e diversos manuais de semiótica têm se
encarregado de fazer descrições. Vamo-nos permitir conjugar o emprego de conceitos já
consagrados na teoria semiótica, levando em conta a revisão de sua coerência, atentos à
autonomia relativa do texto enquanto objeto significante, considerado como um todo de
significação, que produz as condições contextuais de sua leitura. Sobre essa revisão da
coerência dos postulados da semiótica, pronuncia-se Raúl Dorra, na apresentação da obra De
la imperfeccion de Greimas, traduzida, em 1990, para o espanhol, conforme se lê nos textos
que acompanham a edição brasileira:
[...] parece evidente que a semiótica deixou de ser, progressivamente, uma
disciplina de contornos precisos para ser cada vez mais um espaço móvel,
intersticial, uma rede de vasos comunicantes distribuída no amplo campo da
cultura, um olhar ordenador ao qual nada é alheio e tudo é estranho, um
olhar atraído por essa profundidade na qual [...] ‘tudo se torna lei’
(GREIMAS, 2002, p. 124).
57
O segundo campo referido por Bertrand, o da semiótica da enunciação, traz o
sujeito e a dimensão intersubjetiva da interlocução no ato da leitura. Nessa perspectiva, o
leitor do texto jornalístico não é aqui considerado como “destinatário” da comunicação -
apenas o receptor -, mas é, sobretudo, um sujeito que “constrói, interpreta, avalia, aprecia,
compartilha ou rejeita as significações.” (
BERTRAND, 2003, p.24).
Para completar o raciocínio sobre a revisão da coerência dos postulados da
semiótica, trazemos um trecho de Paolo Fabri, que, assim como Dorra, também escreve uma
introdução para a obra de Greimas:
entre aquisições e reconsiderações, encontramos explicada uma panóplia de
construções [...] Ao conhecimento das estruturas semânticas e narrativas do
Enunciado, soma-se a dimensão discursiva por meio das estratégias da
Enunciação (débrayages e embrayages) e das táticas dos pontos de vista. A
dupla modulação dos predicados, aspectual e modal, introduz, junto às
escansões e ao nível das ações, uma reconsideração do cognitivo, que inclui,
constitutivamente, o ‘plano’ tímico e passional; uma vez posta a dimensão
do ser e do fazer, impõe-se aquela – desprezada e irrecusável – do valor. (In:
GREIMAS, 2002, p. 96).
Admitimos que o processo de enunciação, no horizonte da semiótica, abrange toda
a extensão para olhar a significação, que parece emanar da superfície do texto jornalístico,
pressupondo, na realidade, a compreensão de um sistema complexo de funções organizadas
lingüisticamente (melhor dizendo, discursivamente) na sustentação de efeito de sentido. Por
detrás de grandezas aí expressas, valores de ordem actancial, modal, espacial, temporal etc.,
que mantêm entre si interações, emanam as significações.
No funcionamento do discurso jornalístico, o óbvio é dizer que nada pode ser
estranho ao sentido no campo das significações e que não deve existir brecha para a
ambigüidade. Analisar a notícia poderia se reduzir a equacionar o relato dos fatos que trazem
o real constituído historicamente. No entanto, muito mais do que o conhecimento de uma
realidade factual, proceder à leitura da construção jornalística é desvendar um complexo
sistema de imagens (significantes) e valores que a sociedade elabora para fundamentar os
sentidos de tudo o que ela mesma quer que aconteça, submetidos à linguagem, a efeitos de
sentido. Dessa forma, parece tratar-se de um trabalho de desmistificação.
Encontramos o conceito de “mistificação”, em Lopes (1997, p.350), que faz
comentários sobre o que Barthes diz a respeito de efeitos de sentido como “mistificação”:
a significação mistifica (porque, quiçá, “significar” implica significar isto e
não outra coisa [...] sendo a própria significação, em si mesma considerada,
58
mera mistificação, então, tudo mistifica [...] mistificam, sobretudo, os
discursos que pretendam não mistificar, construídos todos pelo procedimento
analógico e manifestados, todos, ainda, pelos enunciados denotativos [...].
Acreditamos que, pela dimensão enunciativa, que enquadra e rege todo o percurso
de sentido pela discursivização, seremos levados a desmistificar significados cristalizados na
temática da terra. Barthes afirma que, na construção do discurso jornalístico, a clareza pode
ser vista como “um atributo puramente retórico, não uma qualidade da linguagem em geral,
praticável a qualquer tempo, em qualquer lugar” (BARTHES, Apud LOPES, 1997, p. 351).
Em termos práticos, para dar conta, no interior do processo jornalístico, dos efeitos
de sentido de um conjunto de significantes constituídos, isto é, reconhecer o sentido do tema
da terra na especificidade do corpus analisado, temos de nos haver com a questão do sentido
investido e as condições desse investimento. As marcas sociais acabam por funcionar como a
senha de um comprometimento ideológico, como se tratasse de um pacto entre jornalista-
enunciador e enunciatário-leitor. Na incapacidade de refletir inocentemente “a realidade”, o
gênero jornalístico “recorta-a, sempre, na consonância dos interesses de uma ideologia que
previamente a interpretou em seus próprios termos.” (LOPES, 1997, p. 352). Essas palavras
de Lopes referem-se, ainda, ao estudo sobre Barthes, que tratava a questão da suposta
transparência da linguagem como “demônio da analogia”. Ao comentar sobre a obra de arte, o
semioticista brasileiro diz que Barthes tentou exorcizar esse demônio, afirmando que “a obra
literária constrói a ‘realidade’ que aparenta, para os desprevenidos, ‘refletir’”.
Tomamos essas considerações sobre o texto artístico e fazemos valer também para
o texto jornalístico cuja leitura não pode se confinar a qualquer gesto de leitura da
referencialidade, à ilusão de que fosse possível transitar diretamente por um real fenomênico
dos fatos, como se o mundo jornalístico pudesse ser visto pela ótica da suposta objetividade.
No texto jornalístico, que tem entre a matéria significante e as coerções
definidoras da natureza do trabalho de investimento, temos de haver-nos com os agentes de
produção. Não é possível pensar o sujeito como um meio que se constitui de forma
transparente. Nem inteiramente livre nem inteiramente coagido em sua enunciação, não se
trata de recolher alegremente traços da ordem do ideológico, do poder, do inconsciente para
uma leitura dos sentidos que se constroem no jornal. Ora, cada enunciação conduz para um
campo de efeitos de sentido, que não se pode efetuar de maneira automática e a que não temos
acesso espontaneamente. Entre a produção de um texto jornalístico e o acontecimento factual,
existe certamente um sistema de relações, que não podem ser inferidas de maneira linear da
produção ao reconhecimento. Toda situação discursiva é uma situação na qual um universo de
59
operações se mostra.
Fontanille & Zilberberg (2001, p. 174), ao analisarem a forma de convivência
entre as grandezas engendradas pelo sistema da linguagem e as fixadas pelo uso, notam que,
por elas terem estatuto diferente, para que ocorram em um mesmo discurso, devem se ligar a
diferentes modos de existência: “As modalizações existenciais – o virtualizado, o atualizado,
o potencializado e o realizado – convertem, de certa forma, a co-presença em espessura
discursiva, e projetam distensões modais nessa profundidade”. Do ponto de vista da análise
discursiva, observam os autores que o virtualizado e o atualizado se superpõem,
correspondendo à memória da práxis enunciativa, quer se trate da memória coletiva ou da
memória das operações em discurso. Quanto aos modos atualizado e ao realizado, dizem
respeito à linguagem em ato.
A projeção das modalizações, partindo do percurso gerativo de sentido, de acordo
com os referidos autores, assim se dá:
1) As formas semionarrativas (o sistema) constituem a competência
enunciativa virtual;
2) A primeira operação da práxis é a convocação dessas formas em discurso,
isto é, uma primeira ativação-seleção no percurso gerativo, que as atualiza;
3) Os produtos dessa convocação são de duas ordens: por um lado
ocorrências que se realizam em discurso; por outro, praxemas (os tipos ,
particularmente), os quais são potencializados pelo uso;
4) Os produtos potenciais ou são postos em memória ( em disponibilidade
em algum modo), ou são realizados por uma nova convocação em discurso;
5) Estes experimentarão, então, dois devires diferentes: ou são convocados
para serem virtualizados, isto é, denunciados em prol de uma reabertura da
combinatória virtual; ou, ao contrario, são por sua vez realizados em
ocorrências, desde que o discurso explore as formas canônicas disponíveis.
(
FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001, p. 174).
Para encaminhar a sistematização do trabalho da práxis enunciativa sobre os
modos de existência, Fontanille & Zilberberg valem-se de dois regimes - aberto (visada,
visée) / fechado (apreensão, saisie).
Sistema (em
potência)
Processo (em ato)
visada Virtualizado Atualizado
apreensão Potencializado Realizado
60
Quando se examinam os discursos concretos, esta distribuição complica-se, pois a
práxis não pode ser apreendida em discurso senão por contraste, vale dizer, se são explorados
concorrentemente pelo menos dois modos de existência, produzindo-se assim uma
sobreposição modal que regula “o conflito das interpretações” (RICOEUR, 1994).
Um ponto de partida para pensar a regulação global, pela práxis, dos modos de
existência das grandezas no discurso é a condição intersubjetiva, o que, para Benveniste, é a
única a permitir a comunicação lingüística. A freqüência de emprego de uma forma será
apenas pura repetição, se não houver a partilha intencional que a intersubjetividade permite.
Levando adiante o raciocínio de Benveniste, inclinar-nos-íamos a considerar que é a troca
social, a circulação dos objetos semióticos e dos discursos no seio das culturas e das
comunidades que retém ou rejeita os usos inovadores ou congelados e “canoniza”, por assim
dizer, as criações do discurso.
A freqüência do uso, portanto, não pode ser dissociada de uma sanção
intersubjetiva; a projeção de um protótipo depende do acordo entre um número suficiente de
sujeitos. A aceitação intersubjetiva abre caminho para a recorrência de uma forma; a difusão
sociocultural assegura a estabilidade de um protótipo.
Bertrand (1996) mostra como, a partir do abalo provocado pela intervenção do
sujeito individual, novas figuras sensíveis que dão conta da perturbação sofrida pelos valores
estabelecidos e pela vibração das valências, vão sendo assimiladas pelo sujeito coletivo
segundo um gradiente de variação de intensidade. A intervenção estabelece um novo ponto de
articulação entre o inteligível e o sensível, que é enunciado no discurso. Desloca-se aí do foco
da questão do valor para a questão da valência, entendendo o fiduciário como espaço de
acolhida de valência. O primeiro passo nesse deslocamento é a dúvida lançada quanto à
fiabilidade do universo figurativo. Do sujeito individual, que desencadeia a intervenção, ao
sujeito coletivo, que assimila as novas figuras sensíveis, observa-se a perturbação sofrida
pelos valores fixos e a vibração das valências.
Para esclarecer as condições de estabelecimento dos valores convocados em
discurso, o autor propõe a noção de “valência figurativa”, sugerindo que o figurativo seja
visto não a partir dos componentes semânticos já dados no texto, mas como construção
discursiva, capaz de provocar a adesão ou não ao visível. Importante é observar que se
descrevem as condições de estabelecimento dos valores que fundam esta adesão, ou seja, a
descrição das valências. Desse modo, podemos ver que o estudo sobre a figuratividade centra-
se na questão da habilitação dos valores. Isso alarga a noção de contrato fiduciário,
61
assinalando que a habilitação dos valores figurativos não se dá em uma única direção quando
se considera a instabilidade e reversibilidade da relação entre o sujeito que percebe e o objeto
percebido.
Subjacente à veridicção, a habilitação dos valores institui um espaço fiduciário que
assegura as múltiplas possibilidades de apreensão e de interpretação daquilo que as isotopias
figurativas sugerem - “efeitos de realidade, mas também de surrealidade ou de irrealidade”
(BERTRAND, 1996). Por essa razão, o estudo da figuratividade pressupõe o exame das
condições da função figurativa: importa não apenas o significado apresentado pelas figuras,
mas o como ele foi construído, como se chegou lá.
O semioticista leva-nos a pensar o espaço fiduciário como um espaço semiótico
próprio, na dinâmica sujeito-objeto, não mais unidirecional na geração e fixação de valores,
mas intercambiável, instável e reversível, que está na base da nova concepção de
figuratividade que se tenta construir a partir de De l’imperfection (GREIMAS, 2002)
Podemos pensar, então, o espaço fiduciário nos textos jornalísticos como um
espaço semiótico
onde se realiza a articulação entre a cena do ato sensível, essa capa de
sentido que recobre as coisas na apercepção, e a colocação em discurso das
figuras que nele atestam sua presença, num movimento de constituição
recíproca e incerta do sujeito e do objeto da percepção que, no âmago do ato,
se solidarizam e se fundem ou ao contrário se desligam e se de-solidarizam
(
BERTRAND, 1996, p. 47).
Essas reflexões possibilitam examinar as “escolhas” enunciativas do discurso
(temas e figuras) a partir do espaço das latências, das virtualidades, que atuam na fixação dos
valores resultantes da relação entre os sujeitos que percebem e os objetos percebidos,
acenando-lhes com múltiplas direções e percursos que vão da adesão à rejeição nas relações
entre o inteligível e o sensível. Trata-se de examinar os procedimentos de figurativização
mais próximos do ato sensível, anterior à leitura socializada, que persegue as virtualidades do
que está estabelecido no sistema do visível e do legível, instância “onde se esboça, nas bordas
do indizível, a forma primeira do sentido”. (BERTRAND, 1996).
Se para os estudos semióticos da atualidade não interessa apenas explicar as
relações entre sujeito e objeto, mas entre sujeitos, isso nos leva a investigações que incidem,
não apenas sobre a ação do homem no mundo, mas especialmente sobre as condições para
isso. São investigações que, segundo Fiorin (2000), incidem mais sobre a manipulação. Em
outras palavras, dizemos que o sujeito só pode realizar a ação, movido pelo querer e/ou dever,
62
saber e poder fazer. Nesse interesse da Semiótica pela “competência modal” do sujeito, que
pode realizar tais ações, ela passa a oferecer um olhar mais aguçado sobre o que acima nos
referimos como “agentes” da produção do discurso jornalístico: sujeitos da/na enunciação no
jornal. Podemos observar, por exemplo, que para se realizar uma determinada ação, é preciso
que haja a competência modal do sujeito: querer, dever, saber, poder.
A partir dos estudos de Fontanille (1998, 2001) podemos afirmar que se passa a
ver a importância de um sujeito que percebe, mas que também sente. Um sujeito que instaura
o campo de presença, cuja apreensão caracteriza-se pela posição e quantidade da presença na
extensão do campo perceptivo, conforme abordamos no item O sujeito para a semiótica.
Podemos notar que, da perspectiva da semiótica francesa, a enunciação deve ser
interpretada a partir das estruturas narrativas e modais que possibilitam reconhecer “os
lugares movediços e instáveis, manifestados ou ocultos que ocupam os sujeitos da
comunicação” (BERTRAND, 2003, p. 96).
Ao estendermos, por conseguinte, a possibilidade de análise do sujeito da
enunciação em termos semionarrativos, a semiótica – lembra ainda Bertrand (2003, p. 99) –
concebe a enunciação como uma ação regida por um contrato. Sobre os postulados do
contrato enunciativo já nos referimos. Vale destacar a importância das considerações sobre o
caráter manipulatório da atividade enunciativa, para investigar o fazer persuasivo do
enunciador no/do jornal e o fazer interpretativo do enunciatário. Embora o contrato de
veridicção no discurso jornalístico se assente sobre os resultados do fazer cognitivo, ele é de
natureza fiduciária, isto é, relaciona-se à modalidade do crer.
Existem “sujeitos virtuais, os que querem e/ou devem fazer, sujeitos atualizados,
os que sabem e podem fazer; sujeitos realizados, os que fazem.”(FIORIN, 2000, p. 174). Ao
comentar que, apesar de o estudo das modalizações ainda estar muito ligado à ação, ele
permite passar para uma “concepção de narrativa como uma sucessão de estabelecimentos e
rupturas de contratos”. Sustentando-se em Greimas, afirma Fiorin (2000, p. 177) que “a
organização da intersubjetividade é articulada por meio de estruturas polêmicas e
contratuais”. Essa afirmação leva-nos a reconhecer que examinar a estrutura jornalística é
estar diante de aspectos contratuais da constituição do jornal impresso; da estrutura polêmica
do contexto sócio-histórico; e, sobretudo, diante de sujeitos nesse/desse processo. No estudo
da manipulação, vemos também um caminho a seguir e que nos permite alcançar o sujeito e,
aí desvelar os efeitos de sentido a que nos propomos.
63
Já citado, retomamos Fiorin (2000) em suas considerações que dão destaque ao
estudo da modalização do sujeito. Isso permite estabelecer tipologias de culturas, dar
representações mais adequadas da aplicação dos códigos sociais de caráter normativo. O autor
deixa muito claro que, a partir dos efeitos de sentido de qualificações modais que alteram o
sujeito de estado, também se pode chegar a significações. Sustentando-se pela teoria
greimasiana, coloca-nos diante da paixão, que segundo ele - “é vista como um arranjo das
modalidades do ser, sejam elas compatíveis ou incompatíveis” (p. 177), esclarecendo que “os
arranjos modais que têm um efeito de sentido passional são determinados pela cultura”.
Em termos práticos, reconhecemos que, ao observar as instabilidades passionais de
sujeitos e a oscilação entre valores “fóricos”, se torna possível lançar um olhar mais atento
para a presença sensível do ser envolvido no processo da enunciação jornalística. Na
realidade é no processo enunciativo que se iniciam as escolhas dos valores, por aquele que é
responsável pelo ato discursivo. Pesquisas recentes das modulações tensivas (ligadas à
percepção) e fóricas (ligadas ao sentimento), desenvolvidas pela semiótica tensiva, na qual o
enunciador surge como um “lugar de intersecção e arbitragem entre tempo e espaço”
(FONTANILLE, ZILBERBERG, 2001, p. 174), possibilitam convocar um universo de
valores, que tantas vezes só emergem a partir da observação dos estados passionais na
enunciação. Positivos ou negativos, eufóricos ou disfóricos, os elementos significantes
transitam por um espaço tensivo cuja modulação vem estabelecida pela expressão fórica de
uma instância enunciativa. Para definição de “foria”, recorremos a Tatit (2001, p. 19): “uma
espécie de proto-sintaxe, decorrente da presença sensível do homem (categorizada como um
enunciador universal), que determina, em termos sumários, que algo acontece (em distensão)
ou deixa de acontecer”.
Indiscutivelmente não há como negar que a cultura organiza os arranjos modais.
Assim, não se colocam apenas as relações entre os sujeitos. Pode haver, como afirma Fiorin
(2000, p. 174), sujeitos coagidos, que devem realizar uma ação; sujeitos que afrontam o
sistema, que devem, mas não querem; sujeitos que querem e/ou devem, mas não podem, e
assim por diante.
O aprofundamento das pesquisas relativas à dimensão da subjetividade, levou os
semioticistas a concluírem que os sujeitos em situação de comunicação não são neutros, mas
dotados de uma competência modal variável. Discursivamente, não existe sujeito auto-
suficiente, origem de seu dizer ou inteiramente determinado. Existe um espaço da
subjetividade onde jogam os mecanismos discursivos da relação com a alteridade.
64
Considerando o sujeito como dividido e o discurso como algo que significa pela história, são
caras para analisar a materialidade discursiva as marcas que apontam para uma
desestruturação do discurso, para a perda de controle do sentido pelo sujeito.
Ao afirmar que as estruturas formais do texto devem estar relacionadas com a
enunciação, Bertrand (2003, p. 31) põe-nos diante do papel do sujeito da interlocução no
discurso jornalístico, enunciatário-leitor, a quem cabe a competência de rastrear marcas, os
alicerces da constituição da subjetividade, da ideologia, da ligação com a história, enfim,
como toma forma o contexto social:
As estruturas [...] deveriam estar relacionadas com o sujeito, mas elas fazem
parte agora de uma enunciação enfraquecida, do murmúrio impessoal dos
discursos que milhões de falas engendraram, retomadas, repisadas: a
fraseologia, as expressões fixas, os estereótipos, esses blocos pré-fabricados
e ‘pré-moldados’de discursos atestam a impessoalidade da enunciação. E à
sedimentação, produto cultural dessa práxis enunciativa, respondem a
inovação e ruptura, a abertura da língua, por enunciações singulares e
inéditas, criadoras de leitores novos [...].
Conforme abordamos no espaço das discussões teóricas da semiótica, a
intensidade e a extensidade constituem o ato perceptivo explicitando, dessa forma, os
mecanismos que fundam a unidade do objeto focalizado e que também são responsáveis pela
constituição do valor (FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001). Como resultante de uma
relação perceptiva, assim as categorias do discurso são pensadas, passando do sujeito que
sente e percebe, para o sujeito cognitivo.
Tendo em vista essas afirmações, preocupa-nos o perigo de restringir a observação
do sujeito, na ótica tensiva, a questões afetivas: incompletude, falta, inquietude, dispersão.
Nesse aspecto, vemos nas palavras de Bertrand (acima citadas) uma espécie de tábua de
salvação, possibilitando a passagem para uma outra margem dos estudos do discurso e aí
entretecer os conceitos, contidos em suas próprias afirmações.
De acordo com o semioticista, o “imenso corpo das enunciações coletivas”
(BERTRAND, 2003) precedem a enunciação individual e a tornam possível. Suas afirmações
remetem à espessura cultural do sentido sob as quais se abrigam etiquetas como “formações
discursivas”, “interdiscurso”, “memória discursiva”.
Para tratar do texto jornalístico, seria lícito falar de coerção social? Se admitimos
que ele é regido por uma ordem de coisas como um contrato que alguém assina pelo outro,
seria lícito falar em rompimento numa relação de transmissão e recebimento da significação?
65
Ao afirmamos que é preciso reconhecer a importância do sujeito na enunciação
jornalística, reconhecemos aí as instâncias que se instalam na cena enunciada, subjacentes à
discursivização de temas e figuras, pelo trabalho de um “eu”. Marcado por uma tensividade
fórica, trata-se de reconhecer as precondições da significação que Greimas e Fontanille (1993)
reconhecem ser conveniente imaginar como um patamar de “pré-sentimento”, em que se
encontrariam, intimamente ligados um ao outro, o sujeito para o mundo e o mundo para o
sujeito (o da tensividade fórica). Como atores da enunciação jornalística,
enunciador/jornalista e enunciatário/leitor do jornal são colocados em circulação pela mídia
impressa. Por se tratar de seres de linguagem criados em cada texto, não podem ser vistos a
não ser como imagens produzidas pelo discurso, que assim vão produzindo os discursos.
Caberia perguntar, então, quanto a tão propalada “objetividade” no texto
jornalístico: como tratá-la no processo dinâmico da enunciação da mídia impressa?
Para responder a essa pergunta bem que gostaríamos de acreditar na existência de
uma teoria que oferecesse uma taxionomia de valores sociais, que se constituísse num arsenal
de onde pudéssemos ir procedendo às leituras das significações do signo “terra”.
Na realidade, não basta uma teoria que nos leve, obviamente, pelo dialogismo, a
encontrar um estoque semântico e que, no reconhecimento da heterogeneidade constitutiva,
possibilitar a identificação e reencontrar ocorrências intradiscursivamente em cada texto
jornalístico analisado. Esse trabalho de reconhecimento de um universo, quer seja da cultura
de uma sociedade geral ou de um grupo social em particular, exige procedimentos que
possibilitem assistir ao processo da construção discursiva, em que se possa relacionar
manifestações gerais e particulares, intercambiáveis, instáveis e reversíveis a cada
enunciação. Nesse sentido, uma das preocupações deve ser a de observar as relações entre
diferentes discursos, reconhecendo que cada discurso enunciado tem sentido quando inserido
no quadro mais amplo do dialogismo, que o prende constitutivamente a todos os outros
discursos pertencentes à mesma “formação discursiva” (MAINGUENEAU, 1993). Mas,
associá-lo ao quadro de dizeres a que se filia, não se desgrudando de dizeres que o precedem,
pode não ser o bastante nessa tarefa de perseguir a temática da terra nos jornais.
Ora, a cada nova enunciação, abrem-se novas possibilidades para a construção de
efeitos de sentido. Acreditamos que, no percurso do sujeito, pode-se viabilizar um trânsito
possível para encontrar trilhas e aí, na explicitação de representações ideológicas - processo
dialético que diz respeito ao contrato de veridicção estabelecido nos registros jornalísticos - ,
apreender os efeitos de sentido em questão. A partir de simulacros que determinam as
66
“escolhas” dos sujeitos de enunciação, independentemente ou não de sua vontade, a tentativa
será sempre a de atingir a temática das questões agrárias no Pontal do Paranapanema.
Destacamos, sim, a importância do sujeito, mas nossas considerações não perdem
de vista a certeza de que cada enunciação não nasce do acaso. Isso significa acolher na análise
tanto a representação de cada sujeito em seu ato enunciativo como considerar todas as
enunciações - cujas construções textuais estejam ou não explicitadas – e, sobre as quais a
matéria jornalística opera: retalhos da história de toda uma coletividade ou de indivíduos,
considerados em suas particularidades, que se vão cerzindo a cada prática jornalística, a cada
novo objeto semiótico construído pela mídia impressa.
Nessa perspectiva, reconhecemos que, a cada investimento de sentido, o texto do
jornal sofre as coerções advindas do universo ideológico. Cabe aqui, então, perguntar que
lugar ficaria reservado ao leitor, quando lhe chega, diante de seu olhar, um texto jornalístico
processado na saturação figurativa de investimentos ideológicos? Poderia buscar um percurso
de destruição dos valores aí depositados, já investidos no objeto? Se considerarmos uma
notícia como exemplo de objeto semiótico hipertrofiado de sentidos, do já pronto, por
suposição, tal objeto permitiria (ao enunciatário/leitor) a negação dos valores aí colocados,
visando à afirmação de valores novos? Esse trânsito na polaridade enunciador/enunciatário
ajudaria a detectar, detrás das grandezas expressas nos textos jornalísticos, os efeitos de
sentido de terra aí manifestados? Isso é o que pretendemos.
Considerando a ideologia não como ocultação, mas função necessária entre
linguagem e mundo, como lugar da realização do materialismo histórico e articulada com o
sujeito do inconsciente (já que a ideologia trabalha no inconsciente), vamos buscar tais
respostas na semiótica, pelo reconhecimento dos mecanismos de debreagem/embreagem, de
focalização/ocultação, etc., subjacentes à discursivização de temas e figuras. No estoque de
figuras lexemáticas e de seus percursos figurativos está o imaginário cultural de uma região,
de uma sociedade, esse universo axiológico (coletivo ou individual) que todo enunciador
convoca em seu enunciado. Assim fica evidenciado que o discurso jornalístico sobre a terra
deve ser visto como uma organização discursivo-textual de uma manifestação de um conjunto
mais vasto, e como um rearranjo de sujeitos (enunciador/enunciatário) que busca nas
estruturas sêmio-narrativas e em repertórios disponíveis no mundo da cultura, pressupondo
não apenas conhecimentos partilhados, mas também pontos de vista, valores pessoais ou
cultural e socialmente comungados ou, ainda, constitutivos de uma memória coletiva.
67
Considerando-se as questões agrárias a serem lidas no corpus desta pesquisa, a
partir de conceitos teórico-metodológicos da práxis enunciativa que nos dêem visibilidade
para olhar analiticamente a significação da terra construída nos discursos jornalísticos de O
Imparcial e Oeste Notícias, acreditamos ser necessário aproximarmo-nos de um contexto
mais amplo, de forma a abarcar os discursos produzidos nesses dois jornais diários do Pontal
do Paranapanema, para que tal inserção conduza à compreensão de sentidos.
Tendo em vista alargar nosso olhar no horizonte dessas discussões, passemos para
o campo da comunicação. Sempre com a lupa sobre os simulacros do enunciador e do leitor
construídos pelo texto jornalístico, continuemos nossas investigações.
68
CAPÍTULO 2
A COMUNICAÇÃO VERBAL NO JORNALISMO IMPRESSO: SUBJETIVIDADE
VERSUS OBJETIVIDADE
Falo muito no 'idiota da objetividade'. Ele é justamente
quem vive dos fatos, depende dos fatos, morreria
afogado sem os fatos.
E, se alguém me diz que os fatos não são bem assim
como eu conto, respondo: pior para os fatos (Nelson
Rodrigues)
Na área da comunicação, tratar de subjetividade é reconhecer o lugar do receptor,
que sempre esbarra nas indagações sobre a relação de predomínio do emissor. De fato, essa é
a idéia que primeiro desponta quando se trata de sujeitos na comunicação jornalística, a
sugerir uma relação básica de poder em que geralmente se evidencia a associação entre
passividade e receptor.
A questão do sujeito da recepção em comunicação não é nova e vem sendo
pesquisada há décadas, especialmente no que se refere às relações entre os veículos de
comunicação e o receptor. Não se trata aqui de um exame desses estudos para assinalar a
intensidade com que as questões do receptor em comunicação ainda marcam as práticas e
pesquisas mais recentes. Ora, o papel da subjetividade como instrumento de conhecimento é
cada vez mais colocado como prioridade nos estudos da comunicação. Mesmo que a
comunicação se reduzisse a seus veículos, ter-se-ia no caso que “Os meios não são lugar de
confrontação de argumentos, mas lugar de simbolização de uma sociedade. Toda coletividade
tem necessidade de um lugar para construir sua imagem [...] razão e identidade, objetividade e
subjetividade” (SOUSA, 1995).
Ao termo subjetividade, conforme citação do autor supracitado, contrapõe-se a
palavra-chave “objetividade”, desencadeadora de discussões no contexto jornalístico. Vista
como o principal traço do jornalismo desde os anos de 1950, ou pelo menos como meta a ser
69
alcançada, chega à década de 1990 com seu prestígio fortemente abalado, tanto na academia
como na prática jornalística. No entanto é ainda foco de discussão, como a que remete à
pergunta: - É possível a objetividade na mídia impressa?
Se o capítulo anterior sustentou-se pelas reflexões sobre a subjetividade, trazemos
agora para discussão a noção de “objetividade”. Inteiramente revisado e superado, ao
contrário de qualquer noção que remeta à “isenção” ou “imparcialidade”, o conceito de
objetividade continua na pauta, seja qual for a noção que implicite. Uma das razões para isto é
provavelmente o fato de a tarefa principal do jornalismo ser a de informar. Parte-se do
pressuposto de que o que está nos jornais deve ter alguma coisa a ver com aquilo que de fato
aconteceu. Objetividade – entendida como a relação entre realidade social e realidade
midiática – é uma condição sine qua non para a mediação de informações. Se não é possível
estabelecer uma relação entre ambas as realidades, não é possível transmitir informações.
Sabemos que a objetividade jornalística no Brasil foi uma herança do jornalismo
norte-americano, fazendo escola ao ensinar que repórter não pensa e não sente, que ele conta
o que viu e relata a verdade dos fatos. Obviamente é uma discussão superada, já que,
contrariamente, se entende que todo repórter pensa, sente e, assim é que constrói o fato
jornalístico. O que relata é uma representação (versão, recorte) da realidade que tem um sem-
número de outros fatos encadeados como precedentes e como conseqüentes.
Muitos são os enfoques em torno das questões sobre a objetividade jornalística,
vistas, muitas vezes como inócuas e desnecessárias, entendendo muitos que se trata de
temática exaurida. No entanto, vamos desenvolvê-la a fim de buscar razões e argumentos na
tentativa de ampliar a questão sobre a enunciação jornalística. Partimos do contexto de
estudos da comunicação, a fim de uma abordagem para a concepção das dimensões ideológica
e subjetiva, constitutivas do discurso jornalístico. Queremos chamar a atenção sobre o
conceito de objetividade com vistas ao fato de que estudos e pesquisas em comunicação
lançam mão desse conceito para constituir seu arcabouço e trabalhar as relações entre os
sujeitos e os veículos de comunicação. Convém destacarmos que a reflexão em torno dessa
questão é resultante de diversas leituras da área da comunicação, que insistimos focalizar
neste espaço, numa abordagem bastante extensa. A discussão culmina com a retomada dos
estudos semióticos, no final deste capítulo, tendo em vista a preocupação de sinalizar
percursos no trato da temática sobre a terra no texto jornalístico.
Embora cada vez mais questionado, os próprios estudiosos da comunicação
afirmam que o discurso da objetividade continua persistente e vigoroso. Assim se pronuncia
70
Chaparro (1998):
Nas escolas, continua a ensinar-se, como ‘verdade’, e a usar-se, como matriz
teórica, a divisão dos gêneros jornalísticos em classes de ‘Opinião’ e
‘Informação’. Nas redações, mais acentuadamente nas dos meios impressos,
a teoria se reproduz em um jargão cultural que ‘divide’ o espaço ‘em
páginas de opinião’ e ‘páginas de informação’. Com o tempo, a crença
ganhou viés moralista, gerando um certo ‘marketing de pureza informativa’,
em slogans do tipo ‘neste jornal, opinião e informação não se misturam’,
significando o seguinte: ‘podem confiar nas nossas notícias, porque elas não
estão contaminadas pela opinião’(CHAPARRO,1998, p. 17).
O autor explica que o discurso da objetividade se tratava de uma fraude conceitual
que tem raiz de três séculos e se originou das idéias do jornalista Samuel Buckley, que
acreditava que as informações não deveriam ser ‘contaminadas’ pela análise ou pela opinião,
por pensar que os leitores eram capazes de refletir por eles próprios.
A conclusão a que chega Chaparro (1998) é que Buckley, na realidade, nada mais
fez do que incorporar ao jornalismo as artes e técnicas da narração, como esquema eficaz para
relatar fatos, ou seja, para noticiar, não separando a opinião da informação. E, conforme
afirma o estudioso português “não há como isolar o componente objetividade no processo
criativo de noticiar”. (p.17).
Pela teoria semiótica, o fazer midiático de todo jornal é persuadir o sujeito para
que ele queira ou deva entrar em conjunção com o objeto valor: informações sobre uma dada
realidade. Para isso, entra em ação um destinador que manipula um destinatário para que
queira entrar em conjunção com os saberes construídos pelo veículo midiático. O leitor do
jornal (o destinatário), discursivizado como leitor fiel, entra em consonância com o
destinador.
Nesse sentido, a figura do jornalista, quer se trate da voz da empresa ou do próprio
jornalista, deve ser vista como a que constrói o enunciado. Forma-se assim uma parceria, que
pressupõe uma indiscutível reciprocidade. Enunciador e enunciatário (jornalista e leitor)
constituem atores que partilham um mesmo saber, construído pela empresa jornalística, de
acordo com o que se estabelece por meio de normas que regem projetos das ações
linguageiras.
Em consonância com essas afirmações, com a finalidade de conduzir a voz de cada
jornal, existem os projetos editoriais, que visam a estabelecer parâmetros conforme as práticas
codificadas por seus discursos, para levar os sujeitos envolvidos em tal processo a serem
obedientes a um percurso interpretativo.
71
Pois bem, para tratar de subjetividade/objetividade, tema deste capítulo, muitas são
as discussões que poderiam emergir. Uma delas sobre a inter-relação entre os discursos da
ficção, da história e da imprensa jornalística, ricas para polêmicas, inegavelmente frutíferas.
No entanto, não nos interessam para analisar o corpus. Propomos trazer à tona a
especificidade da noção de subjetividade e objetividade para dimensionar os diferentes
graus desses dois aspectos nos textos jornalísticos em exame. Não importa se tomarmos uma
narrativa literária de ficção ou um relato jornalístico, devemos dizer que não está em questão
o ficcional ou o “real” histórico.
Em A cidade e as serras, José Fernandes, personagem de Eça de Queiroz, visita
em Paris Jacinto de Tormes, amigo rico e atualizado com a tecnologia da época. O anfitrião
estava ao telefone quando,
[...] duma redoma de vidro posta numa coluna e contendo um aparelho
esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma tênia, a longa tira de
papel com caracteres impressos que eu, homem das serras, apanhei,
maravilhado A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a
fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria. Já ele abandonava o
telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava diretamente aquela avaria
da Azoff. - Da Azoff?... A avaria? A mim? Não! É uma notícia. (QUEIROZ,
1950, p.26).
Essa passagem do romance de Eça de Queiroz coloca-nos diante da
impossibilidade de confundir as duas realidades: o real da língua e o real da história. A
linguagem como transparência de uma realidade, leva a ver os fatos da língua como se fossem
fatos fenomênicos. Quando estamos diante da linguagem jornalística, considerada por sua
característica de desvelar os fatos sem mediação, como capaz de mimetizar o real, instala-se
uma certa confusão entre esses dois universos: o lingüístico e o do mundo que nos cerca. Ora,
o real constituído por uma materialidade lingüística, nesse caso, a notícia, em sua
particularidade enquanto texto jornalístico, instalado num jornal, deve ser entendido
unicamente como construção de sentidos.
A notícia é um texto, uma elaboração discursiva, que fala de fatos. De acordo com
o senso comum, a notícia objetiva é aquela que está em conformidade com o fato de que trata.
No entanto, não se pode perder de vista, conseqüentemente, que, sendo texto/discurso, não é o
próprio fato.
Sem dúvida que o alto grau de elaboração dos textos jornalísticos remete seu leitor
a uma concepção de verdade indiscutível. Voltamos a insistir, no entanto, considerando
qualquer gênero textual, o que nos interessa é tão somente a realidade de palavras. Assim, o
72
caminho a ser percorrido é o da interpretação. Na medida em que o sentido pressupõe um
destino interpretativo, a questão é trazer para o seu centro aquele que pratica essa ação: o
sujeito.
É tratar da presença, mas também da ausência: subjetividade e objetividade,
presença/ausência do “eu” quanto à materialidade de um gênero com as especificidades do
jornalístico, cuja linguagem era considerada informativa, imparcial e até mesmo neutra (pois
o pressuposto é que deveria ser), avessa à ambigüidade (característica, por exemplo, da
linguagem poética). Atuando segundo estratégias, configura-se o gênero jornalístico como
uma cadeia de recursos expressivos, na insistência em se desvincular de uma antiga tradição
de que só nos jornais tendenciosos, os desvios de linguagem eram tidos como desvios,
contaminações nefastas e ideologicamente localizáveis.
A construção do discurso jornalístico revelou-se como um caminho no sentido de
descrever e interpretar determinados aspectos ligados à Comunicação Social, para o devido
tratamento à materialidade de seus discursos. Um campo, assim como a lingüística, com
especificidades e aspectos que convergem para a manifestação discursiva. Uma tarefa que
demandaria um tempo muito além do que dispomos para este empreendimento. É, então,
diante de nossas limitações que circunscrevemos nossas atividades a algumas incursões
rápidas no campo desses estudos, sempre direcionadas a buscar na instância de enunciação
um suporte de leitura para os textos-objeto de nossas análises.
Tão abrangentes quanto complexas são as investigações em um campo que põe em
ação a linguagem e seus produtos – os discursos – que refratam o ser e o parecer dos homens
e as relações em sociedade. Nas suas múltiplas articulações, pode até parecer paradoxal, mas
cada vez mais se desviam de uma simples função dialógica entre falante e ouvinte, mesmo em
tempos de “comunicação”, quando modernas tecnologias das indústrias culturais, fabricantes
de simulacros perfeitos do diálogo emissor/receptor, com discursos monológicos, que criam
ilusão perfeita de inter-relação face a face.
De acordo com o senso comum, há uma certa confiança nos veículos de
comunicação, especialmente na mídia impressa. Sempre se busca no jornal um saber sobre o
mundo. Na banca da esquina, nos consultórios, em qualquer sala de espera, comprado ou
vindo às mãos de qualquer cidadão que compulsoriamente o lê no pacote de uma compra, no
revestimento de uma parede ou piso, escorrem os textos jornalísticos, a invadir a retina do
leitor. Um conhecimento que se propaga em discursos, alimentando uns, constituindo outros,
que se proliferam no cotidiano de todas as comunidades. Mesmo na sua efemeridade, lá vão
73
os jornais para os acervos para guardar saberes sobre o mundo. Dessa maneira, no presente ou
no futuro, os discursos jornalísticos vão constituindo uma fonte de informação. Se o discurso
do historiador está comprometido com a reflexão científica, o do jornalista tem a preocupação
de tornar possível a comunicação, pela linguagem que promove a inscrição do indivíduo na
sociedade, permeando todas as relações sociais.
O contato com textos de um dos estudiosos bastante citados atualmente nas
análises dos meios de comunicação, Mouillaud (1997) foi desencadeadora para reflexões
sobre o texto jornalístico impresso, levando-nos a leituras de outros autores, que conduzem as
considerações teóricas neste capítulo. Grande parte das informações provêm de sua obra O
Jornal - da forma ao sentido, de onde retiramos informações preciosas para nos
debruçarmos sobre o discurso da mídia impressa, vislumbrando um horizonte para interpretar
e compreender o jornal. Não queremos realizar uma panorâmica de seus trabalhos, muitos
deles até mesmo seriam suficientes para levar nossas reflexões a bom termo, considerando
que a leitura minuciosa de alguns tópicos possibilita relações com as questões aqui discutidas.
No entanto, na medida do possível vamos buscando outros autores. Considerando o conceito
de notícia, por exemplo, mostrou-se a necessidade de uma focalização histórica do jornalismo
impresso. Convém esclarecer que as leituras visam sempre a uma visibilidade mais dilatada
do nosso objeto, para um olhar menos obtuso, a fim de enxergar na materialidade do texto
jornalístico os efeitos de sentido pretendidos.
Focalizar como tema de trabalho A linguagem jornalística implica abranger uma
extensa área do conhecimento, penetrando no campo da comunicação, que se constitui a partir
da multiplicidade de discursos. Ela constrói-se em variadas tramas, aspecto incondicional de
gêneros e linguagens cujo paradigma é atingir o ideal de objetividade. Nesse aspecto, são
desconsiderados os textos que não estejam eivados nesse ideal, por fuga ao paradigma da
pretensa objetividade, segundo o qual se classificam em “tendenciosos” para os jornalistas e,
“maus” para os jornais.
Como quer que seja, efeitos de sentido de subjetividade ou de objetividade,
importa-nos pensar na produção, na acumulação e distribuição desses objetos semióticos que
têm o homem como sujeito, ser social, que o constrói e a que visa atingir. Pensar, sobretudo, o
fundamento maior, que é a linguagem humana, construindo os discursos não como “aerólito
miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe”
(PÊCHEUX, 1997, p. 56). Pensar, especialmente, um discurso que não está solto no espaço;
por estar envolvido em dispositivos que não são simples entidades técnicas, estranhas ao
74
sentido.
Ora, sabemos que o sentido não está deitado no leito da língua. Isso nos obriga a
procurá-lo nos dispositivos - lugares onde se inscrevem, necessariamente, no espaço de um
determinado jornal, na página, no contexto articulador de relações do sentido. Mouillaud
(1997) diz que os dispositivos têm uma forma particular para estruturar o tempo e o espaço,
que não deve ser visto como “suporte”, mas como uma “matriz” que impõe suas formas aos
textos e que inscreve o jornal no dispositivo geral da informação (o sistema de títulos, por
exemplo). Assim, o dispositivo é indissociável do sentido.
Repleta de eventos imprevistos e incontroláveis, a vida cotidiana exige que
organizemos nossas falas em estruturas lógicas, de modo a equacionarmos nossa experiência
nessa estrutura que chamamos “mundo social”, envolvendo entendimentos e
desentendimentos.
De par com essas inquietações, parecemos estar diante da alegoria da Torre de
Babel, que se nos apresenta para decifração, sempre à espreita de tudo o que significa num
mundo construído por linguagens que nos fogem ao controle imediato e sensível.
Dentre o universo das linguagens, a jornalística, como uma prática dos meios de
comunicação de massa, deve ser entendida como “construção social da realidade”. Como
construção, situa-se, evidentemente, na esfera de realidade da vida cotidiana, espaço onde
ocorrem os processos de institucionalização das práticas e dos papéis sociais. A realidade
constitui-se como processo socialmente determinado e intersubjetivamente construído
(LUCKMANN; BERGER, 1995). Nesse quadro, a atividade jornalística pode ser entendida
como tendo um “papel socialmente legitimado para produzir construções da realidade que são
publicamente relevantes” (ALSINA, 1996, p. 18), ou seja, ao jornalista é delegada a
competência para recolher os acontecimentos e temas importantes e atribuir-lhes sentido,
firmando, com a sociedade, um “acordo de cavalheiros”, “contrato fiduciário” social e
historicamente definido. Embora esse processo de construção social dependa dos conteúdos e
da prática discursiva do jornalismo, deve-se ficar atento para não incorrer no erro de imaginar
essa construção sem a participação ativa dos receptores, nas diversas interações em que os
indivíduos tomam parte na realidade da vida cotidiana. Colocada em circulação pelas mídias,
a notícia é uma realidade social fabricada pela linguagem; não mais que uma das realidades
que os indivíduos constroem cotidianamente.
Há algumas décadas, admitia-se que o conhecimento da realidade era apreendido
objetivamente, sem interferência da experiência individual do observador, como se o mundo
75
pudesse ser entendido como uma realidade, ontologicamente dada, isto é, exterior à
subjetividade. Esse modelo já foi superado por teorias atuais, em que a objetividade nada
mais é do que um produto social intersubjetivo (LUCKMANN; BERGER, 1995).
Desvencilhando-se da feição persuasiva e panfletária, tão útil à defesa e à
consolidação dos ideais burgueses, desde o século XIX, os jornais passam a assumir
definitivamente o caráter de empreendimento comercial, cujo principal produto é a notícia. A
informação de atualidade torna-se mercadoria, de acordo com a mentalidade econômico-
mercantil que se sobrepôs à lógica político-ideológica, predominante até então, para apostar
na separação radical entre fatos e opiniões, privilegiando aqueles em detrimento destas.
Para legitimarem sua mercadoria como confiável perante os consumidores, as
empresas jornalísticas inauguram um novo modelo de notícia pautado numa suposta
imparcialidade e num pretenso equilíbrio. A primeira atribuiria ao produto jornalístico a idéia
de isenção e de esforço no sentido de não tomar partido; o segundo insinuaria a intenção de
promover o pluralismo e a integração de interesses. Impulsionadas pelo Positivismo, que
marcou aquele período, e inspiradas no estilo funcional das agências de notícias, bem como
no realismo fotográfico, ambas as noções evoluem, nos anos 20 e 30, para o conceito de
objetividade. Além do culto aos fatos, o jornalismo deveria assumir a tarefa de reproduzir
fielmente a realidade, por meio do testemunho desapaixonado, sem preconceitos e livre de
sentimentalismos. Para isso, seria ressaltada a dicotomia maniqueísta entre objetividade e
subjetividade, ao mesmo tempo em que concepções como rigor, exatidão e honestidade
passariam a ser evocadas e, em tese, incorporadas ao trabalho cotidiano de fabricar notícias.
A adoção do conceito de objetividade evidencia um novo estatuto para o
jornalismo, no qual ele reivindica para si a condição de mediador, atuando como
intermediário fidedigno entre os fatos reais e o público, e também a função de quarto poder,
em que assume a responsabilidade e o dever de agir em defesa da emergente opinião pública.
Segundo Baudrillard (s/d), a idéia da objetividade como parâmetro para a prática jornalística
ampara-se, em pelo menos três frágeis formulações. A de que os jornalistas e os veículos de
comunicação seriam observadores independentes; de que a verdade dependeria da
neutralidade do jornalista; e, a última, a de que o meio, quando utilizado corretamente, seria
neutro. Apesar disso, o ideal da objetividade não deve ser visto apenas como uma autêntica
confissão de fé na realidade objetiva. Precisa ser encarado, antes, como um método que serviu
de resposta a uma conjuntura na qual nem mesmo os fatos eram dignos de confiança,
sobretudo em função do surgimento das relações públicas e da eficácia da propaganda,
76
verificada já durante a Primeira Guerra. (BAUDRILLARD, s/d).
O surgimento da imprensa informativa e da ideologia da objetividade inspira o
primeiro conjunto de princípios fundamentais voltados para o jornalismo. Ainda no século
XIX, a partir de conceitos que sustentam a teoria do espelho, concebe a atividade jornalística
como simples reflexo da realidade em que o jornalista não passa de um observador passivo e
transmissor fiel dos fatos; e a notícia, pura emersão de acontecimentos do mundo real. Seus
preceitos comportam uma analogia com os da chamada teoria hipodérmica, preponderante nos
estudos iniciais acerca dos efeitos da mídia e cujas interpretações do fenômeno
comunicacional estiveram sedimentadas sobre um relativo simplismo. Fortemente ligada ao
behaviorismo, essa visão encarava o comportamento do indivíduo como resposta
hipodermicamente provocada por um estímulo, tal qual as notícias refletiriam os fatos reais
(MEDINA, 1973).
Ao longo de seu desenvolvimento, o padrão da objetividade, pelo menos em sua
versão genuína, vai-se diluindo. Segundo Traquina (1993) alguns fatores acabaram por
revelar a debilidade do paradigma. Por um lado, este desvelamento ocorreu no âmbito da
própria prática jornalística, com a evolução dos meios de comunicação, em especial os
audiovisuais; com o surgimento do jornalismo interpretativo, posto em prática,
principalmente, pelas revistas semanais de informação geral; e a crescente conscientização
profissional do jornalista. Por outro, o público também ampliou sua capacidade crítica,
enquanto os estudos teóricos avançaram na compreensão do intrincado campo jornalístico.
Assim, hoje, reconhecem os estudiosos da comunicação jornalística que prevalece
o entendimento de que a objetividade jornalística, tal como foi concebida originalmente, não
passa de um mito, embora também haja concordância em adotá-la como um valor-limite, uma
meta que jamais será plenamente alcançada, mas nem por isso é inválida. Em contrapartida, a
análise teórica progrediu no sentido de mostrar o jornalismo desempenhando um papel que
favorece o fortalecimento de ideologias hegemônicas e a manutenção do status quo, numa
perspectiva inversa à das posições que concebem a prática jornalística como um exercício de
contrapoder. Ao mesmo tempo, multiplicaram-se os estudos cujos enfoques destituem o
jornalismo do pretendido estatuto de mediação, no qual se configura como mero reprodutor da
realidade, para a ele imputar o de construção, em que aparece como agente no processo de
criação do real.
A seqüência de pesquisas conhecida como newsmaking, já no final do século XX,
converge para a conclusão de que as notícias resultam de um conjunto de interações sociais e
77
de uma série de negociações. Integram essa linha de investigações duas teorias: a
organizacional e a construcionista. A primeira enfatiza as pressões e os constrangimentos aos
quais estão submetidos os jornalistas no interior das empresas e avalia as conseqüências disso
em suas ações e nos produtos apresentados ao público. A outra inclui em suas análises a
relevância da cultura profissional – fator, portanto, transorganizacional – e destaca os
procedimentos cotidianos e as práticas rotineiras como determinantes da produção jornalística
(CÁDIMA,1997).
Em franca oposição à teoria do espelho, essa linha de investigações concebe o
jornalista não como mero observador passivo, mas como participante ativo no processo de
construção da realidade; e compreende a notícia como um produto resultante da percepção,
seleção e transformação de uma matéria-prima – os acontecimentos. Por este entendimento,
tanto é verdade que o acontecimento cria a notícia (porque esta se centra no referente), como
é certo que a notícia cria o acontecimento (pois é um produto que não pode desvencilhar-se
das condições de sua própria produção).
Os estudos à luz da teoria construcionista apontam em duas direções
complementares. Num sentido indicam que a condição de existência dos acontecimentos é a
sua construção na mídia. Isto quer dizer que só é reconhecido como existente aquilo que é
construído como realidade pelos produtos midiáticos, do mesmo modo que permanece
privado de existir tudo o que é mantido como invisível pelos meios de comunicação. Por
outro lado, observa-se que a realidade perde, por assim dizer, sua autonomia e passa a se
constituir, pelo menos em parte, em função da mídia, como no caso paradigmático do pseudo-
evento ou simulacro (CEBRIÁN, 1998). Seguindo este raciocínio, não é difícil perceber como
até mesmo a noção de que a realidade serve de referência para a produção jornalística torna-se
diluída na imprecisão de limites entre o que é construído e o que existe de fato ou de forma
autônoma.
Seja como for, é possível compreender o produto jornalístico como resultante de
um processo de construção que decorre de escolhas orientadas pelo pragmatismo do campo
profissional e pelas limitações do ambiente empresarial. Como as organizações são guiadas
por regras impostas pelo mercado, os esforços despendidos precisam estar voltados
fundamentalmente para o alargamento de tiragens e audiências. Desta forma, submete-se o
aprimoramento qualitativo do que é oferecido ao público à melhoria de seu desempenho
comercial.
Tal objetivo mercantilista, porém, não pode ser naturalizado pelo leitor sem, antes,
78
ser submetido às regras do estabelecimento de uma relação polêmica, que permeia todas as
relações em sociedade. São preceitos substitutivos de antigos atributos do jornalismo,
originários de sua concepção como reflexo objetivo do mundo real, por outros mais
pertinentes aos apelos da sociedade capitalista, próprios de seu entendimento como
construção da realidade. Esta providência incide diretamente sobre o conteúdo da informação
posta no mercado, do mesmo modo que condiciona o tratamento a ela dispensado e que não
pode ser desconsiderado pelo leitor.
As discussões sobre a questão da objetividade no discurso jornalístico prendem-se
sempre à veracidade dos fatos e idéias que a imprensa veicula. Não vamos aqui discutir a não
ser a construção linguageira que remete a verdades “de papel”, inseridas em formações
discursivas, em ideologias por onde transita a concepção de verdadeiro e de verossímil. Essas
verdades instauradas na/pela materialidade discursiva exigem um leitor pressuposto.
Nenhuma informação é simplesmente decodificada; ela ganha sentido no (con)texto, isto é, no
que vem antes e no que vem depois no enunciado; nas circunstâncias da enunciação e naquilo
que o receptor guarda na memória - o repertório de suas experiências, valores e
conhecimentos .
As estratégias para instaurar o leitor iniciam-se na própria configuração física do
jornal. Tomamos como nossas as palavras de Beth Brait em um de seus artigos sobre o texto
jornalístico:
[...] um objeto descartável (isomórfico ao seu conteúdo, diriam alguns) [...],
de fácil manuseio, nem colado, nem grampeado, apenas dobrado para ser
manuseado à vontade, mas, ao mesmo tempo, organizado em cadernos
temáticos que facilitam a localização dos assuntos. A diagramação, o
tamanho das letras, a variabilidade de assuntos, e de tratamento a eles
conferido, dão ao leitor a liberdade de transitar (livremente) pelas páginas,
saltando o que não lhe agrada e detendo-se no que mais lhe atrai a atenção
(BRAIT, 1994/1995, p. 19).
Continua a autora, ainda na mesma passagem, a falar sobre o leitor modelo na sua
atividade de (des)construção do texto jornalístico: “implica a idéia de rápida assimilação de
informações que, por isso mesmo, serão dosadas de forma a serem ou não aprofundadas, de
acordo sempre com as previsões de tempo e interesse desse destinatário” (p. 86). Em síntese,
os pressupostos colocados para o leitor giram em torno da facilidade e detalhamento de
informações, variabilidade e dosagem de assuntos e, conseqüentemente, objetividade,
seriedade e respeito à necessidade de conhecimento.
A informação jornalística insere-se, assim, em um quadro complexo, já que parte
79
do pressuposto de que a informação deve reportar-se à realidade - isto é, aos fatos e idéias
situados em seu tempo e espaço. No entanto, não há a menor possibilidade de se
codificar/decodificar simplesmente a realidade objetiva quando se trata de uma realidade de
palavras, fabricada por enunciadores, cuja leitura envolve percepção, portanto seleção,
avaliação, contextualização etc., em que entra a subjetividade do enunciador. Ele é treinado
para suprimi-la sempre que possível, mas é fato que um mesmo incidente será descrito com
diferentes palavras - ou diferentes ordenações de sentenças - por sujeitos de culturas
diferentes, por mais honestos e bem preparados que sejam, já que o percebem de maneira
diferente.
Não estamos concluindo que não existe a objetividade jornalística. Seria o mesmo
que supor que, não é possível obter medidas exatas por mais aperfeiçoados que sejam os
aparelhos para medir, negando modernas tecnologias como a de que nenhum computador
pode processar dados, nenhum robô pode executar tarefa humana e assim por diante. Inegável
que a objetividade no jornalismo traduz-se numa série de técnicas de apuração, redação e
edição na busca de enunciados intimamente adequados à realidade e em sua tradução para
diferentes públicos e veículos. Essa realidade imposta por um alto grau de elaboração
programática do jornal para parecer linguagem transparente dos fatos, como mimetismo do
real, acaba por tornar-se um dos desafios para seus leitores. Não perder de vista o processo
significante desencadeador de um saber comunicado deve ser a bússola de seu leitor, que
participa do jogo de ser e parecer, cujas regras são impostas pelos efeitos de sentido do
acontecimento discursivo. As regras impostas dessa objetividade não podem cegá-lo jamais.
Em se tratando do jornal impresso, é no seu corpo de palavras que o mundo vai
sendo edificado. Cada relato coloca o leitor diante dos acontecimentos, nos mais diversos
lugares, a que, na maioria das vezes, nunca poderia estar presente. Assim, pelos relatos, o
mundo vai sendo editado, sendo trazido até nós. Um mundo redesenhado em trajetos que
passam por incontáveis mediações, quer seja até mesmo pela fala do vizinho, pelo rádio, pela
tevê. Diz Mouillaud (1997, p.25) que “o jornalista não está conectado com ‘fatos’, mas com
‘falas’(fala da testemunha, do especialista, do representante, do operador...)”. Ao que afirma
ser o jornal um “jogo de enunciados” (interferimos nessa afirmação, dizendo que “o jornal é
um jogo de enunciação”). É só caírem na mídia impressa para que os relatos ganhem um
status de verdade.
Ao tratarmos da edição, estamos nos referindo à construção de uma realidade de
linguagem posta em visibilidade. O pôr em visibilidade constitui um ato de ser ou de fazer de
80
enunciadores modalizados pelo poder/dever. De acordo com a teoria semiótica estamos nos
referindo a predicados que sobredeterminam outros predicados. A modalização tem o papel
de exprimir a posição do enunciador em relação àquilo que diz. (FONTANILLE;
ZILBERBERG, 2001). Indica um possível, um duplo sentido das condições do enunciador e
da autorização. Assim, a informação editada é o que é possível e o que é legítimo mostrar,
mas também o que devemos saber, o que está marcado para ser percebido. Impostos à nossa
visão como dêiticos sinalizadores: isto é verdade, isso deve ser visto/sabido, sempre num
caráter imperativo.
Pelo real da língua reconfiguram-se os acontecimentos a partir de acréscimos ou
supressões. Dessa maneira, vão-se editando os relatos. Isto é editar: dar à coisa um
significado. Nesse ato, voltamos a afirmar, entra em jogo um determinado ponto de vista para
a construção de simulacros de interlocução, considerando que uma das características do
discurso midiático, que o distingue de outras modalidades de discurso é sua relação
interlocutiva. (MOUILLAUD, 1997).
Essa realidade outra, construída na/pela edição, reconfigura-se no sujeito de
emissão ou da recepção com seu universo cultural e dinâmico próprios. Temos acesso ao
mundo editado. É dele que extraímos os sentidos. O desafio passa a ser: como trabalhar esse
mundo editado, presente no cotidiano, que penetra ardilosamente em todas as decisões da vida
social e que, pela persuasão que o caracteriza, assume o lugar de “verdade” a ser aceita custe
o que custar? Muito redutor se pensamos no caráter imperativo na/da informação, como se o
limite de um poder ver fosse um não poder ver; de um dever ver remetesse apenas a um não
dever ver.
No capítulo A Informação ou a parte da sombra, Maurice Mouillaud faz uma
citação do filósofo Didi-Huberman: “Um sistema fechado remete, no espaço, a um espaço que
não se vê, e que, por sua vez, pode ser visto, correndo o risco a suscitar um novo conjunto não
visto, no infinito [...]” (MOUILLAUD, 1997, p.38). O teórico da comunicação coloca-nos
diante de uma reflexão que possibilita sustentar que toda e qualquer visão contém algo mais
que ela própria. Afirma Mouillaud que, mesmo o jornal não exibindo as fontes da informação,
elas “estão enterradas no texto”. Para justificar sua afirmação, faz uma analogia com a
pintura: “A ‘parte da sombra’ não está somente no quadro [...] mas na mão que pinta [...]”
para a constatação de que perseguir o sentido no texto jornalístico é inserir-se num mundo de
dados verbais que obscurecem a realidade; ou se pensamos no sentido de pôr um foco de luz
sobre as coisas, podemos buscar o termo “refração”, que nos põe diante dos dizeres de
81
Bakhtin: “Toda refração ideológica do ser, seja qual for a natureza de seu material
significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal" (BAKHTIN, 1997, p. 38).
A leitura, como uma construção a ser feita pelo destinatário, deve prever não
apenas o que o jornal espera dele, ou seja, credibilidade, mas a atenção para os efeitos de
sentido, para as significações organizadas no plano de expressão.
Para falar sobre o sentido construído pelo jornal, sabemos da necessidade de
focalizar a cultura da mídia como um todo, que segundo Baccega:
[...] se manifesta em um conjunto articulado e diversificado de produtos
(pólo do enunciador/emissor) que entram em relação com o conjunto
articulado e diversificado de vivências do enunciatário/receptor, cujo
universo de valores, posto em movimento, ativa os significados dos
produtos. Na verdade, a cultura da mídia não está no enunciador/emissor,
não está no enunciatário/receptor: está no território que se cria nesse
encontro, gerando significados particulares, que, se contêm intersecção com
cada um dos pólos, não se limita a nenhum deles. Caso contrário, a mídia
seria apenas veículo de significados (BACCEGA, 2001, p. 22).
Em outra passagem do mesmo trecho transcrito acima, a estudiosa da comunicação
afirma que a complexidade da mídia:
[...] reside exatamente no fato de, construindo significados no território que
inclui cada um dos pólos – enunciador/emissor – enunciatário/receptor-, ela
exige permanentemente a dialética entre o já visto e o por ver, ou seja, a
novidade que responde pelas e alimenta as mudanças contínuas de identidade
versus estabilidade que cada grupo social busca em sua dinâmica
(BACCEGA, 2001, p.22).
A autora chama atenção para o fator “novidade”. Trata-se aí da notícia cuja
finalidade é a de colocar em circulação aquilo que vai nutrir a curiosidade do leitor. Projetada
sempre para o “novo”, a notícia jornalística mantém o interesse para um assunto que, mesmo
quando se trata de algo que já faz parte do conhecimento geral, o recurso da novidade da
notícia pode ser eficaz na persuasão do leitor, mantendo-o fiel à leitura do veículo de
comunicação.
Ainda no mesmo trecho transcrito acima, Baccega assevera também o princípio de
que o discurso sofre as coerções do contexto social: “O único limite é o horizonte da
formação social na qual estão e que inclui tanto o já manifesto quanto o ainda virtualmente
contido como possibilidades a serem realizadas”
(BACCEGA, 2001, p. 22).
Numa sociedade constituída por relações de poder, supõe-se que, por trás da busca
de uma “verdade” imposta por certos gêneros discursivos, está a questão de um sujeito que, se
82
escondendo ou se mostrando, constrói simulacros daquilo que exibe, dissimula, apaga em
qualquer enunciação e que pode vir à luz a partir de reflexões teóricas desenvolvidas pela
linguagem, desfazendo qualquer fechamento de sentido.
Quando voltamos nosso olhar para o contexto em que se inserem as mídias, não
podemos deixar de ressaltar as características de um cenário de mudanças cada vez mais
frenéticas, com avanços de tecnologias, que levam à “ascensão das mídias, da indústria das
propagandas” (JAMESON, 1999, p. 61). Tendo nos meios de comunicação um sustentáculo,
corporações internacionais fortalecem-se gradativamente, sendo capazes de levar à ruptura de
fronteiras nacionais. Mediadora privilegiada entre nós e o mundo, a mídia cumpre o papel de
juntar diferentes realidades numa costura de informações (fragmentos de informações), para
tecer a trama do tecido, que é o conhecimento do mundo. Metonimicamente cada uma das
partes dá a conhecer todo o tecido, como se cada parte, ou seja, os fatos trazidos na notícia,
valessem para o mundo todo.
A partir dessas afirmações, podemos já antecipar o trabalho que o leitor, analista
do texto jornalístico, tem diante de si. Consideramos, conseqüentemente, que aquilo que tem
diante dos olhos, não passa de retalhos de informações, fragmentos. São uma parte para
oferecer o conhecimento de um todo, considerado como a “realidade”. É o ponto de partida
para a leitura, na busca de uma inter-relação entre todas as esferas da sociedade. Um processo
que prevê a condição de reelaborar o que vem como um dado, trazendo à superfície o que, às
vezes, não está lá. Mal desenhado ou com contornos imprecisos, borrado, mas que deve ser
lido.
Pensar a inserção do sujeito na vida social, pressuposto do ato discursivo, é pensar
a questão dos “estereótipos”. Buscamos, para isso, um trecho que nos leva a refletir sobre a
questão:
O nosso círculo de experiência é limitado. O nosso espaço vivido no mundo
é pequeno.[...]
Se a nossa atividade essencial como sujeitos é a ação e percepção, nós a
exercemos dentro de um espaço de vida que nos rodeia como uma bolha de
sabão e onde encontramos nosso significado biológico e existencial.
Conhecemos algumas pessoas, algumas coisas, alguns pedaços de paisagens,
de ruas, alguns livros. Presenciamos alguns fatos, mas não presenciamos a
maior parte dos fatos sobre os quais conversamos. Confiamos, porém, nas
pessoas que viveram e presenciaram esses fatos, e o pensamento e o discurso
quotidiano se alimentam dessa confiança social (BOSI, 1977, p. 48).
Sabemos que os fatos que nos chegam, já foram textualizados pelas gerações
anteriores, lidos, interpretados, sedimentando valores com os quais convivemos sem nem dar
83
conta dos sentidos que vêm carregando. Como se fosse um trem, que tendo passado por
muitas e muitas estações, os sentidos são os tantos passageiros conduzidos, carregando as
diversas significações: ao lado dos novos há os antigos que vêm trazendo antigas
significações.
Lippman (1972) adverte que “nem mesmo a testemunha ocular traça um quadro
ingênuo da cena. Pois a experiência parece mostrar que ela própria traz à cena alguma coisa
que dela retira mais tarde e o mais das vezes, o que supõe ser o relato de um acontecimento é,
na realidade, uma transfiguração dele” (p. 149).
A conclusão do autor é que os fatos que vemos dependem não só da posição em
que nos encontramos, mas dos hábitos de nossos olhos. Implicita-se aí a questão dos
estereótipos, ao se referir ao fato de que vemos a partir da sedimentação de estruturas
significantes, condicionadoras de nosso olhar. Nesse sentido, haverá sempre um estado de
tensão constante entre o já visto depositado na memória cultural e o por ver, que traz
embutida a idéia das relações entre diferentes momentos: o presente contém o passado e o
futuro. Compreende-se, então, que cada uma das enunciações jornalísticas não pode ser vista
como independente do imenso corpo das enunciações coletivas que a precederam e a tornam
possível.
Como os pintores pintam telas, os músicos compõem músicas, os arquitetos
projetam edifícios, o jornal produz discursos – seu principal produto e o resultado final do seu
funcionamento. Comparada a algumas dessas atividades, o discurso jornalístico se apresenta
como um texto acabado, aparentemente sem vazios; ao contrário de outras atividades da vida
cotidiana, que não escondem seus processos de derivas, de hesitações etc. Ora, produzir uma
informação supõe a transformação de dados. Um processo que não é propriedade da mídia,
tendo em vista que a linguagem supõe sempre a existência de indivíduos socialmente
organizados. Na vida cotidiana, por exemplo, se tomarmos uma conversação informal,
podemos observar que pode ocorrer que fatos trazidos em profusão acabam levando a um
embaralhamento. Dado o descompromisso com uma prévia organização, podem chegar a uma
certa confusão. Entretanto, para a transmissão de um determinado saber sobre algo, por
exemplo, um fato ocorrido, é necessária a seleção de dados, ligando-os entre si para dar
coerência, construindo um sentido de que “algo ocorreu”. Assim se dá a percepção cotidiana
que enquadra cenas para poder ver. Tanto os cenários da vida privada quanto da vida pública
são pré-construídos, ainda que nossa concepção, tantas vezes, seja a de que os jornalistas
trabalham com baterias de informações preparadas. Se a informação é esportiva, por exemplo,
84
é imprescindível buscar as especificidades de cada esporte, organizando as informações para
se tornarem verossímeis. Visto que nenhum fato é apreendido, sem estar coerentemente
construído, deve-se reconhecer que se trata de uma organização, da tarefa de um sujeito.
Interessante pensarmos sobre a idéia de que um substituto do espaço público, os
jornais diários, sejam vistos como umrum onde se pode ouvir o eco das vozes públicas,
orquestrada à sua própria voz. Tal dualidade está na origem das estratégias pelas quais o
jornal manipula, seja distanciando-se das vozes de outrem, seja de sua própria voz.
Segundo Mouillaud (1997), é possível entrar no “corpo” do jornal diário, por uma
análise de suas funções enunciadoras. Interessa-nos o destaque que põe em relevância o
sujeito na encenação jornalística. O autor enumera duas dessas funções:
[...] a primeira delas é a de ‘fazer-saber’. A finalidade dominante do discurso
do jornal é a de produzir um efeito real do qual estudam-se, sucessivamente,
os procedimentos de autenticação e as estratégias de descrição . O real do
jornal diário aparece, em última instância, como um álibi que esconde o
pleno desenvolvimento dos saberes disponíveis[...]
a segunda estratégia está preferencialmente a serviço da verdade e, não, da
realidade. O jornalista mantém um pacto implícito com o leitor, cuja
finalidade é a de ‘fazer-crer’ [...] (MOUILLAUD, 1997, p. 27).
Como nos postulados de base da semiótica greimasiana, mesmo sem usar a
metalinguagem dessa teoria, podemos observar que o texto jornalístico está sendo
reconhecido como um produto resultante da construção de um sujeito de linguagem.
Conforme já nos referimos acima, o jornal pertence à rede de informações que começou a
tecer-se no século passado, impondo ao mundo não apenas uma interpretação hegemônica dos
acontecimentos, mas a própria forma do acontecimento.
Outro fato a ser destacado quanto à invenção da informação (fins do século XIX,
início do XX), é a mudança do discurso da imprensa, cuja unidade não provém de sua ordem
interna, mas da ordem externa da diagramação, quando a escritura dos fatos levou à
fragmentação em seqüências curtas e heterogêneas, tão diferentes da escrita literária e política
predominante de uma época com exigência de textos longos a impor páginas cinzentas.
Embora a linguagem verbal escrita apareça como a dominante, a linguagem visual
vem conquistando um espaço, ocupando cada vez mais a página, o que obriga o observador a
enfrentá-la num sincretismo com o verbal. O tratamento da produção de sentidos passa, dessa
maneira, necessariamente, pela junção dessas duas linguagens, que devem ser articuladas na
leitura.
Instalados no espaço do jornal, os textos obedecem a particularidades enquanto
85
gêneros: notícia, reportagem, editorial, entrevista, comentário, nota, resenha etc, que devem
ser percebidos como textos complexos. A linguagem visual - fotografia, ilustrações,
disposição na página, etc - faz parte de toda a construção e interfere de forma decisiva não só
na seleção e organização dos conteúdos, mas, sobremaneira, na articulação de mecanismos
que ajudam a desnudar a aura de objetividade, conduzindo a leitura para o mundo da
ambigüidade, da abertura, por onde entra o olhar do leitor. Inegável a importância da
linguagem visual, contudo estamos aqui privilegiando o verbal.
Mouillaud (1997) afirma que, se nos apoiarmos nas metáforas da era althusseriana,
o acontecimento seria a “matéria prima”, a substância que alimenta, de fora, o ecossistema da
mídia. O dispositivo da informação poderia ser concebido, como ele afirma, sob a forma de
capturadores que se apossam dos fatos e os encaminham para um centro. A montante, o
acontecimento; a jusante, a informação:
De um a outro, a caixa-preta da mídia em que se faz um trabalho de seleção e
de transformação da matéria do acontecimento. Um compartilhar semântico
assaz claro permitiria opor o acontecimento e a informação como o
antecedente cronológico, a ocorrência recebida, o material de um lado e, do
outro, o produto, a difusão, a formatação. Esta dicotomia, que, à primeira
vista, parece clara e distinta, reflete o que se chamaria de ideologia
espontânea dos profissionais (MOUILLAUD, 1997, p. 52).
