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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA
CONTESTAÇÃO E DESVARIO: TENTATIVAS DE
EXPERIMENTAÇÃO DO DRAMA BRASILEIRO PÓS-68
Welington Andrade
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura Brasileira, do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
para obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador: Prof. Dr. João Roberto Faria
São Paulo
2006
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2
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. João Roberto Faria, orientador cujo porto seguro para o orientando é aliar
o rigor que devota à atividade acadêmica a uma sempre dedicada atenção no trato
pessoal.
Às Prof.ªs Dras. Maria Sílvia Betti e Elizabeth R. Azevedo, pelas argutas observações
feitas no Exame de Qualificação, que foram fundamentais para o desenvolvimento
posterior da pesquisa.
Ao Museu Lasar Segall e ao Cedoc/Funarte - Centro de Documentação e Informação
em Arte da Fundação Nacional de Arte - cuja presteza no atendimento às atividades de
pesquisa deve ser celebrada.
Aos meus familiares e amigos, pela constante interlocução acerca das coisas desta tese,
do teatro e da vida.
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3
RESUMO
A presente tese objetiva estudar a produção dramatúrgica inicial de quatro
autores brasileiros que surgiram entre fins dos anos 60 e início da década de 70:
Antonio Bivar (Cordélia Brasil, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da
manhã e Alzira Power), José Vicente (Santidade e O assalto), Roberto Athayde (O
reacionário, Um visitante do alto, Manual de sobrevivência na selva, Apareceu a
Margarida e No fundo do sítio) e Eid Ribeiro (Delito carnal).
O trabalho consta de duas partes que têm por intuito a interlocução entre o geral
e o particular, no que diz respeito ao estudo de uma extensa produção. Deste modo,
recuperam-se as condições históricas do período que viu surgiu estes criadores, atendo-
se, posteriormente, à análise estética dos textos mais emblemáticos dos dramaturgos.
Defende-se aqui a idéia de que o surgimento de uma dramaturgia inquieta e
inconformada na virada dos anos 60 para a década de 70 está vinculado, por um lado, a
um modo de recepção muito particular de inúmeras informações das vanguardas
internacionais, da indústria cultural e da contracultura que chegaram ao Brasil e, por
outro, a um contexto sócio-político nacional único. Assim, pretende-se contribuir para o
reposicionamento da obra destes quatro autores de talento tão singular na história do
teatro brasileiro recente.
PALAVRAS-CHAVE
dramaturgia, contestação, desvario, contracultura, anos 60
4
ABSTRACT
The present thesis intends to study the initial dramaturgical production of four
Brazilian authors that showed up between the end of the 60s and the beginning of the
70s: Antonio Bivar (Cordélia Brasil, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da
manhã and Alzira Power), José Vicente (Santidade and O assalto), Roberto Athayde (O
reacionário, Um visitante do alto, Manual de sobrevivência na selva, Apareceu a
Margarida and No fundo do sítio) and Eid Ribeiro (Delito carnal).
This work consists of two pieces that propose the interlocution between the
general and the particular, concerning the study of a large production. Thus, the
historical conditions from the period these creators popped up are recovered,
considering, later, the esthetical analysis of the dramatists´ most emblematic texts.
Is defended here the idea that the appearance of an uneasy and restless
dramaturgy on the turn of the 60s to the 70s is tied, on one hand, with a very particular
kind of reception of innumerable information from Internacional vanguards, from
cultural industry and from the counterculture that arrived in Brazil and, on the other
hand, to an unique social-political context. Thus, is intended to contribute to the
relocation of these four authors’ workmanship, whose skills are so singular in Brazilian
theater’s recent history.
KEY-WORDS
dramaturgy, protest, delirious, counterculture, the sixties
5
SUMÁRIO
RESUMO.......................................................................................................................... 2
ABSTRACT......................................................................................................................3
INTRODUÇÃO.................................................................................................................5
CAPÍTULO 1
Panorama pós-68: questões de (des)ordem.....................................................................13
CAPÍTULO 2
As três primeiras peças de Antonio Bivar.......................................................................69
CAPÍTULO 3
As duas primeiras peças de José Vicente......................................................................117
CAPÍTULO 4
As peças precoces de Roberto Athayde........................................................................158
CAPÍTULO 5
A primeira peça de Eid Ribeiro.....................................................................................196
CONCLUSÃO...............................................................................................................218
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................227
ANEXOS.......................................................................................................................235
6
INTRODUÇÃO
7
O presente trabalho procura investigar um período profícuo do teatro brasileiro
recente que viu surgiu um sem-número de criadores e pensadores dispostos a avaliar,
questionar e, muitas vezes até, transformar alguns aspectos políticos e culturais da
realidade nacional.
A primeira justificativa para esta averiguação em torno do teatro dos anos 60
(cujas condições de atuação se estenderam até meados da década de 70) diz respeito a
um aspecto eminentemente afetivo. Foi durante este período que o pesquisador se
alfabetizou lingüística e culturalmente, recebendo os mais variados estímulos e
impressões que mais tarde iriam apontar para determinada trajetória profissional e
intelectual. A segunda justificação trata da necessidade de resgatar a história de uma das
artes menos prestigiadas no panorama atual - o teatro - e de um gênero literário
irrequieto, embora bissexto, como a dramaturgia brasileira. Por fim, há também uma
terceira razão: a vontade de se debruçar sobre um período histórico tão emblemático,
tentando lançar sobre ele ainda um sopro de novidade.
No início da década de 70, o crítico e ensaísta Anatol Rosenfeld escreveu um
pequeno ensaio intitulado “Teatro em crise”, no qual, a despeito do grande fantasma da
falência que rondava os palcos brasileiros, celebrava a surpreendente atmosfera de
vitalidade que pairava sobre eles:
Diga-se o que quiser, é impossível negar que houve, ainda nos últimos anos, momentos em que o
teatro, ultrapassando o âmbito estritamente artístico (e a arte teatral, quanto mais teatro e arte é, tanto
mais tende a transcender-se), foi uma força das mais vibrantes, instigadoras e fecundas do movimento
cultural brasileiro. Criações como Arena conta Tiradentes ou Feira Paulista de Opinião ou algumas
encenações de José Celso, anteriores ao desvio de Gracias, señor (pense-se no Rei da vela ou Na selva
das cidades); o aparecimento de um dramaturgo excepcional como Plínio Marcos, seguido de autores
talentosos como Leilah Assunção, Consuelo de Castro, José Vicente, Antônio Bivar e outros, nem
mencionando a presença atuante de dramaturgos veteranos como, por exemplo, Gianfrancesco Guarnieri
(Castro Alves pede passagem), tais e outros eventos cênicos ou manifestações de criatividade, há poucos
anos atrás, comprovam a vitalidade do teatro brasileiro e sua importância artística e cultural. Talvez só o
surto do Cinema Novo possa comparar-se, como corrente artística compacta de grande relevância
cultural, ao movimento cênico dos fins da década passada.
1
1
ROSENFELD, Anatol. Teatro em crise. In: ______.Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2000. p.
257.
8
Podemos vislumbrar no excerto, que praticamente conclui o texto, duas questões
fundamentais. Inicialmente, ele veicula uma admirável capacidade de sintetizar as
principais tendências do teatro brasileiro na virada da década de 60 para a de 70. Estão
aqui registradas as presenças dos grupos Arena, Opinião e Oficina; de dois dramaturgos
fundamentais para a compreensão histórica do período, Gianfrancesco Guarnieri e
Plínio Marcos; e dos novíssimos e promissores autores que receberam também a
alcunha de “geração 69” - todos muito jovens, diga-se de passagem. Em segundo lugar,
o crítico defende veementemente a fertilidade, a prontidão crítica e o potencial de
interlocução do teatro com a cultura brasileira.
Seria natural esperar que estas indicações de Anatol Rosenfeld preparassem o
terreno para pesquisas futuras que investigassem as relações profundas entre as
tendências apresentadas. Porém, poucas iniciativas consistentes foram desenvolvidas a
partir do panorama traçado - fato mais natural ainda, em se tratando de um País pouco
afeito a investidas no passado.
Certo é que o crítico chamou a todos, mas a História tratou de escolher somente
alguns. Passadas mais de três décadas, graças ao esforço e à seriedade de muitos
pesquisadores, o ideário e a trajetória de grupos como o Arena, o Oficina e o Opinião,
além dos de inúmeros diretores, dramaturgos, atores e intelectuais que atuaram direta ou
indiretamente junto a estas companhias, estão preservados do ocaso e da imprecisão.
Entretanto, certas experiências artísticas capitais que lhes foram contemporâneas e
alguns de seus desdobramentos posteriores permanecem, por inúmeras razões, ainda
como figuras periféricas nas fotografias que, vez ou outra, as investigações históricas
produzem sobre aquele momento.
O foco da presente pesquisa recairá, assim, sobre a atuação de alguns dos jovens
dramaturgos brasileiros de fins da década de 60 e início dos anos 70 que procuraram
renovar a dramaturgia nacional, reagindo de modo muito particular ao comportamento
estético e político das principais companhias de teatro do período (Arena, Oficina e
Opinião, sobretudo) - o que os levou a manter uma distância deliberadamente calculada
dos questionamentos e das conquistas empreendidos por aqueles grupos.
No entanto, para se lançar à tarefa, é preciso considerar algumas preocupações
que envolvem um objeto de estudo a um só tempo instigante e complexo. Inicialmente,
há que se celebrar o fenômeno do aparecimento quase simultâneo de diversos autores
teatrais por volta do fim da década de 60. Reside aí um aspecto praticamente inédito em
nossa dramaturgia que propõe uma pergunta imediata: esses jovens dramaturgos
9
chegaram a constituir um movimento, instituindo entre nós um tipo de atuação gregária
rara ou mesmo inexistente até então?
Um segundo ponto indica uma situação espinhosa. Há um grande número de
mulheres que integram a chamada geração de 69 - o que inevitavelmente convida o
pesquisador a querer entrelaçar certos elementos de sua análise a determinadas questões
históricas ligadas ao estudo de gênero. Foi o que fez a pesquisadora Elza Cunha de
Vincenzo em seu notável trabalho Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco
brasileiro contemporâneo, que, embora estude com riqueza de detalhes as
peculiaridades dos trabalhos das autoras selecionadas por ela, conclui:
Independentemente do fato de haver ou não da parte das autoras algum propósito consciente,
seria difícil negar o caráter feminista de que se reveste o fenômeno como um todo, seja quanto às
possibilidades de seu surgimento, seja quanto ao essencial no sentido de sua existência.
2
Deste modo, seria legítimo supor que há, no grupo dos novos dramaturgos de 69,
duas preocupações essenciais de feições muito distintas entre si, que nos permitem
separá-los por gênero?
Outro aspecto a ser considerado é a medição exata da dimensão que a década de
60 como solo histórico deu a estes criadores e suas criações. É quase certo afirmar que
nenhum outro decênio gozou de tamanha popularidade no século passado. Entretanto,
sob a ponte desta estima generalizada por “aqueles anos incríveis” correram muitas
águas carregadas de leviandade e mistificação.
Na esteira desta preocupação, reponta um outro problema - fruto direto dela, mas
que deve ser tratado de maneira autônoma. A década de 60 parece ter cristalizado em
nós uma série de expedientes lingüísticos que, apressada e superficialmente, tomaram
lugar em nosso discurso cotidiano, e que foram (e ainda são) reiterados de modo
sistemático pelo automatismo de um tipo de discurso jornalístico condenado ao
privilégio de muita informação:
Os anos finais da década de 60. A guerra do Vietnã, maio de 68 em Paris, a contracultura
(herdeira direta da beat generation) explodindo dos Estados Unidos para o mundo, o homem na Lua. A
arte “faça-você-mesmo” do underground; o flower power, o glamour na propaganda dos novos
experimentos, o acesso às ervas expansoras e drogas alucinógenas, pôsteres de Che Guevara em quartos
2
São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 278.
10
de comunidades psicodélicas e nas paredes de repúblicas estudantis em simultaneidade com o dropping
out (as fugas em massa das universidades), a revolta juvenil contra a caretice repressora do establishment,
a queima dos sutiãs em praça pública, as revoluções sexuais e raciais - um novo espírito anárquico
alastrava-se pelo planeta. Os guardiões do Sistema, as facções conservadoras, viam nessa movimentação
mera degeneração da eterna irresponsabilidade juvenil. Outros, antenados ou simplesmente hedonistas,
viam nas novas atitudes algo a ser observado com interesse e, dependendo da circunstância, inclusive a
ser experimentado. Este espírito, claro, chegou também ao Brasil, onde uma outra realidade tomava conta.
O país vivia desde 64 sob o regime da ditadura militar, que provocava revoltas estudantis e a luta
armada contra a repressão. O teatro do lado dos oprimidos era uma das trincheiras mais ativas,
manifestando-se com desafio e muita garra. Seu pior inimigo era a censura federal.
Estamos agora no eixo Rio-São Paulo, o ano é de 1968. Eis que surgem, vindos de origens
várias, cinco autores, jovens na casa dos 20 anos, com estilos diversos, mas independentes da tradição
dramatúrgica que vinha se fazendo até então na cena teatral brasileira.
Assim que essa força nova revelou contornos mais explícitos, recebeu da crítica a alcunha de
“Nova Dramaturgia”. Os autores são, por ordem de estréia de peças, Antonio Bivar, José Vicente, Leilah
Assunção, Consuelo de Castro e Isabel Câmara.
3
Vale lembrar que de todas as sedimentações discursivas proferidas sobre o
período, certamente o conceito de “contracultura” é aquele que mais prontamente
invoca a atmosfera do “encanto radical” de outrora, ainda que paire sobre ele uma boa
dose de impropriedade e inexatidão.
Um quinto elemento a ser considerado diz respeito à atitude de grande parte da
historiografia oficial com os dramaturgos da geração de 69. Da negligência à aversão,
passando pelo desdém e pela incompreensão, muitos textos críticos e até mesmo de
caráter memorialístico acabaram por amplificar as manifestações teatrais canônicas do
período até praticamente fazerem sombra a estas formas menos unívocas que merecem e
precisam ser estudadas.
Uma outra preocupação aponta para um elemento desafiador: os novos
dramaturgos responderam de modo muito expressivo ao momento social e político que
o País testemunhava em particular e ao contexto sociocultural mais amplo que o mundo
vivia naqueles anos. No âmbito nacional, muitas das restrições impostas foram
contornadas ou combatidas com posicionamentos efetivos e atuantes, ainda que não em
3
MACHADO Álvaro. Bivar e a nova dramaturgia. In: BIVAR, Antonio. As três primeiras peças:
Cordélia Brasil, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, O cão siamês ou Alzira Power.
Londrina: Azougue, 2002. p. 7.
11
plena consonância com as formas de resistência propostas pelos setores da esquerda
tradicional. No contexto externo, os mais variados elementos das vanguardas
internacionais foram digeridos e reprocessados, gerando novas formas, bastante
peculiares.
Chegamos, então, ao penúltimo aspecto do problema: a nova dramaturgia
também teve como projeto a instauração de diversas instâncias de diálogo com a nação,
muitas delas ecoando até os dias de hoje, no mundo das artes e da comunicação.
Retratando certos tipos urbanos e suburbanos, revelando o comportamento do homem
brasileiro - nos campos sexual, afetivo e profissional - ou ainda investigando as razões
de ser de nosso espírito alegre, melodramático, patético, tragicômico, as peças da
geração de 69 constituem documentos preciosos para a compreensão daquelas
inestimáveis forças de pensamento e criação.
Por fim, chegamos ao oitavo e último elemento a ser considerado, e que conduz
diretamente à natureza do problema: que afinidades reais há entre alguns desses
dramaturgos? Que conexões podem ser estabelecidas entre as obras que eles produziram
e o panorama sociocultural do período?
A despeito da reconhecida qualidade de muitas peças concebidas por aquela
geração, e tomando por base grande parte das orientações expostas anteriormente,
determinadas escolhas acabaram sendo feitas. Há no trabalho de alguns autores da
chamada “geração de 69”, e de outros que surgiram no momento imediatamente
posterior, certos procedimentos comuns no trato dramatúrgico que merecem ser
investigados em conjunto, de modo a se tentar provar uma mesma filiação temática e
estilística entre eles.
Muitas das formas criadas por aqueles autores - pelos mais variados motivos -
foram marcadas pela experimentação. Peças com dois ou três personagens (ou ainda
monólogos), quase sempre de curta duração, veiculavam idéias e informações novas, -
captadas, sobretudo, do contexto cultural estrangeiro - que, no entanto, aqui eram
reelaboradas e aclimatadas a um modo de ser inegavelmente brasileiro. Grande parte
dos temas abordados por esses dramaturgos tratou de refletir as aspirações e os anseios
de uma boa parcela da juventude que procurava por caminhos alternativos de
resistência. Assim, atitudes que reuniam oposição, debate e altercação não saíram de
moda, mas assumiram feições diferentes. Por fim, um ambiente político e cultural tão
específico forjou no espírito desses jovens um tipo de resposta - estética e
comportamental - que, embora não tenha se revestido de um caráter programático,
12
irmanou muitos deles em relação ao trato dos estímulos recebidos. Esta é a geração do
“desbunde” - conceito que alinhava em igual medida as noções de deslumbramento e
loucura.
Assim, houvemos por bem selecionar os autores que, segundo nossa concepção,
melhor conduziram experimentações dramatúrgicas dispostas a fazer convergir os
terrenos da contestação e do desvario. Ou de outra maneira, aqui está reunida uma
produção teatral que misturou no mesmo tubo de ensaio certas formas delirantes a
alguns conteúdos contestatários e provocadores.
Nossa escolha, então, recairá sobre a obra inicial de quatro dramaturgos. À dupla
formada pelos dois integrantes masculinos de primeira hora da chamada “geração de
69” - Antonio Bivar e José Vicente - pode acrescentar-se o nome de Roberto Athayde,
que conceberia em 1971 um texto demolidor e explosivo (Apareceu a Margarida),
levado à cena em 1973, em companhia de outros registros experimentais menores,
porém muito representativos do que pretendemos demonstrar. A eles, um pouco mais
tardiamente, vem juntar-se o nome de Eid Ribeiro, autor de um espécime exótico de
farsa política - Delito carnal (1974) - que merece figurar no presente estudo não por
conta de aparecer constantemente listado em compêndios que tratam dos abusos da
censura no período e, sim, por ter concebido uma obra que constitui uma espécie de
cartada final no jogo das experimentações aqui apresentadas.
Amparando nosso trabalho de investigação crítica e analítica, procuramos
recorrer constantemente às análises empreendidas por nomes como os de Anatol
Rosenfeld, Roberto Schwarz e Sábato Magaldi, no que diz respeito a determinadas
questões culturais brasileiras, e os de Theodore Roszak, Herbert Marcuse e Martin
Esslin, no tocante aos problemas vividos pela contingência internacional.
Pareceu-nos legítimo ainda examinar somente as obras de início de carreira de
cada autor escolhido (as três primeiras peças de Antonio Bivar, os dois primeiros textos
de José Vicente, as chamadas peças precoces - cinco textos - de Roberto Athayde e a
mais primitiva experiência cênica de Eid Ribeiro), nas quais é possível identificar com
bastante clareza o modo como individualmente eles receberam determinadas influências
históricas e culturais que resultaram em traços comuns.
Sempre que disponíveis, a análise das peças deixou-se acompanhar por textos
críticos publicados por ocasião da encenação ou, posteriormente, em registros especiais
e livros. Da mesma forma e com o mesmo intuito de melhor embasar as análises,
entrevistas e textos memorialísticos foram invocados.
13
Aspectos próprios da encenação não foram considerados, uma vez que o
presente trabalho se vincula aos estudos de dramaturgia. Deste modo, parece-nos
legítimo veicular a análise de dois textos que não foram encenados à época de suas
criações: Santidade, de José Vicente, e O reacionário, de Roberto Athayde.
Defendendo a idéia de que o surgimento de uma dramaturgia inquieta e
inconformada na virada dos anos 60 para a década de 70 está vinculado, por um lado, a
um modo de recepção muito particular de inúmeras informações das vanguardas
internacionais e da indústria cultural e, por outro, a um contexto sócio-político brasileiro
único e singular, o objetivo deste trabalho é contribuir para o reposicionamento de
determinados talentos na história do teatro brasileiro recente. Se tivermos conseguido
retirar dos nomes e das obras em questão a pátina da excentricidade ou da negligência
que mais normalmente tem cabido a eles nossa tarefa terá sido cumprida.
14
CAPÍTULO 1:
PANORAMA PÓS-68: QUESTÕES DE
(DES)ORDEM
15
É preciso estar atento e forte.
Divino maravilhoso. Gilberto Gil-Caetano Veloso
A geração de 69 e o novo drama brasileiro
Se o teatro brasileiro trilhou na década de 60 um notável caminho de
interlocução com o País em amplas e variadas frentes de discussão, desejando veicular
idéias que julgava fundamentais para a transformação da sociedade, o ano de 1969 mais
especificamente entrou para a história teatral do Brasil como aquele que testemunhou o
surgimento de uma nova dramaturgia, também chamada de “geração de 69”.
Em artigo publicado na revista Comentário, no final daquele ano, o crítico e
ensaísta Anatol Rosenfeld descreve as principais conquistas teatrais brasileiras do
período, abordando entre elas o que chamou de “a safra dos novíssimos”:
O ano de 1969 provavelmente será destacado, no futuro, como notabilíssimo na história do teatro
brasileiro, graças ao “estouro” de um número surpreendente de novos talentos, entre eles três jovens
dramaturgas - Leilah Assumpção, com a peça Fala baixo senão eu grito, Isabel Câmara, com As moças, e
Consuelo de Castro, com À flor da pele, esta última, aliás, já antes notada pela peça À prova de fogo,
proibida pela censura, mas superior à apresentada. Às três autoras acrescenta-se o jovem José Vicente,
com O assalto, cuja primeira peça Santidade, igualmente proibida pela censura, já revelou seu talento
excepcional. O cão siamês, de Antônio Bivar, enriqueceu a excelente temporada paulistana de 1969. Esse
autor já se tornara conhecido por duas peças, Cordélia Brasil, cujo êxito em parte se deve ao magnífico
desempenho de Norma Benguell, atriz de força extraordinária, e Abre a janela, obra em que se acentua,
como traço característico de Bivar, a ruptura com o realismo mais estreito em busca de dimensões
imaginárias que invadem o absurdo. Aliás, nenhum dos autores mencionados se atém ao realismo
tradicional.
4
Também Sábato Magaldi, outro observador de olhar acurado, assim registrou,
em artigo jornalístico datado de agosto de 1969, a aparição dos novos criadores:
1969 é o ano do autor brasileiro. E especialmente o ano do jovem autor brasileiro, que es
enriquecendo a nossa dramaturgia com um vigor e uma linguagem novos. Há pelo menos quatro
lançamentos muito significativos: Fala baixo senão eu grito, de Leilah Assumpção, e O assalto, de José
4
ROSENFELD, op.cit., p. 165-6.
16
Vicente, já estreados; À flor da pele, de Consuelo de Castro, e As moças, de Isabel Câmara, que ainda
começarão carreira.
Nunca se registrou, aqui ou no Rio, um movimento tão rico, atestando, sem
discussão, a maturidade do nosso palco.
5
Convém perguntar de imediato sob que aspectos esta dramaturgia poderia ser
caracterizada propriamente como “nova”, em relação ao panorama da época. É de
Anatol, no artigo mencionado, a tentativa de mapear as tendências formais e temáticas
do teatro brasileiro de então, uma preocupação recorrente do crítico, conforme pudemos
verificar na introdução deste trabalho. De acordo com ele, estavam convivendo em
nossos palcos, ao longo da década, o naturalismo de Plínio Marcos, o radicalismo
agressivo de Oswald de Andrade e a crítica social e de costumes representada nas obras
de Nelson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto (vale notar, autor de um poema
dramático de enorme sucesso - Morte e vida severina - e não um dramaturgo, a rigor),
Roberto Freire e Ariano Suassuna. Havia também o drama mítico de Dias Gomes, a
epopéia de Jorge Andrade e o teatro político de clara vocação para a forma épica de
Bertolt Brecht, identificado na dramaturgia de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.
Por fim, certa continuidade da estrutura formal e do espírito do teatro de revista e do
cabaré literário europeu era identificada nos shows musicais, na linha de Opinião e
Liberdade, liberdade, e nos chamados espetáculos-colagens, dentre os quais O homem
do princípio do fim, de Millôr Fernandes, era citado como exemplo.
Ao focalizar o grupo dos novos autores separadamente, Anatol trata de qualificá-
lo como um acontecimento original, a ser saudado em sua especificidade, mas, devido
ao caráter panorâmico de seu artigo, o crítico somente indica algumas possíveis pistas
para a compreensão mais estreita do fenômeno. Inicialmente, ele reconhece a influência
da linguagem de Plínio Marcos sobre todos e cita de passagem algumas escolas que lhes
servem de esteio:
Realistas pela linguagem coloquial e drástica, eivadas de palavrões - linguagem sem dúvida
influenciada por Plínio Marcos -, avançam para uma expressividade que, em muitos momentos, se abeira
do expressionismo confessional, do surrealismo e do absurdo.
6
5
MAGALDI, Sábato apud VINCENZO, op.cit., p. 4.
6
ROSENFELD, op. cit., p. 166.
17
No entanto, Anatol sugere uma filiação programática mais densa dos jovens
criadores ao Edward Albee de Zoo Story:
Todos os autores mencionados parecem ter sofrido certa influência de Zoo Story, de Edward
Albee: o encontro de duas solidões, uma consciente (a do marginal), outra inconsciente (a do
conformista), essa última em geral consciencializada pela agressão do outcast que abala o mundo
aparentemente seguro do “burguês” e com isso também a do público, arrancado do seu conformismo
pressuposto. Em todas as peças é característico, como em Zoo Story, o sentimento de depressão, “fossa” e
desespero, associado a fortes impulsos sadomasoquistas e violentas atitudes anárquicas. As peças são
documentos e sintomas terríveis, mas, ainda assim, promissoras pela honestidade e pelo inconformismo.
Todas elas ultrapassam, em alguns momentos ao menos, o significado meramente “documentário” e
confessional, atingindo, em maior ou menor grau, o nível da validade estética.
7
Sábato Magaldi identifica algumas semelhanças da nova dramaturgia com as
obras de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos, destacando ainda o fato de as peças da
geração de 69 se oporem a um tipo de teatro político no qual se submetia “a vivência a
uma idéia teórica a ser exposta”, muito praticado, segundo ele, nos palcos de então. Por
fim, o crítico arrisca uma análise coletiva:
Se são espantosas revelações de autores, deve-se procurar explicá-las, encontrando-se para elas
um possível denominador comum. Ninguém terá dificuldades em reconhecer um ponto de contato entre
os talentos da nova geração: todos se confessam no palco, exprimem, sem rodeios, a sua experiência,
vomitam com sinceridade o mundo que reprimiram nos poucos anos de vida. Essa postura carrega as
obras, fundamentalmente, de uma grande sinceridade, logo reconhecida pelo espectador, em geral
aparentado ao dramaturgo na experiência urbana das metrópoles. Eles se põem a nu, com uma liberdade
de linguagem que poderia assustar certos pudores e os ouvidos tímidos. Como o teatro funciona pela
autenticidade, as peças novas representam a iluminação de um mundo interior que a platéia tem prazer em
devassar.
8
É quase certo que tais considerações constituam-se nos únicos depoimentos de
caráter verdadeiramente analítico produzidos no período tanto quanto também não há
exagero algum em afirmar que o pesquisador interessado em se debruçar sobre essa
dramaturgia, vista em seu conjunto, encontrará nos dias de hoje pouquíssimos trabalhos
que, ao se referirem a ela, consigam ultrapassar a condição da menção breve ou da
notação jornalística.
7
Ibid., p. 167.
8
MAGALDI, Sábato apud VINCENZO, op. cit., p. 4.
18
Uma exceção deve ser feita, no entanto, a três pesquisas na área da teoria teatral
que procuraram recuperar a importância da geração de 69 para a história do teatro
brasileiro. Trata-se dos estudos “A geração de 69 no teatro brasileiro: mudança dos
ventos”, de Sônia Regina Guerra
9
, “Um teatro da mulher. Dramaturgia feminina no
palco brasileiro contemporâneo”, de Elza Cunha de Vincenzo, ao qual já nos referimos,
e “Nova Dramaturgia: anos 60, anos 2000”, de Ana Lúcia Vieira de Andrade
10
.
A primeira delas tenta panoramicamente encontrar os pontos de contato que há
entre as obras produzidas no período por Leilah Assunção, Consuelo de Castro, José
Vicente e Isabel Câmara. A segunda, de alcance indubitavelmente maior, investiga as
raízes históricas, sociais e culturais que fizeram explodir os talentos de Renata
Pallottini, Hilda Hilst, Leilah Assunção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara e Maria
Adelaide Amaral, apresentando um apurado painel da presença feminina na dramaturgia
brasileira dos últimos quarenta anos. Já a terceira procura estabelecer um paralelo entre
dois momentos distintos nos quais se cunhou o termo “nova dramaturgia” para designar
alguns jovens criadores de nossos palcos: o ano de 1969 e os anos 2000.
Além de investigar a questão do feminino, o notável trabalho de Elza Cunha de
Vincenzo tem ainda o mérito de evidenciar que a dramaturgia de 1969 acabou por
ganhar de certos setores da crítica a pecha de “teatro alienado” por não comungar com
as formas do teatro político mais conhecidas em nossos palcos, representadas,
sobretudo, pelos grupos Arena e Oficina - tão extensamente estudados nos últimos anos.
Parece residir nesta questão um problema bastante complexo a ser investigado.
A dimensão política voltada, especialmente, ao protesto direto contra a ditadura militar
instalada no Brasil em 1964, exercida pelo teatro brasileiro ao longo de toda a década de
60, constantemente ofusca outras formas de expressão teatrais que floresceram no
período. Por não atuarem segundo os modelos de resistência política conhecidos, estas
costumam ser ignoradas pela historiografia ou pouco compreendidas por ela.
De outro modo, a simples atribuição de “teatro político” a muitas das iniciativas
dos anos 60 é em si uma classificação redutora que - ressalvadas as convicções
ideológicas que possa querer traduzir - em nada ajuda a esclarecer o emaranhado
cenário em que diversas forças artísticas e históricas entraram em jogo naqueles anos
efervescentes.
9
Dissertação de mestrado apresentada à ECA-USP em 1988. Ver referências bibliográficas.
10
Livro recentemente editado. Ver referências bibliográficas.
19
No breve panorama que traça a respeito do desenvolvimento teatral brasileiro
entre 1969 e 1974, o historiador Carlos Guilherme Mota, não fosse a menção ao
trabalho de Leilah Assunção, teria ignorado por completo uma geração de autores em
pleno desenvolvimento criativo:
De 1955, quando, na era do nacionalismo teatral, estreou em São Paulo A moratória, de Jorge
Andrade, até o momento da afirmação de Augusto Boal, que retoma após 64 as experiências dos recém-
extintos CPCs, com o grupo do Arena encenando Arena conta Zumbi, as distâncias não serão tão
consideráveis assim, se se lembrar que apenas oito anos separam a estréia, no Oficina, da grande peça de
Oswald de Andrade, O rei da vela (1967) de Um grito parado no ar, de G. Guarnieri (1974). Na verdade,
nesse nível de produção cultural, a mensuração não pode ser realizada de maneira linear, sob pena de se
perder o essencial: a despolitização do público e a falência dos conjuntos teatrais.
Da desintegração da velha ordem senhorial e da montagem da sociedade de classes, em cuja
descrição se esmerou Jorge Andrade nos anos 50, e a tentativa de sobrevivência da lucidez de Guarnieri
numa sociedade de classes fortemente guardada nos anos 70, grande e árdua foi a trajetória. Não se trata
aqui de descrever o processo, mas de indicar, na etapa dos impasses da dependência, que após o AI-5, o
teatro brasileiro mais significativo foi banido dos palcos pela censura total, intransigente, castradora. Os
autores ficaram impedidos de abordar os grandes temas do Brasil em perspectiva crítica, especialmente os
políticos e os que discutissem dependência externa e frustração interna. Poucas foram as brechas por onde
penetrou algum ar: Leilah Assumpção, com “Fala baixo senão eu grito” foi uma delas - produzindo algo
estética e politicamente reconfortante. Plínio Marcos, além de ter proibidas suas novas peças, viu
cassados os alvarás das antigas. Francisco de Assis, já muito atuante na época do nacionalismo, ensaia
uma tentativa não de todo frustrada de teatro místico (“A missa leiga”). Debatendo-se, José Celso
Martinez Correa inaugura uma nova encenação de cunho escapista (“Gracias señor”), escrita pela sua
própria equipe: para não se calar enquanto artista, volta-se à pesquisa puramente formal, sempre na linha
da agressão, de vez que o conteúdo se lhe tornara inacessível. Dentro desses moldes, calados nossos
encenadores, reinaugura-se a importação de formas novas (Arrabal, via Vitor Garcia, Genet) - note-se que
a importação, neste caso, não se dá por carência da produção interna, mas por repressão. Não se trata,
pois, de genérica proposta universalizante.
Autores como G. Guarnieri ainda escrevem as únicas formas possíveis de fazer peças passarem
pelo crivo da censura - as formas do simbolismo.
11
A despeito desse e de outros esquecimentos, a geração de 1969 constitui um
núcleo de criadores que, coletivamente, produziu algo reconfortante não só do ponto de
vista estético, quanto também sob um viés político. O trabalho de Elza Cunha de
Vicenzo articulou a leitura política à atuação da mulher, resultando daí uma análise
11
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974. São Paulo: Ática, 2002. p. 266-
8.
20
bastante profícua. Nunca um grupo de dramaturgos estreantes conseguira reunir um
número tão expressivo de mulheres dispostas a tratar da “específica postura feminina
diante do mundo e das questões que agitavam de modo especial a vida brasileira”
12
.
Uma frente de discussão - original, consistente e esclarecedora - foi aberta, mas
outras tantas ainda continuam inexploradas. É preciso voltar os olhos para alguns dos
dramaturgos deste grupo de criadores pelas razões que seguem e por algumas outras
ainda não devidamente exploradas. A geração de 69 começou a produzir seus textos
justamente por volta de 1968, sentindo “na pele” os efeitos arrasadores do AI-5. Se por
um lado, ela foi silenciada, amordaçada e até mesmo banida do espaço público por força
do arbítrio, por outro ela rapidamente aprendeu a responder a ele de forma mais sinuosa
e menos unívoca. Os autores de 69 sofreram ainda direta ou indiretamente as
conseqüências do maio de 68 francês, marco de uma nova atuação política no âmbito
internacional. E integraram também uma juventude disposta a renunciar às formas de
combate do passado sem, no entanto, esmorecer na luta contra os potenciais inimigos
que surgiam: a ampliação da dominação tecnocrática e a repressão sexual, entre eles.
Por fim, eles abriram um novo campo de atuação nas artes brasileiras, passando a ser os
porta-vozes de inúmeras discussões culturais, comportamentais, filosóficas e políticas
que ainda hoje ecoam entre nós.
Quem quer que se detenha sobre este fenômeno que atingiu o teatro brasileiro
invariavelmente terá de deparar com um conjunto de palavras e expressões que
costumam vir a reboque dele. “Nova sensibilidade”, “nova consciência”, “nova política”
e “contracultura” foram alguns dos conceitos que muitas vezes serviram de muleta
retórica, fosse para alçar à condição de vanguarda algumas iniciativas vazias e estéreis,
fosse para desqualificar apressadamente qualquer tentativa de criação que estivesse
querendo sinalizar a necessidade de dialogar com os novos tempos.
As obras teatrais já citadas dos dramaturgos e dramaturgas da geração de 69 são
documentos fundamentais para a compreensão do problema, e certamente não se
esgotam nelas mesmas. A partir desta produção, um ideário estético-político foi gerado,
servindo de terreno fértil para o surgimento de outras manifestações congêneres ou para
o desdobramento do fenômeno em frentes de atuação das mais diversas.
12
VINCENZO, op. cit., p. 14.
21
A pesquisadora e crítica Mariângela Alves de Lima, em artigo escrito em 1988
para uma publicação especial sobre o teatro ibero-americano, assim registrou o
fenômeno:
Reflexionando sobre la producción de la dramaturgia posterior a 1968, es posible reconocer la
existencia de diversas líneas de acción a lo largo del oscuro túnel negro que se instauró en el país,
aniquilando tantas expectativas.
Una serie de obras escritas y estrenadas a comienzos de esta década [años setenta], se proponen
diagnosticar los efectos de esa situación política en el ámbito de la vida individual de cada persona, sobre
todo de los miembros de las clases medias.
Con ironía y disgusto, dramaturgos como Antonio Bivar, Consuelo de Castro, José Vicente,
Leilah Assumpção y Roberto Athayde estudian el universo material y espiritual de la clase media que,
con su pasividad y conformismo, había apoyado el golpe de 1964. Es esa clase que ahora vive la
reproducción degradada de los valores burgueses, sin beneficiarse de ninguna compensación económica.
Liberada del lenguaje naturalista, que la experiencia había desplazado, esta nueva dramaturgia
recurre al grotesco, a la hipérbole y, en términos generales a lo desmesurado. Apoyándose en la fuerza de
los diálogos, con escenografías simplificadas al servicio de producciones de bajo precio, esas obras se
convierten en un excelente vehículo para las interpretaciones brillantes.
13
Se for correto afirmar que grande parte das peças destes novos dramaturgos foi
concebida tendo como horizonte mais amplo o impacto que a cultura global sofreu à
época, causado pelo delineamento de uma nova ordem cultural, a que muitos preferiram
chamar simplesmente de contracultura, é preciso reavaliar a posição do sociólogo
Luciano Martins, que, ao estudar a “geração AI-5”, afirmou categoricamente:
... o que se apresenta como contracultura não chegou (ou não chegou ainda) a ser captado por
nenhuma obra-testemunho - na literatura, no cinema ou no teatro - que seja digna desse nome; de uma
obra capaz de cristalizar o fenômeno e, ao mesmo tempo, transcender seus aspectos imediatos através da
captação de seu conjunto de significações.
14
13
LIMA, Mariângela Alves de. 1960-1988. De la dictadura militar a la democracia. In: Escenários de dos
mundos. Inventario teatral de Iberoamerica. Argentina, Bolívia, Brasil, Colombia, Costa Rica. Madrid
(España): Centro de Documentación Teatral, v. 1, 1988, p. 264.
14
MARTINS, Luciano. A geração AI-5 e maio de 68: duas manifestações intransitivas. Rio de Janeiro:
Livraria Argumento, 2004. p. 25. Embora o tenha escrito no ano de 1969, o autor poderia, ao menos em
nota à republicação recente do artigo (2004,) rever posição tão peremptória. Vale notar ainda que o
historiador Theodore Roszak considera o filme Dr. Strangelove (1964), de Stanley Kubrick, “o comentário
mais vigoroso sobre a obscenidade de tudo o que se passa” [no âmbito da corrida armamentista]. O tom
22
Parece legítimo defender a idéia de que o pesquisador do teatro brasileiro tem
diante de si algumas obras-testemunho que, embora talvez não estejam filiadas ao
movimento internacional da contracultura em sentido lato, certamente constituem
marcos importantes de uma “contracultura à brasileira”, cujo modo de atuação tão
singular somente foi possível devido ao complexo panorama histórico que o final da
década de 60 ofereceu ao País.
A geração de 69 não pratica o drama no sentido clássico, tampouco dá
continuidade à forma épica exercitada pelo Teatro de Arena, por exemplo. Os efeitos
cômicos estão presentes em quase todos os textos, mas não se podem classificar
simplesmente as novas peças de comédias. O que quis e o que pôde esta dramaturgia,
afinal?
Seríamos épicos se não fôssemos cômicos?
O teatro brasileiro desde o século XIX se viu às voltas com o problema do
embate histórico das formas. Por meio do drama, buscava-se o teatro dito sério, que nos
levaria à almejada sofisticação intelectual. A pesquisadora Cláudia Braga assim resume
o problema:
O referencial de “arte dramática” tomado por todos os nossos comentaristas, e mesmo pelos
dramaturgos, foi exclusivamente o teatro, diríamos, sério. Inicialmente buscou-se o domínio da
construção da tragédia nas heróicas tentativas de Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias.
Posteriormente, continuando a negar a comédia como valor dramatúrgico, a partir de meados do século
XIX, o padrão da “arte dramática” conceituada passa a ser o drama realista burguês europeu, mais
especificamente a pièce bien faite do realismo francês.
15
anti-tecnocrático e pacifista da película - presente ainda no sarcástico subtítulo: “How I learned to stop
worrying and love the bomb” (Como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba) - transforma o
filme em um autêntico representante da contracultura norte-americana, ao lado, por exemplo, dos musicais
de teatro, transpostos mais tarde para as telas, Hair, Gosdpell, Jesus Cristo Superstar e Tommy e dos
álbuns Sgt. Peppers and The Lonely Hearts, dos Beatles, e Cheap Trills, do Big Brother & The Holding
Company, cuja capa foi desenhada por Robert Crumb.
15
BRAGA, Claudia. Em busca da brasilidade. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 42.
23
Na contracorrente deste teatro dito sério, estava a forma cômica, mais talhada
para a veiculação da crítica social. Assim, a comédia brasileira sempre soube captar
melhor os tipos característicos de nossa sociedade, confirmando a inegável tradição
cômica do teatro nacional. Em Idéias teatrais: o século XIX no Brasil, o pesquisador e
professor João Roberto Faria, concluindo o capítulo dedicado aos ideais do teatro
romântico, aponta:
... podemos dizer que a desejada cor local dos românticos, no caso do teatro brasileiro, está muito
mais presente nas comédias de Martins Pena do que nos dramas, melodramas ou tragédias dos seus
contemporâneos. (...) Forma pouco valorizada a princípio, seja por força dos preconceitos de escritores e
intelectuais do período em relação ao uso de recursos do baixo cômico, seja pela posição secundária que
ocupava nos espetáculos, a verdade é que ao longo do século XIX a comédia de costumes adquiriu
prestígio e teve vida mais longa do que o drama.
16
Relacionando, portanto, as formas dramática e cômica ao conteúdo de reflexão
social a que se queria inevitavelmente associá-las, nas palavras de Cláudia Braga, “a
dificuldade maior para o estabelecimento de nossa ‘arte dramática’ foi a adequação
desta forma [o drama], estabelecida a priori, a conteúdos que se queriam discutir, não
essencialmente ‘dramáticos’, ou ainda, não diretamente ligados à nossa realidade.
17
O mesmo desajuste ocorreu com o teatro de revista, cuja comicidade
popularesca era recusada pelo teatro sério, que, por sua vez, sempre desejou aspirar à
condição de alta literatura. Para uma autoridade incontestável no assunto, a
pesquisadora e diretora de teatro Neyde Veneziano, as revistas de ano, embora
combatidas e desprestigiadas por parte da intelectualidade, foram capazes de traduzir a
alma brasileira, aliando a influência estrangeira à cena tipicamente nacional:
Ao combinar os elementos paradoxais de nossa sociedade, o Teatro de Revista encontrara sua
fórmula: misturar o carnaval popular com a magia feérica de um palco que, ao mesmo tempo, se
comprometia a tratar do aqui e agora.
18
16
São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 83.
17
BRAGA, op. cit., p. 44.
18
VENEZIANO, Neyde. Não adianta chorar. Teatro de revista brasileiro...Oba! Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 1996. p. 50.
24
A polêmica entre o teatro sério - cujo representante legítimo era o drama - e os
gêneros cômicos adentrou o século XX e chegou às décadas de 40 e 50, quando
atingimos a maturidade suficiente para dialogar com o drama moderno, constatando, no
entanto, quase simultaneamente, que já era hora de investigar outras formas dramáticas
mais adequadas a nossa realidade. Em A hora do teatro épico no Brasil, Iná Camargo
Costa assim radiografa os limites do drama brasileiro de então:
Se a origem e a história da forma - o drama burguês - já se encontram mais do que
suficientemente determinadas nas diversas histórias do teatro ocidental disponíveis, infelizmente não se
pode dizer o mesmo a respeito de sua importação pelo teatro brasileiro - como se sabe, Antonio Candido
ficou “devendo” esse capítulo em sua Formação da literatura brasileira. Em todo caso, as poucas
tentativas existentes de historiar as experiências de nossos dramaturgos com o drama tendem a sugerir,
por um lado, uma espécie de incapacidade congênita de alcançar resultados comparáveis aos europeus.
Por outro, a importação das novidades modernas, com seus resultados mais ou menos prontos para o
consumo, trouxe-nos a confortável palavra de ordem da abolição das “formas do passado” - o drama seria
uma delas. Como de hábito, nós passamos para novas modalidades teatrais mais up to date sem fazer o
necessário acerto de contas com os gostos e convicções da véspera. Mas como em outros setores, as
contas mais cedo ou mais tarde acabam se apresentando, embora os ritmos do teatro pareçam ser muito
mais lentos que os das outras áreas artísticas. Para o ir muito longe, basta comparar a cena brasileira
dos anos 20 e 30 com as artes plásticas, a música, a arquitetura e as demais formas literárias. Dadas as
suas exigências de produção o teatro só veio a conhecer de modo sistemático o sopro dos ventos
modernistas no Brasil durante e após a segunda guerra mundial. Quando os dramaturgos brasileiros
começaram a escrever “teatro moderno”, no sentido forte, a forma do drama - cuja crise assinala o início
do modernismo no teatro europeu - apareceu para eles como uma espécie de ideal a ser realizado (é o
caso, entre outros, de Nelson Rodrigues, Abílio Pereira de Almeida e, mesmo, do grande Jorge Andrade).
Mas, como sempre, e agora com as “conquistas” da dramaturgia moderna incorporadas, os resultados
continuavam indicando que alguma coisa não dava muito certo nessas experiências.
Eles não usam black-tie, dando continuidade às tentativas mais ou menos bem-sucedidas,
conseguiu finalmente jogar luz sobre a histórica incompetência do dramaturgo brasileiro para escrever
dramas. Até então os conteúdos aparentemente provinham de esferas muito bem contempladas pelas
formas do drama (drama e alta comédia), na medida em que gravitavam em torno do eixo
família/propriedade e temas conexos. O tempero brasileiro certamente responde pelas experiências
malogradas, que talvez tenham até mais interesse do que as consideradas bem-sucedidas. Mas a peça de
Guarnieri introduziu os trabalhadores ativamente envolvidos com a luta de classes em nossa dramaturgia -
um tempero novo e altamente indigesto para a sociedade estabelecida e para o nosso incipiente repertório
teatral moderno.
19
19
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 37.
25
A década de 60, então, está dispensada de dar continuidade à forma e aos
conteúdos propostos pelo drama - ou drama burguês, segundo alguns críticos - e
considera-se pronta para conhecer as possibilidades do teatro épico, cuja real aplicação
entre nós, entretanto, esbarra em um problema de ordem cultural, segundo a análise de
Roberto Schwarz:
Como sabem os tradutores, a linguagem nua dos interesses e das contradições de classe, que
imprime a nitidez sui generis à literatura brechtiana, não tem equivalente no imaginário brasileiro,
pautado pelas relações de favor e pelas saídas da malandragem.
20
Por isso, o teatro épico brasileiro ganha acento particular, deixando-se
contaminar pela atmosfera de deboche e pelo formato descontínuo típicos do teatro de
revista, ainda de acordo com o crítico:
... o teatro com referência brechtiana, cético no que se refere à seriedade do teatro sério, tratou de
reatar com a dimensão irreverente do primeiro [o teatro de revista], sobretudo com a sua forma solta, as
canções intercaladas e a malícia geral, em que enxergava apoios para o distanciamento crítico e recursos
para uma arte antiburguesa.
21
Entretanto, 1968 é o ano da recusa das certezas - o que obriga, no campo teatral,
todo e qualquer gênero a passar por uma revisão crítica. Deste modo, a geração de 69
acaba por fazer no palco as mais variadas experiências dramatúrgicas, tendo à sua
disposição o amplo leque das formas conhecidas, que tiveram seus limites testados,
esgarçados ou redefinidos. A moldura do drama (de onde brota também, às vezes, uma
atmosfera mais propriamente vinculada à tragédia ou ao teatro do absurdo), os efeitos da
comédia (e sua identificação com o espírito da revista) e a prontidão crítica do teatro
épico foram os ingredientes básicos dos novos dramaturgos da virada dos anos 60 para a
década de 70.
20
SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _______. Seqüências brasileiras. São
Paulo: Cia. das Letras, 1999. p. 120-1.
21
Ibid., p. 123.
26
Um duro golpe na cultura brasileira
Para compreender melhor as razões que levaram estes criadores à recusa das
formas já estabelecidas, optando pela fusão e pelo embaralhamento de várias delas, é
preciso que se esclareçam alguns aspectos históricos vividos pela cultura brasileira no
período.
Iniciemos por invocar o panorama político e cultural pré-64, a que muitos
historiadores creditam o caráter de momento único e extraordinário da vida social do
país. Nos anos 50, o teatro brasileiro - sobretudo via TBC - adquiriu um vasto repertório
que ia de Sófocles a Ionesco, experimentando também novas teorias e conquistas
técnicas (ao menos, entre nós) que passaram a embasar o trabalho de intérpretes,
diretores, cenógrafos e iluminadores. Deste modo, pudemos atenuar a defasagem que
nos separava do estágio que o teatro já havia alcançado nos principais centros de
irradiação de cultura do mundo. No entanto, muitos criadores e intelectuais apontaram
para a necessidade de se aliar as aquisições modernas e contemporâneas às questões
internas do país, a fim de se tornarem mais estreitas as relações entre arte e sociedade.
Mariângela Alves de Lima assim definiu problema:
Como una cuestión en un tema inagotable, que vuelve con más fuerza una vez más, los jóvenes
artistas de finales de la década de los anos cincuenta replantearon el tema de la identidad nacional.
Ciertamente, este replanteamiento representa otra vuelta de la espiral. En esta ocasión, los artistas
rechazaron la idealización del ser brasileño y relegaron la configuración de este autorretrato a una idea de
función del arte. No les interesará, como interesaba al pensamiento romántico y al positivista, el
procedimiento etnográfico, que se limita a registrar las peculiaridades culturales del país. A este nuevo
movimiento teatral le interesa el establecimiento de una relación dinámica entre arte y sociedad, a través
de una representación del país en situación.
Frecuentemente, las metáforas de la fotografía y la radiografía surgirán en las poéticas de los
artistas que encabezan los grupos teatrales de los años sesenta. Es un teatro que se nutre del presente
histórico y cuya intención es, sobre todo, hacer actuar sobre el curso de la historia los instrumentos
propios de su oficio. Es a esa relación con la imagen de la sociedad, más que a las discusiones teóricas en
torno a la función del arte (en ocasiones, demasiado fieles a la estética marxista) a la que esos colectivos
deben la configuración de su lenguaje escénico.
22
22
LIMA, op. cit., p. 256.
27
Deste modo, vivemos uma conjuntura bastante peculiar. Se por um lado, a forma
do drama burguês passou a ser questionada por sua incapacidade de lidar com as
questões sociais mais prementes, por outro, muitas das experiências calcadas no que
parecia constituir o modelo antípoda do drama - o épico - acabaram incorrendo em
precariedade e mistificação. Uma das análises mais lúcidas do problema foi proposta
por Roberto Schwarz:
A modernização dos palcos paulistanos na década de 50, que foi um progresso notório, havia
dependido da contribuição dos encenadores estrangeiros, além de passar por um novo profissionalismo,
pelo bom preparo dos atores, pela atualização do repertório e, visto o conjunto, pela dignificação
burguesa da vida teatral. Nas estréias do Teatro Brasileiro de Comédia respirava-se distinção de classe,
como aliás nos concertos da Cultura Artística, onde se apresentavam músicos de reputação internacional
em clima de fruição civilizada e casacos de pele. Enquanto isso, a tendência no plano nacional era outra,
imprimindo um conteúdo diferente à noção de progresso. Entrava em movimento a radicalização do
populismo desenvolvimentista, que iria desembocar em anos de pré-revolução - ou seja, de
questionamento cotidiano da intolerável estrutura de classes do país - e no desfecho militar de 64. Em
lugar da atualização cultural, cujos termos de referência eram os palcos americanos e europeus de
qualidade, vinha a interrogação dos nexos de classe internos, cujo atraso vexaminoso, em que nos
reconhecíamos como parte do Terceiro Mundo, era tomado como problema e elemento necessário de uma
solução válida, nacional e moderna. Durante um animado espaço de tempo, que não ia durar, o
compromisso com a promoção histórica do povo trabalhador primou, como critério de modernidade,
sobre o anseio de atualização das classes ilustradas.
A cultura viva dava uma clara guinada à esquerda: trocava de aliança de classe, de faixa etária e,
com elas, de critério de relevância. Um pouco na realidade e muito na imaginação, mudavam os
produtores, a platéia, o assunto, o programa, a técnica e as simpatias internacionais, agora fixadas na
Revolução Cubana, obra também ela do inconformismo de gente que não chegara aos 30. A nova geração
teatral, de formação menos acabada que a outra, estava próxima do movimento universitário e de sua
rápida politização. Buscava contato com a luta operária e camponesa organizada, com a música popular,
e compartilhava o modo de vida precário e pré-adulto dos estudantes, que não raro eram pobres eles
mesmos. O relativo prejuízo em especialização artística, bem como uma certa desclassificação social, no
contexto faziam figura de prenúncio do socialismo. Desrespeitavam a fronteira cultural entre as classes e
estavam em sintonia com a nova feição do movimento popular. O guarda-chuva do nacionalismo
populista propiciava o contato entre setores progressistas da elite, os trabalhadores organizados e a franja
esquerdizada da classe média, em especial os estudantes e a intelectualidade jovem: para efeitos
ideológicos, essa liga meio demagógica e meio explosiva agora era o povo. A inserção aguda e crítica do
esforço cultural mais do que compensava o refinamento artístico do decênio prévio, em fim de contas
28
bastante convencional. A impregnação das artes do espetáculo pela tarefa histórica de dar voz às
desigualdades nacionais teve importância imensa, que até hoje não se esgotou.
23
Certo é que a atmosfera de experimentação, estudo, engajamento e crença na
transformação do estado de coisas em que vivia o país moldou o espírito de toda uma
geração, que talhou seu talento na agitada cena sociocultural daqueles anos. O
depoimento do diretor Fauzi Arap, um dos mais hábeis articuladores da contracultura
brasileira, anos mais tarde, é bastante esclarecedor:
Quando encontrei o teatro, no final da década de 50, tive a impressão de ter descoberto meu
lugar definitivo. A revelação que foi descobrir os métodos de ensaio quase científicos de Augusto Boal,
assim como os rudimentos da dialética de Marx na abordagem e análise de um texto, fez com que eu
pensasse ter encontrado um caminho verdadeiro e único, no qual eu continuaria para todo o sempre,
apoiado naquele círculo de amigos e mestre, como se eles fossem uma nova e definitiva família.
24
No entanto, o golpe militar de 1964 interrompe abruptamente este processo de
amadurecimento estético e político, obrigando os criadores e pensadores do teatro
brasileiro a reverem suas estratégias de ação. Várias saídas são propostas. Nas palavras
de Roberto Schwarz, o momento pedia “inteligência política, invenção de formas,
agilidade organizativa, disposição para o enfrentamento, além de irreverência na
utilização da cultura consagrada e capacidade para tratar em pé de igualdade os recursos
da arte erudita e da tradição popular”.
25
Ainda segundo o crítico:
Em 1964, o golpe de força da direita truncou, sem encontrar aliás grande resistência, o vasto
processo democrático a que o novo teatro procurava responder. Como é sabido, a repressão ao movimento
operário e camponês não teve complacência, ao passo que a censura, destinada a paralisar os estudantes e
a intelectualidade de oposição, se provou contornável. Assim, em pouco tempo a esquerda voltava a
marcar presença e até predominar no movimento cultural, só que agora atuando em âmbito socialmente
confinado, pautado pela bilheteria e distante dos destinatários populares, que no período anterior haviam
conferido transcendência - em sentido próprio - à sua produção. Por um acaso infeliz, ou melhor, por
força da vitória da direita, a nova geração teatral alcançava a plenitude artística, de que a questão
revolucionária fazia parte, no momento em que as condições históricas favoráveis a seu projeto haviam
23
SCHWARZ, op. cit., p. 118-9.
24
ARAP, Fauzi. Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos. São Paulo: Senac, 1998. p. 42.
25
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política: 1964-1969. In: O pai de família e outros estudos. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 120.
29
desaparecido. Depois de ter sido um movimento efetivo da intelectualidade de esquerda, a ida estético-
política ao povo refluía para a condição de experimento glorioso e interrompido, que continuaria
alimentando a imaginação de muitos, ao mesmo tempo que, noutro plano, se transformava em matéria de
êxito no mercado cultural. Como não podia deixar de ser, o triunfo em cena daquela mesma esquerda que,
na rua, fora batida quase sem luta, iria trazer e elaborar as marcas do que sucedera, levando a rumos
imprevistos, entre muitas outras coisas, a própria experimentação brechtiana. Por exemplo, a utilização
dos procedimentos narrativos, concebida originalmente para propiciar distância crítica, nalguns
momentos via-se transformada por Boal e Glauber no seu contrário, em veículo de emoções nacionais,
“de epopéia”, para fazer contrapeso à derrota política. Estava de volta a identificação compensadora de
que Brecht desejara livrar a cultura. Paralelamente, no teatro de Zé Celso os efeitos de distanciamento
adquiriram um timbre equívoco, mais da ordem da dissociação que do esclarecimento, em que
autodenúncia feroz (o impulso crítico) e autoclomplacência descarada (a desqualificação da crítica, uma
vez que os seus portadores haviam sido derrotados) alternavam e confundiam, encenando uma espécie de
colapso histérico e histórico da razão. São pontos de chegada substanciosos, por vezes impressionantes,
em que se condensaram impasses de nosso destino recente.
26
Para responder ao golpe de 64, então, uma série de projetos culturais foi
articulada, tendo o teatro, a música popular, o cinema e o jornalismo como principais
frentes de combate. No campo teatral, as idéias de resistência ao novo regime
organizaram-se em torno de três propostas centrais que pautaram inúmeras discussões
acaloradas ao longo da década, e que continuaram ecoando por grande parte do decênio
posterior. O grupo Opinião perfilou-se ao lado do Arena e do Oficina, aludidos por
Schwarz, e a cultura brasileira deu voz a um amplo e polêmico debate encabeçado,
sobretudo, pelos respectivos representantes principais de cada companhia: Oduvaldo
Viana Filho, Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa.
1968 e as propostas do Opinião, Arena e Oficina
A atuação destas companhias, entre os anos de 1964 e 1967, funcionou como
uma espécie de amplo baluarte que, embora composto por correntes heterogêneas,
procurava expressar univocamente o descontentamento geral com os rumos político-
ideológicos que o Brasil vinha tomando naquele período. Em 1968, entretanto, à medida
que o regime vai dando claras mostras de recrudescimento, certos laços de solidariedade
26
Ibid., p. 124-5.
30
entre os grupos se rompem, revelando mais claramente as lutas intestinas que tratavam
entre si alguns setores do teatro brasileiro.
Em julho de 1968, a revista Civilização Brasileira - “marco fundamental na
história da cultura e do pensamento progressista no Brasil do século XX”, segundo
Carlos Guilherme Mota
27
- dedicou um número especial ao tema “Teatro e realidade
brasileira”, que soube captar com muita prontidão a fecunda polêmica que envolvia os
principais criadores teatrais do País.
O artigo escrito por Vianinha - “Um pouco de pessedismo não faz mal a
ninguém” - defendia a unidade do teatro brasileiro, alertando para o perigo do
antagonismo acirrado entre os setores: “de esquerda”, “esteticista” e “comercial”. O
ensaio de Augusto Boal - “Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do
Arena” - apresentava o método “coringa” e suas implicações estéticas e políticas. Por
fim, a entrevista de Zé Celso Martinez Corrêa dada a Tite Lemos, sob o título de “A
guinada de José Celso”, anunciava a tática da “guerrilha teatral contra a cultura oficial”
que o Oficina já vinha desenvolvendo desde O rei da vela, no ano anterior.
As propostas do Opinião, Arena e Oficina são contempladas até hoje em
inúmeras análises acadêmicas, avaliações e sínteses feitas sobre o período. Vale
ressaltar que o balanço dos anos 60 empreendido pelo pesquisador José Arrabal, em
texto escrito no final dos anos 70, estabelece os ideários de Vianinha, Boal e Zé Celso
como essenciais ao teatro brasileiro, a partir da seguinte premissa:
Um teatro que pretenda romper com a dominação de classe, criando no seu interior um pólo de
consciência revolucionária, há que considerar essas propostas como experiências fundamentais de sua
história (ou pré-história) e de suas lutas, para delas aproveitar seus acertos e recusar suas fragilidades
frente à violência das ideologias de dominação.
28
Por volta do mesmo ano da publicação da revista Civilização Brasileira, uma
nova geração também começava a exercitar o protesto político, mas o fazia de acordo
com uma conjuntura inédita para a qual expressões como “romper com a dominação de
classe” e “criar uma consciência revolucionária”, por exemplo, pareciam configurar
somente algumas “indulgências afetivo-políticas vendidas à classe média”, de acordo
27
MOTA, op.cit., p. 204.
28
ARRABAL, José. Anos 70: momentos decisivos da arrancada. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos 70:
ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/Editora Senac Rio, 2005. p. 208.
31
com a perspicaz análise de Roberto Schwarz. Obviamente, a contribuição do Opinião,
Arena e Oficina ultrapassa essa dimensão, mas convém aqui expor, sinteticamente,
algumas contradições que pautavam a atuação destas companhias em 1968, a ponto de
os novos dramaturgos não se reconhecerem como plenamente tributários de nenhuma
delas.
O artigo de Vianinha adota uma estratégia conciliatória e pacifista, já aludida no
título, sintonizada com a atuação “etapista” do PCB contrária a certos setores da
esquerda que queriam radicalizar o enfrentamento com o regime e a outros que
preferiam o escapismo. Segundo José Arrabal, “a falência ou o colapso do projeto
populista, em 1964, [e] os desastres das propostas políticas do regime anterior não
servem de lição à elaboração da análise de Oduvaldo”.
29
Por se tratar de um autor de talento excepcional que avançou constantemente em
seu pensamento teórico e em sua dramaturgia, não nos surpreende, portanto, o fato de
que seis anos mais tarde, às vésperas da morte, Vianinha conceberia a mais bem
acabada análise do complexo embate entre a atuação da velha esquerda e as novas
formas de comportamento da juventude em sua obra-prima Rasga-coração
30
.
Ao tratar de sua original teoria sobre o coringa, Augusto Boal defende uma nova
consciência reflexiva comum ao artista e ao público, advinda do singular casamento que
ele propõe entre o distanciamento brechtiano (cuja intenção é despertar a capacidade
crítica) e a identificação stanislavskiana (disposta a suscitar entusiasmo), no tratamento
dos heróis populares da história do País. Entretanto, resulta desta confluência o
problema mal-resolvido do envolvimento sem isenção por parte do público com
determinados fatos históricos tratados em chave passional, conforme procurou alertar
Anatol Rosenfeld:
29
Ibid., p. 212.
30
No prefácio da obra, Vianinha escreveria: “A peça ilumina 40 anos de nossa vida política mostrando a
repetição do conflito de percepção do verdadeiramente novo. Este conflito se dá na percepção diferente
de gerações diferentes, e é dentro de cada uma delas que se define. A peça fixa desde o novo antigo (o
integralismo) até o novo anárquico (a boêmia de 30, o hippie de hoje), que, apesar de apresentar soluções
antigas, percebe, detecta problemas novos que os sistemas revolucionários organizados têm dificuldades
em absorver, principalmente quando atravessam fases de subestimação da teoria e criação da consciência
humana”.
32
Se o herói mítico, sem dúvida, facilita a comunicação estética e dá força plástica à expressão
teatral, todavia, será que a sua imagem festiva contribui para a interpretação da nossa realidade, ao nível
da consciência atual?
31
Críticos e pesquisadores reconhecem como fundamentais as experiências do
Opinião e do Arena, mas alguns apontam para o fato de ambos os grupos não terem
elaborado adequadamente uma crítica à dimensão populista - ou progressista - de muitas
de suas realizações. De posse de tal juízo, então, o Teatro Oficina, a partir de O rei da
vela, procura transformar a relação palco-platéia.
Na entrevista à revista Civilização Brasileira, Zé Celso discute os papéis do
artista e do intelectual frente à manutenção ou transformação das relações sociais,
polemiza a autonomia da arte em relação às ideologias de dominação e postula a
necessidade de um teatro revolucionário. Disposto a chocar o bom gosto burguês, por
meio do ataque ao racionalismo e da consagração da grossura e do grotesco, o Oficina
dava uma resposta mais radical do que o Arena à derrota de 64, mas que, no entanto,
não configurava uma resposta política, segundo a definição de Roberto Schwarz. Ao
demolir as “idéias e imagens usuais da classe média, os seus instintos e sua pessoa
física”, o grupo somente tornou “habitável, nauseabundo e divertido o espaço do
niilismo de após-64”, de acordo com o crítico
32
.