Ao criticar essa concepção, “ultrapassada”, segundo ele, como legitimadora da
ideologia dominante no séc. XIX, o autor afirma que ainda se constitui em paradigma quando
se fala de fidelidade aos fatos: “O realismo é uma ideologia de face dupla que, afirmando a
dualidade do acontecimento e da informação, faz da mimese dos mesmos seu ideal (fidelidade
aos fatos é ainda hoje o carro-chefe da imprensa anglo-saxônica)” (MOUILLAUD, 1997, p.
53).
Não considerando a dicotomia entre acontecimento e informação, trabalha com o
princípio de que o acontecimento é uma unidade cultural e que já está codificado no interior
do espaço da informação”, o que “não priva de sentido a distinção entre o acontecimento e a
informação” (MOUILLAUD, 1997, p. 56). Deixa bastante claro que acontecimento e
informação não são instâncias autônomas. Afirma ainda: “O acontecimento sempre possui a
forma da informação, ao invés da representação, suposta evidente de um acontecimento que
existiria inicialmente para si mesmo e ao qual se aplicaria, num segundo momento, a
informação” (p.56).
Sobre a concepção de “notícia” como o gênero jornalístico para informar o
acontecimento, o sentido comum partilhado entre os homens é o de construção discursiva que
86
opera a linguagem. A notícia toma de empréstimo esse sentido comum que permite, a um
tempo, o jornalista/enunciador-repórter se comunicar com o público e ambos se entenderem.
Nesse sentido, porque a linguagem é o meio comum pelo qual os termos de uma relação
podem ser articulados no processo da interpretação, pode-se falar em objetividade como
conformidade. Não se trata de uma conformidade na qual a linguagem vai-se adequar ao fato,
mas de uma conformidade em que o fato só "faz sentido" na e pela linguagem. A coisa dita
“notícia” não é senão um discurso. Ela é uma construção a posteriori onde se põe o
acontecimento, criador de objetos-valor outros, em que se utilizam estilhaços, resíduos de
eventos. Não é criação a partir do nada; existe já uma parcela de sentido posto, fragmentado,
estilhaçado, que o sujeito aproveita para construir o seu objeto – a notícia.
A conformidade entre o texto da notícia e o fato não representa a adequação entre
duas entidades distintas (língua e realidade dos fenômenos), mas enquanto relação entre
sujeitos. Tem-se aí a interpretação, um movimento que aciona sujeitos, pressupondo uma
relação dada na linguagem, entre o modo de dizer algo presente no mundo e que só aparece na
condição de um fato jornalístico. Assim, ontologicamente, existe a possibilidade de o discurso
falar de fatos, na medida que o discurso é uma articulação lingüística e é somente pela
linguagem que os homens se relacionam com o mundo e, conseqüentemente, com os fatos.
No âmbito das teorias da comunicação páginas e mais páginas podem ser lidas
sobre as discussões em torno do conceito de notícia. A polêmica traz para a cena termos como
fato, acontecimento, sujeito (enunciador e leitor). As teorias da recepção têm estudos extensos
dedicados à subjetividade, oferecendo um material bastante rico para discutir uma das mais
polêmicas questões: objetividade versus subjetividade.
Os teóricos da comunicação insistem em dizer que, na abordagem do texto
jornalístico, não há mais espaço para princípios teóricos voltados para dois universos
distintos. Não há por que considerar categorias separadamente. De um lado o estudo dos
dispositivos; de outro, o estudo dos sentidos. Um deles logicamente estabilizado, em sua
materialidade de papel, seu formato, sua diagramação, como se tratasse de um mero suporte,
que poderia ser chamado de “dispositivo”, nomeado por Mouilllaud (1997, p. 29) como “uma
simples entidade técnica, estranha ao sentido”. O outro universo a que o autor se refere por
“conteúdo”, como se tratasse do sentido, aí entraria a língua, à semelhança de um envelope,
de onde se extraem as significações.
Com as considerações do autor concordamos que tal reducionismo, sem dúvida,
não tem sustentação, quando não se concebe mais o sentido do texto jornalístico,
87
dicotomizando essas categorias – “dispositivo” e “sentido”.
Por ter o discurso como principal produto, é no processo de sua produção que se
pode (des)estabilizar “conteúdos” acondicionados em “embalagens” que simulam não deixar
dúvidas quanto ao que carregam. Ora, por se tratar de um acontecimento discursivo, leva-nos
à questão do sujeito, instância pressuposta do produtor/receptor que confere à materialidade
jornalística a dimensão de palavra em ato, funcionamento: produção e recepção, escrita,
leitura e interpretação. O que se registra numa notícia não é um real existente, mas um
processo colocado em andamento por um sujeito, um “eu” de cognição e de paixão. Trata-se,
com efeito, de considerar a participação de sujeitos numa correlação entre a significação
sensível da experiência perceptiva e a significação igualmente sensível da experiência
discursiva.
Uma das questões centrais para a (des)construção do sentido no texto jornalístico é
a focalização no processo da leitura. Como construção discursiva, o sujeito receptor é
nomeado pelo processo de hierarquização e de funcionamento do contrato de leitura. Ao
mesmo tempo em que é construído, tipificado pelo discurso, é também convocado a trabalhar
no interior em conformidade com as regras de um “contrato” estipulado pelo enunciador para
interpretação da verdade do discurso. Sobre as regras e “contrato” já nos referimos no
capítulo O sujeito na semiótica. Para os estudos da comunicação, as discussões sobre o leitor
são do âmbito das teorias da recepção, cujo foco incide sobre leis que estruturam os contratos
de leitura. Não vamos aqui discutir sobre essas teorias da recepção.
Enquanto gênero jornalístico, a notícia apresenta-se como o domínio de um
discurso cujo contrato estabelecido com seus enunciadores é o de um simulacro de
racionalidade que repousa sobre dizeres referenciais. São dizeres que confirmam, interrogam
ou denunciam as convenções que representam, sem possibilidade de além-sentido. Sob um
real posto para a legibilidade discursiva, subjaz um jogo de crenças estabilizadas e certas, cuja
certeza referencial é a de transparência. Firma-se no acontecimento discursivo um contrato de
veridicção entre sujeitos tendo em vista as formas para a compreensão do dizer.
Pensando em exemplificar a maneira como o enunciador (in/en)forma um fato,
trazemos uma notícia escrita há mais de uma década. Tendo a terra como temática, lemos o
texto, que suscitou em nós interesse para refletir sobre a atividade do sujeito enunciador do/no
jornal. Lido o texto, vamos, então, discursivizar o processo de sua construção, imaginando a
realidade em que se inseriu um sujeito cuja tarefa era a de levar para a página o instantâneo de
um acontecimento, que fosse fiel àquela realidade, que se tentava apreender, tornando-a
88
“verdade” a ser lida e, o que mais sério, acreditada. Com alguns fragmentos do texto
publicado, vamos colocando nossos dizeres para tentar apreender a tarefa da construção do
fato ocorrido naquela madrugada de 23 de dezembro de 1990. As partes em itálico são as
transcrições da notícia, que se juntam a nossa fala sobre dizeres que se põem diante do olhar
do leitor para serem, assim, apreendidos.
Passemos, então, à leitura deste pequeno texto que visa à apreensão do
acontecimento discursivo.
Uma foto de uma multidão: ao fundo uma grande extensão de terra,
mulheres carregando filhos pequenos no colo; homens empunhando foices e
enxadas parecem correr; adultos, jovens, velhos e crianças caminham todos
numa mesma direção. O repórter descreve: “Era noite ainda, pouca luz da
lua, mas o suficiente para enxergar o lugar há tanto esperado [...] Houve o
confronto, arrebentaram a porteira.”
Havia explicações de como o repórter havia chegado ao local com o batalhão
da polícia. Parecia querer apreender naquela construção de linguagem o
momento presenciado (vivido?). Afirma que quando chegou, naquele exato
momento em que acontecia a ocupação/invasão, já se dissipava a multidão.
Já não havia mais tumulto. Tenta entrevistar as pessoas na busca de
informações do que ocorrera antes de sua chegada:
- O que está acontecendo? Uma ocupação?
- Não, um dos guardas responde. Dentre tantos dizeres em que se refere ao
desrespeito à lei, à bagunça, ele resume com a expressão: uma invasão.
E um outro homem parece afirmar com certeza:
- Houve resistência, tem gente machucada.
(O Pontal, 27/12/1990).
Diante de uma teia de significados, como é assim idealizada a própria
comunicação, um enunciador tem a tarefa de estruturar um acontecimento: dar forma a uma
situação caótica, no exercício de uma atividade que consiste, basicamente, em construir
informação. Um trabalho que consiste em escarafunchar, no código lingüístico, recursos para
dar coerência aos elementos da forma narrativa: personagens/sujeitos, espaço e, sobretudo,
tempo. Os dados devem estar organizados de maneira a constituir um todo, cujas partes
devem estar coordenadas, com a finalidade de transmitir “a realidade”. Trazer para o real
da/na língua, um real da história: eis a realidade do sujeito - jornalista/leitor.
Um “eu”, diante de um momento: no presente, a necessidade de resgatar um
acontecimento (passado? presente?). O que o olhar podia apreender? O caos de uma situação,
que parecia não se organizar nas cenas ao vivo, diante de olhos ávidos por absorvê-la, no
esforço para a compreensão. Uma boa tática seria a reconstrução dos fatos para apreender os
acontecimentos: os do momento remetiam aos do passado fresquíssimo ainda, mas que já
haviam escorrido com o tempo. Enquanto isso arrebentavam sentidos novos, naquele exato
89
momento, reclamando por registros. “O acontecimento está em todos os lugares... um tipo de
delírio porque, então, tudo se pode tornar acontecimento [...] o acontecimento está
onipresente, difuso, sem limites [...], sucedem-se com uma rapidez que apenas permite
retomar o fôlego [...]” (RODRIGUES, 1996, p. 27).
A investigação do fato é a interpretação para levar ao conhecimento daquilo que
se pretende tornar conhecido. Nesse sentido, passa-se a identificar dados, estabelecer relações
entre eles e elaborar uma cadeia de significação, a fim de que as informações colhidas possam
se constituir numa unidade para a caracterização do objeto focalizado. O fato é o resultado de
uma ação, portanto, algo consumado na ordem da realidade, mesmo que por apenas alguns
instantes. E, como tal, se apresenta como condição limitativa das escolhas racionais que
sustentam a interpretação. Em se tratando de notícia, esse é um pressuposto fundamental.
O trabalho de investigação consiste, então, em "construir uma história" - a ser
relatada sob a forma de notícia, estabelecendo uma determinada relação entre sujeitos, coisas
e textos de algum modo vinculados entre si - e comprovar ser a "história" uma experiência do
mundo real. Quando uma reportagem tem início, às vezes são poucos os elementos para
sustentar a notícia. Por isso, o ponto de partida é a pergunta (ou perguntas) que, de forma
elementar, pode(m) ser expressa(s) da seguinte forma: "o que aconteceu?", em relação a algo
que não se sabe ao certo do que se trata, daí inclusive a investigação e a elaboração de
hipóteses; e "aconteceu mesmo?", dando conta da necessidade de comprovar a realidade da
informação obtida.
As perguntas que dão início ao percurso interpretativo se baseiam em algum
sintoma ou indício ou até mesmo num dado efetivo que pode revelar um fato de interesse
noticioso. A hipótese formulada a partir das perguntas iniciais produz um recorte de tempo e
espaço na ordem da realidade, dentro do qual os sintomas, indícios e dados serão apreciados.
Na medida em que se confirmem, sintomas e indícios podem ou não se tornar dados
(elementos que pertencem ao fato: coisas, pessoas e textos), mantendo ou reformulando a
hipótese. A partir do recorte do tempo/espaço e dos dados recolhidos, é possível desenhar
cenários. São traços que vão pouco a pouco dando o contorno no desenho do objeto: a notícia.
A ação de produzir o fato (escolha de uns e rejeição de outros elementos), obviamente, deixa
suas marcas, recuperáveis na cadeia de significação. Estamos aí diante do próprio ato de
interpretar. A perfórmance de um sujeito singular, leva em conta, ressaltamos, não o
individual, mas o fazer do sujeito plural: a condição de toda prática social.
O fato é uma atividade consumada no eterno movimento de elaboração e re-
90
elaboração do mundo pela experiência humana da linguagem. Se é indiscutível que a
construção dos fatos impõe limites à interpretação, é certo também que a interpretação -
capacidade humana de articular sentidos num mundo partilhado intersubjetivamente -,
vinculada diretamente ao repertório de experiências e conhecimentos de cada indivíduo,
sujeita-se às limitações de um destino interpretativo.
Para Mouillaud (1997, p. 51) o acontecimento e a informação não são "instâncias
que, a um dado momento, seriam autônomas". “A informação não é o transporte de um fato, é
um ciclo ininterrupto de transformações”. A hipótese sustentada é a de que “acontecimento é
a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema de informação, o conceito de
‘fato’”. Ainda que, superficialmente, o fato seja representado pelo que, quem, quando, onde,
como e por que, Mouillaud assevera que a transformação do fato em informação (notícia,
diremos nós), é a transformação de um estado (ser, estar), escandido em cenas, enquanto
fragmento de espaço e de tempo que são, antes, espaço e tempo sociais. Isso já define algo: o
fato é uma experiência observada e descrita conforme certas regras. Mediante a as exigências
da sociedade é que se tornam fatos. Assim, o acontecimento é uma experiência original,
primária, convertida em informação pela mídia, que, no dizer desse autor, não é um território,
mas um mapa, representação de sujeitos e cena - espaço e tempo presente de algo passado,
isto é, atualidade.
Guerra (1998, p. 38) registra que acontecimento vem do latim contigere, e
significa “achar, encontrar, estar ligado a, suceder, provir, resultar”. Explica que “desde os
gregos, apresenta-se como um conceito problemático: quem seleciona o que é importante
contar? De que maneira é feita a seleção?”
Na tradição jornalística, notícia é “o relato de uma série de fatos a partir do fato
mais importante, em que se considere, deste último, seu aspecto mais importante.” (LAGE,
1979, p. 36).
Para o Manual de Redação da Folha de S. Paulo (2001, p. 88) notícia é o “puro
registro dos fatos, sem opinião.” Poderíamos elencar uma infinidade de definições para o
termo. Mas, as definições trazem sempre implícita a pretensa objetividade do jornalista na
observação e posterior relato de determinado evento da vida cotidiana. Nesse aspecto, o
jornalista, isento e imparcial, seria um simples “mediador” entre o evento cotidiano e a
sociedade. Como o relato produzido estaria imune à subjetividade do jornalista, os
consumidores da notícia, dessa forma, teriam acesso “imediato” ao acontecimento. Dessa
forma, ao ler um jornal, o leitor estaria experimentando um determinado evento, no qual ele
91
teria a sensação da co-participação, mesmo que se conceba impossível a existência do objeto
sem o sujeito. Trata-se de uma visão romântica, que deveria ser considerada fora de uso. As
teorias que enxergam as notícias como um mero relato de fatos observados e registrados pelo
jornalista “neutro, desligado dos acontecimentos e cauteloso em não emitir opiniões pessoais”
(TRAQUINA, 1993, p. 167) propõem, dessa maneira, a metáfora do jornalismo como
“espelho” da realidade. Estaríamos diante da realidade pura, de um real fenomênico.
Em oposição a essa visão, afirma Nelson Traquina
[...] os jornalistas não são simplesmente observadores passivos, mas
participantes activos no processo de construção de realidade. E as notícias
não podem ser vistas como emergindo naturalmente dos acontecimentos do
mundo real; as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e textos.
Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o
acontecimento (TRAQUINA, 1993, p. 168).
Dessa forma, na elaboração da notícia estão presentes, além da experiência do
enunciador - que observa, seleciona e relata o evento -, os constrangimentos organizacionais
sobre os quais trabalha: “As decisões tomadas pelos jornalistas no processo de produção das
notícias (newsmaking) só podem ser entendidas inserindo o jornalista no seu contexto mais
imediato – o da organização para o qual ele ou ela trabalham.” (TRAQUINA, 1993, p. 168).
Assim, a notícia passa a ser entendida como uma “representação social da realidade cotidiana
produzida institucionalmente, que se manifesta na construção de um mundo possível”
(ALSINA, 1996, p. 18).
Fenômenos que ocorrem cotidianamente, sobre os quais não temos controle nem
podemos determinar seu aparecimento, podem ser nomeados como “fatos”. Como dito
anteriormente, na impossibilidade de abarcar na totalidade, “niágaras” de fenômenos, ocorrem
simultaneamente, o que leva à necessidade de operar com estruturas lógicas para ordenação
desses eventos, tornando-os “objetos dotados de significação” (LUCKMANN; BERGER,
1998, p. 39). Dada a multiplicidade de fatos ocorridos simultaneamente, em todo o espaço do
globo, é óbvio que não se pode ter acesso a tudo. Ao jornalista cabe, então, o olhar e a decisão
do gesto para selecionar os que tenham potencialidade, traduzida no conceito de
noticiabilidade, de tornarem-se “acontecimento”, para que se materializem no jornal - espaço
delimitado temporal e espacialmente. Assim, o acontecimento jornalístico é, então, um
“acontecimento de natureza especial, distinguindo-se do número indeterminado dos
acontecimentos possíveis em função de uma classificação ou de uma ordem ditada pela lei das
probabilidades. É imprevisível, irrompe acidentalmente como reflexo inesperado, como efeito
92
sem causa, como puro atributo” (RODRIGUES, 1996, p. 27).
É tempo de considerarmos que “a notícia é a narração de um fato ou a re-escritura
de outra narração, enquanto o acontecimento é a percepção do fato em si” (ALSINA, 1996, p.
16). Como não é possível a total isenção, o jornalismo, ao divulgar um acontecimento, cria
um outro, sendo, portanto, um “ativador de meta-acontecimentos” (RODRIGUES, 1996, p.
28). Assim, o jornalista, na verdade, estaria relatando não o fato cotidiano, imprevisível, mas
o “real domesticado”, afirma Mouillaud (1997, p. 57), citando Umberto Eco, para quem o
acontecimento seria a “procura e o estabelecimento de uma coerência, de uma unidade em
uma diversidade, para nós, caótica. Trata-se de constituir um todo cujas partes estejam
coordenadas.”
No entendimento de Dulcília Buitoni, a notícia é “a realidade que se pretende”:
Para ‘representá-la’ (re-presentá-la) textos verbais imitam o ritmo de um
filme, tentando causar a impressão de que o acontecimento está se
desenrolando no momento em que é lido: mágico recurso, como se o leitor
tivesse o poder de fazer a cena repetir-se novamente, só para ele. O rádio, a
foto, o jornalismo televisivo, os tapes e os filmes jornalísticos dispõem de
mais varinhas de condão para ‘apresentar’ (a-presentar) a realidade. A voz
do entrevistado, ao vivo – é algo sendo vivido, ao mesmo tempo, no rádio ou
na TV. As imagens das fotos, dos tapes, dos filmes, mostram o referente
‘real’. Em todos, a valorização do ‘instante em que se vive’, do agora – a
aparência do acontecer em curso -, numa simultaneidade um tanto atemporal,
em detrimento do instante conhecido (BUITONI, 1990, p.175).
De volta à definição de notícia proposta por Alsina e apresentada acima,
“representação social da realidade cotidiana produzida institucionalmente, que se manifesta
na construção de um mundo possível” (ALSINA, 1996, p. 18), acompanhemos a reflexão da
autora.
Ao tratar da “representação social”, ela explica que se trata de ver a primazia do
social sobre o individual. A notícia, como representação social, implica uma “organização
psicológica particular que cumpre uma função específica. Não é, como diriam os sociólogos
marxistas, uma superestrutura ideológica, determinada por uma rede de condições objetivas,
sociais e econômicas” (Id., p. 18), mas, antes, o instrumento que o indivíduo utiliza para
apreender o ambiente ao seu redor.
A expressão, “produzida institucionalmente”, continua a autora, remete à tarefa do
enunciador “papel socialmente institucionalizado que o legitima a levar a cabo uma
determinada atividade”. Trata-se da tarefa de manter a sociedade informada sobre os eventos
ocorridos nos variados campos sociais que a compõem.
93
Ao concluir sua definição “construção de um mundo possível”, aborda os limites
impostos nessa empresa. A realidade apresentada nos noticiários jornalísticos não é a
realidade da vida cotidiana. Esse mundo possível nada mais é do que o mundo narrativo –
construção de um enunciador, a partir dos outros mundos de referência utilizados por ele: o
“mundo real”, onde os acontecimentos irrompem e o “mundo de referência” é o local onde se
dá o enquadramento dos acontecimentos.
Essa definição traz, como novidade, o entendimento da notícia como uma
realidade construída a partir dos eventos cotidianos e na lupa de um sujeito linguageiro, que
possui uma experiência de mundo particular, o que torna o “relato objetivo dos fatos” uma
visão particularizada, ancorada na experiência individual e nos constrangimentos
organizacionais proporcionados pela organização do trabalho jornalístico, de acordo com
teóricos da comunicação, tais como Wolf (1992), Traquina (1993) e Tuchman (1993). Esta
última, a socióloga Gaye Tuchman, na sua observação direta-e-participante dentro de uma
redação de jornal demonstrou que os estudos sobre a ordem produtiva requerem cuidados e
procedimentos que impõem mais tensão que coesão, mais complexidade que linearidade, mais
negociação que consenso, mais heterogeneidades que homogeneidades, mais interdiscursos
que autocentramento ao se referir ao mundo, ao tempo sociológico (TUCHMAN, 1993).
A construção da notícia é um trabalho, cuja organização consiste em recolher,
selecionar e apresentar, sendo exeqüível apenas por um sujeito que sente, percebe e age.
Pressupõe, assim, uma não-neutralidade e passividade por parte do enunciador, implodindo a
metáfora do “espelho”. Conseqüentemente, não é uma estrutura de fatos ou situações, mas um
processo de constituição de uma realidade de palavras: visível e invisível, resultante de um
olhar de idas e vindas, rupturas, desconstruções, reconstruções, envolvimentos pessoais,
intelectuais, afetivos, inerentes à situação de sujeito no mundo.
Num esforço de produzir um saber, limitado pela particularidade, pelo
fragmentário, o enunciador do texto jornalístico se esforça para dar conta da realidade, da
parcela de um real que o assujeita no esforço da objetivação, fundamentada na legitimação de
sua atividade – produção de conhecimento e de notícia ou reportagem (in-formação). As
técnicas de codificação da mensagem jornalística (trata-se de codificação no sentido de língua
técnica) a regras de apuração, regras de codificação dos relatos sobre fatos, teorias do lead,
concepções sobre narrativa (realista ou ficcional), exposição ou dissertação na construção
desse gênero textual constituem esforços de esvaziar-se da subjetividade, para dar conta do
“real”, da objetividade. O sujeito-enunciador parece ser esse narrador dedicado e fiel, em
94
busca de pôr adiante a verdade, delimitado que está pela hierarquização do ato e da fala do
outro, do que é mais ou menos noticiável. Pelas escolhas linguageiras, traz (ou tenta esconder)
para a vitrine do papel aquilo que pode/deve ser mostrado ou ocultado, numa ritualização do
real. Nesse sentido, estariam sendo, o jornalista e o Jornal, servos do poder, no assujeitamento
a uma objetividade como a que leva a admitir que contra fato não há argumento?
As questões sobre objetividade inscrevem-se em qualquer discussão do texto
jornalístico, o que nos leva a algumas considerações nesse fim de capítulo, ao mesmo tempo
em que vamos tratando também da presença do leitor ou para usar um termo da teoria da
comunicação, da “recepção”.
No desejo de dizer a suposta “verdade”, o construtor dos fatos sabe que seu fazer
só se completa pelo/no fazer de um outro sujeito, participante dessa empreitada da construção
discursiva. É pela leitura, pela releitura, num processo de (des)construção ou reconstrução
pelo leitor que se efetiva o processo de enunciação. Ora, essa é uma conversa que estaremos
sempre retomando para reafirmarmos que, compulsoriamente, texto é diálogo. Impondo-se a
inevitável dialogia do discurso, a polêmica objetividade, que insiste em enxergar o texto
jornalístico como construção do “real”, cai por terra. Ela não depende somente da capacidade
de representar ou configurar de um “eu” que constrói o dizer, mas também do “outro”, o
participante da cena enunciativa. Nessa arena, aberta à disputa de olhares os mais diversos,
forças antagônicas travam combates violentos pelo sentido, na disputa por um lugar no
podium da “verdade” social.
O mito da objetividade é fortalecido sempre pelos avanços tecnológicos, cujas
inovações do ponto de vista formal se processam, numa prática com recursos cada vez mais
sofisticados de modo que o papel do sujeito parece se restringir a um lado oculto nesse fazer
jornalístico. Se o discurso do escritor depende do leitor, em se tratando da relação entre
jornal, jornalista e leitor, essa relação é de (inter)dependência, tornando-se luta pela
sobrevivência. Com um campo específico de produção de conhecimento, o jornalista parece
voltado para um leitor específico, este que Barthes (1988) celebra como o co-produtor social
do sentido. O modo de produção capitalista define o formato, qualidade e o consumidor para
seus produtos. Diz Ciro Marcondes Filho que
[...] o jornalismo atua junto com forças econômicas e sociais: um
conglomerado jornalístico raramente fala sozinho. Ele é ao mesmo tempo a
voz de outros conglomerados econômicos ou grupos políticos que querem
dar às suas opiniões subjetivas e particulares o foro de objetividade [...] É
uma forma de dar eco a posições pessoais, de classe ou de nações através de
um complexo industrial-tecnológico, que, além de preservar uma suposta
95
impessoalidade, afirma-se, pelo seu poder e soberania, como a ‘verdade’”
(MARCONDES FILHO, 1986, p.10).
O autor trata da relação entre subjetividade e objetividade, discutindo ainda
“ïmprensa livre” e “objetividade” quando fala sobre a representatividade de setores da
sociedade, colocada, não por grupos dominados, mas pelos próprios detentores do poder da
mídia, na medida em que se vêem ameaçados por outras informações que põem em risco seu
monopólio, venham eles da base da sociedade ou de um grupo de adversários”
(MARCONDES FILHO, 1986, p. 11).
Comparato, a partir de estudo da visão de representantes (proprietários) de jornais,
discute o mito da objetividade e observa a sociologia positivista, que leva a erigir o fato social
à condição de coisa, passível de ser captada e analisada a partir de uma relação de
exterioridade, consolidando uma noção de objetividade. Privilegia-se a posição do sujeito,
considerado um pesquisador-cientista. Essa concepção foi introjetada pelos periódicos. Diz o
autor que
[...] o pesquisador da notícia ou “caçador dos fatos”, à semelhança de um
cientista, deveria se pautar por critérios que determinassem distanciamento
do objeto. A isenção e a imparcialidade representavam padrões de
comportamento a serem seguidos no exercício da profissão. Dessa forma, a
imagem do jornalista deve ser a de um sujeito “acima de qualquer suspeita”
e, a do jornal, a de um “repositório da verdade” (COMPARATO, 1990, p.
10).
As críticas à objetividade costumam ser vistas como se propusessem o outro
extremo, a completa - e também impossível - subjetividade total, o que implicaria a supressão
do objeto.
Wolf (1992) trata da objetividade no jornalismo, confrontando o construcionismo
com o realismo na teoria do conhecimento. Embora ressalte a coerência da crítica à
fundamentação positivista do conceito de objetividade, o autor considera que, nesse processo,
o construcionismo acredita eliminar o próprio conceito. Assim, o jornalismo, fundado “a
partir de um imperativo ético que prescreve a notícia como o discurso da realidade”, teria de
deixar de existir, pois nada poderia afirmar sobre os fatos que reporta. Além do mais,
representaria um “estelionato ético e social”, pois responderia com uma fraude à demanda
social por informações.
A conclusão decorre provavelmente da incompreensão do sentido da crítica e do
próprio discurso através do qual o jornalismo se apresenta. Não se trata de eliminar o real. A
necessidade da interpretação (portanto, da subjetividade) na apreensão do fato não constitui
96
argumento contra a existência da matéria factual. No entanto, o que não existe é a
possibilidade de isolar o componente objetividade no processo criativo de noticiar.
O que seria a objetividade? Talvez a capacidade de enxergar o objeto, que tem
existência fora da mente. Porém, para a descrição ou o relato jornalístico, não há como
separar o objeto real do ato de pensar - ato que produz um outro objeto, no caso a notícia, que
não é material. A notícia não está, portanto, no território da objetividade. Faz parte, sim, do
território da noticiabilidade dos fatos, que, para a descrição e o relato, devem ser olhados e
qualificados, em técnicas de apuração e depuração, com a lupa dos valores, das razões e dos
critérios, coisas imateriais: processo da construção de sujeitos.
A subjetividade presente no processo de apreensão dos fatos indica que o
jornalismo não é o discurso da realidade (como pretende ser visto), mas um discurso sobre a
realidade. Desse modo, haverá vários discursos sobre um determinado fato, e a diversidade de
interpretações é que fazem toda a diferença. Além do mais, não se pode negar que a existência
do jornalismo como instituição e seu enraizamento nas práticas sociais influenciam
decisivamente o próprio aparecimento de eventos. Entretanto, exatamente por se apresentar
como aquilo que não é, o jornalismo consegue legitimar-se e assegurar seu lugar de
autoridade, como o mediador “neutro” definido pelo conceito de “quarto poder”, e garante
foros de “verdade” aos fatos que divulga - e que supostamente “falam por si” -, elidindo as
mediações discursivas (portanto, ideológicas) que dão a esses fatos o status de notícia
(CHAPARRO, 1998).
A sustentação do mito da objetividade dos fatos, da crença de que eles “falam”,
“tema em grande parte obsoleto” (ECO, 2000, p. 59), subjaz ainda à credibilidade e continua
alimentando a confiança de que os jornais “mostram” a realidade. Lembramos, agora, de um
pensamento de Marilena Chauí, oportuno para o momento, (ainda que não sejam exatamente
estas as suas palavras), mas segundo ela, “não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a
qualquer pessoa”. Isso nos leva, então, a concluir que os jornais detêm o poder de dizer, por
tratar-se de uma instância de poderes. O jornal tem o poder de dizer, de fazer saber, de fazer
crer e o poder de fazer querer, que se articulam numa estrutura complexa, vista por muitos
autores como construção da realidade.
As reflexões vistas até agora servem-nos para mostrar que o texto jornalístico é
relato, exposição, anúncio, enunciado, pronunciamento e denúncia sobre a atividade
lingüística do homem em suas relações sociais, políticas e econômicas. Trata-se de uma
exteriorização, cujo resultado é tornar visível um saber comunicável, segundo interpelações
97
ou (pro)vocações políticas e econômicas de um espaço social, que estabelece e mantém uma
ordem pública. Tratando-se da sociedade atual, torna-se restrita a valores ditados pelo
mercado e aos indivíduos/sujeitos da economia: proprietários e proletários, que não são
igualitários ou indistintos, mas, importante salientar que integram um campo de interesse
comum.
O enunciador do texto jornalístico é esse sujeito duplamente coagido: tem que
driblar o real da língua e o real do discurso. Sob esse aspecto, ele é a aparência do sujeito
compromissado com certa escrita que pode fazer-aparecer, como significante que cria a ilusão
do real, trazendo para a superfície, fatos ou feitos, relato, exposição, narração, simulacros do
mais verdadeiro ou menos verdadeiro - porquanto a interpretação dependerá do jogo simétrico
ou assimétrico e complementar da interação entre os sujeitos falantes na realidade do discurso
em ato. Dentre os valores dessa materialidade, estão os valores econômicos, que se articulam
nas desigualdades do sistema capitalista, tendo no sonho da utopia, o ideal da luta para
estatuir a igualdade. Por essa via, a produção jornalística tem como balizas tanto as relações
de poder, como o marketing - aqui entendido como busca do mapeamento dos interesses,
necessidades e desejos dos potenciais leitores, modo de estabelecer a relação fiduciária ou
contratual entre jornal, enunciador-jornalista e leitores (MOTTER, 2001).
Ao afirmar que a semiótica dispõe de elementos para marcar a subjetividade em
termos de uma tensividade fórica, o semioticista Ignácio Assis Silva (1995, p. 84), no capítulo
que trata sobre a construção do sujeito, lança a pergunta: “E a objetividade?”. Questionando
sobre as maneiras de enfocá-la, se “por uma visada discretizante, desenhando-lhe um perfil
mórfico? Ou por uma visada tensivizante [...]”, o autor explica que à luz da primeira
alternativa, “o objeto surgirá como algo estático, assubjetivo e anobjetivo, avalente”. Conclui,
então, que optar por tal concepção de objetividade, dentro da visada discretizante, seria
“como que dar um passo atrás na história dos estudos da linguagem [...] voltar à orientação
prevalente no estruturalismo dos anos 50 e 60, voltar à taxionomia.”
Dentre as questões de cunho teórico postas por Assis (1995) sobre a subjetividade
e objetividade, retomamos o questionamento sobre a tensividade fórica, já que achamos
oportuno transcrever uma passagem em que cita Greimas:
Como o objeto é, de algum modo, o espelho do sujeito, poder-se-ia pensar
em projetar esse arcabouço tímico-fórico no Objeto? Falando das
precondições da significação, Greimas & Fontanillle (1991, p.25) dizem que
é conveniente imaginar um patamar de ‘pré-sentimento’, o da tensividade
fórica, em que se encontrariam, intimamente ligados um ao outro, o sujeito
para o mundo e o mundo para o sujeito (p. 85).
98
Com efeito, o mundo que o sujeito determina e dimensiona não se apresenta em
sua totalidade. O que tem são apenas duas janelas de um olhar. Ainda que a ânsia pela
totalidade esteja sempre a dominá-lo, ele não consegue mais do que captar fragmentos de um
todo, que se estende diante do esforço objetivante. O olhar assujeita o indivíduo ao parcial, à
particularidade, ao fracionado. Nessa dimensão, o discurso jornalístico não passa da
construção de um saber limitado, mesmo no investimento de todo esforço para dar conta de
toda a parte que lhe cabe nesse latifúndio da história, parcela real, fundamentada na
legitimação da materialidade jornalística. A coerência, assim, para análise desse discurso deve
sustentar-se não por “uma taxionomia de valores” como propõe Assis (Id., p. 86), mas por
“uma pragmatologia, mais precisamente, por uma ideologia”. O semioticista afirma, ainda,
que “nenhum objeto surge ex nihilo – ele ocupa um lugar no universo discursivo, que atua
como um nicho ideológico, um ambiente, um domínio cultural”. Para tanto, apóia-se no
pensamento do filósofo Henry Lefebvre: “construir um espaço é ocupá-lo”.
Ao sujeito-enunciador do discurso jornalístico, no exercício de sua prática
profissional, compete a tarefa de se colocar no lugar do leitor, pressupondo a sua ocupação.
Reconhece-se o saber do leitor, mas o que se espera é que ele assuma esse saber no campo da
produção desse discurso. É conveniente ratificar que tal tarefa aparece de forma bastante
evidente nos manuais de redação, o que nos leva a afirmar que o leitor é construído pelo
sujeito enunciador.
Como qualquer produto informativo, o jornal é um produto semiótico, fruto de um
conjunto de escolhas e seleções arbitrárias. O texto informativo, como qualquer enunciado, é
um processo específico de individualização da linguagem enquanto código de significação.
Quando um jornalista redige o texto para a empresa jornalística, materializa um processo
ininterrupto de escolhas, que acabam constituindo uma dentre uma infinidade de
possibilidades preteridas. Para a seleção temática, procede também a escolhas estritamente
formais no sistema da língua (no léxico, na sintaxe).
Desta forma, concluímos que a mídia não é o espelho do mundo, mas construtora
de um mundo possível, espaço semiótico privilegiado onde todo e qualquer tipo de imposição
arbitrária de representações permite esconder o princípio da dominação que se encontra em
sua origem (da ordem da língua, da sociedade).
Nessa procura de sentidos para a “terra”, sobre a idéia de efeitos de sentido no
mundo possível da sociedade agrária brasileira, alguns esclarecimentos se fazem necessários.
Onde terminaria ou começaria a relação do que é informação com o universo dos
99
acontecimentos que envolvem o homem e a terra no Pontal do Paranapanema? Qual a
dimensão de subjetividade nos dizeres que constroem os enunciados do corpus em análise?
Muitos são os estudos que levam a pensar numa comparação de natureza entre o
discurso informativo jornalístico e o discurso ficcional, como se este último se distanciasse do
caráter de “seriedade”. Mas a discussão acabaria por nos levar para questões para contrapor
gêneros diferentes: o jornalístico e o literário. Isso não nos colocaria diante de nossos
objetivos neste trabalho. Todas as reflexões que sustentamos visam sempre a colocar em
relevância o sujeito e as implicações dos dizeres que constroem o tema da terra no Pontal –
condições perceptivas, sensíveis e afetivas da significação dessa temática, na emergência do
processo significante do texto jornalístico de Oeste Notícias e O Imparcial.
Como restringir a figuratividade de um discurso da objetividade, que goza de um
certo marketing de pureza informativa à representação semântica, sem considerar a dimensão
afetiva e passional do sujeito? É bom lembrar que não se trata de considerar apenas estados de
alma, tendo ciência do perigo que pode representar a trajetória pelo caminho das questões
afetivas. Não se trata, então de restringir o discurso às questões afetivas, mas relacionar,
especialmente, a própria percepção de um sujeito inserido no processo da construção de um
dizer, marcado historicamente.
O termo subjetividade está sendo empregado neste nosso empenho para a
focalização que ofereça um direcionamento ao trabalho de organização discursiva do tema da
terra no/do texto jornalístico. A partir da harmonia aparente da objetividade preconizada pela
maioria dos gêneros da mídia impressa (notícia, editorial, etc), podemos dizer que a tensão
entre o gênero e o fato/acontecimento e, entre este e a cultura é o que desencadeia a leitura da
terra, que vem sempre determinada pela expressão fórica (euforia/disforia) da instância
enunciativa. A constatação da existência dos sujeitos (enunciador e leitor) movidos/divididos
pelo fazer discursivo, conduz a um outro fazer (o do leitor-analista). Engendrados no discurso
jornalístico, ambas as direções remetem ao lugar de adesão cujo fazer remete à construção ou
à desconstrução da técnica jornalística ou ao resgate do que lhe escapa.
Diante de tantas discussões, em termos mais práticos, convém encaminhar nossas
reflexões para o que vai pautar a seleção dos textos do corpus de análise, na divisão dos
textos: de informação (notícia, reportagem) e de opinião (artigo, editorial, charge, coluna,
etc.). Sem querer isolá-los, vamos contemplando os diferentes gêneros. Convém ratificar a
crença de que informação e opinião não se separam, mas se misturam e interagem, podendo
ser observadas em qualquer espaço jornalístico. A objetividade jornalística é um efeito de
100
sentido criado no/pelo discurso. De acordo com normas e procedimentos jornalísticos, sofre
coerções dessas normas, devendo ser entendida dentro dessas limitações.
Quanto à notícia, por não ser o fato em si, deve ser vista como resultante de um
complexo processo de produção, dentro das regras do campo informativo da empresa
jornalística. Não podemos negar que reconhecidamente rígidas, são regras que buscam
sempre o fechamento e não a abertura dos sentidos, na tentativa de regulá-los.
Como dispositivos de controle, os gêneros jornalísticos entram como guardiões de
regras que instalam/criam lugares de leitura no jornal, organizando os discursos nos espaços
reservados nas páginas, nos cadernos. Tudo muito determinado. Importante destacar é que
não há como partir do pressuposto de que opinião e a informação sejam excludentes. Isso
posto e depois de tantas reflexões sobre os conceitos, não podemos pensar em espaços
exclusivos para uma ou outra.
101
PARTE II
O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
102
“Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o
mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som,
para já não falar dos pensamentos, que é coisa do estofo, pensar no que se
pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o
outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.”
José Saramago, Levantado do Chão, Lisboa, Caminho, 1999, p. 59.
103
No reconhecimento de que “a enunciação é o conceito-chave para explicação do
discurso e de suas relações com as condições sócio-históricas de produção e de recepção”
(BARROS, 1988, p. 142), para a semiótica, uma das condições para apreender a significação
dos textos é compreender a instância enunciativa como lugar de destaque nas relações entre o
discurso e o contexto.
Sendo assim, em se tratando dos textos jornalísticos, considera-se a relevância da
enunciação por suas condições de abrigar os percursos da comunicação e o de produção,
relacionando papéis temáticos e papéis narrativos subjacentes (BARROS, 1988), que
constituem as estruturas sêmio-narrativas, às estruturas discursivas.
Em relação à importância da instância enunciativa no/do texto jornalístico, objeto
de nossas leituras, reconhecemos a necessidade de relacionar o discurso das questões agrárias
construídas nos jornais do Pontal ao contexto social e histórico em que se insere. Recorremos
ao conceito de contexto para tratar da caracterização das condições sócio-históricas que
definem temporal e espacialmente o texto. Para isso, vamos considerar um contexto formado
por textos que falam das questões sobre a terra, que possibilite uma articulação com os textos
do corpus de análise (O Imparcial e Oeste Notícias). Por se tratar de mídia impressa,
recorremos à mesma realidade do jornalismo impresso para constituir esse contexto.
Pelo reconhecimento da inscrição do texto jornalístico na história, somos levados a
reconhecer a necessidade de reunir textos para apreensão dos valores convocados nessa
materialidade para a significação da temática da terra, construída nos dois jornais do Pontal.
Partindo do princípio de que todo texto é um recorte, vimos a necessidade de
transportar os textos que constituem o corpus de análise para uma dimensão mais abrangente
da realidade social, que tornasse possível a apreensão de sua leitura num contexto situacional
de maior abrangência. Desse modo, a temática da terra, construída na região, poderia ser
apreendida a partir de um âmbito estadual, nacional.
De acordo com Bertrand (2003, p. 86), “a enunciação individual não pode ser
considerada independentemente do imenso corpo de enunciações coletivas que a precederam
e a tornam possível”.
Ora, devemos reconhecer que as dimensões da enunciação em O Imparcial e Oeste
Notícias são assumidas na trama do discurso sobre a terra, de âmbito maior do que o regional.
Dessa maneira, só a leitura numa dimensão mais abrangente oferece a possibilidade para
discernir uma gama de vozes cuja sonoridade ecoa para além do horizonte local, ou seja, para
além das relações enunciativas do Pontal.
104
A partir da reelaboração teórica, apresentada na primeira parte deste trabalho,
podemos entender que o discurso jornalístico é, ele próprio, uma das dimensões da realização
da história, em estreita ligação com as demais dimensões: políticas, econômicas, etc. É bom
deixar claro que, ao falarmos de condições históricas de produção do discurso jornalístico,
não as consideramos como coerções que determinam os textos produzidos no jornal, de um
exterior, mas como aspectos de uma realidade social que tem na especificidade do discurso
jornalístico uma de suas formas de manifestação. Tal conceituação pressupõe que a leitura do
discurso da mídia impressa seja o resultado de relações estabelecidas entre a sua
materialidade de significações linguageiras, as demais dimensões históricas e,
particularmente, aquelas implicadas na esfera da atividade humana relativa ao gênero do
discurso interpretado: a diversidade de gêneros produzidos no jornal impresso.
Procuraremos, então, delinear a configuração histórica dos dois jornais regionais,
relacionando-os a um plano geral. Não se propõe, com isso, substituir uma análise semiótica
por uma análise histórica. Estaremos considerando os revestimentos semânticos que
determinam os discursos dos textos que dialogam com o tema da terra.
Como contexto que define temporal e espacialmente os textos do corpus de análise
(O Imparcial e Oeste Notícias), elegemos o contexto formado pelos textos que constituem as
edições de 2002 de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. O período era de encerramento
de oito anos de mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, num cenário político de
transição para um governo de oposição (PSDB para PT). Essa delimitação se justificava por
compreender a gestão de um governante, autoridade respeitável na área das ciências sociais,
competente pelo saber e pelo poder, num momento em que o país passou a acreditar que
pudessem emergir esperanças hibernadas no campo social. É inegável que o governo de FHC
representava o desencadeamento de um processo histórico, quando todo o país nutria fortes
sentimentos de renovação especialmente no que se referia a questões sociais. No primeiro
mandato, constituir-se-iam os fundamentos dos sonhos dos brasileiros para concretizar todos
os elementos formadores de um organismo social completo e distinto, como uma cenografia
da esperança. Nesse ambiente de positividade inserem-se as questões agrárias.
Estamos cônscios de que discutir um assunto que envolve a terra não se restringe a
um determinado panorama social de um momento específico da história brasileira. Incorpora
fatores diversos: tanto étnicos quanto ecológicos. Incorpora, sobretudo, padrões de relações
políticas que põem em questionamento a divisão espacial geográfica do ponto de vista
ecológico ou econômico como solução para fixação do homem no espaço geográfico, para
105
habitação e trabalho. Estamos aí, então, diante da distinção entre terra e território, conforme
discutimos no texto defendido no Mestrado, quando trouxemos os estudos do geógrafo Milton
Santos. Interessante retomarmos a distinção: o território é socialmente construído, sendo a
chave para se entender a clivagem entre rural e urbano. O território não cabe dentro da divisão
político-administrativa, o que constitui um primeiro passo para se compreender a emergência
dos novos movimentos sociais, especialmente o MST.
Neste momento, interessa-nos a significância de um processo histórico que
represente a evolução de um dos sistemas que gritam por saídas emergenciais, o sistema
agrário da nação, um dos mais intrincados problemas brasileiros: a terra, o homem e o
trabalho.
Se falar de produção jornalística é, geralmente, pensar questões relacionadas aos
núcleos urbanos para uma população dos centros administrativos do país (referimo-nos aos
grandes jornais como O Estado e Folha de S. Paulo), interessa-nos, aqui, dirigir o olhar para
uma realidade que obriga a encarar a encruzilhada rural de um espaço geográfico brasileiro
onde o mito sobre conflitos de terra, o Pontal do Paranapanema, é reiteradamente cenário da
imprensa nacional. Acreditamos ser redutor isolar a questão no âmbito regional, sem situá-la
no contexto nacional. Há questões residuais, o que nos obriga a, pelo menos, discutir as raízes
históricas mais recentes desse foco de conflitos fundiários do estado de São Paulo, que, só no
ano de 1999, teve um total de 12 conflitos. Sabemos que a focalização de um fragmento, em
qualquer sentido que seja, geográfico, econômico, social ou político, apenas no desenrolar das
últimas décadas, é bastante redutor para traçar um cenário das tensões sociais da história
agrária do país. No primeiro momento, focalizaremos o panorama nacional para, depois, no
segundo capítulo fazermos uma abordagem da região do Paranapanema, espaço onde se
constrói o nosso objeto de análise.
O foco em apenas um fragmento de um momento histórico, o mandato
presidencial de FHC, é bastante limitador, quando se pensa em todo o horizonte histórico
brasileiro de cinco séculos, ainda que se trate da gestão em dose dupla, como foi a de
Fernando Henrique. Indiscutível que uma visão mais abrangente e, não apenas restrita a oito
anos de um mesmo governo, sustentaria de forma mais segura a compreensão da temática
proposta. A consciência da importância de incluir também outros momentos históricos, o que
seria impraticável neste brevíssimo texto, levou-nos a buscar não mais que umas pinceladas, a
partir do olhar sobre o percurso histórico, para aí destacar algumas cores que não podem faltar
no quadro da realidade agrária brasileira. Ao se pensar nos primeiros anos da formação do
106
país, compreendidos pelo período colonial, por exemplo, há leituras que não se podem omitir.
Uma delas é a Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior, que possibilita um
balanço dos três séculos de evolução colonial. Isso já justificaria um levantamento de
elementos para interpretar o contexto agrário atual brasileiro. Não é nosso escopo uma
abrangência de tal dimensão, porém trata-se de uma abordagem sobre questões que afetam a
história agrária do país como um todo. As informações contidas em um dos referenciais da
história brasileira, da significância de Caio Prado Junior, não poderiam, então, deixar de ser
contempladas.
Acreditando ser apropriado, faremos um flash-back, como um parêntese no
contexto dos anos 90. Nesse olhar para o passado, justificando a compreensão do presente,
passamos à transcrição de alguns trechos, por acreditarmos serem significativos no
desenvolvimento das nossas análises.
Ao tratar da estrutura agrária do Brasil colônia e ao tipo de colono que para estas
terras veio e aqui permanece, assim pronuncia-se Prado (2000):
Não é o trabalhador, o simples povoador; mas o explorador, o empresário de
um grande negócio. Vem para cá dirigir: e se é para o campo que se
encaminha, só uma empresa de grande vulto a grande exploração rural em
espécie e em que figure como senhor, o que pode interessar.[...]A grande
exploração agrária é conseqüência natural e necessária para ocupação e
aproveitamento deste território. [...] são grandes áreas de terras que se
concedeu no Brasil aos colonos [...] desprezíveis, as “sesmarias”,
designações que teriam as concessões, se alargam por espaços muito
grandes, léguas e léguas de terra. [...] a política [do Reino] se orienta desde o
começo, nítida e deliberadamente no sentido de constituir na colônia um
regime agrário de grandes propriedades [...]não ocorrerá a nenhum dos
donatários [...] a idéia de tentar sequer uma organização camponesa de
pequenos proprietários” ( PRADO, 2000, p. 118).
Acreditamos, também, ser oportuno recorrer a um outro autor do porte de Caio
Prado. A leitura de Holanda (1969) põe-no diante das relações do homem com o espaço
físico, o que constitui uma chave para nossas análises. Ao falar das técnicas empregadas pelos
brasileiros no trato da terra em Raízes do Brasil, apesar de algumas críticas quanto à visão do
autor, podemos refletir, por exemplo, porque “somos uns desterrados em nossa terra”
(HOLANDA, 1969) e nos comportamos como conquistadores de passagem, em busca de
riqueza fácil. Ao longo do estudo desse autor, não escapa ao leitor arguto a observação de
traços da herança cultural do ocupante português, que vão surgindo ao longo das páginas: o
desleixo, o desamor à terra, a concepção espaçosa do mundo. Desenha-se de forma bastante
107
visível o modo como se pratica o cultivo da terra desde o descobrimento: bastante
característico, em meio à abundância de solo cultivável que convidava ao esbanjamento.
A leitura dos textos, tanto de Prado (1969) quanto de Holanda (1969), leva-nos
para um dos temas que permeiam as discussões mais recentes sobre a terra: o tema da
depredação, a ser tratado ao longo das análises, especialmente quanto às referências a
questões ecológicas. Interessa-nos tal incursão aos autores acima referidos para lidar com
dados incrustados na essência de nossa formação, não apenas em termos de economia, mas,
sobretudo, em termos de relação homem-ambiente. Com efeito
[...] na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros
gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão, e em seguida café
para o comercio europeu, Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo
exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não
fossem aquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia
brasileiras (PRADO, 2000, p. 333).
Podemos arrematar as considerações:
Teremos também os nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o
do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da
terra fértil, enquanto fértil, como ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho,
sem retribuição de benefícios. A procissão dos milagres há de continuar
assim através de todo o período colonial, e não a interromperá a
independência, sequer a República (BUARQUE, 1969, p. 334).
O processo de ocupação do Brasil fez prevalecer a devastação e quase cinco
séculos de relação predatória com recursos naturais, que consolidaram um padrão acentuado e
intensificado pela modernização capitalista e as técnicas industriais do século XX.
As informações de Caio Prado em Formação do Brasil Contemporâneo
conduzem-nos para afirmar que a estrutura fundiária brasileira, sob o signo da grande
propriedade rural, levou ao nascimento do latifúndio. Algumas décadas após o descobrimento
e depois de uma primeira fase caracterizada pelo escambo com os índios, foi instituído o
sistema de capitanias hereditárias, entregues a donatários designados pelo rei de Portugal. O
Brasil foi dividido em 12 capitanias, imensas áreas de terras, concedidas a senhores
vinculados à Coroa.
Por contingências do mercado mundial e da relação colonial prevaleceu o cultivo
de um só produto - a monocultura da cana-de-açúcar - que se desenvolveu com base na
exploração da mão-de-obra escrava trazida da África. Este foi o quadro que dominou a
108
economia brasileira durante três séculos: a grande propriedade na mão dos amigos do rei, o
regime escravocrata e a monocultura voltada à exportação.
A independência do Brasil, em 1822, trouxe um breve período em que, por falta de
legislação sobre a posse da terra, homens livres ocuparam modestas áreas de terras devolutas.
O número de posseiros, porém, foi pequeno e não chegou a mudar o perfil da estrutura agrária
do país, que continuava baseada no latifúndio monocultor - nessa época, o do café - ainda
explorado com mão-de-obra escrava e também voltado para o mercado mundial.
Em 1850, com a chamada Lei de Terras, as elites escravocratas fecharam a
fronteira agrícola, estabelecendo que a posse de terras públicas somente seria permitida
mediante pagamento de alta soma em dinheiro. A nova legislação impediu o acesso à terra
dos brancos e mulatos pobres, dos negros e dos imigrantes europeus, que começavam a
desembarcar no Brasil, com o fim do tráfico de escravos. As oligarquias brasileiras
precisavam de mão-de-obra barata, para substituir o braço escravo, nas plantações de café do
sudeste.
Oportuno dizer que um dos grandes nomes dos estudos das questões agrárias no
Brasil, José de Souza Martins (1996), que representou uma das referências para a pesquisa no
mestrado e que nos conduz nestas nossas leituras, leva-nos mais uma vez a reflexões. O
referido autor afirma que melhor sorte tiveram os europeus que haviam chegado no sul do
Brasil, algumas décadas antes da chamada Lei de Terras. À época, a necessidade do regime
imperial brasileiro era a de povoar o território da fronteira sul do país, caracterizado por
grandes vazios populacionais, constantemente ameaçado por invasões dos países vizinhos e
que se havia declarado independente do Brasil, durante uma revolução que durou dez anos
(1835/45) e na qual os separatistas foram derrotados.
No sul, os imigrantes europeus receberam lotes médios de terra e a maioria
progrediu. Essa é uma das características de povoamento que explica o fato de o estado do
Rio Grande do Sul ser mais equilibrado do que os demais, no que se refere à estrutura
fundiária e à utilização da terra, praticamente sem latifúndios improdutivos e quase sem
problemas de definição de títulos de propriedade.
A vinda dos imigrantes europeus para o Brasil, de acordo com Martins (1996), não
resolveu, apenas, as dificuldades de ocupação do território ao sul e de carência de mão-de-
obra barata dos grandes proprietários do sudeste. Foi, também, parte da solução que a Europa
encontrou para seu problema de excedentes. A modernização dos meios de produção, no
século XIX, transformou grandes contingentes de trabalhadores europeus em excedentes do
109
mercado de trabalho, que havia deixado de ser artesanal e empregador de mão-de-obra
intensiva, para se mecanizar. Aos que foram postos para fora do mercado de trabalho urbano
da Europa, juntaram-se os pobres e os sem-terra do meio rural nas regiões mais atrasadas do
continente.
Excluídos do processo de desenvolvimento econômico e expulsos pela
modernidade, esses trabalhadores europeus não tiveram alternativa senão abandonar seus
países, em busca de uma vida melhor no novo mundo das Américas - Brasil, Estados Unidos e
Argentina, principalmente -, na Austrália e em alguns países da África. Erradicou-se a
pobreza, portanto, na Europa do século XIX, em parte, pela exportação dos pobres.
Parece até mesmo uma ironia da história, mas muitos dos dirigentes e integrantes
dos movimentos organizados de trabalhadores sem-terra do Brasil, hoje, são descendentes
daqueles agricultores pobres da Europa que emigraram para cá, em meados do século XIX e
início do século XX. Os olhos azuis, a pele clara, os sobrenomes de origem italiana, alemã,
polonesa, espanhola não deixam dúvidas. São, de fato, os netos e bisnetos daqueles que a
Europa excluiu, no século passado, e que lutam contra uma nova exclusão, neste final de
século XX, no Brasil.
De acordo a Revista da USP Estudos Avançados, no artigo Dossiê Questão
Agrária ( a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, feita pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apresenta os dados sobre a realidade
populacional do país. Segundo a pesquisa, a população brasileira, em 1995, era de 152
milhões de pessoas - a quinta maior do mundo, atrás apenas da China, Índia, Rússia e Estados
Unidos. Desse contingente, 120 milhões constituem a população urbana e 32 milhões vivem
no meio rural, provando que o Brasil passou por um dos mais velozes processos de
urbanização da história moderna. Em 1950, a zona rural abrigava quase 70% dos habitantes
do país e, hoje, tem pouco mais de 20%. Esse êxodo rural acelerado, que perdurou até o início
dos anos 90, foi quase estancado, a partir de 1995. As maiores metrópoles brasileiras
praticamente pararam de crescer, a população rural mantém-se estável, desde 1992, com um
pequeno crescimento, apenas, na faixa de pessoas com 10 anos e mais. Um quinto da
população vive em cidades com menos de 20 mil habitantes. Em compensação, as cidades
médias do interior do Brasil estão batendo recordes de crescimento populacional, o que
aponta para uma tendência de desconcentração e de maior equilíbrio, na distribuição espacial
dos habitantes.
110
Com o propósito de constituir uma dimensão social e histórica para inscrever a
temática da terra construída em Oeste Notícias e O Imparcial, passemos à focalização dos
textos selecionados para nossas leituras, extraídos de O Estado de S. Paulo e Folha de
S.Paulo.
111
CAPÍTULO 1
QUESTÃO AGRÁRIA NO GOVERNO FHC
A escolha da Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo para constituir um
contexto formado pelos textos que abordam questões relativas à terra significa o trabalho com
a própria materialidade jornalística. Acreditamos que, por meio do conjunto dos textos desses
dois grandes jornais, é possível compreender a instância enunciativa como lugar de destaque
nas relações entre o discurso e o contexto em que se inserem as questões sobre o tema da terra
no jornalismo do Pontal do Paranapanema.
Fomos a diversas fontes: livros; revistas; artigos científicos; textos
governamentais, disponíveis na Internet, específicos para informações sobre a questão agrária.
Em todos os textos, reconhecemos o perigo de uma leitura falseada para os dizeres
comunicados. Os discursos pedagógicos e políticos, na argumentação bem construída para
revestir pontos de vista capazes de persuadir qualquer leitor, não fogem ao fazer persuasivo
do enunciador, por isso mesmo, não podiam servir de critério para observar a veracidade dos
dizeres construídos nos jornais do Pontal. O discurso que emanava dos textos pesquisados,
centrado ora em dados negativos, ora em positivos, mostrou-se como um certo “caos” das
falas sobre as questões a que visávamos. Construídos ora como dizeres verdadeiros para
informações indiscutíveis, com fortes apelos para efeitos de sentido de objetividade, isso já se
constituía em motivo de sobra para afastá-los como fonte de pesquisa. Foi, então, em
decorrência disso, que passamos a ver nos textos jornalísticos uma possibilidade para a
contextualização pretendida. A crença era a de que os fatos linguageiros, de cores e matizes
variados, fossem uma opção adequada para inserir os textos de O Imparcial e Oeste Notícias,
com a vantagem de localizá-los num quadro social geral, ou seja, em formações ideológicas
contrárias ou contraditórias, permitindo a visualização das questões contempladas.
Na multiplicidade da linguagem jornalística, sujeitos às coerções de cada gênero
da Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, juntando/separando trigo e joio, passamos à
seleção do material para o tecido deste texto cuja finalidade é a de chegar a um conjunto de
outros textos para inserir o corpus, a ser analisado no próximo capítulo. Convém deixar claro
que esse conjunto resulta da leitura de um sujeito que, sem a pretensão de levar a uma
112
exaustividade horizontal, tem a consciência de impossibilidade de esgotar todas as
informações em extensão, não tendo nenhuma ilusão de que este trabalho dê conta de todos os
discursos produzidos sobre a temática agrária em 2002 pelos dois grandes jornais de São
Paulo. Convém também deixar claro que o olhar sobre os objetos semióticos analisados deve
ser reconhecido como construção de um “eu”, sujeito de cognição, que não tem como se livrar
das dimensões sensíveis e afetivas, em maior ou menor grau. Dessa maneira, a leitura,
produção do ponto de vista de um observador, que não pode se tornar puro sujeito de
observação, puro espectador absoluto que suponha ou que, no idealismo de todo analista,
possa formar uma ordem de fatos datados e localizados por uma multiplicidade plana. Como
sujeitos de cognição e de sensibilidade, membros de uma sociedade de leitores, estamos
sempre a exercitar nossa competência para a atividade de leituras, para a interpretação de
discursos que integram nossa vida social, cuja competência faz parte da bagagem de
conhecimento e que nos define como atores sociais, protagonistas do inteligível. Chamamos a
atenção para o fato de que não há nenhuma ingenuidade em admitir a fidedignidade dos dois
veículos de comunicação em relação aos acontecimentos factuais.
É assim que, mesmo não tendo a intenção de nos enlaçarmos a determinados
valores cristalizados culturalmente, vimo-nos fixando o olhar para enxergar efeitos de sentido,
que podem ser questionados por outros observadores, os quais, não tendo a mesma visão,
podem denunciar uma visibilidade ideologicamente marcada.
Como arqueólogos, tentamos escavar no monte de jornais empilhados durante um
ano inteiro, manuseando cada texto à caça de temas e figuras resultantes das “escolhas”
enunciativas dos discursos produzidos pelos dois jornais diários de São Paulo para garimpar,
em cada página, a temática da terra, na obtenção do material para a construção do contexto
sócio-histórico, de tal sorte que permitisse abrigar um panorama das questões agrárias na
sociedade brasileira, no último ano do governo FHC. Sem querer confirmar ou negar a
problemática da veracidade de dizeres no interior dos discursos enunciados por esses dois
veículos, deixamo-nos conduzir sempre pelo texto que oferecesse a possibilidade de
vislumbrar as questões pretendidas.
Decorrente de uma estrutura fundiária na qual coexistem os mais diversos
problemas com a terra: latifúndios, minifúndios, empresas rurais, grandes extensões de terras
devolutas, grileiros, arrendatários, bóias-frias, sem-terra, assentados, o governo de Fernando
Henrique Cardoso, tendo acertado bem ou mal suas contas com a sociedade rural brasileira,
trouxe para o centro da mídia o intrincado tema das questões agrárias, no último ano de seu
113
mandato. Somando a problemas estruturais, as expectativas e ilusões alimentadas por
promessas políticas levaram a questão a ser considerada uma das mais espinhosas enfrentadas
pelo governo. Depois de incluir a reforma agrária como uma das prioridades, FHC, que teve
seu primeiro governo marcado por dois massacres em conflitos no campo (Corumbiara (RO),
em 1995, e Eldorado do Carajás (PA), em 1996); no seu último ano de mandato, sofreu
particularmente as conseqüências do conflito agrário, quando teve sua propriedade rural
invadida.
Carajás incentivou o recrudescimento das ações do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, surgido no Sul nos anos 80 e que mantinha uma atuação relativamente
discreta. Sob holofotes, o MST descobriu a ocupação de terra como arma de pressão política,
com um aumento cada vez mais crescente. De acordo com um caderno especial “Anos FHC”
(Folha de S. Paulo,19/12/2002), “de 146, em 1995, o número de áreas invadidas saltou para
599 em 1998”. Para uma avaliação do governo, que encerrava sua segunda gestão, foram
publicados diversos artigos sobre diferentes assuntos: consumo, renda, saúde, trabalho, cuja
finalidade era fazer uma avaliação da era FHC. Interessou-nos, especialmente, o artigo
assinado pelos jornalistas José Maschio e Eduardo Scolese, por nos colocar diante de um
panorama geral sobre as questões agrárias. Aparece em destaque a atuação do MST que,
segundo os articulistas, diversificou suas ações, organizando marchas, saques, invasões, que
culminaram numa reação do então ministro da Justiça, Renan Calheiros, ao determinar que,
toda ação do MST encontraria uma reação judicial.
De um lado, a reação das autoridades. Mesmo reconhecendo a importância do
MST enquanto movimento social condenavam a sua atuação, por temer uma escalada na
prática da violência à propriedade e ao patrimônio público. De outro, um dos principais
ideólogos do MST, João Pedro Stedile, justificava a radicalização naquele momento para que
obtivesse uma reação do governo para o cumprimento daquilo que dizia não estar sendo
cumprido. Diversas foram as dificuldades enfrentadas durante o processo de reforma agrária
nos anos FHC: disputas jurídicas, mortes, prisões e uma constante tensão entre fazendeiros e
sem-terra.
Disseminou-se um temor de que o MST estaria se associando a movimentos
guerrilheiros como as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e agentes
cubanos. Em alguns textos falava-se que essas notícias não passavam de estratégias
governamentais (a que o MST denominava de “criminalização”), para impedir o movimento
dos sem-terra de continuar com suas ações, fossem na zona rural ou nas zonas urbanas – com
114
invasão de prédios públicos e saques de alimentos, especialmente no Nordeste. No entanto, a
luta pela terra ganhou espaço em toda a mídia. No material recolhido durante todo o ano de
2002, era rara a edição que não trazia uma notícia sobre a questão agrária, especificamente
sobre a ação dos sem-terra. Em um texto publicado nos dois referidos jornais, achamos uma
explicação para a “judicialização dos movimentos sociais”, ou seja, o Poder Executivo agindo
em consonância com o Poder Judiciário no combate às ações do MST. Aparece nesses textos
a defesa do então secretário de Reforma Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário,
Edson Luis Vismona sobre a necessidade de o Estado agir com rigor no combate às ações do
MST por ultrapassar a luta pela terra: “O MST faz política ideológica e suas formas de se
manifestar ultrapassaram também os limites da lei” (Folha S. Paulo, 19/12/02).
Por ter apresentado a seus eleitores, na campanha presidencial de 1994, a promessa
de resolver o problema da injusta concentração de terra, mediante farta distribuição de lotes,
aumentaram, assim, as expectativas da sociedade e dos movimentos sociais em relação à
reforma agrária. Se uma das características da sociedade brasileira é procurar os governantes
que vendam ilusões, este foi o princípio que orientou o programa de governo em dois
mandatos. Para aqueles que sonhavam com seu pedaço de terra, a ilusão passou a mobilizar a
todos. A candidatura do sociólogo representava a expressão daquela valorização da
democracia que estava no núcleo das decisões de constituir uma sociedade pavimentada em
interesses e perspectivas indicadoras de avanço e progresso. E a promessa de resolver o
problema da injusta concentração de terra, no Brasil, mediante farta distribuição de lotes,
passou a ter grande apelo eleitoral, constituindo-se numa certeza para a população dos sem
terra: que seria exeqüível, em quatro anos.
Para o que não foi sendo executado, brotavam discursos como justificativa diante
de medidas que não se realizavam. Assim, uma dessas justificativas era de que, em tempos de
globalização de mercados, de sofisticação tecnológica e de alta competitividade, limitar-se a
distribuir terras entre os pobres do meio rural, teria efeito contrário ao pretendido. Ao invés
de levar justiça social, garantiria a reprodução da pobreza no campo. Fazemos estas
afirmações, já antecipando as leituras das quais vamos, aos poucos, puxando fios visivelmente
distintos de duas “verdades”, que se contrapõem: a terra ligada à produtividade e a terra
ligada à questão fundiária.
De um lado, efeitos de sentido de modernidade de um sistema agrícola brasileiro
do desenvolvimento, que atinge um grau de produtividade espantoso, em vista da aplicação
cada vez maior de tecnologia, como adubos, técnicas de pesquisas com transgênicos,
115
máquinas, sistemas de irrigação, levando a safras que alcançam índices cada vez maiores e
suplantando, ano a ano, recordes anunciados pela mídia. O agronegócio para exportações é a
realidade econômica a que os jornais dedicam páginas inteiras, como orgulho nacional
mostrado em editoriais, reportagens extensas ilustradas, com infográficos, etc: “Expansão no
campo. Lucro com exportação em 2001 capitalizou empresas, que planejam gastar mais com
expansão” (Folha,01/9/02) “Os agronegócios salvam a indústria” (Estado, 07/7/02). “Brasil,
líder agrícola. Estabelecidos ficamos pelas exportações, agora é sustentá-las com
competência” (Estado, 01/5/02).
Do outro lado, a temática da questão fundiária. Somada ao trabalho escravo, em
seu bojo, trazia a fome, que se agravava nas zonas rurais, levando ao aumento da violência
pela disputa da terra.
Pela própria natureza capitalista de nossa economia, a propriedade da terra no
Brasil, sempre apresentou uma tendência concentradora, mas que vem exacerbando com o
grande capital financeiro, levando a terra a se tornar uma especulação imobiliária.
Acumuladas em enormes glebas, a terra fica cada vez mais distante da finalidade de produção,
para tornar-se um bem especulativo do mercado econômico. Os mecanismos estatais de
correção de desvios (Estatuto da Terra, atuação do Incra ou do Ministério da Agricultura ou
Reforma Agrária) comparecem, mas a sociedade reclama pela eficácia necessária desses
dispositivos sociais que não solucionam os problema advindos de irregularidades na aplicação
das leis. Conforme não se executam as medidas governamentais, assiste-se ao aumento de
uma enorme massa daqueles que reivindicavam um pedaço de terra para o trabalho.
Tivemos acesso a um site da Secretaria de Comunicação do governo FHC, de onde
emergia um discurso cujo simulacro montado para fazer parecer verdadeiro, trazia a
explicação sobre a questão fundiária como uma representação bastante “correta”:
Trata-se, na verdade, de reformar a reforma agrária: substituir a velha visão
restrita, fundada apenas no distributivismo, por um conjunto articulado de
políticas públicas, sintonizadas com as exigências dos novos tempos. A
busca determinada de novas soluções para um velho problema poderá,
efetivamente, modificar a estrutura agrária brasileira e contribuir para a
redução das desigualdades, no meio rural.
Esse foi o caminho escolhido pelo atual governo. Disponível em:
<http.ministeriododesenvolvimentoagrario.gov.br>. Acesso em 25 set 2003.
O texto segue, elencando os feitos do governo FHC em relação à distribuição de
terras, vangloriando-se do número de assentados e concedendo os louros de uma vitória
atribuída ao presidente. São citações bastante longas, mas que transcrevemos porque os
116
dados, sobretudo, os numéricos são indispensáveis para precisar as informações sobre o
assunto.
[...] 280 mil famílias, em quatro anos de governo, é modesta e audaciosa, ao
mesmo tempo. É modesta, diante da magnitude do problema fundiário
brasileiro, mas é audaciosa, se comparada ao que foi feito ao longo da
história do país.
Hoje, além de figurar com destaque na agenda social do Brasil, a reforma
agrária começa a superar velhos preconceitos e derrubar resistências. Pela
primeira vez, há um consenso, na opinião pública brasileira, de que é preciso
fazê-la. Tradicional bandeira das esquerdas, a luta por justiça social no
campo, desde que travada dentro da lei, conta hoje com o apoio dos demais
setores da sociedade.
Essa talvez seja a maior vitória já obtida pela causa da reforma agrária no
Brasil, capaz de tornar irreversível o processo de desconcentração fundiária.
A adesão da sociedade, buscada pelo governo e impulsionada com vigor
pelos movimentos sociais organizados em defesa do direito à terra, tornou
possível ao atual governo não só cumprir, mas superar, ligeiramente, as
metas [...]
Para um país do tamanho do Brasil, os 3.502.252 hectares desapropriados ou
adquiridos pelo governo, em dois anos, e distribuídos entre 104.956 famílias
podem parecer pouco. No entanto, trata-se de uma extensão de terra superior
à da Bélgica, por exemplo, e que passou a abrigar cerca de 350 mil pessoas.
Comparado ao que foi feito ao longo da história do país o resultado também
é expressivo: em apenas dois anos, o governo Fernando Henrique já assentou
um total de famílias equivalente a quase metade de tudo o que havia sido
executado antes - 104.956 contra 218.033 famílias (excluindo-se os projetos
de colonização). Isso representa assentar por mês sete vezes mais famílias do
que a média dos governos anteriores. Disponível em:
<http.ministeriododesenvolvimentoagrario.gov.br> Acesso em: 30 set. 2003.
O panorama da sociedade rural brasileira não dava lugar a visões negativistas, já
que as previsões numéricas eram promissoras. Apresentavam-se nos meios de comunicação
dados para informar que havia um grande número de terras que se prestavam à
desapropriação, que daria para assentar mais de 180 mil famílias.
Se podemos nos referir a um clima de otimismo, de esperança que nutria o
discurso político, essa onda de positividade contaminou aqueles que desejavam aproveitar
esse momento histórico, passando, assim a cobranças efetivas. Referimos aqui ao MST, que
teve uma atuação constante para atingir seus objetivos: assentar as famílias. Contrapondo-se à
atuação desse movimento, aparece a onda de discursos em prol dos grandes proprietários de
terras do país, a exigir por novos padrões de escala de produção e tecnologia, de acordo com
as exigências do mercado. Desse dualismo emergiam, então, discursos de dois segmentos
distintos na sociedade agrária brasileira: os possuidores da propriedade rural, e os que não a
têm e lutam pela terra.
117
A leitura dos dois jornais regionais (O Imparcial e Oeste Notícias) e Folha de S.
Paulo e O Estado de S. Paulo foi um processo bastante longo. Desde a assinatura, fomos
elencando as diversas temáticas ligadas à terra, num percurso de leitura por todo o material
coletado. Depois de agrupado em categorias temáticas, foi possível visualizar um panorama
geral da sociedade brasileira, que se constituía num substancioso manancial de referências
para a focalização do cenário específico das questões agrárias do Pontal do Paranapanema,
que consistiria no corpus.
No primeiro momento nos debruçamos exaustivamente garimpando a temática,
abordada sob os mais diferentes ângulos: questões ambientais, as disputas pela terra (litígios
diversos, tendo o MST como personagem de destaque), questões político-governamentais,
jurídicas e econômicas, o espaço geográfico para o turismo, pesquisas científicas, (novas
tecnologias para o agronegócio, os transgênicos, que causaram acalorados debates entre
defensores e detratores desse tipo de cultivo), etc. Com olhos fixos na terra, as leituras foram-
se desencadeando no volume quase incontável de um ano de Folha de S. Paulo e O Estado de
S. Paulo.
Ao explicitarmos as vinculações entre os conteúdos das mensagens divulgadas
pelos dois grandes jornais e os acontecimentos ocorridos ao nível do processo social
brasileiro, já podíamos perceber que se tornaria mais clara a leitura dos textos de O Imparcial
e Oeste Notícias, com os quais já mantínhamos um contato preliminar de análise, e cujas
temáticas podiam ser incluídas, indubitavelmente, no repertório da política nacional como um
todo. Acreditávamos, então, que esse panorama histórico nacional, visto, sobretudo, por seu
conteúdo de informações, constituir-se-ia no complexo sistema de valores para fundamentar
os sentidos de tudo o que se produziu nesse mesmo período, no jornalismo impresso do Pontal
do Paranapanema.
A leitura e seleção dos temas relacionados à terra, conforme já dissemos e
voltamos a afirmar: a questão agrária foi uma das mais espinhosas da era FHC, com um
número crescente daqueles que reivindicavam terra, transformando-se num verdadeiro “barril
de pólvora” pronto para explodir e que encontrava no MST o veículo para exprimir sua
insatisfação. A ênfase maior dada pelos jornais na publicação de temas ligados a conflitos
indica a ocorrência, durante o ano em análise, das ocupações de terra como arma de pressão
política com o crescimento e radicalização do MST, que não poupou nem mesmo as terras do
próprio Presidente (conforme referimos acima, teve uma de suas propriedades rurais
invadidas). Mas, a temática da terra não se resumiu à ordem de conflitos. Como uma
118
categoria, poderíamos pensar que seriam colocados na ordem da negatividade. Entretanto,
nasciam também, nessa mesma categoria dos conflitos, discursos da ordem da positividade e
da neutralidade. Trocando em miúdos, deparamos com as idéias a favor dos conflitos em prol
da terra, ou aqueles que, mesmo sem uma direção, criavam as condições para refletir sobre o
assunto. Sem dúvida alguma, o volume quanto à negatividade, se fosse medida
estatisticamente, representaria 90% de todo o material recolhido. Seja pela defesa da
propriedade da terra (os fazendeiros), seja pela sua reivindicação dos que a desejam (os sem-
terra, grileiros, posseiros, índios), a luta pelo espaço rural constituiu-se num manancial de
referências para os produtores de textos jornalísticos.
Numa entrevista publicada pela Série Textos para Discussão, volume 3, do
jornalista Jair Borin, que participou de um encontro de pesquisadores e jornalistas sobre
questões agrárias, Brasil Rural – Na Virada do Milênio, encontramos uma explicação, para a
questão dos conflitos, a mídia e o governo FHC:
[...] se, no primeiro mandato a imprensa foi simpática com a questão rural,
quando surge, tanto na novela quanto no próprio noticiário, uma visão
menos hostil e criminalizadora das atividades do MST” [...] o quadro se
reverte no segundo mandato [...] Acredito que essa hostilidade partiu da
própria política do governo em relação à mídia, da mesma forma como
Sarney transformou as atividades relacionadas ao Plano Nacional de
Reforma Agrária em atividades hostis ao capital [...] Em alguns discursos
usou-se, inclusive a palavra caridade para justificar o programa em curso [...]
prefere hostilizar o MST, marginalizando-o, e tratando o movimento como
criminoso e infrator. A mídia faz coro com isso. Fernando Henrique tem uma
inserção muito forte na imprensa. Ele é um presidente que acabou fascinando
repórteres e editores de jornais. É culto, fala bem três ou quatro línguas [...]
(BRASIL RURAL, 2001, p. 28).
Não tivemos a preocupação com dados estatísticos, mesmo porque não
trabalhamos com análise quantitativa de dados. Mas o acompanhamento e a averiguação do
assunto permitem-nos voltar a dizer que os textos que abordavam a questão da luta pela terra,
do ponto de vista da negatividade, representaram quase a totalidade de tudo o que se produziu
sobre o assunto. Rara a semana que não se publicava uma matéria sobre conflito agrário,
focalizando sempre seus aspectos disfóricos. Não nos referimos a apenas ações do MST, mas
a litígios diversos, compreendendo questões não resolvidas quanto à posse da terra, em cujo
cenário se confrontam antigos personagens: posseiros, sem-terra (organizados ou não pelo
MST), índios, grileiros. Nesse cenário, a região de destaque foi a do Pontal do Paranapanema,
uma das mais conhecidas quando o assunto é conflito agrário. Foi no início de 2002 que a
região tornou-se protagonista de um dos acontecimentos de repercussão nacional em toda a
119
mídia quando o prefeito de Presidente Prudente tentou impedir a manifestação do MST, indo
de encontro, pessoalmente, à marcha dos sem-terra (“No Pontal do Paranapanema prefeito,
usando máquinas, tentou bloquear a entrada dos sem-terra na cidade”) (editorial de O Estado
de S.Paulo de 19/4/02). Logo depois desse incidente, a prisão do líder do MST, José Rainha,
trouxe novamente para a região o foco da mídia, especialmente da imprensa escrita.
A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo não só deram relevância aos fatos,
como também se ocuparam com regularidade dos acontecimentos da região, o que levou à
produção de textos durante todo o ano de 2002. Duas edições do primeiro caderno de
domingo, uma em abril e outra em outubro, reservaram uma página inteira para o Pontal do
Paranapanema com fotos coloridas de fazendeiros e sem-terra ilustrando a reportagem:
“Estado do Pontal, o sonho estratégico do MS”. Apresenta-se aí todo um histórico sobre as
questões agrárias daquela região de litígios, que, segundo o articulista, José Maria Tomazela,
não se resolvem, mesmo com todo empenho de diferentes gestões governamentais, quando
implicita seu parecer “desesperançoso”:
“Na década de 1940, Getúlio Vargas tentou desenvolver um projeto de
reforma agrária no Pontal de Paranapanema [...]. [...] o governador Franco
Montoro foi convencido de que as terras do Pontal poderiam servir para um
grande projeto social: a reforma agrária” (Folha, 14/4/02).
Na edição do domingo, 20 de outubro, a Folha, numa reportagem ilustrada com
fotos do presidente da UDR e do diretor estadual do MST do Pontal, traz uma reportagem de
página inteira “Entenda O Conflito No Pontal Do Paranapanema”.
O tema dos conflitos agrários no Pontal esteve presente com a mesma
regularidade, durante todo o ano de 2002, também em O Estado de S. Paulo. O acontecimento
que envolveu o prefeito e o MST, passando pelas ações do MST, que culminaram na prisão
do líder do movimento, José Rainha, forneceram fios suficientes para tecer uma infinidade de
textos sobre o problema da terra no Brasil: editoriais, cartas dos leitores, artigos, reportagens
e até crônicas. Até a renomada escritora, Raquel de Queiroz, teve nos dias 08 e 17 de junho e
17 de agosto, no Caderno 2 de O Estado, três de suas crônicas publicadas. São crônicas-
comentário sobre o tema das questões agrárias. Uma delas, partindo do eixo desencadeador, o
evento Rio+10, para discussões ecológicas: “Cúpula da Terra” instaura um narrador que sai
em defesa dos proprietários rurais, num incentivo ao agronegócio. Convém destacarmos que,
naquele momento, as ações do MST e, sobretudo, a prisão de José Rainha geravam discursos
sobre o problema da terra em todo o país.
120
Em O Estado de S.Paulo, de 04 de abril, dividindo o mesmo espaço da página,
aparecem os dois protagonistas dos conflitos no Pontal: fazendeiros e sem-terra. Como título
da página “Questão Agrária”. À direita, o título: “Fazendeiros fazem pacto contra invasão”; e,
à esquerda, em negrito, ocupando todo o espaço superior da página “Sem-terra bloqueiam
rodovia em São Paul” (O Estado de S.Paulo, 04/4/02).
Como personagem de destaque nos dois jornais, José Rainha teve sua aparição em
fotos, manchetes nas diversas páginas tanto da Folha quanto de O Estado, sendo notícia de
primeira página em várias edições. Personagem tão “importante”, ele disputava espaço com
Bin Laden. As notícias se estenderam ao longo dos doze meses de 2002. Em janeiro, quando
foi “baleado no Pontal do Paranapanema” (Folha, 20/01/02), dá início a sua aparição como
protagonista. Assim, ele é caçado por porte ilegal de arma de fogo: “Polícia busca Rainha e
líderes do MST no Pontal” (O Estado de S.Paulo, 25/3/02). É preso: “Foragido desde maio,
José Rainha é preso no Pontal” (Folha, 06/9/02). Enfrenta a polícia: “Rainha enfrenta polícia
ao ser preso no Pontal”(O Estado de S.Paulo, 06/9/02). E, em novembro, continua sendo
destaque: “Julgamento De Rainha Pode Rachar O MST”. (Esse título aparece em caixa alta,
tendo como chamada o seguinte texto: “Direção do movimento em SP punirá líder do Pontal;
caso expõe disputa entre ‘nordestinos’e ‘sulistas’” (O Estado de S.Paulo, 09/11/02).
Constatamos que os fatos envolvendo o líder dos sem-terra, José Rainha, renderam
notícias quase incontáveis e que foram contaminando toda a mídia impressa. Um dos
editoriais de O Estado, de 19 de abril, a partir do destaque ao personagem do Pontal do
Paranapanema, revela o temor do fortalecimento dos que reivindicam a terra, onde se
explicita a expressão “Estado do Pontal”: [...] militantes do Movimento dos Sem-Terra [...]
pretendem fundar um “Estado do Pontal”, numa vasta extensão de terras invadidas [...]”(O
Estado de S.Paulo19/4/02).
Em dezembro, o Pontal do Paranapanema é matéria para um outro editorial do
Estado (02/12/04), tendo como título “Buscando um novo Pontal”. Uma semana depois, dia
10, a Folha publica a reportagem “Invasões ameaçam MG com ‘novo Pontal’”. Com um
antetítulo em negrito e caixa alta: Campo Minado, e a frase “Em uma semana, duas áreas
foram invadidas pelo MST no norte mineiro; locais são alvo de disputa judicial”, num texto
que ocupa toda a página, com fotos e um mapa da região mineira.
Ora, o que se destaca nessas matérias acima, é o poder do Pontal, como sinônimo
de conflito pela terra. Assim o leitor é inserido numa região brasileira, sendo conduzido para
121
uma historicidade específica, elaborada por um enunciador que constrói um universo
axiológico de uma “verdade” só de valores negativos.
Em reportagem que divide o espaço na página com uma notícia sobre o julgamento
de policiais envolvidos no massacre de Eldorado de Carajás e a morte de João Amazonas
(onde há destaque para o epíteto: “um comunista histórico”), salta aos olhos do leitor o título
em negrito: Polícia investiga formação de guerrilha no MST. O texto coloca o Pontal do
Paranapanema em evidência:
A polícia e o ministério Público de Teodoro Sampaio, no Pontal do
Paranapanema, apuram a participação de um integrante do Movimento dos
Sem-Terra (MST), Carlos Rogério dos Reis, de 22 anos, no treinamento de
guerrilhas. Condenado a dois anos de prisão por roubo e foragido da polícia,
foi preso [...] disse que pretendia viajar para o Rio Grande do Sul. Na sua
bagagem, a polícia encontrou farto material manuscrito sobre táticas e
estratégias de guerra, além de livros e publicações sobre guerrilhas. [...] Reis
afirma que está ajudando
na coordenação da brigada de formação do Pontal
do Paranapanema (O Estado de S.Paulo 28/5/02).
Até agora falamos do Pontal, como se fosse único nas questões dos conflitos. No
entanto, quando se fala em conflitos pela terra, não só esse espaço brasileiro, mas todas as
regiões do país, de norte a sul, estiveram presentes como matéria jornalística. Entravam para o
palco do jornalismo impresso, como teatro do conflito a partir de cenas de uma programação
de encenações (com a permissão do jogo com as palavras): (en)(cena)ações constantes do
MST.
Atuantes, os manifestantes desse movimento, sem tréguas, entravam sempre em
cena, afirmando pressionar o governo a assumir o que havia sido prometido: o assentamento
das famílias cadastradas em programas para a posse da terra.
Nem mesmo uma das propriedades rurais do presidente FHC, uma fazenda em
Minas Gerais foi poupada, quando integrantes do MST invadiram a área, ocupando a parte
interna da casa até que fossem atendidas as reivindicações do movimento. Dessa maneira, o
MST conseguiu atrair para si os holofotes de todo o país numa ação que dividiu a polícia
militar de MG e as Forças Armadas, mobilizadas na defesa da propriedade do presidente,
dado o descaso do então governador mineiro, Itamar Franco, que não tomou as medidas
necessárias para impedir tal ação.
Ao lado das invasões, que se estenderam para as cidades, com ocupação de prédios
públicos, o governo chamava atenção para as irregularidades com medidas intimidatórias:
“ações penais e judiciais, prisão de líderes, suspensão de créditos de financiamento”.
122
Uma queda de braço com o MST, por se tratar, segundo autoridades do governo de
um movimento da baderna, confusão e agitação, favoreceu o destaque para os conflitos no
Pontal.
Se verificarmos por ordem cronológica, de janeiro a dezembro, essa região não sai
do foco de toda a mídia, desde quando o líder José Rainha é baleado: “José Rainha é baleado
no Pontal do Paranapanema” (Folha, 20/01/02). Seguem-se acontecimentos de repercussão
nacional, como o da invasão da propriedade do presidente: “MST invade fazenda de filhos de
FHC” (Folha, 24/3) - manchete tanto na Folha quanto em O Estado. O MST passou a ser o
inimigo número 1 do país, desencadeador de inúmeros textos sobre questões agrárias, tendo
sempre a figura de seu líder, José Rainha e, conseqüentemente, o Pontal sob os holofotes da
mídia impressa nacional.
Em abril: “MST invade 3 fazendas em Goiás e São Paulo (Folha 14/4/02). Sem-
terra fazem bloqueios e agridem motorista em AL”. (Estado23/4/02). Em maio: “Incra acusa
MST de depredar prédio em PE” (Folha 09/5/02). No MS, uma invasão “para levar o
progresso” (Estado23/5/02).
Não vamos continuar citando textos, mês a mês pois o que visamos é comprovar o
destaque para os litígios. Alguns culminaram na morte de pessoas ligadas à luta pela terra.
Assim, a Folha traz, no dia 12 de setembro, na seção Campo Minado, a reportagem
“Testemunha de morte no Pará é assassinada”. Segue, logo abaixo, a notícia de assassinato do
coordenador do sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira, tendo como título em
negrito: Terras. Ainda sobre a violência ocasionada pelo confronto entre as pessoas, na luta
pela terra, a Folha traz a reportagem sobre conflitos no nordeste quando, na Paraíba, “Grupo
armado ataca acampamento na PB e deixa 2 feridos” (Folha 26/9/02).
Dentro dessa temática de conflitos, inúmeros textos voltaram a ser produzidos
sobre Eldorado Carajás. Marcado para abril de 2002 o “julgamento dos 149 policiais militares
acusados de matar 19 trabalhadores sem-terra, em confronto acontecido em abril de 1996”.
(Folha 19/4/02). A sociedade manifestava opiniões diversas sobre o julgamento. O fato criara
polêmica sobre questões agrárias até fora do país, com textos de diversas organizações
internacionais de defesa dos direitos humanos. O Estado (25/5/02) põe em circulação um
editorial, dividindo a culpa pelo massacre ao MST. O título do texto “Ausência no banco dos
réus”. Num box, à direita do editorial a afirmação: “As lideranças do MST também deveriam
estar sendo julgadas”.
123
Os dois massacres seguidos: o de Corumbiara (RO) em 1995 e o de Carajás em
1996 foram acontecimentos que sensibilizaram a sociedade. Houve manifestações até no
campo artístico, resultando no sincretismo dos textos denominados “Terra: fotografia, música
e poema”, de Sebastião Salgado, Chico Buarque e Saramago, respectivamente. De volta à
cena, em 2002, Carajás rendia dezenas de textos na mídia impressa.
Considerando ainda os conflitos de terras, em vários textos apareceu a denúncia
sobre disputas pelo controle de áreas de garimpo na região norte do país, compreendendo
tanto grupos de garimpeiros rivais como índios. Quando se trata de conflito nessa região, a
situação é de extrema tensão. Recentemente um desses conflitos, para o qual a mídia impressa
chamava a atenção, culminou na morte de 20 garimpeiros. Além de outros artigos em que
alertava para conseqüências da ocupação de terras indígenas por garimpeiros e o
envolvimento dos índios com a atividade irregular de extração de minérios, trazemos o artigo
de Washington Novaes (“A saga perto do fim”). Ao exaltar os valores indígenas, o jornalista
de O Estado denuncia o desrespeito aos povos da floresta, focalizando um acontecimento que
ocorria no Norte do país: “Os cintas-largas de Roraima estão sendo assassinados e torturados
por invasores de sua área em busca de diamantes.” (O Estado, 19/4/02). Mal poderia prever o
articulista que, dois anos depois, aconteceria a vingança dos cintas-largas, cuja reação foi a de
assassinar um grande número de garimpeiros. Em 2004 a sociedade brasileira pode ler
manchetes sobre tais acontecimentos nos principais jornais sobre assassinato de índios da
tribo cintas-largas, assassinados por garimpeiros.
Transcrevemos, a seguir, trecho de um texto de um leitor da Folha, no Painel do
Leitor de 8/6/02, como vaticinasse a tragédia:
As mãos manchadas de sangue indígena serão, talvez, a última marca dos
oito anos de governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso. [...]
sancionou um acordo vil com as grandes mineradoras [...]
Ressuscita assim o mais torpe colonialismo das elites brasileiras, assanhadas
diante das riquezas naturais dos territórios dos povos indígenas.
A quem interessa a extração mineral [...] Quais campanhas eleitorais serão
irrigadas pelo sangue que escorre dos diamantes contrabandeados das terras
dos cintas-largas?”
(Folha, 8/6/02).
Em terras exploradas ilegalmente para a extração de minérios, os garimpeiros
lutam para retirar pedras preciosas, ouro, etc, em “terra de ninguém”, em que a luta se dava,
geralmente, entre os brancos. Atualmente as notícias, além da tragédia acima referida, são de
que os índios também passaram a participar desses negócios. Entram, então, na disputa pela
terra grupos de garimpeiros rivais e também índios.
124
Buscamos uma outra reportagem sobre o assunto, de 18/11 da Folha: Líder de
garimpeiros é morto com 5 tiros, de cujo texto emergem as informações de que a situação
era tensa: “Cerca de 4000 garimpeiros acampados ameaçam invadir o garimpo [...] uma área
pertencente a CVRD (Companhia Vale do Rio Doce)”.
Tratando ainda de conflito no Pará, diferentes personagens aparecem na mídia
como protagonistas da luta pela terra (“Pistoleiros no Pará invadem assentamento e expulsam
40 sem-terra”). Lê-se na reportagem que “A área das fazendas pertence ao Incra e é destinada
à formação de assentamentos [...] grupo de pistoleiros está ligado ao roubo de madeiras [...]
madeireiros teriam comprado os lotes ocupados pelos sem-terra de um funcionário do Incra”
(Folha, 19/6/02).
Textos sobre a terra tratam, vez ou outra, sobre os primeiros que aqui habitaram,
os índios. Sempre construindo a importância da preservação de seus espaços geográficos, os
discursos trazem informações sobre esses personagens, figurativizando-os como se tratasse de
“estranhos” brasileiros, sempre a denunciar a expropriação de suas terras. Essa realidade pode
ser vista no artigo do Estado, de duas páginas ilustradas: Os últimos povos desconhecidos
da Amazônia brasileira. Como destaque, o abandono das terras por seus moradores e causas
desse fato, aparece em box, os dizeres em caixa alta. No primeiro: TUDO DEIXADO NO
LUGAR EXATO, e no segundo: NOS ANOS 80, TÉCNICOS DA PETROBRÁS
INVADIRAM AS TERRAS INDÍGENAS.
Deparamo-nos, com a temática indígena em um texto escrito pelo antropólogo
Roberto da Matta para O Estado de 23/5/02 com alguns dados do censo 2000 para afirmar que
houve um “aumento de 138% da população indígena”. Tal informação nos põe,
indiscutivelmente, diante de questões agrárias. Somos levados a refletir sobre o índio e o
espaço geográfico. Terão todos a garantia da terra para sobrevivência? Com essa inquietação,
somos arremessados para uma outra página, de outro jornal. Era o título em negrito, a ocupar
toda a página da Folha 11/6/02: População indígena quintuplica em SP. Logo abaixo, à
direita, uma foto de uma jovem, que segura uma criança, ao lado de outras duas, numa área
com sacos amontoados. A frase explica a foto pelos dizeres: “Índios da Reserva de Dourados,
a 210 km de Campo Grande, em lixão onde procuram alimentos”. O texto para a foto é uma
notícia, cujo título “Miséria leva caiovás a vasculhar lixão” põe o leitor diante da denúncia
sobre a expropriação de terras de índios: “A pressão social resultante do crescimento
populacional indígena é bastante evidente na Reserva de Dourados [...] Confinados numa área
de apenas 3.500 hectares, vivem ali cerca de 9.500 índios, a maioria da etnia caiová”
125
Ainda na página a notícia sobre a denúncia da expropriação: Fazendeiro é
acusado de homicídio, onde se lê
:
“O fazendeiro, dono de uma propriedade de 1.500 hectares com trechos
localizados em terras indígenas, foi preso [...] e será indiciado por homicídio
culposo [...] evidências contra o fazendeiro, como a confissão de dois
matadores do cacique. O crime foi resultado da disputa de terra na reserva
indígena de xucuru
(Folha 11/6/02).
Uma das notícias publicadas na Folha de 29/8/02 levou-nos a inferir o quão
intrincada é a busca de solução para os problemas rurais brasileiros, podendo levar até mesmo
a discordâncias no âmbito governamental, que poderiam gerar contendas nas esferas do poder
público. Estamos nos referindo à medida tomada pelo governo do Rio Grande do Sul, o que
envolveu o governo estadual e federal. Ao legislar sobre a concessão de terras naquele
Estado, o governador teve que voltar atrás sobre um decreto para desapropriação de terras
para reforma agrária. O texto da Folha traz a explicação para o veto: “A decisão do Tribunal
de Justiça foi motivada por mandado de segurança impetrado pela FARSUL (Federação da
Agricultura do RS), que representa proprietários e mantém atrito com o governo de Olívio
Dutra” (Folha, 29/8/02).
Muita polêmica resultou de uma medida adotada pelo governo federal. Ao
mobilizar o STF (Supremo Tribunal Federal) para o aval de uma medida provisória na
aplicação de punições contra invasões de fazendas por trabalhadores rurais sem-terra, gerou,
principalmente descontentamento de setores ligados aos movimentos de reivindicação da
terra, em vários Estados, por considerarem a medida como forma de atrasar a distribuição de
terras. Houve apelos para impedir a liberação dessa liminar: “PT e Contag não conseguem
sustar vigência da medida”. O título acima vem com o subscrito em negrito na notícia STF
mantém liminar que visa impedir invasões de terra (Folha, 05/4/02).
Se afirmarmos que as questões agrárias sempre se constituíram como um problema
na sociedade brasileira, na época da transição política, elas passaram a ser vistas como um nó
górdio. Assunto que trouxe muita pendenga para a pauta dos presidenciáveis. Ao mesmo
tempo em que era fator eufórico para aqueles que defendiam uma distribuição de terras,
constituía-se como disfórico para aqueles a quem o assunto não interessaria.
Ao garimparmos esse assunto nos dois jornais escolhidos, deparamo-nos não
apenas com as falas dos candidatos, mas, sobretudo com o destaque para diferentes falas,
nascidas da temática sobre a terra. Os problemas agrários nacionais passaram a gerar textos
em todos os espaços das páginas, construídos por profissionais da comunicação e por
126
cidadãos de um modo geral, que se pronunciavam para a abordagem sobre o assunto. Em
alguns, explicita-se a posição da própria empresa jornalística, como em editoriais, onde se
assume publicamente o ponto de vista diante do tema. Nesse sentido, transcrevemos o
primeiro parágrafo do editorial do Estado que tem como título “O MST ataca novamente”:
Se os militantes do Movimento dos Sem-Terra já não tivessem ultrapassado
todos os limites da legalidade, e se colocassem contra a ordem institucional –
a ponto de pretenderem fundar um “Estado do Pontal”, numa vasta extensão
de terras invadidas -, talvez as anunciadas providências do governo, no
momento em que essa entidade realiza novas invasões de norte a sul do País
– sob a denominação “Jornada Nacional de Luta pela Reforma Agrária”-
servissem para sustar sua escalada subversiva
e vandálica. (O Estado de
S.Paulo, 01/4/2002).
Somando-se à posição, assumida acima, contrária a ações do MST, aparece um
mês depois, no primeiro caderno da mesma empresa jornalística, uma reportagem, que ocupa
toda a página A9 de 23 de maio. Abaixo do título Questão Agrária, em caixa alta, vem o título
em negrito: No MS, uma invasão ‘para levar o progresso’. Para o leitor desatento, poderia
tratar-se de uma visão positiva sobre o movimento. Mas as aspas conduzem a ironia, num
texto que produz um efeito de sentido de verdade em que a luta dos sem-terra é vista
negativamente. São associados ao PT, partido político que ganhava projeção no cenário da
transição da política nacional. Assim, num box, bem no meio e à direita do texto lêem-se os
dizeres em caixa alta e aspas, com destaque para a primeira letra, em negrito: TALVEZ O
GOVERNO DO PT, SAIBA RESOLVER (O Estado de S.Paulo, 23/5/2002).
Já é do senso comum que a tarefa da mídia brasileira está sempre empenhada em
construir negativamente as ações do movimento dos sem-terra. Tendo em vista essa tarefa,
vamos colocar em destaque alguns textos que a evidenciam. Apoiando-nos, ainda, nos
editoriais, chama-nos a atenção o destaque de O Estado no editorial de 14/11: “O aviso do
MST”. Em negrito, num box (O que o MST está fazendo é reafirmar, para o PT, sua
disposição agressiva”).
A essa construção do simulacro de verdade concernente a valores negativos, vão-
se somando textos de diferentes gêneros para a construção dessa visão. Dentre tantos,
podemos citar uma reportagem que associa personagens do MST a grupos terroristas. Assim,
no primeiro caderno de O Estado ganha destaque a notícia, ilustrada com foto, seguida do
subscrito: “Lill e outros ativistas são levados em um camburão para local da detenção.
Transcrevemos apenas os primeiros dizeres:
127
Militante do MST deve ser expulso hoje
O líder gaúcho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)
Mário Lill deixa o QG de Arafat em Ramallah e é preso por Israel (O Estado
de S. Paulo, 23/4/2002).
No início de abril, a Folha publicara o artigo do editor Nelson de Sá: Terra de
ninguém em que se refere ao fato de o líder palestino, Yasser Arafat estender a bandeira do
MST. O texto fala sobre o espaço ocupado pelo movimento: “[...] quem ganhou os telejornais
do mundo foi o MST – o movimento que um ministro de FHC chamava, poucos dias antes, de
“terrorista”. (Folha 01/4/2002).
Na coluna reservada ao leitor, transbordam textos para o ataque direto ao MST, na
condenação a quaisquer idéias favoráveis à reforma agrária.
A insegurança quanto às questões fundiárias, gerada pela vitória do novo governo,
tido como “cria do MST” (Estado,12/12/02), trouxe de volta o bicho-papão da reforma
agrária.
Dois outros movimentos de luta pela terra, além do famigerado MST apareceram
tanto na Folha quanto em O Estado. A reportagem que tem como título, “Grupo dissidente
disputa Pontal com MST”, traz a notícia: “O Movimento dos Agricultores Sem-Terra
(MAST) fez um arrastão e invadiu nove fazendas no Pontal do Paranapanema” (O Estado S.
Paulo, 02/6/2002).
Anterior à reportagem acima, deparamo-nos com o texto cujo título, “Dirigente do
MLST propõe autodefesa armada”, leva-nos a tomar conhecimento de uma outra organização
de sem-terra. Podemos ver, bem ao centro da página, a foto de um indivíduo, segurando uma
bandeira com a sigla MLST, onde se estampam figuras: adultos e crianças de mãos erguidas,
com foices e enxadas. Abaixo da figura da bandeira, os dizeres: “Movimento de Libertação
dos Sem Terra”, em letras maiúsculas. A legenda, abaixo, explica a foto: “Preso político do
regime militar, o engenheiro Bruno Maranhão diz que continua ‘revolucionário’” (O Estado
de S. Paulo, 19/5/2002).
A mesma mídia que trouxe para a cena os movimentos de luta pela terra, traz
também cenas dos bastidores, no sentido de colocar mais luzes ainda no palco para a
encenação do teatro da “terra”. Um fato jornalístico que ganhou o interesse da nação foi uma
pesquisa apresentada por um dos renomados jornalistas da Folha, Josias de Freitas, para
denunciar um rol de práticas ilegais do MST, que, segundo o jornalista iam da “truculência à
chantagem”, no que era chamado de “pedágio”. Nessa matéria jornalística do Caderno Brasil
(Folha, 15/19/02)condena-se a cobrança de 2% que os assentados deveriam pagar ao MST.
128
Querendo diminuir a intensidade do foco sobre tais denúncias, outros textos eram
produzidos, como um da jornalista Marilene Felinto, em que afirmava ver na pesquisa uma
forma de colocar o MST como vilão na sociedade.
Considerado pelo então ministro-chefe da segurança da presidência da república,
general Alberto Cardoso, o MST já errara na sua “primeira encruzilhada” ao escolher ser um
movimento social agressivo”. Ao que ele emenda: “Em vez de invadir, o MST deveria
apontar para o Incra vistoriar”. Sugere o ministro em sua declaração à Folha que o MST
deveria ter optado no passado em “ser uma ONG” (Folha, 07/10/02). Essa leitura leva ao
leitor a dificuldade (impossibilidade) de diálogo entre as duas partes: governo e movimento, o
que não significava intimidação para o MST, que pressionava cada vez mais o governo para
liberação de verbas para crédito agrícola, efetivação dos assentamentos, etc.
Nesse cenário, o ministro Raul Jungman vai ao Vaticano para “relatar ao papa as
ações do governo brasileiro na questão da terra”. Esse fragmento de notícia que destacamos,
aparece como legenda de uma foto do ministro, segurando a mão do papa, enquadrada por um
título em caixa alta: “Rainha é indiciado quatro vezes” (Folha, 09/05/02).
O leitor deste texto deve estar a pensar que só de conflitos viveu a imprensa
jornalística em 2002. Ora, em parte tem razão. Já que nossa intenção não se reduz a
generalizar, ou nivelar os textos sobre a realidade agrária brasileira pelos efeitos de sentido da
negatividade, com olhos de lince, conseguimos pinçar algumas outras idéias. Não se pode
negar mesmo que um dos ingredientes mais nutritivos para o espetáculo midiático foram as
situações de conflito, de negatividade, que pareciam alimentar, com bastante vigor, a grande
massa textual. Detivemo-nos, então, na tarefa de encontrar protagonistas outros. Quase
levados pela exaustão diante da observância das encenações que investiam os personagens da
realidade agrária brasileira de uma roupagem que concretizava sempre tudo o que significasse
tudo o que havia de ruim na sociedade brasileira, procuramos conduzir nosso olhar para
desvendar outras veredas, no sertão agrário.
Como nos referimos acima, a transição de governo colocou questionamentos sobre
metas políticas que passavam, dentre muitas, especialmente, por aquelas que tratavam dos
problemas da terra. Ao lado da preocupação das elites com uma eventual política econômica
para defesa de seus interesses, na preservação da propriedade, de acordo com um ponto de
vista contrário a qualquer esboço de reforma agrária, lêem-se também (por que não?) os
textos em prol de mudanças na política agrária.
129
Ano que teve como tema da Campanha da Fraternidade, “Terra sem males”,
conduziu a reflexões e compromisso de serviço apresentado pela Igreja Católica para “reparar
as enormes injustiças e assegurar, no contexto nacional, a propriedade e a demarcação das
terras, a identidade de culturas e a plena cidadania no país”.
Essa passagem acima foi retirada do artigo “Quaresma e ação solidária”, publicado
na Folha de 16/02/02 e assinado pelo articulista, D. Luciano Mendes de Almeida. Trouxe
para o jornal a valorização da temática, voltada para os problemas da terra.
Dois mil e dois foi também o ano do evento “Cúpula sobre a Terra”, que reuniu
países de todo o mundo para discutir as questões relacionadas ao meio ambiente e
desenvolvimento sustentável. Liderada pelo então presidente FHC, o Brasil participou das
discussões em Johannesburgo, na África do Sul. O acontecimento levou à produção de uma
infinidade de textos sobre a temática da terra. Desde o meio ambiente do planeta, passando
por problemas agrários pontuais de regiões brasileiras, o enfoque era a terra.
Independentemente do caderno, em editorias diversas, ocorreu uma série de artigos
sobre a concentração de terras nas mãos de poucas pessoas e do capital externo. Tal
concentração não era mostrada apenas no que se refere à retenção da terra para fins de reserva
de valor e de negócios agrícolas ( que poderia ser considerada lesiva para a sociedade), mas a
um outro propósito: o controle dos recursos naturais estratégicos. Comparece nessa temática a
região Amazônica, representando uma expressa denúncia à geração de latifúndios pelo
governo FHC. Esse percurso temático recobre o tema sobre a necessidade de haver um
controle no sentido de impedir a aquisição de terras daquela região por estrangeiros.
Interessante é que os textos sempre explicitavam a ausência de qualquer intenção xenófoba,
impondo a relevância de se considerarem as riquezas nacionais “o verde é nosso” ( O Estado
23/5/02), o que deveria funcionar para a fixação de brasileiros em áreas fronteiriças,
impedindo a pirataria de nossos recursos da biodiversidade.
Ao lado de artigos na defesa do fortalecimento de áreas protegidas para o
desenvolvimento sustentável, de reservas ecológicas, da preservação de áreas indígenas,
conviviam textos em defesa da agricultura, do cultivo das terras para a pecuária. Avançavam
nas páginas, não só de Economia, mas em tantos outros cadernos, a importância do
crescimento do PIB, decorrente do Agronegócio.
Essa categoria do Agronegócio invadiu o espaço jornalístico, em discursos que
apresentavam a terra como saída para a Economia nacional. Defendia-se com a trama textual,
não só os grandes investimentos, como também aqueles voltados para as pequenas produções
130
agrícolas. Convém ressaltar, no entanto, que os textos nessa categoria da defesa dos pequenos
negócios com a terra, representam uma quantidade muito pequena. Em meio a uma imensidão
de matéria jornalística sobre o assunto, o destaque era para os enaltecedores do Agronegócio,
constantemente destacado em manchete, como gerador de divisas para o país.
Observa-se a importância do tema sobre “terras para o cultivo”, sobre o qual muita
matéria se produziu. Passamos, agora, a citar algumas delas, aleatoriamente, sem a
preocupação com a cronologia temporal de suas publicações. Tendo em vista a seleção, se
achamos que apenas o título é suficiente para informar sobre a importância da questão
proposta, restringimo-nos a ele. Se não, buscamos sustentação em fragmentos do texto, ou
alongamo-nos em explicações. Vamos “à dita cuja” tarefa.
Empregos: do palanque para o Brasil rural
ELEITOS PODEM INVESTIR RECURSOS EM CULTURAS QUE
DEVORAM OU CRIAM POSTOS DE TRABALHO
(Estado S. Paulo,
26/8/2002).
O título e subtítulo acima são de um artigo do professor-titular da FEA-USP, José
Eli da Veiga, em que defende a diversificação de culturas, para o emprego de atividades das
famílias no campo. Afirma o autor que “a diversificação que está no âmago da agricultura
familiar é intensiva em trabalho”, quando lança a pergunta aos candidatos à presidência:
“Qual será o destino prioritário dos recursos federais alocados ao Brasil rural?” (Estado S.
Paulo, 26/8/2002).
A Folha e O Estado promoveram debates, de que participaram todos os candidatos
à presidência, para responder a perguntas formuladas pelo jornal e também pelos leitores. No
intuito de deixar clara a posição de cada candidato, não faltaram perguntas relacionadas à
realidade agrária brasileira, para se ver discutida principalmente a posição dos candidatos
sobre o MST, ou quaisquer outros movimentos de reivindicação da terra, satisfazendo a
curiosidade de ouvir um posicionamento sobre o bicho-papão: a reforma agrária. Importante
frisar que, a partir do parecer dos interrogados, passavam a circular os mais diversos gêneros
jornalísticos sobre os temas.
Vamos sustentar essas afirmações, mas antes passemos à transcrição da pergunta
feita a Lula, Ciro, Serra e Garotinho no caderno especial ELEIÇÕES (Folha 18/8/02). “É
necessário fazer a reforma agrária no Brasil?”. Exceto a resposta de Lula, não vamos
transcrever a resposta de todos eles. No entanto, convém dizer que se posicionaram
131
favoravelmente quanto à reforma agrária, apresentando metas para o desenvolvimento rural,
sem contrariar as partes envolvidas, aqueles cujo interesse fosse a terra.
Lula assim se pronunciou:
A reforma agrária é para nós uma questão de justiça social. Nosso governo
será capaz de realizá-la sem ser necessário que ocorram invasões de
propriedades nem qualquer tipo de violência no campo [...] um Plano
Nacional de Reforma Agrária em que os trabalhadores sem-terra,
organizações sindicais, proprietários rurais e outros setores interessados
poderão participar [...].
A temática sobre a terra apareceu ainda em duas outras perguntas feitas aos
candidatos à presidência. Se a pergunta não trazia explícito o tema, mas as respostas deveriam
contemplá-lo, já que envolviam questões sobre a agroindústria, o que levava a um discurso da
utilização do solo: “Como manter uma política séria em relação ao meio ambiente?” “Como é
possível escapar da proposta da Alca?” Nesta última discutiu-se o problema dos subsídios
agrícolas. Mas, chamaram-nos atenção, sobretudo, as respostas, que giraram em torno da
defesa e do uso de recursos naturais das regiões brasileiras e da utilização do solo, sem trazer
para a cena o elemento humano, que poderia ser considerado personagem no espaço físico da
terra.
O Estado publicou, na edição de 27/8, o debate organizado pelaConfederação da
Agricultura e da Pecuária do Brasil” (CNA). A página trazia, abaixo da foto dos candidatos,
uma síntese das idéias sobre questões agrícolas. A focalização no aspecto econômico e social
podia ser vista de forma bem explícita pelos próprios títulos e pelas afirmações: Crédito e
dívidas; subsídios mundiais; tributação. Quanto à ultima, “reforma agrária”, a defesa de idéias
sustentou-se, sobretudo, por argumentos de ordem social. Assim, a terra, para Garotinho, por
exemplo, passava a ser vista como solução para o “entorno” populacional das metrópoles:
“Disse que o direito de propriedade será respeitado, mas defendeu uma reforma agrária junto
com uma reforma urbana para desinchar os bolsões de miséria nas grandes cidades”. Ao que
Lula também se pronunciou e que foi transmitido pelo jornal: “Garantiu que respeitará a
Constituição e fará uma reforma agrária ‘tranqüila e pacífica’nos 90 milhões de hectares de
terras disponíveis no País”.
Apesar de afirmarmos o óbvio, vale a pena ressaltar que as reflexões sobre as
metas políticas passaram, necessariamente, por questões agrárias. E essas questões, como
afirmamos, suscitavam o interesse da sociedade para discussões. Temas polêmicos, como os
132
que compreendem a terra, levaram a uma enxurrada de textos. Sobre o MST transbordava
matéria jornalística:
MST avisa que trégua a Lula não está garantida (Folha, 10/9/2002).
MST pode oferecer trégua a governo Lula (Folha, 05/11/2002).
MST já se divide entre trégua e invasões (Folha, 28/10/2002).
Sem mudanças, Lula pode virar De La Rúa, diz Stedile (Estado,
24/10/02)
Assentamento de 100 mil famílias, a exigência do MST (Estado,
31/10/02)
Cúpula do MST prepara lista de reivindicações (Estado, 1/11/02)
Os outros setores envolvidos com a terra, e não só o MST, também se
pronunciavam. Notícia publicada em O Estado de 12/12/02: “CNA cobra ação de Lula para
acalmar produtores”
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) alertou ontem que
prevalece um clima de pessimismo e intranqüilidade entre os produtores
rurais [...] “Se o presidente Lula atender ao Movimento dos Sem-Terra
(MST) [...] estará detonando o processo de insegurança no campo”, afirmou
o produtor de gado leiteiro [...] “Não sabemos até que ponto o novo governo
resistirá aos pleitos de seus antigos aliados” (O Estado de S.Paulo -
12/12/2002).
Na FolhaCiência, articulistas abordavam soluções para a utilização da terra:
“Investir na agricultura deve ser a chave para diminuir a fome” (Folha, 23/12/2002).
Inúmeras as matérias que sustentavam a defesa do agronegócio como soluções para os
problemas agrários do Brasil.
Na edição do Estado de 26/8/2002 o artigo “Brasil, líder agrícola”, tendo como
box, no meio do texto: “Estabelecidos ficamos pelas exportações, agora é sustentá-las com
competência”, sustenta a idéia de investir na terra, visando à exportação.
Na Folha de 29/5/02: “Agro e infra, bases do crescimento”. Ainda sobre a
temática, o editorial AGRODINAMISMO, em que o jornal, ao exaltar os resultados da
balança comercial agropecuária, levanta também uma das questões polêmicas sobre esse
fortalecimento: “o apoio ao setor reflete o poder político da bancada ruralista no Congresso.
(Folha, 08/4/02).
Nem o Pontal do Paranapanema, personagem dos conflitos agrários, escapou ao
discurso otimista do agrobusines. Se a região sempre comparece nos textos sobre a
negatividade, a reportagem de 12/5/02 do Estado, coloca-a como “o melhor lugar do mundo”.
São essas palavras de um mega produtor, Bernardo Scholten, que utiliza tecnologias
133
avançadas para o cultivo da terra nessa região. Afirma o repórter que “As terras cultivadas por
Scholten contribuíram para elevar em 1,8% o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio
brasileiro em 2001, em comparação com o ano anterior” (Estado, 12/11/02).
Também dentro de uma visão otimista em relação à terra, textos apresentam
alternativas para acabar com a fome, a partir do cultivo até mesmo do árido sertão nordestino:
“Caminhos da luta contra a pobreza rural” (Folha, 4/11/02).
Na categoria da positividade para as políticas agrárias, com a justificativa do
agronegócio, passou a circular um enorme volume de textos: artigos, reportagens, cartas de
leitores, editoriais sobre o cultivo da soja. No artigoÁreas de plantio de soja no norte do
Brasil crescem 20% em 2003” (Folha, 6/8/02) apresentam-se soluções agrárias para o ano
seguinte, já definindo saídas para a utilização da terra em diversos estados do país.
“Nos rastros da soja” (Estado, 1/11/02) o articulista apresenta esse tipo de cultura
como única saída para as terras brasileiras:
[...] já comprovada a adaptabilidade da soja brasileira a qualquer endereço do
nosso vasto território verde que te quero verde junta as conquistas da
engenharia genética do grão com as apetências dos produtores de qualquer
região. [...] gente que não vacila em trocar lavouras ou rebanhos tradicionais
pela cadeia de valor do agronegócio da soja.
Poderíamos elencar dezenas de matérias jornalísticas que fazem a apologia do
cultivo da soja, o que levaria o leitor a um certo estranhamento. Tratando-se de dois jornais
do maior estado produtor de cana, o estado de São Paulo, seria difícil justificar a defesa de
uma outra alternativa para o cultivo de suas terras. Sem dúvida que se defende a monocultura
da cana, em publicações com ilustrações em cores, ocupando a página toda. Deparamo-nos
com textos publicitários da Associação dos Produtores de Açúcar e Álcool, construindo,
então, a eficácia do cultivo da cana para a sociedade brasileira. (Folha, 4/7/02). Interessante
dizer que o discurso para a defesa do cultivo da cana foi visto também em adesivos para
automóveis: “E se não fosse a cana?”
O tema da grandiosidade “recobre” as figuras que constituem o discurso do
agronegócio, servindo de suporte para a mídia, que colocou em evidência o assunto, como se
o Brasil rural se resumisse aos grandes investimentos. Grosso modo, poderíamos nos referir a
uma visão maniqueísta que divide o Brasil rural em dois: o daqueles que lutam pela
manutenção de suas terras e daqueles que lutam para adquirir o seu pedaço de chão. É aos
personagens possuidores da propriedade rural que se dá o destaque para as questões agrárias
ligadas aos grandes negócios, na defesa de medidas para que o país alcance recordes na
134
balança comercial agrícola do mundo e na manutenção das grandes extensões de terra para os
grandes empreendimentos agrários: “Brasil, líder agrícola”. Este é título de um artigo do
então secretário de Produção e Comercialização do Ministério da Agricultura e Pecuária e do
Abastecimento e ex presidente da Sociedade Rural Brasileira, no primeiro caderno de O
Estado, domingo, 19/5/02), onde se lê em box: “Estabelecidos ficamos pelas exportações,
agora é sustentá-las com competência”. É praticamente insignificante o número de textos
sobre a pequena propriedade de terra. Não seria assunto de interesse nacional? Não geraria
temas para a mídia?
Ao garimparmos o assunto, deparamo-nos com o que poderíamos caracterizar
como assunto hilariante. Na coluna da esquerda, dois textos. O de cima cujo título “Nossa
Caixa lança crédito rural” informa sobre recursos que o banco disponibiliza para “custeio
agrícola de produtores familiares. Faz referência aí a um texto publicitário que estava sendo
veiculado na tevê sobre o serviço da Caixa, justificando: “[...] a campanha apela para a
linguagem simples, a do caipira e seus ‘pé de arface’”. Continua a justificativa: “A intenção é
atrair o agricultor de pequeno porte do Estado.” (O Estado, 26/10/02).
Logo abaixo, a outra publicação “Meus pezinho de arface”. O articulista, que
assina como José Carlos Cafundó, joga pedras na campanha publicitária da Nossa Caixa. No
box, bem no meio do texto, a afirmação “Importância do alface na agricultura é a mesma da
erva cidreira na medicina”. O sujeito da enunciação ao colocar em cena José Carlos Cafundó,
pela figurativização do deboche no nome próprio “Cafundó”, assume aí o ponto de vista de
desconstrução da imagem do agricultor, para reforçar o estereótipo do atraso. O leitor é
colocado, então, diante das idéias de que só têm importância as atividades agrícolas dos
grandes produtores. Assim, não mereceria destaque “o alface”. Como ele afirma “O alface,
entre as hortaliças, não ocupa mais do que míseros 8 mil hectares. Na primeira previsão de
safra, feita em fevereiro, a produção estimada era de 6 milhões de engradados de nove dúzias
de pés [...] as hortaliças têm peso inferior a 1% [...]”.
O autor busca uma série de dados para pôr em destaque a terra para os grandes
negócios:
Vale ressaltar que o Brasil é reconhecidamente um grande e rico país
agropecuário, com 40 milhões de hectares plantados principalmente com
soja [...] Outros 200 milhões de hectares estão ocupados com pastagens [...],
além de grandes áreas com pomares de laranjas e florestas de exploração
comercial, especialmente de eucalipto e pinus.
(O Estado, 26/10/02).
135
Não podemos tomar um mero artigo para generalização da idéia de que os grandes
negócios agrários é que são relevantes para a sociedade brasileira. Mas a veiculação do ponto
de vista do articulista coincide com a grande maioria de tantos outros e serve, até mesmo para
o leitor entender a freqüência de textos que conduzem o discurso ufanista de um Brasil
agrário. Interessante, ainda em relação à matéria sobre “o alface”, quando critica os
publicitários, estabelece um diálogo com eles, sugerindo que busquem suas referências para
contextualizar o assunto a partir da agricultura dos grandes negócios: “É obvio que os
publicitários produziram a peça com a melhor das boas intenções. Deixam claro, porém, que
há muito tempo não passam, por exemplo, por Ribeirão Preto e cercanias.”
A observação da temática agrária, de conteúdos eufóricos, conduziu-nos a diversas
matérias, que iam além de uma visão ufanista só de brasileiros. Em relação a isso, podemos
nos referir, para exemplificação, a duas páginas inteiras do Caderno Economia do Estado de
S. Paulo do domingo, 23/6/02, cujos títulos, “Americanos compram terras no cerrado baiano”
e “Oeste da Bahia vive boom de novos negócios” trazem para o cenário agrário brasileiro
outros personagens, entusiastas dos EUA. Encantados, eles comparecem dessa vez não como
admiradores de nossas belezas turísticas. Acostumados a ver sempre os estrangeiros como
aqueles que se encantam com as belezas naturais do Brasil, o texto trata de uma outra
valorização: a de nossas terras agriculturáveis, mesmo que em região de glebas sem grande
valor e, por isso, de preços baixos. Isso parece estimulante para um país que tem, no cenário
da mídia impressa, conflitos que põem qualquer leitor descorçoado para acreditar no futuro
agrícola do país e investir na terra.
Um dos textos sobre a temática acima referida tem como chamada a afirmação:
“Página da Internet já resultou na visita de 120 estrangeiros a terras brasileiras.” Diante de
fotos, mapas, gráficos e textos explicativos com comentários sobre os investidores
americanos, apresenta-se um novo retrato da terra no Brasil, num lugar do sertão nordestino: a
região baiana.
Quando o assunto é “sertão nordestino”, não há como fugir de temas da
negatividade, disseminando o discurso dos problemas conseqüentes das terras secas, que
comparecem insistentemente nas páginas da mídia impressa. Reportagens sobre os
acontecimentos do cenário geográfico da aridez, textos opinativos sobre os problemas da terra
seca, que não condizem com a visão bucólica do espaço ideal ou mesmo paradisíaco de
reportagens e textos publicitários, que visam à venda de pacotes turísticos para terras
litorâneas nordestinas. Um ingrediente que serviu de alimento para nossa literatura, a terra
136
seca é temática que gera hoje, em toda a mídia, uma diversidade de matéria jornalística.
Vamos destacar uma reportagem de três páginas, com textos de diversos jornalistas para
contemplar o tema da seca, no caderno de domingo: “Seca acentua o trabalho infantil e os
saques no NE. A seca que atinge o Nordeste começa a expor os mais graves efeitos
produzidos pela distorção social no país” (Folha, 1/9/02). “Situação de emergência já atinge
639 municípios do país(Folha, 10/11/02).
Como se vem afirmando, em oposição à riqueza e à beleza do Nordeste,
comparece em textos diversos o tema da miséria e do sofrimento dos habitantes do árido
sertão brasileiro, focalizando uma outra temática constante: a do trabalho escravo. Foram
várias as matérias jornalísticas que deram “corpo” a esse tema, construindo uma relação de
interlocução com o leitor que ia além dos valores do mundo inteligível, com a voz de um
enunciador a apelar para as emoções, trazendo para o cenário do discurso o tema da vida
sofrida, com atores adultos e, o que mais grave, crianças que trabalham na terra, em regime de
escravidão. Tais discursos assumiam um ponto de vista a partir de estratégias de persuasão
argumentativas, criando efeitos de realidade, como se estivesse a exigir do leitor, a partir da
leitura, uma tomada de posição diante de tal realidade nacional. Para nossa surpresa, o tema
escravagista não se restringia aos estados do sertão árido. Até São Paulo e o Rio Grande do
Sul apareceram em algumas dessas denúncias.
Uma reportagem da Folha, do dia 6 de outubro (“10 mil trabalhadores vivem em
condição de escravidão”), traz um mapa indicativo dos focos de trabalho escravo, em que
explicita tratar-se de atividades do cultivo da terra: colheita de maçã, extração de madeiras,
agricultura, etc., com dados estatísticos, fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra.
Um dos maiores estudiosos sobre as questões agrárias no Brasil, José de Souza
Martins, tem um de seus artigos publicados sobre o trabalho escravo, na Folha de 02/12/02:
“A escravidão que persiste”. O texto, de meia página, ladeando uma imagem em cores de um
trabalhador rural, com duas enxadas nos ombros nus, traz uma informação sobre as regiões
em que ocorrem o trabalho escravo, destacadas logo abaixo da imagem: “É na Amazônia
legal que ocorrem 75% dos casos –de escravidão -, em particular em Mato Grosso, Pará e
Rondônia”.
Em agosto e setembro encontramos outros textos sobre esse mesmo assunto.
Ambos são reportagens com a denúncia de escravidão em fazendas no Norte do país. O
primeiro: “Fiscais libertam 136 trabalhadores (Folha, 28/8/02); e o segundo: Mais de 57
trabalhadores são libertados no PA” (Folha, 22/10/02).
137
Além das matérias jornalísticas com denúncias sobre trabalho escravo, destacamos
também aquelas em que se denunciam as más condições do trabalho com a terra, procurando
trazer aos olhos do leitor a realidade agrária brasileira, especialmente no que se refere ao
tratamento dos elementos humanos. Nesse sentido, a reportagem de 22/9/02, da Folha:
Exploração envenena colheita da laranja”. Denunciam-se, aí, as más condições do trabalho
com a terra (“Agrotóxico é o problema, diz federação”; “‘A gente vive como macaco’, diz
colhedor”); a exploração da mão-de-obra (“a jornada de trabalho chega a 12 horas”) (Folha,
22/9/02). Nessa mesma reportagem, com o mapa do Estado de São Paulo, bem acima da
página, vêm para o olhar do leitor, à esquerda e à direita, regiões prósperas, aí destacadas na
denúncia. Difícil acreditar, mas trata-se de trabalho escravo, conforme as palavras do próprio
texto: “Nova Odessa: 50 trabalhadores rurais trazidos da Paraíba foram libertados da condição
de escravidão em que viviam [...]”. Os dizeres em negrito e caixa alta destacam-se na página:
MAPA DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO EM SP”, Araraquara, Matão, Piracicaba e
Limeira”.
Sobre a “utilização de mão-de-obra forçada”, um eufemismo para o trabalho
escravo, empregado em notícia da Folha de 23/9, podemos ter conhecimento de uma medida
tomada pelo governo federal (“Projeto prevê penas para utilização de mão-de-obra forçada”).
São palavras do texto:O presidente Fernando Henrique Cardoso disse ontem que vai apoiar
as propostas elaboradas pelo grupo de combate ao trabalho escravo, entre elas, a expropriação
de terras onde foram encontrados trabalhadores nessa situação.”
A notícia traz um pequeno trecho com os dizeres do sociólogo José de Souza
Martins, que passamos a destacar: “a escravidão praticada hoje é mais cruel, perversa e
violenta do que era a escravidão oficial negra, que terminou em 1988.” (Folha de 23/9/02).
Um dos temas que se relacionam com a terra é a polêmica sobre os transgênicos,
de cuja trama puxaram-se fios de cores bem diversas. Queremos nos referir a pareceres
distintos: a favor e contra os transgênicos. Tratar das conseqüências sobre o assunto, é tratar,
necessariamente da questão social ligada à terra: a prioridade a políticas agrárias para a
exportação, monocultura, emprego/desemprego, etc. Tratar das causas é focalizar o
desenvolvimento científico nas pesquisas agrárias, é priorizar o crescimento econômico,
como apresentado em reportagem da Folha de 10/7/02 que traz informações sobre pesquisas
feitas pela Embrapa, visando a “produzir ‘sustentabilidade’ na agropecuária brasileira ao
aproveitar os da flora e fauna nativas em culturas transgênicas adaptadas ao Brasil”. E assim,
138
o tema, que permite pontos de vista contrários, foram encontrados em muitas matérias
jornalísticas. Favorável ou desfavoravelmente, eis aí alguns textos sobre essa temática.
Na Folha de 25/11/02 o destaque é para a manchete “PT e MST condenam lobby
dos EUA por transgênicos”. O ativista francês que participou de uma manifestação por entrar
numa área de plantação de soja transgênica da Monsanto, no Rio Grande do Sul, em janeiro
de 2001, comparece nesse artigo da Folha com discussão sobre transgênicos. Tendo como
ilustração a cena do acontecimento do ano anterior, associada à outra que traz um
manifestante do MST, carregando a bandeira do movimento. Abaixo das fotos o subscrito: “O
ativista francês Bové ao invadir área da Monsanto em janeiro do ano passado”.
A preocupação do governo de construir a imagem como o que mais distribuíra
terras, de repente se viu com essa imagem arranhada, diante de notícias que denunciavam
irregularidades nos relatórios oficiais sobre os números dos assentados.
Sem querer discutir a veracidade das notícias sobre tais números, passou a ganhar
destaque na mídia a figura do “assentado”, do “sem-terra”, que tornou-se o centro da
encenação linguageira. Nas reportagens, passou a ser visto como personagem-vítima de dados
numéricos emitidos pelo governo na realização do que chamava de “reforma agrária”. Sobre
esse problema, uma diversidade de textos se construiu, instaurando uma verdadeira polêmica,
de onde os diferentes órgãos governamentais responsáveis pelo assunto se pronunciavam,
com a manifestação de todas os seguimentos da sociedade, que emitiam pareceres, que se
constituíam um farto material jornalístico. Poderíamos aqui elencar dezenas de textos sobre
essa tematica, dos mais variados gêneros: editoriais, carta do leitor, reportagem, passando por
artigos, crônicas, etc.
Só para exemplo, citamos dois editoriais:
“INFLAÇÃO AGRÁRIA: inflar os números não levará o governo a bater nenhum
recorde e só servirá para lançar suspeitas sobre o processo de reforma agrária”.
(Folha,23/4/02).
“OS SEM-CRITÉRIOS” (Folha,03/5/02) em que se faz uma crítica às ações do
governo: “canetada do ministério [...] que não se coaduna com um governo sério e que
proclama estar realizando a maior reforma agrária da história do país”.
Como vítima, o assentado, trazido para o cenário nacional, em algumas
reportagens, passou a ter direito a fazer uso da palavra, para mostrar o seu dilema no trabalho
com a terra. A Folha, num domingo, 28/4/02 traz uma matéria de página inteira: “Assentado
da era FHC faz bico para sobreviverem que se mostra a realidade de trabalhadores rurais
139
obrigados a abandonar o cultivo da terra para ir buscar trabalho na cidade (“Não há
financiamentos e investimentos para garantir a qualidade da terra”). Os dizeres são
argumentos usados pelos sem-terra e sustentados pelo Itesp (Instituto de Terras do Estado de
São Paulo)”. Outros diziam: “vontade de trabalhar não falta, mas só que no período da seca e
sem liberação de financiamentos pelo governo, cultivar a lavoura pode significar ainda mais
perdas”. (Folha,28/4/02). Como quer que seja, o jornal dá espaço para ecoar a voz do
assentado.
Duas semanas depois da reportagem acima, a Folha traz na primeira página de um
domingo, 12/5/02 a chamada para a matéria publicada no primeiro caderno, com várias fotos
em cores, mapas e a bandeira do MST ( “Assentados perdem suas terras na Justiça”). Trata-se
de mais uma reportagem onde os personagens são vítimas da política agrária. Transcrevemos
a seguir, apenas os títulos da matéria, de página inteira:
Ex-donos recuperam terras de assentados.
Incra não tem culpa, diz Azevedo.
Assentamento de SP revela embate jurídico
.
Denuncia-se a falta de investimento escolar nas áreas rurais onde, segundo texto
da Folha de 23/4/02, crianças não podem freqüentar aulas por falta de transporte: “Estudo
aponta 2,3 mi sem transporte na área rural”.
Enquanto a Folha publicava essas matérias para dar espaço às vítimas da
maquiagem dos números inflacionados pelo relatório do Incra, o Estado(26/5/02), que ficara
calado, contrapõe-se às reportagens numa publicação de página inteira, com uma variedade de
fotos de homens bem vestidos, segurando a bandeira do MST, seguida de outras fotos onde se
vêem homens trabalhando em atividades diversas: na cozinha, na construção civil (“MST
ergue sua maior escola em São Paulo”). A edição é de um domingo e traz a chamada para a
matéria na primeira página, com dizeres em aspas “Ela (a escola) visa a formar lideranças”.
Ora, no diálogo entre os textos de um e do outro jornal, o leitor, contrapondo as
duas realidades de personagens do mesmo Estado, pode questionar: Afinal, seriam eles tão
vítimas assim? Abre-se, a partir daí, a instauração de uma polêmica sobre a medida
governamental da concessão de terras aos sem-terra. De um lado, denúncias sobre a situação
dos assentamentos, visando à efetivação de políticas agrárias mais eficazes para atendimento
às famílias. De outro, a ineficácia dessas medidas justificaria a defesa de políticas contrárias à
concessão de terras, advogando incentivos aos agronegócios para as exportações (“A atual
140
reforma agrária que se vem realizando, em grande parte, apenas com simples entregas de
‘pedaços de terra’, fraciona e perturba áreas produtivas sem tomar dimensões econômicas”).
Este trecho é parte do artigo “Os presidenciáveis e a reforma agrária”, publicado na Folha de
26/8/02.
Apesar de termos abordado sobre o tema do agronegócio, referimos novamente a
ele para contrapor ao tema da polêmica diante das revelações sobre a divulgação de número
dos assentamentos pelo governo federal. Dentro de uma visão economicista da reforma
agrária, a partir da qual o agronegócio é citado como AGRODINAMISMO (Editorial, Folha,
08/4/02), a distribuição de terras em assentamentos é vista como um retrocesso para o
desenvolvimento de um Brasil rural, conforme podemos ler no fragmento a seguir, da carta de
um leitor da Folha de 23/4/02 :
Nas condições atuais da economia brasileira, torna-se urgente o
aproveitamento das terras agriculturáveis [...]. A atual e discutida reforma
agrária não cria condições para a melhoria da vida no meio rural que
permitam progresso técnico. Desperdiça terras férteis e produtivas, em quase
todos os ‘assentamentos’ [...] e perturba as atividades da agropecuária
produtiva.
Tendo como alvo ainda denunciar a ineficácia das políticas de assentamentos,
circularam reportagens para tratar de irregularidades como a distribuição de lotes a
“agricultores de fachada”, e a utilização de terras para o plantio de maconha (“Falsos sem-
terra recebem lotes no Pará”, Folha, 13/5/02).
O Caderno Ribeirão trouxe para uma página inteira o título “Sem estrutura,
assentamento vive abandono”. Na ilustração, uma foto de um casebre perdido numa área de
terra batida remetia apenas à imagem de manchas verdes esparsas, num céu a perder de vista.
Abaixo da foto a legenda “vista de um lote do assentamento de Bebedouro”.
Como atividade que não deu certo, os assentamentos aparecem como uma
“realidade” a ser evitada. Os efeitos de sentido são os do fracasso de uma política agrária na
contramão dos novos valores de mercado. Ou se entra na globalização dos processos
avançados da tecnologia agrícola, ou se vai ficar para trás. A imagem mostrada pela Folha
(21/6/02) não combinaria com o mito da modernidade imposto à região de Ribeirão Preto, que
chama para si o título de “capital do agronegócio” pela famosa Agrishow (feira anual do
agronegócio). A realidade da foto não se ajusta aos valores colocados goela abaixo por um
modelo econômico e agrícola do programa do governo FHC “Avança Brasil”, que tinha em
141
vista a assistência a pequenas empresas e, sobretudo, à agricultura familiar, trazendo a
reforma agrária para a agenda, apesar das críticas da base aliada das elites agrárias.
Em reportagem da Folha, 27/01/02, podemos ler o depoimento da americana,
naturalizada francesa, Susan George Sontag, doutora pela Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais de Paris, que saiu na defesa dos pequenos proprietários rurais: “A Via
Campesina, da qual a confederação Camponesa de Bové faz parte, quer que os grandes
exportadores, o que talvez inclua o Brasil, não destruam a pequena propriedade agrícola”.
O assunto faz uma abordagem em que a terra é vista como espaço não apenas para
a especulação financeira, mas para a fixação do homem no campo.
Os projetos de uma política agrária do próprio governo levaram a despertar
processos sociais ligados à busca da terra como espaço para a fixação do homem nas zonas
rurais. Consideradas como contradições sociais, as invasões foram perdendo o efeito de
infração, de manifestações pulverizadas, constituindo-se num processo que se naturalizava,
com base nos projetos de mudança propalados pelo governo democrático de FHC. Isso
conduzia a mudanças, desarticuladoras de ordens do discurso existente – o de que a
propriedade privada é intocável. Será que poderíamos afirmar que se articulava uma nova
ordem de discursos para afetar a ordem de discurso sobre a terra, que faz brotar novos
discursos que invadem a comunidade jornalística sobre o assunto? Essa pergunta pode nos
direcionar nas leituras do corpus, tendo em vista os eventos textuais de Oeste Notícias e O
Imparcial.
Os discursos dos que reivindicam a terra aparecem na materialidade jornalística da
Folha e do Estado como um direito de acesso ao espaço para o trabalho, estaria também
presente nos jornais do Pontal do Paranapanema? Os elementos heterogêneos (uma aparente
democratização, envolvendo a redução de marcadores explícitos da desigualdade de poder
entre os proprietários de terra e os destituídos dela), construindo-se na contraditoriedade,
possibilitaram vislumbrar a intrincada malha da sociedade rural do país. Construir-se-ia assim
também essa temática nos textos de Oeste Notícias e O Imparcial?
Um dos temas de destaque sobre a qüinquagésima quarta reunião anual da SBPC
trouxe como questão o fato de se subestimar a população brasileira rural, apontando falhas em
critérios para avaliar a população que habita o campo. O artigo apresenta uma crítica a dados
estatísticos que consideram como população urbana o que deve ser visto como rural. O texto
da Folha Ciência (10/7/02) traz a reportagem com o parecer do pesquisador da USP, José Eli
142
da Veiga, que aponta “absurdo teórico e prático considerar que 82% da população brasileira
esteja nas cidades”. Ele afirma que “um terço do Brasil é tipicamente rural”.
Os dois jornais admitem que, desde 1850 com a Lei de Terras não se havia feito
um recadastramento rural em toda a nação, visando à regulamentação do registro de terras
que, afirmam ser “desorganizado” (Folha 31/10/02) e “permite irregularidades” (Estado
01/12/ 02).
Dentro do contexto de transição de governo, em reportagem da Folha (08/9/02),
“CNA dá ‘sinal verde’ para reforma agrária de Lula”, podemos visualizar os dizeres do
presidente da Confederação Nacional da Agricultura: “O que a agricultura familiar precisa é
de uma solução social [...] ela não é competitiva para abastecer a população [...]”. Saindo na
defesa dos grandes, afirma a autoridade: “Vinte por cento dos agricultores profissionais do
País são responsáveis por 80% da produção total do Brasil. Essa agricultura acabará com a
fome”.
A declaração acima aponta para a política assumida pelo governo Lula, cujo
projeto de combate à fome vai ao encontro de caminhos apontados por aqueles que têm na
terra o instrumento para uma política econômica para o agronegócio e não para apontar rumos
para solucionar problemas que envolvem o elemento humano: a terra para a fixação do ser, de
onde se tira o alimento, a água, o teto.
A terra serviu também como investimento temático de uma novela da Globo,
Terra Nostra cujo tema culminou em material para a construção de textos na mídia impressa.
Referimo-nos agora a um deles, publicado no Estado(12/8/02), assinado por José Eli da
Veiga, então secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável. O
secretário sai em defesa dos proprietários rurais, indignado por terem sido estereotipados na
novela como a elite cafeicultora obcecada pela idéia de que “terra nunca é demais”. Ele
justifica que no tempo da quebra da Bolsa, em 1929, os grandes cafeicultores foram obrigados
a vender suas terras, ou parte delas, bem ao contrário do que se mostrou na novela, com a
personagem Francisca, que comprou propriedades dos italianos. Forçados a vender à grande
cafeicultora, dois amigos italianos continuaram na empreitada de procurar por novas terras
“de mata virgem”, lá pelos lados da Alta Sorocabana. E conversaram bastante sobre a
possibilidade de criar bois em vez de formar novos cafezais.
Aproveitamos o fio da novela para encerrar essa meada que desfiamos até agora. À
maneira de Ariadne, não interromperíamos essa atividade da malha jornalística, a nos oferecer
fios indefinidamente, não tivéssemos sido enredados pelo fio condutor desse último
143
parágrafo, a expressão: “da Alta Sorocabana”. Os dizeres nos levam, assim, a tecer uma outra
meada, desfiando os fios que devem construir a malha do contexto social e histórico do Pontal
do Paranapanema, Presidente Prudente, capital da Alta Sorocabana, espaço de onde emerge
nosso objeto de trabalho.
144
CAPÍTULO 2
O PONTAL DO PARANAPANEMA
Preliminarmente importa reconhecer que o texto, enquanto prática social, trabalha
dados da realidade sócio-histórica, construindo-se a partir da mobilização de discursos alheios
que formam a complexidade dos sistemas linguageiros, por meio dos quais a sociedade se
difunde em cada um de seus integrantes.
Nunca é demais frisar que, em se tratando dos discursos da mídia impressa,
compreendemos que toda enunciação construída pelo jornal, “não pode ser vista independente
do imenso corpo das enunciações coletivas que a precederam e que a tornam possível.”
(BERTRAND, 2003, p. 87). Posto em circulação, um discurso designa outro ou se autoriza a
partir de outro, numa inter-relação que, para fazer sentido, necessita de uma homologação da
produção discursiva nos dizeres produzidos por uma dada sociedade, permitindo a todo
enunciador fazer uso dos interpretantes ideológicos que aí se veiculam.
Colocar-se à frente de uma organização de discursos jornalísticos produzidos em
Oeste Notícias e O Imparcial, para uma análise, leva-nos, necessariamente, a rastrear os
interpretantes ideológicos construídos a partir da topologia de um lugar que responde a uma
organização espacial, que merece um olhar direcionado para eles. A região do Pontal
reiteradamente aparece em notícias da mídia como um caso emblemático de ocupação ilegal
de terras, o que nos leva a reconhecer que se trata de uma prática social recoberta de uma
ideologia particular do espaço rural brasileiro, cujas especificidades estão impregnadas de um
discurso político sobre a terra. Com a leitura dos escritos de estudiosos sobre a região, em
publicações diversas que compreendem desde textos literários, científicos, jornalísticos,
constatamos que esse discurso político remonta desde o povoamento da região, no início do
século XIX. A região sempre foi palco para os problemas fundiários, por se tratar de terras
griladas.
Em 1984, a pedido do então governador Franco Montoro, que pretendia iniciar a
reforma agrária no Pontal do Paranapanema, Antonio Callado (2001) produziu um ensaio
145
jornalístico “Entre Deus e a Vasilha” para abordagem sobre grilagem das terras naquela
região. Bastante polêmico, o assunto teria repercussão em todo o país, por se tratar de terras
de um dos Estados mais ricos da federação. De fato, as reportagens foram publicadas,
entretanto não tiveram nenhuma repercussão nacional. Sem nenhum destaque na mídia
impressa, foram tratadas como realidade de uma região de algum outro país, e como se não
dissessem respeito a terras griladas do Estado de São Paulo.
A grilagem de terras é assunto que, ainda continua a ser silenciado pela mídia. Um
tema sobre o qual poucos discursos são produzidos, mesmo diante de denúncias veiculadas
por estudiosos das questões agrárias, que tentam veicular dizeres sobre uma suposta
“verdade”, apontando para atos de ocupação de terras, praticados desde a formação das
primeiras comarcas do Pontal do Paranapanema.