A rigor, os novos dramaturgos distanciaram-se claramente das posições de
Vianinha e Boal, e mesmo das de Zé Celso, ainda que as últimas realizações do Teatro
Oficina, pela via de seus contornos contraculturais e tropicalistas, estivessem mais
próximas da sensibilidade dos novos criadores. Talvez o fato de o Oficina abandonar
cada vez mais o texto como princípio organizador do espetáculo, somado ao inequívoco
sectarismo que exalava da postura do grupo, justificasse também este não-alinhamento.
O agitado panorama de debates, postulações e confrontos faz com que alguns
diretores e atores, no final da década de 60, procurem se desviar das posições muito
definidas, aproximando-se, justamente, desta nova geração, que exaltava, sobretudo, a
liberdade individual diante de toda e qualquer engrenagem política, ideológica ou
partidária. Foi o que ocorreu com o ex-integrante dos grupos Arena e Oficina, Fauzi
31
ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996. p.
39.
32
SCHWARZ, op. cit., 86-8.
33
Arap, cujo depoimento é novamente invocado, agora para descrever sua “conversão”
aos novos tempos:
Acabei me tornando, ao lado de Plínio Marcos, autor de Navalha na carne, um ponto de
referência para um grupo de autores que era chamado de Nova Dramaturgia. O convívio, como diretor,
com José Vicente, Leilah Assumpção, Isabel Câmara e Antônio Bivar representou um novo desafio, que
me levou a lidar diretamente com a palavra, e foi um período de aprendizado útil na direção de uma
melhor capacidade de expressão artística e pessoal. O trabalho apaixonado fez com que eu deixasse de
lado provisoriamente a questão lisérgica, e me reassumisse plenamente como homem de teatro, teatro que
acabara ganhando um novo sentido para mim naquele momento em que eu me descobria útil como ponte
para aqueles jovens que queriam debutar nos palcos como autores. Era como se eles, em seu conjunto,
tivessem vindo substituir os antigos grupos aos quais eu pertencera, possibilitando que eu recuperasse a
atmosfera coletiva de que, mesmo sem saber, eu carecia para existir de forma confortável e respirar. Por
outro lado, tratava-se de um grupo de indivíduos no qual cada um exercia sua liberdade particular para
criar, ao contrário do controle ideológico e político que havia nos grupos Arena e Oficina, embora os dois
tivessem diferentes colorações estéticas. Embora não fosse tão mais velho, junto deles eu me sentia um
veterano. A liberdade que minha nova função me permitia foi salutar, por ter me livrado da obrigação de
entrar no palco e me exibir, mesmo contra a vontade.
33
A “liberdade particular para criar” dos novos dramaturgos também implicava
estar em sintonia com certas informações que, vindas, sobretudo, de fora do país, fariam
com que alguns modelos comportamentais e padrões estéticos pudessem ser redefinidos.
Teatro do absurdo, tropicalismo, contracultura: as influências da nova
dramaturgia
Portanto, errática diante das opções programáticas do Opinião, Arena e Oficina,
a nova dramaturgia deixou-se influenciar por algumas manifestações ocorridas no País e
nos grandes centros de irradiação cultural da Europa e dos Estados Unidos, que
pareciam querer estender o campo de atuação da arte para territórios ainda pouco
experimentados. O teatro do absurdo, o tropicalismo e o advento da contracultura foram
as principais influências recebidas pelos jovens dramaturgos da geração de 69, e seus
vestígios aparecem diluídos em maior ou menor escala na obra de todos os autores que
compõem o grupo.
33
ARAP, op. cit., p. 98.
34
1966 foi para o jornalista Zuenir Ventura o ano em que, no Brasil, “o teatro do
absurdo surge pesadamente nas fachadas dos teatros”
34
. Harold Pinter, Edward Albee,
Jean Genet e Fernando Arrabal, ao lado dos já quase veteranos Samuel Beckett e
Eugène Ionesco, são alguns dos nomes da nova tendência da cena mundial que
aparecem entre nós. Yan Michalski assim registrou o fenômeno mais amplamente, ao
qual foi dado o nome de “novo teatro”:
Começam a penetrar nos ouvidos da nossa juventude teatral os primeiros ecos de uma grande
revolução cultural que se desenha, ou pelo menos se prepara, em praticamente todo o Ocidente. Também
esse movimento parte de uma sensação de insatisfação, no caso não com esquemas militares repressivos,
mas com valores culturais e éticos legados pelas gerações anteriores que agora são repudiados como
caducos e necessitados de urgente substituição, por comportamentos radicalmente diferentes. Nos países
de mais forte tradição teatral, o palco revela-se um terreno fértil para testar tais comportamentos.
35
Na década anterior, duas datas distintas dizem respeito ao surgimento e ao
batismo de um novo estilo de drama anti-realista que haveria de se tornar “o teatro de
vanguarda mais bem-sucedido que o século já produzira”, de acordo com o historiador
Marvin Carlson
36
. Em 1951, Albert Camus publica O mito de Sísifo, transformando o
lema do “absurdo” na questão do momento. Dois anos depois, o impacto de Esperando
Godot, de Samuel Beckett, leva a crítica a transportar aquele lema literário para os
palcos, identificando uma nova escola teatral da qual fazem parte também, na primeira
hora, Eugène Ionesco e Arthur Adamov. Independentemente da relutância dos
dramaturgos em aceitarem o termo (Ionesco prefere “teatro de irrisão” para marcar uma
oposição à tradição existencialista de Sartre e Camus) e das diferenças expressivas entre
eles, a nova forma procurava o “puro drama”, defendendo um teatro livre,
“antiideológico, anti-social-realista, antifilosófico, antipsicologia de boulevard,
antiburguês”, enfim, segundo as palavras do próprio dramaturgo franco-romeno
37
.
34
VENTURA, Zuenir. Da ilusão do poder a uma nova esperança. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA,
Heloísa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000. p. 95.
35
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
p. 24-5.
36
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo:
Unesp, 1997. p. 309.
37
IONESCO, Eugène apud CARLSON, op. cit., p. 400.
35
Tal manifestação surgia como uma tomada de posição contrária à longa tradição
ocidental do teatro racionalista, representado, sobretudo, pelos dramas realista e
naturalista e pelo teatro épico. Por este motivo, os autores da nova forma desejam pautar
suas criações pelo instinto, e não pela razão.
Os críticos Martin Esslin e Arnold P. Hinchliffe foram os dois pesquisadores que
melhor estudaram o fenômeno, e é do primeiro a seguinte síntese, que vislumbra no
teatro do absurdo a depuração de uma poética verdadeiramente contemporânea:
O Teatro do Absurdo é parte da incessante luta dos verdadeiros artistas de nosso tempo para
destruir a muralha morta da complacência e do automatismo, e para restabelecer uma consciência da
situação do homem quando confrontado com a realidade última de sua condição. Como tal, o Teatro do
Absurdo cumpre um objetivo duplo e apresenta à sua platéia um duplo absurdo.
Por um lado ele castiga, satiricamente, o absurdo das vidas vividas na ignorância e na
inconstância da realidade última. (...) Esta pode ser a mais acessível, e conseqüentemente a mais
largamente identificada mensagem do Teatro do Absurdo, mas está longe de constituir seu aspecto mais
essencial ou significativo.
Por trás da denúncia satírica do absurdo das maneiras de viver inautênticas, ele focaliza um nível
mais profundo de absurdo - o absurdo da própria condição humana num mundo no qual o declínio da fé
religiosa privou o homem de determinadas certezas. Quando não é mais possível aceitar sistemas de
valores completos e simples ou revelações de propósitos divinos, a vida tem de ser encarada em sua
realidade última, básica.
38
O resultado mais imediato desta nova concepção foi a calorosa polêmica
instituída, principalmente na França e na Inglaterra, acerca da tensão existente entre o
que se convencionou chamar de “teatro engajado” e “teatro de especulação metafísica”.
Como resolver o equilíbrio entre a expressão da experiência humana individual e a
valorização da perspectiva histórica foi a grande questão debatida.
No Brasil, cerca de dez anos depois de ter oficialmente surgido nos palcos
europeus, o teatro do absurdo e sua visão de que a arte não tem obrigação de se engajar
em ações políticas diretas faziam provocações à linha progressista adotada pelo teatro
dialético de Brecht, disposto a transformar a relação entre palco e platéia em um ritual
genuinamente cívico, conforme apontava Roland Barthes.
39
38
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1967. p. 346-7.
39
BARTHES, Roland apud CARLSON, op. cit., p. 401
36
A recepção do teatro do absurdo pelos novos dramaturgos brasileiros se revestiu
de certas peculiaridades. Assim, abrindo mão do ataque sistemático à estrutura da
linguagem verbal sobre a qual sempre se pautou grande parte da cultura ocidental, os
autores nacionais exploraram o forte elemento alegórico contido em algumas situações
“absurdas”, investiram na apresentação da situação básica de um indivíduo e
procuraram combinar o riso com o terror, além de experimentar a conjunção de ações
sem motivação aparente com outras racionalmente motivadas.
A crítica brasileira também procurou externar sua preocupação com um tipo de
teatro que, nadando na contracorrente da extrema politização vivida na década de 60,
parecia fazer apologia à perda da crença política. Gerd Bornheim, ao tentar
compreender a opção dos autores estrangeiros de vanguarda pela “necessidade de fazer
valer o insólito, o irracional, o paradoxo, que é escândalo para a razão”
40
, adverte:
Já o niilismo dos autores de vanguarda não permite qualquer crença na idéia de atingir um novo
sentido. Eles se confinam a uma posição de passividade ou no máximo de revolta diante do niilismo
ocidental, que parece então ser uma espécie de ponto conclusivo.
41
O sociólogo Luciano Martins procurou transferir o uso do conceito de absurdo
para o terreno estrito da política, identificando nele a gênese da passividade tão desejada
pelos regimes autoritários:
É assim que se realimenta o circuito da alienação. Por que na ausência de consciência crítica
sobre o significado do princípio que rege o poder autoritário, as ações deste tendem a ser percebidas - e
‘aceitas’ - pelo indivíduo a ele submetido como naturalmente irredutíveis à razão, ou seja: absurdas. A
aceitação dessa situação como normal - atitude que de alguma forma se expressa num cotidiano que
substitui o protesto pelo ‘deixa pra lá’ e pelo ‘tudo bem’ - constitui a vitória máxima do princípio
autoritário. Porque uma sociedade na qual os indivíduos convivem diariamente com o absurdo, são por
ele governados e passam a aceitá-lo como ordem natural das coisas, é uma sociedade na qual já estão
dadas todas as condições da alienação.
42
De todo o modo, a influência do teatro do absurdo sobre a geração de 69 não é
plena e absoluta. A única característica incontestável talvez diga respeito à duração das
40
BORHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 45
41
Ibid., p.29-30.
42
MARTINS, Luciano. A geração ‘AI-5’ e maio de 68: duas manifestações intransitivas. Rio de Janeiro:
Argumento, 2004. p. 33.
37
peças, em geral curtas. No mais, muitas vezes, os autores parecem confundir os
procedimentos do absurdo com outros vinculados mais propriamente à estética
surrealista. Assim, o uso sistemático do nonsense e a produção de um estado de angústia
metafísica são substituídos pela expressão do inconsciente, pelo apelo ao fantástico e
pelo casamento entre o insólito e o banal. Tudo isso temperado pela exploração dos
recursos de um humor tipicamente brasileiro, como veremos nos capítulos posteriores.
Outra das influências sofridas pela geração de 69 foi o tropicalismo, cuja ação
inaugural se deu em 1967 com a apresentação de Alegria, alegria, de Caetano Veloso,
no III Festival da TV Record. Caetano assim definiu a atitude que o fez conceber uma
canção, a rigor muito simples, responsável por detonar um movimento que pretendia se
situar “além da esquerda”, mostrar-se “despudoradamente festivo” e acabar com “os
resguardos”, nas palavras do próprio compositor:
Tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara, decidi que no festival de 67 nós
deflagraríamos a revolução. No meu apartamentinho do Solar da Fossa, comecei a compor uma canção
que eu desejava que fosse fácil de apreender por parte dos espectadores do festival e, ao mesmo tempo,
caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar. (...) Tinha que ser uma
marchinha alegre, de algum modo contaminada pelo pop internacional e trazendo na letra algum toque
crítico-amoroso sobre o mundo onde esse pop se dava. (...) Rapidamente compreendi que, se o tom de
mera sátira devia ser subvertido, o esquema de retrato, na primeira pessoa, de um jovem típico da época
andando pelas ruas da cidade (o Rio, agora), com fortes sugestões visuais, criadas, se possível, pela
simples menção de nomes de produtos, personalidades, lugares e funções (...) devia ser mantido, pois era
o ideal para os novos propósitos. (...) Era um modo de deixar o ouvinte ao mesmo tempo perto e longe da
visão de mundo do personagem que, na canção, diz ‘eu vou’. Entre as imagens eleitas, a menção a Coca-
Cola como que definia as feições da composição: inaugural e surgindo como que não intencionalmente, a
Coca-Cola fez com que se recebesse “Alegria, alegria” como um marco histórico instantâneo.
43
Aberto o novo caminho, Caetano compôs a canção Tropicália, na mesma época
em que o Teatro Oficina ensaiava O rei da vela:
Eu tinha escrito “Tropicália” havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essa
peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um
movimento que transcendia o âmbito da música popular.
44
43
VELOSO, Caetano Veloso. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 166.
44
Ibid., p. 244.
38
No entanto, ainda que a avalanche tropicalista tenha, a partir daí, atingido as
mais diversas searas da criação artística, entre elas o cinema e as artes plásticas, é
possível distinguir o modo de atuação do movimento na música popular e no teatro,
conforme procurou demonstrar o filósofo Celso Favaretto em um dos mais lúcidos
ensaios feitos sobre o assunto:
Convém lembrar, ainda, que a música tropicalista difere do teatro de José Celso, exatamente
porque este fez expressionismo pop. O tropicalismo está mais próximo da estética do lixo, herdeira do
dadaísmo. Entende-se, assim, a exploração da sensibilidade pela violência no teatro de José Celso, e a do
humor na música tropicalista. Esta distinção é importante para discutir o valor puramente catártico do
choque obtido por violentação física e o valor desconstrutor do estranhamento produzido pela prática
tropicalista.
45
Portanto, os jovens da geração de 69 estavam expostos tanto ao choque dos
sentidos contra a cultura burguesa, proposto pelo Oficina, quanto à mistura de cafonice,
bom humor e cultura pop, oferecida por Caetano e seus pares. De acordo ainda com
Celso Favaretto, a cena tropicalista propôs uma reorganização dos temas mais caros à
década de 60: nacionalismo, consumo e participação.
Para os novos artistas que começavam a surgir, o tropicalismo implicava a
exploração de uma sensibilidade moderna, urbana e não empenhada, contrária ao
modelo de atuação política convencional. O movimento, continua o filósofo, “tinha em
comum com o pop o interesse de problematizar os comportamentos e a linguagem
antitradicionalistas de uma área determinada da juventude - os universitários saídos, em
grande parte, da classe média. O tropicalismo não fugiu à regra: “não tematizou o
popular; explorou os mitos urbanos”
46
.
Do ponto de vista econômico, a tropicália soube ajustar perfeitamente o binômio
“cultura pop e consumo” ao modelo capitalista que começava a se impor no País,
combatido veementemente pela esquerda tradicional, conforme se pode depreender
desta análise feita pelo jornalista Zuenir Ventura, no início da década de 70:
Quase sempre sem levar em consideração que nos últimos sete anos [1964-1971] o Brasil se
afirmou através da franca adoção do modelo capitalista de desenvolvimento e que esse modelo determina
formas peculiares de cultura, o nosso processo cultural ainda se desenvolve hibridamente: não se libertou
45
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. p. 49.
46
Ibid., p. 49
39
completamente dos resquícios artesanais das épocas anteriores e vai incorporando características de uma
cultura típica dos países industrializados. Sem ainda uma clara tomada de consciência de que vivemos o
fim do velho liberalismo, do paternalismo e do mecenato, a nossa cultura se volta - como operários se
voltavam contra as máquinas depois da Revolução Industrial - contra uma realidade que lhe exige novo
comportamento, um comportamento subordinado às implacáveis leis do mercado.
Coincidindo com a elevação de vida das camadas médias da população urbana, nota-se a
emergência de uma ‘cultura industrializada’ cada vez mais condicionada pelas leis da produção (altos
custos, fabricação em série, consumo em massa), mas que está encontrando barreiras naturais e atitudes
contraditórias de resistência. Além dos obstáculos opostos pela complexa realidade brasileira – onde ao
lado de ‘ilhas de consumo’ coexistem o analfabetismo em massa, o baixo índice de escolarização e o
baixo poder aquisitivo -, há a resistência daqueles que, apegados a padrões estéticos e formas de produção
cultural típicos de uma época passada, combatem o novo processo em nome da qualidade, que seria
incompatível com esse tipo de cultura, e em nome da liberdade de criação, que estaria subordinada à
demanda do mercado. Tendo que atender mais ao requerido pelo consumo do que aos seus próprios
impulsos e preferência, esses intelectuais se considerariam produtores e não criadores – fabricantes de
produtos em série e não criadores de objetos únicos .
47
Entretanto, do ponto de vista político-ideológico, o problema parecia mais
complexo. O modo como os tropicalistas procuravam abordar o real advinha de um
embaralhamento consciente das fronteiras entre um absurdo à brasileira e um
surrealismo redivivo, que está presente como pano de fundo em grande parte da criação
artística do movimento, e que de certa forma representa a própria feição histórica do
período. Em 1968: o ano que não terminou, o mesmo jornalista, ao descrever a reunião
ministerial que votou pelo AI-5, classifica o encontro como “uma peça tropicalista, na
qual não havia lugar para a ética” e conclui que a vida imitou cinicamente a arte naquele
trágico ano:
Os tropicalistas achavam que o absurdo brasileiro só poderia ser devolvido artisticamente pelo
choque de elementos dramáticos antagônicos - o moderno e o arcaico, o rural e o urbano, a tecnologia e o
artesanato, Ipanema e Iracema, banda e Carmem Miranda - encenados sob a forma de paródia. O
resultado, hipertrofiado, revelava a realidade como o realismo era incapaz de fazê-lo. O problema é que às
vezes a realidade permanecia mais absurda do que sua paródia, deixando o surreal aquém do real.
48
A dimensão absurda e surreal da tropicália foi lida em chave de perigosa recusa
à participação por parte dos setores conservadores da cultura brasileira. Na contramão
47
VENTURA, op. cit., p. 47-8.
48
Id. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 279-80.
40
da corrente que vê na atitude dos tropicalistas uma espécie de apologia à alienação, a
análise de Celso Favaretto vai identificar o potencial revolucionário do movimento
justamente na exploração que ele faz dos elementos surreais, que contrariava a
experiência racionalista da esquerda tradicional:
A atividade tropicalista se materializa como um exercício surrealista: uma prática em que a
realidade é fecundada pela imaginação e pelo sonho, iluminando as possibilidades reprimidas. Esta
prática, de inspiração materialista, antropológica, volta-se para o cotidiano, mais precisamente para a
mitologia urbana, aí investindo as forças do êxtase para a revolução.
Visa, não à realidade, enquanto totalidade indiferenciada, mas aos objetos próximos,
obsoletados, arcaizados. Libertam-se, pela desrealização, as forças revolucionárias ocultas nesses objetos,
pois, segundo a inspiração surrealista, seria necessário fazer explodir a representação - a linguagem
instrumentalista que lhes confere realidade -, o que se consegue com a crítica do sujeito, pelo
afrouxamento da individualidade. O sonho e a imaginação fazem aceder à realidade dos objetos,
ultrapassando-os, assim, a causalidade lógica, fundamento da moral idealista que informava a prática
política da intelligentsia burguesa de esquerda.
49
Prematuramente, as grandes questões estéticas e políticas do tropicalismo
acabaram reduzidas à superficialidade típica com que os meios de comunicação e o
mercado publicitário tratam as propostas complexas. O diretor Zé Celso Martinez
Correa, em entrevista realizada uma década depois da eclosão do movimento,
denunciava:
A burguesia das multinacionais, através da imprensa, das agências de publicidade, aproveitou a
brecha para comprar a coisa e lançá-la como o pop tropical. Batizaram-nos “tropicalistas”. Dominando
todos os meios de comunicação, vincularam o nosso trabalho da época a uma brincadeira de salão. Eu
mesmo, que era apenas um diretor de teatro, virei a figura mediatizada do “muito louco”, falando uma
linguagem que nunca falei... e para completar o folclore neocolonial me atribuíram o papel de
representante da contracultura no Brasil. Ainda muito ignorante desses mecanismos, eu me surpreendia,
escandalizado com esse cara que inventaram que era eu.
50
É por volta dessa época também, conforme atesta o depoimento de Zé Celso, que
os ventos da contracultura começam a chegar ao país, revelando ao público jovem
informações sobre o uso de drogas, as terapias corporais, o misticismo oriental e o
49
FAVARETTO, op. cit., p. 114-5.
50
CORRÊA, José Celso Martinez. Primeiro ato: cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974). São
Paulo: Editora 34, 1998. p. 127.
41
folclore ameríndio; revalorizando as teorias sociais anarquistas, a estética Dada e a
psicanálise; e instituindo novos ritos como as experiências comunitárias, os shows de
rock, os circuitos alternativos e os jornais underground, por exemplo.
De acordo com o historiador Theodore Roszak, as origens remotas do
movimento da contracultura residem nas primeiras manifestações da geração beat: a
publicação do poema Howl (Uivo), de Allen Ginsberg, e o surgimento da revista Mad,
ambos ocorridos nos Estados Unidos, na década de 50, e cuja energia criativa voltou-se
contra a maneira norte-americana de encarar a política, os meios de comunicação e a
educação dos jovens. Segundo um participante ativo do movimento, o poeta Michael
McClure
51
, os beats queriam escapar das pressões da cultura bélica justamente na
década que assistiu à expansão da guerra fria e ao primeiro embate da Ásia: a guerra da
Coréia. No decênio seguinte, a postura da geração beat se desdobrou em outra frente de
contestação da ordem vigente. Assim, a divulgação das ações do movimento Provo
52
holandês, entre 1965 e 1967, e do comportamento hippie da Califórnia, em 1967,
constituiu os marcos iniciais do que se convencionou chamar, então, de contracultura.
O escritor e ensaísta italiano Matteo Guarnaccia historiou o surgimento dos
Provos holandeses, invocando-lhes o papel de principais articuladores de todo o
processo contracultural que os anos 60 conheceram e procurando ainda estabelecer a
diferença entre o modo de atuação deles e a atitude beat:
A revolta Provo foi o primeiro episódio em que os jovens, como grupo social independente,
tentaram influenciar o território da política. Fazendo-o de modo absolutamente original, sem propor
ideologias, mas um novo e generoso estilo de vida antiautoritário e ecológico (embora esta palavra ainda
não existisse naqueles anos). Caminhando contra a corrente do ‘cair fora’ beat, os Provos holandeses
51
Michael McClure, ao lado de Allen Ginsberg, Gary Snyder e Jack Kerouac, foi um dos principais
articuladores do movimento beat, aplicando a paixão pela biologia a suas atividades como poeta,
dramaturgo e ensaísta. Autor de uma das canções emblemáticas da contracultura americana, Mercedes
Benz, gravada em 1970 por Janis Joplin, ele publicou, em 1982, um balanço histórico-poético da cultura
beat intitulado Scratching the beat surface, que foi lançado no Brasil em 2005 como A nova visão: de
Blake aos beats, pela editora Azougue, ao qual faremos referência oportunamente.
52
O movimento Provo (forma reduzida de “provocador”) constituiu-se de um grupo de jovens que se
reunia no centro de Amsterdã, de julho de 1965 a maio de 1967, para realizar protestos coletivos contra a
sociedade de consumo. Condenando a publicidade e o uso fetichista do automóvel, por exemplo, a
subversão Provo desenvolvia rituais que misturavam ludicidade, magia e bom humor. Segundo Matteo
Guarnaccia, o movimento antecipou e inspirou diversas manifestações de contestação jovem dos anos 60,
como a esquerda hippie norte-americana e os eventos de maio de 68 na França.
42
empenharam-se descaradamente em permanecer dentro da ‘sociedade’, para provocar nela um curto-
circuito.
53
Nas principais capitais européias e em algumas cidades norte-americanas,
começa a circular um ideário de contorno neoanarquista, disposto a combater o estágio
de fossilização a que teria chegado a cultura ocidental. Para tanto, era preciso propor
uma quebra radical na continuidade da experiência civilizadora do Ocidente. “A cultura
e a civilização, elas que se danem... ou não!” alardeava o primeiro verso de uma canção
tropicalista da época, cantada pela musa do movimento, Gal Costa
54
.
Assim, uma série de referências conceituais e os nomes de algumas
personalidades contemporâneas ligadas às atividades contraculturais, ou advindas do
passado para serem revalorizadas por elas, passaram a freqüentar o vocabulário da
juventude. De acordo com Theodore Roszak, o repertório onomástico básico da
contracultura reunia “a sociologia neo-esquerdista de [C. Wright] Mills, o marxismo
freudiano de Herbert Marcuse, o anarquismo Gestalt-terapêutico de Paul Goodman, o
misticismo corpóreo apocalíptico de Norman Brown, a psicoterapia radicada na
filosofia zen de Alan Watts e, finalmente, o narcisismo impenetravelmente ocultista de
Timothy Leary”.
55
No inventário afetivo-literário que fez da época, alguns anos mais tarde, o
escritor Caio Fernando Abreu empresta ao narrador do conto Os sobreviventes a
seguinte verve irônica:
... ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda,
depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos todos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na
Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50 em Paris, 60 em Londres ouvindo here comes the sun
here comes the sun little darling...
56
O grande inimigo invisível a ser combatido era a tecnocracia, a forma como a
sociedade industrial havia atingido o auge de sua organização, baseada nos conceitos de
modernização, atualização, racionalização e planejamento. Este “novo autoritarismo”,
53
GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad,
2001. p. 13.
54
GIL, Gilberto. Cultura e civilização. In: COSTA, Gal. Gal. Philips, 1969. LP.
55
ROSZAK, Theodore. Para uma contracultura. Lisboa: Publicações Dom Quixote, [s.d]. p. 86.
56
ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 27.
43
para Herbert Marcuse, possuía uma capacidade de oferecer aos cidadãos do mundo dito
civilizado generosas doses de satisfação de modo tão sinuoso que acabava por gerar
submissão irrestrita ao modelo da cultura ocidental e enfraquecer qualquer forma de
protesto contra ele. Tanto para o filósofo alemão quanto para o psiquiatra norte-
americano Norman Brown, o advento da tecnocracia deslocava esta alienação do terreno
da sociologia para o da psicologia. Portanto, para ambos, os verdadeiros estudiosos do
fenômeno não deveriam ser mais os cientistas sociais e, sim, os psiquiatras.
Segundo seus ideólogos, a contracultura concebeu a idéia de uma nova esquerda
em cujas fileiras não cabiam, naturalmente, os liberais à la Kennedy, tampouco os
marxistas tradicionais (cujo foco de atenção estava voltado única e exclusivamente à
revolução proletária) e os ativistas do movimento negro, que se comportavam,
anacronicamente, de modo similar ao das manifestações mitificadoras nacionalistas do
século XIX.
No Brasil a recepção da informação da contracultura privilegia o
questionamento da tradição culta - que marca a passagem da erudição dos anos 50 para
a nova sensibilidade pop - e discute a crise do discurso político dominante, a posição
dos intelectuais e os limites do poder e do saber. Quanto às novas militâncias político-
comportamentais que se anunciavam, o escritor e músico Jorge Mautner previu à época,
num tom bem-humorado, quais seriam as conseqüências do movimento:
O futuro é nosso, a velha política de esquerda e direita, de luta de classes, de guerra fria, vai
acabar: Marcuse não é nada comparado com o que vem. Vai ser chatíssimo: as lésbicas negras
sadomasoquistas vão disputar direitos com os pais gays brancos protestantes etc., etc..
57
Entretanto, muito desta atitude neoesquerdista, na verdade, aponta para uma
despolitização da juventude, conforme indica a professora Heloísa Buarque de Holanda:
A contracultura, o desbunde, o rock, o underground, as drogas, e mesmo a psicanálise passam a
incentivar uma recusa acentuada pelo projeto do período anterior. É nessa época que um progressivo
desinteresse pela política começa a se delinear. (...)
A esse respeito é muito interessante o trabalho de Gilberto Velho sobre tóxicos e hierarquia,
defendido na USP como tese de doutoramento e antropologia. Definindo dois grupos para pesquisa, os
Nobres - intelectuais - e os Anjos - surfistas -, Gilberto observa, a respeito do segmento vanguardista-
aristocratizante do primeiro grupo, como, a partir de um determinado momento de suas histórias de vida,
57
apud VELOSO, op. cit., p. 443
44
o engajamento na prática política é substituído pela valorização da ‘mudança de vida’ como tema
emergente. Nesse sentido, observa a função ‘liberadora’ dos tóxicos e da psicanálise. O tema da
liberdade, da desrepressão, da procura de ‘autencidade’, substitui progressivamente os temas diretamente
políticos. Ser marxista, no fim de algum tempo, passa a ser visto como um estigma, principalmente se
vem acompanhado de alguma preocupação de participação política mais efetiva, constituindo-se em
demonstração insofismável de ‘caretice’. É nessa linha que aparece uma noção fundamental - não existe a
possibilidade de uma revolução ou transformação sociais sem que haja uma revolução ou transformação
individuais
58
.
Em 1973, em um artigo sobre o marasmo que se abatera sobre a cultura do País,
passados os anos rebeldes, a revista Visão alertava:
Criando uma atmosfera cultural bastante difundida - talvez mais a atmosfera do que
propriamente produtos estéticos singulares -, a contracultura foi outro dos meios de preencher o vazio
cultural, aceitando implicitamente as restrições que a situação geral impunha ao debate mais diretamente
voltado para a realidade concreta.
59
Enquanto para o crítico Antonio Candido a contracultura se configurou “uma
rebelião patética de impotência, quando encarada do ângulo político”
60
, para o
sociólogo Luciano Martins, o movimento acabou por defender ingenuamente a bandeira
da alienação:
A melhor medida da alienação produzida na sociedade por um regime autoritário talvez seja
dada justamente pelo exame da natureza dessa contracultura. Porque somente quando os valores de que
esta é constituída são realmente restauradores das noções de sujeito e de liberdade é que ela pode
pretender se constituir em negação das práticas autoritárias que violam tais noções. Quando isso não
ocorre, a contracultura tende apenas a reproduzir, embora em outra clave, a partitura geral imposta à
sociedade. Na medida, por exemplo, em que a contracultura também suprime, em sua prática, a idéia de
sujeito, pela sua substituição por um mero exacerbamento da subjetividade, ela se contradiz a si própria.
Negando mais sua função do que o estado de coisas ao qual ela é suposta a se contrapor, a contracultura
se transforma apensas num conjunto de comportamentos idiossincráticos. Na justa medida em que os
58
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 61-2.
59
apud MOTA, op. cit., p. 280.
60
CANDIDO, Antonio. A literatura brasileira em 1972. In: ARTE EM REVISTA. Anos 60.o Paulo:
Kairós Livraria e Editora, n. 1, jan./mar. 1979. p. 26.
45
indivíduos que se pretendem portadores da contracultura ignoram a contrafração que praticam, eles
revelam também o grau máximo de sua própria alienação.
61
A partir do final dos anos 60, o mundo das artes e os meios de comunicação nos
grandes centros urbanos do país passaram a conhecer algumas experiências que
constituíram as manifestações mais autênticas da contracultura brasileira, aqui também
chamada de underground (com sua impagável variante ‘udigrudi’) e desbunde. Na área
teatral, os espetáculos O rei da vela, Na selva das cidades, Galileu Galilei, As três
irmãs e Gracias, señor - todos do grupo Oficina - e, no segmento editorial, os
periódicos Pasquim, Flor do Mal, Presença, Verbo Encantado, Bondinho, Rolling Stone
e Kaos foram, de acordo com a análise que fez do período o diretor e jornalista Luiz
Carlos Maciel, alternativas de fruição para “aqueles jovens que não se exilaram nem
tinham a coragem ou a insensatez de pegar em armas”.
62
Tornar-se hippie era uma das inúmeras possibilidades de adesão à contracultura,
mas acabou por constituir a opção mais simples e mais popular para alguns segmentos
da juventude dispostos a negar a validade dos campos de combate tradicionais, entre
eles, a política e o teatro. Segundo o depoimento de Alfredo Sirkis, em Os carbonários,
1969 é o ano em que parte da juventude de esquerda que militava na luta armada
“desbundou”:
Desbundar, naquela época, significava, no jargão de esquerda, abandonar a militância. Fulano?
Fulano des-bun-dou, dizíamos, com desprezo. No segundo semestre de 69, começou uma onda de
desbundamentos nos colégios de zona sul. O primeiro foi logo o Ernesto, o grande ferrabrás doutros
tempos, que virou hippie. A sua saída abalou muita gente. Quase todos os companheiros da OPP optaram,
num primeiro momento, pelo racha da VAR. Mas, com a queda do Minc e depois com as primeiras
discussões com o Jamil, foi ficando clara a perspectiva que se delineava e seus perigos. A VPR era luta
armada no duro! Alex e eu queríamos ir logo para um GTA (Grupo Tático Armado). Chega de
panfletinho, discussão, reunião. Negócio é pegar na metranca. É o que o povo espera de nós. Ou ficar a
Pátria Livre, ou morrer pelo Brasil!
Mas os companheiros desbundavam. (...) Mais tarde a organização desaconselharia o contato
com “áreas de desbundados, gente que abandona a luta pra ficar em casa fumando maconha”.
63
61
MARTINS, op. cit., 17-8.
62
MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996. p. 121.
63
SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Record, 1998. p.
172.
46
A declaração de Milton Temer também aponta para o mesmo viés:
... em 1968 tínhamos a clareza de que a luta armada só iria servir àquilo que a prática
comprovou: eliminar uma geração de combatentes pela democracia. Uma parte dizimada pela repressão,
outra jogada no ceticismo e no desbunde. Porque quem fez o desbunde, contribuindo para a
desmobilização, foi justamente esse setor que se jogou de cabeça na luta armada e depois faria a apologia
de que política já era.
64
Fauzi Arap, depois da bem-sucedida experiência de dirigir espetáculos como
Navalha na carne e O assalto - o que logo o fez atingir o estágio que muitos
considerariam como o topo da carreira: dirigir Paulo Autran em uma montagem de
Shakespeare (Macbeth) -, experimentou uma espécie de ano sabático, pautado pela
atitude hippie:
Durante boa parte do ano de 70, desiludido com os novos autores, com quem havia me
desentendido, e com grandes atores-produtores como Paulo Autran, acabei optando por conviver com
aqueles que começavam a engatinhar dentro do movimento hippie. Aquilo me trazia um alívio, mesmo
que ilusório e temporário, porque com o interesse de meus companheiros que eu havia perseguido por
tanto tempo em solidão, parecia que finalmente eu iria acertar o passo com minha geração. (...) Assuntos
como I ching, Espiritualismo, astrologia, umbanda iam aos poucos tomando conta das mesmas rodas que
antes só se interessavam por política e teatro.
65
Ajustando-se perfeitamente a uma época pautada por rebeldia e indignação, os
movimentos que ecoavam, nos anos 60, nas mais diferentes áreas da atividade humana,
pareciam rejeitar qualquer proposta de entendimento e conciliação. As palavras de
ordem eram demolir, renegar, cindir.
Duas ordens em conflito?
As informações que chegavam, então, à nova geração de criadores - advindas,
sobretudo, do teatro do absurdo, do tropicalismo e da contracultura - fizeram com que
os meios intelectuais e artísticos, ao final da década de 60, travassem uma ampla
64
apud MORAES, Dênis de. Vianinha: cúmplice da paixão. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991. p. 181-2.
65
ARAP, op. cit., p. 102-3.
47
discussão a respeito da cisão do velho mundo ocidental em duas ordens que pareciam
conflitantes. De um lado, irracionalismo e alienação. De outro, o apelo à razão e ao
engajamento.
Em artigo publicado na revista Visão, em julho de 1971, o jornalista Zuenir
Ventura assim retrata o problema do irracionalismo:
... desencorajada pela censura, impotente diante o AI-5, dilacerada por dentro e pressionada por
fora, a cultura brasileira contemporânea tem transitado por várias “picadas” como se fossem “veredas da
salvação” (populismo, paternalismo, hermetismo, misticismo, erotismo, realismo, agressão, tropicalismo
estruturalismo, marcusianismo, meluhanismo etc.) em busca de uma saída. No plano ideológico, esse
impasse se traduziria por duas tendências antagônicas classificadas, por simplificação, de racionalismo e
irracionalismo. O intelectual, na sua busca da verdade, poderia seguir pelos caminhos da razão ou fugir
pelos descaminhos da negação desta mesma razão. Poderia encarnar a realidade com os olhos da lucidez
ou contemplá-la através de uma nuvem de fumaça.
66
Já na década de 50, os beats postularam a necessidade de o mundo racional e
científico se curvar às manifestações da fantasia. O poeta e estudioso de biologia,
Michael McClure aponta como se deu a descoberta desta “anti-racionalização”:
Trabalhando com peças de teatro e ensaios, encontrei uma sinuosa multidimensionalidade do
pensamento. À medida que o meu conhecimento de biologia se expandia, encontrava-me cada vez menos
satisfeito com as descrições e análises críticas da literatura confinadas à razão e à lógica. Mesmo a razão e
a lógica, em suas manifestações usuais, encobrem as forças potentes que ainda não foram consideradas
pela arte da Poesia.
67
No decênio seguinte, de acordo com a análise do historiador Marvin Carlson, o
teatro francês vai se deixar influenciar pelo pensamento de Antonin Artaud e pelas
produções (a partir de 1966) de Jerzy Grotowski. Daí em diante, a tendência à
irracionalidade e à abordagem anti-lógica e anti-histórica do teatro - presente tanto nas
propostas de Artaud quanto nas de Grotowski - passou a influenciar, segundo os
críticos, grande parte da criação teatral do Ocidente, disposta a combater por sua vez a
“racionalidade louca” que vinha pautando muitas das conquistas do século XX.
No Brasil, os tropicalistas talvez tenham sido os primeiros a questionar o padrão
de racionalidade da esquerda revolucionária, que, segundo Caetano Veloso, se sentia
66
VENTURA, op. cit., p. 50-1.
67
MCCLURE, Michael. A nova visão: de Blake aos beats. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. p. 109.
48
ameaçada tanto pelo irracionalismo quanto pelo super-racionalismo. Ao analisar o modo
como a tropicália encontrou no modernista Oswald de Andrade a resolução desta
equação, o compositor afirma:
De fato, se eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas de esquerda e pelos burgueses
moralistas de direita (ou seja, pelo caminho mediano da razão), tivera o apoio de - atraíra ou fora atraído
por - “irracionalistas” (como Zé Agripino, Zé Celso, Jorge Mautner) e “super-racionalistas” (como os
poetas concretos e os músicos seguidores dos dodecafônicos). Uma figura, contudo - eu estava agora
descobrindo em São Paulo entre 67 e 68 -, era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se
aceitavam mutuamente: Oswald de Andrade.
68
Terra em transe, o filme de Glauber Rocha que, ao lado de O rei da vela e de
Alegria, alegria, constitui um marco inaugural do tropicalismo, também foi acusado
pela crítica marxista de adotar uma posição francamente irracionalista, em nome de uma
visão alegórica da realidade. A este respeito, Leandro Konder, quando do lançamento
do filme, apontava:
Em seu esforço por repelir qualquer mecanismo de alienação cultural, em sua ânsia por pensar a
realidade subdesenvolvida do Brasil a partir de sua miséria concreta, Glauber foi levado a desprezar as
tradições do racionalismo “europeu” e acabou sendo envolvido pelas concepções não menos “européias”
do avant-gardismo.
69
Na área teatral, Anatol Rosenfeld tratou do assunto por meio da série de artigos
que publicou na imprensa de 1970 a 1973. Em “Irracionalismo epidêmico”, o crítico
atacava a descontinuidade e a desestruturação verbal do discurso de um jovem diretor
de teatro da época (não identificado no texto) e via nelas a mesma postura irracionalista
adotada pelo Living Theatre em sua passagem pelo Brasil. O diretor brasileiro, que se
dizia defensor da estética do kaos, e os “anarcomísticos” do grupo norte-americano
constituíam uma enfermidade que se abatera sobre o teatro, segundo Anatol, inspirada
por “gurus, guias espirituais, pajés, vibrações e fluidos cósmicos e outras transas
moderninhas.” Em “Individualismo e coletivismo”, o crítico alertava para o perigo de as
novas gerações confundirem o triunfo da razão ocidental, de longa tradição filosófica,
68
VELOSO, op. cit., p. 245.
69
apud MOTA, op. cit., p. 221.
49
com certos comportamentos ultra-racionais que idolatravam cegamente a ciência, a
técnica e a tecnologia. Em dado momento do texto, perguntava-se Anatol:
A civilização ocidental será de fato tão funestamente racional, cerebral, intelectualista etc., como
afirmam vastos círculos mais ou menos contagiados pela visão romântica da contracultura?
para em seguida esclarecer:
Por um engano muito difundido chamam de racionalista um desenvolvimento que põe os
resultados e produtos de uma inteligência meramente tecnológica e manipulatória a serviço de fins
irracionais, que nada têm a ver com a razão.
70
Na crítica feita a Rito do amor selvagem, de José Agripino de Paula e Maria
Esther Stockler, Anatol Rosenfeld exalta as qualidades coreográficas do espetáculo,
advindas, sobretudo, de uma atmosfera dionisíaca, mas não deixa de notar que “no
esvaziamento, na desarticulação e mesmo na caricatura do verbo acentuam-se certas
tendências irracionalistas do momento”.
Uma das mais densas polêmicas acerca do assunto ocorreu entre o diretor José
Celso Martinez Corrêa e o crítico Sábato Magaldi, acarretando, inclusive, o rompimento
da relação entre eles.
71
Ainda em 1968, em entrevista concedida ao jornalista e poeta
Tite Lemos, o líder do Teatro Oficina declarava não acreditar mais na “eficiência do
teatro racionalista”, defendendo, por oposição, a idéia de “um teatro da crueldade
brasileiro - do absurdo brasileiro -, teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da
apatia em que vivemos.”. Quatro anos mais tarde, na crítica que publicou no Jornal da
Tarde a respeito do espetáculo Gracias señior, do Oficina, Sábato observava:
Fica, então, uma caricatura da verdade, preenchida por todas as baboseiras da moda no teatro de
vanguarda, inspirada em grande parte no arsenal das teorias irracionalistas: contato sensorial, desafio pelo
fluido do olhar, suposta captação de energias e uma comunhão estancada pelas exigências dos chamados
bons costumes (qualquer baile de Carnaval é mais autoral do que a festa improvisada no palco). O ‘te-ato’
se transforma numa repressão ao teatro.
72
70
ROSENFELD, op. cit., p. 215.
71
A esse respeito ver o artigo de Sábato Magaldi, “Resposta a uma agressão”, publicado em Depois do
espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 2003.
72
MAGALDI, op. cit., p. 303.
50
Zé Celso escreveu, então, uma “Carta aberta ao Sábado Magaldi também
servindo para outros, mas principalmente destinada aos que querem ver com olhos
livres”, que era distribuída aos espectadores de Gracias señior ao final do espetáculo.
Em certos momentos do longo manifesto, o diretor combate veementemente o que seria
a postura racionalista viciosa da crítica, em geral, e de Sábato, em particular:
São Paulo tem uma tradição intelectual estranha. Cinqüenta anos de Semana de Arte Moderna, a
neurose ainda permanece A chamada “intelligentsia” paulista - aliás, essa palavra é pomposa demais, não
sabemos nomear esse fenômeno: pessoas que se entregam à atividade cultural e ao compromisso do
“caminho certo”, político-abstrato, com leis muito próprias, uma coisa muito distante da inteligência e
muito próxima da racionalização de uma neurose de não-criação artística e de não-criação de ação
política. Uma couraça de seriedade cultural, de sensibilidade árida; de racionalismo reduzido a três ou
quatro fórmulas; de crítica e humor caipiras ligados à própria estruturação, sempre com um “percebe?”,
ou “correto?”, ou “certo?” no final - fórmulas de raciocínio que se sucedem de geração a geração, ficando
na esfera da própria fórmula alterar a vida social, criativa, do possuidor dessas fórmulas. Um
racionalismo defensivo que até agora nada proporcionou à vida cultural ou social do país, a não ser uma
idéia vaga e vazia de seriedade e respeitabilidade artesanal, coisa que o teatro de São Paulo tão bem
demonstra: um nada esforçado. E todos se respeitam mutuamente nesse jogo, em última análise muito
bem representado na seriedade oligárquica, caipira e gutemberguiana de certos senhores e de seus
servidores. Essa ideologia foi e é balançada sempre que topa com a criação real, sem preocupações de
seriedade, ortodoxia ou pecado.
[...]
... quando é necessário sair um pouco do artesanato, ele recorre aos eternos conceitos de
racionalismo e irracionalismo. Qual é?
[...]
Eles [os racionalistas] não podem compreender a razão experimental galilaica - a da pesquisa, ou
a razão marcusiana; como detestam seu corpo, seu próprio cérebro, não se concebem como corpos com
capacidade de informação. Se seu tato sente e seus olhos vêem coisas, é preciso conferir nas fórmulas
antes de arriscar a experiência.
73
Sábato quis encerrar a polêmica (embora ela tenha sido revivida recentemente,
conforme indica a nota n. 68), contra-argumentando em longa e dura resposta a Zé
Celso:
Não recorro a ‘eternos’ conceitos de racionalismo e irracionalismo, mas não aceito a atual
desrazão de José Celso. Ele afirma que “o novoo tem espectadores, não tem críticos. O Oficina surge
com uma proposta nova, a ser examinada por uma razão nova”. Depois, acrescenta que “o crítico é um
73
CORRÊA, op. cit., p. 195-6.
51
absurdo perante essa obra”. Sem esmiuçar a contradição de suas palavras, digo apenas que o novo deve
ter críticos, porque a crítica participa do processo de instauração do novo. O problema é que, como o
objetivo de José Celso é unificar, se ele não consegue a união passa a apedrejar o crítico, como já
apedrejou uma operária
74
.
Em entrevista concedida em 1980, Zé Celso parecia ainda incomodado com a
questão:
... eu não sou racionalista, nem irracionalista. Eu sou é dialético. Eu ligo as coisas. Não separo
forma e conteúdo, teoria e prática. Não separo a cabeça do corpo. (...) Pois é, e o pessoal fica nessa de
cada coisa no seu lugar, separadinho. Forma separada do conteúdo. Racionalista para cá, irracionalista
para lá. Ora, eu nego isso. Porque o racionalismo é um fetichismo, é uma ilusão, é uma visão unilateral e
não dialética da razão. É a visão de trabalho que a burguesia cria. Esse negócio de racionalismo e
irracionalismo como coisa compartimentada é coisa da cultura burguesa. E então querem fazer uma
revolução cultural fundamentada nessas coisas
75
?
Mais recentemente, ao ser perguntado sobre como via o fato de já ter sido
acusado de irracionalista, Zé Celso sequer mencionou o confronto com Sábato,
preferindo contestar as visões de Anatol Rosenfeld e Roberto Schwarz - intelectuais,
segundo ele, “eurocêntricos”, para quem o irracionalismo advém de uma “concepção
acadêmica, positivista, colonizada”.
76
Ocupando as principais páginas das seções de cultura de jornais e revistas e
alimentando diversas discussões nos meios acadêmicos e artísticos, o debate a respeito
do par racionalismo/irracionalismo, a despeito de ter criado muitas bolhas de
especulação meramente retórica, obrigou a classe teatral a rever alguns pressupostos
sobre os quais estava assentada sua atuação artística. A iminente desarticulação do
campo intelectual e teórico, ameaçada de virar descrença na razão, denunciava o
movimento geral de desagregação pelo qual passava o país e convidava a todos a uma
ampla e irrestrita busca por novas saídas.
Outro debate polêmico girou em torno do par opositivo engajamento/alienação.
O teatro das décadas de 50 e 60, segundo Marvin Carlson, viveu o dilema de representar
74
MAGALDI, op. cit., p. 311.
75
CORRÊA, op. cit., p 310.
76
Entrevista concedida a Nelson de Sá e Otávio Frias Filho, publicada no caderno Mais da Folha de S.
Paulo em 31/8/1997.
52
“um fenômeno social engajado” ou “um artefato estético politicamente neutro”, e muito
desse embate foi alimentado pelo grande sucesso que começaram a fazer os
dramaturgos do absurdo. Em fins da década de 1950, o crítico Kenneth Tynan e o
dramaturgo Eugène Ionesco protagonizaram uma acalorada discussão a respeito do
tema. Tynan apontava Brecht a Ionesco como exemplo de seu ideal de engajamento
social, enquanto o dramaturgo franco-romeno vislumbrava em Brecht a manifestação de
um teatro ideológico árido.
Aos que defendiam uma arte livre de amarras didáticas, compactuar com as
palavras do autor de A cantora careca, parecia inequívoco:
Um dramaturgo apenas escreve peças nas quais pode oferecer um testemunho, não uma
mensagem didática... Qualquer obra de arte que fosse ideológica, e mais nada, não teria sentido... seria
inferior à doutrina que deveria exemplificar, que já teria sido expressada em sua linguagem adequada, ou
seja, a da demonstração discursiva. Uma peça ideológica não pode passar da vulgarização de uma
ideologia.
77
Os dramaturgos do absurdo pareciam querer alertar para o fato de que as
sociedades, por mais organizadas que fossem politicamente, não estavam sendo capazes
de acabar com a tristeza humana, a agonia de viver e o medo da morte, tampouco de
saciar a sede do absoluto, comuns a todos os homens.
É por isso que as ideologias, com sua linguagem fossilizada, têm de ser continuamente
reexaminadas e essa linguagem congelada, inexoravelmente destroçada; a fim de se encontrar a seiva viva
subjacente.
78
Embora nem sempre fossem conflitantes e pudessem ter coexistido
perfeitamente, as “amarras do real” e os “desvãos da irrealidade” se apresentaram a
muitos criadores como opções estáticas, perenes, absolutas. E vieram a estabelecer,
metodologicamente, duas linhas de atuação que contaminaram todo o teatro ocidental, a
partir de então: de um lado, criaram-se peças respeitosas aos limites do meio e da
linguagem (com a manutenção dos padrões realistas); de outro, conceberam-se trabalhos
transgressores de limites, da linguagem, do próprio gênero teatral, enfim, calcados,
77
IONESCO, Eugène apud ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional,
1967, p. 264.
78
Ibid., p. 265.
53
muitas vezes, na paródia a certos representantes da tradição. Um dos maiores entusiastas
e defensores do teatro do absurdo, Martin Esslin, absolve tanto a corrente realista quanta
a corrente não-realista da culpa que, verdadeiramente, não lhes cabe:
A contradição não existe entre o teatro realista e não-realista, ou entre o teatro objetivo e o
subjetivo, mas apenas entre, por um lado, a visão poética, a verdade poética e a realidade imaginativa, e,
por outro, a composição árida mecânica, inerte e poeticamente falsa. Uma peça de tese escrita por um
grande poeta como Brecht é tão verdadeira quanto a exploração de pesadelos articulares como As
cadeiras, de Ionesco. E paradoxalmente, uma peça de Brecht na qual a verdade do poeta tenha sido mais
forte do que a tese que ela apresenta poderá ser politicamente menos eficaz do que aquela mesma peça de
Ionesco, que ataca os absurdos da sociedade polida e da conversa burguesa.
79
Entretanto, no Brasil de fins da década de 60, aterrorizado por um regime de
exceção e prestes a viver a experiência da luta armada, tal polêmica ganhou contorno
especial. Para os dramaturgos ligados à esquerda tradicional, as experiências de
vanguarda faziam mal em se omitir diante da luta de classes, levando o palco a oscilar
entre os graus da pura evasão e do combativismo indeterminado. O título do artigo que
Dias Gomes publicou na revista Civilização Brasileira já anunciava a posição do autor:
“O engajamento é uma prática de liberdade”. Vianinha também tratou da questão em “A
ação dramática como categoria estética”, no qual adverte:
O teatro brasileiro de alguns anos para cá inverteu essas tendências. Perdeu sua aspiração de
participar na criação e fixação de um novo projeto. Preferiu mergulhar na oceanidade, no mundo
desagrupado, atomizado - no mundo sem saída, sem necessidades estruturais de reorganização - no
mundo da libertação interior da pressão real, a terra da individuação. Um teatro que promove uma
verdade interiorizada. Aparentemente, lá estão neste teatro de hoje as representações vigorosas de um
projeto novo - indicadores exigentes de novos comportamentos, relacionamentos, aferições etc.
Afirmamos que não existe novo projeto porque no momento em que eu deixo à impulsividade, ao
instinto, à verdade interiorizada imanente em cada um de nós o encontro de um novo mundo, no momento
em que cindo o homem em consciente e inconsciente - nada mais estou fazendo que pedir que a sociedade
deixe-se tomar exatamente pelo mundo da a-historicidade, pelas representações mais profundamente
arraigadas de insociabilidade. Estou permitindo as representações de libertação as mais subcutâneas
possíveis, que virão à tona como espelho da história real tal como ela é e não como o ser humano já pode
79
Ibid., p. 262-3.
54
projetá-la. As representações não são produzidas pelo tenaz estudo das condições de luta, pela pertinácia e
pela astúcia, não exigem o prazer e a dor do autodomínio.
80
A juventude brasileira de então vivia o dilema de aderir a um engajamento de
“espírito prático, disciplina de classes, estatísticas da injustiça, febre da retribuição”,
não condizente com o ideário da contracultura, ou manter-se neutra, ou mesmo alienada,
em relação à vida política, manifestando-se de forma “reativa” e “intransitiva”, de
acordo com a visão dos intelectuais marxistas.
Entretanto, a modernização acelerada pela qual passava o país na virada dos 60
para os 70 esvaziou a discussão acerca dos limites e das possibilidades da arte engajada,
uma vez que obrigou a produção cultural de nítido viés político a rever suas táticas de
combate a fim de se distinguir em um cenário no qual cada vez mais as obras de arte
estavam empenhadas na conquista do mercado. Por conta também da feroz vigilância da
censura e da absorção de mecanismos de auto-censura por parte de muitos criadores, o
tom de militância política foi, assim, rebaixado e migrou para formas mais difusas,
próprias da arte não-engajada: a metáfora, a alusão e a alegoria. Deste modo, muitas
criações puderam se irmanar no complexo terreno das imagens simbólicas.
Aos pares antitéticos racionalismo/irracionalismo e engajamento/alienação,
juntaram-se alguns outros temas que iriam municiar grande parte da criação artística e
da discussão intelectual das décadas de 60 e 70.
Alguns temas caros ao período
Toda época história tem um campo lexical próprio que a define. Assim, é
possível identificar certo número de conceitos que surgem recorrentemente em
entrevistas, depoimentos, artigos e ensaios dos anos 60 e 70, e que fizeram parte, de
forma direta ou indireta, do ideário defendido por boa parcela da arte produzida na
ocasião.
A crise da palavra. Zuenir Ventura arrisca-se a dizer que a geração de 68 talvez
tenha sido a última para quem o aprendizado intelectual e a percepção estética foram
80
VIANA FILHO, Oduvaldo. Vianinha: teatro, televisão, política. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 138-
9.
55
forjados por meio da leitura. Na década anterior, a geração beat havia investido na
expressão, relegando a comunicação a segundo plano. Em The dharma bums, Jack
Kerouac faz a personagem Sal Paradise perguntar “Por que é que os mestres do Zen
lançam seus discípulos numa poça de lama?” e obtém como resposta: “Para fazê-los
compreender que a lama é superior às palavras”. À mesma época, o teatro do absurdo
tratava de destronar a linguagem lógica e o pensamento conceptual, investindo contra o
que considerava o insuportável primado do discurso.
Nos anos 60, a crença no poder e na onipotência da palavra acaba por revelar-se
impotência, marcando uma geração que vinha de admirar a “incoerência tartamudeante
de James Dean” e que se mostrava disposta a crer que a mensagem estava no meio, de
acordo com a perspicaz interpretação de Theodore Roszak.
Logo a desarticulação do discurso - que para a sociologia marxista implicava a
negação do sujeito e da razão - adentrou os palcos brasileiros, marcando boa parte da
produção teatral do período. Na apresentação da edição de Gota d’água, datada de
1975, Chico Buarque e Paulo Pontes ainda se ressentiam dos efeitos da dessacralização
da palavra, investindo firmemente contra ela:
No auge da crise expressiva que o teatro brasileiro tem atravessado, a palavra deixou de ser o
centro do acontecimento dramático. (...) O desespero, o deboche, a supervalorização dos sentidos etc. -
que tomaram conta do nosso melhor teatro em anos recentes - a partir de determinado momento deixaram
de ser substitutivos conscientes do realismo policiado e passaram a ser, no plano teatral, a expressão da
incapacidade de nossa cultura de perceber e formular, em toda a sua complexidade, a sociedade brasileira
atual. (...) A forma que nós encontramos para refletir esse estado foi evidenciar a necessidade da palavra
voltar a ser o centro do fenômeno dramático. Não foi a razão que fracassou no nosso caso; quem
fracassou foi nossa racionalidade estreita.
81
Os valores da família burguesa. Em Eros e civilização, Herbert Marcuse
aborda o tema do declínio da função social da família, alegando:
Anteriormente, era a família quem, para bem ou mal, criava e educava o indivíduo; e as normas e
valores dominantes eram transmitidos pessoalmente, transformados através do destino pessoal. Certo, na
situação edípica, defrontavam-se mutuamente não indivíduos, mas “gerações” (unidades de gênero); mas
na transmissão e herança do conflito de Édipo, tornaram-se indivíduos, e o conflito prosseguiu, agora no
contexto histórico de uma vida individual. Através da luta com o pai e a mãe, como alvos pessoais de
81
BUARQUE Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água: uma tragédia brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002. p. 16-8.
56
amor e agressão, a geração mais nova ingressou na vida social com impulsos, idéias e necessidades que
eram, em grande parte, de cada um dos jovens.
82
Se nos anos 50 a instituição familiar, sobretudo nos meios burgueses, começa a
ter seu papel rediscutido, é na década de 60 que ela passa a ser alvo de uma contestação
mais dura por parte das novas gerações. Dentro de casa, os jovens de classe média se
vêem divididos entre uma infância permissiva e uma idade adulta conformista,
buscando desesperadamente novas formas de crescer em mundo tedioso e previsível,
que, a rigor, eles desprezam. Assim, conforme aponta Theodore Roszak, “a burguesia,
em vez de descobrir o inimigo de classe nas suas fábricas, dá com ele sentado do outro
lado da mesa do pequeno-almoço na pessoa dos seus filhos amimados.”
83
Tal luta de gerações é amplificada pelos meios de comunicação de massa, que
assumem a função de transmitir os novos valores a esta juventude. Trocam-se os lados:
os filhos sabem mais do que os pais e investem contra as formas obsoletas por meio das
quais estes atuam na sociedade.
O mundo do trabalho da classe média é também contestado. As gerações mais
jovens não querem seguir as carreiras de seus pais e tentam lutar, de modo mais amplo,
contra a nova forma de organização do poder econômico. Em âmbito mais restrito,
qualquer escolha profissional que ofereça conforto e segurança financeira em troca da
castração da criatividade e da autonomia plena do indivíduo deve ser combatida.
Em depoimento dado em 1980, Zé Celso Martinez Corrêa afirma que o processo
de libertação do grupo Oficina começou com a tentativa de implosão dos clichês do
corpo, do palco italiano e da família. A respeito deste último assunto, diz o diretor:
Esse tema era a obsessão de muita gente que queria renascer e que sentia uma contradição, um
verdadeiro abismo entre si mesmo e a família de onde saíra... E, para fazer o que queríamos, nós tivemos,
antes de mais nada, que passar por isso. Romper com a família. E romper mesmo. Mas romper com a
família é uma coisa muito séria, muito séria! Até hoje esse problema é atualíssimo: a morte da família, a
morte da instituição familiar... Enquanto houver família, cada geração, de um jeito ou de outro, terá que
passar por isso.
84
82
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999. p. 96-7.
83
ROSZAK, op. cit., p. 54.
84
CORRÊA, op. cit., 33-4.
57
A revolução sexual. À geração dos anos 60 também coube reagir contra a
repressão sexual, e a década inaugurou, então, uma era de transformação de costumes.
No campo teórico, as leituras das obras de Herbert Marcuse, William Reich e Norman
Brown, sobretudo, colocaram na pauta de discussão a necessidade de o processo
civilizador redimensionar o papel do sacrifício metódico a que vinha sendo submetida a
libido.
Na junção que se dá entre as dimensões erótica e política, o amor, o sexo, o
trabalho e a participação na vida social passam a constituir atividades interdependentes,
que lutam de modo integrado contra toda forma de repressão. Marcuse nomeia de
“sexualidade polimórfica” o conjunto de necessidades biológicas que devem ser
ativadas a fim de fazerem do corpo humano um instrumento de prazer e não de labuta,
alertando para o fato de os jovens serem combativos por necessidade biológica. “Por
natureza, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por Eros contra a
Morte”, afirma o filósofo.
Assim, os anos 60 irão conhecer o novo projeto de “racionalização libidinal”, no
qual têm presença garantida a liberdade e o gozo - o que levou Zé Celso Martinez
Correa a afirmar sobre a época, muito tempo depois: “Estávamos no Eros e na
esquerda”.
A crítica ao mundo do saber
Os hippies, nos anos setenta, vieram desprezar a intelectualidade - e se tornou ponto de honra
não ser intelectual. Seu pensamento de tipo mágico, de índole irracionalista, desprezava solenemente
qualquer espécie de intelectualismo. Me lembro que meus amigos hippies contestavam muito a
manutenção da minha biblioteca particular: “Pra que você quer esse conhecimento aprisionado?”, me
perguntavam então. Alguns propunham rifá-la; outros, vendê-la inteira numa grande festa. Era um
momento em que se pretendia viver a vida, não pensar sobre a vida.
85
Assim Luiz Carlos Maciel ilustra a aversão que certos setores da juventude
passaram a alimentar nas décadas de 60 e 70 contra as formas tradicionais do saber. A
nova geração desejou conscientemente se afastar da velha tradição de intelectualidade
do Ocidente, vislumbrando no conhecimento adquirido pela ciência, pela lógica e pela
85
MACIEL, op. cit., p. 143-4.
58
filosofia não mais do que o acúmulo inútil de estruturas caricaturais que falharam no
propósito de compreender a vida e de oferecer respostas adequadas aos homens.
A educação a que os jovens aspiravam recusava as sofisticadas estruturas de
pensamento, postulava que a experiência deveria sempre anteceder a teoria e
redimensionava o saber por meio da percepção fragmentária do real.
A loucura e as drogas. Enquanto na Londres do início de 1968, um folheto de
divulgação da recém-inaugurada Anti-Universidade da capital inglesa anunciava a
oferta do curso “Dos quadrinhos à dança de Shiva: amnésia espiritual e a filosofia da
auto-alienação” cuja bibliografia incluía leituras de “Artaud, Zimmer, Gurdjieff, Reich,
Marx, textos gnósticos, sufis e tântricos, relatos autobiográficos da loucura e de estados
extáticos de consciência”
86
, no Brasil dos anos 70, o poeta Torquato Neto, o dramaturgo
José Vicente, o escritor José Agripino de Paula e os músicos Arnaldo Baptista e Lanny
Gordin, pelas razões mais diversas, ousavam adentrar o palácio da loucura, como
postulava o poeta visionário William Blake.
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, a partir de fins da década de 60, “a
loucura passa a ser vista como uma perspectiva capaz de romper com a lógica
racionalizante da direita e da esquerda”. Com o incremento do consumo de drogas e a
radicalização das experiências sensoriais e emocionais, alguns artistas e intelectuais
sofrem internações em instituições psiquiátricas, outros se alienam por completo do
convívio social e profissional, e há ainda aqueles que se suicidam.
“A loucura é o sol que não deixa o juízo apodrecer” é a citação de São Francisco
de Assis que o poeta e jornalista Tite Lemos incorporou à letra de uma canção de sua
autoria
87
, interpretada por Maria Bethânia no show A cena muda, em 1974. A máxima
de São Francisco é também citada como filosofia de vida por Antonio Bivar em um dos
livros-testemunhos que o autor de Cordélia Brasil publicou a respeito dos anos 60 e 70:
Verdes vales do fim do mundo.