Ao inserirmo-nos num contexto para a leitura dos discursos que constituem o
corpus desta análise, tornam-se bastante visíveis muitos efeitos de sentido que, se não
estivermos cônscios da existência das questões, poderiam não vir à superfície discursiva. Sem
dúvida que, para o reconhecimento do lugar de onde emergem as manifestações dos atos
jornalísticos construídos em O Imparcial e Oeste Notícias, é preciso levantar muitas questões
que ficariam nebulosas, se inseridas apenas na história particular da região. O Pontal é um
espaço cuja representação sócio-histórica envolve um campo de expectativas com base nas
isotopias de leitura da luta pela terra que remete a intrincados problemas, especialmente
político-econômicos.
As questões agrárias conduzem o que há de mais polêmico na sociedade brasileira,
em âmbito nacional. Objeto de um grande número de textos jornalísticos por todo o país,
sempre sob o enfoque da luta pela terra, a questão da terra no Brasil é tão complexa como
óbvia para que se busquem soluções governamentais. É consensual que há muita terra e
poucos proprietários. Isso também é dito quando se trata da região do Pontal do
Paranapanema. Como a forma de produção valorizada cada vez mais é a agroindústria, a
mídia coloca-se na defesa dos discursos que sustentam essa temática, fazendo ecoar o
discurso do agronegócio, organizado em grandes corporações, as quais passam a comandar os
sistemas de produção da terra. Sem nenhuma representação, sem voz nem vez, aos poucos,
vão desaparecendo o pequeno roçado, o velho sistema extensivo, as relações de parceria,
levando a engrossar a massa de trabalhadores forçados a abandonar a zona rural. Assim, a
terra, um valioso elemento de troca, perde um pouco seu sentido de uso. A concentração do
espaço rural, a miséria extrema, a riqueza de alguns, em demasia, são características
146
marcantes da realidade brasileira atual. Esse processo de concentração é um fato preocupante
num país de dimensões continentais e grandes contingentes populacionais pobres, como o
nosso. Dentro desse quadro, não é de se admirar toda a luta que vem se travando em prol de
uma política agrícola que resida na distribuição menos desumana da terra e que impeça a
expulsão do homem do campo. Os assentamentos promovidos pelo governo FHC não foram
suficientes para atender à enorme demanda de trabalhadores que almejam um pedaço de chão
para produzir. Organizando-se em grupos, como o MST, na disputa pela terra, forçam o
governo a atuar no sentido de promover a tão desejada reforma agrária. Se a propriedade da
terra sempre foi assunto de debate, como o foi desde o descobrimento, continua sendo ainda,
trazendo para a pauta das discussões a questão do povoamento e do latifúndio: o povoamento
definindo a população e o latifúndio definindo a posse e o modo de administrar a terra.
Como tentamos abordar no capítulo anterior, em âmbito nacional, do ponto de
vista do governo, tratar das questões da terra é dimensionar possibilidades de transformação
social e democratização do país. Não se pode negar, entretanto, que a terra acabou se
transformando nessa questão que continua resistente. Mesmo em meio à comprovação de
dados estatísticos reveladores da realidade agrária que grita por soluções emergenciais, a
única saída para conquistar um pedaço de chão tem sido por meio de ações dramáticas de
ocupação ilegal, geradoras de confrontos.
Quando se fala em conflito agrário, o assunto remete, necessariamente para a
região da Alta Sorocabana, que tem Presidente Prudente como centro de destaque, uma
espécie de capital regional dos problemas fundiários.
Buscamos em trabalhos científicos dados sobre a história da região, que aparece
designada como “Alta Sorocabana”, “Vale do Paranapanema”, “Pontal do Paranapanema” ou
“Sertão do Paranapanema”:
Vale do Paranapanema ou Sertão do Paranapanema, nomes com que
se designava, no século XIX, a parte meridional do Estado de São Paulo [...]
até o Rio Paraná [...] toda a bacia do Rio Paranapanema.
Na área compreendida entre Assis e Presidente Epitácio, chamada
popularmente de Alta Sorocabana, designação depois adotada oficialmente,
Presidente Prudente foi um núcleo urbano dos mais antigos. (ABREU, 1972,
p.16).
No capítulo anterior, acercamo-nos de todo o cenário nacional para se juntar,
agora, a este, que passa a servir ao propósito de contextualizar o leitor, no entendimento da
especificidade do percurso traçado para iluminar nossas leituras dos textos jornalísticos de
147
Oeste Notícias e O Imparcial, durante o ano de 2002, objeto de nossos trabalhos. O enfoque
interpretativo orienta-se para o problema da leitura do tema da terra no espaço dos dois
jornais citados, longe de qualquer determinação de uma tipologia de modos de leitura que
possa revelar um processo ingênuo, regulamentado por códigos pré-estabelecidos pelas
instâncias enunciativas das empresas jornalísticas. É inegável que, em se tratando da questão
sobre a terra, na materialidade do texto produzido no jornal, proliferam os imaginários rurais.
Vamos nos referir a ideologias, a sentidos incrustados na construção jornalística e que
configuram percepções, pontos de vista pertinentes ao objeto-valor (terra) à sociedade
brasileira.
No Estado de São Paulo, a região do Pontal do Paranapanema, foco histórico de
lutas pela posse da terra, transformou-se no palco principal de movimentos sociais que
reivindicam a reforma agrária. Como num jogo de cabo-de-guerra, os desfavorecidos, alguns
deles famintos, lutam em constante desvantagem contra poderes locais, ao mesmo tempo em
que sonham com uma política nacional de agricultura familiar.
Na busca de compreensão desse espaço geográfico conhecido nacionalmente pelos
conflitos de terra, debruçamo-nos sobre textos que tratassem, não só da constituição
geográfica e histórica, mas da especificidade das emblemáticas questões sobre a ocupação
daquele território. Nesta situação de escuta, ecoaram discursos que abordaram a questão de
pontos de vista divergentes. Socialmente construídos a partir de códigos e discursos que
formam o complexo de sistemas modelizantes, os discursos construídos no jornal homologam
valores da cultura agrária, nos dizeres sobre a terra.
Independentemente de qualquer análise discursiva (o que faremos na parte
reservada a isso), há os discursos que são produzidos para o consumo dos proprietários de
terra e de seus defensores dos mesmos interesses, numa contraposição àqueles que defendem
a causa dos que não possuem a terra. Assim, são diversos e bastante distintos os cenários para
a mesma questão. Os mesmos fatos levam à construção de núcleos de informações
divergentes, que afetam o panorama sócio-histórico da região.
Diante do desenvolvimento do discurso dos que defendem, ou, poderíamos dizer,
daqueles que são sensíveis aos que não têm terra e lutam por ela, não há dúvida quanto a
identidade do enunciador. É um sujeito que desenvolve na materialidade textual o desenrolar
de vários acontecimentos na linearidade da história, com indicações precisas para constituir o
lugar de seu simpatizante: aquele que almeja a terra, desprovido de qualquer proteção da
sociedade. Tivemos acesso a um desses discursos. Parecendo reproduzir dizeres de um
148
assistente social, vislumbra-se o panorama sobre as questões da terra no Pontal do
Paranapanema. É assim que, no canto esquerdo da página virtual, vê-se o emblema do MST,
indicando o lugar social, institucionalizado, de onde emergem as falas.
Obedecendo a uma cronologia dos fatos relacionados aos conflitos na região, o
texto inicia essa contextualização pelos anos 60, passando pelas décadas de 70, 80 e, para
tratar da década de 90, caracteriza particularmente ano a ano. Depois de afirmar que as lutas
pela terra no Pontal são históricas, traz toda a narração de um dos embates entre posseiros e
grileiros de uma das reservas, hoje submersa, inundada com a formação do reservatório da
usina da hidrelétrica de Porto Primavera, a CESP. Mortos muitos posseiros e o grileiro da
Reserva Florestal Lagoa São Paulo (município de Presidente Epitácio), as 450 famílias que
enfrentaram os conflitos foram obrigadas a abandonar as terras tomadas pelas águas.
Realocados em outro município, logo no início da década de sessenta, aconteceu um violento
confronto entre parceiros, arrendatários e o latifundiário grileiro das terras ocupadas. O
conflito só teve fim com a desapropriação da área, em 1964, pelo então presidente João
Goulart.
A década de 80 traz para o cenário da região “trabalhadores desempregados das
obras das hidrelétricas” que, segundo o cadastramento feito pela Divisão Regional de
Promoção Social, “37.5% eram bóias-frias demitidos da Destilaria de Álcool Alcídia e 16%
eram posseiros ilhéus e ribeirinhos atingidos pelas barragens”.
Em 1983, aconteceu uma grande ocupação (aproximadamente 350 famílias) nas
fazendas Tucano e Rosanela, de "propriedade" da construtora Camargo Corrêa e da empresa
Vicar S/A Comercial e Agropastoril. Embora o juiz de Teodoro Sampaio tenha julgado a
documentação apresentada pela Imobiliária e Colonizadora Camargo Corrêa insuficiente
como prova de propriedade da fazenda Tucano, a instância jurídica de São Paulo atendeu ao
pedido de ação de despejo dos latifundiários. As 350 famílias foram, então, acampar nas
margens da rodovia SP 613. O acampamento foi aumentando devido aos boatos de que o
governo estadual iria doar terras.
Com relação ao Estado, diz o texto “em alguns momentos, muito lentamente,
tentava resolver a situação dos acampados, procurando não prejudicar os interesses dos
fazendeiros”.
Em março de 1984, o então governador, Franco Montoro, assinou os primeiros
decretos de desapropriação de uma área de 15.110 hectares para assentar as cerca de 466
famílias acampadas na SP 613. Esses decretos acirraram os ânimos dos grileiros do Pontal
149
que declaram guerra ao governo estadual e ameaçaram ocupar a reserva florestal do Morro do
Diabo. Essas ocupações e as desapropriações, juntamente com outras lutas que se
desenvolviam em todo o país, causaram a reação dos latifundiários que criaram a UDR -
União Democrática Ruralista para a defesa de seus interesses.
Até o início de 1990 dezenas de famílias foram assentadas em áreas
desapropriadas pelo governo federal, visando ao interesse social. Transcrevemos as
afirmações:
A situação fundiária do Pontal do Paranapanema é extremamente complexa e
se encontra em processo de desentranhamento. Em diversos procedimentos
excessivamente morosos, que vêm se desenvolvendo há mais de cinquënta
anos, o Estado tem procurado realizar Ações Discriminatórias nos 34
perímetros, que compõem a região, possuindo uma extensão de 1.182.491,
97 ha.
Este detalhamento mostrou que o Pontal do Paranapanema possui
444.130,12 ha de terras devolutas e 519.315,00 ha que estão com processos
de ações discriminatórias a iniciar ou em andamento. A maior parte destas
terras estão sob o domínio de grandes grileiros-latifundiários. Disponível em
<http://www.mst.org.br/mstsp/hist.html>. Acesso em: 07/9/2003
Para falar sobre os anos 90, o texto segue narrativizando cada um dos conflitos na
região, questionando sobre o papel do governo nas relações com os ocupantes ou pretendentes
de ocupação da terra:
[...] se atentarmos para o processo histórico de grilagens das terras do Pontal,
o pagamento das benfeitorias [...] o grileiro que devia restituir a terra,
indenizando pelo seu uso, por desmatar e vender a madeira, quando for o
caso, por ter especulado com a terra pública durante dezenas de anos,
cobrando renda, acabou por lograr o Estado e, novamente, recebeu pela
rapinagem que cometeu. Evidentemente, a correlação de forças políticas,
naquele momento, viabilizou esse tipo de "maracutaia".
Disponível em <http://www.mst.org.br/mstsp/hist.html>.
Acesso em:
07/9/2003
Mostrando revolta contra o pagamento feito pelo Estado para as terras,
“reconhecidamente devolutas e exploradas até a exaustão”, o texto refere-se à negociação
entre Estado e grileiros como “negócio de compadres”, afirmando que as operações
comerciais de compras das terras não poderiam ser feitas. Argumenta também que, além do
pagamento pelas áreas, ainda ficava para o governo o ressarcimento de danos para
recuperação das terras e dos mananciais.
A culpa pelo atraso no processo para solução dos problemas agrários na região é
jogada nas costas do Estado. Segundo o texto, nas negociações de compra de suas próprias
150
terras para implantar um assentamento, o Estado estava assim reforçando o poder político dos
grileiros e caracterizando o retrocesso da reforma agrária no Pontal do Paranapanema.
Nos anos 90, os conflitos do Pontal do Paranapanema passaram a ser destaque em
toda a mídia. Acompanhados pelas principais emissoras de televisão e pelos principais jornais
do Brasil e algumas agências internacionais, essa luta pela terra dava audiência. Enquanto a
região passou a ser notícia, passaram também a se intensificar as ocupações. O destaque dos
meios de comunicação passa, assim, a contribuir para divulgação do conflito fundiário,
obrigando o Estado a dar atenção especial para os problemas agrários da região. Isso levava a
uma transformação de uma realidade dominada pelos grileiros por mais de um século.
Na pesquisa para obtenção das informações sobre o Pontal, encontramos
disponível na Internet um texto produzido pela Embrapa, de onde obtivemos uma fonte
bastante rica de informações. Escrito para passar informações precisas, o texto recorre,
especialmente a dados numéricos, num apagamento do enunciador para que assim, nenhum
traço explícito possa levantar dúvidas sobre a neutralidade de seu endereçamento. Na busca
de efeitos de sentido de objetividade, é como se os acontecimentos se constituíssem por si
próprios, sem que se possa suspeitar que os fatos estejam sendo endereçados a algum grupo
social em particular.
Segundo dados do ITESP, existem atualmente, no Pontal do Paranapanema,
59 assentamentos definitivos, 6 provisórios e 6 áreas reivindicadas para fim
de assentamento de trabalhadores rurais sem-terra com ações em andamento.
O que equivale dizer que mais de 4.000 famílias estão sendo beneficiadas
diretamente com a aquisição de um lote rural.
Disponível em <http://www.itesp.sp.gov. br>.
Acesso em: 15/8/2003
151
Aparece de forma clara a realidade da grilagem de terras na região, segundo o
texto, “onde a propriedade legal da terra não se consolidou”, apesar de estar sendo explorada
desde 1920. Faz a denúncia da má ocupação do solo, colocando como responsáveis pelos
intensos processos erosivos, fazendeiros que exploram imensas áreas de pastagem para a
pecuária bovina.
A identificação de uma área de quase um milhão de hectares como propriedade do
governo estadual, na qualidade de terra devoluta, fez dirigir para o Pontal do Paranapanema
os diversos movimentos sociais na luta pela posse da terra, desde arrendatários e posseiros,
até atingidos por barragens.
Se tantos são os textos que acusam o MST como o entrave no desenvolvimento da
região, um dos textos oficiais de um órgão do governo (EMBRAPA) o vê como solução para
o problema agrário:
A entrada e desenvolvimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra - MST na região, a partir de meados da década de 1980, constituiu um
passo importante na sua história, fazendo com que atualmente o Pontal seja a
mais importante região de implementação de assentamentos rurais no Estado
de São Paulo e uma das mais importantes no Brasil.
Disponível em <http://www.embrapa.org.br>. Acesso em: 15/8/2003
Em site do governo federal, encontramos um texto com comentário sobre os
conflitos de terra no Brasil. Explicações para as causas da grilagem procuram esclarecer os
motivos de ações para reivindicação da posse de terra:
[...] A grande maioria dos conflitos de terra que ocorrem no país tem sua
origem na falta de titulação e demarcação de áreas já ocupadas. A categoria
mais vulnerável à violência é a dos pequenos posseiros. Há no Brasil mais de
um milhão de posseiros, em sua imensa maioria pequenos agricultores, que
não são proprietários, mas vivem e produzem em grandes fazendas
particulares pouco utilizadas por seus donos ou em terras públicas devolutas.
Vítimas constantes dos grileiros, os pequenos posseiros [...]
Disponível em <http://www/planalto.gov.br>. Acesso em: 15/8/2003
Ao enumerar uma série de fatos que acaba por instaurar a tese de uma possível
defesa dos que lutam para ter seu pedaço de chão, tornam-se visíveis aí as razões que levam a
região do Paranapanema a ser conhecida pela situação de tensão quanto as questões agrárias:
No Pontal do Paranapanema, a origem dos conflitos está na falta de
titularidade da terra. Desde que a região passou a ser colonizada por grandes
fazendeiros, no começo do século, não houve, até hoje, solução satisfatória
para a questão legal da propriedade. Os documentos das fazendas localizadas
152
nessa área não são reconhecidos pelo governo estadual, que considera as
terras como devolutas, portanto, públicas.
Por pressões políticas, dificuldades orçamentárias e morosidade no
andamento dos processos na Justiça, fracassaram todas as tentativas de
resolver o problema, feitas por sucessivos governos estaduais. Disponível em
<http://www.embrapa.org.br>. Acesso em: 15/8/2003
Nessa busca insistente de dados para a configuração da realidade sócio-histórica
da região, acessamos um outro site. Chamou-nos a atenção a multiplicidade de vozes inserida
na fala de um sujeito de enunciação que, numa debreagem enunciva – de pessoa, de tempo e
de espaço – relata uma seqüência de acontecimentos, tendo como agente mobilizador o MST.
Podemos depreender, já logo de início, trata-se de um personagem definido como o pomo da
discórdia. A narração em terceira pessoa ancora o dizer numa situação histórica “real” como
se tratasse de fatos acontecidos, criando assim o efeito de sentido de verdade.
Muito se tem discutido a respeito das terras do Pontal do Paranapanema,
notadamente os conflitos agrários gerados pelos membros do chamado MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que tentam criar dúvidas
quanto à legitimidade dos títulos de propriedade existentes naquele pedaço
do Estado de São Paulo, forçando, com isso, o governo a promover a
expulsão dos proprietários da região de suas legítimas propriedades, para dar
lugar aos trabalhadores sem terra. E aqui cabe a indagação: Seriam esses
proprietários realmente grileiros para merecer esse tratamento? Para
responder é necessária uma breve investigação histórica a respeito dos
primórdios da colonização daquela região. Disponível
em:<http://www.udr.org.br/artigo>. Acesso em 15/8/2003.
Ao falar sobre o que é institucionalizado, o enunciador põe-se como figura
mediadora entre o leitor e a questão proposta. Logo no início sua identidade aí construída
discursivamente remete ao espaço social no interior do poder social e econômico - um
defensor dos proprietários de terra.
Se nos fragmentos acima, retirados dos sites da EMBRAPA e do MST, em ambos,
era visível o lugar de onde falava o enunciador, isso não podemos afirmar em relação a esse
discurso. Os dados do narrado são informações cuja preocupação é a de instaurar uma
verdade. Assim, o uso da terceira pessoa, de um enunciador que, por não se mostrar, cria um
efeito de sentido da objetividade, de um simulacro da verdade. Suspenso o efeito de
subjetividade, distancia-se na construção das estratégias das verdades enunciadas, na
pressuposição de que seu leitor já tenha conhecimento do assunto. Estabelece o diálogo com
ele, como se tivesse a certeza de que fará a mesma avaliação sobre o assunto. Desse modo,
então, o enunciador pressupõe que o leitor saiba sobre os conflitos, numa cumplicidade para
153
condená-los. Apoiando-se em dados históricos, dispõe e organiza as informações, aplicando
aí se seu ponto de vista, justificando a sua tese (“Essa ocupação das terras incultas era na
época tolerada”):
A penetração nos sertões do Pontal do Paranapanema deu-se em
meados do século 17, pelo vale do rio Santo Anastácio [...] em 1769. No
entanto a colonização ocorreu anos depois, quando, por volta de 1847, um
grupo de mineiros liderados por José Teodoro de Souza iniciou a ocupação
permanente da região.
Essa ocupação das terras incultas era na época tolerada e passou a
ser legalizada a partir da edição da Lei de Terras nº 601, de 1850,
promulgada tendo em mira o respeito e a garantia da ocupação primária da
terra.
Assim nasceram os títulos de propriedade na região. Todos os títulos
foram registrados nos cartórios de Registro de Imóveis, bem como passaram,
desde então, a sofrer desmembramentos, dando origem a diversas novas
propriedades, inclusive mediante contratos de assentamento de imigrantes
firmados pelo Governo Provisório da República. Sobreveio em 1891 a
Constituição da República, que passou para os Estados da Federação as
terras que ainda se encontravam devolutas. No Estado de São Paulo, a partir
de 1895, foram baixadas diversas disposições, todas respeitando a posse da
terra desocupada [...]
[...] o seu primitivo registro [de quase todo o Pontal] foi realizado no
ano de 1890 e, no ano de 1900, passou a integrar o Registro Público das
Terras Públicas e Particulares como imóvel de caráter particular. Disponível
em <http://www.udr.org.br/artigo>. Acesso em 15/8/2003.
Depois de uma extensa narração dos fatos históricos, pode-se ouvir uma voz que
tenta seduzir o leitor para aceitar os dizeres sobre as questões agrárias do Pontal, num repúdio
a qualquer dizer contrário ao que se enunciou, independentemente de ter sido produzida nos
meios do poder público. Ao qualificar a ação do governo do Estado como “discriminatória”, o
enunciador já elimina essa voz, mesmo advinda das altas esferas governamentais.
A voz categórica, que emerge do texto, destaca-se pelo negrito (“As terras que
formam boa parte do Pontal do Paranapanema não são fruto de uma grilagem qualquer”) e
parece gritar para ser ouvida. A estratégia de persuasão argumentativa vai construindo relatos
históricos a sustentar o ponto de vista de um sujeito que se põe na defesa dos proprietários
rurais, renegando qualquer tomada de posição contrária à sua.
No ano de 1910 o governo do Estado iniciou a ação discriminatória
envolvendo todo o território da Alta Sorocabana, inclusive o que ficou
conhecido como Pontal do Paranapanema, sendo que os títulos lá exibidos,
incluindo o chamado Pirapó-Santo Anastácio, foram considerados legítimos.
A fazenda Pirapó-Santo Anastácio foi objeto de divisão judicial em 1908,
com a habilitação de mais de 3.000 condôminos, sendo que a Fazenda do
Estado de São Paulo, a despeito de citada, não se interessou naquela época
em ingressar no processo.
154
No transcorrer do último século, diversas comarcas foram instaladas
naquele território, tendo o Estado participado ativamente da criação e
implantação de serviços públicos, notadamente os cartórios de Registros de
Imóveis, que deveriam oferecer garantia e segurança de legitimidade às
transações lá registradas.
Em 1945, o governo do Estado legitimou, através de lei,
independente de processo, todos os títulos de propriedade existentes no
Estado que estivessem registrados havia mais de 20 anos, ou seja, desde
1925. Esse é o caso de todos os adquirentes de parcelas do imóvel Pirapó-
Santo Anastácio. Disponível em: <http://www.udr.org.br/artigo>. Acesso
em: 15/8/2003.
A continuidade do ponto de vista que se foi inserindo, ganha forças na conclusão,
quando, enfim, designa a expressão de juízo sobre o assunto:
Resulta, pois, que as terras que formam boa parte do Pontal do
Paranapanema não são fruto de uma grilagem qualquer, que deve agora ser
coibida pelo Estado, como podem acreditar os menos informados; mesmo
porque, se irregularidade nenhuma ocorreu, o Estado de São Paulo
contribuiu e muito com a situação hoje consolidada naquela região, e a sua
ação política, no sentido de tentar arrecadar terras com base numa suposta
fraude verificada há muito mais de cem anos, só está atingindo a terceiros de
boa-fé que acreditaram nos registros públicos instalados e mantidos pelo
próprio Estado.
Conclui-se, pois, que os proprietários não tiveram participação em nenhuma
prática irregular naquele antigo registro imobiliário de 1890, sendo na
realidade vítimas dos registros públicos criados e mantidos pelo governo do
Estado.
Disponível em:<http://www.udr.org.br/artigo>. Acesso em: 15/8/2003.
Acreditando ser pertinente para nossas reflexões uma consulta em fontes de um
estudioso sobre o assunto, passamos agora a abordar alguns aspectos contemplados por um
historiador cuja obra Formação histórica de uma cidade pioneira paulista: Presidente
Prudente (ABREU, 1972) traz informações históricas sobre o Pontal do Paranapanema.
Acompanhamos alguns passos do autor e podemos obter informações para a
contextualização por que nos interessamos. Ele inicia seu texto, reclamando da falta de
documentação para seu trabalho: “pobreza das fontes locais que só aparecem organizadas
depois de 1923, deixando um lapso de tempo na escuridão”. (ABREU, 1972, p. 11). Citando
1917 como data oficial da fundação de Presidente Prudente, refere-se à “época conturbada
dos coronéis” que levavam ao sumiço dos documentos que não lhes convinham.
A obra do historiador trata também da imprensa local cujo destaque é para o jornal
O Imparcial, objeto de nossas análises. Diz que o primeiro periódico da região surge em
1926, explicando que, embora não fosse um órgão político, “tinha o bafejo político local” (p.
193). Depois de enumerar diversos jornais da região, faz um resumo de todo o histórico da
155
imprensa local do início do século passado, afirmando que a sobrevivência dos periódicos
dependia das facções políticas “que viam nas despesas com um jornal gastos naturais para
combater o adversário”:
O Imparcial apareceu em fevereiro de 1939, numa época que não
havia liberdade de imprensa e nem política para que se filiasse a uma posição
[...] Verifica-se que a qualidade gráfica não era ruim [...] Os jornais
(referindo-se a outros) cobriam as festas religiosas e sociais, informavam
sobre acontecimentos sociais [...]. Enfim, havia boa vontade no sentido de
dotar a cidade e a região de bons veículos de informações para que cada um
melhor difundisse sua posição política. (ABREU, 1972, p.194).
Sobre a realidade política daquela sociedade, o historiador comenta que “mesmo no
Estado Novo, Presidente Prudente conservava a aparência de um típico povoado de ‘boca de
sertão’” (p. 296),
cuja estrutura coronelesca encarava a administração pública como jogo de
forças pessoais. Conta que, representantes do poder político, dois coronéis, apesar de serem
de partidos diferentes, apresentavam-se unidos quando se tratava de defender os interesses da
região diante do governo estadual; mas, na verdade, “a união dos dois era falsa pois
continuavam como rivais a disputar terras na região” (p. 234). As leituras do quadro político
traçado por Abreu serviram-nos para entender que, na estrutura social da região, o poder dava
as mãos para a defesa de interesses pessoais, numa estrutura partidária com vistas a permitir
apenas o domínio de uma oligarquia, que dificultava qualquer renovação.
Em um dos capítulos do livro o autor traz a questão da subserviência do homem do
campo: “o homem da roça, freqüentemente iletrado que comprara terra de Marcondes e
Goulart [as duas autoridades políticas da região], que recebera deles favores e auxílios para se
instalar, assistidos pelos dois coronéis, não deixava de votar com eles” (p. 243).
Saltam aos olhos do leitor as denúncias contra o domínio de poderosos e a
impossibilidade de quebrar essa corrente de favores no tempo dos coronéis. Ao se referir ao
Estado Novo, é bastante forte a afirmação do historiador no sentido de conduzir nosso olhar
para enxergarmos aí uma explicação para essa nebulosa que hoje se constitui como problemas
fundiários no Pontal do Paranapanema: “Em Presidente Prudente, a revolução não trouxe
alteração na estrutura econômica e social. Continuou a dominar o latifúndio e as relações
sociais compadrescas que eram características dele, permitindo que o regime do coronelato
continuasse agora sob outra roupagem” (p. 246).
156
Dando seqüência à explicação para os problemas agrários da região ocorridos
depois do Estado Novo, Abreu (1972) afirma:
Em síntese, depois de 1930, continuaram as formas coronelísticas no
relacionamento de povo e governo [...] Assim foi, em parte, porque o
movimento revolucionário não foi capaz de modificar as condições
econômicas basicamente assentadas na exploração latifundiária que davam
expressividade social e política aos grandes proprietários [...] Estando no
poder, atuavam com autoritarismo e ambição pessoal (p. 292).
Selecionar sentidos no interior de um campo vasto é a primeira tarefa quando
buscamos penetrar no domínio da história. Entre o que se constrói como acontecimento
presente e o passado de uma determinada sociedade, somos levados de uma pretensa realidade
para a fantasia. Muitas são as abordagens a que podemos recorrer para a caracterização do
ponto de vista sócio-histórico, a fim de acrescentar novos dados sobre as questões
relacionadas à temática da terra. Diversas crônicas abordavam sobre o assunto. Só mesmo
como ilustração, pensamos ser enriquecedora para essa contextualização, a leitura de uma
delas. (ANEXO, p. 364).
É preciso, no entanto, estabelecer um limite em meio à riqueza do arquivo textual
sobre o assunto. Indiscutivelmente, justifica-se toda abordagem que permita inscrever o
discurso na teia das relações sociais, especialmente quando se trata de discursos que
estruturam questões tão polêmicas como estas. Foi com esta intenção que concebemos os dois
capítulos da Parte II. Reconhecemos a importância de uma base para a explicação dos
vínculos que prendem o discurso jornalístico construído no Pontal do Paranapanema sobre as
questões agrárias a suas condições sócio-históricas de produção e de recepção.
Estabelecer interações contextuais levou-nos à busca que resultou no universo de
textos que compõe a segunda parte de nosso trabalho. E, assim, “pelo recurso aos textos que
formam o contexto do discurso em questão” (BARROS, 1988, p. 142), um universo maior, no
interior do qual se inserem os textos, possibilita maior visibilidade para a leitura da temática
da terra. Considerado o contexto como uma totalidade de significação, no interior da qual
cada texto cobra sentido, ainda de acordo com Barros (1998), essa trajetória se justifica, na
medida em que acreditamos na “existência pressuposta de um espaço fiduciário subjacente à
leitura, que comanda a correta ou possível interpretação dos enunciados”. (BERTRAND,
2003, p. 191).
157
Ratificamos que nos reportamos ao contexto, por se tratar de uma dimensão
ideológica na construção do sujeito e, por conseqüência, na construção do movimento
interpretativo dos discursos jornalísticos em questão.
Concebido o microuniverso, feitas as relações com as unidades textuais dentre o
estoque de temas para a contextualização do discurso da terra no Pontal, passemos, então, à
leitura do corpus.
158
PARTE III
A LEITURA DO CORPUS
159
Toda ação principia mesmo é por uma
palavra pensada.
Palavra pegante, dada ou guardada, que
vai rompendo rumo.
Guimarães Rosa
Pelo rastro, no chão, a gente sabe de muita
coisa que com a boiada vai acontecendo.
Guimarães Rosa
160
Mesmo sabendo da importância da temática da terra para o Pontal do
Paranapanema, grande foi a nossa surpresa ao constatarmos que (sem querer exagerar!) é ela
que sustenta a construção textual de O Imparcial e Oeste Notícias. A reiteração discursiva
dessa temática e a redundância de traços figurativos que a recobrem, possibilitaram-nos
organizar “inventários”, que fomos agrupando em vários temas, todos relacionados à mesma
isotopia de terra. A sobreposição de figuras e temas, que se contradizem ou matizam uns aos
outros, irremediavelmente, levaram-nos às seguintes questões: Produção agrícola, atividades
rurais e lazer rural, os conflitos fundiários, a política agrária, as eleições e a questão agrária, o
MST, o líder José Rainha, a participação da Igreja, etc. Alguns de figuração esparsa, mas a
maioria deles de forte iconização, com que a temática da terra vai sendo revestida
exaustivamente, visando mesmo a produzir ilusão referencial, ou pondo em jogo o estatuto
veridictório dos fatos, quanto a certezas e incertezas, por meio da construção discursiva.
O enunciador de O Imparcial e de Oeste Notícias, a partir da utilização de figuras
que pressupõem um leitor que as reconhece como “imagens do mundo”, leva à crença de que
constrói-se a suposta “verdade”. Em se tratando do reforço das isotopias temáticas, mesmo
não tendo o intuito de fazer uma análise quantitativa, conseguimos contar, grosso modo, cem
vezes em que o MST ocupa a primeira página dos dois jornais, reunidas as edições do ano de
2002. Criam-se sempre efeitos de sentido que reforçam a relevância do tema do conflito
fundiário, destacando-se em relação a quaisquer outros que venham a circular na sociedade.
Na figurativização de um mesmo fato, a verdade, construída jornalisticamente, decorre das
ilusões enunciativas, revestidas sempre de novas roupagens. É como se o fato surgisse pela
primeira vez, reiterado numa nova notícia ou reportagem. Para sustentar esse dizer, podemos
nos referir à prisão de José Rainha que comparecia diariamente à primeira página, conforme
analisaremos mais adiante, quando tratamos da leitura das primeiras páginas.
Assim sendo, observa-se um destinador que modaliza o leitor a um dever-crer e
encontra na reiteração temática o desencadeador do seu discurso persuasivo. Mesmo não se
tratando de um acontecimento novo, a mesma notícia é colocada em circulação várias vezes,
não levando em conta o que deveria ser pré-requisito para justificar o destaque em primeira
página, ou a sua enunciação como “notícia”: a novidade.
Desse modo, o jornal, insiste na construção do mesmo fato, que deve “parecer-ser”
verdade. Conforme notamos, a insistência da (des)construção da imagem dos sem-terra
poderia parecer desmotivante para o leitor, que sempre tem diariamente a mesma questão
trazida em dezenas de charges sobre Rainha, não fosse a pressuposição de que a validade é a
161
do contrato com o pressuposto leitor-fiel. E o que podemos depreender dessa insistência é que
se trata de um apelo para uma conjunção com um destinatário, a quem a repetição do tema
parece agradar. Curiosamente, esse apelo só pode ser entendido quando percebemos que um
medo da possível perda do objeto-valor terra permeia grande parte dos textos, conforme se vê
ao longo de nossas leituras.
O enunciador em Oeste Notícias e em O Imparcial apresenta-se, então, como
destinador, não apenas do processo de comunicação do objeto cognitivo – nesse caso, levar a
um saber, a reconstrução dos fatos visando a satanizar o MST – mas também, por se tratar de
contrato fiduciário da comunicação que aí se verifica, dele depende toda a confiança
depositada pelo leitor no poder do jornal. Alimenta-se, assim, a crença de que alguém age por
ele, ou seja, alguém enfrenta as ações do anti-sujeito (o MST).
Em suma, na manifestação de confiança mútua em relação aos valores ideológicos
contrários ao Movimento dos Trabalhadores Sem-terra, renovam-se os votos de confiança das
afinidades entre enunciador e leitor de Oeste Notícias e O Imparcial, num quadro de relação
actancial típica entre os dois sujeitos envolvidos no processo da comunicação. Assim, um
acredita contar com o outro para cumprir seus objetivos: destruir a imagem do MST.
Selecionados os textos da temática da terra, obtivemos um volume de centenas de
páginas das edições de 2002 de Oeste Notícias e O Imparcial. Necessário, então, fazer
recortes para tornar possível o alcance de um olhar para examinar o tema. Desde as primeiras
leituras, formaram-se conjuntos de textos que, a partir de subtemas, fomos organizando de
acordo com as temáticas a serem investigadas. Na variedade das questões agrárias, a inter-
relação entre elas, dificultava a tarefa. Desde a primeira página, a temática da “terra”
entramava-se por todo o material, espalhando sentidos pelos diversos gêneros: editoriais,
charges, artigos de opinião, reportagens, etc. Para ser examinada, decidimos, então,
especificá-la em dois temas: o conflito pela terra e as políticas agrárias.
Quanto ao primeiro, é formado por um elenco de textos sobre a disputa pela terra,
tendo como destaque dois acontecimentos cujos protagonistas eram dois prefeitos da região
do Pontal. O de maior repercussão culminou no confronto entre o prefeito de Presidente
Prudente e o MST cujos desmembramentos tiveram como conseqüência a atualização do
papel temático do líder do movimento sem-terra, José Rainha, como o anti-Cristo.
A propósito de “políticas agrárias”, aí incluímos todos os textos cuja abordagem se
diferenciava da perspectiva específica dos conflitos pela terra. A divisão em subtemas
possibilitou um certo detalhamento para o exame da dominância da temática do conflito, que
162
subjaz à grande totalidade dos textos. Convém esclarecer que a divisão entre os temas do
“conflito pela terra” não aconteceu entre fronteiras bem delimitadas, podendo se verificar que
é o fio condutor de quase todo o corpus, inclusive em “políticas agrárias”. O que justificou a
divisão foi a predominância dos investimentos de sentido em cada gênero textual no espaço
do jornal. Independentemente de se tratar de O Imparcial ou de Oeste Notícias, deixamo-nos
conduzir pelos referidos temas para apreender a produção do sentido que emana da superfície
de cada texto.
Por essa perspectiva, tendo o conflito com o MST como eixo temático, fomos
observando questões ambientais e agrárias, na compreensão de políticas diversas para o uso
do solo, desde sua defesa para um uso específico como plantio da soja, criação de gado
(Agronegócio), até a defesa do meio ambiente, nas diversas manifestações de gênero da
prática midiática dos dois jornais do Pontal do Paranapanema.
Preliminarmente, sem a preocupação de estabelecer diferença entre as duas
empresas jornalísticas, procuramos ter uma visão mais ampla sobre o tema, não visando a
nenhuma abordagem relativa a diferenças de estilo entre os dois jornais. No entanto, ao lidar
com a materialidade discursiva, na observação das recorrências ao tema, a partir de elementos
que compunham os textos - no nível de linguagem usado, na figurativização, na construção de
atores, nos gêneros escolhidos - fomos notando marcas do ethos de cada um deles, ou seja,
características dedutíveis de uma maneira de dizer. Isso foi importante pois remetia a um
determinado lugar ocupado por seus enunciadores. Apontando para a rede de sentidos
observável em cada jornal, era significativo notar diferenças que construíam efeitos de sentido
diferentes para a temática em questão.
163
3.1. Um olhar para o objeto de análise: O Imparcial e Oeste Notícias
164
De acordo com o que afirmamos no capítulo 2 da parte I, consideramos a
materialidade dos jornais, a partir de “dispositivo” e “conteúdo”. Não se trata de dois planos,
conforme explica MOUILLLAUD (1997), um externo (suporte/embalagem: formato,
diagramação, etc.) e um interno (idéias/conteúdo). O dispositivo está sendo visto como um
modo de estruturação do espaço e do tempo e não como um mero “suporte”, mas antes como
uma matriz que impõe formas.
A partir dessas considerações, passemos à abordagem de alguns dispositivos em
que se inscrevem Oeste Notícias e O Imparcial.
Fundado em 1930, O Imparcial é o jornal mais antigo. Nessa época, “os fatos
policiais da comarca eram noticiados com minúcias” (ABREU, 1972, p. 196). No entanto,
podemos afirmar que, atualmente, o jornal não mais se pauta por essas características, para as
quais se volta seu concorrente, Oeste Notícias. Isso pode ser examinado nos textos que
constituem este corpus.
Dono de um império da comunicação em toda a região do Pontal (empresa de
jornalismo impresso, televisivo e uma rede de ensino superior), Oeste Notícias tem na
exploração de fatos policiais, incluindo aí os conflitos agrários, seu objeto de interesse,
pautado geralmente pelo sensacionalismo. Os acontecimentos trágicos saltam aos olhos do
leitor como um dos ingredientes mais valorizados. Rara é a primeira página onde não se lê
uma manchete ou foto envolvendo tragédias, em que não se assiste à versão do trivial sobre o
que tem significado para aquela sociedade. A manifestação textual apela para a versão
sensacionalista das notícias. (ANEXO, p. 325 e 326).
Não podendo competir com a tradição de mais de meio século de O Imparcial,
Oeste Notícias, fundado há menos de uma década (em 1995), chama a atenção por sua
modernidade, conforme afirma um de seus leitores:
“[...] primeiro Jornal diário impresso em cores e com um padrão gráfico
absolutamente compacto, extremamente positivo, pela qualidade gráfica e
editorial”, “paginação, pré-impressão num parque gráfico com equipamentos
de última geração”, “posição de vanguarda no mercado regional”,
“referência para o Brasil, alimentando com informações e imagens à
chamada grande imprensa a cada acontecimento regional de repercussão
nacional, a exemplo dos conflitos fundiários no Pontal do Paranapanema”
(Oeste Notícias, 02/5/2004).
Comparado ao concorrente - de papel jornal tradicional - Oeste Notícias utiliza um
papel de melhor qualidade, ou seja, branco sulfite para o primeiro caderno, que funciona
165
como uma vitrine, seduzindo o leitor pelo apelo cromático em fotos sobre os fatos,
especialmente com destaque para os trágicos: acidentes de trânsito, em que se pode seguir a
narratividade do acontecimento em seqüência de instantâneos em cores, simulando o
momento do ocorrido. Como se disputasse com o concorrente a importância dos fatos, a
expor, sem nenhuma sutileza, o sensacionalismo que transborda na primeira página, numa
anarquia de títulos, sem eleger um deles para manchete. Homicídios e ações de sem-terra
(mesmo quando não se trata de ocupação) aparecem lado a lado, ocupando quase a metade
superior de uma alvíssima primeira página. Nas edições do domingo há sempre o destaque
para um ensaio fotográfico, cuja personagem – uma linda jovem, em pose erótica - vem como
uma suposta notícia: “A bela Camila Góes. Ela é prudentina, cursa o primeiro turno de
Comunicação Social na Universidade do Oeste Paulista (Unoeste) e, além dos estudos, tem
tempo para embelezar as passarelas [...]”.
Com o apelo para o sexo, o jornal consegue atrair olhares, estabelecendo
associação entre a modelo e a faculdade, observando-se assim a atuação da empresa
jornalística para o destaque do ensino superior, de que faz a propaganda, divulgando sua rede
de ensino universitária, Unoeste, pertencente ao jornal.
O registro lingüístico utilizado é o popular. Sem maiores cuidados com a norma
culta da língua portuguesa, muitos são os textos que infringem essa norma. Precisemos, então,
algumas ocorrências. Quanto à concordância: “Preço dos veículos podem aumentar”,
“quando acontece as invasões” (Oeste Notícias, 26/3/02); ortografia, seguidos de expressões
sem sentido ou de um linguajar da oralidade: “talves”, “uma coisa é uma coisa, outra coisa
é outra coisa”, “as multinacionais estão se lixando para o carro a álcool que dá para perceber
que é uma pedra no sapato dos grandes”. (Editorial de Oeste Notícias, 30/3/02). Poderíamos
enumerar, ainda, a falta de paralelismo sintático, casos de ambigüidade, todos casos de
transgressão às normas do padrão culto a que normalmente os veículos da mídia impressa
obedecem. Na verdade, pode-se dizer que esses registros parecem contribuir para a
desqualificação do assunto abordado. Isso nos leva a acreditar que a linguagem, tantas vezes
beirando o chulo, funciona como um entorno de sentido, criando uma percepção para
desqualificar uma determinada classe de sujeitos (sempre os sem-terra). Desse modo, sem
meios-termos, essas infrações ou dificultam a construção dos sentidos ou os levam a um
transbordamento, de maneira a renegar o que está sendo construído. São muitos os exemplos
de uso da linguagem informal para expandir o efeito da desqualificação do MST. Não sendo,
no momento, nosso intuito apontar essas infrações, referimo-nos a elas somente enquanto
166
marcas que caracterizam o jornal. À medida que analisarmos os textos, vamos nos ater a essas
marcas.
Eixo gerador de grande volume dos discursos, a temática da terra não se restringe
aos conflitos agrários, de textos. Nela busca ancoragem, por exemplo, a propaganda política:
Xico conheçe os Problemas da Terra. Vote para Deputado Federal [...] Ele conhece muito
bem a questão agrária e a política agrícola nacional. [...] nome certo para a solução dos
problemas da posse de terras em nossa região.” (Anexo p. 327).
Embora tenhamos dito que não nos ateríamos aos aspectos do registro lingüístico
utilizado pelo jornal, consideramos, contudo, pertinente chamar a atenção para o fato de a
palavra “conhece” estar grafada com “ç”, conforme se constata no anexo. É significativo o
efeito de sentido que advém daí. Se recursos lingüísticos são usados visando ao
convencimento do leitor, transmitindo confiabilidade em relação ao que se diz, em
contraposição, quando há falha no uso desses recursos, pode-se levar a efeito contrário. Um
argumento de competência lingüística, que consiste no uso de normas gramaticais, quando
infringido, pode levar à ruptura da crença na capacidade da perfórmance pragmática do jornal
de construir o texto gramaticalmente correto.
Esse destaque é só mesmo para reforçar o que dissemos sobre a imagem da
empresa jornalística. É mais um exemplo que conduz ao ethos do jornal que não parece julgar
relevantes questões que dizem respeito ao universo lingüístico da gramática, quando a
preocupação é com o registro popular.
A área de abrangência dos dois jornais compreende 63 municípios que, juntos
possuem mais de 1 milhão de habitantes. Além de Presidente Prudente - a cidade sede - estão
nesta área municípios importantes como Assis, Adamantina, Dracena, Osvaldo Cruz,
Presidente Epitácio, Presidente Venceslau, Rancharia, Teodoro Sampaio e Tupã. A tiragem
média de cada um dos jornais atualmente é de 10 000 exemplares.
Se é sempre proclamada a modernidade de Oeste Notícias, não se pode dizer que
O Imparcial fique para trás nesse aspecto. Este último segue a mesma linha de qualidade
gráfica e editorial com diagramação moderna, de acordo com os padrões adotados pelos
jornais diários, tais como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Para as notícias
nacionais e internacionais conta com um quadro de colaboradores conhecidos na mídia
impressa e televisiva: Delfim Neto, Joelmir Betting, Alexandre Garcia, Carlos Monforte,
Mônica Waldvogel, Cláudio Humberto, Armando Nogueira e outros. Vale ressaltar que há
167
sempre um artigo sobre questões agrárias, as quais são tratadas pelos articulistas. Aliás, raras
são as edições que não dão destaque a questões fundiárias.
No pacto de muitas vozes, de uma maneira geral, os dois jornais regionais
sustentam a temática da terra, levando à circulação imediata de outros temas relativos a ela,
que parecem entusiasmar o público leitor.
Pontilhados de textos de autores de renome nacional do mundo jornalístico, acima
apontados, tornam-se fiadores de dizeres que o jornal sustenta para consolidar poderes e
deveres do universo de leitores que atingem, reproduzindo crenças partilhadas na sociedade.
Assim, transformam-se em interlocutores do que há de mais canônico na tradição jornalística
brasileira, utilizando procedimentos que sugerem o interesse dos jornais do Pontal em reforçar
os discursos que lhes interessa pôr em circulação na região.
Pode-se perceber que, no pacto de muitas vozes, os dois jornais mostram-se
constantemente voltados para um mesmo tipo de público, engajado na política agrárias ou na
administração regional. Dada a enorme quantidade de textos sobre questões agrárias
brasileiras (analisaremos alguns artigos, mas não há espaço para contemplar tudo aquilo de
que gostaríamos de tratar) o que se pode supor é que os interesses dos leitores é sempre pelas
questões fundiárias. Sendo a terra o grande alvo, os textos abrem espaço para as mais diversas
vozes narrativas. É o que faz Oeste Notícias e O Imparcial que incorporam várias versões
para um mesmo assunto, de forma que a temática do conflito, por exemplo, atinja uma
dimensão nacional, transcendendo o âmbito regional. Tudo visando a persuadir o leitor para
os efeitos de sentido de verdades enunciadas.
O tema da terra responde a injunções sociais pertencentes a uma ordem que muitas
vezes transcende a esfera de ação e o campo de expectativa do próprio sujeito. Nesse sentido
é preciso buscar a ordem do histórico, inscrita nos discursos sobre o tema. Estamos aí diante
de um sistema de valores sociais, de onde emanam forças e influências pré-estabelecidas,
hierarquicamente superiores. Temos que lidar aí com o “poder” como um ethos
(MAINGUENEAU, 1995), um espaço social construído pela empresa jornalística. Em se
tratando do jornal como a voz do poder, vamos a Discini (2003). Ela explica que “o ethos é
dedutível de uma maneira de dizer e que emerge do dito” (p. 117). No caso de Oeste Notícias,
em especial, emerge um poder que não pode ser caracterizado como instância de um mero
“destinador”. As falas construídas pelo jornal não se restringem ao âmbito da voz da empresa
de notícias impressas. Elas trazem a voz de outros poderes municipais, já que o dono do
jornal é o prefeito da cidade, diretor da maior universidade da região e de canais de televisão.
168
Oeste Notícias assume o discurso da terra não apenas da perspectiva do proprietário rural. O
jornal cria espaço para os que utilizam esse discurso com a finalidade de proclamá-lo e poder
aí defender os interesses da propriedade rural. Trata-se de fazer ecoar o ponto de vista do
destinador da elite agrária diante das polêmicas sobre a “terra”, obviamente, coincidente com
a do próprio jornal.
Fazendo nossas as palavras de Discini (2003, p. 154) se “a imprensa ‘séria’ faz-
crer no corpo sóbrio e faz-ser tal ideal de ‘justa medida’”, conforme atestamos a partir da
leitura da Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, o mesmo não se pode dizer quanto a Oeste
Notícias. Se comparado a O Imparcial, podemos afirmar que informa menos, sem levar ao
debate. Ao fazê-lo, monta a coerência do próprio simulacro, vinculado a uma imagem-fim,
que é a de um sujeito que divide os mesmos valores com o jornal, que não perde tempo nem
aceita algo diferente de seu ponto de vista em relação às questões agrárias. Ainda
comparando-o a O Imparcial, que explorou em inúmeros editoriais a temática da terra, muito
poucos foram eles em Oeste Notícias.
Grosso modo, não podemos ver diferenças entre os dois jornais. Observemos dois
excertos de editoriais:
A região mais duramente atingida pela reforma agrária desenvolvida pelo
Incra, muitas vezes a reboque do MST e de outras entidades montadas pelos
partidos de esquerda, foi a do Pontal do Paranapanema [...] Não se trata
agora de questionar a forma como o Estado realizou as discriminatórias para
dar lugar aos assentamentos de agricultores que os movimentos trataram de
trazer para a região, montando acampamentos à margem das estradas,
invadindo as propriedades, incendiando-as, matando um sem número de
reses e levando esses agricultores (nem sempre verdadeiramente
agricultores) de um lado para outro [...] O que foi feito está feito, com
prejuízos elevados para a imagem de nossa região, onde as terras chegaram
aos preços mais baixos em todo o país. Tão baixos que muitos proprietários,
embora ocupando legitimamente suas áreas, não vacilaram em negociá-las
com o Incra, para instalar-se em outras regiões do país (O
Imparcial,16/01/02).
Há anos o MST manda no Pontal, onde se instalou com a ajuda de alguém
que os defendia e ainda os defende com unhas e dentes, que não se importa
com rumo dado às ações depreciativas de uma região cada vez mais com
suas terras desvalorizadas. (Oeste Notícias, 28/3/02).
O Imparcial e Oeste Notícias assentam-se sobre os valores do grupo dos
proprietários rurais, na obediência à ideologia capitalista, em que se apóia, para explicar
“prejuízos elevados para a imagem de nossa região, onde as terras chegaram aos preços mais
169
baixos em todo o país”. As declarações são as de que a “região cada vez mais com suas terras
desvalorizadas” (O Imparcial,16/01/02).
Eles levam em conta um leitor que esteja manipulado ou se deixe manipular, tendo
em vista o nível contratual, pela defesa dos interesses dos donos de terra. Parece evidente
tratar-se de um mesmo discurso, monofônico, de acordo com Bakhtin, sem que haja
divergência entre os dois veículos. Parece também que pouca informação se extrai de cada um
dos jornais. Ou pelo menos o que se mostra, é ser bem restrito o número de reflexões
relevantes, necessárias para interpretar a temática da terra. Desse modo, o leitor chega ao
texto numa atitude passiva de apreensão da carga de sentidos. Sobre o universo agrário, posto
em circulação pelo jornal, é que se dá a interpretação de valores já naturalizados.
Na pressuposição de conhecimento partilhado, que se sustenta com base nas
atitudes e ideologias sempre favoráveis aos proprietários de terra, o discurso das questões
fundiárias vai-se construindo, então, a partir de atitudes discriminatórias contra quem não se
põe na defesa dos donos de terras.
Permitimo-nos agrupar Oeste Notícias e O Imparcial numa mesma enunciação,
por apresentarem afinidades de olhar e de escuta sobre as questões fundiárias, visando sempre
a projetar, numa recorrência discursiva, o discurso dos proprietários rurais. Estão na defesa
dos interesses de um poder dominante, participando também eles desse poder na região para
reivindicar seus interesses. A voz dos ruralistas, representada pela União Democrática
Ruralista (UDR), é sempre amplificada em incontáveis textos dos mais variados gêneros.
Editoriais, espaço do leitor, artigos, reportagens, coluna social, etc. constituem o espaço do
proprietário rural. O lugar desse sujeito é garantido pela orquestração de vozes vindas de
diferentes espaços sociais, que dão sustentação para sua voz, na defesa de seus interesses.
Embora haja uma ordem nesse núcleo temático, que se constitui como a busca pela
manutenção da propriedade e por sua defesa, esse protagonismo demanda um núcleo
figurativo, em torno do qual gravitam não apenas similaridades, mas também variações.
Sugerindo que o figurativo seja visto não a partir dos componentes semânticos já
dados no texto, mas como construção discursiva, capaz de provocar a adesão ou não ao
visível, Bertrand (1996) propõe a noção de “valência figurativa” para esclarecer as condições
de estabelecimento dos valores convocados em discurso. Importa-nos fazer a leitura das
condições de estabelecimento dos valores que fundam a adesão a um contrato estabelecido
entre sujeitos da enunciação nos dois jornais em questão (contrato fiduciário), para
observarmos valências. Desse modo, examinaremos a figuratividade para a questão da
170
habilitação dos valores. Reconhecemos, então, que a habilitação dos valores figurativos nos
textos jornalísticos, objeto de nossas análises, não pode ser vista em uma única direção
porque a relação entre o sujeito que percebe e o objeto percebido é instável e reversível.
Na apreensão e interpretação do que as isotopias figurativas sugerem, importa não
apenas o significado apresentado pelas figuras, mas como ele se constrói.
Essa orquestração da defesa dos donos de terra no Pontal, leva, obviamente, à
construção de liberdades e direitos. No entanto, ao se construírem, na materialidade
jornalística, remetem também ao arbítrio dos beneficiados. Da polarização de idéias emergem
efeitos de sentido que nos colocam diante de reflexões sobre a temática da terra, mesmo
quando muitas questões são silenciadas.
Com base no que acabamos de dizer, exemplifiquemos com a leitura das edições
de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Examinados os dois jornais para obtenção de
saberes heterodiscursivos sobre as questões agrárias, visando ao embasamento para a leitura
do corpus, afloraram muitos dizeres sobre acontecimentos relevantes no cenário nacional e
internacional. A ausência de alguns desses dizeres foi notada nos jornais de Presidente
Prudente. Citando apenas um exemplo, o Fórum Social, que aconteceu em janeiro de 2002,
foi destaque na mídia nacional, homologado em diversos gêneros textuais dos dois grandes
jornais de São Paulo. Entretanto não se viu um único texto sobre esse assunto nas páginas de
O Imparcial nem de Oeste Notícias.
Reconhecemos que ao jornal é dada a liberdade de fazer-saber o que lhe convém,
podendo sonegar as informações que não suponha convenientes. O que não é do seu alcance,
no entanto, é estabelecer qualquer norma para impedir a realização das ações dos sujeitos na
sociedade (as reivindicações dos movimentos que lutam pela terra, por exemplo). Na
realidade discursiva de Oeste Notícias e O Imparcial fica bastante visível o desejo de
controlar essas ações, de forma a vetar a atuação do MST ou de qualquer manifestação em
prol do acesso à terra.
Na primeira página de Oeste Notícias um título destaca a oposição do bispo da
Igreja Católica ao MST: “Dom José Maria discorda de ações do MST” (Oeste Notícias,
25/4/02). Entretanto, ao tomar conhecimento da reportagem, constatamos que os dizeres da
autoridade religiosa não constroem um ponto de vista de oposição às reivindicações dos sem-
terra. Nenhuma imagem desfavorável podia ser observada em relação aos efeitos de sentido
de discordância que emergem de “discordar”. A conclusão que se tira de seus dizeres é a de
que não há polêmica sobre o assunto, na tentativa de manter uma posição de neutralidade
171
diante das questões fundiárias, sem nenhuma condenação explícita ao movimento dos sem-
terra.
Ao construir a imagem de uma autoridade religiosa que condena ao ações do MST,
o enunciador assume o discurso do bispo, inscrevendo-o ideologicamente. De acordo com o
contrato pressuposto entre os interlocutores da comunicação do jornal, qualquer conduta do
bispo, diferente dessa (discordar do MST) infringiria esse contrato de fé que rege o fazer
jornalístico. A interpretação vem das marcas de veridicção deixadas no discurso. Ao
compará-las, deve haver a identificação entre os conhecimentos e convicções (BARROS,
1988, p. 94). Isso posto, o que se tem na manchete é um mecanismo da instância enunciativa
para manipulação da opinião do leitor.
172
173
174
Partindo do pressuposto de que as informações relativas às questões agrárias têm
relevância na medida em que obedeçam critérios mais pragmáticos, mais interativos, eles
devem ser, então, definidos em termos da utilidade da informação, levando em conta a
imagem do enunciador e leitor construída pelo texto, ou seja, observando-se o ethos
(MAINGUENEAU, 1995).
Contrapondo os dizeres da reportagem, que dão destaque a um “suposto” dizer
verdadeiro (as afirmações do bispo), não é caso de interpretarmos como incoerente o discurso
da autoridade religiosa em cuja fala se pode ler a preocupação em passar uma mensagem
sobre sua função, que não era a de incentivar as ocupações. Mas, o que faz aí o jornal?
Amplifica um dos dizeres do bispo (“condena ações violentas do MST”).
Descontextualizados, os dizeres passam a revestir a notícia com o valor desejável segundo as
crenças compartilhadas pelo enunciador. A partir do momento em que o título faz ecoar, não a
voz do bispo, mas a própria voz do jornal, implicita-se a preocupação em manipular a opinião
do leitor. Quando se trata de uma informação como essa que tem implicações sociais para os
donos de terra, o mais importante é selecionar dizeres que possam conduzir à formação da
opinião. Assim, publicado logo abaixo da manchete, o título coloca em evidência uma
informação relativamente dispensável no contexto do dizer do bispo. Obviamente trata-se de
uma informação de caráter ideológico, com o objetivo de reforçar os laços existentes entre o
jornal e seu público leitor, que pode passar a assumir os valores implícitos no discurso do
enunciador. Assim, o sujeito da enunciação jornalística, propaga valores de defesa da
propriedade da terra, como se fosse esse o dizer relevante em toda a fala do bispo.
Interessante notar que, um pouco antes dessa reportagem, o jornal concorrente publicava a
manchete: “MST merece respeito, diz novo bispo” (O Imparcial, 23/02/02).
Para ilustrar o papel que a relevância de simples dizeres podem desempenhar no
discurso sobre o tema da terra nos textos do corpus, especialmente quando nos referimos a
primeiras páginas, poderíamos examinar muitos deles. Em se tratando de Oeste Notícias, é
bastante visível a maneira como se lança na caça a tudo e a todos que se ponham ao lado do
MST. Assim sendo, criam-se os recursos para se colocar como destinador-julgador desse
Movimento. Não se pode negar que a preocupação do jornal parece ser sempre a de instalar
uma verdadeira linha de desqualificação para desmoralizar os antagonistas da defesa da
propriedade rural. Sem nenhuma preocupação em ser sutil, os ataques aos sem-terra voltam-
175
se, na maioria deles, para o líder José Rainha, que aparece como a figura do anti-Cristo, a ser
execrado a qualquer custo.
O percurso temático da terra pode ser visualizado a partir de investimentos
figurativos, que se sustentam pela linguagem verbal mas também por imagens, obtidas a partir
da riqueza de recursos cromáticos, em instantâneos fotográficos em cores ou preto e branco.
Os efeitos de sentido de “realidade factual” recobrem o enunciado como se tratassem do
“real” ao vivo e em cores, especialmente quando ganham o espaço na brancura do papel
sulfite de Oeste Notícias, recurso sempre elogiado pelos leitores:
“Eu devoro ‘Oeste Notícias’ pois sou um leitor assíduo deste conceituado e
admirado jornal [...] E como é grande este jornal, tanto no número de
páginas como também no seu amplo e moderno recurso de mostrar a notícia
que colorida fica mais atraente! [...] Como é surpreendente! Um jornal tão
novo (7 anos) e já conquistou tanta gente!” ( Oeste Notícias, 18/7/2002).
Fazendo um mapeamento das figuras do fragmento acima, observamos a
concretização de uma imagem do leitor, manipulado pela imagem do jornal. As figuras
qualificadoras da expressão (“assíduo”, “conceituado e admirado”, “amplo e moderno”,
“atraente”, “surpreendente”, “novo”) recobrem apenas valores de positividade, ligados à
satisfação. Emerge do enunciado acima um ator que se revela seduzido pelo jornal e, desse
modo, simula a adesão fiduciária ao veículo. A seqüência das figuras realça a imagem
positiva do veículo. Firma-se nessa enunciação um contrato estabelecido entre sujeitos,
correspondendo a um pacto entre a empresa jornalística e o leitor fiel, indicando a inscrição
ideológica em que se conectam as identidades culturais e sociais. O leitor consolida um modo
de ser, pela figura do “assíduo”, que coincide com a mira enunciativa do jornal. Ele busca
estereótipos já gastos, mas que figurativizam uma enunciação presa ao que o jornal quer e,
portanto, esse estoque de figuras, que deixam também entrever a consolidação de sua
imagem. Temos, assim, a construção de um “eu” que partilha os valores que o jornal lhe
apresenta, confirmando-se o contrato fiduciário entre os sujeitos da enunciação jornalística de
Oeste Notícias e seu “assíduo” leitor.
No que diz respeito à seleção dos textos em gêneros, retomamos uma das
discussões abordadas no capítulo 2 da primeira parte desta tese. O discurso da objetividade
criou o discurso secular, assumido como “verdadeiro”, de que o jornalismo se divide em
opinião e informação. Embora cada vez mais questionado, é um discurso que persiste,
vigoroso.
176
A partir dos conceitos de opinião e informação, os gêneros jornalísticos ocupam o
espaço das páginas, compreendendo essas duas categorias. Têm-se assim páginas de opinião e
páginas de informação. Com essa categorização não estamos aqui considerando nenhuma
crença na suposta “pureza” informativa como se opinião e informação não se misturassem,
significando, por exemplo, que se possa confiar nas notícias, porque elas não estão
contaminadas pela opinião.
Não há como negar a subjetividade e a intervenção opinativa na informação. Ora,
ao relatar o que se passa, não se pode negar a capacidade própria de uma instância
enunciativa, de um sujeito que organiza o discurso. Não há também como construir
comentários, em artigos, em editoriais, colunas, sem o suporte dos fatos e da informação.
Convém ressaltar que estaremos longe de qualquer enfoque que conduza nossas
leituras a partir dessa separação entre opinião e informação.
Para observar a movimentação dos sujeitos no processo da enunciação em O
Imparcial e em Oeste Notícias, passamos à temática do conflito entre os proprietários da terra
e os sem-terra em gêneros diversos (editoriais, charges, reportagens, colunas, etc.).
Dedicaremos uma atenção especial às primeiras páginas dos dois jornais em exame.
Considerando-as como um todo de sentido, mesmo que analisadas em partes (manchete,
subtítulos, sobretítulos, imagens, etc) elas estão articuladas para a constituição das temáticas
em questão e estão sendo aqui vistas em seu papel fundamental na organização do olhar do
leitor. Na cena enunciativa, produzem efeitos de sentido suficientemente decisivos para
desestabilizar a função meramente informativa, ilustrativa do que se pressupõe acerca das
primeiras páginas, normalmente consideradas mero chamamento para adentrar o mundo das
informações contidas no jornal.
Sob essa perspectiva, consideramos a relevância desse primeiro espaço
jornalístico, lugar para examinar a manipulação do leitor, conduzido à percepção de imagens
acercadas questões agrárias do ponto de vista político, econômico e social da instância
enunciativa.
177
3.2. Os conflitos pela terra
3.2.1. Primeira Página
Passemos, então, a leitura de algumas primeiras páginas, um bom começo para a
visualização do tempo, do cenário e da presença de atores envolvidos em percursos
narrativos, figurativos e temáticos por meio da análise dos textos que têm a terra no Pontal do
Paranapanema como tema.
178
179
Observemos a primeira página de O Imparcial de 24 de janeiro de 2002.
Disputando lugar com outros textos, salta aos olhos um título em negrito e com
redundância de pontuação na parte inferior da página: “QUEREMOS PAZ ... e RESPEITO
!!!”, texto que ocupa grande parte da página. Em meio a fotos de uma pista com pneus em
chamas, com a legenda em letras vermelhas e em caixa alta (“PROTESTO”), e dois carros
amassados, na outra metade da página, destaca-se o referido texto. O contorno em linha
vermelha remete ao fogo dos pneus em chamas e à respectiva legenda, abaixo da foto,
também em vermelho. O título remete igualmente para uma legenda (“TRAGÉDIA”), abaixo
da foto dos carros, que em caixa alta e em letras vermelhas, confirma o trágico, enunciado na
imagem dos carros bastante destruídos.
Um elenco de figuras organiza-se para abrir o discurso do texto em destaque
(“Violência, assaltos, invasões, seqüestros, saques, assassinatos, impunidade”), dilatando o
sentido figurativizado nas imagens fotográficas e nas legendas. Interessante é notar que se
cristalizam, pelos traços sêmicos implícitos às escolhas lexicais, os papéis temáticos de um
dos atores do enunciado. Estão concretizados por uma terceira pessoa do plural como aqueles
que “comandam a violência, desrespeitam a vida, provocam o terrorismo, saqueiam e
acobertam marginais para ‘fazer o serviço’”.
A reiteração de pontos de exclamação e do negrito do título remete a uma voz que,
ao assumir a primeira pessoa do discurso, fala em nome de uma coletividade. O sujeito da
enunciação parece não se contentar em dizer, por isso grita a “suposta” verdade daqueles que
habitam o lugar onde reina o simulacro da “paz”e do “respeito”. Projeta-se um “nós” no
interior do enunciado “QUEREMOS PAZ ... e RESPEITO !!!”, que se mostra em
“Queremos, em contraposição a todo o encadeamento de figuras que criam efeitos de
sentidos relacionados a um universo caótico, desordenado, instaurando um discurso
“moralizante”. Constrói-se o simulacro de um sujeito mobilizado pelo estado patêmico de
indignação que manifesta um querer fazer para que se estabeleça um estado de ordem.
Em termos semióticos, falar da primeira pessoa do discurso (“eu”, “nós”), é falar
do sujeito da enunciação, que estabelece um diálogo com o interlocutor, é falar de actantes da
enunciação, ou seja, posições na cena enunciativa, que assumem o papel de atores da
enunciação. A modalidade do querer, no enunciado que dá título ao texto “Queremos paz
[...]” manifesta um estado inequívoco de desejo daqueles que estão representados na forma
verbal de primeira pessoa do plural, que além do título se apresentam para concluir o discurso
(“Não podemos deixar”, “não aceitamos”, “Queremos”). Está aí representada toda uma
180
coletividade, ou seja, as autoridades figurativizadas no fim do texto (sindicatos, cooperativas
e a associação dos proprietários rurais). Também nessa forma verbal inclui-se o leitor, trazido
a participar da mise-en-scène discursiva. Se a modalização do querer materializa o desejo, o
uso das exclamações insinua a instauração de exigências, em que se implicita a convocação
do poder de alguém para fazê-lo. Ao enunciar “Queremos paz e respeito”, paira sobre o dizer
um sentimento implícito de autoridade, de alguém que manipula outros por intimidação ao
dever-fazer. Por se sentir ameaçado, vendo-se diante do perigo de ser afastado de um objeto
valor, aciona o seu poder (construir o discurso persuasivo). Se o título do texto analisado se
apóia no desejo que move o sujeito coletivo do enunciado para que aja, surge então a
pergunta: que objeto é esse? Que sujeitos impõem resistências ao percurso narrativo dos
“sindicatos”, “cooperativas” e “União Democrática Ruralista”? Que objeto é esse que exerce
sobre os sujeitos tal atração para deixá-los tão tensos?
Falar em sujeitos que põem em risco a conjunção do outro com o seu objeto-valor,
é falar em anti-sujeitos, é trazer para a cena enunciativa aqueles que se constroem como
antagonistas em um determinado percurso narrativo, uma função perturbadora da ordem que
põe em desarmonia a relação de identidade entre sujeito e objeto. Na cena enunciativa
observada, quem seria esse antagonista que compromete a conjunção do “nós” com o objeto?
Chegamos mais perto das palavras e sabemos de fatos que estão acontecendo e que
estão sendo relacionados a uma suposta “guerra”: “Não podemos deixar que o Pontal do
Paranapanema se transforme num campo de batalha, onde ‘falsos’ líderes comandam a
violência, desrespeitam a vida, a propriedade alheia, provocam o terrorismo, saqueiam,
acobertam marginais [...]”. O título denuncia a presença do enunciador coletivo (“Queremos
paz”). O efeito de subjetividade que se cria com o título, desfaz-se logo no início do
enunciado. Fatos da experiência cotidiana chegam à página como se não fossem enunciados
por um sujeito. Nesse distanciamento do enunciador, os acontecimentos parecem narrar por
si, resultando um efeito de sentido de verdade, eficaz para a comprovação de que o clima de
guerra no Pontal existe. (“Violência, assaltos, invasões, seqüestros, saques, assassinatos,
impunidade”).
No primeiro parágrafo, a seqüência de figuras concretiza o tema da convulsão
social, que vem representada pela figura “guerra”: “[...] o Oeste de São Paulo vive um
verdadeiro clima de ‘guerra’”. O tema da violência no campo mostra-se aí como a causa da
tensão do sujeito da enunciação que se põe a desenvolvê-lo em afirmativas que o comprovam
181
e explicam, convencendo assim o leitor de que os anti-sujeitos estão agindo e querem o poder:
“O campo e a cidade estão à mercê de organizações criminosas”.
A informação é que há guerra por todo lado: “nas grandes, médias e pequenas
cidades”, e também “no campo”. Mas o destaque é para a região do Pontal do Paranapanema,
que vive um verdadeiro clima de guerra”.
O cenário de “guerra” se intensifica quando considera a ausência do Estado. Nesse
momento, o centro de atenção do relato é para o Estado (“sem que o Estado constituído se
mostre capaz”) muito mais para ser sancionado do que para compor o quadro do “clima de
guerra” no “Oeste do estado de São Paulo”. Ao acionar o dever fazer (“o Estado a tudo assiste
e nada faz”) cria-se uma imagem negativa do Estado, manipulado por provocação, para ser
levado a dever fazer.
Ao condenar a omissão do Estado, a focalização é dirigida para um sujeito e para
um espaço que parecem fora do discurso, como se tratasse de um “ele”, “lá” (“sem que o
Estado constituído se mostre capaz de oferecer a tranqüilidade necessária aos proprietários
rurais ali radicados.”) Nessa maneira de dizer, observamos que há troca de uma pessoa por
outra . O sujeito “nós” (os proprietários rurais e o enunciador), que aparece no título, passa a
ser representado pela figura dos “proprietários rurais” e o “aqui”, de onde fala o enunciador
aparece como “ali”. Trata-se de um recurso discursivo – embreagem -, cujo efeito de sentido é
o de distanciamento do dizer. Na representação da não-pessoa “eles” (“os proprietários
rurais”), neutraliza-se o sentido de subjetividade criado pelo “nós” e, em parte, leva ao efeito
de objetividade. A pretensa informação objetiva dos acontecimentos deve prevalecer sobre os
estados de alma, devendo imperar a ilusão de competência para o dizer objetivo.
Assim o discurso parece verdadeiro e passa a ser assumido pelo leitor. Sobre essa
estratégia discursiva, Fiorin afirma (1996, p. 86): “Quando se faz essa embreagem é como se
o enunciador se esvaziasse de toda e qualquer subjetividade e se apresentasse apenas como
papel social”.
Convém esclarecer que vamos precisar de um limite para nosso olhar ao nos
debruçarmos sobre cada texto. Se pretendêssemos fazer uma leitura rigorosa de todos os
efeitos de sentido e de como se engendram, teríamos, para tanto, que explorar as construções
de cada parágrafo. Um trabalho impossível, quando se tem um corpus tão volumoso. Vamos
perpassando o olhar na horizontalidade, chegando à conclusão de que, muitas vezes, teremos
que explorar apenas parte dos textos. Acreditamos que isso não invalida a análise, pois o
objetivo é uma abrangência da temática. Pinçando um ou outro recurso enunciativo, podemos
182
acompanhar a construção dos efeitos de sentido em questão. O de atualidade, característico de
todo texto jornalístico, é também obtido na construção do tema da violência a partir de
valores descritivos (“Violência, assaltos, invasões, seqüestros, saques, assassinatos,
impunidade”). As figuras, a constituírem um conjunto que leva às últimas conseqüências os
efeitos de sentido de realidade da violência, são facilmente identificáveis pelo leitor.
Associado ao tempo presente, esse percurso figurativo traz a violência para perto do leitor (“A
sociedade clama”, “a insegurança está presente”, “O Pontal vive”, “Estado se mostre”, “os
Governantes se apressam”, “o cidadão urbano defende”). Cria-se, assim, o efeito de sentido
de realidade para levar o leitor a acreditar na iminência do perigo, do clima de “guerra” no
Pontal do Paranapanema. Nessa manipulação para fazer crer, tenta conduzir o leitor para um
fazer (ser competente para deter o anti-sujeito, lutando contra aqueles que instauram “a
violência, o terrorismo e a impunidade”.
Na estereotipia das figuras que recobrem o tema da violência vão-se instaurando
os julgamentos, submetidos, obviamente à orientação do ponto de vista do enunciador. Dentre
tantos acontecimentos: no campo e na cidade, em âmbito privado e público, na vida do
cidadão de bem e de infratores, tudo se confunde. E é pela “interpretação” do enunciador que
o enunciatário é chamado a avaliar igualmente todo esse caos de informações. Manifestado
figurativamente como uma coletividade (“Queremos”), chama o leitor para o enunciado,
objetivando levá-lo a assumir os mesmos valores colocados no discurso. Desse modo pode-se
incluir nesse “nós” “o enunciador, os proprietários rurais, o leitor”, que querem paz e respeito.
O universo axiológico do destinador é bastante previsível por representar os
valores típicos da classe dominante no Pontal do Paranapanema. O que se manifesta é a
construção da opinião do leitor sobre o tema da violência na região por meio do discurso
autoritário que representa a voz dessa classe. O leitor dirige sua atividade de leitura mais para
a crença no dizer do enunciador do que para o saber sobre os acontecimentos. Para a adesão
do leitor é preciso que ele se deixe manipular pelos valores enunciados. O conhecimento
sobre fatos atuais poderia justificar a convocação de textos para a primeira página do jornal,
caracterizando-os como atualidade. No entanto, não se oferece ao leitor nenhuma novidade.
Tudo o que se diz é genérico. Nada de novo se apresenta como ingrediente de leitura, e não se
justificaria uma primeira página como essa, disputando espaço com manchetes e lides. Os
fatos tornam-se imprecisos. Tanto poderiam estar acontecendo como já ter ocorrido: “Após
um acontecimento de grande repercussão nacional, os Governantes se apressam em apresentar
longos discursos com soluções paliativas. A prevenção e a repreensão ao crime organizado,
183
seja ele urbano ou rural, fica postergado [...] O fato que se depreende é um só: Organizações
criminosas agem e o Estado nada faz ” ( O Imparcial, 24/01/02).
Existe um perigo iminente contra o qual é preciso lutar. Isso é posto,
representando o universo do anti-sujeito, caracterizado figurativamente como “‘falsos’
líderes” (o MST). É bastante previsível o investimento axiológico na negatividade:
“Violência, assaltos, invasões, seqüestros, saques, assassinatos, impunidade”, “organizações
criminosas”, “marginais” por representar a manifestação do fazer de anti-sujeitos (sem-terra)
que ameaça levar os proprietários rurais a uma disjunção com seu objeto valor (a terra).
Diante dessa ameaça de ruptura entre o sujeito e seu objeto valor, o trabalho do enunciador é
o de encontrar respaldo no âmbito da sua competência discursiva, visando a persuadir o leitor
a crer no que se enuncia e a querer que se tomem, no caso do estado, medidas de prevenção
contra os sem-terra. Isso desencadeou a ação do armamento dos fazendeiros, conforme
veremos na manchete de uma das primeiras páginas, a ser contemplada mais adiante. Em (O
Imparcial de 30/3/02: “Fazendeiros se armam no Pontal”).
Explicitamente instalado no discurso, o enunciador busca recursos retóricos para
desqualificar os anti-sujeitos (“Mas não aceitamos que a violência, o terrorismo e a
impunidade [...]” ). Mas não se pode negar que paira sobre todo o texto, a paixão do “medo”
como um sentimento implícito que arrebata e arremessa o enunciador para suscitar no leitor
um clima de revolta, gerador de ódio contra os sem-terra. Na busca dos recursos para reforçar
os pontos de vista do enunciador frente à questão posta, subjaz a força da tensão máxima dos
sintomas passionais que afligem os donos da terra (“Está havendo uma total inversão de
valores”, “Precisamos construir”, “Não podemos deixar”, “Mas não aceitamos”). Manipula o
interlocutor pelo vigor da modalidade do poder, do qual é detentor (tem a posse da terra), ao
querer e dever, num reforço dos valores e orientação axiológica da própria sociedade que é
conduzida a admitir o enfrentamento. Se a função do anti-sujeito é retirar a terra daquele que
julga ser seu dono, o papel do sujeito deve ser o de agir. Nesse sentido, para a perfórmance
pragmática do dono da terra (enfrentar o anti-sujeito), entra em ação o sujeito discursivo,
levando o leitor a acreditar e se dispor afetivamente contra os sem-terra.
Pode-se dizer, em termos semióticos que, de acordo com o discurso enunciado
pelas organizações de defesa da propriedade rural no Pontal do Paranapanema, na condição
de destinadores-julgadores, a principal avaliação sobre a instabilidade social recai sobre os
sem-terra. Destaca-se em todo o discurso um sujeito de enunciação cuja presença é
184
responsável pela manipulação do leitor, levando-o não só a um fazer tímico-cognitivo mas
também a um fazer pragmático:
Nem seria necessário fazer grande reflexão para se chegar a uma resposta.
Esses cidadãos que, por força de sua vocação escolheram a missão de produzir
alimentos, na agricultura e na pecuária, só desejam a PAZ para continuarem
produzindo [...] o que a inquietação no campo os tem impedido ao longo
desses vinte anos; não desejam, jamais, qualquer confronto, a não ser o de
idéias e de debates, mas não se omitem e estarão sempre coesos e a postos
para defenderem suas famílias e patrimônios.
Desde as considerações iniciais deste trabalho, defendemos o interesse em
procurar sempre, a partir da materialidade discursiva, as relações que se estabelecem entre o
texto e o contexto social e histórico. Muito mais do que um objeto de comunicação entre
sujeitos, o jornal é considerado instrumento de veiculação de crenças coletivas sobre um
ponto de vista político-econômico e social.
Trata-se aqui de um texto de primeira página e deve-se observar que ele não se
caracteriza pela especificidade de um texto que deveria estar nesse espaço, ou seja, não se
constitui como chamada ou resumo do que vai ser tratado nas páginas seguintes. Isso posto,
ele não pode ser visto de forma inocente. Trata-se de um texto panfletário que permite
reconhecer uma dimensão persuasiva aí instituída. Articulado aos outros textos ou elementos
figurativos que participam da cena enunciativa dessa primeira página, pode ser revelador, na
medida em que convoca uma axiologia suficientemente clara de um contrato fiduciário com o
tipo de leitor com quem a empresa jornalística dialoga. Flagra-se aí a instância que assegura
um lugar de destaque para valores de condenação, por meio de sanção negativa, a qualquer
sujeito que se agregue a organizações que reivindicam a terra.
Sabemos que o jornal é o espaço onde se enuncia uma grande parte dos discursos
produzidos na sociedade. Desse modo, é pela natureza social da linguagem, no objeto que
constrói o discurso dos proprietários rurais que somos levados a conceber atores e cenários
em torno das questões agrárias. As imagens concretizadas figurativamente no enunciado
“QUEREMOS PAZ ... e RESPEITO !!!”, como uma força temática, remetem à noção de
actante coletivo, em que se apresenta uma sociedade dividida entre “os bons” e os “os maus”.
No Pontal do Paranapanema, de um lado colocam-se os donos da terra, “o cidadão do campo”
–vítimas - e, do outro, “os que tem impedido (de que se produzam alimentos) ao longo desses
vinte anos” (organizações de sem-terra) - algozes. A figura do ator “sem-terra” é dotada de
um papel actancial que se caracteriza pela transgressão social. Os discursos enunciados pela
mídia do Pontal revelam um alinhamento histórico da imprensa com os ideais da defesa da
185
propriedade. Observamos a posição dos sujeitos na cena enunciativa do texto em questão e
chegamos à posição do jornal. Aquele que fala e aquele com quem se fala, sujeitos da
enunciação em QUEREMOS PAZ ... e RESPEITO !!!, fundem-se na construção da imagem
do dono da terra, na imagem do capitalista. Não é nosso objetivo investigar os caminhos por
onde passam esses interesses, e sim observar as vezes em que isso se dá ao longo do corpus
em análise. Interessa-nos, com certeza, observar os diversos procedimentos que remetem a
cenários e atores envolvidos nas relações com as questões agrárias. Especialmente quanto ao
sujeito da enunciação, temos muito a investigar. O tema é ponto de partida para a pesquisa.
Sempre se repete, mas ao ser enunciado em gêneros, em espaços distintos, remete a instâncias
distintas. É preciso estar atento a várias instâncias de sujeitos: o eu pressuposto do enunciador
pode ou não coincidir com o da empresa jornalística, assim como o eu projetado no interior
do enunciado (o narrador) pode ou não coincidir com o do sujeito da enunciação.
Esse primeiro texto analisado mostra que as figurativizações dos proprietários
rurais e os sem-terra nos obrigam a ir além da naturalização de valores que, de forma
maniqueísta, lida com os seres sociais, organizando-os em duas categorias: os bandidos e os
mocinhos. É preciso reconhecer, de acordo com essa visão, que a ideologia da defesa da
propriedade no “Oeste Paulista” coloca-nos diante de estruturas de ocultação da realidade.
Assim, na figurativização desses textos, marcada pela negatividade, oculta-se a oposição entre
as classes sociais. A lógica do capital leva à avaliação dos valores sociais, que se torna uma
avaliação de vícios e virtudes pessoais: os donos da terra são sancionados positivamente, são
os bons, têm o papel actancial de defesa da sociedade; e os outros, que não estão com eles,
recebem sanção negativa como os maus, que põem em risco a paz de todos.
A terra, no texto-objeto acima, chega-nos associada à tematização da violência,
que se concretiza nas figuras da “guerra” (“Como os cidadão urbanos, também os cidadãos
rurais, não desejam a guerra”).
É preciso reconhecer um percurso figurativo além daquele em que o discurso está
fundamentado. Tanto pode ser pensado como uma rede de relações que, articulando as
figuras, sedimenta semanticamente o discurso, quanto pode ser redimensionado,
ultrapassando o estatuto de mecanismo de complexificação e enriquecimento das categorias
fundamentais concretizadas no discurso.
Não podemos negar que a praxis jornalística tem papel fundamental na
cristalização dos valores defendidos pela própria empresa de comunicação, que sempre é vista
na defesa do dono da terra. Isso posto, poderíamos querer que, à semelhança de uma tela, se
186
abrissem diante de nossos olhos as relações significantes para serem lidas. No entanto, para
além do conceito de figuras como suporte e organização a uma ideologia (GREIMAS &
COURTÉS, 1986), representam-se relações conflituais entre diferentes universos de crença.
Esse primeiro texto que acabamos de analisar é um pequeno retalho de toda a
malha textual de O Imparcial e Oeste Notícias. Temos aí diante dos olhos a estruturação de
uma visão de mundo sobre as relações entre o homem e a terra, aflorando o discurso de uma
classe dominante que, se tem o poder, tem também o medo de perdê-lo. A paixão do “medo”,
diante de todo o simulacro montado pelo texto sobre o conflito e as relações de força
previstos, mostra um sujeito (o proprietário rural) que pode perder a qualquer momento seu
objeto valor (a terra) por causa da ação de um anti-sujeito (os sem-terra).
3.2.1.1. A imagem negativa dos sem-terra e a insegurança dos proprietários
rurais
Na leitura acima, na totalidade enunciada da primeira página, consideramos a
insegurança do ator (proprietário rural) construída pelo diálogo entre o plano de conteúdo
(que emerge do texto assinado pelas entidades rurais) e de expressão (dos recursos de
linguagem não-verbal e verbal).
Acreditamos ser importante verificar a construção desse efeito de sentido, que de
um estado de coisas vai evoluindo, até culminar no medo. Como uma paixão, esse sentimento
está ligado à percepção do sujeito (donos de terra no Pontal) de falta de competência (não
poder agir) exigida no momento da perfórmance para a manutenção do objeto-valor (a terra).
Ou ainda o entendimento de que o anti-sujeito (os sem-terra) tenha competência maior do que
o sujeito para a ação.
Apresentamos a seguir uma seqüência de manchetes, subtítulos e/ou sobretítulos,
selecionada de primeiras páginas de Oeste Notícias e O Imparcial, ao longo do ano de 2002.
Algumas delas podem ser visualizadas. (ANEXO, p. 328 a 334 e 365). Observamos nessas
figurativizações a construção dos efeitos de sentido do medo, num cenário em que se fortalece
a presença dos sem-terra, a partir da organização do MST, sujeito a respeito do qual se
constrói um simulacro daquele que não se intimida para agir. Além do fortalecimento do
187
movimento de organização dos sem-terra e suas conseqüências (o acirramento da disputa pela
terra que acarretou na desmoralização da autoridade do prefeito), os textos de Oeste Notícias
e O Imparcial afirmam que:
“Região pode virar ‘uma Bangladesh’, diz Tiezzi”; “Ex-prefeito afirma que
oeste paulista deve ‘mudar o rumo’ para não se tornar no futuro um local de
miseráveis: “O nosso principal problema hoje é a questão fundiária. É uma
questão emergencial que nós temos de resolver (O Imparcial, 30/01/02).
Os dizeres mostram o cenário do conflito em que todos estão jogados, deixando
claro que não há paz na sociedade do Pontal. Propõe a ação (“nós temos de resolver”). Quem
deve, então, agir? Quem fala é um daqueles que têm receio de que se instale o poder dos
“outros” (sem-terra). Ou seja, temos sujeitos tensos (“nós”, os proprietários rurais) com medo
de uma ação que leve à perda de suas propriedades rurais (“Toda nossa economia é baseada
na pecuária, mas houve o desaparecimento quase que absoluto de nossa economia agrícola.”)
Não há como contemplar todas as primeiras páginas de janeiro a dezembro de
2002. Para focalização neste espaço, selecionamos quase cinqüenta delas, dentre um número
quase incontável. Transcrevemos apenas alguns dizeres, mas o leitor pode visualizá-los na
totalidade, ao olhar a página toda. (ANEXO, p. 335).
A disputa pela terra vai para a primeira página dos dois jornais, a invadir a retina
do leitor como se fosse um assunto novo, quando a condição para isso deveria ser o efeito de
atualidade, obviamente. No entanto tema que se repete quase à exaustão é sempre o mesmo.
Sempre a mesma questão traz à tona o embate entre sujeitos que reivindicam a posse da terra.
Dia após dia, o lugar-comum, fatos conhecidos comparecem nas primeiras páginas, sem
nenhuma informação nova, recobrindo o tema que faz parte do que poderíamos chamar de
“consciência da classe dominadora do Pontal”. Não temos simpatia pelo conceito “classe
social”, politicamente incorreto de acordo com as novas leituras nos estudos sociais. Não se
trata de pensar em “consciência” como se tratasse de um atributo. Enquanto uns têm, outros
não. Do ponto de vista de quem tem a terra, por exemplo, aparecem os sem-terra como
desprovidos da consciência de classe. Segundo a ordem do capital, a classe dos proprietários
rurais, por exemplo, organiza-se em torno das condições para trabalhar com a terra, de acordo
com as relações econômicas do sistema social vigente (capital/investimento). O usufruto
desse lugar é algo que não pode ser concedido aos destituídos dessas condições. Por esse
ângulo, os sem-terra não se encaixariam no exato conceito de classe social, por lhes faltar “a
consciência de classe”. Mas, adotando o termo, apesar das ressalvas, podemos dizer, então,
188
que o traço mais marcante da “consciência de classe” dos fazendeiros é o medo da perda da
terra. Decorrente da organização dos sem-terra, constitui-se no traço definidor dos sujeitos da
enunciação nos dois jornais regionais.
José Rainha é baleado no Pontal (O Imparcial – 20 de janeiro de 2002)
Agripino abre guerra contra MST (O Imparcial – 29 de janeiro de 2002)
Agripino lamenta fuga da ‘raposa’
Prefeito insinua que fazendeiro deveria ter matado José Rainha Júnior, líder
do Movimento dos Sem-Terra (O Imparcial – 02 de fevereiro de 2002).
MST destrói área de soja para jogar futebol
Invasores jogam futebol e baralho, além de outras diversões, na fazenda
invadida na segunda-feira (Oeste Notícias -27 de março de 2002).
Fazendeiros se armam no Pontal
Preocupados com retomada de invasões, proprietários de terras da região
reforçam segurança contra MST
Guerrilha colombiana dá assessoria política a lideranças do MST (O
Imparcial – 30 de março de 2002)
Sem-terra é preso por furto de gado no Pontal
Um grupo de sem-terra foi flagrado ontem abatendo gado numa fazenda do
Pontal.
Retireiro é acusado de fazer sexo com bezerra
No Distrito Policial de Presidente Prudente foi registrada uma ocorrência
inusitada: a denúncia contra uma retireiro por fazer sexo com bezerra da
propriedade onde trabalhava, o que caracteriza maus tratos contra animais.
(Oeste Notícias - 03 de abril de 2002).
Dom José Maria discorda de ações do MST (Oeste Notícias - 25 de abril
de 2002)
Rainha é preso armado no Pontal do Paranapanema (O Imparcial - 26 de
abril de 2002)
Policiais prendem quadrilha de traficantes
Rainha é flagrado com arma de grosso calibre e preso em Venceslau
Pf incinera mais de 900 kg de drogas (Oeste Notícias - 26 de abril de
2002)
Justiça nega pedido de liberdade provisória para José Rainha Júnior
(Oeste Notícias - 27 de abril de 2002)
Justiça mantém prisão de Rainha (O Imparcial - 27 de abril de 2002)
Promotor quer que Rainha prove que trabalha (Oeste Notícias - 01 de
maio de 2002)
Advogado diz que José Rainha é agricultor (Oeste Notícias - 03 de maio
de 2002)
189
Juiz mantém MP e mantém Rainha preso (O Imparcial - 7 de maio de
2002)
Rainha depõe no Fórum de Venceslau (Oeste Notícias - 09 de maio de
2002)
TJ nega liberdade a José Rainha Jr (Oeste Notícias – 14 de maio de 2002)
Testemunha de Rainha ajuda a incriminá-lo (Oeste Notícias – 16 de maio
de 2002)
Tribunal concede liminar para a soltura de José Rainha Jr. (Oeste
Notícias – 18 de maio de 2002)
Rainha Jr. ganha a liberdade após 24 dias na cadeia (Oeste Notícias – 19
de maio de 2002)
Rainha é procurado pela polícia
Bandidos perigosos vêm para a região
Líderes do PCC são encaminhados pelo Estado para o “Piranhão” de
Bernardes (Oeste Notícias – 24 de maio de 2002)
MST atenta contra ordem, afirma juiz (O Imparcial - 25 de maio de
2002)
José Rainha é preso no Pontal (O Imparcial - 06 de setembro de 2002)
Rainha volta para a cadeia de Venceslau e fica isolado (Oeste Notícias –
07 de setembro de 2002)
Invasão de fazenda provoca conflito armado no Pontal (Oeste Notícias –
10 de setembro de 2002)
Sem-terra e prefeito se confrontam no Pontal
Divaldo Oliveira, de Sandovalina, acusa o MST de atirar em sua casa
Greenhalgh denuncia ‘situação de tensão’ (O Imparcial - 06 de setembro
de 2002)
Juiz nega liberdade para Rainha (Oeste Notícias – 13 de setembro de
2002)
Observa-se um farto material em meio ao estoque de figuras lexemáticas e
percursos figurativos a que são atribuídos sempre os mesmos predicados, construindo a
mesma definição discursiva para os sem-terra. Sem nos referirmos aos recursos visuais que
ilustram a idéia de desordem social (fotos de acidentes, corpos de pessoas feridas ou mortas,
armas, carros de polícia, etc.) que não estão nesse elenco de manchetes e subtítulos, a parte
verbal manifesta papéis actanciais e temáticos de atores que se encontram em antagonismo.
Nota-se, pois, no elenco desses textos a presença da isotopia da “guerra” (“abre guerra
190
contra”; “deveria ter matado”; “destrói área”, “Invasores [...] na fazenda invadida”; “se
armam”; “Preocupados com retomada de invasões [...] reforçam segurança contra”;
“Guerrilha colombiana dá assessoria política a lideranças do MST”).
Os lexemas de base para todas as construções verbais são os mesmos (abrir guerra,
atirar, confrontar, armar, conflito, invadir, denunciar, tensão, atentar contra a ordem, arma de
grosso calibre, etc.), reiterando essa isotopia de guerra. As instâncias enunciativas, Oeste
Notícias e O Imparcial, definem os sem-terra e seu líder, colocando-os na taxionomia da
violência, representando-os disforicamente. Os atores figurativizados por “MST” e “Rainha”
desempenham no Pontal o papel temático de “infratores”.
Em todas as primeiras páginas destacadas, os sem-terra são ancorados no espaço
da contravenção social e como “infratores” são sujeitos do fazer responsáveis pela violência
na região.
A figura do MST e do líder José Rainha marca-os pela disforia, para que encarnem
“o mal social”. Essa é a voz que se pode ouvir de toda a organização de dizeres que se
destacam nas primeiras páginas, mas disseminam-se por inúmeros gêneros das duas empresas
jornalísticas. Além do que se pode ir visualizando nos textos em análise, podemos também
observar em alguns outros escolhidos para constituir os anexos o que acabamos de dizer sobre
a disforia (ANEXO, pág. 336 a 340). É interessante observar que se ilustra aí a idéia do
conflito, criando um sentido de “insegurança” generalizada ao projetar a sociedade como
vítima das possíveis ações do anti-sujeito, o MST. A sociedade do Pontal apresentada por
Oeste Notícias e O Imparcial reforça um medo antigo: o das ações do MST cujo ritmo, que se
intensifica, parece imprimir uma velocidade incontida, tendo em vista a primeira perfórmance
ocorrida nos primeiros dias de janeiro quando houve o incidente com o prefeito de Presidente
Prudente, capaz de prevalecer sobre o programa narrativo de uma das mais importantes
autoridades do Pontal. Da leitura de Oeste Notícias e O Imparcial chegam-nos as informações
de que dois prefeitos foram protagonistas no enfrentamento com os sem-terra. As primeiras
páginas permitem essa constatação. Após passar os olhos pela página, as polêmicas e os
conflitos gerados entre sujeitos (proprietários de terra e seus defensores) e anti-sujeitos (os
sem-terra) tornam facilmente perceptível a oposição entre uns e outros. Mesmo o leitor mais
ingênuo é levado a procurar entender a reiteração da figura do líder dos sem-terra, convocado
hiperbolicamente para o cenário da violência.
Relacionando os diferentes procedimentos para a construção do jornal em Oeste
Notícias e O Imparcial, podemos dizer que a primeira página, mais do que um espaço para a
191
comunicação entre sujeitos, revela o caráter coercitivo dos textos. Aí se flagra um programa
de doação de saber e, na maneira como revestem figurativamente as questões agrárias quanto
à disputa pela terra no Pontal, identifica-se um programa narrativo de desconstrução da
imagem do MST. Trata-se, de um programa de manipulação por intimidação do leitor virtual.
A figura do líder, José Rainha, recorrente nos textos, configura, pois, o anti-
sujeito, à semelhança de um mandatário que disputa a terra com aqueles que o jornal
reconhece como seus “legítimos” donos. Imagina-se, aí na “face” do jornal, um sujeito de
enunciação que manobra um querer e um poder-fazer seu leitor reconhecer determinados
valores aí construídos (sobre tais construções de imagens estaremos nos reportando mais
adiante). Assim, não há como fugir ao programa de condenação (sanção) dos anti-sujeitos,
diante de tantas “histórias” enunciadas, melhor dizendo, anunciadas já no primeiro percurso
de leitura do jornal.
Conseqüentemente, a atmosfera era a de insegurança geral, propícia para
encenação da temeridade. É relevante o fato de o ano se iniciar com um acontecimento que
colocou a região em destaque em toda a mídia nacional: o conflito entre o prefeito de
Presidente Prudente e o MST. Mas, em se tratando de primeiras páginas, o foco com
intensidade sobre a figura do líder do Movimento dos Sem-Terra é algo que nos leva a
reconhecer nisso a importância de buscar relações entre os procedimentos linguageiros e o
contexto sócio-histórico, que transcende a pretensa “objetividade” informativa, ingênua que aí
se organiza na página.
Nesses termos, passamos a ver a lógica das empresas jornalísticas implicando na
exploração do jogo de imagens construído para cumprir um programa: o de objetivar , na
esfera do visível, estratégias de persuasão do leitor, manipulando-o pelo medo de uma
situação de desordem social. Assim, antes de instância visando à circulação de informações,
ela passa a ser a de presidir a circulação de valores tensivos para a manipulação de seu leitor .
Se entendemos “sentido” de acordo com a semiótica, compreendemos esse termo
na acepção de “direção”. A leitura da primeira página permite perceber que o sentido nasce da
quebra de uma situação de harmonia, de “ordem e progresso” (como no dizeres da bandeira
nacional) e da necessidade de sua retomada. Isso posto, podemos dizer que o jornal tem como
objetivo a construção de um clima de insegurança geral, por isso “tensivo”. O sujeito maneja
as crenças do leitor, constrói o anti-clima de paz para que possa encontrar seu objeto (a terra).
Busca então manipulá-lo para que possa agir, na condenação das ações dos sem-terra.
192
Não restringindo a leitura às primeiras páginas, importa-nos examinar se a
diferença e a diversidade entre os diferentes sujeitos envolvidos nas questões da terra é
considerada pelos dois jornais ou, havendo o monopólio de um determinado grupo que
manipula os dizeres na totalidade dos textos, como se dá essa construção. Em outras palavras,
podemos perguntar como valores são impostos ideologicamente por meio dos textos
jornalísticos.
O mapeamento das figuras nas primeiras páginas nos leva a reconhecer um
enunciador que insiste em reforçar a idéia de uma organização dos trabalhadores sem-terra
merecedores de punição. Indica-se aí a inscrição ideológica dos jornais, apontando para a rede
de sentidos que, conforme afirmamos, revela o estado de insegurança dos donos da terra.
Assim, o ator que figurativiza esse papel de grande vilão da história dá visibilidade a um
cenário de insegurança e afeta as relações entre o proprietário e seu objeto valor (a terra).
Na organização da figura do líder sem-terra como responsável não apenas por suas
ações mas também pela orientação das ações de outros, sedimenta o discurso da preocupação
com sua perfórmance. No mesmo ator estão sincretizados o papel de objeto (“Agripino
lamenta fuga ‘da raposa’, “Sem-terra fazem protesto sobre prisão de Rainha”) e de sujeito-
destinador (“O líder José Rainha
Júnior comanda manifestação”). No papel de anti-sujeito, ele
é aquele que foge da justiça, que está sendo caçado como bicho (“fuga da raposa”) e que deve
ir para detrás das grades. A seqüência das manchetes nos leva a informações que possibilitam
a construção de um anti-sujeito temível, para o qual não pode haver espaço na sociedade, a
não ser numa prisão.
Se o ato de informar espalha sentidos, as chamadas de primeiras páginas fazem
ecoar sentidos sobre Rainha em manchetes, títulos, legendas e lides, como as transcritas
acima. O reforço da imagem daquele que subverte a ordem social é mantido a todo custo. Ele
é o que deve responder pelos valores que mobilizam a narrativa da terra em toda a região e até
no país. Basta ver a notícia da tomada da fazenda do então presidente da república FHC para,
um mês depois, regurgitarem dizeres, trazendo Rainha de volta ao cenário jornalístico do
Pontal:
Rainha é preso armado no Pontal do Paranapanema (O Imparcial - 24 de
abril de 2002)
Fazenda de FHC é invadida (O Imparcial - 24 de março de 2002)
Os jornais criam mecanismos para filiá-lo a um programa narrativo da
ilegitimidade.
193
Na Coluna do Oeste encontramos um enunciado que argumenta com a afirmativa :
“A melhor forma de acabar com o crime e a quadrilha é descobrir e prender o cabeça” para
corroborar o programa narrativo sancionador de condenação de José Rainha. O responsável
pela organização dos sem-terra é figurativizado, pois, pelo papel temático de “criminoso”,
“chefe de uma quadrilha”.
Cai a máscara do MST no País
A imprensa nacional começa a descobrir realmente aquilo que todos da
região do Pontal já sabiam desde o começo. O MST sempre foi um
movimento político, e que usa da boa fé das pessoas humildes para formar
uma grande massa de manobra. Os líderes do MST, articulados e preparados,
conseguem convencer essa gente humilde de que realmente eles têm o direito
de reivindicar um pedaço de terra através de atos violentos e ilegais. Por
outro lado, como diziam os antigos: “A melhor forma de acabar com o crime
e a quadrilha é descobrir e prender o cabeça”. É o que está dizendo a
chamada grande imprensa
(Oeste Notícias de 30/março/2002).
A reiteração desses papéis temáticos constitui-se em estratégia de persuasão que
leva o leitor a aceitar as imagens construídas pelo jornal, reforçando o conteúdo já delineado,
sentenciando que o espaço ocupado pelos sem-terra é lugar onde imperam as forças
ameaçadoras do malfeitor e salteador, do vagabundo, sem caráter, capaz de ações perigosas.
Ao revelar a imagem daquele que deve ser execrado pelo leitor, o enunciador põe-se como
doador de competência, fazer-saber para fazer-crer como quem não quer estar diante do
desassossego, do desrespeito, da “guerra” (O Imparcial - 24 de janeiro de 2002). Ao que tudo
indica, esse estado de coisas, que deveria interessar tão somente àqueles que se vêem na
iminência de perder suas terras, estende-se a toda sociedade. Os cidadãos deixam-se conduzir
por discursos criadores do efeito de generalização como se a população do Pontal se visse
ameaçada. Sentem-se desestabilizados, destituídos da “paz”, num clima de insegurança geral
em uma região discursivizada como o espaço do medo (a criação dos presídios de segurança
máxima do Estado veio também para se somar a isso). Tudo em conseqüência do programa
narrativo dos sem-terra. Trata-se aqui de um momento atualizante do jornal, em que assume a
enunciação e avança em direção ao diálogo com o seu leitor, a elite agrária e os letrados.
Recorremos mais uma vez às manchetes das primeiras páginas, para confirmar a
presença dos anti-sujeitos como função perturbadora de uma ordem exigida: manter a terra ao
alcance de seus proprietários. Responsabilizado por qualquer desencadeamento que ameaça a
“vida” no Pontal (“O campo e as cidades estão à mercê de organizações criminosas” - O
Imparcial, 24 de janeiro de 2002), qualquer acontecimento que ocasione a descontinuidade no
clima da harmonia social é imputado ao Rainha. Assim, ele é pego portando armas, ocupando
194
terras, mobilizando pessoas para manifestação pública, promovendo a inquietação geral de
toda a região. Ao detalhar a ação ameaçadora dos anti-sujeitos, Oeste Notícias e O Imparcial
buscam na riqueza de traços semânticos da contravenção um estoque de figuras para
“revestir” tais atores. Indiscutivelmente são de uma riqueza inigualável os mecanismos de que
dispõem para concretizar o cenário daqueles que se postam fora do compasso da lei e da
ordem. Prova disso é que não há um só dia sem que seja mostrado um fato sobre desgraças,
tragédias, mortes a se destacar na página, facilmente relacionado aos sem-terra.
Desse movimento dos sentidos espalhados nas primeiras páginas, organiza-se a
experiência sensível dos leitores. A cada recurso de linguagem verbal ou não-verbal,
construída por instantâneos fotográficos, cores, dizeres verbalizados cria-se uma rede de
representações dos atores da “contravenção”. A cada olhar, pode-se captar a imagem a sugerir
a desordem no cenário do Pontal (“invadir”, “conflito armado”, “armas de grosso calibre”).
Em decorrência do investimento figurativo, de narrativas cujo conteúdo temático cria efeitos
de sentido de subversão e ilegalidade de atos sociais do anti-sujeito (“Um grupo de sem-terra
foi flagrado ontem abatendo gado numa fazenda do Pontal”) vão se concretizando praxemas
estereotipados que recobrem valores do mal. Associadas aos recursos de imagens
fotográficas, os conteúdos semânticos para o tema do trágico, da violência, do terror
(conforme a leitura das primeiras páginas acima), as figuras de assassinatos, prisões,
acidentes, tráfico de drogas, asseguram a coerência semântica, temática e figurativa do
discurso jornalístico associado ao conflito da terra no Pontal. A imagem do sem-terra, então,
vai adquirindo nos textos jornalísticos uma dimensão amedrontadora. É fácil perceber que, no
estabelecimento de relações entre o enunciador do jornal e seu leitor, os valores transcendem
o inteligível, transportando os sujeitos envolvidos no discurso para o campo do irracional.
Podemos dizer que aí se instaura o medo. Como estado de alma, como uma paixão,
semioticamente falando, o medo aparece muitas vezes assumido pelo próprio enunciador, ao
tratar do MST:
Finalizando
Se valer aquela máxima de que quem tem, tem medo, não custa relembrar a
epopéia vivida por alguns proprietários rurais de nossa região que abraçaram
a candidatura Montoro/governador. Eleito e empossado, Montoro tomou
uma serie de propriedades produtivas no Pontal. Remember Plínio Junqueira.
E assim nasceu o MST (Coluna do Neif - Oeste Notícias, 21/7/02).
Inserimos neste momento da leitura de primeiras páginas, o exemplo acima para
ilustrar o investimento na paixão do “medo”. O texto convida a uma análise mais minuciosa,
195
apesar de não ser essa a tarefa para o momento. Quanto à questão do “medo” - responsável
por tensões e sentimentos vividos pelos sujeitos – da perspectiva da persuasão em sentido
amplo, pode ser eficaz, pois é estratégia que sustenta boa parte das enunciações de Oeste
Notícias e O Imparcial.
Ao considerá-la como paixão mobilizadora de tantas narrativas, no movimento que
conjuga avanços e retornos de significantes e o campo semântico acionado pelo conflito da
terra, é necessário considerar, sobretudo, o discurso jornalístico como o objeto que surge não
“como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos
quais ele irrompe” (PÊCHEUX, 1997, p. 56). Isso corresponde à idéia de que a percepção da
terra no jornal não pode ser isolada de uma percepção histórica, situada socialmente.
Ratificamos que as edições de O Imparcial e Oeste Notícias em 2002 construíram
as primeiras páginas pondo em evidência o tema do conflito agrário no Pontal do
Paranapanema, com a finalidade de eliminar a participação de José Rainha. Oeste Notícias,
para levar seu leitor a crer na necessidade de se precaver contra aqueles que se organizam
para obter a terra, busca um argumento baseado no consenso: “[...] como diziam os antigos:
‘A melhor forma de acabar com o crime e a quadrilha é descobrir e prender o cabeça” (Oeste
30/3/02). Torna-se coerente a insistente convocação de José Rainha. Pede-se a cabeça do líder
e, desse modo, dilui-se a organização. Em síntese, o tema do conflito desdobra-se no
programa narrativo de sanção: “ataque a José Rainha”.
Paradoxalmente, o que deve ser excluído, ganha a cena. E o dono das terras
apresenta-se sob um forte investimento patêmico, entrando em cena como aquele que teme.
Do ponto de vista passional, ocupa o espaço da insegurança, da instabilidade. Para participar
da encenação, entra também o leitor. Construídos no/pelo discurso jornalístico, remete aos
que, manipulados cognitivamente pelo processo da enunciação, assumem a suposta verdade
sobre o conflito no Pontal. Deve também temer as ações dos anti-sujeitos, especialmente as
ações de José Rainha (“MST atenta contra a ordem” - O Imparcial 06/9/02).
Por se tratar do campo da linguagem, estamos considerando a paixão (o medo) não
naquilo que ele afeta o ser efetivo dos sujeitos “reais”, mas enquanto efeito de sentido inscrito
e codificado na materialidade discursiva. Pelas configurações culturais inscritas nas primeiras
páginas, molda-se o imaginário passional, valorizando assim a insegurança, fazendo dela o
motor do temível, do fatídico.
Como uma estratégia de comando à distância, parecendo ausente, o discurso chega
à página sob a responsabilidade de uma instância enunciativa que pode conduzir o dizer, sem
196
se mostrar. Cria-se um efeito de sentido de impessoalidade, de um “dizer verdadeiro”, que
simula trazer fatos incontestáveis. No distanciamento do sujeito da enunciação os
acontecimentos parecem existir por si sós. Funciona como uma espécie de mecanismo de
persuasão veridicctória, uma garantia de um dizer verdadeiro.
O leitor passa os olhos pelas primeiras páginas e não se vê conduzido apenas pela
tematização do factual. Das construções que espalham os efeitos de sentido sobre os
acontecimentos da temática da guerra, emana um transbordamento de estados de alma a
envolver os sujeitos participantes da mise-en-scène discursiva. Desenha-se a imagem dos
proprietários rurais (vítimas de ações dos anti-sujeitos), acrescenta-se a essa imagem mais
uma, a de que se sentem inseguros para garantir seu direito à propriedade. Ao serem
afirmadas as ações dos adversários (sem-terra), o medo antigo (que obviamente pode ser
explicado pelas informações sobre a grilagem das terras no Pontal), torna-se um dos
sentimentos que dominam os protagonistas da narrativa da terra.
O enunciador deve deixar claro que os donos da terra é que têm o direito sobre
esse objeto-valor. Ao que já se conhece sobre o assunto, a meta é construir o “dizer
verdadeiro” que a ameaça dos outros (sem-terra) torna-se um perigo, não apenas para os
donos de terra, mas para toda a sociedade.
A hipótese da perda da terra transforma em anti-sujeitos todos os que podem ser
associados aos sujeitos ameaçadores, hostis. Ninguém é poupado nessa hostilidade, que se
estende também àqueles que ocupam cargos políticos. De vereador a ministro, ninguém
escapa da desqualificação.
Quando alguns vereadores não assinaram o documento para aprovar a medida do
prefeito contra a manifestação do MST, tiveram seus nomes publicados na primeira página,
destacados em manchete e em caixa alta:
VEREADORES QUE NÃO ASSINARAM A MOÇÃO DE
SOLIDARIEDADE, APROVADA PELA CÂMARA, AO ATO DO
PREFEITO AGRIPINO QUE BARROU O ZÉ RAINHA E SUA TURMA
DA MARCHA DO MST (Oeste Notícias, 25/4/02).
Nem o então ministro da Reforma Agrária foi poupado:
O ministro Jungman esculhambou o judiciário da nossa região para agradar o
Rainha e o MST. Que país é esse? (O Imparcial, 01/01/02).
O ministro Raul Jungman transformou a questão agrária no samba-do-
crioulo-doido (O Imparcial, 24/01/02).
197
Só agora Jungmann? (Oeste Notícias, 26/3/02).
Observemos um texto em que o enunciador movido por um sentimento de
nostalgia desliza do presente para o passado e para o futuro:
A torcida é muito grande para que Presidente Prudente volte a ser a grande
força da pecuária nacional como era antes do desembarque de Zé Rainha &
Cia Ltda., sob as bênçãos do então deputado Mauro Bragato. Não custa
muito recuperarmos nossa invejável posição [...] é possível voltarmos aos
bons tempos [...] de seus frigoríficos, curtumes e o grande plantel de gado de
corte abatido diariamente quase tudo exportado para vários países” (Oeste
Notícias, Coluna do Neif, 12/06/2002).
A passagem do presente da negatividade para o passado da positividade, do qual se
ressaltam os valores eufóricos, revela-se aí um comprometimento emocional do sujeito da
enunciação. Acionado por um querer coletivo, um estado de ânimo, faz ressurgir a esperança
da terra do progresso (“Presidente Prudente volte a ser a grande força da pecuária nacional
como era antes do desembarque de Zé Rainha & Cia Ltda”), das grandes extensões para a
criação de gado: “o grande plantel de gado de corte abatido diariamente quase tudo exportado
para vários países”. Assim, a nostalgia é um estado de alma que move o sujeito, sabedor de
que possui a competência para um fazer, como sujeito do fazer delegado de um determinado
grupo social. É então no discurso jornalístico que se engendram categorias modais, narrativas
e discursivas, que simultaneamente se mesclam nos dizeres, instaurando no texto um estado
de falta e de esperança de resgatar o objeto-valor. Empenhado em manter a conjunção com o
objeto (a terra), aciona o passado como ponto de partida, abrindo a possibilidade de mobilizar
o leitor por meio de um discurso não só nostálgico, mas bairrista, ufanista.
3.2.1.1.1. Em O Imparcial
198
Nessa primeira página, como a comandar o olhar do leitor, dois textos, à direita da
página se juntam em torno da manchete “Fazendeiros se armam”. Como moldura, evocam o
cenário de violência no Pontal. Sem marcas de presença do enunciador, constrói-se o tecido
da isotopia desse tema e também o papel temático dos sujeitos envolvidos no processo da
enunciação do texto.
Ao nos referirmos a “comando”, admitimos a manipulação de um sujeito que
realiza um fazer persuasivo sobre o outro que deve reconhecer como dizeres verdadeiros:
“Fazendeiros se armam no Pontal” e “Guerrilha colombiana dá assessoria política a lideranças
do MST”. Em se tratando de interação comunicativa, enunciador e leitor devem pertencer,
ambos, ao mesmo universo axiológico, compartilhando as mesmas crenças e os mesmos
valores sociais. Nessa paridade ideológica, deve haver assim uma concordância quanto à
sanção para as ações dos fazendeiros. O leitor deve ser conduzido para crer que os
fazendeiros se armam porque existe motivo para isso.
199
Em seu papel de destinador-manipulador, responsável pelos valores do discurso e
capaz de levar seu interlocutor (o leitor da notícia) à crença da suposta “verdade” sobre os
fatos, constrói uma isotopia da ação disfórica para inserir o ator “fazendeiros”. Actantes do
percurso narrativo da luta pela terra, não há como negar a dimensão polêmica dessa narrativa.
Na disputa pelo mesmo objeto-valor (a terra), comparecem “os fazendeiros” e “os sem-terra”.
Há um episódio que envolve os atores enunciados “fazendeiros do Pontal” (“Na segunda
feira, os sem-terra ocuparam uma fazenda em Teodoro Sampaio”). Atualizam-se nesse
percurso “os fazendeiros” no papel de sujeitos que estão sendo apartados de seu objeto-valor
(a terra) pelos atores “sem-terra” que desempenham a função de anti-sujeito. Função
perturbadora na sociedade do Pontal, referenda a construção de uma isotopia temática da
violência. Quanto mais se configura a presença do anti-sujeito, mais se configura o efeito de
descontinuidade entre os actantes (fazendeiros e sem-terra) que participam dos percursos da
busca pela terra.
Ao considerar os fatos em “Fazendeiros se armam no Pontal”, não se pode fazer
nenhuma leitura que leve a sancionar negativamente os fazendeiros por sua ação de se
armarem. Os dizeres não parecem deixar dúvida sobre a perfórmance dos donos da terra cujo
agir pela violência se justificaria. Mas, se considerarmos que pode haver brecha para o leitor
lançar um outro olhar, que não coincida com o que se constrói enunciativamente, poderia ser
levado à reprovação dessas ações, sancionando negativamente os fazendeiros.
Para que não ocorra essa possibilidade, é preciso construir o praxema
estereotipado do anti-sujeito criminoso. Ao se acrescentar ao primeiro texto que segue à
manchete e aos dizeres do subtítulo, o texto “Guerrilha colombiana dá assessoria política a
lideranças do MST”, o sujeito enunciador referenda os efeitos de sentido disfóricos
(“invasões”, “ameaça”, “roubo”, “crime”) disseminados no espaço que ocupa toda a metade à
direita da página. Associado às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), cria-
se a isotopia da violência, do ativismo político da ilegalidade, da desordem social. O nome
“guerrilha” assegura tal isotopia em um quadro axiológico de julgamento que aponta para o
perigo dos atentados, das revoltas populares, da subversão da ordem social. Materializa-se o
discurso que endereça os sem-terra à condição da ameaça terrível para a sociedade,
especialmente a do Pontal, na contraposição à dos fazendeiros. É direito dos donos da terra se
protegerem contra aqueles que podem trazer a insegurança, a instabilidade da paz social.
Nesse caso, o armamento dos proprietários rurais se justifica, visando ao combate do anti-
sujeito (os sem-terra).
200
Os privilégios da condição social configuram-se sob a forma de um discurso de um
poder-fazer (poder se armar) inequívoco dos proprietários rurais (“direito da reação legal
previsto na Constituição”), no reconhecimento do direito à terra, regido pelas ações de
compra e venda, segundo as normas capitalistas. Mas isso não quer dizer, contudo, que não
haja um contraponto para deslocar a lógica do dizer jornalístico. Trata-se de incorporar um
saber semiótico para identificar alguma brecha por onde se possa lançar um outro olhar, que
não coincida com o do enunciador.
Na possibilidade da ocorrência de tal hipótese, trabalha o enunciador para que isso
não ocorra. Move-se então para que não haja brechas por onde perscrute o olhar de um leitor
mais atento. Na tentativa de impedir que isso aconteça, investe em seu fazer persuasivo para
não permitir que se desvie do contrato de veridicção, do pressuposto de crença a ser
assumido. Busca procedimentos para fazer-parecer verdadeira a sua enunciação. Assim, do
lugar de onde fala, tem como tarefa associar os percursos entrecruzados e sobrepostos da
violência entre sem-terra e fazendeiros. Por meio da associação ao corriqueiro universo
figurativo da negatividade, que sustenta os jornais do Pontal para construir a imagem do
MST, a isotopia da contravenção (“invasões”, “ameaça”, “roubo”, “crime”, “ações radicais”,
“seqüestros”, “guerrilha”, “terrorismo”) estabelece relações de força entre os elementos
atualizados na página, preenchendo as condições de oposição entre a ação de violência dos
fazendeiros e a ação do MST. Esse poder de construção do discurso do conflito pela terra leva
o enunciador a contrapor em diferenças e similaridades os dois atores (fazendeiros e MST)
para a encenação na primeira página.
O destaque é para a manchete “Fazendeiros se armam no Pontal” e para o subtítulo
“Preocupados com a retomada de invasões, proprietários de terras de região reforçam
segurança contra MST”. Dois lides fazem a chamada para as matérias, destacando-se em
negrito o título “Guerrilha colombiana dá assessoria política a lideranças do MST”.
Considerando a manchete “Fazendeiros se armam no Pontal”, configura-se aí a
presença do ator “fazendeiros”. No plano do narrado temos um sujeito que se define por ter
sua complementação sintática conduzida pelo predicado “se armam”. Assim temos um sujeito
que está em conjunção com o objeto valor (arma). Do ponto de vista semiótico, se o sujeito
tem a posse de algo é porque quis ou, pelo menos, achou que devia. Além do querer e do
dever, que já respondem por uma fase, origem dessa ação, está o respaldo de toda a
competência de sujeitos que dispõem do poder para tanto. Assim, os fazendeiros quiseram se
armar, pois supõe-se que deviam fazê-lo e, ocupando um lugar hierarquicamente superior (“os
201
proprietários de terras da região”), têm poder para isso. Pela ação de se armarem,
consubstanciam-se as condições para um fazer, assegurado pela posse do objeto “armas”: eles
tornam-se competentes para a ação da defesa da terra. E é nessa competência, conforme
vamos observar em outros textos, a serem contemplados mais adiante, que está a origem do
desenvolvimento das outras fases desencadeadoras da narrativa do conflito no Pontal. Ao se
considerar legítima a posse das armas, institui- se simultaneamente um modelo narrativo que
prevê a atividade de um sujeito que responde a injunções sociais pertencentes à ordem de
onde emanam forças e influências de poderes preestabelecidos. De natureza cultural, trata-se
de um plano axiológico representativo de um sistema de valores que impulsiona a ação de
confronto, a que o texto analisado anteriormente “QUEREMOS PAZ ... e RESPEITO!!!” trata
como “verdadeiro clima de ‘guerra’”.
Considerada essa competência de poder estar armado, institui-se a instância que
abriga as razões implícitas desencadeadoras do clima de conflito. Trata-se de um plano
axiológico, no interior do qual se origina a ação de se armar, com respaldo na sociedade, que
reconhece a ação da violência.
A articulação das figuras que sedimentam o discurso da disputa pela terra, tanto
pode ser pensada como uma rede de relações que dão suporte e organizam a ideologia que a
enunciação quer transmitir, ou impor, como pode levar a imaginar algum recorte na
organização dessa visão de mundo. Trata-se de articular a figurativização (“Fazendeiros se
armam no Pontal”) a partir da suposição de um “abalo provocado pela intervenção do sujeito
individual”, em que “novas figuras sensíveis que dão conta da perturbação sofrida pelos
valores estabelecidos e pela vibração das valências, vão sendo assimiladas” [...] “segundo um
gradiente de variação de intensidade”. (BERTRAND, 1996).
Ao desencadear a intervenção dos leitores, enquanto poderes constituídos na
sociedade, lançando a dúvida quanto à confiabilidade dos valores convocados em discurso na
página, observa-se a perturbação sofrida pelos valores fixos e a vibração das valências sobre
os valores sociais.
Como construção discursiva, capaz de provocar a adesão ou não do leitor, as
figuras que manifestam a ideologia dos proprietários rurais (“Guerrilha colombiana dá
assessoria política a lideranças do MST”, “Fazendeiros se armam no Pontal”) podem passar a
ser vistas não a partir da analogia posta no texto. Assim, “a identidade da relação que reúne
dois ou mais pares de termos” (GREIMAS & COURTES, s/d, p. 20), de modo a articular os
202
sentidos que estabelecem a necessidade das ações violentas dos fazendeiros em decorrência
das ações dos sem terra, pode ser desestabilizada.
Considerando, então, um alargamento da noção de contrato fiduciário, que se
deveria estabelecer entre os sujeitos da enunciação jornalística (o reconhecimento que os
fazendeiros se armam para se defenderam dos sem-terra, que supostamente estariam
recebendo armas da guerrilha colombiana), reconhecemos que a habilitação dos valores
figurativos não se dá em uma única direção. Ora, deve-se levar em conta a instabilidade e
reversibilidade da relação entre sujeitos que percebem (enunciador e leitor) e o objeto
percebido (a terra).
Considerando também que as isotopias figurativas (armar-se, guerrilha, violência)
sugerem “efeitos de realidade, mas também de surrealidade ou de irrealidade” (BERTRAND,
1996), subjacente à veridicção, a habilitação dos valores institui um espaço fiduciário que
assegura as múltiplas possibilidades de apreensão e de interpretação daquilo que pressupõe o
exame das condições da função figurativa. Isso posto, importam, então, não apenas os efeitos
de sentido apresentados pelas figuras, mas a maneira como eles foram construídos e como se
chegou lá.
Em consonância com as reflexões sobre a semiótica no item 1.3 do capítulo 1 da
primeira parte desta tese, o enunciado jornalístico deve ser pensado como espaço fiduciário
que está na base de uma concepção de figuratividade que se tenta construir a partir de Da
Imperfeição (GREIMAS, 2002). Como um espaço semiótico próprio, na dinâmica sujeito-
objeto, não mais unidirecional na geração e fixação de valores, as figuras no texto jornalístico
devem ser vistas como intercambiáveis, instáveis e reversíveis.
Evidenciada a associação entre as figuras “fazendeiros” e “armas”, o que se
constrói é o tema da violência que, diretamente remete àqueles que são donos da terra. De
acordo com essa associação, o leitor pode ser levado a ver na figura dos fazendeiros, o
simulacro de praticantes de atos condenáveis. Instauradores da violência no campo,
transgressores de normas da justiça, os fazendeiros, portadores de armas, atentam contra um
clima de paz. Constituem-se, portanto, como função perturbadora dessa ordem social. Nesses
termos, são anti-sujeitos. Passaria a vigorar, então, um sentimento de condenação a seus atos.
No interior dessa axiologia, valores típicos da instauração da força, da qual originou a ação de
defesa, residem valores de transgressão de normas da justiça, desencadeadores de outras
ações de violência .
203
Nesse discurso dito “sem narrador”, o papel do enunciador é o de realizar um fazer
interpretativo: um fazer-saber. Como grande responsável pela discursivização dos fatos que o
leitor deve-saber, busca razões para justificar o enunciado “os fazendeiros do Pontal se
armam”, na organização do fio condutor de dizeres, implícitos a uma voz que soa para
instaurar um ponto de vista diante do tema.
Sabemos que, para analisar a dimensão persuasiva desse discurso construído na
página, devemos levar em conta os traços que permitem reconhecer que, na sua organização,
subjaz um sujeito modalizado (movido pelo querer) pelo desejo de reforçar a imagem
negativa dos anti-sujeitos (sem-terra), cujo fazer é visto como ilegal, visando a convalidar a
ação dos fazendeiros. A seleção e organização dos dados enunciados na página permite-nos
observar a construção da posição do jornal sobre esses dizeres, que tendem para a ilusão de
ausência de um responsável por eles. Ao valer-se de um discurso em terceira pessoa, o
enunciador, distancia-se de seu dizer, obtendo com isso o efeito de sentido de objetividade.
Referenda no segundo texto
as regularidades das “escolhas” enunciativas, em que se expõe a
restrição da legalidade aos sem-terra. Subjaz na página a categoria semântica fundamental
(legalidade e ilegalidade) que orienta o discurso da violência na luta pela terra. De um lado,
os donos da terra, legalmente reconhecidos em seu direito de lutar pela terra; do outro, os que
devem ser impedidos disso. Assim, o percurso temático e figurativo é o lugar da determinação
sócio-histórica do reconhecimento mútuo entre enunciador e enunciatário de que os
integrantes do MST devem ser lidos como anti-sujeitos. As figuras relacionadas à
contravenção da Colômbia concretizam o tema da subversão à ordem. Efetiva-se a
manipulação do leitor, subtraindo qualquer possibilidade de leitura de uma imagem positiva
dos sem-terra, qualquer possibilidade de serem considerados vítimas de uma ordem social
nutrida pelo poder do dono da propriedade rural. A eles delega-se o poder-fazer – o de se
armarem. Responsável pela interpretação do relato, o enunciatário leitor é levado a reconstruir
o discurso que cria o efeito de verdade de que o fazendeiro deve responder pela ordem na
sociedade e, para isso pode fazer uso da força, armando-se.
No texto que vem logo abaixo da manchete “Fazendeiros se armam no Pontal”,
observamos se havia possibilidade de contrariar o projeto enunciativo, na tentativa de flagrar,
no interior do enunciado, uma brecha onde fosse permitido ao leitor lançar um outro olhar
sobre o discurso da violência no Pontal. Constatamos que, ocorrendo essa possibilidade,
haveria uma descontinuidade no processo enunciativo, resultando numa ruptura de um
contrato cujos dizeres devem ser assumidos como “verdadeiros”. O deslizamento do leitor
204
teria como conseqüência a descontinuidade no percurso de leitura construído. Logo, para que
não haja tal brecha, do ponto de vista da semiótica, a estratégia é acionar os recursos
enunciativos. Construídos para seduzir o leitor, o sujeito enunciador, na eficácia de seu fazer
(determinar a leitura do tema) busca persuadi-lo para que aceite o ponto de vista de que o
fazendeiro deve agir com violência.
Não se tratando apenas de uma primeira página, mas considerando todo um
imaginário cultural, ou seja, todo o arquivo de linguagens disponíveis na cultura sobre a luta
pela terra desde que entrou em cena o MST, não há como fugir da imagem desfavorável que
se cria sobre o percurso desse sujeito coletivo. Esse modelo de percurso narrativo em que os
sem-terra são sempre os anti-sujeitos é sempre reatualizado nos discursos da mídia. Assim,
nessa página de O Imparcial de 30/3/02 essa reatualização nada mais é do que uma estratégia
de persuasão do leitores para que concordem com o que aí se enuncia, numa cumplicidade
com o enunciador, que não pode permitir desdobramento da leitura e conseqüentemente do
sentido. Nesse contexto a aprovação do uso das armas é reiterado e intensificado pelos
sujeitos da enunciação jornalística. Assumem a identificação com os sujeitos da narrativa da
terra no Pontal do Paranapanema, em concordância com os fazendeiros e condenação dos
sem-terra.
Em consonância com o que vimos sempre sustentando, a comunicação do leitor com o texto
se estabelece a partir de um enunciador que cria um discurso persuasivo em que informam
sobre a ação dos fazendeiros (“se armam no Pontal”). Este fazer-saber é apenas um programa
auxiliar de um programa principal dos donos da terra (defender a propriedade rural), por meio
da luta armada. A perfórmance pragmática (aquisição das armas) de um sujeito justifica-se no
sentido da busca de maior competência para aquisição dos valores modais (poder para
enfrentar), atualizando-o para a defesa contra o anti-sujeito. Ao se considerar que um sujeito
executa um fazer pragmático, tendo na aquisição das armas a sua proteção, pressupõe-se a
intensidade das emoções que o invadem. Nesse sentido, a imagem que se constrói do
fazendeiro é a de um sujeito tomado pelo sentimento do medo. A prevenção dos sujeitos
contra o suposto inimigo é atribuída aos efeitos da evolução passional desse sentimento, que
nada mais é do que uma progressão tensiva cujo limite confunde-se com o desencadear dos
3.2.1.1.2. Em Oeste Notícias
205
Vamos à primeira página de Oeste Notícias.
Ocupando quase a metade da página, associam-se as duas manchetes em negrito:
Dono de ferro-velho atira em homem no lixão e, logo abaixo, MST destrói área de soja
para jogar futebol. Como subtítulo à frase explicativa: “Invasores jogam futebol e baralho,
além de outras diversões, na fazenda invadida na segunda-feira”. Os destaques verbais vêm
acompanhados de duas imagens. A primeira delas, obtida por um zoom da câmera,
redimensiona o tamanho do objeto, uma arma e dois cartuchos em cores que se sobressaem no
branco do sulfite da folha. Hiperbolicamente, essa imagem se junta à foto de homens
206
brincando de bola numa plantação, cujo fundo verde une-se ao infinito azul e branco do céu,
sendo explicitada pelos dizeres da legenda: “Sem-terra jogam futebol com bola e campo
improvisados, onde arrancaram soja”.
A notícia, conforme indicação, ocupa a página 5 do primeiro caderno, sob a
vinheta Problema Fundiário, seguida do título MST destrói soja por jogo de futebol, em
toda a largura da página. Os títulos das demais matérias sobre o assunto são: “MST ameaça
outras invasões na região do Pontal” ; “Dia no acampamento é de diversão e de ameaça”;
“MP dá parecer favorável à manutenção de posse”.
Vale ressaltar que, no sincretismo de linguagens, não há como deixar de destacar o
efeito de sentido de subjetividade criado pela enunciação. Ainda que, no nível do parecer, se
tente criar a impressão de objetividade dos acontecimentos factuais, pode-se flagrar a
existência de uma voz a conduzir o leitor. Nesse exemplo, como em inúmeros deles, só é
possível apreendermos essa organização a partir do conjunto coeso das partes, ou seja, depois
de estabelecer relações entre as linguagens utilizadas. É assim que, na associação entre o
plano de expressão visual e o verbal, observa-se que “arma” e “indivíduos brincando” levam-
nos à instância organizadora da enunciação que implicitamente condena as ações dos atores
“sem-terra” cujo papel actancial é sancionado negativamente. Na relação do sentido entre a
figura “arma”, relacionada às imagens hiperbólicas dos cartuchos e às figuras da manchete
“jogam futebol com bola” e “diversão”, nota-se uma organização do dizer que conduz à
associação metafórica do fazer do ator como irresponsável.
Ao se colocarem lado a lado dois acontecimentos distintos, o do mundo do crime
(“homicídio no lixão”) e o do lazer (“diversão dos sem-terra”), observa-se aí a presença de
um enunciador que funciona não apenas como um fio condutor que põe em processo as
informações factuais, mas também como elemento que relaciona os textos da página,
associando-os a uma determinada ideologia. Subjaz à implícita relação entre o visual e verbal
de dois acontecimentos tão díspares, significações que, no plano axiológico, não podem ser
vistas de forma inocente. O enunciador, ao instalar o sujeito “sem-terra” numa narrativa da
diversão (o jogo de bola), instala, simultaneamente, um percurso (ou um estado) da
contravenção, já que seu fazer também foi destruidor, afinal, destruíram uma área de soja e,
desse modo, a ação de destruir atualiza, associando-se a elementos da primeira narrativa (o
assassinato no lixão). Não há, portanto outra saída para o leitor, a não ser fazer a conexão
entre os dois percursos (o dos assassinato ao do jogo dos sem-terra), conectando os dois
textos a uma axiologia cujos valores estão disforicamente marcados. As duas imagens passam
207
a fazer parte de um mesmo campo semântico, na configuração discursiva em que se destaca a
ilegalidade. Determina-se aí, sem sombra de dúvida, o universo ideológico dos valores de
sujeitos que são sempre qualificados como “infratores, destruidores, irresponsáveis,
preguiçosos”. Assim, a foto de parte de uma “suposta” arma e o instantâneo de uma
brincadeira de bola são textos que não devem ser tomados independentemente como se
constituíssem o sentido por si sós. Vistos como simples unidades, são convocados a constituir
sentido num texto maior, a constituição da primeira página, a que se subordinam, aí
estabelecendo uma relação polêmica.
Como fazer a leitura de uma foto que se destaca na página pelo seu tamanho
aumentado e que não remeteria a nenhum sentido com uma arma, não fosse a proximidade a
dois cartuchos na tonalidade de um vermelho vivo? Comparada à foto à direita (dos sem-
terra), nota-se a desproporção entre o tamanho do objeto e o dos sem-terra. Sua imagem
(indivíduos que parecem correr atrás de uma bola) se torna muito pequena.
As imagens poderiam ser lidas isoladamente, cada uma delas funcionando como
um texto, a comunicar o sentido flagrado pelo instantâneo fotográfico. Considerando sob esse
aspecto, o leitor teria diante de seus olhos duas imagens bem distintas, a foto de uma arma e a
de uma cena de pessoas (crianças, jovens ou adultos) correndo atrás de uma bola. Não é
possível distinguir bem pela focalização à distância, mas interpretada pela legenda “Sem-terra
jogam futebol com bola e campo improvisados (sic), onde arrancaram (sic) soja”. É um dizer
que traz um recorte da realidade. Com esse dizer, chega também à página uma instância de
enunciação que revela seu estado de inconformismo ao avaliar negativamente a ação dos sem-
terra. Apontando para uma rede de sentidos, vai-se conduzindo o olhar do leitor para o que
está sendo enunciado na página. Assim, ele deve crer que o campo improvisado resultou da
ação ilegal de arrancar a soja em uma terra que, não lhes pertencendo, não lhes era facultado
esse direito.
O destaque para a primeira foto, evidencia a iconicidade do objeto que, mais do
que recurso que leva à semelhança com o objeto representado, funciona como uma espécie de
mecanismo de persuasão veridictória. A fotografia do cano da arma pode ser vista aí como
garantia para a crença aos dizeres do enunciador. Os traços sensoriais, pelo uso da cor
vermelha, na foto da arma, saltam aos olhos do leitor. A cor, associada às figuras da
negatividade da legenda (“arma de fabricação caseira”, “três canos”, “tentativa de homicídio”,
“lixão”) conduz o fato destacado em manchete (“Dono de ferro-velho atira em homem no
lixão”). No mesmo cenário, juntam-se dois acontecimentos distintos, numa associação pelo
208
mesmo percurso figurativo. Assim, também para remeter aos sem-terras: “destrói”,
“Invasores”, “jogam baralho”, “fazenda invadida”).
Os recursos, mais do que conduzir dizeres para o conhecimento dos fatos,
exemplificam uma organização textual que visa à manipulação do leitor. Mais do que
“sentidos” a serem noticiados, funcionam como efeitos de sentido a serem acrescentados ao
universo dos fatos.
Para essa realidade discursiva, o leitor poderia perguntar: Que relação há entre
dois fatos jornalísticos tão díspares para se emparelharem na manchete: Dono de ferro-velho
atira em homem no lixão e MST destrói soja por jogo de futebol ?
Na relação com o percurso figurativo a que remete a foto à esquerda (arma, bala,
homicídio, lixão), está posta, então, a enunciação de um sujeito que, sem assumir um dizer,
fortalece a imagem negativa dos sem-terra, criando um fazer persuasivo, visando a levar a um
fazer interpretativo, qual seja, a desqualificação desse sujeito.
Reatualizadas pelo enunciador, ações lúdicas entram para o campo da negatividade
ao serem associadas aos sem-terra. No saber heterodiscursivo do leitor a figura dos sem-terra
preenche o papel temático daqueles que subvertem a ordem social por executarem uma
brincadeira que não cabe a eles. A projeção escolhida, isto é, a debreagem enunciva que
constitui o enunciado verbal, junto a outros procedimentos discursivos (imagens) acabam
produzindo um efeito de realidade. Na referência a fatos ocorridos, o enunciado da página é
verossímil, ou seja, é simulacro de situações que podem ser aceitas como verdadeiras.
O leitor, persuadido sobre essa representação, não tem do que duvidar: os sem-
terra desenvolvem o percurso narrativo da busca de um objeto valor que não lhes pode ser
concedido (a brincadeira). Ora, só lhes resta serem julgados, devendo ser sancionados pelos
atos praticados, independentemente de se tratar de atividade lúdica (“jogam futebol”). As
figuras que remetem a outras atividades (“jogam baralho”) que englobam um percurso
figurativo marcado pela negatividade, transforma uma simples pelada de futebol, na relação
com o jogo de baralho e outras diversões em fazeres condenáveis para justificarem a sanção
negativa dos sem-terra.
No texto verbo-visual da primeira página de Oeste Notícias, sincretiza-se a função
de um destinador que constrói os sem-terra como aqueles que preenchem o papel de
preguiçosos (diversão ao invés de trabalho), irresponsáveis e inconseqüentes (destruíram a
plantação para fazer um campo de futebol), contraventores (“invadiram” a fazenda). Na
associação com os textos enunciados, essa isotopia da contravenção leva à reiteração da
209
sanção negativa, ao transbordamento dos efeitos de sentido da negatividade. Em resumo, pelo
investimento discursivo, os contornos axiológicos que enquadram os sem-terra é o de que não
são merecedores de crédito na sociedade. Trata-se de uma etapa de simulação de um dizer
verdadeiro desenvolvida nessa construção jornalística para a interpretação da narrativa da luta
pela terra, em que a instância enunciativa de Oeste Notícias manifesta aí, nessa primeira
página, a sua competência (tem o saber e o poder) para essa perfórmance discursiva de
construir o tema do conflito agrário do viés ou da ótica da elite agrária.
Em se tratando de imagem negativa do sem-terra nas primeiras páginas de Oeste
Notícias e O Imparcial, temos uma riqueza de material. O tecido da isotopia da subversão à
ordem social constrói o papel temático estereotipado do vilão, daqueles que lutam pela terra
como contraventores que se opõem ao universo de valores capitalistas. No imaginário da
população em geral, esse papel é preenchido pela figura dos atores que, executando o discurso
do MST, desenvolve o percurso narrativo da busca de um objeto valor (a terra) que não lhes
pode ser concedido por se tratar de uma ação fora das relações do sistema capitalista, que só
admite a aquisição dos bens pelas transações de acordo com as normas do mercado.
O estoque de temas e figuras para sustentar a associação entre sem-terra, o líder
José Rainha e infratores (traficantes, ladrões, homicidas, etc.), pode ser depreendido em toda
a construção jornalística dos dois veículos. A presença dos atores “sem-terra” na primeira
página já traz a indicação do espaço que lhes é reservado no jornal: a folha policial. Em todos
os âmbitos da esfera social seus traços de conduta são sempre associados ao papel temático de
irresponsáveis, cujo fazer em termos de papel actancial é o de destruidor do equilíbrio social
no Pontal. Isso se estende até para o campo do lazer, como observamos nos textos anteriores,
em que é possível visualizar imagens definidoras do sem-terra no papel temático
estereotipado do malfeitor. Interessante observar que até um dos advogados e políticos
bastante conhecidos no país, Greenhalg, por ser notícia ligada a José Rainha, vai também para
a folha policial (Greenhalg visita Rainha em Venceslau). (ANEXO, p. 341 a 343). O que os
textos jornalísticos semeiam é a possibilidade de captar os atores sem-terra como seres de
linguagem que representam a negatividade do ser social. Assim, tais atores se constituem
como simulacros de seres desqualificados para a vida em sociedade.
O percurso narrativo do sem-terra no Pontal do Paranapanema, na conquista de seu
objeto-valor, não pode se realizar, custe o que custar. Conforme vimos até aqui, em se
tratando da temática da luta pela terra, as primeiras páginas conferem traços reiteradores da
maneira do discurso jornalístico da região do Pontal lidar com o tema. Nessa perspectiva, os
210
textos de um e outro jornal aí articulam estratégias enunciativas por meio do sincretismo de
linguagens (verbais, não-verbais) para persuadir o leitor a condenar a realização do percurso
dos sem-terra.
O confronto entre o prefeito e o MST era considerada situação bastante peculiar.
Havia motivos de sobra para que o Pontal vivesse uma situação de tensão, o que levaria à
produção de textos durante todo o ano de 2002. Se, conforme já afirmamos, a região respira o
ar que emana das questões fundiárias, a partir do incidente sobre a tentativa do prefeito para
impedir a manifestação dos sem-terra, ocorrido no dia 29 de janeiro, a situação tornou-se
insustentável. O assunto, que teve repercussão nacional e internacional, passou a ser fonte de
assunto para o ano todo. A produção ancorada na temática do enfrentamento entre o prefeito
de Presidente Prudente e os sem-terra excitou o imaginário cultural de toda a região do Pontal
e o arquivo de linguagens do discurso jornalístico sobre a luta pela terra fez aflorar figuras e
percursos recorrentes sobre essa temática.
211
3.2.1.2. O Confronto entre o Prefeito e o MST
A página elege o acontecimento que destaca o conflito entre os dois líderes: o
prefeito de Presidente Prudente e o líder do MST. Os enunciados têm como referência a
foto do prefeito Agripino e a de Rainha, cercados pela sociedade local e pelos sem-terra.
O emprego das imagens ressalta o processo em si (o conflito). Independentemente
das demarcações enunciativas de pessoa, tempo e espaço, numa seqüência semanticamente
lógica, destacam-se os dois sujeitos envolvidos nessa “história”. De um lado um sujeito
(sem-terra) desenvolve um programa narrativo de manipulação: querer entrar na cidade de
Presidente Prudente. De outro, um sujeito tensivo (o prefeito) elabora um outro programa
para impedir tal ação narrativa. O leitor-se aí diante de um duelo, em que sujeitos medem
suas capacidades para agir. Ao vencedor cabe o direito do reconhecimento da sociedade,
enquanto ao perdedor, só resta o descrédito popular. O centro da atenção se desloca para a ação,
focalizando-se principalmente na sanção, ou seja, no julgamento da instância enunciativa que
212
avalia a partir do quadro axiológico no qual se realizou a ação narrativa de um sujeito
passional que perde o controle sobre a situação.
O enunciador expõe o programa narrativo da disputa pela terra, do ponto de vista
de dois sujeitos que lhe atribuem valores distintos. Enquanto um faz valer o seu poder
autoritário, (“decretar”, “prometer”), o outro o desqualifica, atribuindo-lhe o papel temático
de nazista, o grande mal a ser combatido (“comparação com Hitler”).
O discurso sobre a ação dos sem-terra se sobrepõe ao discurso sobre a ação do
prefeito. A cena em que se flagra a mão de Rainha para o alto, em posição de orientação aos
sem-terra, se fortalece e assegura a direção de uma percepção tornada legível no texto (“O
líder José Rainha comanda manifestação: comparação a Hitler”).