A valorização das possibilidades de percepção que as experiências alucinógenas
e os estados delirantes poderiam suscitar foi chamada de “nova sensibilidade” e
constituiu um elemento essencial para as novas opções estéticas e existenciais. Esta
86
ROSZAK, op. cit., p. 67-8.
87
COSTA, Sueli; LEMOS, Tite. Conversação entre João e Maria. In: BETHÂNIA, Maria. A cena muda.
Philips, 1974. LP.
59
sensibilidade tinha como marca a recusa das formas acadêmicas e institucionais da
racionalidade, produzindo uma atitude crítica baseada em visões e não em juízos.
Inicialmente, a loucura assume o papel de transgressora da ordem institucional e social.
Em seguida, por meio de discurso fragmentário e descontínuo que produz, ela procura
reavaliar e criticar o modelo racionalista do pensamento ocidental.
Enquanto um representante autêntico da contracultura como Fauzi Arap se
comprazia em ver na figura do louco um “subversivo do espírito” - embora procurasse
sempre se precaver, ao entrar “nos espaços alucinatórios”, como ele mesmo afirma em
suas memórias - Fernando Peixoto, amparado pela militância marxista, contabilizava as
perdas causadas pela arriscada operação de dar as costas ao mundo do juízo:
As pessoas foram se afastando, foram desistindo, foram enlouquecendo. Houve de tudo: desde
gente que pirou no nível místico, pirou no nível irracionalista total, pirou no nível ideológico total, a
ponto de passar para o avesso.
88
Coube ao tropicalista Caetano Veloso prestar um dolorido depoimento em tom
de autocrítica a respeito daqueles anos alucinados:
Sem a graça do sexo ou do pranto, sentia-me como que seco de mim mesmo e apartado de meu
corpo. A sensação de distanciamento que minha mente aprendera com a experiência do auasca sem
dúvida contribuía para isso. Muitas vezes, através dos anos, tenho parado para considerar como foi
arriscada e infeliz a circunstância de ter essa viagem alucinógena sido seguida tão de perto pela prisão. E
medito sobre como isso é representativo - mesmo emblemático - da coincidência, no Brasil, da fase dura
da ditadura militar com o auge da maré da contracultura. Esse é, com efeito, o pano de fundo do
tropicalismo: foi, em parte por antecipação, o tema de nossa poesia. Depois que saímos da cadeia,
começar a nos habituar com as notícias de amigos que eram levados de prisões para sanatórios ou vice-
versa. Acompanhamos diversos processos de enlouquecimento e, como já contei, afastei-me
definitivamente das drogas: escapara da loucura por um triz (fora salvo por meu pai, como contarei), não
tinha condições de correr o risco.
89
Os vários segmentos jovens dos anos 60 que viram nas drogas, sobretudo no
LSD, a adoção de uma nova postura estética e existencial deram continuidade às
experiências com o peiote realizadas pela geração beat, para quem as substâncias
alucinógenas eram tomadas “por prazer, consciência, elevação espiritual ou aquilo que o
88
apud NOVAES (Org.), op. cit., p. 276.
89
VELOSO, op. cit., p. 363.
60
poeta romântico Keats chamava de a formação da alma”, conforme atesta Michael
McClure. “O peiote - escreveu o poeta beat a um amigo em 1958 - é um remédio que
consegue abrir o indivíduo ou o universo humano de novo”.
Nove anos depois, Thimoty Leary em entrevista a um jornal da Califórnia
declarava que a chave do movimento psicodélico era a liberdade individual:
Os liberais e os esquerdistas, os marxistas, opõem-se a esta finalidade individual... Esforçam-se
por eliminar estas energias fecundas. Nós entramos em ação no xadrez político ou social para defender a
nossa liberdade interna individual... O que pretendemos é dizer aos jovens que o movimento psicodélico
não é nada de novo... Os hippies e os adeptos do “ácido”, e as novas tribos das flores, realizam uma
função clássica... O império torna-se próspero, urbanizado, completamente dependente das coisas
materiais, e surgem então os novos movimentos subterrâneos. Todos eles são subversivos. A mensagem
que todos eles pregam é ligar, sintonizar, abandonar.
90
Enquanto a esquerda marxista via no consumo de drogas claros indícios de
evasão da realidade, repúdio da consciência e recusa do tempo - o que levava os jovens
a negar as noções clássicas de sujeito e história -, os movimentos contraculturais
vislumbravam a possibilidade de o mundo ser efetivamente transformado por conta da
alteração de consciência que as drogas podiam suscitar nos indivíduos. “Dentro de
quinze anos, o Supremo Tribunal de Justiça fumará majihuana”, apregoava Leary.
As experiências com a loucura e com o uso das drogas procuraram reverter o
sentido da viagem com a qual grande parte dos jovens contestadores da época estava
comprometida. A contemplação boêmia iniciada pelos beats, a que os hippies deram
prosseguimento, distanciava-se do radicalismo da esquerda, ao propor uma incursão
pelo mundo do “eu”, em vez de uma excursão pelo mundo “exterior”. A sociologia
cedia constantemente o passo à psicologia, conforme atesta Theodore Roszak, fazendo
prevalecer conceitos como “eu verdadeiro” e “a verdade do indivíduo”.
Sob este aspecto é bastante esclarecedor o depoimento do ex-militante da luta
armada Alex Polari:
Em 1964, a ditadura tratou de quebrar a continuidade de um processo social que, mesmo nos
moldes populistas, estava “engajando” muita gente e ficando perigoso. O período posterior, depois de uns
dois anos de marasmo, encontrou a minha geração num processo de aprendizado de mundo voltado para
“fora”. Nessa época, eu iniciava minha existência útil político-genital, tomava surf, ouvia Beatles, esses
90
ROSZAK, op. cit., p. 199.
61
baratos. Desde 1966 havia recomeçado a rearticulação do ME e a invasão da Faculdade de Medicina foi o
grande marco. A partir daí, esse processo, que culminou com 68, liberou as energias criadoras pra fora.
Havia um espaço de legalidade pra que fosse assim, o que não houve, por exemplo, na geração de 70, que
surgiu sob a égide da viagem “pra dentro”. Bem, nessa época, quando fiz minha estréia, havia referências
de participação social muito fortes. E o processo foi se polarizando à medida que o espaço de que o Poder
nos dava foi-se estreitando. Cada vez ficou mais difícil o meio-termo. O negócio foi virando ou arriscar a
vida ou saltar fora e arranjar um Nirvana qualquer para se refugiar.
Foi isso precisamente que minha geração escolheu em 1969. Desbunde, piração ou guerrilha, já
que a militância ao nível do reformismo era negada. Quem optou por alguma coisa intermediária optou
geralmente pela integração total, pela corrupção ou pela mediocridade. Resistência marginal só houve
essas duas.
91
O certo é que o ativismo político e as experiências psicodélicas pareciam mesmo
excludentes. Fauzi Arap relembra a angústia que viveu, ao querer conciliar sua
formação marxista com o uso do ácido:
Eu acabava sendo vítima de minha compulsão e teimosia, ao querer sintetizar duas coisas
antagônicas, que eu reconhecia como verdadeiras: a ideologia materialista, que eu abraçara na faculdade,
e depois aprofundara na minha aproximação com o teatro profissional, e a descoberta de Deus e da
realidade do espírito, que o LSD descortinara.
92
Os temas mais caros aos anos 60 e 70 esforçaram-se para dar sustentação a uma
base cultural apoiada na descoberta de novos padrões comunitários, novos modelos
familiares, uma nova moral sexual, novos meios de ganhar a vida, novas formas
estéticas e novas identidades pessoais - opostos à política do poder, do lar burguês e da
sociedade de consumo.
As contradições da velha e da nova esquerda
Um dos maiores esforços das sociedades, através da sua organização e das ideologias que a
justificam, é estabelecer a existência objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais é preciso
escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda
ou direita política e assim por diante. Quanto mais rígida a sociedade, mais definido cada termo e mais
apertada a opção. Por isso mesmo desenvolvem-se paralelamente as acomodações do tipo casuístico, que
91
apud NOVAES (Org.), op. cit., p. 138.
92
ARAP, op. cit., p. 120.
62
fazem da hipocrisia um pilar da civilização. E uma das grandes funções da literatura satírica, do realismo
desmistificador e da análise psicológica é o fato de mostrarem, cada um a seu modo, que os referidos
pares são reversíveis, não estanques, e que fora da racionalização ideológica as antinomias convivem num
curioso lusco-fusco.
93
A afirmação é de Antonio Candido e se refere ao memorável movimento
dialético que o crítico identificou nas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel
Antonio de Almeida, mas, dados o alcance e a perspicácia da análise, ela pode também
auxiliar na compreensão de uma época marcada por tantas antíteses e contradições
quanto os anos 60 e 70.
Inicialmente, no âmbito da atuação política, 1968 é o ano em que um choque de
ideais advém do conflito de gerações. Aos militantes da velha esquerda cabe a atitude
“reformista” de resistir em consonância com os modelos conhecidos. Já aos
representantes da nova esquerda compete renovar, combater, revolucionar. No prefácio
de Rasga coração (1974), Vianinha discute as diferenças - muito bem articuladas
dramaturgicamente na peça - entre o “novo” e o “revolucionário”. Para o autor, o
“novo” no plano político fora a luta armada, cuja prontidão “revolucionária” fracassara
rapidamente; no teatro, o experimentalismo formal, despido de conteúdo político
“revolucionário”; e nos padrões de comportamento, a busca da libertação pessoal e da
quebras de tabus, dissociados de uma luta “revolucionária” mais ampla. Tal
preocupação recuperava a tese central do artigo que o “velho Chico Buarque” - de
acordo com a classificação da “vanguarda tropicalista” - havia publicado na imprensa
em 1968: “Nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha”.
Entretanto, o critério etário não recobre integralmente a questão, uma vez que a
própria juventude está, politicamente, dividida. De um lado, a boemia beat e hippie
procura se abster de todo modo do convívio social convencional; de outro, o ativismo
político realista da esquerda estudantil, recuperando o percurso das antigas esquerdas
socialistas, deseja invadir o espaço social a fim de revolucionar a vida política. Parte dos
jovens quer trazer a política para o comportamento. Outra parte procura o caminho
inverso: levar o comportamento para a política.
Em entrevista recente, concedida a respeito do filme que fez sobre aquele ano
tão emblemático - Os sonhadores -, o diretor Bernardo Bertolucci declara:
93
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: ______. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro:
Ouro Sobre o Azul/São Paulo: Duas Cidades. 2004. p. 41.
63
Não quero dizer que 68 foi um momento mágico, mas quase isso. Usamos a palavra “sonhando”
juntos. Cinema, política, música, jazz, rock’n roll, o sexo e a descoberta de como essas coisas poderiam se
unir e interagir umas com as outras, como poderiam se combinar em um tipo de harmonia que não vejo
mais.
94
O Brasil de 68 assiste ao embate de forças imersas em desequilíbrio e
contradição. O projeto da “arte popular revolucionária” do CPC, que contaminou grande
parte da produção artística dos anos anteriores, revela seus limites. Impedida de dar
continuidade às suas pretensões revolucionárias e sem poder chegar efetivamente ao
povo, a produção cultural engajada - sobretudo a música popular, o teatro e o cinema -
prefere circular dentro de um circuito integrado ao sistema, sendo consumida,
basicamente, por um público já “convertido” de intelectuais e estudantes de classe
média, conforme aponta Heloísa Buarque de Hollanda. Cria-se, a partir de então, o que
Heloísa chamará de o “rentável comércio de obras engajadas” e Celso Favaretto de
“ideologia do protesto”. Mas os tempos estão mudando e a “a linguagem do intelectual
travestido de povo trai-se pelos signos de exagero e pela regressão estilizada a formas
de expressão provinciais ou arcaicas”
95
, ainda segundo Heloísa.
Tal movimento - a que Caetano Veloso se referiu como “folclorização do
subdesenvolvimento” - dá mostras de esgotamento e precipita uma espécie de golpe no
populismo de esquerda, que “libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma
perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica,
mística, formalista e moral com que nem se sonhava.”
96
A publicação de Vanguarda e subdesenvolvimento, de Ferreira Gullar, em 1969,
indica que o marxismo ortodoxo está disposto a se abrir para o confronto com Umberto
Eco, o estruturalismo, o concretismo e Marcuse, mas mesmo assim ele ainda apresenta
uma visão esquemática que confunde sociedade de classes e sociedade de massas.
Por sua vez, a vanguarda, dividida entre a ação extremada e o desencanto,
também vive seu dilema publicamente: assumir a política da confrontação direta, à
medida que aumenta a frustração ante a brutalidade e os embustes da ordem
estabelecida, ou adotar a atitude da não-violência em nome do niilismo ou do desbunde.
94
OS SONHADORES. Bernardo Bertolucci. Twentieh Century Fox, 2004. DVD.
95
HOLLANDA, op. cit., p. 19.
96
VELOSO, op. cit., p. 105
64
É a época em que muitos jovens, de acordo com a observação irônica de Bernardo
Bertolucci, saíram para ir à China e chegaram à Califórnia.
Em Os carbonários, Alfredo Sirkis refaz o percurso da militância que ele
exerceu junto à VPR, partindo de sua condição inicial de jovem de classe média
disposto a “exorcizar os ranços pequenos burgueses” a fim de se imbuir da “ideologia
revolucionária do proletário”. Muito cedo, o militante percebe que os jovens de classe
média estão sendo “cooptados pelo consumismo”, tornando-se “pequeninos homens de
negócio”, enquanto o povão continua “esmagado” e “embrutecido pela
superexploração”. Por isso, é necessário que alguém continue a resistência. Pouco
tempo depois, um companheiro resolve sair da luta armada e viajar para a Europa, onde
pretende “virar hippie, lavar pratos e comprar um clarinete”. Tal atitude é seguida por
inúmeros camaradas, até que, por fim, o “velho bolchevique” que tanto resistira resolve,
ele próprio, sair do país, a fim de “salvar o que der para salvar, inclusive a própria vida,
e pensar em alguma outra coisa para o futuro”.
“O desbunde do companheiro Filipe”, assim nomeado por Sirkis, indiretamente
exemplifica a análise de Heloísa Buarque de Hollanda:
Instala-se a desconfiança em todas as formas de autoritarismo, inclusive os que são exercidos
em nome de uma revolução e de um futuro promissor, promovendo a valorização política de práticas tidas
como alienadas, secundárias ou pequeno-burguesas. O moralismo comunista é recusado como uma
atitude de “salão” que resguarda o corpo, teme as forças revolucionárias do erotismo e evita pensar as
próprias contradições.
97
Entretanto, muito da atitude política de vanguarda termina em simploriedade e
automistificação, para as quais basta um punhado de símbolos, gestos, vestuários e
slogans superficiais. A mesma superficialidade faz com que certas criações estéticas
reduzam-se a colagens de idéias e experiências conservadoras superdimensionadas
como “divinas” e “maravilhosas”. A respeito deste assunto, Roberto Schwarz adverte:
“Sobre o fundo ambíguo da modernização, o limite entre a sensibilidade e o
oportunismo, entre a crítica e a integração, permanece incerto”. Em seu estudo
panorâmico a respeito da produção crítica brasileira no período, Carlos Guilherme Mota
assim resume a posição de Roberto Schwarz:
97
HOLLANDA, op. cit., p. 69.
65
A nota crítica de Schwarz incide na ambigüidade da produção cultural de setores de vanguarda
que, segundo escreve, pretendem anular “a distância entre a vanguarda e o popular, entre a cultura ‘séria’
e de consumo. A ambigüidade da própria noção de progresso é que está em questão: para Schwarz,
progresso técnico e conteúdo social reacionário às vezes andam juntos, e aí poderá estar a raiz do desvio.
Conforme a vertente escolhida, se desembocará na integração capitalista - ou na sua negação.
98
Saindo da esfera social e política e adentrando o terreno do comportamento,
muitas realizações de vanguarda pareceram confundir os domínios do sexo e do
erotismo com o apelo ao pornográfico e o impulso pela morbidez, - o que preocupou,
inclusive, os entusiastas da cultura juvenil, como Theodore Roszak:
Repetidamente, emergem na arte e no teatro da nossa cultura juvenil e surgem constantemente na
imprensa clandestina elementos de uma pornografia grotesca e de um sadomasoquismo que faz gelar o
sangue. Muitos dos jornais clandestinos parecem partir do princípio que falar francamente acerca de
qualquer coisa é referir-se-lhe o mais grosseira e brutalmente possível. O erotismo supostamente
libertador deste estilo trai uma incapacidade total de compreender que a pornografia profissional não
provoca, antes atenua, o prurido essencial da sexualidade da classe média e tem todo o interesse em
defender a idéia de que o sexo é uma coisa suja.
99
De modo geral, a grande atitude estética e política das novíssimas gerações é a
negação de um mundo que, a partir do fim da segunda guerra, atingira o ápice da
autoconfiança no progresso e na tecnologia. O desafio era provar que ele não constituía
o único espaço possível. “Havia outras e melhores direções para as quais o espírito
moderno podia se voltar”
100
, aponta o ensaísta Marshall Berman. Entretanto, é
consensual entre a crítica marxista a idéia de que as gerações beat e hippie somente
conseguiram formular contra este mundo uma espécie de niilismo sentimental, logo
transformado em irracionalismo genérico.
Ainda de acordo com esta visada crítica, a arte moderna dos anos 60 procurou
eliminar as fronteiras entre o fazer artístico e o entretenimento comercial, a tecnologia
industrial, a moda e o design, redefinindo também a relação entre a obra de arte e a
atividade política. Assim, os projetos da arte engajada e as formas usuais de protesto
foram taxados pela contracultura de auto-indulgentes e castradores do espírito moderno,
98
MOTA, op. cit., p. 246.
99
ROSZAK, op. cit., p. 97.
100
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Cia. das Letras, 1996. p. 297.
66
mas, conforme alerta ainda Berman, “se esse modernismo encontrou sua empatia
imaginativa, nunca aprendeu a recapturar seu lado crítico”. “O problema - continua o
ensaísta - estava em que o modernismo pop nunca desenvolveu uma perspectiva crítica
que pudesse esclarecer até que ponto devia caminhar essa abertura para o mundo
moderno e até que ponto o artista moderno tem a obrigação de ver e denunciar os
limites dos poderes deste mundo”.
101
No Brasil, segundo Luciano Martins, a “geração AI-5” parece ter vivido uma
“experiência meramente instintiva, (...) destituída de qualquer capacidade de reflexão
sobre si própria enquanto experiência existencial”
102
. De acordo com esta análise, a
postura inconformista dos jovens levou a um tipo de protesto cuja conseqüência última
foi a intransitividade:
Assim, o protesto, no que diz respeito à sua dinâmica, agora não é apenas inconformismo
reativo, mas também não constitui uma teoria da revolução. É da ambigüidade dessa situação que aqueles
que protestam extraem sua limitação mais séria: uma grande capacidade de proposição e uma limitada
capacidade imediata de transformação. Isso, como se verá mais tarde, é o que confere a esses movimentos
seu caráter intransitivo.
103
Assim, no final dos anos 60, a esquerda brasileira se encontrava dividida em
duas posições conflitantes entre si, não vislumbrando um modo possível de superar este
fosso. O “extraordinário reacionarismo” do projeto nacionalista e o “estéril alheamento
face à sensibilidade nacional” das experiências de vanguarda - assim batizados por
Paulo Francis no artigo “Um balaio de nacionalismo e experimentalismo”, de 1970 -
pareciam apontar para um amplo terreno descampado logo batizado de vazio cultural.
A crença na idéia de que o verdadeiro radicalismo político poderia residir na
não-ação (ou seja, por meios não-políticos atingir-se-ia um objetivo essencialmente
político) acabou por levar as novas gerações a se distanciarem definitivamente do
engajamento da velha militância marxista, e as condições que envolveram tal cisão
foram captadas indiretamente pelos dramaturgos da geração de 69.
De modo geral, o fim dos projetos coletivos instaura a exacerbação do singular,
e toda sorte de desvãos da consciência toma lugar no palco, que se transforma também
em um curioso lusco-fusco de idéias e experimentações.
101
Ibid., p. 31.
102
MARTINS, op. cit., p. 24-5.
103
Ibid., p. 129.
67
Como a nova dramaturgia captou esse solo histórico
Em Eros e civilização - o livro que Herbert Marcuse escreveu em 1955 e que a
partir da edição de 1966 passou figurar como obra de referência fundamental a boa parte
das discussões até aqui expostas - o filósofo alemão defende a idéia de que a arte
constitui uma denúncia absoluta do princípio da realidade preponderante, expressando
“sem transigência os temores e as esperanças da humanidade”.
De acordo com esta visão, independentemente de estar filiada ou não a certas
posições ideológicas muito definidas, a obra de arte já carrega em si a marca de uma
indignação. Tal definição, advinda de um autor tão caro aos anos 60, reforça a idéia de
que a dramaturgia brasileira nascida no final da década não poderia estar indiferente ao
estado de coisas que ela presenciou ou mesmo pressentiu. Entretanto, alimentada pela
frustração dos projetos revolucionários do início da década, pela crise do populismo,
pela atuação política truculenta do Estado e pela sedução das idéias dos movimentos de
vanguarda internacionais, esta dramaturgia testemunhou um novo modo de denúncia,
ou, para alguns, uma nova contestação.
A condução dos protestos estava nas mãos da juventude - o que levou Margareth
Mead a afirmar que pela primeira vez na história os jovens sabiam mais do que os
adultos - e a realidade, muito mais complexa do que nos anos anteriores, exigia novas
formas e novos conteúdos. De um lado, o teatro procurou retornar a suas origens
dionisíacas e rituais, movimento assim captado por Anatol Rosenfeld:
O teatro contemporâneo, enquanto de fato contemporâneo, não pretende imitar a realidade nos
moldes do realismo ortodoxo: confessa-se ‘teatro teatral’, disfarce, ficção, poesia, sonho, parábola, função
circense, festividade lúdica. Deseja ultrapassar a ficção da realidade para que se manifeste a realidade da
ficção.
É dentro desse contexto que se compreendem os experimentos próximos ao happening, as
tentativas de estabelecer contatos mais diretos entre arte e vida, num plano que transborda da moldura
estética tradicional. Visando atingir níveis mais profundos tanto da consciência do público como das
personagens fictícias e da realidade representada: procurando produzir imagens de raio-X que incidam
sobre a estrutura fundamental da realidade exterior e interior, e comunicá-las com eficácia maior, o novo
teatro desfaz o “espaço euclidiano” e o tempo cronológico da cena convencional e das formas da nossa
percepção habitual, além de procurar a comunicação direta entre palco e platéia, derrubando a chamada
“quarta parede”.
104
104
ROSENFELD, Anatol. Aspectos do teatro contemporâneo. In: op. cit., p. 200.
68
Por outro viés, a constatação do fracasso da civilização observada pelas gerações
anteriores - e marcada por guerras, injustiças sociais, violência e opressão -, a
contemplação da massa caótica de números em que é transformado o homem pela
sociedade de consumo e o esvaziamento da capacidade da linguagem de intercambiar
experiências repletas de vida explodem na consciência dos novos criadores, que
misturam as ações do dia-a-dia à angústia pela perda da dimensão metafísica do mundo.
No caso específico de um país amordaçado por um regime de exceção, a
supressão das liberdades individuais, por meio da decretação do AI-5, e a truculência da
censura às artes e espetáculos certamente fazem surgir metáforas difusas ou caóticas,
que reforçam a natureza irracional ou “mística” das novas criações teatrais.
A nova dramaturgia brasileira dá continuidade à cena “rebaixada e sem
literatice” do teatro voltado ao público estudantil e o faz em plena sintonia com a recusa
à exigência intelectual que irá marcar a cultura pop, elegendo como temas principais a
liberdade, a indignação, o conflito de gerações, a sexualidade, a nova posição da mulher
e a obsolescência do mundo da família e do trabalho. Da dimensão psíquica das
personagens é que nascem os problemas políticos, e, embora vivam no aqui e agora,
elas ousam experimentar, em maior ou menor grau, os limites de uma atmosfera
alucinatória e surreal, que indica um delicado equilíbrio entre o cômico e o grotesco.
Em seu próprio modo de ser, a dramaturgia da contracultura não abandona o
espírito crítico, questionando o modelo sobre o qual se ergueu a civilização ocidental: a
crença na tradição da cultura, no poder transformador da História e na eficiência da
política. Sua mola propulsora é o inconformismo, que muitas vezes resulta em
individualismo, e ela se pretende revolucionária pelo viés da amoralidade e da
transgressão dos valores comportamentais.
O novo drama brasileiro absorveu as idéias e os conflitos da geração de 68 e os
processou de modo muito particular. Ao colocar a lógica de lado, ele passou pelo
absurdo, pelo irracional, pelo surreal e pelo grotesco, incorporando-os dialeticamente a
fim de apresentar as contradições de seu tempo, como veremos a partir de agora. A
moldura do absurdo pode veicular críticas realistas, como no caso de Antonio Bivar. A
dimensão irracional presente na discussão da sexualidade, procura articular uma análise
impiedosa do racionalismo burguês, como em José Vicente. A experimentação
surrealista deseja abranger de modo muito típico alguns temas da religião, da filosofia,
da política, do sexo e das responsabilidades individuais e coletivas, caso de Roberto
69
Athayde. Por fim, o exercício do grotesco quer ajustar as contas com o passado recente,
exorcizando temas e formas polêmicos, como em Eid Ribeiro.
70
CAPÍTULO 2:
AS TRÊS PRIMEIRAS PEÇAS DE ANTONIO
BIVAR
71
Nota biográfica
O escritor, dramaturgo, jornalista e produtor cultural Antonio Bivar Battistetti
Lima nasceu na cidade de São Paulo, no dia 25 de abril de 1939, mas, aos dois anos de
idade, mudou-se com a família para o interior do Estado, onde passou a infância e a
adolescência.
Em 1960, ele deixou Ribeirão Preto e mudou-se sozinho para o Rio de Janeiro, a
fim de estudar teatro, primeiramente na Fundação Brasileira de Teatro (na qual foi aluno
da lendária atriz Dulcina de Moraes), depois no Conservatório Nacional de Teatro da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como ator, ele trabalhou em montagens
estudantis de Esperando Godot, de Samuel Beckett, em 1963, e de Sonhos de uma noite
de verão, de William Shakespeare, no ano seguinte. Em 1975, ele viria a integrar o
elenco profissional de Rocky horror show, um musical do circuito alternativo norte-
americano encenado com grande sucesso no Brasil.
Como dramaturgo, sua carreira demonstrou-se mais profícua e regular. Em 1967,
Bivar escreveu, em parceria com Carlos Aquino, Simone de Beauvoir, pare de fumar,
siga o exemplo de Gildinha Saraiva e comece a trabalhar, um happening teatral que
fazia uma bem-humorada crítica à chamada geração Paissandu, os jovens intelectuais
que freqüentavam o cinema homônimo carioca e sobre os quais recaía a pecha,
atribuída, sobretudo, pela imprensa, de “esquerda festiva”.
No mesmo ano, surge O começo é sempre difícil, Cordélia Brasil, vamos tentar
outra vez, logo rebatizada, simplesmente, de Cordélia Brasil, sua primeira peça
integralmente autoral. O texto obteve o terceiro lugar no 1º Seminário de Dramaturgia
Carioca, promovido pela Secretaria de Turismo da Guanabara, em 1967, mas, já em fase
de montagem, no ano seguinte, foi proibido pelo próprio Presidente da República, o
General Costa e Silva, com outras duas peças: Santidade, de José Vicente, e Barrela, de
Plínio Marcos. Somente depois que uma comissão de artistas e intelectuais (entre eles,
Bárbara Heliodora, Antonio Callado, Antônio Houaiss, Yan Michalski e Tônia Carrero)
saiu em defesa da obra, marcando uma audiência, inclusive, com o então Ministro da
Justiça, Gama e Silva, é que ela acabou liberada com pequenos cortes. Cordélia Brasil
estreou em abril de 1968, no Teatro Mesbla, no Rio de Janeiro, com produção de
Oduvaldo Viana Filho, Gilda Grillo e Luís Jasmim e direção de Emílio di Biasi. Do
elenco faziam parte Norma Bengell, Luís Jasmim e Paulo Bianco. Em setembro de
72
1968, a peça estréia no Teatro de Arena de São Paulo, onde ganha os prêmios APCA e
Governador do Estado, na categoria de melhor texto. Vale lembrar que, durante a
temporada paulista, um grave incidente ocorre com Norma Benguell: a atriz é raptada e
levada para o Rio de Janeiro por um grupo paramilitar de extrema-direita que pretende
adverti-la por sua “conduta moral e política” Na antevéspera do rapto, Norma recebera
um telefonema ameaçador:
Você é uma comunista suja. Vamos ver se tem coragem de dizer aquelas indecências que diz no
teatro quando a gente for quebrar a sua cara.
105
Dois dias depois do seqüestro, a atriz é solta, e a peça pode continuar sua
temporada de sucesso. Ainda em 1968, surge o segundo texto teatral de Antonio Bivar:
Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã. Com produção de Sandro
Polloni e direção de Fauzi Arap, a peça estreou em julho daquele ano, no Teatro Maria
Della Costa, em São Paulo, com Maria Della Costa, Thelma Reston, Yolanda Cardoso e
Jonas Melo no elenco, conferindo a Bivar o prêmio Molière de melhor autor do ano. Em
março de 1969, outra montagem do texto, dirigida por Emílio di Biasi e tendo no elenco
Célia Biar, Rosita Tomás Lopes, Maria Gladys e Roberto Bonfim, estréia no Teatro
Gláucio Gil, no Rio de Janeiro.
A peça seguinte de Bivar é O cão siamês, cuja estréia se deu em São Paulo, em
agosto de 1969, no Teatro do Meio (atual Ruth Escobar), com direção de Emílio di
Biasi. No elenco: Yolanda Cardoso e Antônio Fagundes. Em janeiro de 1971, o texto,
com algumas cenas adicionais e rebatizado de Alzira Power, inicia temporada no Teatro
Gláucio Gil, no Rio de Janeiro, com direção de Antônio Abujamra e as interpretações de
Yolanda Cardoso e Marcelo Picchi.
Em 1970, por conta do prêmio Molière recebido por Abre a janela..., Antonio
Bivar viaja para Londres, Dublin e Nova York, onde entra em contato direto com os
movimentos de contracultura, as comunidades hippies e a música pop. O registro dessa
vivência é apresentado em Longe daqui, aqui mesmo, que estréia no Rio de Janeiro em
1971, com direção de Antônio Abujamra, tendo à frente do elenco a ex-vedete Nélia
Paula. De volta ao Brasil, o autor dirige dois shows musicais emblemáticos do ano de
1973: Drama, de Maria Bethânia, e Tutti Frutti, de Rita Lee. Em 1976, ele lança a
105
VENTURA, op. cit., p. 236.
73
comédia Gente fina é outra coisa, escrita em parceria com Alcyr Costa. Neste mesmo
ano, escreve Quarteto, que comemora a despedida do diretor e ator Ziembinski dos
palcos.
Em 1982, Bivar idealizou e organizou o projeto O começo do fim do mundo, no
recém-inaugurado Sesc Pompéia, em São Paulo. O festival - composto por shows,
debates, exposições e happenings - traçou o maior painel sobre a estética punk já
concebido no Brasil e redefiniu o papel do movimento no País. Em 1984, é montada em
São Paulo a quarta peça de Bivar, A passagem da rainha, escrita em 1969 e proibida
pela Censura. Em 1987 é a vez de Alice, que delícia, protagonizada por Maria Della
Costa. Nos anos 90, Antonio Bivar dedica-se, em parceria com Celso Luiz Paulini, a
criar um grande painel dramatúrgico sobre a história do Brasil, desde antes da chegada
dos portugueses até o fim da Era Vargas, mas a empreitada é interrompida com a morte
de Paulini. A única obra deste ciclo que vem a público é As raposas do café, vencedora
do Concurso de Dramaturgia do Teatro Carlos Gomes (RJ) e montada pelo grupo
TAPA, em 1990, quando ganha o prêmio Molière de melhor texto. Em 1998, o autor
apresenta na cidade de Santo André (SP) a ópera-punk Existe alguém mais punk do que
eu?, sua última criação para os palcos até o presente momento.
Como jornalista, Bivar trabalhou nos jornais Última Hora e Folha de S. Paulo
(como cronista) e nas revistas Vogue Homem, Interview (como secretário de redação),
Pop (como colunista) e Gallery Around (como editor).
Grande parte de sua atuação frente às mais variadas searas artísticas e
intelectuais pode ser conferida nos livros que o autor já escreveu: O que é punk (1982),
James Dean (1984), Verdes vales do fim do mundo (1985), Chicabum (1991), Longe
daqui, aqui mesmo (1995), Yolanda (2004) e Bivar na corte de Bloomsbury (2005).
Cordélia Brasil
A primeira peça de Antônio Bivar é uma comédia dramática, composta por dois
atos, que trata de um insólito triângulo amoroso que se estabelece entre Cordélia, uma
mulher incansável e determinada, de 28 anos; Leônidas, de mesma idade, brincalhão e
bon vivant, e Rico, um jovem de 16 anos que está descobrindo a vida. Cordélia e
Leônidas formam um casal moderno que mora em uma quitinete “bem apanhada, mas
74
decadente” da zona sul carioca. No apartamento, de estilo excêntrico e boêmio, há
poucos móveis: uma cama de casal, uma estante-armário, uma mesa, duas cadeiras, um
baú, um toca-discos portátil e uma cadeira de balanço.
Cada ato da peça está dividido em três cenas. A ação se inicia às sete horas da
noite, com Leônidas brincando na cama com um ursinho de pelúcia. Logo, entra
Cordélia, voltando do trabalho. Furiosa, ela repreende o marido pelo fato de ele, mais
uma vez, ter tocado a campainha da vizinha por pura farra. Uma discussão se inicia, e
eles passam a discorrer sobre seus estilos de vida, censurando-se mutuamente. Ela o
acusa de preguiçoso, fanfarrão e irresponsável; ele diz que ela está envelhecendo
rapidamente. Então, Cordélia, que já cumpriu seu dia de trabalho no escritório, sai para
fazer trottoir, deixando Leônidas em sua assumida ociosidade. Na cena dois, o rapaz
está sozinho, divertindo-se com as bijuterias da mulher, quando é surpreendido por
Cordélia, que entra acompanhada do jovem Rico. Depois de uma breve discussão entre
o casal, Cordélia apresenta o novato a Leônidas como um cliente que ela irá atender em
casa. Diante da recusa do marido em sair do apartamento, e mesmo da própria cama,
Cordélia leva Rico para a cozinha. Na cena três, Leônidas passa a demonstrar certo
interesse por Rico, querendo privar de alguma intimidade com ele, enquanto Cordélia
toma banho, cantando no chuveiro. Depois que ela entra no quarto, Rico vai embora,
deixando o casal envolvido em mais um bate-boca.
O segundo ato tem início com a entrada de Leônidas e Cordélia chegando da
rua. Ela foi ajudá-lo a procurar emprego e está novamente irritada com a pouca
responsabilidade do marido. Chega Rico, disposto a fazer mais uma programa com
Cordélia, mas ela, ao perceber que Leônidas está caído pelo rapaz, resolve sair para uma
nova noitada em busca de dinheiro. Os dois homens ficam sozinhos, e Leônidas convida
Rico a morar com eles. Na cena dois, Cordélia entra em casa irritadíssima pelo fato de
Leônidas já ter abandonado o novo emprego, mas logo esquece o episódio, dedicando-
se a contar em detalhes uma forte experiência sexual que acabou de ter com um cliente.
Na última cena, o triângulo amoroso está agora claramente instituído, e uma atmosfera
onírica paira sobre o apartamento. Cada um dos personagens está mergulhado em seu
próprio desvario, até que Cordélia descobre que Leônidas roubou um de seus cigarros.
Tal situação banal acaba por desencadear uma fúria descontrolada por parte de Cordélia,
que culmina com a expulsão dos dois homens do apartamento. Aproveitando a ocasião,
Leônidas declara que irá sair em viagem de navio pelo mundo na companhia de Rico.
75
Antes de partir, ele pega uma granada (que “estava escondida atrás da descarga” do
banheiro) com a qual pretende explodir a embarcação, a fim de conhecer o fundo do
mar. Sozinha, Cordélia se deprime. Ouve-se o estrondo de uma explosão, e ela percebe
que Leônidas e Rico acabam de morrer. Em meio a um delirante monólogo, a
protagonista se suicida, tomando uma grande quantidade de soníferos.
Como procuraremos demonstrar a partir de agora, Cordélia Brasil é uma peça
essencialmente brasileira que, entretanto, deixa-se contaminar de modo visível por uma
estética de desvario anti-naturalista, presente na obra de alguns autores de vanguarda
admirados por Bivar, conforme ele mesmo aponta no texto de apresentação da peça,
publicado na Revista de Teatro da SBAT em 1976:
Quando O começo é sempre difícil, Cordélia Brasil, vamos tentar outra vez estreou no Teatro
Mesbla, Rio, em meados de 1968, eu não conhecia praticamente nada de carpintaria comediógrafa.
Escrevi a peça em 1967, na época em que era estudante de arte dramática no Conservatório Nacional de
Teatro, incluindo as influências de autores como Harold Pinter, John Osborne, Joe Orton, Edward Albee,
Nelson Rodrigues, uns lampejos de Ionesco, e muito do Samuel Beckett do Esperando Godot. Estes eram
os autores com quem eu mais afinava.
106
Assim, este texto “imaturo” de um autor em início de carreira parece querer
sinalizar uma clara vontade de incorporar algumas conquistas das vanguardas
internacionais E o faz, naturalmente, de modo dialético. Cordélia Brasil não esconde
sua fragilidade frente ao alcance prospectivo de algumas das mais variadas estéticas
experimentais desenvolvidas ao redor do mundo entre os anos 50 e 60 e que aqui
chegaram simultaneamente em fins da década de 60. Por outro lado, a peça demonstra
uma força original diante do esgotamento de certas possibilidades da dramaturgia
brasileira naqueles anos conturbados.
A primeira coisa que salta aos olhos é a coincidência do sobrenome da
personagem com o nome do país em que ela vive, o que aponta para a idéia de que
Antonio Bivar talvez tenha produzido uma contundente metáfora política - ainda que
não intencionalmente, como veremos adiante - a partir da figura desta mulher. Cordélia
é na tradição do teatro ocidental o nome de uma heroína trágica, a filha mais moça do
Rei Lear de Shakespeare, justamente a jovem cordata e leal que cai em desgraça por
106
BIVAR, Antonio. A legenda de Cordélia Brasil, conciso flash-back de uma época. In: REVISTA DE
TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 413, set./out. 1976. p. 36.
76
conta de sua ingenuidade. Mas Cordélia Brasil - a mulher “batalhadora sem chances
nem oportunidades”, “realista, mas ingênua” e “absurda, mas coerente” - é um
emblemático binômio disposto a apontar a irônica contradição que acompanha toda a
peça: ora grave (beirando as raias da tragédia), ora burlesca, a heroína acabará por se
configurar uma personagem patética. Como a nação em que ela vive.
Oscilando entre o realismo e a fantasia, o texto desenha um vigoroso painel
político e cultural da época, sem assumir a rigor o caráter de denúncia ou de combate,
conforme se pode depreender, uma vez mais, do depoimento de Bivar:
O ano de 1968 dá uma grande romance. Maio de 68. O mundo em convulsão. Paris pegando
fogo. O Brasil agitado e o Rio vivendo um de seus momentos mais dramáticos. A morte de Edson, o
estudante. A passeata dos cem mil. Flávio Rangel feito um Cecil B. de Mille tupiniquim dirigindo um
elenco de superestrelas, à frente de tudo, feito maestro dum superespetáculo das ruas, das escadarias do
Municipal ao Monumento dos Pracinhas. Tônia, Cacilda, Odette, Glauce, Fernanda, Norma, entre tantas.
Não me lembro com precisão dos motivos exatos. É como se o vento tivesse levado os papéis onde a
história estava registrada e tudo quanto se pode apresentar é lamentavelmente incompleto. Só me lembro -
e muito vagamente - das reivindicações: censura, universitárias, trabalhistas, direitos humanos, etc. Eu
estava um pouco por fora de tudo isso, mas assistia, alienadamente talvez, feito uma criança vendo o circo
pegar fogo. Como se meu rumo fosse o desconhecido e esses acontecimentos fossem apenas visuais
durante a caminhada. Foi só mais tarde, com o martelo da Consciência batendo na minha cabeça, me
despertando para uma outra realidade, que vim a entender muitas dessas coisas.
107
A agenda central da contracultura, filtrada pela cor local do tropicalismo, está
toda ela representada na peça: as aspirações da nova geração, a recusa dos velhos
valores e a liberação sexual. Inicialmente, podemos dizer que a peça trata da juventude.
Ou da consciência atormentada pela perda dela. O casal Cordélia-Leônidas vive,
antagonicamente, às voltas com a dura tarefa de amadurecer. Enquanto ela trabalha de
modo infatigável, ele, ao contrário, é o homem de “espírito anarquista, alienado,
inventivo, brincalhão, sonhador e romântico”, que, a rigor, não quer saber de crescer.
Brincando com um ursinho de pelúcia, tocando a campainha da casa dos vizinhos por
pura brincadeira e apertando os botões de todos os andares ao entrar em um elevador,
Leônidas é o protótipo do homem infantilizado, que teme o envelhecimento. Juntos, eles
já formaram um esquisito casal “existencialista” para quem todos olhavam na rua. Ele,
alimentando o sonho de ser cartunista; ela, gostando de “parecer meio doida”.
107
Ibid., p. 37.
77
Entretanto, às portas dos trinta anos, o projeto de uma vida alternativa está se esvaindo,
carregando consigo a juventude e a beleza e colocando em seu lugar o terrível pesadelo
de uma existência convencional, passada em grande parte dentro de uma quitinete ou de
um escritório qualquer.
Leônidas parece representar uma espécie de Dorian Gray, disposto a negar
qualquer indício de envelhecimento. Aos vinte e oito anos, ele sofre daquele
constrangimento típico de algumas mulheres (embora não exclusivo delas) para quem
revelar a idade é um sacrilégio:
Cordélia (para Rico): Sabe quantos anos ele tem?
Leônidas (ameaçando): Cordélia!
Cordélia: Vou dizer, sim. Agora vou dizer a sua idade pra todo mundo.
Leônidas: Experimenta.
Cordélia (para Rico): Você não acha ele meio... estranho? Imagina, ele esconde a idade! Mas eu
vou dizer.
Leônidas: Mas não vai mesmo.
Cordélia: Vou sim. (Para Rico) Ele fica o dia inteiro em casa. Na cama. Deitado. Sabe pra quê?
(Pequena pausa) Pra se conservar. Ficar sempre jovem.
Leônidas: Você vai se arrepender.
Cordélia: Pra quando chegar a hora de “explodir”, ter cara bonita. Pra sair bem nas fotografias.
Ele acha que duma hora pra outra a sorte vai mudar. Vai sair do anonimato. Vai ficar famosíssimo.
Sucesso total. Cartunista. (Para Rico) Você agüenta? (Para Leônidas) Muito creme de abacate na cara, pra
ficar com as faces bem... (Gesticula com as mãos, como que botando o rosto pra cima) Bem assim, né?
(Pequena pausa) Muita entrevista na tevê... (Pra Rico, sarcástica) Seja sincero, me diga uma coisa: você
acha que aos 28 anos alguém ainda pode ter esperanças?
Leônidas: Cordélia, sua vaca, você disse a minha idade!
78
O mote da preocupação com a idade praticamente domina todo o primeiro ato.
Ao ter dificuldade em reconhecer quantos anos Cordélia tem, Rico é fulminante: “Pra
mim, passou dos 20 é coroa”. Já Cordélia, devaneando de admiração pelos 16 anos de
seu jovem cliente, dirige a Leônidas uma fala que soa pateticamente autopiedosa:
Eu fico assim... apaixonada... é pela adolescência... (Pequena pausa) Nós, por exemplo, que já
temos quase 30 anos... (Leônidas tapa os ouvidos) Nós somos, de uma certa forma, jovens ainda. Nós
ainda somos capazes de inspirar algum sentimento... Talvez até amor... (Ponderando) É difícil, mas pode
acontecer. Mas o que eu acho triste, no nosso caso, no meu e no seu, em particular, é que a gente já não
tem mais nenhuma ilusão...
A tentativa de definir e defender dramaticamente os valores da juventude (que
aparece também em Alzira Power, do mesmo autor, e em O assalto, de José Vicente,
por exemplo) está em plena sintonia com o contexto cultural surgido entre as décadas de
50 e 60, quando os jovens passaram a contestar o ideário tradicional sobre o qual se
organizavam as sociedades e a desconfiar da herança deixada pelas gerações mais
velhas. Não à-toa, nos instantes finais da década de 60, uma canção popular brasileira
iria fazer muito sucesso ao defender que se suspeitasse de pessoas com “mais de 30”.
“Não confio em ninguém com mais de 30 anos. Não confio em ninguém com mais de
30 cruzeiros. O professor tem mais de 30 conselhos, mas ele tem mais de 30”.
108
dizia a
letra.
Outra questão da agenda da contracultura que a peça põe em cena é a
contestação do mundo do trabalho capitalista. Entretanto, como seria de se esperar, o
texto elimina o tom sociológico desta investigação, aproximando a discussão do eixo da
sexualidade, o que faz surgir uma inusitada perspectiva. Cordélia e Leônidas formam
um estranho casal, muito moderno para os padrões convencionais. Ela encarna a
exacerbação do feminino: além de trabalhar incansavelmente durante o dia, vende seu
corpo toda noite, a fim de conseguir um dinheiro extra. Já ele - em sua inércia e auto-
idolatria - representa a sublimação do masculino, sendo acusado pela própria mulher de
“efeminado”, embora não se incomode de corresponder ao estereótipo. Não é pelo vigor
sexual, aliás, que Leônidas irá conquistar a atenção dos dois personagens a quem se liga
afetivamente. No auge da crise, Cordélia declara toda sua insatisfação com o
companheiro:
108
VALLE, Marcos e Paulo Sérgio. Com mais de 30. In: VALLE, Marcos. Garra. Odeon, 1971. LP.
79
Não sei como te aturei até hoje. Você é muito gelado pro meu gosto.
E o próprio personagem irá anunciar ao jovem Rico, sem constrangimento
algum:
Sou uma pessoa totalmente assexuada. Sexo jamais passa pela minha cabeça.
É Cordélia, portanto, o homem da casa, que sai dia após dia para garantir o
sustento do casal, enquanto Leônidas assume a função de uma esposa um tanto quanto
negligente que se distrai com brincos, colares, broches e pulseiras. Os papéis sociais e
sexuais entre eles estão redefinidos, e podemos dizer ainda que esta nova sensibilidade
“feminina” do homem também aponta para a recusa do mundo convencional do
trabalho. Dessa forma, a peça testemunha o nascimento de uma nova categoria
profissional: a dos criadores inconformados e incompreendidos (ou decanos do ócio,
como viriam a ser conhecidos, sarcasticamente, um pouco mais tarde) que se recusam a
se engajar no sistema de produção capitalista. Leônidas considera-se um indivíduo
especial, em vias de ser descoberto. Cabe a Cordélia, porta-voz de um senso de
realidade devastador, desmontar, ironicamente, tal pretensão:
A única coisa de prático que você aprendeu na vida foi datilografia. Na esperança de se tornar
um romancista. Agora você vai trabalhar num escritório. De datilógrafo.
Muito desta postura “contestadora” de Leônidas advém de seu razoável nível
intelectual, moldado, ao que tudo indica, pelo espírito da indústria cultural. Ele parece
dominar algumas informações literárias (“Você já leu Orlando, da Virgínia Woolf?”
109
),
sabe demonstrar certo conhecimento enciclopédico (“Lincoln, Júlio Verne, Mozart,
Bertolt Brecht, e até mesmo aquela atriz, a Jeanne Moreau...Você certamente já ouviu
falar dessas pessoas...”) e procura discorrer sobre mitologia grega (“Priapo é um deus da
mitologia grega. O deus dos jardins.”) e sobre psicanálise, embora tanto verniz acabe
reduzido, em alguns momentos, a anedotas grosseiras (“Daí que a escola freudiana
109
Certas referências como essa reforçam também o substrato homossexual da peça, já que a pergunta é
dirigida ao jovem por quem ele está nutrindo uma atração. Movimento similar surge em O reacionário,
de Roberto Athayde, quando o Dr. Alfredo Pratraz pergunta a Leão Trote se ele já leu o Satiricon, de
Petrônio.
80
inventou que priápico é quem fica de pau duro 24 horas por dia.”). Refazendo o
percurso de inúmeros aspirantes a artistas que, a partir dos anos 50, abandonaram as
pretensões eruditas para militar na cultura de massa, Leônidas também troca o sonho da
literatura pelo mundo dos quadrinhos, mas não abre mão de preservar certo lastro
intelectual
110
:
É que um dia eu ainda vou ser um grande quadrinista. Al Cap, Lee Falk, Alex Raymond, Walt
Disney, Robert Crumb... (Pequena pausa) Sabe? Os criadores do Ferdinando, do Mandrake, do Flash
Gordon, do Mickey Mouse... (Pequena pausa) E para ser um cartunista razoável é preciso, além da
imaginação, ter uma certa cultura, psicologia e experiência. E um bom traço. Imaginação eu tenho até
demais. O que me falta é experiência. É por isso que eu faço perguntas.
111
Como todo jovem alternativo da década de 60, ele também se interessa por
assuntos “anti-intelectuais” como espiritualismo (“Esta é minha última encarnação.
Aqui na terra, bem entendido. Depois eu vou começar tudo de novo, só que num outro
planeta.”) e astrologia (“Você sabe que o signo de Aquário é o mais evoluído? As
pessoas do seu signo são cem anos adiantadas sobre as pessoas dos outros signos e,
quem sabe, até mesmo sobre as do próprio signo, sabe como é?”). É hora, então, uma
vez mais, de Cordélia, sempre pela via do deboche, reordenar as declarações do marido:
Cordélia (para Rico): Sabe com quem ele aprendeu essa bobagem?
110
Em certo sentido, tal caminho da personagem está em consonância com a própria biografia do autor,
que assim descreve sua formação intelectual: “Dos livros, mal aprendera a ler e já era subvertido pelos
paradoxos geniais de Oscar Wilde. Na estante de casa tinha Dickens Thomas Hardy, Clarice Lispector,
Dinah Silveira de Queiroz e Berta Ruck. Um certo capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo. Françoise Sagan
e Chocolate pela manhã eram moda, na adolescência. Descobri Simone de Beauvoir, mas achei Sartre
muito pra minha cabeça. Aos 18 anos tive notícia de Kerouac e da beat generation. Na vitrola portátil,
Chuck Berry, rockabilly, Gerry Mulligan & Chet Baker, João Gilberto e Convite para ouvir Maysa. Nessa
época tive uma fase curta de resenhista de filmes num jornal local.” BIVAR, Antonio. Verdes vales do
fim do mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002. p 201.
111
No recém-lançado Tunes for ‘toons - music and the Hollywood cartoon, o musicólogo norte-americano
Daniel Goldmark defende a idéia de que o fenômeno do cartum é capaz de sintetizar grandes questões da
arte e da cultura. Vale lembrar também de um episódio do recente seriado de tevê norte-americano
Seinfeld, em que Elaine diz para Jerry: “Você sabe, é tão triste... Todo o nosso conhecimento de alta
cultura foi adquirido nos cartuns do Pernalonga”.
81
Leônidas (reverente): Com o grande Krishna Iogue lá em Friburgo.
Cordélia: Imagina! Um boliviano metido a hindu. Um depravado que vive em função do Kama
Sutra. Um indecente, que vive com uma piranha romena, que tem uma parenta ex-amante de um deputado
cassado. Esse grupo é conhecido lá em Friburgo como “a família Trepa”. Foi no meio desse povo que ele
aprendeu a tirar mapa astral.
Embora este recurso esteja aqui objetivando alcançar um claro efeito de humor,
seu sentido maior é reforçar a estrutura da peça, erguida sobre uma contradição
altamente significativa: para estes personagens marginais, que vivem ao largo de uma
experiência de completude em vários níveis, toda aspiração é sublime; porém, toda
concretização é meio ridícula.
A ação se inicia com um tom elevado, quando Cordélia, ressentida por trabalhar
durante o dia em um escritório e fazer programas à noite, pensa em acabar com a
própria vida:
Cordélia: Sabe de uma coisa, Leônidas, qualquer dia eu me mato.
Leônidas: Não fique assim, é só agora! Amanhã melhora.
Cordélia: Se você não tomar uma atitude, eu juro que me mato.
Está dada a nota “trágica” do enredo, anunciando-se uma morte que, de fato,
ocorrerá. Entretanto, este acento trágico - presente também quando ela reconhece seu
não-lugar no mundo (“E sabe duma coisa? Cheguei à conclusão de que não sou nem
bem uma biscate, nem bem uma auxiliar de escritório e nem bem uma dona de casa...”)
- é constantemente suplantado por uma atmosfera que se divide entre o absurdo e o
melodramático. Cordélia se encanta com o fato de ter posado nua para um fotógrafo
americano “que era a cara do Steve MacQueen”, e a empreitada se lhe apresenta como
uma espécie de compensação existencial:
Enquanto ele me fotografava, eu pensava: “Se eu morrer amanhã, morro descansada. Pelo menos
uma coisa eu deixo neste mundo: a minha fotografia”.
82
Por mais prosaica que tenha sido a experiência, ela exige uma celebração
pomposa:
O americano fotografou tanto a minha bunda! Estou tão feliz! Hoje eu queria... Hoje estou
preparada, mesmo, para ouvir música. Nada de cha-cha-cha. Hoje eu quero música clássica. Clássica.
Cheia de trompas, pratos, tambores, sinos, violinos. Uma música exultante, exultante. Hoje eu quero
ópera, Bizet! Quero ouvir vozes, vozes humanas... Gritando, berrando! Qualquer coisa que exulte o sexo e
exalte a bunda! Ópera, ópera! Nem que seja uma ópera bufa! (Mudando o tom, normal) O que é mesmo
ópera bufa?
Mas logo há um sarcástico rebaixamento da expectativa da personagem:
Leônidas: Tem nada disso aqui. Só tem aquele disco do Perez Prado.
Cordélia: Serve também. (Leônidas põe um mambo na vitrola)
A aspiração ao mundo sublime, representado pela ópera, é substituída pela única
fruição disponível: a música mexicana. Assim, Cordélia Brasil está mais para a
“existencialista com toda razão” Chiquita Bacana do que para as angustiadas
personagens da cena operística, encarnadas com elevada comoção pela diva Maria
Callas, por exemplo
112
. A esse propósito, aliás, convém invocar novamente o
depoimento do autor, que na primeira montagem do texto desaprovou a forma como a
trilha sonora pontuava a questão:
E eu me lembro também que uma das coisas que mais me incomodavam era a música incidental
- insistência da Gilda [Grilo, assistente de direção]. Como assistente e conselheira, Gilda conseguiu
convencer Emílio [di Biasi, diretor] a colocar trechos da Tebaldi, da Callas, e outras árias de ópera aqui e
ali, durante a peça. A meu ver, Cordélia não tinha nada a ver com ópera, e a voz da Callas explodindo, de
repente num monólogo tragicômico da Cordélia me soava fora de lugar e de propósito, e dava a
impressão de um put on.
113
112
Em meados da década de 70, a cantora Elis Regina cunhou uma frase lapidar a respeito das pretensões
do show business brasileiro que parece em plena sintonia com tal movimento da peça: “No Brasil, a
aspiração é hollywoodiana, mas a realização é macunaímica.”
113
BIVAR, Antonio. A legenda de Cordélia Brasil, conciso flash-back de uma época. In: op. cit., p. 38.
83
Vale notar que a questão parece ter sido resolvida adequadamente na mudança
da temporada para São Paulo:
Depois de quatro meses no Mesbla, a peça viajou para o Teatro de Arena, em São Paulo. Os
erros que percebemos na montagem carioca foram corrigidos. Saiu a ópera do sound track para dar lugar
a rock e calypsos. E numa cena, Norma cantava o “Que será?”, da Dalva de Oliveira.
114
Se toda ação se equilibra entre a seriedade e o arremedo, a última cena da peça
dá vazão a uma fantasia dissoluta, marcada pela “luz verde-azulada de sonho” proposta
pela rubrica. Leônidas se encanta em “brincar de dicionário”, descobrindo a palavra
prestidigitador:
A vida é uma ilusão e eu, como prestidigitador, faço da vida o que bem entendo. Isto é, nada, por
enquanto. (Silêncio)
É esta fala de inequívoca banalidade que faz precipitar os acontecimentos finais
da trama, evidenciando a “desregulagemfinal do registro da peça. Diante da
constatação de que Leônidas “filou” um cigarro de seu maço, Cordélia tem uma reação
desmesurada:
Você sabe que eu vivo a semana inteira em função do meu cigarro semanal.
A mesma intensidade é sentida diante da suspeita do roubo do camafeu:
Eu guardava aquele camafeu com todo o carinho. Na esperança de um dia passar pra minha filha.
Eu, que sonhava tanto ter uma filha! Uma filhinha a quem eu pudesse ensinar tudo o que essa vida
maldita me ensinou. Pra minha filhinha não cair na mesma!
É o que basta para a heroína perceber sua verdadeira condição:
114
Ibid.
84
Descobri agorinha mesmo que do jeito que a gente vive, a gente simplesmente não existe. Eu e
você não existimos.
Diante da dura constatação, surge um inspirado momento de natureza
metalingüística quando Cordélia declara seu sentimento de frustração diante da
impossibilidade de encarnar uma criatura ficcional grandiloqüente:
Esperava que um dia você caísse na real e, em vez de história em quadrinhos, escrevesse um
romance. Um grande romance, um romance de quase trezentas páginas, o romance da minha vida.
As saídas para tamanho desespero são desconcertantes. Cordélia resolve
transformar a exígua quitinete em um bordel, enquanto Leônidas finalmente desperta de
seu torpor, prometendo embarcar em um navio mercante ao lado de seu jovem amado.
Uma vez mais, no entanto, acaba por prevalecer o tom patético: Leônidas e Rico
morrem com a explosão de uma improvável granada, guardada até então no banheiro,
enquanto Cordélia Brasil se suicida, ingerindo grande dose de barbitúricos.
Mesmo abrindo mão dos recursos do teatro épico e das experimentações cênicas
tropicalistas encenadas pelo Oficina, Cordélia Brasil constitui um texto de extrema
prontidão política, bebendo na fonte das informações da contracultura e das vanguardas
teatrais que chegavam ao Brasil na segunda metade da década de 60. Por esse motivo
talvez, a peça não tenha sido devidamente valorizada pela esquerda tradicional, o que
levou o autor, já em seu exílio voluntário em Londres, dois anos mais tarde, a fazer este
claudicante mea-culpa:
O sol se punha e caí em depressão. Ouvi vozes de uma certa facção brasileira me cobrando
análises da realidade de meu país vista de fora: o que foi que levou gente como eu, José Vicente, Rogério
Sganzerla, Helena Ignez e outros a nos mandarmos pelo mundo? Foi apenas a política? Foi apenas o
sufoco do regime? Por que foi? Diziam, essas vozes, que era essencial que eu respondesse isso. Que, é
certo, o regime provavelmente não estava para peixe; e que saiu do Brasil quem militou
clandestinamente; e que saíram também os que estavam em outra; e nós, os que queriam viver a liberdade
imediata. Que tipo de liberdade imediata, essa? Seria só isso? Como vemos o Brasil, o regime, o sistema?
O que pretendemos? Como nos inserimos dentro da realidade brasileira e por que pulamos fora dela?
115
115
BIVAR, op. cit., p. 94-5.
85
A peça tem um viés político muito particular e original por tratar de um universo
marginal praticamente invisível na época, muito distante do mundo de Plínio Marcos e
seu naturalismo denunciador. A esse respeito é esclarecedora a crítica do jornalista e
poeta Tite Lemos:
Em Cordélia, Bivar trata, sim, de um mundo marginalizado, mas não faz estardalhaço do fato, e,
o que é mais importante, não extrapola interpretações definitivas da precária organização social que gerou
aquele fragmento de inferno que mata pacientemente os que o habitam: em mundos menos absurdos,
pode-se morrer por causas nobres e justificáveis, com o acompanhamento de um grande gesto; no mundo
de Bivar, onde o trágico passa por banal, morre-se por um cigarro que alguém roubou.
116
O mesmo veio poético que exala da postura política é também identificado por
Yan Michalski:
Bivar se volta para uma classe até agora desprezada pelo nosso teatro: os marginais da pequena
burguesia e, dentro de um estilo bastante diferente, ele consegue tornar patente, com notável realismo e
autenticidade, a sordidez e a falta de horizontes da vida que levam os seus personagens - mas, ao mesmo
tempo, transcender essa sordidez e essa falta de horizontes, dando-lhes uma consistência amargamente
poética, resultante do sincero e simples amor e respeito do autor pelos seus personagens, amor e respeito
totalmente independente de qualquer conceituação de ordem moral.
117
Por outro lado, dada esta configuração poética, poderíamos pensar que o texto
nada mais faz do que uma apologia das opções individuais - delirantes e inconseqüentes
- em detrimento das saídas coletivas, edificantes e articuladas. Na crítica de Luiz
Alberto Sanz, podemos vislumbrar esta perspectiva:
A peça de Bivar é muito engraçada, muito terna e muito cruel. O marginalizado da classe média
vivendo uma situação absurda de sobrevivência, desinteressando-se não só pelo destino da sociedade em
que vive, mas até mesmo pelo seu destino individual.
118
116
LEMOS, Tite apud BIVAR, Antonio. As três primeiras peças: Cordélia Brasil, Abre a janela e deixa
entrar o ar puro e o sol da manhã e O cão siamês ou Alzira Power. Londrina, PR: Azougue, 2002. p. 15.
117
apud BIVAR, Antonio. A legenda de Cordélia Brasil, conciso flash-back de uma época. In: op. cit., p.
38.
118
apud BIVAR, Antonio. As três primeiras peças: Cordélia Brasil, Abre a janela e deixa entrar o ar
puro e o sol da manhã e O cão siamês ou Alzira Power. Londrina, PR: Azougue, 2002. p. 15.
86
Entretanto, o registro do texto aponta para uma direção política ainda de outra
natureza, operando uma triangulação entre os conceitos de repressão, trabalho e
civilização, tão caros à revisão dos pensamentos de Marx e Freud, empreendida por
Herbert Marcuse em Eros e civilização. A peça opõe o mundo do trabalho ao mundo de
Eros, fazendo o casal Cordélia-Leônidas dividir o mesmo amante, o adolescente Rico,
em chave de amoralidade. A solução final de Cordélia é deixar de trabalhar no escritório
e abrir um bordel. Já Leônidas, uma vez desfeitos o casamento e a ameaça de uma vida
pequeno-burguesa, resolve partir para alto-mar, levando seu jovem amado. Tais
movimentos, ainda que não se concretizem, reforçam a tese de Marcuse para quem,
quando o tempo do trabalho é redimensionado, o princípio do prazer é que dá as cartas:
Como a duração do dia de trabalho é, por si mesma, um dos principais fatores repressivos
impostos ao princípio de prazer pelo princípio de realidade, a redução do dia de trabalho a um ponto em
que a mera porção de tempo de trabalho já não paralise o desenvolvimento humano é o primeiro pré-
requisito da liberdade. (...) Sob condições ótimas, a prevalência, na civilização madura, da riqueza
material e intelectual seria tal que permitisse a gratificação indolor de necessidades, enquanto a
dominação deixaria de obstruir sistematicamente tal gratificação. Nesse caso, a porção de energia
instintiva a ser ainda desviada para o trabalho necessário (por seu turno, completamente mecanizado e
racionalizado) seria tão pequena que uma vasta área de coerções e modificações repressivas, sem
contarem mais com o apoio de forças externas, entraria em colapso. Conseqüentemente, a relação
antagônica entre o princípio de prazer e o princípio de realidade alterar-se-ia em favor do primeiro. Eros,
os instintos de vida, seria libertado num grau sem precedentes.
119
Deste modo, podemos entender que o alegado individualismo das personagens
se revela na verdade como a expressão política da experiência do corpo, em oposição à
experiência da razão (priorizada pelo teatro épico, por exemplo). A estratégia final de
Leônidas e Rico, de levarem uma granada para o navio, articula dois desejos diferentes.
Inicialmente, o instrumento tem uma forte conotação revolucionária, e aqui nos compete
invocar novamente o testemunho de Marcuse:
A propagação da guerra de guerrilhas no apogeu do século tecnológico é um acontecimento
simbólico: a energia do corpo humano revolta-se contra a repressão intolerável e lança-se contra as
máquinas da repressão.
120
119
MARCUSE, op. cit., p. 141-2.
120
Ibid., p. 19.
87
Mas sua maior finalidade recairá na pura contemplação niilista, expressa por
Leônidas:
O navio afunda e a gente vai conhecer uma coisa que sempre me pareceu essencial: o fundo do
mar.