É curioso verificar que se cria um clima de insegurança, o que pode alimentar a
insegurança do leitor, funcionando como uma espécie de mecanismo de persuasão
veridictória, por intimidação. Poderíamos dizer que a reprodução das informações pela
enunciação sustenta-se pela criação de tensão, ou seja, o enfrentamento de líderes torna mais
intenso o clima de guerra por meio da enunciação discursiva. Os fatos que se têm são bastante
demarcados. Entretanto, o antagonista realiza seu percurso narrativo, tornando-se preocupante
o fato de ter-se tornado competente a partir da ajuda do governo estadual. O prefeito,
obrigado a desconsiderar suas palavras (“Em Prudente, ele [Rainha] só entrará se passar por
cima do meu cadáver”; “Eles terão que me matar para entrar na cidade”), teve que acatar
ordens do governador cuja autorização liberou a manifestação. Assim, os sem-terra, com
Rainha à frente realizaram seu percurso narrativo (percorreram as ruas da cidade e não
obedeceram a ordem do poder executivo municipal).
Os dizeres que vêm abaixo de uma das imagens fotográficas (“objetivos são: terra,
justiça e paz”) virtualizam as principais tensões mobilizadoras do discurso do jornal sobre “a
guerra contra o MST”, conforme está na manchete. Há um fortalecimento do sujeito “sem-
terra” que cresce em poder. Competente, para dilatar suas ações, o MST vai tendo suas ações
justificadas, convertendo-as em predisposição para a luta pela terra, como se tratasse de um
bem comum, a que o MST teria direito.
Se a mobilização do prefeito de Presidente Prudente contra os sem-terra foi
desencadeadora do confronto entre fazendeiros e MST, o clima de tensão no Pontal foi ainda
mais intensificado reforçado quando aconteceu a ocupação da fazenda do então Presidente
FHC.
213
Como notamos, na organização do material para o corpus, a impressão era a de
que falar da terra era falar sobre o tema do conflito como se houvesse uma gradação intensa
manifestada pela reiteração da figura lexemática “guerra” (O Imparcial, 24/01/02), que
conduz grande parte da produção jornalística de O Imparcial e Oeste Notícias. Poderíamos
nos referir aí a um discurso que permite deixar ecoar muitas vozes. Segundo Nascimento
(2004, p. 195):
[...]equivaleria a um dicionário discursivo (Groupe Déntrevernes,1984,
p.96) que se apresenta como um estoque de temas e motivos, isto é, de
configurações discursivas, ou seja, os diferentes discursos em que uma figura
lexemática ocorre. Todo texto empresta desse dicionário percursos
figurativos já realizados. [...] O dicionário discursivo tem, então, o papel de
memória cultural, ele armazena percursos figurativos antigos e incorpora
novos [...].
Explica a autora que o “estoque de figuras lexemáticas e de seus percursos
figurativos já realizados compõe o imaginário cultural de um povo.” (NASCIMENTO, 2004,
p. 195). Isso nos leva a afirmar que o sujeito enunciador de O Imparcial e Oeste Notícias
escolhe, no imaginário cultural local (do Pontal), figuras e percursos figurativos relacionados
ao conflito da terra para atribuir-lhes novos traços semânticos associados geralmente a papéis
temáticos que intensificam a idéia do mal social ocasionado pelo MST, a cada texto que vai
para a página diariamente.
A luta entre fazendeiros e MST é o fio condutor dos discursos. Ora, temos que
levar em conta que havia motivo para esse assunto estar sempre presente na mídia do Pontal.
Nunca apagado, retornava no episódio do confronto com o prefeito da cidade mais importante
da região, Presidente Prudente, acionando todo o campo semântico a que a memória dá
suporte: a terra. Como se afirma no texto “Queremos Paz e Respeito”: “[...] os (fazendeiros)
têm impedido ao longo desses vinte anos ‘a inquietação no campo’”. Se ela não era daquele
momento, passava a se instaurar, reconfigurando antigas lutas. Torna-se, portanto, mais eficaz
o poder dos proprietários rurais, aliás, sua atualização fica bastante revigorada pela força do
poder executivo local, com o próprio prefeito de Presidente Prudente assumindo o conflito.
Desse modo é como se a enunciação quisesse fazer-crer que o anti-sujeito, recebendo a
oposição direta do prefeito, não tivesse direito à luta pela terra.
Um olhar que põe lado a lado os dois jornais sugere que as diferentes vozes neles
orquestradas pressupõem um público leitor, em meio ao qual os protocolos para leitura dos
textos sobre as questões agrárias estão difundidas e são bastante homogêneos. Ou seja, O
Imparcial e Oeste Notícias, de forma respectivamente adequada ao modo de cada um,
214
parecem encenar a mesma construção de leitura das “realidades” locais. Em ambos, os textos
desdobra-se um movimento de leitura para um público que o enunciador deve atender e,
assim, construir referenciais de sentidos sobre questões agrárias, que permitam aflorar os
valores confirmatórios de papéis temáticos estereotipados induzidos pela enunciação
jornalística local. Enquanto se desdobram na mídia nacional novas imagens dos sem-terra que
adquirem novos valores, sendo considerados como protagonistas a ocupar novos espaços não
só no Brasil como também internacionalmente, o que acontece nos dois jornais do Pontal é o
trabalho para a desconstrução da imagem do MST.
Não vamos aludir de forma recorrente à rixa entre os dois jornais para não
abandonar o tema da análise. O nosso objetivo é sempre nos voltarmos para os discursos em
que se ponha a crença e a confiança na relação para validar a manutenção dos valores
ideológicos em torno do objeto valor “ terra”, supondo a relação entre aqueles que têm os
mesmos interesses sobre a defesa da propriedade rural. Mas, na construção da identidade dos
jornais, sentidos e valores atribuídos ao conflito por uma e outra empresa jornalística, têm
papel fundamental na construção dos discursos sobre as questões agrárias no Pontal.
3.2.1.3. O olhar de O Imparcial para Oeste Notícias no cenário do conflito
O Imparcial aproveitou o acontecimento da marcha do MST, ocorrida no dia 28 de
janeiro para “colocar lenha na fogueira” do conflito agrário da região. Subjacente ao clima de
tensão instaurado pela luta pela terra, instaurou-se também a possibilidade de acirramento da
competição com o órgão concorrente, Oeste Notícias, propriedade do prefeito. “Alfinetadas”
ao prefeito explicitavam-se aos olhos de qualquer leitor, mesmo os mais desatentos. A
manchete Agripino abre guerra contra MST (O Imparcial 29/01/02), contrapõe, à direita, a
imagem do líder do executivo municipal à do líder do MST, José Rainha, dividindo a página
com duas outras fotos de integrantes do movimento cujo destaque é para o vermelho das
bandeiras.
Subjacente à encenação do acontecimento, está a desconstrução da imagem do
prefeito. A contraposição entre a imagem dos dois líderes e de suas palavras, pressupõe a um
leitor competente para reconhecer a ironia entre o fato construído pela linguagem verbal e as
fotografias.
215
Na linguagem verbal, as legendas que acompanham as fotos “O prefeito Agripino
decretou ponto facultativo e prometeu barrar o MST” e “O líder José Rainha Junior comanda
manifestação: comparação com Hitler” figurativizam as ações dos dois líderes. Construídas
no pretérito (“decretou e prometeu") as ações do prefeito, contrapõem-se às de José Rainha,
construída pelo verbo “comandar”, no presente (“O líder José Rainha Júnior comanda. Essa
organização discursiva acaba por levar o leitor à veracidade das ações de Rainha. O efeito de
sentido da certeza é criado aí, simulado pela presentificação temporal que remete à
possibilidade da realização da ação (Rainha faz). Isso não se dá em relação à competência do
prefeito, que parece estar modalizado pelo querer e pelo poder, mas cuja atuação antagonista
(o poder estadual) o impede de agir.
A debreagem enunciativa impera na medida em que o enunciado tem como
referência ações pretéritas, como se tratasse de um dizer inquestionável. Cria-se o efeito de
objetividade para a obediência a ordens superiores (a intervenção do governador) contra a
qual não cabe discussão. No interior do tempo passado (“decretou e prometeu") elas levam ao
efeito de esvaziamento de força de comando. A relativização do agir da autoridade municipal
sustenta-se pelo sentido do verbo “prometer” que coloca o dizer no campo da incerteza,
apenas da promessa. Torna relevante um querer-ser do prefeito, mas posto em dúvida pelo
jornal: pode não-ser, não passando de promessa. Em contraposição, instaura-se o efeito de
sentido de certeza, preenchido pelo verbo “comandar”. A associação com Hitler, estabelecida
por Rainha, a que o jornal dá relevância, leva à associação da figura do mundo (o líder
execrável), com a do prefeito. Assim, a enunciação parece fazer-crer que José Rainha é mais
forte do que Agripino e não será impedido de agir, o que de fato aconteceu, ou seja, Rainha
comandou a marcha e o prefeito não conseguiu barrar o MST.
Essa desconstrução da imagem do prefeito é reiterada em outras edições em que se
pode observar que o jornal aproveita-se do ocorrido para expô-la negativamente, projetando-o
num fogo cruzado entre MST e o governo estadual.
Em O Imparcial de 31/01/02 retorna o tema da condenação a Oeste Notícias,
somando-se novos valores à polêmica entre proprietários rurais e sem-terra.
Vamos, então, à página.
216
Como destaque aparecem duas chamadas, uma ao lado da outra “Ato não prejudica
comerciantes” e “UDR apóia a atitude do prefeito”. Acima delas, a manchete Alckmin
desbloqueia rodovia em PP. A chamada “Intervenção do governador do Estado de SP
permite manifestação pacífica do Movimento dos Sem-Terra”, seguida de outra “Agripino é
internado no HU”, traz para o cenário do conflito os atores “as autoridades estadual e
municipal”. A enunciação parece destacar a perfórmance do governador para evidenciar a
desmoralização do prefeito da cidade que, vulnerável frente aos embates, sofre uma crise de
hipertensão (“ao chegar ao hospital, chegou a desmaiar”).
217
Chamamos a atenção para os dois acontecimentos “a intervenção do governador e
a internação do prefeito”. Se o leitor acredita que o jornal mostra fielmente a “realidade”,
esses fatos fazem sentido por si sós. Mas, lembremos que na edição de O Imparcial, de
29/01/02, quando se presencia a mise-en-scène do conflito entre o prefeito e o MST, o
enunciado privilegia a autoridade municipal. Ao invés do acontecimento, que chamava
atenção, não apenas da região do Pontal, mas de todo o Brasil, colocava-se ali em evidência o
prefeito de Presidente Prudente. O conflito naquele momento passava a ser com o governador
do Estado. Assim, da mesma forma que o leitor assistiu à construção de um duelo entre a
autoridade municipal e José Rainha, agora um dos antagonistas mudava.
O jornal busca como núcleo narrativo da reportagem a polêmica entre duas
autoridades, numa disputa de forças, em que cada um desses atores tenta fazer prevalecer sua
capacidade para dar as ordens. Ao vencedor caberia o reconhecimento, enquanto ao perdedor
só restaria a condenação. No caso do prefeito estava aí em jogo o seu percurso narrativo como
destinador manipulador da sociedade local.
A notícia em questão parece-nos que não tem como eixo gerador a questão agrária,
posta de maneira isenta, mas, entra como desencadeadora de uma sanção. Tentemos ser mais
claros. Dizemos então que um destinador-julgador (o jornal) organiza o enunciado (“Alckmin
desbloqueia rodovia em PP”), convocando o leitor a fazer o julgamento das ações do prefeito.
Convocado para a cena, a enunciação parece fazer-crer que a perfórmance do
governador do Estado, sendo um sucesso, evidencia o insucesso do percurso narrativo do
prefeito. A chamada para as matérias é construída de modo a criar a condenação da autoridade
municipal, responsabilizado duas vezes pelo insucesso de suas ações, que resultaram num
impasse. Nesse caso específico da marcha do MST pela cidade, a base opinativa e ideológica
de sustentação dos referidos textos leva à leitura da imagem dos proprietários rurais de todo o
Pontal, que foi denegrida, devido à falta de habilidade do prefeito.
Como se não participassem do relato, os enunciadores Nel Oliveira e Rodrigo
Blini, valendo-se da debreagem enunciva de pessoa, de tempo e de espaço, relatam uma
seqüência de acontecimentos sobre a marcha que teve a terra como eixo gerador das
reportagens. Assegura-se a partir desse mecanismo discursivo a explanação dos
acontecimentos, importante para que não pareça que o jornal esteja se posicionando
favoravelmente à marcha. Ambos os textos apresentam como determinante espacial do plano
discursivo a cidade de Presidente Prudente. Como espaço do conflito, as expressões “ato
pacífico em PP”, “Governador de SP desbloqueia rodovia” e “na praça Nove de Julho com
218
1.000 trabalhadores” trazem também marcas actanciais e espaciais respectivamente, o cenário
do conflito e a oposição aos atos do prefeito.
A figura emblemática do prefeito, cuja imagem se constrói como geradora da
discórdia, parece representar os contendores que lutam para obtê-la (ou para não perdê-la): “O
prefeito [...] abriu guerra contra o MST. Ele prometeu ontem barrar pessoalmente a marcha
[...] prevista para chegar hoje em Presidente Prudente”. No entanto, o tempo mostrou o erro
em suas previsões. Isso não se deu, o que representou o fracasso, um corte tanto no ímpeto do
desejo de querer barrar a manifestação como no vigor da potência de seu poder como
autoridade municipal. Tendo sua autoridade desmoralizada, fracassado, o prefeito “foi
internado no Hospital Universitário [...] e apresentava vômitos e dores abdominais”.
Interessante observar que, deflagradora do percurso narrativo, a figura da terra
paira sobre o cenário, colocando em relação os actantes, que levam a instância de enunciação
(enunciador e leitor) a transcender o acontecimento (a marcha) para a instauração de uma
outra polêmica: a disputa entre um e outro (o prefeito e Rainha; o prefeito e o governador).
Quanto aos primeiros, pertencentes a universos axiológicos divergentes, já que não
compartilham dos mesmos valores comunitários e das mesmas crenças, lutam ambos para
fazer valer seus valores. Essa disparidade ideológica provém da organização do enunciado
feita por um narrador que não assume o julgamento. Nessa organização discursiva, por meio
do discurso indireto, traz a voz dos dois actantes. Enquanto a fala do prefeito reflete ações que
permitem ao leitor reconhecê-lo investido do papel temático de arbitrário e violento. (“disse
que receberá os integrantes do MST ‘a pau’”; “que o líder [...] só entrará em Prudente se
passar por cima de seu cadáver”), na boca de Rainha é posto o antagonismo ideológico
(“Rainha comparou Agripino a Adolf Hitler, ditador alemão da Segunda Guerra Mundial”).
219
Decorridos quatro dias da marcha, o jornal insiste na relação polêmica de caráter
opositivo entre os dois líderes. Como assunto de primeira página aparece a manchete
“Agripino lamenta fuga da ‘raposa’” (O Imparcial - 02/02/02), figurativizando o líder sem-
terra como “raposa”, enquanto o prefeito está representado pelo nome próprio (“Agripino”).
Sem dúvida que o interesse de O Imparcial foi o de alimentar a contenda: expõe o
prefeito e gera textos. Como um conjunto de conhecimentos tácitos que dá significado a cada
um dos dois veículos de comunicação, essas afirmações subjacentes ao enunciado dizem
respeito ao conhecimento enciclopédico do leitor, que sabe que o prefeito é o proprietário do
jornal concorrente. Sem se expressar diretamente, o sujeito de enunciação vai construindo,
então, as afirmações implicitamente. Coloca de forma indireta a voz do prefeito e dessa
maneira deixa ouvir também a sua voz: “Prefeito insinua que fazendeiro deveria ter matado
José Rainha Júnior”. Está aí colocada a opinião (negativa) acerca da situação, levando à
desconstrução da imagem não só do prefeito – chamado diretamente pelo nome na manchete -
como também do líder sem-terra (que aparece com nome e sobrenome, refletindo, assim, uma
certa ironia).
A temática do conflito se estendeu por um incontável número de textos. O leitor
tem diante de si a importância do tema para a região, mas tem também o ataque de O
Imparcial ao Oeste Notícias. Vamos a mais um olhar sobre a primeira página que contempla o
tema do conflito agrário, por reconhecer nessa insistência, apesar da reiteração de muito que
já foi dito, a possibilidade de perceber a recriação da temática que perseguimos.
Os dizeres abaixo da manchete conduzem o leitor a um julgamento negativo sobre
a imagem do prefeito do município, com o objetivo de incriminá-lo: “Prefeito insinua que
fazendeiro deveria ter matado José Rainha Júnior, líder do Movimento dos Sem-Terra”. E
para acirrar a rixa, a chamada para a reportagem traz a fala de Rainha (“Queria saber se
Agripino tem coragem de permitir uma devassa fiscal em suas contas”) para desmoralizar o
prefeito “José Rainha afirma que prefeito não tem moral para ofendê-lo”.
220
O enriquecimento semântico do discurso, pelo uso da figura “raposa”, tem
destaque na manchete. Todo leitor é capaz de interpretá-la. Circula no imaginário dado pelas
fábulas, contos de fadas, lendas e histórias do folclore nacional esse animal que carrega o
componente de ameaça pelo traço semântico de “traiçoeiros”. Os traços de docilidade, de
adestramento colocam-no próximo até aos seus adversários e são responsáveis também por
atribuir-lhe competência. Seria capaz de manobras as mais insuspeitadas. Isso fixa o
reconhecimento de um ator matreiro cuja aproximação se torna motivo de desconfiança, de
perigo iminente. Transferindo tal representação para José Rainha, esse investimento
figurativo do líder do MST como “raposa” faz ressoar na fala do prefeito a imagem de José
Rainha como um sujeito que tem na astúcia e na traição, sua tática de luta.
A ênfase dada à manchete Agripino lamenta fuga da ‘raposa’ conduz noções
que se revestem de uma importante dimensão cognitiva do jornal O Imparcial. Embora a
importância da informação sobre a fuga de Rainha seja um fato de interesse para o leitor do
Pontal, na relevância que se dá ao prefeito, podemos inferir as conseqüências da informação.
Sem dúvida que o interesse do jornal é o de alimentar essa contenda: expõe o prefeito e gera
textos. Estamos tratando de pressupostos. Não temos por finalidade tratar da disputa entre os
dois jornais, para a comprovação da rixa entre eles.
No exercício de fazer perceptivo, a partir do ponto de vista do sujeito da
enunciação, vamos observar o fragmento de texto a seguir, mas que pode ser lido
integralmente (ANEXO, p.344). Do ponto de vista do repórter Nel Oliveira, o que parecia ser
uma ameaça para a cidade foi, na verdade, ótimo. Segundo o texto: “A avaliação é dos
próprios comerciantes estabelecidos no centro da cidade.” :
“[...] a iniciativa do prefeito [...] poderia ter gerado algum tipo de violência,
se fosse interpretada como uma provocação” [gerente da loja Cardinalli].
“Valeu como promoção pessoal, mas não foi uma alternativa (do prefeito)
politicamente correta”. “É uma forma do José Rainha demonstrar que exerce
uma forte liderança em cima desses pobres coitados” [proprietário da Gabi
Móveis].
“Eles [sem terra] até vieram aqui e realizaram algumas comprinhas”.
[proprietária da loja Popular].
“Havia uma preocupação já que estava prevista a ida deles ao Banco do
Brasil; no fim, acabaram ficando na praça e, felizmente, não prejudicou o
comércio” [presidente do Sindicato do comércio Varejista de Presidente
Prudente]. ( O Imparcial, 31 de janeiro de 2002).
Nel Oliveira, num campo onde imperam as regulações tensivas da intensidade e da
extensidade, o centro desse campo, ou seja, a fonte, é o enunciador, após seu ato de
221
percepção. É a partir da vista de um ponto, ou seja, de onde olha o repórter, do lugar
preparado por ele para seu leitor perceber os acontecimentos sobre a marcha dos sem terra,
apesar de toda a resistência do prefeito, é que se percebem os acontecimentos do enunciado. É
pela maneira desse enunciador de O Imparcial manipular a competência interpretativa de seu
leitor a fim de alcançar seus objetivos que se discursiviza a polêmica entre o jornal e o poder
executivo local. Da organização de seu discurso, trazendo uma variedade de outros discursos,
representantes da sociedade (a voz dos comerciantes da cidade), emergem sujeitos que
constroem simulacros das relações sociais da região, indicativas de diferentes visões quanto a
questões sobre a luta pela terra.
Por outro lado, quanto à imagem do prefeito, organizada por O Imparcial, o uso do
discurso direto faz com que acompanhemos o desenrolar dos pensamentos de diferentes
cidadãos que avaliaram a manifestação dos sem terra. Com o relato das vozes dos
comerciantes em discurso direto, o enunciador cria um efeito de sentido de um dizer
verdadeiro e, assim, acrescenta características à imagem que se constrói do prefeito: vaidoso,
insensato, agressivo. Ao querer ir de encontro aos sem-terra, assume os interesses da elite
agrária da defesa da propriedade. Como autoridade municipal relega o direito de ir e vir de
todo cidadão, em seu exercício da liberdade de se manifestar e circular pelo espaço urbano,
que não é só dos donos da terra, mas de todos. E, por que não, também dos adversários na luta
pela terra.
3.2.2. O Texto de opinião
Sabemos que o leitor do jornal, na procura da confirmação dos saberes, desde o
contato com os primeiros sinais de abertura (primeira página, manchete, título, sobretítulo,
fotos, etc.), aciona quase automaticamente protocolos de leitura constitutivos de seu
repertório e identificáveis por ele. Com efeito, na esfera do conhecido, a procura é sempre
pelo que não é ainda conhecido, do desconhecido, posto como novidade da/na notícia. Em se
tratando da relação entre o homem e a terra, as notícias dos dois jornais do Pontal parecem ser
sempre as mesmas. Interessante dizer que, na seleção dos textos para o corpus, a impressão
era de que estávamos sempre diante do mesmo texto. Esse efeito decorria da insistente
222
repetição da temática do conflito da terra, com a focalização no líder José Rainha, explorada
pelos dois jornais. O apelo para um dever-saber, manipulava o leitor que não poderia recusar
fatos, apesar de já tão saturados. O leitor, especialmente de Oeste Notícias (empresa do
prefeito), é aprisionado à recorrência da temática do embate entre o prefeito e os sem-terra,
numa disputa que parecia não ter fim.
Seguindo os gêneros jornalísticos, elegemos alguns textos de opinião para darmos
seqüência à nossa leitura.
Escolhemos para isso três gêneros da página “Opinião”, que, tanto em O Imparcial
quanto em Oeste Notícias têm esse título.
Se comparadas as duas páginas cujo propósito é o mesmo - apresentar textos
opinativos, fazendo jus ao próprio nome (Opinião) - fica bem demonstrada a diferença entre
os dois jornais.
Em relação à temática do conflito da terra, o leitor de O Imparcial tem sempre um
editorial para a construção desse assunto. Convém destacar que isso se dá sempre segundo um
simulacro da objetividade exigida pelo gênero, constituindo a aparência de um sujeito que
enuncia sem se assumir, levando o leitor a crer no que é dito. Assim, a ênfase para assuntos
sobre o conflito agrário na região torna-se bem evidente já no editorial, a ocupar o alto da
página. E, quando há necessidade da complementação de mais pontos de vista para o
desenvolvimento da temática, o leitor tem à direita da página, a coluna “Plantão”. Nesse
espaço, notícias comparecem junto a textos de opinião, tanto do próprio jornal quanto dos
leitores (Cartas do Leitor) prestando-se, muitas vezes, à complementação do que se põe no
“Editorial”.
Sobre o texto de opinião de O Imparcial, vamos à leitura de dois exemplares desse
gênero, que também dividem, no primeiro caderno, o espaço com o editorial. No espaço à
direita, ao lado do editorial, seguem-se sempre dois textos de articulistas da grande mídia
(Mônica Waldvogel, Alexandre Garcia, Gaudêncio Torquato, Delfim Neto, Marcos Cintra,
Carlos Monforte e outros). (ANEXO, p. 345 e 346).
Em Oeste Notícias, a ênfase ao conflito não se dá pelo editorial, mas por um outro
gênero, a charge. A ela também reservamos um momento especial para análise, num diálogo
com outros textos também opinativos.
Em se tratando do conflito agrário, o editorial em Oeste Notícias demonstra pouca
motivação para, nesse gênero, colocar em cena os atores do conflito. Foram poucos os
editoriais que o abordaram. É como se não fosse esse o lugar para a encenação dos
223
antagonistas sobre a temática da terra. Para os anti-sujeitos (os sem-terra e seu líder), o jornal
organiza, na páginaOpinião”, um cenário, que serve ao desempenho de protagonistas do
escárnio, do mal-dizer, para ser aí apreciado pelo leitor. A depreciação sobre esses
protagonistas impera na comunicação do enunciador do jornal e seu pressuposto leitor, que
assume o contrato veridictório dos conteúdos desqualificantes veiculados. Isso nos leva a
dizer que o fato de Oeste Notícias não se ter o editorial como gênero para construir a narrativa
do conflito, talvez se deva às características desse gênero. No distanciamento do sujeito,
impõe-se um certo formalismo na construção do dizer, cujo efeito de sentido é o de
distanciamento do leitor. Isso não se dá em relação ao espaço reservado às colunas (“Coluna
do Oeste”, “Coluna do Neif” e “Espaço Aberto”), onde a significação se apresenta fácil e à
mão, sem que necessite fazer relações como nos enunciados temáticos, nas construções em
que, muitas vezes, é preciso ler o implícito como nos editoriais. O leitor visita a coluna para
“lavar a alma”, extravasando seus sentimentos, fazendo circular o cerne ideológico em que a
terra é direito dos que têm a sua posse e deve ser mantida nas mãos da elite agrária. É o lugar
reservado pelo jornal para a figurativização do repúdio aos sem-terra, onde a voz desse mal
dizer flui sem censura nem da ordem da língua ou do discurso (gênero da contenção) nem da
sociedade.
Nas colunas de opinião o número de textos, poderíamos dizer, é incontável. A
grande dificuldade é mesmo escolher qual trazer para esta nossa leitura. Elegemos uma
pequena amostra, que transcrevemos a seguir. Um breve olhar pode nos levar a ratificar o
enriquecimento semântico do discurso pela figurativização a produzir efeitos de sentido da
desqualificação dos sem-terra. Para a construção de tais atores como anti-sujeitos, as colunas
de opinião se valem da temática do conflito. Por já termos abordado o conflito do MST com o
prefeito de Presidente Prudente nas leituras das primeiras páginas, estendamos o olhar para
um outro espaço jornalístico. A ocupação da fazenda do então presidente FHC reacendeu os
ânimos para a temática do conflito sobre a terra, defendida pela sociedade local com unhas e
dentes.
Observemos inicialmente a página de Oeste Notícias de 26/março/2002, que se
sustenta por textos de opinião.
224
3.2.2.1. Em Oeste Notícias
225
Toda a página pode ser vista como um exemplo para observarmos até que ponto
Oeste Notícias representa seu objetivo de criar o efeito de sentido de verdade sobre as
questões da terra. A da ética da elite agrária a moeda corrente é sempre o embate entre os
proprietários rurais do Pontal e os sem-terra.
Tendo em vista a “Coluna do Oeste” e o “Espaço Aberto”, por que nos
interessamos agora, trata-se, sem sombra de dúvida, de um espaço para consolidação do
simulacro que sustenta o universo passional dos sujeitos da enunciação no/do jornal para
desqualificar as ações do MST, realçando visão ideologoica dos donos das terras na região.
As estratégias utilizadas pela enunciação e pressupostas nos enunciados em toda a página,
visam à manipulação do leitor para a fé nos valores do grupo social dos proprietários rurais.
Revela e não mascara essa identidade social com os fazendeiros, a partir de textos
extremamente passionais. O desequilíbrio emocional pode ser depreendido, por exemplo, em
construções que, utilizando-se do fato gerador - “a ocupação das terras do então presidente
FHC” - atualiza o leitor para um fazer interpretativo sobre o embate que se concretiza no
cenário local. Coerente no espaço da Opinião do jornal, os discursos são enunciados por
aqueles que se sentem injustiçados quanto aos direitos da defesa de suas terras no Pontal e
que não estão sendo considerados como aconteceu com FHC.
Passemos à leitura dos textos.
E no Pontal
Quando acontece (sic) as invasões na região do Pontal, o ministro Raul
Jungmann não reage da mesma forma. Diferente da invasão da propriedade
do FHC, aqui o MST estraga, mata gado, coloca fogo, destrói cerca e
tratores... E o Senhor Ministro ainda vem visitá-los em solidariedade pelas as
suas ações e contra os produtores que não têm o apoio do Exército e da
Polícia Federal, como o presidente FHC.
Sem balança
A reação dos ministros (Justiça-Agrário) e do General Cardoso é estranha, se
levadas em conta que no Pontal do Paranapanema já houve mais de 400
invasões e nenhum deles se colocou da forma que estão fazendo com o caso
de FHC. Porque? O povo do Pontal é diferente do Presidente? A propriedade
do Pontal não tem amparo legal? Os proprietários do Pontal podem ser
ameaçados permanentemente pelas ações do MST? A balança da Justiça
estaria desregulada? Ou para certos casos não existe balança?
Os textos acima revelam uma enunciação passional que manifesta revolta frente
aos fatos a que faz referência. O episódio da ocupação da fazenda de FHC é trazido para
construir a imagem do dono das terras no Pontal como vítimas, desamparadas pelos poderes
maiores “Exército” e “Polícia Federal”, “ministros” (Justiça-Agrário) e “General Cardoso”.
226
Diante desse abandono, a enunciação, enquanto sujeito do fazer delegado da elite agrária é
tomada por emoções, que o arremessam a qualquer tipo de reação. Considerando-se
prejudicado nas relações sociais quanto à defesa de suas terras, só resta ao actante vitimado
desenvolver um programa narrativo que lhe ofereça a segurança. Assim, subentende-se que
ele deva interagir com outras forças actanciais. Em vez da busca habitual do objeto (a terra),
sente-se tomado pela presença ofuscante de um acontecimento que o retira temporariamente
de sua trajetória e lhe rouba parte da própria condição ativa de sujeito. Podemos dizer que o
dono da terra experimenta as funções ativa e passiva ao mesmo tempo. Sente-se como sujeito,
possuidor da força para agir, mas compreende a potencialização de forças antagonistas que
podem impedi-lo de realizar seu programa narrativo da permanência/busca de seu objeto (a
terra). Assim, os sem-terra, anti-sujeito, podem levá-lo à disjunção com a terra. Enfim,
manifestando o seu ímpeto de permanecer com a sua propriedade é que o sujeito se predispõe
a responder sensivelmente a todo e qualquer sinal imposto pelas forças antagonistas,
especialmente no momento em que se vê diante de um novo quadro narrativo atualizador de
novos anti-sujeitos, os poderes constituídos, que lhe interceptam a possibilidade de continuar
conjunto com seu objeto.
Diante da ameaça de se apartar de sua terra, o sujeito se vê diante da necessidade
de acionar seus poderes para enfrentar o anti-sujeito. Aciona a sua competência modal.
Podemos dizer então que para isso agem os enunciadores de cada texto, cuja competência dos
valores cognitivos (podem levar o leitor ao saber), seleciona perfórmances do anti-sujeito.
São sancionados negativamente e revelam o arbítrio do poder do Estado que age com dois
pesos e duas medidas (caso da comparação com as terras de FHC).
No “Espaço Aberto”, a Carta ao Editor manifesta a atuação dos anti-sujeitos.
Responsabilizados como aqueles que subtraem a força não apenas dos donos da terra do
Pontal, servem como imagem para tudo o que há de negatividade no país como um todo:
Há dias, o Brasil foi mais uma vez tomado de assalto pelos movimentos de
esquerda [...]. Em nossa cidade, pessoas que precisavam de atendimento
médico [...] foram prejudicados [...] Se somos todos iguais perante a Lei,
porque mandar 40 agentes da Polícia Federal e mais de trezentos soldados do
Exército (referência à desocupação da fazenda de FHC), se quando um
fazendeiro da região [...] foi preso e encarcerado [...] como se fosse um
marginal.
E o Brasil confirma mais uma vez que é um país sem estrutura, onde nem
mesmo as autoridades têm forças para impedir abusos como os do MST
(Oeste Notícias, 28/3/02).
227
Manifesta-se aí o abalo passional dos proprietários rurais do Pontal, que não
podendo contar com respaldo da lei (“A balança da Justiça estaria desregulada? Ou para
certos casos não existe balança.”), acionam as modalidades atualizantes “fazer-saber”.
Estamos tratando da construção do discurso nessa página que estabelece uma direção
narrativa: os enunciadores aí apresentados levam o leitor a entrar em conjunção com o saber
(as informações sobre a temática da terra), enquanto sujeitos do fazer, delegado da elite
agrária, extravasam suas inquietações. Instauram-se assim discursos que conduzem a uma
visão negativa da reforma agrária, instaurada pelo governo FHC, implicitando a provável
manipulação que sofre do MST: “FHC disse que o programa de reforma agrária - ‘nos últimos
anos foi capaz de assentar centenas de milhares de brasileiros’ - prosseguirá”. Importa
observar a convocação de vozes compatíveis com a ilusão de poder-saber e poder-fazer a
História sobre as questões em torno da defesa da propriedade rural. O importante para o
enunciador é que seu leitor creia que o sujeito “elite agrária” deva e possa agir para
transformar a situação de insegurança que toma conta do Pontal: “É preciso costurar o ‘saco’
sem fundo chamado MST [...] esse MST vai virar partido político . E daí será tarde demais”.
O anti-sujeito, afinal, estaria ganhando poder, e isso é perigoso.
Chamou-nos a atenção, também de Oeste Notícias, um texto do Espaço Aberto do
dia
28/4/2002. Transcrevemos a seguir algumas passagens, mas integralmente o texto pode ser
lido. (ANEXO, p. 347).
A invasão do patriotismo
A cada dia que passa aumentam as invasões de terra no país. A cada
dia que passa somos invadidos por insultos e badernas da desorganização
que se diz “Movimento dos Sem Terra”. [...] A população já está fatigada de
tanto conflito e violência. [...] Vamos mostrar o que acontece com as regiões
onde há conflito de terra [...] As autoridades fecham os olhos, mas nós
brasileiros, não!
Agora somos nós que pedimos justiça .
Depende de nós mudar o Brasil. [...] Não queremos ídolos de outros
países, líderes subversivos, atitudes ilícitas, nem bandeiras de guerra.
Queremos paz! Vamos arar nossa terra para colher progresso, não
facões e foices. [...] Falo em nome do cidadão trabalhador.
Ora “meu amigo”, também não tenho posses, e, se há desemprego,
fome e miséria por essas “bandas”, também há do lado de cá [...] Trabalhei
muito para conseguir o que tenho [...] Vamos trabalhar!
Rose Lima (Oeste Notícias, 28/4/02)
Todo o texto expõe o propósito de um sujeito disposto a agir e que conclama seu
leitor também a isso. Mesmo buscando argumentos sem coerência, bastante ilógicos mesmo,
“[...] arar a terra para colher progresso e não facão e foices” – só para citar um exemplo -, o
228
enunciador expõe com nitidez sua tomada de posição diante do assunto, com vistas a
desqualificar qualquer discurso dos sem-terra. Na realidade, o que vem expressa é a
conversão do estado passional de um sujeito tomado pela revolta, indignado contra um
suposto estado de coisas gerador de insegurança. A repetição da expressão temporal “a cada
dia que passa”, logo no início do discurso, traz para a superfície do texto a intensificação do
poder do anti-sujeito. O sema continuidade revela um sujeito cada vez mais
competencializado. O texto coloca à tona os conflitos de um sujeito tenso, representante do
estado de alma de todo o Pontal. Lançam-se argumentos que reforçam a tematização da “luta
contra o MST”, construindo-se, a partir daí, a conversão do estado passional (“A população já
está fatigada de tanto conflito e violência”) em ação devidamente instrumentalizada pela
modalidade do querer (“Queremos paz”; “Não queremos ídolos de outros países”; “Vamos
arar nossa terra”; “Vamos trabalhar!”). Para a efetiva realização do programa proposto, a
convocação de um ator para a função de destinador - o “eu” que se desdobra, então, em
destinador e destinatário-sujeito, vale-se do discurso passional para conclamar o leitor a se
unir à enunciação para transformar a realidade injusta. Da perspectiva do sujeito da
enunciação, tal realidade injusta relaciona-se à perda de poder da elite agrária.
Ainda circunscritos ao texto de opinião, contemplemos o fragmento a seguir.
Terça-feira, 23 de abril de 2002 - NACIONAL - OESTE NOTÍCIAS 1.7
229
Na associação com uma novela da Rede Globo, O Clone, o enunciador se põe na
defesa dos fazendeiros. Enaltece as ações do prefeito de agir contra os sem-terra, fazendo
circular a imagem desqualificante do líder dos sem-terra. Apóia-se nos sentidos habituais,
normatizados no meio dos discursos jornalísticos desenvolvidos pelo
Oeste Notícias, que se
acomodam em configurações para o gênero textual convocados para a coluna, condensadas na
desqualificação do anti-sujeito. A representação do antagonista transgride qualquer conceito
de objetividade, por que deveria se pautar o texto de uma imprensa que se diz séria. Convém
observar que escolhemos o texto acima apenas observando a temática do conflito agrário. Ele
ocupa posição de destaque na coluna à direita da página da seção “Nacional”, encabeçando
uma série de textos que se seguem no primeiro caderno.
A figurativização relativa à novela como “as leis do alcorão”, “o tio Abdul”, “o
Dr. Albieri”, relacionadas ironicamente à transgressão empreendida pelo líder José Rainha, dá
coerência ao discurso da desqualificação, afinal. A convocação do ator, avó do enunciador,
que parece não ter nenhuma coerência com o assunto “Minha avó”, entra no enunciado em
um papel que revela o estado passional do sujeito, mobilizado para intensificar ou multiplicar
o poder do sujeito “elite agrária”, por meio do desejo de “dez clones”do prefeito. Fica aí,
ainda, no epíteto “o marido da Deolinda”, a depreciação de Rainha. Já as figuras relativas ao
uso de drogas, relativas à avó, revelam o estado passional do sujeito “elite rural” que,
dessemantizado, adere à droga para poder-fazer: acreditar no milagre de clones do prefeito
para combater o anti-sujeito que parece ganhar força e cada vez mais poder.
Observando mais uma vez a “Coluna do NEIF”, passemos à publicação de
16/6/02
230
Terça-feira, 23 de abril de 2002 - NACIONAL - OESTE NOTÍCIAS 1.7
231
A materialidade discursiva firma o sentido jocoso que constitui ingrediente para a
desqualificação dos atores José Rainha e sua mulher. O efeito de sentido de deboche comanda
a enunciação, na manutenção do simulacro da certeza de cumplicidade entre enunciador e
leitor. Nesse caso, não se trata apenas de um desejo da instância enunciativa, mas da
renovação dos votos de confiança que tornam cúmplices os sujeitos implicados num quadro
de predisposição actancial típica da relação de enunciador/leitor.
Afirma Brait (1996, p. 64) que a ironia institui um enunciatário “capaz de flagrar a
contradição entre dois acontecimentos”. Esse mecanismo é recorrente nos textos acima
(“Salve a rainha”, “Nem de camburão”, “Está na hora” e “Precisa mostrar”). No primeiro
culmina no emprego da figura da rainha da Inglaterra, configurando o ridículo posto a partir
do nome do líder (Rainha), que fundamenta a comparação com a realeza.
As construções “o Zé vestido de anjo para acompanhar a procissão”, “a esposa
Diolinda”, postas no enunciado como “querida Dio”, pressupõem um leitor que saiba-fazer:
desvelar a ironia. Dessa maneira, o leitor deve interpretar o líder a partir da imagem não do
anjo, daquele que tem valores religiosos, mas de um anti-sujeito desqualificado,
irresponsável. Observe-se o papel temático de “vagabundo” uma vez que são realizados os
percursos narrativos de sentido do cultivo da terra.
3.2.2.2. Em O Imparcial
Se a ironia é recurso discursivo freqüente em Oeste Notícias, também pode ser
encontrada em textos de opinião de O Imparcial. O recurso não ganha neste a mesma
intensidade, se comparado àquele.
232
Tomando, então, um exemplar da coluna “Plantão”, folha “Opinião”, observemos
a enunciação que avalia pejorativamente o líder do MST.
Logo no título “O protegido de ontem está isolado, curtindo a prisão”consolida-se
a avaliação pejorativa do líder sem-terra. A substantivação do adjetivo “protegido”, associado
a “isolado” e ao verbo de sentido euforizante “curtindo” instituem a ironia que permite o
diálogo entre os sujeitos da enunciação. O uso do adjetivo “protegido, mesmo na
substantivação não se perde, criando um efeito de subjetivação no enunciado, trazendo o
enunciador a estabelece a cumplicidade com seu leitor.
Greimas explica que essa confiança no outro não depende do aval declarado dos
sujeitos envolvidos mas de uma espécie de contrato imaginário que prevê obrigações entre os
actantes. Assim, o enunciador constrói um simulacro do outro (Rainha) e, a partir de seu
campo subjetivo, organiza seu universo de expectativas. Mas só se efetiva esse contrato, na
233
medida em que o leitor é capaz de ler a ironia, tornando possível apreender o universo
axiológico do antagonista, interpretando a comemoração pela prisão e isolamento do líder dos
sem-terra.
234
3.2.3. Reportagem
O título Agripino diz que não apóia Alckmin, seguido do subtítulo “Prefeito
visita fazendeiro preso em Santo Anastácio e afirma que governador se esconde ‘embaixo da
cama’” constrói, mais do que fatos, a imagem do protagonista da narração (o prefeito).
Examinando brevemente a página, por trás da referencialidade do fato enunciado,
entra em ação um sujeito que, ao se instalar como terceira pessoa, cria o efeito de sentido de
distanciamento, a impressão de neutralidade em relação ao que está sendo dito. A partir de
sua observação, ele aprisiona o leitor à polêmica. Na posição de um destinador manipulador
faz crer que o prefeito criou caso com o MST, estendendo o desentendimento para o âmbito
do governo estadual. Evidentemente, o enunciatário corresponde ao perfil do leitor-alvo de O
Imparcial. Com competência para ler os simulacros construídos pelo enunciador, é capaz de
235
reconhecer a arena em que o jornal coloca o prefeito. Assim, reconhece os valores
fundamentais constituídos no confronto e concorda com o que foi instituído pelo enunciador:
criticar a autoridade municipal. Sobre essa polêmica já nos referimos quando observamos a
construção do conflito nas primeiras páginas. Mas, focalizemos agora em um outro gênero, a
reportagem.
Como um destinador julgador, o sujeito de enunciação do texto em análise, leva a
um fazer-crer, conduzindo aparentemente à sanção negativa do protagonista (o prefeito).
Pelos dispositivos de montagem da página firmam-se os efeitos de sentido de desqualificação
da autoridade não só pela imagem que captura em close o instantâneo: uma pose do prefeito,
seguida de sua fala: “O governo abriu as portas para o cangaço” que, se contrapõe à chamada
da direita: Rainha diz que prefeito não tem moral para xingá-lo de bandido. À esquerda
os dizeres do prefeito destacam sua atitude de autoridade: “Não tenho vocação de guerrilha,
mas sou prefeito”.
Nos dizeres abaixo da foto, vê-se o prefeito condenando o governo do estado,
criando assim uma oposição à autoridade de Alckmin. Quanto aos dizeres da esquerda, o
enunciador implicita que a autoridade municipal não está sendo considerada pelo governador,
revelando o clima de discórdia entre os poderes municipal e estadual.
Embora fique bastante clara a manifestação de uma instância que julga os atos do
prefeito, essa mesma instância revela os gestos de confiança e as convicções do protagonista
(o prefeito) cujo universo axiológico coincide com os valores do próprio jornal, defensor dos
donos de terras, o que, aliás, é bastante previsível por se tratar do poder dominante da região.
Essa idéia é reforçada quando destaca a afirmação do prefeito que associa o MST ao cangaço.
Se pensarmos o que significou o cangaço no imaginário social, veremos que o
MST aparece, na maioria dos textos enunciados pelos dois veículos, como um movimento
marcado por práticas violentas, tais como à do cangaço: saques em propriedades, estupros,
assassinatos, entre outras, o que justificou, na época, ação repressiva do Estado. A associação
da atuação do Movimento ao cangaço significa insistir na idéia de ilegalidade da ação dos
trabalhadores rurais e mais, acaba por reforçar a idéia de que o Movimento poderia entrar na
cidade e promover saques ao comércio e invasões das instituições públicas.
Considerando ainda o conflito entre proprietários rurais do Pontal e os sem-terra,
vamos a mais um gênero textual: a reportagem.
236
Sobre o episódio entre o prefeito e o MST, O Imparcial traz na edição do dia 31 de
janeiro duas páginas no caderno “Cidades” com três matérias sobre o assunto, conforme
podemos observar a seguir.
237
Na primeira reportagem, a afirmação “MST promove ato pacífico em PP” vem
acompanhada do subtítulo, que traz, em discurso indireto, a voz dos comerciantes da cidade
“Comerciantes dizem que a manifestação não prejudicou vendas; para alguns, bloqueio de
pista foi exagero”. Tendo à direita a foto da marcha, a reportagem ocupa metade da folha, sem
que se conceda aí nenhum espaço para a fala dos participantes. Valendo-se da embreagem
enunciva de tempo (“ontem”), de espaço (“ao lado da praça Nove de Julho, local onde”) e de
pessoa (“os sem-terra ficaram concentrados”), enuncia-se a marcha dos sem-terra, mas o foco
é mesmo para a cidade, com zoom no comércio local. Os personagens sem-terra e o prefeito
são os agentes mobilizadores do discurso dos comerciantes a que a enunciação se refere.
A tese que se implicita logo no primeiro parágrafo: “[...] os sem-terra já estiveram
em Prudente em outras oportunidades e nunca aconteceu incidente que justificasse algum tipo
de prevenção contra o Movimento” conduz o leitor à voz de um sujeito de enunciação que
simula construir um parecer - condenação da atitude do prefeito. É o ponto de vista de um
sujeito que não se mostra no texto, mas que vai construindo sua opinião à medida que se tece
o texto, confirmando, então a tese enunciada e que vai sendo comunicada ao leitor. Há
argumentos favoráveis à atuação do prefeito, mas a argumentação que se evidencia é contrária
às ações da autoridade municipal. Os comerciantes, instaurados pela enunciação como
sujeitos do discurso, por meio do discurso direto, assumem a função de destinadores-
julgadores, aplicando a sanção negativa ao prefeito. Convém esclarecer que tão somente um
se posicionou positivamente. Dentre as sanções negativas, destacamos: “[...] acho que o
prefeito errou [...]”; [...] a iniciativa do prefeito [...] não tem nada a ver”; [...] tudo não passou
de estratégia de marketing”; “Valeu como promoção pessoal, mas não foi uma alternativa
politicamente correta”; etc.
Só o presidente do Comércio Varejista da cidade, depois de um elogio, sancionou
positivamente o prefeito: “O Agripino tem feito muito por Prudente e, ao tentar impedir a
vinda do MST estava apenas buscando proteger a cidade; acho que não devemos condená-lo
por isso”.
Se as ações dos sujeitos (comerciantes) supõem um sujeito realizador (comprador)
a serviço de um projeto de realização (venda), os comerciantes nos levam a concluir que essa
esfera - ameaçada pelo anti-sujeito (os sem-terra) e que poderia comprometer o êxito de seu
percurso narrativo (a ação de compra e venda, ou seja, o comércio) – volta ao estado de
distensão quando se manifestam aliviados pela volta da situação de tranqüilidade. Não havia
238
mais motivo para a tensão. De um lado apresentava-se o temor: “Havia uma preocupação [...]
felizmente, não prejudicou o comércio”. O estado de tensão é gerado pela ansiedade de uma
possível ruptura nesse percurso narrativo (os comerciantes realizam a venda de suas
mercadoria). A atração que essas ações exercem sobre eles orienta sua atividade para um fim
preciso. Temos, assim, destacado em box no corpo do texto a fala: “Eles até fizeram algumas
comprinhas”. Cabe para essa afirmação observar que a resistência antagonista (os sem-terra),
desde que não impeça o percurso narrativo dos comerciantes, deixa de ser um perigo.
Ocupando a outra metade da página, onde estão as falas dos comerciantes, uma
enunciação em terceira pessoa traz para o enunciado a voz dos proprietários de terra,
figurativizado pelo presidente da UDR: “O presidente em exercício da UDR (União
Democrática Ruralista), Luiz Antônio Nabhan Garcia, de 43 anos, afirmou que [...]”. O texto
tem como título “Presidente da UDR admite que entidade apóia ato de Agripino”. Entram em
cena sujeitos e anti-sujeitos relacionados às questões fundiárias, num discurso bastante
previsível de um sujeito que assume a posição de destinador-julgador do MST (o presidente
da UDR). Entrecortando a fala do líder uderrista, vai também se pronunciando o sujeito
enunciador (o jornalista): “[...] o MST é o responsável pelo empobrecimento da região,
lembrando que o oeste paulista já foi considerado um dos maiores produtores de algodão e de
carne, além de dispor de grandes curtumes que, infelizmente, acabaram desativados”.
Assim, não oscila o destinador-julgador que, do começo ao fim de seu discurso,
defende o prefeito, conseqüentemente, os produtores rurais. Não condena apenas os sem-terra,
mas todos os que os apóiam, incluindo aí a alta esfera do governo federal: “[...] os produtores
rurais foram solidários à atitude do prefeito que, ao optar pelo bloqueio, não pretendeu
afrontar a lei, mas apenas chamar a atenção das autoridades para as conseqüências da ação do
MST em nossa região”.
No ataque às autoridades: “[...]como pode o governo exigir cem por cento de
produtividade de uma fazenda [...]”, o presidente da UDR condena também o então presidente
FHC: “[...] FHC cometeu um erro político grande ao indicar Raul Jungmann [...] um
comunista de carteirinha [...] que impede o diálogo entre o governo e a classe ruralista”.
Se os sem-terra não representaram ameaça para os comerciantes, conforme
afirmaram, isso não é visto no discurso da UDR que o jornalista parece apoiar. A esfera de
ação dos fazendeiros fica restrita pelas ações dos sem-terra, as quais comprometem o êxito da
conquista do objeto em jogo, a terra que os actantes opositores disputam. Eliminada a
presença do anti-sujeito, a interação entre os fazendeiros e a terra tenderia à harmonia
239
absoluta. Nesses termos, salta aos olhos do leitor a figurativização do sem-terra como anti-
sujeito cuja função é perturbadora da ordem que a UDR quer impor à sociedade. Quanto mais
se configura a presença do anti-sujeito, mais se acentua o efeito de descontinuidade entre os
actantes na sua busca pelo objeto (a terra). Intensifica-se, então, a tensão decorrente do
sentimento de falta.
Tensionados pela nostalgia, no que se refere a ações passadas (“o oeste paulista já
foi considerado um dos maiores produtores de algodão e de carne, além de dispor de grandes
curtumes, que infelizmente acabaram desativados”), o sujeito se move por um estado
patêmico que conduz à leitura de um sujeito coletivo (já que o actante figurativiza a classe
dos proprietários rurais), uma classe dividida pela tensão entre dois pólos do eixo que sustenta
a enunciação do eu/aqui/agora: as vivências do passado, as do presente e as incertezas do
futuro. Podemos afirmar que a realização da marcha dos sem-terra é vista pelos enunciadores
dos referidos textos como um fato que os faz moverem-se no território da insegurança,
mobilizados pela paixão do medo da perda da terra. O sentimento da nostalgia de um tempo
de conjunção com a riqueza proporcionada pela terra - um tempo em que não havia
mobilização e performances do anti-sujeito - permeia vários outros textos e neles se mostra o
medo, um estado de alma dos donos da terra no Pontal, construindo as condições modais
necessárias para a realização da ação da luta pela terra, do confronto com o MST. E, em se
tratando da ação de construir o discurso sobre a terra em O Imparcial e Oeste Notícias, a
nostalgia é sentimento mobilizador de inúmeras enunciações e que poderiam mesmo se
constituir em estudo à parte.
240
3.2.4. ARTIGO
3.2.4.1. Em O Imparcial
Terça-feira, 29 de janeiro de 2002 - O IMPARCIAL - POLÍTICA 4A
241
Na primeira edição, o jornal traz um extenso artigo do presidente do Sindicato
Rural de Presidente Prudente, no primeiro caderno. Com o mesmo título “Atentado (?) contra
a reforma agrária” o texto remete a um artigo do Prof. Bernardo Mançano, também publicado
em O Imparcial (ANEXO p. 348). O enunciador, autoridade nas questões agrárias da região,
assina o texto como presidente do Sindicato Rural de Presidente Prudente, Sigeyiuki Ishii.
O texto do professor serve de parâmetro à polêmica que o enunciador tenta
contestar, justificando a constante focalização na defesa dos interesses dos proprietários
rurais. A evidente ênfase na contra-argumentação vai firmando um multifacetado fio
discursivo, puxando as diversas questões polêmicas em que se insere o discurso da terra no
Pontal (a grilagem).
No plano do narrado temos um episódio de conflito que, por envolver o próprio
enunciador, vem permeado de emoções reveladas ao longo de todo o discurso. A sua esfera de
ação, ao falar em nome da elite agrária, é delimitada pela ação de um anti-sujeito que, de
acordo com o enunciador, impõe resistências: “É só comparar a produtividade das chamadas
‘terras devolutas’ antes e após o início desse malfadado movimento que trouxe a
intranqüilidade e a insegurança para nossa região”.
Esse pequeno trecho pressupõe uma série de aspectos que poderíamos levantar. A
idéia da existência das terras compreende uma fase de aquisição de competência para tanto.
Querer e/ou poder são noções que devem estar na origem dessa atuação. Se o fazendeiro tem
hoje suas terras é porque teve o desejo, a vontade de fazê-lo e/ou o poder para tanto, ele teve
também que buscar a habilidade necessária a seu empreendimento. Assim ele “soube” cultivar
as terras (“É só comparar a produtividade das chamadas ‘terras devolutas’”), porque quis e
teve competência (poder) para fazê-lo. Além do querer e do poder - que respondem por uma
fase de virtualidade das ações desse que se lançou nessa atividade de desbravar as terras do
Pontal, ele teve também as condições internas - energia física - ; e externas - a conquista do
espaço na fronteira das interdições sociais - , consubstanciadas num poder fazer: “Aqui no
Pontal há um século chegaram os primeiros pioneiros [...] em seus carros de bois, compraram
terras de boa fé [...] com a vontade férrea de desbravar e fazer a terra produzir, até com
sacrifício de suas próprias vidas”. Essa competência dos proprietários para estar de posse de
seu objeto Na esfera de ação dos proprietários rurais do Pontal está delimitada pelas ações de
outros sujeito, o sujeito coletivo (MST), que vem ganhando projeção social, sendo premiado
pelo esforço despendido de seus desejos da posse da terra. Vem lutando e ganhando o poder
de se tornar dono, na contramão de valores capitalistas, tendo o apoio de poderes
242
governamentais, da mídia: “E o Governo, o grande incentivador desses desmandos
orquestrados[...]”. “Não fosse a força da mídia capaz de transformar um simples ato de defesa
num acontecimento de vulto, o que aconteceu em Carajás [...]”
Impondo resistências, o MST compromete o êxito do percurso narrativo dos donos
da terra. Temos, de forma bastante clara, de um lado a atração que a terra exerce sobre o
fazendeiro, orientando seu discurso para um fim preciso (destruir a imagem dos sem-terra
para poder destituí-los do poder-fazer): “E o Governo [...] precisa se encontrar com a
realidade e dar solução ao problema, evitando que se destrua de vez o Pontal do
Paranapanema [...] inclusive com a proibição dos acampamentos às margens de rodovias
[...]”.
De outro lado, temos a resistência dos sem-terra, constituídos como antagonistas
que ameaçam o estado de conjunção da elite agrária com a terra.
A relação do fazendeiro com o seu objeto valor era uma espécie de fusão
desprovida de conflito interno. No tempo pretérito: “No Pontal [...] sempre existiu, isto sim,
verdadeiros agro-pecuaristas, homens de paz e de justiça, que sempre trabalharam e
contribuíram para colocar comida na mesa dos brasileiros [...] ”. Nos tempos atuais,
entretanto, depois das ações dos anti-sujeitos essa relação se modificou: “A propaganda feita
em torno das “terras devolutas e de graça’ atrai oportunistas [...] líderes com palavras de
ordem e gritos de guerra [...]”.
A terra é o objeto de disputa. Se a conquista de um é perda de espaço para o outro,
é preciso impedir que isso aconteça, eliminando a ameaça dos sem-terra. Assim, o
enunciador, autoridade social, tem que fazer-crer em seu discurso, por meio do contrato que
estabelece com o leitor do jornal. Representa, então, o papel de destinador manipulador e
julgador, como uma espécie de guardião da elite agrária, ao criar a imagem positiva desse
sujeito, dotando-o de papéis temáticos e actanciais eufóricos: “agropecuarista cidadão
honesto, trabalhador, contribuinte dos cofres públicos [...] produzindo riquezas e divisas
internacionais, integrante do quadro de responsáveis pela ORDEM E PROGRESSO de nossa
nação.”
O movimento dos sem-terra impede a garantia da conquista da terra e
perigosamente representa a instauração da legalidade de ações desestabilizadoras da
propriedade fundiária. Nesses termos, no interior dessa axiologia, o enunciador quer fazer crer
que o anti-sujeito exerce a função perturbadora da ordem , e tenta, a todo custo, negar ou
243
silenciar o discurso sobre a questão das terras griladas. É imperativo, então que se imponha a
ordem dos proprietários.
Produto de relação de contradição, submissão ou reconstrução de outros textos,
podemos afirmar que o texto só produz sentido ao ser recebido pelo interlocutor que
interpreta o discurso do outro a partir de seu próprio discurso. (AUTHIER-REVUZ, 1982).
Ao assumir a função de destinador-manipulador, o enunciador, Sigeyiuki Ishii mobiliza
valores ideológicos e, pela lógica do discurso do presidente do sindicato Rural, os fazendeiros
são o bem social; os que não os defendem, encarnam o mal. Em meio a esse tipo de discurso,
o leitor busca, a partir de todo o emaranhado de vozes do interdiscurso, as coordenadas
históricas para sustentação de sua crença na verdade que se constrói.
Pela voz do enunciador o leitor tem contato com o ponto de vista dos fazendeiros,
que, tomados pela insegurança, diante da possibilidade da perda da terra vão se delineando
cada vez mais como seres descontrolados. A construção do sentido vai sendo tecida nesse fio
da manifestação da energia interna que conduz a informação da intensidade das forças
aplicadas na busca do objeto (a terra). Permeia todo o discurso a presença da força obscura de
um “invasor” que se apodera dos valores do fazendeiro e o faz perder o controle, na medida
em que reconhece a força do anti-sujeito, que espalha o medo, contaminando todo o discurso.
Essa força se manifesta em intensidade e extensidade pois se amplia, sendo reforçada pelos
poderes políticos da nação brasileira: organizações regionais, governo do estado até chegar à
presidência da república. Todos os seguimentos passam a representar o perigo iminente,
contra o qual se deve lutar.
Do ponto de vista passional, o leitor assiste a narrativas de fatos e seus
enunciadores manifestam medo em caso de sucesso da reforma agrária. Os fatos narrados
remetem às ações dos antagonistas. Assim, quem não aceita a reforma agrária teme as ações
dos antagonistas, daqueles “oportunistas e aproveitadores, em detrimento do verdadeiro
‘homem da terra’, que produz alimentos e gera impostos” .
O enunciador, em nome do destinador-manipulador, que pode ser identificado
pelos papéis temáticos e actanciais (“verdadeiro ‘homem da terra’, que produz alimentos e
gera impostos”) apresenta e detalha os valores desejáveis pelos donos da terra: “ para viver
deve-se respeitar o direito à propriedade, à paz, ao trabalho, sem violências e sem atos de
terrorismo”. A ênfase é para negar qualquer racionalidade nas ações dos anti-sujeitos e
daqueles que os defendem. Desloca o discurso do professor Mançano, com quem estabelece a
polêmica.
244
Observando, então, o artigo “Atentado (?) contra a reforma agrária”, afirmamos
tratar-se da “força do medo” (FONTANILLE, 2003) como a presença observável de tudo o
que possa estar ligado a movimentos em defesa da reforma agrária, a uma “forma”
aterrorizante, instável e expansiva que se figurativiza nos papéis temáticos estereotipados do
actante coletivo (MST). A visão do sujeito ameaçado vai-se contaminando de uma tal forma
por essa energia que o domina e, assim, as “formas do medo” (os dizeres daquele que assina
como “educador e professor”), tornam-se “atores do medo” (“líderes com palavras de ordem
e gritos de guerra”, “massa pouco conhecedora”, “os sem-terra”, “quadros da UNESP de
Presidente Prudente”).
A manifestação dos anti-sujeitos parece não poder ser apreendida, espalhando-se
por todo o espaço externo e interno do sujeito amedrontado. A palavra “Atentado”, título
dado ao artigo do professor da UNESP, é questionada pelo sindicalista, chamando logo a
atenção para a posição de defesa a ser assumida pelos proprietários rurais. A situação é de
ameaça. Então, a presença de uma força ameaçadora, possuidora do sujeito, passa a conjugar
diferentes modalidades para a apreensão de um actante-fonte do medo: o anti-sujeito (‘visão
bastante caótica”, “reforma agrária só colecionou fracassos”, “malfadado movimento que
trouxe a intranqüilidade e a insegurança para nossa região”, “atos de vandalismo e
terrorismo”, “violência”, “formação de quadrilhas de guerrilheiros”, “assassinos de
trabalhadores”, “destruir o patrimônio daqueles que o construiu (sic) à custa de muito
sacrifício”, etc.).
Entram para o discurso do sujeito ameaçado, a eficiência da presença ameaçadora
dos “invasores” (sem-terra), que representam a “força do medo”. O efeito dessa presença
estranha vai ocupando o espaço no desenvolvimento observável de papéis temáticos e
actanciais estereotipados, numa gradação contínua: “quadrilhas de guerrilheiros, para invadir,
incendiar, roubar, matar criações”, enfim atemorizar os verdadeiros donos da terra. Associam-
se, então, duas variáveis (o desenvolvimento das formas observáveis e a intensidade de
expressão dinâmica das forças, permitindo observar o desenvolvimento textual da paixão do
medo).
Para Fontanille (2003, p. 5), o medo nada mais é do que “uma inquietude, uma
ansiedade, uma certa percepção da presença permanente ou insistente” que pode ser vista por
um observador exterior. Pode-se dizer que o leitor circula pelo campo da presença do
investimento sensível constituído pela relação de forças tensivas que exercem sobre um”eu” –
245
organizador do discurso. Desse espaço, materializado textualmente, emergem figuras cujas
inscrições discretizam o mundo sensível.
Poderíamos associar toda a movimentação dos sujeitos passionais (os proprietários
rurais) à tentativa para eliminar qualquer possibilidade de investimento positivo dos anti-
sujeitos. É o valor patêmico, nesse texto jornalístico, o efeito disfórico do “medo da perda”
que se torna o ponto de partida do espaço de “revolta”, que os sujeitos da paixão pela terra
encaixam nos meandros de suas falas. Com a habilidade de construir simulacros, vão
multiplicando e propagando a desconstrução de sujeitos outros, que são jogados para o centro
do discurso em seus papéis estereotipados. O jornal, por seu espaço crucial na comunicação
presta-se à arena de manifestações dos sujeitos passionais (produtores rurais). Instaurando o
discurso de defesa da terra como propriedade privada, instaura também o clima de
insegurança gerado pelo “medo da perda desse objeto-valor”.
Diante desse discurso tensionado e, que manifesta o conflito entre sujeitos
polêmicos, o leitor é acionado. Ora, ou ele crê no discurso ou desconfia da enunciação, de
acordo com ordens diversas de crenças, não apenas aquelas instaladas textualmente pelo
enunciador (Sigeyiuki Ishii) - que engendra a situação histórica sobre a questão da terra no
Pontal - mas, sobretudo, consideradas as que fazem parte de sua memória discursiva. Um
leitor não ingênuo, que aciona o seu “crer crítico”, pondo em dúvida a crença em um discurso
que tem por base os simulacros de sujeitos e anti-sujeitos, de acordo com o contexto
axiológico da elite agrária.
O proprietário rural – como destinador-manipulador do leitor pressuposto na
polêmica – valoriza a terra como bem para gerar riqueza: “Somos contra o atual modelo de
reforma agrária, onde se contempla (sic) oportunistas e aproveitadores, em detrimento do
verdadeiro ‘homem da terra’, que produz alimentos e gera impostos”. Aquele que não está
inserido no sistema capitalista do uso da terra como negócio (“o patrimônio daqueles que o
construiu (sic) à custa de muito sacrifício”), na defesa dos valores desse sistema, é sancionado
negativamente, por meio das figuras: “visão bastante caótica”, “visão pendente para o olho
esquerdo”, “visão desordenada”, “visão distorcida, caolha, porém, só do olho esquerdo”.
Nota-se aí o implícito, o subentendido de que o discurso do professor estaria impregnado pela
ideologia de esquerda.
Todo o arsenal argumentativo usado pelo enunciador coloca em evidência dois
grupos de atores: aqueles que ostentam o papel temático de “honestos” (os donos da terra),
figurativizados como “verdadeiros agro-pecuaristas, homens de paz e de justiça, que sempre
246
trabalharam e contribuíram para colocar comida na mesa dos brasileiros” e os outros. Os que
não defendem os interesses capitalistas do uso da terra são figurativizados disforicamente
como “oportunistas e aproveitadores, em detrimento do verdadeiro ‘homem da terra’”.
Pelo investimento actancial e temático dos acusados: “quadrilhas de guerrilheiros
para invadir, incendiar, roubar, matar criações, enfim aterrorizar os verdadeiros donos da
terra”, chega-nos o discurso do enunciador com contornos axiológicos e ideológicos bastante
definidos, que julgam o percurso narrativo da ocupação das terras no Pontal do Paranapanema
de acordo com o universo axiológico capitalista. Como tal, o fazendeiro é aquele que vê o
mundo pela ótica da propriedade, a partir de um olhar que avalia todos os acontecimentos do
ponto de vista do lucro. Por ele justifica a defesa de suas terras, não havendo motivo para
qualquer defesa dos valores humanos:
Na verdade a luta pela terra sempre existiu. Desde o descobrimento
da América, em 1500, as tribos indígenas, os Incas, Astecas e Maias deram
lugar à evolução do mundo. Aqui no Pontal há um século chegaram os
primeiros pioneiros [...] com a vontade férrea de desbravar e fazer a terra
produzir [...]. É só comparar a produtividade das chamadas ‘terras
devolutas’antes e após o início desse malfadado movimento [...].
Este movimento está querendo ficar acima da Lei e, com isso,
destruir o patrimônio daqueles que o construiu à custa de muito sacrifício
[...].
Na profusão de significantes ecoa a condição de sujeitos e de anti-sujeitos que não
deixam dúvida quanto à sua classificação social e a conseqüente sanção social. Depreende-se,
portanto, do enunciado, a sujeição do olhar do leitor a que visa o enunciador. Para fazer
prevalecer os seus argumentos ancora-se sobretudo em relatos históricos sobre a luta pela
terra para acompanharmos o desenrolar da sua polêmica com o discurso do professor
Mançano. E, considerando o discurso não apenas como um conteúdo a se transmitir, mas
também um modo de dizer, à sustentação desse dizer, a cada relato, vai-se agregando o
raciocínio de um “eu” tomado pelo sentimento que, em diversos momentos, suspende a
narrativa para inserir a sua revolta: “Vejam o que fizeram com o sr. Kurata, em Mirante do
Paranapanema. Todos têm o direito à vida, ao trabalho, etc., mas dessa regra não podem ser
excluídos os agropecuaristas que produzem alimentos.”
Em meio a imagens sobrepostas, que podem se contradizer, o discurso engendra
idéias tantas, de modo que nada parece totalmente certo nem definitivamente falso, mas
dotado de uma irremediável ambigüidade, especialmente quando se trata de questões ligadas à
terra, assunto mal resolvido judicialmente. E, sobre isso o texto faz diversas referências, num
247
acionamento da memória discursiva do leitor ao trazer o discurso sobre a grilagem das terras
(“terras devolutas antes e após o início desse malfadado movimento”, “a luta da terra sempre
existiu”, “terras devolutas e griladas”, “terras devolutas e de graça”, “fazendeiro grileiro,
latifundiário ou fazendeiro pistoleiro”). Em meio sobretudo à heterogeneidade de vozes que
se imbricam, o leitor pode ser capaz de desvelar a figurativização do “medo” - sentimento
propulsor dos protagonistas (donos das terras) que os leva à construção discursiva.
3.2.4.2. Em Oeste Notícias
A visão do sujeito ameaçado pode ser observada em diversos gêneros. Percebemos
que o medo é o grande “estado de alma” que se manifesta no artigo acima, retirado de O
Imparcial. Essa grande paixão, o medo da perda da terra, está na base de uma infinidade de
textos dos dois jornais. E isso podemos observar também no fragmento transcrito a seguir,
parte de um artigo “O País que não desejamos” retirado de Oeste Notícias, 27/6/2002, que
pode ser lido integralmente (ANEXO p. 366).
Os afilhados do Jungman, por exemplo, assaltam, saqueiam, incendeiam e
roubam, tudo sob a complacência dos olhos da justiça! Seríamos os
desprotegidos, vitimados por uma lei caolha? [...]. Se um homem do povo
arma-se de uma faca e for surpreendido na rua, poderá amargar, até, seis
anos de prisão e merecer alguns processos, entre os quais o de porte ilegal de
arma. Para o MST, essa norma não é aplicável, não vale, gerando o binômio
da indesejável apologia: ‘dois pesos, duas medidas’.
Até quando? Será que teremos de legar esse hediondo e execrável
patrimônio a nossos pósteros?
Gostaríamos, e muito, que os tentáculos da lei fossem mais justos e
coerentes, impondo-a de maneira imparcial [...]. A permissividade e o
descaso no trato das coisas mais singelas poderão [...] arrastar-nos,
inexoravelmente, para o fosso da fealdade [...].
(Artur Renato Pontes é advogado e professor)
O discurso mostra um enunciador que pode perder a qualquer momento seu
objeto-valor (a terra) por causa de um anti-sujeito (o MST). As perguntas do articulista (“Até
quando? Será que teremos de legar esse hediondo e execrável patrimônio a nossos pósteros?”)
poderiam ser lidas como: Teremos, enquanto sujeitos, competência suficiente para manter
nosso objeto-valor numa situação de disputa com os anti-sujeitos? Se existe questionamento é
porque há dúvida. E o medo se vincula a essa incerteza sobre a competência dos donos da
248
terra para permanecerem com ela. Vemos aí, portanto, o medo a partir de uma relação entre os
proprietários rurais e os sem-terra, entre o que têm a terra e forças em posições que
poderíamos chamar de antagonistas, (não apenas os sem-terra, mas os próprios órgãos
governamentais, na figura do então ministro da Reforma Agrária: “afilhados do Jungman”).
Contaminados de uma tal forma por essa energia, enunciadores manifestam, assim,
as formas do medo. O discurso do sujeito ameaçado se deixa invadir pela eficiência da
presença ameaçadora dos “invasores” (sem-terra), que representam a força do temor:
“assaltam, saqueiam, incendeiam e roubam”, tornam-se atores do medo que têm a capacidade
de manifestar um poder fazer: “arrastar-nos, inexoravelmente , para o fosso da fealdade”.
É importante ressaltar que o esquema para o ator rural redefine-se com a
incorporação do objeto modal. Assim o papel actancial daquele que “luta pela terra” pode
tornar o ator rural “sem-terra” sujeito do querer, do dever, do poder ou do saber. Modalizar é,
em princípio, ter a competência alterada. Tomemos como exemplo o querer do fazendeiro.
Ele está com a terra, mas ao tornar-se muito apegado a ela, torna-se, assim, ansioso em
relação à manutenção desse objeto. Esse “querer permanecer conjunto”, leva a uma tensão
crescente, se há um anti-sujeito que o ameaça. Situa-se então em estado de “espera tensa”. Aí
se materializa, então, um ator tenso.
A partir ainda do artigo de Artur Renato Pontes, vamos observar procedimentos
recorrentes na construção de um ator “tenso” do enunciado.
Consultando o texto, notamos que o conceito de lei a que se refere não diz respeito
ao ideal que propõe os direitos de cidadão a todos os indivíduos indistintamente. O
enunciador recorre às figuras (“lei e justiça”) que se aplicariam apenas a alguns indivíduos da
sociedade (a elite agrária), excluindo o anti-sujeito (MST). Trata-se de um efeito emocional,
que toma conta do enunciador e que não passa pelo filtro da razão, quando, numa progressão
tensiva, as emoções transbordam de seu discurso. Ao atingir o limite, atinge o ápice das
emoções, acertando em cheio o alvo: o anti-sujeito.
O destinador, que assina o texto como “advogado e professor”, tem uma reação
que lhe dá a competência para assumir o papel de sujeito atualizado, possuidor do poder e do
saber para falar. Duplamente potencializado, tem o saber da ciência jurídica e o saber
pedagógico. É um enunciador que se vê no papel de julgador da narrativa do anti-sujeito
(MST), com o dever de levar o leitor a crer no seu discurso sobre o perigo de uma provável
ação do anti-sujeito, principalmente quando se trata de “afilhados do Jungman”. Sob a
proteção do poder constituído, aumentam ainda mais as ameaças das prováveis ações. Assim,
249
é preciso que o destinador aja incontinente, atualizando sua aptidão de poder e saber,
impedindo isso por meio de seu discurso.
Como modalidade ética, o dever obedecer às leis, comparece no quadro de valores
sociais da elite agrária (desde que separe as águas para apartar dos privilegiados aqueles a
quem não é dado o direito de participar da sociedade). O destinador visa ao bem coletivo
desde que esta noção compreenda apenas os direitos de seus próprios pares. A justiça e a lei
vão sendo admitidas na orientação de um sistema axiológico restrito aos sujeitos que dividem
os mesmos valores do enunciador. Tendo poder social, vêem-se como uma espécie de
guardiões dos valores que não compartilham do “apadrinhamento com o Jungman” e que,
portanto, acreditam que devam ser protegidos.
A sobrecarga de emoção constrói a manifestação do sujeito passional que só
encontra saída na profusão de uma adjetivação de que se vale para gritar sua instabilidade
emocional. Observemos o parágrafo conclusivo:
Uma guinada radical nesse indesejável estado de coisas permitir-
nos-á que atinjamos um estágio mais promissor, em termos de sociabilidade,
politicidade, submissão às normas, e respeito às tradições democráticas,
tirando-nos dessa perspectiva triste de povo sem respeito à cultura
humanística, párias do Mundo civilizado!
Podemos ver que ele se sustenta pelo recurso lingüístico da adjetivação: “guinada
radical”, “estágio mais promissor”, “tradições democráticas”, “dessa perspectiva triste de
povo sem respeito à cultura humanística, párias do Mundo civilizado!”.
O enunciador, que hierarquiza, controla e ordena, circunscrevendo o espaço dos
atores trazidos em suas falas, vai estabelecendo a comunicação com o leitor. Constrói a
polêmica, colocando em cena os atores da instabilidade social, os anti-sujeitos (os sem-terra e
todos os adeptos dos movimentos em prol da reforma agrária). Incluem-se aí líderes e
governantes, como o então presidente FHC (pela referência a um de seus ministros,
Jungman). Transbordam por todo o texto os efeitos passionais que modalizam o
questionamento do “outro” (o anti-sujeito) - aquele que deve ser impedido de agir, que é o
perigo iminente. Ativam-se os sentimentos negativos, dos quais se pode inferir: a raiva, a
insegurança, a intranqüilidade, o medo, etc. (“os afilhados de Jungman assaltam, saqueiam,
incendeiam e roubam, tudo sob a complacência dos olhos vesgos da justiça!”).
Em um de seus estudos sobre a canção, Luiz Tatit (1994, p. 47) afirma que a
abordagem das paixões representou um ganho para a semiótica, retirando da instância do /ser/
“o seu estatuto operacional de passividade e [introduzindo] aí o germe dos conflitos (...)”.
250
Segundo ele, isso abriu caminho para uma compreensão dialética das relações juntivas, que
pedem “a diferença complementar toda vez que sujeito e objeto estão em perfeita conjunção e
que, de maneira inversa, manifesta a atração pela identidade”.
Ao afirmar que “um sujeito em conjunção plena com o objeto, ou em identidade
total, seria um ser inexistente neste mundo: um ser sem desejo e sem paixão”, Tatit explica
que para conservar o vínculo extenso com o valor, o sujeito sacrifica, a todo instante, o seu
contato intenso com o objeto correspondente ao próprio valor, fusão esta inatingível por
definição. O autor destaca aí a função do anti-sujeito que, segundo ele, desconecta o sujeito
de seu objeto provisório, provocando a reatualização de seu vínculo com o valor. Trata-se, no
enfoque actancial, de uma revitalização do contrato assumido com o destinador – guardião
dos valores – cuja tarefa primordial é a de restabelecer o devenir para garantir ao sujeito a
marcha da recuperação (TATIT, 1994, p. 48, 49).
Com base em Tatit, tendo em vista a função dos anti-sujeitos, podemos notar então
que o MST cumpre, nos discursos veiculados tanto em O Imparcial quanto em Oeste
Notícias, exatamente o papel sobre o qual se refere o semioticista: “desconectar o sujeito de
seu objeto, na marcha da recuperação”, levando os fazendeiros a se acautelarem, incentivando
a busca de proteção (justificando até mesmo o uso de armas na prevenção a possíveis ataques,
conforme podemos ver em alguns textos) em nome da proteção da sociedade como um todo.
Isso é o que se constrói nos jornais. O temor se instala por todo o leito jornalístico,
construindo atores atemorizados diante da possibilidade das ações daqueles que
representariam o perigo e, nesse cenário do medo trama-se a discursividade jornalística que
transborda do Pontal para o país: “Até quando? Será que teremos que legar esse hediondo e
execrável patrimônio a nossos pósteros?”
Se temos fé naquilo que vemos, assim ocorre com o leitor que vê a ordem cultural
modelada, transformada em significação pelo saber do enunciador. Com base no artigo acima,
“assujeita-se” à fé perceptiva, acesa pelo enunciador, que cria a imagem de um conhecedor
dos assuntos relacionados à Justiça para defender os direitos dos proprietários rurais.
Encampado na processualidade do percurso cujo núcleo da argumentação, ainda que seja
numa linguagem prolixa, tem na citação de termos latinos, de palavras eruditas, a força para
torná-lo fiador da veracidade de seus pontos de vista. O uso da linguagem jurídica (“conditio
sine qua non”, “erga omnis”) leva o leitor a reconhecer a competência do enunciador e se
deixar levar pelas proposições enunciadas, ainda que tantas delas bastante nebulosas, num
linguajar quase incompreensível.
251
No espaço das dimensões passionais, mantido pelo enunciador, vai-se ancorando o
leitor, a partir de uma rede complexa de relações predicativas que controlam a ordem de sua
visão. Rompe-se o espaço da objetividade que propõe o enunciador durante toda a enunciação
de seu discurso, pelo uso da terceira pessoa para distanciar-se do dito. Toma lugar o universo
do sensível, numa ruptura da manifestação da “justa medida” que propõe a notícia – domínio
de um discurso que expressa o contrato para oferecer a imagem de uma racionalidade, que
repousa sobre o desenvolvimento de uma fala referencial.
Por mais estabilizada que seja essa crença à verdade sustentada pelo discurso de
um “advogado e professor” (conforme o texto sustenta), sem dúvida, temos que levar em
conta o valor do objeto que está em jogo na polêmica (a terra) e sujeitos relacionados a esse
valor.
Ora, o discurso se mostra como representação de uma coletividade: “Gostaríamos
[...] para que amanhã, não nos inculpassem de erros inescusáveis, atribuindo-nos a terrível
pecha de ‘coniventes da transgressão e apologistas de um estado de franca e verdadeira
anomia’”. Afinal, que coletividade é essa? Apenas uma classe de sujeitos aí se representa. A
voz que se levanta é, sim, a de um cidadão, do meio da sociedade, competente pelo saber das
leis do Direito, dotado pelo poder falar em nome da Justiça.
Importa notar que, no impulso da enunciação passional, na pressuposição de uma
situação de interlocução com o leitor, ecoa tão somente a voz do proprietário rural como se
fosse a voz de todos os leitores do jornal. Nesse sentido, todos deveriam ser tomados pelo
temor de que se os antagonistas tiverem acesso à terra, serão levados a todo tipo de privação.
Deixando o contexto temático do conflito entre sem-terra e fazendeiros, vamos a
dois textos para observar a construção de um dos estados de alma, em que se delineia o sutil
problema da nostalgia, mobilizador do sujeito de enunciação.
O primeiro é um artigo de Oeste Notícias de 01 de agosto de 2002: Da ‘Nova
Canaã’ a território prisional.
252
O enunciado relata uma seqüência de fatos, ancorados num tempo pretérito cujo
núcleo da ação narrativa é a região do Pontal do Paranapanema. A função de sujeito,
253
assumida por um “nós” (“Castigam-nos”, “Queremos”, “Parece-nos”, “Não aceitamos”), a
que Fiorin (1996, p. 96) se refere como “plural majestático”, cria uma “esfera de
reciprocidade” trazendo o leitor a assumir as “verdades” textualizadas.
O texto vai gradativamente revelando um sujeito de estado que deseja aquilo que
já não é possível, pois trata nostalgicamente de fatos pertencentes a um tempo acabado:
“Adhemar de Barros cognominou este extremo-oeste de São Paulo de ‘A Nova Canaã’. Jânio
Quadros nos trouxe o asfalto da Rodovia [...]; Carvalho Pinto, as nossas escolas; Paulo Maluf,
os núcleos habitacionais e a urbanização [...]; Paulo Egídio Martins, o asfaltamento de todas
as vicinais do Pontal do Paranapanema”.
Poder-se-ia dizer que o enunciador não pode deixar que seus desejos se alojem tão
somente no campo das impossibilidades. Esse efeito de sentido se cria a partir do próprio uso
dos verbos que, no pretérito perfeito remetem a um valor aspectual do que já é finito, ao que
não se tem mais acesso. Quanto a essas questões, tomemos as reflexões de Fiorin “[...] com o
perfeito nosso olhar orienta-se para o exterior [...] para o mundo dos objetos e conteúdos que
o pensamento já apreendeu (e, por essa razão, vê como acabados); com o imperfeito, para o
interior, para o mundo do pensamento em devir e em processo de constituição [...]” (FIORIN,
1996, p. 155).
As reflexões acima nos levam a observar o emprego dos dois pretéritos do
indicativo: o perfeito e o imperfeito no discurso de Agripino Lima. Se o primeiro cria o efeito
de uma ação acabada, portanto o da impossibilidade de realização futura, o acionamento do
segundo tempo traz para o dizer, a continuidade. Instaura-se aí a duratividade. Aquilo que no
passado representou valores positivos para o Pontal, oferece a possibilidade de se atualizar. A
situação presente do dizer apóia-se em antecedentes favoráveis ao desenvolvimento a que o
sujeito visa resgatar no momento enunciativo de um aqui, agora da enunciação: “Quem não se
recorda do progresso da Alta Sorocabana [...]?”
É no presente da enunciação que o sujeito convoca todos seus interlocutores para
acionar a memória, trazendo as reminiscências de um passado cuja marca é eufórica. Assim,
verbos no Pretérito Imperfeito (“Tínhamos”, “figuravam”, “alinhavam”, “mantinha”, não
havia”, “constituíam”, “era”) produzem efeito de sentido de uma ação durativa, que não se
interrompia. Já a memória é acionada, produzindo um efeito de ação contínua responsável por
conduzir actantes e espaço à junção. O sujeito do presente é modalizado pelo desejo:
“Queremos: subsídios para os produtores rurais; a duplicação da Rodovia [...]; redução de
254
tributos [...]; dinamização do turismo regional; garantia do exercício do direito de propriedade
na zona rural; verbas para o custeio de uma ação social intensa [...]”.
O rol dos desejos vai sendo elencado. O leitor pode facilmente descrever as
grandezas expressas pelo enunciado. Mas, em termos mais práticos, podemos dizer que todos
os elementos apresentados pelo sujeito colocam o leitor diante de um comprometimento
emocional, na constância do estado passional vivido pelo enunciador. O sujeito de
enunciação, tomado por um estado de nostalgia, passa para um estado de revolta, acionando o
seu “poder” de autoridade que aciona seu poder dizer. Já no fim do texto ele assume a
primeira pessoa do discurso (“brado com todas as forças de meus pulmões”) e atualiza a sua
competência de dizer. O sentimento de inconformismo mobiliza o sujeito patemizado que
manifesta suas emoções (“construa os seus presídios, Governador Geraldinho, na sua terra:
Pindamonhangaba”).
Revelador de um comprometimento emocional do enunciador, achamos
importante compreender que o sentimento nostálgico de um tempo que o sujeito gostaria que
não tivesse se rompido, exibe um andamento acelerado que aponta para a ampliação de seu
universo modal. O descontrole das emoções preenche seu campo passional. Na racionalidade
discursiva, o poder fazer é assegurado pelo gesto prosaico de “bradar com as forças de seus
pulmões”.
Ao considerarmos o desejo e a necessidade na origem da ação de conduzir o
prefeito Agripino, estamos instituindo simultaneamente uma outra instância responsável pelo
desencadeamento dessas ações. De natureza social, o sujeito responde a injunções sociais
pertencentes a uma ordem que está acima do sistema de valores dele mesmo e de sua esfera
de ação. Trata-se da esfera do governo estadual, a que o poder municipal deve se submeter.
Revelada no texto como um lugar hierarquicamente superior, mas de trânsito fácil e do qual a
região antes se beneficiava no passado (“A riqueza destas plagas era decantada pelos
governantes de nosso Estado, que muito fizeram pela região”), essa instância abriga as razões
implícitas que levaram o prefeito a construir o seu discurso. Dele provém ao menos boa parte
do desejo e da necessidade que impulsionaram o seu dizer.
As figuras relativas às conquistas do passado, manifestam um estado anterior
inequívoco de conjunção entre sujeito e objeto, ou seja, o sujeito e os valores econômicos,
especialmente a terra (“o progresso econômico da Alta-Sorocabana”: “gado bovino”,
“sementes de amendoim, de algodão”; “a pujança da produção agropecuária”). Não se pode
negar que paira sobre o texto, no início, um sentimento implícito de nostalgia de um sujeito
255
patêmico, que tem saudade do passado. No interior dessa axiologia, da qual se originou esse
discurso do progresso, do desenvolvimentismo capitalista, bastou uma transformação imposta
por um anti-sujeito - que impõe resistências a tudo o que é euforizante - para que se acionasse
também a polêmica, inerente a toda narrativa.
Já que as ações do sujeito estão delimitadas pelas ações de antagonistas, a
transformação de estado concretizado no título Da Nova Canaã a território prisional, leva
aos dois espaços que figurativizam dois momentos dos sujeitos do Pontal (antes dos anos
1980 e depois dessa data) . Convém destacar a figurativização do marco temporal “80” por
remeter às primeiras ocupações de terra pelo MST.
Na figura “Nova Canaã”, o leitor aciona sua memória discursiva e associa-a à
valorização da terra como tema da glória, de sucesso econômico, que remete nostalgicamente
ao passado. Como o espaço bíblico de onde jorrava leite e mel, a figura Canaã espelha esse
momento pretérito e o sujeito, na condição de um ser cindido pela nostalgia, é o que se revela
no presente da enunciação. A figura “território prisional” remete ao presente, recobrindo
valores negativos, em que a terra é “espaço para as violentas invasões de terra”. A isso se
juntam “os ‘Andinhos’ da vida, como nossos vizinhos”.
De um lado, nota-se a atração que o objeto (associado ao “progresso econômico”,
advindo da terra) exerce sobre o sujeito da enunciação. De outro, tem-se a resistência
antagonista, que tem como sujeito adjuvante o governo do estado (“Pare com isso, Alckmin”)
que, ao impedir a junção com o objeto (Canaã), possibilita a transformação de estados
operada pelo anti-sujeito: “É que transformam a nossa dadivosa região em território
prisional”.
A relação sujeito (prefeito) e adjuvante, um antidestinador, figurativizado pelo
governador ou Estado (“Alivia-se a paulicéia dos bandidos, gerados pelo crescimento urbano
desordenado”, “extinguem o Comando de Policiamento de área, reduzindo o número de
policiais da região”) representa a descontinuidade actancial responsável pela separação e pelo
distanciamento entre o sujeito “nós” (donos de terra do Pontal) e o objeto (“dadivosa região”).
Assim, o anti-sujeito é função perturbadora de uma ordem centrada em valores de um sujeito
de enunciação que se aflige por sintomas mais emocionais do que racionais, movido pela
saudade/nostalgia de um espaço idealizado de “pujança”, “progresso econômico”, ligados ao
passado.
Sincretizando as funções de sujeito e de julgador, Agripino Lima, inconformado
na condição de sujeito, desabafa, manifestando sua indignação com as ações governamentais.
256
E, no emprego do verbo na forma imperativa, aciona toda a sua revolta incontida, de forma
autoritária e ironicamente, no uso do diminutivo, desqualificador da autoridade
governamental: “Pare com isso, Alckmin. Não aceitamos ser caixa de dejetos sociais
produzidos por uma política errônea de governo personalista e centralizador [...] construa seus
presídios Governador Geraldinho, na sua terra”.
257
3.2.5. Editorial
Em termos quantitativos, convém ratificar que O Imparcial, se comparado a Oeste
Notícias, conferiu mais destaque às questões agrárias em editoriais durante o ano de 2002.
Nesse último foi difícil encontrarmos essa temática. Foi um trabalho de garimpo achar uns
poucos editoriais. Diferentemente de seu concorrente, Oeste Notícias não reservou para o
referido gênero o mesmo tratamento.
Comum entre os dois jornais é a focalização insistente do tema da terra nos
gêneros noticiosos (reportagem, notícia). Não importando se se tratava de fatos regionais,
nacionais ou internacionais, a partir da grande diversidade de acontecimentos geradores, eles
acabavam sendo sempre cerzidos à malha da temática agrária. Interessante destacar que
alguns espaços jornalísticos têm títulos que remetem à figura “terra”. Assim, em Oeste
Notícias temos “Entre o céu e a terra” (artigos de diferentes articulistas regionais); “Problema
Fundiário” (geralmente ligado a órgãos públicos); “Campo Minado” (questões em torno dos
conflitos) e em O Imparcial: “Terra Prometida” (para problemas fundiários), “Banco da
Terra” (medidas/soluções econômicas, geralmente ligados a órgãos governamentais).
Passemos à transcrição de um trecho do Editorial, publicado em O Imparcial
(ANEXO, p. 349).
Sumiço de José Rainha ou apelo do PT devolveram tranqüilidade para o
Pontal.
O Pontal do Paranapanema está vivendo um momento de grande
tranqüilidade, desde que foi instalado o processo eleitoral no país [...].
A calmaria está causando surpresa, mas são dadas duas explicações
para isso. Uma delas diz que o líder do MST, José Rainha Filho encontra-se
foragido, com pendências a acertar com a Justiça. [...] Outra interpretação
dada é que o MST decidiu acolher o apelo do PT, que entendeu ser
prejudicial (sic) ao seu candidato Luiz Inácio Lula da Silva, as invasões às
propriedades rurais, dadas as ligações do partido com aquele
movimento.[...].
Mas essa tranqüilidade, segundo os empresários rurais não é causa
de despreocupação, porque eles indagam: o que acontecerá após a eleição na
hipótese de eleger-se um candidato mais radical entre os quatro pretendentes,
todos da esquerda?
O que se teme é que o problema fundiário não seja nunca
equacionado para evitar os prejuízos que vem (sic) ocasionando a toda nossa
região. Já há quem sugira uma iniciativa por parte do governo estadual no
sentido de buscar solução [...] Argumenta-se que não havendo uma iniciativa
[...], o problema se arrastará por mais 20 ou 30 anos [...]
(O Imparcial,
23/7/02).
258
Segundo Bertrand (2003, p. 401), “a partir de um simples enunciado descritivo,
puramente denotativo, podemos inferir ameaça ou benevolência, ciúme ou generosidade,
efeitos passionais que modalizam ‘o questionamento do outro’, ativando assim entre os
interlocutores esta ou aquela paixão”.
Se nos lançarmos a analisar os efeitos que modalizam os sujeitos da enunciação
jornalística em grande parte dos textos que constituem o corpus, sem dúvida que, nas
estratégias de persuasão dos enunciadores da temática da terra, comparece sempre o medo. De
todos os textos analisados, tomando-se os subtemas dos conflitos e das políticas agrárias,
quase todos investem na paixão do medo (se há insegurança aí está esse sentimento). No
trecho acima há a seguinte passagem que se refere explicitamente a ele: “o que acontecerá
após a eleição”, “O que se teme é que o problema fundiário não seja nunca equacionado”.
Ao examinar o editorial observamos que o discurso se divide em dois momentos.
No primeiro, constrói-se o cenário da positividade: “O Pontal do Paranapanema está vivendo
um momento de grande tranqüilidade”, “calmaria”. No segundo, entra o viés negativo,
claramente marcado para se contrapor ao clima positivo da esperança, que poderia ser criado
no primeiro momento, com a conjunção adversativa “mas”, que inicia a frase: “Mas essa
tranqüilidade, segundo os empresários rurais não é causa de despreocupação [...]”. Temos um
sentido de medo, claramente marcado como argumentação contra “eleger-se um candidato
mais radical entre os quatro pretendentes, todos da esquerda”.
A partir da situação da iminente vitória de Lula, o editorial aventa a
possibilidadede transformação do estado calmaria, paz. Como já vimos em todos os textos até
agora analisados, o percurso passional do sujeito enunciador, delegado do dono de terras no
Pontal é sempre tenso. Acreditamos que funciona como uma força na manipulação do leitor
pela intimidação que pode servir à ação, diferentemente dos medos que paralisam os sujeitos.
(FONTANILLE, 2003).
Observa-se no editorial acima a intensificação de um clima de instabilidade.
Qualquer simulacro de “despreocupação
passou a ser contaminado pelo oposto “invasões às
propriedades rurais”. Este último, o mais forte, mais valorizado, prevalece. Assim, os sujeitos
de enunciação tornam-se reféns do desconhecido, de um outro, que passou a representar o
temor. Não conseguindo conter suas emoções, revelam-se tomados por uma condição
passional. Ampliada a insegurança pela presença desse outro, figurativizado como o anti-
sujeito, passam a representantes do medo.
259
Para assistir à mise-en-scène discursiva de sujeitos da enunciação tomados pela
instabilidade passional, desestabilizadora do discurso, poderíamos nos servir dos mais
variados gêneros para ilustração. Diversos são os textos que investem na paixão do medo.
Na certeza de que “o ponto de vista é que cria o objeto”, conforme afirma Saussure
(1995, p. 15), a observação do lingüista leva-nos a reconhecer que podemos caracterizar o
enunciador do texto jornalístico como aquele que constrói a pretensa verdade, a partir de sua
perfórmance de fazer-saber. Ele enuncia seu discurso e, assim, conduz o olhar do interlocutor
para a “verdade” construída, ancorando-se sempre na experiência cognitiva e/ou sensível
elementar de todo sujeito.
Como fato externo, a hostilidade aos sujeitos sem-terra pode ser vista como
coerente com o sentimento de instabilidade e angústia (fatores internos), que toma conta
daquele que defende a propriedade rural. Esses acontecimentos interiores aparecem na
confrontação com os acontecimentos exteriores que se agigantam, na medida em que o dono
da terra vê a impossibilidade de ter domínio sobre os outros, na tentativa de afastá-los para
longe de seu objeto-valor (a sua propriedade). Esses outros invadem o campo de presença do
sujeito atemorizado, que busca recursos temáticos e figurativos para dar vazão à manifestação
passional de seus temores: “José Rainha Filho encontra-se foragido”, “essa tranqüilidade,
segundo os empresários rurais não é causa de despreocupação”, “o que acontecerá após [...]”,
“O que se teme é que o problema fundiário não seja nunca equacionado para evitar os
prejuízos que vem (sic) ocasionando a toda nossa região”.
Em se tratando das questões agrárias, o leitor de Oeste Notícias e O Imparcial tem,
não apenas o relato de fatos sobre a terra, sobretudo, sujeitos sensibilizados pela questão
fundiária. No espaço jornalístico os defensores da propriedade rural também encontram o
lugar possível para revelar estados de alma. É como se adormecesse o inteligível para remeter
ao sensível, transmitindo emoções, que transbordam das páginas. O sentimento de temor dos
sujeitos liga-se a valores sociais que desejam partilhar com os leitores dos dois jornais como
valores elementares do crer perceptivo. O horizonte da percepção dos acontecimentos
exteriores liga-se aos interesses defendidos pelo proprietário rural, constituindo o bem a ser
preservado. Qualquer situação que ameace esse valor, passa a ser temida, decorrendo em
ansiedade, que povoa um sujeito inseguro, convertido logo em atemorizado.
No campo da linguagem, considera-se a paixão, não naquilo que ela afeta o ser
efetivo dos sujeitos “reais”, mas enquanto efeito de sentido inscrito e codificado na
materialidade da linguagem. Pelas configurações discursiva inscritas no discurso, molda-se o
260
imaginário passional, valorizando assim a defesa da propriedade privada, desvalorizando
qualquer ação que possa vir de encontro a essa idéia, fazendo da paixão pela terra o motor do
trágico ou, ao contrário, estabelecendo um dever, poderíamos quase dizer, uma virtude social.
Em se tratando de notícias ou reportagens cuja temática seja a terra, acaba por
corresponder a uma dimensão contratual de uma estrutura narrativa que, de acordo com o
momento histórico, assume diferentes níveis de dramatização (o conflito objetivo, dentro do
conceito tradicional de drama). Assim, por exemplo, se o espaço rural do Brasil Colônia ou
Império deve ser visto por um ângulo de pertinência sócio-cultural de um contrato de
confiança mútua, que assegura a dialética do senhor e do escravo, do patrão e do empregado,
em espaços rurais da atualidade, a transformação da relação canônica entre a elite agrária e os
descendentes de escravos, hoje desempregados ou subempregados sem condições de acesso à
terra caracteriza-se por fundar programas de um fazer numa quase permanente situação de
desacordo na dimensão das relações sociais.
3.2.6. Charge
Vamos agora fazer a leitura do efeito de sentido do conflito agrário no Pontal do
Paranapanema em charges de O Imparcial e Oeste Notícias. Gênero que está nas páginas de
opinião de todo jornal diário da mídia impressa é definido por Houaiss (2001) como “desenho
humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por
tema algum acontecimento atual, que comporta crítica e focaliza, por meio de caricatura, uma
ou mais personagens envolvidas; caricatura, cartum”.
Inúmeras foram as charges sobre o tema “terra” em Oeste Notícias (ANEXO,
p.350 a 353) mas raríssimas em O Imparcial. Na construção desse tema em charge, os únicos
dois textos encontrados neste último jornal são os que trazemos a seguir.
Houve uma proliferação desse gênero por ocasião da marcha do MST, quando o
prefeito de Presidente Prudente tentou, em vão, impedir a manifestação dos integrantes do
movimento, que mediante a autorização do governador do Estado, entraram na cidade. A
reação dos sujeitos contrários ao percurso narrativo dos sem-terra se intensificou no ímpeto
do desejo de atacar o responsável pelo movimento, José Rainha (responsabilizado por ser “o
cabeça”, conforme vimos textualmente). Com efeito, a cada edição diária do jornal a imagem
do líder dos sem-terra era trazida à tona e desconstruída. No simulacro discursivo da charge, a
instância enunciativa de Oeste Notícias utilizou o procedimento em grau máximo para
261
concretizar o efeito da realidade de toda a denúncia contra Rainha. Utilizando-se de traços
bastante grosseiros, a caricatura do sujeito era associada à temática da infração social, da
ilegalidade, e ele, figurativizado disforicamente. Como dissemos, a figurativização do líder,
ancorado na contextualização cultural de questões sociais, políticas e econômicas, construía
os problemas agrários do Pontal como “verdade” que o leitor passava a crer como
verdadeiros. Tais ações discursivas transbordaram-se nos textos jornalísticos durante todo o
ano de 2002, se não desencadeando a ação pragmática do riso, mas atingindo seu ponto alto
quanto à ação cognitiva de sancionar negativamente a performance do movimento de
reivindicação de terra. Quanto àquele que defende o MST, tomará a charge como um exagero
sem propósito, em crítica para uma desqualificação grosseira, conduzindo ao jocoso que tende
para uma violenta ridicularização.
3.2.6.1. Em Oeste Notícias
Fundação: 02/02/1939 Presidente Prudente, quinta-feira, 28 de março de 2002 Nº 15.580 R$ 0,70
Observemos o primeiro objeto para análise da charge. Temos no texto acima a
projeção de duas vozes: a do enunciador debreado em terceira pessoa, veiculando
informações numa pretensa ilusão de objetividade e as intervenções de Lula, manifestando
262
opiniões sobre o texto aparentemente referencial. Longe de apontar para qualquer sujeito,
estabelece o diálogo com o personagem caricaturado plasticamente como Lula. Facilmente
identificado pelo leitor, a partir da estrela na camiseta e pela barba, o personagem assume a
interlocução com fatos enunciados e que remetem a acontecimentos do contexto sócio-
político daquele momento eleitoral. O candidato tem reações diferentes, de acordo com os
dois momentos documentados no texto. Divididos em quatro tomadas, estabelecem-se entre
eles relações contraditórias. Frente aos enunciados da enunciação jornalística, que deveriam
ser lidos como negativos (“PF invade Lunus e encontra mais de um milhão de reais em
dinheiro”, “Roseana cai nas pesquisas”, “Sarney detona FHC e José Serra”), contrapõe-se a
posição de Lula que os interpreta positivamente por meio de falas, reforçadas pelo recurso
retórico da gradação e destacadas pela exclamação final (“Bom!”, “Muito Bom!”, “Ótimo!”),
o que permite concluir que o candidato do PT comemora aspectos da realidade que
prejudicariam seu opositor, revertendo-se a seu favor. O estado de euforia do candidato
também se revela no plano de expressão visual do texto sincrético em que, na gestualidade do
ator, nota-se o riso hiperbolicamente manifestado em sua expressão facial. O efeito de humor
se cria, no entanto, no último quadro em que o enunciado referencial faz alusão à performance
do MST (“invade, depedra (sic) e saqueia”). Ao plano de expressão visual em que se observa
a reação do candidato, concretizada pelo choro e pela gestualidade (o traço da boca caída,
voltado para baixo, olhos fechados e mão a enxugar lágrimas) soma-se o plano de expressão
verbal em que sua fala indicia um palavrão. Por não ser conveniente ser proferido, dá-se
destaque à primeira letra, seguida das reticências e a exclamação (“M...!”), criando o efeito de
sentido da insatisfação, da tristeza do candidato.
Desse modo, o leitor reconhece a lógica de acontecimentos ligados à eleição
presidencial, observando a desqualificação de Lula, empreendida pela enunciação. A
performance do MST, sancionado negativamente pelo então candidato, manifesta portanto,
que os seus interesses eram pessoais já que rechaça a perfórmance e a maneira de agir do
MST porque poderiam prejudicar sua campanha. Desqualifica-o pelo seu vocabulário, que
não está a altura de um representante do governo quando diz palavrão (“M...”), pela sua
pretensa identidade com o MST. Interessa-nos, especialmente, observar que o dispositivo
veridictório, considerado o contexto cultural e social em que se insere a charge, remete a
questões ligadas não só à crítica a Lula, mas também ao MST. Para entendê-lo, o leitor deve
interpretar a charge dentro do conjunto maior de textos enunciados no jornal cujo alvo visado
é sempre o movimento em defesa dos sem-terra. Usando a ironia como forma indireta de
263
argumentação, de reflexão sobre o episódio das ações do MST (“invade, depedra (sic) e
saqueia fazendas”), o enunciador da charge, via enunciação, estabelece a conivência com o
leitor para denunciar e criticar Lula e o MST.
Quanto à palavra “depedra”, no lugar de “depreda”, poderíamos arriscar uma
consideração, levando em conta as implicações dos atos de linguagem, derivados de atos
falhos. Estaria aí implicada a associação a ações condenáveis do MST, com base no
conhecimento que a todos é comum, incluindo um saber específico do enunciador que lhe
atribui o fato empírico de “atirar pedras, atacar”? Sem querer afirmar, repare-se que existem
as implicações entre os fatos nos quais se baseiam a charge, de acordo com nosso
conhecimento cultural. Desempenham importante função ideológica os significados
implícitos sobre a postura do sujeito de enunciação da charge, reveladora de determinada
atitude de condenação a Lula e ao MST. A charge inseriu-se no contexto dos textos sobre a
crítica a esse movimento, que sustenta grande parte da produção jornalística de O Imparcial,
coerente com a página em que se insere “Luta pela Terra”, logo abaixo de uma reportagem
que ocupa o espaço cujo título no jornal é “Grito Pela Terra” (“Sem-terra protestam em frente
a ministério e pedem libertação dos 16 líderes presos”).
Estabelece-se um saber partilhado entre os sujeitos na/da enunciação que leva ao
riso, ao mesmo tempo em que se cria um efeito de sentido de uma verdade cujo objetivo é o
de sancionar negativamente, sobretudo, o MST, que ia de encontro à campanha de um de seus
defensores.
Não está nos limites de nossas leituras fazer uma análise detalhada de cada gênero.
Se fosse para citarmos um gênero jornalístico que poderia nos levar a páginas e páginas de
análise, sem dúvida que um deles seriam as charges. Nas dezenas delas tivemos que eleger
para a temática dos conflitos apenas algumas. Abundantes em Oeste Notícias, raras em O
Imparcial. Vamos a mais uma charge.
264
Tendo ao fundo traços que remetem à Catedral de Brasília, o leitor poderia até
mesmo perguntar por que não teria o chargista escolhido o Palácio do Planalto? Aí
enquadrado em primeiro plano está o líder do MST, José Rainha. Confirmam-no os traços
fisionômicos da caricatura (rosto magro, pescoço comprido, barba e bigode), que, juntando-se
ao boné com o emblema do MST e à bandeira, completam a iconografia desse líder. O
relógio, o celular e um envelope completam a figura caricata de um indivíduo ligado a
atividades que nada têm em comum com as tarefas rurais. Há uma inadequação à imagem dos
sem-terra, identificáveis pelo leitor. De acordo com tal imagem, o ator deveria estar portando
instrumentos de trabalho da terra (enxada, foice, etc), conforme é preconizado pela ideologia,
que só reconheceria com direito a lutar pela terra aqueles que manuseiem as ferramentas para
o cultivo do solo.
265
No título temos a remissão a uma anterioridade, na projeção de um dizer que se
refere aos “Aliados Brasileiros II ...”. Se há o II, é porque há o I. Quem seriam, então, tais
aliados? Poderíamos pensar na Igreja Católica, que comparece atrás do ator? A cruz da
Catedral, logo acima da cabeça de Rainha, nos leva a essa associação. Em discurso direto,
aparece a fala do ator que conversa com o então líder palestino, Yasser Arafat. Essa fala
permite configurar um ambiente de interlocução, instaurando um diálogo, levando o leitor a
crer na situação comunicativa entre os dois líderes. Essas projeções escolhidas pelo sujeito de
enunciação da charge, cria um efeito de sentido de realidade, de “verdade”. Ancorando-se
nesse sentido forte da situação conflitiva da terra no Pontal, associada aos conflitos entre
judeus e palestinos, o enunciador, de forma bastante verossímil, cria o simulacro da situação
sociocultural. Assim, a partir dos recursos de imagem que constroem um líder cujo
estereótipo é o de um homem da cidade e do uso de recursos verbais que apelam por meio da
repetição, para a oralidade (“num cede não! Num cede não ...!!), o texto projeta a
figurativização do líder do MST, construindo implicitamente uma imagem negativa a seu
respeito.
O enunciador busca o líder palestino para dialogar com o líder brasileiro,
projetando-os como companheiros, na intimidade, o que se confirma pelo coloquialismo da
linguagem (“num cede não”). Nessa associação entre os dois líderes, cria-se a lógica dos
acontecimentos, em que um universo de valores vai sendo identificado por um leitor que
conhece o sistema de referência. Compreende e interpreta a atitude dos dois líderes.
Compreende e interpreta o discurso da luta pela terra no Brasil, associando-o a outro contexto
(dos países árabes).
A explícita relação estabelecida pela charge leva à associação dos
fundamentalistas, muçulmanos e terroristas ao império do mal, o que é comum nos discursos
veiculados na mídia internacional, na diversidade de gêneros, especialmente encontrados em
artigos de opinião. É uma realidade flagrante em páginas e páginas dos jornais que se
dedicam a artigos de opinião com estereótipos para figurativizar fundamentos ideológicos que
povoam o discurso ocidental contra a figura do que deve ser visto como o outro, o mal.
A associação de atos do MST a atos terroristas aparece em abundância nos dois
jornais do Pontal, sempre se desenhando como atos cruéis, amedrontadores. O terrorismo,
tema associado ao da luta pela terra em nosso país, deixa de ser uma representação e passa a
ser representado como um golpe não apenas contra a propriedade, mas também como ato
contra a população pela violência de seus atos. Os integrantes do MST passam a ser vistos
266
então pela crueldade, implacavelmente hostis a políticas do lema “ordem e progresso”. Essas
associações têm, portanto, o objetivo de criar uma rejeição a qualquer ação dos integrantes
desse movimento.
Assim, o enunciador alinhava as figuras José Rainha e Yasser Arafat no âmbito de
um enquadramento ideológico. A coerência do sentido aí depreendido depende, então, da
memória discursiva ou, do dicionário discursivo do leitor que remete a cognições sociais que
lhe são comuns. E, assim, ele é capaz de ler as ocorrências dos efeitos de sentido criados,
tendo em vista uma orientação ideológica que condena qualquer possibilidade de luta pelo
direito à terra.
Na relação entre a realidade brasileira da luta pela terra e a dos países do Oriente,
confirma-se a ironia da enunciação que alinhou figuras de “José Rainha” e “Yasser” para
associar as ações terroristas ao MST. Assim, fatos (resistência dos sem-terra como a dos
palestinos, em relação à desocupação da Faixa de Gaza, não cedendo às imposições de Israel:
“num cede não !”); atores (Rainha, caricaturado e “Yasser”) e o espaço (Brasil: traços da
catedral de Brasília; Palestina: “Yasser”) constituem-se em unidades do discurso sobre a terra
no Pontal. Cada unidade participa de uma dimensão significativa que se atualiza
discursivamente, exigindo do leitor a competência interpretativa, a compreensão, e não
simplesmente a identificação.
No sincretismo de linguagens, a partir do verbal e do não-verbal, concretiza-se a
crítica à luta pela terra, aos olhos do leitor que é manipulado a crer no universo de valores que
se enuncia na charge. Na cumplicidade com o enunciador, firma-se o enunciado contrário às
lutas pela terra, consideradas ato terrorista.
267
3.2.6.2. Em O Imparcial
Contemplando a charge acima, vamos trazê-la para um diálogo com a de Oeste
Notícias, sobre a qual acabamos de fazer a leitura.
Sem que alguém assuma o dizer, chega à página a informação de um fato.
Relevante ou não para o leitor, ele fica sabendo sobre “A retirada das tropas de Israel”. A
oposição semântica, vida e morte aí se manifesta com destaque para a morte, que ocupa a
parte superior da cena enunciada por meio de figuras visuais de covas sobre a terra. A vida se
concretiza por meio da figura humana de um ator debreado em um “eu”, que entra em cena
pelo relato de suas perfórmances (“cumpri minha missão”, “dei um pedacinho de terra”). A
partir da fala do ator, depreende-se seus anti-sujeitos “eles”. A charge constrói-se à imagem
de um sujeito provocador: “Eles não queriam terra? Pronto, cumpri parte da minha missão!
Dei um pedacinho de terra para cada um!”. O efeito de sentido de autoridade é obtido pelo
destaque das figuras das covas, da sua vestimenta (terno e gravata). Ao mesmo tempo seu
autoritarismo se revela pela gestualidade do dedo em riste. Entretanto, importa também notar
a figurativização dos “outros”. Metonimicamente representam-se pelas figuras das covas onde
se vêem cruzes, metáfora da morte, confirmada pela iconização do monte de terra, levando ao
268
reconhecimento do espaço do cemitério, obtido ainda pelas figuras de um osso e um crânio
humano jogado no chão.
A cena, contextualizada pela voz de um enunciador (“A retirada das tropas de
Israel”), inscrita no título em negrito, completa-se pelos dizeres daquele que pronuncia o que
vem dentro do balão (“cumpri parte da minha missão! Dei um pedacinho de terra”).
Depreende-se daí um sujeito que parece ter a condição para realizar o programa narrativo da
doação da terra.
Relacionando o acontecimento sobre a disputa da terra entre palestinos e judeus, o
sujeito da enunciação faz crer que sempre vence aquele que tem autoridade para impor.
Retoma e reproduz valores sociais sobre as relações entre o homem e a terra, que aproximam
vida, poder e terra (no sentido de espaço geográfico, o chão). Assim, mesmo diante da
exigência (“A retirada das tropas de Israel”) dos palestinos de que os judeus lhes devolvessem
as terras, o que prevalece é a capacidade de quem tem autoridade para ditar a lei. A figura do
então líder de Israel, Ariel Sharon, cuja identificação dá-se especialmente pela estrela no
paletó (símbolo do sionismo) opõe-se às figuras dos palestinos, apresentados como os outros,
um “eles” (“Eles não queriam terra?”) a quem, ironicamente, a partir do uso do diminutivo, é
concedido um “pedacinho” de terra: a cova para acolher o corpo de “cada um”.
Retomemos a charge de Oeste Notícias, de 05 de abril, em que se ironiza a luta do
MST pela conquista da terra, associando-a à luta dos palestinos. Também na charge de O
Imparcial denuncia-se a mesma questão. Se a figura do líder brasileiro, Rainha e a do
palestino, Yasser Arafat poderiam suscitar qualquer tentativa para o programa narrativo de
luta pela terra, em O Imparcial essa tentativa parece frustrada. O enunciador sanciona
negativamente esse percurso, construindo o “humor negro”, pelo modo de interpretar e avaliar
a luta dos sem-terra, que, na obediência ao líder José Rainha, teriam o mesmo fim dos
palestinos, seguidores da orientação de Yasser Arafat. Por meio da ironia da relação imagem
da terra com as cruzes e dos dizeres “pedacinho de terra”, consolida-se um modo de
denunciar a impossibilidade de os sem-terra disputarem o espaço físico com aqueles que têm
a propriedade agrária. Diante do poder dos proprietários rurais, à semelhança dos palestinos,
estariam sujeitos a uma força comparável à do líder israelense, contra a qual é difícil ou quase
impossível lutar .
O modo de ser crítico do sujeito de enunciação usa o fato das tragédias entre
palestinos e judeus para remeter à realidade dos conflitos pela terra no Pontal. Apesar de se
269
tratar de lutas com razões tão diversas, o leitor vê os fatos e acaba por associá-los aos que
ocorrem no Brasil, especificamente na região do Pontal do Paranapanema.
Nota-se que a charge constrói o discurso do riso, mas convoca o leitor à crítica
séria como força de um recurso de manipulação. Identifica-se aí o universo dos valores da
defesa da propriedade e da condenação do MST. Assim, na charge, vão-se construindo
valores sobre a terra, com o objetivo de levar o leitor a se identificar com a ideologia que
defende os interesses da elite agrária.
Olhando a charge como ato comunicativo entre os sujeitos da enunciação em
Oeste Notícias, observamos nesse gênero muito mais do que uma maneira jocosa de dialogar
com o leitor, de construir o efeito de humor no espaço jornalístico. Além da subversão da
seriedade, entra como um gênero que procura funcionar como um meio não apenas para
criticar, mas, sobretudo, para coagir, de tão grotesca que é a condenação ao MST. Assim, o
objetivo é levar o leitor a crer na suposta “verdade”, elaborada do ponto de vista da
enunciação.
Quanto à construção de recursos de que se vale o enunciador para realizar a
persuasão do leitor para a temática do conflito agrário, podemos reconhecer que se trata de
um texto que investe “pesado” contra os antagonistas da defesa da propriedade rural.
Hipérboles plásticas e verbais dão ressonância à voz que rechaça qualquer tipo de oposição à
defesa da propriedade rural, utilizando a caricatura para desqualificar (sempre o líder dos
sem-terra) e ter o controle sobre as manifestações em prol da reforma agrária. Ao pretender
ser eficiente, ou seja, atingir o objetivo pretendido, que é persuadir o leitor a sancionar
negativamente os sem-terra, especialmente o líder Rainha, é possível observar quão intenso é
o uso dos recursos de manipulação do leitor. Desenvolvem-se, na totalidade das charges, os
recursos da linguagem tanto não-verbais quanto a verbais destinados a rechaçar qualquer
ponto de vista contrário à defesa dos donos da terra.
270
3.3. Políticas Agrárias
3.3.1. O Agronegócio
A primeira lição da leitura dos dois jornais sobre a temática da terra, durante o ano
de 2002, colocou-nos diante de textos estruturados para conduzir à condenação do MST,
tendo a figura de José Rainha como o anti-sujeito. Nesse segundo momento, o foco foi
direcionado para o “revestimento” figurativo dos textos que tratam das políticas da terra, de
acordo com os benefícios do poder econômico para novas tecnologias de proteção aos
grandes proprietários rurais.
A leitura levou-nos o tema do agronegócio e sua valorização pelos proprietários da
terra segundo os avanços proporcionados pelas políticas de apoio aos grandes investimentos.
Aflora o discurso da bancada ruralista que tem a UDR (União Democrática Ruralista) como
entidade representativa do setor. Ora, com a atenção voltada para essa temática, fomos vendo
que assumia proporções exageradas se comparadas à finalidade jornalística de transmitir
informações. É claro que devemos reconhecer que, no mundo das notícias, a noção de
relevância, especialmente quanto a interesses práticos de grupos, só pode ser definida em
termos contextuais. Assim, o que se nota é que, no cardápio de leitura, os jornais diários em
questão, além das informações sobre a luta pela terra, ofereciam como um dos pratos básicos,
o tema do agronegócio. À criação da imagem fortemente negativa de região “que pode virar
‘um Bangladesh’ [...] se tornar no futuro um lugar de miseráveis” (ANEXO p.335 e 355)
juntam-se os incentivos aos avanços tecnológicos na pecuária e na agricultura, sobretudo ao
apoio inconteste à cultura da soja.
A temática “políticas agrárias” nos textos jornalísticos de Oeste Notícias e de O
Imparcial construídos em 2002 sustentou-se pelo paradigma que relaciona o binômio
“atraso/terra para o cultivo familiar” ao binômio “progresso/terra para o agronegócio”. O que
vimos em todo o volume dos textos selecionados para nossas leituras foi a reiteração
constante de enunciações que fortalecem o tema de políticas brasileiras que dependem
acentuadamente do agronegócio e dos grandes investimentos para a modernização da
agricultura. A opção dos jornais por investirem na divulgação de uma agricultura voltada para
271
setores de exportação e industrial em detrimento das formas de organização do cultivo da
terra baseadas na família revela a insegurança da elite agrária, que tem medo da perda da
posse da terra.
Diante de um regime de propriedade que dispõe de todos os recursos, inclusive de
um dos mais fortes, como a mídia impressa para a difusão dos discursos em sua defesa, parece
não haver chance para que esse regime seja alterado. O circuito da concentração fundiária no
Pontal do Paranapanema constrói e difunde seus valores, o que leva o leitor a acreditar que é
uma enorme bobagem imaginar que entidades voltadas para a luta contra o problema da
concentração da propriedade da terra mudarão esse quadro social. Inegavelmente que, se pode
presenciar a função histórica que está sendo empreendida pelo MST, e compreender que, a
todo o silenciamento que lhe é imposto, assiste-se também ao crescimento de sua imagem, sua
ampliação, o que torna tais sujeitos, investidos no papel de anti-sujeitos, opositores do poder,
cujas condutas cada vez mais atemorizam o regime da propriedade rural. Mas, anular na lei ou
na prática o direito de propriedade e a segurança por que lutam os donos das terras seria ter
como resultado uma revolução social.
Não é nosso objetivo entrar em discussões sobre reforma agrária. O que importa é
reconhecer a construção do discurso jornalístico que manifesta a voz da força política dos
proprietários das terras no Pontal. Mas paralelamente a esse um, emerge um outro discurso, o
dos que lutam pela posse da terra. É bastante evidente o estilo conservador da elite rural, que
busca apoio nos padrões tradicionais de concentração fundiária. Esse apoio é subjacente ao
discurso dos proprietários rurais que, por outro lado, desqualifica todo aquele que poderia
reivindicar um pedaço de chão para a sobrevivência no meio rural. Nessa ótica, é bastante
freqüente vermos argumentos como um dos que aparecem no editorial, a ser contemplado
mais adiante: “Foi-se o tempo em que se acreditava que a geração de emprego no campo
dependia apenas da boa vontade de homens robustos e dispostos a, de enxadas nas mãos,
plantar, colher, criar animais.” (O Imparcial, 18/9/02). Para os enunciadores de Oeste
Notícias e de O Imparcial, a terra deve incrementar a produtividade, agindo para priorizar a
“tecnificação” do produtor rural cuja meta é a agroindústria.
Quando se trata da realidade brasileira, os modelos dos discursos sobre o tema do
cultivo da terra inscrevem-se no contexto e na tradição de valores da cultura urbana da
industrialização monolítica. Cristalizam-se discursos que se põem na defesa do uso de
técnicas de mecanização e não abrem espaço para diferentes percursos se não expressarem os
valores do grande investidor rural. A instância enunciativa utiliza sempre o mesmo discurso
272
estereotipado que faz circular as mesmas vozes, sem que se possam ouvir tantas outras. Não
se deixa ecoar qualquer ruído que poderia levar à voz daqueles que não caberiam no papel
temático de investidor da terra. Os inúmeros destituídos de recursos para participar do cultivo
agrário com recursos técnicos de produção ficam fora desse percurso narrativo do trabalho
com a terra.
Nesse sentido, é que deve ser vista a profusão de textos alicerçados pela temática
do agronegócio. A recorrência do tema do desenvolvimento agrário como única saída possível
para a região é recorrente e bastante sugestiva para análise, sobretudo quando a sua
manifestação ocorre no momento de um perigo iminente de políticas agrárias contrárias aos
interesses dos donos de terra que, avançando, levariam à eleição de um governo contrário a
esses interesses da elite fundiária. Se para o Nordeste brasileiro o problema é a seca, podemos
afirmar que para o Pontal o problema é a cerca. A ameaça que representa o MST contra a
propriedade leva o sujeito do fazer “elite agrária” a combatê-lo. Os sujeitos de enunciação
estão sempre buscando argumentos para referendar a tese de que os fazendeiros precisam agir
contra a ameaça de “perda das cercas”, figurativizando a perda da terra e, com isso, passaram
a intensificar os cuidados com as divisas de sua propriedade.
Se o então governo FHC operava a distribuição de terras e benefícios, era preciso
que os proprietários rurais contra-atacassem. A política do desenvolvimento econômico do
campo, baseado na exploração produtiva capitalista da grande propriedade entra aí como um
exemplo eloqüente dessa via do desempenho do agronegócio. Exemplo de modernidade, ele
passa a representar uma saída para fazer frente a demandas cada vez mais crescentes em
relação à distribuição de terras.
O agronegócio é fio condutor de uma grande parte dos textos nos dois jornais
analisados, trazidos para se contrapor ao discurso dos sem-terra. Se de um lado o jornal traz o
avanço do MST, de outro reforça o discurso do agronegócio.
Podemos observar como o primeiro dos jornais confirma a manifestação de
protesto contra qualquer política de incentivo ao conjunto das relações econômicas, sociais e
políticas derivadas da forma de acesso à terra:
273
3.3.1.1. Primeiras Páginas
Em termos quantitativos, O Imparcial destaca-se como o jornal que conferiu um
tratamento especial ao Agronegócio. São incontáveis os editoriais para tratar dessa temática,
com o foco direcionado sempre para a terra como espaço destinado ao cultivo da soja. Nas
primeiras páginas, o assunto não teve o mesmo destaque como observamos na temática sobre
o conflito. Se comparado ao número dos editoriais, é inexpressivo. Mas podemos destacar
algumas manchetes, seguidas do subtítulo para ilustração. Em O Imparcial:
Soja vira alternativa para região
Agricultores já produzem 720 mil sacas do grão e se unem para ter
cooperativa (28/02/02)
Meireles apóia cultivo de soja
Secretário estadual da Agricultura diz que produção do grão é suporte para
pecuária no oeste paulista. (27/3/02)
Epitácio pode perder empresas
Falta de investimento na malha ferroviária impede escoamento de soja para
portos de Santos e Paranaguá (28/3/02)
Focalizemos a primeira página de O Imparcial do dia 27 de março de 2002
274
275
À manchete Meireles apóia cultivo de soja centralizada no alto da página, diante
dos olhos do leitor, contrapõe- se, à esquerda a luta dos integrantes do movimento pela terra e
à direita da página, a luta dos proprietários rurais pela exploração das riquezas da terra. Os
discursos vêm sustentados pelo dizer de uma autoridade, a quem é delegado o saber sobre a
informação a ser transmitida, destacada pelo título: “Secretário estadual da Agricultura diz
que produção do grão é suporte para pecuária no oeste paulista”.
A fala de uma das autoridades do setor agrícola se sobressai diante daquela
conferida a um outro líder, José Rainha. Frente a frente com dois discursos, o leitor assiste à
representação dos fatos pelo sujeito da enunciação. Ora, vai depender da interpretação do
leitor, a leitura do posicionamento dos fatos enunciados, de forma inocente ou não.
A notícia à direita que se reporta à manchete em destaque, explica a importância
do agronegócio. Nota-se na primeira página, o pretenso distanciamento do enunciador que
projeta o discurso como uma metonímia da instância da enunciação (o enunciado em terceira
pessoa), obtendo com isso o efeito de sentido de objetividade. (BARROS, 1988, p. 85).
De acordo com as informações obtidas sobre a conquista das terras no Pontal, uma
das partes do cardápio necessário para a consolidação da região é a difusão dos valores
centrados como terra de investimento, terra para negócios: o agronegócio. Assim, conduzir os
leitores a esses valores, na verdade, é induzir à leitura do contexto sócio-econômico que
ancora sua vigência em um modo de produção de bens econômicos articulados à esfera do
mercado. Desse modo, fica muito distante de qualquer possibilidade de acoplá-lo a qualquer
política de terra para a produção de bens de subsistência para a população dos sem-terra. Eles
estão relegados à esquerda da página, posição que remete à sua ideologia.
Destacamos uma das primeiras páginas para ilustrar o papel que a noção de
importância e relevância dos grandes investimentos exerce em O Imparcial e Oeste Notícias.
Se colocarmos lado a lado os dois subtemas analisados, o conflito agrário e
políticas agrárias, podemos dizer que, o enquadramento ideológico da defesa da elite agrária
do primeiro se acentua em Oeste Notícias. Quanto ao destaque para este último, pode ser
associado às informações veiculadas em O Imparcial sempre em função da ideologia do
agronegócio.
276
3.3.1.2. Editorial
Para defender as políticas dos grandes empreendimentos rurais encontramos dentre
os jornais coletados algumas dezenas deles. Selecionamos alguns para ilustrar o que
acabamos de dizer, transcrevendo apenas o título de cada texto. A leitura dos títulos já lança o
leitor para verificação do destaque à temática, conduzindo à idéia central do texto.
Secretário de Governo torna realidade antigo sonho, ao viabilizar o galpão
do agronegócio (O Imparcial, 12/5/02)
A região pode reativar sua atividade rural, mas são poucos os modernos
empresários (O Imparcial, 17/5/02)
A soja poderá recolocar a nossa região na condição de grande produtora
rural (O Imparcial, 02/3/02)
Os agricultores precisam se dar conta de que o solo é sua fonte de
sobrevivência
(O Imparcial, 04/7/02)
O Estado pode apoiar a soja restabelecendo a ferrovia (O Imparcial, 26/3/02)
Agroindústria tem crescimento recorde de 8,3% (O Imparcial, 17/8/02)
O fortalecimento da agroindústria é mais uma prova da viabilidade da nossa
região (O Imparcial, 18/8/02)
A agropecuária depende cada vez mais de tecnologia para ser viável e
competitiva (O Imparcial, 18/9/02)
Passemos à leitura do editorial.
277
278
Em O Imparcial define-se a cena rural, lugar de manifestação de contratos sócio-
históricos entre sujeitos que partilham valores que são difundidos pelos discursos sobre a
suposta realidade agrária. Nessa imagem não cabem actantes cuja imagem não corresponda à
dos novos tempos, organizados nos moldes da produção agrícola em torno de uma
organização familiar camponesa, vivendo da terra. O tema da modernização respalda o
discurso do grupo social daqueles que vêm a terra como investimento financeiro, para gerar
lucro. Nessa categoria só cabem aqueles com condições para adotar a modernização,
“aplicação de recursos tecnológicos, sem os quais não haverá agricultura rentável”. (O
Imparcial, 17/5/02). E, conforme afirma o título desse editorial: “A região pode reativar sua
atividade rural, mas são poucos os modernos empresários”.
Nessa categorização está o grupo dos donos de terra com capital para investir nas
modernas tecnologias. O revestimento figurativo com o valor desejável dos avanços
tecnológicos, do agronegócio (“A agropecuária depende cada vez mais [...] de tecnologia para
se desenvolver, para ser viável e competitiva”) é reiterado pelos discursos ao longo de todo o
ano pela empresa jornalística. (ANEXO, p. 354). Em torno da crença da terra pelo seu objeto-
valor prático como fonte de lucro, a tentativa é a de manipular o leitor e, assim, consolidar
poderes, deveres, quereres e saberes (“O fortalecimento do setor é mais uma prova da
viabilidade de nossa região, mesmo diante de tantos problemas a ser superados [...] Ação no
sentido de unir forças para que nada melindre os esforços que tentam impulsionar o
desenvolvimento regional” (O Imparcial, 18/8/02). (ANEXO, p. 354)
Única forma de manter a terra como objeto valor, o agronegócio passa a ser visto
como saída para a região e o discurso é sempre o de que “a terra é a nossa mercadoria”.
Existe aí nesses textos um contrato enunciativo, um contrato de fé que o
enunciador tenta estabelecer com seu leitor, querendo levá-lo a crer que, se não aderir à
modernização do cultivo da terra, estará sujeito a perdê-la. Já o discurso dos sem-terra se
antepõe a esse discurso que veicula a ideologia da elite agrária, podendo chegar à ação. Abre-
se aí a possibilidade de analisar e interpretar tal contrato sobre a base de um modelo actancial,
temático e passional do espaço rural para conceber as relações entre sujeitos (fazendeiros,
sem-terra) em torno de um mesmo objeto (terra). De um lado a agricultura familiar, espaço da
terra como lugar para fixação do homem, de onde ele tira seu sustento. De outro, a agricultura
empresarial que tem a terra como geradora de lucro. (ANEXO, p. 355 a 359)
279
Na voz do enunciador, na aparente ausência de subjetividade, de acordo com as
exigências do gênero, visões ideológicas acerca do tema da terra e sua ocupação contrapõem-
se como “verdade” inquestionável:
Foi-se o tempo em que se acreditava que a geração de emprego no
campo dependia apenas da boa vontade de homens robustos e dispostos a, de
enxadas nas mãos, plantar, colher, criar animais. A agropecuária depende
cada vez mais, a cada dia que passa, de tecnologia para se desenvolver, para
ser viável e competitiva e, com isso, produzir divisas [...] Vale dizer também:
é fundamental contar com a tecnologia e com o desenvolvimento (O
Imparcial,18/9/02).
O leitor é conduzido a acreditar que a saída para os problemas fundiários da região
está na modernização técnica e tecnológica (“A região de Presidente Prudente sabe muito bem
o peso da agropecuária para a sustentação econômica”), daí entram em jogo recursos
linguageiros para seu convencimento. O enunciador reforça seu dizer com a repetição da
expressão “cada vez mais, a cada dia que passa” (“A agropecuária depende cada vez mais, a
cada dia que passa”). Busca um argumento de autoridade também como reforço para a
persuasão. Ao apresentar a revista “Veja”, vê nesse veículo o saber para corroborar a sua tese
(“Veja afirma [...] sem a associação do capital [...] o Brasil não teria conseguido aumentar a
competitividade no campo.”).
Amplia seu ponto de vista para a modernização da agricultura, na defesa da
monocultura da soja, de acordo com o mesmo raciocínio da defesa da terra para os grandes
investimentos. A autoridade que representa a citação da firma americana (“Camp Cooley
Ranch”) associa-se a argumentos de provas concretas, pelo apoio em dados estatísticos
(“enquanto a indústria amargou uma retração de 1,78% [...] a atividade agrária cresceu 8%”)
para que se firme o simulacro de verdade que se constrói em torno do assunto.
A “competitividade” é o motor que leva a enunciação a tentar manipular o leitor.
O editorial quer levar o virtual leitor a crer que se quer a terra, deve saber e poder ser
competente para participar da ciranda financeira (saber lançar mão dos recursos tecnológicos
e ter capital para os investimentos).
O texto explora no nível discursivo valores de “temporalidade” e de “andamento”,
associados à figura da “competitividade” (“A agropecuária depende cada vez mais, a cada dia
que passa, de tecnologia para se desenvolver, para ser viável e competitiva”), que se reportam
a categorias do nível tensivo. Quanto à noção temporal de passado/futuro, o enunciador deixa
transparecer sua predileção pelos valores intensos, aqueles que requerem um andamento
acelerado. O sujeito impaciente aguarda o futuro em sua dimensão intensa, decorrente de um
280
tipo de apressamento ou de antecipação de acordo com a máxima de que “tempo é dinheiro” e
o espaço agrário, a terra, não pode esperar.
Assim, as emoções que mobilizam os sujeitos movidos pela insegurança de manter
seu objeto valor (a terra) num mercado exigente para “produzir divisas, além de vagas no
mercado de trabalho [...] contar com a tecnologia e com o investimento”, instituem-no no eixo
da “intensidade”. É notório ver aí no editorial o encaminhamento da extensidade, da
desaceleração referentes ao tempo passado (“Foi-se o tempo em que se acreditava que a
geração de empregos no campo [...] enxadas na mão, plantar, colher e criar animais”) para a
intensidade. Instaura-se uma convivência conflituosa nas duas dimensões do andamento
(desaceleração e aceleração) pela seleção instaurada pela instância enunciativa que rejeita
sistematicamente a duração, a continuidade de um tempo da lentidão para construir o tempo
da velocidade.
Esse quadro tensivo que prevê a transformação de um programa narrativo que tem
por objeto a duração ou a extensidade (“acreditava que [...] o campo dependia da boa vontade
de homens [...], de enxadas nas mãos, plantar, colher e criar animais”) em programa narrativo
antagônico que tem por objeto a pressa ou a intensidade (“aumentar a competitividade no
campo [...] avanços tecnológicos [...] crescimento do setor agropecuário”). Em oposição ao
anti-programa narrativo que tem por objeto a desaceleração e a extensidade temporal,
manifestam-se as figuras do nível discursivo (“tecnologia viável e competitiva”,
“desenvolvimento”) que se caracterizam por conter o traço sêmico da dinamicidade. As
figuras “homens robustos e dispostos”, “enxadas na mão, plantar, colher e criar animais”
remetem aos efeitos de sentido já implicados nos próprios tempos verbais do pretérito, de
ações suspensas, que apontam para um distanciamento do presente da enunciação, criando
efeito de sentido de atraso, de anacronismo (“Foi-se o tempo em que se acreditava”,
“dependia”). Essas figuras associam-se à extensidade e, no presente, a relevância é para
valores antagônicos a tudo isso, valores da modernidade.
“Terra” constitui uma figura que permite, portanto, enfoques antagônicos, tanto no
nível tensivo, representado pelos pares modernidade/dinamicidade de um lado, e
conservadorismo/estaticidade de outro, como no narrativo. Assim, podemos dizer que “terra”
é um objeto disputado por dois tipos de sujeitos: aquele que se prende a um tempo pretérito,
querendo mantê-la com o trabalho braçal, para a subsistência, construído como o anti-sujeito
retrógrado. O outro, o que atribui à terra os valores da atualidade, aderindo às novas
tecnologias para “produzir divisas”, é o sujeito.
281
O discurso pressupõe actantes envolvidos (“setor agropecuário em nossa região”)
que manifestam confiança em relação à capacidade de conquista progressiva do objeto
comum (a terra) por meio de uma competência associada às novas tecnologias.
O enunciador constrói no editorial o simulacro ideológico em torno da terra que
quer levar o leitor a assumir e, a partir daí, organiza o universo de expectativas quanto aos
valores agrários da região do Pontal, em torno do objetivo de que o desenvolvimento
tecnológico seja “a grande perspectiva para o crescimento do setor agropecuário” do Pontal
do Paranapanema.
Se a viabilidade da exploração da terra depende da aquisição de nova competência
e adoção de novos valores, fica excluído quem não a adquire. Nesses termos, as figuras
relativas à modernidade (“tecnologia”, “associação do capital com o laboratório”)
configuram-se como estratégias discursivas associadas ao tema do desenvolvimento. A
adesão à modernidade relaciona-se a um processo geral de aceleração que equivale à
manutenção do espaço agrário. Nesse sentido, a conjunção com os objetos modais poder e
saber-fazer (ser competente para investir no agronegócio) representa a continuidade de
conjunção com ela que leva ao que tem de mais valioso em sua tendência à intensidade (“o
peso da agropecuária para a sua sustentação econômica”).
O investimento do discurso em figuras relacionadas à competitividade tecnológica
pressupõe um enunciador que reconhece os proprietários rurais da região como sujeitos
capazes de desenvolver esse percurso narrativo.
Faz sentido, então, pensar que o investimento axiológico/ideológico em torno do
tema da terra em cada texto jornalístico que circula cotidianamente, explicaria a organização
fundamental do imaginário humano, da memória, como projeção de universos coletivos? Em
outras palavras, mitos sobre a terra, discursos sociais cristalizados e arraigados na sociedade
associados ao que podemos denominar “cultura rural” poderiam ser construídos e
reconstruídos na materialidade jornalística?
Os textos levaram-nos a reparar que atores agrários, tanto os que possuem a terra
ou os que a almejam, vêm “ressemantizando” os valores rurais. Assim, os temas “a defesa do
agronegócio” vs “a defesa da pequena propriedade para a agricultura familiar” relacionam- se
respectivamente aos sujeitos e aos anti-sujeitos do cenário rural, construídos nos textos
jornalísticos.
Múltiplas são as leituras e interpretações construídas sobre o tema nos dois jornais
em questão. Descortinam-se aí planos reguladores do espaço rural do Paranapanema,
282
construindo propostas de líderes da sociedade urbana (e não da rural), cujos discursos sobre a
temática fundiária visam a propor visões ideais, muitas vezes, em contradição com a memória
da coletividade rural. Sem ter como excluir os cruzamentos possíveis com a dialética de todo
discurso, os processos de discursivização que atravessam palavras e frases nos textos
jornalísticos, põem em circulação falas contrárias, contraditórias. Num dos inúmeros textos
publicados por Oeste Notícias e O Imparcial ao lado da denúncia contra o desemprego,
aparece a defesa da monocultura da soja como a solução para os problemas da região. Os
discursos em prol do plantio da soja na região, em nenhum momento, levam em conta o
pequeno produtor. É bem visível que o empreendimento diz respeito às grandes extensões de
terra, mas discursivamente constrói-se na defesa dos interesses de todos. Reparemos algumas
passagens do editorial (O Imparcial,
01/3/02):
Nossa região dá mostras de que, com um pouco de esforço, podemos nos
desenvolver
Enfim uma notícia de alento para a região de Presidente Prudente. O
relato [...] de que existem produtores se dando bem com a soja no Pontal do
Paranapanema é algo a ser comemorado nas ruas com fogos de artifício. [...]
temos motivos para dar um basta em tanta desgraça que assola nossa região.
Mas um fato é capaz de mudar tudo, de dar novo ânimo àquilo que se achava
perdido.
É preciso que confiemos no crescimento dessa região [...] dotada de
gente empreendedora, capaz de buscar a viabilidade econômica para o
sustento naquilo em que ninguém até então confiava. Precisamos do
empreendedorismo, do exemplo dos homens que estão trazendo a soja para o
oeste paulista.
Em termos práticos, podemos dizer que todos os sujeitos que integram o cenário
do Pontal do Paranapanema apresentam-se “estigmatizados”, marcados dentro da história
particular de toda a região, transitando por um espaço tensivo cuja modulação vem
determinada pela instância enunciativa no/do jornal. A presença sensível do enunciador do
texto jornalístico determina o que vai acontecer afirmativa ou negativamente. Se os
proprietários rurais gozam de muito prestígio na comunidade, o mesmo não se pode dizer em
relação aos militantes do MST, a quem sempre são imputadas ações no campo da ilegalidade
(“tanta desgraça que assola nossa região”).
Se temos como verdade que todo ponto de vista modaliza e organiza o enunciado
(FONTANILLE, 1998), podemos dizer que o enunciado constrói um olhar e uma leitura.
Desse modo, o dizer do enunciador tanto em Oeste Notícias e O Imparcial, em geral,
representa o olhar de um sujeito coletivo (“a elite agrária”) que quer fazer crer em sua visão
de mundo em torno do tema da terra.
283
Como um macrocenário, o Pontal pode ser subdividido em cenários distintos, mas,
no entanto, os discursos jornalísticos insistem em considerá-lo globalmente. Sem levar em
conta a diversidade, como se tratasse de um espaço rural único, o ponto de vista do fazendeiro
- que sempre sai em defesa do agronegócio - é o que deve prevalecer. Textos que se reportam
a tema relacionados à grandes transformações experimentadas pelo campo, com a entrada de
máquinas para a adoção de monoculturas ou a transformação do espaço geográfico para
abrigar quase tão somente o gado e as grandes extensões agriculturáveis, insistem em se
sobrepor a outros que venham colocar o homem como centro dos interesses sobre o uso da
terra. Sobre esses valores retomemos novamente o editorial de O Imparcial,18/9/02.
Foi-se o tempo em que se acreditava que a geração de empregos no campo
dependia apenas da boa vontade de homens robustos e dispostos a, de
enxadas nas mãos, plantar, colher e criar animais. A agropecuária depende
cada vez mais, a cada dia que passa, de tecnologia [...] para ser viável e
competitiva e, com isso, produzir divisas [...]
As mudanças de cenário que vêm se registrando em todo o espaço rural brasileiro
levam a considerar a terra como espaço para a produção agrícola e para a pecuária, estando
reservada para o homem a cidade como o espaço para se estabelecer. Os textos estao sempre
voltados para reiterar o ponto de vista de que “a terra é a principal mercadoria regional” (O
Imparcial, 16/5/02); “o nosso principal produto é a terra” (editorial: Que a região encontre na
Fundação uma força auxiliadora para o desenvolvimento - O Imparcial, 05/7/02). Trata-se de
enunciados que constroem o espaço rural como lugar que, do ponto de vista ideológico, deve
associar- se ao investimento e ao lucro.
284
3.3.1.3. Artigo
Interessa-nos observar o texto como veiculador de valores e, levar o leitor a crer
neles, a aceitá-los. Estrategicamente construído, o destaque em caixa alta para o nome do
enunciador evidencia o efeito de sentido de credibilidade, que o jornal a ele atribui. Maior do
que o próprio título da matéria, a citação do nome parece corroborar a sintonia do veículo
com o ponto de vista do enunciador.
Se assumir um dizer em primeira pessoa cria um efeito de sentido de
subjetividade, o enunciador trata logo de trazer o leitor para junto de seu dizer, incluindo-se
no enunciado (“Devemos colher”). Mas, esse uso, se associa principalmente à competência do
enunciador, economista respeitado pela elite agrária, tendo não só o saber como também o
poder para falar por todo um sujeito coletivo. O que diz não vem de um “eu”, mas de uma
285
autoridade competente para afirmar que “Não é o resultado imaginado (...) mas a agricultura
voltou a responder positivamente”.
Querendo evocar a verdade sobre o que é dito, espalha a tese principal de forma
tão racionalizada como se fosse assumida por toda a coletividade brasileira: “Devemos colher
uma excelente safra”, “ Poderíamos contabilizar”, “Nós estamos assistindo agora”, “vamos
tentar entender”.
É perceptível o uso de dados estatísticos (“safra de grãos da ordem de 98 milhões e
500 toneladas de acordo com o IBGE”) que funcionam como argumentos cujos efeitos de
sentido de veracidade não deixam nenhuma suspeita sobre as informações. De um lado a
informação: “a agricultura voltou a responder positivamente este ano [...] o objetivo de
alcançar a produção de 100 milhões de tonelada [...] ultrapassar o marco dos 100 milhões”.