Entretanto, nem uma coisa nem outra ocorrem, e a explosão prematura da
granada somente revela a completa inconseqüência do projeto. Do ponto de vista de
Cordélia, o desejo de abrir o bordel é logo superado pelo instinto de morte. Poderíamos
dizer que, reprimido, insatisfeito e desregulado, o corpo de Cordélia se deprime e busca
o suicídio, pretendendo permanecer apenas como uma imagem etérea a ser guardada na
memória:
Tenho a impressão que desta vez eu vou mesmo. Mas vou em paz. Pelo menos deixei a marca da
minha passagem pela Terra, a minha fotografia... (Último suspiro) A minha fotografia...
Tanto o objetivo anunciado quanto a desproporção do gesto carregam consigo
algo de melodramático
121
, reforçando a opção da peça pelo clima de ópera-bufa em vez
do acento trágico, conforme se pode depreender da crítica de Yan Michalski:
Suicídio tropical. À medida que o desfecho se aproxima, Bivar introduz no tom do realismo, até
então característico da peça, um surpreendente elemento de fantasia, que cresce e se expande com enorme
rapidez, a ponto de acabar por sobrepor-se, inexoravelmente, ao realismo. A saída final de Leônidas se
desenrola num clima de alucinada lógica sem lógica, que me faz pensar, toda vez que releio a peça, em
Pierrot le fou, de Godard; e o suicídio de Cordélia é, ao mesmo tempo, comovente e engraçado na sua
cafonice: as últimas palavras da heroína, que se referem à marca que ela deixará da sua passagem pela
Terra - uma fotografia para a qual pousou nua, na praia, a pedido de um fotógrafo americano -,
constituem uma das mais poéticas contribuições para a antologia de nosso florescente tropicalismo. A
facilidade com a qual Bivar conseguiu passar do realismo para a fantasia me pareceu constituir a mais
evidente prova do seu talento.
122
No programa da primeira montagem da peça, Antonio Bivar postulava:
121
O mesmo exagero também ocorre com a Verônica de À flor da pele (1969), de Consuelo de Castro,
que se suicida como se estivesse ensaiando uma fala da Ofélia de Shakespeare.
122
apud BIVAR, op. cit., p. 15.
88
Gostaria que olhassem o meu teatro como um teatro de experiências. Sou muito novo e estou na
idade de experiências e o meu maior desejo é contribuir para a formação de uma nova dramaturgia
brasileira. Quero canalizar para o teatro o meu testemunho da vida e do mundo, no tempo em que eu vivo.
A nossa época me parece absurda. A realidade histórica me parece absurda. Sinto que todos buscam com
desespero a realidade num mundo onde tudo é incerto e onde a fronteira entre o sonho e a realidade muda
a cada instante. E fazendo parte deste mundo eu estou comprometido até a alma com o absurdo - ou seja -
com a nossa realidade. Gostaria de atuar sobre o público como um mágico: envolvê-lo em minha fantasia
e depois acordá-lo e mandá-lo para casa inquieto. Eu faço um teatro para desenvolver a imaginação do
público e obrigá-lo a pensar. Acho que o teatro está perdendo a sua função humanística com certo tipo de
espetáculo que não quer dizer nada e que finge pretender dizer alguma coisa, mas que no fundo não passa
de um modismo a mais, feito de encomenda para a sociedade de consumo. A minha maior preocupação é
a nossa desorientação. Gostaria de ter certeza de alguma coisa, mas só tenho dúvidas. Tenho o maior
respeito pela humanidade e gostaria de contribuir (com a minha obra) para uma possível compreensão do
ser humano.
Em seguida, o dramaturgo dedica o espetáculo a uma série de pessoas,
personalidades e seres que, expressivamente, nos ajudam a compreender o percurso
dramatúrgico da obra:
Dedico Cordélia àqueles a quem eu considero verdadeiros amigos e aos quais eu permaneço fiel:
Norma Benguell, São Francisco de Assis, Gilda Grilo, Emílio Di Biasi, Paulo Bianco, Donovan, Célia
Helena, Thelma Reston, Pedro, Samuel Beckett, Fauzi, Hans Cristian Andersem, Zé Vicente, Carmem,
Alcyr, Philippe de Brocca, Ricardo Wagner, Roberto Barossi Jr., Nélson Rodrigues, Guevara, Houaiss,
Dinah, Peréio, a todos os malditos do mundo, aos gatos e aos ratos, à natureza (viva ou morta), às
crianças e de uma certa forma, ao público em geral, com todo o amor de meu coração.
123
Cordélia Brasil é, portanto, um dos mais inventivos documentos políticos e
culturais da década de 60, cuja grande contribuição foi ajustar a sensibilidade da
dramaturgia brasileira à agenda dos novos tempos por meio de um espírito que diz
muito ainda da habitual desfaçatez com a qual encaramos nosso jeito de ser e de estar no
mundo.
123
apud ARTE EM REVISTA. Teatro. São Paulo: Kairós Livraria e Editora Ltda., n. 6, out. 1981. p. 77.
89
Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã
A segunda peça de Antonio Bivar também é uma comédia dramática em dois
atos, desta vez com quatro personagens. Heloneida, uma “mulher fina”, de
aproximadamente 36 anos, e Geni, uma ex-lutadora de circo, de 34 anos, são as únicas
prisioneiras de uma estranha penitenciária localizada em uma ilha, tendo ambas perdido
a noção de há quanto tempo estão lá detidas. O cenário é uma cela de prisão “disfarçada
em confortável compartimento” e decorada por várias flores de papel crepom que elas
fazem para vender. Embora sejam muito diferentes, as duas passam o dia conversando
intimamente sobre coisas do passado, inclusive revelando em detalhes os crimes que
cometeram, o que não as impede de guardarem alguns segredos uma da outra. Como se
já não bastasse a insólita relação de amor e ódio que as une, Heloneida e Geni também
dividem as atenções afetivas de um jovem carcereiro de 25 anos, que as namora em dias
alternados. Única ligação que elas mantêm com o mundo exterior, o carcereiro, ao fim
do primeiro ato, anuncia que irá abandonar a prisão por ter sido convocado para lutar na
“guerra total e geral” que estourou “no mundo inteiro”. Antes de sair, ele avisa que em
breve elas terão uma nova companhia feminina.
No segundo ato, ambas estão sozinhas, tentando investigar o que houve com o
carcereiro, quando entra na cela a nova sentinela do local, Jandira Azevedo, uma mulher
rude de 35 anos que trata Heloneida e Geni com extrema severidade. A partir daí,
algumas informações surpreendem. Inicialmente, ficamos sabendo que a pessoa do
carcereiro nunca existiu, tendo sido forjada pela imaginação das prisioneiras. Depois,
tomamos conhecimento de que Jandira e Geni são antigas rivais que já travaram uma
violenta luta no circo. As prisioneiras se comportam ainda como se tivessem
consciência de serem personagens ficcionais ou de estarem em um hospício. Por fim,
retorna-se ao registro dramático inicial, quando a carcereira obriga Heloneida e Geni a
retomarem a produção de flores, por conta das inúmeras mortes que vêm ocorrendo no
mundo exterior.
Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã é uma experiência
radical que mistura vários níveis de realização dramatúrgica, aliando certos elementos
melodramáticos a uma indisfarçável influência recebida de Fernando Arrabal, Jean-Paul
Sartre, Samuel Beckett e Luigi Pirandello.
90
A primeira camada do texto que se revela ao leitor/espectador é a do melodrama.
Duas mulheres criminosas são obrigadas a conviver em uma cela imunda de prisão,
aprendendo a superar as diferenças e as dificuldades. Por ter sido uma jovem reprimida
sexualmente, a aristocrática Heloneida matou em um museu um homem que a flagrou
masturbando-se, ainda virgem, com uma estátua - o que poderíamos definir como um
episódio de inspiração marcadamente rodriguiana. Já Geni é a mulher que, ainda
adolescente, é levada pela mãe ao circo que chega a sua cidade e de cuja programação
faz parte “O ébrio”, o famoso número cênico-musical celebrizado por Vicente
Celestino. Apaixonada pelo palhaço-anão Piolho, a menina foge com a trupe e passa a
integrar o elenco de atrações da companhia como lutadora de luta livre. Entretanto, o
palhaço logo a troca por uma bela atriz de teatro. Desesperada, Geni ateia fogo ao circo,
matando todos os seus integrantes. Presa, ela acaba encontrando na prisão como
carcereira justamente uma ex-lutadora a quem teria derrotado covardemente em uma
luta livre. É nas mãos dessa sentinela implacável e sádica que Heloneida e Geni terão de
expiar todos os crimes que cometeram.
Está dada a primeira nota do enredo, de tom grotesco e melodramático.
Entretanto, outras camadas vêm juntar-se a ela. Apelando às vezes para uma atmosfera
de sonho e desvario, a trama também faz o par central mergulhar em memórias muito
antigas, impressionistas, que trazem do passado a lembrança de ex-professoras do
colégio, hinos religiosos, amigas de infância ou ainda alguns episódios pouco prováveis
de terem acontecido:
Heloneida: Pois é. Eu tinha um orgulho desse meu umbigo enorme. Eu tinha um peixinho
pequenininho de estimação. Eu ia para a praia e levava ele comigo. Me deitava, punha água no umbigo e
o peixinho dentro. Ele ficava nadando e fazia uma cócega gostosa... Ah, que saudade! Um dia, o sol
estava quente demais; eu dormi, a água secou e o peixinho morreu. Quase morri de tristeza. Aí eu nunca
mais fui à praia.
Impossibilitadas de manterem contato com o mundo exterior (se é que ele
existe), Heloneida e Geni vivem mergulhadas em um misto de memória e
esquecimento. O tempo de reclusão é incontável (“Carcereiro, será que você podia dar
uma olhada no livro de registro pra ver quando foi que a gente entrou aqui?”). A
identidade da “nova” carcereira, impossível de ser guardada (“Toda vez que eu entro
aqui tenho que dizer quem sou?”). A razão exata da prisão, incompreensível (“Estou
91
presa por causa de um dos meus crimes. Por qual, não me pergunte... perdi a
memória.”). Entretanto, há certos fatos que não podem ser esquecidos. Heloneida faz
questão de lembrar Geni, a todo o momento, de que ela é uma assassina.
Geni: Você sabe que eu não gosto de lembrar.
Heloneida: É isso que eu quero te ensinar! Lembrar.
Assim, descortina-se outra investigação do texto, que dá conta de uma alegoria
de ordem moral. Heloneida e Geni assemelham-se a duas crianças que cometeram
delitos por desconhecerem a verdadeira natureza do mal. A influência direta aqui parece
ser de Oração, de Fernando Arrabal - uma das primeiras peças do escritor franco-
marroquino, datada de 1958 - na qual o comportamento de um casal que acaba de
assassinar o próprio filho é apresentado como o de dois infantes ainda não
completamente civilizados. Na apresentação que fez da peça para a Revista de Teatro da
SBAT, o dramaturgo José Vicente identificou nesta questão grande parte da força
expressiva do texto:
Bivar, como seus personagens, não tem certeza de nada nem faz muita questão disso. Ri da
ordem estabelecida não porque seja rigorosamente trágica, mas porque é imbecil. Ele vê o mundo como
uma criança zonza que cresceu e não se deu por isso. Entre todos os regimes escolheria a anarquia, que é
a ausência de todos.
O mundo anárquico de Antonio Bivar, onde a violência se configura em humor, nada mais é que
a revelação de uma infância mutilada, asfixiada e perdida. A dupla Cordélia Brasil-Leônidas Barbosa, em
seus momentos culminantes, já lembrava duas crianças inconformadas, transformadas em adultos. Em
Abre a janela, a mesma dupla reaparece, deliberadamente infantil, com Heloneida e Geni. Nas
alucinações de uma e de outra, tudo o que emerge da solidão e deveria evoluir para a tragédia, encontra-se
inexoravelmente com os mitos infantis esquecidos. Elas têm muito da Maga Patalógica e da Madame
Mim, da Luluzinha e do Alvinho, do Gordo e o Magro e da clássica dupla universal, D. Quixote-Sancho
Pança. A maneira de falar, convictamente cafona, não pede desculpa pro chamado bom gosto pequeno-
burguês nem pra intelectualidade melodramática brasileira. Heloneida e Geni não são nem bem crianças
nem bem adultas: têm a lucidez e a vivência de duas pessoas maduras e a falta de jeito, a fantasia e a
crença cega de duas crianças. Das duas partes elas só conhecem o excesso: do adulto a impossibilidade
inexorável de comunicação que leva ao crime e da criança a convicção rebelde que mistura tudo através
de uma lógica enigmática, engraçada e lírica. [...]
Na procura da recuperação da infância, Bivar se defronta com o caos. Estamos muito longe de
qualquer espécie de moral. A infância, com seus mitos enigmáticos, se denuncia, por um lado, a
92
hipocrisia que querem nos obrigar a devorar, rebela-se contra toda espécie de repressão moralizadora que
só tem como finalidade marginalizar a vida.
124
Abrindo mão de qualquer sentimento de culpa, Heloneida e Geni demonstram
certo prazer em narrar os crimes que cometerem e estão sempre recheando suas
narrativas com alguns expedientes rocambolescos cuja finalidade é impressionar o
interlocutor. Mas, contraditoriamente, ambas querem ser aceitas e trilhar o caminho da
normalidade. É na prisão que Heloneida descobre o significado das palavras “paz,
liberdade e amor”, e, se sair de lá, ela acredita piamente que poderá recomeçar sua vida:
Geni: Eu ainda tenho esperança...
Heloneida: De quê?
Geni: Sei lá... de sair... de viajar...
Heloneida: Você?
Geni: Começar vida nova num outro lugar.
Entretanto, quando a situação parece desfavorável, as maiores atrocidades são
tramadas sem remorso algum:
Heloneida: E você acha que eu me contento com tão pouco? Depois de espetar os olhos, a gente
enfia a agulha no ouvido pra furar o tímpano.
Mas a Heloneida também cabe o papel de consciência crítica da dupla, de modo
que as ações pregressas de ambas não sejam esquecidas:
Geni: Quer dizer que, se eu não sou mais a mesma, logicamente eu não sou mais culpada pelo
que fiz em outra época, não é assim?
Heloneida: Mais ou menos.
124
VICENTE, José. Bivar e a recuperação da infância. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro:
SBAT, n. 367, jan./fev. 1969. p. 12-3.
93
Geni: Então eu posso esquecer.
Heloneida: O quê?
Geni: Todas as maldades que eu fiz.
Heloneida: Também não é assim. Pra gente mudar mesmo, é preciso lembrar e compreender.
Geni: Não é mais fácil a gente esquecer?
Heloneida: É muito mais fácil.
Geni: Então, pra que lembrar.
Heloneida: Justamente para compreender.
Geni: O quê?
Heloneida: O verdadeiro sentido da vida.
Geni: Como é difícil. (Pausa)
Heloneida também é quem faz certas referências cristãs que, ironicamente,
acabam reforçando o universo amoral na qual ela e Geni estão mergulhadas. Uma
citação do Eclesiastes é esvaziada de sentido (“É o próprio Eclesiastes quem diz: Tem o
tempo das vacas magras, o tempo das vacas gordas e depois, outra vez, o tempo das
vacas magras...”) e os ensinamentos éticos de São Francisco de Assis são narrados com
sinuoso cinismo:
Heloneida: O meu irmão, Geni! Uma vez, trancado no quarto com o livro de São Francisco de
Assis, ele chorava de fome, aí eu abri a porta e disse: “Você me desculpa, mas eu só vou te dar comida
quando você compreender”... E não dava mesmo. Até que um dia eu abri a porta... eu nem gosto de
lembrar... e encontrei ele morto...
A atmosfera de estranhamento que cerca esta “prisão” e o áspero convívio que as
personagens são forçadas a estabelecer entre si também fazem lembrar a situação central
de Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre. Para um jovem autor brasileiro que se
94
declara um admirador confesso do filósofo francês, a insinuação do carcereiro soa
bastante familiar:
...às vezes eu tenho a impressão de estar no meio de um pesadelo... estamos só nós três aqui na
ilha... me parece.
Tanto quanto a progressiva descoberta de Heloneida:
Heloneida: Às vezes esta prisão me parece uma espécie de... purgatório. (...) A gente está aqui
pra sofrer. É um lugar tranqüilo pra gente pensar e sofrer. Como um purgatório.
[...]
Heloneida: Sabe, Geni, às vezes eu penso que estou num purgatório, mas com os últimos
acontecimentos eu tenho quase certeza de estar no inferno mesmo.
Tal clima sartriano é garantido, sobretudo, pela figura do carcereiro, o terceiro
elemento da trama que desestabiliza o par central. A rigor, a peça mantém uma simetria
em ambos os atos, pois, com a saída do sentinela, chega à cena Jandira Azevedo,
também disposta a romper o equilíbrio da dupla .Embora somente apareça no primeiro
ato, o carcereiro dá a possibilidade ainda de o texto experimentar outros registros.
Inicialmente, é ele quem circunscreve a ação a um tempo e a um espaço essencialmente
brasileiros. Sobre o jovem guarda da prisão ficamos sabendo coisas veladas, mas que
indicam ser ele um rapaz gaúcho de boa família que resolveu se meter em política:
Heloneida: ... Ele é uma das melhores famílias do Rio Grande do Sul. ... Rapaz idealista. Rico do
jeito que ele é, podia estar gozando a vida e a juventude. Mas ele não. Primeiro foi se meter com a
política. Num país como este, tentar mudar as coisas. Melhorar. Como se adiantasse. A Terra inteira está
à beira da destruição. Ele achava que podia melhorar o mundo. Coitado. A gente vê, pela cara dele, que
ele sofre pela humanidade inteira. Outro dia, ali na cama comigo, ele chorou. Eu me senti como se
estivesse sendo possuída por um santo. (Pausa) Ele já te falou de São Francisco de Assis?
Geni: (Impaciente) Já.
Heloneida: Ele segue o exemplo de São Francisco de Assis.
Geni: Você não está inventando, Heloneida?
95
Heloneida: Ora, Geni, imagina. (Pausa) Ele acha que a única solução para o problema da miséria
na América Latina é a revolução.
Geni: Bidu.
Heloneida: Mas não a revolução que nega o princípio religioso da América Latina, mas uma
revolução partindo do cristianismo. Eu não compreendo nada disso, mas meu coração compreende tudo.
No entanto, essa motivação essencialmente política é logo alargada por uma
alegoria de proporções metafísicas. Inicialmente, o carcereiro informa as duas
prisioneiras a respeito de um conflito no Terceiro Mundo:
Carcereiro: (...) Gostaria que vocês tivessem ouvido as notícias que eu ouvi pelo rádio... se vocês
soubessem o que anda acontecendo pelo mundo... aí vocês iam dar valor àquilo que têm... e não é preciso
ir longe não, aqui perto mesmo, em toda a América pra cima e pra baixo... mesmo na América Central, a
Costa Rica que foi sempre um país calmo, declarou guerra à Nicarágua... e eu aqui por causa de vocês, e o
mundo explodindo lá fora. (...)
Que evolui, pouco tempo depois, para uma situação de proporções cósmicas:
Carcereiro: Estourou uma guerra total e geral. O mundo inteiro. (...) O mundo inteiro está
explodindo, bombas em toda parte. Todo mundo foi convocado. Eu inclusive.
Ficamos sabendo assim que fora da prisão reinam o caos e a barbárie:
Geni: ... Uma coisa que eu não entendo são essas encomendas de flores de papel.
Heloneida: É que o excesso de mortes faz com que haja um déficit na produção de flores
verdadeiras. Estamos numa época da indústria plástica...
Geni: Se a gente está na época da indústria plástica, por que é que esse pessoal fica
encomendando flores de papel?
Heloneida: É que as flores de papel são geralmente feitas à mão e isso lembra as artes mais
antigas, sei lá... e esse pessoal é meio romântico.
Inevitavelmente, lembramo-nos, então, de Samuel Beckett. As personagens de
Abre a janela... talvez sejam as últimas representantes de uma humanidade devastada,
96
como Ham e Clov, em Fim de partida, ou mais indiretamente como Vladimir e
Estragon, em Esperando Godot. Há inclusive entre Heloneida e Geni um inspirado
diálogo que transita entre o nonsense e o absurdo, de clara conotação beckettiana:
Heloneida: Como é que você sabe que ontem era domingo?
Geni: Muito simples: ontem eu estava triste.
Heloneida: E daí?
Geni: Eu sempre fico triste nos domingos.
Heloneida: Essa explicação não me parece lógica.
Geni: Por quê?
Heloneida: Ainda ontem eu me lembro que eu perguntei a você que dia era e que você não soube
responder...
Geni: É que na hora que você perguntou eu devia estar feliz, por isso...
Heloneida: Não me venha com essa.
Geni: Mas é claro. Na hora que eu fiquei triste, o dia passou a ser domingo, com toda certeza.
Entretanto, novamente o registro se precipita em outro, e a peça passa o trilhar
um insinuante caminho metalingüístico, tomando como referência, além de Beckett,
também a dramaturgia de Pirandello:
Geni: (...) Não é um absurdo, na nossa época, tão esclarecida, ainda ficar tendo essas guerras? ...
Heloneida: Eu nem sei o que pensar... quando ouço essas notícias terríveis sobre essas guerras
espalhadas pelo mundo inteiro, dou Graças a Deus de estar aqui, presa. Quando ouço sobre essa pobre
gente inocente morrendo aos milhares, eu não vejo o menor sentido em coisas assim como, por exemplo,
o teatro.
Geni: O teatro?
97
Heloneida: É. Só pra citar uma dessas artes que andam espalhadas por aí. Não vejo o menor
sentido na literatura, no cinema, na pintura, na música...
É esta camada metateatral que parece absorver as demais, redimindo a trama de
seus arroubos e exageros melodramáticos, como no episódio do circo:
Geni: ... Tudo ia bem até que apareceu uma nova artista...
Heloneida: Isso tinha que acontecer... que azar!
Geni: Uma loirona desbotada que tinha vindo do teatro...
125
Heloneida: Qual era o nome dela?
Geni: Pra que é que você quer saber?
Heloneida: Não, pode ser que eu conheça... conheço praticamente todo mundo do teatro.
Ou no momento em que Heloneida se dispõe a identificar os papéis que cada
uma assume na trama:
Heloneida: Quando a Jandira começou a contar aquela história eu pensei: ou isso é uma
verdadeira coincidência, ou nós estamos realmente num teatro. Aquela situação me pareceu muito teatral
e bastou eu pensar em teatro pra ir logo tratando de escolher o meu papel: o da pérfida. Você acha que eu
fiz bem? (Pausa. Geni não responde) É claro que você não vai responder. Você estava muito preocupada
com o seu papel: o da vítima. E sabe duma coisa? Você estava divina! (Olhando para a platéia) E a platéia
nem aplaudiu... E a Azevedo? Podia ser melhor? Ninguém me tira da cabeça que a Azevedo também
gosta muito de teatro...
A influência de Pirandello domina a cena, e as personagens adquirem a
consciência de sua ficcionalidade, convocando a platéia para o jogo da representação
mais desbragada:
125
Há aqui ainda uma impagável referência metalingüística à própria atriz que interpretou pela primeira
vez Heloneida, Maria Della Costa, que, ao que tudo indica, teria encomendado o texto a Antonio Bivar.
98
Heloneida: Hoje em dia, no palco de um teatro a gente ouve as verdades mais secretas do ser
humano. Coisas que a gente não ouve na rua, por exemplo. Pode-se dizer praticamente quase tudo num
palco de teatro.
[...]
Heloneida E depois você se queixa, Geni. Imagina a colher de chá. Uma prisão com platéia.
Você não pode dizer que estamos sozinhas no mundo. Essa platéia, pelo menos duas horas por noite, faz
companhia pra gente. Não é uma delícia? É por isso que eu amo o teatro. Olha! (Mostra a platéia) Hoje
em dia quem não representa bem o seu papel é melhor cair morto.
[...]
Geni: Mas essa história a platéia vai ter que ouvir, quer queira, quer não queira. Senão eu acabo
com a vida de alguém aqui hoje. Não se esqueçam de que eu sou uma assassina
[...]
Heloneida: Respeita a platéia, Geni. Não diz palavrão.
A saída para o conflito parece estar, ambiguamente, no próprio teatro. Geni, de
repente, se desespera e quer abandonar o espaço da representação. É o momento em que
todas as histórias contadas se embaralham, revelando diferentes graus de artificialidade
e invenção. Diante da crise de Geni, Heloneida acentua a desordem do registro:
Heloneida: Não adiante, Geni... Isso aqui é um hospício... está cheio de gente lá fora... eles vão
fazer maldade com você...
(...)
Heloneida: Não adiante, Geni... isso aqui é uma prisão... está cheio de guardas lá fora... eles vão
te dar choque elétrico, Geni... vão te pôr na camisa de força... Volta
(...)
Heloneida: Não adiante, Geni... você não pode fugir... Isto aqui é um teatro, Geni... (As luzes da
platéia se acendem)
Geni tenta fugir pela platéia, mas é reconduzida ao palco pela ameaça de Jandira
e pelos apelos solidários de Heloneida. É preciso continuar a fazer flores, pois “está
morrendo mais gente que nunca...”. Mas é preciso também continuar o jogo da
representação, a fim de que, pela via do fingimento e da dissimulação, a vida possa
adquirir algum sentido:
Heloneida: ... todo ser humano tem uma missão a cumprir... umas mais importantes... outras
menos importantes... nós já cumprimos a primeira parte... agora vem a segunda.
Geni: E qual era a primeira parte?
99
Heloneida: Fazer flores de papel.
Geni: E a segunda?
Heloneida: Fazer mil e quinhentas flores até amanhã cedo.
Geni: E essa missão é importante?
Heloneida: Importantíssima (Olha fixamente para a platéia).
Abre a janela... constitui um intrincado exercício metalingüístico, dependente,
como pudemos ver, de certas informações transmitidas pela vanguardas internacionais,
mas também preocupado em dialogar com o tempo e o local que lhe deram origem. É, a
nosso ver, outro forte testemunho cultural de viés político que, em vez de atacar as
grandes estruturas, prefere deslocar seu eixo de pesquisa para substratos mais fugidios.
Ao virar do avesso a mentalidade destas personagens marginais e convidar o espectador
a assumir seu papel no jogo do teatro, Bivar parece querer ampliar o alcance de sua
investigação, conforme podemos depreender, uma vez mais, das palavras de José
Vicente, que nos servem aqui de conclusão da análise da peça:
O humor em Bivar é fechado, a princípio. O burguês sabe rir da piada. O riso da sociedade de
consumo é um riso de encomenda. Em Bivar o riso é o riso de tudo aquilo que é trágico no resultado e
cômico na origem. Há em toda ação de sua peça uma ruptura com toda espécie de hierarquia: tudo é
desordem aí. Ninguém tem certeza de nada. Os personagens têm a consciência da tragédia, mas não
conseguem levá-la a sério. Os momentos mais terríveis são os mais cômicos. Toda significação da vida
foi abandonada: seus personagens não procuram nenhuma finalidade específica além do fato certo de
estarem vivos, não importa como. São absolutamente anárquicos e absolutamente reveladores: não da
significação da vida, mas da vida, ela mesma. Do mundo lá fora está o sinal mais certo: a necessidade
inexorável de sangue que governa a vida humana que a grande mentira social que condiciona e contamina
todas as pessoas.
Bivar não tem nenhuma mensagem pra ninguém, pelo menos o tipo de mensagem que a
mentalidade pequeno-burguesa consegue digerir. [...]
Bivar é uma dessas raras pessoas que ainda conseguem testemunhar a insubordinação a qualquer
espécie de Ordem.
126
126
VICENTE, op. cit., p. 12-3.
100
O cão siamês ou Alzira Power
A terceira peça de Antonio Bivar é uma comédia que, ao contrário das outras,
carrega menos nas tintas dramáticas e melodramáticas, preferindo explorar à exaustão
os efeitos de comicidade advindos de uma situação insólita. “Partindo do princípio de
que a meta da maioria das pessoas é a felicidade, e que as pessoas estão felizes quando
estão rindo, decidi que a peça tinha que ser uma comédia”, declarou o autor quando da
publicação do texto na Revista de Teatro da SBAT.
Toda a ação se passa em um apartamento modesto, estilo conjugado, onde se vê
uma rádio-vitrola, um armário e um sofá-cama. Uma porta à esquerda conduz ao
banheiro e à cozinha; outra, ao fundo, é a entrada de quem vem de fora. À direita, há
uma janela. No lugar vive Alzira, uma funcionária aposentada dos Correios e
Telégrafos, de aproximadamente 41 anos, definida como “agressiva e nervosa,
impaciente e insubmissa”. Quando a ação se inicia, a porta da rua está aberta, e Alzira
chora desconsolada por ter perdido seu cachorro de estimação. Ernesto, um jovem
corretor de automóveis de 23 anos que chegou ali disposto a fechar mais um negócio,
surge à entrada do apartamento e tenta prestar auxílio à pobre mulher. Rapidamente uma
áspera relação se estabelece entre eles. Alzira se irrita com a curiosidade do vendedor
em querer saber o que está acontecendo com ela e resolve impedi-lo de sair. Num gesto
tresloucado, ela tranca a porta e arremessa a chave pela janela. Está armada a situação
básica que será explorada pelos dois atos que compõem a peça.
No primeiro deles, após a agressividade inicial, eles acabam conversando e
conhecendo-se um pouco melhor. Ficamos sabendo, então, que ele encarna o indivíduo
tipicamente pequeno-burguês, daqueles pais de família para quem a felicidade se
resume ao trabalho e à vida doméstica. Já Alzira se revela uma controvertida mulher à
frente de seu tempo. Apesar de estar aposentada, ela parece dominar diversos assuntos
da atualidade, especialmente o terreno da música pop com a qual mantém uma relação
de amor e ódio. A grafia do mesmo nome do vendedor estampada em uma das paredes
curiosamente os leva a se descobrirem um pouco mais próximos, já que o pai de Ernesto
(homônimo do filho) teria sido um antigo namorado de Alzira, que a abandonou às
vésperas do casamento. Do episódio ela guarda o vestido de noiva, que acaba vestindo
nostalgicamente na frente do visitante. A tensão entre eles volta a crescer e o rapaz,
acreditando que ela não passa de uma libertina, resolve dominá-la, forçando-a a fazer
sexo com ele.
101
No início do segundo ato, o clima parece de sensualidade e descontração,
pontuado, sobretudo, pela voz de Billie Holiday, que ela pôs para tocar na vitrola. No
entanto, Ernesto se revela um cafajeste que se propõe a oferecer seus préstimos sexuais
a ela dali por diante em troca de dinheiro. Alzira reage com veemência e muda o jogo,
submetendo-o à humilhação de colocar o vestido de noiva e de se maquiar diante dela.
Aos poucos, outro segredo vem à tona: Ernesto já conhecia Alzira, pois todos os colegas
de escritório que o antecederam na tarefa de tentar vender um carro a ela acabaram
fazendo sexo com a desequilibrada mulher. Alzira passa a desqualificar Ernesto e sua
vida pequeno-burguesa e, por oposição, celebra o mundo da aventura, da transgressão e
das drogas. Extenuado diante da obstinação dela em atacar todos os valores nos quais
sempre acreditou, o vendedor faz uma última revelação: ele não se chama Ernesto,
tendo assumido o nome somente ao vê-lo escrito na parede. É hora, então, de Alzira dar
a última cartada: ela nunca teve namorado algum de nome Ernesto, inventando toda a
história do casamento desfeito somente para ludibriar o vendedor. Diante de mais esta
armadilha, o rapaz descontrola-se e é acalmado por um copo de água com açúcar que
Alzira lhe oferece. Logo, ele percebe tratar-se de veneno, caindo fulminado no chão.
Alzira, triunfante, dirige-se à platéia para os aplausos.
Assim como as duas peças anteriores de Bivar, O cão siamês ou Alzira Power
também se organiza em algumas camadas que se interpenetram, podendo ser lida, de
imediato, em três chaves complementares. Por um lado, é uma ótima comédia de
situação que, calcada em um ritmo frenético, sabe explorar muito bem inúmeros efeitos
de humor. Talvez por isso ela tenha sido considerada por José Celso Martinez Corrêa, à
época de seu lançamento, “a mais eficientemente comercial de todas as peças
brasileiras”.
127
De outro modo, o texto - que teve por musa inspiradora uma funcionária
anônima, de fato, dos Correios e Telégrafos, segundo depoimento do próprio autor
128
-
127
apud BIVAR, Antonio. A história de Alzira Power. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro:
SBAT, n.401, set./out. 1974. p. 75.
128
“Alguns anos antes, numa cidade do interior do Estado de São Paulo, fui levar uma carta ao correio e
fiquei, na fila, observando uma vendedora de selos. Era uma senhora baixinha, decidida e forte, enérgica,
ligeiramente masculinizada, brincalhona, e, numa só palavra, única. Eficiente como funcionária e um
tanto quanto impaciente e inquieta como ser humano. Me parecia que ela estava doida pra ver encerrado o
expediente, pra cuidar de alguma coisa fora do trabalho, uma coisa que eu não podia sequer imaginar. Um
assunto da sua vida privada e que nenhuma das pessoas ali na fila do selo podia sequer ter uma idéia do
102
pode constituir também uma sinuosa metáfora política ou ainda uma vibrante alegoria
da era do desbunde e da contracultura.
A peça, que já havia cumprido uma temporada paulistana em circuito alternativo
no ano de 69, foi reescrita por encomenda do diretor Antonio Abujamra (responsável
pela montagem carioca, em 1971), na meca da contracultura européia, a capital inglesa,
para onde o autor viajou em 1970, a fim de vivenciar diretamente o jovem cenário
cultural com o qual ele tanto se identificava
129
:
[Antonio Abujamra] estava com a intenção de dirigir uma nova montagem de “O cão siamês de
Alzira Porra-Louca”, peça que eu tinha escrito em outra encarnação e que fizera sucesso underground na
temporada passada, em São Paulo. Abujamra queria encenar a peça no Rio, durante a temporada de verão,
com a coquete Yolanda Cardoso, que criara o papel na primeira montagem. Mas para uma produção mais
profissional, a peça precisava de mais umas vinte páginas para dar, no mínimo, uma hora e vinte de
espetáculo. Abujamra queria que eu escrevesse essas vinte páginas. (...) Abu, que estava às vésperas de
voltar pra Brasil, me cobrava que escrevesse as vinte páginas da peça que ele queria dirigir no Rio.
Tranquei-me no meu studio no Chelsea e escrevi diálogos, bifes, pequenos solilóquios, armei os ganchos
e os fechos, criei uma dúzia de qüiproquós, três monólogos possessos e um epílogo chocante. Tudo com
muita verdade e charme, porque a experiência me ensinara que, em se tratando de teatro, o importante não
é só a verdade, mas também o estilo como que essa verdade é passada ao público. Seja essa verdade
realista ou absurda.
130
que fosse. Bom, passou um tempo, talvez um ou dois anos, e um belo dia senti que estava na hora de
escrever uma nova peça. Não tinha nenhuma idéia na cabeça e estava contente com isso. Sentei-me à
mesa de trabalho de Isabel Câmara (eu era hóspede de Isabel naquele tempo), frente à máquina de
escrever, e deixei que um desfile de personagens interessantes passasse pela minha fantasia: marginais,
prostitutas, professores, manequins, outsiders, vagabundos, domésticas, estudantes, pais de família, filhos
rebeldes, estrelas de cinema, starlets, bad-losers, freqüentadores de colunas sociais, equivocados,
tragicômicos, tipos humanos dos mais normais aos mais absurdos e universais. Foi numa dessa que tudo
parou e veio à minha cuca um close daquela funcionária dos Correios e Telégrafos. E foi nela que eu
fiquei e comecei a imaginá-la aposentada, feliz, curtidora da vida, decidida e radical. Justa.” BIVAR, op.
cit., p. 59.
129
Sobre a escolha de Londres, Bivar, em entrevista concedida em 2002 à revista Trópico, fez uma
declaração bastante esclarecedora: “Os mais politizados iam naquela época para Paris ou para a Itália,
como Chico Buarque, Cacá Diegues, Nara Leão... E a turma pop ia para Londres. Havia também um
pessoal em Nova York: Rubens Gerchmann, Mautner...”
130
BIVAR, Antonio. Verdes vales do fim do mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 99.
103
Do ponto de vista político, a peça trata de uma situação claustrofóbica, alertando
cinicamente para o fato de que em tempos difíceis ninguém deve entrar
inadvertidamente em espaços alheios e pouco conhecidos. O temperamento agressivo,
dominador e autoritário de Alzira em muito lembra o de Dona Margarida, que Roberto
Athayde iria conceber cerca de dois anos depois. Mas Alzira vai mais longe em sua
despótica performance. A exasperada funcionária aposentada usa toda sorte de artifício
para subjugar sua vítima, mordendo-a ou fazendo ameaças com objetos insuspeitos do
cotidiano: uma chave de fenda ou uma vara de pescar, por exemplo. As marcas
discursivas da personagem apontam para um egocentrismo perturbador. “Eu sei muito
bem...”, “Eu detesto...”, “Eu conheço...”, “Bem que eu desconfiava” são algumas das
inúmeras estratégias de intimidação usadas por uma figura que não admite nenhuma
interlocução:
Aqui quem faz as perguntas sou eu... estou na minha casa.
E que, inclusive, alardeia sua auto-suficiência nos mais variados níveis:
Eu sempre resolvi o meu problema sozinha. Eu acho o cúmulo da falta de imaginação gente que
pra se satisfazer sexualmente precisa de outra pessoa.
Deste modo, a misantropia da personagem não surpreende:
Por isso eu detesto os homens. E as mulheres também. (...) Todo mundo aqui me detesta. Mas
em compensação eu também detesto todos eles.
Ainda que contrabalançada por um inescapável sentimento de solidão que a leva
de volta a memórias muito primitivas:
... eu não tenho para quem telefonar. (...) ... tem hora que eu esqueço que tenho 45
131
e sinto falta
da minha mãe... Às vezes eu esqueço que ela morreu e chego até a escrever cartas...
Esta nostalgia da infância, que recusa de imediato um tom melodramático,
aponta para o ego indisciplinado da personagem. Tal como uma criança indomável,
Alzira têm por hábito lançar tudo pela janela. Inicialmente é a chave da casa - o que irá
131
Há uma contradição entre esta fala e a rubrica inicial, que diz ter Alzira “aproximadamente 41 anos”.
104
sustentar toda a ação da peça -, mas logo vêm também o maço de cigarros e a camisa de
Ernesto, que estão longe de se constituírem os objetos mais prosaicos já arremessados:
Alzira: ... É uma mania que eu tenho... jogo tudo pela janela. Imagine o senhor que às vezes eu
esqueço e jogo até lixo pela janela... os vizinhos vivem fazendo reclamação de mim pro síndico... Quando
eu jogo dinheiro bem que eles não reclamam... Um dia eu joguei uma dúzia de ovos que eu tinha acabado
de comprar na feira... Por uma falta de sorte, imagina o senhor, foi cair bem na cabeça duma velhinha
insuportável que mora no primeiro andar.
À medida que Ernesto passa a conhecer melhor sua algoz, ele acaba entrando
neste jogo infantil. E assim tanto o velho disco de Carmem Miranda quanto o vestido de
noiva dela também voam pelos ares.
A provável metáfora política presente na imagem de um pacato cidadão que,
inadvertidamente, sofre as maiores torturas psicológicas e físicas nas mãos de uma
personagem descontrolada é reforçada pelo fato de que esta mulher anônima acaba por
assumir certo aspecto familiar:
Alzira: O senhor tem vergonha do seu próprio nome???
Ernesto (baixando a cabeça, tímido): Ernesto Pasqualini Parmelucci.
Alzira: ... Ora, sim senhor... Ter vergonha de um nome tão bonito... Que falta de caráter...
Engraçado, eu também conheci um Ernesto... ele era vendedor de revistas... Ernesto Pasqualini
Parmelucci... (Indiferente) Dever ser seu pai. O Ernesto era filho de italianos... O senhor é filho de
italianos?
Ernesto: Neto.
As formas autoritárias, parece querer alertar o texto, são nossas velhas
conhecidas. E mais: estão sempre dispostas a atualizarem sua sedução sobre nós.
Onipresente e perspicaz, Alzira consegue entrelaçar seu passado com o do vendedor.
Depois de ficarmos sabendo que Ernesto acabou entrando no apartamento de alguém
que simplesmente poderia ter sido sua mãe, desvendamos a estratégia maliciosa de
Alzira para enredar seu visitante em um passado que se transforma em presente:
Alzira: Um belo dia, no verão... fazia muito calor... e ele [Ernesto-pai] me perguntou se podia
tirar a camisa... e eu, na maior das inocências, disse: “Claro que pode, Ernesto...” (Para Ernesto-filho)
105
Desculpe... o senhor deve estar sentindo muito calor... se quiser tirar a camisa pode... (...) O corpo do
Ernesto era tão bonito... assim como o do senhor... Um pouco mais forte, é claro. E um pouco mais
bonito, desculpa. (Chegando perto de Ernesto) Ele tinha pêlo no peito... (Passando a mão no peito de
Ernesto, desde o umbigo) Parecia uma árvore, começava fininho no umbigo e depois abria, no peito, que
nem uma árvore... (Ernesto sente cócegas e vai se encolhendo)
Por outro lado, em dado momento, Ernesto admite que Alzira não é uma
estranha para ele:
Ernesto: Meus amigos já tinham me falado da senhora...
Alzira (saindo de cena): Que amigos? (Volta trazendo um bumbo)
Ernesto: A senhora sabe muito bem de quem estou falando...
Alzira: Tenho a impressão de que o senhor está um tanto quanto equivocado, não sei não.
Ernesto: Sabe, sim... O Rogério, o Ronaldo, o Reinaldo, o Robertão, o Raimundo, e o Álvaro...
são todos meus amigos, todos meus colegas, todos vendedores...
Alzira (esticando o vestido de noiva no sofá, com o auxílio da vara de pescar): Todos uns
panacas como o senhor...
Ernesto: Todos já comeram a senhora...
A rigor, então, ambos já poderiam esperar por tal encontro - o que intensifica a
carga dramática em torno do embate entre estes dois estranhos que se revelam mais
próximos do que poderíamos supor.
Mas estamos cientes da incompletude desta leitura política, se ela apontar
simplesmente para uma relação básica entre opressor e oprimido. Ernesto não é somente
uma vítima ingênua nas mãos da despótica Alzira. Muito da conotação política do texto
(e que parece ser uma marca da geração de 69) advém do delicado jogo de dominação -
física, psíquica, intelectual e sexual - que se estabelece entre os personagens e que os
obrigará a se reconhecerem em campos opostos de atuação.
Do ponto de vista da política do corpo, Alzira é a fêmea que desmonta o
estereótipo do chauvinismo encarnado por Ernesto, pois, a rigor, é ela quem,
maliciosamente, o seduz primeiro:
106
Estava querendo me seduzir, não estava? Eu só queria ver até onde o senhor ia... Seu cafajeste!
e o provoca de modo tão ardiloso a ponto de ele querer possuí-la à força, em
uma cena de violência estilizada na qual o pacato vendedor corresponde integralmente
ao clichê do macho dominador: amarrando-a na cadeira, passando um canivete em seu
rosto e dando-lhe uma bofetada. Tudo regado ao som de “Voodoo Chile”, de Jimi
Hendrix, diga-se de passagem.
A conseqüência natural é Ernesto assumir o papel de cafajeste, o que o leva a
destilar frases do mais rodriguiano machismo:
Ernesto: Bem, minha flor, a cascata tá legal, mas eu preciso me mandar...
(...)
Ernesto: O tutu? Eu perguntei se você tem muito tutu!
(...)
Ernesto: Eu odeio as mulheres... principalmente as mulheres de hoje, que ficam fazendo
concorrência aos homens... São todas umas metidas, é isso mesmo, umas metidas, umas mandonas... A
culpa de tanta viadagem, de tanto bissexualismo, de tanta aberração hoje em dia só pode ser das
mulheres...
Entretanto, depois de satisfeita sexualmente, Alzira, tal como uma fêmea
usurpadora, desqualifica o desempenho sexual de Ernesto:
Quer saber duma coisa? O que você tem mais embaixo, meu filho, não chega até lá. Fica na
metade do caminho.
e o humilha por completo, produzindo uma imagem grotesca da virilidade do
rapaz, quando o obriga a colocar o vestido de noiva, maquiar-se e tocar bumbo:
Olha só pra sua cara. Não quis bancar o garanhão? Não me tratou que nem uma égua? Agora eu
estou te tratando que nem uma mula manca.
Mas a peça também sabe espraiar estes procedimentos de modo a não se tornar
naturalista por demais. Assim é que a motivação inicial para o contato entre o par se dá
pela via do absurdo e do nonsense. A causa do desconsolo de Alzira, quando a peça
começa, é a perda de seu “cão siamês”:
107
... E se eu dissesse pro senhor que o meu cachorro era um cão siamês, o senhor acha que ia
adiantar, agora que ele sumiu? (...) O meu cão siamês miava. Eu tinha um casal de cães siameses...
A insólita imagem inclusive batizou a peça em sua primeira montagem, sendo
depois substituída pela alcunha contestatória dada à protagonista. A este respeito, aliás,
é bastante revelador o depoimento de Bivar:
Aproveitei, também, para mudar o título da peça. Em vez de “O cão siamês de Alzira Porra-
Louca”, já que a censura não deixaria mesmo passar o “Porra”, mudei para “Alzira Power”, que me
parecia ao mesmo tempo simples e direto, cafona e chique, com camp e impacto. O “Power” do título era
uma homenagem de “Alzira” a todos os powers do momento, em Nova York: o Black Power, o Gay
Power, o Women’s Lib, o Power to the People Right Now e, sobretudo, e porque aqui residia a realidade
do autor -, o Play Power. Enfim, “Alzira” atualizava-se com os movimentos do dia e entrava nele sem
sutiã, de peito aberto, liberada, dando a maior força. E graças ao Play Power a peça continuava não
levando nada disso a sério, indo com tudo para divertir sua intérprete, Yolanda Cardoso. E os aplausos do
público certamente poriam abaixo as paredes do teatro. Abujamra adorou o resultado.
132
Vale notar que é possível encontrar na Revista de Teatro da SBAT outra razão
ainda para o título da obra, dada também pelo próprio autor: “... mudei o título da peça
para Alzira Power. Um pouco por causa do poder de Alzira, e outro tanto, em franca
homenagem ao meu ator de cinema favorito, o Tyrone Power”.
133
O uso do binômio fantástico “cão siamês” de início consegue pautar outros jogos
de linguagem usados pelo autor ao longo do texto para reforçar o caráter transgressor de
Alzira. Não devemos nos esquecer do apreço que Bivar cultivava à época pelos grandes
autores de língua inglesa, em especial os irlandeses, responsáveis por renovar e redefinir
a capacidade comunicativa da linguagem:
O aviso dos 300 dólares que a SBAT me mandou do Rio chegou logo depois do Natal. Deu um
treco na minha imaginação e troquei a passagem de volta a Londres por uma de ida até Dublin. Por que
não dar uma esticada à Irlanda do Sul?, pensei. Afinal, era a terra de Oscar Wilde, Bernard Shaw, Sean
O’Casey, W.B.Yeats, Synge, Joyce, Beckett e Brendan Behan, todos eles escritores consagrados e dois ou
três deles meus favoritos.
134
132
BIVAR, op. cit., p. 107-8.
133
BIVAR, Antonio. A história de Alzira Power. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n.
401, set./out. 1974. p. 59.
134
Id. Verdes vales do fim do mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 120-1.
108
Em certo momento, por exemplo, Alzira descarrega sobre o vendedor a grande
carga de conhecimento acumulado pela leitura de “todos os jornais e todas as revistas do
mundo... em todas as línguas”. Vale ressaltar que tal fala soa muito próxima à de certas
personagens do universo de Ionesco, sempre às voltas com os ruídos e os distúrbios da
comunicação:
Alzira: Então o senhor não sabe nada. (Continuando informativa) O senhor sabia que o rei, e as
filhas do rei da Noruega foram tatuados por um velhinho finlandês que hoje mora em Londres, num
buraquinho, num subúrbio distante, onde ele recebe o Hell’s Angels da Califórnia, que vão ali para serem
tatuados pelo mesmo velhinho? O senhor não sabe. O senhor sabia que em Cuiabá tem um obelisco que
diz “aqui é o ponto central da América do Sul?”. O senhor já esteve em Cuiabá? (Ernesto faz sinal com a
cabeça que não) Então o senhor não sabe nada de NADA! O senhor sabia que os salmões nascem nos rios
da Groenlândia e que são pescados na desembocadura por pescadores dinamarqueses que não respeitam
nem os filhotes? Então o senhor não sabe de nada. Mas eu aposto que o senhor sabia que o sabiá sabia
assobiar. Não sabia? Mas me diz uma coisa: o senhor sabia que a calcita e o topázio fumê são
consideradas duas pedras semipreciosas? E que o brilhante nada mais é que o diamante lapidado?!
Sob tal aspecto também, há um adendo à peça que diz que neste momento “a
atriz que fizer Alzira pode improvisar e colocar informações recentes, sempre de cunho
absurdo, a respeito de fatos e curiosidades do Planeta”.
À medida que a trama se encaminha para o final, as incertezas passam a ser
menos freqüentes e os elementos insólitos começam a ser examinados à luz da razão. A
dupla já se conhece um pouco mais e sabe, em certa medida, até onde pode ir o outro. É
quando, então, Ernesto está pronto para ridicularizar a falácia do “cão siamês”, ao que
Alzira reage com a transformação da imagem em outro delicioso disparate:
Ernesto: ... Essa história de cão siamês é tudo papo furado.
Alzira: ... E o senhor acreditou... agora imagina... onde já se viu... cão siamês...
Ernesto: E a senhora acha que eu fui nessa? Acha que eu ia ser babaca de acreditar?
Alzira: O que eu tinha era uma gata pequinesa... (Ela vai dar uma mordida no peito dele, que
foge) que fugiu... por isso é que eu estava triste... a gata se esfregava na minha perna... quando estava no
cio... e eu me esfregava nela, quando eu estava no cio... a gente vivia muito bem... eu e minha gata
pequinesa...
109
A base da contradição entre elementos ordinários e extraordinários também
prepara o texto para a leitura que nos parece mais expressiva, e que revela o forte apego
da obra ao repertório da contracultura. O insólito e o absurdo, que são a bandeira de
Alzira, distinguem muito acentuadamente o modo de vida da personagem da maneira
como age Ernesto A ação da peça está preocupada o tempo todo em confrontar duas
consciências, dois estilos de vida muito diferentes, com uma surpreendente inversão de
perspectiva entre o par central. Ao mais velho deles compete a defesa da juventude, dos
novos valores e da necessidade de transgressão, enquanto o mais jovem está preso a um
mundo conservador, hipócrita e reacionário.
Alzira Power é uma emblemática personagem da dramaturgia brasileira recente,
sobretudo porque ela sabe transitar como ninguém no terreno da cultura pop. Esta
grandiosidade da personagem, que acaba, muitas vezes, fazendo sombra ao próprio
texto, foi notada por Yan Michalski, em sua crítica no Jornal do Brasil, quando a peça
estreou no Rio de Janeiro:
“... Entre dois momentos de força há sempre um intervalo em que Bivar quase se limita a fazer
charme. Mas cada um desses momentos de força que aparecem de vez em quando revela o talento
absolutamente sui generis de Bivar, que maneja como nenhum outro autor brasileiro os recursos da
fantasia, e que tem um senso de humor inteiramente pessoal, inimitável. E esses momentos fortes são
suficientemente numerosos, e de suficiente qualidade, para que o autor acabe nos dando o seu recado:
uma visão do mundo amarga, perplexa, rebelde, traumatizada, ainda que um tanto festiva. Podemos entrar
ou não na jogada dessa visão de mundo de Bivar, mas dificilmente podemos resistir à graça com a qual
ele nos mostra essa visão. A peça acaba um pouco cedo: no segundo ato, o autor faz pouco mais do que
encher lingüiça. Mas se a ação dramática termina praticamente no final do primeiro ato, o fascinante
personagem de Alzira, multifacetado e escorregadio, continua nos surpreendendo e nos comunicando a
sua força vital até a última réplica. Yolanda Cardoso encontrou neste personagem o papel de sua vida, ao
qual se agarra com uma verdade, um carinho e uma vitalidade tão admiráveis, que as eventuais
deficiências técnicas da atriz passam despercebidas. Marcelo Picchi sustenta inteligentemente, com
bastante noção de medida, o menos brilhante dos dois papéis. A direção de Abujamra é precisa, nervosa,
mordaz, e sua mão firme pode ser claramente percebida no trabalho dos dois intérpretes
135
.”
Um dos grandes achados desta funcionária pública de nome cafona reside no
fato de ela encarnar uma espécie de mãe do movimento punk. Alzira adora música
barulhenta:
135
Ibid., p. 154-5
110
Os únicos [vizinhos] que eu suporto é um conjunto de rock que mora aí no andar de cima. Eles
tocam que tocam lá em cima... uma música barulhenta, insuportável, mas eu adoro! Porque eu adoro a
juventude.
e admira o mais transgressor disco dos Rolling Stones (a rigor, uma violenta
paródia ao trabalho melodioso e bem-intencionado dos Beatles, o álbum Lei it be):
Ernesto (Impaciente, jogando): A senhora tem aí... os Rolling Stones?
Alzira: Mas é claro! Eu tenho tudo (vai até a discoteca e pega um LP dos Rollings Stones, “Let it
bleed”) Olha! É o último! (Mostra exageradamente a capa)
Em sua atitude punk, mantém uma relação exaltada e controversa com o
ambiente musical:
Eu detesto os Rolling Stones. O disco está aqui, olha (mostra um desses vasos feitos de disco
semiderretido em água fervente) Eu detesto música moderna, pop, rock... Eu detesto os Rolling Stones, o
Steppenwolf, a Joan Baez, o Led Zeppelin, o Pink Floyd, os Beatles e o Status Quo. Eu só respeito a Janis
Joplin e o Jimi Hendrix, porque eles estão mortos. Quem vem à minha casa é obrigado a ouvir Jeanette
MacDonald, a Martha Eggert, a Ilona Massey... e se duvidar muito eu ainda ponho a Carmem Miranda...
E sabe ainda fazer citações apropriadas de algumas tribos urbanas que nasceram
com a contracultura (os Hell’s Angels, da Califórnia, por exemplo) e de alguns ícones
da jovem cultura pop (ela declara ser assinante da revista de música Cash Box). Aliás,
tanto quanto Cordélia Brasil, a peça pode ser também definida como uma vigorosa
“ópera pop”, por estar recheada de citações musicais. Alzira fala da canção clássica
norte-americana, do rock, de Billie Holliday, de rumba, de Carmem Miranda etc.,
passando a limpo o amplo caldeirão musical que veio desembocar na década de 60.
A este respeito, convém destacar a seguinte indicação do autor, feita em uma
nota à publicação da peça pela Revista de Teatro da SBAT:
Antes de começar o espetáculo, no intervalo, e depois da cortina final, é sempre agradável um
tape com músicas gravadas. Um pouco de todos os gêneros, algumas cafonas, alguns clichês musicais,
nacionais e internacionais, sucessos populares, e outras revelando um gosto peculiar.
136
136
BIVAR, Antonio. Alzira Power. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 401, set./out.
1974. p. 75.
111
Vale ainda notar que Bivar também propõe, para a abertura da obra, que a
personagem esteja fazendo crochê, enquanto conversa com a platéia, ou então cantando
“um número relativamente ridículo, mas cheio de humor”:
Na primeira montagem da peça, Yolanda Cardoso escolheu para cantar um samba-canção de
Antônio Maria, intitulado “Aconteceu em São Paulo”, gravado há muito tempo por Hebe Camargo. Na
segunda montagem da peça, Yolanda mudava de música conforme o mood. Entre outras, ela chegou a
cantar o “Escandalosa”, de Emilinha Borba. A atriz que fizer Alzira tem todo o direito de escolher a
música que quiser. Ou não cantar nada, se for do seu agrado, assim.
137
E é como uma “proto-punk” também que Alzira está preocupada em embaralhar
certezas, demolir convicções e confundir seu interlocutor. Sob a aparente figura de uma
dona de casa frustrada e solitária, Alzira aos poucos vai entrando no universo de Ernesto
para implodir as crenças de um jovem vendedor de automóveis, cuja linhagem ela
reconhece há tempos. Assim é que, em sua memória reinventada, “Ernesto-pai” (o
vendedor de revistas que lhe prometera uma vida confortável) paulatinamente cede
lugar ao aventureiro Zé Maria. Dois modos de vida, então, se confrontam. De um lado
há aqueles que cumprem à risca o figurino da vida pequeno-burguesa, como os
vendedores em geral:
Uhhh... homem que usa terninho e gravatinha me dá vontade de vomitar.
De outro, há os inconformados de plantão, como Zé Maria:
Era um verdadeiro representante da juventude de hoje. Era bem o contrário do senhor, que é
vergonha da juventude. O Zé Maria era um rebelde... era o meu, hum... alter ego, a minha alma gêmea...
Ah, se eu tivesse vinte anos menos... se eu tivesse vinte anos, eu ia botar pra foder. Quando eu penso no
Zé Maria eu até sinto febre... Tenho vontade de dizer palavrão e o cacete. Ele sim, era um santo. O que a
sociedade fez com ele... Essa sociedade da qual o senhor, com seu terninho e gravatinha, faz parte... Ele
morreu por culpa de vocês... Era um santo... Ah, eu só queria era estar lá no Vaticano... no lugar do
Papa... aí o Zé Maria ia ser canonizado. Por culpa de gente do seu tipo sabe o que foi que ele acabou
sendo? Heins? É... foi ser traficante de drogas... Mescalina, cocaína, metedrina, anfetamina, morfina,
heroína, cafetina e o cacete. No que fez muito bem, não tinha outra saída mesmo... E eu entrei num curso
de enfermagem por correspondência, só pra aprender a dar injeção nele. Eu aplicava e ele ficava louco...
137
BIVAR, Antonio. As três primeiras peças: Cordélia Brasil, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o
sol da manhã e O cão siamês ou Alzira Power. Londrina, PR: Azougue Editorial, 2002. p. 153.
112
louco e maravilhoso. Um dia roubou um carro... um carrão americano... e me convidou pra sair com ele.
E eu fui, claro. Fomos até um lugar fora da cidade, onde tinha um precipício. Aí nós descemos do carro e
ficamos olhando a natureza. O Zé Maria adorava e tinha o maior respeito pela natureza. Ele era incapaz
de arrancar uma folha de uma árvore seca. Depois que a gente ficou horas perdidas olhando a natureza,
ele entrou no carro e pediu que eu ficasse do lado de fora, olhando o que ele ia fazer... Aí ele ligou o
carro, deu marcha à ré e foi em frente... Se atirou no abismo... com o carrão e tudo... E aí eu fiquei lá em
cima batendo palmas. (Bate palmas) eu achei lindo, lindo, lindo... (Muda o tom, coloquial, para Ernesto)
sabe como que eu conheci o Zé Maria? Hein? Um dia eu ia passando na rua e ele me chamou. Ele fez
“psiu” e eu virei. Ele sentiu que eu tinha boa vibração. Ele sacou que meu astral era altíssimo. Ele ia
muito com a minha cara. Ele até me botou um apelido: ele me chamava, gentilmente, de “Alzira Porra
Louca”. E eu adorava. Um dia ele me deu ácido...
A seguir, Alzira empunha a bandeira da atitude psicodélica, defendendo o uso do
LSD em uma fala ousada e desconcertante para os padrões da época em que o texto foi
escrito. Por meio de um hipotético êxtase lisérgico, Alzira vislumbra Ernesto em toda
sua decadência pequeno-burguesa. O passo seguinte é tentar convidá-lo a redimensionar
tais valores:
Esquece um pouco a família, a profissão, a aposentadoria...
Não podemos nos esquecer de que o ataque aos padrões de uma vida
convencional nunca deixou de freqüentar a preocupação de certos discursos artísticos -
o que, na década de 60, se intensificou, dada a profunda revisão de valores ocorrida nas
mais variadas escalas naqueles anos explosivos. No final da década, o tema estava
sendo explorado à exaustão pela cultura pop, sobretudo pela música popular, por conta
da expansão tropicalista. Na canção “Ele falava nisso todo dia”, por exemplo, Gilberto
Gil descreve a vida de um jovem e honesto trabalhador que não se cansa de comprar
pecúlios a fim de prover a segurança da família até ser atropelado, ironicamente, em
frente à companhia de seguros
138
. O tema também ocupou a agenda da geração
imediatamente posterior ao tropicalismo, na primeira metade dos anos 70, inspirando
canções de Raul Seixas, Belchior, Walter Franco, o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, o
conjunto Secos & Molhados e muitos outros.
Obstinada em virar Ernesto pelo avesso, Alzira lança mão de certas expressões
típicas do repertório da contracultura, querendo saber qual é o “doce mistério” do rapaz:
138
GIL, Gilberto. Ele falava nisso todo dia. In: _____. Gilberto Gil. Philips, 1968. LP.
113
Me conta um pouco a seu respeito, alguma coisa assim... que me surpreenda... Anda, me diz, eu
quero saber um pouco do seu mini-mistério
139
...
Ou ainda alertá-lo para as maravilhas do orientalismo:
Alzira: Que responsável o quê? Que mania mais bocó. Responsável... O senhor tem 25 anos e
quer ser responsável... eu que tenho 45 não sou... Esse negócio de responsabilidade é papo furado... o
senhor não tem cabeça? Então pensa um pouco.
Ernesto: A minha mulher não pensa assim...
Alzira: (...) Será que a Zulmira sabe que lá no Oriente, no país dos magadais, as pessoas nascem
caquéticas, rejuvenescem de ano para ano, e falecem quando chegam a criancinhas?
Disposta a usar todas as armas para tirá-lo do eixo, Alzira se propõe, inclusive, a
devassar a intimidade sexual de Ernesto:
Ah, que chato, eu espremo que espremo... e não sai nada do senhor. (Sacudindo-o). Anda, eu
quero que o senhor me conte uma coisinha só, uma maldadezinha só. O senhor já fodeu alguma galinha,
quando era pequeno?
Até que encerra esta sessão vertiginosa, fazendo uma vigorosa apologia da
juventude e da loucura:
O senhor não aprende mesmo. (Impaciente) Ah, eu só queria ter um programa de televisão num
horário nobre, só meu, aí o Ibope ia ver o que é Ibope. Eu queria ter um programa de televisão na minha
mão... Aí sim eu ia mostrar... a essa cidade inteira... o que é responsabilidade. (Para Ernesto) O senhor
sabe, em síntese, o que é responsabilidade? Hein? Não sabe. Pois eu vou dizer. (Sobe no sofá)
Responsabilidade é uma coisa que só as pessoas de menos de 20 anos devem ter. Depois dos 20, meu
filho... a gente devia mandar a responsabilidade é pras picas... Ah, eu só queria ter um programa de
televisão pra dizer isso pra todo mundo, pro mundo inteiro... Depois dos 20... a gente começa a perder
ponto... por causa dessa palavra tão mal entendida. Depois dos 20... a gente tem que fazer... sabe o quê?
Não sabe? Pois eu vou dizer. Depois dos 20 a gente tem é que enlouquecer. Enlouquecer a gente e os
outros... a cidade inteira... o mundo inteiro... Sabe o que é que nós somos? Eu, o senhor, e o resto da raça
humana? Uma merdinha assim, ó. Uma merdinha deste tamanho. Uma pobreza, uma insignificância só.
Um cu, entende?, um cu! (Suspirando, desce do sofá) E eu, tonta, só fui descobrir essa verdade depois dos
139
“Procure conhecer melhor o seu mini-mistério interno” defendia o mesmo Gilberto Gil em “Mini-
mistério”. In: COSTA, Gal. Le Gal. Philips, 1970. LP.
114
30. Mas também... o que eu já fiz pra recuperar o tempo perdido... Cada maldade, cada vingança, o senhor
não pode nem imaginar... (Pequena pausa) E sabe de quem é a culpa? (Ernesto não responde, Alzira
insiste.) E sabe de quem é a culpa? Do seu pai. (Volta as costas pra ele)
Ao atribuir a culpa de tudo a “Ernesto-pai”, Alzira está simbolicamente
confrontando-se com o mundo masculino e com todos os valores que Ernesto-filho, ali
bem a sua frente, encarna e defende. O vendedor não se dá conta do jogo e quer
desfazer “o engano” do nome. Mas a mulher revela outro embuste. O embate parece ter
chegado ao fim, e a Alzira somente compete acalmar Ernesto... para sempre... com seu
último ardil: às vezes o que parece um copo d’água com açúcar é, na verdade, um letal
coquetel de soda cáustica.
Mas a peça ainda não acabou, e um último estratagema é deslocado do palco
para a platéia. Diante do blecaute marcado na rubrica, o público aplaude o que acabou
de ver. É a deixa para que Alzira advirta a audiência:
Alguma coisa vai mal neste país. Vocês acabaram de aplaudir um crime. Vocês acabaram de
aplaudir o meu crime. E já que vocês aplaudiram o meu crime, eu vou dar o meu recital.
E, retomando sua verve de musa da contracultura, ou vedete tropicalista que
sabe muito bem que Hollywood não é aqui, Alzira arremata:
Sabe duma coisa, gente? Eu estou precisando de falar, de falar muito, muito, muito... Mas eu
tenho a impressão de que eu não vou falar é nada. Porque Europa não é América... Espanha não é
México...E eu não sou Eva Perón. Quero apenas deixar o meu muito obrigada. Mas muito obrigada
mesmo!
Mesmo que esteja em plena sintonia com o espírito da época que concebeu
notórias personagens femininas nas primeiras peças da geração de 69, Alzira Power
parece servir de antípoda a algumas delas. Ela não se deixa contaminar pelo instinto de
morte como fazem Ana e Teresa em As moças, de Isabel Câmara; Verônica em À flor
da pele, de Consuelo de Castro; ou ainda Cordélia Brasil. E embora apresente um perfil
muito próximo ao da Mariazinha de Fala baixo senão eu grito, de Leilah Assumpção
(uma funcionária pública solteirona, responsável por um trabalho de pouco prestígio),
Alzira se recusa a participar de qualquer fantasia, a não ser que seja ela própria a autora
do roteiro.
115
Tal personagem fascinante só poderia mesmo impressionar grande parte da
crítica, como se pode constatar neste artigo de Jefferson Del Rios publicado na Folha de
S. Paulo:
Alzira Power, uma mulher sensacional, está novamente em São Paulo, no Teatro Oficina. Ela
esteve aqui em 1969 e quase não foi percebida embora tenha impressionado, e muito, os que a viram.
Desbocada, agressiva e solitária, encara a rebeldia dos que se recusam a se enquadrar mansamente nos
parâmetros medíocres de uma vidinha classe média. Alzira Power é uma personagem criada pelo
dramaturgo Antonio Bivar que a dedicou aos insubmissos do mundo inteiro. Yolanda Cardoso, uma
excelente atriz, representa esta mulher excêntrica que, inesperadamente, recebe a visita de um vendedor
de automóveis.
Estas figuras de mentalidade opostas vivem um longo, absurdo e tragicômico confronto de idéias
e desejos. O espetáculo, dirigido por Antonio Abujamra, teve, no Rio, grande êxito de público e crítica. A
escritora Eneida, em uma de suas últimas críticas, escreveu: Duvido que haja neste país alguém que não
tenha entre seus conhecidos uma Alzira Power. Todo mundo deve ir ver a peça de Antonio Bivar.
Principalmente quem gosta de rir. Estou batendo palmas aqui, como bati no dia da estréia.
140
Alzira Power é, assim, a musa de toda uma geração teatral que, embora tenha
usufruído de muitos bons trabalhos durante um período exíguo, vê nela uma espécie de
epítome vivo do Brasil contracultural daqueles anos de chumbo.
Uma dramaturgia pop-anarquista
Como os demais autores da chamada geração de 69, Antonio Bivar imprime a
sua dramaturgia o signo da economia. As personagens aqui analisadas são um trio, um
quarteto disposto em forma de trio e uma dupla, respectivamente. Os cenários também
são parcimoniosos: três exíguos ambientes; dois domésticos, um metateatral. Quanto à
duração, as três peças não se estendem muito. Em dois breves atos, tudo está resolvido.
A rigor, é dos cenários projetados pelo autor que os textos extraem o máximo de
força expressiva. Recintos apertados e desconfortáveis obrigam o contato íntimo,
áspero, claustrofóbico. Para um admirador confesso de Sartre, a atmosfera à la Huis clos
que exala destas histórias não poderia ser mais apropriada.
140
apud BIVAR, op. cit., p. 119.
116
Entretanto, em tais “jaulas” não imperam somente ódio e amargor. As
personagens de Bivar, mesmo acuadas, buscam sempre uma saída pela via do grotesco,
do paródico ou do tragicômico. Este parece ser o projeto maior do autor: não ceder à
sisudez, ao desespero ou a juízos muito definitivos.
Em texto de apresentação das peças editadas recentemente, o jornalista Álvaro
Machado aponta que, desde o começo da carreira, Bivar firmou sua originalidade dentre
os representantes da nova dramaturgia “por ser o único a, espontaneamente, dar
importância maior ao humor, preferindo isso a render-se ao terror vigente”. O humor de
Bivar, continua Machado, “é, à primeira mordida, um humor quase infantil,
inconseqüente e, sem dúvida, simpático”, o que leva o jornalista a afirmar que o criador
de Alzira Power seria “um dos pais do besteirol, gênero que dominaria a cena teatral a
partir do final da década de 70”.
As criaturas de Antonio Bivar exploram a comicidade pela via do
desentendimento e da ruptura, oferecendo umas às outras uma total falta de pudor e um
inquietante amoralismo.
A triangulação com a platéia jamais também é esquecida. “Antonio Bivar tem a
qualidade de ser o detonador de um tipo de teatro contestador dos anos 60. Criou
entidades unissex, personagens distantes do realismo e que possibilitam um jogo
fascinante” declarou Fernanda Montenegro em entrevista na década passada
141
.
Acreditamos que muito deste jogo aludido pela atriz advém do fato de Bivar explorar
habilmente a ficcionalidade de suas personagens.
Enquanto Heloneida e Geni são personas essencialmente teatrais, vivendo a seu
modo os dilemas pirandellianos, Cordélia e Alzira são tratadas como estrelas de cinema.
Não, naturalmente, as divas das grandes produções de Hollywood. As criaturas de Bivar
assemelham-se mais às vedetes de filmes B - altivas, porém meio ridículas, a começar
por seus nomes provincianos em que reinam combinações exóticas de gosto duvidoso.
Aliás, a influência da sétima arte sobre o trabalho do autor é notória, como se pode
depreender do relato a seguir:
Adorava revistas, livros, música e cinema. Cinema em 16mm, uma vez por semana, no clube.
Devia ter uns nove anos quando vi o primeiro filme, de guerra, com um ator que fazia um soldado que
tinha estilo até ferido (com bala na perna) e entrincheirado num fosso lamacento. O filme era “A patrulha
141
Entrevista concedida a Arnaldo Jabor para o Folhetim do jornal Folha de S. Paulo em 22/9/1991.
117
de Bataan” e o ator, Lee Bowman. A seguir foram produções da Republic, da Metro, Tarzã, filmes noir e,
claro, Esther Williams em Technicolor, rumba e Xavier Cugat. (...) “Senso”, de Visconti, foi o primeiro
filme proibido para menores que assisti. Eu tinha 16 anos. Achei o filme forte. Foi uma revelação
142
.
Portanto, não seria exagero reafirmarmos que as três primeiras peças de Bivar
tratadas aqui são visivelmente marcadas por este meio-tom que se situa entre Visconti e
Esther Williams.
Acreditamos residir no deboche e na paródia o veio político de Antonio Bivar,
embora o autor nunca tenha assumido nenhuma das posições clássicas reservadas aos
artistas “contestadores” daqueles agitados anos 60.
A postura que o dramaturgo adotou em sua obra foi uma espécie de anarquia
pop, de contorno não tão definido como a militância marxista, por exemplo, mas nem
por isso menos inconformado com o estado de coisas que assombrava o país. Tanto é
que ao dramaturgo também couberam a censura e o exílio, ainda que por vontade
própria, como podemos verificar no depoimento a seguir:
Eu era, no final da década de 60, um jovem autor teatral muito criticado (porque pop-anarquista,
quando o politicamente correto era ser carrancudo-engajado), mas também um autor muito premiado
(crítica e público) e, por minhas peças serem consideradas “de uma amoralidade sem precedentes na
história da dramaturgia brasileira”, fui bastante perseguido pela censura da ditadura militar. De repente eu
era um autor proibido de ser encenado. Como vários artistas e intelectuais daquela geração, forçados ou
voluntariamente, também fui parar no exílio. O meu foi voluntário e escolhi o paraíso da contracultura, a
Inglaterra, como pied-à-terre.
143
Cordélia Brasil, Abre a janela... e Alzira Power são, assim, o lado B do teatro
brasileiro de fins da década de 60, testemunhos fundamentais para entendermos o
coquetel que as vanguardas, a indústria cultural e a contracultura prepararam na virada
dos anos 60 para a década de 70. E que foi deglutido de modo bastante original por
alguns dramaturgos brasileiros dispostos a transformar o paladar acerbo da época em
um sabor, ao menos, agridoce.
142
BIVAR, Antonio. Verdes vales do fim do mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 200-1.
143
BIVAR, op. cit., p. 7-8.
118
CAPÍTULO 3:
AS DUAS PRIMEIRAS PEÇAS DE JOSÉ VICENTE
119
Nota biográfica
José Vicente de Paula nasceu, em 1945, na fazenda Angola, localizada na
pequena cidade de Ventania - distrito de Alpinópolis - na zona rural do estado de Minas
Gerais. Assolados por dificuldades financeiras, seus pais, que eram lavradores pobres,
logo venderam a propriedade, passando a peregrinar, com os oito filhos que tiveram, por
algumas cidades mineiras como pequenos comerciantes.
Dividido entre a vocação religiosa e a preocupação de não acarretar gastos para a
família, o futuro dramaturgo viveu dos 11 aos 17 anos como interno em um seminário
de Guaxupé, alimentando um desejo de se ordenar padre. Entretanto, desiludido com a
vida religiosa, ele se mudou para Ribeirão Preto, onde trabalhou como representante
comercial de um laboratório farmacêutico, durante cerca de três anos. Na mesma
cidade, conheceu Antonio Bivar, que acabaria se tornando seu grande amigo. O
primeiro contato que se deu entre eles foi assim registrado pelo autor:
Antes é preciso que eu conte como conheci um amigo meu: Antonio Bivar. Ele era irmão de
Leopoldo Lima, o pintor, e Leopoldo me prometeu um dia: você vai conhecer meu irmão que mora no
Rio...
Nas férias Bivar apareceu... Era um jovem que conhecia a fundo a época que estávamos vivendo.
Citava Sartre, todos os existencialistas e era apaixonado pelos beatniks. Ele veio comigo até São Paulo e
me levou à casa de alguns amigos seus, que, como ele, viviam uma vida nômade. Eram beatniks
brasileiros. Viviam a dor do século e eram pessoas que abominavam a sociedade estabelecida. Andamos
juntos por São Paulo, Bivar e eu, depois ele voltou ao Rio, onde estudava teatro.
144
Em Ribeirão Preto também, José Vicente estudou Direito, mas abandonou o
curso aos 21 anos, ao ser aprovado em um concurso do Banco do Brasil - o que o levou
a mudar-se para São Paulo. No mesmo ano, ingressou no curso de Filosofia da USP,
abandonando-o alguns anos depois.
Estimulado por seu amigo Antonio Bivar a freqüentar a agitada cena teatral
carioca e paulista de fins da década de 60, José Vicente estreou como dramaturgo em
1968, com a peça Santidade. Entretanto, a obra acabou sendo proibida. Na ocasião, “o
Presidente Costa e Silva comenta na televisão a imoralidade de Santidade e distribui
144
VICENTE, José. Os reis da terra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 135-6.
120
pessoalmente exemplares da peça aos donos dos principais jornais do país, pedindo que
se manifestassem a respeito”.
145
No ano seguinte, surge sua segunda peça, O assalto, que logo se tornou um
grande sucesso de crítica e de público. Dirigida por Fauzi Arap, a obra estreou em 10 de
abril de 1969, no Teatro Ipanema do Rio de Janeiro, tendo no elenco Ivan de
Albuquerque e Rubens Corrêa. No dia 9 de agosto do mesmo ano, uma outra
montagem, igualmente dirigida por Arap, estréia em São Paulo, no Teatro Bela Vista,
com Francisco Cuoco e Paulo César Pereio como intérpretes. Em 1969 ainda, José
Vicente escreve seu terceiro texto, Os convalescentes, cujo título original foi
modificado para evitar problemas com a Censura - Che: paixão e morte de um apóstolo
da desordem - uma tentativa de falar sobre o terrorismo e a militância de esquerda sob
uma ótica sartriana, segundo o próprio autor.
Por O assalto, José Vicente foi agraciado com o Prêmio Molière de melhor autor
de 1969, viajando para a Europa no ano seguinte, onde travou contato direto com as
mais variadas manifestações da contracultura do período. Em Londres ele começou a
escrever, em parceria com Antonio Bivar, uma nova peça, intitulada Wight (uma alusão
à ilha inglesa que abrigou o último dos grandes festivais de música pop da Europa, em
1970), logo deixada de lado por ele, que resolve interromper sua estada na capital
inglesa e viajar para Paris:
No fundo eu gostava mais de Paris do que de Londres. Era mais quente e mais acolhedora e
tinha, como eu, uma base na razão e na consciência.
146
Sem o parceiro, Bivar desiste de continuar trabalhando no texto. Outro projeto
da dupla, igualmente abandonado, foi a participação no elenco do filme Laranja
mecânica, dirigido por Stanley Kubrick. Os dois foram aprovados nos testes de seleção,
mas acabaram desistindo da empreitada.
De volta ao Brasil, ele escreve para o Teatro Ipanema do Rio de Janeiro o que
talvez seja a maior experiência teatral da contracultura brasileira: o espetáculo Hoje é
dia de rock (1971), dirigida por Antonio Abujamra, com Rubens Corrêa à frente de um
numeroso elenco.
145
MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro:
Avenir Editora, 1979. p. 67.
146
VICENTE, op. cit., p. 179.
121
Entretanto, tal como ocorreu com o trabalho de Bivar, a dramaturgia de José
Vicente começou a perder força na década de 70. Suas peças posteriores a Hoje é dia de
rock permanecem ainda inéditas ou ganharam montagens de pouca repercussão. São
elas: A última peça, Ensaio selvagem, História geral das Índias (ou A chave das
Minas), A loja do ourives (escrita em parceria com Antonio Bivar), Diário íntimo, O
povo de Deus, Satã, A idade do ouro, Fim de século, Rock and roll e Virtuose.
O dramaturgo escreveu também um teledrama para a TV Cultura de São Paulo,
Nosferatu, e dois casos especiais para a TV Globo: Gângster e O zelador. Este último -
uma homenagem ao Harold Pinter de The caretaker - foi rebatizado pela emissora de A
feiticeira.
José Vicente vive hoje recluso em São Paulo, afastado do teatro, da imprensa e
dos amigos em geral. Muito de sua verve criativa parece ter se transformado em uma
intransigente militância cristã. No entanto, seu discurso tem perdido progressivamente a
conexão lógica e o senso de realidade. Aos poucos amigos o escritor vem segredando
que teria descoberto a cura da aids, por exemplo. Recentemente, uma entrevista
concedida à revista Bravo não foi publicada por conta dos inúmeros disparates e
desatinos proferidos pelo autor
147
.
Santidade
A primeira peça de José Vicente é um drama escrito em dois atos para três
personagens masculinos: Ivo, Arthur e Nicolau. A ação se passa no centro de São Paulo,
mais especificamente em um quarto de apartamento onde se vêem uma cama de casal
(com dois travesseiros), duas poltronas e uma mesa de canto sobre a qual repousa um
vaso de rosas. A rubrica inicial indica que “se supõem outras dependências, como sala,
banheiro, cozinha”. No local, vivem Ivo e Arthur, que formam um casal homossexual.
Ivo, o mais velho e mais estável financeiramente, é dono de uma butique no centro da
capital paulistana; já Arthur, um ex-seminarista, encarna um tipo folgazão que não tem
ocupação definida e faz programas com homens para sobreviver. Inesperadamente,
147
As informações veiculadas neste último parágrafo foram fornecidas diretamente a mim pelo crítico
Jefferson Del Rios, uma das poucas pessoas com quem José Vicente ainda mantém contato.
122
ambos recebem em um sábado à hora do almoço a visita de Nicolau, o irmão de Arthur
que está prestes a se ordenar padre.
Na primeira cena do primeiro ato, Ivo e Arthur acabaram de acordar e estão na
cama um pouco mal-humorados por terem perdido a hora: são duas e meia da tarde.
Eles começam a conversar sobre os mais variados assuntos, e sente-se certo tom de
cobrança de Ivo sobre Arthur pelo fato de este ser um bon vivant que vive à custa do
namorado. Tocam a campainha. Na cena seguinte, chega Nicolau, que é recebido por
Arthur, enquanto Ivo entra no banheiro. Nicolau anuncia seu desejo de ter uma séria
conversa com o irmão a respeito de continuar ou não na vida religiosa. Como Arthur
também viveu a experiência do seminário, Nicolau acredita que o irmão poderá ajudá-lo
em suas dúvidas. Entra Ivo que, após as apresentações de praxe, tenta deixar o visitante
à vontade, conduzindo-o ao banheiro para tomar um banho e relaxar um pouco. Na cena
três, Ivo e Arthur, sozinhos, discutem sobre a impertinência da visita de Nicolau, e
Arthur propõe a Ivo tentar seduzir o irmão, enquanto ele sai com o pretexto de comprar
algo para eles comerem. Na cena quatro, a tentativa de sedução fracassa, pois Nicolau
rejeita qualquer intimidade com Ivo. Este, desconcertado, sai para a butique, deixando
Nicolau sozinho. Na cena seguinte, volta Arthur, e Nicolau, então, se dá conta de que o
irmão é homossexual e de que Ivo é seu “namorado”. Nicolau e Arthur travam uma
densa conversa sobre a vida, que acaba abordando a sexualidade de um ponto de vista
existencial. Encerra-se o primeiro ato.
Nas três primeiras cenas do segundo ato, Arthur - vestido com uma batina dos
tempos do seminário e progressivamente embriagado - faz uma espécie de ajuste de
contas com o passado, refletindo sobre os valores cristãos, a dificuldade em levar uma
vida pequeno-burguesa e a condição homossexual. Nicolau, aos poucos, percebe que o
irmão é um sujeito angustiado, que passou a vida tentando alcançar certo estado extático
de “santidade”. Na cena quatro, Ivo entra em cena, vindo da rua, completamente
bêbado, depois de mais uma noitada. Arthur o coloca para dormir e, por um instante,
pensa em matar o amante, chegando a se aproximar dele com uma grande dose de
soníferos. Assim, ele e Nicolau poderiam mudar de vida, administrando a boutique de
Ivo. Nicolau repudia violentamente o gesto do irmão, mas este o acusa de ter sido seu
cúmplice, mesmo que somente “em intenção”. Arthur expulsa Nicolau do apartamento -
que sai com certa assunção de culpa - e deita-se na cama com Ivo.
O que distingue os dois primeiros trabalhos de José Vicente das peças dos
demais dramaturgos da geração de 69 é a alta carga autobiográfica que eles contêm.
123
Tanto Santidade quanto O assalto propõem algumas importantes reflexões acerca de
certos valores típicos da época em que foram escritas, aliando-as ao tom de testemunho
pessoal, parcialmente autobiográfico. Tal como José Vicente, o Arthur de Santidade
também é um ex-seminarista e ex-representante comercial de uma indústria
farmacêutica. Mas a peça ultrapassa esta experiência inicialmente confessional, tratando
da angústia existencial da personagem, vivida, sobretudo, pela ótica do
homossexualismo e da recusa aos padrões da vida burguesa. Arthur e Ivo são dois
sujeitos marginalizados que confrontam o status quo. Em texto de apresentação à
publicação de O assalto pela Revista de Teatro da SBAT, em 1970, José Vicente
inventaria a gênese de Santidade
148
e localiza na questão da marginalidade o cerne da
peça:
De volta a São Paulo, comecei a escrever um texto, e o diálogo fluía com uma certa facilidade.
Eu ia vendo engendrar naturalmente a tragédia que eu queria, despojada, despojada de literatura inútil,
seca, o contrário de tudo o que eu havia escrito. Nessa época eu prometia a uma amiga minha,
ingenuamente e com a arrogância de um adolescente, uma peça “terrível”, bem diferente dessas
agressõezinhas mornas e infantis que não conseguiam ferir ninguém. Eu tinha vontade de mostrar a
hipocrisia social de uma forma tão impiedosa que conseguisse ao menos a indignação das pessoas. Minha
peça tratava despudoradamente da vida conjugal de dois homossexuais, que não pediam desculpas a
ninguém por serem desprezíveis. Aliás, aproveitavam-se do seu marginalismo para zombarem das
pessoas “normais”. Um deles era um místico exacerbado, degenerado em prostituto, e que acabava por
fazer uma profissão de fé nessa prostituição, acreditando que ela tinha lhe revelado a face de Deus. O
texto tinha uma limitação “naturalista”, mas mesmo assim conseguiu a indignação que, aliás, eu já tinha
deixado pra trás.
149
148
O autor ficou profundamente impactado ao assistir a uma montagem de As criadas, de Jean Genet,
dirigida por Martim Gonçalves, no Rio de Janeiro, em 1966, e sobre esta experiência escreveu: “...
assistindo a um espetáculo que me tocou brutalmente, acabei por descobrir o poder de comunicação que
esse tipo de representação viva pode dar, a ponto de transformar as pessoas no seu íntimo. Era aquilo
mesmo que eu queria descobrir: uma representação cruel, encarnada, livre e eficaz, do cotidiano que nos
leva à morte. O que me tocou mais foi justamente o despojamento que havia aí. As criaturas, no palco, me
pareciam frágeis e diferentes de suas próprias palavras. Respiravam, criavam gestos, mas era só uma
representação. O que contava era o clima.” VICENTE, José. Teatro, representação litúrgica. In:
REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n 375, maio/jun., 1970. p. 41.
149
Ibid., p. 41-2.
124
Um dos eixos do texto está organizado em relação à crítica ao mundo do
trabalho burguês (como ocorre também com Cordélia Brasil, Alzira Power e O assalto),
que não só expõe Arthur à “ameaça” de uma vida ajustada e burocrática, mas também
revela a indolência e a ociosidade do personagem. Em algumas peças da geração de 69
o conflito entre duas personagens se dá por conta da seguinte situação básica: um dos
indivíduos sempre é mais adaptado ao sistema ou de certo modo resignado a ele,
enquanto o outro é um outsider. Em Santidade, Ivo é o mais “ajustado”, mantendo com
Arthur o mesmo tipo de irônica impaciência que Cordélia devota a Leônidas, por
exemplo, em relação à pouca disposição que o parceiro tem para procurar emprego:
Ivo: ... Eu também tive um sonho com você, sabia? Te entreguei na Delegacia de Vagabundagem
e te arrumaram um emprego. Te botaram num banco, trabalhando dez horas por dia, com o salário
mínimo. (...) Arthur, eu estive pensando... Você podia mesmo arrumar um emprego num banco.
Arthur: Nem pensar!
Ivo: Eu tenho um amigo que pode te arrumar. Sério mesmo. É pro teu bem.
Arthur: Que é, vai me chutar?
Arthur tem verdadeira ojeriza pelo mundo do trabalho convencional, opondo a
ele uma visão desregrada da vida, ligada à contravenção e à imoralidade:
Arthur: Ah, vocês arrumam um emprego pra mim, é? Que tipo de emprego?
Nicolau: Qualquer coisa que você goste de fazer. Banco, escritório, qualquer coisa...
Arthur: Eu não sei trabalhar, Nicolau. Eu sou incompetente pra trabalho.
Nicolau: Alguma coisa você sabe fazer.
Arthur: O quê? Eu sei fumar maconha, tomar picada, roubar... o que que você acha mais
indicado?
O medo de Arthur - plenamente sintonizado com as preocupações de boa parcela
da juventude dos anos 50 e 60 - é ceder aos apelos de uma “vidinha” simples que anule
qualquer possibilidade de transgressão e aventura. A certa altura, Arthur descreve a
125
categoria de trabalhadores à qual ele pertenceu durante o tempo em que esteve no
laboratório farmacêutico, depois de ter largado o seminário, e da qual ele não quer mais
fazer parte:
Eu conheci essa raça que compra televisão a prestações mensais, que vai à escola de noite,
compra Volks em consórcio, vai pra Santos no fim de semana com a família... Eu conheço essa raça que
assina ponto na hora certa e sai do serviço na hora certa...
Tal como se dá com Leônidas, a sensibilidade de Arthur está em desacordo com
os critérios de competitividade e produtividade típicas das sociedades capitalistas,
apontando para uma esfera mais romântica de contato com o mundo:
Arthur: Às vezes, me dá vontade de ficar só assim, na cama, sem fazer nada, só pensando,
dormindo, pensando, dormindo sem ter que fazer nada...
Ivo: Não vai me dizer que você agora vai entrar nessa onda de beatnik.
Arthur (ri): Beatnik? Você não sabe o que é isso.
Ivo: Não sei? Sei, sim senhor, sei muito bem! Essa história aí de cabelo comprido, protesto, ficar
sem tomar banho... e sei lá o que mais, eu sei muito bem o que essa gente ta querendo.
Por outro lado, assim como Cordélia, Ivo é mais realista e vê os novos tempos
com uma ácida desconfiança:
Ivo: ... Eu devia ter montado uma loja de mulher, de mulher já de uma vez, cansei dessa variação
de cores pra moda masculina! Com essa história de ácido lisérgico, vão acabar convertendo o resto de
homens que ainda resta num bando de mocinhas, sabia?
Embora tenha sido escrita antes da viagem do autor para Londres, Paris e Nova
York - que o fez entrar em contato direto com as vanguardas internacionais que ele já
admirava no Brasil -, a peça procura retratar um modo de vida exótico para certos
padrões tradicionais, cuja pesquisa José Vicente procurou intensificar no Primeiro
Mundo, conforma declara Antonio Bivar:
Para um jovem autor teatral, acostumado a descobrir personagens nas pessoas, os que povoavam
a cidade eram irresistíveis. Na atmosfera mesclavam-se, em tons puxados para a aquarela e o pastel, o
126
clássico e o pirado, civilização e decadência, virtude e vício, o antigo e a vanguarda, a ordem em
progresso e a anarquia em evolução. De Shakespeare a Joe Orton, o texto era basicamente inglês; mas
sobrava espaço para o brilho sonoro da fonética internacional. Dos brasileiros, ninguém se sentia culpado
do Brasil estar lá e eles cá, gozando a liberdade nessa espécie de exílio voluntário. José Vicente fazia
pesquisas no universo do exquisite enquanto eu me encantava com tudo que me parecesse peculiar.
150
Outra marca original da peça - e que talvez tenha constituído a grande razão de
sua interdição à época - é o registro naturalista, de certo tom documental, acerca dos
costumes homossexuais. (Vale notar que a obra, a rigor, não analisa a condição sexual
das personagens de modo moral ou mesmo psíquico, preferindo deslocar o eixo da
sexualidade para uma discussão de caráter existencial.) O texto procura registrar de
maneira muito viva a cena gay paulistana de fins da década de 60 e o linguajar
homossexual típico da época. Arthur e Ivo, por exemplo, travam um anedótico diálogo
em tom coloquial a respeito de uma paquera:
Arthur: Tive uma conversa ontem à noite com aquela bicha do imposto de renda.
Ivo: Eu vi, pensa que eu não vi?
Arthur: Queria saber se eu ainda era teu caso.
Ivo: E você? Garanto que já foi abrindo as perninhas...
Arthur: Ela queria me ganhar pra amiga dela, aquela bicha americana que veio com a igreja dos
mórmons.
Ivo: Querendo dar uma de Hello-Dolly? Audácia da imperialista!
Já a conversa que Arthur tem com o irmão um pouco adiante carrega certas
marcas didáticas dispostas a introduzir um personagem ingênuo e inexperiente como o
seminarista nos meandros da vida gay:
Nicolau: Ele é hermafrodita?
Arthur: Hermafrodita? Que palavra é essa?
150
Ibid.
127
Nicolau: Ele é invertido?
Arthur: Bicha. Ele é bicha. Viado, pederasta, homossexual, galinha, paca, chana. O nome
genérico pra tudo isso é bicha.
Nicolau (pausa): Você... você tem alguma ligação com ele?
Arthur: Tenho, sim. Eu trepo com ele, com a Ivone, onde é que ela foi?
Nicolau: Que Ivone?
Arthur: A chana, dona da casa, a flor do pecado, onde é que ela foi?
Nicolau: Ele disse qualquer coisa de... galeria...
Arthur: Ah, foi caçar! Hoje é sábado, dia da caça coletiva. Hoje, na Avenida Ipiranga, São Luís,
Galeria Metrópole, elas todas estão em bando. Hoje é sábado, muita cara nova, rapazinhos dos subúrbios.
Os “entendidos” de veludo desfilando na passarela... No inverno fica mais complicado, mas a turminha
mais insistente tá cagando pro frio. Eu dei uma passadinha por lá e já ta começando a ferver... Você não
quer sair pra caçar, Nicolau?
A homossexualidade acaba por articular outras visadas do texto. O problema da
dolorosa perda da juventude, tal como em Cordélia Brasil, acentua o conflito entre o
par central e é matizado pela carga dramática de que se reveste por conta de atingir em
cheio a vaidade de personagens propriamente hedonistas:
Ivo: Você tem vinte e poucos anos. Você sabe muito bem que daqui mais algum tempo ninguém
vai te querer mais, é lógico.
[...]
Arthur: A sua cara me dá... nojo. Você está no fim. Qualquer pessoa te dá quarenta e cinco anos,
quarenta e oito...
Ivo: Quarenta e oito? Você está brincando, eu sei quando você quer me destruir...
Arthur: Então, olhe num espelho. Você está cheio de barrancos, enrugado, barrigudo, cheio de
pelancas.
Ivo: Eu sei que não é verdade.
128
Plenamente sintonizada com seu tempo, a peça ainda faz alusão a dois assuntos
emblemáticos da época em que foi escrita: a psicanálise e a militância política,
respectivamente. Entretanto, as menções são breves e não trazem muitas conseqüências
ao desenrolar da trama. Nicolau recomenda que Arthur procure um psicanalista - uma
figura que virou moda, segundo a resposta de Arthur:
Nicolau: Eu acho que você devia procurar um psicanalista. Ia ser muito bom pra você. Eu podia
te arrumar isso...
Ivo: Então, você acha que eu sou... doente...!
Nicolau: Você é. Você é sim! Você tem alguma coisa contra a psicanálise?
Arthur: A bicha aí não tem. Eu escuto esse papo o dia inteiro. “Você precisa de uma análise,
Arthur!” “Você é traumatizado!” Porra! São Paulo inteiro é analisado! O Ocidente inteiro é.
Já a militância política é focalizada como uma sub-atividade da atuação religiosa
de Nicolau:
Arthur: ... O que é que tem nessa pasta?
Nicolau: Não é nada, não. Uns livros... Sociologia, economia. Você se interessa por política?
Arthur: Mais ou menos.
Enquanto Arthur e Ivo se mostram despolitizados, Nicolau parece admirar a
postura política da Igreja progressista:
Tivemos um encontro pra fazer um estudo sobre “o pensamento social da Igreja”, entre padres e
seminaristas maiores. Durou uma semana mais ou menos. Visitamos fábricas, vilas, tivemos contato com
estudantes...
Entretanto, seu engajamento político se reduz à opção pelo cristianismo:
Nicolau: ... eu dou aulas, faço traduções, um pouco de política também... faço um punhado de
coisas. [...] Os padres agora não se ordenam como antigamente, sem nenhum contato com o mundo onde
129
vão trabalhar. O cristianismo está inserido no mundo atual e pretende estar junto com o homem. Como de
fato é a mensagem do Cristo.
As referências à militância política típica da esquerda de 1968 acabam aí, na
questão cristã, e é esta que, a rigor, prepara a grande discussão existencial que o texto
empreende de modo muito original. Não fosse pela força de um discurso de intensa
prospecção poética em franco diálogo com os valores dos anos 60, a peça reduzir-se-ia a
um relato autobiográfico calcado, principalmente, no questionamento da vida religiosa.
Entretanto, o dramaturgo amplia o leque de sua investigação. Arthur - em certa medida,
o alter-ego de José Vicente - é um jovem inadaptado que sente dramaticamente a
intensidade de uma experiência de descoberta interior. Dois fatores impelem
inicialmente o jovem em sua busca: o provincianismo e a homossexualidade. O
primeiro deles é um tópico importante que acompanha toda a trajetória de um
dramaturgo, que, por mais cosmopolita que quisesse parecer naqueles anos de intensas
trocas culturais, jamais deixou de se desligar da terra mineira que o gerou e moldou seu
espírito, conforme atesta este depoimento de Antonio Bivar, a respeito da estada
européia do amigo:
Quanto aos visitantes, José Vicente não se mostrou tão fascinado quanto eu pelos ingleses,
sentindo mais afinidades com os latinos e, em especial, com os brasileiros. Mais arraigado que eu, José
falava muito de sua Minas, da magia de seu rincão natal. Não estava disposto a mergulhar fundo no Velho
Continente porque sabia que a Europa já era considerada morta e que sua passagem por ali seria breve.
Sentia-se, mesmo, era ligado ao Brasil e ao teatro brasileiro.
151
Assim, uma metrópole como São Paulo surge no discurso de Arthur como ícone
da incomunicabilidade humana:
Arthur: Aqui em São Paulo você é surdo e todos são surdos. É num mundo sem sonhos que você
vai morrendo sozinho e vê os outros morrendo sozinhos. Em cada minuto. Todo dia repetindo a mesma
coisa. Em São Paulo o que você ouve, o que você vê e o que você diz não tem nenhuma repercussão.
Aqui você vive sem repercussão e morre sem repercussão. E a palavra também não denuncia, não fere,
não mata. E os atos também não têm repercussão, os atos também são surdos. Aqui é o inferno, Nicolau.
Porque é que você não vai embora?
151
Ibid.
130
Já a condição homossexual é encarada como um bastião que, ao mesmo tempo,
segrega o indivíduo e marca sua singularidade:
Arthur: É verdade, isso é verdade. Essa é a grande magia inicial, quando a gente sabe que está
violentando tudo o que é chamado de natural. A gente sabe que o negócio tem que ser escondido e fica
então um mistério em torno da coisa... A gente sabe depois que todo mundo nos despreza e ninguém é
capaz de andar naturalmente ao nosso lado, na rua. Quando a gente chega em qualquer lugar, a presença
da gente é sentida imediatamente. Essa espécie de maldição é extremamente bela, você aprende a ver o
que os outros não são capazes de ver. O desprezo deles é uma espécie de... Graças, é isso, graça! Só é
possível amar a partir da crueldade. E quando você chega não é mais você que chega, a sua sombra vem
antes e te denuncia.
Ao lado do provincianismo e da homossexualidade, há um outro elemento que
confronta a personagem com suas questões mais íntimas: a religiosidade. Desde muito
cedo, o jovem ex-seminarista do interior de Minas Gerais procura encontrar respostas
para suas angústias na dimensão sagrada da vida:
Arthur: Eu recordava a vida que eu tinha vivido no mundo... Eu recordava o calor de gente - o
calor de gente que eu ainda não tinha vivido... Eu recordava... eu recordava, Nicolau, e eu sentia...
saudade. Eu estava sufocado de tristeza e de saudade. Eu chorava sozinho naqueles... corredores vazios,
no meio daquelas coisas abandonadas... Depois eu corria pra sacada e olhava muito tempo os campos lá
longe... Minas! Minas por todos os lados... Em agosto estava tudo... asfixiado! De fumaça! Os campos
estavam todos queimados e havia tanta fumaça! Fazia muito calor, o calor de agosto e o calor que vinha
dos campos queimando! Estava tudo silencioso, seco e... sufocante! E eu estava sufocado de tristeza! O
sol era enorme e vermelho em cima dos campos queimando... E esse calor que sufoca, esse calor que
sufoca, esse calor que sufoca! Não tinha chuva nem ar! Nem chuva nem ar! Mas como era bonito assim
mesmo! Horrível assim como era bonito! Eu não conversava com Deus, eu estava sufocando sozinho, eu
estava sendo asfixiado sozinho! Eu via da sacada os outros seminaristas andando lá fora... No jardinzinho
tinha uns que ficavam andando na grama seca... e eu via aqueles seres... dispersos! Como figuras sem
corpo, eram como figuras sem corpo, em silêncio, se locomovendo... Eu não falava com Deus. Eu já tinha
possuído Deus. Eu tinha possuído Deus, pra sempre, eu não podia mais tirar Deus de mim, nunca mais!
Eu nunca mais podia tirar Deus de mim, apagar Deus de mim!
É a busca incessante da religiosidade que faz Arthur estabelecer um ousado
(sobretudo para a época) paralelismo entre o ritual da Santa Missa e os ritos sexuais que
envolvem a sedução na vida gay. Por meio de uma longa conversa com Nicolau, o ex-
seminarista une a sagrada liturgia à “sagrada natureza”. A reação de Nicolau, como se
poderia esperar, advém basicamente de uma postura de ordem moral:
131
Você me dá nojo! Você, o mundo em que você vive! Ah, como tudo isso é nojento, doentio,
podre e sufocante! Podre e sufocante!
O que se segue é um contundente embate entre os dois irmãos. Neste momento,
a peça poderia constituir somente uma espécie de libelo a favor da homossexualidade ou
um manifesto contra a repressão ao corpo, tão em voga na época. Contudo, o que
Santidade propõe é a exploração da sexualidade pelo viés existencial:
Arthur: A tua inocência me faz mal. É a tua inocência que me faz mal. Essa tua pureza me faz
mal, e faz mal a você e faz mal a mim. Eu quero te ver purificado dela.
[...]
Nicolau: ... Eu ainda tenho medo de possuir o meu corpo, acho que é isso... Eu ainda tenho medo
dele, eu quis viver como se eu existisse e ele não, não sei porque me dirigi contra o meu corpo... mas
agora eu estou entendendo isso... Eu sei que existe alguma coisa rompendo dentro de mim. (pausa) Por
que que você fez isso, Arthur?
O estado de “santificação” ao qual Arthur sempre aspirou (“Eu sempre quis ser
santo, desde o começo... Quando eu era criança, eu saía na rua e pensava que eu era um
santo...”) fora realçado na infância pela pobreza e privação:
Arthur: ... Porque o Cristo representava estudo, comida, roupa e honestidade! Ele significava isso
e nós aprendemos a acreditar nele por causa disso! E nós éramos pagos! Nós éramos pagos pra ser santos!
Pagos pra ficar lá e sermos santos, de qualquer jeito!
E também por certa competitividade com o irmão mais moço que só agora vem à
tona:
Arthur (de batina): ... Você era santo e pobre. [...] Vou te contar uma coisa: eu tinha inveja de
você porque você era santo...
No entanto, as malhas da vida adulta apresentam Arthur ao mundo da
imoralidade:
Um dia eu peguei um pacote de amostras de um produto revolucionário, um produto com cinco
anos de pesquisa... (Ele gira a rosa na mão e a contempla) Eu examinei bem aquele milagre... E aí eu
peguei o milagre e esmaguei o milagre com as mãos! (Ele esmaga a rosa) E joguei o milagre no chão e aí
pisei em cima do milagre! (Ele joga a rosa e pisa nela) Eu esmaguei o milagre debaixo dos pés. Eu
132
esmaguei! Eu tinha tomado horror dos milagres! E eu tomei horror de todos os milagres e eu quero ver
quem vai me recuperar desse horror de todos os milagres! Eu quero ver quem é que vai me curar desse
horror de todos os milagres, quero ver quem é que vai me curar! (Pausa) Eu estou sozinho, eu sei que
estou sozinho... Eu fiquei sozinho depois que eu vendi as amostras que eu tinha juntado e depois que eu
roubei o dinheiro das duplicatas da firma que eu recebi da Santa Casa de Misericórdia.
- o que desencadeia um ajuste de contas com seu passado:
Quando eu fui expulso duma venda porque eu roubava dinheiro na gaveta, você lembra,
Nicolau? O português dono da venda foi me levar em casa e aí a mamãe me bateu na frente dele e ficou
sem conversar comigo... E quando eu ia nas construções ou no banheiro ou atrás da igreja com os
meninos da rua, eu depois chorava em casa porque eu descobria que não era santo. Aí, eu pensei que no
seminário eu ia ser santo... Eu pensava que a santidade era o bem... Mas eu não era capaz de fazer o bem!
Eu passei o seminário inteirinho tentando fazer o bem! De noite alguns demônios ficavam andando na
minha cama e por dentro do meu pijama azul... mas eu mandava eles embora! Eu via o armário de doces
dos meninos que recebiam doces de casa, eu via os doces mas eu não roubava! Eu ficava sozinho perto do
armário, com vontade de comer doces, mas eu não roubava! Eu tinha medo do mal!
Depois de transgredir as regras básicas do mundo burguês voltadas ao trabalho, à
moral e à sexualidade e se auto-expulsar dele, Arthur reconhece a impossibilidade da
santificação:
Aí eu vi que Deus é hediondo! O Deus que me perseguia em silêncio como se eu fosse um filho
que não queria nascer... O Deus que eu tinha que comer e viver e respirar no vômito! Deus é hediondo! E
eu era hediondo como Deus, sentado lá no banco sozinho...
É o momento em que ele tenta arrastar Nicolau para o mesmo caminho, ao
propor ao irmão a cumplicidade no assassinato de Ivo, o que acaba não ocorrendo. Após
o ínfimo instante de vacilação do futuro padre, Arthur sentencia para si mesmo a vitória
da cruzada que a personagem entende, idiossincraticamente, como “santificadora”:
“Consumatum est”. O deus da juventude está morto.
José Vicente escreveu Santidade certamente para fazer um acerto de contas com
parte da infância e da juventude vivida no seminário. A relação atormentada do autor
com a religiosidade cristã é notória em toda sua obra, e aqui ganha contornos bem
definidos. Há uma passagem na biografia de Antonio Bivar que muito bem representa a
133
“prontidão” cristã do dramaturgo, ressaltada na visita que este fez ao autor de Cordélia
Brasil em Londres, no início da década de 70:
Depois do café iniciamos a decoração dos dois ambientes. Zé pendurou um enorme rosário de
madeira, que trouxera de sua casa no Brasil, na parede junto à cabeceira de sua cama, e eu colei com
durex na parede ao lado da minha umas figuras do underground como, por exemplo, um pôster da revista
OZ com Candy Darling toda nua e com aquele seu pênis enorme, bizarra. José, com um sorriso entre
cínico e cúmplice, disse que assim ficavam patentes as nossas diferenças.
152
Entretanto, para compreender melhor a obra de José Vicente é imprescindível a
leitura da biografia que o autor publicou em 1984, intitulada Os reis da terra. Nela, os
principais tópicos desenvolvidos em suas peças ganham contornos pessoais muito
elucidativos. A respeito da libertinagem de Ivo e Arthur, por exemplo, convém
recuperar em Os reis da terra o momento em que o dramaturgo trata de sua iniciação
mundana:
Abandonei minha família e essas histórias todas e decidi sair pela noite de São Paulo. Conheci
Ana Maria, de vida livre, que me levou até seu apartamento num edifício no centro da cidade. Ana Maria
tirou minha roupa, me levou para a cama e fez um amor intenso comigo, após o qual eu compreendi que
havia cometido o primeiro pecado da minha vida. Mas não quis me confessar. Eu abandonava assim a
Igreja e seus valores e entrava para o mundo da carne. Fiz a opção com muita coragem e assumi que
agora eu seria um libertino, como todas as pessoas que eu conhecia em São Paulo eram. Preciso
acrescentar que o pensamento de esquerda no Brasil nessa época já pregava a liberação de todos os tabus
relacionados com o problema sexual e condenava terminantemente a moral dos antigos. Um pouco
porque era moda e um pouco porque minha fé não me levava mais a nada, assumi o mundo do pecado,
condenado pela Igreja. Eu deixava de ser aquele menino mágico e puro de Ventania e dos campos de
Minas e aquele adolescente real do seminário para ser um homem como eles eram. Qualquer coisa doeu
em mim quando fiz essa opção, algo como a pureza que se mancha para sempre, mas eu queria mergulhar
agora no Inferno e ver cumprida em mim a profecia do Satã no Egito, que previra em mim a queda da
minha casa.
Entreguei-me com Ana Maria e com outras que apareceram à luxúria, à pornografia mais aberta
e a tudo que fazia as delícias do mundo. Li todos os livros proibidos até então por minha moral e deixei-
me vencer pelo prazer do mundo. Tinha me tornado como um deles
153
.
Entretanto, como já dito, Santidade rompe os limites da confissão biográfica,
tentando estabelecer um proveitoso diálogo da dramaturgia brasileira com algumas
152
BIVAR, Antonio. Verdes vales do fim do mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 41.
153
VICENTE, José. Os reis da terra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 148.
134
experiências internacionais inovadoras, sobretudo os autores ingleses conhecidos como
angry young man, Harold Pinter e Joe Osborne, a quem José Vicente credita certas
influências. A linguagem naturalista, coloquial, bruta, repleta de palavrões e marcas de
oralidade (que já vinha distinguindo a dramaturgia de Plínio Marcos) é usada na peça
como veículo para devassar os sentimentos mais recônditos e difusos, que tentam ao
mesmo revelar o mistério da alma humana em busca pelo sublime. Em entrevista
concedida a O Estado de S. Paulo, em 1997, José Vicente trata desta oscilação do texto
entre a indagação do sagrado (como ocorre com a dramaturgia de Jean Genet) e a
investigação a respeito da crueza das relações humanas, como abordado por Pinter e
Osborne:
Estado - O crítico Anatol Rosenfeld, na época, defendeu a sua peça contra os ataques que ela
recebeu, afirmando que era um modelo de pureza. Você concorda ou não vê dessa forma a relação entre
os principais personagens?
José Vicente - Eu acho que não modificaria quase nada na peça, a não ser formalmente. Na
época, era muito influenciado pelos angry men ingleses, Harold Pinter e John Osborne. Aqui, o angry
man era Plínio Marcos. Era moda usar o palavrão, a linguagem rude. Hoje eu teria um pouco de vergonha
de usar a gíria, aquela coisa toda, mas acho que tomaria a mesma posição.
Estado - Anatol lembrava que a peça ficava entre Bernanos e Genet, que tinha algo de
essencialmente religioso. Ele não concordava que ela fosse tributária dos angry young men ingleses ou
feita para chocar. Para Rosenfeld, ela era confessional, autobiográfica.
José Vicente - Autobiográfica porque fui seminarista durante sete anos. Foi a minha visão da
Igreja Católica, a minha visão de seminarista. A peça enfoca o tema da santidade.
Estado - E o que é ser santo para você?
José Vicente - Eu sou cristão, não sou católico. Tenho uma posição cristã diante da vida,
conheço os escritores cristãos como Bernanos. Ser santo é renunciar ao mundo. É uma renúncia à
sociedade, à vida social.
Estado - Não é a posição de Bernanos.
135
José Vicente - Bernanos era pessimista. Eu sou otimista. Acho que você pode ser feliz sem se
negar a si mesmo, mas não participar da sociedade, porque ela é corrompida e corrompe.
154
Santidade é uma espécie de Cordélia Brasil às avessas. Lidando com os temas
da sexualidade, da moral do corpo, da recusa ao mundo do trabalho e da afronta aos
valores burgueses, ela também propõe uma espécie de triângulo afetivo, familiar,
amoroso, erótico, mas o faz sem a chave da blague, da ironia ou do patético. O percurso
individual de seu autor o leva a recusar no texto qualquer traço de humor ou comicidade
na condução da situação central. Santidade é a Cordélia Brasil reverberada por uma alta
carga de intensidade dramática, que a persecução obstinada do sagrado por parte do
autor só faz ampliar.
O assalto
A segunda peça de José Vicente é também um drama em dois atos - escrito,
desta vez, para dois personagens: Vitor e Hugo. Ambos trabalham em uma agência
bancária, mas há entre eles uma profunda diferença social. Vitor é um funcionário da
contabilidade, assim caracterizado pelo autor: “N. 5.925.800 de uma organização
bancária, neurótico, estranho, fuma muito, pinga colírio no olho nervosamente, como se
duma hora para outra fosse ficar cego. Tem 25 anos, é branco, sem vitalidade, frágil,
está à beira da “loucura, da loucura que leva ao hospício”. Já Hugo trabalha no setor de
limpeza e é “exuberante, mas não vulgar, usa um macacão sujo e fedido, suado, aberto
no peito e tamancos também sujos. O varredor ao contrário de Vitor possui os sinais
espontâneos da presença erótica da vida”.
O cenário é uma sala do banco, desarrumada e suja, por conta do fim do
expediente, do qual devem fazer parte “um pequeno despertador que fica funcionando o
tempo todo e uma dessas cadeiras de escritório gasta, enorme, que deve encerrar a
eloqüência de um trono”. Como complemento, vê-se uma mesa de escritório, “fria, mas
grande, que vai, no final, desempenhar o ofício mórbido de câmara mortuária”. A
rubrica do autor determina também que “o cenário pode ser o mais simples possível,
154
Entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho para o Caderno 2 de O Estado de S. Paulo de
15/3/1997. p. D-1, D-4 e D-5.
136
isto é, ainda que exuberante, sempre dentro dum tom mais expressionista e menos
comprometido com a realidade”.
No início do primeiro ato (nomeado como “assalto”, pelo autor), Hugo está se
preparando para começar a limpeza noturna, mas a presença de Vitor, que ainda não foi
embora, o constrange um pouco. Após trancar a porta e começar a jogar cinzas de
cigarro no chão, atrapalhando visivelmente o trabalho do varredor, Vitor é abordado por
Hugo, que quer saber se ele ficará por lá durante muito tempo. Inicia-se uma conversa
entre os dois em tom bastante protocolar. Aos poucos, no entanto, Vitor começa a
demonstrar certo interesse pela figura do faxineiro, querendo saber detalhes de sua vida.
Hugo se aflige um pouco com a conversa por estar em horário de trabalho, mas o outro
parece querer “desabafar” com alguém. Ficamos sabendo, então, que Vitor está em crise
com seu trabalho no banco. Ao perceber que a porta está trancada, Hugo se exalta, mas
é logo acalmado por Vitor, que lhe oferece uma boa quantia de dinheiro para fumar um
cigarro com ele e ouvir as histórias que tem para contar. Começa um sinuoso jogo de
sedução de Vitor sobre o faxineiro, que reage, ora com reprovação, ora com certo
fascínio pelo bancário. A crise de Vitor se expande para uma crítica à vida burguesa em
geral, da qual o trabalho no banco é o grande representante. O bancário começa a
pressionar o varredor para se abrir também e contar certas intimidades. Hugo fala da
dureza de manter esposa e filhos com o salário que recebe e acaba revelando fazer
alguns programas homossexuais como forma extra de ganhar dinheiro. Vitor segreda ao
faxineiro que há muito este já o interessava. A atração que ele sente pelo outro, então,
aumenta. Ele propõe trocar de roupa com o companheiro, e o ato termina com uma cena
que sugere de modo estilizado uma relação sexual entre os dois.
O segundo “assalto” começa, e ambos ainda estão com as roupas trocadas. Há
um clima de silêncio e uma ponta de hostilidade no ar. Hugo declara que já conhecia
Vitor de nome, pois os colegas o teriam advertido de que um dos bancários o vivia
seguindo. Vitor, então, diz ao faxineiro ter se demitido do banco naquela tarde. Hugo
pretende ir embora e para isso quer levar o dinheiro que Vitor lhe prometeu, mas este,
sem pressa alguma, continua querendo “esticar a conversa”. Há um embate entre eles, e
Vitor expulsa Hugo da sala, que, no entanto, não sai. O confronto físico entre os dois
ganha uma dimensão maior. Na verdade, há dois modos de vida em desacordo: Hugo
representa a subserviência e o comodismo, enquanto Vitor encarna a rebeldia e a
insubordinação. Diante da passividade de Hugo, Vitor entra em surto delirante e anuncia
que ficou lá este tempo todo para concretizar um assalto ao banco. Sistematicamente,
137
Vitor vai retirando pacotes e pacotes de dinheiro das gavetas e dos armários, enquanto
profere contundentes agressões verbais ao faxineiro. Muito assustado, Hugo aciona o
alarme do banco e foge pela platéia anunciando aos gritos que a agência está sofrendo
um assalto. Sozinho no palco, Vitor entrega-se à loucura até ser metralhado pela polícia,
que é chamada ao local.
Assim como Santidade, O assalto também se baseia em uma situação
parcialmente autobiográfica, uma vez que José Vicente transferiu-se de Ribeirão Preto
para São Paulo, nos anos 60, por ter sido aprovado em um concurso do Banco do Brasil,
onde entrou em contato com o ritmo burocrático e “absurdo” de um trabalho que o
marcou profundamente, conforme se pode depreender deste depoimento do autor:
Trabalhei três anos para o laboratório [farmacêutico]. No final consegui passar num concurso do
Banco do Brasil e abandonei então a deliciosa profissão de vendedor. Eu digo deliciosa porque no final
das contas eu já havia me acostumado com o on the road dela e transformara o que é maçante em
agradável.
Comecei a trabalhar no Banco do Brasil, cumprindo um horário rígido. Ali era Kafka. Tinha a
atmosfera de um livro de Kafka.
155
O primeiro bife de Vitor sobre o chefe e o banco nos soa, assim, absolutamente
confessional:
... Você pensa que é só pedir as contas, se despedir e cair fora. Mas a gente chega lá fora e o seu
Maia continua. Ele está em toda parte, dentro e fora, como um deus onisciente, onipresente, todo
poderoso. (Gemidos, choros, ranger de dentes) (Misterioso) Sabe o que é isso? É no segundo subsolo,
onde o banco tem um arquivo. Ficam lá os funcionários estropiados pela contabilidade. Tem pederastas,
tem maníacos, exibicionistas, assassinos potenciais, cleptomaníacos, cérebros eletrônicos, autores de
teatro fracassados (grifo nosso), compositores, todos os neuróticos dessa guerra aqui. Tem uma secretária
lá, de quarenta anos, que tem mania de “prima dona” do teatro de revista. Queria ser uma grande dama do
rebolado. Agora tá lá, arquivando papéis, mostrando pernas para os subordinados dela. A Marlene
Dietrich da rede bancária, com a boca pintada de coraçãozinho. Ai de quem não aplaudir as
extravagâncias dela! Recebe quota dobrada de papéis pra arquivar.
E é por meio deste ódio visceral que Vitor dirige a seu trabalho que podemos
compreender melhor também a amarga dedicatória que José Vicente credita ao texto:
155
VICENTE, op. cit., p. 136.
138
Esse espetáculo, no que ele tem de meu, dedico aos funcionários anônimos do Banco do Brasil,
onde eu recebi o aprendizado da inutilidade, do suicídio interrompido, cada mês, cada ano, da
impossibilidade de escapar, do horror, da “loucura que leva ao hospício” e da vontade asfixiante de
devorar.
156
Entretanto, tal como Santidade, a peça ultrapassa o tom testemunhal, ampliando
a discussão a respeito do trabalho em um banco e de outros assuntos correlatos.
Importante testemunho de uma época, O assalto procura empreender uma grande crítica
ao mundo da tecnocracia:
Vitor: Meu número é 5.923.800. Você pode imaginar quanta gente vem atrás e quantos não vão
na minha frente. Meu serviço é fácil. Eu fico o tempo inteiro controlando a entrada diária desses papéis.
Débito-crédito. Nem um número a mais, nem um a menos. Sou um especialista em número. Se falta um e
sobra um, tenho de começar tudo de novo, desde o começo. Três anos fazendo balanço, deixa o teu olho
aguçado em cima das coisas, como um cérebro de controle. Um zero à esquerda você consegue agarrar
com o dedo, e... Pum! Pum! Derrubar em cima do papel!
Este mundo, a rigor, parece inescapável a Vitor (e também a Hugo, embora este
não tenha consciência disso), pois sustenta um sistema político que tenta engolfar a
todos. O lema do banco, segundo o bancário, é um velho conhecido dos brasileiros.
Deste modo, o texto também acaba investindo em imagens mais alegóricas:
Vitor: ... O lema do banco é o mesmo da bandeira brasileira! Ordem e progresso. O chefe sempre
diz que “sem ordem não há progresso”.
Embora seja uma grande conversação entre Vitor e Hugo (que, por vezes, se
reduz a uma dimensão monológica por parte do primeiro), a peça não cede à tentação do
discurso verborrágico
157
e doutrinário a respeito de certas tomadas de posição. A trama
156
VICENTE, José. Teatro, representação litúrgica. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT,
n. 375, maio/jun, 1970. p. 42.
157
O crítico Yan Michalski, entretanto, identificou na peça uma verborragia de outro tipo: “A grande
indignação, principal virtude de O assalto, mas também fator determinante das deficiências da obra: na
sua ânsia de gritar o seu desespero, José Vicente às vezes abre mão da lucidez, da clareza de
demonstração e do equilíbrio de dosagem, em benefício da sinceridade primitiva, sem dúvida
impressionante, do seu desabafo. A mesma ânsia é responsável... também pelos excessos de verbosismo,
que resultam muitas vezes em chocantes redundâncias e até em imagens subliterárias.” MICHALSKI,
139
é muito bem urdida, fazendo o texto oscilar entre duas esferas básicas de investigação.
De um lado, as personagens assumem a vocação de estarem representando “funções”
sociais, o bancário e o faxineiro, o que leva a peça a tangenciar um modo de atuação
propriamente épico. Vale notar que a apresentação das falas indica “Vitor” e
“Faxineiro” como as figuras do drama, o que, embora não implique repercussão prática,
revela certa disposição do dramaturgo em neutralizar a “personalidade” de Hugo. De
outro lado, entretanto, Vitor e Hugo são tratados como indivíduos particularizados, de
cuja relação estreita se extrai a grande carga dramática da peça. O assalto guarda muitas
semelhanças com Alzira Power, de Antonio Bivar, - que, a rigor, foi escrita (e reescrita)
posteriormente - ao apresentar a mesma situação básica: duas personagens que, de certa
maneira, já se conhecem têm a oportunidade de, por conta de um encontro fortuito que
se revela puramente intencional, conversarem longamente - o que as leva a um
confronto inevitável de proporções trágicas. Embora nunca tenham trocado uma
palavra, Vitor e Hugo já sabem algumas coisas um do outro antes de a peça começar:
Vitor: Sabia que eu vivo te seguindo? (Longa pausa) Uma vez eu entrei num bar que você
entrou, pra comprar cigarro. Você fuma Macedônia, não fuma? (...) Pois é, daí eu tirei uma ficha para
cafezinho e deixei a ficha cair no teu pé, de propósito, e você catou pra mim, não se lembra?
Um pouco mais adiante, a obsessão de Vitor por Hugo ganha contornos
místicos:
Sabe... Eu já desabotoei esse teu macacão muitas vezes, sozinho... Ele cheira suor de animal.
Tem cheiro de rua, de mercado, de gente se comprimindo... Eu te imaginava Jesus Cristo, sendo seguido
por mim.
Hugo, igualmente, já fazia certo juízo a respeito de Vitor:
Tenho a impressão que eu já te conhecia antes. (...) Os caras da limpeza já tinham me falado. (...)
Que tinha um pinta me seguindo.
A fim de que a conversa entre os dois, inicialmente protocolar, comece a evoluir
para o confronto direto, uma situação de tensão altamente simbólica é criada, quando
Yan. José Vicente vence no primeiro assalto (I). In: ______. Reflexões sobre o teatro brasileiro no século
XX. Rio de Janeiro: Funarte, 2004. p. 138.
140
Hugo percebe que Vitor trancou a porta da sala (“Não cria problema, ô meu, me abre a
porta aí...”). Alegoricamente, Hugo é submetido à violência do cárcere privado. Este
clima de sufoco, ainda que reversível, cuja intenção parece querer indicar que “não há
saídas”, contaminou boa parte da produção dramatúrgica dos autores aqui analisados.
Não só Alzira Power, mas também Abre a janela..., Apareceu a Margarida e Delito
carnal exploram o mesmo expediente.
Montada esta situação nuclear, o texto passa a ser estruturado em torno de
alguns eixos básicos que dialogam abertamente com as outras peças tratadas no presente
trabalho. O assalto não é uma obra propriamente de temática homossexual, mas
envereda por esse caminho de modo muito sinuoso. Há entre Vitor e Hugo um jogo
codificado de interesse sexual. Vitor “compra” o tempo do faxineiro a fim de que este se
interesse por sua figura e por sua história, em um lance de irônica subversão, já que o
dinheiro oferecido - sem que Hugo o saiba - é do próprio banco, que ele resolveu
assaltar. Estabelece-se, então, um insinuante jogo entre eles, pautado ora pela repressão,
ora pela perversão. Como ocorre também com o Ernesto de Alzira Power, Hugo,
“usado” e “oprimido” por Vitor, acaba querendo extrair uma vantagem essencialmente
financeira da situação, assumindo certa postura cafajeste:
Varredor (levantando de repente): Como é que é? Vamos resolver o nosso papo logo? (Pausa)
Vitor: Que papo?
Varredor: Já fiz programa com muito viado aí. Os caras sempre largam grana. Uma vez eu fui aí
com um pinta que tava sem dinheiro: me deu uma camisa, um disco e uma japona. Essa japona azul que
eu tenho aí. Claro, o disco eu dei, fazer o que com um disco!
[...]
Vitor: Quer dizer que você tem muito cartaz.
Varredor: Sabe como é, meu problema é mulher, mas tendo grana, sabe como é...
Mas tal como Alzira, Vitor percebe de modo claro a intenção do outro e tenta
desmascará-lo:
Vitor: Sabe, eu acabei de descobrir que você não passa de um puto, sabia? Puxa, eu pensei tudo,
menos que você fosse um puto! (O varredor está atônito) E não me chama de chefe!
141
Varredor: Mas o que houve?
Vitor: Puto, sim! E muito convicto!
Varredor: Porra, mais respeito comigo!
Vitor: Mas que respeito? O que é isso, respeito? Você se vende por trinta mangos como um judas
muito nojento e ainda fala em respeito? Quem que você pensa que é, além dum prostitutozinho muito
ordinário? Hein?
Ainda que ao final do primeiro ato, eles concretizem, estilizadamente, uma
relação sexual, a pulsão erótica de Vitor por Hugo passa por uma instância de cunho
místico
158
. Ao som de um réquiem, Vitor recita um emblemático poema para Hugo:
Eu conheço você melhor do que você mesmo/Eu sou mais você do que você mesmo e do que eu
mesmo/Você é mais do que eu mesmo e do que você mesmo/Tudo o que você quer é o que eu já tenho e o
que me asfixia/ Na tua profissão você é o sacerdote, e eu não sou na minha/Eu sei mais o teu nome do que
você mesmo/eu te sei melhor do que você mesmo/então é minha a tua profissão/é minha a tua sujeira/é
meu o teu esperma e o teu sangue é meu/é você quem me paga, sou eu quem te odeia!
O bancário, tal como Arthur em Santidade, também quer atingir o estado de
santificação, cujo caminho parte da privação e da renúncia. Daí seu interesse inicial
pelas atividades abjetas do faxineiro:
158
Quase três décadas depois de ter escrito a peça, na entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, já aludida
aqui, José Vicente reduziu a questão místico-erótica da peça a um problema de ordem moral: “Estado -
Você diz que Fellini é um apologista da prostituição, mas a relação entre o bancário Victor e o faxineiro
Hugo em O assalto não passa pela do michê e seu cliente. Victor assalta o banco para dar o dinheiro a
Hugo porque o ama e não para comprar seu corpo./José Vicente - Não, na verdade há o problema da
prostituição, porque o varredor só o aceita por dinheiro./Estado - Bem, o dinheiro é mais uma desculpa,
porque Hugo também sente atração física por Victor./José Vicente - É, mas ele só aceita por
dinheiro./Estado - Você, então, acha que a homossexualidade sempre está associada à prostituição?/José
Vicente - Ah, sim, fundamentalmente. Os homossexuais só são aceitos socialmente porque a prostituição
é aceita pela sociedade, que faz a apologia da prostituição. Nós, cristãos, somos contra a prostituição”.
142
Como é, e as privadas, você já limpou as privadas?
e seu impulso de escrever mensagens pornográficas nas paredes dos banheiros,
por meio das quais ele precisa exorcizar seus demônios:
Tudo que eu não consigo dizer pro próprio banco, eu digo por escrito pras privadas deles.
Um pouco mais adiante, há uma bela cena em que Vitor entroniza Hugo,
fazendo-o sentar em sua própria cadeira de bancário. No imaginário místico-erótico de
Vitor, o faxineiro ganha ares de um pharmakós, o mais ilustre entre todos os seres
desprezíveis:
Vitor: Senta aqui, nessa cadeira aqui. (Vitor aponta o trono, o Varredor permanece de pé) Aqui,
senta aqui. Assim. Você fica parecendo um rei. Existe rei de tudo, não existe? Você é o rei do lixo!
Varredor: Que barato!
Vitor: Você me acha meio doido, é?
Varredor: O que os caras não vão pensar...
Vitor: Pensar o quê?
Varredor: Que negócio mais esquisito!
Vitor: Só falta a coroa. Você ficaria muito bem com uma coroa de cebolas na cabeça e uma réstia
de alho a tiracolo.
Tal imersão no universo da religiosidade de tradição cristã é ampliada e passa a
dialogar com outros valores sobre os quais se assenta o mundo tecnocrático que Vitor
quer desesperadamente combater:
Você tem que ser um bancário não só aqui dentro dessas paredes - lá fora também! É o teu credo,
o teu Deus, o teu Jesus Cristo, a tua caridade, a tua propriedade privada, a tua família, o teu macho, se
você preferir.
143
O crítico Van Jafa, do Correio da Manhã, identificou em O assalto a mesma
mistura entre o sagrado e o profano que também marca Santidade:
Sua peça é um ato de fé. Sua profissão de amor. É de resto sua liturgia selvagem desta vida tão
condicionada a tantas regras, ismos, chantagens e regras sociais de uma imutabilidade cruel, de um efeito
de cilício.
159
Estruturado sobre a perda da conexão profunda do homem moderno com as
instâncias inefáveis da vida (lida, aqui, em chave de religiosidade e misticismo), o texto,
então, lança-se à abordagem de alguns caros assuntos que integraram a pauta da “nova
sensibilidade” que boa parte da juventude dos anos 50 e 60 perseguiu com obstinação.
Vitor demonstra desespero pelo fato de sua juventude estar se esvaindo naquele
ambiente mortificador:
Vitor: Três anos num banco é o tempo duma juventude. Você abre os olhos e... Puf! O tempo
engoliu tua cara. Que idade você me dá?
Varredor (desinteressado): Vinte e poucos.
Vitor: Vinte e quanto?
Varredor: Vinte e... Vinte e cinco?
Vitor: Em cima! Em geral me dão vinte e oito, trinta. Teve um cara que me deu trinta e dois. Me
senti sem ar.
O bancário também demonstra profunda aversão ao figurino básico daqueles que
se resignam e se enquadram, proferindo uma frase que ecoará algum tempo depois na
voz de Alzira Power:
Varredor (pegando o paletó de Vitor, que está pendurado atrás duma cadeira): É tergal, é?
Vitor: Você gosta?
Varredor: Bom.
159
VAN JAFA. O assalto e a crítica no Rio. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 375,
maio/jun. 1970. p. 44.
144
Vitor: Tenho nojo!
Bastante aliviado, ao trocar de roupa com o faxineiro, Vitor sentencia:
Dentro dum terno você é vulgar, é comum, não sobra mais nada do que você é...
O modo como o mundo capitalista lida com o tempo também é discutido em
uma das inúmeras alusões que Vitor faz ao relógio, visto como instrumento de tortura
que padroniza a vida burguesa:
Eu falo do pesadelo de despertadores com horas marcadas que nunca mais vão deixar ninguém
dormir em paz. Assinar pontos na hora de entrar, nem um minuto depois, e assinar ponto na hora de sair,
nem um minuto antes.
Esta fala soa eminentemente autobiográfica, como podemos depreender do
depoimento a seguir de José Vicente. No entanto, ela nada mais faz do que expressar
um dos grandes motes do projeto da contracultura: a escravização do homem pelo
relógio
160
:
Nunca pensei em escrever pra teatro. Desde muito cedo eu tive um compromisso efetivo e
imediato com a sobrevivência, num regime de oito horas por dia - às vezes mais. Só uma vaga
possibilidade de algum dia iniciar uma obra que me substituísse a completa inutilidade de um cotidiano
marcado rigorosamente por um despertador que me consolava de alguma forma. Foi a partir disso que se
criou em mim uma espécie de obsessão. Na impossibilidade de viver, imposta pela sobrevivência, eu
tentava criar.
161
Por fim, há a revolta da personagem contra a ditadura dos papéis, dos arquivos e
dos números:
160
Theodore Roszak assim problematiza a questão do tempo: “O tempo verdadeiro (aquilo que Bergson
chama ‘duração’) é exatamente a experiência da própria vida e, portanto, radicalmente intuitivo. Mas para
quase todos nós, este tempo verdadeiro foi definitivamente arreado pelo ritmo rígido do tempo marcado
pelo relógio. O que consiste fundamentalmente no fluir vital da experiência converte-se numa bitola
arbitrariamente segmentada, externa, imposta à nossa existência - pelo que viver o tempo de qualquer
outro modo é ‘místico’ ou ‘loucura’”. ROSZAK, op. cit., p. 263.
161
VICENTE, José. Teatro, representação litúrgica. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT,
n. 375, maio/jun., 1970. p. 41.
145
Papéis e números, sempre papéis, todo dia papéis, arquivos e mais arquivos de papéis e uma
indústria de homens cegos em cima desses papéis, é uma cidade inteira que foi inundada de papéis, com
velhos embolorados examinando e dirigindo desses papéis e sem pular uma letra desse inferno de papéis e
números que são mais importantes do que a vida, do que a morte e do que a puta que o pariu, tantos
papéis e arquivos e gente que entra com papéis e sai com papéis, que vive e morre sem saber mais nada
além desses papéis sujos, fedidos, iguais com saudações, sem saudações, datados, carimbados, assinados
e reconhecidos!
162
A consciência da perda da juventude e a recusa obstinada em aceitar um mundo
pautado por ternos e gravatas, relógios, arquivos, números e papéis transformam Vitor
em um indivíduo transtornado, que mergulha em uma atmosfera de angústia existencial:
Vitor: Às vezes eu tenho a impressão que eu morri na minha infância, me desencarnei. Não
tenho mais nada de comum nem com as pessoas... nem com as coisas... nem com mais nada. Não tenho
ponto de referência mais nenhum... eu sou um corpo oco, se carregando no meio dum mundo que nem se
decifra nem me decifra mais. De uns tempos pra cá eu descobri que eu não quero nem viver nem morrer
nem continuar vivendo nesse estado de graça... Você já pensou em se matar?
O grande antípoda da personagem passa a ser o velho funcionário aposentado do
banco que nunca deixou nenhum colega assinar a folha de ponto um minuto sequer
depois do horário e que conseguiu no fim da vida “um apartamento através da Caixa
Econômica e um Volkswagen no consórcio”.
Vitor, o bem-sucedido, é quem se revolta e se insurge contra a opressão do
sistema, ao passo que ao desvalido Hugo somente cabe o papel de se conformar. Nesta
inversão de perspectiva reside a grande carga expressiva do texto. O ponto de vista da
peça não se comove com a vida de Hugo ou concede a ele tratamento heróico. A grande
personagem é mesmo Vitor, responsável por subordinar a dimensão social que pontua
todo o texto ao caráter de aventura espiritual de que se reveste sua jornada (“Você pode
continuar sendo tudo o que você é, mas o teu encontro marcado com a ordem que rege o
mundo e as pessoas continua te esperando.”) Sob esta perspectiva, o conflito de classes
que há entre as personagens é visto pelo ângulo do projeto da contracultura, e não do
162
Vale notar que, nos anos 70, o conto O arquivo, de Victor Giudice, soube explorar de modo muito
expressivo esta temática, ao retratar a figura de um funcionário público exemplar que de tanto se privar da
vida pessoal e se adaptar a todas as adversidades do mundo do trabalho acaba se transformando em um
arquivo de metal.
146
ideário marxista
163
. José Vicente não utiliza o articulado discurso de quem quer analisar
a condição das personagens. Antes, ele prefere invadir os domínios de um
“expressionismo confessional”, como identificou Anatol Rosenfeld (ver nota n. 3),
utilizando-se de uma linguagem rude e bruta que devassa a intimidade destas figuras
(“Zé utiliza o palco como se fosse a parede de um mictório público”, afirmou o diretor
Fauzi Arap à época da peça). Uma fala dura como a que segue, de caráter notadamente
metalingüístico, anuncia a recusa do texto em adotar a posição clássica do teatro social
ou engajado:
Vitor: O que é que um lixeiro como você representa para a sociedade? Não representa nada!
Você é só um caso particular no meio de milhões de casos particulares e que pode conseguir só, e só isso:
comover uns tantos filhos da puta que conseguem muito bem viver às custas da tua miséria particular.
Intelectuais, criadores de todas as espécies e umas tantas almas bem alimentadas e bem intencionadas. Só,
e só isso!
A partir deste escopo que se abre, passamos a perceber que há dois tipos de
assalto sendo engendrados por Vitor. O primeiro tem um sentido concreto e é anunciado
sarcasticamente pelo bancário:
Vitor: Eu achei que tinha de acertar as contas com o banco segundo os meus métodos. O banco
faz lá as contas dele, tá certo, é um direito meu, não é justo?
Varredor (que não consegue mais esconder o jogo): E você tá com a grana?
(Vale ressaltar a ousadia de abordar este tema, justamente em um momento da
história política do país em que os assaltos a bancos passaram a constituir a grande
163
Há na obra do autor um profundo sentimento humanista advindo de sua estreita formação cristã,
evidenciada no excerto crítico a seguir: “Praticando um corte transversal na noite de um funcionário
demissionário que prepara um “assalto” num faxineiro de seu banco, de sua prisão, de sua solidão, de seu
empalhamento, José Vicente praticou um corte no seu respeito humano e com os pulsos sangrando
denuncia a sua miséria cotidiana que é a de centenas, milhares e milhões de pessoas espalhadas por esse
funesto e trágico mundo de Cristo, de tantos Jesus, chamem-se os nomes que se chamarem. A
engrenagem está explícita e implícita, a máquina devoradora de homens é implacável, ceifa de
preferência dos mais jovens, porque aqueles que se salvaram estão domesticados implacavelmente, ou se
tornaram dramaturgos, como José Vicente, atores, empresários, poetas, pintores, como atesta a história
dos supranormais”. VAN JAFA, op. cit., p. 44.
147
estratégia de financiamento de inúmeras ações dos grupos de esquerda que enveredaram
pela luta armada contra o regime ditatorial).
O segundo “assalto” de que trata a trama tem conotação simbólica e organiza a
grande concentração poética do texto. Por carência, solidão e humanismo (?), Vitor quer
devassar o mistério de um indivíduo tão emblemático para ele quanto um simples
faxineiro que “possui os sinais espontâneos da presença erótica da vida”:
Vitor: Você gostou de mim? (Pausa) Sabe, é uma coisa grotesca até... É que nunca fiz essa
pergunta pra ninguém e nunca ninguém me declarou nada. Se não declaram é porque a gente tem de
perguntar, é ou não é?
Varredor: Eu não sei o que você viu comigo, caramba!
Vitor: No fundo, no fundo, eu sinto até uma espécie de orgasmo, quando eu lembro que estou
sozinho, sem referência em nenhum lugar. Minha família não existe mais, minha infância não existe mais,
e meus companheiros, nenhum existe mais. É terrivelmente confortável. Só que eu queria ter certeza, por
uma espécie de orgulho, que existe uma pessoa que eu consegui assaltar, no interior, tirá-la toda pra fora
pra ver se é melhor ou pior que realmente é. Claro, você deve ter horror de mim. (Pausa) Acertei?
Por um momento, o bancário acredita ter se irmanado com Hugo na luta contra o
mundo execrável que ele chama simplesmente de “eles”. Desesperadamente ele quer
reconhecer no faxineiro um igual:
Você e eu, nós dois estamos nada mais nada menos que em cima de todos os códigos aí deles, de
todas as regras sociais, estamos pisando a cultura deles, as escolas deles, a fonte do pudor deles, enquanto
eles numa hora dessas fazem a festa aí fora, tranqüilamente. É ou não é? E se eles podem fazer a festa
deles, por que é que nós dois vamos perder a oportunidade de fazer a nossa? Não é mesmo?
Mas Hugo não pode compreender este movimento, por estar preso atavicamente
à roda que faz o mundo girar sempre como ele é, e não como Vitor gostaria que fosse. É
a vez, então, de o “assaltante” reordenar a relação que há entre eles:
Eu te comprei com as minhas condições, foi ou não foi? Te comprei pra fazer de você o que me
desse na cuca. Você aceitou o jogo... aceitou ou não aceitou? Então, o que você tá reclamando? Quer ir
embora? Pois vá! Te prender é que eu não vou, inclusive nem tenho resistência mais, é muito trabalhoso.
(Vitor vai e destranca a porta)
148
e fazer uma provocação final:
Conta pra eles que tem um assaltante aqui em cima, disposto a levar uma bala na cabeça. Não
faço a menor questão. Hoje o desprezo e a violência são a única moeda forte, a única moeda válida, onde
eu arrisco tudo!
Neste momento, pela primeira (e única) vez, Hugo parece adquirir a consciência
de seu trágico papel no mundo, proferindo um longo desabafo de tom poético,
existencial e político:
Quem sou eu pra levantar a minha mão contra você? Como teu resto, faço teu jogo do jeito que
ele vem, carrego com minhas costas a força que você não sabe fazer e o teu cheiro fedido que você não
pode mostrar pra ninguém porque você é honesto, e limpo, e educado, e estudado dentro de tua roupa
limpa; do teu sapato engraxado; dentro de tua semana garantida de sete dias garantidos, enquanto eu estou
aí apodrecendo debaixo dos teus sete dias pra pagar o preço da tua honestidade; apodrecendo debaixo da
tua religião enfastiada de bar, debaixo do teu Jesus Cristo enfastiado, sem cheiro de privada e sem escarro
na cara. Agora pára de bater no peito porque eu falo uma língua diferente da tua. Vocês já me separaram
faz muito tempo. E se a tua lei me botou sujo, e me botou fedido, pede contas pra ela e não pra mim, que
estou engolindo, por vocês todos e todo dia, a merda toda do mundo que vocês puderam na frente do meu
nariz, para continuarem limpos, e pra continuarem honestos. Pega qualquer um dos teus amigos aí com
cheiro de livro, com cheiro de restaurante, com cheiro de teatro. Encosta um deles na parede e obriga a
responder às custas de quem e às custas de que ele continua limpo. Chama ele de covarde, de filho da
puta, de frouxo. Sabe o que ele te responde? Não te responde nada! Qualquer mendigo da rua vomita em
cima da tua roupa limpa!
Em seguida, a resignação de Hugo o impele a limpar a sala de qualquer jeito,
enquanto Vitor resolve mudar de estratégia, tentando “ressarcir” o faxineiro pela vida
miserável que ele levou até aquele momento:
Estou simplesmente pagando para mim mesmo através de você. Você não tá me fazendo nenhum
favor! (Continuando a retirar nervosamente pacotes de dinheiro) Estou te pagando a tua juventude que te
roubaram, não é muito. Estou te pagando a tua hora contada, marcada no despertador, estou fuçando
numa peça de máquina pra obrigar a parar, tá me entendendo?! Junta tudo e se arranca! Eu aceito morrer
por você e você vive por mim. Ninguém vai me pagar o meu preço exato. O que me roubaram, não vai ter
ninguém, banco nenhum, que me pague mais...
Hugo reduz toda a experiência vivida ao denominador financeiro, o que faz com
que Vitor compreenda amargamente a frustração deste “assalto”:
149
E pensando bem, pensando bem, o que é que você vale? Que valor que você tem? Você não tem
importância nenhuma! Você não vai trazer nada de novo, seu, pra mim, nem vai aparecer com um
Messias tirado de trás da porta. Substancialmente você não vai modificar nada do que está acabado,
consumado e imodificável! (Vitor começa a juntar de novo o dinheiro do banco em cima da mesa) Quer
saber de uma coisa? Resolvi que nem os meus míseros oitenta mil, que eu te dei da minha própria
carteira, nem esses você vai levar!
Depois de uma longa conversação, há um acerto final entre eles:
Vitor: Estamos quites. Você e eu chegamos na estaca zero onde você queria. Não te devo mais
nada nem você me deve mais nada. Mas pode se lembrar duma coisa: essa guerra continua e eu sinto um
prazer enorme, fora do comum, em desempenhar por você a função tua que você recusou.
A Hugo somente resta a função de perpetuar o staus quo, tocando o alarme do
banco e gritando “Assalto!”.
O assalto, tanto quanto Santidade, oscila entre um registro realista, que propõe
uma confrontação crua e direta entre as personagens, e uma visada lírica, de cunho
existencial. Na crítica publicada no Jornal do Brasil, em 24/4/69, Yan Michalski
destaca:
Partindo de uma simples dramatização naturalista de uma amarga realidade social, José Vicente
projeta aos poucos o seu estudo para o terreno de um desabafo existencial e um exorcismo místico. Essa
mistura de registros, conquanto contribua para o aspecto algo confuso da obra, confere-lhe também um
fascínio muito especial e uma dimensão difícil de pressentir enquanto a peça se desenrola, aliás, com
notável competência e acuidade de observação, no terreno do realismo.
164
Segundo Fauzi Arap, que dirigiu as duas montagens da peça em 1969, o teatro
de José Vicente “tem quebras poéticas, quebras literárias, sobre uma base de realismo
alucinado”. O diretor procurou ainda definir a filiação desta atmosfera híbrida que exala
do texto:
Pode-se em O assalto, talvez, em algum momento, lembrar do Albee do Zoo... Mas Zé, na minha
opinião, não é só um dramaturgo excepcional, mas como Brecht, também um poeta. Talvez, num grau
bastante profundo, pode-se falar num parentesco com Genet (não influência).
165
164
MICHALSKI, op. cit., p. 137.
165
In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 375, maio/jun., 1970. p. 43.
150
Entretanto, esta zona de influência propriamente de Jean Genet sobre José
Vicente foi enfaticamente rechaçada pelo autor na entrevista, já aludida aqui, que ele
concedeu ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1997:
Estado - Em O assalto, sua primeira peça montada, os dois personagens completam-se. Victor,
que assalta o banco, é o espírito, e Hugo, o faxineiro para quem ele quer dar o dinheiro, é o corpo. Esse
conflito está esboçado desde o princípio de sua carreira, o que fez alguns críticos aproximarem suas peças
às de Genet. Você admite esse parentesco?
José Vicente - Eu posso dizer que sou o anti-Genet, o anti-Sartre, que estou numa posição oposta
aos existencialistas franceses. Virtuose faz referência a Genet e a Sartre, mas uma referência crítica. Eles
também são frutos da Bíblia, estão ligados ao mundo antigo do Velho Testamento. São mais ligados à
prostituição. O próprio Sartre tem uma peça, A prostituta respeitosa, e o que Genet faz é compilar a
Bíblia. Ele dá o underground, o submundo violento da Bíblia. Quanto a O assalto, Victor e Hugo foram
concebidos como alegorias. Os dois juntos formam Victor Hugo. Era uma homenagem ao escritor
francês, considerado um imortal, e ao corcunda de Notre-Dame de Paris.
166
Uma das grandes qualidades de O Assalto reside no modo como o ataque de
conquista que Vitor desfecha contra Hugo é apresentado aos olhos do espectador, e que
usa como meios a simples conversa, a curiosidade, o suborno, a provocação, a
humilhação, a explosão mística (Hugo é comparado ao Messias; a homossexualidade é
purificadora) e a auto-imolação.
Convém ressaltar que tais recursos são manipulados de modo muito consistente
por um autor jovem e inexperiente, que não demorou a impressionar o diretor Fauzi
Arap na visita que lhe fez para mostrar a peça, em 1967:
Um dia, apareceu o Zé. Queria me mostrar algumas cenas de uma peça que estava escrevendo.
Eu concordei, ele desligou o telefone e veio. Na terceira página eu estava de boca aberta e com água na
boca: resolvi fazer a peça como ator. Eu já havia dirigido a “Navalha” e não pretendia, tão cedo, voltar a
representar. Mas eram tão fascinantes os personagens, aquele personagem em particular, que eu
imediatamente reformulei todos os planos e projetos. Eu dizia que era “genial”. E era.
Surpreendentemente genial. Ele me dizia que tinha vinte e um anos, que havia assistido somente duas
peças, que tinha um livro de poemas por publicar, que o Roberto Freire havia perdido (por sinal,
encontrou), o livro se chamava “Ofício de sobrevivente”, e o acreditava muito no meu entusiasmo.
Desde então se passaram dois anos. Só agora Norma [Benguel, diretora de produção], Gilda
[Grillo, produtora], Rubens [Correa, intérprete de Vitor], Ivan [de Albuquerque, intérprete de Hugo],
166
Entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho, já referida.
151
Marcos [Flaksman, cenógrafo e figurinista] e eu vamos mostrar ao público o que, ou quem é Zé
Vicente.
167
O que se vê no palco são inúmeros turnos de debate/embate, cujo ritmo
vertiginoso precisa estar amparado pela performance de excelentes intérpretes.
Entretanto, grande parte dos sentimentos que as personagens extravasam deve ser
direcionada à platéia, que assume perante a representação um papel de destaque,
distante, porém, daquele que lhe reservavam Brecht e Artaud (em torno dos quais
inúmeras iniciativas teatrais dos anos 60 foram organizadas), como se pode depreender
deste breve relato acerca do método de trabalho que Fauzi Arap aplicou à peça:
Tudo o que eu não consigo dizer pra cada funcionariozinho engravatado que ajuda amamentar
esta zona aqui, eu digo pras privadas onde todos eles se sentam, pras paredes e pras portas onde eles
vão respirar, em particular, o ar fedido e sifilítico lá dos intestinos dele.
Quando pedi que, num dado momento da peça, Rubens se dirigisse à platéia, de início ele
resistiu, dizendo que Vitor, o bancário, não se dirigia tão somente ao varredor, mas se incluía em cada
afirmação que fazia:
O que um lixeiro como você representa pra sociedade? Não representa nada! (...) Um varredor
de banco é um fora da lei!
Eu tentava explicar ao Rubens o que queria: por exemplo, não queria que aquele trecho fosse
dito a frio, isto é, não se tratava de “afastamento brechtiano” ou qualquer coisa assim, não queria
“agredir” a platéia, o que eu queria era dar um “esporro”. A palavra esporro veio, eu gostei dela. E pra
mim, passou a significar o tipo de “agressão”, que não era agressão, que eu queria que aquele monólogo
tivesse. E nisso tudo Rubens tinha razão, porque o autor José Vicente não se exclui, nem me exclui nem
ao Rubens nem ao Ivan, do “esporro” que dá no público.
Você é só um caso particular no meio de milhões de casos particulares que podem conseguir, só
e só isso. Comover uns tantos filhos da puta que conseguem muito bem viver à custa da tua miséria
particular. Intelectuais, criadores de todas as espécies e umas tantas almas bem alimentadas e bem
intencionadas. Só e só isso.
Talvez eu quisesse dizer, simplesmente, que, nesse momento, embora a fala viesse assinada pelo
personagem, quem estava diretamente falando era o Zé. Mas acho que não era só. O “esporro” é inócuo,
mas se sabe inócuo. Por isso é desesperado e não se dirige à inteligência do espectador. É fundamental, e
167
In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 375, maio/jun. 1970. p. 43.
152
principalmente ele não projeta nada sobre a platéia. Nada que não inclua o próprio autor, diretor, atores
etc. Nós, que estamos no palco representando, não somos distintos, nem superiores, nem estamos a salvo
do mesmo tipo de engrenagem que solicita e envolve a platéia, e determina que ela seja o que é
168
.
Essa mesma triangulação com o público também procurou ser explorada na
montagem que o texto recebeu no Teatro Oficina de São Paulo, em 2004, conforme se
pode depreender da crítica de Sérgio Sávia Coelho, publicada ao final daquele ano:
A grande força de [Marcelo] Drummond é a direção de atores. Conseguiu adaptar o olho-no-olho
dos grandes rituais oficínicos à intimidade do mezanino, onde cabem cerca de 50 pessoas. Seus atores
colegas sabem, sem sair do personagem, dirigir os diálogos contundentes à platéia improvisada,
estendendo a cumplicidade tanto aos que vieram atraídos pela transgressão quanto aos vizinhos do bairro,
instigando sem incomodar. Afinal, esse assalto é antes de tudo um assalto às convicções provisórias de
cada um.
169
O crítico Van Jafa, do Correio da Manhã, vislumbrou no estilo de direção de
Fauzi Arap um inusitado coquetel de diretrizes díspares que ele reconheceu como
integradas. A peça, segundo esta visada, mistura momentos de realismo-naturalismo,
distanciamento épico, teatro litúrgico e celebração erótica, como se pode depreender a
seguir:
A direção de Fauzi Arap é imaginativa e segue, e assimila, e grifa com muita habilidade as
alegorias do dramaturgo. Valoriza instantes e, o que é mais importante, soube manter o equilíbrio do
espetáculo e absorver todas as influências possíveis no melhor da linha Stanislavski-Brecht-Grotowski-
Pasolini. O assalto é um espetáculo íntegro e expressivo.
170
Legítima representante de seu tempo, O assalto articula - assim como Cordélia
Brasil e Alzira Power - os conceitos de trabalho, repressão e civilização desenvolvidos
por Herbert Marcuse em Eros e civilização. A pulsão erótica de Vitor sinaliza sua luta
contra uma civilização que “se esforça por encurtar o atalho para a morte”, como
defende o pensador alemão. O bancário se desespera ao descobrir que, mesmo sendo
muito jovem, não consegue desfrutar um modo de vida criativo, tolerante e não
enquadrado. Entretanto, seu grau de interferência no mundo real é praticamente nulo.
168
Ibid, p. 43.
169
COELHO, Sérgio Sálvia. Montagem lapida os atores do grupo Oficina. Folha de S. Paulo, São Paulo,
13/12/2004. Ilustrada.
170
In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 375, maio/jun. 1970. p. 61.
153
Para a personagem, prevalece a visão extática da vida, às voltas com as noções de
tempo, eternidade, loucura, visão, céu e espírito que tão bem embalaram o sonho da
geração beatnik.
Vitor recusa o discurso da justiça social, preferindo mergulhar em monólogos
repletos de uma delirante poesia que trocam a “investigação” em torno do real por uma
“visão” acerca da natureza humana. Mas a fantasia dura pouco. Metralhado pelos
comandos ideológicos da tecnocracia, a personagem morre sem conseguir experimentar
o novo céu e a nova terra que ele tanto proclamou.
A impossibilidade da purificação
Santidade e O assalto fazem parte de um tipo de proposta teatral disposta a
veicular assuntos “perigosos” e “reveladores”, com certa propensão ao exagero, ao
grotesco e ao selvagem. Em ambos os textos, José Vicente procura uma nova atitude em
relação à platéia que não passa pelo entendimento racional do teatro épico tampouco
pelo choque dos sentidos de Artaud ou da “crueldade à brasileira” do Teatro Oficina,
por exemplo. Por meio de uma situação basicamente dialógica, que aos poucos
abandona o tom de concílio e entendimento e se transforma em um embate violento, a
dramaturgia de José Vicente busca o envolvimento emocional e psíquico do espectador
na experiência real que se descortina diante de seus olhos e que ganha, ambiguamente,
uma dimensão fantasiosa, mística, visionária. Na seguinte passagem de cunho
autobiográfico, José Vicente inventaria a origem desta dicotomia que ele sempre viveu
entre o real e o imaginário:
Vovó era o nosso anjo protetor. Foi nas terras dela que eu aprendi a viver no plano do fantástico.
Tudo o que se dizia ali era no plano mental. Dizia-se tudo o que se queria dizer com o diálogo da mente,
nunca com o diálogo da realidade. Vez por outra se conversava realmente. O que se dizia era mental. O
diálogo da realidade era simples, direto, severo. Era a linguagem de todo mundo. Mas o que se dizia
mentalmente era de uma riqueza inimaginável. Esse romance relata o que se passou mentalmente. Junto
com o diálogo real.
171
Ambas as peças aqui tratadas fazem um profundo ataque ao mundo
convencional da família, do trabalho e da sexualidade, visto como mantenedor de uma
171
VICENTE, José. Os reis da terra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 13.
154
sociedade opressora e hipócrita. Os diálogos preservam o tom vertiginoso de uma
metralhadora giratória que dispara questionamentos contra os diversos valores morais,
espirituais e materiais daqueles que se reprimem ou se conformam muito facilmente.
Mantendo a postura transgressora, sem perder de vista certa compaixão pela incoerência
que marca o convívio humano, Santidade e O assalto valorizam o aspecto ritualístico de
situações que só tendem a crescer de intensidade quando encenadas. Em ambas as
peças, a homossexualidade, mais do que um simples elemento de contestação dos
padrões burgueses, constitui um espaço de alta carga lírica e dramática ao revelar uma
comovente solidão que conduz ao questionamento do mundo
.
Em seu texto de apresentação de O assalto para a Revista de Teatro da SBAT,
José Vicente desenvolve as linhas mestras de seu pensamento teatral. Inculto e
provinciano, quando chega a São Paulo na década de 60, o dramaturgo não reconhece o
poder de convencimento do teatro comercial:
... como a maioria do nosso povo, alguma barreira existia entre mim e as casas de espetáculo.
Entre a bilheteria do cinema e a bilheteria do teatro havia uma distância intransponível. Talvez porque o
teatro, privilégio da burguesia, proibisse, já pela sua freqüência e estúpida eloqüência exterior, a presença
de qualquer observador diferente de sua futilidade. Minha linguagem era outra. Eles me desprezavam e eu
retribuía com a mesma moeda.
172
e tampouco deixa-se seduzir pelas experiências de vanguarda:
Quanto às experiências moderníssimas do teatro e que colocam definitivamente os autores todos
num museu de velharias, pelo menos as que eu conheço me pareceram entediantes demais, formalistas
demais pra merecerem o nome de vanguarda
173
.
Sozinho, o futuro dramaturgo se sente desafiado a buscar uma escrita teatral que
veiculasse os sentimentos inefáveis pelos quais ele está rodeado:
Escrevia monólogos, que não eram nem bem poemas nem bem crônicas, e que eu intitulava de
“romances”. Preocupava-me em anotar tudo o que o cotidiano me impunha, não segundo a maneira
“naturalista”, mas condensando alguma coisa secreta que, corroída, era a expressão exata, pra mim, de um
veneno que me revelava a impossibilidade de viver nesse mundo onde tudo parecia convergir para o
172
VICENTE, José. Teatro, representação litúrgica. In: REVISTA DE TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT,
n. 375, maio/jun, 1970. p. 41.
173
Ibid., p. 42
155
suicídio. Há dois anos atrás, aqui no Rio, essa barreira acabou caindo por si mesma, quando, assistindo a
um espetáculo que me tocou brutalmente, acabei por descobrir o poder de comunicação que esse tipo de
representação viva pode dar, a ponto de transformar as pessoas, no seu íntimo. Era aquilo lá mesmo que
eu estava tentando descobrir: uma representação cruel, encarnada, livre e eficaz, do cotidiano que nos
leva à morte. O que me tocou mais foi justamente o despojamento que havia aí. As criaturas, no palco, me
apareciam frágeis e diferentes de suas próprias palavras. Respiravam, criavam gestos, mas era só uma
representação. O que contava era o clima. Ator e personagem faziam um esforço inútil para se
identificarem. Pelo teatro pode-se exprimir, através de uma religiosidade, a mística do homem moderno
torturado, fútil, deformado, mistificador, frágil e arrogante, vítima de suas próprias palavras, intenções e
atos. Isso tudo orientado pelo despojamento que as próprias condições dessa representação impõem. Ao
contrário do cinema, que é uma projeção acabada, o teatro cria a possibilidade de intercomunicação,
como se a gente estivesse num templo, onde não há cumplicidade expressa.
174
Tal experiência o leva a estabelecer uma emblemática relação entre teatro e
liturgia que marca profundamente as duas peças aqui analisadas:
Minha idéia de um teatro como representação litúrgica nasceu naturalmente dos ritos cristãos que
devoramos, nós todos, desde que nascemos. Não se conclua daí que eu acredite nessa religiosidade
mascarada. A liturgia a que eu me refiro é uma liturgia selvagem. A imagem correta dela seria uma Igreja
abandonada, habitada por um Deus sádico, que desnuda aí, onde cada pessoa faz a profissão de fé de suas
vidas secretas, de suas esperanças ocultas, os vícios dessa fé, a ponto de redescobrirem selvagemente a
presença original do destino. Em todo caso, não tenho ainda a chave desse delírio. Talvez não seja a hora
certa de fazer elucubrações.
175
Ainda que o dramaturgo conteste, esta visão litúrgica do teatro surge à sombra
do teatro religioso de Jean Genet, cujas peças voltam-se “para o fascínio com os
esquemas de dominação e submissão, às vezes com matizes sadomasoquistas vertidos
em metáforas cerimoniosas e rituais”, conforme a análise de Marvin Carlson. Duas
décadas antes de José Vicente, Genet considerava a celebração da missa “o maior dos
dramas ao alcance do moderno ocidental, cujo teatro perdeu, talvez para sempre o
elemento religioso”, ainda de acordo com o historiador.
Embora não abram mão do registro realista, Santidade e O assalto articulam
uma série de símbolos cristãos que procuram comunicar à platéia uma experiência que
mobilize o indivíduo interiormente. Daí, o dramaturgo ser contrário à idéia de um teatro
que veicule uma mensagem que exija prontidão coletiva:
174
Ibid., p. 41.
175
Ibid., p. 42.
156
Chega de mensagens. Uma das coisas mais imbecis que eu conheço é pensar que o teatro possa
ter a eficácia de uma mobilização. Não me proponho responder nada a ninguém nem fazer qualquer tipo
de apostolado. Acho que comecei (como todo mundo) separando o certo do errado, estabelecendo o certo
como definitivo e só o errado como móvel. A falha fundamental dessa divisão está em esquecer que o que
é certo hoje será o errado amanhã, e o que é errado hoje será amanhã o certo. Essas razões são suficientes
pra tornarem estéril um teatro de certezas dentro dum mundo febril e em transe. É óbvio que a hipocrisia
e a impostura da nossa cultura impedem-nos a própria investigação. Os homens velhos que nos
comandam, seja por interesse, seja por estupidez, se recusam a enxergar que os tempos mudaram, que não
existe mais “cultura brasileira”, que hoje o homem investiga mundos novos, que uma civilização nascida
do medo recusa essa moral degenerescente que nos impingem grotescamente, hipocritamente, amparada
pelas belas intenções
176
.
José Vicente, como os demais autores aqui tratados, dá uma outra dimensão
política a seus textos, voltada às questões do corpo, da sexualidade e de uma angústia
existencial que nasce da inconciliação com o outro. Autoproclamado anarquista como
Antonio Bivar, o dramaturgo nunca cortejou a esquerda militante:
Mas eu vivia à noite... Saía com novos amigos, boêmios, freqüentava o down town, bebia e
voltava de madrugada para casa. Havia descoberto uma nova vida, cheia de humor e novos valores
populares. Cultivava-se o samba. Na faculdade também fiz novos amigos. Eram em geral marxistas.
Alguns chegavam mesmo a ser engajados politicamente. Era-se contra qualquer forma de repressão e
ditadura. Cultivava-se Che Guevara e os grandes guerrilheiros. Os intelectuais profetizavam o tempo em
que o Brasil seria proletário e comunista. Eu participava como anarquista apenas. Se era contra a ordem
vigente é porque ela me oprimia existencialmente. O golpe militar de 64 havia praticamente matado a
ideologia dos intelectuais no Brasil. Mas mesmo assim para ser bem visto pelos estudantes, artistas e
intelectuais de São Paulo, era preciso ser de esquerda. Assim tanto na noite como na faculdade eu tinha
passe livre. Na noite porque era alegre e gostava dos artistas brasileiros. E na faculdade porque não tinha
valores americanos...
177
Mas este distanciamento das formas de arte engajada, no entanto, não o levou à
alienação e ao escapismo. Nas palavras dos editores da publicação Arte em Revista,
Antonio Bivar e José Vicente são os autores que “propõem uma outra virada” na
dramaturgia brasileira, em fins da década de 60 e início da de 70, “solidarizando-se
tanto com a vanguarda internacional quanto com a marginalidade”
178
.
176
Ibid., p. 42.
177
VICENTE, José. Os reis da terra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 138.
178
ARTE EM REVISTA. Teatro. São Paulo: Kairós Livraria e Editora Ltda., n. 6, out. 1981. p. 69.
157
Fundindo certas conquistas dos angry young men e de Jean Genet, José Vicente
retratou em sua dramaturgia algumas das angústias vividas pelos habitantes de uma
cidade cosmopolita como São Paulo:
A juventude inconformada usava drogas, tinha começado o movimento da contracultura e já
apareciam na cidade os primeiros hippies, que naturalmente não eram aceitos. São Paulo pretendia ser
uma Nova Iorque latina, no Sul da América.
179
embora não tenha se desligado do provincianismo e do misticismo pregados em
sua pele desde os tempos de Ventania e dos quais ele parece nunca ter conseguido se
desvencilhar:
Pouco a pouco comecei a compreender que essas grandes cidades - São Paulo, Rio de Janeiro,
Paris Londres - criavam-me um novo conceito de vida. Eram cidades auto-suficientes, cada uma com uma
concepção própria de civilização, mas todas elas unidas por uma coisa comum: o Mal. Chamo a esse Mal
não mais aquele metafísico, originado do pecado original, o Mal no homem: o Mal dessas cidades é não
ter mais a culpabilidade diante do pecado. Viver a inocência como se a culpa não existisse mais. Poder
matar, poder fazer livremente o sexo, pecar contra todos os mandamentos e se considerar inocente ainda,
livre da culpa.
180
Autor de uma produção dramatúrgica tão contundente para a qual a dor não usa
máscara, José Vicente logo compreendeu em seu exílio voluntário pela Europa a
necessidade de retratar a trágica peleja do homem brasileiro:
Então descobri o tédio infinito que é a Europa. E comendo num restaurante indiano eu
compreendi o que é a náusea diante da existência, quando já não há mais nenhum ideal. Odiei a velhice
européia. Odiei sua decadência e sua falta de esperança. Eu vinha de um povo que sabia ainda avaliar a
Dor. Eu vinha de um povo que ainda lutava por seu lugar no mundo.
181
Abrindo mão dos elementos cultistas e racionais, a obra de José Vicente investe
no mal-estar e na disposição em arrombar compartimentos solidamente fechados de
onde saem abjeções e podridões comuns a todos os homens, disfarçadas, porém, de
arroubos confessionais. Nas palavras de Yan Michalski, o talento do autor apresenta
179
VICENTE, op. cit., p. 144.
180
Ibid., p. 165.
181
Ibid., p. 196.
158
“uma noção de generosa entrega, de uma auto-imolação através do ato de escrever,
possivelmente sem precedentes na dramaturgia brasileira”.
182
Cerca de uma década depois de Santidade e O assalto terem sido escritas, Caio
Fernando Abreu, em seu acerto de contas literário e biográfico com os tempos da
contracultura - o livro Morangos mofados - cunhou uma frase que soa absolutamente
adequada ao universo do ex-seminarista consciente da impossibilidade da purificação:
“Escrever é enfiar um dedo na garganta”.
183
182
MICHALSKI, Yan. In: VICENTE, José. Hoje é dia de rock. Rio de Janeiro: Lia Editor, 1972.
contracapa.
183
ABREU, op. cit., p. 155.
159
CAPÍTULO 4:
AS PEÇAS PRECOCES DE ROBERTO ATHAYDE
160
Nota biográfica
Roberto José Austregésilo de Athayde nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em
25 de novembro de 1949, onde passou a infância e a juventude. Oriundo de um clã de
escritores (é filho de Austregésilo de Athayde), em 1968, ele foi para a França, com o
objetivo de freqüentar o Cours Semestriel de Civilisation Française, na Université Paris-
Sorbonne. Nos dois anos seguintes, a vocação para a música o fez fixar residência nos
Estados Unidos, levando-o a cursar composição musical na Universidade de Michigan.
De volta ao Brasil, Roberto estreou na literatura, no início da década de 70,
escrevendo alguns contos e um romance, mas tornou-se mesmo conhecido por suas
peças de teatro (que somam vinte e seis títulos), muitas delas tragicomédias de estilo
abrasivo e irônico.
Em 1973, aos 24 anos, ele surgiu de modo fulminante no panorama teatral
brasileiro com o monólogo Apareceu a Margarida, interpretado por Marília Pêra e
dirigido por Aderbal Freire-Filho (que à época assinava Aderbal Júnior). O texto - que
já foi encenado em mais de vinte países, com cerca de quarenta produções só em língua
alemã e quase trinta em língua francesa - integra as chamadas peças precoces do autor,
recentemente editadas em livro de volume único
184
. Trata-se de um conjunto de cinco
obras curtas que foram escritas, entre abril e novembro de 1971, sob forte influência de
dramaturgos como Eugène Ionesco, Samuel Beckett e Bernard Shaw, como ele mesmo
reconhece. Fazem parte ainda da pentalogia O reacionário, Um visitante do alto,
Manual de sobrevivência na selva e No fundo do sítio.
Após a bem-sucedida carreira de Apareceu a Margarida
185
, o diretor Aderbal
Freire-Filho montou, em 1974, Um visitante do alto e Manual de sobrevivência na selva
com o elenco do Grêmio Dramático Brasileiro, uma companhia experimental de
repertório dirigida por ele nos anos 70 que teve uma vida muito curta. No mesmo ano
ainda, Apareceu a Margarida ganhou uma prestigiada encenação do diretor francês
Jorge Lavelli com o nome de Madame Marguerite. Vale ressaltar que a peça, com mais
de duzentas produções ao redor do mundo, nos últimos trinta anos, serviu de veículo
para o talento de atrizes como Marilu Marini (Argentina), Annie Girardot e Madeleine
184
ATHAYDE, Roberto. As peças precoces: Apareceu a margarida e outras. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2003.
185
A peça obteve dois prêmios Molière em 1973: de melhor atriz para Marília Pêra e de melhor autor.
161
Robinson (França), Anna Proclemer (Itália), Ellie Lambertti (Grécia), Monique Leyrac
(Canadá) e Estelle Parsons (Estados Unidos).
Em 1976, No fundo do sítio foi montada por uma companhia inglesa em
Londres. À mesma época, Manual de sobrevivência na selva é encenada em língua
francesa. A única das chamadas peças precoces que permanece inédita é O reacionário.
Depois de um hiato de doze anos, o dramaturgo voltou a produzir regularmente
para teatro, escrevendo Os desinibidos (1983), Crime e impunidade (1984), A viagem ao
Oriente (1984), A arquiteta e o rei do ladrilho (1988), Portrait of the artist as a young
ghost (1989), The shaman of the Amazonia (1990), The smoke and the fire (1991), Os
quatro pilares da decência (1991), Carlota rainha (1994), Dom Miguel, rei de Portugal
(1998), O homem cordial (1999) e A grande visita (2000). Com exceção das duas
primeiras peças, montadas, respectivamente, em 1983 e 1984, no Rio de Janeiro, todas
as demais desta fase permanecem inéditas.
De volta ao romance, Roberto Athayde dedicou-se a uma saga sobre o tema dos
brasileiros expatriados, exercitando um estilo que chama “neo-rococó” em Confissões
do comissário de bordo Vladimir da Braniff (1989), seguido de Brasileiros em
Manhattan (1996). O escritor produziu também poesia com O homem da Lagoa Santa
(1979) e, recentemente, buscando ressuscitar um gênero antigo, misturou poemas e
ensaios em Abracadabrante, uma espécie de resenha da história dos principais
calendários, criada por ocasião da passagem do milênio. Athayde ainda fez algumas
incursões pelo gênero infanto-juvenil, destacando-se desta lavra o romance para
adolescentes O bicho carpinteiro (1998).
Em 1986, ele foi o responsável pela adaptação de O mistério de Irma Vap, de
Charles Ludlam, espetáculo dirigido por Marília Pêra e interpretado por Marco Nanini e
Ney Latorraca que se transformou num dos grandes êxitos de bilheteria do teatro
brasileiro recente.
Em suas constantes viagens internacionais, o dramaturgo fez breves experiências
como ator em Roma e em Nova York. Nesta última cidade, também dirigiu uma versão
de Reveillon, de Flávio Márcio, para o Centro Experimental La Mama.
Iremos nos deter, a partir de agora, nos cinco textos curtos que integram as peças
precoces, que, apesar de heterogêneas, constituem um todo plenamente sintonizado com
os ventos experimentais que sopraram sobre a dramaturgia brasileira na virada da
década de 60 para a de 70.
162
O reacionário
A primeira delas, O reacionário, contempla uma série de três breves discussões
de cunho ideológico e comportamental entre o reacionário Dr. Alfredo Pratraz e seu
amigo socialista Leão Trote. A ação se passa na casa de Pratraz, mais precisamente na
“sala de estar, fino gosto”, onde há também um piano. Abre-se o pano e Alfredo Pratraz,
um rico homem de meia-idade, está sentado numa poltrona lendo o jornal, enquanto
Odênis, sua empregada, também de meia-idade, espana os móveis. Alfredo dirige-se
diretamente à platéia, declarando-se um homem de extrema-direita. Ele pede ao público
que observe sua relação com Odênis, a fim de demonstrar como o reacionarismo é
plenamente absorvido pelas classes subalternas. Pouco depois, a empregada pergunta ao
patrão sobre o que ele acha da sindicalização da categoria das domésticas. Alfredo
horroriza-se com a questão e vocifera contra os sindicatos. O jovem e atlético Leão
Trote entra, sem ser visto pelo amigo, e contempla a doutrinação. Odênis anuncia a
presença de Leão, que trava com Pratraz uma forte discussão a respeito da felicidade da
empregada. Finda a contenda, Odênis vai verificar se o jantar está pronto, enquanto
Alfredo e Leão tentam fazer as pazes. Entre eles há um jogo de dominação que vai
revelando aos poucos um forte conteúdo sexual. Alfredo pede ao amigo para mostrar
seu “dever de casa”. Leão anuncia um “projeto de revolução cultural” que prevê a
proibição de espetáculos teatrais em recintos fechados, a fim de tornar a arte
verdadeiramente popular. Nasce outro embate verbal entre os dois, desta vez, atenuado
pela ligação afetiva que os une. Chega, então, o professor de piano de Alfredo, Florenzo
Appoggiatura, um velho encarquilhado que é surdo-mudo. Alheio a tudo e a todos,
Florenzo é mera figura decorativa, e sua decrepitude faz Alfredo e Leão iniciarem nova
discussão que, desta vez, culmina em luta corporal. Odênis entra e aparta a briga. Eles
se recompõem e voltam a falar da revolução cultural. Segundo o projeto de Leão,
também ficam proibidas as aulas de piano particulares. Mais um motivo para briga.
Novamente Odênis os interrompe, anunciando o jantar. A terceira medida da revolução
cultural preconizada por Leão é revelada: garantir o acesso de mulheres negras,
analfabetas e faveladas à Academia Brasileira de Letras. Uma vez mais, a contestação
de Alfredo suscita uma discussão - agora, de explícito teor erótico. Leão pomposamente
abandona a cena, prometendo nunca mais voltar. Alfredo, perplexo, pede que Florenzo
toque alguma coisa. O professor executa a ciranda popular “Eu sou rico, rico, rico, de
marré, marré, marré...”, acompanhado pela voz de Alfredo.
163
Três das peças precoces indicam o gênero exercitado pelo autor: Manual de
sobrevivência na selva é apresentada como uma “tragédia poética”; Apareceu a
Margarida, como um “monólogo tragicômico para uma mulher impetuosa” e No fundo
do sítio, como um “melodrama-pantomima”. O mesmo não ocorre com O reacionário e
Um visitante do alto, as duas criações que mais assumem o caráter de farsa entre
aquelas do conjunto.
O reacionário é uma espécie de farsa política, a começar por seu próprio título e
pelos nomes atribuídos ao par antagônico: Alfredo Pratraz e Leão Trote. Na
apresentação das personagens predomina a ironia. Alfredo Pratraz é o homem cujo
“grande ideal de vida é ser verdadeiramente malicioso”, estágio que acaba por não
atingir, já que “sofre de irremediável boa-fé”; Odênis é “uma intelectual transviada para
os préstimos domésticos”; Leão Trote é o “elemento altamente subversivo”, a quem
Pratraz tolera “por causa de seus dotes físicos”, e, por fim, o professor Florenzo
Appoggiatura é descrito como um homem de 124 anos de idade, surdo-mudo, com
reumatismo nas mãos, e que “também é célebre”.
O tom cômico da peça está apoiado em três operações básicas: o uso de jogos
de lógica que resultam em nonsense, o apelo aos recursos de um humor marcadamente
popularesco e a atitude de escárnio e deboche em relação a certas marcas discursivas
típicas do universo político e cultural da época em que a peça foi escrita.
O nonsense, aqui, surge do cruzamento da influência de dois autores caros a
Athayde: Lewis Carroll com seus deslocamentos de sentido (tão expressivos em ambos
os livros de Alice, personagem citada diretamente em No fundo do sítio) e Bernard
Shaw com seus cáusticos paradoxos. O reacionário Dr. Pratraz é quem detém o
monopólio dos jogos de lógica corrosivos. Inicialmente, ele diz a Odênis que o
estudante hippie que, nos Estados Unidos, desferiu um pontapé no presidente Nixon
“torceu o braço dando o chute”. Logo adiante, o patrão declara à empregada que não
importa que ela passe o resto da vida trabalhando para ele - sendo “explorada,
maltratada ou mesmo brutalizada” - contanto que ela “seja feliz!”, emendando em
seguida que o sentido da vida de Odênis é servi-lo. Mais adiante, a fim de neutralizar a
retórica subversiva de Trote, Pratraz afirma que a justiça jamais existirá. “O clamor da
justiça não passa de fraqueza intelectualizada”, conclui ele. E quando Trote defende a
entrada dos analfabetos na ABL, a fim de inaugurar uma nova cultura de participação
social, o diálogo que se trava entre eles é pura mordacidade:
164
Leão Trote: (...) Isso significa que as portas da Academia Brasileira de Letras estão cerradas para
50% de brasileiros porque são analfabetos. Sim, Alfredo, é preciso realisticamente ligar uma coisa com a
outra: uma criatura analfabeta jamais poderia escrever um livro!
Pratraz: Sim, Leão, mas em compensação, se escrevesse, não teria nenhuma dificuldade de
publicar.
Leão Trote: Isso não interessa; a verdade nua e crua é que 50% dos trabalhadores e do povo
brasileiro são vítimas dessa discriminação nojenta. São rejeitados pela Academia porque são analfabetos!
Pratraz: Mas calma, Leão; é preciso você ser mais moderado. O fato de a Academia ser um órgão
relativamente alienado, um órgão que, como você diz, rejeita trabalhadores analfabetos, não quer
absolutamente dizer que todos os acadêmicos saibam ler.
Vale ressaltar que o deboche e o achincalhe a uma das instituições mais
tradicionais da cultura brasileira advêm aqui, no caso, do filho de um “imortal”, o
escritor Austregésilo de Athayde, que presidiu a Academia Brasileira de Letras de 1958
a 1993 - o mais longo mandato da história da instituição.
No embate entre Pratraz e Trote, há também mais uma tirada que lembra muito
os argumentos antifilantrópicos do Andrew Undershaft de Major Bárbara, de Bernard
Shaw:
Leão Trote: (...) Ah, Alfredo, você não tem mesmo boa-fé.
Pratraz: Mas claro que não. Onde é que já se viu discutir boa-fé? A boa-fé é uma coisa muito
perigosa. Eu acredito que a boa-fé, pra ser inofensiva, só pode ser usada pelas pessoas burras.
Leão Trote: Lá vem você de novo.
Pratraz: Não; sem brincadeira. Com o que você pensa que os pais destroem a felicidade de seus
filhos? Com uma boa dose de boa-fé. Os governantes a mesma coisa. Um presidente ou ditador de má-fé
é inteiramente inofensivo. E você sabe por quê? Porque a boa-fé, ou seja, uma convicção, pode dar às
pessoas energia bastante para os grandes malefícios.
Leão Trote: E os benefícios, o que produzem? A má-fé?
165
Pratraz: Não. É a boa-fé também. Só que muito mais raramente. A má-fé, que nós sempre
usamos em nossas discussões, não produz coisa nenhuma como você já deve ter notado. Nem mal nem
bem. Não produz absolutamente nada.
Leão Trote: Você está dizendo isso de boa-fé ou de má-fé?
Pratraz: Eu estou falando sem fé, Leão. Depois sou eu quem faz perguntas cretinas.
Outra vertente explorada em O reacionário está filiada à tradição do humor
rasteiro e grosseiro presente, por exemplo, na exploração de trocadilhos ou de palavras
de forte conotação sexual. Odênis se engana ao pronunciar o nome do estudante norte-
americano (McRubishall) e diz “Macrobichal”. Em dois outros momentos, ela dispara
frases como: “Enquanto tiver homens assim como o senhor... homens de visão. Mas,
por falar em divisão...” ou “Olha pra trás, Dr. Pratraz.”. Odênis também encarna a
empregada doméstica típica das comédias populares, ora espertamente ingênua, como
em:
Não foi nada não, seu Trote. Nós sempre conversamos assim mesmo: ele diz como é que eu devo
pensar e eu penso logo.
ora afetadamente teatral:
Lembrem-se de que eu sou uma mulher tragicamente desquitada e nem o senhor, dr. Pratraz,
nem mesmo o senhor Trote seria capaz de restituir a minha felicidade. É por isso que eu duvido um pouco
que o sindicato das domésticas (melodramática) pudesse dar um sentido à minha vida.
Embora detenha a posse de recursos de humor mais sofisticados, o personagem
do reacionário também apela ao popularesco. A certa altura, ele pede à empregada:
“Diga ao cozinheiro então, Odênis, que eu hoje quero uma salsicha desse tamanho
(gesto)” e mais adiante não resiste ao trocadilho fácil com o nome de seu amigo: “Tá
bem, sossega, Leão”.
No entanto, o que marca mais expressivamente o texto é a ambigüidade entre o
conteúdo crítico veiculado e a forma farsesca que ele adota. Alfredo Pratraz é a
caricatura do capitalista conservador, representante da esclarecida classe dirigente
166
brasileira que controla acintosamente os corações e mentes de seus subalternos; Leão
Trote encarna o militante da esquerda festiva, cuja vontade revolucionária é apresentada
em tom voluntarioso; Odênis é tratada como um arremedo das classes populares; e o
professor Florenzo Appoggiatura representa a obsolescência e a decrepitude da cultura
tradicional aristocrática. O caráter de farsa desmonta, à vista de todos, o discurso
propagado pelas personagens:
Leão Trote: (Entusiasmando-se; abrindo uma pasta e tirando uma papelada) Hoje foi uma
Revolução Cultural que eu trouxe.
[...]
Pratraz: Você sabe que na minha opinião a sociedade deve ser dividida em classes. As classes
que dirigem e as classes que obedecem.
186
Entretanto, os ventos da contracultura fazem repousar sobre esta farsa cujo
assunto é tão explicitamente político uma condição estranha a seu “conteúdo
programático” ou a seu “ideário”, digamos assim. É inegável que o Doutor Pratraz e
Leão Trote formam um par homossexual na trama, de cuja relação de intimidade
surgem os embates político-ideológicos. Vista sob este aspecto, a peça poderia tornar-se
uma comédia ligeira que submete qualquer tentativa de prontidão crítica à exploração
do comportamento das personagens, tratadas quase sempre de modo caricatural. No
entanto, seu escopo aponta para algo maior. O fato de ela transportar uma discussão
política consistente - até que ponto a esquerda depende da estrutura oligárquica do
poder, com quem mantém uma relação de intimidade que alimenta a ambas mutuamente
- para o âmbito de uma visada comportamental parece indicar uma nova possibilidade
de exercício crítico.
O texto faz amplo uso de jargões e de frases de efeito relativos ao universo da
militância política típica do final da década de 60: “Eu sou de extrema direita”, “É um
negócio de sindicato das domésticas. Diz que é pra melhorar nossa situação”, “... seu
socialista de merda. Socialista não: comunista!”, “Ué, você nem terminou o projeto da
Reforma Agrária e já entrou na Revolução Cultural?”, “Todo mundo sabe que nas ruas
186
Esta tirada antecipa a fala emblemática que a impetuosa Dona Margarida irá repetir à exaustão para
seus alunos: “Dá gosto de ensinar assim. Eu mando, vocês obedecem. Está ali escrito no quadro-negro. E
quais são os que merecem? São aqueles que obedecem.”
167
de Havana o povo faz teatro de participação espontaneamente”, “Eu não sou da
esquerda festiva. Eu sou um ativista...”, “Afinal de contas, você faz tomadas de
consciência duas vezes por semana, não faz?”, “É, eu sei que isso representará um
grande sacrifício para a burguesia.”, “... todas as criancinhas brasileiras tocando a
mesma música no piano! A ‘Internacional comunista’!”, “Toda justiça deve ser social”,
“Eu mando botar três pôsteres enormes aqui na sala: um de Marx (faz uma cara de
horror); um do Che Guevara (faz uma cara de mais horror) e outro... do Jorge Amado!
(Faz uma cara de puro terror)”.
Mas, em paralelo, as personagens também afetam, verbal ou fisicamente, certo
comportamento sintonizado com a vida homossexual: “Ih, que frescura, Leão”, “... eu
hoje quero uma salsicha desse tamanho (gesto)”, “Há uma grande divergência entre os
historiadores para saber onde tinha lugar a sacanagem grega”, “Você já leu o Satiricon
de Petrônio?”, “Ui! (assustando-se com o grito de Leão)”, “Mas devo confessar que
adorei esses operários todos dizendo lítero-musical”, “E quanto às mulheres... meu
interesse por elas não vai além de uma certa curiosidade”, “A homossexualidade deveria
ser privilégio dos gênios e dos adolescentes”, “Resumindo: o homem moderno tem que
ser boneca!”, “Meus Deus, que desgraça! Nós somos dois céticos! (desmunhecando
torturadamente)”.
Articulando esses dois campos lexicais assim tão díspares, o texto está
preocupado em mostrar que Eros invadiu o terreno da discussão política, uma vez que a
vida pública é tratada como uma excentricidade nascida dos desejos alimentados,
consciente ou inconscientemente, pela vida privada.
A tematização da crise política disputa espaço o tempo todo com a condição
homoerótica das personagens, mas constitui uma questão essencial: fazendo uma crítica
explosiva às posições populistas e aos intelectuais engajados, a peça discute a eficácia
da retórica de esquerda. Entretanto, a forma utilizada é a do deboche típico do teatro de
revista, que alia a esfera da ordem (os assuntos ligados à pátria) ao âmbito da desordem
(a imagem do carnaval e todas as suas conotações), como demonstra a pesquisadora
Neyde Veneziano. Deste modo, há muito de ironia em apresentar um militante de
esquerda homossexual, ainda mais quando nos recordamos do depoimento de Zuenir
Ventura em 1968, o ano que não terminou:
168
Alguns pioneiros de 68 tiveram que enfrentar as mais severas discriminações por parte das
nossas elites pré-revolucionárias, sobretudo quando aliavam à militância política a prática do
homossexualismo.
187
Assim, O reacionário confirma sua inserção no panorama cultural pós-68. Em
sua despretensão, a comédia brinca com os fragmentos do discurso da militância
política que estão em choque com uma nova realidade. A rigor, trata-se de uma criação
despretensiosa que, por meio de um viés crítico e anárquico, evidencia a passagem dos
assuntos nobres que invadiram o teatro nos anos 50 e 60 para uma nova sensibilidade -
pop, bissexual e ligada à liberação psicanalítica - tão em voga nos anos 70.
Um visitante do alto
A segunda das peças precoces é Um visitante do alto - uma espécie de anedota
de ficção científica, em tom de farsa, que se passa em “uma sala de estar curiosamente
decorada com enormes e obscuras fotografias de discos voadores”. A trama gira em
torno do astrônomo Antaris - pesquisador da Universidade do Brasil e membro
fundador da Associação Brasileira pela Visão de Objetos Não Identificados - e de seu
assistente Zé Luís, um sujeito jovem, bonito e inocente. Ambos recebem a visita de um
astronauta marciano de meia-idade, Pero, que vem à Terra, acompanhado de sua mãe,
Aniara.
A peça tem início com o esforço de Zé Luís em tentar reanimar Antaris, que está
no chão, desmaiado, pela surpreendente aparição dos marcianos. Quando ele desperta,
Pero comunica-lhe que a missão, de caráter cultural e científico, prevê sua aparição a
somente algumas sumidades do mundo científico. Trava-se uma prosaica conversa
sobre as diferenças de costumes entre terráqueos e marcianos, que culmina com a
revelação de que estes últimos são hermafroditas. Pero pede à própria mãe e a Zé Luís
que se retirem, a fim de fazer algumas revelações sigilosas a Antaris. Este sugere que o
casal se dirija aos aposentos de dormir do laboratório, propondo ambiguamente algum
contato íntimo entre eles.
187
VENTURA, op. cit., p. 39.
169
Uma vez a sós, Pero diz a Antaris que Marte é o único planeta do mundo que
possui o dom da vida, já que os marcianos povoaram a Terra com espécimes inferiores,
a título de experiência. O planeta Terra, diz o viajante, “é uma reprodução fiel da
civilização marciana, só que em nível de idiotia.” Outra revelação bombástica é a de que
os marcianos são tementes ao Deus cristão, tendo abandonado um passado de
liberalismo moral para chegar ao único sistema verdadeiro: um capitalismo manipulador
para o qual a felicidade e a liberdade são inteiramente incompatíveis. O marciano afirma
que a sociedade norte-americana foi inventada por eles a fim de acelerar o processo do
capitalismo na Terra e informa também que o verdadeiro Jesus Cristo foi enviado a
Marte há quarenta mil anos com o objetivo de redimir os pecados do planeta. E
complementa: uma réplica perfeita de Cristo veio à Terra há dois mil anos para
reproduzir a remissão dos pecados em caráter experimental. Diante de surpreendente
relato, o doutor Antaris passa a desconfiar da veracidade das informações, chegando
mesmo a desqualificar a figura do marciano. Aniara invade a cena, esbaforida, apenas
de calcinha e sutiã, e conta ao filho, muito excitada, que fez contato sexual com o
assistente do astrônomo. Antaris, indignado, diz que vai observar ele mesmo o
fenômeno e sai à procura de Zé Luís. Sozinhos, Antaris e Aniara discorrem sobre as
vantagens da vida não-hermafrodita. Pero retorna, igualmente extasiado, e comunica ao
doutor Antaris que por razões “estritamente científicas” levará o assistente para Marte,
ao que o astrônomo objeta veementemente. Após breve discussão, Pero tenta doutrinar
Antaris e a própria mãe acerca das verdades reveladas. Antaris sai para buscar Zé Luís
com o fim de convencê-lo a não acompanhar os marcianos. Trôpego e exausto, o
assistente diz que quer ir, mas que não pode por estar muito fraco. Pero saca de uma
arma e aniquila Zé Luís, que morre nos braços de Antaris. O marciano e sua mãe
embarcam na nave, enquanto o cientista ampara o corpo de seu auxiliar, ao som dos
versos de Sêneca: “Vai, pelos espaços infinitos do céu, para provar que não há Deus
nesse espaço em que te elevas”.
Estamos, aqui, diante de farto material que serve de veículo ao deboche e ao
achincalhe. Já na apresentação das personagens, o dramaturgo não se furta a veicular a
pouca estima que nós, brasileiros, nutrimos pelo país e por seus talentos. O astrônomo
Antaris é autor, dentre outros títulos, de Introdução à história dos ventos e do
“conhecido e laureado” De sideral em sideral, “já traduzido em 24 idiomas pelos vários
hemisférios”. Pela rubrica também ficamos sabendo que Pero fora incumbido de fazer
contatos científicos com americanos, russos, franceses, ingleses etc., sendo que no
170
“finzinho da lista, aparecia o Brasil como país optativo, caso houvesse tempo.” Outra
situação paródica é que o marciano viaja acompanhado de sua mãe, “uma senhora
pacata, entrada em anos”.
Similarmente ao que ocorre em O reacionário, o humor da peça está baseado em
três modos de atuação: o uso de jogos de inversão da lógica, o apelo a um tipo de
comicidade grotesca e a alusão debochada a alguns temas políticos próprios da época
em que a peça foi escrita.
No primeiro caso, Pero é a personagem disposta a confundir os terráqueos com
seus volteios de pensamento: “Uma coisa é acreditar em disco voador sem nunca ter
visto nada. É a coisa mais fácil do mundo. O difícil é acreditar diante da realidade
irrefutável dos fatos.”, “O Womens’s Daily tem um número enorme de leitores homens,
o que, segundo o meu Manual do Visitante à Terra, faz com que esse público seja tanto
mais indiscreto.”, “A felicidade e a liberdade são inteiramente incompatíveis. O homem
feliz é destituído de todo e qualquer arbítrio.”, “A estagnação é o objetivo. Nem poderia
deixar de ser. A mudança é fruto da insatisfação. Ao se atingir o degrau mais elevado da
civilização, atinge-se ao mesmo tempo a estagnação total.”
Em relação à comicidade, há inúmeros usos de recursos do baixo cômico. O Dr.
Antaris e seu assistente travam o seguinte diálogo quando sabem que os marcianos são
hermafroditas:
Zé Luís: O que é hermafrodita?
Antaris: É uma coisa horrível, Zé Luís. É uma pessoa que vai para a cama consigo mesma.
Zé Luís: Porra, então eu sou hermafrodita desde os cinco anos de idade.
É a partir do tipo físico de Zé Luís - um jovem “boa pinta” - que se exploram
algumas situações nas quais imperam a malícia e o duplo sentido. A marciana de idade
avançada arrasta o rapaz para fora de cena, movida pela curiosidade “científica”. Muito
agitada, ela volta logo depois, trajando somente calcinha e sutiã, quando então admite
para Antaris: “... seu secretário é gostoso paca!”. Pero também se interessa pela
anatomia de Zé Luís - o que faz com que sua condição “hermafrodita” rapidamente se
transforme em clara tendência homossexual. Excitado diante da possibilidade de
171
“observar” o desempenho sexual do assistente, o marciano se defende, em tom épico:
“Antes de tudo o dever, mamãe”. Quando retorna da “experiência”, trava um insinuante
duelo tanto com o Dr. Antaris quanto com a mãe:
Pero: O senhor parece que não está entendendo bem a situação. Seu secretário possui qualidades
extraordinárias, de valor inestimável para estudos interplanetários.
Antaris: Eu estou mais ciente que o senhor de todas as qualidades do meu secretário. Tenho
exatamente as mesmas razões interplanetárias que o senhor para exigir sua presença em meus estudos!
Aniara: (Conciliadora) Eu acho que o professor Antaris poderia nos esclarecer uma coisa: será
que essas qualidades do assistente Zé Luís são únicas sobre a face da Terra? Será que não existem outras
criaturas semelhantes a ele, que pudessem ser usadas equivalentemente em nossos estudos?
Pero: (desmunhecando discretamente) Nossos estudos não, mamãe: meus estudos. Dada a
importância da situação, esse é um estudo que eu gostaria de fazer sozinho.
Da referência à anatomia do órgão sexual masculino também surgem piadas de
gosto duvidoso, com em:
... Logo eu que, pessoalmente, detesto gelatina e tenho verdadeiro horror aos corpos moles.
ou em:
... a idéia de procurar um outro exemplo de Pitecantropus erectus me parece difícil e certamente
tomaria mais tempo do que o que nós temos.
Por fim, a peça também explora um tipo de humor de prontidão política, cujo
maior achado é fazer parte igualmente dos jogos de inversão do pensamento. Assim, o
marciano revela que os grandes valores espirituais, políticos, econômicos e ideológicos
contestados por certa militância intelectual da humanidade são, na verdade, os
princípios supremos de uma civilização adiantada! As declarações de Pero têm por
objetivo abalar a crença do cientista na igualdade e na liberdade humanas, em sentido
lato:
172
Pero: ... Falava-se de igualdade, em oferecer a todos os marcianos as mesmas oportunidades para
ser feliz. Houve até quem pregasse a própria liberdade.
O ateísmo, o cientificismo e as convicções político-ideológicas de transformação
das práticas sociais são ridicularizados pelo viajante do espaço como sistemas de
pensamento de uma civilização em nível de idiotia, já que os seres verdadeiramente
superiores do Universo são cristãos entusiastas do capitalismo selvagem:
Antaris (revoltado): Quer dizer que vocês no passado atingiram o ápice de consciência social e
científica que nós atingimos agora?! E não o levaram adiante?!
Pero: Claro que levamos adiante. Progredimos muito além dessa fase. Depois de grandes
cataclismos políticos, atingimos o único sistema verdadeiro. O único que está de acordo com a natureza
marciana.
Antaris (dramático): E qual é esse sistema?
Pero: O capitalismo
Antaris (horrorizado, quase chorando): O capitalismo...?
[...]
Pero: ... O verdadeiro Jesus Cristo, no entanto, o verdadeiro filho de Deus, esse foi enviado a
Marte há quarenta mil anos atrás. Foi enviado por Deus para sofrer e morrer pelos nossos pecados.
[...]
Pero: Deus criou a vida em Marte para sua maior glória, assim como Marte passou a mesma vida
para a Terra, em forma inferior e rudimentar, em nível de idiotia, também para sua maior glória.
[...]
Pero: Milhares de anos de adiantadíssima civilização nos levaram a atingir o regime político e
social perfeito que é o capitalismo totalitário.
Entretanto, tal perspectiva não é levada adiante, pois a peça retoma prontamente
a opção pelo caminho da comicidade baseada na sátira do comportamento sexual. Tudo
se encaminha para um final escrachado, no qual os marcianos são ridicularizados por
abandonarem a missão científica inicial, a fim de darem vazão a seus instintos eróticos,
despertados pela sensualidade do homem brasileiro. A disputa por Zé Luís acarreta sua
173
própria morte, e o Doutor Antaris acaba embalando, melodramaticamente, o corpo
inerte do assistente ao som dos enlevados versos de Sêneca.
Um visitante do alto é uma colagem inconstante de nonsense, humor popular e
sátira política. A partir de uma mordaz inversão de perspectiva (o pior que a civilização
vem produzindo é, na verdade, o seu melhor), tripudia-se da crença na transformação
social da humanidade tanto quanto se escarnece do pederasta, da mulher de meia-idade
que não faz sexo e do indivíduo simplório, mas bem dotado. O toque vanguardista fica
por conta do final em chave de paródia de melodrama, emoldurado pelos versos de
Sêneca.
Embora irregular, a peça está plenamente sintonizada com o espírito de sua
época, privilegiando a estética do recorte, a citação breve, a crise do discurso político
militante, a posição do intelectual e a ironia do poder e do saber. O recurso à malícia, ao
palavrão, às referências banais e às citações cultas concorre para a dessacralização da
cultura superior, a deturpação e o escracho - típicos da convenção revisteira, segundo
Neyde Veneziano. É pela adesão à causa da revista que a obra se resolve, exercitando
sinuosamente o par “universalidade x alusão”. Uma situação cósmica de larga monta
(Haveria mesmo vida fora da Terra? Como seria uma civilização alienígena superior?)
presta-se a todo tipo de referências concretas e imediatas ao campo da política, da
história, da ideologia...
Um visitante do alto também constitui uma criação despretensiosa, que
evidencia o rebaixamento da postura épica para o patamar da cultura pop - na qual o
distanciamento pode surgir da grossura e do deboche temperados com o uso irônico que
se faz de alguns ingredientes da tradição culta.
Manual de sobrevivência na selva
A terceira peça é Manual de sobrevivência na selva. Um avião cai na Floresta
Amazônica, salvando-se do desastre apenas quatro personagens: o Doutor Cândido,
“médico do Ministério da Saúde, enviado pelo governo para inspecionar o problema da
malária nos acampamentos da Transamazônica”; Leão Trote (agora, um “jovem de
esquerda que faz parte de um Projeto Rondon”); Fauno, um “aventureiro internacional e
universalista”; e Flora, uma “feminista norte-americana em exílio voluntário no Brasil”.
174
O cenário é a floresta amazônica, onde repousam os destroços do avião. O autor indica
que, enquanto “os atores fazem os passageiros que sobreviveram ao desastre, o público
faz os que não sobreviveram”. Há uma nota ainda que sugere o uso de dança para
representar bichos e vegetais, pois “apesar de os personagens estranharem a suposta
ausência de animais, isso não significa que não possam ser vistos pelo público”.
Inicialmente, os quatro estão, na medida do possível, tranqüilos e pensam em se
organizar para tomar as decisões necessárias a fim de serem resgatados. Após se
apresentarem uns aos outros, eles iniciam uma pequena discussão a respeito de como
irão sobreviver - o que leva o doutor Cândido a anunciar que a solução é encontrarem o
“Manual de sobrevivência na selva”. Uma vez de posse do manual, diz o médico, todos
os problemas serão resolvidos. Leão se entusiasma com a proposta - ainda que tenha
que procurá-lo por entre escombros e cadáveres - ao contrário de Fauno, para quem a
tarefa tem algo de assustador. Cândido e Leão saem em direção ao avião, enquanto
Flora tenta convencer Fauno da importância de achar o manual. Fauno lhe diz que é
melhor morrer passivamente. Voltam o médico e o estudante, entusiasmados por já
terem revistado 48 corpos, embora nada tenham encontrado. Flora, contaminada pela
alegria dos dois, se oferece para o trabalho, saindo com Leão. O doutor Cândido discute
com Fauno a possibilidade e a necessidade de localizar o compêndio. Fauno continua
determinado a não se mexer, enquanto Cândido vai tratando o manual com certa aura de
misticismo. Flora e Leão retornam, exaustos e desanimados, mas declaram
fanaticamente sua fé no encontro do objeto. Após algumas outras buscas, somente
Fauno (que não participa de nenhuma delas) mantém sua fleuma; os demais estão
deprimidos e perplexos. Encerra-se o primeiro ato.
O segundo ato tem início quando eles estão se preparando para dormir. Leão
convoca Cândido, que já está perdendo o controle emocional, a novamente ir atrás do
manual, mas eles voltam dizendo que o avião está afundando na lama, o que tornará
impossível o resgate do livro. Com certo tom visionário, Leão afirma estar convicto de
que o manual está por entre os corpos, fora do avião, e sai com Flora para procurá-lo.
Algumas pequenas expedições são enviadas sempre em duplas, das quais nunca
participa, obviamente, Fauno. A certa altura, Leão volta dizendo que o médico morreu,
afundado na lama, e corre descontroladamente para o pântano, ameaçando se matar.
Fauno vai atrás dele, mas retorna sozinho, confirmando a morte do estudante. Ele traz
na mão um pedaço de livro sujo e rasgado. Flora se entusiasma e arrebata o manual das
175
mãos de Fauno, lendo o único texto legível: “... para o caso de salvamento na floresta
aconselha-se coragem e bom-senso...” Num acesso de fúria, ela tenta sufocar Fauno,
que, em atitude de autodefesa, asfixia a companheira até a morte. Sozinho, ele começa a
ser invadido por uma misteriosa alegria, que logo se transforma em euforia. Ao
embrenhar-se na floresta, o jovem sai de cena, celebrando sua liberdade total frente à
natureza.
Manual de sobrevivência na selva foi batizada pelo autor de “tragédia poética” e
constitui uma bela tentativa de reflexão existencial a partir do enfoque de quatro
sobreviventes de um acidente aéreo que se vêem perdidos longe da civilização. Nela
abre-se mão do humor e das piadas fáceis, concentrando-se toda a atenção na situação
ora trágica, ora patética em que mergulham as personagens. Os nomes de três dos
sobreviventes apontam, de modo paródico, para o cenário natural - a Floresta
Amazônica - no qual eles se encontram: Flora, Fauno e Doutor Cândido, muito
provavelmente uma alusão ao marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, o sertanista
que dedicou grande parte da sua vida aos povos da floresta. Mas a intenção da paródia
não traz maiores efeitos cômicos para a trama. O mesmo se dá com Leão Trote, uma
menção claramente política, cujo trocadilho com o nome do emérito contestador do
regime stalinista não propõe também maiores brincadeiras.
Além dessas alusões, há também referências diretas ao mundo cultural imediato:
Leão Trote é o aluno de sociologia do Projeto Rondon que reage à situação, fazendo uso
de algumas frases tão ao gosto da política estudantil: “O que a gente precisa é se
organizar. Vamos nos reunir e tomar decisões”, “Nós temos que analisar a nossa
situação e agir de comum acordo”, “Vamos, senta todo o mundo aí e vamos discutir a
situação”; o Dr. Cândido é médico do Exército em missão de combate à malária; e
Fauno é o aventureiro que, ao se apresentar aos demais, faz chiste a respeito da Zona
Franca de Manaus e dos aparelhos eletrônicos vendidos na região.
Entretanto, logo tais elementos realistas cedem lugar a uma situação nuclear
típica de uma dramaturgia mais disposta a refletir, em chave alegórica, sobre a
existência humana lato sensu: quatro indivíduos são tragados pela experiência natural e
tentam reagir a ela intelectualmente. A peça discute a dependência do homem do saber
livresco, organizado e disposto em pílulas de conhecimento, tão caro à sociedade
moderna. As personagens, independentemente de suas convicções ideológicas (a
militância de esquerda de Leão Trote), de seu papel na sociedade (Dr. Cândido, médico
176
do Ministério da Saúde) e de sua posição no mapa geopolítico mundial (o aventureiro
internacional e a estudante feminista norte-americana seduzida por uma causa
humanitária do terceiro mundo), se vêem às voltas com a mesma limitação: a
incapacidade de lidar com uma experiência concreta que exija prontidão para a ação.
Tomando como ponto de partida a mesma situação inicial de O arquiteto e o
imperador da Assíria, de Fernando Arrabal (cuja montagem com Rubens Corrêa e José
Wilker foi um grande sucesso do ano de 1970), a peça delineia uma envolvente
atmosfera de angústia metafísica, calcada, sobretudo, na fixação que as personagens vão
devotando paulatinamente ao manual:
Dr. Cândido: ... O Manual de sobrevivência na selva. É isso que nós precisamos encontrar. Uma
vez de posse do manual, todos os nossos problemas estarão resolvidos porque aí a gente sabe o que fazer.
[...]
Flora: ... A orientação, saber a quantas se anda, é muito mais importante do que você imagina. E
isso quem dá é o manual.
[...]
Leão Trote: (Com uma obsessão surda) O Manual de sobrevivência na selva. Nós temos que
achar esse manual. Nós precisamos dele. Todo mundo precisa dele. É uma coisa universal. Os meus
antepassados mais longínquos precisam dele. Eu preciso do manual.
É a Fauno que cabe revelar quão irracional é a atitude obstinada das demais
personagens em relação ao manual, embora ele não faça nada além de contemplar sua
própria inércia:
Fauno: Eu acho que se eles tivessem armas e material moderníssimo, usariam pra procurar o
manual em vez de procurar comida. E se eles tivessem um helicóptero, usavam para sobrevoar os
escombros e procurar o manual em vez de voar pra civilização.
Ao final, o niilismo do jovem chega ao extremo de um irônico paradoxo:
Fauno: ... Nem tudo está perdido, apesar de nós termos achado o manual...
A moldura do absurdo se revela em dois detalhes principais, observados por
Flora. As personagens estão abandonadas a sua própria solidão, uma vez que esta
“floresta” prima pela ausência absoluta de qualquer ser-vivo: “Não tem bicho nessa
177
floresta. ‘Cê não viu? Nós não ouvimos um barulho de bicho esse tempo todo. Nem
barulho de passarinho. Nem macaco. Não tem bicho na selva amazônica. A floresta é
totalmente deserta”. Além disso, a presença da morte parece perturbadora aos
sobreviventes não por ser uma ameaça direta e, sim, pela sensação de que eles estão
vivendo uma experiência cíclica infinita: “... eu não agüento mais. Esse eterno revolver
de escombros! As horas vão passando e nada parece mudar. O avião parece
infinitamente cheio de corpos! Quanto mais corpos nós tiramos mais corpos aparecem.
Muito mais corpos que os passageiros todos do avião” .
Mesmo a esperança de encontrar o manual, que a princípio parecia constituir um
antídoto contra todas as tribulações, acaba contrabalançada ironicamente pelo
desespero:
Leão Trote: ... O monte de corpos é muito grande. É difícil decidir por onde começar.
Fauno: Começar?
Leão Trote: É, ora, é como se a gente estivesse começando a cada expedição. Talvez seja por
causa da esperança, que é sempre nova. Ou talvez por causa do monte, que é tão grande.
Fauno: É um eterno revolver de escombros.
Um belo diálogo a respeito da brutalização que a rotina inflige à experiência é
travado entre o jovem niilista e o médico:
Fauno: A essa altura, procurar o manual dentro e fora do avião é a mesma coisa que procurar
fora dele, o senhor mesmo reconhece... (Pausa) Mas nem por isso o senhor quer procurar pela floresta
infinita, em qualquer lugar, deixando o avião para trás. Por quê?
Dr. Cândido: É porque eu andei horas e horas dentro do avião; embora ele propriamente já não
exista mais, eu posso dizer que conheço o comportamento do avião, os hábitos que ele tinha, a mania das
pistas asfaltadas intermináveis, as grandes correrias pelo chão antes de voar, as notícias dadas
mecanicamente pelo alto-falante, a graça das próprias aeromoças, eu... conhecia o avião... mas não
conheço a selva.
178
Fauno: Eu também não conheço a selva; mas só acredito em possibilidade de salvação na própria
selva; zanzando nessa sucessão de árvores, uma árvore ao lado de outra árvore. E sabe qual é o segredo
disso? É que eu não conhecia o avião. Então tanto faz.
Mas talvez o que a peça queira mesmo destacar seja o niilismo “à la Beckett”,
representado pela figura de Fauno:
Fauno: Qualquer minuto que se passe fazendo ou não fazendo o que quer que seja é sempre um
minuto mais perto da morte. Nem é preciso se estar na floresta amazônica para estar nessa situação.
[...]
Fauno: ... Mas para que pensar no suicídio quando a morte está tão perto? A inexistência é
compridíssima e obrigatória. Para que encurtar a vida que já é tão pequena e precária?
O único sobrevivente, de fato, representa a renúncia ao mundo do discurso
positivista e das atitudes utilitárias, preferindo doar-se a uma experiência em estado
bruto, sem anteparos intelectuais, somente concretizada a partir do instante que ele se vê
totalmente livre por conta da solidão absoluta. Sua fala final, estranha e sombria, propõe
esta reflexão:
Fauno: (Eufórico) A amada terra, toda verde, molhada de seiva! E as árvores plantadas,
agarradas umas nas outras. Por mais que eu ande, o horizonte vai ser sempre verde! Por mais que eu ande.
As árvores vão morrer de inveja de mim, da minha liberdade. Os caminhos não vão ter sentido; vão se
confundir um com o outro, e nenhum vai chegar a lugar nenhum! Os pântanos não vão chegar a lugar
nenhum lá embaixo, nem os montes vão chegar a lugar nenhum lá em cima! E a água vai cair do céu e
nunca vai ser bastante para matar a minha sede! E até os caminhos retos vão dar curvas, de tão grandes
que vão ser! E os círculos nunca vão passar pelos mesmos lugares! Eu vou entrar pelo caminho do rio; vai
ter um rio no fim de cada caminho em que eu entrar! Minha garganta está seca. (Cada vez mais
descontrolado) Eu não posso destruir a minha sede. Água! Água. Eu tenho que andar até encontrar um
rio. O importante é estar no caminho do rio. Nada mais importa; eu nunca vou achar o rio mesmo... (Ri
euforicamente) A amada terra, toda verde e sempre se renovando, uma árvore, depois outra, e mais
árvores e arbustos e cipós e plantas pelo chão: sempre, sempre, por mais que eu ande... (Gagueja,
cambaleia) Água, água! (Tornando-se aos poucos ininteligível, Fauno se embrenha na selva) Por mais
que eu ande, o horizonte vai ser sempre verde. Nenhum caminho vai chegar a lugar nenhum. A minha
liberdade... Água! (Pausa) Água! A amada terra... toda verde... nada... nada... nada vai chegar... Água...
Sempre tudo é verde aqui... nada vai chegar... a lugar... nenhum... (Ele se embrenha na floresta).
179
Manual de sobrevivência na selva propõe uma bem articulada discussão a
respeito da natureza da consciência humana e do significado da liberdade - temas tão
caros aos ventos contraculturais que sopraram sobre a dramaturgia brasileira a partir do
final dos anos 60. Tomando por base o pressuposto marxista e freudiano de que o
homem é vítima de uma consciência falsa da qual deve ser libertado, a peça procura
problematizar o caráter de interdição que a cultura (representada pelo manual) costuma
operar entre a razão e a realidade. Em sua modesta extensão, esta tragédia poética
constitui uma nota dissonante no discurso oficial que a dramaturgia brasileira vinha
produzindo a respeito da liberdade. A despeito de seus contornos realistas, a obra deixa-
se contaminar pela atmosfera do teatro do absurdo para o qual a liberdade do homem
somente começa quando ele se desincumbe das amarras da linguagem e da cultura.
Apareceu a Margarida
A quarta das peças precoces é uma pequena obra-prima: o “monólogo
tragicômico para uma mulher impetuosa” Apareceu a Margarida, constituído de duas
aulas, separadas por um intervalo. Dona Margarida é a professora que irá lecionar para
uma classe de alunos (a própria platéia do espetáculo), tendo a sua disposição uma mesa
e uma cadeira de professor, colocadas à frente de uma lousa verde. Durante as aulas, os
alunos ficarão expostos de modo vertiginoso tanto às técnicas pedagógicas polêmicas e
surpreendentes utilizadas pela mestra para abordar os mais variados assuntos quanto às
sucessivas explosões de seu temperamento imprevisível. Ora ela é afetuosa - declarando
querer se familiarizar com a turma, como se cada um fosse seu próprio filho, e
ensejando uma “atmosfera de compreensão, de estima e de amor” -, ora ela é truculenta,
gritando com todos e dirigindo-lhes palavras de baixo calão:
Você aí na décima quinta fileira! O que que está pensando que isso aqui é? Uma casa de
sacanagem?! E você aí, minha filha! Tá sentada como uma cadela! Ouviu bem? Uma vagabunda! (...)
Vocês vão pra puta que os pariu.
Dona Margarida abandona o ensino de cada matéria de modo muito rápido, mas
parece estar tratando sempre da mesma ciência - a biologia - o que a leva reiteradas
180
vezes a falar e a calar, paradoxalmente, sobre os “fatos da vida”. Assim, a matemática, a
história, a religião, a educação sexual, a língua portuguesa, a prevenção às drogas e a
educação moral e cívica acabam constantemente atreladas aos estudos “biológicos”.
O texto é um monólogo, e todos os espectadores integram a turma de estudantes
de dona Margarida, mas há uma presença real incômoda de um aluno que, sem dizer
uma palavra, por duas vezes durante o espetáculo, vai à frente da classe, de onde é
expulso pela mestra. É esse mesmo estudante quem socorre, também silenciosamente, a
professora ao final da peça, quando ela sofre uma crise nervosa que a faz abandonar a
cena. Sozinho, ele passa a remexer com curiosidade na bolsa da mestra de onde tira,
num crescendo de perplexidade, balas, bombons e um “grande e poderoso revólver”. O
estudante, então, volta para sua carteira, temendo que a professora possa em breve
retornar.
A atmosfera trágica da peça nasce do misto de angústia e fascínio que nutrimos
por uma protagonista cujo percurso de queda inevitável podemos vislumbrar, dada a
gradativa intensidade de seu delírio. Mas dos incessantes disparos discursivos e da
frenética coreografia corporal também advém o caráter de comicidade, constantemente
tratado como derrisão patética.
O texto oscila entre as esferas do absurdo, do expressionismo e mesmo do
realismo, elegendo alguns temas recorrentes dos quais irá extrair muito de seu efeito de
estranhamento. Usando uma gama variada de recursos para tratar seus alunos - que vão
da sedução e a chantagem até a repressão aberta, passando pela demagogia -, a
professora executa uma performance que envolve muitos assuntos espinhosos sobre os
quais estão assentados os pilares da cultura ocidental, como os valores do cristianismo e
da família burguesa, o embate entre a pulsão sexual e o instinto de morte, a natureza da
liberdade, a crise da palavra, os sistemas totalitários e a exacerbação do ego.
Grande parte da força do texto reside no fato de ele ser um monólogo, que faz
contrastar metalingüisticamente a fala desconcertante e labiríntica da professora com o
terrível silêncio que emana de seus alunos/platéia. Assim, o que poderia parecer uma
limitação da obra - a ausência do conflito entre um protagonista e um antagonista -
aponta aqui para uma técnica que faz a forma dramática absorver o conteúdo tratado,
como atestou Yan Michalski, em ensaio concebido especialmente para a primeira edição
em livro do texto da peça:
181
Neste monólogo, o próprio fato de existir apenas um único personagem, e um personagem que
fala sem receber resposta de ninguém, está intimamente ligado ao problema central proposto. A tensão
dramática estabelece-se aqui não entre os diversos aspectos da personalidade de D. Margarida, e muito
menos entre D. Margarida e um antagonista inexistente; ela se estabelece, antes de mais nada, entre D.
Margarida e a platéia, que assume simbolicamente a condição da turma de D. Margarida. E a essência
dessa tensão é o seu caráter unilateral: só uma das duas partes tem direito à voz e à ação, a outra fica
reduzida ao silêncio e à passividade: “D. Margarida ensina vocês a serem completamente inexpressivos.
D. Margarida quer vocês todos impotentes”. Esta sala é um programa de ação irresistivelmente dramática;
e de uma ação dramática que só pode concretizar-se através do silêncio e uma das duas partes em
confronto.
188
Convém lembrar também que, uma vez sintonizada com as vanguardas
internacionais, a peça procura fazer com que o apelo à forma do monólogo reforce ainda
a crise vivida pelo drama burguês - crise esta surgida desde o início do século XX,
conforme aponta Anatol Rosenfeld:
Esse mesmo cunho épico (ou lírico) impõe-se também através da estrutura monológica, no
drama que acentua a solidão humana. Na medida em que o contato humano (mesmo antagônico) e a
comunicação se tornam precários, afetando a possibilidade do diálogo como expressão da relação
interpessoal, o recurso a estruturas abertas se torna impositivo. (...) Na crise do diálogo reflete-se uma
crise muito mais ampla. O drama moderno, aberto, assimilou essa crise na sua própria estrutura.
189
Se nas peças anteriores de Roberto Athayde, é possível identificar, por exemplo,
certas influências da dramaturgia de Bernard Shaw e de Samuel Beckett, em Apareceu a
Margarida, a comparação com A lição de Ionesco é inevitável:
O que menos agrada em Apareceu a Margarida são algumas influências mal assimiladas, que o
autor aparentemente nem sequer se esforça por disfarçar. Ele usa generosamente recursos já amplamente
consagrados em toda uma série de peças do chamado teatro do absurdo, e sobretudo parece dever muito a
Ionesco, particularmente à sua famosa A lição. A própria estrutura de peça-aula foi praticamente exaurida
nessa magnífica obra do dramaturgo franco-romeno, a tal ponto que qualquer texto que lançar mão dessa
mesma estrutura terá de expor-se, por muito tempo, a inevitáveis paralelos. E quando D. Margarida
adverte seus alunos sobre os desastres que se abaterão sobre eles se não conseguirem passar no exame de
admissão, perdendo assim o acesso não só ao curso ginasial mas também ao colegial, ao superior e à pós-
188
MICHALSKI, Yan. Os fatos da vida. IN: ATHAYDE, Roberto. Apareceu a Margarida. Rio de
Janeiro: Editora Brasília, 1973. p. 12.
189
ROSENFELD, op. cit., p. 44-5.
182
graduação, com seus diplomas de mestrado e doutorado, parece-nos que estamos ouvindo o professor de
A lição discutindo com a sua aluna a possibilidade de ela candidatar-se ao exame de doutorado total. As
semelhanças são aqui tão pronunciadas que chego, talvez paradoxalmente, a desconfiar que Roberto
Athayde nunca leu A lição antes de escrever Apareceu a Margarida.
190
Entretanto, a moldura do teatro do absurdo parece não se sustentar plenamente
ao longo do texto, uma vez que o movimento monológico desta personagem
atormentada por uma exacerbada singularidade atribui à obra um caráter expressionista,
reforçado, sobretudo, pelos conflitos principais que ela enuncia: sexualidade, mal-estar
e morte.
Depois de Nelson Rodrigues ter associado em sua dramaturgia, de acordo com a
análise de Sábato Magaldi, o sexo ao desregramento do instinto, sob uma perspectiva
freudiana, Roberto Athayde, estimulado pelas informações da contracultura,
problematiza a questão sexual vinculada à repressão e à subjugação institucionais,
segundo a abordagem de Herbert Marcuse. Em Eros e civilização, o filósofo alemão
interpretou o pensamento de Sigmund Freud à luz do marxismo, introduzindo os
conceitos novos de “mais-repressão” (as restrições requeridas pela dominação social) e
“princípio de desempenho” (a forma histórica predominante do princípio de realidade).
Ao longo da obra, praticamente todo o edifício conceitual freudiano é preservado por
Marcuse, mas o que o pensador quer destacar em sua revisão da psicanálise é que “a
luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política”. Assim, transpondo o pensamento
marcusiano para a peça, podemos constatar que, ao anunciar insistentemente que os
fatos da vida só serão ensinados mais adiante e ao fazer da ameaça de nudez diante da
classe um perverso jogo de sedução/repressão, Dona Margarida está efetivamente
subjugando os instintos de seus alunos, mediante controles repressivos amparados pela
instituição escolar em particular e por um sistema político totalitário em caráter mais
amplo, para os quais, às vezes, o exercício racional da autoridade acaba suplantado pela
dominação.
Em Eros e civilização também podemos buscar o auxílio para tentar
compreender outra referência desconcertante do texto. Repetidas vezes, Dona
Margarida deseja saber se há entre os alunos alguém que se chame Jesus (“Tem alguém
aí chamado Messias? Não? E Jesus? Tem alguém aí chamado Jesus? Não? E Espírito
Santo? Tem alguém aí chamado Espírito Santo? Não? Não mesmo? Ainda bem”),
190
MICHALSKI, op. cit., p. 12-3.
183
aliviando-se com a resposta. Marcuse procura demonstrar como a figura de Cristo
simboliza uma pulsão libertadora e de que maneira, por meio de sua morte, o sofrimento
e a repressão foram perpetuados:
Se seguirmos essa linha de pensamento [a relação entre o crime primordial e o sentimento de
culpa] para além de Freud e a ligarmos com a dupla origem do sentimento de culpa, a vida e morte de
Cristo teria o aspecto de uma luta contra o pai - e um triunfo sobre o pai. A mensagem do Filho era a
mensagem de libertação: a destruição da Lei (que é dominação) pelo Ágape (que é Eros). Isto ajustar-se-
ia à imagem herética de Jesus como o Redentor na carne, o Messias que veio para salvar os homens na
Terra.
191
As afinidades entre os elementos expressionistas e a psicanálise associam-se a
um conteúdo crítico de largo alcance, tentando apresentar um complexo cruzamento de
idéias sobre uma mulher eminentemente brasileira, mas cujo mal-estar tem caráter
universal. Em “A inquietude e o ato criativo: sobre o expressionismo e a psicanálise”, a
ensaísta Maria Inês França atribui à arte expressionista e à psicanálise o caráter de
práticas carregadas de ambigüidades:
A arte expressionista e a arte da escuta psicanalítica abordam a expressão como uma
problemática que não se manifesta pela linguagem, ela está na linguagem. Portanto, esse aspecto tão
marcante no movimento expressionista reúne-se à indagação estética psicanalítica que revela as
impressões (Eindrücken) do que é indizível no plano da consciência e que apresenta o contexto da
linguagem para além da ordem, pois se abre para o discurso fragmentado e descontínuo, presente no
movimento expressionista, nas suas diversas formas de apresentação, assim como na clínica psicanalítica,
em que a produção dos efeitos do belo-sublime se situa entre percepção angustiante e fantasia.
192
Amparados por estas referências expressionistas e psicanalíticas, podemos
interpretar a peça como um longo monólogo de um “sujeito fraturado e incompleto” que
revela “um corpo inserido traumaticamente na linguagem”. A ultra-dominadora mestra
(“Dona Margarida nunca vai parar de ensinar... Dona Margarida vai estar sempre aqui.”)
tenta constantemente reprimir a manifestação de Eros em sua fala e acaba tratando
invariavelmente o sexo como pornografia. A segunda palavra que a professora escreve
191
MARCUSE, op. cit., p. 77.
192
FRANÇA, Maria Inês. A inquietude e o ato criativo: sobre o expressionismo e a psicanálise. In:
GUINSBURG, Jacob (Org.). O expressionismo. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 130.
184
na lousa (após seu próprio nome) é cu, acompanhada pelo desenho de um pênis. Pouco
depois, ela diz aos alunos que não irá ensiná-los a “beijar, chupar, fornicar” ou mesmo
mostrar-lhes os peitos, garantindo-lhes que a puberdade é a fase de pensar em
“porcaria” e “sacanagem”. Para a professora, eles se dividem em “pederastas” e
“vagabundas”, mesmo porque, em se tratando do mundo masculino, “há somente duas
espécies de homem: os homossexuais e os veados”. E, de tempos em tempos, a auto-
proclamada mestra “epicuriana” (que, segundo ela, quer dizer mulher sensual) expõe
seus alunos a inúmeros conteúdos pornográficos, ora com malícia, ora dissimulando
certa dose de ingenuidade:
Mas como era mesmo a piada...? O boi... o tico-tico... não me lembro mais. Só sei que terminava
com a frase: o tico-tico chupa o boi e o boi chupa o tico-tico.
A mesma atitude parece estar presente na mistura entre o sagrado e o profano
que a professora faz em uma lição de catecismo, rapidamente interrompida: “Dona
Margarida tinha preparado para esta segunda aula uma lição de catecismo. Lição essa
que abordaria um tema de interesse geral e que, digamos assim, é a espinha dorsal da
nossa fé religiosa. Como vocês todos sabem, houve uma grande paixão na vida de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Bom, não adianta entrar na matéria sem poder ir até o fim”.
É Eros como impulso vital quem faz a mestra ter predileção pela biologia (“Se
for preciso, todas as aulas serão de biologia até o fim do ano!”), mas o exercício da
repressão a leva a atuar também em nome de Thanatos:
Há três grandes princípios na biologia. Ou melhor, há um grande princípio, um meio de tamanho
variável e um grande fim. Eu já falei a vocês do princípio. Todos vocês nasceram. E, o que é pior,
nasceram sem serem consultados. Tiveram que nascer. (...) O segundo princípio é o meio. É o que vocês
estão vivendo agora. É a vida caseira com o papai e a mamãe de cada um de vocês. É esse segundo lar
que é a escola. É essa professora de vocês, dona Margarida. É tudo. (...) O terceiro princípio é o mais
importante. É o fim da biologia. Eu, como boa professora, tenho que anunciar uma coisa que vocês, como
são crianças, ainda não sabem. Mas têm que saber. É que vocês todos vão morrer. Todos, sem exceção.
Tal associação entre a pulsão sexual e o instinto de morte será uma constante no
texto, a partir daí, atingindo matizes de humor negro, quando, por exemplo, a professora
escreve no quadro que todos irão morrer:
185
“Dona Margarida vai mandar vocês fazerem, quando for aula de português, uma redação, cada
aluninho descrevendo seu próprio enterro em suas próprias palavras. É preciso incentivar a criatividade de
vocês”.
Ou ainda quando ela descobre no palco, por detrás de um cortinado, um
esqueleto em tamanho natural (que pouco depois será desmontado com violência):
“Aqui está a nossa caveira! Um dia, no futuro, cada um de vocês será exatamente assim. Só que
ninguém vai ver vocês porque vocês vão estar enterrados. E é por isso mesmo, dada essa impossibilidade
de nos vermos a nós mesmos e aos nossos amigos como esqueletos, que se instituiu a ciência óssea.”
Mas a presença da morbidez reside ainda em formas menos unívocas. A energia
vibrante que emana de dona Margarida, às vezes, parece se esvair, dando lugar a falas
pessimistas e atitudes depressivas:
“Tem muito pouca coisa que dá pra ver no mundo. Quase nada se vê. Por isso vocês ouçam bem
as palavras de dona Margarida: se algum dia vocês virem alguma coisa podem se dar por felizes. Hoje em
dia não se vê quase nada por aí. São poucos aqueles que vêem alguma coisa.”
[...]
“Dona Margarida está com o saco cheio de vocês. E, já sei, vocês vão dizer que também estão
com o saco cheio de dona Margarida. É isso mesmo. É que biologia é um saco, colégio é um saco, a vida
é um saco. Vou escrever no quadro-verde que é pra vocês se lembrarem. (Escreve: a vida é um saco).”
A forma monológica e a postura auto-referente da personagem consagram o ego
como instância incompleta, sem firme contorno, que não atua segundo os motivos
lógicos e as categorias da psicologia clássica. Dona Margarida evidencia o sujeito
racional como concepção precária, cujos limites, esfarrapados, se revelam falseados e
ameaçados por poderes exteriores (políticos) e interiores (psicológicos), inescrutáveis.
De um lado o ego, representado pela figura ideal da mestra, mostra sua racionalidade;
de outro, o ser arbitrário, intransigente e assaz violento que habita esta mesma
educadora é porta-voz de forças irracionais provenientes da própria intimidade psíquica,
ampliada pela dimensão do inconsciente. A partir daí se entende a crise e a
impossibilidade do diálogo na peça. Apareceu a Margarida realiza um raro tipo de
sondagem na dramaturgia nacional, ao devassar a intimidade irracional do cidadão
brasileiro de classe média em sua subjetividade solitária, usando para tanto uma forma
186
muito particular de tratamento de uma situação discursiva alegórica (uma aula) que não
abandona, em nenhum momento, por sua vez, o contato com a realidade.
É impossível não identificarmos no clima de tirania que se estabelece entre
professora e alunos uma alegoria da insidiosa violência da ditadura instalada no país e
seus mecanismos de horror, embora Roberto Athayde tenha declarado durante uma das
inúmeras temporadas norte-americanas da peça que o texto trata dos diversos poderes
que oprimem um indivíduo, sejam eles exercidos pela família, pela vida social, pela
escola ou por um regime político ou econômico
193
. Entretanto, tal chave alegórica,
diferentemente daquela exercida pelo teatro de claro ativismo político, diz respeito à
nova sensibilidade jovem, pop, contracultural, vivida nos palcos brasileiros, entre o fim
da década de 60 e o início dos anos 70, conforme podemos depreender das palavras de
Yan Michalski:
Mas o que importa é que mesmo com esta possível falta de originalidade em alguns detalhes da
peça e em alguns recursos avulsos, Roberto Athayde escreveu uma obra que, no seu conjunto, é
eminentemente pessoal, e só poderia ser escrita por um jovem carioca no início da década de 1970. D.
Margarida é uma professora inconfundivelmente brasileira; seus alunos são inconfundivelmente
brasileiros; o relacionamento que existe entre ela e a turma só seria possível no Brasil. Isto confirma um
ponto de vista que venho adotando há muito tempo, ao defender algumas das realizações mais ousadas de
nosso teatro jovem contra a pecha de experiências importadas que lhe tem sido freqüentemente lançada:
as iniciativas realmente significativas, mesmo quando participam de uma corrente internacional de
renovação das formas teatrais, ficam inevitavelmente tão marcadas, no contato com a nossa realidade,
pelo temperamento nacional dos nossos diretores e atores, que a sua naturalização se faz
espontaneamente, e que sua relevância para nossa vida se torna inegável.
194
Apareceu a Margarida também é um estudo sobre os valores materiais e
espirituais que a ditadura tentou incutir na cabeça de certos setores burgueses da
sociedade brasileira que, de modo passivo e conformista, apoiaram o golpe militar de
1964. A própria eleição da profissão da personagem diz muito a respeito desta postura.
O cargo de professor primário (exercido majoritariamente pelas mulheres) foi por muito
tempo no Brasil sinônimo de uma visão de mundo conservadora, moralista e subalterna.
193
A primeira montagem do texto em solo americano data de 1978. Desde então, a peça vem conhecendo
sucessivas encenações naquele País.
194
MICHALSKI, op. cit., p. 13.
187
Em seu trabalho sobre a presença feminina na dramaturgia brasileira, Elza Cunha de
Vicenzo apresenta ainda um outro viés a respeito de dona Margarida:
Alguns anos depois [de Fala baixo, senão eu grito], em 1974
195
, Roberto Athayde criará uma
personagem igualmente risível, pela marca de um trabalho semelhantemente desmoralizado em termos
sociais: a professora primária. Se bem não desconheçamos a possível leitura metafórica de “D.
Margarida” acreditamos válida a observação de que parte do cômico se deve basicamente à referência a
esse traço da inferioridade social da mulher.
196
Seguindo este mote, a professora é dona de uma retórica afinadíssima com o
tradicional ideário da classe média, prezando a família (“Para dona Margarida a melhor
aula é aquela em que há... aquela mesma atmosfera de carinho e solidariedade que cada
um de vocês encontra em casa e no seio da sua família”), o civismo (“Só assim nós
podemos comungar nos nossos ideais de progresso e ordem”) e a moralidade (“...
procurem fazer o bem: É a única coisa que traz a felicidade”), e combatendo o mundo
do vício (“A Cannabis sativa é, das drogas, a que mais dano causa, porque ela leva
diretamente ao uso de outras drogas, precipitando sua vítima no torvelinho da
devassidão e do crime”). Mas parece também “preocupada” com as grandes questões
nacionais, como a erradicação do analfabetismo - que, no momento em que a peça foi
escrita, estava sendo conduzida retumbantemente pelo Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral):
“É preciso alfabetizar para depois alimentar. Uma pessoa analfabeta simplesmente não pode
comer bem. O nordestino não precisa de esmolas, mas sim de livros. Livros de poesia. É com livros que
se constrói uma nação. Vejam, por exemplo, a Amazônia. É com livros que ela devia ser conquistada. O
que o sertanejo precisa não é de enxadas, nem de vacinas, nem de sementes. Ele precisa de um manual de
sobrevivência na selva
197
. Algo que ensine, alfabetize.”
195
Em princípio, há certa imprecisão da autora, uma vez que a peça estreou em 1973.
196
VINCENZO, op. cit., p. 89
197
Aqui, o “manual de sobrevivência na selva” perde o caráter de crítica ao mundo racionalista e passa a
representar uma cruel piada sobre a habitual desfaçatez de que são vítimas os pobres e os analfabetos no
país.
188
Plenamente sintonizada com o “Brasil grande” do início da década de 70, Dona
Margarida convida (embora, instantes depois, acabe obrigando) os alunos a entoarem
com ela o slogan de sua “cruzada da alfabetização”:
É um método inteiramente novo, inventado por dona Margarida, que visa à alfabetização em
massa. Dona Margarida dá aulas particulares desse método por apenas trinta cruzeiros a hora. É o ideal
para países em via de expansão. O método de dona Margarida tem um lema que deveria ser repetido por
todo brasileiro. ‘Ensinar para aprender, aprender para ensinar.’ Esse lema será objeto de uma grande
campanha que dona Margarida deseja desencadear em todo o Brasil. Em prol da alfabetização do povo.
Mesmo quando resolve discorrer sobre alguns princípios e conceitos
estritamente científicos, a professora parece estar aludindo a certos comportamentos
sociais conhecidos:
Sabem qual é o grande princípio da História? Todo mundo quer mandar nos outros.
[...]
Dividir é cada um querer ficar com mais que o outro. (...) A matemática é a base de todas as
outras disciplinas. A conta de dividir tem que ser aplicada em todos os setores da sociedade.
[...]
Vocês têm que sair daqui sabendo alguma coisa de biologia. Vocês sabem o que é evolução?
Não sabem! Pois fiquem sabendo que evolução não é nada! Evolução não existe. É tudo sempre a mesma
coisa! É isso que é evolução. Tudo sempre a mesma merda! Não muda nada! Tudo sempre a mesma
droga! Vou escrever no quadro negro que é para vocês se lembrarem. (Escreve: evolução não é nada) E
revolução vocês sabem o que é? Também não sabem! Pois é duas vezes uma evolução. Duas vezes nada,
nada: revolução não é absolutamente nada! Coisa nenhuma!
É a fim de evitar o caos e a desordem em sala de aula que dona Margarida apela
recorrentemente para a severa doutrina da obediência e da disciplina, chegando a
estimular a auto-delação, quando é atingida por um barbantinho cheiroso, jogado
anonimamente:
Vocês todos façam um exame de consciência. Eu quero que o culpado espontaneamente se
levante e suba ao quadro-verde para se acusar. Vocês precisam aprender a se acusar quando fizerem uma
coisa dessa gravidade.
189
Essas são algumas das referências que evidenciam o nítido caráter de alegoria
política da peça. Entretanto, não podemos nos esquecer de que os recursos
expressionistas nunca abandonam o texto, mostrando a todo o momento a desregulagem
do discurso realista da personagem e sua degeneração em uma singularidade
exacerbada:
... todo mundo quer ser dona Margarida!
[...]
De certa forma, dona Margarida é o diretor.
[...]
Eu acabo essa aula quando eu quiser.
[...]
Dona Margarida conhece as vibrações e os poderes do corpo assim como as vibrações e os
poderes da mente.
[...]
Dona Margarida não dá permissão para que nada seja feito sem permissão. Dona Margarida não
deixa nada.
[...]
Só há uma maneira de enfrentar um problema com segurança e eficiência: é ter o conhecimento
completo de todas as possibilidades de solução e todas as possibilidades que cada uma dessas
possibilidades ofereceria. Dona Margarida, por exemplo, jamais inicia nenhuma ação sem ter esse
conhecimento detalhado e completo.
A partir desta radicalização ególatra, dona Margarida perde a noção de
alteridade. Margarida é também o nome da menina que, no primário, faz com que a
futura professora seja injustamente castigada. É ainda a antiga mestra e amiga, cujo
único defeito era o de não passar uma aula sem contar casos de namorados. Por fim,
também é o nome da colega lésbica do colégio, que vivia assediando sua xará. Todas as
três, pelos mais variados motivos, ao cantar, adulteram idiossincraticamente a letra do
hino nacional (“do que a terra Margarida, teus risonhos lindos campos têm mais
flores”), fazendo o nome da futura professora integrar a letra do hino nacional
brasileiro. Assim, o prenome da personagem abandona a condição anônima e vulgar
presente na ciranda popular “Apareceu a Margarida, ô-lê-ô-lê-ô-lá...” que batiza a peça
190
e ascende ao estatuto de partícipe de um símbolo pátrio: o cântico máximo de veneração
e louvor que os cidadãos devotam a sua pátria.
198
O ápice da densidade dramática deste percurso rumo à onipotência se dá,
naturalmente, pela via da linguagem. Dona Margarida, que passou grande parte do
tempo determinando o pensamento de seus alunos (“Há uma única maneira de pensar
sem cair no absurdo, é pensar uma vez só.”), descobre que é também capaz de mandar
nas palavras e nas frases, e, por decorrência, no mundo inteiro:
Tudo o que a gente diga que qualquer coisa é; é sempre um adjetivo. (...) Todas as coisas têm a
mesma maneira de ser: advérbio. É tudo advérbio! (...) É tudo verbo! É isso que as coisas fazem umas nas
outras! E vocês sabem o que que faz um verbo? E o que leva advérbio? E o que que tem adjetivo?! Sabem
o que é? São os substantivos! São os nomes! São as substâncias! São as coisas! São as transas! São as
aulas, é dona Margarida! É tudo! Dona Margarida é substantivo! Dona Margarida é nome! É tudo! (...)
Dona Margarida é professora! Dona Margarida manda nos verbos. Dona Margarida manda nos adjetivos.
Dona Margarida manda em tudo! Nos advérbios! Nos substantivos! (Frenética) Eu mando nas frases
inteiras! Eu boto uns depois dos outros! Eu boto um substantivo, a substância, a coisas, a disciplina, e
boto um verbo, aprender, esperar, massacrar, e um advérbio, impetuosamente, brutalmente,
adocicadamente, e um adjetivo, sujo preto, surdo, magro, eu faço uma frase inteira! Sou eu que faço! Eu
sou dona de tudo o que eu digo. São as minhas frases! (Cada vez mais eufórica, num crescendo) Ouviram
bem? São as minhas frases! Vocês não dizem nada! Vocês não entendem nada! Dona Margarida faz todas
as frases nessa sala de aula! Todas as frases! Dona Margarida é dona de todas as matérias! A história! A
geografia! A teoria, a gramática, a semântica, a patologia, a matemática, a biologia, a anatomia, a
pedagogia, a astronomia, hidrografia, geologia, psiquiatria, taquigrafia, religião, química, mineralogia,
lingüística, estatística, geometria! (Aos berros, já com a voz inteiramente distorcida, como louca, prestes a
explodir) A ciência toda!!! Tudo! Quiromancia! Cirurgia! Siderurgia! Tecno...”
Mas, nesse momento, a mestra tem um ataque do coração e cai no chão, sendo
socorrida por um aluno que não diz nada. Aos poucos, ela volta a si e ficamos sabendo
que a professora já sentiu algo parecido antes, um “enfarte de... teoria na coronária”.
Partindo de um estímulo advindo do teatro do absurdo e deixando-se
contaminar, ao mesmo tempo, pela estética expressionista e pelos desvãos do realismo
alegórico, Apareceu a Margarida constitui uma das mais bem-sucedidas experiências
198
Note-se que recurso similar é usado em O reacionário, quando a ciranda “Eu sou rico, rico, rico, de
marré, marré, marré” é deslocada de seu contexto habitual para reforçar ironicamente a classe social a que
pertence a personagem.
191
de vanguarda da dramaturgia brasileira, o que a levou a ser classificada pelo jornal
norte-americano New York Daily News como uma peça que mistura os registros de “um
libelo, uma alegoria política e um vaudeville expressionista”.
No fundo do sítio
Chegamos, então, à quinta peça precoce, No fundo do sítio. Trata-se de um
insólito diálogo entre um homem e uma mulher que foram amigos na infância, quando
moravam em um sítio, e se reencontram anos depois. A ação se passa em São Paulo,
“num belo dia, às 11 horas da manhã”, mais especificamente na sala de estar da casa de
Alli, um homem maduro e bonito, que está de pijama e robe de chambre, ouvindo
Petrushka, de Stravinski. Os móveis da sala de estar e todos os utensílios da casa são de
brinquedo, proporcionando um “efeito colorido e encantado”. A música convida o
personagem a imitar um boneco que dança, exibindo-se para o público. Depois de uns
cinco minutos, o divertissement é interrompido pelo som da campainha. Entra, então,
Trora, uma mulher bonita e já de meia-idade, a quem Alli não vê há quarenta anos. Ela
diz que há muito o procurava e menciona uma amiga comum, Alice, que tenta de
tempos em tempos transmitir recados e notícias um do outro, sem sucesso. A conversa
inicialmente gira em torno de um passado remoto entre os dois e vai ganhando ares de
ambígua estranheza. Pouco depois de Trora dizer a Alli que, após Alice cair em um
buraco, ela passou a contar histórias de bichos, ele percebe que Trora tem dificuldade de
se lembrar de muitas pessoas antigas, inclusive dos membros de sua própria família. Em
contrapartida, Trora constata que Alli não consegue mais se recordar dos objetos do
passado. Então, as tentativas de ambos de trazerem à tona as velhas reminiscências são
sempre entremeadas por alguma alusão à amiga Alice.
Trora se oferece para cozinhar, pois está com fome. Durante o preparo da
comida, feito fora de cena, ela vai se dando conta de que todos os utensílios de Alli são
de brinquedo, ao que ele reage com naturalidade, dizendo tratar-se da casa de uma
pessoa solteira. Passado o susto, Trora vem para a sala, enquanto a comida está
cozinhando. Eles falam de amenidades, e a amiga vai ver, afinal, se está tudo pronto.
Estupefata, ela retorna, constatando que tanto o fogão quanto o fogo são igualmente de
brinquedo. Aos poucos, ela olha ao redor e observa cada objeto, percebendo que todos
192
são brinquedos, afinal. Pateticamente, Trora reconhece que Alli habita a casinha de
bonecas que ela tinha no fundo do sítio quando eles moravam juntos, na infância.
Trágico, Alli afirma não se recordar de nada, mas leva Trora a reconhecer que ela
também não se lembra das pessoas. Ambos evocam o fundo do sítio como o lugar e a
época mais felizes de suas vidas. Dramaticamente, Trora confessa que veio morar com
Alli, depois de todo este tempo. Alli sai para pegar a mala da amiga. Quando volta,
descobre que dentro dela estão várias fotografias da família de Trora, de quem ela não
se lembra. Eles começam a pregar as fotos nas paredes e combinam que Trora irá tentar
fazer Alli se lembrar dos objetos, ao passo que ele fará com que ela se recorde das
pessoas. Trora começa a se deprimir, e Alli, artificialmente eufórico, tenta estimulá-la,
propondo-lhe que eles convidem a amiga Alice para vir visitá-los qualquer dia.
O universo de No fundo do sítio reverencia o teatro do absurdo, mas também não
assume integralmente as reais características do gênero. À desconcertante intriga
correspondem diálogos naturalistas que dão conta de inúmeras referências concretas e
que beiram a uma dramaticidade de motivação psíquica. Batizada de “melodrama-
pantomima”, a obra parece querer cruzar diversas referências, sobretudo literárias.
Roberto Athayde presta tributo aqui ao Lewis Carroll de Alice no país das maravilhas.
Não à-toa, a amiga que tenta estabelecer contato entre Alli e Trora, de tempos em
tempos, é homônima à genial criação do matemático e reverendo inglês. Dela, inclusive,
se diz haver caído em um buraco, de onde saiu tendo visões com bichos:
Trora: Foi uma coisa meio estranha, sabe, Alli. Ela caiu num buraco.
Alli: (Horrorizado) Caiu num buraco?!!
Trora: É. Por incrível que pareça. Um buraco grande.
Alli: Mas o que aconteceu? Ela se machucou?
Trora: Machucou. Mas isso não foi nada, o pior foi o choque psíquico que ela levou. Ela passou
três meses no hospital e depois ainda mais três meses numa fazenda de convalescença e depois ainda teve
que ficar de repouso.
Alli: Ah, coitada da Alice, e eu sem saber de nada. Você visitou ela?
193
Trora: Visitei duas vezes. E é justamente isso que eu ia te contar, o negócio das histórias dela
serem incríveis; as coisas que ela contava no hospital davam para escrever um livro.
Alli: O que que ela contava?
Trora: Ah, mil coisas. Histórias de bicho. Ela ficou meio perturbada.
Alli: (Chocado e perplexo) Histórias de bicho?
Trora: É. As histórias mais loucas com os bichos mais loucos e sem sentido; dava pra escrever
um livro perfeito pra crianças retardadas.
As referências a Alice são sempre marcadas pela precisão na nomeação dos anos
em que se dão os encontros, criando um efeito de puro nonsense:
Alli: Eu dei o recado a Alice pra você; em 58, se não me engano.
Trora: Pois olha: eu encontrei a Alice duas vezes em 63 e uma em 65 e ela não disse nada.
Alli: Em 67 eu encontrei ela de novo, acho que foi dessa vez que foi no Butantã; e dei o recado
de novo.
Trora: E eu encontrei ela no Natal de 70 e ela não deu o recado de novo.
Deste modo, a evocação constante da personagem marca os destinos de Alli e
Trora, às voltas com a difícil tarefa de crescer. Podemos, inclusive, nos perguntar se os
utensílios da casa de Alli são mesmo de brinquedo ou se na verdade foi ele que cresceu
demais, tal como nos habituais jogos de inversão de raciocínio que Carroll propõe para
resolver as questões do tamanho que a menina Alice vai experimentando no País das
Maravilhas.
Outra referência significativa diz respeito à tia Nastácia, que saiu do sítio em
1930. Alli e sua amiga podem, deste modo, estar presos ao universo fabular de muitos
leitores brasileiros que fizeram do sítio de Monteiro Lobato o espaço feliz de suas
infâncias. Deste modo, o tratamento do nonsense ganha notório ar de brasilidade. Mas a
194
própria alusão à vida em uma casa de bonecas remete ao universo fantástico dos contos
de E.T.A Hoffmann, em cuja obra bonecos que ganham vida e brinquedos
antropomórficos mais assustam e angustiam do que convidam ao encantamento. (Vale
notar também que a ação inicial da peça é a imitação de Petrushka por Alli).
Na atmosfera final do texto, a euforia cede, aos poucos, lugar à apatia e à
desolação. Ainda que estejam vivendo na casinha de bonecas do fundo do sítio de uma
infância remota, ambos os personagens perderam a memória; um, dos objetos; outro,
das pessoas. Tal perda de referências do passado, constatada em cenário ironicamente
anacrônico, só faz aumentar a certeza de que viver nesse estado de presente contínuo é
desesperador.
Alli: (Satisfeito, olhando para a parede repleta das caras da família de Trora) Ô Trora, parece
incrível que nós estejamos aqui juntos depois de tanto tempo. (Pausa) Tudo tá aqui. (Os dois sentam-se
no sofá em posição de casalzinho romântico. Alli dá um beijo na bochecha de Trora. Grande pausa) Mas
eu ainda assim não consigo me lembrar das coisas. Eu sei, são os seus brinquedos. Eu acredito porque
você diz. Mas eu não consigo me lembrar.
Trora: Eu também não consigo me lembrar dos retratos. Mas eu acredito no que você diz.
(Grande pausa) Ei, eu tive uma idéia! O que a gente tem é que contar um pro outro o que a gente sabe.
(Eufórica) Em detalhe! Com todos os detalhes! Afinal de contas tá tudo aqui.
[...]
Alli: Ah, Trora, não adianta ficar assim... Assim eu não te apresento a mais ninguém. Não se
lembra, não se lembra: não adianta ficar lamentando. O tempo não volta atrás. Fala você dos brinquedos
agora. Afinal tem tempo. Você mora aqui agora. Nós dois estamos juntos pra sempre, a gente tem a vida
inteira pra conversar.
Alli e Trora são criações de alta elaboração poética. Tal como os personagens de
Beckett, em cujos pares um depende tragicamente do outro, o casal de amigos também
está fadado a conviver pelo resto da vida, assim mutilados em seus psiquismos. Cada
um representa parte da memória do companheiro, sem a qual a vida não faz sentido.
Ambos esperam ser salvos do esquecimento, refugiando-se na ilusória instabilidade da
infância. Quem sabe, assim, consigam não fugir ao compromisso de saber
verdadeiramente quem são.
No fundo do sítio é um exercício experimental que alia uma situação básica de
inventiva fantasia a inúmeras referências concretas ao universo infantil. Não fosse
195
talvez pela duração excessivamente curta, o texto poderia alcançar uma complexidade
maior, explorando de maneira mais expressiva sua concentrada poesia.
A importância de ser ridículo
As cinco peças precoces de Roberto Athayde, díspares em seus gêneros e em
seus assuntos, assemelham-se, no entanto, pelo mesmo tratamento estético que lhes dá o
autor. Todas apresentam linguagem coloquial, próximas à cultura pop, e fazem
referências, em maior ou menos grau, a temas da experiência cotidiana e banal vivida
pelos habitantes das grandes cidades brasileiras. O trato das questões políticas e
ideológicas, em âmbito local (o regime opressor da ditadura militar) e internacional (o
capitalismo selvagem propagado pela cultura norte-americana) quase sempre é direto,
ou então é apresentado por meio do apelo a uma fantasia que não se descola em
momento algum da realidade.
Talvez por uma dificuldade em assumir de vez a vocação anti-realista ou por
uma estudada implosão dos contornos deste realismo, as peças vão saindo, aos poucos,
dos domínios de mimetização do real para mergulhar nas águas do surrealismo, do
expressionismo e do absurdo, sem perder, no entanto, sua identidade como legítimas
criações de dramaturgia brasileira.
O humor irreverente e escrachado do teatro de revista comparece em algumas
delas (O reacionário e Um visitante do alto, sobretudo); o vacilante trânsito entre a
erotização e a pornografia também marcam estas últimas, ao lado de Apareceu a
Margarida; a apresentação de situação, parcial ou integral, que remete ao puro nonsense
é condição de todas, seja a discreta presença do professor de 124 anos, em O
reacionário, seja o fato de o personagem de No fundo do sítio viver confortavelmente
em uma casinha de bonecas. Soma-se a isso o fato de todas proporem questionamentos
existenciais de fôlego; ora, disfarçados, muitas vezes, pela epiderme espalhafatosa do
grotesco (O reacionário, Um visitante do alto); ora, apresentados cruamente, sem
atenuação (Manual de sobrevivência na selva, No fundo do sítio); ora, ainda, oscilando
entre os dois registros (Apareceu a Margarida).
Por adentrarem os domínios do realismo psíquico, social e político que marcou a
dramaturgia brasileira, sobretudo na década de 60, mas trilhando-os pelas bordas, como
196
se precisassem se distanciar deles para propor algo novo, as peças precoces de Roberto
Athayde relêem alguns elementos da vanguarda internacional, aclimatando-os ao gosto
e à necessidade brasileiros.
Muitas vezes, estas obras procuram conjugar grande número de efeitos,
assemelhando-se à proposta do “théâtre panique” que Fernando Arrabal elaborou em
meados da década de 60 e de cujo ideário consta o abarcamento da maior variedade
possível de elementos: “tragédia e guignol, poesia e vulgaridade, comédia e melodrama,
amor e erotismo, happenings e conjuntos, mau gosto e refinamento estético, sagrado e
profano, execuções e celebrações da vida, sórdido e sublime”.
199
Em outros momentos, Roberto Athayde aproxima-se também do American
Theatre of the Ridiculous, que defende o “ridículo” como a única vanguarda “não
acadêmica”. O movimento - do qual fez parte, entre outros, o ator e dramaturgo Charles
Ludlam (autor de O mistério de Irmã Vap, que Athayde iria traduzir e adaptar nos anos
80) - surgiu em 1966, procurando homenagear os produtos antiestéticos de massa, a
cultura popular, o pop, o camp e a arte psicodélica. Ludlam iria postular em um
manifesto publicado em 1975 que o teatro do ridículo precisava buscar temas que
ameaçassem destruir “todo o sistema de valores do indivíduo” tratado “à maneira de
uma farsa desvairada, mas sem comprometer a seriedade do assunto”.
200
Tais idéias
parecem estar presentes no conjunto das peças precoces, sobretudo em Apareceu a
Margarida.
As personagens deste autor de produção tão singular se apresentam a nós por
meio de comportamentos insensatos e extravagantes, e suas histórias são frutos da
imaginação irrefreável com que alguns dramaturgos pós-68 começaram a perscrutar o
nosso jeito de ser e de estar no mundo.
199
apud CARLSON, op. cit., p. 445.
200
Ibid., p. 446.
197
CAPÍTULO 5:
A PRIMEIRA PEÇA DE EID RIBEIRO
198
Nota biográfica
O ator, diretor e dramaturgo mineiro Eid José Ribeiro Aguiar nasceu em 11 de
março de 1943, em Caxambu, Minas Gerais, e iniciou sua carreira teatral no CPC
(Centro Popular de Cultura) de Belo Horizonte, em 1963. Com o fechamento da
instituição pelo golpe militar de 1964, ele entrou para o Teatro Universitário também na
capital mineira, onde se formou como ator em 1967. Na mesma época, em companhia
de Alcione Araújo e José Antônio de Souza, Eid fundou o Grupo Geração, cuja
proposta era fazer um teatro popular e político. Como ator do grupo, ele integrou os
elencos de Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Viana Filho, Se correr o bicho pega,
se ficar o bicho come, de Oduvaldo Viana Filho e Ferreira Gullar, Mortos sem
sepultura, de Jean-Paul Sartre, e O santo e a porca, de Ariano Suassuna. O Geração
dividia-se em um núcleo profissional e outro amador, cabendo a este último viajar pelo
interior e apresentar, sobretudo, espetáculos experimentais.
Em 1969, após alguns problemas com a Censura e enfrentamentos com a polícia,
o grupo Geração é dissolvido - o que leva Eid Ribeiro a mudar-se para o Rio de Janeiro.
Na capital carioca, ele trabalha por dois anos como assistente de direção de Amir
Hadad, à frente do grupo Comunidade, no Museu de Arte Moderna.
Em 1974, ainda no Rio, ele escreve seu primeiro texto teatral, Delito carnal. No
ano seguinte, a peça ganha o 1º Concurso Nacional de Dramaturgia do Rio Grande do
Sul (promovido pelo Instituto Estadual do Livro, a Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e a Prefeitura de Porto Alegre), mas o resultado é “simplesmente cancelado por
ordens superiores, vindas não se sabe de onde”, segundo as palavras de Yan
Michalski
201
. A obra é imediatamente proibida pela Censura Federal, que, inclusive, não
permite que o texto seja lido publicamente. O governo do Estado confisca, então, os
CR$ 10.000,00 referentes ao prêmio, que não foi pago mesmo depois de o autor ter
impetrado na Justiça um mandado de segurança e ter ganhado a causa.
De 1975 a 1980, Delito carnal foi reescrita cinco vezes, chegando a ser
rebatizada com dois outros nomes, a fim de driblar a Censura. Em 1976, intitulada Olho
vivo e boca aberta, a peça foi ensaiada no Rio de Janeiro pelo grupo Dinossauro
(formado por atores mineiros e dirigido pelo próprio Eid Ribeiro), mas acabou sendo
201
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985. p. 64.
199
censurada. Em 1978, com o nome de Carne & osso, foi ensaiada pelo grupo carioca
Teatro Mágico. Entretanto, uma semana antes da estréia, no Teatro Opinião, o trabalho
foi novamente proibido. Nesse mesmo ano, o texto foi lido publicamente no Teatro
DCE/Federal de Belo Horizonte, integrando a programação da Semana do Proibido.
Finalmente liberada, a peça estreou no dia 16 de maio de 1980, no Teatro da
Aliança Francesa, do Rio de Janeiro, com o grupo Pessoal do Despertar, do qual faziam
parte Ângela Carvalho, Charles Myara, Daniel Dantas, Eduardo Lago, Fábio Junqueira
Maria Padilha, Miguel Falabella, Paulo Carvalho, Paulo Renato Braga, Rosane Gofman
e Sebastião Lemos. A direção ficou a cargo de Paulo Reis e os cenários e figurinos, de
Rita Murtinho
202
.
No mesmo ano, em 5 de junho, outra montagem do texto estreava no Teatro
Marília, de Belo Horizonte, com direção do próprio autor. No elenco, Antonio Grassi,
Kimura, Gil Amâncio, Luciano Cintra, Rogério Andrade e Paulo Lisboa - todos
integrantes de um grupo nomeado com o segundo título que a peça veio a ganhar do
autor, Carne e Osso.
Posteriormente a Delito carnal, Eid Ribeiro escreveu os textos adultos Cigarro
Souza Câncer; Terreno baldio (uma experiência de teatro-dança); Alma de gato; Corra
enquanto é tempo (concebido especialmente para o Grupo Galpão); Sangue, amor e
farofa; Lusco-fusco ou Tudo muito romântico e Os três patéticos e os infanto-juvenis
Bicho de pé, pé de moleque - um dos maiores sucessos do teatro belorizontino dos anos
80 -; Anjos e abacates; O mistério da clarineta e De bando para lua.
De 1985 a 1991, ele integrou o grupo Galpão de Belo Horizonte, exercendo a
função de dramaturgista, diretor e autor. Suas principais realizações com a companhia
foram a dramaturgia e a iluminação de Arlequim, servidor de tantos amores (adaptado
do clássico de Goldoni) e a direção do espetáculo de rua Corra enquanto é tempo (de
sua própria autoria) e de Álbum de família, de Nelson Rodrigues.
Sobre a importância do trabalho de Eid como dramaturgista, o Galpão declarou
no livro que comemorou os quinze anos de existência da companhia:
Convidado pelo grupo no final de julho, Eid Ribeiro critica a destruição do texto [Arlequim,
servidor de dois amos] e liquida a pretensão de atualizá-lo. Durante dez dias, ele dirige o estudo do
original goldoniano, procurando compreendê-lo e revelando aos atores a genialidade e a riqueza nele
202
Esta versão do texto - a quinta e última que o autor escreveu, em 1980, para ser encenada pelo grupos
Pessoal do Despertar (RJ) e Carne & Osso (BH) - é que servirá de base para a análise aqui proposta.
200
abrigadas. Em torno da mesa ou sentados em almofadas na casa de Eid, reconheciam-se os prejuízos
irreparáveis oriundos do desprezo pelo estudo do texto. Depois desse período, Eid se afasta (só voltará,
para criar a luz do espetáculo) e o grupo, vendo-se sozinho novamente, decide abandonar o processo de
criação coletiva e solicita a Fernando Linares dirigir os ensaios neste último mês que antecedia a estréia.
Tal convite não significava abrir mão da participação ativa dos atores na criação e na concepção das cenas
do espetáculo, mas a necessidade de submetê-las a um critério e objetivos definidos por um olhar externo,
capaz de reuni-las e harmonizá-las, tendo em vista um produto final
203
.
Eid Ribeiro é hoje um reconhecido autor e diretor, sobretudo na esfera do teatro
mineiro, sendo também um dos organizadores do Festival Internacional de Teatro, de
Belo Horizonte. Mas sua experiência já ultrapassou os limites dos palcos brasileiros.
Dentre as inúmeras peças que ele dirigiu, destacam-se, em Belo Horizonte: Há vagas
para moças de fino trato, de Alcione Araújo; em Caracas: Toda nudez será castigada,
de Nelson Rodrigues, encenada por um grupo de atores de diversos países latino-
americanos; e, na Suíça: Esperando Godot, de Samuel Beckett, um dos dramaturgos
internacionais por quem ele mais nutre admiração.
No mesmo livro aludido acima, o talento de Eid é assim registrado:
Ainda hoje, Eid é um dos expoentes do teatro mineiro e brasileiro. Autor e diretor, criou
espetáculos memoráveis como Fala baixo senão eu grito, Risos e facadas e As criadas. Mesclando
universos distintos - o caráter sombrio de Beckett, a crueza de Genet e a ingenuidade popular do circo de
interior - o trabalho de Eid torna-se referência obrigatória do teatro belorizontino [...].
204
Delito carnal
Delito carnal é uma farsa política composta por um único ato. O cenário é a sala
da residência onde vive o tradicional casal mineiro formado por Emiliana do Couto e
Bonifácio Brandão. Quando a ação se inicia, o local está sob cerco. Lá fora, há inúmeras
ações terroristas em marcha visando atingir a casa desta e de outras famílias abastadas
do País. Entretanto, de tempos em tempos, ouve-se o alto-falante do “Comando de
Comunicação da Guerra” pedir aos cidadãos sitiados que tenham o máximo cuidado,
pois inúmeras bombas estão sendo enviadas pelo correio. O hipocondríaco Bonifácio,
203
BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. Grupo Galpão: quinze anos de risco e rito. Belo Horizonte: O
Grupo, 1999. p. 46.
204
Ibid., p 64.
201
de pijama e sentado na cadeira de rodas que se assemelha a um trono e, na verdade,
pertence à mulher, desloca-se pela sala, em pânico. Logo entram Emiliana e o criado da
casa, Doméstico Furtado, tentando resistir ao cerco terrorista. Há inúmeros cadáveres
empilhados em um canto da sala. Professora de catecismo e benemérita do Orfanato
Sacratíssimo Coração, Emiliana é uma mulher forte e autoritária, que trata o marido
como uma criança que inspira cuidados. Ambos, no entanto, submetem Doméstico a
inúmeros constrangimentos e humilhações. Desconfiando de tudo e de todos, o casal
insistentemente verifica todos os dispositivos de segurança, passando a falar e a fazer
coisas absurdas a fim de saber como vai a guerra lá fora. Um pouco depois, o
enfermeiro do orfanato, Lázaro Cestinha de Pão, entra trazendo uma grande cruz de
madeira. Ele lembra Emiliana de que ela se esqueceu de levar para casa o “crucificado
que ganhou de presente do arcebispo. Após uma ordem da matriarca, Lázaro volta
carregando um corpo envolto em um lençol. Depois de desembrulhado, o homem é
pregado à cruz, que logo é erguida e colocada à cabeceira da mesa de jantar. O
crucificado - que se apresenta como Lírio de Cavalo: “ladrão de carro, traficante de
drogas, assaltante de banco, brasileiro e poeta” - desanda a falar coisas desagradáveis e
é torturado por Emiliana e Bonifácio. Sem que ninguém perceba, entra em cena um
personagem disfarçado de “frei Gil Vicente”. O homem logo revela ser o ator John
Wayne, que foi até ali cumprir a importante missão de avisá-los de que eles ganharão a
guerra, desde que exterminem todos os índios do território. John Wayne vai embora, e
recomeçam as torturam em Lírio de Cavalo. Lázaro volta carregando o corpo da mulher,
Maria dos Remédios, que acabou de falecer de tuberculose. Ele pede ajuda a Emiliana
para o enterro e, diante da negativa desta, ameaça-a de morte. Por conta da
insubordinação, Emiliana condena-o ao “suicídio”. O alto-falante do Comando de
Comunicação da Guerra pede que o povo sintonize a rádio 3º Mundo, pois dali a
instantes será transmitido o pronunciamento de Mister Good Money, o superchanceler
dos átomos para a paz. De repente, surge a cabeça de um monstro em uma das janelas -
o que leva o casal a se preparar para abandonar o país em um helicóptero atômico de
sua propriedade. Entretanto, o monstro é ninguém menos que Doméstico, que se
disfarçou por segurança. Tocam a campainha e entra uma grande amiga do casal,
Violeta Genciana, que convida Emiliana a integrar a “marcha da família” que ela está
organizando. Triunfantes e convictos da vitória, os três se preparam para saborear o
jantar que Doméstico está servindo. À cabeceira da mesa, Lírio de Cavalo continua
crucificado. Emiliana pede ao criado que ligue seu radinho de pilha para que todos
202
ouçam o pronunciamento de Mister Good Money. Uma voz cavernosa entra no ar e aos
poucos vai tornando-se ininteligível e ameaçadora. As personagens ficam imóveis.
Furtado transforma-se em um passarinho que saltita pela casa de modo patético,
emitindo um trinado mudo e desafinado. De repente, “um vento forte vai crescendo,
virando furacão, invadindo a casa e arrebentado os vidros, arrombando as portas,
arrancando a telhas, apagando as velas. Fica tudo no escuro. Na mais completa
escuridão”. A última indicação do texto anuncia, então, que “é o fim”.
De todas as peças aqui analisadas, Delito carnal é aquela cujo tema central está
diretamente relacionado ao contexto sócio-político que gerou o golpe militar de 64 e a
instalação da ditadura no País. Entretanto, o autor, ao abordar o assunto, abdica dos
recursos formais do teatro épico ou mesmo do teatro dramático de inspiração política
(mais coerentes, inclusive, com a formação que ele obteve no CPC), preferindo antes
experimentar o gênero farsesco e criar, assim, uma obra descrita emblematicamente
como uma “farsa atômica nacional”. Sabemos que a farsa - “gênero popular em todos os
sentidos”, de acordo com a definição de Patrice Pavis - também é muito usada para
veicular críticas políticas contundentes, entretanto, o que chama a atenção no texto de
Eid Ribeiro é como a forma aqui apresentada se deixa contaminar por elementos
experimentais que fazem com que a peça se transforme em um corpo estranho na
dramaturgia brasileira de prontidão política. Escrita em 1974, quando já havia passado a
hora do teatro épico no Brasil, a obra parece preferir enveredar pelos caminhos do
nonsense, do absurdo e do surrealismo que marcaram muitas produções do período.
No texto de apresentação da peça, publicado no programa da montagem mineira
liberada pela Censura, em 1980, Eid Ribeiro assim resume o alcance e a preocupação da
obra:
Delito carnal é uma farsa sobre o golpe militar de 1964 e o histerismo da segurança nacional que
tomou conta da nação nesses últimos dezesseis anos. Mas o texto não tem a mínima pretensão de ser
histórico. A história surge como pretexto (e de um modo surrealista) para justificar comportamentos da
classe média (em especial, a mineira), segmento social que sustentou o golpe com suas cruzadas do terço
e suas marchas pela família.
O texto mistura o universo familiar com o universo político, um se entrelaçando no outro.
Cronologicamente, os acontecimentos se passam no dia 31 de março de 1964, com voltas à infância dos
personagens, sem uma seqüência lógica, com apelos ao inconsciente e à fantasia, numa linguagem solta e
debochada. O medo que vem de fora é também projeção do medo que vem de dentro. As coisas são e não
são, quer dizer, as coisas são várias ao mesmo tempo, multifacetadas como a própria realidade. Emiliana
203
do Couto & Aragão é a mãe ditadora e ao mesmo tempo o pai ditador. Do lar para a nação. Da nação para
o lar. Somos todos pequenos ditadores e exercemos nosso poderzinho no espaço que nos é permitido pela
sociedade. Delito carnal é uma denúncia desse fascismo que guardamos dentro de nós, e através do riso
crítico que o espetáculo coloca, poderemos nos compreender melhor e, por extensão, compreender melhor
o próprio ser humano. A todos os que deram força para que a peça continuasse viva, o meu muito
obrigado, de coração
205
.
A peça parte de inúmeras referências reais que estiveram ligadas aos
acontecimentos de 64, mas aos poucos sua dimensão política vai sendo redimensionada
por alguns efeitos de estranhamento. O ponto de vista adotado é o da mentalidade
conservadora e despótica que apoiou o golpe militar, representada pelo casal formado
por Bonifácio e Emiliana, aos quais vem juntar-se mais tarde Violeta Genciana. Os três
desfiam o mesmo ideário político, que será apresentado a seguir de modo esquemático,
a fim de que se evidencie a camada discursiva de base sobre a qual a obra se estrutura.
Como figuras típicas da classe média, Emiliana, Bonifácio e Violeta têm medo
do caos e da desordem social:
Emiliana: Greve? Greve? Você está ficando louco, Bonifácio. Desde quando admito greve nesta
casa? O momento é de união e não de baderna! Fazer greve neste momento é colaborar com o inimigo e
quem colabora com o inimigo é um traidor.
Afinal de contas, os inimigos que eles combatem tão ferrenhamente são os
“temidos” anarquistas:
Bonifácio: ... Preciso me prevenir contra atentados anarquistas
206
!
e comunistas:
Violeta: Se eu perder esta guerra, vou me jogar de seu helicóptero em cima de um fio de alta
tensão. Quero que a cidade escureça e os comunistas sintam o cheiro do meu churrasco. Será meu
protesto.
205
RIBEITO, Eid. Considerações sobre o delito. Texto integrante do programa da peça montada e
apresentada pelo grupo Carne e Osso, no Teatro Marília, de Belo Horizonte, que cumpriu temporada de
5/6 a 6/7/1980.
206
Em muitas partes do texto, a palavra “anarquista(s)” está escrita a mão, em cima de um outro termo
ilegível, por estar riscado, que acreditamos tratar-se do vocábulo “terrorista(s)”. Tudo leva a crer que a
tática foi adotada com vista a obter a liberação do texto junto à Censura.
204
Aliás, os “anarquistas” são tratados ao longo da peça por um exótico neologismo
de conotação moral:
Autofalante: Atenção! Muita atenção! Aqui fala o Comando de Comunicação da Guerra.
Pedimos à população que não receba nenhuma carta ou pacote em suas residências. Os pornomórfinos
anarquistas estão mandando bombas pelo correio.
[...]
Emiliana: ... Confessem que foi um complô pornomórfino anarquista; confessem, desgraçados!
Para neutralizar com eficiência este poderoso inimigo, é preciso, no âmbito
doméstico, incentivar o conformismo e combater veementemente qualquer tentativa de
transformação:
Emiliana: ... Sabe de uma coisa: você é que é feliz, Lázaro. Recebe pontualmente seu salário
mínimo, tem INPS de graça, não paga imposto de renda e nunca precisou de empregada doméstica, que
só serve para aporrinhar o saco!
[...]
Emiliana: ... Você é muito ingrato, Doméstico Furtado. Te tirei do orfanato, te transferi da sarjeta
para um berço esplêndido, te dei um sobrenome honrado, um diploma de empregada doméstica e você me
paga com contestação? Logo com contestação?
Esclarecidas e bem-informadas, as personagens conservadoras conhecem muito
bem as táticas adotadas pelo inimigo:
Bonifácio: Segurança! Só isso. Segurança. Vou inventar um aparelhinho que em 10 dias extingue
seqüestro de aviões, assaltos a bancos e transmissão de bacilos no interior dos elevadores. (Afundando-se
num sofá) Minha segurança está ameaçada.
[...]
Emiliana: ... Chegou o momento de acabarmos com a maconha na porta das escolas, assaltos ao
caminhão de coca-cola, tráfico de influência e seqüestros de embaixadores.
e pretendem combatê-las com estratégias minuciosamente articuladas:
Emiliana: ... Vamos organizar a Marcha da Família! Gosta do nome?
Bonifácio: Não! Faltou Deus e a Propriedade.
Emiliana: Propriedade é assunto particular, imbecil. Você está querendo afastar os pobres da
minha manifestação?
205
Nada escapa à vigilância desta classe social, disposta a legislar sobre todos os
assuntos de interesse nacional. Às vezes, a solução de um problema vem de fora, da
parte de alguém que já o viveu antes, como na cena em que um “especialista
internacional” chega somente para ensinar a família a tratar da questão indígena:
J. Dabliú: ... Trago a grande solução para o problema dos índios. O binômio gonorréia e cachaça.
Se isso não for suficiente para dizimá-los, fornecerei fuzis para que os latifundiários possam expulsar os
selvagens das suas reservas. As índias poderão trabalhar como empregadas domésticas. Os jovens irão
servir o exército para aprender algum ofício. E os velhos serão internados nos asilos da pátria. Afinal de
contas, vocês marcham para ser uma superpotência e não podem ficar perdendo tempo com um bando de
analfabetos, que só sabem fumar maconha o dia inteiro...
Em outros momentos, os problemas podem ser administrados domesticamente,
ao sabor das paixões nacionais mais genuínas:
Emiliana (apoteótica): Eu prometo, assim que vencer esta batalha, construir um campo de futebol
em cada rua da nação. Quero estádio dentro de túneis, em cima das casas, cruzando os mares,
desembocando na Europa, penetrando até no rabo da oposição, se for preciso. Claro! Porque nossos
inimigos vão logo dizer à imprensa que construímos campos de futebol sem a menor necessidade. Então,
esses imbecis pensam que a única função de um viaduto é desafogar o trânsito? E a beleza estética, o
incentivo ao turismo, não vale nada? Claro que vale. Vamos ser o povo que edificou mais campos de
futebol sobre o planeta. Outro recorde mundial para ilustrar nosso álbum de figurinhas! Tenho dito!
Entretanto, todos sabem que a luta, a resistência ou mesmo uma solução de
emergência também exigem a plena sintonia com um contexto internacional
absolutamente favorável:
Bonifácio: Acho melhor a gente pedir ajuda ao FBI.
[...]
Furtado: Essa esquadrilha joga no nosso time. Está voando para jogar napalm nos inimigos.
[...]
Emiliana: ... Você não tá cansado de saber que só fumo charuto cubano, heins? Aliás, a única
coisa que presta daquela gentinha do Caribe. ...
[...]
Auto-falante: Atenção. Muita atenção. Aqui fala o Comando de Comunicação da Guerra.
Pedimos ao povo para sintonizar a Rádio 3 º Mundo, às dezoito horas e trinta minutos, quando falará à
nação Mister Good Money, o superchanceler dos átomos para a paz. Atenção! Muita atenção.
[...]
206
Emiliana: Depressa, Bonifácio, apanha sua metralhadora enquanto providencio meu helicóptero
atômico. (Pega o telefone e começa a discar) Alô, câmbio! Alô, câmbio! Aqui fala o prefixo 477. Prefixo
477. Trazer helicóptero atômico, imediatamente. Desencadear operação Brother Sam...
[...]
Emiliana (gritando): Bonifácio Brandão, me ajuda aqui a carregar nosso dinheiro! (...) Vá buscar
os dentes de ouro no quarto enquanto carrego estes últimos milhões. (O helicóptero aterrissa no pátio da
mansão) Depressa, Bonifácio, vamos para a Suíça! ...
Todo o discurso político conservador da peça aparece sustentado por inúmeras
imagens que remetem à extrema religiosidade da tradicional família mineira, entretanto
a forma farsesca do texto faz com que os valores cristãos tenham seus sentidos
revertidos, deixando de lado sua dimensão humanitária e altruísta para assumir uma
conotação selvagem e bárbara. Emiliana é apresentada inicialmente como a matriarca
que faz da fé cristã o caminho da benemerência e da virtude:
Emiliana: ... E você, Bonifácio Brano, vá caindo fora da minha cadeira, anda! Preciso corrigir
as provas de catecismo dos meus órfãozinhos e administrar a fazenda.
[...]
Emiliana: Afinal de contas, sou a diretora do Orfanato Sacratíssimo Coração e tenho que dar
bom exemplo.
[...]
Emiliana: ... Só mesmo a religião poderá te levar para o bom caminho.
No entanto, um pouco mais adiante, a personagem transforma alguns dos valores
cristãos em instrumentos de perversão e sadismo:
Emiliana: Vamos ver se este ano você consegue comungar toda primeira sexta-feira do mês.
Assim, ficará livre pelo menos do inferno. Vamos, abra a porta que eu te perdôo.
Bonifácio: Sou culpado, mamãe. Eu sei que sou culpado. Nunca consegui comungar sem pensar
que estava mastigando Cristo e engolindo os pedacinhos.
Emiliana (esmurrando a porta): Blasfêmia! Você deve se afastar dos maus pensamentos, meu
filho! Do contrário, Herodes mandará cortar a tua cabeça e a de todos os meninos que não gostam de
comer cebola. Saia daí, anda!
Bonifácio: O Espírito Santo tem azeitoninha no saco, mamãe? Só pode ter filho quem tem
azeitoninha no saco, não é, mamãe?
207
Emiliana: Azeitoninha no saco é pecado, meu filho. Como penitência, você vai extrair as suas
azeitoninhas e jogar no telhado pros gatos comerem. Assim, os bichos poderão ter filhotes com cabeça de
gente e a humanidade estará redimida.
Bonifácio: Mea culpa... mea culpa... mea culpa...
Emiliana: É preciso compreender, meu filho que todas as coroas são de espinho porque as salivas
cospem fel, pedaços de cachorro quente e poeira de bomba atômica. (Dá um murro na porta). Abra a
porta! (No tom anterior) O Altíssimo não gosta das pessoas que trocam o certo pelo duvidoso.
Compreenda, meu filho, que se a cama do faquir não fosse feita de pregos, o homem jamais teria
descoberto a necessidade da dor e suas conseqüências biológicas. (Dá um soco na porta) Abra essa porta!
(Tom anterior) Como disse São Silvestre, não há nada como um dia atrás do outro com uma noite no
meio das trevas. Pense bem nessas palavras, meu filho, e console-se com os aleijados e as hemorróidas
dos burocratas. (Definitiva) Se você não sair logo, vou mandar o Furtado arrombar a porta a
machadadas!!!
Um dos momentos altos deste processo de reversão dos valores cristãos se dá
quando, na condição de “rainha das damas de caridade” e “guerrilheira de Cristo Rei”, a
personagem obriga o insurreto Lázaro a se “suicidar”:
Lázaro: Por favor, patroa, eu estava brincando... meu revólver é de brinquedo... pode... olhar...
olha!
Emiliana: Patroa, não. Rainha das damas de caridade.
Lázaro (caindo de joelhos): Perdão, dona Emiliana, perdão.
Emiliana: Emiliana, não! Jandira Candy, rainha das damas de caridade.
Lázaro: Perdão, majestade.
Emiliana: Está bem, Lázaro. Eu, como sou uma pessoa sensível, comuto a sua pena.
Lázaro: Você ainda vai se dar mal com essa mania de bondade, Donana.
Emiliana: Já falei que de agora em diante meu nome é Jandira! Jandira Candy. Uma guerrilheira
de Cristo Rei.
Bonifácio: Eu, heins?
208
Lázaro: Então, aqui está o revólver.
Emiliana: Calma lá. Perdoar, eu te perdôo. Mas exijo que faça um profundo exame de
consciência e se auto-condene à morte.
Bonifácio: Fique tranqüilo, Lázaro. Eu te darei a extrema-unção.
Lázaro (apontando o revólver para a cabeça): Eu me suicido em nome do pai, do filho e do
espírito santo, amém!
Esse parece ser o arranjo central da peça, preocupado em denunciar como os
valores cristãos deram sustentação ao pensamento autoritário e a inúmeras formas de
exploração que alimentaram o regime de exceção mais longo da história brasileira. Mas
há também outras experimentações dispostas a tratar este “delito carnal” em toda sua
grosseria escatológica - o que acaba por fazer com que a obra atinja um alto poder de
subversão, sempre esperado, aliás, do gênero farsesco:
Esta rapidez e esta força conferem à farsa um caráter subversivo: subversão contra os poderes
morais ou políticos, os tabus sexuais, o racionalismo e as regras da tragédia. Graças à farsa, o espectador
vai à forra contra as opressões da realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam
sobre a inibição e a angústia trágica, sob a máscara e a bufonaria e a “licença poética”
207
.
Em alguns momentos, a obsessão das personagens com a questão da segurança
atinge uma atmosfera de puro nonsense. Emiliana conversa ao telefone, mesmo que o
fio do aparelho esteja cortado:
Furtado: Espera aí! Eu não estou entendendo mais nada, patroa. A senhora estava falando com
quem, se o fio do telefone está cortado?
Emiliana: Cortado! Cortado! Cortado, como? Um fio de telefone não pode ser cortado assim
sozinho, sem mais nem menos. Alguém cortou, Doméstico, tem que ter um culpado! ...
Violeta confessa uma imprudente superstição:
207
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 164.
209
Violeta (entrando) Psiuuu... silêncio... silêncio... silêncio... quando vinha pra cá escutei passos
atrás de mim... não olhei para trás com medo de que depois não conseguisse virar novamente a cabeça pra
frente. Tenho horror de ficar aleijada.
E Bonifácio se aflige ao fim de um delirante diálogo:
Furtado: Psiuuu... O agente impostor está morto, mas poderá voltar a qualquer momento. O
cemitério onde foi enterrado é falso e o caixão não tinha fundo. Além disso, seus dentes de ouro não
passam de purpurina derretida. Todo cuidado é pouco, madame.
[...]
Bonifácio: ... Vocês acharam uma carta no bolso do morto?
Emiliana: Não. Quando encontramos o cadáver, o morto já estava dentro da carta. Juntamos tudo
e colocamos no correio. Com uma bomba. Não era para o Pacto de Varsóvia?
Bonifácio: Não! Era para a ONU. Estou perdido.
O nonsense está presente ainda no desvairado lema que as personagens proferem
algumas vezes ao longo da trama, e que preserva certa semelhança sintática com um
verso do Hino da Independência
208
brasileiro:
Pafúncia, ou ficar a língua pátria!
Entretanto, há uma situação específica também ligada ao nonsense que em muito
lembra a cena de A cantora careca, de Eugène Ionesco, na qual as personagens, depois
de ouvirem alguém bater à porta, começam a discutir sobre quem poderia estar do outro
lado:
Furtado (Assumindo um leão de chácara, empunhando seu Colt 45) Dona Emiliana, fomos
descobertos pelos inimigos.
[...]
Emiliana: Doméstico Furtado, dê uma espiada pelo olho mágico. (...)
Furtado (Cuidadoso ao extremo) Não tem ninguém.
208
Vale notar que, além de uma brincadeira nonsense, os elementos expressionistas presentes em Delito
Carnal e Apareceu a Margarida também são os responsáveis pela degeneração de símbolos pátrios como
os hinos em formas grotescas nas quais imperam a paródia e a pilhéria.
210
Emiliana: Como não tem ninguém?
Furtado (Olhando novamente) Ninguém, patroa.
Bonifácio (Ainda escondido debaixo da mesa. Só a voz) Cuidado, pode ser um agente secreto!
Emiliana (Olhando também pelo olho mágico) É, ninguém. Então, foi engano. Alguém
confundiu nossa casa com a da Violeta Genciana, aí do lado. Claro, foi isso mesmo. É por isso que nossos
agentes não perceberam. Ou melhor, perceberam que era engano e deixaram a pessoa se enganar. Muito
lógico. (Indo guardar a metralhadora) É... é...mas (parando) E se esse engano fosse apenas um falso
engano? Quer dizer, se o assassino estivesse disfarçando de enganado, heins? Nesta altura da vida
estaríamos mortos!
Outro recurso empregado é o deboche, que procura, por exemplo, escarnecer de
nosso desenvolvimento tecnológico:
Emiliana: Nesta casa, nenhum baderneiro entrará sem que morra numa cilada, te garanto. O
flanco norte está minado de bombas atômicas! O flanco sul, eu transformei num pantanal de gotas
movediças! Pras bandas do leste distribuí um bilhão de homens armados de canhãozinho de mão, napalm,
carrapaticida e peido alemão; e o lado oeste está coalhado de índios amestrados, prontos para defender
nossa propriedade em troca de uma garrafa de cachaça! (Apoteótica) Se for preciso, Bonifácio Brandão,
convoco todas as mulheres do País para uma passeata monstro. Eu sou líder. Tenho força para isso! Você
me conhece muito bem. Ou você já se esqueceu da imorredoura Batalha da Melancia, heins? Quando
comprei um caminhão de melancias gigantes e as lancei na cabeça dos agitadores anarquistas!
Há também o apelo a certos recursos fantásticos que dependem, ora do
virtuosismo físico dos atores:
Furtado (Entrado, cada vez mais bêbado) Tá aqui a lenha, doutorrr... parece que é de pau brasil...
Bonifácio (Dando uma paulada na cabeça de Doméstico Furtado) Toma! Seu cabeça dura!
Desmiolado! (Doméstico Furtado cai de costas, vira uma pirueta e se transforma num passarinho
saltitante. Depois, pula sobre a mesa de Emiliana e fica estático)
Emiliana (Toca uma sineta. Apresenta um animal raro da exposição do vacum tropical)
Doméstico Furtado já venceu dois concursos de língua pátria, promovido pela Sociedade dos Analfabetos
Anônimos. Seu pedigree foi publicado na enciclopédia britânica e seu espermatozóide é exportado
diariamente para as superpotências do planeta. Como estão vendo, é um passarinho de raça pura,
cruzamento perfeito da natureza humana. Uma ave que no passado aprendeu a falar inglês por
211
correspondência, quando cursou a Escola de civilidade do Jardim Zoológico de Nova Iorque. (A
campainha toca. Silêncio. Expectativa).
ora de alguns engenhosos efeitos de encenação:
Emiliana: Trabalha enquanto relaxo um pouco tocando violino. Esta guerra me deixa numa
tensão muito grande. Queira Deus que não faltem gêneros de primeira necessidade, como cebola, quiabo,
alho é jiló. (Desencapa seu violino e arranha um tema bem romântico. Bonifácio, humilhado, faz seu
tricozinho caseiro: a fantástica fantasia de Emiliana do Couto Pompeu Meireles de Campos Alves Catão
de Albuquerque Y Aragão. Tão grande que é maior do que o palco. Invade a platéia e ganha as ruas,
cobrindo os carros e os anúncios luminosos. Bonifácio parece uma pequena aranha presa ao centro de
uma monstruosa teia. Tecendo... tecendo... tecendo... Longo tempo)
A peça faz uso ainda de dois momentos de metateatralidade que procuram
reforçar sua dimensão política. O primeiro deles se dá quando Emiliana tenta corrigir a
longa fala de Bonifácio a respeito de certos episódios da história do Brasil nos quais ele
afirma ter tido participação direta:
Emiliana (ainda tocando violino): Esse texto é de outra peça, Bonifácio: “Traído por decreto”
209
.
É essa peça mesmo, me lembro direitinho... “Traído por decreto”. Você está representando o Comendador
Sebastião Margens Plácidas, acertei?
Bonifácio: Eu estou representando o meu fim e o seu começo.
Emiliana: Sem essa, aranha. Não começa a denegrir, imbecil. Seu texto está errado, não percebe?
Bonifácio: Você precisa aprender a ser mais altruísta, Emiliana. Precisa ver que a vida dos
nossos concidadãos tem um valor que não pode ser calculado por nenhuma companhia de seguros!
Emiliana: Continuo achando que seu texto está errado, Sebastião Margens Plácidas. Esse trecho
é aquele em que o Plínio chegava no palanque e gritava: mata, gente garbosa, salve, salve! Salve o pendão
de nossa esperança e o amarelo da lembrança!
Bonifácio: Deixe-me, cara Donana. Se o berço da civilização não enternece o teu coração, não
rompe a carapaça da tua insensibilidade, então diga ao povo que fico.
209
Em depoimento especialmente concedido para esta esta pesquisa, Eid Ribeiro afirmou nunca haver
escrito semelhante texto, procurando somente, com a falsa alusão, brincar com as imposições da Censura.
212
Emiliana: Você acha, Sebastião Margens Plácidas, que se eu não fosse sensível estaria
suportando há 50 anos a sua neurose de guerra? ...
O outro momento ocorre com a entrada do enigmático forasteiro que vem
ensinar as personagens a tratar da questão indígena:
(Na platéia, surge um frade misterioso)
J. Dabliu: Boa tarde, leigos.
Emiliana: Não, esse truque não vale. Eu já vi essa cena em outra peça.
Bonifácio: Quem é você?
J. Dabliu (aproximando-se): Sou frei Gil Vicente. Revertatur cinis ad fontem aquarum viventium
et fiet terra fruetificans.
[...]
Emiliana: Cala essa boca, se não quiser morrer! Sua figura é suspeitíssima, Frei Gil Vicente. Se
conseguiu chegar até aqui, furando a fortaleza inexpugnável armada pelo meu corpo de segurança, é
porque sua ação foi muito bem planejada. Trata-se de um espião!
Bonifácio: Finalmente conseguimos apanhar o cérebro da guerra psicológica.
Emiliana: Agora, você é meu prisioneiro de guerra. Sem direito a sursis nem habeas corpus!
Bonifácio, vá lá dentro buscar uma corda para amarrar esse impostor. (Ele sai)
J. Dabliu (virando-se de repente e mostrando o rosto): Eu sou mesmo é o John Wayne, minha
senhora!
Emiliana (deslumbrada): John Wayne!!! Não é possível! Não acredito! O galã da minha
adolescência! [...]
Bonifácio (entrando com uma corda na mão, sem entender nada) Ah! Acho que errei de teatro.
Embora o uso do nonsense, do absurdo e da metalinguagem possa pretender
levar a peça para domínios mais intelectuais e racionalistas, o que acaba se sobressaindo
no texto é mesmo seu apego ao exagero, à grosseria e ao grotesco, representados,
sobretudo, pela imagem do corpo humano sendo supliciado ou em estado de putrefação.
Pelo cenário único da peça (uma casa repleta de cadáveres):
213
Violeta: ... (Vendo os corpos) Quanto defunto! Cruzes! (Faz o nome do pai) O que é que está
havendo aqui?
Emiliana: (Embaraçada) Ah! É... É... É... o Ministro... É, o Ministro me pediu delicadamente que
acolhesse cadáveres em minha casa porque os cemitérios estão superlotados. (...)
desfilam personagens que cometem as maiores atrocidades contra o corpo
humano, em clima de corriqueira normalidade:
Emiliana arranca as orelhas de Bonifácio e Furtado, que ficam pingando sangue.
[...]
Furtado entra carregando uma bandeja com uma cabeça degolada, de olhos abertos e serenos.
Esta exploração do grotesco é a grande arma do texto de Eid Ribeiro para atacar
o bom gosto burguês e a aparente ordem política, social e espiritual que o golpe de 64
“pretendia restabelecer” no país. As imagens grotescas fazem a peça enveredar por
caminhos expressionistas perturbadores, que investem contra a moral, a sexualidade, a
postura política e a religiosidade da classe média brasileira. Deste modo, a personagem
mais inquietante é o Cristo marginalizado que a família mineira não se furta a crucificar:
(Lázaro volta carregando um corpo envolto num lençol. Desembrulha-o e coloca-o na posição de
crucificado.)
Bonifácio (Olhando a imagem): Não sei, parece que conheço esse sujeitinho de algum lugar...
Emiliana: Lázaro, você tem certeza de que foi essa imagem que esqueci na capela do Hospício
Bom Samaritano?
Lázaro: O crucificado, dona Emiliana, não reconhece sua coroa de espinhos.?
Emiliana: Não sei, tive uma leve suspeita.
Bonifácio: Parece mais com um 3x4 que estava sendo procurado pela Brigada Contra o Vício.
Crucifica-o direito, Lázaro. Ele pode fugir e quere me matar.
Lázaro: Não tem perigo. Os cravos estão enferrujados.
214
Emiliana: Crucifica logo, Lázaro. Mas cuidado parao errar a martelada e acertar o dedão desse
pobre coitado, heins? Não quero saber de ninguém com unha encravada aqui dentro de meu gabinete!
(Lázaro coloca o cravo sobre a mão do crucificado e dá a primeira martelada. Ele dá um grito fantástico.
Outra martelada, outro uivo. Bonifácio pega o penico e começa a andar pela casa, possesso e medroso.
Lázaro inicia o trabalho na outra mão. Emiliana, de terço na mão, reza baixinho) Obrigada, senhor papai.
Obrigada, senhor professor. Obrigada, senhor diretor. Obrigada, senhor delegado. Obrigada, senhor
prefeito. Obrigada, senhor governador. Obrigada, senhor ministro. Obrigada, senhor presidente.
Obrigada, senhor Deus. Obrigada, meu povo!
Por meio de uma sarcástica operação de deslocamento de sentido, a imagem do
crucificado com a qual o arcebispo presenteou Emiliana, e que ela simplesmente se
esqueceu de levar para casa, ganha uma dimensão corpórea real. Assim, à cabeceira da
mesa de jantar desta família há mesmo uma imensa cruz fincada à qual está pregado o
corpo de um homem. Entretanto, o supliciado não corresponde exatamente à figura do
Messias da tradição cristã. Antes, ele se revela uma personagem marcadamente
brasileira, que sofre, inclusive, na mão dos outros um tipo muito especial de tortura:
(O crucificado dá uma gargalhada)
Bonifácio: Um terrorista! E ele está vivo.
Emiliana: Não deixarei que escape da cruz. (Metralha o crucificado. Ele continua a dar
gargalhadas)
Bonifácio: Não adianta. Ele é o demônio.
Emiliana: (Desistindo): Bonifácio, vá buscar uma bacia d’água com soda cáustica pra lavar os
pés do... do... como é mesmo o seu nome?
Lírio: Lírio de Cavalo, ladrão de carro, traficante de drogas, assaltante de banco, brasileiro e
poeta.
A identidade desta figura emblemática está embaralhada por um delirante
coquetel surrealista. O crucificado é, a um só tempo, marginal, terrorista, doente mental
(sua imagem estava na capela do Hospício Bom Samaritano) e poeta, cuja inspiração o
faz contar uma desvairada história de clara alusão política:
215
Lírio: Uma vez eu vi um dinossauro engolir uma barata inteirinha. Daquelas baratonas peludas e
ásperas. E na barriga transparente do dinossauro, ela ficou como se estivesse numa vitrine: imóvel e
impotente na sua escrotidão. Mas a barata apenas fingia que estava morta, esperando que o dinossauro
dormisse feliz, na paz do estômago cheio. Assim que o monstro cochilou, a barata começou a movimentar
as patas, arranhando o útero pré-histórico, rasgando tudo, lentamente, bem aos pouquinhos, até que
arrombou um buraco, saiu da prisão, matou a lagartixa e distribuiu sua carne para o povo.
Emiliana: Hum, como o Cavalo está metafórico!
Lírio de Cavalo, então, é o porta-voz de inúmeros “delitos carnais”. A
personagem se compraz em - sempre à mesa de jantar, vale destacar - aludir a cenas de
matança de sapos, de porcos e de bois. Suas falas soam desagradáveis e perturbadoras
por, insistentemente, recorrerem à imagem ambígua do sangue sagrado do Cristo e do
sangue profano derramado pela ditadura.
Convém destacar que, à mesma época em que a peça começava a ser escrita,
duas canções populares também investiram na simbologia do sacrifício espiritual e
animal para tratar da barbárie do regime político e acabaram, assim como Delito carnal,
tendo problemas com a Censura. Em 1973, Chico Buarque e Gilberto Gil compuseram
Cálice, na qual há uma pungente associação entre o discurso proferido por Cristo no
Monte das Oliveiras e o padecimento do cidadão que sofria com o estado de coisas que
o cercava naqueles anos de chumbo. No ano seguinte, Wagner Tiso e Nivaldo Ornelas
apresentaram a melodia de A matança do porco no show Milagre dos peixes, uma
espécie de manifesto contra a ditadura que Milton Nascimento idealizou à frente de um
representativo time de músicos mineiros e que teve inúmeras canções censuradas.
As imagens ligadas a sangue, excrementos e imolação preparam o momento
final da peça: uma apoteose atômica, apocalíptica e escatológica de sarcástico acento
yankee:
(Sentam-se. Furtado movimenta-se, servindo ora um, ora outro. Eles fingem que comem. No ar,
o barulho incessante e cadente de talheres chocando-se contra os pratos. Lírio de Cavalo mija
solenemente sobre a mesa. Lá fora, volta o carro alto-falante.)
Alto-falante: Atenção! Muita atenção! Aqui fala o Comando de Comunicação da Guerra.
Pedimos ao povo que sintonize neste momento a Rádio 3 º Mundo. Mister Good Money, o Super-
chanceler, falará à Nação dentro de alguns segundos. (Voz vai sumindo) Atenção! Muita atenção! O
Super-chanceler dos Átomos para a Paz falará à Nação...
216
Emiliana: Liga seu radinho de pilha, Doméstico. Vamos ouvir a mensagem do Mister Good
Money. (Furtado liga o radinho. Uma voz cavernosa entra no ar).
Voz do rádio: Good morning?
Os três: God money, mister Good Morning!!!
Voz do rádio: Do you speak english?
Os três: Yes!!!
A voz de mister God Money fica ininteligível e ameaçadora. As personagens ficam imóveis. Ás
vezes riem mecanicamente. Enfim o ar é pontilhado de exclamações, interjeições e silêncios agudos.
Furtado volta a se transformar num passarinho. Saltita, patético, num trinado mudo, desafinado. Um vento
forte vai crescendo, virando furacão, invadindo a casa, arrebentando os vidros, arrombando as portas,
arrancando as telhas, apagando as velas. Fica tudo no escuro. Na mais completa escuridão. É o fim.
De feitura bastante diferente das demais peças analisadas no presente trabalho,
Delito carnal faz um poderoso ataque à ditadura instalada no país, procurando explorar
a desregulagem de um discurso sobre a ordem e a segurança que acaba descambando
para o horror, o caos e a selvageria. Entretanto, o que a aproxima das demais peças do
grupo é sua opção pela sondagem de elementos experimentais plenamente sintonizados
com a época em que foi escrita, quando as alegorias e as analogias históricas usadas
pelo teatro épico pareciam dar sinais de esgotamento.
Como farsa, a peça busca alguns efeitos simples, presentes, por exemplo, na
atribuição dos nomes de alguns personagens que os dividem entre ricos e pobres.
Enquanto a tradicional família mineira está representada pelo nobre inventário
genealógico contido em Emiliana do Couto Pompeu Meirelles dos Campos Alves Catão
de Azevedo Y Aragão (que, depois de fantasiada para o banquete da vitória, assume a
alcunha americanófila de Jandira Candy), a principal amiga da matriarca é denominada
por um travo amargo, Violeta Genciana, embora também seja tratada por um apelido
típico de uma socialite, Dodóca Seixas
210
. Já aos pobres cabem nomes mais
210
Na ficha técnica do programa da peça apresentada em Belo Horizonte, a personagem está indicada
como Dodóca Leitão de Abril, uma referência mal disfarçada ao Ministro de Estado Chefe do Gabinete
Civil da Presidência da República, João Leitão de Abreu, que permaneceu no cargo de 11 de agosto de
1981 até o término do Governo João Baptista de Figueiredo, em 14 de março de 1985. Entretanto, no
217
comprometidos ironicamente com a dura batalha que eles travam pela sobrevivência:
Doméstico Furtado e Lázaro Cestinha de Pão. E como farsa ainda, o texto articula uma
série de situações cômicas e burlescas, calcadas em certos comportamentos e atitudes
físicas das personagens. Entretanto, o escopo da obra parece maior. A comicidade
farsesca, cujo mote está baseado no triunfo do corpo, deseja aqui ampliar seu alcance.
Por isso, a peça está organizada em torno de uma imagem ambígua por excelência: a do
delito carnal.
Do ponto de vista da postura política adotada pelos setores mais conservadores
da sociedade brasileira, a peça afronta a mentalidade que sustentou uma série de crimes
de sangue e de atitudes de extrema violência contra a carne. A perpetuação da família
patriarcal monogâmica, a divisão hierárquica do trabalho e a instituição da propriedade
privada parecem constituir alguns dos crimes tratados. E é preciso ressaltar ainda o fato
de que o dramaturgo é demolidor ao alçar à condição de chefe do clã justamente uma
personagem feminina, já que o patriarca por natureza, Bonifácio Brandão, é apresentado
como uma figura que não controla as mínimas necessidades fisiológicas, além de ser
efeminado e estéril:
Emiliana (tocando a buzina, Furtado aparece): Anda, Furtado, vá trocar a fralda do Bonifácio
Brandão. Faltavam 20 minutos para esse velho porco sujar a fraldinha.
[...]
Emiliana: Anda, anda! Acho melhor você ir fazer tricô. Anda! Pega o tricô e vá trabalhar. ...
[...]
Emiliana: ... Nem um filho você conseguiu fazer! Seu espermatozóide era raquítico. Ficava
escornado no meio do caminho.
Sob a ótica das condições culturais mais amplas que serviram de apoio ao golpe
de 64, a peça, que não está propriamente filiada ao movimento da contracultura, parece
querer discutir a transformação da pulsão libertária do cristianismo em truculenta
repressão, como Herbert Marcuse descreveu em Eros e civilização:
...a vida e morte de Cristo teriam o aspecto de uma luta contra o pai - e um trunfo sobre o pai. A
mensagem do Filho era a mensagem de libertação: a destruição da Lei (que é dominação) pelo Ágape
(que é Eros). Isto ajustar-se-ia à imagem herética de Jesus como o Redentor na carne, o Messias que veio
texto aqui analisado, em nenhum momento ela é tratada por este nome, e, sim, por Violeta Genciana ou
Dodóca Seixas.
218
para salvar os homens na Terra. Depois a subseqüente transubstanciação do Messias, a deificação do
Filho ao lado do Pai, seria a traição à sua mensagem pelos seus próprios discípulos - a negação da
libertação da carne, a vingança sobre o redentor. Portanto, o cristianismo preferira o evangelho de Ágape-
Eros, cedendo novamente à Lei; a soberania do pai seria restaurada e fortalecida. Em termos freudianos, o
crime primordial poderia ter sido expiado, de acordo com a mensagem do Filho, numa ordem de paz e
amor na Terra. Mas não foi; pelo contrário, foi suplantado por outro crime - o cometido contra o Filho.
Com a sua transubstanciação, também o seu evangelho foi transubstanciado; a sua deificação removeu a
sua mensagem deste mundo. O sofrimento e a repressão foram perpetuados
211
.
Assim, ameaçada por terríveis ataques cometidos por baderneiros imorais, mas
ladeada pela figura de um Cristo em nível de idiotia, a tradicional família brasileira es
livre para cometer toda a sorte dos incontáveis delitos dos quais ela invariavelmente
acaba absolvida.
Delito carnal parte de uma moldura que dialoga com certas experimentações de
vanguarda (em especial com o teatro do absurdo de acento sombrio proposto por
Samuel Beckett - autor que o dramaturgo admira, como vimos), mas se realiza mesmo
pela via de um desmedido coquetel surrealista. Em depoimento dado especialmente para
esta pesquisa, Eid Ribeiro declarou que a grande inspiração do texto veio da apropriação
tropicalista da dramaturgia de Oswald de Andrade - sobretudo, O rei da vela e O homem
e o cavalo. Sobre o grande número de elementos delirantes que a peça contém o autor
ainda afirmou tratar-se de metáforas que visavam driblar a censura.
Assim, podemos afirmar que esta experimentação constituiu uma reação
imediata ao terror imposto pela censura e uma das mais radicais interlocuções da
dramaturgia brasileira com a atmosfera oswaldiana do Teatro Oficina, oscilando
também do expressionismo trágico ao cômico grotesco. Uma resposta tardia, exótica,
desmesurada.
211
MARCUSE, op. cit., p. 77.
219
CONCLUSÃO
220
À guisa de conclusão, este derradeiro capítulo procurará levantar os traços
dominantes que, em certa medida, dão aos textos examinados uma unidade estilística e
formal, tentando também confrontá-los com o solo histórico que os gerou e acolheu.
Vistas assim em conjunto, as peças aqui analisadas fornecem um expressivo painel de
uma época recente do teatro brasileiro, ainda não completamente revista e
compreendida.
A latência dos temas abordados em relação ao contexto sociocultural vivido por
aqueles dramaturgos e a qualidade de muitas das elaborações empreendidas (em maior
ou menor grau, seja no tocante ao conteúdo, seja em relação à forma) apontam para a
realização de uma empreitada rara ou mesmo inédita entre nós: trata-se de um grupo de
autores nacionais, submetidos a experiências culturais muito próximas entre si, disposto
a renovar e, consequentemente, ampliar o modo de interação do teatro com a sociedade.
Os quatro “autores-revelação” analisados aqui procuraram implodir algumas das
estruturas que dominavam os palcos brasileiros até 1968, na esteira do que tentara fazer
Plínio Marcos, dois anos antes, com um espécime sem precedentes na dramaturgia
nacional: Dois perdidos numa noite suja. A revelação seguinte é Antonio Bivar com
Cordélia Brasil (1968); seguido de José Vicente com O assalto (1969) e Roberto
Athayde com Apareceu a Margarida (1973). Depois deles, o teatro político perderia
para sempre a ilusão em um projeto racionalista, gerando experiências radicais e
controversas como Delito carnal (1974), de Eid Ribeiro, por exemplo.
A este propósito, convém esclarecer que nem sempre será possível estabelecer
vínculos outros entre as obras de Antonio Bivar, José Vicente e Roberto Athayde com
Delito carnal que não se refiram aos conceitos estritos de contestação e desvario. Para
nós, é muito clara a idéia de que a peça de Eid Ribeiro figura na lista por se tratar de
uma espécie de degeneração que a forma épica e o expressionismo tropicalista à la
Oficina encontraram ao tentar preencher desesperadamente o vazio cultural da primeira
metade da década de 70.
Seria certamente um exagero tratarmos o conjunto dessa obra em termos de
movimento. A nova dramaturgia brasileira corresponde a um momento muito especial
na vida cultural do País, e não a um movimento - o que acaba por eleger a expressão
“espírito do tempo” como um de seus atributos inequívocos:
221
Os três anos, 67, 68 e 69, foram anos de grande vivacidade e produtividade do teatro, apesar do
Espírito da Época - se é que isso existe - ou talvez por causa disso mesmo. Ligada aos acontecimentos, a
dramaturgia comparecia com novos autores: Plínio Marcos, eu, José Vicente, Leilah Assumpção, Isabel
Câmara, Consuelo de Castro, e outros, abrindo caminhos e espertando idéias em dezenas de outros
autores. Bancários, bibliotecários, manequins, universitários, jornalistas, todos tinham algo a dizer e
diziam em peças teatrais E produtores, diretores, atores, preferiam textos nacionais. Alguém pode afirmar
que exagero, mas a impressão que se tinha era essa.
212
Vale notar que a impressão de Antonio Bivar de que aqueles anos praticamente
exigiram a presença do autor nacional nas mais variadas frentes de discussão pode ser
claramente comprovada no balanço estatístico que Yan Michalski produziu muitos anos
depois, a respeito da retração vivida pela dramaturgia brasileira nos anos 80:
Volta-se à situação anterior a 1955, quando a consagração internacional constituía o maior trunfo
para atrair o interesse dos produtores e dos espectadores brasileiros. Em decorrência disso, um outro
retrocesso: depois de girar, durante boa parte dos tempos da ditadura, em torno dos 75% do total dos
cartazes, a dramaturgia nacional viu-se reduzida a responder por menos de 50% das posições do
repertório anual do Rio e de São Paulo. Neste contexto, qualquer proposta dramatúrgica que seja
representativa de um espírito mais experimental ou inquieto, seja ela de origem nacional ou estrangeira,
simplesmente não faz jus a um lugar ao sol, a não ser quando defendida por um intérprete de carisma
indiscutível, como aconteceu no caso do fenômeno Petra von Kan.
213
.
Entretanto, se por um lado, o famigerado “espírito do tempo” convocou estes
dramaturgos para, de modo muito peculiar, expressar sua época; de outro, rapidamente,
ele os fez se calar (como veremos mais adiante). Apesar de os quatro autores aqui
tratados serem donos de uma dramaturgia algo extensa (inclusive Eid Ribeiro, cuja obra
acabou circunscrita ao circuito mineiro), todos estão fadados a serem reconhecidos por
seus trabalhos precoces, sobretudo pelo fato de muito de sua produção posterior
continuar praticamente inédita. Sendo assim, não constitui exagero afirmar que o passar
do tempo roubou dessa dramaturgia a principal vocação que ela tão pertinentemente
externou há já quase quatro décadas: o apego a uma indiscutível aura de marginalidade.
212
BIVAR, Antonio. A legenda de Cordélia Brasil, conciso flash-back de uma época. In: REVISTA DE
TEATRO. Rio de Janeiro: SBAT, n. 413, set./out. 1976. p. 38-9.
213
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985. p. 89.
222
Não nos cabe aqui inventariar o que se convencionou chamar de arte marginal
no Brasil, mas a título de esclarecimento é legítimo afirmar que ela tomou espaço na
cultura brasileira justamente entre o fim dos anos 60 e o começo da década de 70,
quando as maiores revoluções comportamentais no plano internacional aqui chegaram,
dissipando as certezas anteriormente acumuladas e convocando ao não-alinhamento - o
que inevitavelmente apontou para a criação de uma cultura alternativa, ou uma “contra-
cultura”, por definição.
No âmbito das encenações teatrais e da própria vivência da classe artística, as
experiências de expansão da consciência (por via, sobretudo, das drogas), o
orientalismo, o culto ao corpo, a substituição do “popular” pelo “pop” e a
predominância das escolhas individuais sobre a ação política coletiva - tudo
devidamente temperado por generosas doses de um surrealismo redivivo - marcaram
grande parte da criação do período. Em termos estritos de dramaturgia, a atitude
“marginal” nos legou textos introvertidos e de forte apelo existencial, beirando o
depoimento autobiográfico, que, entretanto, refaziam o percurso de toda uma geração.
Por conta das inúmeras interdições de que foi alvo - das quais a instituição do AI-5 é,
sem sombra de dúvida, a mais trágica -, a geração de novos autores não veiculou sua
resistência nos moldes canônicos da esquerda. Antes, ela preferiu deslocar o foco de sua
criação para uma postura subterrânea, marginal. Assim, é que, a despeito de muitos
problemas detectados logo na superfície, as peças dos novos dramaturgos estão
apoiadas em substratos de incontestável criatividade “alternativa”.
Marginais também foram as escolhas temáticas de alguns destes autores,
conforme podemos depreender do depoimento de Edelcio Mostaço:
A chamada nova dramaturgia cresceu e se instalou, trazendo uma ótica inovadora que
mediatizava o mundo através do herói marginal, onde o bancário de Zé Vicente e Alzira P.L. de Bivar
surgem como as figuras mais acabadas, ao lado de outras criações de Leilah Assunção e Isabel Câmara, o
quarteto mais assíduo dos palcos neste período. Apesar das diferenças individuais, a produção deste grupo
de escritores manteve coordenações semânticas pronunciadas, especialmente através de espetáculos
formulados por diretores e elencos afinados com as mesmas inquietações.
214
214
MOSTAÇO, Edelcio. Sumário de um teatro marginalizado. In: ARTE EM REVISTA. Contracultura.
São Paulo: Kairós Livraria e Editora Ltda, n. 5, maio 1981. p. 90.
223
E como ainda declara o crítico, se o exame conjunto dos textos produzidos pelos
autores que escolhemos revela diferenças individuais no que se refere ao enfoque, ao
tratamento dos temas e ao uso da linguagem, torna evidentes, por outro lado, as
semelhanças que há entre eles.
A primeira dessas semelhanças diz respeito ao caráter confessional (não
necessariamente de cunho autobiográfico) destas obras. Dadas as dificuldades de
“explodir para fora”, estes autores foram buscar matéria-prima dentro de si mesmos,
pautados pelas mais íntimas experiências pessoais. A rigor, somente Santidade e O
assalto se inscrevem no rol de “peças confessionais”. Entretanto, em todas as demais as
personagens já não são enfocadas em função de condicionamentos sociais, e sim em
face de seus problemas individuais, existenciais.
A este respeito, é esclarecedor o alerta do dramaturgo franco-romeno Eugène
Ionesco:
Um dramaturgo apenas escreve peças nas quais pode oferecer um testemunho, não uma
mensagem didática... Qualquer obra de arte que fosse ideológica, e mais nada, não teria sentido... seria
inferior à doutrina que deveria exemplificar, que já teria sido expressada em sua linguagem adequada, ou
seja, a da demonstração discursiva. Uma peça ideológica não pode passar da vulgarização de uma
ideologia.
215
O segundo traço comum trata da preocupação que os autores têm em demonstrar
que o contato humano e a comunicação se tornaram precários. Os tipos marginais e
marginalizados e a eleição de alguns dos temas banais e anônimos do cotidiano tendem
a desautorizar a possibilidade do diálogo interpessoal de fato. Só assim, em vez de
produzir um discurso articulado sobre o mundo, as personagens começam a falar por si
mesmas, por meio de uma estrutura monológica cujo grande objetivo é acentuar a
solidão humana. Uma vez que o contato humano acaba invariavelmente em
antagonismo e exasperação mútua
216
, a comunicação se esfacela, reduzindo a
possibilidade do diálogo como expressão da relação interpessoal. Os diálogos em
Cordélia Brasil, Santidade e O assalto, por exemplo, tendem a exercer uma função
muito mais expressiva do que intersubjetiva - o que acentua certo traço lírico, sobretudo
em José Vicente. A derrocada do diálogo em Apareceu a Margarida reflete uma crise
215
IONESCO, Eugène apud ESSLIN, Martin, op. cit., p. 114.
216
Anatol Rosenfeld cunhou a expressão “teatro do porco espinho” para esta dramaturgia.
224
de contornos políticos muito mais amplos. A peça, que se passa em uma sala de aula,
transfere a falência do discurso institucional para o interior de sua própria estrutura.
Um outro ponto de convergência entre os autores diz respeito à invocação do
banal que se revela absurdo. As personagens têm consciência de que vivem em um
mundo que perdeu suas dimensões metafísicas e, portanto, todo o mistério. Os
dramaturgos, então, trabalham no sentido de nos levar a ver as coisas mais corriqueiras
na plenitude de seu horror. José Vicente opta por uma comoção trágica, enquanto
Antonio Bivar e Roberto Athayde preferem trilhar o caminho da comicidade. O cômico
para eles acaba se revelando tão surpreendente quanto o banal, o que faz com que esta
operação nos conduza necessariamente aos domínios da fantasia.
Outra questão relevante trata da nova sensibilidade contracultural que estes
autores procuraram expressar em seus textos, tanto em relação à criação de suas
heroínas quanto na condução de uma seleção temática que professa singularmente “a
doçura feminina dos machos”, como definiria Theodore Roszak. Não espanta que em
meio a um panorama de inúmeras autoras mulheres, três fortes personagens femininas
tenham sido concebidas por dramaturgos homens: Cordélia Brasil, Alzira Power e Dona
Margarida.
As peças tendem ainda a explorar uma sensibilidade cosmopolita, uma maneira
urbana de sentir, reagir e se comportar, em consonância com uma ótica teatral moderna.
Abre-se mão de certos ranços e convenções literárias e mesmo do teatro de prestígio;
excluem-se os regionalismos e o folclore. É como se os autores concebessem suas
tramas e enredos, partindo apenas de suas próprias vivências e visões. As experiências
formais realizadas em outros países não parecem, a rigor, importadas. Tudo é diluído e
abrasileirado. Encontramos ecos distantes de Sartre em Cordélia, de Genet em José
Vicente, de Ionesco em Athayde, mas a fórmula das peças está ligada à corrente
espontânea do próprio movimento interior destes dramaturgos.
É como se esses autores rebaixassem a arte teatral, fazendo com que as
dimensões do palco coincidissem com a vida banal de jovens que escrevem a partir de
uma experiência biográfica inculta e marginal. Eles não querem parecer inteligentes e
sofisticados; antes, buscam a força de certas soluções de improviso, porém muito vivas.
As falas, em maior ou menor medida, confundem-se com a vida, produzindo imagens
particulares, independentes. A linguagem corrente afeta o senso preciso daquilo que
pode ser trágico ou patético, mesmo na mais prosaica das existências.
225
Em relação à perspectiva política, a postura destes autores é totalmente estranha
aos objetivos socialistas de grande parte de seus companheiros de geração. Nas peças, a
luta de classes e a representação das mazelas socioeconômicas aparecem mediadas pela
dimensão individual. O coquetel único que eles oferecem mistura crítica social, tragédia
individual, interdição psicológica e uma leitura ao revés do projeto racionalista da
esquerda. A visão da história e da política do País, a concepção de uma escrita cênica
brasileira de vanguarda e o compromisso com a originalidade se desdobram em todas as
peças, mas a concepção de transformação do Brasil é essencialmente delirante.
Cordélia Brasil e Um visitante do alto parecem querer advertir para a
necessidade de superação de uma característica nacional cômica, porém nefasta: a falta
de competência e de eficiência - o que impede a fruição mais ampla de nossa
indiscutível originalidade. Alzira Power e O reacionário abordam a desordem
característica da vivência brasileira, postulando uma ordem mais livre e alegre do que a
suposta racionalidade civilizada que acabou por nos levar ao caos. Abre a janela...,
Santidade, O assalto, Manual de sobrevivência na selva e No fundo do sítio são
incursões em uma aventura existencialista que envolve uma visão autodepreciativa da
vida cotidiana e do seu quase nenhum valor no mundo. Apareceu a Margarida é o
exercício das mais variadas formas de opressão do discurso institucional que
transbordam insanamente para dentro do indivíduo.
Entretanto é preciso admitir alguns problemas vividos por uma dramaturgia que
pretendeu, acima de tudo, contestar alguns ícones do mundo burguês a fim de
escancarar os estereótipos que governam nossas vidas. O humor carnavalesco de
algumas das peças e certas formas de protesto contra a cultura dominante praticadas por
elas às vezes são ineficazes diante do desvio pretendido. A fragilidade de algumas
soluções e a timidez em radicalizar criam uma espécie de pudor no confronto, que se
precipita rapidamente e se transforma em ingenuidade. Tal afirmação suscita uma boa
discussão. Talvez pelo fato de muitas delas terem obtido um grande sucesso de público,
de suas protagonistas exigirem a experiência e a verve de intérpretes consagrados e
ainda por conta de seus autores trabalharem sozinhos, não se ligando a grupos de
experimentação, estas criações, muitas vezes, foram classificadas como obras de puro
entretenimento, comprometidas com o teatro comercial, pouco afeito à crítica e à
reflexão. Tal visão pode ser depreendida no depoimento de José Celso Martinez Corrêa,
datado de 1972:
226
Esta preocupação do Oficina de sair fora das estruturas é parecida com a atitude de um teatro
underground ou pretensamente de contracultura (Antonio Bivar, Zé Vicente etc.) que está surgindo?
Eu me identifico com esses autores, mas não com o trabalho deles. Eles estão alimentando uma
faixa do consumo. Colocam suas experiências vitais nos limites de uma peça tradicional. Talvez isso
aconteça por eles ainda estarem compartimentados. A vida deles é muito rica, mas extremamente solitária
e seus trabalhos quando encenados, eu acho, são traídos.
217
A mesma ingenuidade que leva essas peças aos domínios do teatro comercial
também acaba por reputá-las - paradoxalmente - como obras datadas, já que a aludida
aura de marginalidade que recai sobre elas, e cujas condições históricas já foram
devidamente superadas, acabou fazendo com que muitas dessas criações, aos olhos de
hoje, constituam depoimentos de certo modo arqueológicos. Quase quarenta anos
depois de ganharem o palco pela primeira vez, algumas exalam uma aura de “clássicas”,
ou melhor, “de época”.
Já nos anos 70, um dos próprios autores percebera, com sua habitual perspicácia,
que esta dramaturgia era uma moda que estava passando:
Quando penso nas décadas todas, sem dúvida a de travessia mais dolorida foi a dos 70, de 73 em
diante. A “Nova Dramaturgia”, da qual fazia parte (com Leilah, Zé Vicente, Consuelo de Castro, Isabel
Câmara - e um pouco antes, Plínio Marcos, e pouco depois Mário Prata) e que, como tantos outros
movimentos antes e depois, com sua originalidade transformava a cena teatral, de repente como que
passara de moda. Era a vez da divina decadência como grande euforia. No Brasil, a década dos 70
começou um pouco atrasada, em 1973, com o surto andrógino tanto dos Secos & Molhados, na música
popular, quanto dos Dzi Croquetes, no teatro. Dois anos depois, a jovem e talentosa trupe do Asdrúbal
Trouxe o Trombone.
218
Talvez mais sintomático no depoimento de Bivar do que a percepção do fim de
um momento tão especial para “alguns autores” seja a intuição de que, a partir de então,
as criações coletivas dominaram a cena e fizeram “os dramaturgos” se calarem.
217
CORRÊA, Zé Celso Martinez. Lição de voltar a querer. In: ______. Primeiro ato: cadernos,
depoimentos, entrevistas (1958-1974). São Paulo, Editora 34, 1998. p. 214.
218
BIVAR, Antonio. Verdes vales do fim do mundo. Porto Alegre: L&PM, 2002. p. 203.
227
O momento histórico já era outro e o esgotamento do repertório criativo desta
confraria que partilhou as mesmas reações de contestação desvairada foi inevitável. Em
1974, segundo o depoimento de Yan Michalski, o teatro começa a assumir que “no
contexto do momento nacional nem o protesto político declarado, nem uma análise
direta da realidade nacional e nem as manifestações mais rebeldes e iconoclastas da
vanguarda contracultural têm reais chances de ocupar os palcos e comunicar-se com o
público”.
219
Os anos seguintes, por constituírem as décadas de um teatro menos amparado na
comunicação verbal, tornar-se-iam muito injustos com autores como Antonio Bivar,
José Vicente, Roberto Athayde e Eid Ribeiro - falastrões inconformados e incorrigíveis.
219
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985, p. 60.
228
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