De outro, a partir de análises e interpretações, opiniões sustentadas em números conduzem a
crença numa agricultura brasileira que a qualquer custo deve se tornar competitiva em relação
aos mercados estrangeiros. Constrói-se, dessa maneira, o reconhecimento de que a saída é
“investir em novas técnicas de cultura”, visando à produção para exportação.
Pensamos neste artigo, inserindo-o no diálogo com todos os outros textos que
compõem a malha textual jornalística. Ele só importa na medida em que pode ser articulado
com o discurso sobre a defesa das questões agrárias instaurado em todo o jornal. É um texto
coerente com os efeitos de sentido de verdade, criados para levar o leitor de O Imparcial a
crer em uma visão ideológica reiterada no enunciado “Prestigiar a agricultura” que fortalece
o ponto de vista da enunciação sobre as políticas agrárias que se reitera nos diversos gêneros
textuais.
O Imparcial parece disposto a insistir na construção do discurso da terra como
espaço para empreendimentos. Os editoriais garantem a instauração da voz que propaga esse
ponto de vista, mas busca reforço em outros veículos de comunicação. Na perfeita sintonia
com o dizer de Delfim Neto, o artigo funciona no espaço do jornal como sustentação para a
tese defendida de que o leitor deve reconhecer os valores sobre a defesa das novas políticas
fundiárias. A inclusão do artigo implica a exploração do jogo de imagens que a instância
enunciativa do jornal constrói de si mesma como instituição jornalística empenhada em
privilegiar fatos e opiniões capazes de convencer o leitor, levando-o a crer no universo
axiológico que defende.
286
3.3.1.4. O texto de opinião
Evidencia-se, no texto acima, a defesa do agronegócio pelo enunciado jornalístico,
que se revela como porta-voz do sujeito de estado (elite agrária), por sua vez, dependente de
um destinador (“representantes políticos”) que crie as possibilidades para a ação de
impulsionar “o desenvolvimento”. A voz do jornal pressupõe a inclusão dos atributos modais
de “saber escolher bem” e poder ser competente para dar os “votos para” eleger o candidato
que responda ao andamento das expectativas para viabilizar “o projeto Bolsa de Parcerias e
Arrendamento de Terras, para a produção intensiva de soja”.
Observem-se os fragmentos a seguir: “Na verdade precisamos de representantes
políticos que não apenas tenham intimidade com os problemas de nossa região, mas [...]
encontrar soluções , principalmente no campo da economia”. Vemos aí um enunciador que se
mostra preocupado e se mobiliza para acelerar o processo de convencimento do leitor para
que reconheça a urgência da realização do ponto de vista de eleger representantes políticos
287
competentes, pois “este é o momento de termos porta-vozes de nossas reivindicações que
atuem com eficiência”.
Esse quadro tensivo que prevê a transformação do sentimento da espera do
contexto político por meio da aquisição de uma competência: “saber escolher bem” dará ao
leitor a possibilidade para estabelecer a oposição ao passado, quando, segundo afirma:
“Nossas dificuldades nasceram com o esvaziamento da atividade rural há algumas décadas”.
O enunciado “movimentará toda a cadeia produtiva”, aplicado à noção de defesa do progresso
e da modernização, conjuga-se à isotopia do agronegócio, valorizado euforicamente. Vincula-
se, assim, ao projeto geral dos discursos que veiculam o tema da terra, valorizando-o como
espaço para “circulação do dinheiro e com ele o aumento de nossa participação na massa
tributária [...]”.
A figura de “candidatos que conheçam bem” os problemas do Pontal, ou seja,
dotados de uma competência modal (saber) que prima pela eficiência reitera a imagem de um
ator, construído pela enunciação, como representante da elite agrária. Na reiteração temática
da exploração da terra para os grandes negócios, conforme se pode constatar nos editoriais, há
a recorrência léxica, em que se nota a insistência em figuras associadas à grandiosidade, à
competitividade, ao prestígio, aos altos lucros: “prestigiar”, “alcançar a produção de 100
milhões de toneladas”, “ultrapassar o marco”, “salto de produtividade”, “ingressar no
mercado americano”, etc.
288
3.3.1.5. Notícia
Consideremos o texto acima para observar a construção de um enunciado
resultante das estratégias de um enunciador que almeja levar o leitor a saber sobre um projeto
e crer nele: “Bolsa de Parcerias de Arrendamento de Terras”.
De acordo com o gênero “notícia”, o sujeito que organiza os dizeres não se
manifesta diretamente no enunciado. Nesse distanciamento do dito, cria-se o efeito de sentido
de objetividade. Por meio da projeção de atores que se tornam interlocutores do assunto,
instaura-se o diálogo entre eles. A fala em discurso direto permite configurar um ambiente
locutivo que constrói uma presentificação da cena da reunião entre “empresários, produtores
rurais, sincalistas e prefeitos de toda a região para tratar da implantação de um projeto sobre
questões agrárias: “Bolsa de Parcerias de Arrendamento de Terras”.
As projeções das falas das autoridades (“secretário da Agricultura do Estado de
São Paulo”, “O engenheiro agrônomo, idealizador e responsável pelo projeto”) levam a um
efeito de sentido de realidade, ou seja, a notícia é um simulacro da verdade que ressalta a
importância da monocultura da soja para a região. Nesse contexto, o discurso da defesa da
terra é dirigido àqueles sujeitos competentes, ou seja, que “tenham prática e implementos
agrícolas para o cultivo da soja”, enfim, dotados de um papel temático associado não só à
prática, mas à riqueza. Assim, o discurso constrói-se de modo a parecer verdadeira a
viabilidade do trabalho com a terra sustentada pelo agronegócio, em especial para o cultivo da
289
soja, persuadindo seu leitor a crer nessa imagem como saída para os problemas agrários
regionais.
O efeito de sentido de realidade que torna o ponto de vista sobre o tema passível
de ser aceito ancora-se em recursos lingüísticos usados com a finalidade de convencer o
leitor. Assim, o enunciador comunica as informações apoiando-se em argumentos
referendados em dados apresentados por meio de figuras (“50% das pastagens”; “a produção
de soja em 300 hectares rendeu cerca de R$2 milhões”), que representa a visão do setor
agrícola.
O ponto de vista da instância enunciativa, por meio do recurso da impessoalidade
não dissimula, no entanto, que a perspectiva assumida é a da classe dos produtores rurais em
condições da defesa da terra como espaço para os grandes investimentos. Está aí reforçada a
tematização da terra como o objeto-valor vinculado àquele que pode mantê-la de acordo com
o modelo econômico da modernidade.
Assim, a terra como espaço para abrigar a família, lugar para o trabalho, estaria
dentro de moldes ultrapassados. Estão aptos para gerenciar a terra só os que têm recursos para
fazê-la produzir, aqueles que têm capital, “insumos, equipamentos e profissionalismo” Essas
são figuras que se associam a um ator empreendedor que afirma “O problema do Brasil não é
terra. A proposta para a região de Prudente é revitalizar a economia através da agricultura
tecnificada” (O Imparcial, 14 de setembro, 2002).
Ligadas aos sistemas de poder, disseminadas como consensos sociais, de acordo
com um modo de produção capitalista, podemos considerar três matrizes geradoras de uma
ordem que regula as relações entre o homem e a terra, que a mídia jornalística faz repercutir
em seus textos. Vistos como um lugar-comum, observamos a associação do tema ao do
emprego e da oportunidade. E, quanto à terceira, a associação de terra ao tema do trabalho, a
não ser no discurso de algumas autoridades, quase não a encontramos. Obviamente que, ao
ser silenciada, deve ser tomada também como construtora de significações.
Essa distinção parece bastante proveitosa, não só para um panorama geral sobre os
valores ideológicos associados à temática da terra construída em Oeste e O Imparcial como
também para a discussão sobre o tema do Agronegócio.
290
3.3.1.6. Entrevista
O texto (ANEXO, p.360) aborda o tema “terra e trabalho” num diálogo com o
candidato à presidência, Lula. O repórter de O Imparcial faz a pergunta: “Qual sua visão
sobre a realidade do País e as diversidades regionais? Da resposta, transcrevemos um
fragmento que compreende a questão observada:
A agricultura tem que ter particularidades. [...] com produtos agrícolas
tivemos um superávit de quase US$18,5 bilhões. O potencial é
extraordinário no Brasil [...] 20% da população morando no campo e é bom
que more no campo e que se leva para lá infra-estrutura para que eles tenham
condições de viver e trabalhar. [...] Não faço diferenciação entre a chamada
agricultura empresarial com produção em escala e a chamada agricultura
familiar. [...] Sou defensor da agricultura familiar. (O Imparcial, 15/5/02).
Outro texto com a mesma temática “terra e trabalho”, também do jornal O
Imparcial, Caderno Cidades, tem o título LUTA PELA TERRA e se manifesta em um espaço
sempre reservado para os textos governamentais, de diversos órgãos públicos, especialmente
estaduais.
Tendo o momento político como contexto, uma das questões para debates,
especialmente com os candidatos a deputado federal, eram sempre os problemas fundiários da
região. O campo era fértil para discussões, mas bastante polêmico, se fossem levadas em
conta as reivindicações das duas classes antagônicas, os proprietários rurais e os sem-terra.
Como se posicionar diante de interesses que se chocam?
Lemos todos os discursos dos candidatos, publicados pelo O Imparcial no espaço
denominado O Xadrez das Eleições 2002, numa das páginas do primeiro caderno “política”.
Elegemos duas dessas entrevistas para focalizarmos as perguntas e respectivas respostas sobre
a temática da terra. (ANEXO p. 361)
O primeiro entrevistado:
OI - Quais são as principais propostas que o sr. apresenta para a população
da região de Prudente?
Kenji Koto – [...] Uma das coisas mais importantes é buscar uma política
agrícola bem definida voltada para a agroindústria , por ser essa a vocação da
nossa região e do nosso País. [...] é necessário ter a produção agrícola
voltada para exportação com um mínimo de valor agregado, para
proporcionar o desenvolvimento.
291
OI – [...] quais são os principais problemas que afetam o desenvolvimento do
oeste paulista atualmente?
Kenji Koto – [...] os grandes empresários que investem na agricultura ficam
temerosos em investir na região e depois ter invasões, ter esses movimentos
que possam truncar ou até dificultar o trabalho deles aqui. [...] A partir do
momento em que se implanta um projeto agrícola voltado para a
agroindústria, nesse mesmo tempo é necessário que se implemente também
as reformas dessas rodovias para que ela possa funcionar com eficácia e
tornar realidade a hidrovia, que hoje já é navegável. [...] no mesmo ritmo da
implantação do projeto de agroindústria na região (
O Imparcial, 11/8/02).
O segundo:
OI – Como conhecedor profundo dos problemas agrários brasileiros, como o
sr. fundamentará seu programa de trabalho como deputado federal?
Xico Graziano: Meu grande objetivo será a aprovação do Novo Estatuto da
Terra, cujo projeto de lei apresentei na Câmara dos Deputados [...]. É
necessário consolidar e modernizar a legislação agrária do país para se
definir, uma vez por todas, uma verdadeira política agropecuária, capaz de
manter a renda e o emprego no campo. Esse é meu sonho, como agricultor,
agrônomo e Deputado.
OI – Nossa próxima safra de grãos baterá um grande recorde, quase
encostando nos 100 milhões de toneladas. Como se explica isso? É o apoio
que chegou na hora ou a agricultura se desenvolve pelo esforço dos que
produzem?
Xico Graziano: [...] nossa agricultura cresce incorporando tecnologia e
aumentando a produtividade [...] e os mercados de milho e soja estão mais
favoráveis. Nada disso aconteceria sem o suor dos agricultores.
OI – [...] O que deve ser feito para que a reforma agrária não seja
prejudicada, mas paralelamente se busque a consolidação das terras,
sobretudo no Pontal do Paranapanema?
Xico Graziano: Errado foi considerar os sem-terra mais importantes que os
trabalhadores com terra. Nós temos que oferecer condições dignas de vida
aos miseráveis, mas a terra não pode ser considerada como passaporte para a
felicidade [...] regularizar as terras para devolver a tranqüilidade aos
produtores. Qualquer solução será melhor que essa insegurança coletiva, que
facilita a vida dos invasores de terra onde mistura gente de bem com
bandidos e desqualificados.
OI – [...] o projeto em curso da Bolsa de Parcerias e Arrendamento de Terras
poderá representar a redenção dos nossos municípios?
Xico Graziano: Redenção não, mas com certeza um caminho de futuro para a
região. [...] arrendamos 6 fazendas e geramos 3000 empregos durante 4
meses. Foi o começo de uma virada regional, que precisa se diversificar para
gerar mais empregos. (
O Imparcial, 8/8/02)
No encadeamento de figuras próprias do universo do espaço agrário, o que se
evoca são as isotopias de leitura de “terra para negócio” (“buscar uma política agrícola bem
definida voltada para a agroindústria”, “a produção agrícola voltada para exportação”,
“arrendamos 6 fazendas e geramos 3000 empregos durante 4 meses”) e não “terra para
292
trabalho”. No primeiro texto o que se põe é o tema da terra associado à figura do capital,
espaço de exclusão dos seres. No segundo aí, sim, estaria incluído o homem.
Há múltiplas possibilidades de figurativizar a temática de “terra para negócio”. Ela
se representa em tecidos isotópicos que desenham a imagem do espaço rural que se dispõe em
seqüências espaço-temporais que incluem a figura “emprego” como objeto-valor,
diferentemente da figura “trabalho”. E é aquela que tem repercussão no discurso sobre a terra.
Podemos contemplar a circulação social desse valor, isto é, de um lugar e função exercida
pelo binômio terra/emprego como cenário para o espetáculo que abriga os discursos políticos
no Pontal. Ora, nessa convocação não caberiam os sem-terra, (“invasores de terra onde
mistura gente de bem com bandidos e desqualificados” (O Imparcial, 11/8/02),
por exemplo.
Na estereotipia do papel temático, associado à disforia, parece não haver lugar para a
inscrição do sujeito “sem-terra” na sociedade.
O texto relativo ao tema da terra, transforma a terra, espaço das relações entre os
seres, em lugar para negócio, acumulação de capital, do poder e de riquezas. Desse texto está
expulso o homem, impossibilitado de realizar qualquer programa narrativo, que não seja o de
ordem prática da ordem do interesse financeiro.
O eixo temático “emprego e oportunidade” sustenta uma diversidade de discursos
que insistem categoricamente na ideologia matriz que regula as relações do homem com a
terra.
É uma atitude oportunista defender o fim da agricultura familiar, a terra não como
espaço para fixação do homem, ao invés de defender uma mudança no modo de produção
capitalista. O capitalismo impõe a “verdadeira política agropecuária, capaz de manter a renda
e o emprego no campo” (ANEXO, p. 40). O enunciador, Xico Graziano, tenta dissimular essa
visão, numa tentativa de apagamento da ambigüidade: “Errado foi considerar os sem-terra
mais importantes que os trabalhadores com terra”, para tentar fixar apenas a visão
economicista sobre a Reforma Agrária em que as terras, ao serem distribuídas no sistema de
assentamento, estariam sendo desperdiçadas, ou poderiam ser melhor aproveitadas: “[...] é
necessário ter a produção agrícola voltada para exportação com um mínimo de valor
agregado, para proporcionar o desenvolvimento”.
Assim, falar em terras a serem distribuídas, seria defender a agricultura familiar.
Isso representaria uma ruptura com o discurso das políticas desenvolvimentistas, uma ruptura
com o futuro, em que se delinearia o desenvolvimento, um entrave para a modernização, para
políticas econômicas de produção para exportação. Ou seja, a prática discursiva jornalística
293
permite a institucionalização social de certos valores ideológicos quanto as questões agrárias.
Um deles é o de mostrar que o caminho para o Brasil sair do terceiro mundo é o de adotar a
produção agrícola para a exportação.
No caso da seqüência do discurso de Xico Graziano: “Redenção não, mas com
certeza um caminho de futuro para a região. [...] arrendamos 6 fazendas e geramos 3000
empregos durante 4 meses. Foi o começo de uma virada regional, que precisa se diversificar
para gerar mais empregos” o enunciador instaura uma ambigüidade, quanto à utilização da
terra como espaço para a fixação do homem, mas não apresenta aí um sentido resistente ao
que quer fixar no seu texto. Ele deixa um espaço aberto de pluralidade de significações que
tanto remete à estabilidade quanto à instabilidade do emprego no campo, quando se refere à
terra como oportunidade de emprego, que se trata de uma atividade sazonal: “3000 empregos
durante 4 meses”. Projeta-se nesse discurso o sentido já fixado socialmente e mobilizado no
interdiscurso das atividades dos trabalhadores rurais da cana, por exemplo, que perambulam
de norte a sul, à procura da produção agrícola para a oportunidade de se empregar.
Nos discursos dos dois candidatos, vê-se o esforço de cada enunciador para tentar
fixar um sentido, criando a ilusão de que ele é único. O que se confirma é a preocupação com
a garantia para os proprietários rurais: “É necessário consolidar e modernizar a legislação
agrária do país para se definir, uma vez por todas, uma verdadeira política agropecuária,
capaz de manter a renda e o emprego no campo”( Xico Graziano, O Imparcial, 8/8/02).
O discurso jornalístico requer um trabalho de reconstrução do destinatário, em que
a terra passa a ser vista como objeto cultural e, ao se debruçar sobre textos dissonantes
percebe a resistência do jornal em dar voz aos contrários à ideologia que defende a dos
proprietários rurais: “os grandes empresários que investem na agricultura ficam temerosos em
investir na região e depois ter invasões, ter esses movimentos que possam truncar ou até
dificultar o trabalho deles aqui.” (KENJI KOTO, ANEXO, p. 361).
Nesse sentido, compreende-se que não se pode fazer uma leitura pautada na
monofonia, que leve a reflexões unilaterais sobre o cenário rural. Insistimos em repetir que,
pela discursivização de alguns representantes (os donos da terra), vão-se traduzindo a
representação de outros (os sem-terra). O imaginário rural vai-se traduzindo, movimentando-
se por interstícios, por fissuras do discurso da terra, sobredeterminando seus sentidos, mesmo
quando a tentativa é a de encobrir algumas leituras.
294
3.3.2. Questões Ambientais
Relacionadas às políticas agrárias podemos nos referir às questões tematizadas
pelos discursos que desenvolvem o percurso narrativo da busca da terra como espaço
ecológico. Poucos foram os textos sobre o assunto. No entanto, mesmo assim, elegemos dois
deles para leitura por assegurarem a coerência semântica, temática e figurativa do discurso
sobre a terra, relacionada ao modo de ver e pensar dos proprietários rurais, o que garante o
caráter ideológico dos discursos dos jornais do Pontal.
295
3.3.2.1. Primeira página
O que é legitimado, na produção textual acima, sobre questões ambientais é
destaque na primeira página, atraindo a atenção do leitor para aspectos particulares da região.
A manchete (“Estação ecológica do Pontal gera otimismo”) e a imagem fotográfica do animal
296
ganham a cena, conduzindo a atenção para um dos dados do narrado: “Mico-Leão-Preto”. No
sincretismo das duas linguagens, verbal e imagética projeta-se a voz de um sujeito de
enunciação que, afirmando a opinião sobre o enunciado (“gera otimismo”), leva o leitor a
querer saber informações sobre a “Mata Atlântica”.
3.3.2.2. Reportagem
Ainda focalizando a temática da defesa de valores ambientais na região do Pontal,
destacamos a página do caderno “Cidades” de O Imparcial de 27 /3/2002.
Os títulos “Município comemora potencial turístico”; “Lagoa Preta pode virar um
refúgio de fauna” e os subtítulos “Cidade completa 53 anos e moradores se unem para
conservar as belezas naturais que atraem visitantes”; “Proposta de preservação das várzeas da
297
Lagoa Preta, que escaparam da inundação de Porto Primavera” levam à compreensão das
interações discursivas que sustentam a manifestação das informações a permear a ilusão de
verdade sobre o dito. O detalhamento na referencialização do conteúdo dos títulos e da foto
do ponto turístico a ser preservado (“Lagoa Preta”) com dizeres de autoridades (“presidente
da associação Comercial e Industrial ao afirmar que sem os peixes iriam perder turistas,
ambientalistas, pescador esportivo, reforça-se a aproximação entre enunciador e leitor.
O mapeamento das figuras nos dois textos sobre a valorização do meio ambiente
indica a inscrição ideológica que aponta para a rede de sentidos vista em tantos outros em que
percursos figurativos e isotopias se associam à defesa da terra no Pontal. Se a concentração
nos valores econômicos desvia a ênfase dos determinantes sociais, que culminaria em
reflexões sobre o homem e a terra, e inevitavelmente cairia no “nó górdio” da reforma agrária,
por exemplo, conduz à reação a esse estado de coisas, voltando-se para outras imagens. Em
vez de registrar apenas o peso do conflito agrário, do agronegócio, busca-se a discussão do
momento: a defesa da terra segundo valores econômicos e ecológicos.
Arriscamos dizer que a figura espacial “terra para reserva ecológica” funciona
como espaço-suporte ou plataforma que possibilita ou impede a atividade de sujeitos humanos
como actantes. Nesse sentido, a terra idílica requer um actante competente para a
“preservação das várzeas”, em que haveria “refúgio de fauna”. Esse actante, “além da
proteção ambiental” promoveria “geração de empregos”. Essa terra não pode ser, portanto,
“terra de trabalho”. Essa tematização manifesta-se em textos contemplados e que saem em
defesa da ecologia, predispostos a inviabilizar qualquer ação daqueles que almejam
conquistar um pedaço de chão no Pontal do Paranapanema. Esses valores estão na base de
alguns discursos cujo propósito é de confinar algumas áreas rurais ao universo de valores
ecológicos, tendo como propósito apartar o homem da luta pela terra. A temática “terra
ecológica” faz, então, prevalecer limites que vão sendo impostos. O discurso da exploração de
determinadas reservas constrói a supremacia dos interesses daqueles a quem não interessa que
o espaço rural sirva para a fixação do ser humano. No lugar de “terra de assentamento”,
constrói-se o discurso da “terra para preservação ambiental”.
De acordo com o que constatamos na grande totalidade de nossas leituras, ao
assumirem o jogo da lógica da construção narrativa para defesa de interesses dos proprietários
rurais do Pontal, Oeste Notícias e O Imparcial colocam nesse mesmo jogo as questões
relativas ao meio ambiente. O tema da preservação ambiental constrói-se por meio de figuras
298
que alinhavam a visão de mundo convergente ao universo axiológico da elite agrária da
região.
Passemos à leitura da notícia a seguir, retirada de Oeste Notícias de 19/6/2002.
3.3.2.3. Notícia
Considerando a manchete da primeira página “Estação ecológica do Pontal gera
otimismo” e a reportagem “Município comemora potencial turístico”, supracitados,
estabelece-se uma relação entre esses textos, no que se refere à política ambiental. Essa
relação intertextual, que serve de recurso da configuração discursiva da preservação da terra,
pode ser observada no registro de figuras lexemáticas que compõem sua base. Ancorado em
lugar específico (“Mata Atlântica”, “preservação das várzeas da Lagoa Preta”, “o refúgio da
fauna”), figurativiza-se o espaço englobante das terras do Pontal.
Podemos cotejar o tratamento desse mesmo tema com a notícia acima “UDR
critica decisão do governo federal”.
Numa relação analógica entre o plano de conteúdo dos três textos supracitados (a
primeira página, a reportagem e a notícia) articula-se um paradigma ideológico com algumas
nuances trabalhadas historicamente pelo imaginário cultural do povo brasileiro quanto ao
espaço rural. Nesse e em outros momentos, o que se observa é a focalização da terra como
299
lugar da morada dos animais (“Mico-Leão-Preto”), espaço bucólico, idílico da paisagem
idealizada (“Orgulha-se de ter nas belezas naturais”, “refúgio da vida silvestre”).
As figuras relacionadas ao tema da preservação ambiental opõem dois actantes: os
defensores do meio ambiente (“A notícia da criação da Estação ecológica [...] recebida com
aprovação por pesquisadores e ecologistas”- Oeste Notícias, 18/7/02) e a UDR por meio de
seu presidente (“a preservação de 80% é exagerada”), reativando uma dimensão polêmica
sobre o tema da terra. A conotação econômica é a tônica do texto “UDR critica decisão do
governo federal”, que destoa da ênfase dos dois textos. Sob essa perspectiva, numa relação
entre os três textos, podemos afirmar que a construção jornalística que poderia ser empregada
como estratégia persuasiva para levar o leitor da região do Pontal a práticas reivindicatórias
contra a devastação ambiental, parece afastá-lo disso.
Sobressai da leitura dos três textos a visão ideológica da terra para produzir, para
gerar lucro (“quem comprou terras tem direito adquirido [...] pagou por esse direito”), o que
nos leva a abandonar qualquer avaliação inocente sobre a temática da preservação ambiental,
construída por Oeste Notícias e O Imparcial.
Queremos chamar atenção para o diálogo de vozes divergentes. Obviamente, o fio
do discurso da defesa ambiental não poderia correr solto na pauta jornalística de órgãos da
imprensa que sustenta a imagem da terra do ponto de vista dos valores capitalistas. Se nos
primeiros textos vimos confirmada a avaliação positiva das ações da defesa do espaço rural,
ela não é condizente com os pressupostos econômico-financeiros veiculados nos outros textos
que constituem o corpus dessas leituras. Não se pode dizer que o discurso da defesa da terra
no Pontal salvaguarde o espaço rural das especulações financeiras do agronegócio. Sob essa
perspectiva, arriscamos concluir que esparsos dizeres em um gênero jornalístico ou outro,
mesmo quando na supremacia dos editoriais (ANEXO p. 363): “São cada vez mais alarmantes
as notícias que chegam sobre a destruição ambiental”- O Imparcial -16/8/02), funcionam
como suporte dos interesses financeiros que cirze o imaginário cultural. Essa constatação
decorre da verificação da exigüidade de textos sobre políticas ambientais num espaço
jornalístico de uma sociedade que se sustenta pelos valores agrários.
Em relação à notícia sobre a UDR, mesmo reconhecendo que a justificativa é para
a exploração do espaço geográfico da “Amazônia, Pará, Rondônia, Acre, etc.”, o fato
relevante é a conotação econômica que parece justificar todos os procedimentos para a
abordagem de assuntos ligados à terra. Tudo se dá em busca da manutenção do simulacro do
ator que quer obter lucros advindos da especulação financeira com o espaço agrário. Basta
300
observarmos os dizeres: “Além da proteção ambiental [...] a iniciativa pode resultar em
investimentos - até do exterior - [...] bem como promover geração de empregos” (Oeste
Notícias, 18/7/02).
Evidentemente que a questão abordada pela UDR não se refere à região do Pontal,
conforme afirmamos. No entanto, homologa-se aí, do lugar de onde fala a instância
enunciativa, um discurso que transcende a defesa do meio ambiente, configurando as questões
relacionadas à terra nas esferas políticas, administrativas e econômicas. Não é um dizer para a
defesa da terra, mas sim dos interesses de seus proprietários. Esse lugar chega ao leitor por
meio da instância enunciativa da empresa jornalística que mesmo utilizando estratégias que
criam efeitos de sentido de objetividade, em que se mostra o enunciador, não podemos dizer
que as figuras estejam isentas de impregnações ideológicas. Constrói-se uma proximidade da
imprensa com as forças político-partidárias que subordinam os discursos ao poder, ainda que
apareça bem marcado o lugar do enunciador como sujeito delegado da elite agrária. Melhor
explicando, quem fala é o presidente da UDR, cujos dizeres aparecem bem delimitados em
discurso direto: “É um confisco branco, é um escândalo”.
3.3.2.4. Editorial
As discussões sobre a preservação do meio ambiente dão-se pela ótica da política
de defesa dos donos da terra, em detrimento da ótica social, ambientalista. Quando se trata
dos recursos hídricos, fica bem marcada a construção dos valores defendidos sobre a
necessidade de preservação ambiental. Um tema tão generalizante e abstrato como o da defesa
do meio ambiente é concretizado pela rede de figuras da água como o bem maior da região do
Pontal, conforme se lê no editorial referido acima (Anexo p. 363): “São cada vez mais
alarmantes as notícias que chegam sobre a destruição ambiental”-(O Imparcial - 16/8/02).
Firma-se nesse texto o discurso para a defesa de valores ecológicos, numa
tentativa de convencimento do leitor, manipulado por intimidação (“Trata-se da ameaça de
que já é vítima a recém-criada [...] estação ecológica do Pontal do Paranapanema.”) sobre a
iminente falta de água no planeta. Na figura “notícias alarmantes”, a enunciação se mostra
marcada pontualmente logo no título da matéria, deixando apreender um sujeito que avalia a
tese defendida no enunciado: “Preservar o meio ambiental tornou-se uma luta que extrapola
os limites do Estado.” Nessa apreciação moralizante, desencadeia-se o tema da preservação
ambiental no destaque para a valorização da “Mata Atlântica do interior”. O tema respaldado
301
por espaço tímico contrário, reproduziria a maneira de ações de sujeitos que não legitimariam
o mesmo discurso e desrespeitariam o espaço a ser preservado, onde, segundo o enunciador
há: “Presença de gado, armadilhas para caça e ocupação de áreas de preservação”.
Esses elementos repercutem nas abordagens que se dão sempre pela ótica da
políticas de defesa de determinadas áreas de terra, desde que não entrem em choque com os
interesses dos donos de terra. A defesa do espaço rural como área para gerar lucros se estende
a todos os gêneros jornalísticos, não só na produção de reportagens e notícias, como também
incide, de forma mais aguda, sobre as notas de coluna, por se tratar de um gênero que usufrui
de maior liberdade do enunciador.
No esforço de compreensão e explicação das relações entre o homem e a terra,
construídas por Oeste Notícias e O Imparcial, poderíamos continuar o percurso de leitura,
dado o volume e a riqueza de material que temos em mãos. Mas é momento para encerrarmos
nosso trabalho. Passemos, então, às considerações finais.
302
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No começo da pesquisa, selecionamos todos os textos que abordavam as relações
entre o homem e a terra, nas edições de 2002, em O Estado de São Paulo, Folha de S. Paulo,
O Imparcial e Oeste Notícias, a fim de ler tudo, não importando o quê. No entanto, para a
constituição do corpus, optamos apenas pelos dois últimos veículos da comunicação
impressa, tendo como material para as análises os textos sobre o tema do conflito e das
políticas agrárias.
Desenvolvemos nossas leituras para refletir sobre os discursos relacionados ao
tema da terra, construídos na mídia impressa do Pontal do Paranapanema, concebendo o
funcionamento das operações do texto jornalístico, a partir dos dispositivos da enunciação, na
perspectiva teórica da semiótica discursiva de linha francesa. Buscamos os agentes dos
processos de produção dos textos, ou seja, os sujeitos da enunciação, visando a situar as
relações de um texto ou de um conjunto de textos, o sentido investido e as condições desse
investimento.
A propósito do jornalismo, enquanto prática social, observamos que se trata de um
discurso de produção de textos os quais se (entre)tecem em (inter)ações complexas. Assim,
procuramos reconhecer que cada enunciação está sob o filtro e a regulagem próprias do
sujeito destinador que dissemina valores sociais.
Investigamos o ponto de vista aplicado à percepção do enunciado jornalístico. A
circulação do saber no nível da narrativa sobre as questões agrárias e o saber que se tem sobre
o enunciado está relacionado com a percepção que se tem deste último como objeto, cabendo
ao sujeito a condução da atividade perceptiva do enunciado construído no jornal. Na medida
em que ocupa determinadas posições, o saber das ações que se desenvolvem no enunciado
será maior ou menor. Vimos que o enunciador é a instância perceptiva que pode garantir a
assunção de um ponto de vista a que o leitor tem acesso, a partir das estratégias de percepção.
Quanto à figuratividade relacionada ao tema da terra, relaciona-se aos atos
enunciativos, responsáveis pelo uso de figuras semânticas, a partir das quais se inserem os
valores ideológicos. Tarefa de um sujeito, podemos firmar que a figuratividade é lugar de
convergência do inteligível e também do sensível.
Acreditando na autonomia relativa dos objetos de análise, que não podem
prescindir do contexto sócio-histórico e da inserção do sujeito da enunciação neste contexto,
optamos por privilegiar a instância enunciativa. Deixamo-nos conduzir pelo enunciador e
303
leitor, no reconhecimento de que a enunciação enquadra e rege as outras dimensões do
discurso (a figurativa, a narrativa e a passional). Nessa perspectiva, não como instância
abstrata, simplesmente pressuposta pelo enunciado, acompanhamos o percurso do enunciador
e do leitor como “‘centro do discurso’ que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou
rejeita as significações” (BERTRAND, 2003, p. 24).
Organizada nos enunciados jornalísticos, a temática da terra, como construção de
sujeitos - resultado da interação entre enunciador e leitor - implicou a noção de multiplicidade
de valores, às vezes contraditórios. Assim, um modelo de espaço rural defendido em alguns
textos de maneira implícita não correspondia ao modelo construído em outros, numa
contradição entre discursos. Quanto a isso, assistimos à defesa da terra como espaço que,
segundo os discursos de preservação ambiental, deveria ser preservado.
O que as leituras revelam é que não se pode falar em neutralidade da enunciação
jornalística. No limiar entre um sujeito responsável por uma determinada fala e outros sujeitos
convocados para a cena enunciativa, assiste-se ao discurso da empresa jornalística entremear-
se com o sensível, sob forma de avaliações, hipóteses e previsões. Foi importante considerar a
dimensão passional, enquanto efeito de sentido inscrito e codificado na linguagem.
Arriscamos dizer que a abordagem das condições básicas do fazer-sentido inerente ao nosso
estar-no-mundo - um mundo feito de qualidades sensíveis - contribui, pelas configurações
culturais que se inscrevem no discurso, para moldar o imaginário sobre a terra.
Pelo olhar crítico procuramos não nos afastar de uma condução que nos tornasse
cônscios de que o texto-jornalístico é objeto de linguagem, construtor da “tela do parecer”.
Apoiamo-nos na metáfora “olhos” como “janelas”, mas sem querer negar que, por trás delas,
move-se um sujeito que comanda o gesto do olhar, no movimento irreprimível de emoções.
Assim sendo, a figurativização das relações entre o homem e a terra foi considerada, na
medida em que rege, não apenas a significação dos acontecimentos trazidos para a página,
mas, também os diferentes modos de participação e adesão na leitura, lugar de convergência
do inteligível mas também do sensível.
Percebemos que, na materialidade jornalística, o que se assiste é ao desafio
incessante para a manipulação do leitor pela enunciação que, modelando discursos, projeta
geralmente valores ideológicos dos proprietários de terras.
Ocorreu-nos, então, a pergunta: De que maneira se concebe o espaço rural na
atualidade no jornalismo impresso da região do Pontal? Reconhecemos que refletir sobre o
tema era também refletir sobre o veículo de comunicação. Compreendemos então que, a cada
304
enunciação, assiste-se à estruturação de percursos figurativos antigos e incorporação de
novos, numa tarefa intermitente da construção do espaço agrário, que se torna produto
cultural. E, de acordo com a dinâmica da produção jornalística, fomos aprendendo a olhar a
esfera jornalística de dois veículos da região como um espaço onde predomina o imaginário
cultural da elite agrária. Por outras palavras, passamos a observar o estoque de figuras e temas
como recortes de estereótipos de valores rurais e de ideologias sobre a terra, a se incrustarem
na morfologia dos jornais, configurada em percepções, pontos de vista pertinentes na escala
social dos valores de uma determinada região brasileira e que poderiam se estender a uma
dimensão mais abrangente. Fomos percebendo, então, a terra - não só como tema mas também
como figura espacial - entretecer-se em formas de construção, manifestação e recepção,
levando-nos a valores que parecem fazer parte da natureza significante de um espaço tópico,
heterotópico e utópico.
Lançamos mão desses termos para concluir nossas leituras. Esclarecemos que não
se trata de conceitos empregados por outros estudiosos e nem queremos que o peso de
conceitos recaia sobre o uso dessas palavras, pois é nessa dimensão que reconhecemos situar-
se um conceito, antes de tudo. Ele é essencialmente o meio para levar a reflexões.
Valendo-nos do embasamento figurativo ou temático que permeia os vários
percursos traçados pela definição de “espaço tópico”, os textos jornalísticos sobre a terra
permitem sugestões que vão além da referência a um lugar geograficamente delimitado em
que as cercas possuem a nitidez dos limites entre o que é “terra” pertencente ao domínio e
poder de um proprietário e de outro. Em face de uma temática tão ampla como a que se
descortina nos dois jornais do Pontal, ainda que restrinjamos a noção de terra à de “espaço
rural”, ela não cabe dentro da noção de mero espaço tópico, geográfico, no sentido de “chão”,
por exemplo. Acreditamos que a espacialidade geográfica de um “aqui” ou um “lá”,
compreendidos nessa noção “espaço tópico” permite, de fato, pensar a “terra” como lugar
ocupado espacialmente. Mas, quando se trata de pensar sentidos para abarcar o cenário rural e
os sujeitos aí compreendidos, precisamos ir além de uma significação restrita ao espaço
geográfico.
Observamos sugestões não apenas de ordem figurativa, mas também temática: o
lugar é, de algum modo, um mais além. É preciso encontrar uma figura que remeta a uma
imagem a fim de compreender um universo de efeitos de sentido para englobar a
multiplicidade significativa além de um “aqui” e um “lá”. Podemos afirmar que a idéia de
“dentro”, “fora” ou “mais além” do lugar ocupado pelo sujeito, de “inclusão” ou “exclusão”
305
no contexto social, não cabe na noção de espaço tópico. Tudo pode ser lido sob uma isotopia
do “poder”, do mercado por exemplo. Foi por isso que, para recobrir essa abrangência de
sentidos, buscamos a noção de “espaço heterotópico”. A terra como espaço rural nos
enunciados jornalísticos supõe operar com uma trama de significados.
Considerando a heterogeneidade de efeitos de sentidos dos discursos sobre as
questões agrárias, vimo-nos diante da necessidade de encontrar um termo para abarcar
também uma base cognitiva para a terra como espaço imaginário, um lugar sonhado,
quimérico. Acreditamos que a noção “espaço utópico” possa servir a isso. Com esse conceito
vemos a possibilidade de sinalizar sobre indagações em relação ao tema da terra, por sua
complexidade, em se tratando da relação entre homem, linguagem, mundo e mito. Mesmo
sem entrar na discussão sobre mito, sabemos que ele faz com que o leitor do jornal leia o
texto sobre a terra não de uma “maneira objetiva, inerte, neutra, como um sujeito em grau
zero” (SILVA, 1995, p. 28). Quando se está diante de um sujeito de afetividade, invadido
pelo imaginário, que se nutre de ilusões e sonhos, o que se leva em conta é a (des)construção
dessa temática a atravessar os diferentes gêneros jornalísticos.
Ora, tratar a “terra” apenas como um espaço geográfico seria um tratamento
bastante redutor, enclausurando-a numa forma de sentido que não compreende a variedade de
isotopias figurativas que emergem da materialidade jornalística. Os dois jornais, objeto de
nossas leituras, são difusores de uma grande variedade de gêneros textuais sobre a referida
temática, a disseminar discursos de acordo com uma multiplicidade de valores ideológicos,
sustentando-os, reproduzindo-os e, obviamente, tentando exercer controle sobre tais valores.
O que não podem mesmo é impedir o deslizamento de efeitos de sentidos em que a terra
aparece ora como espaço tópico, heterotópico e utópico, especialmente quando se consideram
efeitos de sentido de que a enunciação se utiliza : “ a objetivação e a subjetivação de uma
grandeza semântica entram [...] no campo modal”, que é segundo a hipótese com que trabalha
o projeto de Semiótica das Paixões. (SILVA, 1995, p. 78). Daí a convocação de um modo de
conhecer, de termos dos quais se possa valer para dizer a relação sobre o homem e a terra.
Em se tratando de uma estrutura social, a temática da terra construída nos
discursos de O Imparcial e Oeste Notícias sustenta universos ideológicos bastante diferentes,
sendo veiculada a partir também de valores negados e/ou rechaçados.
Nas construções figurativas do percurso narrativo dos sem-terra, falamos em
“terra-texto”. Ela chega ao leitor sempre como lugar gerador de conflitos recorrentes, espaço
de indivíduos depauperados, construído como anárquico. Mas, enquanto espaço dos
306
detentores do poder, a “terra-texto” é apresentada como lugar daqueles que se constroem
como controladores de ideais de ordem e de progresso, quer se trate da ordem da natureza ou
da ordem do capital. Dessa maneira, nesse contraste entre dois simulacros, o leitor tem diante
de si a construção da terra como um espaço heterotópico.
De um lado, discursos veiculam a temática da terra, figurativizada no sonho de
consumo dos virtuais compradores do desejo do êxito financeiro, construindo um valor
prático, por trás do qual se esconde o valor mítico da posse, do anseio de ser “proprietário
rural”, “dono de terras”, “invernista”. Na sociedade do Pontal, cujos valores estão centrados
na terra, a projeção social dá-se a partir da aquisição desse bem, levando o homem não só a
raciocinar a partir do interesse em adquirir a terra, mas a almejá-la para o lucro.
De outro lado, mesmo impedidas de se constituírem, implicitam-se imagens outras
que também ganham sentido, apesar da tentativa de silenciamento. Da terra, espaço do
investimento financeiro e do lucro, segundo os valores capitalistas, emerge também o
discurso de um outro sonho, o da terra como lugar para o trabalho e para a subsistência. Em
síntese, nessa duplicidade, projeta-se o sonho da terra prometida, que pode ser pensado
segundo a noção de “espaço utópico” a recobrir percursos narrativos, colocando em oposição
duas classes de sujeitos na sociedade: os proprietários rurais e os sem-terra.
Na seqüência desse raciocínio, o olho do analista deve, então, estar atento para
apreender, selecionar e relacionar tudo o que diz respeito ao tema da terra. Em se tratando de
mitos, pensar, por exemplo, que o mito da terra prometida converte subversivamente qualquer
racionalidade do discurso jornalístico do Pontal (conflito agrário, agronegócio) em seu
contrário. De forma coerente como espaço idealizado, constatamos que a sua defesa só se dá,
na medida em que serve aos interesses econômicos dos donos de terra, mesmo quando se trata
da defesa dos valores ecológicos.
No que diz respeito ao imaginário sobre a terra, o conceito de “memória” é visto
aqui como representação de uma visão de mundo, uma ideologia: “o que fica do passado no
vivido dos grupos ou o que os grupos fazem do passado” (LE GOFF, 1996, p. 472). Nesse
sentido pensamos os efeitos silenciadores sobre a conquista da terra no Pontal, ou seja, o
apagamento de determinados acontecimentos históricos. Referimo-nos a alguns fatos que não
foram convocados em nenhum dos dois jornais do Pontal e, no entanto, foram tratados em
outros veículos de comunicação como a questão da “grilagem de terras”, ação naturalizada na
região, mas que se constitui num problema a ser evitado. Transcende o poder de muitos que
dominam proprietários de grandes extensões que por se considerarem donos, não lhes convém
307
discutir o que, no âmbito das leis os levaria à perda das terras. Ora, sobre a grilagem,
dissemos que nenhum texto pôde ser lido, em todo o corpus, no Oeste Notícias ou em O
Imparcial. Só obtivemos informações sobre o assunto em pesquisas na Internet, em trabalhos
científicos ou em outros jornais.
A cada página, cada texto, deixamos nosso olhar percorrer as regularidades de
dizeres sobre os temas, acompanhando sempre a instância enunciativa de Oeste Notícias e O
Imparcial para apreender o investimento semântico da temática dos conflitos fundiários e das
políticas agrárias, na busca de uma leitura. E é sob esse aspecto, na relação entre o texto e sua
leitura, por meio da diversidade dos modos de crença propostos pela leitura dos diferentes
gêneros jornalísticos, que partilhamos a práxis enunciativa na experiência sensível de cada
discurso e na especificidade do universo cultural de valores sobre a terra.
Diante de nossos olhos, mostraram-se não apenas fatos jornalísticos - relatos de
acontecimentos -, mas também sujeitos afetados pelos fatos, a espalhar efeitos passionais
motivadores de efeitos de sentido da insegurança, do medo. Na constância da intensidade de
estados passionais vividos por enunciadores, operam as temáticas agrárias, no trânsito por um
espaço tensivo de instabilidades, cuja modulação vem determinada pela expressão fórica da
instância enunciativa.
Diante do desejo de sujeitos modalizados por possuir o objeto almejado, a terra,
compreendemos o investimento nesse valor que resultou na construção da infinidade de textos
em circulação na mídia impressa de Oeste Notícias e O Imparcial ao longo de 2002.
Entendemos a dimensão polêmica de toda narrativa: a um sujeito corresponde um anti-sujeito;
a uma apropriação, um desapossamento (BARROS, 1995, p. 83).
Tendo em vista a tradicional divisão de textos de informação e opinião, como
lugar de convocação da própria história, os discursos jornalísticos, muito mais do que a
apresentação de fatos sobre as questões agrárias, levaram-nos às reflexões sobre a temática
proposta, no reconhecimento da importância disso para a sociedade.
Diante dos valores revestidos com os julgamentos resultantes das crenças entre
sujeitos envolvidos no processo discursivo do saber, querer, dever e poder de Oeste Notícias e
O Imparcial na construção da narrativa das questões agrárias, vimos emergir uma sociedade
cujas raízes estão fincadas de forma firme na terra. O discurso tem sempre como sustentação
um conhecimento de mundo focalizado na defesa da terra para os seus detentores, na
obediência a valores que estejam em consonância com os dos proprietários rurais.
308
A marca na história do Pontal para a conquista da terra sempre foi a da violência:
“as disputas pela posse da terra eram resolvidas à bala”. Essas são palavras de um cidadão de
85 anos, ao dar uma entrevista para Oeste Notícias (10/7/2002), quando conta que assistiu a
inúmeras lutas pela defesa da propriedade. Em uma entrevista concedida ao jornal, ele
sustenta com naturalidade que as terras herdadas de seu velho pai, um dos desbravadores da
região, foram obtidas pela lei do mais valente.
Considerando as mudanças contínuas no cenário rural, em que a paisagem não
abriga o elemento humano, desprovido do valor “terra”, observamos na manifestação dos
papéis temáticos homologados pelos textos jornalísticos, o campo se esvaziar de sentido como
lugar para a vida do homem de classes desprivilegiadas socialmente.
Já as propostas desenvolvimentistas, construídas em discursos de uma voz que
“grita” mais alto, sobrepondo-se às demais (é sempre a que direciona a instância enunciativa
em artigos, reportagens e, sobretudo, editoriais), trazendo em seu bojo a fratura social.
Facilmente identificável, não há como negar os “ecos” de outras vozes, que resultam em/de
certa dissonância na tentativa da orquestração de um único tom regido pela empresa
jornalística. Não há como negar que o desconforto das relações na sociedade do Pontal vem
pelo estigma de conflito fundiário, tema recorrente em Oeste Notícias e O Imparcial. Dezenas
de textos ancoraram-se nesse assunto. A abordagem da polêmica com o MST, tendo no líder
José Rainha como seu fio condutor, coloca a organização dos sem-terra como responsáveis
por todo tipo de problemas da região especialmente os fundiários:
A região mais duramente atingida pela reforma agrária desenvolvida pelo
Incra, muitas vezes a reboque do MST e de outras entidades montadas pelos
partidos de esquerda, foi a do Pontal do Paranapanema [...] Não se trata
agora de questionar a forma como o Estado realizou as discriminatórias para
dar lugar aos assentamentos de agricultores que os movimentos trataram de
trazer para a região, montando acampamentos à margem das estradas,
invadindo as propriedades, incendiando-as, matando um sem número de
reses e levando esses agricultores (nem sempre verdadeiramente
agricultores) de um lado para outro [...] O que foi feito está feito, com
prejuízos elevados para a imagem de nossa região, onde as terras chegaram
aos preços mais baixos em todo o país. Tão baixos que muitos proprietários,
embora ocupando legitimamente suas áreas, não vacilaram em negociá-las
com o Incra, para instalar-se em outras regiões do país
(O Imparcial de
16/01/02).
Por se tratar de uma instância de comunicação, a tarefa enunciativa no jornal não
poderia ser reduzida a mero ato de comunicação. Nesse aspecto, procuramos não reduzir o
jornal a mero veículo da convocação de atores para atos de fala visando à informação. Nosso
309
empenho de seguir o processo da enunciação possibilitou-nos a leitura e interpretação de uma
trama de significações apresentadas por meio de figuras e temas relacionados à cultura agrária
de uma região brasileira.
Considerando-se a figuratividade da terra, ela implica, em última instância, a
substituição da concepção de um espaço vivido ou percebido, pela noção de terra-texto
contida nos discursos dos dois jornais que têm nessa temática a sustentação de sua existência
enquanto objeto semiótico. Nessa dimensão textual, postula-se ao sujeito da enunciação a
produção da terra-enunciada, tematizada em suas múltiplas formas possíveis. É no enfoque da
construção do sentido de terra, vivida na relação do sujeito da enunciação com os objetos e
qualidades do espaço rural, na articulação do sentido sobre esse tema, que se vão
amalgamando valores e, assim, produzindo as ideologias sobre as questões agrárias.
Contemplar as questões fundiárias, enfrentando dramaticamente temáticas opostas
e contraditórias quanto ao que podemos chamar de “vida rural” brasileira, na visualização de
situações como, por exemplo, de coações - as promovidas pelos donos de grandes extensões
de terra, que tentam impedir a entrada de sujeitos, tornou bastante visível a posição dos que
têm a propriedade rural. Apoiados nos pilares da economia mundial, sustentam-se por
projetos que, na defesa do agronegócio, desconsideram o elemento humano, numa imposição
de modelos sócio-econômicos. Acima da heterogeneidade de textos, o discurso do
agronegócio impõe-se unívoco, reduzindo a heterogeneidade espessa de homens, mulheres e
crianças à fome incontrolável de altos lucros.
Independentemente da polêmica que alimentam, pelos diferentes pontos de vista
da elite local, os jornais deveriam, sim, cumprir a missão de estabelecer bases para o debate
social. E isso o leitor que consome o jornal poderia ter diante de seus olhos. No entanto, uma
variável praticamente anulada do trabalho jornalístico foi a criação de debates sobre as
questões agrárias. Lideranças, pesquisadores que compõem as faces de interação entre o senso
comum e visão crítica sobre o problema agrário brasileiro, não se constituíram em nenhuma
fonte para os jornais destas leituras. O analista atesta que o silêncio e a omissão constroem
sentido. Resta, assim afirmar que também comunicam da mesma forma que uma palavra
proferida. Ora, por ocasião do conflito com o prefeito de Presidente Prudente, ao adotar a
conduta de não dar voz aos diferentes sujeitos, o jornal deixou de promover um possível
debate, ampliando a visão do leitor sobre inúmeros dizeres sobre as questões agrárias, não
apenas no Pontal, mas possibilitando estendê-lo para o âmbito nacional.
310
A estratégia do silenciamento dos dizeres do grupo dos que reivindicam a terra
contou com a conivência dos jornais. Nessa cumplicidade foi apresentada e representada tão
somente a classe daqueles que defendem a propriedade rural nos moldes capitalistas. Nas
leituras relativas à passeata do MST, em janeiro de 2002, geradora da avalanche textual
jornalística, qual o sentido de terra para aqueles que promoviam a passeata? O leitor assiste ao
cenário da luta como núcleo dramático que privilegia a ação, a processualidade e a relação de
tensividade entre sujeitos e o objeto (terra). No entanto, não pode partilhar da voz de
anônimos a que a imprensa não deu espaço para falar.
No silenciamento, sentidos coletivos tecem-se no cotidiano daquela sociedade que
vive da terra. Impossível deixar de dizer que histórias deixaram de ser construídas,
desnudadas em textualidades que se perderam no íntimo de cada sujeito, a que não se deu
espaço para representar seu papel como ator na encenação do discurso jornalístico da terra, no
cenário brasileiro do Pontal.
Diante dos olhos do leitor, imagens parecem querer falar. Atores e cenários
emergem do processo dialético da história, cujo cenário é imposto pela mídia impressa a
organizar o percurso de sujeitos e espaços no texto do tema da terra. Comparecem sujeitos
mudos, a que não é dado o direito à voz, mas que podem ser visualizados como atores no
sincretismo temático, actancial, modal e passional da profusão dos gêneros midiáticos. Ao
leitor caberia interrogar sobre esses sujeitos e seus discursos. Onde estariam essas vozes?
Como uma espécie de nebulosa semântica, é preciso articular seu sentido, a fim de ressoe na
superfície do texto. Vistos como multidão (na negatividade como “bando”) a sociedade não
poderia ouvir seus dizeres? Por que desprezar essas potencialidades? São atores rurais de
programas que se chocam, mas que não se confundem. Mesmo diante da força temática
orientada para o actante coletivo (proprietário rural) podemos compreender a força do
programa narrativo daqueles cujos valores são tão diferentes e que não se confundem, sendo
possível compreender o texto jornalístico da terra como fases narrativas dentro dos cânones
de contratos, perfórmances e sanções. Nas estratégias de ganhar o leitor para a verdade de
determinados dizeres, também aí se constroem efeitos de sentido de verdade sobre a terra.
Como espaço que intimida, seduz, obriga, o jornal tenta orientá-los para o cumprimento de
atos cognitivos de adesão dos leitores, instaurando uma instância clara de interlocução com os
proprietários rurais. Trata-se de aspectos da maior presença e proximidade com o leitor, o
peso que as informações sobre as questões fundiárias representam no funcionamento da vida
na sociedade do Pontal, bem como o reforço da identidade local e o sentido de pertencer e
311
reconhecer-se. Não há como negar a interferência do “ator” mercado no processo de produção
de notícias e mesmo no modo como se articula uma sociedade da comunicação: ele,
definitivamente, é parte constitutiva do processo comunicacional.
Debruçamo-nos sobre a produção de efeitos de sentido para destacar o papel dos
discursos sobre a terra em Oeste Notícias e O Imparcial. Assim fomos levados a deslizar
continuamente entre valores eufóricos e disfóricos, na tentativa de detectar nas grandezas
expressas em cada texto, valores de ordem actancial, modal, aspectual, espacial, temporal,
enfim, valores de ordem tensiva, que oscilaram entre sujeitos na disputa pelo principal valor
em jogo, a terra.
Sabemos que o tema da terra também está ligada a imaginários que se referem à
busca de um espaço ideal, para perseguir o sonho por uma vida diferente da que se propõe nas
metrópoles. Entraria aí, então, como um todo de significação onírica, um sistema de
expectativas profundas, arraigadas na cultura, desde a formação da sociedade brasileira
pensada como um espaço paradisíaco. Se entendemos por imaginários de terra um sistema de
significações que se incrusta como um valor, poderíamos pensar todo o sistema de
expectativas profundamente arraigadas na sociedade desde os primeiros contatos com esse
objeto, desde os tempos dos primeiros habitantes, da formação e transformação da vida
agrária brasileira até os dias atuais.
O imaginário da terra, então, como discurso social, materializado em Oeste
Notícias e O Imparcial, não tem como fugir a esse imaginário. Remete a ele e implica os
discursos que parafraseiam uma vida rural, ao longo de nossa história. Assim, aparece a terra
como lugar para o trabalho e sobrevivência, lugar para investimento e negócios, saída para a
política econômica do país, espaço para o convívio com a natureza, lugar da tranqüilidade e
sossego, lugar da simplicidade de vida.
A região do Pontal, com grandes extensões de terra, se recusa a fixar no campo um
contingente populacional, impondo um forte imaginário por meio da mídia impressa,
“entretecendo” um poder da terra para negócios e não para o trabalho e sobrevivência do
homem. Marcadamente no âmbito atual, existe uma instância superior, o Mercado, que a
pensa como objeto. Construída por esta instância, a terra é, assim, o lugar de enunciação
variável historicamente em sua configuração actorial, desde a aparição das primeiras
habitações no Pontal, conforme focalizamos nos dados obtidos extradiscursivamente, ou seja,
nos diversos textos pesquisados. Tivemos acesso a referências sobre os índios como primeiros
habitantes do Pontal, mas não colocamos o foco sobre tais sujeitos. Uma visão sincrônica
312
nesta reflexão sobre as questões agrárias regionais leva-nos a considerar como primeiros
habitantes aqueles que vieram de outras regiões e ali se instalaram em fins do século XIX.
Movidos pela vontade de explorar o espaço, delimitaram-no com cercas, esticadas sempre
com a finalidade para a posse e aumento da propriedade. Ora, dessa organização social
emerge a produção dos discursos sobre a terra cujos universos figurativos conduzem
programas narrativos, a que poderíamos denominar programas de uso da terra. Podemos ver,
então, o espaço rural do Pontal do Paranapanema da perspectiva dos que defendem os grandes
investimentos agrários e a manutenção das grandes extensões de terra. A isso se agrega o
conjunto de temas da atualidade capitalista cuja função parece ser a de sobredeterminar o
tema da terra baseado no sistema de agricultura, da pecuária, da organização rural como lugar
específico para a plantação, para os animais e para os seres humanos. A maneira da leitura da
terra nos textos jornalísticos parece assim querer resistir à possibilidade para percursos
narrativos que não coincidam com o que é estabelecido pelo mercado. No entanto é inegável a
mobilidade social promovida pelas relações centradas nas questões da terra: sua aquisição ou
perda. Comprovemos esses dizeres pelas palavras de um dos estudiosos das questões agrárias
do Pontal:
Não é raro encontrar um fazendeiro que, alguns anos atrás, ainda era um
simples colono [...]. Chegaram a adquirir fazendas grande número de
imigrantes e seus descendentes [...]. O negociante de terras, agrimensor
enriquecido por sorte, torna-se fazendeiro. O pequeno proprietário está
preste a vender a parcela de terra, que penosamente explorara para tornar-se
arrendatário ou meeiro (MONBEIG, 1998, p.162).
Sabemos que os detentores da propriedade rural sempre ditaram as regras a serem
seguidas, estabelecendo o programa narrativo da terra na sociedade brasileira. No entanto, não
se podem excluir momentos de ruptura na linearidade das relações entre patrão/empregado,
senhor/escravo como se o fio da história se desenrolasse apenas pelo fazer dos donos das
terras. Dizeres para sustentar a inversão das posições de inferioridade e de superioridade que
caracterizam as relações agrárias entre os indivíduos no Pontal são silenciados na produção
dos discursos sobre a terra em Oeste Notícias e em O Imparcial, mas isso não quer dizer que
não estejam circulando.
Não tivemos aqui o objetivo de participar das discussões sobre os inúmeros
momentos de tensão que colocaram a “terra” como objeto de disputa, movimentando
narrativas da história da disputa pela terra no Pontal do Paranapanema. Em primeiro lugar por
nos faltar competência para assumir posições no terreno das ciências sociais, em segundo
313
lugar porque, mesmo que preenchêssemos as condições exigidas, este trabalho não se destina
a debates sociológicos.
No percurso das nossas leituras da temática da terra construída na mídia impressa
do Pontal do Paranapanema, deixamos como observações finais que a construção da
significação dos textos jornalísticos passam da ilusão referencial da realidade de dizeres sobre
acontecimentos para a ilusão interpretativa de sujeitos movidos não só por valores racionais
ou intelectuais, mas também por valores afetivos. Imprescindíveis, esses valores põem em
cena o sujeito, desmistificando qualquer mito da objetividade jornalística, que defende a idéia
da imparcialidade, da neutralidade. A nossa tentativa foi a de mostrar que, na experiência
sensível do processo enunciativo, emergem os discursos da terra. A visão de mundo
manipuladora da defesa da propriedade rural leva a “escolhas” que determinam valores para
recriar dizeres que reportem à realidade a ser mantida, segundo uma determinada ideologia
que visa a interesses precisos.
Resulta daí o discurso sobre a Terra em que ela se manifesta como objeto de cisão
da sociedade, a contrapor duas margens: de um lado os que têm a terra; do outro os que a
almejam. Um mesmo objeto e dois percursos narrativos. Excludentes como margens que se
opõem, assim é a terra-texto dos discursos jornalísticos do Pontal, construída para levar a
efeitos de sentido de aceitação ou rejeição do programa narrativo do proprietário rural.
314
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
ABREU, D.S. Formação Histórica de uma Cidade Pioneira Paulista: Presidente
Prudente. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Presidente Prudente, 1972.
ALSINA, M. R. La construcción de la notícia. Barcelona: Ed. Paidós, 1996.
ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983.
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas – as não-coincidências do dizer. Campinas:
Editora da Unicamp, 1998.
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour
une approche de l’autre dans le discours. DRLAV. Revue de linguistique. Paris: 1982 , v. 26,
p. 91-151.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. São Paulo: UNESP, 1998.
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 8
a
ed. São Paulo:
Hucitec, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. Tipos de discurso na prosa. In:_______. Problemas da poética de
Dostoiéwski. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.157-263.
BARROS, L. M. Comunicação: uma abordagem plural. In: Cummunicare Revista de
Pesquisa Faculdade de Comunicação Casper Líbero. Volume 2, II semestre de 2002.
315
BARROS, Diana L. P. de . Sintaxe narrativa. In: Oliveira, A.C.,Landowski, E. Do inteligível
ao sensível. Em torno da obra de Algirdas Greimas. São Paulo: Educ, 1995. p.81-97.
BARROS & FIORIN, J.L. (Orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo:
Edusp, 1994.
BARROS, D. L. P. de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.
BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BARTHES, R. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BAUDRILLARD, J.Para uma crítica da economia política do signo. Lisboa: Ed.70, São
Paulo: Martins Fontes, s/d.
BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral I. Campinas: Pontes, 1995.
BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
BERGER, P. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes,
1985.
BERTRAND, D. Caminhos da Semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003.
BERTRAND,D. Figurativité: l´avant-scène du sens. VS 73,74. Quaderni di studi
semiotici. Bompiani, gennaio-agosto, 1996.
BORDIEU, P. Cultura e Política. In: ______ Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco
Zero, 1983.
BOSI, E. Revista Contexto,(2) : 97-104, São Paulo, Hucitec, mar. 1977.
316
BRAIT, B.(Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: UNICAMP,
1997.
BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: UNICAMP, 1996.
BRAIT, B. A construção do sentido: um exemplo fotográfico persuasivo. Língua e
Literatura. São Paulo: n.21,p.19-27,1994/1995.
BUITONI, D H. S. Jornalismo: o tecido e o acontecido. In: Revista da USP. São Paulo: USP,
n. 6, 1990: p. 175-182.
COMPARATO, F. K. Cadernos de jornalismo e editoração da ECA. 1990.
CÁDIMA, F. R. Ficções em série: fragmentos do dispositivo logotécnico da televisão. In:
MONTEIRO, P. F (Org.). Revista de Comunicação e Linguagens: Dramas. Lisboa: Ed.
Cosmos, 1997.
CALLADO, A. (Org). Comunicação e Cultura Contemporâneas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
CAPELATO, M. H. Imprensa: fábrica de notícia. In: Cadernos de jornalismo e editoração.
São Paulo. ECA/USP, 11, n.25, jun-1990.
CARVALHO FILHO, J. J. Reforma Agrária de eleição a eleição. Estudos Avançados.
Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Avançados . Vol. 31, p. 99 – 109, 1997.
CEBRIÁN, J. L. Cartas a um jovem jornalista. Lisboa: Bizâncio, 1998, Coleção
Documentos, n.º 2.
CHAPARRO, M. Sotaques d’aquém e d’além mar - percursos e géneros do jornalismo
português e brasileiro. Santarém: Jortejo Edições, 1998, p. 97 - 100.
CHAPARRO, M. Pragmática do jornalismo. São Paulo: Summus, 1994.
317
COSTA, C. T. O relógio de Pascal - a experiência do primeiro ombudsman da imprensa
brasileira. São Paulo: Siciliano, 1991.
COURTÉS, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Almedina, 1979.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo.
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE,G. Controle e devir. In:____ Conversações. Rio de janeiro: Ed. 34, 2000.
DISCINI, N. O estilo nos textos: quadrinhos, mídia, literatura. São Paulo: Contexto, 2003.
DUCROT, O. Estruturalismo e lingüística. 2
a
. ed. São Paulo: Cultrix, 1968.
ECO, H. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FERNANDES, B. M. MST formação e territorialização. São Paulo: Hucitec, 1996.
FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio Básico de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
FIORIN, J. L. (org.) Introdução à Lingüística. São Paulo: Contexto, 2002, volume I.
FIORIN, J. L. Modalização: da língua ao discurso. Alfa Revista de Língüística. São Paulo:
Unesp, v. 44, p. 171 – 192, 2000.
FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação. 2
a
. ed., São Paulo: Ática, 1999.
FIORIN, José Luiz.Linguagem e Ideologia. 5
a.
ed. São Paulo: Ática, 1997
318
FIORIN, J. L. O corpo na Semiotica francesa. In: SILVA, A. I. et alii (Orgs.) Corpo e
sentido. São Paulo: Editora da UNESP, 1996.
FIORIN, J. L. Regime de 64: discurso e ideologia. São Paulo: Atual, 1988.
FOLHA DE S. PAULO. Projeto editorial 97, 17/8/97.
FONTANILLE, J. Retóricas Polissensoriais. In: I Congresso Internacional de Semiótica.
Araraquara: 10 de outubro, 2003, mimeo.
FONTANILLE, J. e ZILBERBERG, C. "La peur, la crainte, la terreur, etc.”, 2003, mimeo
FONTANILLE, J. & ZILBERBERG, C. Tensão e significação. São Paulo: Discurso
Editorial: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
FONTANILLE, J. Sémiotique du discours. Paris: Pulim. Collection Nouveaux Actes
Sémiotiques, 1998.
FONTANILLE, J. e ZILBERBERG, C. “Praxis” – Troisieme partie: De l’existence a
l’enonciation. e “Fiducie” – Quatrieme partie: Les raisons du pathemique , in Tension et
Signification, elements de semiotique tensive. , mimeo
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2000.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. graal, 1993.
FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Petrópolis : Vozes, 1971.
GARCIA, L. (Org). O Globo - Manual de Redação e Estilo. São Paulo: Globo, 2000.
GENRO, A. F. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto
Alegre: Tchê, 1987, p. 80.
GREIMAS, A. J. Da Imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002.
GREIMAS, A. J. Du Sens II. Paris: Seuil, 1983.
319
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976 (a).
GREIMAS, A. J. Ensaios de semiótica poética. São Paulo: Cultrix, 1976 (b).
GREIMAS, A. J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975.
GREIMAS, A. J. L’Enonciation”, Significação. Ribeirão Preto: Centro de Estudos
Semióticos, n. 1, 1974. p.9-25.
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Sémiotique, dictionnaire raisonné de la théorie du
langage. Paris: Hachette, 1986. t. 2.
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s/d.
GREIMAS A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993.
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Actes Sémiotiques: Documents. Paris: INLF, v.4, n.34, 1982, p. 3-23.
GUERRA, J. L. O contrato fiduciário entre o jornal e o público. Paradoxos da crítica à
objetividade. In: Comunicação & Política, n.s., v.5, n.1, p.197-214. Rio de Janeiro: Cebela,
janeiro-abril, 1998.
GUILHAUMOU, J. & MALDIDIER, D. Da Enunciação ao Acontecimento em Análise do
Discurso. In: GUIMARÃES, E. (Org). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes,
1989.
HACKETT, R. Declínio de um paradigma? A parcialidade e a objetividade nos media
noticiosos. In: TRAQUINA, N. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa:
Vega, 1993, p. 101-132.
HENRY, P. A história não existe? In: ORLANDI, E. Gestos de leitura. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1994.
320
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975.
HOLANDA, S. B. Raízes do BrasiL. 5
a.
ed, Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
IANNI, O. Teorias da globalização. 5
a.
edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasleira, 1999.
JAMESON, F. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. In:______ Pós-modernismo. A
Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1999.
KUCINSKI, B. A síndrome da antena parabólica - ética no jornalismo brasileiro. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
LAGE, N. Ideologia e técnica da notícia. Petrópolis: Vozes, 1979.
LE GOFF, J. História e memória. 4
a
ed. Campinas: Ed. da UNICAMP,1996.
LEFÈBVRE, H. A linguagem e a sociedade. Lisboa: Ed. Ulisséia, 1966.
LEITE NETO, A. Admirável novo jornalismo. Folha de S. Paulo.Sao Paulo, 27 jul. 1998.
LIPPMANN, W. A natureza da notícia. In: STEINBERG, C. S. (Org.). Meios de
comunicação de massa. São Paulo: Cultrix, 1972.
LONARDONI, M. "Aconteceu, virou manchete" - um estudo dos vetores de manchetes
jornalísticas. In: VASCONCELOS, S. I. (Org.). Os discursos jornalísticos: manchete,
reportagem, classificados e artigos. Maringá: Eduem, 1999.
LOPES, E. A Identidade e a Diferença. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1997.
LUCKMANN, T. & BERGER, P. A construção social da realidade. Tratado de sociologia
do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1998.
321
MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: Ed. Da
UFMG,1998.
MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1993.
MAINGUENEAU, D. Genèse du discours. Bruxelas: Pierre Mardaga, 1984.
MOUILLAUD, M. O sistema das citações. In: PORTO, S. D. (Org.). O jornal: da forma ao
sentido. Brasília: Paralelo 15, 1997.
MALDIDIER, D. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França. In:
ORLANDI, E. et alii. Gestos de Leitura.Campinas: Unicamp, 2003.
MANUAL DE REDAÇÃO DA FOLHA DE S. PAULO. São Paulo: Publifolha, 2001.
MARCONDES FILHO, C.O capital da noticia. São Paulo: Ática, 1986.
MARCUSCHI, L. A. A ação dos verbos introdutores de opinião. In: INTERCOM REVISTA
BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. São Paulo: ano XIV, nº 64, 1991.
MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às Mediações: Comunicação, Cultura e Hegemonia,
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,1997.
MARTINS, E. Manual de Redação e Estilo de O Estado de São Paulo. São Paulo: O
Estado de São Paulo, 1997.
MARTINS, J. S. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Hucitec, 1996.
MEDINA, C. ; LEANDRO, P. R. A arte de tecer o presente. São Paulo: Mídia, 1973.
MONBEIG, P. Pioneiros e Fazendeiros. São Paulo: Hucitec, 1998.
MOTTER, M.L. Ficção e História. Imprensa e Construção da Realidade. São Paulo: Arte
& Ciência-Vilipress, 2001.
322
MOUILLAUD, M. Grammaire et idéologie du titre de journal. Lyon: Mots, 1982.
MOUILLAUD, M. & PORTO, S.(Orgs.). O jornal: da forma ao sentido. Brasília: Paralelo
15, 1997.
NEGRI, A. ; HARDT M. Império. In: ____ Produção biopolítica. São Paulo: Record, 2001.
NEUMANN, E. N. O acontecimento. In: TRAQUINA, N.(org.) Jornalismo: questões,
teorias e "estórias". Lisboa: Vega, 1993,p.27-33.
PAIVA, A. C. Novos Cenários sociais, nova cena subjetiva. In: _____ Sujeito e laço social.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 23-71.
PÊCHEUX, M. Papel da memória In: ACHARD, P. et alii. Papel da memória. Campinas:
Pontes, 1999.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 2ª ed., Campinas: Pontes, 1997
PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma
retificação. In: _____. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
Editora da Unicamp, 1995.
PÊCHEUX, M.; & FUCHS,C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e
perspectivas. IN:GADET, F. & HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso:
uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1997.
PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia/ São Paulo:
Brasiliense, Publifolha, 2000, (Grandes nomes do pensamento brasileiro).
QUEIROZ, E. A cidade e as serras. Porto: Lello & Irmão, 1950.
I CENSO da Reforma Agrária no Brasil. USP Estudos Avançados. São Paulo, vol. 11, n. 31,
p. 7 – 37, setembro/dezembro, 1997.
323
RICCEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Constança Marcondes César. Campinas:
Papirus,1994.
RODRIGUES, A. O Acontecimento. In: TRAQUINA, N (Org.) Jornalismo: Questões,
Teorias e "Estórias". Lisboa: Vega, 1996.
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1995.
SCHAFF, A. Linguagem e conhecimento. Coimbra: Almedina, 1974.
SILVA, I. A. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. São Paulo: Editora Unesp,
1995.
SILVA, M. Da luta pela terra à luta com a terra. (Re)constituição da fala do assentado.
Araraquara: UNESP, 1999, Dissertação de mestrado.
SOUSA, M. W. – O lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995.
SOUSA, W. M.(Org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1995.
TATIT, L. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
TATIT, L. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. São Paulo: Escuta, 1994.
TUCHMAN, G. A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de
objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, N. Jornalismo: questões, teorias e “estórias”.
Lisboa: Vega, 1993, p. 85.
WOLF, M. Teorias da comunicação. 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1992.
ZIZEK, S.(org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
324
ANEXOS
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo