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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE LITERATURA BRASILEIRA
COMIGO E CONTIGO A ESPANHA:
UM ESTUDO SOBRE
JOÃO CABRAL DE MELO NETO E MURILO MENDES
Ricardo Souza de Carvalho
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Literatura Brasileira, do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador: Prof. Dr. João Adolfo Hansen
São Paulo
2006
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2
AGRADECIMENTOS
- CAPES, pela concessão da bolsa do Programa de Doutorado no País com
Estágio no Exterior, que possibilitou a minha pesquisa na Espanha de setembro de
2004 a maio de 2005;
- Professor Fernando Rodriguez de la Flor, da Universidad de Salamanca, pela
atenção e gentileza em supervisionar meu trabalho durante esse período;
- Biblioteca da Facultad de Filología – Universidad de Salamanca;
- Casa Museo Unamuno – Salamanca;
- Fundacn Jorge Guillén – Valladolid;
- Biblioteca Pública de Valladolid;
- Biblioteca Nacional – Madri;
- Real Academia Española – Madri;
- Biblioteca de Catalunya – Barcelona;
- Fundac Antonio Tapiès – Barcelona, em especial a Gloria Domenech;
- Fundac Joan Brossa – Barcelona, em especial a Gloria Bordons e Pepa Llopis;
- Fundac Vila Casals – Barcelona;
- Pilar Gomez Bedate, pelas informações e materiais sobre Angel Crespo;
- Maite Santos Torroella, pela agradável tarde em que conversarmos sobre Rafael
Santos Torroella, e a persistente busca das fotos de Cabral e Murilo;
- Enric Tormo i Freixa, pela entrevista concedida e por me mostrar o seu mundo da
tipografia;
- JoHernández Sanchez, pelas informações e materiais sobre Francisco García
Vilella;
- Fundacn Rafael Alberti – Puerto de Santa María – Cádiz;
- Os amigos que me deram o apoio e o carinho durante meu “tempo espanhol”:
Ivani; Enrique; Tina e Frank, a presença alemã na Espanha; e Antonio, da cidade
de Zamora, “Duero le cercaba al pie,/ fuerte es a maravilla”, como canta o
romancero.
No meu “tempo brasileiro”:
- Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros – USP;
- Centro de Estudos Murilo Mendes – Juiz de Fora;
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3
- Arquivo-Museu de Literatura Brasileira Fundação Casa de Rui Barbosa, em
especial a Julio Castañon Guimarães;
- Professores María Concepcn Piñerno Valverde, Augusto Massi, Mario Miguel
González e Cilaine Alves Cunha;
- João Adolfo Hansen, pela orientação competente e amiga;
- minha família e amigos, em todos os “tempos”, sempre comigo.
4
RESUMO
Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, em rios momentos de suas
trajetórias, mantiveram um diálogo para ressaltar as evidentes diferenças ou para
incorporar procedimentos. A Espanha é o ponto central desse intercâmbio,
comparecendo tanto como tema, quanto como parâmetro literário e pictórico para as
poéticas de ambos. Além disso, estabeleceram contato com importantes escritores e
artistas plásticos espanhóis, entre as cadas de 40 e 60. A referência da Espanha
configura determinadas especificidades dos dois poetas em relação à poesia
brasileira do século XX.
Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto Murilo Mendes Espanha poesia
brasileira
ABSTRACT
Murilo Mendes and João Cabral de Melo Neto, in many moments of their
carriers, have maintained a dialogue to stand out some differences or to incorporate
methods. Spain is the nucleus of this interchange, developing such as theme as
literary and pictorial parameter of both poetics. Furthermore, they established contact
with important Spanish writers and plastic artist between 1940’s and 1960’s. The
Spanish reference configures unique characteristics in both poets in respect to
Brazilian poetry of the 20
th
century.
Key words: João Cabral de Melo Neto – Murilo Mendes – Spain – Brazilian poetry
5
ÍNDICE
Introdução ...................................................................................................................7
1. A imagem entre Cabral e Murilo...........................................................................7
2. A Espanha de Cabral .........................................................................................10
3. A Espanha de Murilo..........................................................................................14
4. As muitas Espanhas...........................................................................................17
CAPÍTULO 1: Leituras e leitores espanhóis de Cabral .............................................24
1. Uma epígrafe e dois poemas: Jorge Guillén e Rafael Alberti.............................28
2. Brasil e Catalunha..............................................................................................37
3. O rio e seus afluentes: a poesia medieval espanhola ........................................44
4. Traduções: Ángel Crespo e Gabino-Alejandro Carriedo ....................................50
CAPÍTULO 2: Leituras e leitores espanhóis de Murilo ..............................................58
1. Entre os “mestres do passado” e do presente....................................................62
1.1. Rafael Alberti................................................................................................66
1.2. Vicente Aleixandre........................................................................................72
1.3. Dámaso Alonso............................................................................................74
1.4. Jorge Guillén ................................................................................................77
2. Entre os novos poetas........................................................................................81
2.1. Ángel Crespo................................................................................................81
2.2. Gabino-Alejandro Carriedo...........................................................................86
CAPÍTULO 3: Cabral e as artes de Barcelona..........................................................89
1. O artesão tipógrafo.............................................................................................91
2. O cavalo de todas as cores de Franciso García Vilella......................................97
3. Joan Miró: o “sólido artesão da Catalunha”........................................................99
4. Tapiès, Cuixart, Ponç.......................................................................................112
CAPÍTULO 4: O museu espanhol de Murilo............................................................117
1. A pintura antiga da Catalunha..........................................................................121
2. El Greco, o pintor de Toledo.............................................................................124
3. Velázquez, “eis a pintura”.................................................................................127
4. O touro e toureiro Goya....................................................................................130
5. A desordem e a ordem do século XX: Picasso, Gris e Miró.............................133
6. Da Espanha ao Brasil: Isabel Pons..................................................................139
CAPÍTULO 5: Paisagens e figuras da Espanha de Cabral .....................................142
1. Paisagem de Espanha .....................................................................................142
1.1.A secura de Castela e do Nordeste.............................................................142
1.2. Andaluzia e “ainda, ou sempre, Sevilha”....................................................153
2. O gosto pelos extremos: a tauromaquia e o flamenco .....................................163
3. A Sevilha espiritual...........................................................................................169
CAPÍTULO 6: Os tempos da Espanha de Murilo ....................................................178
1. O começo e o fim da Espanha.........................................................................184
2. O núcleo de Espanha: Castela e o Siglo de Oro..............................................186
3. Os arredores da História ..................................................................................189
4. Tempo andaluz.................................................................................................191
6
5. Tempo de hoje e de sempre na Catalunha ......................................................193
Considerações finais...............................................................................................196
Bibliografia...............................................................................................................198
Anexos ....................................................................................................................211
Brasil e Catalunha................................................................................................212
Quinze poetas catalães .......................................................................................214
Traduções de Joan Brossa ao catalão de três poemas d´O engenheiro..............231
Tapiès, Cuixart, Ponç...........................................................................................234
Xilografia popular na Catalunha...........................................................................237
Entrevista com Enric Tormo.................................................................................240
Prólogo a En va fer Joan Brossa..........................................................................243
Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto ........................................................246
Epígrafes da 1
a
edição de Tempo espanhol (1959).............................................248
Nota preliminar a “Poemas de Murilo Mendes” ....................................................249
Enquete sobre a literatura brasileira de vanguarda..............................................251
Nota aos Poemas inéditos de Murilo Mendes......................................................252
Nota bibliográfica..................................................................................................255
Jorge Guillén ........................................................................................................258
Correspondência de Cabral e Murilo com escritores espanhóis ..........................261
Dedicatórias autógrafas em livros ........................................................................266
Poemas e livros dedicados...................................................................................275
Traduções da obra de João Cabral de Melo Neto na Espanha............................278
Traduções da obra de Murilo Mendes na Espanha..............................................280
Artistas plásticos espanhóis no acervo de Murilo Mendes...................................281
Imagens................................................................................................................282
7
Introdução
1. A imagem entre Cabral e Murilo
O primeiro encontro entre João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes
ocorreu em 1940, no Rio de Janeiro. Enquanto Cabral divulgava seus primeiros
poemas na revista Renovação de Recife, Murilo era o autor maduro de seis obras
publicadas desde 1930, o que não impediu que recebesse generosamente o “poeta
novo“, dedicando-lhe um pequeno artigo no periódico carioca Dom Casmurro de 2
de março daquele ano: “E hoje aparece-nos, vindo pelo último navio de Recife, o
poeta de vinte anos João Cabral de Melo Neto. (...) No plano propriamente literário,
as influências que ele mais acusa o as de Bandeira e Drummond, portanto está
acertando o caminho.”
1
Talvez por modéstia ou falta de percepção, deixou de citar
a si mesmo; mas Cabral explicitou mais de uma vez a presença marcante de Murilo
em sua obra inicial.
O intermediário do primeiro contato entre Cabral e Murilo foi o escritor Willy
Lewin. Por volta de 1938, em Recife, Cabral freqüentava o Café Lafayette, ponto de
encontro de intelectuais reunidos ao redor de Lewin e do pintor Vicente do Rego
Monteiro. Lewin, em suas viagens ao Rio de Janeiro, travou amizade com Murilo
2
,
compartilhando um grande interesse pelo surrealismo, mais pela pintura do que
pela escrita automática proclamada por André Breton no Manifesto de 1924. Esse
entusiasmo “visual” deixa-se entrever no curioso registro de Lewin sobre um
passeio ao lado de Murilo pelas ruas da Capital Federal: “(Rio, 1937) M. M e eu
descobrimos, por acaso, uma vitrine de utensílios cirúrgicos, manequins
anatômicos, instrumentos ortopédicos. Estamos ‘bouleversés’. Ali estavam, vivos,
eloqüentes, Chirico, Dali, os surrealistes.”
3
Em 1936, Lewin, nos seus Quinze
1
GUIMARÃES, Julio Castañon, org. Murilo Mendes: 1901-2001. Juiz de Fora, CEMM/ UFJF, 2001, p.
57.
2
Lewin freqüentou com Murilo o grupo de artistas e intelectuais da boemia carioca: “(...), companheiro
de mesa de bar de 1929, quando estivemos várias vezes juntos, você, o pintor Cícero Dias, o
arquiteto Carlos Leão e eu, poeta sem versos,(...)” (LEWIN, Willy. Saudação a Murilo Mendes.
Boletim de Ariel. a. 3, n. 12, Rio de Janeiro, set. 1934, p. 321).
3
LEWIN, Willy. De um diário de poesia. Renovação. a. 2, n. 5, Recife, ago. 1940, p.10.
8
poemas, tentara recuperar a atmosfera de alguns quadros, como em Chirico ou o
fim do mundo”:
Colóquio das estátuas impassíveis
na praça deserta
onde sopra um vento de peste
e um anjo lívido
agita as grandes asas.
Perspectivas oníricas
sob uma luz de eclipse.
4
Murilo reconhecera o valor dos Quinze poemas, indicando o que ele próprio
buscava em sua poesia: “esquemáticos, concentrados, incorporam-se à corrente
espiritualista que aumenta dia a dia, sendo alguns notáveis pelo seu mistério e
capacidade de sugestão”.
5
O “mistério” e a “capacidade de sugestão” conformam
as diretrizes do surrealismo concebido por Lewin, segundo as notas “De um diário
de poesia”: “O que existe de belo numa paisagem, nas coisas do mundo, é a
eterna, a misteriosa, a invisível Presença que elas ocultam e refletem. Um poeta
realmente materialista: que absurdo.”
6
; “O poeta ‘dorme’. Ou respira numa noite
profunda. Acordando, em plena luz, entre os homens, o poeta é um destroço
lamentável, um peixe atirado à praia.”
7
; “A densidade do mistério e não a clareza do
racional é que é a linguagem da poesia.”
8
Essas idéias repercutiram, de certa
maneira, no jovem Cabral, que, em sua tese no Congresso de Poesia do Recife,
“Considerações sobre o poeta dormindo”, em 1941, apresentava como epígrafe o
poema Sono”, de Lewin. Embora tenha começado a escrever poemas marcado
por esse contexto, encaminhou-se justamente pela trajetória negada por Lewin, a
do poeta “materialista”, “em vigília” e da “clareza do racional”.
Ao lado do surrealismo, o catolicismo tamm ocupava as preocupações
comuns a Murilo e Lewin. Quando da publicação de Tempo e eternidade, em 1935,
4
Quinze Poemas. Recife, 1936. Não há indicação de número de página.
5
MENDES, Murilo. “Poesia universal”. Boletim de Ariel. a. 7, n. 8, Rio de Janeiro, maio 1937, p. 220-
221. Na biblioteca do poeta, consta um exemplar de Quinze poemas com dedicatória: “Para Murilo
Mendes, afetuosamente Willy Lewin Recife, Natal. 1936”.
6
Renovação. a. 2, n. 5, Recife, ago. 1940, p. 10.
7
Idem, ibidem.
8
Renovação. a. 2, n. 2, Recife, março 1940, p. 22.
9
Lewin acolheu Murilo como seu “irmão em Jesus Cristo”.
9
Cabral afastava-se
dessa postura, reconhecendo divergências com Lewin:
(...) Eu me lembro de uma conferência que ele fez no Círculo Católico de
Pernambuco, onde ele comparava dois grandes poetas franceses da geração dele,
que foram Claudel e Valéry, e ele dizia que, apesar dos dois serem grandes poetas,
faltava uma certa dimensão a Valéry, que era exatamente esse catolicismo, esse
espiritualismo. Eu era o contrário, eu me sentia inteiramente atraído por Valéry,
sempre fui incapaz de transcendência.
10
Se por um lado Cabral não se identificava com a transcendência” da poesia
de Murilo, por outro, valorizou nela o lugar central ocupado pela imagem:
um certo parentesco entre Pedra do sono e certa poesia entre nós, a do
sr. Murilo Mendes, por exemplo para quem a imagem não é um equivalente
simbólico de uma realidade observada, mas um valor em si. Quando um poeta
escreve “A mulher do fim do mundo/ de beber às estátuas”, creio que não é a um
determinado conceito que ele (o sr. Murilo Mendes, no caso) está vestindo de uma
aparência poética (conceito que o leitor deveria procurar no avesso da página), mas
o simples fato de que sua inteligência (seu dom poético, como quiserem) criou,
imaginando aquele comportamento ou aquela relação, um fato poético. Pedra do
sono é um livro cujo ponto de partida foi um tratamento da imagem como tal.
11
Os versos citados pertencem ao poema “Metade ssaro”
12
, da coletânea O
visionário, escrita entre 1930 e 1933, mas apenas publicada em 1941, quando se
dedicava a Pedra do sono. Mais de uma imagem desse livro de Murilo ecoa na
obra de estréia de Cabral: os anjos murilianos de “Evocação da morta” (“Eu vi três
anjos distintos/ Rodando num carrossel.”) irmanam-se nas diversões prosaicas com
os de “A poesia andando” (“estendem-se avenidas iluminadas/ que arcanjos
9
Saudação a Murilo Mendes. Op. cit., p. 321.
10
Entrevista de 1990 (ATHAYDE, Félix de, org. Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998, p. 87).
11
Entrevista de 1946 (Idem, ibidem, p. 99).
12
No livro publicado, a belíssima 1
a
estrofe é a seguinte: “A mulher do fim do mundo/ de comer às
roseiras, / Dá de beber às estátuas,/ Dá de sonhar aos poetas.” (Poesia completa e prosa. Edição de
Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, 223-224. A partir daqui essa
edição passa a ser referida como PCP).
10
silenciosos/ percorrem de patins”). Benedito Nunes reconheceu o verso O poema
obscuro dorme na pedra”, de As metamorfoses (1941), como possível “divisa à
primeira experiência poética de João Cabral: captar a poesia latente ao espírito em
estado de sono.”
13
Cabral confessou que sua dívida com a poesia de Murilo em relação à
imagem, apesar das evidentes diferenças, marcou toda a sua obra posterior:
(...) Creio que nenhum poeta brasileiro foi mais diferente de mim: desde a
visão da vida (e, por parte dele, de uma sobrevida), até a visão da poesia, como
função e organização. Pois bem: creio que nenhum poeta brasileiro me ensinou
como ele a importância do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o musical (a
poesia dele, que tanto parecia gostar de música, é muito mais de pintor ou cineasta
do que de músico). Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque
sensorial, é sempre mais poética do que a palavra abstrata, e que assim, a função
do poeta é dar a ver (a cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir: enfim, a
sentir) o que ele quer dizer, isto é, dar a pensar. O fato de Murilo ter usado essa
concepção da palavra poética com uma intenção completamente oposta à minha,
não diminui em nada a influência que ele exerceu sobre mim. Influência sica,
porque se situa na própria concepção do tratamento da poesia poética.
14
2. A Espanha de Cabral
Desde o início de sua obra, Cabral procurou um caminho próprio, não se
submetendo totalmente às referências seja dos poetas do Recife a Lewin, da
Geração de 45 ou dos mestres do modernismo, Drummond e Murilo. Faltava-lhe um
panorama diferente que viesse ao encontro de suas inquietações. A entrada na
carreira diplomática definiu os rumos da sua trajetória poética. Entre vários países, a
Espanha foi onde mais tempo permaneceu, durante quatro estadas. Os mais de dez
anos vividos nesse país, com alguns intervalos, possibilitaram o amadurecimento do
13
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2
a
ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 36. Também
reconhecia a “nuvem como outra imagem recorrente tanto em Pedra do sono quanto na poesia
muriliana, principalmente no seu período entre 1935 e 1945 (p. 39).
14
Entrevista de 1976 (MAMEDE, Zila. Civil geometria: bibliografia crítica, analítica e anotada de João
Cabral de Melo Neto, 1942-1982. São Paulo: Nobel/ Edusp/ INL/ Vitae/ Governo do Estado Rio
Grande do Norte, 1987, p. 155).
11
poeta, quando escreveu e publicou a parte crucial de sua obra, de Psicologia da
composição (1947) a A educação pela pedra (1966).
Cabral deixou pela primeira vez o país para trabalhar como cônsul-geral em
Barcelona, entre 1947 e 1950. Logo se encantou com a cultura espanhola,
acompanhando, por exemplo, as touradas. Das arenas aos livros, reconheceu uma
longa tradição literária, pois antes pautara-se pelas correntes modernas da poesia
francesa, Mallarmé e Valery, e da poesia brasileira, Drummond e Murilo. Em carta
de 4 de setembro de 1947 a Manuel Bandeira, comenta a intensa leitura que vinha
fazendo da poesia espanhola, das origens aos contemporâneos:
De Barcelona não preciso lhe dizer muito; está na Espanha e a Espanha de
hoje é aquele seu estribilho, lembra-se? Eu o tenho sempre na cabeça e
permanentemente estou examinando o que de sim e de não nas coisas que vou
encontrando. O que vale é que a percentagem de sins é bem grande. uma
“Espanha-sim” realmente indestrutível. Nessa estou mergulhado desde que cheguei:
Mio Cid, Fernán González, Berceo, Arcipreste de Hita, Góngora, Góngora, Góngora,
etc. É claro que os poetas primeiro, como é claro também que a exploração não é
tão cronologicamente sistemática como enumerei. Mas o é tanto quanto possível,
isto é, quando o interesse pelos modernos me permite sistema.
15
No entanto, o ambiente não era dos mais alentadores: dois anos apenas do
fim da Segunda Guerra Mundial e da condenação pela ONU da ditadura de Franco,
a Espanha atravessava tempos de crise econômica e ferrenha censura. Cabral, na
condição de diplomata, teve a oportunidade de conhecer desde o consagrado
Joan Miró, mas não bem visto pelo regime, até os jovens artistas que iniciavam um
estimulante processo de renovação. Trata-se sem dúvida do período mais fértil que
experimentou na Espanha, em que não apenas recebeu contribuições, mas pôde
inclusive atuar de forma construtiva na obra de alguns dos nomes mais importantes
da arte espanhola do século XX.
Mais concretamente, havia a imposição do castelhano frente ao catalão,
idioma nativo dessa parte do país. Para esses artistas, escrever em catalão era uma
forma de resistência, luta que repercutiu em Cabral, que chegou a estudar e traduzir
15
SÜSSEKIND, Flora, org. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, Edições Casa de Rui Barbosa, 2001, p. 32.
12
poesia do catalão ao português, caso pioneiro e praticamente até hoje raro entre
nós:
Entrei em contacto, aqui, com um grupo de jovens escritores catalães que
publicam duas revistas. Clandestinas, esclareço, porque o catalão, desde 1939, é
perseguido aqui. A princípio não podiam nem falar; a partir do desembarque dos
americanos na África, passaram a tolerar a ngua oral; a partir de 1945, fim da
guerra, passaram a permitir os livros em catalão, se em pequenas tiragens fora do
comércio; e, finalmente, de um ano para cá, permitem os livros com restrições
mas não as revistas e os jornais. Como eu ia dizendo, acima, conheço esses jovens
catalães, ávidos de intercâmbio e de que se conheça, fora da península, sua “cultura
ameaçada”.
16
Os jovens mencionados eram o poeta Joan Brossa, o escritor Arnau Puig e
os pintores Antonio Tapies, Modesto Cuixart, Joan Ponç e Josep Tharrats. A
primeira revista, Algol, com um único número, publicou-se no final de 1946. Depois,
aquela que levava o nome do grupo, Dau al set, circulou de setembro de 1948 a
dezembro de 1956. Cabral simplesmente tornou-se coadjuvante, fundamental diga-
se de passagem, de um dos grupos de vanguarda mais importantes da Espanha do
pós-guerra. Embasado pelo marxismo, passou a discutir com eles a importância da
questão social em suas obras, para não se limitarem à preocupação formal ou
estética. Em nota à publicação em 1979 de U no ès ningú, realizada em 1950,
Brossa e Tapies enfatizam a participação do brasileiro em suas trajetórias
artísticas: Em 1950, os comunistas catalães estavam presentes no propósito de
remarcar a dimensão política de nossas obras sem abandonar o caminho da
renovação. Nesse ponto, e na perspectiva daqueles anos, também estão em dívida
com o poeta e diplomata João Cabral de Melo, que residia em Barcelona.”
17
Além disso, durante todo esse período, sob o selo O Libro Inconsútil,
imprimiu exemplares de poetas brasileiros e espanhóis, fora suas próprias obras
Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947) e O cão sem
plumas (1950), os quais presenteava os amigos na Espanha e no Brasil.
18
Ainda
16
Carta a Manuel Bandeira de 20 de julho de 1948 (Idem, ibem, p. 89).
17
BROSSA, Joan. Ball de sang (1941-1954). Barcelona: Editorial Crítica, 1982, p. 117.
18
Os livros impressos foram os seguintes: Mafuá do Malungo (1948), de Manuel Bandeira, Pequena
antologia pernambucana (1948), de Joaquim Cardozo; Corazón en la tierra (1948), de Alfonso Pintó;
13
como editor, idealizou com o poeta português Antonio Serpa a revista O cavalo de
todas as cores, que apenas teve o primeiro número em janeiro de 1950, com
poesia de Vinícius de Moraes, Rafael Santos Torroella e José Regio.
As repercussões mais diretas dessa intensa estada espanhola na obra
cabralina somente surgiriam em 1954, com O rio, no qual incorpora formas e
imagens da poesia medieval espanhola, e Paisagens com figuras, no qual
apresenta a temática espanhola recorrente em sua obra.
Em 1956, Cabral retornou à Espanha como nsul-adjunto em Barcelona,
mas o encarregaram de pesquisar os documentos relativos ao Brasil no Arquivo
das Indias de Sevilha. O Ministério de Relações Exteriores publicou o resultado de
seu trabalho apenas em 1966, O arquivo das Indias e o Brasil. Documentos para a
História do Brasil existentes no Arquivo das Indias de Sevilha, inventário de 6 mil
documentos de 1483 a 1830, “o maior realizado por brasileiro em arquivo de
Espanha”, segundo as palavras do préfacio do historiador José Honório Rodrigues.
Em carta de 6 de fevereiro de 1957 ao casal Clarice Lispector e Maury Gurgel,
aponta as conveniências desse trabalho: “Minha vida em Sevilha tem vantagens.
Como Vcs. sabem (saberão) o Ministério me mandou para fazer investigações
no Arquivo das Indias. A posição é boa, me deixa livre, sem chefes, sem
caceteações de Consulado, etc. E sobretudo me deixa em Sevilha.”
19
A partir
desse momento incluiu a cidade andaluza à sua geografia poética, em Quaderna
(1961), na qual figuram duas peças fundamentais ligadas ao flamenco: Estudos
para uma bailadora andaluza” e “A palo seco”. Se não chegou a escrever um livro
inteiramente dedicado à Espanha, a última obra publicada, Sevilha andando (1990)
traz a cidade que melhor expressa sua relação com esse país.
O terceiro “tempo espanhol” de Cabral foi entre 1960 e 1961 como primeiro
secretário da Embaixada do Brasil em Madri. Incentivou ao poeta Ángel Crespo a
criação da Revista de Cultura Brasileña, que comou a ser publicada em 1962
Acontecimento do soneto (1948), de Ledo Ivo; Alma a la luna (1948), de Juan Ruiz Calonja; Sonets
de Caruixa (1949), de Joan Brossa; El poeta conmemorativo, de Juan Eduardo Cirlot; Pátria minha,
de Vinicius de Moraes; e a Antología de poetas brasileños de ahora, com seleção e tradução de
Alfonso Pin de poemas de Murilo Mendes, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade,
Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes.
19
SOUSA, Carlos Mendes. Cartas de João Cabral de Melo Neto para Clarice Lispector. Colóquio/
Letras. Paisagem tipográfica. Homenagem a João Cabral de Melo Neto (1920-1999). n. 157/158,
Lisboa, jul-dez. 2000, p. 297. Sobre a pesquisa de Cabral no Arquivo das Indias, consutar a
correspondência com José Honório Rodrigues, entre 1957 e 1959 (RODRIGUES, Lêda Boechat, org.
Correspondência de José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2000).
14
pela Embaixada brasileira. O periódico, ao veicular principalmente traduções ao
espanhol e ensaios a respeito da poesia brasileira de diversas épocas e tendências
com ênfase na produção contemporânea constituiu-se em um importante meio
para as relações literárias entre Brasil e Espanha.
Cabral permaneceu ainda como cônsul-geral em Sevilha entre 1962 e 1964,
e em Barcelona entre 1967 e 1969, durante os quais voltou-se mais à sua obra do
que às intervenções.
3. A Espanha de Murilo
Ao que tudo indica, Murilo possuía uma íntima relação com a Espanha
muito antes de conhecê-la. Dizia que um remoto antepassado seu carregava o
sobrenome Medinaceli, hipotético local de nascimento do autor anônimo do Poema
de Mio Cid. Em 1920 assinava a coluna “Chronica mundana” do jornal A Tarde de
Juiz de Fora com o pseudônimoDe Medinacelli”.
20
Mais tarde, Manuel Bandeira, no
poema Saudação a Murilo Mendes”, acabou incorporando o ilustre desconhecido
sobrenome: “Murilo Medina Celi Monteiro Mendes”. Sua possível ascendência
espanhola não deixou apenas um sobrenome, mas também certa “herança
espiritual”, como registrou em “Mapa” do livro de estréia Poemas (1930): “Estou com
meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,/ é por isso que saio às
vezes pra rua combatendo personagens imaginários.” (PCP, 116)
Além dos antepassados, a presença do país ibérico já lhe despertava a
atenção desde a infância por intermédio da Prima Vera, afetuosa parenta de quem
me recordo por ter sido a única pessoa do tempo juiz-forano a mencionar a Espanha
onde outrora viajara, trazendo-me ecos de palavras quase contemporâneas da
formação do meu mundo: sapateado castanholas tourada zarzuela, a última me
intrigando particularmente no meio das minhas já insônias.”
21
Apesar da formação francesa predominante, Murilo teria estudado o
espanhol, algo extravagante para um intelectual brasileiro da década de 20: “Dei-me
ao luxo até de, aos vinte anos, tomar um professor de espanhol.(...) Estudei o
20
V. SILVA, Teresinha V. Zimbrão, org. Chronicas mundanas e outras crônicas: as crônicas de Murilo
Mendes. Juiz de Fora: UFJF, 2004, p. 143-163.
21
Espaço espanhol (PCP, 1187).
15
espanhol por minha conta, porque tinha uma atração enorme pela Espanha e tinha
lido o livro de Maurice Barrès sobre El Greco, aos 17 anos.”
22
Os amigos
começavam a perceber essa fascinação: Ismael Nery, no quadro A espanhola
(1923), representa uma moça com mantilha e expressão austera, e ao fundo, à
direita, a cabeça de Murilo.
Ao longo da obra, deixou alguns rastros da Espanha. Em um clima lúdico,
chegou a reconhecer, em “Prefácio de Pinzón” de História do Brasil (1933), o
descobrimento pelos espanhóis: “Quem descobriu a fazenda/ Por Sant Tiago, fomos
nós” (PCP, 143).
Na coletânea Mundo enigma (1945),
“A Desejada” revela uma
figura feminina sob uma ótica espanhola, ou melhor, “dualista”, mesclando
sensualidade e devoção:
Sutil, intuitiva, és grande e miserável.
Teu orgulho só é igual à tua timidez.
Eu te veria num convento espanhol
Onde se dance: castanholas em homenagem ao Senhor;
Através do parlatório
Apunhalando os aficionados
Com esses olhos retraídos e lascivos. (PCP, 392)
No Rio de Janeiro conheceu José Bergamín, o “ensaísta-polemista” da
Geração de 27, antes de seguir para seu exílio no México, de onde lhe enviou em
1941 exemplares dedicados de Disparadero español (1940) e El pozo de angusia
(1941).
23
Idenficou-se com a sua “luta pela renovação do catolicismo, figura post-
conciliar já antes do Concílio”.
24
Compartilhou a admiração por Lorca com outros artistas e intelectuais
brasileiros ao participar do conselho consultivo do Ateneu García Lorca. Quando da
inauguração em julho de 1946, homenageou o poeta assassinado dez anos antes:
“vida que viva volveu/ contigo a morte não pode,/ nervo, entusiasmo, fervor.../ García
Lorca tu és”.
25
Entre 1952 e 1956, teve sua primeira estada na Europa em missão cultural
pelo Ministério de Relações Exteriores. Em carta de Lisboa, em 3 de fevereiro de
22
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia, correspondência. São Paulo:
Perspectiva, 2000, p. 356.
23
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
24
Espaço espanhol (PCP, 1170).
25
ANTELO, Raúl. Literatura em revista. São Paulo: Ática, 1984, p. 290-291.
16
1953, declara a Edson Nery da Fonseca a importância da experiência para sua
trajetória artística:
Estamos viajando pela Europa quase 5 meses. Como v. poderá avaliar,
tem sido uma experiência fecunda para mim. Além de inúmeras cidades de artes,
museus, galerias antigas, modernas, igrejas, “ateliers”, etc., estabeleci contatos com
personalidades altamente interessantes. Fui aà Holanda, completando assim o
conhecimento da cultura européia, iniciado na Espanha e Itália.
Aconselho-o vivamente a economizar e fazer uma viagem assim, logo que
possa. A gente nasce, é claro, sabendo que a Europa é uma grande Consort, mas
o que não se pode avaliar bem é o rendimento espiritual que uma tal viagem poderá
nos proporcionar.
26
Em Barcelona, conheceu Rafael Santos Torroella e Alfonso Pintó, ambos
tradutores de poemas seus
27
, e em Madri, o escritor José Antonio Novais. Nesse
momento, teria descoberto o sentido da História na cidade espanhola de Toledo
28
,
onde se cruzaram três civilizações: “Propõe-nos Toledo um encontro de culturas
díspares a cristã, a judia, a mourisca bem como a superposição de camadas do
tempo.”
29
Prosseguiu a revelação no Brasil, ao escrever Contemplação de Ouro
Preto (1954), a primeira de sua obra a se centrar em um determinado espaço,
repleto de história e tradições. A Espanha, em sua dimensão católica, é aludida nos
versos de “Procissão do enterro em Ouro Preto”: “Ergue um Cristo na cruz todo em
chagas aberto,/ Deus barroco espanhol, com enorme resplendor.” (PCP, 472).
Em 1956, teve seu visto negado para ingressar na Espanha como professor
devido à sua clara oposição à ditadura de Franco. No ano seguinte, mudou-se para
a Itália para exercer o cargo de professor de Literatura Brasileira na Universidade de
Roma. Porém, passava as férias quase todos os anos em Portugal, terra natal de
sua esposa, Maria da Saudade Cortesão, e na Espanha: “Minha aversão ao regime
franquista é menor do que o meu amor à Espanha, por isso visito-a sempre que
26
FONSECA, Edson Nery da, org. Cartas a Edson Nery da Fonseca. Recife: Companhia Pacífica,
1995, p. 26-27.
27
V. Anexos, Traduções de poemas de Murilo Mendes na Espanha.
28
Apud MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: A Poesia como Totalidade. o Paulo:
EDUSP: Giordano, 1995, p. 175.
29
Espaço espanhol (PCP, 1135).
17
posso.” (PCP, 1223). Enquanto em Roma encontrava os exilados Rafael Alberti e
Jorge Guillén, em Madri reunia-se a Ángel Crespo, Gabino-Alejandro Carriedo,
maso Alonso e Vicente Aleixandre, entre outros, relações documentadas tanto
nas dedicatórias aos livros, quanto na correspondência mantida do final da década
de 50 a meados da de 70.
Murilo publicou em Lisboa em 1959 o livro de poemas Tempo espanhol, no
qual percorre os nomes mais representativos da literatura e pintura espanholas, das
origens ao século XX, e as cidades e regiões do país, de Santiago de Compostela a
Granada. Ainda entre 1966 e 1969, escreveu o livro de viagens Espaço espanhol,
que permaneceu inédito até a edição da Poesia completa e prosa (1994) organizada
por Luciana Stegagno Picchio.
Seguindo a experiência dileta de aproximação dos contrários, Murilo
encontrou na literatura e na cultura espanholas um território propício a sua poesia:
Muitas vezes tenho me perguntado com qual país me sinto mais afim.
alguns candidatos. Em grande parte sou de cultura francesa, mas, paralelamente, a
Espanha é um país muito apropriado para um poeta. Ortega y Gasset escreveu que
na Espanha a anormalidade é a norma. Ángel Ganivet escreveu que a lei da
Espanha é o absurdo, sem o absurdo não se pode compreender a Espanha e seus
contrastes magníficos. O toureiro, por exemplo, antes de tourear reza ajoelhado e
com fé intensa. Talvez se deva a que em grande parte os árabes estiveram
plantados oito séculos lá, com uma influência profunda. A Espanha me atrai porque
eu gosto de tudo, menos da monotonia. disse uma vez a João Cabral de Mello
Neto: a Itália é um país traduzido, a Espanha é um país por traduzir...
30
4. As muitas Espanhas
Cabral e Murilo encontraram-se mais de uma vez na Espanha, nova
identidade em comum a dois poetas tão diferentes. Enquanto grande parte dos
seus compatriotas limitaram-se a homenagear Lorca motivados por seu
assassinato ou mais alguns outros nomes, eles tornaram-se singulares na literatura
brasileira tanto pela incorporação de temas e formas, quanto pelos contatos com
30
Entrevista de 1972 (GUIMARÃES, Julio Castañon, org. Op. cit., p. 122).
18
escritores e artistas do país ibérico. Por outro lado, é importante assinalar os
momentos em que ambos se voltaram à Espanha em suas obras. Cabral, em 1947,
ainda era um poeta em formação, à procura de um caminho; já Murilo, na década
de 50, era um poeta maduro, tendo publicado a maior parte de sua produção
poética. Para Cabral, a Espanha configura o seu projeto de poesia; para Murilo, a
Espanha se conforma ao seu projeto de poesia.
Instigado pela leitura de Tempo espanhol, Cabral endereçou uma carta ao
amigo em 22 de janeiro de 1959, comparando o tema da Espanha na obra de
ambos:
Quanto à Espanha do livro: devo dizer que a sua deixa a minha humilhada. V.
tem sobre este servidor (como dizem os espanhóis) duas vantagens para falar da
Espanha: uma é o tom de veemência explosiva que é o pprio dos espanhóis
(enquanto a minha veemência é uma veemência incisiva, pouco espanhola, ou
quando não, menos espanhola do que a sua); a segunda vantagem é o seu
catolicismo. Não digo que todo o católico possa ter a visão total da Espanha que V.
tem. católicos a grande maioria que terá uma visão parcial, forçosamente
porque verão a Espanha negra, se desinteressando pela outra. No meu caso
ocorre o contrário: sou capaz de me interessar pela Espanha realista, a Espanha
materialista, a Espanha das coisas. E quando uma manifestação, digamos assim,
desse lado “espiritual” da Espanha que V. capta tão bem me interessa, repare que
sempre o trato amesquinhando. Exemplo: as corridas de touro, coisa inadmissível a
um Espanha-branca como eu: eu as diminuo às dimensões de uma lição de estética;
o cante flamenco, idem. Etc. Etc. Quero dizer: sua posição intelectual é muito mais
ampla e abarca as Espanhas branca e negra.
Você não está dividido e pode exaltar
tudo o que interessa à sua sensibilidade. Ao passo que eu, incapaz de me fechar,
enquanto sensibilidade, às sugestões da Espanha espiritual,
medieval, enfim, ao que
um inglês atual chamaria o lado gótico da Espanha, sinto incapacidade
em falar
delas, incapacidade que entra, como ingrediente fortíssimo, minha aceitação racional
dessas coisas. Assim, sua Espanha é muito mais total, completa, do que a minha. A
Espanha do Caudillo só vê a Águia dos Áustrias; eu vejo o galo de Morón de la
Frontera (sin plumas y carareando). Ao passo que V. vê e trata dos dois.
31
31
ARAUJO, Lais Corrêa de. Op. cit., p. 375
19
Cabral não apenas aponta as diferenças entre os dois tratamentos da
Espanha, como também oferece as principais categorias com que a fortura crítica
tem abordado os dois poetas. De um lado, o poeta “realista”, “materialista”, “das
coisas”; de outro, o poeta da “totalidade”. A separá-los, o catolicismo professo por
Murilo desde a década de 30. Embora tal perspectiva seja válida como ponto de
partida para uma comparação da presença da Espanha na obra de Cabral e Murilo,
merece ser aprofundada para que se possa chegar a uma melhor compreensão de
duas trajetórias fundamentais da poesia brasileira do século XX.
Murilo tamm não fugiu ao cotejo com Cabral. Ao escrever em 1964 o
“Murilograma a João Cabral de Melo Neto”, incluído em Convergência (1970), dedica
a primeira parte alternando as semelhaas “Comigo e contigo” e as diferenças
– “Entre mim e ti”:
Comigo e contigo o Brasil.
Comigo e contigo a Espanha.
Entre mim e ti a caatinga.
Entre mim e ti a montanha.
Comigo e contigo Velázquez,
Graciliano, o moriles.
Entre mim e ti o barroco,
A cruz, Antonio Gaudí.
Comigo e contigo o Andalu,
Flamenco, Écija, los toros. (PCP, 691)
Murilo ratifica que a Espanha de Cabral é mais “restringida”, no caso,
representada por Velazquez, a Andaluzia, o flamenco e as touradas. Já a sua
Espanha, além da parte “materialista”, envolve o catolicismo “a cruz” e correntes
e artistas que para Cabral seriam marcados por “excessos” e “rebuscamentos”
Barroco e Antonio Gaudí.
A crítica algumas vezes chamou a atenção para as possíveis aproximações
entre Cabral e Murilo. por volta de 1956 os dois apareceram juntos na série da
gravadora Festa, na qual, em um disco, uma dupla de poetas brasileiros recitava
seus próprios poemas. Na capa de cada disco, um crítico renomado escrevia um
texto de apresentação. Cabral e Murilo, o décimo volume, coube a Tristão de Ataíde,
20
cuja militância cristã diferencia os dois pela presença de Deus”: “O que
encontramos na poesia de Murilo Mendes como na de João Cabral é a mesma
sobriedade incisiva, a mesma graça hieroglífica, a mesma concisão cristalina, um
senso parecido de 'humor', a mesma predominância dos metais sobre as cordas, em
oposição ao que encontramos na estilística, mesmo dos mais modernos 'românticos'
(....) Mas entre Murilo e João Cabral esta outra diferença: naquele a constante
presença de Deus, na aridez dos desertos humanos: neste a 'ausência', que nem a
'bola', nem o 'relógio', nem a 'faca', os três símbolos de sua poética máscula,
ascética e inflexível consegue substituir.”
32
Quando da publicação em Lisboa de Tempo espanhol (1959) e Quaderna
(1960), o crítico português João Gaspar Simões aproveita para considerar que
“Murilo Mendes e Melo Neto representam, exactamente, correntes líricas de uma
índole em que os valores ‘modernistas’ deixaram de se apresentar combativos,
para se tornarem como que clássicos: clássicos do próprio modernismo.”
33
Tendo em vista um artista espanhol caro aos dois poetas, João Alexandre
Barbosa, em passagem do estudo A imitação da forma (1975), tratou de verificar
em que medida aleitura’ de João Cabral se diferencia da de Murilo Mendes acerca
de um mesmo objeto: o pintor Joan Miró”.
34
Mais recentemente, em meros de periódicos dedicados a Cabral e Murilo,
retomou-se o tópico do contraste entre os dois. Joana Matos Fria, em “’Um olhar
nítido como um girassol’: João Cabral e Murilo Mendesexpõe que a incorporação
de uma tendência realista” da literatura espanhola “reposiciona a atitude onirista
com que iniciaram as respectivas obras poéticas.”
35
Por sua vez, Eucanaã Ferraz,
em Murilo Mendes e João Cabral: o sim contra o sim”, a partir da carta de 1959
citada acima, insiste na nota dissonante: (...) a Espanha cabralina parace-nos
32
V. Anexos. Julio Castañon Guimarães aponta que “esses comentários se circuncrevem ao plano
das obras literárias: seria possível pensar as aproximações e distanciamentos no plano mesmo das
leituras. Talvez a comparação das peculiaridades de leitura pudesse ajudar a perceber o que a
audição seria capaz de extrair de cada leitura em termos de papel que acaso desempenhassem na
compreensão dos textos. No caso de João Cabral e Murilo, seria posvel pensar em como são bem
distintas suas leituras e em como essas distinções podem ter a ver não apenas com as
peculiaridades pessoais, mas com as características da poesia de cada um e com a noção que cada
um tem de sua própria poesia.” (Cabral falando. Teresa revista de Literatura Brasileira. Área de
Literatura Brasileira. FFLCH. USP. n. 3, São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 304-307).
33
SIMÕES, João Gaspar. Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto In Crítica II. Poetas
contemporâneos (1946-1961). Lisboa: Delfos, s.d., p. 339-346.
34
BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São
Paulo: Duas Cidades, 1975, p. 23-28.
21
menos Espanha. Surge-nos, efetivamente, mais deformada que a de Murilo, que é
muito mais matizada, sutil e dialógica. A de Cabral tem uma voz única, é a palo
seco’”.
36
Apesar das pertinentes considerações, não um trabalho de lego que
analise a presença crucial da Espanha, enquanto tema e referência literária e
cultural, na obra de Cabral e Murilo.
O primeiro aspecto a ser estudado, nos capítulos 1 e 2, é a recepção da
poesia espanhola, cuja presença em depoimentos, cartas, traduções, epígrafes e
poemas, mostra-se decisiva para configurar as obras de ambos. Também a
recepção dos dois brasileiros por alguns poetas espanhóis completa um quadro de
mútua contribuição.
Principalmente nessa parte, revelou-se fundamental a pesquisa em acervos
de escritores espanhóis, particulares ou públicos, espalhados pelas cidades natais
dos escritores, do Puerto de Santa María em Cadiz (Fundación Rafael Alberti) a
Barcelona (Fundación Joan Brossa). Até mesmo partes do Acervo de um escritor
distribuem-se por diferentes instituições. Em relação ao poeta Jorge Guillén, por
exemplo, a Fundação que leva seu nome na cidade de Valladolid não guarda
nenhum documento ou livro seu. O arquivo pode ser consultado na Biblioteca
Nacional em Madri, enquanto os livros que pertenceram a Guillén foram transferidos
à Biblioteca Pública de Valladolid.
Apesar da dispersão de alguns acervos, identificamos uma rede formada por
textos publicados, manuscritos, correspondência e livros com possíveis dedicatórias
e / ou anotações marginais e apensas. Tal trabalho oferece fundamentação à crítica
genética, à história e crítica literárias, e a diferentes tipos de edições. No âmbito
nacional, devem-se destacar como referência obrigatória os projetos organizados a
partir do Acervo Mário de Andrade pela Profa. Telê Ancona Lopez no Instituto de
Estudos Brasileiros da USP.
37
Ao consultar os acervos, é possível estabelecer uma cronologia, do encontro
inicial aos últimos momentos, pelas datas e locais das dedicatórias nos livros e da
correspondência. A receão das obras materializa-se na presença do exemplar na
35
Colóquio/ Letras. Paisagem tipográfica. Homenagem a João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Lisboa, n. 157-158, jul.-dez. 2000, p. 73.
36
Ipotesi. Revista de estudos literários. v. 6, n.1, Juiz de Fora, 2002, p. 112.
22
biblioteca do escritor, que pode conter anotações à margem, trechos sublinhados ou
uma folha apensa manuscrita. Esse conjunto, que dá ao livro o status de manuscrito,
permite-nos comprovar desde a epígrafe ou citação que nos suscitaram a pesquisa
até um elemento que servirá de subsídio para a criação, por exemplo, de uma
imagem poética. Por outro lado, o volume, que por alguma razão extraviou-se das
estantes, talvez tenha recebido um comentário em uma carta, completando a
biblioteca do escritor. O epistolário, aliás, constitui-se um ponto nevrálgico da rede
do acervo, pois nele se anunciam o envio e o recebimento de livros, revistas,
recortes, manuscritos, fotos, e suas respectivas apreciações.
Tal levantamento possibilitou-nos enriquecer a parte Anexos”, que reúne um
conjunto de documentos e informações pouco conhecidos ou inéditos da relação de
Cabral e Murilo com a Espanha. A fim de defender o trabalho com fontes, que
muitas vezes é desvalorizado na análise literária, retomo as palavras de Sérgio
Buarque de Holanda, em sua dupla condição de crítico e historiador, a respeito da
importância do ensaio Joan Mide Cabral: “Para bem entender um poeta, com a
visão necessariamente relativista que pertence a toda crítica ria, importa procurá-
la inclusive fora de sua obra poética e também, se possível, fora de seus escritos.
Nada, neste caso, é inteiramente inútil, nada se perderá, para uma interpretação
conscienciosa, ainda quando atinente apenas aos dados estéticos.”
38
Os capítulos 3 e 4 versam sobre as artes psticas espanholas, as quais,
tanto em poemas, quanto em ensaios críticos, tornaram-se um campo privilegiado
de reflexão sobre a própria obra, na medida em que as noções de visualidade e
plasticidade fundamentam suas poesias.
Por último, apresentadas as fontes poéticas e pictóricas, nos capítulos 5 e 6,
estudamos os temas propriamente ditos: a paisagem, a tauromaquia e o flamenco,
em Cabral, e o tempo, em Murilo.
Ainda é válida a proposta do escritor Otto Lara Resende sobre essa vertente:
“Olhos acesos, em brasas, Murilo viu e amou a Espanha, de que deu rico
testemunho. Como João Cabral de Melo Neto, outro poeta, outra visão. Eis um
37
V. LOPEZ, Telê Ancona. A biblioteca de Mário de Andrade: seara e celeiro da criação. Em:
Fronteiras da criação: anais do 6
o
Encontro Internacional de Pesquisadores do Manuscrito. São
Paulo: Annablume: Fapesp, 2000, p. 139-162.
38
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “João Cabral de Melo Neto” In O espírito e a letra. Estudos de
crítica literária. v. 2. 1948-1959. Edição de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 518.
23
estudo a fazer os dois poetas, as duas sensibilidades; a Espanha, as muitas
Espanhas”.
39
39
Guernica, meu amor. O Globo, Rio de Janeiro, 3 maio 1977 (MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 438).
24
CAPÍTULO 1: Leituras e leitores espanhóis de Cabral
Depois de quase dez anos de sua descoberta da literatura espanhola, Cabral
publicou a segunda reunião de sua poesia, intitulada Duas águas (1956). Mais do
que apresentar sua produção completa até aquele momento, operava uma
instigante avaliação de sua própria obra, como é descrito na orelha da edição:
“(...) querem corresponder a duas intenções do autor e decorrentemente
a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas
para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo
aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura,
releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas
que, menos que lidos, podem ser ouvidos. Noutros termos, o poeta alterna o esforço
de melhor expressão com o de melhor comunicação.”
40
Dessa maneira, fazem parte da “primeira água”, os inéditos Uma faca
lâmina, 1955, e Paisagens com figuras, 1954-1955, e os publicados O o sem
plumas (1950), Psicologia da composição (1947), O engenheiro (1945) e Pedra do
sono (1942); e da “segunda água”, o inédito Morte e vida Severina, Auto de Natal
Pernambucano, 1954-1955, e os editados O rio (1954) e Os três mal-amados
(1943). Tal disposição desarticulava o conjunto de obras de uma fase “social”,
muito presente na fortuna crítica do poeta, formada por O cão sem plumas, O rio e
Morte e vida Severina, que o primeiro integra a “primeira água”, e Os três mal-
amados, sem essa perspectiva, figura na “segunda água”. Como bem observou
Alceu Amoroso Lima: “Como o título do livro indica, Duas águas (no sentido
arquitetônico mas também metafórico), o autor, em vez de tomar partido na querela
que divide os poetas das novas gerações em herméticos e sociais ou entre
expressivos e comunicativos, partiu de ambas posições, mas não
simultaneamente. Ora domina os poemas uma intenção metafórica, que permite ao
40
Duas águas (Rio de Janeiro: José Olympio, 1956) Apud MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 358-359.
25
leitor uma ampla colaboração na interpretação dos mesmos, ora domina a
realidade exterior, a típica e trágica natureza nordestina, (....)”.
41
As “duas águas”, ou ainda, as vertentes da “expressão” e da comunicação”,
percorrem a obra cabralina desde o seu início. A “poesia pura” de Mallarmé e
Valéry e os príncipios construtivistas do cubismo constituíam os primeiros
parâmetros de sua poesia. Embora se unissem a essas referências os poetas
modernistas brasileiros, como Murilo
42
e a forte presença de Drummond, Cabral
não seguia uma das mais rteis lições do grupo: o aproveitamento de uma
linguagem coloquial ou prosaica. Além disso, distanciava-se do programa
nacionalista do movimento. Murilo, ao apresentá-lo em 1940, percebia que se
tratava de um poeta sem cor local. Tanto pode ser do Recife, como de Marselha
ou Shangai “.
43
No entanto, antes mesmo de lançar Pedra do sono, revelou suas
apreensões por essa postura e anseios de mudança em carta a Drummond de 23
de novembro de 1941, sob a impressão da leitura de Sentimento do mundo (1940):
“(...) É que a perspectiva da publicação desse livro me tem deixado num estado
quase de pânico. Sinto que não é esta a poesia que eu gostaria de escrever; o que
eu gostaria é de falar numa linguagem mais compreensível desse mundo de que os
jornais nos dão notícia todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta; uma
coisa menos ‘cubista’.”
44
A resposta foi animadora: Eu acredito de certo que sua
fase poética atual é fase de transição que v., com métodos, inclusive os mais
velhos, está procurando caminho, e que muita coisa ainda a fazer antes de
chegarmos a uma poesia integrada ao nosso tempo, que o exprima limpidamente e
que ao mesmo tempo o supere.”
45
41
“Duas Águas”, de João Cabral de Melo Neto. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 5 fev. 1957, p. 5.
(Idem, ibidem, p. 07).
42
V. Introdução.
43
GUIMARÃES, Julio Castañon, org. Op. cit., p. 57.
44
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 171. Antonio Candido, no artigo “Poesia ao norte” publicado na
Folha da Manhã de 13 de junho de 1943, assinalou o risco de auncia de comunicação em Pedra do
sono: “(...) Pureza poética, surrealismo, cubismo coisas que estão soando agora como requinte,
mesmo quando tão talentosamente representados por alguém como o nosso poeta.// O erro de sua
poesia é que, construindo o mundo fechado de que falei, ela tende a se bastar a si mesma. Ganha
uma beleza meio geométrica e se isola, por isso mesmo, do sentido de comunicação que justifica
neste momento a obra de arte. Poesia assim autonomamente construída se isola no seu
hermetismo.” (Textos de intervenção. Edição de Vinícius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2002, p. 140)
45
Idem, ibidem, p. 175.
26
No final de 1942, voltou a abordar a tensão entre uma poesia centrada
apenas na sua linguagem e sua comunicação, no texto “Prática de Mallarmé”,
estampado na revista Renovação, em homenagem ao centenário do poeta. A
“grande lição prática” de Mallarmé encontrava-se em sua alta consciência artística”,
centrada na palavra, a respeito da qual Cabral lança uma pedra fundadora de sua
poética: se tem visto a palavra menos como o material (material sólido, como a cor,
o som, o gesso) sobre que se exerce a ação do poeta, do que como as
singularidades de sua voz. Menos o Logos do que o Sermo.”
46
Por outro lado,
finaliza o artigo apontando que Mallarmé levou sua experiência às últimas
conseqüências ao negar as possibilidades comunicativas da palavra:
“Mallarmé compreendeu a linguagem como se a houvesse inventado”,
escreveu Valéry. E eu acrescento que esse tratamento a que ele submeteu a
palavra, esse movimento em direção das fontes primitivas da palavra (donde o ar
antiqüíssimo dessa poesia entretanto atual), em vez de ser uma prática que lhe
trouxesse o domínio racional dos meios de expressão (o objetivo do jornalista, do
escrivão, do professor; o objetivo de todos os que usam da palavra o seu valor de
troca em idéias), foi sobretudo a tentativa de apreender as ressonâncias secretas de
sua matéria. Ressonâncias que permanecem através do tempo e espaço (próprias
portanto de sua matéria) e cujos efeitos o poeta, por uma técnica de obscurecimento
voluntário quis purificar completamente, numa tentativa de destruir a presença em
nosso espírito (fenômeno que em nosso mundo lógico não mais podemos evitar
senão a preço de uma disciplina e de rigores que, curiosamente, nos acostumamos a
ver como anti-poéticos) do objeto ou do conceito que a palavra representa no
universo que conversa e dá nome às coisas.
Cabral, portanto, não compartilhava a incomunicação de Mallarmé, buscando
nos poemas d'O engenheiro, iniciado nesse 1942, a palavra em seu valor de troca
em idéias” e representando o objeto ou o conceito “no universo que conversa e dá
nome às coisas”. Instaura um mundo justo”, claro e sólido, a partir das metáforas da
construção, presentes tanto no poema que título à coletânea, quanto na epígrafe
do arquiteto Le Corbusier. Assim mesmo, Cabral não escapou de ser rotulado em
um grupo de poetas publicados entre 1944 e 1945, caracterizados pelo cuidado
46
“Prática de Mallarmé”. Renovação. Nova Série. a. 4, n. 1, Recife, out-nov-dez 1942.
27
formal, de dicção solene, e logo auto-proclamado como Geração de 45”, que
possuía como um dos objetivos suplantar a experiência prosaica e nacionalista do
Modernismo.
A observação de Murilo sobre a ausência de “cor local” continuava a valer, a
não ser por um Recife aquático” em “A Joaquim Cardozo”: “a cidade que o
consegues/ esquecer/ aflorada no mar: Recife,/ arrecifes, marés, maresias;”.
47
Em
1943, enquanto ainda se encontrava às voltas com O engenheiro, estreava na
“segunda água” com Os três mal-amados. Como vimos, isso o implicava uma
obra comprometida, mas se destinava a um “ouvinte” os três monólogos alternados
de João, Raimundo e Joaquim expurgando seus amores.
48
No caso do amor
“devorador” de Joaquim, que tudo consome, inclusive a paisagem em que se insere,
deixa entrever Pernambuco e Recife:
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos
mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o
verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas
barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana
cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por
não saber falar delas em verso. (SA, 11)
Destacam-se a objetividade e plasticidade da descrição, próxima dos
romances nordestinos da cada de 30 especialmente José Lins do Rego , mais
de uma vez valorizados por Cabral. Porém, a última frase retoma a angústia
compartilhada com Drummond: a linguagem era menos cubista”, mas ainda não
possuía meios para expressar o mundo dos homens.
Reforçou a “primeira água” nos três poemas que formam Psicologia da
composição, nos quais reflete sobre o fazer poético. Iniciado no Brasil em 1946,
levou a cabo o conjunto no ano seguinte na Espanha. A partir de seu intenso contato
com a poesia desse país, o que parecia limitar-se à “primeira água” pôde se
47
Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 46. A partir daqui, essa edição passa a ser
indicada por SA.
48
“(...) Chegando aqui [ao Rio] vi aquele poema do Carlos Drummond, o “Quadrilha”, achei que podia
escrever uma peça de teatro dentro do mesmo tema. Não uma peça de bulevar, mas de teatro
hierático. O monólogo dos três personagens masculinos saiu bem, que fui incapaz de escrever o
monólogo das três mulheres, que deveria ser intercalado com o dos homens. Aí, abandonei a idéia de
escrever uma peça.” (ATHAYDE, Félix, org. Op. cit., p. 101-102)
28
configurar em duas águas”. Contudo, posteriormente Cabral percebeu a limitação
da classificação de sua obra: “(...) as minhas Duas águas não se reúnem num ponto
porque as minhas Duas águas são uma faixa, porque depois de O rio e Morte e vida
Severina eu vi que essa tentativa de extensão de cultura tinha fracassado
completamente, porque enquanto eu escrevia O rio e Morte e vida Severina escrevia
imaginando que fossem lidos no Mercado de São José ou em Limoeiro, por cantador
daqueles, né? (...) essa minha Duas águas acabou com esses dois livros. Depois d
então eu resolvi fazer a minha poesia independente dessa preocupação. Eu creio
que foi uma idéia um pouco ingênua, compreende?”
49
Analisamos quatro momentos do processo de conjugação das duas águas”:
o primeiro ano na Espanha, 1947, em meio à descoberta da poesia espanhola,
deteve-se em dois poetas decisivos da chamada Geração de 27, Jorge Guillén e
Rafael Alberti; entre 1948 e 1950, ampliou seu horizonte com a poesia catalã,
praticando a tradução e relacionando-se com Carles Riba e Joan Brossa; entre 1951
e 1954, incorporou a poesia medieval espanhola a sua obra, principalmente o
Poema de Mio Cid e Gonzalo de Berceo; e na década de 60, tornou-se um
referencial para os poetas e tradutores Ángel Crespo e Gabino-Alejandro Carriedo.
1. Uma epígrafe e dois poemas: Jorge Guillén e Rafael Alberti
Psicologia da composição traz como epígrafe o verso “Riguroso horizonte”, do
poeta Jorge Guillén. Diante de um pedido de Bandeira para encontrar o livro
Cántico, de Guillén, o poeta diplomata comenta em carta de 5 de novembro de 1947:
(...) o livro do Guillén é inexistente. Para lê-lo, tive de ir à biblioteca daqui, que
possui a edição de 1937 ou 1939. Como v. sabe, o Guillén tem, publicado, este
livro, que vai sempre aumentando nas sucessivas edições. Li que estava preparando
uma nova. Assim que sair comprarei um exemplar para v. Gostei de seu interesse
pelo vallisoletano. Acho-o excelente. Não o conhecia nem de nome até chegar
aqui. Lido porém, o homem me conquistou.
50
49
Entrevista ao Diário de Pernambuco, Recife, 21 de out. 1979.
50
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 45.
29
Cántico teve quatro edições ampliadas sucessivamente: 1928, 1936, 1945 e
1950. O verso “Riguroso horizonte” abre o poema “El horizonte”:
Riguroso horizonte.
Cielo y campo ya idénticos,
Son puros ya: su línea.
Perfección. Se da fin
A la ausencia del aire,
De repente evidente.
Pero la luz resbala
Sin fin sobre los límites.
¡Oh perfección abierta!
Horizonte, horizonte
Trémulo, casi trémulo
De su don inminente.
Se sostiene en un hilo
La frágil, la difícil
Profundidad del mundo.
El aire estará en colmo
Dorado, duro, cierto.
Transparencia cuajada.
Ya el espacio se comba.
Dócil, ágil, alegre
Sobre esa espera – mía.
51
Ao lado de riguroso, o léxico do poema, como o de muitos outros de ntico,
sintetiza a objetividade e construção visadas por Cabral: puros evidente -
perfección – duro – cierto – transparencia.
Apesar das aproximações em relação a Guillén, Cabral ressaltou uma
significativa divergência: “Tenho a impressão de que devo muito da minha obsessão
pela simetria e do meu intelectualismo à poesia de Jorge Guillén, até a reunião da
sua obra no livro Cântico. (...) o curioso dessa influência é que uma diferença
essencial entre mim e o Jorge Guillén. Sinto que ele é um poeta muito mais abstrato
do que eu(...)”.
52
Ainda segundo Luiz Costa Lima, o “júbilo perante as coisas” da
51
GUILLÉN, Jorge. ntico. 4
a
ed. Barcelona: Seix Barral, 1998, p. 177.
52
Entrevista a Mario Chamie (MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 155).
30
poesia de Guillén não encontra paralelo na neutralidade com que se nomeia” na
poesia cabralina.
53
A identificação não era apenas por parte de Cabral. Guillén possuía em sua
biblioteca exemplares dedicados de Psicologia da composição e Terceira feira
(1961, contendo Quaderna, Dois parlamentos e Serial).
54
Gostou do selo O Livro
Inconsútil, chegando a pedir a Cabral para “fazer uma pequena edição de seus
poemas”
55
, que não se concretizou. Além disso, a existência em seu arquivo de
fotocópias de poemas do poeta brasileiro indica uma leitura mais atenta. Tradutor de
“El cementerio marino” em 1938, conservou “A Paul Valery”, de O engenheiro, com
uma cruzeta. Junto a esse, reuniu quase todos os poemas referentes à Espanha de
Paisagens com figuras: “Medinaceli”, Imagens em Castela”, “Fábula de Joan
Brossa”, “Campo de Tarragona”, Encontro com um poeta”, Alguns toureiros”,
“Outro rio: o Ebro” e Duas paisagens”, dos quais “Imagens em Castela” e Alguns
toureiros” mereceram uma cruzeta. No caso do segundo, provavelmente Guillén
interessou-se pela “lição de poesia”, que se esboçara ainda em 1947, quando Cabral
viu Manolete e imaginou que era Valéry toureando
56
:
(...)
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame,
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema. (SA, 132)
53
LIMA, Luis Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2
a
ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995,
p. 237-246. João Alexandre Barbosa tamm comenta a relação Cabral-Guillén (A imitação da forma.
Op. cit., p. 58-60).
54
V. Anexos, “Dedicatórias autógrafas em livros”.
55
Carta a Manuel Bandeira de 18 de julho de 1948 (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 82).
56
Carta a Manuel Bandeira de 4 de setembro (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 34).
31
No ano de chegada à Espanha, Cabral interessou-se por outro poeta que
integrou a Geração de 27, cujo fruto foi a publicação das duas versões do poema
“Fábula de Rafael Alberti” em Museu de tudo (1975):
Do anjo marinheiro
(asas azuis a gola
da blusa azul, bolsa
de azul do mar);
do anjo teológico,
não em ovo gerado,
puros frutos de ar
como maçãs de vento;
do anjo venenoso,
serpente emboscada
no tufo das palavras
- o fluido jogo abandonou.
Fez o caminho inverso:
do vapor à gota de água
(não, da vida ao sono,
ao sonho, ao santo);
foi da palavra à coisa,
seja dolorosa a coisa,
seja áspera, lenta, difícil
a coisa.
(1947)
Do anjo marinheiro
(asas azuis a gola
da blusa azul, enfunada
de azul do mar);
do anjo teológico
(não em ovo gerado,
frutos virgens, do ar,
castas maçãs do vento);
enfim, do anjo barroco
(cobra má, enroscada
no mato dicionário)
- o jogo aéreo abandonou.
Fez o caminho inverso:
não foi da coisa ao sonho,
ao nome, à sombra;
foi do vapor de água
à gota em que condensa;
foi da palavra à coisa:
árdua que seja,
ou demorada, a coisa;
seja áspera ou arisca,
em sua coisa, a coisa;
32
seja doída, pesada,
seja enfim coisa a coisa.
(1963)
57
O poema de 1947 foi publicado em 1953 e 1957, respectivamente em dois
periódicos.
58
Dezesseis anos depois, ainda despertou a atenção de Cabral, levando-
o a elaborar uma segunda versão. Em lugar de descartar a primeira, inseriu-a na
variada coletânea Museu de tudo, seguida pela de 1963. Nesse mesmo ano,
começou a compor A educação pela pedra, cujos poemas dividem-se pelo mesmo
mbolo de Fábula de Rafael Alberti” ou pelo número 2. A opção de publicar as
duas versões em Museu de tudo acompanha a estrutura binária imposta à coletânea
de 1966. Assim, para um mesmo tema, as imagens e os significados duplicam-se e
permutam-se.
Rafael Alberti, em sua extensa e frutífera trajetória – da década de 20 à de 80
passou por vários movimentos da poesia do século XX. Talvez o poeta brasileiro
tivesse em mãos a edição de Poesía (1924-1944), de 1946, da editora argentina
Losada, que reúne de Marinero en tierra (1924) a Pleamar (1942-1944).
Ao considerar que o tema da Espanha somente aparecerá em Paisagens com
figuras, 1954-1955, pode-se concluir que não foi dada a devida importância ao
primeiro poema de Cabral a respeito de um poeta espanhol, “perdido”, muitos anos
depois, em meio aos 80 poemas de Museu de tudo. Pretende-se, a partir de uma
análise detida, configurar Fábula de Rafael Alberti” como confluência tanto de uma
recepção da poesia espanhola, quanto de uma auto-avaliação da poesia cabralina.
Com a publicação de Psicologia da composição, também em 1947, sua trajetória
poética chegava a um ponto crucial. Em “Fábula de Rafael Alberti” sedimentava o
que realizara e lançava as bases do trabalho a seguir. Falando de Alberti, estava
examinando a si mesmo e a sua poesia, processo reiterado ao longo da obra, não
só em relação a escritores, mas também a pintores, toureiros, etc.
Na primeira estrofe, a imagem anjo retoma ostensivamente uma das
principais obras de Alberti, Sobre los ángeles (1929). O anjo desdobra-se em três,
caracterizados como marinheiro, teológico e venenoso (1947) / barroco (1963)
59
, os
57
A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 87-88. A partir daqui,
essa edição passa a ser indicada por EPD.
58
Pequenos Cadernos de Poesia. Rio de Janeiro, (1):7-8, out. 1953; O Tempo e o Modo. Lisboa,
(50):161-2, 1957. (MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 48-49).
59
Para diferenciar as duas versões, anotaremos as respectivas datas entre parênteses.
33
quais metaforizam três fases poéticas, além de serem personagens adequados ao
universo da “fábula”. Sintaticamente, operam como três complementos do verso final
da estrofe, julgamento dessas etapas o fluido jogo abandonou” (1947) / “o jogo
aéreo abandonou” (1963) , podendo ser entendidos como abandonos, ou ainda,
recusas do próprio Cabral.
Os três momentos da poesia de Alberti concentram-se na agitada década de
20, quando ele publicou nada menos que 7 livros. O anjo marinheiro” relaciona-se à
obra de estréia, Marinero en tierra, motivado pela nostalgia do mar da cidade natal,
Puerto de Santa María, em Cádiz. Impulsionou, na poesia espanhola do período, a
corrente denominada de “neopopular”, na medida em que atualizou a forma e os
motivos da lírica popular. Como o próprio Alberti declarou, entre suas fontes incluía a
melhor tradição da poesia ibérica: Gil Vicente e os cancioneiros dos séculos XV e
XVI.
No poema de Cabral, o “anjo marinheiro” é tomado pela onipresença da cor
azul, que do mar transfere-se aos seres e objetos, retomando o verso la blusa azul
ultramar”
60
de Alberti. Na versão de 1963, a acessória bolsa torna-se o particípio
passado “enfunada”, dinamizando a imagem pelo efeito poderoso do “azul do mar”
em lugar do vento. A substituição permite que se identifique uma ressonância mais
direta do segundo poema de Marinero en tierra:
Gimiendo por ver el mar,
un marinerito en tierra
iza al aire este lamento:
“¡Ay mi blusa marinera!
Siempre me la inflaba el viento
al divisar la escollera.
61
O primeiro momento da poesia de Alberti, abrangendo as duas obras
seguintes La amante (1925) e El alba de alhelí (1925-1926) não atendia às
exigências de um Cabral que desde seu primeiro livro, Pedra do sono, não fazia
concessões a um lirismo mais confessional.
O segundo anjo, batizado de “teológico”, representa o mencionado Sobre
los ángeles, escrito entre 1927 e 1928. O qualificativo comporta reminiscências
60
ALBERTI, Rafael. Poesia (1924-1944). 2
a
ed. Buenos Aires: Editora Losada, 1946, p. 16.
61
Idem, ibidem, p.12.
34
bíblicas suscitadas pela multidão de anjos da coletânea. Considerado um dos mais
significativos exemplos do surrealismo na literatura espanhola, em Fábula de Rafael
Alberti”, Cabral avalia não apenas essa obra, mas tamm a vanguarda francesa da
qual se aproximou no início de sua poesia. Ratificando uma ascendência divina,
indica-se uma origem o natural para o anjo teológico, pois não é gerado em ovo.
Se por um lado se exclui uma vinculação ao reino animal, por outro, refere-se ao
vegetal a partir de “frutas”, em seguida restringidas a “maçãs”, destituídas, portanto,
de sensibilidade e movimento. Os adjetivos “puros” (1947) / virgens” e “castas”
(1963) reforçam a ausência de qualquer vínculo com uma natureza ou um entorno.
Uma discreta diferença entre as versões de 1947 e de 1963 atribui de forma lapidar
uma etérea procedência ao anjo teológico: na primeira, os frutos são de ar e as
maçãs de vento, ou seja, o palpáveis; na segunda, os frutos são do ar e as
maçãs do vento, ou seja, livres, soltos. Nos dois casos, tanto Sobre los ángeles,
quanto o surrealismo, são avaliados como fantasiosos e literalmente “sem os pés no
chão”. Além disso, as imagens ar e vento remetem à sentença do final da estrofe, a
qual não quer significar apenas que Alberti abandonou o “jogo aéreo” (1963), mas
tamm que Cabral não compartilha dele, mais especificamente, do surrealismo.
Resta o terceiro e último anjo, venenoso(1947)/ barroco” (1963). O termo
barroco, utilizado no século XIX por Heinrich Wölflin para classificar a arte do século
XVII, elucida essa fase da poesia de Alberti, a da obra Cal y tierra, publicada no
mesmo ano de Sobre los ángeles, mas escrita entre 1926 e 1927, período da
retomada de Góngora pelos jovens poetas espanhóis.
62
De acordo com o amigo
maso Alonso, Alberti apresentava-se como um dos mais entusiasmados
conhecedores da obra do poeta cordobês: “(...) Pero con quién yo más
intercambiaba gongorismo era con Rafael Alberti. Rafael, completamente alejado
entonces de cualquier preocupación que no fuese exclusivamente literaria, se sabía
a ngora de memoria. Él y yo podíamos recitar las Soledades y el Polifemo de
memoria, sin más que alguna vacilación, en las que mutuamente nos
ayudábamos.”
63
Em Cal y tierra, tal repertório possibilitou uma “paráfrasis
incompleta” da Soledad tercera.
62
V. Capítulo 2.
63
ALONSO, Damaso. “Góngora entre sus dos centenarios (1927-1961)” In Cuatro poetas españoles
(Garcilaso-Góngora-Maragall-Antonio Machado). Madri: Gredos, 1962, p. 61.
35
Entre os três anjos, trata-se daquele que oferece perigo, ao se mostrar como
“serpente” (1947)/ cobra má” (1963). O adjetivo “venenoso” (1947) configura uma
série de sentidos pejorativos de “barroco” (1963), de viés neoclássico e positivista,
como “excesso”, “deformação”, acúmulo”, “hermetismo”, “afetação”, entre outros.
64
Porém, ressalta-se a noção de “excesso” da linguagem como sendo a grande
ameaça, na medida em que a serpente es emboscada/ no tufo das palavras”
(1947)/ “enroscada/ no mato dicionário” (1963). Mais uma vez, a proposta de Alberti
opõe-se radicalmente ao estilo de Cabral, principalmente a partir d’O engenheiro,
marcado pelo despojamento e clareza.
Os três momentos da poesia albertiana o vistos como “jogos”, refletindo a
intensa experimentação das vanguardas na década de 20, mas nada concretos
“fluído(1947)/ aéreo” (1963). Ao repassar três tendências da poesia de Alberti,
Cabral defende três posturas de contenção, fundamentais de sua poética: não dar
vazão ao sentimentalismo, à imaginação e à linguagem.
Antes de prosseguir, vale lembrar que um dos três poemas que constituem
Psicologia da composição chama-se “Fábula de Anfion”, no qual a personagem
mitológica, diante de Tebas construída, lamenta sua dimensão empírica, para em
seguida revelar o desejo de uma cidade ideal, quase “aérea”:
“Esta cidade, Tebas,
não a quisera assim
de tijolos plantada,
que a terra e a flora
procuram reaver
a sua origem menor:
como já distinguir
onde começa a hera, a argila,
ou a terra acaba?
Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si
como qualquer laranja;
leve laje sonhei
largada no espaço.
64
V. HANSEN, João Adolfo. “Barroco, neobarroco e outras ruínas”. Teresa revista de literatura
brasileira. FFLCH – USP. Editora 34, n. 2, 2001, p. 10-66.
36
Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?” (SA, 58)
Como também data de 1947 a primeira versão de “Fábula de Rafael Alberti”,
a denominação por um mesmo gênero
65
assinala que os dois poemas podem ser
duas faces de uma “psicologia da composição”: enquanto em Fábula de Anfion” o
criador lamenta o resultado “prosaico” do acaso, pois almejava perfeição e leveza,
na segunda estrofe de “Fábula de Rafael Alberti” aponta para outra direção.
Cabral não se contentava apenas com o intelectualismo de um Guillén. A
tumultuada década de 30, não na Espanha, mas também pelo mundo afora,
motivou em muitos escritores o engajamento político. No caso de Alberti, que entre
outras ações aderiu ao Partido Comunista, deu início a uma poesia mais
participativa, muito bem refletida no título da coletânea de 1938, El poeta en la calle,
aliada a uma linguagem mais objetiva. Em artigo de 1936, incita a uma
transformação da poesia espanhola:
(...) Hora es ya que cuando citemos el río, el trigo, el aire, el marinero o la
carpintería lo hagamos profundamente, enterados e identificados con ellos, con sus
fines, com todos sus problemas. Que al escribir un verso, ese verso nazca de un
conocimiento exacto de las cosas elevadas a materia poética, y pueda comprobarse.
En la más reciente poesía española se maneja con absoluta irresposabilidad e
indiferencia todo lo existente, sin haberse el poeta molestado jamás en mirarlo, en
saber si verdaderamente es cierto. Demasiado “viento”, demasiados “pájaros,
tumbas, muertes”, cachorros y tragedias, que no pasan de ser puramente auditivos,
que apenas nunca han bajado del oído, camino de la garganta.
66
De acordo com o poema de Cabral, nessa fase da obra de Alberti, fez-se um
“caminho inverso” ao da poesia ou da literatura mais convencionais, as quais
partiriam da experiência vida (1947) / coisa (1963) para chegar a uma
elaboração sublimada, mais etérea sono, sonho, santo (1947) / sonho, nome,
65
Em outros poemas de sua obra, Cabral valeu-se da denominação “fábula”: “Fábula do Capiparibe”
(O cão sem plumas), “Fábula de Joan Brossa” (Paisagens com figuras) e “Fábula do engenheiro” (A
educação pela pedra).
66
Apud BALLESTA, Juan Cano. La poesía española entre pureza y revolución (1920-1936). Madri:
Siglo Veiniutno, 1996, p. 144-145.
37
sombra (1963). Um fenômeno comum da natureza, a condensação dos gases,
indica a mudança de rumo na poesia albertiana, que passou das “vaporosas”
vanguardas da década de 20 para a conquista das coisas do mundo. O genérico
vocábulo coisa dimensiona uma ambiciosa posse. Retomando a “Fábula de Anfion”,
não se lamenta mais que a construção seja de “tijolos plantada” ou de “origem
menor”. Se esta termina com a angustiosa pergunta de como dominar ou prever o
acaso que conduziu a flauta, em “Fábula de Rafael Alberti” responde-se a partir dos
percalços que não invalidam o poema: os adjetivos dolorosa, áspera, lenta, difícil,
arisca, pesada remetem ao trabalho de invençao contrário à espontaneidade, muitas
vezes enfrentando o acaso, e como tema, as questões da sociedade
contemporânea.
Ainda no âmbito da “Psicologia da composição”, o vocábulo poético,
metaforizado em objeto, passou do mineral que é mineral a palavra/ escrita, a fria
natureza// da palavra escrita.”– para a abrangente e prosaica coisa. A tautologia final
do poema na versão de 1963 “seja enfim coisa a coisa” propõe uma concepção
da poesia que esteja o mais próxima possível daquilo a que se refere.
Posteriormente, na série de artigos de 1952 sobre a Geração de 45, a palavra
reveste-se de materialidade enquanto se vincula à referência de um contexto
empírico, contraposta ao universo poético do grupo, para o qual sugestivamente
utiliza o qualificativo de “angélico”: O vocábulo prosaico está pesado de realidade,
sujo de realidades inferiores, as do mundo exterior, e em atmosferas tão angélicas
só pode servir de neutralizador.” (grifo nossos).
67
Portanto, logo em 1947, Cabral, a partir da leitura de Guillén e Alberti,
reconheceu em sua própria obra as tensões da poesia espanhola na década
anterior, dividida entre uma poesia “pura” e uma poesia “comprometida”.
2. Brasil e Catalunha
Em carta de 30 de julho de 1947, Bandeira perguntou a Cabral sobre os
“poetas da terra”, pois na última edição de 1946 de sua obra Noções de história das
literaturas incluíra algumas informações sobre a literatura catalã. Na resposta, em 4
67
Prosa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 84. A partir daqui, essa edição passa a ser indicada
por P.
38
de setembro, Cabral comentou que estava imerso na poesia espanhola... em
castelhano. No entanto, não se mostrou indiferente à questão do amigo. Já em carta
de 17 de fevereiro de 1948 confessou que ela o fizera “criar vergonha”: “Comecei a
ler e a aprender a língua do país e em sua literatura descobri enormes coisas.”
68
Freqüentou a poesia catalã desde o século XIX, com Verdaguer e Costa i Llobera,
chegando ao século XX com Alcober, Maragall, Carner, Guerau de Liost e López-
Picó. Vinha dedicando-se à tradução, principalmente das tankas, forma clássica da
poesia japonesa cultivada na obra Del joc i del foc [Do jogo e do fogo] (1946) de
Carles Riba (1893-1959). Considerado por Cabral o “melhor poeta catalão vivo”, três
de suas traduções foram divulgadas no número 16 de Ariel. Revista de Les Arts, de
abril de 1948. O poeta Joan Triadú assinou uma nota intitulada “Brasil i Catalunya”
69
,
na qual apresenta o poeta brasileiro com uma nítida austeridade de expressão que
se mantém na linha das proximidades Guillén-Riba, e de certa maneira, Valéry.”
Sugere, assim, uma linhagem de poetas conscientes em seu ofício, dos quais Cabral
procurava se aproximar. No caso específico das tankas de Riba, a estrutura fechada
de 31 sílabas e sua brevidade revelam-se como exemplo do “Riguroso horizonte
almejado.
Cabral conheceu Riba, oferecendo-lhe nesse 1948 um exemplar dedicado de
Psicologia da composição
70
e recebendo-o para jantar, como indica uma carta de 24
de setembro de Riba a Joan Triadú.
71
Por outro lado, Cabral não se limitou aos autores mais consagrados,
interessando-se também pela obra dos mais jovens. Muitos deles tinham como
mestre a Riba e estavam aglutinados em torno da mencionada revista Ariel, veículo
de 1946 a 1951 da nova geração que queria retomar a tradição cultural catalã
sufocada pela repressão do pós-guerra. Provavelmente Cabral acompanhava a
produção recente pelas páginas de Ariel e pelo contato com os próprios poetas,
como Joan Triadú.
A fim de divulgar a poesia catalã no Brasil, planejou uma antologia de 15
poetas, como informou Rosa Leveroni a Josep Palau i Fabre, dois poetas vertidos ao
português por Cabral, em carta de 19 de novembro de 1948:
68
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 61.
69
V. Anexos.
70
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
71
V. GUARDIOLA, Carles-Jordi, org. Cartes de Carles Riba. v. 2. 1939-1952. Barcelona: Institut
d'edutis catalans, 1991, p. 353.
39
Pergunta-me notícias sobre a Antologia que prepara o Sr. João Cabral de
Melo. Eu apenas posso dizer-lhe que o pouco que sei disso, vai me informar um dia
por telefone Joan Perucho, que me disse que este senhor preparava a edição no
Brasil eu acho de suas traduções de 15 poetas nossos, e que entre eles ali
estavam você e eu (é uma antologia de poesia jovem, embora creio que inclui
também Manén e Garcés) e que perguntava
com urgência dados biográficos (...)
Quem poderia informar-lhe melhor, suponho, é Perucho mesmo. Eu, de todas as
maneiras, quando o vir, pedir-lhe-ei mais informação, que terei muito prazer em
mandar-lhe.
72
A antologia foi publicada sob o título de Quinze poetas catalães
73
, em
fevereiro de 1949, na Revista Brasileira de Poesia, periódico que divulgava, entre
outros, os poetas da Geração de 45. Além de dados biográficos sumários, consta o
poema original e a tradução em português. A ordem dos poetas obedece à
cronologia do nascimento: 1898 (Marià Manent), 1899 (Joan Oliver), 1901 (Tomás
Garcés), 1910 (Rosa Leveroni), 1913 (Bartolomé Rosselò-Porcel, Joan Teixidor e
Salvador Espriu), 1914 (Joan Vinyoli), 1917 (Josep Romeu i Figueras e Josep Palau
i Fabre), 1918 (Joan Barat), 1920 (Joan Perucho), 1921 (Joan Triadú), 1924 (Jordi
Sarsanedas) e 1927 (Jordi Cots). Mais da metade eram jovens poetas como Cabral.
A maioria dos poemas foi divulgada ou pertence a obras da cada de 40, com
exceção de La branca (1918), de Manent, Les decaptacions (1934), de Joan Oliver e
Imitació del foc (1938), de Rosselò-Porcel. As resenhas de algumas obras desses
autores, publicadas em Ariel ao longo de 1947, demarcam sua diversidade e
possíveis pontos de interesse para Cabral: El Caçador, de Tomás Garcés, “se
enlaça com linhas muito diversas da lírica antiga ou contemporânea. Veia folclórica;
ressonâncias dos poetas franceses que exaltaram o subúrbio, as coisas humildes, a
'presença humana'
74
; em Poemes, de Joan Barat, “uma notável e nobre gravidade
impulsa os versos a desenvolver-se lentamente, às vezes majestuosamente, e
parece como se ao autor lhe preocupasse mais a maneira como diaquilo que
sente ou aquilo que pensa do que aquilo que sentiu e pensou”
75
; e em ncer, de
72
Tradução do catalão ao português (BARENYS, Natàlia, org. Epistolari Rosa Leveroni-Josep Palau i
Fabre. Barcelona: Publicacions de L'Abadia de Montserrat, 1998, p. 45).
73
V. Anexos.
74
MANENT, Marià. “Notes sobre libres”. Ariel. a. 2, n. 9, Barcelona, abril 1947, p. 31.
75
ROMEU I FIGUERAS, Josep. “Joan Barat: Poemes. - Barcelona, 1947”. Ariel. a. 2, n. 10,
Barcelona, jun. 1947, p. 48.
40
Josep Palau Fabre, as “coisas são ditas de uma maneira exata, matemática, com
uma clarividência fulminante”.
76
Na introdução, Cabral aproxima os rios autores pela “posição de defesa,
defesa tensa, da língua catalã”. Alude à luta dos poetas cataes contra a repressão
lingüística imposta pelo governo de Franco, já que entende a poesia como
“primordialmente, um uso de linguagem”. A poesia deles, portanto, seria “mais de
professores e filólogos do que de jornalistas, de conscientes do que de inspirados”.
Mais do que uma imagem, trata-se de uma comprovação, a começar por Riba, que
foi professor de grego e tradutor de Homero e Virgílio. Além dele, Joan Triadú
exerceu o cargo de leitor de catalão na Universidade de Liverpol (1948-1950), e
Jordi Sarsanedas, o de leitor de castelhano e catalão na Universidade de Glasgow
(1948-1950).
Ao mesmo tempo que caracteriza a situação específica de criação dos poetas
catalães, Cabral expõe os princípios de sua poética. Eles assumem uma “atitude de
autodisciplina e lucidez” em oposição a uma “atitude romântica de abandono à pura
espontaneidade e uma cega – ou mais, justamente, enceguecida – entrega ao
impulso de criar. E finaliza o texto com um sutil recado aos seus compatriotas,
preocupados com a “solenidade” e “nobreza” da poesia: “E, agora, se me é
permetida uma parte de julgamento, eu diria que essa atual posição a que foram
levados os escritores catalães uma posição materialista diante da criação poética
talvez contenha uma sugestão digna de ser considerada por parte de poetas de
outros idiomas não ameaçados.”
Nesse 1949, as relações de Cabral com a poesia catalã começaram a ocupar
um cenário diferente, passando do grupo da revista Ariel para o de Dau al Set.
Como lembrou Tapiès, os projetos dos dois grupos diferenciavam-se: Les
reconocíamos el mérito de haberse atrevido a llevar adelante aquella empresa
cultural en catan, pero nos parecía demasiado eclética, poco combativa, y sus
‘ilustraciones’ poco radicales y en cierto modo anticuadas.”
77
; “(...) nos
considerábamos los rebeldes, los ‘negros’, los malditos, la rama izquierda de la
cultura catalana. La mayor parte de los de Ariel, por ejemplo, entonces nos parecían
76
PERUCHO, Joan. “Dos llibres de Josep Palau Fabre”. Ariel. a. 2, n. 14, Barcelona, dez. 1947, p.
117.
77
TAPIÈS, Antoni. Memoria personal. Fragmento para una autobiografía. Trad. Javier Rubio Navarro
e Pere Gimferrer. Barcelona: Seix Barral, 2003, p. 219.
41
unos ángeles, representantes típicos de los intelectuales conservadores catalanes
(...)”.
78
Joan Brossa era o poeta do Dau al set. Cabral, em 1949, imprimiu na sua
minerva 70 exemplares de Sonets de Caruixa, primeira obra publicada de Brossa.
Este, por sua vez, no mero de julho-agosto-setembro desse ano de Dau al Set,
publicou suas traduções ao catalão de três poemas d´O engenheiro: "La Ballarina"
("A bailarina"), "Els núvols" ("As nuvens") e "El paisatge zero" ("A paisagem zero").
79
Em comum, ambos os poetas haviam incorporado elementos do surrealismo em
suas obras iniciais.
Nesse período, Cabral não apenas se preocupava com as questões estéticas,
mas também se voltava às ideológicas, adentrando no marxismo. Em 1948,
planejava uma obra comprometida: “(...) uma espécie de explicação de minha
adesão ao comunismo. Como essa palavra é explosiva, chamarei a coisa, plagiando
o José de Alencar: Como e por que sou romancista.”
80
No entanto, impactado com a
notícia de que a expectativa de vida no Recife era de 27 anos, iniciou O cão sem
plumas, primeira obra em que focalizava a situação precária do homem de sua
região: “Ando com muita preguiça e lentidão trabalhando num poema sobre o nosso
Capibaribe. A coisa é lenta porque estou tentando cortar com ela muitas amarras
com minha passada literatura gagá e torre-de-marfim.”
81
Nas conversas com Brossa,
que em 1950 receberia um exemplar de O cão sem plumas
82
, defendia um
compromisso social na obra de arte, que deveria ser de “revolta”, e não de
“revolução” como ditava o realismo socialista, pois, caso contrário, seriam
“destruídos” pela a ditadura. Portanto, poderia continuar escrevendo poemas de
orientação surrealista, porém oferecendo uma direção, um sinal ao leitor.
83
Em 1951, Cabral ocupava seu novo posto em Londres, mas continuou
mantendo contato com Brossa, cujos poemas registram o conteúdo das cartas
enviadas pelo brasileiro. No poema "Antoni Tàpies", de Coral (1951), datado de "1-
V-1951", menciona uma carta: "(...) Temos de mudar me/ escreve Cabral -, temos
78
Idem, ibidem, p. 235.
79
V. Anexos.
80
Carta a Carlos Drummond de Andrade de 9 de outubro de 1948 (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit.,
p. 228).
81
Carta a Manuel Bandeira de 3 de dezembro de 1949 (Idem, ibidem, p. 114).
82
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
83
PERMANYER, Lluís. Brossa x Brossa. Records. Barcelona: Edicions La Campana, 1999, p. 88. V.
depoimento de Brossa em Cadernos de Literatura Brasileira. n. 1. João Cabral de Melo Neto. Instituto
Moreira Salles, São Paulo, março de 1996, p. 16-17.
42
de ter a certeza/ que nos mudamos de casa. Este é o primeiro passo."
84
Em “Tots en
el crit” (Todos no grito), da mesma coletânea, retoma mais uma carta:
(...) Hoje
tive notícias de Londres,
de Cabral, e com a carta alvejarei este establo
desde a porta até o último recanto: Nós
temos que compreender - me escreve - o que há de moribundo e de novo
[no mundo atual
Depois de saber o que nasce, somente
os suicidas podem preferir o gemido e a ruptura.
O nosso amigo
também procura a todo custo a grande nação do amanhã.
A árvore secreta dos velhos dias não está no nosso céu.
Ele, de Londres, compõe uma alta estátua verde com
plumagem de alento:
homem, mulher, trigo, vinho, pão, figuras do povo.
85
Cabral enviava livros para que Brossa pudesse encontrar exemplos para
redirecionar sua obra. Um deles, anunciado em carta de 16 de maio de 1951
86
, foi
Poèmes de Nazim Hikmet, que se conserva na biblioteca particular do poeta
catalão.
87
No prefácio, assinado por Tristan Tzara, Brossa destacou a lápis a
seguinte passagem: “(...) Nesse sentido, a poesia de Nazim pertence ao domínio
cultural do homem de hoje e, pela amplitude de sua autenticidade histórica, ela
possui o valor de uma verdade permanente.” Os versos do turco Nazim Hikmet, com
referências à história e cultura de seu país, serviram mais de uma vez a Brossa de
epígrafe, como a do citado Coral, “Jo vaig amb la claredat que avança...”,
primeiro verso do poema “Voilá”, à página 136 da edição presenteada por Cabral
("Je suis dans la clarté qui s'avance").
A partir desse rico intercâmbio, surgiu a coletânea En va fer Joan Brossa
(1951), “os primeiros passos do autor no sentido de realizar uma poesia mais
amplamentemente humana”, nas palavras do prólogo de Cabral, no qual expõe pela
84
(...) Hem de canviar - m'ha/ escrit Cabral-, hem de tenir la certesa/ que ens cal canviar. Aquest és el
pimer pas. (BROSSA, Joan. Op. cit., p. 317).
85
Avui/ he tingut notícies de Londres,/ d’en Cabral, i amb la carta emblanquinaré aquest estable,/ des
de la porta fins a l’ultim racó: Nosaltres/ hem de comprendre - m’escriu - el que hi ha de moribund i de
nou al món actual./ Després de saber el que neix, només/ els suïcides poden preferir el gemec i la
ruptura./ El nostre amic/ tambusca a cada roca la gran nació del demà,/ L’arbre secret dels vells
dies no és al cel nostre./ Ell, des de Londres, entreteixeix una alta estàtua verda amb/ plómatge
d’ales:/ home, dona, blat, vi, terra, pa, figures del poble. (Idem, ibidem, p. 311)
86
Fundació Joan Brossa – Barcelona.
87
Paris: Les editeurs français réunis, 1951 (Fundação Vila Casals – Barcelona).
43
primeira vez sua nova concepção de poesia. Segundo ele, a superação do
formalismo da arte estaria na retomada do tema dos homens. No caso de Brossa,
em lugar de encontrar uma forma realista”, como muitos experimentavam naquele
momento, estava seguindo o caminho oposto ao fazer poemas que levassem em
conta seu repertório de elementos cotidianos e populares.
Cabral já o mais apóia incondicionalmente Carles Riba e os poetas da
geração da revista Ariel, contrapondo-os a Brossa: enquanto aquela poesia
preocupava-se com o vocábulo nobre, pouco corrente, erudito ou arcaico”, o autor
de Sonets de Caruixa buscava o material para sua obra “na realidade mais humilde,
no léxico da cozinha, da feira de praça e de fundo de oficina”. Dessa maneira, com
o objetivo de “comunicar-se com os outros homens”, escreveu os poemas
esquemáticos e prosaicos de Em va fer Joan Brossa.
Mais tarde, incluiu em Paisagens com figuras o poema “Fábula de Joan
Brossa”, que de certa forma recupera as idéias do prefácio a Em va fer Joan Brossa:
Joan Brossa, poeta frugal,
que só come tomate e pão,
que sobre papel de estiva
compõe versos a carvão,
Nas feiras de Barcelona,
Joan Brossa, poeta buscão,
as sete caras do dado,
as cinco patas do cão
antes buscava, Joan Brossa,
stico da aberração,
buscava encontrar nas feiras
sua poética sem-razão.
Mas porém como buscava
onde é o sol mais temporão,
pelo Clot. Hospitalet,
onde as vidas de artesão,
por bairros onde as semanas
sobram da vara do pão
e o horário é mais comprido
que fio de tecelão,
acabou vendo, Joan Brossa,
que os verbos do catalão
tinham coisas por detrás
eram só palavras, não.
Agora os olhos, Joan Brossa
(sua trocada instalação),
voltou às coisas espessas
que a gravidez pesa ao chão
e escreveu um Dragãozinho
denso, de copa e fogão,
44
que combate as mercearias
com ênfase de dragão. (SA, 124-125)
Como em “Fábula de Rafael Alberti”, apresenta-se a trajetória de um poeta,
que parte da experiência surrealista “poética sem-razão” - para a conquista de
uma poesia com mais referências empíricas. Em um primeiro momento, Brossa
procurou a fonte de sua obra no variado e popular mundo das feiras, resultando, por
exemplo, em Romancets del Dragolí (Romances do Dragãozinho), escrita em 1948.
Porém, em seu itinerário chegou aos bairros dos artesãos, onde não se estimula a
imaginação e os sentidos, mas se assiste ao trabalho demorado e às dificuldades
cotidianas. A partir desse encontro, muda a concepção da linguagem, de “só
palavras” a “coisas”, o “caminho inverso” de “Fábula de Rafael Alberti”. Aliás, este
poema e “Fábula de Joan Brossa”, além de se aproximarem no título, compartilham
a imagem da palavra como coisa, cujo peso a impele ao “chão”. Em lugar de
mencionar Em va fer Joan Brossa, no qual definitivamente se reflete a nova etapa,
Cabral prefere retomar o emblemático Dragãozinho, como se ele também tivesse se
transformado, ao se mostrar mais prosaico e combativo.
3. O rio e seus afluentes: a poesia medieval espanhola
Cabral em O cão sem plumas iniciou a recuperação da tradição do
nacionalismo ou regionalismo do Modernismo brasileiro das décadas de 20 e 30,
passando a valorizar os autores de assunto “brasileiro” frente aos de assunto
“universal”, como explica em carta de 11 de dezembro de 1951 a Bandeira:
Hoje eu compreendo melhor como para qualquer artista brasileiro deixar de
ser brasileiro para ser “universal” significa empobrecimento. Depois de alguns anos
na Europa pude verificar o desinteresse que o europeu i.e., o leitor universal
experimenta diante de nossos autores universais: Lúcio Cardoso, Cecília Meireles,
Schmidt, etc. (estou dizendo isso em segredo). E ao mesmo tempo o entusiasmo que
certos autores mais brasileiros (M. Bandeira, M. de Andrade, etc.), apesar de difíceis,
despertam. Essa foi uma experiência que nos ajudou muito a compreender muitas
45
coisas. E posso garantir que não era o gosto do exótico que determinava o interesse
de que estou falando.
88
De volta ao Brasil em 1952, envolveu-se com o meio literário por meio de
depoimentos, palestras e artigos para a imprensa, divulgando os princípios de sua
poética. Uma das mais importantes intervenções ocorreu em 13 de novembro
desse ano, a conferência Poesia e composição A inspiração e o trabalho de
arte”, na Biblioteca Municipal de São Paulo. Se pouco tempo defendia o tema
dos homens” na base das experiências de vanguarda, nesse momento reivindicava
uma linguagem mais comunicativa, inquietação que, como foi visto, o perseguia
desde o começo de sua obra. Propõe, entre outros, o exemplo da literatura
espanhola, ao integrar o trabalho individual do artista e o legado coletivo: “(...)
Como na poesia popular, funde-se o que é de um autor e o que ele encontrou em
alguma parte. A criação inegavelmente é individual e dificilmente poderia ser
coletiva. Mas é individual como Lope de Vega escrevendo seu teatro e seu
'romancero', de aldeia em aldeia de Espanha, em viagem com seus comediantes e
profundamente identificado com seu público.” (P, 69). Em mais de uma entrevista
considerava a literatura espanhola a “maior do mundo”, interpretada como
“realista”, “popular”, “objetiva” e “concreta”, noções comuns a uma tradição crítica
da literatura espanhola vinda do século XIX. Embora desde sua chegada à
Espanha em 1947 tenha percorrido uma história literária, isso não o impediu de
estabelecer escolhas de acordo com a poética que vinha elaborando:
(...) prefiro aqueles momentos em que a literatura espanhola é realista e
objetiva e tenho menos interesse pelos momentos em que ela tende para o
universo e o subjetivo. Assim, prefiro a épica primitiva, o ‘romancero, a novela
picaresca, etc., e me interesso menos pelo neo-classicismo, pela mística, pelo
romantismo, etc. Modernamente, em poesia, prefiro a fase que vem de Antonio
Machado até Miguel Hernandez e dou menos importância à poesia metafísica que
foi posta em moda pelo atual regime político.
89
88
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 146.
89
Entrevista de 1953 (MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 132).
46
Dedicou a Hernández o poema “Encontro com um poeta”, de Paisagens com
figuras. De origem humilde, lutou na Guerra Civil Espanhola, defendendo os ideais
da Espanha republicana. Condenado como “poeta da revolução”, morreu na prisão
em 1942. Por outro lado, Cabral rejeitou os poetas “oficiais”, da Espanha
vencendora, reunidos em torno das revistas Escorial (1940) e Garcilaso (1943),
como Luis Felipe Vivanco, Leopoldo Panero e Luis Rosales. Ao pedir a Vinicius de
Moraes a colaboração com uma obra para sua prensa manual, em 16 de novembro
de 1947, mencionou essa corrente: “(...) Espero que seu ‘sim’ me impedi de
dedicar a coleção ‘inconsútil’ aos milhares de poetas em Cristo que em minha
geração brasileira (na Espanha tamm: os poetas de minha geração aqui ou são
do discurso metafísico ou do soneto garcilaseano; ou, o que é mais comum, das
duas coisas, simultaneamente;(...)”
90
A seleção da poesia espanhola realizada por Cabral, segundo ele próprio,
poderia oferecer novos rumos para a poesia brasileira, particularmente a Geração
de 45, distante dos temas sociais e às voltas apenas com a forma em si: “Hoje,
acho que a nossa poesia deve se orientar para as baladas, para os romances. A
técnica poética, quando não é aplicada a alguma coisa, põe o poeta em um beco
sem saída.”
91
A respeito desse movimento, publicou uma rie de 4 artigos para o
Diário Carioca em 1952, nos quais valoriza as conquistas da poesia das décadas
de 20 e 30, fundadas no “vocábulo prosaico ou pela imagem prosaica”: “Na
verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo Modernismo longe estão de
esgotadas.” (P, 73)
Porém, o vocábulo prosaico e imagem prosaica” ainda o surgem
totalmente em O cão sem plumas, não satisfazendo os novos parâmetros do poeta:
“É o Capibaribe visto de fora. A existência do assunto é clara. Evidentemente a
linguagem ainda é cifrada. A verdade é que naquela época eu não me tinha
libertado ainda do preconceito de que poesia é a transplantação metafórica da
realidade.”
92
Em 1954, retornou ao mesmo Capibaribe com a publicação d’O rio,
90
Arquivo Vinicius de Moraes, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa Rui Barbosa.
Em carta a Manuel Bandeira de 4 de agosto de 1950, Cabral comenta seu desagrado com a poesia
espanhola da época: “A poesia espanhola pós-franquista é profundamente reacionária: é em Cristo,
metafísica, enfim, profundamente subjetiva. Coisa que aliás confirma aquela coisa de Goethe, de que
o subjetivismo é o próprio das épocas reacionárias.” (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 124-125).
91
Entrevista de 1952. (MAMEDE, Zila, Op. cit., p. 131).
92
Entrevista a Vinicius de Moraes em 27 de junho de 1953. (MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 131). Haroldo
de Campos considera O cão sem plumas “como estágio de trânsito entre ambas as diccções do
poeta, um momento de equilíbrio estável entre as conquistas construtivas de O Engenheiro e da
47
que não mais por meio de uma linguagem “cifrada”, mas a partir de procedimentos
formais mais comunicativos, buscados na primitiva poesia espanhola, marcada
pela oralidade, canto para um público, como a épica e o romancero.
O Poema de Mio Cid, a poesia épica fundadora da literatura espanhola,
tornou-se decisivo para que Cabral não apenas empreendesse o “tema dos
homens”, mas principalmente encontrasse uma forma adequada para expressá-lo.
Em uma entrevista explicou a descoberta:
Quando fui para a Espanha, não tinha conhecimento da antiga literatura
brasileira, e continuo sem ter. Mas estudei a velha literatura ibérica para compensar
essa falta de back-ground cultural. Comecei a estudá-la sou um leitor doentio
pelo poema do Cid. Fiquei no ouvido com o ritmo desse poema, que é o mesmo de O
rio. Ritmo áspero, de coisa grosseira, mal acabada. Existe na Espanha um verso
chamado de arte maior, com a primeira parte variável e a segunda fixa. Em O rio fiz o
contrário: a primeira parte, a dos versos ímpares, é fixa, todos têm seis sílabas. Os
versos pares podem ser qualquer número silábico. Isso cria um ritmo.
93
Some-se ao ritmo a incorporação da rima toante, presente, como observou o
próprio Cabral, em alguns poemas de Cecilia Meireles: “A rima toante é uma
tradição muito antiga, abandonada em Portugal. Era uma tradição de toda Península
Ibérica e dela se encontram vestígios na poesia popular do Nordeste brasileiro que a
recebeu antes de Portugal ter-se descartado dela.”
94
Ao lado das sugestões formais, o Poema de Mio Cid contribuiu também com
imagens e situações. Tanto n'O rio que tamm se intitula Relação da viagem que
faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife -, quanto em Morte e vida
Severina, a narração acompanha a viagem dos retirantes, que abandonam sua terra
natal por causa da seca e da miséria, em busca de uma vida melhor no litoral. Por
sua vez, a descrição de viagens e marchas é comum nas canções épicas: Rodrigo
Psicologia e a vontade de comunicação, de abertura do âmbito semântico do poema.” (“O geômetra
engajado” In Metalinguagem & outras metas. 4a edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992., p.
84).
93
Entrevista a Antonio Carlos Secchin (SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos.
São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL, 1985, p. 303).
94
Entrevista em Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 de maio de 1980.
48
Diaz de Vivar é desterrado de Castela pelo rei Alfonso VI, percorrendo terras e
lutando contra os mouros.
Além do Poema de Mio Cid, mais uma forte presença da poesia medieval
espanhola n'O rio. Gonzalo de Berceo, clérigo do século XIII e autor de obras
religiosas como os Milagros de nuestra señora, forneceu a epígrafe: “Quiero que
compongamos io e una prosa”. O verso foi retirado de um dos escritos dedicados
à Virgem Maria, Aqui escomienza el duelo que fizo la Virgen Maria el dia de la
pasion de su fijo Jesu Christo; mais especificamente, encerra a estrofe em que a
Virgem atende às súplicas do monge Sant Bernalt por conhecer os sofrimentos dela:
Fraire - disso la Duenna - non dubdes en la cosa;
yo só Donna Maria, de Josep la esposa,
el tu ruego me trae apriessa e cueitosa;
quiero que compongamos yo e tu una prossa.
95
Berceo, primeiro poeta conhecido da literatura espanhola, provavelmente em
apresentações orais, procurava ensinar e doutrinar o povo na matéria religiosa. A
vontade da Virgem Maria em fazer Sant Bernal, espécie de representação do
ouvinte, participar” de seu relato da crucificação e ressurreição de Jesus Cristo,
expressaria a tentativa de Berceo em envolver seu público para que juntos
acompanhassem uma “prosa”. Essa palavra, originária do latim, significa o que
anda em linha reta”; daí a oposição entre texto em prosa ou em verso. Seu uso por
Berceo aliás, o primeiro documento em castelhano para se referir a um texto em
verso, pressupunha a “seqüência” que se dizia em certas missas, e posteriormente,
composição poética de caráter religioso. No poema de Cabral, podem confluir os
sentidos primitivos e atuais de prosa: a “seqüência” ou “relação” do rio revela um
mundo “prosaico”, de pobreza e luta pela sobrevivência.
Para transmitir sua mensagem de forma eficaz, Berceo vale-se de uma
linguagem corrente, não erudita, como adverte em La vida de Santo Domingo de
Silos:
95
BERCEO, Gonzalo de. Signos que aparecerán antes del Juicio final. Duelo de la Virgen. Martirios
de San Lorenzo. Edição de Arturo M. Romoneda. Madri: Castalia, 1980, p. 166.
49
Quiero fer una prosa en román paladino,
en qual suele el pueblo fablar con so vecino,
ca non so tan letrado por fer otro latino;
bien valdrá, como creo, un vaso de bon vino.
96
Um dos recursos mais utilizados por Berceo é a comparação, geralmente a
partir de elementos concretos, comuns, para facilitar a compreensão da distante
esfera religiosa, tornando-a visível.
97
Os animais, por exemplo, estão muito
presentes nessas comparações, principalmente o cachorro. Cabral, que tornou a
comparação uma estrutura recorrente em sua obra, aproximara o mesmo
Capibaribe a umo. Portanto, Berceo seria para Cabral o grande exemplo de como
um homem de cultura pode se comunicar com seu público. Os objetivos são
opostos: o “mester de clerecía” queria catequisá-lo, o poeta do século XX,
denunciar-lhe uma situação social.
No poema Catecismo de Berceo”, de Museu de tudo, Cabral, longe de se
preocupar com os princípios religiosos do clérigo medieval, discorre pelo legado de
um estilo espanhol fundado em um vocábulo “concreto”, já proposto nos poemas
“Fábula de Rafael Alberti” e “Fábula de Joan Brossa”:
1.
Fazer com que a palavra leve
pese como a coisa que diga,
para o que isolá-la de entre
o folhudo em que se perdia.
2.
Fazer com que a palavra frouxa
ao corpo de sua coisa adira:
96
BERCEO, Gonzalo de. La vida de Santo Domingo de Silos. Edição de Brian Dutton. Londres:
Tamesis Books, 1978, p. 35.
97
Joaquín Artiles atribui o ambiente campesino que cerca o clérigo como inspirador desse processo:
“(...) Inmerso en el mundo de la Rioja, afloran en sus versos, como soporte comparativo, ese montón
de cosas que son el campo y el hogar, la casa y la intemperie. Berceo, que nunca se olvida de sus
oyentes, trata de hacer llegar hasta ellos, por obra y gracia de lo concreto y cercano, otras realidades
más lejanas y elevadas. Sus comparaciones (y lo mismo diríamos del mundo de sus imágenes)
tienen, por eso, un caráter descendente, de rebajamiento, de acercamiento a lo inmediato y cotidiano.
Berceo quiere, con buen sentido pedagógico, que sus oyentes se eleven y asciendan a la
compreensión de realidades superiores por la fácil escala de las cosas más familiares.” (Los recursos
literarios de Berceo. Madri: Gredos, 1964, p. 124-125.)
50
fundi-la em coisa, espessa, sólida,
capaz de chocar com a contígua.
3.
Não deixar que saliente fale:
sim, obrigá-la à disciplina
de proferir a fala anônima,
comum a todas de uma linha.
4.
Nem deixar que palavra flua
como rio que cresce sempre:
canalizar a água sem fim
noutras paralelas, latente. (EPD, 59-60)
A imagem da canalização da água em paralelas reflete o rigor do clérigo ao
utilizar a “cuaderna vía”, estrofe de quatro versos de 14 sílabas, com pausa ou
cesura no meio. Na gina escrita ou impressa, a sinuosidade do espaço em branco
das pausas lembra o curso de um rio “canalizado” pelos heptassílabos. O objetivo de
proferir a “fala anônima” poderia ser acompanhado com a “disciplina” na construção
do poema.
4. Traduções: Ángel Crespo e Gabino-Alejandro Carriedo
Por volta de 1960, quando ocupava o cargo de primeiro secretário da
Embaixada brasileira em Madri, Cabral estabeleceu amizade com os poetas Ángel
Crespo (1926-1995) e Gabino-Alejandro Carriedo (1923-1981), os quais se tornaram
tradutores tanto da obra dele
98
, quanto de outros poetas brasileiros, principalmente
nas páginas da Revista de Cultura Brasileña. Além de estimularem as relações
literárias entre Brasil e Espanha, os três poetas mantiveram um importante diálogo a
partir de suas obras.
98
V. Anexos, Traduções de poemas de João Cabral de Melo Neto na Espanha.
51
Carriedo e Crespo, em 1945, formaram parte do grupo de vanguarda
denominado Postismo, o qual se promovia como sucessor dos movimentos das
décadas de 20 e 30, como o surrealismo. Mais tarde, entre 1960 e 1963, dirigiram a
revista Poesía de España, cujo suplemento “Poesía del mundoofereceu traduções
e notas biobibiográficas de Drummond e Cabral, entre outros. Nesse momento,
retomavam a tradição de uma poesia comprometida na Espanha, muitas vezes
fundada na experiência da vida campesina. O Poema de la condenación de Castilla
(1946), de Carriedo, é a primeira obra, depois da Guerra Civil, dedicada à terra e ao
homem dessa região:
Castilla excomulgada, estéril, seca
como estatua de sal, como una madre
sin fértil alentar, sin el espasmo
doloroso y feliz de un parto nuevo
de extraña madurez y fallecida
ya en cada herida vieja, ya en el sordo
recuerdo aterrador, miseria y luto.
99
A contundência das imagens assemelham-se ao universo castelhano e
pernambucano de Paisagens com figuras, indicando como se identificaram as
propostas poéticas de Cabral e Carriedo. Contudo, os dois poetas espanhóis
criticavam a poesia social que vinha sendo realizada, apenas voltada ao conteúdo,
sem maiores cuidados estéticos. No texto “Poética”, incluído na antologia Poesía
social (1965), organizada por Leopoldo Luís, Crespo esclarece seu ponto de vista:
¿Cómo puede facilitarse un cambio de las circunstancias sociales con una
técnica conformista? En nuestra poesía “social” hay mucho 98, no hay
investigaciones formales serias y actualizadas, sistemáticas. Si las nobles ideas que
animan esta poesía son ciertamente universales, lo primero que se impone es una
apertura al universo mundo de la poesía, enlazar con él y tomar lección de sus
conquistas o, más sencillamente, de su afán renovador. Se ha tenido en cuenta lo
que se dice pero no la manera de expresarlo. Con ello, se ha empobrecido el
99
Apud LECHNER, J. El compromiso en la poesía española del siglo XX. Alicante: Publicaciones de
la Universidad de Alicante, 2004, p. 581.
52
lenguaje y, así, se ha producido esa crisis de expresión que ha conducido a la no
menos triste de valores, que también padecemos.
100
Carriedo, em depoimento para a mesma antologia, defende a conciliação
entre os movimentos “pós-vanguardistas” e a poesia social.
101
A união entre estética
e comprometimento, ou vanguarda e comprometimento, denominam Crespo e
Carriedo de poesia realista”, considerando a obra cabralina como uma importante
referência. Aliás, a noção “realista”, sem a conotação estrita do termo, foi utilizada
por Crespo no importante estudo Realidad y forma en la poesía de Cabral de Melo
(1964): (...) sin renunciar a la investigación de la realidad, antes bien procurándola
afanosamente, se muestra a la vez como ejemplo de exigencia estética a través de
una forma equilibrada y racional y en ningún modo ajena a la experimentación.”
102
Em 1962, os dois poetas espanhóis recebiam de Cabral Terceira feira
103
,
publicado no ano anterior e que reunia as três últimas coletâneas. Em Quaderna, por
exemplo, consolidou os poemas dedicados à Espanha e ao Nordeste – iniciados em
Paisagens com figuras que se entrelaçam no “Poema(s) cabra”. No aparte final à
série de 9 poemas, contrasta “duas paisagens”, as “terras nobres” das margens do
Mediterrâneo e a piçarra” do Sertão, mas que podem ser aproximadas pela cabra
que habita as duas regiões: “Mas não minto o Mediterrâneo/ nem sua atmosfera
maior/ descrevendo-lhe as cabras negras/ em termos das do Moxotó.” (EPD, 245). A
comparação vale-se do concreto, do prosaico, mais especificamente com o animal:
se antes o cotejo era entre cão/ rio/ homem, passou a ser entre cabra/ homem.
Conseqüentemente, a descrição da difícil condição de vida e da resistência da cabra
remete-nos tamm ao ser humano. Logo no primeiro poema, a cor negra sugere
uma situação de exclusão de uma etnia, familiar à sociedade brasileira: “O negro da
cabra é o negro/ do preto, do pobre, do pouco. (...) “É o negro da segunda classe,/
Do inferior (que é sempre opaco).” (EPD, 239-240). Do mesmo modo que a cabra
aprendeu a sobreviver em um meio inóspito, o homem seguiu seu modelo: “O
nordestino, convivendo-a,/ fez-se de sua mesma casta.” (Poema 8, EPD, 244); A
100
Apud CRESPO, Ángel. Antología poética. Edição de Arturo Ramoneda. Madri: Alianza Editorial,
1994, p. 17.
101
Apud, LECHNER, J. Op. cit., p. 673.
102
CRESPO, Ángel e BEDATE, Pilar Gómez. Realidad y forma en la poesía de Cabral de Melo.
Separata da Revista de Cultura Brasileña. n. 8, Madri, março 1964, p. 6.
103
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
53
cabra deu ao nordestino/ esse esqueleto mais de dentro:/ o aço do osso, que resiste/
quando o osso perde seu cimento.” (Poema 9, EPD, 244).
Crespo interessou-se pelo Poema(s) da cabra” ao traduzir, em 1963, os três
primeiros na história literária que vinha apresentando na seção “Aspectos de la
cultura brasileña do periódico Brasil, do Serviço de Propaganda e Expressão
Comercial da Embaixada brasileira em Madri.
104
Por sua vez, tamm dera lugar a
“La cabra”, poema publicado em edição de bibliófilo em 1962:
La vieja cabra que el cuchillo
respetó. Se movía
como la hierba cuando crece.
De pronto, sus orejas
ya estaban lacias, o su belfo
entreabierto, o estaba
el animal junto a la puerta
del horno. El animal
- o más bien bicho, fardo
de piel y huesos, con las ubres
como viejas talegas que guardaron
cobre y, a veces, plata-,
el bicho melancólico
que se dormía al sol tocando tierra
con los hermosos cuernos.
Porque los cuernos eran su sonrisa,
su afirmación, su gesto de haber sido:
brillantes de mañana, por la siesta
mates de polvo y tedio, por la noche
oscuros de abandono, y humeantes
de bruma con la aurora.
Vieja herencia
de algún día que el hambre se olvidó
de olisquear el filo del cuchillo,
de lamer el barreño en que la sangre
se cuaja, de mover
104
a. 3, n. 10-11-12, Madri, out./dez. 1963.
54
la artesa que presencia el sacrificio;
vieja cabra, durando
como la duración, como las hierbas
que cuelgan del tejado,
como la voz idéntica que llama
desde el fondo del patio cada día,
como el tiempo que aprieta los costados,
se va después, jadea
y, cuando va a morir, clava los cuernos
en el contemplado desprevenido.
105
Diante da decrepitude da velhice, o único que resta de belo e digno na cabra
são os seus cornos, “seu gesto de ter sido”. No entanto, o que parecia apenas objeto
de contemplação, no instante da morte, desperta em uma última reação. No
“Poema(s) da cabra” não são os cornos, mas justamente a cor negra que ocupa os
três primeiros poemas traduzidos por Crespo. No terceiro, refere-se à “alma córnea”,
imagem que concretiza, a partir de seu principal atributo, a força interior” da cabra.
O nordestino, da “mesma casta”, possui o “aço do osso”. Quanto a La cabra”, essa
“alma córnea” não a abandona mesmo na hora do sacrifício.
Carriedo deixou traços mais explícitos da obra cabralina em sua poesia.
Antonio Martinez Sarrión, no prólogo ao Nuevo compuesto descompuesto viejo
(Poesía 1948-1978), assinalou a presença marcante do brasileiro:
Sobre todos los poetas de expresión portuguesa, le influye poderosamente la
voz del gran João Cabral de Melo Neto (....) la inteligente simbiosis de
postsimbolismo y realismo, unida a su obsesión por las posibilidades aleatorias del
poema, concebido dentro de cánones casi matemáticos de puro económicos y
esenciales, hacen de la poesía cabralina una experiencia única, sin nada que ver con
cualquier tendencia de la poea española de las últimas décadas.
Pues bien, la influencia, no única, mas predominante del brasileño, se unió en
Carriedo, por afición y dedicación profesional (...).
106
105
CRESPO, Ángel. Libro cuarto (1958-1964) In En el medio del camino (1949-1970) In Poesía. v. 1.
Edição de Pilar Gomez Bedate e Antonio Piedra. Valladolid: Fundación Jorge Guillén, 1996, p. 189-
190.
106
CARRIEDO, Gabino-Alejandro. Nuevo compuesto descompuesto viejo (Poesía 1948-1978). Madri:
Peralta, 1980, p. 19.
55
Escolheu como epígrafe ao poema “Teoría de la minería”, de El corazón en el
puño (1961), os versos “que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta”
de Morte e vida Severina, traduzido por ele e Crespo em 1966. Trata-se de uma
pungente visão do árduo trabalho dos mineiros; assim como a miséria do Nordeste
brasileiro, conduz à morte:Cien mil familias crecen a la sombra,/ mas todos mueren
a los treinta.”
107
Posteriormente, seguiu em alguns poemas a estrutura binária de A educação
pela pedra no qual lhe é dedicado Rios sem discursos” -, aproximando-se muito
do estilo cabralino. Em “Cuenca y sus hoces”, além de reunir as significativas
imagens da pedra e do rio presentes no título do estudo de Lauro Escorel de 1973
-, pratica a assonância nos versos ímpares: “Para entender la escultura hay que
hablar/ un lenguaje de piedra entre dos ríos;/ no basta la cultura de lo estudiado/ si
falla el conocimiento de lo vivido.
108
Mas o compromentimento não foi abandonado, como verificamos nos dois
poemas que denunciam a poluição dos rios madrilenhos:
Los os de Madrid
Los os de Madrid son ríos raquíticos
de albúmia y petroleo, ríos por dentro,
pero arroyos cuando sobre la superficie
apenas se desplaza su líquido esqueleto.
Los os de Madrid no son más que cloacas
con numerosos puntos de desagüe;
cursos pequeños de aguas negras
que es igual que decir aguas fecales.
Por eso son los ríos de Madrid no existentes:
os para cantados mas con benevolencia
el cercano Jarama, ocre de tierra y grava,
y el Manzanares, que apenas agua lleva.
2
Pero no para cantados con sentido crítico:
los ríos de Madrid son un cuadro mal hecho,
un proyecto de ingeniero sin experencia
o un poema que no llega a soneto.
Por eso son, los ríos, granos moleculares
y es su agua gorda y espesa como limo,
107
Idem, ibidem, p. 99-100.
108
Idem, ibidem, p. 179.
56
mas llena de organismos vivos que son los que hacen
que las aguas se mueran, aunque con paso mínimo.
109
De nuevo los ríos de Madrid
Si los ríos de Madrid son sólo gránulos
de todo material en su seno prolíficio,
las orillas de los ríos son vertederos
donde se vuelcan a diario los detritus.
No conocen el murmullo del agua
ni en su curso-vida han visto lo verde;
no son espejo de nada y en su seno
jamás han quebrado su rumbo peces.
2
Por eso no figuran en todos los mapas
los ríos de Madrid, de grasa y cieno;
se les suprime como no existentes
en la toponimia de lo madrileño.
O no se les suprime y entonces son vehículo
el Jarama de sus gravas y tierras
ocres - color pardo del jaro -,
y el Manzanares de sus aguas féditas.
De ahí que estos ríos sifilíticos
apenas conozcan a los médicos:
os de pus de herida infectada,
os enfermedad y no ríos remedio.
110
No segundo poema, a contraposição “não conhecem a vidae conhecem o
doentio”, prossegue o curso d'O cão sem plumas:
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água do cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
109
Idem, ibidem,p. 183.
110
Idem
, ibidem, p. 187.
57
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro. (SA, 73-74)
Carriedo dialogou com o primeiro poema de Cabral escrito na Espanha, entre
1949 e 1950, momento, como vimos, de fértil discussão, em Barcelona, de uma arte
comprometida, sem perder de vista a envergadura estética. Sintomaticamente, na
última estrofe citada d'O cão sem plumas, o poeta valeu-se dos mesmos “mangues
crespos e de folhas duras” do monólogo de Joaquim d'Os três mal-amados, no qual
se atormentava com aquilo que não sabia falar em verso. Pois na coletânea de
1950, a direta e prosaica comparação lança o poema na vida dos homens, a
exemplo da tradição da literatura espanhola. Dessa forma, Cabral também pôde
abrir caminhos para poetas tão distintos como o catalão Joan Brossa e o castelhano
Gabino-Alejandro Carriedo.
58
CAPÍTULO 2: Leituras e leitores espanhóis de Murilo
A biblioteca de Murilo Mendes, que hoje integra o acervo do Centro de
Estudos dedicado ao poeta em Juiz de Fora, comporta muitos livros de literatura
espanhola, especialmente poesia. Os títulos vão desde o Poema de Mio Cid até os
poetas do século XX, o que revela a variedade dos interesses de Murilo, a “Espanha
total, completa assinalada por Cabral na carta de 1959, reunindo uma vertente
“materialista” e outra espiritualista”. A junção dos contrários, um dos princípios da
poética muriliana, poderia relacionar-se com uma constante de todos os tempos,
como ele verificou na leitura da conferência “Escila y Caribdis de la literatura
española”, de 1927, na qual Dámaso Alonso discute a concepção a respeito dessa
literatura que apenas reconhece as notas de realismo, popularidade e localismo. Em
seu exemplar de Estudios y ensayos gongorinos, Murilo destacou a lápis a
passagem em que o crítico defende a polaridade da literatura espanhola:
Goethe ha querido explicar la vida como un dualismo, como una oposición de
contrarios en lucha, de fuerzas contrapuestas, pero unidas esencialmente en la
entraña del principio vital. Esta ley de la polaridad creo que es la que define la
esencia de la literatura española. Esta no se puede definir por la línea del
popularismo-realismo-localismo, ni tampoco por de la selección-antirrealismo-
universalidad. Estas dos direcciones serán sólo dos aspectos externos,
contrapuestos y mutuamente condicionados de la misma fuerza esencial.
Nas linhas finais do texto, não marcadas por Murilo, conclui: “Este eterno
dualismo dramático del alma española será también la ley de unidad de su
literatura”.
111
Esse exemplo ilustra-nos que uma grande parte dos exemplares da biblioteca
de Murilo recebeu anotações, como traços à margem, trechos sublinhados e uma
relação dos temas relevantes e suas respectivas páginas na última folha de rosto.
As anotações em um livro, processo comum a muitos leitores, no caso de um
escritor, tornam-se um material valioso para compreender a recepção de uma obra e
111
ALONSO,maso. Estudios y ensayos gongorinos. Madrid, Gredos, 1955, p. 26-27.
59
sua incorporação em seus próprios trabalhos.
112
Dessa maneira, os livros anotados
vinculam-se às obras Tempo espanhol e Espaço espanhol.
No entanto, antes das obras dedicadas à Espanha, Murilo teria iniciado uma
incorporação da literatura espanhola, seguindo os conselhos de Cabral de que a
poesia brasileira deveria promover as “baladas” e os “romances”: em Contemplação
de Ouro Preto (1954) inseriu os poemas “Romance das Igrejas de Minas”, “Romance
de Ouro Preto” e “Romance da Visitação”. Sobre o Romanceiro da Inconfidência
(1953), de Cecíla Meireles, também às voltas com Ouro Preto, Murilo comenta a
vitalidade do romanceiro na literatura contemporânea:
O filão dos romanceiros é riquíssimo. Remontando a tão ilustre tradição,
confundindo-se quase nas literaturas neolatinas com as bases da ngua, o
romanceiro tem sido explorado e renovado em nossos dias pelos poetas mais
inquietos, de sensibilidade mais em consonância aos acontecimentos da nossa
época, que enxertaram novas e mais vivas imagens no velho tronco austero, linear.
E muitos dos romances antigos encontram nos fatos de agora uma súbita
elucidação, quando tratados por poetas que possuem o duplo senso do clássico e do
moderno.
113
No caso de Tempo espanhol, temos os 16 poemas em um total de 65 – que
compõem uma história da literatura espanhola, anunciada na série de epígrafes
presentes na 1
a
edição, que vai do Libro de Aleixandre a Miguel de Unamuno.
114
O
primeiro deles, “Aos poetas antigos espanhóis”, apresenta a poesia medieval tanto
como paradigma de uma “linguagem concreta” e “seca”, quanto de um conteúdo
humano (O homem sempre em primeiro lugar)”. Vale lembrar que em setembro
de 1955, ano do início da produção de Tempo espanhol, Cabral ofereceu um
112
No caso de Murilo, Raul Antelo explorou alguns aspectos das anotações dele em livros de autores
hispânicos (Murilo Mendes lê em espanhol. I e II Congressos de literatura comparada da UFMG. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1987, p. 537-554).
113
“Romanceiro da Inconfidência”. Vanguarda, Rio de Janeiro, 1953. (MEIRELES, Cecilia. Obra
poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1987, p. 53). Cecília, na crônica “Castilla la bien
nombrada...”, de 1953, relata parte de sua viagem à Espanha, entremeada por citações de romances,
bases seguras do Romanceiro da Inconfidência: “E, enquanto o automóvel desliza por estas amarelas
solidões, ponho-me a pensar se o ritmo de redondilha, que é o do Romancero, poderia medir
igualmente o fragor das batalhas do Cid, como mede a sua narrativa. Ah! é que a vida cantada é
outra coisa....” (MEIRELES, Cecilia. Crônicas de viagem, 2. Edição de Leodegário A. de Azevedo
Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 18).
114
V. Anexos.
60
exemplar d’O rio a Murilo
115
, anotado em mais de uma passagem. Como analisamos
no primeiro capítulo, O rio significou a síntese das lições da primitiva poesia
espanhola, podendo ter sido, ao lado de Paisagens com figuras divulgado em
Duas águas em 1956 – uma das fortes referências de Murilo para Tempo espanhol.
No entanto, em posição oposta à de Cabral, o catolicismo de Murilo privilegiou
os “santos escritores” Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz. O fecundo “Siglo
de Oro” contribui com o maior número de poemas, a respeito de Cervantes,
Góngora, Lope de Vega, Tirso de Molina, Calderón e Quevedo. O século XX figura
com os poetas vítimas do franquismo, Lorca e Miguel Hernández.
Além da tradição literária, no período de permanência na Europa, de 1957 a
1975, Murilo manteve um diálogo com importantes poetas espanhóis
contemporâneos, os quais acompanharam tanto sua última produção poética
Tempo espanhol e Convergência quanto o conjunto de sua obra, reavaliada na
sua primeira reunião em 1959: Para esta edição revi inteiramente todos os textos,
tendo tamm suprimido rios poemas que me pareceram supérfluos ou repetidos.
Procurei obter um texto mais apurado, de acordo com a minha atual concepção da
arte literária. Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo.”
116
No artigo A
poesia e o nosso tempo”, estampado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil,
em 25 de julho desse ano, esclarece que a nova diretriz poética, marcada pela
concisão e construção da linguagem, partia de um trabalho ao longo de sua obra:
“Sendo de natureza impulsiva e romântica, cedo percebi que no plano da criação
literária devia me impor um autocontrole e disciplina. Tendo em conta esta minha
primeira natureza, julgo ter feito um trabalho de verdadeiro polimento de arestas,
pois se os relacionar à minha contínua necessidade de expulsão, meus textos são
até muito construídos e ordenados.”
117
Respondia assim a uma tradição crítica que
apontava defeitos” no aspecto formal, como por exemplo a resenha de Mário de
Andrade sobre Poesia em pânico (1938), “livro mais de lirismo que arte”:
(...) Ele se apresenta cheio de pequeas falhas cnicas, provando
despreocupação pelo artesanato. (...) Os elementos de perfeição técnica, os
encantos da beleza formal estão muito abandonados. O verso-livre é correto
mas
monótono, cortado exclusivamente pelas pausas das frases e das idéias. (...)
O ritmo
115
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
116
Poesias. 1925-1955. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
61
é bastante pobre, principalmente porque, pela altura do diapasão em que está, o
poeta lhe deu um movimento muito uniforme, sempre pido. Quem ler ou disser
lentamente qualquer poesia do livro, lhe destruirá o caráter. Às vezes mesmo uma
velocidade irrespirável. As frases não expiram: acabam. Mas novas frases lhes
sucedem, montando umas nas outras, galopada tumultuária envolta numa polvadeira
de gritos, imprecações,
apóstrofes. E o movimento toma a contextura de um pranto
convulsivo. Tudo isso é belo, vigorosíssimo, mas não descansos, não pousos,
isto é, não combinação. É uma criação espontânea, derivada de uma fatalidade
psicológica, e não de uma intenção artística.
118
A apreciação de Mário tornou-se uma espécie de paradigma para outras
abordagens da poesia de Murilo, lembrada pelo próprio poeta em carta a Haroldo de
Campos de 2 de maio de 1963:
(...) Certo é que manifestava-lhe minha satisfação pelo fato de um poeta do
seu valor e da sua cultura reconhecer no autor de T.E. domínio estílístico, quando
quase toda a crítica negava ou duvidava do fato (com única exceção talvez do E.
Portella, que o reconheceu ao escrever sobre as Poesias 1925-1955). A maioria
apoiava-se no famoso artigo de Mário de Andrade sobre A Poesia em Pânico,
esquecendo-se (ou fingindo ignorar) que em passagens posteriores o mesmo Mário
escreveu coisas muito diversas a meu respeito. Enfim, seus artigos constituem o
reconhecimento de um trabalho sério, aprofundado, não baseado apenas em
impulsos líricos. Sou-lhe muito grato, e eu, que há 5 anos não escrevo versos, estou
tentando recomeçar.
119
O estudo referido intitula-se Murilo e o Mundo Substantivo”, originalmente
divulgado no Suplemento literário de O Estado de São Paulo em janeiro desse ano.
O crítico apresenta o livro como termo de chegada num itinerário poético
programaticamente caracterizado para demanda do mundo substantivo”.
120
A partir
dessa constatação, recolhe muitos exemplos da ocorrência das palavras concreto e
rigor e seus correlatos semânticos em Tempo espanhol, que contém a
diversificação léxica que ocorre em sua poesia anterior (de Poesia liberdade, por
117
Catálogo da exposição Murilo Mendes: acervo. Juiz de Fora: UFJF/CEMM, 1999, p. 55.
118
A poesia em pânico In O empalhador de passarinho. 4
a
ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002,
p. 53.
119
GUIMARÃES, Julio Castañón, org. Op. cit., p. 137.
120
Metalinguagem & outras metas. 4
a
ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 69.
62
exemplo) certos procedimentos metafóricos dissonantes, de tipo surreal, como é
óbvio, consomem um acervo muito maior de vocábulos imprevistos – e procura
exercer a sua imagética de planos contrastantes, táctil-visual, dentro de uma
linguagem voluntariamente reduzida”.
121
Quanto ao retorno à poesia, dava início à
coletânea Convergência, que suscitou no Brasil, na esteira das observações de
Haroldo de Campos, uma filiação de Murilo ao concretismo.
Porém, Murilo não acreditava exclusivamente no aspecto formal da poesia,
como declarou no artigo citado “A poesia e o nosso tempo”, e reiterado outras vezes:
“Sou contra a idolatria da linguagem; de resto sou contra idolatria. Não creio, repito,
no artesanato literário como fim: é precisamente uma técnica de comunicação.”
122
As tensões entre tradição e modernidade, humanismo e formalismo, na obra
de Murilo, tamm eram comuns à poesia espanhola. Neste capítulo, estudaremos a
relação do poeta brasileiro com duas gerações de poetas espanhóis: os da
consagrada Geração de 27, especificamente Vicente Aleixadre, maso Alonso,
Jorge Guillén e Rafael Alberti; e os jovens poetas da segunda metade do século XX,
Ángel Crespo e Gabino-Alejandro Carriedo.
1. Entre os “mestres do passado” e do presente
Entre 1957 e 1959, Murilo estabeleceu amizade, que prosseguiria até o ano
da sua morte, em 1975, com os principais nomes da Geração de 27, que por sua
vez estão entre os da lírica espanhola do século XX. Com idades próximas
123
, no
final da década de 50 o brasileiro e os espanhóis eram poetas maduros, que
haviam começado a escrever nos efervescentes anos 20: Guillén, depois da edição
definitiva de Cántico (1950), iniciava um novo ciclo poético, Clamor. Tiempo de
historia, pelo volume Maremagnum (1957); Aleixandre com Historia del corazón
(1954), inaugurava um segundo período de sua obra; Dámaso Alonso, em meio a
seus densos estudos literários, publicava Hombre y Dios (1955); e Alberti, do seu
exílio na Argentina, cantava a nostalgia em Balada y canciones del Para(1954).
121
Idem, ibidem, p. 70.
122
Catálogo da exposição Murilo Mendes: acervo. Op. cit., p. 55.
123
Guillén era o mais velho, nascido em 1893, enquanto Aleixandre e Alonso em 1898, Murilo em
1901 e Alberti em 1902.
63
Tempo espanhol, por sua vez, figurava nas estantes de Guillén e Alberti
124
, teve dois
poemas traduzidos por Dámaso em 1962
125
e recebeu um comentário elogioso de
Aleixandre: “...Usted levanta un verdadero monumento a esta tierra que se puede
decir que Ud. conoce y ama como pocos.”
126
Murilo avaliava esses poetas, da mesma forma que o conjunto da literatura
espanhola, como resultado da fusão de contrastes:
(...) consolidou-se sob um duplo signo cultural muito expressivo: o retorno a
Góngora, poeta erudito por excelência; a redescoberta do “Romancero” e dos
“Cancioneros” populares espanhóis. A nota erudita e a popular serão, pois,
constantes dessa geração comparada por Dámaso Alonso à do Século de Ouro.
Aqueles poetas fundiram na sua obra as duas grandes correntes da literatura
espanhola: a castelhana e a andaluza. Representam as duas faces da Espanha, a
stica e a terrena, ou por outra, a abstrata e a concreta. (PCP, 1224)
Juntamente com o romancero, Murilo também se entusiasmou com Góngora,
tornando-se para ele uma grande referência na literatura espanhola em relação ao
fazer poético: inseriu dois poemas Arco de Góngora” e “Lida de Góngora” em
Tempo espanhol, além de ter realizado uma leitura atenta da obra do poeta e sobre
ele.
127
Em 1927, ano do terceiro centenário de morte de Luís de ngora, o grupo
de poetas que seria denominado por essa data reuniu-se para resgatar a obra do
poeta do século XVII em conferências, edições e poemas, alçando-o à condição de
“precursor” de uma modernidade literária, fundada na metáfora. A poesia espanhola
buscava sua renovação proclamando, segundo os princípios da poesia pura, o valor
absoluto da imagem e do artesanato poético. Nesse sentido, Murilo anotou
amplamente a importante conferência de Lorca, “La imagen poética de Don Luís de
Góngora”:
124
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
125
V. Anexos, Traduções de poemas de Murilo Mendes na Espanha.
126
Espaço espanhol (PCP, 1132).
127
Conservam-se na biblioteca de Murilo três obras de Góngora que provavelmente foram
consultadas na época de realização de Tempo espanhol: Poemas y sonetos (Buenos Aires: Editorial
S.A., 1939), Romances y letrillas (Buenos Aires: Editorial Losada, 1939) e Las soledades (3
a
ed.
Madri: Sociedad de Estudios y Publicaciones, 1956).
64
(...) Se dio cuenta de la fugacidad del sentimiento humano, de lo débiles que
son las expresiones espontáneas que sólo conmueven en algunos momentos, y
quiso que la belleza de su obra radicara en la metáfora limpia de realidades que
mueren, metáfora dura, con espíritu escultórico y situada en un ambiente
extraatmosférico.
Porque él amaba la belleza objetiva, la belleza pura e inútil, exenta de
congojas comunicables.
Mientras que todos piden pan, él pide el hombro pórfido de cada día. Sin
sentido de la realidad real pero dueño absoluto de su realidad poética.
128
Tais discussões talvez tivessem chegado a Prudente de Moraes, neto, que ao
resenhar o livro de estréia de Murilo, Poemas, em 1931, acrescenta entre outras
“aproximações imprevistas”, “o nome de D. Luis de Góngora, pois esqueceu-se de
citar, entre os característicos da poesia do Sr. Murilo Mendes o uso intensivo da
metáfora.”
129
O fato é que já desde o começo de sua obra o nome do poeta
brasileiro era relacionado à literatura espanhola.
Os Estudios y ensayos gongorinos, de Dámaso Alonso, o grande especialista
em Góngora que saiu da Geração de 27, tiveram várias passagens destacadas e /
ou sublinhadas por Murilo. Dámaso define o conceito de metáfora em ngora ao
gosto moderno, pela aproximação de um plano “real e irreal”: “Lo que es peculiar de
la poesía de Góngora es o el esquivamiento completo de la realidad, o, más
frecuentemente n, el entrecruzamiento de los dos planos.”
130
Em “Lida de
Góngora” representa-se esse encontro como uma movimentada batalha:
Furiosos metais, garras alternativas,
Tuas imagens concretas enfrentando
As harpias subterrâneas, vencem
Toda oposição entre os contrastes surdos
Do espaço linear e do tempo ondulado.
128
LORCA, Federico Garcia. Poeta en Nueva York. Conferencias. Prosas póstumas. Buenos Aires:
Editorial Losada, 1942, p. 92.
129
MASSI, Augusto. Militante bissexto: o crítico Pudente de Moraes, neto. Tese de Doutorado.
FFLCH – USP, 2004, p. 72.
130
ALONSO,maso. Op. cit., p. 42.
65
Inversamente o grito vertical da ode
Convoca o vocabulário que se aduna
Em torno da metáfora, espada fértil:
Rompe a obscuridade em mil pedaços. (PCP, 594-595)
Mesmo depois de publicado Tempo espanhol, Góngora continuava a fascinar
Murilo como verificamos nas anotações aos dois volumes de Góngora y el Polifemo,
mais uma obra de Dámaso em quarta edição de 1961
131
, e principalmente no ensaio
“Lenguaje poético: Góngora”, incluído em Lenguaje y poesía (1962), de Guillén.
132
Além de tê-lo escolhido para sua tese de doutorado em 1924
133
, o autor de Cántico,
para reforçar o caráter construtivo e visual da poesia de Góngora, vale-se de
aproximações com a arquitetura e as artes plásticas: “Más que ninguno de sus
contemporáneos españoles, quizá europeos, Góngora confiere a su poesía
calidades de pintura, de escultura; tal vez la arquitectura sea el arte que aspire a
emular. Lo extraño sería denunciar algún verso incoloro.”
134
Murilo observou também
a associação entre a poesia de Góngora e os ofícios de arquiteto e de escultor, ao
assinalar os poemas fúnebres que os representam, como “En la muerte de dos
señoras mozas, hermanas, naturales de rdoba”, cujos dois versos iniciais trazem
“Sobre dos urnas de cristal labradas,/ de vidrio en pedestales sostenidos,”
135
, e “De
la capilla de nuestra señora del Sagrario, de la Santa Iglesia de Toledo, entierro del
cardenal Sandoval”, cujos dois primeiros quartetos descrevem a materialidade da
urna:
Esta que admiras fábrica, esta prima
pompa de la esculptura, oh caminante,
en pórfidos rebeldes al diamante,
en metales mordidos de la lima,
tierra sella que tierra nunca oprima;
131
Em cartão postal de 18 de abril de 1961, Murilo lembra a maso a promessa do envio da obra
(Arquivo Dámaso Alonso – Real Academia Española – Madri).
132
Em carta de 16 de maio de 1962 a Guillén, ao agradecer o envio de Lenguaje y poesía, Murilo
destaca o ensaio a respeito de Góngora como “o resumo de tudo o que se escreveu de melhor sobre
o grande cordobês” (Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional – Madri).
133
V. GUILLÉN, Jorge. Notas para una edición comentada de Góngora. Edição de Antonio Piedra e
Juan Bravo. Valladolid: Fundación Jorge Guillén/ Universidad de Castilha-La Mancha, 2002.
134 Fragmento destacado por Murilo. GUILLÉN, Jorge. Lenguaje y poesía. Madri: Revista de
Occidente, p. 69.
135
Versos sublinhados por Murilo. GÓNGORA, Luis de. Poemas y sonetos. Op. cit., p. 11.
66
si ignoras cuya, el pie enfrena ignorante,
y esa inscripción consulta, que elegante
informa bronces, mármoles anima.
136
Os comentários e poemas repercutiram provavelmente no poema Arco de
Góngora”:
(...)
Mulheres que trazeis
A lua e o sol no corpo
Sustentado por duas colunas
De pórfiro e granito,
Também colunas do templo de Córdova:
Formastes Góngora.
(...)
Arquitetura e música deram a Góngora
O sentido da ordenação plástica do verso (PCP, 594)
1.1. Rafael Alberti
O registro mais antigo de contato entre Murilo Mendes e Rafael Alberti
remonta a 25 de maio de 1957, data da dedicatória em exemplar de Office Humain,
tradução de poemas de Murilo ao francês desse ano.
137
Enquanto Murilo acabara de
fixar residência em Roma, Alberti somente o faria em 1963, permanecendo até 1977,
quando retornaria à Espanha depois de seu longo exílio. Vizinhos Murilo morava
na via del Consolato, e Alberti, na via Moserrato freqüentavam-se em suas casas e
nas ruas: (...) encontramo-nos vez por outra no bairro, fazemos um passeio a
quatro, incluindo Saudade.”
138
Por esse motivo não praticaram uma correspondência
mais extensa, restando apenas uma carta de Alberti a Murilo de 16 de fevereiro,
quando o espanhol estava na Côte d’Azur com Picasso, e a resposta de Murilo em
136
Idem, ibidem, p. 64.
137
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
138
Retratos-relâmpago. 1
a
série (PCP, 1222).
67
26 de fevereiro.
139
A convivência entre os dois pode ser vista na comemoração do
aniversário de Alberti na casa de Murilo em fevereiro de 1974, seqüência do
documentário Murilo Mendes: a poesia em pânico (1977), dirigido por Alexandre
Eulalio. Na ocasião, o poeta brasileiro mostrou ao aniversariante um poema que
escrevera em sua homenagem. O poeta andaluz fez-lhe um pedido: “¿Por qué no
lees en alta voz? ¡Es muy bonito!” E Murilo acabou por recitar pausadamente:
“Rafael Alberti sim/ aquele el matador/ Mata às vezes por ódio sempre por amor/
Trajando luzes/ maneja a espada no ar/ Nem sempre veste o touro/ e veste sempre
o mar/ Sendo o mar em espanhol/ tamm la mar traduzo/ Rafael pratica sempre a
mar.”
140
Além de Office Humain e Tempo espanhol, Alberti contava em sua biblioteca
com as edições italianas da poesia de Murilo, organizadas e traduzidas por Ruggero
Jacobbi: Murilo Mendes (1961), Le metamorfosi (1964) e Poesia libertá (1971).
141
nas estantes de Murilo, conservam-se, amplamente anotados, dois exemplares da
obra albertiana: Entre el clavel y la espada (1939-1940) (Buenos Aires: Losada,
1941) e Pleamar (1942-1944) (Buenos Aires: Losada, 1944), ambos sem
dedicatória, o que levanta a hipótese de uma leitura anterior a 1957, quando Alberti
e Murilo se conheceram. Porém, Murilo não se limitou as duas coletâneas, pelo que
depreendemos do retrato-relâmpago escrito sobre Alberti para a 1
a
série de 1973.
Entre vários livros, destacou Sobre los ángeles, um poema que segundo Oreste
Macrí constitui o texto maior do puro surrealismo espanhol” (PCP, 1225). No
entanto, de outro hispanista italiano, Vittorio Bodini, destacou uma carta de Alberti de
7 de setembro de 1959, ao autor de Os poetas surrealistas espanhóis: “Yo nunca me
he considerado un superrealista puro”
142
.
Na mesma obra, sublinhou a afirmação de que Alberti “é o único poeta
marxista da Geração”
143
, pois valorizava o compromisso político na poesia dele,
marcante na década de 30
144
:
139
V. Anexos, Correspondência de João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes com escritores
espanhóis.
140
O poema, ao que se sabe, não teve nenhuma publicação. Por isso, o transcrevemos com uma
marcação dos versos a partir da declamação do próprio Murilo.
141
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
142
BODINI, Vittorio. I poeti surrealisti spagnoli. Torino: Einaudi, 1963.
143
Idem, ibidem, p. XLV.
144
V. Capítulo 1.
68
(...) Rafael, o mais politizado dentre os poetas da sua geração, empenhou-se
a fundo no drama do seu país. Lírico e revoluciorio, encontra na paixão potica um
motivo de vida criadora: fustiga os imperialistas que tentam frear a marcha do
mundo, precipitá-lo na guerra, soltar a bomba atômica. Dirige-se por exemplo à
América do Norte: “Tu diplomacia del horror quisiera/ la intervención armada hasta
en los astros.” (...) E Rafael põe no ódio às coisas negativas a mesma foa de
paixão andaluza que revela no amor às coisas positivas: “Época es de morder a
dentelladas”, diz num verso enérgico de alto poder polêmico. (PCP, 1223)
Os versos, ainda atuais, pertencem a Yo también canto a América”, de 13
bandas y 48 estrellas (1936). Murilo compartilhou com Alberti o combate à ditadura
franquista inclusive na dedicatória do livro Le metamorfosi: “Viva o amor a
liberdade a poesia. Viva a Espanha livre. Abaixo o processo de Burgos, abaixo os
netos dos inquisidores, falsos cristãos. VIVA A LIBERDADE! Roma. 16. 12.
1970.”
145
Refere-se ao Conselho de Guerra que se reuniu na cidade de Burgos
nesse ano para julgar a execução de seis membros do grupo separatista do País
Basco, o ETA, que provocou uma reação internacional. Alberti não ficou indiferente,
escrevendo o poema “Condena”, segundo ele próprio, nunca havia se sentido tão
orgulhoso de ser um poeta comprometido.
146
Mas tamm Murilo refletira sobre o alcance político da poesia. Em 1935
lembrara um juízo de Mário Pedrosa, para quem História do Brasil seria “um dos
poucos livros nossos em que se afirma forte simpatia pelos oprimidos”.
147
História
em versos que, a partir do exemplo do Pau-brasil de Oswald de Andrade, subverte a
oficial dos grandes heróis e feitos, chegando às primeiras décadas do século XX e
seus conflitos nos sertões esquecidos: a Guerra de Canudos (“Milagre de Antônio
Conselheiro”), a Coluna Prestes (“Marcha da Coluna”) e o cangaço de Lampião
(“Fuga”). Mais do que mero prosseguimento da vertente satírica do Modernismo dos
anos 20, a História do Brasil de Murilo, ao abarcar o tempo presente, sintonizou-se
145
Fundación Rafael Alberti – Puerto de Santa María – Cádiz.
146
V. ALBERTI, Rafael. La arboleda perdida. v. 2. Tercero y cuarto libros (1931-1987). Madri:
Alianza Editorial, 2002, p. 245-246. Guillén também se manifestou sobre o caso no poema
Guirnalda civil (Cambridge: Halty Ferguson, 1970), enviando um exemplar a Murilo, que lhe
agradeceu em carta de 1 de janeiro de 1971: “Obrigado por seu admivel Guirnalda civil, vinda no
momento exato: o momento do incrível processo de Burgos. Que nos fez sofrer muito e nos tem
provocado muitas insônias. Uma vez mais a palavra de um grande poeta nos conforta em meio a
tantas injustiças e crueldades.” (Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional – Madri).
147
MENDES, Murilo. “A poesia e os confusionistas”. Boletim de Ariel. a. 5, n. 3, Rio de Janeiro, dez.
1935, p. 63.
69
com a afirmação das posições políticas e das questões sociais da década de 30,
podendo ser considerada uma transição do “projeto estético” para o “projeto
ideológico”, segundo a pertinente distinção de João Luis Lafetá.
148
Em um contexto em que se fazia necessário denunciar e expor, ganham força
na literatura brasileira o romance regionalista e os ensaios históricos e sociológicos.
A poesia, embora se afirmassem suas principais vozes modernas, vinha sendo
questionada em relação ao seu compromisso político. Para completar o quadro de
dissidências, no caso de Murilo, após a morte de Ismael Nery, em 1934, voltou-se
intensamente ao catolicismo, disseminado nas obras do período: os poemas de
Tempo e eternidade (1935) e A poesia em pânico (1937), e a prosa de O sinal de
Deus (1936). No entanto, ele não fugiu às discussões, defendendo seu ponto-de-
vista em periódicos como Boletim de Ariel e Dom Casmurro. Quando da publicação
de Calunga (1935), experiência de Jorge de Lima no romance regionalista,
aproveitou a oportunidade para defender a face social da poesia religiosa:
A confusão em torno da literatura “proletária” aumenta dia a dia no Brasil,
embora Trotski, Rosa Luxemburgo e outros tivessem posto os pontos nos ii. Esta
chegou mesmo a escrever que o fim da arte é comover a alma humana, qualquer
que seja a posição política do artista. É claro que não existe arte desinteressada, o
que varia são os alvos do interesse. Nada mais interessado do que, por exemplo, a
poesia religiosa, a poesia que converge para Deus; pois que Deus é o supremo
interesse.
149
Reage às declarações como a de Manuel Bandeira sobre a impotência da
poesia frente à questão social, não compreendendo as duas como inconciliáveis:
(...) É preciso tomar a sério a questão social. Isto não impede de tomar
também a sério a poesia. A poesia não poderá acabar enquanto houver um alento de
vida no mundo. A poesia não pode ser interrompida porque existe a questão social.
Isto é para os trouxas. Quanto a mim acho formidável ser poeta; sei que a poesia é
eterna, definitiva, inexpugnável, - e que todos os políticos, economistas,
“simpatizantes”, críticos, editores e ensaístas não prevalecerão contra ela.
150
148
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
149
“Calunga”. Boleteim de Ariel. a. 4, n. 11, Rio de Janeiro, ago. 1935, p. 291.
70
Mas os tempos tornaram-se mais sombrios. O drama da Guerra Civil
Espanhola entrava no horizonte das preocupações de Murilo, assinando juntamente
com José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Caio Prado Junior, entre outros, o
manifesto “Os intelectuais brasileiros e a democracia espanhola”, enviado à
Espanha e divulgado em setembro de 1937 em Dom Casmurro.
151
A exemplo de
outros poetas brasileiros
152
, expressou sua indignação pelo assassinato de Lorca no
“Poema do espanhol”, publicado em Mundo enigma (1942).
Em As metamorfoses, Mundo enigma e principalmente Poesia liberdade,
Murilo transfigura os horrores da Segunda Guerra Mundial em desconcertantes
imagens. Essas obras, compostas entre 1938 a 1945, relacionam-se com Entre el
clavel y la espada dedicada a Pablo Neruda e Plemar, elaboradas também
nesse conturbado momento. Em seu exemplar de Entre el clavel y la espada,
assinalou o prólogo intitulado “De ayer para hoy”:
Hincado entre los dos vivimos: de un lado, un seco olor
a sangre pisoteada; de otro, un aroma a jardines a
amanecer diario, a vida fresca, fuerte, inexpugnable.
Pero para la rosa o el clavel hoy cantan pájaros más
duros, y sobre dos amantes embebidos puede bajar la
muerte silbadora desde esas mismas nubes en que soña-
ran verse viajando, vapor de espuma por la espuma.
153
O “cravo” e a espada” representam, respectivamente, a poesia pura e a
poesia comprometida, confronto que a poesia de Alberti e a espanhola enfrentaram
nas décadas de 20 e 30. O poeta, na nova fase de sua obra, propõe que as duas
tendências não sejam excludentes, mas que possam alternar-se, conviver. Essa
postura “dualista” convinha mais à poética de Murilo.
Ainda sobre uma poesia social, em 1953, Murilo recebeu o Romanceiro da
Inconfidência de Cecília Meireles como um exemplo de “alta categoria” de poesia
social:
150
“Manuel Bandeira cai no conto do vigário”. Boletim de Ariel. a. 5, n. 2, nov. 1935, p. 38.
151
“Nós intelectuais brasileiros, patriotas e democratas, fiéis a nossa própria consciência, não
podemos silenciar mais ante o que se passa nas terras desgraçadas da Espanha.// Esta nossa
atitude tem apenas o sentido de uma pura demonstração de amor à liberdade e à cultura, tão
ameaçadas pelas hordas do fascismo internacional, no país que deu ao patrimônio da humanidade
figuras como Goya e Cervantes.” (Dom Casmurro. a. 1, n. 17, Rio de Janeiro, 2 de setembro de
1937).
152
“A Federico Garcia Lorca” de Carlos Drummond de Andrade em Novos poemas (1948). V.
CARVALHO, Ricardo Souza de. Nocias de Lorca por Drummond. Cd-rom Congresso Internacional
O mundo, vasto mundo de Drummond – 14 a 16 de maio de 2002 – UFRJ.
71
(...) A poesia social sempre me seduziu. De resto, tentei-a várias vezes. O
que desaprovo é a poesia tipo manifesto e programação política, cumprindo
desajeitadamente um papel que antes compete ao artigo de jornal e à literatura de
comício à prosa, enfim. Na mesma ordem de idéias um certo tipo de pintura social
que retira o poeta do seu pequeno mundo ambiente, e cortando o cordão umbilical
do egoísmo e do individualismo, abre-lhe perspectivas muito mais vastas, dentro da
dimensão histórica ou do mito, esta me parece ser o caminho mais fecundo e com
maiores possibilidades de futuro.
154
A poesia “tipo manifesto e programação política” fora experimentada algumas
vezes por Alberti na década de 30. Quanto a Murilo, seus poemas comprometidos
mais acabados apareceram justamente em Tempo espanhol, enfrentando totalmente
a “dimensão histórica”
155
: “O chofer de Barcelona”, “O padre cego” e o que encerra a
coletânea, O Cristo subterrâneo”. No primeiro, o eu lírico deixa falar a “palavra
ácida” do taxista, plena de inconformismo e revolta:
Não temos mais solução.
Cada dia nos embromam
Com discursos, fiestas, fiestas,
Corridas e procissões.
Falta o pão, falta o trabalho,
A escola não dá pra todos.
Espero em vão há sete anos
Rever meus pais em Oviedo. (PCP, 615-616)
Murilo tomou conhecimento da poesia espanhola mais recente de caráter
social, nas antologias de José Luis Cano
156
e de José Maria Castellet.
157
No prefácio
de Castellet, assinalou uma citação do artigo El poeta y las fases de la realidad”, de
Pedro Salinas: “Considero imposible que por muy fuertes que sean las murallas del
concepto individual de la poesía puedan resistir a la inmensa presión de esa
153
ALBERTI, Rafael. Entre el clavel y la espada (1939-1940). Buenos Aires: Losada, 1941, p. 15.
154
MEIRELES, Cecilia. Obra poética. Op. cit., p. 52-53.
155
V. Capítulo 6.
156
Antología de la nueva poesía española. Madri: Gredos, 1958. Na folha de rosto, indicação
manuscrita de Murilo: Murilo Mendes. Barcelona, Agosto 1958”.
157
Veinte años de poesía española. 1939-1959. Barcelona: Seix Barral, 1960. Na folha de
rosto, há indicação manuscrita de Murilo: “Murilo Mendes. Madrid, setembro 1960”.
72
obsesión política y social.”
158
Entre outros, destacou versos de Gabriel Celaya e Blas
de Otero, exemplos no prefácio de Cano de poesia desarraigada”, termos de
maso Alonso, ou seja, uma poesia não puramente estética, mas que também
abrange os problemas do homem e seu destino.
159
Estusiasmou-se, nessas
antologias, com Miguel Hernández, pois, além do poema em Tempo espanhol,
dedicou-lhe um retrato-relâmpago na 1
a
série, apresentando seu destino literário, de
comunicação com o público, como “antagônico à sua época” de formalismo:
(...) Nosso poeta formou-se sob o signo dum fato fundamental da cultura
moderna, denunciado por José Ortega y Gasset o processo de desumanização da
arte, chegado agora ao seu clímax. Nesse diagrama da cultura as noções de poeta e
poesia sofreram um deslocamento. O poeta perde contato com um público tornado
estranho aos antiqüíssimos conceitos de magia e iluminação, que se haviam
prolongado até ao simbolismo. O poema passa a ser considerado uma forma
autônoma, impessoal, construída sem intervenção do sentimento; poema
transformado agora em objeto, planificado pelo engenheiro. Termina a era dos
“vates”, homem de missão. (PCP, 1220-1221)
1.2. Vicente Aleixandre
A dedicatória em 10 de outubro de 1958 de Vicente Aleixandre em exemplar
de La destrucción o el amor
160
alude a uma “conversa em poesia e amizade” com
Murilo Mendes. Provavelmente corresponde à visita lembrada pelo brasileiro em
Espaço espanhol, na parte dedicada a Madri: “(...) Apesar da saúde frágil (vive com
um rim) parece robusto; grandão, corado. Gesticula muito; os olhos claros,
móveis, espicaçam o visitante. Entre uma copita e outra de Jerez lê-me alguns de
seus últimos textos, batendo com a mão no papel; (...)” (PCP, 1131). Não
encontramos outros registros, como dedicatórias e correspondência, que
comprovem a continuaçao da amizade inicial.
Além dos textos escutados talvez os que formariam En un vasto dominio
(1962) -, leu e anotou muito o mencionado La destrucción o el amor e o volume
158
Idem, ibidem, p. 94.
159
Antología de la nueva poesía española. Op. cit., p. 15.
160
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
73
que reúne Espadas como labios e Pasión de la tierra, este com autógrafo na folha
de rosto: “Murilo Mendes. Barcelona, Agosto 1958”. Murilo interessava-se pelo
Aleixandre “cultor da metáfora dentro da tradição gongorina renovada por ele com a
ajuda do surrealismo.” (PCP, 1131).
É justamente o surrealismo o forte ponto em comum entre Murilo e
Aleixandre. No entanto, tanto eles, quanto a crítica, descartaram uma adesão
incondicional às propostas de Breton no Manifesto surrealista, principalmente no que
se refere à escrita automática. Mário de Andrade, sobre os Poemas (1930), já o
apontava: “(...) não é um surréaliste no sentido de escola, porém me parece difícil da
gente imaginar um aproveitamento mais sedutor e convincente da lição surrealista.
Negação da inteligência superintendente, negação da inteligência seccionada em
faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas, intercâmbio de todos os
planos”.
161
Dámaso Alonso, ao comentar La destrucción o el amor (1935), investe na
mesma direção: “(...) La poesía de Aleixandre, como toda aquella parte de la
moderna que está más o menos emparentada con el surréalisme francés y su
pretendido automatismo, vuelve, por fuerza, a buscar el descansadero de una forma.
Entiéndese bien: de una forma que, repito, nada tiene que ver con la forma clásica,
sino de una forma vital, individual e individualizante, necesaria para hacer resaltar
superficialmente la profunda unidad del poema.”
162
A última frase, aliás, foi
sublinhada por Murilo em sua edição de Poetas españoles contemporáneos.
Se na literatura brasileira as experiências surrealistas muitas vezes foram
recalcadas a favor de um programa nacionalista
163
, na espanhola, a discussão
tornou-se mais complexa, pois se elaboraram obras mais vinculadas com a
161
ANDRADE, Mário de. A poesia em 1930 In Aspectos da literatura brasileira. São Paulo, Martins,
s.d., p. 42.
162
ALONSO, Damaso. La poesía de Vicente Aleixandre In Poetas españoles contemporáneos.
Madrid: Gredos, 1958, p. 303.
163
Mário de Andrade, em carta de 25 de dezembro de 1927, adverte Prudente de Moraes, neto,
contra os riscos do surrealismo em um momento de “construção” da literatura brasileira: “(...) O
sobrerrealismo é uma arte quintessenciada que me atrairia fatalmente si eu não me tivesse dado uma
função de acordo mais com a civilisação e o lugar em que vivo. Porquê incontestavelmente a
civilisação em que a gente vive no Brasil não é a mesma dos franceses o acha mesmo? (...) me
parece que não estamos naquele momento de fadiga em que esa arte francesa com seculos de
tradição organisada nacionalmente, atrás dela. (...) No Brasil acho que no momento atual, pros que
estão de deveras acomodados dentro da nossa realidade, êle não adianta nada. Não adianta porquê
não ajuda. Todas as questões que o de vida ou de morte prá organisação definitiva da realidade
brasileira (coisa que indiscutivelmente está se dando agora) nos levam pra uma arte de caracter
interessado que como todas as artes de fixação nacional pode ser essencialmente religiosa (no
sentido mais largo da palavra; fé pra união nacional, psicologia familiar social religiosa sexual).”
(KOIFMAN, Georgina, org. Cartas de Mario de Andrade a Prudente de Moraes, neto. 1924/1936. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 247-249).
74
vanguarda francesa, como Sobre los ángeles, de Alberti, e Poeta en Nueva York, de
Lorca. Contudo, tanto Aleixandre, quanto Murilo, em mais de uma ocasião,
procuraram esclarecer suas dívidas para com o surrealismo. Segundo Aleixandre,
Pasión de la tierra, poemas em prosa escritos entre 1928 e 1929, trata-se de seu
livro, el más próximo al superrealismo, aunque, como he dicho más de una vez,
fuera de esa escuela, pues no he creído nunca en sus dogmas: la escritura
automática y la abolición de la conciencia artística.”
164
Posteriormente, no prólogo a
uma seleção de sua “poesía superrealista”, provoca: ¿Pero hubo en este sentido,
alguna vez, un verdadero poeta superrealista?”
165
Murilo tamm questiona os
limites da estética surrealista: “Claro que pude escapar da ortodoxia. Quem, de
resto, conseguiria ser surrealista em regime de full time? Nem o próprio Breton.”
(PCP, 1238).
Além do contato com o surrealismo, que remontava às décadas de 20 e 30,
Aleixandre e Murilo, naquele final dos anos 50, coincidiam na busca de uma poética
mais depurada. Sobre Historia del corazón, o próprio Aleixadre acreditava
representar “una nueva etapa y una renovación en la técnica. En el estilo, una
desnudez máxima en el proceso de aclaración expresiva.”
166
Como o Murilo no
artigo “A poesia e o nosso tempo”, Aleixandre vinha chamando a atenção para a
necessidade da comunicação em lugar de uma estrita preocupação formal: “La
comunicación que la poesía in actu establece entre los hombres, entre otras cosas,
prueba conmovedoramente lo ridículo de las ‘torres de marfil’. Por no decir su
inmoralidad.”
167
; “La forma, en poesía, no es cárcel ni ornamento; es sencillamente
la justa y coloreada apariencia visible.”
168
1.3. Dámaso Alonso
O primeiro contato entre Murilo e Dámaso Alonso data de 10 de outubro de
1958, de acordo com a dedicatória a um exemplar de Antología crítica (1956) que
164
“Apuntes para una autobiografía” In Prosa. Edição de Alejandro Duque Amusco. Madri: Espasa
Calpe, 1998, p. 330.
165
Poesía superrealista. Antología. Barcelona: Barral, 1971, p. 7.
166
“Cinco preguntas en cinco minutosIn Prosa. Op. cit., p. 292.
167
Idem, ibidem, p. 399.
168
Idem, ibidem, p. 403.
75
registra “la compañía poética y la amistad naciente - y esperemos que larga”.
169
Entre encontros e desencontros em Madri e Roma, os dois poetas mantiveram uma
pequena correspondência de 19 de março de 1959 a 19 de setembro de 1969.
170
Ao
relembrar um deles, na parte “Madri” de Espaço espanhol aliás, dedicado à
maso e Guillén como “Grandes de Espanha” deixou traços peculiares do amigo:
“Os óculos dançam-lhe no rosto; quase descem até o queixo; a cabeça não pára.
Tem eletricidade até no bigode.” (PCP, 1131).
Na biblioteca de Murilo, avulta mais o crítico do que o poeta, pois foi como
crítico que Dámaso afirmou-se em sua geração: 7 volumes contra um exemplar de
Hijos de la ira, na segunda edição de 1946. Antes dessa coletânea decisiva,
publicara Poemas puros. Poemillas de la ciudad (1921), El viento y el verso (1925) e
Oscura noticia (1944).
Denominando-o de “crítico-poeta”, Murilo não deixou em segundo plano a
poesia: “(...) A mole da sua obra crítica parece ter obscurecido diante do leitor
estrangeiro a do poeta. Mas na Espanha até mesmo os novíssimos admiram seus
livros de poesia, inseridos na grande geração de 1927; resultantes da fértil aliança
entre tradição e modernidade fluyendo como la leche la ubre caliente de una gran
vaca amarilla’” (PCP, 1131). Este é o 3
o
verso do poema inicial de Hijos de la ira,
“Insomnio”, que começa de forma impactante: Madrid es una ciudad de más de un
miln de cadáveres.” Em texto da cada de 60, “Poesia espanhola e realidade”,
tamm realça a importância do Dámaso poeta, cujo Hijos de la ira abria um novo
capítulo na história da poesia espanhola”:
Contudo em certos períodos abre-se um parêntese nessa grande tradição
humanístico-realista. Por exemplo a poesia espanhola deste século sofreu durante
muito tempo as vicissitudes provenientes dum estreito formalismo cujo representante
mais ilustre foi Juan Ramón Jimenez. O processo de desenvolvimento dessa fórmula
tinha chegado ao seu ponto extremo de saturação quando maso Alonso publica
em 1944 o livro Hijos de la Ira, justificando anos mais tarde sua nova posição com
estas palavras: ‘Não nada que eu aborreça mais agora do que o estéril
esteticismo em que se debateu durante mais de meio-século a arte contemporânea.
169
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
170
V. Anexos, Correspondência de João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes com escritores
espanhóis.
76
Hoje só me interessa o coração do homem. Chegar a ele segundo as oportunidades,
seja por caminhos de beleza, seja por meio de arranhões.” (PCP, 1471)
Murilo retirou o desabafo de Dámaso do texto “Una generación poética (1920-
1936)”, de seu exemplar de Poetas españoles contemporáneos, concordando com o
poeta espanhol a respeito dos impasses do formalismo em poesia.
maso também se ocupou da poesia do amigo brasileiro. Na abertura do
primeiro número da Revista de Cultura Brasileña, de junho de 1962, publicou sua
tradução de “Poemas de Murilo Mendes”. Sua nota preliminar
171
, após situá-lo na
literatura brasileira, parte para a mundial, na qual participa do “grande movimento
que descobre o valor poético do subconsciente, dos sonhos e dos impulsos
primários, representados antes de tudo pelo ‘surréalisme’ francés”. No entanto, da
mesma forma como analisou a poesia de Aleixandre, não em Murilo um
“‘seguidor’ de uma moda”. Caracteriza a poesia dele como uma “oscilação entre
elementos conceituais ligados por lógica e elementos puramente imaginativos”.
Como exemplo da primeira tendência oferece Tempo e eternidade, do qual, aliás,
não escolheu nenhum poema para sua seleção. Quanto aos “elementos puramente
imaginativos”, pólo predominante da obra muriliana, não são de mero
“amontoamento”, pois os “fragmentos que parecem inconexos se associam para
produzir a intuição total do poema na mente do leitor”. Desde a “Poética” que
escreveu para Poesía española. Antología 1915-1931, organizada por Gerardo
Diego, defendia certa organização do poema que destoava dos princípios do
surrealismo: “(...) Resuelve en palabras los elementos de su profunda conciencia,
elimina los menos significativos, los enlaza por medio de un número mayor o menor
de elementos gicos y no poéticos... (El automatismo no ha sido practicado ni aun
por sus mismos definidores).”
172
Baseado na edição de Poemas 1925-1955
173
, mencionada na nota
preliminar, selecionou 10 textos, aparte 2 de Tempo espanhol, apresentando não
apenas um panorama, mas também sugerindo um percurso poético. Os seis
primeiros, ou seja, a metade deles, de obras escritas entre 1930 e 1942, são mais
171
V. Anexos.
172
Edição fac-simil de 2002. Madri: Visor Libros, 2002, p. 219.
173
Na biblioteca de Dámaso Alonso (Real Academia Española – Madri) não consta esse livro, apenas
a tradução italiana de Giuseppe Ungaretti de Finestra del caos (1961). V. Anexos, Dedicatórias
autógrafas em livros.
77
discursivos, de versos longos, o que indica uma preferência do próprio Dámaso, na
medida em que passou a praticar versos dilatados e imagens fortes em Hijos de la
ira, distante da contenção dos Poemas puros. Poemillas de la ciudad. O longo
“Jandira” de O visionário, por exemplo, teria chamado a atenção de um Dámaso que
experimentou tamm a linguagem coloquial e a cnica narrativa em Hijos de la ira.
Além disso, não resistiu a um convulso “Poema barroco”, de Mundo enigma, já que o
qualificativo relaciona-se com seus numerosos estudos do século XVII. Os seis
poemas restantes, de obras produzidas entre 1943 a 1959, apontam para um
processo de concisão da linguagem.
1.4. Jorge Guillén
O ano de 1958, tão rico para as amizades espanholas de Murilo, registra uma
respeitosa dedicatória em exemplar de Office Humain: A Jorge Guillén, poeta
ilustre, homenagem de antiga admiração e simpatia de Murilo Mendes. Nápoles,
19.12.1958”. A “antiga admiração” pode ter surgido de uma leitura de Cántico por
intermédio de Cabral, que o havia recomendado a Bandeira já em 1947.
174
Nápoles,
por sua vez, mostra que a Itália seria o espaço privilegiado de encontro entre Murilo
e Guillén; o poeta espanhol visitou o país várias vezes, principalmente Roma e
Florença, onde se encontrava com grandes amigos, alguns comuns a Murilo.
175
Murilo manteve com Guillén a correspondência mais longa, das localizadas,
com escritores espanhóis, de 2 de março de 1959 a 20 de outubro de 1974.
176
Em
sua biblioteca, além dos ensaios de Lenguaje y poesía, existem apenas dois livros
de poemas de Guillén, A la altura de las circunstancias (1963), o terceiro volume de
Clamor, e Y otros poemas (1973). No entanto, as cartas acusam o recebimento de
outras obras: Clamor. Maremágnum (1957)
177
, Según las horas e Las tentaciones de
Antonio, ambas editadas em 1962
178
, Homenaje (1967)
179
, e Aire nuestro (1968),
reunião dos ciclos Cántico, Clamor e Homenaje.
180
174
V. Capítulo 1.
175
Sobre as relações de Guillén com a Itália, v. DOLFI, Laura, org. Cartas inéditas (1953-1983). Jorge
Guillén – Oreste Macrí. Valencia: Pre-Textos, 2004.
176
V. Anexos, Correspondência de João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes com escritores
espanhóis.
177
Carta de 2 de março de 1959 (Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional - Madri).
178
Carta de 14 de fevereiro de 1963 (Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional- Madri).
78
Em contrapartida, a obra muriliana está razoavelmente representada na
biblioteca de Guillén: Siciliana e Tempo espanhol, de 1959; as traduções italianas de
Finestra del caos (1961) por Ungaretti e da antologia de 1961 organizada por
Rugero Jacobbi; e as traduções espanholas de Poemas de Murilo Mendes (1962)
por Dámaso Alonso e de Siete poemas inéditos (1965) por Ángel Crespo e
maso.
181
Além dos livros de poesia, o ensaio "Los impulsos elementales en la poesía
de Jorge Guillén” em Poetas españoles contemporáneos, de Dámaso, esteve
presente na recepção da obra guilleniana por Murilo. Entre várias anotações,
assinalou, ao final do estudo, o objetivo do crítico de ir mais além da tradicional
percepção “intelectualista”, reconhecendo uma dimensão mais “humana”, “primitiva”:
¡
Patente, pues, evidente, el “intelectualismo” de Guillén! Patente también que
su poesía brota muchas veces de las sensaciones más elementales del hombre, de
impulsos y gozos comunes. Del Guillén exacerbador de lo intelectual, del Guillén
artista perfecto, se ha hablado bastante veces y será aún necesario que se hable
mucho más -. Pero poco o nada se había dicho del Guillén humanísimo, y casi
“animalísimo”, primario, potencializador de los instintos elementales.
182
João Cabral, outro admirador brasileiro de Guillén, como vimos, valorizava
apenas a faceta de poeta que domina seu ofício. Quanto a Murilo, interessou-se por
um poeta que encontrara uma possível solução para as tensões entre impulsos
vitais e organização formal que experimentava desde o início de sua obra, e que no
artigo A poesia e o nosso tempo”, de 1959, não entende como antagônicos: “Não
creio que a preocupação com as pesquisas da linguagem se oponha à ‘iluminação’,
não creio que o ‘fazer’ se oponha ao sentir, ao amar, ao se entusiasmar. Em outras
palavras, não creio que a afetividade possa desaparecer da poesia.” E assim resolve
o conflito: “Resumindo, pode-se dizer que a operação poética é baseada em
linguagem, afetividade e engenho construtivo.”
183
179
Carta de 3 de setembro de 1967 (Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional- Madri).
180
Carta de 22 de janeiro de 1979 (Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional- Madri).
181
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
182
Op. cit., p. 242.
183
Op. cit., p. 55.
79
A passagem do ensaio de Dámaso seria utilizada em um texto de Murilo
intitulado “Jorge Guillén”, que permaneceu inédito.
184
Segundo carta de 6 de
fevereiro de 1967 a Guillén, inicialmente fora pensado para fazer parte do livro
Figuras, primeiro nome para os Retratos-relâmpago. Anos depois, em 20 de outubro
de 1974, enviou um manuscrito de 5 folhas como “modesta homenagem,
justificando que ultrapassara os limites da obra publicada no ano anterior. Como em
vários momentos da correspondência, sintetiza a principal confluência entre as
poéticas de ambos: “Espírito dialético por inclinação e cultura, diria que reúne pontos
inconciliáveis: subjetividade e objetividade, abstrato e concreto, imanência e
transcendência.”
A concisão foi outro aspecto da obra de Guillén que agradou a Murilo,
destacada a partir da leitura de Según las horas, incluído posteriormente em
Homenaje. Em carta de fevereiro de 1963, elogia a “poesia em cápsulas, revelação
moderna do hai kai”, mencionando 9 poemas. Identifica também neles uma
“aceitação do mundo em fórmulas rápidas, lapidares, mesmo quando as envolve um
pouco de sombra. Resumo e conclusão feliz: (...)”, citando o último verso do poema
“A la recíproca” que encerra a coletânea:
Heme aquí. Desperté. Me ciñe el mundo
Con el sosiego amable que le impongo,
Sosiego tan infuso en la materia
Que impersonal irradia y se me impone.
Es grato ser objeto para el mundo.
185
Sintomaticamente, nesse 1963, Murilo deu início aos poemas de
Convergência, obra decisiva no processo de “lapidação” buscado em Tempo
espanhol. Os dois poetas tamm coincidiram na eleição de escritores e artistas
como tema para a poesia: as séries dos “Grafitos” e “Murilogramas” de
Convergência, e a série “Al margen” de Homenaje.
Mas Guillén não deixou de se manifestar em relação à poesia de Murilo. Em
sua última obra publicada, Final (1981), escolhe para epígrafe do poema “La
materia” os versos “A matéria é forte e absoluta/ Sem ela não há poesia.”, de Murilo:
184
V. Anexos.
185
Homenaje. Reunión de vidas. Edição fac-simil. Madri: Visor Libros, 2003, p. 553.
80
Poesía, espiritual conato.
Por entre las palabras y el espíritu,
Intuiciones, visiones, sentimientos,
Jamás pura abstracción. Se apoya siempre
Sobre eso que está ahí, total materia
Compacta de elementos muy concretos
Que nos salvan: rehúsan el vacío.
186
O poema integra a quarta parte da obra, Tiempo fechado” (Tempo datado),
cujos versos de abertura da seção inicial anunciam: Si bien lo dices,/ Si es justa la
expresión, nos pacifica./ Justa correspondencia:/ Realidad y palabra.”
Quanto aos versos de Murilo, corroboram a posição de Guillén, explorada
desde Cántico, de que a poesia, ainda que tente atingir uma esfera “espiritual”,
depende da “matéria” para se constituir. Assim, eles parecem ser uma divisa para o
Murilo que experimentava uma poesia a partir de um objeto”, de um “tema”, usando
os termos de Cabral na carta de 1959. No entanto, trata-se dos versos finais de
“Poema espiritual”, de A poesia em pânico, o qual também fora escolhido para a
seleção de Dámaso em 1962:
Eu me sinto um fragmento de Deus
Como sou um resto de raiz
Um pouco de água dos mares
O braço desgarrado de uma constelação.
A matéria pensa por ordem de Deus,
Transforma-se e evolui por ordem de Deus.
A matéria variada e bela
É uma das formas visíveis do invisível.
Cristo, dos filhos do homem és o perfeito.
Na Igreja há pernas, seios, ventres e cabelos
Em toda parte, até nos altares.
Há grandes forças de matéria na terra no mar e no ar
Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões dos pensamentos divinos.
A matéria é forte e absoluta
Sem ela não há poesia. (PCP, 296-297)
Talvez, no caso de Dámaso, sua experiência com uma poesia religiosa
escrevera a coletânea Hombre y Dios tivesse direcionado a escolha desse poema
e de “O fogo” de Os quatro elementos. Por outro lado, “Poema espiritual” apresenta,
186
Final. Edição de Antonio Piedra. Madri: Castalia, 1989, p. 279.
81
com a intenção de expressar crenças, os “versos inúteis”, as “banalidades
ineficazes” de que falara Mário na crítica à coletânea que mencionamos. Os versos
finais sobressaem do conjunto, sinalizando que a preocupação com o “objeto”
estaria ao longo da obra muriliana e atingiria os pontos cruciais em Tempo espanhol
e Convergência. Guillén justamente recortou” os contundentes versos que lhe
interessavam, sem a mensagem católica, pois o seu poema volta-se à “matéria”.
2. Entre os novos poetas
2.1. Ángel Crespo
Uma dedicatória em exemplar de Tempo espanhol marca o “primeiro contato
pessoal” entre Murilo e Ángel Crespo em 16 de novembro de 1960. O poeta
brasileiro de 59 anos, que escrevera praticamente toda a sua obra poética e se
enveredava pela prosa, encontrava-se com o poeta espanhol de 34 anos em plena
atividade, contando já com 8 livros de poesia
187
e 2 traduções de poesia portuguesa
publicados.
188
Apesar dessa volumosa produção, a qual se somariam novos títulos
nos anos seguintes, na biblioteca de Murilo apenas resta a seleção e prólogo de
Crespo a Algunos poemas (1966), de Eduardo Chicharro. Mas pelo menos lera
vários poemas de Crespo nas antologias citadas de Cano e Castellet. Nas estantes
de Crespo, além de Tempo espanhol, permanecem Poesias 1925-1955 (1955) e as
edições italianas que também foram enviadas a Alberti, Dámaso e Guillén: Finestra
del caos (1961), a antologia de Rugero Jaccobbi (1961) e Italianissima. 7
Murilogrammi (1965).
189
Em várias ocasiões, Crespo viajou à Itália, desenvolvendo estreitos laços com
esse país, dos quais resultaram o livro de poemas Docena florentina (1966) e as
traduções de Dante e Petrarca. Dessa maneira, tornou-se um novo espaço de
contato com Murilo, como deixou registrado em seu diário uma visita “surpresa” na
via del Consolato em 1972:
187
Primera antología de mis versos (1949), Una lengua emerge (1950), Quedan señales (1952), La
pintura (1955), Todo está vivo (1956), La cesta y el río (1954-1957) (1957), Junio feliz (1959) e Oda a
Nanda Papiri (1958).
188
Poemas de Alberto Caeiro (1957) e Pliego de poesía portuguesa (1960).
189
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
82
El día veintidós (cuando se fue Pilar, me acosté pronto y no me desperté
hasta las cinco y media de la tarde) salí a dar un paseo y, de pronto, me encontré
frente a la casa de Murilo Mendes. Decidí subir a verle. Estaban en casa la mujer y
él; eran las siete y media, iban a cenar y cenamos juntos. Le encuentro – le encontré
muy envejecido y poco ágil en su trato. Taren reponerse de la sorpresa de mi
inesperada visita: estaba torpe y como balbuciente. Cuando se hubo recuperado fue
el Murilo de siempre: simpático, ‘sofisticado’, brasílico apátrida. Muy cuidadoso de
su obra me mostró sus inéditos y su nuevo libro de Academia-Sansoni [Poesia
libertà. Edição de Ruggero Jacobbi. Milão, 1971]. Me habló con entusiasmo de
Rafael Alberti, y yo me callé. Me acuerdo ahora de esta visita porque durante estos
días todo el mundo me ha hablado de Alberti sin entusiasmo: Mario Di Pinto, Dario
Puccini, José Gotory y algunos más.”
190
Conservam-se apenas duas cartas de Murilo a Crespo, de 14 de julho de
1968 e 5 de julho de 1970, período em que o espanhol mudou-se para Porto Rico
como professor do Recinto Universitário de Mayagüez. Na carta de 1970, comenta
que guardava todos os números da Revista de Cultura Brasileña, “bom instrumento
de trabalho”. Vale lembrar que ele próprio ocupou as primeiras páginas do número
inaugural de 1962 na tradução de Dámaso. Ao atingir o 30
o
, em março de 1970,
Crespo renunciara à direção da revista.
Ao longo desses nove anos, a Revista de Cultura Brasileña tornou-se um
veículo fundamental para que Murilo, distante do Brasil, refletisse sobre as
experiências mais recentes de sua poesia e a do seu país. Crespo preocupava-se
em atualizar o público espanhol a partir da produção brasileira:
(...) Sin olvidar la historia ni los principales aspectos de la rica y contradictoria
actualidad literaria del Brasil, di un lugar destacado en las páginas de aquella
publicación a las corrientes de carácter experimental porque pensaba que, siendo
como eran internacionales, es decir, muy relacionadas con las de otros países,
merecía la pena informar sobre ellas a los lectores españoles. Es que continuábamos
teniendo un arte de vanguardia y, paradójicamente, una literatura bastante
conservadora.
191
190
CRESPO, Ángel. Los trabajos del espíritu. Diarios (1971-1972/ 1978-1979). Edição de Pilar
Gómez Bedate. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999, p. 94-95.
191
Mis caminos convergentes In Ángel Crespo. Con el tiempo, contra el tiempo. Antonio Piedra e
Carlos Martín Aires, coord. Fundación Jorge Guillén et alli, 2005, p. 36.
83
Além da proliferação da vertente social
192
, os novos nomes da poesia
espanhola na década de 60 Ángel González, JoMaría Valverde, José Ángel
Valente, Francisco Brines, Jaime Gil de Biedma, Claudio Rodriguez, entre outros
mantinham-se distantes das vanguardas, constituindo diccções próprias e variadas.
A tendência concretista, por exemplo, apenas vingaria na década seguinte.
Por isso, Crespo dedicou uma série de longos ensaios, bem documentados,
sobre o concretismo, a poesia práxis e outros grupos. O primeiro deles, “Situación
de la poesía concreta”, escrito por ele e Pilar Gómez Bedate, saiu no número 5 de
junho de 1963, justamente quando Murilo retomava a poesia estimulado pelas
palavras de Haroldo de Campos em relação a Tempo espanhol. Depois de
detalharem as principais características e representantes, concluem que o
movimento foi benéfico à poesia brasileira na medida em que houve o abandono da
“exuberância verbal e de um subjetivismo de estirpe romântica”.
193
João Cabral é
citado mais de uma vez como um dos mais importantes antecessores. Entre os
poemas reproduzidos, aparece o Topogramas”, de Haroldo de Campos, escrito em
espanhol:
1 2 3
sevilla córdoba granada
naranja color torre
sol olor león
sol olor granada
amarillo córdoba torreda
naranja color torre
amarilla córdoba leonada
amarillo córdoba león
amarillo córdoba granada
sevilla dolor granada
amarilla córdoba granada
Como Cabral e Murilo, também Haroldo foi marcado pela “acerada têmpera
espanhola”
194
, mas levando às últimas conseqüências o processo de substantivação
192
V. Capítulo 1.
193
Revista de Cultura Brasileña. n. 5, Madri, jun. 1963, p. 127.
194
Termos do próprio Haroldo de Campos para aproximar a poesia de Cabral e Murilo (“Murilo e o
mundo substantivo”. Op. cit., p. 71)
84
da poética de ambos; basta cotejarmos essa série com os três poemas dedicados às
cidades andaluzas em Tempo espanhol.
Em mero extraordinário de dezembro de 1964, Crespo e Pilar divulgaram
uma série de depoimentos de escritores e críticos brasileiros a respeito da literatura
de vanguarda. No texto introdutório, Planteamiento de una encuesta sobre la
literatura brasileña de vanguardia”, explicam que a literatura na Europa e na América
mais especificamente no Brasil vivem tempos históricos diferentes: enquanto os
europeus, depois dos experimentos de vanguarda, voltam-se ao “realismo”, os
brasileiros iniciam as experimentações. Mesmo não dispondo de tempo para
responder longamente, Murilo enviou uma sintética carta em 23 de julho desse ano,
publicada em espanhol no periódico.
195
Reconhece que todas as formas e
expressões de literatura de vanguarda devem ser estimuladas e reconhecidas”, e
que a poesia concreta, a poesia-praxis, apresentaram, tanto na parte teórica,
quanto na parte prática, documentos de primeira ordem.” Ainda de acordo com o
poeta, naquele momento, a vanguarda era uma tradição que não deveria ser
contrária à tradição, mas sim ao academicismo.
196
Deve-se notar que Murilo mostrou-se atento ao concretismo, procurando
acompanhá-lo. Por ocasião do V Sao de Arte Moderna, em 1956, ao comentar os
concretistas expostos, chega à literatura:
“Devo dizer que o concretismo ainda não me conquistou totalmente, pois
acho fria toda obra de arte desligada de conteúdo afetivo. (...) Eles procuram uma
linguagem plástica nova, assim como os músicos que pesquisam relações de som
baseadas na escritura atonal, ou como os poetas que buscam a representação da
poesia fora ou além do sistema de ordenação da palavra que prevaleceu até agora,
dentro duma tradição de lógica e rigor. (Também os poetas de hoje poderiam ser
divididos em figurativos, abstracionistas e concretistas).”
197
Ainda sob o efeito de Tempo espanhol, perguntavam a Murilo se ele sentia-se
“influenciado” pelo concretismo. Assim como ele mesmo afirmava que o era um
surrealista, negava uma adesão ao grupo, embora concordasse com a “crise da
195
V. Anexos.
196
Revista de Cultura Brasileña. n. 11, Madri, dez. 1964, p. 356.
197
“V Salão Nacional de Arte Moderna: Pintura- I” In GUIMARÃES, Julio Castaón. Op. cit., p. 79.
85
poesia, por esgotamento dos esquemas”.
198
Talvez essa constatação justifique a sua
opção pela prosa, chegando a produzir 8 livros entre 1965 e 1974. No entanto, não
se pode esquecer o contato que estabeleceu com os principais nomes e veículos do
movimento, a começar por Haroldo de Campos.
199
Voltando à Revista de Cultura Brasileña, no número 12 de março de 1965,
Crespo, juntamente com maso, publicaram sete poemas inéditos de Murilo, no
original em português e na tradução em espanhol. Com exceção de um poema de
1959 e um de 1961, o restante data de 1963, ano decisivo para a última produção
poética de Murilo.
Na nota preliminar
200
, os dois poetas espanhóis defendem que o contato com
a realidade espanhola”, expresso em Tempo espanhol, resultou em um “desejo de
concreção, de sobriedade expressiva, de plasticidade não isenta de inquietudes
metafísicas”. Em consonância com uma tradição crítica que separa a obra muriliana
em dois momentos formais distintos, afirmam que o surrealismo dos primeiros livros
e o “barroquismo” de Contemplação de Ouro Preto cedem lugar, nesses poemas, a
uma “sobriedade expressiva e o rigor de construção”.
Cinco poemas versam sobre artistas italianos, evidência do “tempo italiano”
que Murilo experimentava. São apresentados murilogramas” e “grafitos” que
formariam seções de Convergência.
201
Crespo retomou o momento final da poesia de Murilo em nota bibliográfica,
estampada no número 16 de março de 1966, sobre Italianissima. 7 Murilogrammi,
em edição de Strenna per gli Amici, de Milão.
202
Menciona que o pequeno volume
faz parte de Contacto, um dos nomes do livro que seria publicado em 1970. Insere
os poemas nos movimentos de vanguarda aos quais vinha se dedicando, concluindo
que sua “intensa corrente humanista” poderia lhes trazer benefícios. Assim como o
próprio Murilo, não reconhece apenas o aspecto formal. Não escapa, porém, à
comparação com as obras anteriores: “(...) a matéria poética, que em outros livros
deste autor permanecia em certo estado de fluidez, se ordena nela de acordo com
cânones abertos no sentido em que é aberto um ideograma (...)”. Crespo integrou
198
Entrevista de 1961 (Idem, ibidem, p. 116).
199
Além da carta citada de 2 de maio de 1963, v. a de julho de 1967 (Idem, ibidem, p. 137-138).
200
V. Anexos.
201
Com algumas alterações no título e no poema, passaram a figurar em Convergência: “Murilograma
a Clara Rocha”, “Murilograma a Guido Cavalcanti”, “Grafito para Giuseppe Capogrossi”, “Grafito para
Borromini” e “Murilograma a Claudio Monteverdi”. “Murilograma a Carla Accardi”, em prosa,
permaneceu inédito em livro; “Natal 1961”, em prosa, integraria o livro inédito Conversa portátil.
86
Murilo no projeto da Revista de Cultura Brasileña em divulgar a poesia de vanguarda
brasileira na Espanha.
2.2. Gabino-Alejandro Carriedo
As dedicatórias ou correspondência não aludem ao encontro inicial entre
Murilo e Carriedo, mas provavelmente tenha sido contemporâneo ao de Crespo, por
volta de 1960. O escasso envio de cartas deu-se de 10 de julho de 1964 à
passagem de ano de 1974-1975.
203
Por elas, sabemos que Murilo leu Política
agraria (1963)
204
e Los animales vivos (1965)
205
, embora os exemplares não estejam
na biblioteca dele. Carriedo guardou Tempo espanhol, a tradução italiana de
Poesia liberdade, Convergência e Poliedro.
206
Em carta de fevereiro de 1971, Murilo comunica a Carriedo o envio de seu
livro de poesia publicado no ano anterior no Brasil: “Breve receberá meu último
Convergência um dos mais importantes, creio que o mais moderno, dos meus
livros. Gostaria muito de em tempo devido saber sua opinião.” Ainda insiste no
PS: “O livro saiu em S. Paulo, e você deverá recebê-lo do editor. Talvez demore
um pouco. M.”
207
A ausência de dedicatória no exemplar de Carriedo confirma que ele recebeu-
o da Livraria Duas Cidades. O pedido de Murilo surtiu efeito em uma leitura atenta,
que deixou vários poemas e versos anotados à caneta vermelha; encontramos, solto
no meio das ginas, um pequeno cartão impresso “Homenagem do Autor/ Ausente
do Brasil”. Em letra pequena para aproveitar o espaço restrito, com a mesma caneta,
202
V. Anexos.
203
V. Anexos, Correspondência de João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes com escritores
espanhóis.
204
Carta de 10 de julho de 1964 (Arquivo Gabino-Alejandro Carriedo Fundación Jorge Guillén
Valladolid).
205
Carta de 28 de maio de 1967 (Arquivo Gabino-Alejandro Carriedo Fundación Jorge Guillén
Valladolid).
206
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
207
Arquivo Gabino-Alejandro Carriedo Fundación Jorge Guillén Valladolid. Em outras
correspondências de Murilo, verificamos a importância atribuída a Convergência, como em carta de
10 de fevereiro de 1966 a Drummond, quando ainda se tratavam de dois livros, Contacto e
Exercícios, “tentativas de reformulação da minha linguagem poética”. (V. GUIMARÃES, Júlio
Castañón. Distribuição de papéis: Murilo Mendes escreve a Carlos Drummond de Andrade e a Lúcio
Cardoso. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996, p. 22)
87
o poeta espanhol esboçou o comentário que talvez tenha mandado, mais elaborado,
ao brasileiro:
“Aquí, acaba finalmente con los últimos vestigios de la retórica y, por tanto,
alcanza la más amplia, pura y viva expresión. La pura estructura genética, la pura
creación (En este libro alcanza...)Véase (197 en adelante) la continuidad con
Cassiano, Drummond, Cabral, Braga...La influencia, ¿se nota también de V.
Huidobro? // - 199 y 202, inflluencia dos mais jovens: Praxis, noigrandes... //
surrealismo (palabras inventadas)”
A observação aproxima-se dos estudos de Crespo na Revista de Cultura
Brasileña, que acompanhamos anteriormente. Em Situación de la poesía concreta”,
por exemplo, comparecem os poetas citados por Carriedo como pertencentes das
“gerações modernistas” que estabelecem um laço de união com o concretismo.
208
Ainda no mesmo texto, indicam o poeta chileno Vicente Huidobro como antecessor,
no contexto hispânico, de uma poesia concreta.
209
As páginas mencionadas correspondem às últimas do livro, na seção
“Sintaxe”, a mais anotada, na qual justamente se abandona a sintaxe tradicional.
A partir da década de 70, em sua produção poética, Carriedo incorporou
processos morfossintáticos da poesia concreta. Em “Castilla”, dedicado a Jorge
Guillén, um tema recorrente na obra de Carriedo, sobretudo no período da poesia
comprometida
210
, é explorado a partir da semelhança fônica de reduzidas palavras
distribuídas no espaço:
Castilla astilla Castilla
amarilla
amor de arcilla
Llana dura llanura
andadura
honda y dura
208
Os poemas “Gargarín” de Cassiano Ricardo; “paz”, de Edgar Braga; “Isso é aquilo”, em Lição de
coisas, de Drummond (Op. cit., p. 122-123)
209
“No es difícil rastrar en la poesía de lengua castellana ejemplos que parecen derivar de la
experiencia de Mallarmé o que, por lo menos, rompen la estructura gráfica de la página poética en
favor de una mayor expresividad de las ideas o sensaciones sugeridas por los versos. Pensamos al
escribir esto en el creacionismo del poeta chileno Vicente Huidobro en cuyo poema Ecuatorial (1918),
por ejemplo, se emplean tipos de tres cajas diferentes y cuyos versos se distribuyen en la página con
muy desiguales sangrías.” (Idem, p. 106).
210
V. Capítulo 1.
88
Castilla amarilla
mar de arcilla
Si hembra
siembra
Si cosecha
cosa hecha
Mar de arcilla amarilla
Castilla
casta astilla
Honda y dura andadura
llanura
llana y dura
Amor de arcilla Castilla
si hembra
siembra
Si siega dura asegura
cosecha
cosa hecha
211
Além do convívio da poesia concreta nas páginas da Revista de Cultura
Brasileña, a poesia de Carriedo, em Los lados del cubo (1973), parece ter
encontrado na obra final de Murilo profícuos estímulos. Um dos melhores elogios
que Convergência poderia receber.
211
CARRIEDO, Gabino-Alejandro. Nuevo compuesto descompuesto viejo (Poesía 1948-1979). Op.
cit., p. 163.
89
CAPÍTULO 3: Cabral e as artes de Barcelona
Os poemas relacionados a pintores e escultores ao longo da obra de Cabral
evidenciam o grande interesse que manteve pelas artes plásticas do século XX, no
Brasil e no exterior. Significativos da postura do “poeta crítico”, surgem desde Pedra
do sono, ganhando espaço no receptivo Museu de tudo.
Poucos são os textos críticos a respeito de artes plásticas realizados por
Cabral, grande parte destinados a catálogos de exposições, como as promovidas
pelo Serviço de Propaganda e Expansão Comercial da Embaixada do Brasil em
Madri, na década de 60.
212
O primeiro conhecido, “Sobre Segall”, publicou-se no
número 64 de junho de 1944 da Revista Acadêmica, em homenagem ao pintor. Não
comenta nenhuma obra ou técnica, mas sim descreve a impossibilidade de reter na
memória a “emoção da contemplação imediata”, como teste da “pureza” de um
pintor: Pode-se dizer que a atmosfera de uma obra qualquer, de uma pintura,
principalmente, é de natureza literária e vive não pelo que está contido no quadro,
mas da realidade de que o quadro é ponto de partida, porta falsa, trampolim.
Dizendo de outro modo: não pelo que se , mas pelo que se cria, isto é, do que
nasce entre o espectador parado diante, sujeito ao tempo e à sua diferença de todos
os outros homens, e o quadro, fixo no tempo e na parede.” E oferece a lição dessa
experiência: “(...) um movimento para fazer voltar às duas dimensões do quadro o
principal interesse da pintura; o único e legítimo interesse da pintura.
213
Tal princípio
para a abordagem das artes plásticas estabeleceria a relação entre o quadro e o
poeta Cabral, que em lugar de apenas ver entenda-se, posicionar-se
simplesmente como crítico de arte -, confirmaria ou exploraria princípios de sua
poética.
Antonio Candido, ao avaliar Pedra do sono quando lançado, reconhece
que o poeta, mesmo trabalhando com a matéria onírica, necessitava de um rigor
baseado na valorização do vocábulo, centro de gravitação do poema que adquiria
um valor plástico. Por isso, vale-se da simbiose entre surrealismo e cubismo para
212
Exposição Franz Weissmann (1962), em espanhol sem indicação do tradutor, que depois
apareceria em Museu de tudo; Lucy Calenda (1962), em espanhol sem indicação do tradutor, não
reproduzido em livro; e Grabados populares del nordeste brasileño (1963), tamm em espanhol no
livro de Angel Crespo, de mesmo título.
213
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 274.
90
compreender a poética do Cabral estreante: O seu cubismo de construção é
sobrevoado por um senso surrealista da poesia. Nessas duas influências a do
cubismo e a do surrealismo é que julgo encontrar as fontes da sua poesia. Que
tem isso justamente de interessante: engloba em si duas correntes diversas e as
funde numa solução bastante pessoal.”
214
Muito mais tarde, Danilo Lobo, em O
poema e o quadro: o picturalismo na obra de João Cabral de Melo Neto
215
, estudou,
no decorrer da produção cabralina, tanto as referências, como as incorporações das
artes plásticas.
No âmbito das artes espanholas, as referências na obra de Cabral não foram
tão abundantes quanto as da literatura. O apreço ao cubismo levou-o a inserir uma
“Homenagem a Picasso” em Pedra do sono e um “Juan Gris” em “O sim contra o
sim” de Serial.
Por outro lado, em sua estada em Barcelona de 1947 a 1950, envolveu-se
intensamente com o ambiente artístico, que vivia um período decisivo de renovação.
O florescente mercado de arte atraiu o diplomata, que passou a adquirir quadros.
216
Uma das figuras centrais foi o crítico e historiador de arte Rafael Santos
Torroella, para quem Cabral apresentou a poesia brasileira, possibilitando-lhe a
tradução dos modernistas e de Drummond ao espanhol.
217
Ele esteve à frente da
editora Cobalto, que publicou uma revista especializada em arte, Cobalto. Arte
Antiguo y Moderno. Tamm lançou estudos sobre Salvador Dalí, de Oriol Anguera
(1948), e Joan Miró, de Juan-Eduardo Cirlot (1949). Sob o selo Cobalto 49,
organizou duas importantes exposições em 1949: Miró e Un aspecto de la joven
pintura. Tàpies, Cuixart, Ponç.
Entre várias tendências, irrompia um grande interesse pelo surrealismo.
Cabral, depois de seu contato inicial com o movimento nas reproduções trazidas por
Vicente do Rego Monteiro no Recife, via-o florescer sob seus olhos, levando-o a
novas reflexões. Um exemplo do foco de atenção em Barcelona está no fascículo
dedicado ao surrealismo na revista Cobalto. Arte Antiguo y Moderno, de 1948.
Cabral também conheceu Juan-Eduardo Cirlot (1916-1973), poeta e crítico de arte
214
CANDIDO, Antonio. “Poesia ao norte” In Op. cit., 139.
215
Brasília: Thesaurus, 1981.
216
V. carta a Manuel Bandeira sem data: “Aqui, tenho tido oportunidades fabulosas de comprar
algumas pinturinhas.” (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 70)
217
Antología de la poesía brasileña. Edição de Renato de Mendonça. Madri: Ediciones Cultura
Hispánica, 1952Poemas. “Adonais”. Madri: Ed. Rialp, 1951.
91
muito interessado no surrealismo, que logo integraria Dau al set, grupo herdeiro,
entre outros, da vanguarda francesa.
Além da tipografia, auxiliado por Enric Tormo, conviveu tanto com um pintor
consagrado, Joan Miró, quanto com os pintores em início de carreira, Francisco
García Vilella, Antonio Tapiès, Modesto Cuixart e Joan Ponç. Essa atividade e
relações produziram-se em um momento crucial da obra dele, ocupando o intervalo
entre Psicologia da composição e O cão sem plumas. E o Cabral parcimonioso em
seus textos críticos realizou um que vale por muitos, o ensaio sobre Miró, cuja
complexidade deve ser melhor estudada à luz desse contexto.
1. O artesão tipógrafo
Pouco tempo depois de ter chegado à Barcelona, a tipografia invadia o
cotidiano de Cabral. Em carta de 3 de junho de 1947 – aliás, as missivas aos amigos
nesse período são o melhor testumunho de suas atividades tipográficas pedia a
Drummond algum texto para ser editado:
(...) Um médido aqui, na verdade, me receitou qualquer ocupação desse tipo,
e como não posso quebrar pedra uma dignidade consular mínima a solução
teve de ser esta.
Apesar de ser minha estréia na arte, espero que seu livro não ficará feio.
Tenho quem me assista e estou disposto a só aproveitar os exemplares perfeitos.(...)
Não falo de outras coisas (...) porque a perspectiva desses trabalhos me está
tomando toda a atenção.
218
O trecho citado contém informações importantes. A recomendação médica
refere-se à constante dor de cabeça que atormentava Cabral, que se submeteu a
vários tratamentos. A tipografia, antes de mais nada, teria um efeito terapêutico. Mas
não pára por aí. O poeta refere-se à “arte”, de antiga tradição, que inclusive tomaria,
por um momento, o espaço da poesia. A assistência providencial, diga-se de
passagem veio de Enric Tormo i Freixas. Talvez tenham se conhecido por
intermédio de Joan Brossa. Com trabalhos de edição desde o início da cada de
218
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 220.
92
40, Tormo colaborava com o grupo Dau al set, como no número extraordinário e
belíssimo de dezembro de 1949: texto de Brossa e ilustrações de Cuixart, Ponç e
Tapiès sobre as fotos dos três realizadas por Tormo.
Ele ajudou Cabral a comprar a prensa, uma Minerva, e os instrumentos
necessários, instalados em um modo do apartamento da rua Muntaner. O
reconhecimento chegou com a dedicatória no primeiro livro editado de sua autoria,
Psicologia da composição: “A Enric Tormo, Maestro, esta primeira incursão a seus
domínios, J. Cabral de Melo Barcelona, 23. XI. 48”
A entrega à confecção dos livros indica os impasses enfrentados na poesia,
como desabafa a Clarice Lispector em carta de 8 de dezembro de 1948: “A
tipografia continua me absorvendo. Gosto por ela ou fuga do desagradável ato de
escrever? Os livros me encantam como objetos e me amedrontam como coisa a
escrever.”
219
Contudo, embora não escrevesse versos, é difícil pensar que o poeta,
que vinha pautando sua produção sob o exemplo do engenheiro, da construção,
transformado em artesão, não vinculasse essa atividade à poesia. Assim, o
cuidado na escolha dos tipos e da sua disposição colocam-no materialmente na
situação oposta a da criação aleatória, livre de qualquer rigor. Exigente, nas
primeiras tentativas, chegou inclusive a confessar que estragou “não sei quantas
folhas sem obter a perfeição desejada.”
220
Por outro lado, a perfeição não implica sofisticação, pois suas impressões
caracterizaram-se pela simplicidade. Embora desse o nome de O Livro Inconsútil”
ao selo, esclareceu que essa “palavra luxuosa esta tomada em seu sentido mais
material: sem costura.”
221
Distante da ornamentação, manifestou-se “contra livros
e capas ilustrados e, tanto quanto possível, pelo ‘livro puro’.”
222
No poema dedicado
a Tormo, “Paisagem tipográfica”, inserido em Paisagens com figuras, desenvolveu
as qualidades de uma boa impressão:
Nem como sabe ser seca
Catalunha no Montblanc;
nem é Catalunha Velha
sóbria assim em Camprodón.
219
SOUSA, Carlos Mendes. Op. cit., p. 293.
220
Carta sem data a Manuel Bandeira (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 52)
221
Carta a Vinicius de Moraes de 16 de setembro de 1949 (Arquivo-Museu de Literatura Brasileira
Fundação Casa Rui Barbosa).
222
Carta a Manuel Bandeira de 5 de novembro de 1947 (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 44)
93
A paisagem tipográfica
de Enric Tormo, artesão,
é ainda bem mais simples
que a horizontal do Ampurdán:
é ainda mais despojada
do que a vila de Cervera,
compacta, delimitada
como bloco na galera. (SA, 133)
A relação explícita entre tipografia e paisagem pode ainda comportar um
terceiro termo, a poesia, cuja comparação com ações diversas está presente em
outros poemas do mesmo Paisagens com figuras (“Alguns toureiros”). Simples,
despojada, compacta e delimitada são atributos tamm trabalhados na poesia
cabralina. Tamm a identificação com o popular buscada na nova poesia
encontraria sua correspondência com a origem humilde da tipografia:
A paisagem tipográfica
de Enric Tormo, impressor,
é melhor localizada
em vistas de arte menor:
na pobre paginação
da Tarrasa e Sabadell,
nas interlinhas estreitas
das cidades do Vallés,
nos bairros industriais
com poucas margens em branco
da Catalunha fabril
composta em negro normando.
Nas vilas em linhas retas
feitas a componedor,
nas vilas de vida estrita
e impressas numa só cor
(e onde às vezes se surpreende
igreja fresca e romântica,
capitular que não quebra,
o branco e preto da página)
foi que achei a qualidade
dos livros deste impressor
e seu grave ascetismo
de operário (não de Dom). (SA, 133-134)
94
No verso final, cruzam-se os significados das palavras em relação à
tipografia, e por extensão, da poesia: enquanto posição social, o trabalhador
manual diferencia-se do tratamento dispensado a reis e príncipes; se pensamos na
tarefa em si, o esforço do artífice opõe-se ao presente da dádiva.
A perspectiva social da tipografia foi explorada por Tormo no pequeno texto
“Xilografia popular na Catalunha”
223
, publicado no primeiro e único número da
revista O cavalo de todas as cores, em janeiro de 1950. A xilografia pertence a um
momento anterior à tipografia, quando as imagens e textos reproduziam-se a partir
de pranchas de madeira gravadas em relevo. Tormo identifica, por volta do século
XV, um “problema na criação” devido à falta de artistas que produzam originais e à
presença estrangeira (Alemanha e Itália), impondo que os gravadores copiem ou
se inspirem nas xilografias importadas. Dois culos mais tarde, no entanto, houve
uma volta à gravura popular:
É nela que o verdadeiro gravador se livra do jugo do artista e se converte em
seu próprio criador, simplifica sua gramática plástica e com o mínimo de recursos
técnicos consegue expressar o poético sentido popular da arte. quem,
equivocadamente, a tem chamado primitiva. Na verdade é um retorno; as
experiências eram demasiado eruditas para resistir à perenidade de sua expressão,
para chegar triunfante a este sentido primário e popular da arte.
Por fim, unem-se poesia e imagem em dois planos: uma gravura ilustra uma
trova popular em catalão, “El caçador”, seguida da indicação e com ele se funde
todo o poético”; e uma gravura com as palavras “Marca del sol” é completada pela
observação “e o poético se infunde na indústria”. O restante das gravuras
reproduzidas também tinham sido aproveitadas nas portadas de “O Livro
Inconsútil”, duas do século XVIII, para Acontecimento do soneto, de Ledo Ivo, e
Sonets de Carnuixa, de Brossa, pentencentes, respectivamente, às coleções de
Cabral e de Tormo.
Muito mais tarde, em 1963, depois das experiências de uma poesia mais
comunicativa com O rio e Morte e vida e Severina, Cabral retomou o contato com
as gravuras populares que acompanham folhetos de poesia popular ao apresentar
o catálogo da exposição “Grabados brasileños del nordeste brasileño”, em Madri:
223
V. Anexos.
95
(...) tem muito que ver tanto os interessados pela arte popular quanto os
apreciadores da xilogravura: os primeiros, porque podem analisar a manifestação
contemporânea de um gênero de arte popular que estavam obrigados a estudar em
obras dos primeiros séculos da imprensa; e os segundos porque poderão apreciar,
em um gênero que parece ter chegado a extremos de gratuidade formalista, como
aborda a madeira e resolve seus problemas o artista não refinado, o gravador direto
do povo. E também tem muito que ver nestas gravuras as pessoas que, não
estando especialmente interessadas pela arte popular ou pela gravura em madeira,
estão, simplesmente, pelo problema da expressão.
224
Cabral considerava os livros impressos como “objetos” de fruição plástica,
que caíram nas graças de Joan Miró: “(...) o que diz respeito ao lado plástico da
coisa não me desagrada de todo (falo da paginação, da cortada, etc.; coisas que
até agradaram francamente o Joan Miró. Aliás, o Miestá entusiasmado com o
que se pode fazer em tipografia, e, quando, volte da França, onde foi por um mês,
realizaremos alguns trabalhos juntos).”
225
O interesse de Mi pela impressão
acompanhou-o durante sua carreira. Para um catálogo seu que seria impresso na
França, sugeriu o “máximo de simplicidade e o mínimo de espírito artístico
226
,
características que encontraria nos livros impressos por Cabral. Trabalhou a
maquete de um livro de poemas seus como se fosse um objeto plástico, pois
assim será plástica poética ou poesia plástica”.
227
Ao sonhar com um grande
estúdio, revelou que “queria provar a escultura, a cerâmica, ter uma prensa”
228
. Em
1944 realizou as litografias da série Barcelona, impressas por Tormo.
O editor suíço Gérard Cramer propôs em 1947 a Miró a ilustração de À toute
épreuve, livro de poemas de Paul Éluard publicado em 1930. Nas cartas a Crémer,
evidencia-se tanto a confluência com as idéias do Cabral tipógrafo, quanto um dos
prováveis modelos, o “Livro Inconsútil” do amigo brasileiro: “(...) Fiz provas que me
permitiram ver o que é fazer um livro, não ilustrá-lo, a ilustração sempre é algo
secundário. O importante é que um livro tenha toda a dignidade de uma escultura
224
MAMEDE, Zila. Op. cit., p. 124.
225
Carta a Manuel Bandeira de 17 de fevereiro de 1948 (Idem, ibidem, p. 59).
226
Carta a Pierre Matisse de 16 de novembro de 1936 (MIRÓ, Joan. Escritos y conversaciones.
Margit Rowell, ed. Valencia-Murcia: Institut Valencià d’art modern Colegio Oficial de Aparejados y
Arquitectos Técnicos de la Región de Murcia, 2002, p. 193)
227
Carta a Pierre Matiise de 18 de dezembro de 1936 (Idem, ibidem, p. 196-197)
228
Texto de 1938 (Idem, ibidem, p. 228)
96
talhada a mármol”
229
; Um livro deve se fazer com a exatidão e a precisão de uma
máquina de relojoaria.”
230
Mais uma vez Tormo esteve ao lado de Miró, nas gravuras sobre madeira. A
edição somente estaria finalizada em 1958. Durante o longo período de execução,
ambos participaram da confecção do ensaio de Cabral sobre Miró. Metade do
formato de À toute épreuve, - aproveitando-se inclusive do mesmo papel – a edição
de 1950 contou com a realização tipográfica de Tormo e duas xilogravuras
coloridas de Miró.
231
Resta comentar como se posicionou Cabral na escolha dos títulos para sua
prensa. Embora recorresse aos amigos, tais relações proporcionaram a divulgação
dos clássicos da poesia moderna brasileira na Espanha: Manuel Bandeira, Joaquim
Cardozo, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Cecília Meireles e Carlos Drummond
de Andrade. O número de espanhóis foi mais reduzido. Além do amigo Brossa, que
se tornaria um clássico da poesia catalã, imprimiu outros três poetas. Juan Ruiz
Calonja, depois de sua estréia com Alma a la luna (1948), não prosseguiu na
carreira literária. El poeta conmemorativo. Doce sonetos homenaje é apenas um
título da vasta obra de Juan-Eduardo Cirlot. Vale a pena deter-se um pouco em
Alfonso Pintó (1924). O “inconsútil” Corazón en la tierra (1948) é seu primeiro livro
de poemas. Manteve laços com a poesia brasileira ao traduzir a Antología de
poetas brasileños de ahora e Cobra Norato e outros poemas (1954), de Raul Bopp,
sob o selo Dau al set e vinheta da capa de Miró.
232
Mereceu Corazón en la tierra
uma nota de José Luis Cano no prestigioso periódico Ínsula, em 15 de novembro
de 1948:
Tiene este poema de Alfonso Pintó – poema lo bastante extenso para formar
un librito un título muy de postguerra española. Los dos términos que integran
corazón, tierra – nos hablan de esa vuelta a los conceptos poéticos elementales un
tanto olvidados por la poesía abstracta y deshumanizada de otros tiempos: la
poesía llamada pura. Pudièramos decir que este poema de Alfonso Pintó está más
cerca de una poesía impura,
tomando esta palabra en el sentido que le dio
Neruda
229
Carta de 10 de junho de 1948 (Idem, ibidem, p. 299)
230
Carta de 2 de outubro de 1949 (Idem, ibidem, p. 300)
231
V. Anexos, Entrevista com Enric Tormo.
232
Como esclarece a Nota editorial a essa edição, Pintó ainda traduziu Manuel Bandeira (Manantial.
Cuadernos de Poesía y Crítica. Entrega Sexta, Melilla, 1951) e Jorge de Lima, Adalgisa Nery e
Cassiano Ricardo (Poesía Española. n. 16. Madrid, abril 1953).
97
en su revista Caballo verde, es decir, una poesía que arrastra materiales humanos
de toda clase, y que hace suyo el dicho de Terencio: Nada de lo humano me es
ajeno. Esto es cuanto al fondo, pues en cuanto a la forma, Pintó ha asimilado en su
poema las conquistas del surrealismo, y me parece evidente que su técnica se
asemeja a la de un libro muy significativo de nuestra mejor poesía surrealista. Aludo
a Espadas como labios, de Vicente Aleixandre.
O parecer de Cano justifica as afinidades de Cabral com a obra, pois, nessa
altura, defendia que a arte de vanguarda deveria ter um compromisso político ou
social. O crítico encerra o seu texto chamando a atenção para o aspecto material
do livro, a maioria das vezes não levado em consideração: Digamos finalmente
que la edición es bella, y demos la bienvenida a estas ediciones de El Libro
Inconsútil que dirige en Barcelona Joao (sic) Cabral de Melo, que acredita en ellas
fino gusto tipográfico y un sentido certero de lo que debe ser la edición poética.”
233
2. O cavalo de todas as cores de Franciso García Vilella
Ofuscado pela figura de Miró e pelos integrantes do Dau al set, o pintor
Francisco García Vilella (1922-2001) não é incluído no elenco das amizades de
Cabral com o mundo das artes plásticas em Barcelona. Embora não tenha deixado
escritos sobre ele, o diplomata brasileiro reconheceu um grande artista,
incentivando-o com suas idéias e propostas.
Cabral e Vilella conheciam-se pelo menos desde 23 de outubro de 1947,
data da dedicatória em exemplar de O engenheiro.
234
Provavelmente Cabral
impressionou-se pelas cores vibrantes dos quadros ligados à tauromaquia, como
Torero (1946) e La corrida (1947). Logo incumbiu Vilella de um trabalho. Ao que
tudo indica, viu-se obrigado a imprimir as traduções de poemas de Baudelaire
feitas por Osório Dutra (1889-1968), a fim de agradar o “chefe”, o cônsul geral de
Barcelona. Dutra ainda cultivava versos ao estilo parnasiano, tendo ganho o prêmio
de poesia da Academia Brasileira de Letras em 1929. Para acompanhar a edição,
solicitou 11 desenhos a Vilella, como explica em carta a Bandeira de 20 de julho de
233
Ínsula. a. 3, n. 35, Madri, 15 nov. 1948, p. 5.
234
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
98
1948: “(...) quanto ao do Osório é um livro com ilustrações de um pintor daqui, o
mais contrário à mentalidade bem-pensante do nosso homem. Foi essa uma
molecagem que lhe armei. Como sabia que teria de publicar um livro dele, arranjei-
lhe a camisa de onze varas dessas ilustrações, com as quais, por outro lado, fiz
com que esse pintor meu amigo ganhasse algum dinheiro. Sou contra os livros
ilustrados, mas o prazer da molecagem me fez esquecer o bom gosto.”
235
Pelo menos na dedicatória do exemplar de Cores, perfumes e sons
oferecido a Vilella, Dutra demonstrou o reparar no descompasso entre ele e as
imagens.
236
Em formato maior (28 x 21 cm) em comparação aos demais de O
Livro Inconsútil” (14 x 21 cm, em geral), cada ilustração ocupa uma folha solta,
tornando-se independentes do texto: homens e mulheres de corpos alongados e
distorcidos em uma atmosfera fantástica, como em outras composições do pintor,
quase todos nus, expressando um erotismo latente.
237
Segundo Arnau Puig,
representam um “punto de transición intermedia entre el desgarro gestual y el
dominio de la formalidad anecdótica (...) Un pequeño conflicto entre rabiosa forma
íntima y contención por la libertad permitida, que el artista plástico resuelve en un
equilibrio formal (...)”
238
O ano de 1949 foi movimentado para Vilella. Além de três exposições,
estampou-se um desenho seu de feição surrealista no número de julho-agosto-
setembro de Dau al set, no qual também saíram as traduções dos poemas de
Cabral por Brossa. Apesar dessa concessão ao grupo de vanguarda, a obra de
Vilella mantinha características próprias, como ressaltou Sebastià Gasch por
ocasião da presença do pintor no II Ciclo Experimental de Arte Nova, desse ano:
“(...) tras el cubismo que degeneró en decorativismo, tras el surrealismo que ha
caído en la ilustración, pertenece a la generación de la angustia y de la amargura,
es un reflejo del clima desolado y amargo de la posguerra.”
239
Acrescenta que
Vilella possui duas “qualidades ibéricas” que o impedem de cair na abstração ou na
literatura: a preferência pelo humano e o contato com a terra, mesmo que a
fantasia e a imaginação tenham papel importante em sua obra. Tais características
235
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 87.
236
“Ao jovem e magnífico artista García Vilella, que com tanta inspiração e tanta inteligência ilustrou
estas traduções de Baudelaire oferece Osorio Dutra Barcelona, 13-7-948” (Acervo particular de
Francisco García Vilella).
237
V. Anexos, Imagens.
238
García Vilella. Las raíces de un artista de la modernidad In PUIG, Arnau, FORNS, Manuel Pérez-
Lizano e HERRADOR I RODRIGUES, Juan Ramon. García Vilella. Barcelona: Ámbit, 2004, p. 161.
99
“ibéricas” impressionaram Cabral, que também as havia identificado na poesia
espanhola. No entanto, assim como fez com os participantes de Dau al Set,
discutiu idéias marxistas com Vilella, que passou a se preocupar com a mensagem
social de sua pintura. A leitura de O o sem plumas, oferecido por Cabral em
agosto de 1950
240
, talvez tenha contribuído à reflexão de Vilella. Suas telas desse
momento incorporam os protestos operários e a repressão franquista, como “La
vaga de tramvies” (A greve dos bondes), de 1951, no qual, sem abandonar a
técnica moderna, representa o dramático embate entre os manifestantes e a polícia
ocorrido em Barcelona.
Cabral tamm pediu a colaboração de Vilella para ilustrar a capa do único
número de O cavalo de todas as cores, de 1950; o preto do cavalo oculta todas as
cores, mas mostra um aspecto fantástico: asas, chifre, garras e uma espécie de
labareda solta pela boca. Poeta e pintor ainda se cruzaram no volume Em va fer
Joan Brossa, de 1951: Cabral assinou o prefácio e Vilella desenhou o símbolo da
coleção de poesia “La calle desierta”, dirigida por Rafael Santos Torroella.
3. Joan Miró: o “sólido artesão da Catalunha”
Depois de nove meses em Nova Iorque, Miró retornou a Barcelona em
outubro de 1947, permanecendo ali até sua mudança a Palma de Mallorca em
1956. Segundo Cabral, o primeiro contato surgiu de uma encomenda de um quadro
para um primo, José Carneiro Leão, por intermédio do pintor Ramón Rogent.
241
Logo se tornaram amigos: Miró, já reconhecido internacionalmente, no restrito
círculo de apreciadores de arte moderna da Barcelona daquele momento, pôde
identificar um interlocutor no jovem poeta diplomata. A poesia também foi um ponto
em comum entre os dois. Além de ter convivido com poetas em suas estadas
parisienses, Miró, assíduo leitor, foi “poeta bissexto”.
242
Chegou a emprestar a
Cabral Paroles, de Jacques Prévert.
243
239
Idem, ibidem, p. 139.
240
V. Anexos, Dedicatórias autógrafas em livros.
241
Entrevista de 1993 (ATHAYDE, Félix de, org. Op. cit., p. 131).
242
V. “18. Un cuaderno de poemas, 1936-1939”, “19. Poema, 1937”, “41. Poema, 1960” e “49.
Poemas, 1972 y 1976” em MIRÓ, Joan. Op. cit. Desenvolvemos as relações de Miró com a poesia no
Capítulo 4.
243
Carta a Bandeira de 3 de dezembro de 1949 (SÚSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 114)
100
O encontro deu-se em etapas cruciais das trajetórias de Miró e de Cabral. O
convulso período da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial
interferira no trabalho de Miró. Nesses anos de intensa reflexão, não pintou
quadros, mas praticou no desenho formas, traços e signos que constituiriam sua
futura iconografia. Voltando a pintar em 1944, consolidou sua linguagem pictórica
por volta de 1946. Realizou 15 pinturas somente do final de 1947 ao começo de
1948, quando Cabral seguramente já freqüentava seu ateliê. Entre 1949 e 1950, as
atividades, além de mais de 50 pinturas, incluíam desenhos, esculturas, estampas,
livros, etc. Cabral teve o privilégio de acompanhar de perto essa efervescência da
maturidade de Miró. Tamm atraiu-se pelos variados objetos que o artista
colecionava para aproveitar em suas obras: “(...) Atualmente, esse problema da
possibilidade de expressão pessoal numa seleção me obceca. Ainda há pouco
tempo, reconheci toda a pintura de Miró, ou melhor, seu mundo, num pequeno
museu que ele tem em casa, e onde agrupa desde esculturas populares até pedras
achadas ao acaso na praia, pedaços de ferro-velho com uma ferrugem especial
etc. É impressionante como tudo aquilo é Miró.”
244
Em sua obra posterior, tamm
promoveria uma apurada “seleção” de palavras, de temas, chegando mesmo a
formar um Museu de tudo.
Enquanto isso, terminara Psicologia da composição, atingindo um ponto
extremo no processo de construção e reflexão da poesia, como detalhou em carta
a Clarice Lispector:
(...) De certo modo é este o primeiro livro que consigo fazer com alguma
honestidade para com minhas idéias sobre poesia. É um livro construidíssimo; não
no sentido comum, i. é, no sentido que trabalhei muitíssimo nele, como num
outro sentido também, mais importante para mim: é um livro que nasceu de fora
para dentro. Quero dizer: a construção não é nele a modelagem de uma substância
que eu antes expeli, i. é, não é
um trabalho posterior ao material, como
correntemente; mas pelo contrário é a própria determinante do material.
Quero
dizer que primeiro os planejei, abstratamente, procurando depois, nos dicionários,
aqui e ali, com que encher tal esboço. O que eu fiz me lembra aquela máquina que
nas ruas do Rio, que serve para fazer algodão de açúcar. Você a olha, no
começo e uma roda girando, depois, uma nue nuvem de açúcar se vai
concretizando em torno da roda e termina por ser algodão. A imagem me serve
244
Carta a Bandeira de 17 de fevereiro de 1948 (Idem, ibidem, p. 60)
101
para dizer isso: que primeiro a roda, i. é, o trabalho de construção; o material que
é a inspiração, o soprado pelo Espírito Santo, o humano, etc. vem depois: é
menos importante e apenas existe para que o outro não fique rodando no vazio
(prazer individual, mas sem justificação social, imprescindível numa arte que lida
com coisa essencialmente social, como a palavra).
245
O intelectualismo de Cabral isolava-o em relação à tradição lírica luso-
brasileira. Embora tivesse descoberto a poesia espanhola, seus efeitos mais diretos
somente se fariam notar em sua obra a partir da década de 50, mais precisamente
com O rio. Dessa maneira, experimentou o impasse em prosseguir uma poesia que
privilegiasse o “construir” em lugar do humano”, ou ainda, da “justificação social”, a
qual, nesses anos, cada vez mais o preocuparia, levando a uma situação de
comprometimento. Por outro lado, corria-se o risco de haver encontrado uma
“fórmula”. Faltava-lhe, portanto, um referencial para questões que a literatura ainda
não era capaz de solucionar integralmente. A pintura de Miró, ao trabalhar tanto com
cores e formas, quanto com os mais variados materiais, apresentou-se a Cabral
como um campo ideal para refletir sua própria poesia. Nada melhor do que se voltar
ao um “tão unicamente pintor, ou pintor tão pouco literário” (P, 41).
Paralelamente à tipografia, Cabral interessava-se muito pelo processo de
construção artística, não como algo espontâneo e gratuito ou sujeito a leis prévias,
mas fruto de um árduo trabalho, identificando-o, mais de uma vez, com a figura do
artesão. Na mesma carta que descreve a Bandeira o ateliê de Miró, sugere ao amigo
uma “confissãode seu modo de escrever poesia com o objetivo de “fazer nossos
melhores poetas falarem de si mesmo em termos artesanais” para uma revista que
não chegou a editar.
246
No entanto, testemunhou o processo de elaboração de uma
obra de arte. Em lugar de colher um depoimento, ele resolveu compor um texto
analisando como um pintor faz seus quadros. Sob esse ponto de vista, Joan Miró
pode ser tomado como desenvovimento de Psicologia da composição, cuja
discussão prosseguiria na palestra “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho
de arte”, de 1952; inclusive um dos segmentos do livro de 1950 intitula-se
“Psicologia da sua composição”.
245
SOUSA, Carlos de Mendes. Op. cit., p. 291.
246
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit, p. 61.
102
A própria execução foi árdua, verdadeira “gestação” ao consumir 9 meses, de
outubro de 1948 a junho de 1949. Desde o começo enfrentou desafios: “Atualmente
me preocupa mais um estudo sobre Miró, que estou escrevendo... com ódio. Com
ódio pela prosa e pela cnica da crítica.”
247
Em carta de 8 de dezembro de 1948 a
Clarice Lispector, desabafa: “Há uns dois meses comecei como um leão um
pequeno livro sobre o pintor Miró, hoje arrinconado num lugar qualquer e do qual
procuro me esquecer.”
248
Por fim, encerrou-o esgotado: Terminei, afinal!, o meu
ensaio sobre Miró e ele me preocupou tanto que os dois meses que seguiram ao
ponto final foram para mim meses de vazio. Sentia-me chupado.”
249
Mas a opinião
favorável de Miró compensou-o do esforço, pois o pintor recebeu com “absoluta
indiferença” livros franceses e espanhóis publicados sobre ele naqueles anos, entre
os quais o de Juan-Eduardo Cirlot de 1949. Infelizmente o ensaio de Cabral, na
Espanha, é mais reconhecido pelas litografias de Miró, o tendo merecido até hoje
uma tradução.
Dividido em duas partes – “técnica” e “psicológica”
250
, com um P.S. ao final,
o texto é extremamente organizado e didático: cada parte encontra-se subdividida,
respectivamente, em 21 e 17 segmentos, cujos títulos aparecem à margem, como as
indicações de “Fábula de Anfion”. A proximidade dos assuntos ainda propõe mais
uma organização, ao se dar um espaço entre três séries de segmentos de capa
parte. Assim, podemos apresentar a estrutura do livro:
I –
“As pinturas pré-Renascentistas”, “A criação da pintura”, “Terceira dimensão e estatismo”,
“Compor como equilibrar”, “Mais sobre o equilíbrio”, “O estatismo como estilo” (1
a
série)
“Miró contra a pintura”, “Miró e seus contemporâneos”, “Sua história: abandono da terceira
dimensão”, “Sua história: uma composição descontínua”, “Sua história:
ainda o
descontínuo”, “Sua história: o objeto e a moldura”, “Sua história: o falso dinamismo (2
a
série)
“Miró não-gramatical”, “Miró anti-gramatical”, “Aparece o dinamismo”, “O que é o dinamismo
de Miró”, “Importância da linha”, “A linha na estrutura estática”, “A linha na pintura de Miró”,
“O segredo de sua linha” (3
a
série)
247
Carta a Drummond de 9 de outubro de 1948 (Idem, ibidem, p. 228)
248
SOUSA, Carlos Mendes. Op. cit., p. 293.
249
Carta a Bandeira de 15 de setembro de 1949 (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 228)
103
II
“Quando a estrutura foi pesquisa”, “Quando a estrutura foi gramática”, “Quando estrutura é
instinto”, “A estrutura inalterável”, “Porquê da estrutura inalterável” (1
a
série)
“Psicologia de sua composição”, “O gosto pelo fazer”, “O fazer como ponto de partida” (2
a
série)
“Miró e o Surrealismo”, “Entendimento do Surrealismo”, “Ainda o Surrealismo”, “Continua a
psicologia de sua composição”, “Intelectualismo de Miró”, “Ainda seu intelectualismo”, “Um
rigor sempre mais agudo”, “Criar como inventar” (3
a
série)
Apenas por esse roteiro, impressiona a precisão e a desenvoltura de um
Cabral que praticamente não se expressou em textos de crítica de arte. Am disso,
tirou proveito da convivência com Miró, pois aqui e ali podemos descobrir as idéias
do pintor oportunamente incorporadas.
Na parte I, o que denominamos de “1
a
série”, trata-se de uma introdução
que contextualiza a obra de Miró na arte ocidental, cujo marco é o Renascimento,
ao fixar as leis da pintura. Vale-se da pré-história e da arte românica para
exemplificar que o objeto representado estava “solto no espaço”, não limitado pela
superfìcie. Miró, como se demonstrado no decorrer do ensaio, recuperou a
liberdade da figura na tela, tendo reconhecido em várias ocasiões aquelas
manifestações como ideais: “Minhas escolas de pintura favoritas são as mais
distantes no tempo quanto for possível: os pintores rupestres, os primitivos. O
Renascimento não tem o mesmo interesse para mim.
251
Um pouco mais tarde,
será a vez de Cabral buscar na poesia espanhola anterior ao século XVI o
redirecionamento de sua poética.
252
Como princípio norteador da pintura a partir do Renascimento impõe-se a
ilusão da profundidade do ambiente em que o objeto se localiza, a “terceira
dimensão”, condicionando que o espectador fixe seu olhar em um ponto.
“Estatismoe “dinamismo” são termos contrários que conduzem a tese da primeira
parte do texto. Da situação de “estatismo” derivou a noção de “equilíbrio” que
constitui a beleza da obra de arte. Cabral introduz a primeira menção à literatura
com Baudelaire, poeta e também crítico de arte, o qual, dando início à
modernidade na poesia, procurou subverter esse conceito de beleza. Como não
250
Termos de Cabral em carta a Bandeira de 15 de setembro de 1949 (Idem, ibidem, p. 104).
251
Entrevista de 1947-1948 (MIRÓ, Joan. Op. cit., p. 288).
252
V. Capítulo 1.
104
podemos nos esquecer que antes de mais nada é um poeta que está escrevendo
sobre pintura, é provável que em suas considerações estivesse pensando na
poesia da Geração de 45, julgadas posteriormente na série de artigos de 1952:
“(...) marcada pelo desejo de construir um tipo de universo que, depurado da
realidade, habitasse uma dimensão de serenidade e afastamento do ambiente.
Idéia de beleza que ainda é nossa, embora o seja a nossa (e por isso, à
palavra beleza preferimos poesia com seu sentido extraído não sei que
perturbadora atmosfera metafísica).” (P, 21). Na 2
a
série da Parte I, percorre-se a
trajetória de Miró em busca do dinamismo” perdido pela pintura, “sua história”, ao
realizar o caminho contrário feito até à conquista da terceira dimensão. Como
primeiro passo, o abandono da ilusão da profundidade e da exigência do centro do
quadro implica na perda da hierarquização de elementos”: “À idéia da
subordinação de elementos a um ponto de interesse, ele substitui um tipo de
composição em que todos os elementos merecem igual destaque. Nesse tipo de
composição não há um elemento dominante, mas uma série de dominantes, que se
propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de fixações
sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro.” (P, 24). Se
substituirmos as palavras “espectador” e “quadro” respectivamente por “leitor” e
“poema”, poderíamos transferir essa passagem para a fortuna crítica da obra
cabralina. Interrompido pelo discurso narrativo de O rio e Morte e vida Severina,
desde “Psicologia da composição” e “Antiode” verificamos o predôminio de uma
“série de dominantes”, ou melhor, do longo poema dividido em “setores”
identificados geralmente por números ou letras. A bailarina de flamenco ou a cabra,
por exemplo, não são vistos em função de um “elemento dominante”, mas sim por
imagens a princípio desconexas do tema, o qual, para ser reconstituído, requer que
o leitor as acompanhe. Assim como Miró conseguiu quadros inscritos num
quadro”, Cabral obteve “poemas inscritos no poema”; ambos desintegraram a
unidade do quadro e do poema, conquistando um dinamismo” sem perder o
controle da composição.
253
253
Recentemente, Alfredo Bosi, no ensaio “Fora sem dentro? Em torno de um poema de João Cabral
de Melo Neto” uma das mais pertinentes análises das possíveis relações entre o texto crítico e a
prática poética ao se deter na figura do cassaco em “Na festa da casa-grande de Dois
parlamentos, apresenta um procedimento que o poeta pode ter aprendido do pintor: “O efeito de
unidade figural, da Gestalt, na acepção de coerência dos significantes, será construído
paulatinamente pelo olho do leitor atento às partes consecutivas, às vezes parecidas entre si, às
vezes contrastantes, pois a estrutura da superfície não é dada como uma totalidade redonda que o
105
Na Parte II de Joan Mi, Cabral explora a tese do artista consciente,
“fabricante”, que ia ao encontro das suas aspirações poéticas. Como realizara em
Psicologia da composição, o pintor tamm valorizava o fazer”: “(...), o quadro, para
Miró, é um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadros. Mipinta.” (P, 39). No
segmento mencionado, “Psicologia da sua composição”, ponto nevrálgico do
ensaio, a atitude de Miró é considerada como “psicológica”: “(...) luta permanente, no
trabalho do pintor, para limpar seu olho do visto e sua mão do automático. Para
colocar-se numa situação de pureza e liberdade diante do hábito e da habilidade.”
(P, 38).
Para reforçar ainda mais seu ponto de vista dedica três segmentos (3
a
série)
para avaliar a posição de Miró frente ao Surrealismo. O próprio Mi se insurgiu
contra uma etiqueta de “surrealista”: “(...) Mas eu, antes de tudo e sobretudo, quero
conservar minha independência rigorosa, absoluta, total. Observo que o surrealismo
é uma manifestação sumamente interessante do espírito, um valor positivo; mas não
quero seguir suas rigorosas disciplinas.”
254
Interessante notar que mesmo a pintura
automática, ou seja, tudo o que se constituía um princípio artístico, parecia-lhe uma
“rigorosa disciplina”. Quanto a Cabral, a insistência no surrealismo um dos
segmentos intitula-se Ainda o Surrealismo” não é meramente analítica; outra vez
serve-se do pintor para poder falar do poeta. Como Miró, provavelmente reconhecia
sua importância de revelar um “fundo existente no homem por debaixo da crosta de
hábitos sociais adquiridos, onde eles localizavam o mais puro e pessoal da
personalidade.” (P, 40-41). Por outro lado, Miró e Cabral não se entregaram à
pintura ou à escrita automática, totalmente divergentes em relação à lucidez da
invenção. Cabral assim encerrava suas dívidas para com o surrealismo. Um de seus
últimos vestígios viria em O o sem plumas, onde aparece uma pictórica mulher
febril que habita as ostras”, da qual “seguramente” sabia o rio.
A correlação pintura-poesia aflora no segmento “Um rigor sempre mais
agudo”, espécie de meta: “(...) Não há, como no trabalho de certos poetas, o
equivalente daquela primeira palavra, fecunda de associações e desenvolvimentos,
que contém em si todo o poema. A luta, aqui, se na passagem de uma a outra
palavra e se uma dessas palavras conduz a uma outra, em lugar de aceitá-la em
olho possa abarcar de relance, do centro à margem. A razão interna do texto é serial, fabricante de
micro-estruturas novas, pontuais. É assim que o dentro olha para fora.” (Estudos Avançados. v. 18, n.
50, São Paulo, 2004, p. 202. Agradeço a Arlindo Rebechi Junior a indicação desse texto).
254
Entrevista de 1931 (Idem, ibidem, p. 176)
106
nome do impulso que a trouxe, essa consciência lúcida a julga, e ainda com mais
rigor, precisamente por sua origem obuscura.” (P, 45). Finalmente o poeta trai o
crítico de arte: Cabral deixa por um momento Miró para defender sua poesia.
O texto termina com uma questão em aberto: “A descoberta desse território
livre, onde a vida é instável e difícil, onde o direito de permanecer um minuto tem de
ser duramente conseguido e essa permanência continuamente assegurada, não tem
uma importância psicológica em si, independente do que no campo da arte ela
pudesse ter produzido?” (P, 47). Para sua situação, Cabral logo responderia que
não, já que lhe faltava tamm o “tema dos homens”.
No P.S., conclusão que se revela como ponto de partida para os novos rumos
da poesia cabralina, remonta à primeira fase da pintura mironiana, mais figurativa,
cuja simplificação gradativa justificaria a luta do pintor por se libertar de todo um
sistema: “(....) Explica, por exemplo, porque este homem, em cujos começos se
notava tão grande amor à realidade, e em quem se nota, ainda hoje, tão desmedido
amor por esse outro tipo de realidade – os materiais humildes de sua arte, dos quais
sempre parte foi levado a um ponto extremo de estilização, de abstração.” (P, 48).
Procura, assim, descartar a vinculação de Miró com a arte abstrata: “De certa
maneira, se pode dizer que o abstrato está nos dois pólos do trabalho de
representação da realidade. É abstrato o que apenas se balbucia, aquilo a que não
se chega a dar forma, e abstrato o que se elabora ao infinito, aquilo a que se chega
a elaborar tão absolutamente que a realidade que podia conter se faz transparente e
desaparece. No primeiro caso, a figura é abstrata por ininteligível; no segundo, por
disfarçada. No primeiro, se permanece aquém da realidade; no segundo, se nega a
realidade. “(P, 48).
A luta de Miró em resgatar uma nova dinâmica para o quadro salvaria sua
obra de ser considerada um formalismo a mais. Ao compartilhar com o pintor a
aversão ao automatismo surrealista e o abstracionismo, Cabral estaria chegando
no cerne da sua poética da maturidade: o trabalho artístico aliado à perspectiva
humana. A respeito de suas objeções em relação ao formalismo, é importante
retomar o prólogo ao livro Em va fer Joan Brossa (1951), no qual se apóia nos
paralelos entre literatura e pintura: “O fato primordial é saber que objeto se vai
pintar, que objeto é digno de se pintar.” Para explicar que o “tema dos homens” não
é uma questão de forma mas de assunto, recorre ao exemplo de uma maçã em
uma bandeja pintada academicamente, apresentando-o na mesma condição da
107
pintura abstrata: “Da maçã aos simples círculos amarelos e vermelhos de um
quadro abstrato, o ponto é mínimo. Vai ser o abandono da dignidade, ou seja, da
importância humana (para os homens) dos assuntos, o longo caminho que vai
fazer desembocar os artistas em uma arte que nega radicalmente o assunto. De
fato, a importância, para os homens, de um quadro com uma bandeja de maçãs e
de um quadro com círculos de cor é absolutamente a mesma. Em certo sentido,
quando a pintura vai descender até a natureza morta, ao nu, à paisagem de
tabique, vai começar a se tornar abstrata.”
Ainda nesse 1951, em resposta a uma carta em que Bandeira queixava-se de
estar velho para compreender o abstracionismo nas artes plásticas, manifestou-se
contrário a essa corrente:
(...) Mas vocom sua autoridade podia muito bem tomar a frente de um
movimento de denúncia do abstracionismo em pintura, de seu equivalente
atonalismo em música e do neoparnasianismo-esteticismo da Geração de 45. Eu
namorei essas coisas quando estive no Brasil. E quando vim para a Europa
compreendi o que havia por debaixo de tudo isso e o trágico que é para nós
brasileiros nos entregarmos a todos esses requintes intelectuais. Porque da Europa é
que pude descobrir como o Brasil é pobre e miserável. Isto é: depois de ver o que é a
miséria européia enorme da Espanha, Portugal, dura na França, na Inglaterra
acho que é preciso inventar outra palavra para a nossa, cem vezes mais forte.
Por tudo isso ser abstrato é trágico e ridículo para um brasileiro.
255
Em Psicologia da composição, atingira, usando as mesmas palavras ao se
referir a Miró, um “ponto extremo de estilização, de abstração”. Para Miró, “seguro
de sua mecânica”, não havia necessidade de retornar a um “assunto e uma pintura
mais largamente humana”. Mas Cabral ainda não estava totalmente “seguro de sua
mecânica”. Os ensinamentos do pintor chegariam também por outra perspectiva,
não apenas da pintura, mas também a da paisagem. Vale lembrar que os dois
vinculavam-se a determinadas reges de seus países, Catalunha e Nordeste. Miró,
da capital Barcelona, preferiu a paisagem rural de Montroig, na província de
Tarragona. Este pode ter sido o início da volta de Cabral à capital Recife e ao interior
de Pernambuco.
255
SUSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 145-146.
108
Muitas vezes o pernambucano acompanhou o catalão em sua propriedade de
Montroig. Nas notas de trabalho de 1940-1941, o pintor descreve a mudança de sua
pintura a partir do lugar do qual via a paisagem:
ao vir de novo a Montroig e fazer uma revisão de minha obra, esta me
pareceu uma coisa muito forte e filha deste lugar. Ao ver a paisagem da masía
256
,
com estes planos tão grandiosamente simples, me a razão de muitos de meus
trabalhos, simples, grandiosos e brutais; (...) Ao contrário, subindo à ermita de La
Roca e ver as imensidades de terreno com oliveiras, árvores, charcos redondos e
quadrados, a terra lavrada, toda esta riqueza de detalhes me coloca em cheio em
minhas realizações atuais; o que faz vinte anos eu amava e previa sem chegar a
plasmar, o faço agora.
257
A simplificação da paisagem e dos objetos já era obtida pela distância da qual
a contemplava, com a perda dos detalhes. A experiência reveladora da altura seria
retomada por Cabral no poema “Campo de Tarragona”, de Paisagens com figuras:
Do alto da torre quadrada
da casa de En Joan Miró
o campo de Tarragona
é mapa de uma só cor.
É a terra de Catalunha
terra de verdes antigos,
penteada de avelã,
oliveiras, vinha, trigo.
No campo de Tarragona
dá-se sem guardar desvãos:
como planta de engenheiro
ou sala de cirurgião.
No campo de Tarragona
(campo ou mapa o que se vê?)
a face da Catalunha
é mais clássica de ler.
Podeis decifrar as vilas,
constelação matemática,
que o sol vai acendendo
por sobre o verde de mapa.
256
Casa de campo na Catalunha.
257
MIRÓ, Joan. Op. cit., p. 260.
109
Podeis lê-las na planície
como em carta geográfica,
com seus volumes que ao sol,
têm agudeza de lâmina,
podeis vê-las, recortadas,
com as torres oitavadas
de suas igrejas pardas,
igrejas, mas calculadas.
(...) (SA, 127)
Cabral investe por uma paisagem “cultivada”, podendo ser lida à maneia de
um mapa. Paisagem “sem mistérios”, na qual as vilas mostram-se como
“constelação matemática” e as igrejas, “calculadas”, aproximando-se das pinturas
detalhistas do primeiro Miró: Mont-roig, a igreja e o povoado, de 1919
258
, pode ser
um bom exemplo, ao revelar em um primeiro plano os campos lavrados contando
inclusive com um trabalhador – e ao fundo, as construções.
Porém, quando se passa ao seu contraponto pernambucano, do “Alto do
Trapuá” avista-se uma paisagem totalmente distinta, longe de ser “clássica”:
(...)
Se se olha para o oeste,
onde começa o Agreste,
se vê o algodão que exorbita
sua cabeleira encardida,
a mamona, de mais altura,
que amadurece, feia e hirsuta,
o abacaxi, entre sabres metálicos,
o agave, às vezes fálico,
a palmatória bem estrutura,
e a mandioca sempre em parada
na paisagem que o mato prolixo
completa sem qualquer ritmo,
e tudo entre cercas de avelós
que mordem com leite feroz
e ali estão, cão ou alcaide,
para defesa da propriedade. (SA, 134-135)
Enfim, o olhar se depara com o homem da região; o que na pintura de Miró se
recortava nítido na força do trabalho, no poema de Cabral confude-se com as outras
espécies vegetais:
110
Porém se a flora varia
segundo o lado que se espia
uma espécie há, sempre a mesma,
de qualquer lado que esteja.
É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana.
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural.
(...)
Apesar do pouco que vinga,
não é uma espécie extinta
e multiplica-se até regularmente.
Mas é uma espécie indigente,
é a planta mais franzina
no ambiente de rapina,
e como o coqueiro, consuntivo,
é difícil na região seu cultivo. (SA, 135-136)
O poeta, nessa altura, já saíra da ameaça de um excesso de intelectualismo,
tendo incorporado o drama da miséria humana.
Mas o olhar do pintor e do poeta abarcariam paragens mais altas. Em
entrevista de 1959, Miró disse gostar do “mundo visto de um avião”: “Devo uma das
maiores emoções de minha vida ao sobrevoar Washington, de noite. Vista de um
avião, de noite, a cidade é uma maravilha. E depois, de um avião se tudo. Um
pequeno personagem, inclusive um cachorro muito pequeno, se vê. E isso adquire
uma importância enorme, como uma ou duas luzes de campesinos numa escuridão
absoluta, durante um vôo noturno por cima do campo.”
259
Para dois artistas que
estiveram em grande sintônia são permetidas as coincidências. Nesse 1959, Cabral
terminava Quaderna que contém o poema “De um avião”, de fortes sugestões
pictóricas. Conforme ultrapassa os círculos da distância da terra, percebe-se a
conhecida paisagem recifense como pintura de vanguarda:
Uma paisagem mais serena,
mais estruturada, se avista;
todas, de um avião,
são de mapa ou cubistas. (SA, 211)
Em “O sim contra o sim de Serial, a pintura cubista do espanhol Juan Gris
tamm é vista pela distância de uma “lente avião”:
258
V. Anexos, Imagens.
111
Juan Gris levava uma luneta
por debaixo do olho:
uma lente de alcance
que usava porém do lado outro.
As lentes foram construídas
para aproximar as coisas,
mas a dele as recuava
à altura de um avião que voa.
Na lente avião, sobrevoava,
o atelier, a mesa,
organizando as frutas
irreconciliáveis na fruteira.
Da lente avião é que podia
pintar sua natureza:
com o azul da distância
que a faz mais simples e coesa. (SA, 290)
Como em “Alto do Trapuá”, somente a distância poderia dar a ilusão de
aparência de homem, sem ver de perto sua degradante situação:
Se daqui se visse seu homem,
homem mesmo pareceria:
mas ele é o primeiro
que a distância eneblina
para não corromper, decerto,
o texto sempre mais idílico
que o avião dá a ler
de um a outro círculo. (SA, 211)
Na Festa da casa-grande” de Dois parlamentos, o recurso do longe” e do
“perto” para configurar o contraste à figura humana e sua condição social tamm
comparece: - O cassaco de engenho/ de longe é como gente:/ - De perto é que se
vê/ o que há de diferente.” (SA, 267).
260
Mais alto ainda, a paisagem simplifica-se, aproximando-se das pinturas de
Miró:
259
Idem, ibdem, p. 335.
260
Alfredo Bosi aproxima esse procedimento à pintura de Miró: “Como um pintor que renunciou à
perspectiva clássica, João Cabral olha e nomeia ora de longe, ora de perto, o seu cassaco de
engenho. Vai dispondo no branco da página as figuras-palavras e as diz sucessivamente, exigindo do
leitor o mesmo movimento dos olhos com que as luas e as estrelas do pintor catalão atraem o seu
espectador.” (Fora sem dentro? Em torno de um poema de João Cabral de Melo Neto. Op. cit., p.
201).
112
Primeiro, a distância se põe
a fazer mais simples as linhas;
os recifes e a praia
com régua pura risca.
(...)
Depois, a distância suprime
por completo todas as linhas;
restam somente cores
justapostas sem fímbria:
o amarelo da cana verde,
o vermelho do ocre amarelo,
verde do mar azul,
roxo do chão vermelho. (SA, 212)
4. Tapiès, Cuixart, Ponç
Ao se abordar as trajetórias de Antonio Tapiès, Modesto Cuixart e Joan Ponç
no final dos anos 40, é inevitável que estejam vinculadas ao nome de João Cabral
de Melo Neto. Em diversas ocasiões, eles próprios e seus críticos assinalaram o
fecundo encontro com o poeta diplomata. Mas antes disso, havia a forte
ascendência de Brossa, que os “inclinava excessivamente em direção às imagens
literárias”
261
, chegando a atribuir títulos aos quadros deles.
Cabral escreveu um texto para o primeiro fascículo de Cobato 49
262
, por
motivo da exposição Un aspecto de la joven pintura. Tapiès, Cuixart, Ponç, que teve
lugar no Instituto Francês de Barcelona, de 17 de dezembro de 1949 a 3 de janeiro
de 1950. No início, retoma o ensaio sobre Joan Miró, referência fundamental para
esses pintores. Assim, eles coincidiam em compor independentemente do estatismo
tradicional. No entanto, o “estato de espírito” na luta por essa liberdade é diferente
para os três, a partir da relação que estabelecem com o limite da superfície do
quadro. Aproveitando a expressão cara ao poeta nesse instante, estaríamos diante
de três “psicologias da composição”. Do “grande artesão” Miró, Cabral passou para
os jovens artistas que como ele buscavam uma linguagem própria. Mais do que
avaliar as obras de Tapiès, Cuixart e Ponç, desejava identificar determinadas
posturas para realizar uma obra de arte. Como propusemos para a compreensão de
261
TAPIÈS, Antoni. Op. cit., p. 220.
262
V. Anexos.
113
Joan Mi, aqui a pintura novamente seria um campo metafórico para pensar a
poesia.
O primeiro a ser abordado é Taps. Ao não pensar a respeito dos limites do
quadro, representaria o artista instintivo, menos intelectual; daí Cabral preferir
mencionar sua pintura” em lugar de o pintor”. Provavelmente levava em
consideração telas como “El fuego encantado de Farefa” (1949)
263
, na qual
triângulos e cilindros se acham dispersos em um vermelho intenso, para expressar
uma “ordem instável”, uma “iminência de catástrofe”: “Sua pintura tira proveito, mais
de uma vez, de um raro estremecimento que parecem provocar certos volumes
muito próximos à moldura, certos pesos excessivamente poderosos que ele não se
preocupou em neutralizar, buscando-lhes a distância ideal da moldura que os teria
estabilizado.” O próprio Tapiès reconheceria que o amigo havia apontado “aspectos
latentes que foram muito característicos” de sua obra posterior.
264
Se o texto se detém no aspecto formal, o ideológico ficou reservado às
conversas. Tapiès, em sua Memòria personal, especialmente na parte “Raízes
catalãs. Psicanálise e marxismo”, destacou o papel do amigo brasileiro na reflexão
de uma arte comprometida
265
: “(...) se fazia porta-voz daquela corrente mais
inteligente que então começava a estar na moda entre alguns marxistas e que
defendia uma arte de compromisso, à maneira de Brecht, entre o vanguardismo e o
realismo socialista.” No entanto, Tapiès questionou o ataque que Cabral dirigia à
arte abstrata: “(...) tamm fazia sua uma posição que vinha dos que seguiam a
‘linha’ defendida pelos soviéticos: acrescentava que a pintura chamada abstrata
que então era um dos movimentos da vanguarda artística era inaceitável. E eu lhe
perguntava: ‘E se a forma de que dispõe um artista é abstrata? Então por acaso não
está no mesmo caso de poder ter um compromisso?’ Nestas questões percebi que
já começava a haver imposições inexplicáveis em muita daquela gente que, por
outro lado, como disse, não deixava de ser a representante do melhor ramo da
estética que se queria marxista.”
266
Em 1950, Tapiés, juntamente com seu primo Cuixart, encontrou Cabral em
Paris, que os acompanhou às livrarias especializadas do Partido Comunista Francês
263
V. Anexos, Imagens.
264
TAPIÈS, Antoni. Op. cit, p. 238.
265
Tapiès também ofereceu um depoimento na seção “O amigo revisitado” dos Cadernos de
Literatura Brasileira (Op. cit., p. 15-16).
266
TAPIÈS, Antoni. Op. cit., p. 237.
114
e os presenteou com livros. Entre as leituras, surgiam Marx e Engels, “textos de
Plejanov sobre a arte e a vida social e outros autores mais panfletários, como
Politzer, Kanapa, Lefèbvre..., todos publicados pelas Éditions Sociales”.
267
Tamm
abarcava os poetas comprometidos, como Neruda e Miguel Hernández.
268
Com um
verdadeiro sentido de formação, indicou-lhes aulas abertas da Universidade
Operária fundada por George Politzer com professores como Roger Garaudy e
Lefèvre.
269
Em carta a Brossa de 15 de dezembro desse ano, Tapiès comenta com
entusiasmo tais revelações: “Ontem e hoje tive a alegria de poder abraçar Cabral,
que esteve umas horas em Paris. Foi uma grande sorte vê-lo nestes momentos.
Deu-me uma grande injeção de ânimo das suas e parece que graças a ele
poderemos relacionar-se com pessoas interessantes. Presenteou-nos com uma
pilha de livros e nos encarregou de que os façamos passar uma vez termos lido.”
270
Brossa recebeu outra carta em 8 de janeiro de 1951, desta vez de Cabral: Gostei
muito do espírito de Tàpies e Cuixart em Paris. Eles haviam sentido o choque da
decepção, no seu primero contacto com a arte formalista em seu próprio ninho. Eu,
há tempos, havia previsto a coisa. E vê-la confirmada neles me alegrou.”
271
Toda essa carga de informação surtiu efeito na pintura de Tapiès, mas que
não durou por muito tempo. Realizou obras com os sugestivos títulos Asia unida,
Los hombres, Homenaje a Lorca, El trabajo nocturno, Homenaje a Miguel
Hernández, Los oficios, Ellos acusan, considerando-as de “um período imaturo, de
transição e com freqüência simplistas de conteúdo”.
272
Voltando ao texto de 1949, Cuixart comparece como o artista “mais
intelectual”. Sua liberdade em compor estaria justamente em fugir do limite da tela,
para o qual coloca muita distância entre a moldura e a coisa pintada, reduzida a
pequenos grupos dentro de uma superfície mais vasta: “Procura criar para as coisas
que pinta um meio infinito, a fim de impedir que os olhos do espectador, ao
contemplar a coisa pintada, tenham seu campo visual condicionado pela moldura. O
olho espectador, então, poderá se entregar ao ritmo interno da coisa pintada, que se
encontra solta no espaço, a maneira de constelações.” Explicação certeira para um
267
Idem, ibidem, p. 274.
268
Idem, ibidem, p. 281.
269
PAGÈS I SANTACANA, Mònica. Cuixart. Biografia inacabada. Barcelona: Parsifal Edicions, 2003,
p. 106.
270
Idem, ibidem, p. 106-107.
271
Arquivo Joan Brossa – Fundació Joan Brossa – Barcelona.
272
TAPIÈS, Antoni. Op. cit., p. 281.
115
quadro como Compisició del cántir” [Composição do cântaro] (1949)
273
, em que
pequenas e diáfanas figuras, distantes da moldura, “voam” em um vasto horizonte.
Inclusive o cântaro do tulo não se encontra em lugar de destaque como em uma
composição tradicional, devendo ser procurado pelo olho do espectador. Se o
compararmos com a obra de Tapiès tomada aqui como exemplo, temos os dois
primos pintores como exemplos contrários na percepção de Cabral: um explosivo”,
aproveitando as sugestões do fogo do quadro, e o outro conscientemente “etéreo”.
Por último, Ponç aparece como um tipo “intermediário”, menos instintivo que
Tapiès e menos intelectual que Cuixart, ou seja, possui os atributos dos dois, mas
não como princípio de sua composição. Como grande traço diferencial, sua
preocupação está mais na figura e menos na moldura da tela: Ele não pinta sua
liberdade: se serve dela como de algo que lhe permite entregar-se mais
completamente ao sentido do objeto que pinta.(...) Quer se entregar à figura e por
isso atribui menos importância à mecânica da tela.” Ao não investir nem se afastar
da moldura, procura preencher o espaço da superfície, e conseqüentemente,
intensifica os sentidos de suas pertubadoras figuras: “Mas a uma liberdade maior de
sintaxe tem que corrresponder, forçosamente, maior liberdade de metáfora. Em
Ponç esta é bem visível na absoluta liberdade com que parece acometer o que mais
mostra interessar-lhe: a figura, livre de qualquer sistema interno conseqüente, de
qualquer estilização.” Talvez Cabral, nesse momento, quisesse se identificar com o
tipo de artista representado por Ponç: se por um lado nunca foi um “instintivo”, por
outro, o “intelectual” começaria a pesar-lhe. Por isso tamm investiria na figura”,
compondo inclusive uma Paisagens com figuras, na qual cada uma como nos
quadros de Ponç – ramifica-se em várias metáforas.
Por outro lado, como fazia com os outros integrantes do Dau al Set, Cabral
alertava Ponç de que deveria continuar pintando a seu modo, mas com alguma
indicação social ou política, segundo lembrou Brossa: “’Se eu te encarrego o retrato
de um burguês, que farás: um burguês bajulador como em Duracamps ou um
monstro? No início, as pessoas dirão que você está doente, mas é suficiente, para
denunciar, que coloque no monstro um chapéu de copa; e, além disso, não será
perigoso para a censura.’”
274
273
V. Anexos, Imagens.
274
PERMANYER, Lluís. Op. cit., p. 88. Também Cuixart evocou uma história parecida entre Ponç e
Cabral: “(...) Joan Ponç, seguindo as diretrizes de Cabral, vai querer pintar um quadro onde aparecem
guardas civis. Evidentemente, não tinha nada a ver com o seu mundo. Por isso, Cabral vai dizer-lhe:
116
A predileção pelas “figuras” de Ponç motivou Cabral, juntamente com Tormo,
a editar em dezembro de 1949 um álbum com dez litografias dele
275
, realizadas
entre novembro de 1948 a dezembro de 1949. Com esse trabalho, unindo edição e
artes plásticas, Cabral encerrava sua frutífera convivência com as artes de
Barcelona.
‘¡Has de seguir pintando monstruos, pero con tricornio..!’” (PAGÈS I SANTACANA, Mònica. Op. cit.,
p. 81-82)
275
V. Anexos, Imagens.
117
CAPÍTULO 4: O museu espanhol de Murilo
Entre os múltiplos interesses de Murilo Mendes, a pintura ocupava um dos
lugares centrais. Não apenas escreveu poemas sobre artistas e telas, como também
exerceu a crítica de arte, resultando nos livros stumos A invenção do finito e
L’Occhio del poeta.
276
O contato direto com pintores no Brasil e na Europa
intensificou a incorporação de um universo plástico a sua obra.
no início da década de 20 um pintor tornou-se uma referência fundamental
para Murilo: Ismael Nery. Talvez o amigo tenha apresentado-lhe a arte moderna
através de Picasso: “(...) Não posso precisar se nos primeiros anos de nossa
convivência Ismael se referia aos pintores modernos, mas enclino-me pela negativa,
embora poucos meses depois que o conhecia tenha ele me mostrado uma cabeça
de homem pintada em azul, o que faria pressupor conhecimento de uma das
primeiras fases de Picasso.”
277
Como dizia de si mesmo, não considerava Nery um
“surrealista ortodoxo”:
(...) apesar de todas as solicitações do surrealismo no sentido de se
desarticular completamente o processo fundamental da pintura, Ismael Nery soube
fazer uma síntese magnífica da modernidade com a arte clássica, revelando um
perene cuidado na composição e na sobriedade das tintas, procurando, às vezes,
soluções de arquitetura ou de escultura, outras vezes soluções mais violentas,
arbitrárias, em que a imaginação excitada volta as costas a certos princípios
construtivos elementares, mas sempre num espírito de lúcida pesquisa.
278
A dialética entre princípios construtivos” e “soluções mais violentas,
arbitrárias” está na base de grande parte da poética de Murilo. Durante os anos 20 e
30, Nery trouxe-lhe da Europa “abundante documentação” a respeito do surrealismo,
principalmente Giorgio De Chirico
279
, ídolo de sua mocidade”, e Max Ernst.
280
As
276
Publicados por Luciana Stegagno Picchio respectivamente em 1994 e 2001. Sobre A invenção do
finito, v. NEHRING, Marta Moraes. Murilo Mendes: crítico de arte. São Paulo: Nankin Editorial, 2002.
277
Recordações de Ismael Nery. 2
a
ed. São Paulo: EDUSP; Editora Giordano, 1996, p. 100.
278
Idem, ibidem, p. 118.
279
Em exemplar com anotações para uma nova edição de Poemas (1930), datadas de 1960, Murilo
deixou registrado que o poema “Mundo inimigo” fora “inspirado em quadros de G. de Chirico”. (PCP,
1610)
280
“Giorgio De Chirico”, Retratos-relâmpago – 2
a
série (PCP, 1270-1271).
118
técnicas de colagem e montagem de Ernst, por exemplo, fundamentaram o universo
surrealista do poeta: “Confesso-lhe o quanto lhe devo, o coup de foudre que foi para
o desenvolvimento da minha poesia a descoberta do seu prodigioso livro de
fotomontagens La femme 100 têtes, comparável, no plano literário, à de Les
illuminations. De resto, creio que Max Ernst descende de Rimbaud, pela criação de
uma atmosfera mágica, o confronto de elementos díspares, a violência do corte do
poema ou do quadro, a paixão do enigma (foi ajudado pela obra do primeiro De
Chirico).” (PCP, 1248)
Posteriormente, Murilo passou a se interessar por outros artistas, o que
incentivou mudanças na poesia dele, a qual o apenas dialogava com o
surrealismo ou o catolicismo, mas também se preocupava com a construção da
forma na obra de arte. A propósito de uma exposição da portuguesa Maria Helena
Vieira da Silva, exilada no Rio de Janeiro entre 1940 e 1947
281
, manifestou-se em
texto publicado na Revista Acadêmica, em agosto de 1942.
282
Vinha das
experiências de As metamorfoses, de 1938-1941, e Mundo enigma, de 1942, os
quais incluem respectivamente os poemas “Maria Helena Vieira da Silva” e “Harpa-
sofá (um quadro de Vieira da Silva)”. Segundo Murilo, ela seria uma artista
“eminentemente dialética”, ao unir “tradição ao espírito de aventura e pesquisa”. E
valoriza principalmente o fazer artístico, dando um registro de quem seguiu de perto
a pintora: Em Maria Helena o exercício da construção plástica chega a assumir um
caráter de ascese. Dia e noite sua lâmpada está acesa, e a infatigável operária
move, move e move lápis e pincéis, sem que o mundo exterior a perturbe ou
convença.“ Lança uma frase que resume a sua poética a partir de então: “Sua
liberdade visionária é servida de uma técnica segura”. Considera Harpa-Sofá,
escolhido como matéria de poema, uma obra-prima, “chegando a uma depuração,
uma filtragem incomparáveis”. “Depuração” e filtragem que também buscava em
sua poesia.
Quando partiu à Europa em 1952, teve acesso a tudo aquilo que até então
vira por fotos ou reproduções: “Além de inúmeras cidades de artes, museus, galerias
antigas, modernas, igrejas, ‘ateliers’, etc., estabeleci contatos com personalidades
281
Sobre as relações entre Murilo e Vieira da Silva consultar: MOURA, Murilo Marcondes. Op. cit., p.
136-138; PEREIRA, Maria Luiza Scher. Espaço e Memória II: Arquivos do exílio em Murilo Mendes e
Vieira da Silva In Imaginação de uma biografia literária: os acervos de Murilo Mendes. Juiz de Fora:
Editora da UFJF, 2004, p. 23-31.
282
GUIMARÃES, Julio Castañón, org. Op. cit., p. 59.
119
altamente interessantes.
283
Entre vários artistas, destaca-se o pintor italiano Alberto
Magnelli, que, assim como Miró em relação a Cabral, significou uma das vias
privilegiadas para Murilo refletir sobre a sua obra. Em dezembro de 1955, quando
iniciava Tempo espanhol, abordou o artista em texto para a revista paulistana
Habitat.
284
A possível conexão entre pintura e poesia ressalta em expressões como
“textos plásticos” e “escritura de Magnelli”, admitindo que o pintor “escreve o que
pensa e quer escrever”. Magnelli pertence à “linhagem de pintores rigorosos e
severos”, “grande exemplo de lucidez”, à Miró. Entende a obra dele como uma
“espécie de longa meditação, sempre desenvolvida e retomada, sobre a forma.” Se
por um lado a forma seduzia cada vez mais a Murilo, por outro, ela não implicava a
abolição do conteúdo, a dimensão humana, confronto solucionado na obra de
Magnelli: “(...) não se trata de encarar a forma e de dissecá-la cientificamente; não
se trata de insistir nos valores geométricos do quadro, ou de separar forma e
afetividade, linguagem interior e abstração; trata-se de re-criar e re-pensar
continuamente o estilo, de assegurar-lhe o equilíbrio entre as duas tendências
divergentes, a ordem e a aventura.”
Ainda nesse texto, é expressiva a passagem em que comenta a chamada
“fase das pedras” de Magnelli:
(...) Que segura intuição o guiou, ao escolher este material, o próprio signo da
duração e da permanência! Onde a matéria surge mais forte, mais espiritual e mais
imbricada na sua condição de símbolo, que na pedra?....
Eis que a solidão da forma é ultrapassada. Eis que a luz canta nas pedras e
pelas pedras. Eis que as pedras não estão mais destacadas no espaço; elas o
inauguram, elas próprias o constróem.
Em consonância com Cabral, para quem a pedra tornou-se um signo decisivo,
Murilo serviu-se dela para revelar a diversidade de sua obra. Benedito Nunes
observa que nos anos 40 a pedra aparece como elemento produtor de
metamorfoses. ‘Sou aquela nuvem andante,/ O ssaro e a estátua de pedra.’ (‘O
Emigrante’, As metamorfoses, Livro Primeiro). “A grande dignidade das pedras/
283
FONSECA, Edson Nery da, org. Op. cit., p. 26-27.
284
“Magnelli” (GUIMARÃES, Julio Castañon, org. Op. cit., p. 67-72). V. RODRIGUES, Marisa Timponi
P., org. Magnelli; mostra do acervo do Centro de Estudos Murilo Mendes. Juiz de Fora: CEMM/UFJF,
1998 e NEHRING, Maria Moraes. O amigo Magnelli. Op. cit. p. 103-140
120
Exclui arco de triunfo”. (‘Estudo no. 3’, idem)
285
. Avançando para o mundo da
história e das cidades, em Contemplação de Ouro Preto, a antiga Vila Rica recebe o
epíteto “Dama de pedra”.
286
Sua correlata européia, a tamm montanhosa Toledo,
decifra a Espanha: “Toquei em Toledo a linguagem espanhola,/ A pedra, sua força
concentrada.” (PCP, 590).
E a Espanha contribuiu muito para conformar o cenário plástico e poético de
Murilo. As considerações que emitiu sobre o pintor inglês Hayman Chaffey poderiam
referir-se a ele mesmo: “A propósito: Chaffey foi à Espanha fazer provisão de luz. O
espaço. A luz. A cor ali sempre presente. Na atmosfera espanhola encontrou sua
pátria espiritual e explodiu.”
287
Espaço e cor que avultam nos poemas de Tempo
espanhol, coletânea que tamm expõe seu museu, com os mais importantes
pintores da história da arte espanhola. No texto “A lata de lixo”, de Poliedro (1972),
comenta de forma irônica as escolhas de seu canôn pictórico:
Eu me chamo, e todos os outros me chamam, Murilo. Dum ponto de vista
puramente eufônico e visual preferiria chamar-me por exemplo Goya, Velázquez ou
Zurbarán.
Malandro e hipócrita sou! Bem vejo que não se trata de um ponto de vista
puramente eufônico e visual, trata-se de atenção à hierarquia dos valores: mesmo
contrariando Ortega y Gasset, mesmo reconhecendo o interesse dum certo lado da
obra de Murilo, o lado mais realista, não o situo no plano dos outros três pintores.
(PCP, 1008)
De todos os modos, nenhum dos dois pintores da chamada escola sevilhana,
Francisco de Zurbarán (1598-1664), e o xará Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682)
figuram em Tempo espanhol. Os poemas acerca dos pintores, como os dos
escritores, vinculam-se tamm à biblioteca do poeta, que guarda várias
monografias e catálogos de pintores e períodos artísticos, fartamente anotados. Os
poemas e as anotações englobam duas formas de reflexão, a da Espanha e a da
própria poesia.
Seguiremos, neste capítulo, a disposição cronológica de Tempo espanhol: a
arte românica da Catalunha, El Greco, Velázquez, Goya e três artistas do século XX,
285
NUNES, Benedito. Op. cit., p. 37.
286
Verso 242 de “Romance de Ouro Preto” (PCP, 479).
121
Picasso, Juan Gris e Miró. Para completar o quadro, comentaremos o pequeno texto
que Murilo dedicou à artista hispano-brasileira Isabel Pons, em A invenção do finito.
1. A pintura antiga da Catalunha
Murilo datou do primeiro ano de sua viagem à Europa a grande revelação que
constituiu a visita ao Museu de Arte Antiga da Catalunha:
Barcelona é rica em coleções de arte. O Museu de Arte Antiga da Catalunha
reúne na colina de Montjuich um conjunto excepcional de afrescos, painéis,
esculturas em madeira, elementos arquitetônicos, todos de estilo românico, além de
quadros e outras peças de épocas posteriores. A parte românica é considerável e
creio que sem igual em toda a Europa. Vide mormente as salas nº 1 a 13, com
afrescos provenientes de Pedret, Esterri d’Eneu, La Seo d’Urgel, o formidável
Pantocrator do mestre de San Clemente de Tll: foram trasladados de igrejas e
capelas medievais dos Pirineus (de há muito tempo sem culto) por meio duma
técnica especial. A pintura antiga catalã é altíssima, ao nível de criação estética que
nos deu os “primitivos” flamengos e italianos. Meu primeiro encontro com essa
pintura, no longíquo ano de 1952, causou-me um choque de que não regressei a
hoje.
288
Na biblioteca do poeta, a fascinação pela arte românica mostra-se na
presença do sexto volume, Pintura e imagenería románicos, da monumental Ars
Hispaniae. Historia Universal del Arte Hispánico.
289
O livro Les maitres de la peinture
espagnole: El Greco-Velázquez, de Eugène Dabit
290
, apesar de trazer na folha de
rosto a anotação “M. M. 1940”, provavelmente foi lido ou relido depois de 1952, pois,
diante de duas considerações da introdução, Murilo escreveu à margem “e os
primitivos catalães?...”: a de que a obra de dois homens, El Greco e Velázquez, é
essencial à pintura espanhola, e a de que não se encontra na Espanha o
equivalente aos primitivos italianos.
287
A invenção do finito (PCP, 1305).
288
Espaço espanhol (PCP, 1168).
289
COOK, Walter William Spencer e RICART, José Gudiol. Madri: Ed. Plus-Ultra, 1950.
290
4
a
ed. Paris: Gallimard, 1937.
122
Em Tempo espanhol, nada menos que três poemas consecutivos foram
dedicados à arte românica: “Aos pintores antigos da Catalunha”, “A Virgem de
Covet” e “As carpideiras”. Para os dois últimos, incluiu indicações museológicas para
situar o leitor, respectivamente, Imagem do século XIII, vinda da Igreja de Covet.
Museu de Arte Antiga, Barcelona” e “Pinturas do sepulcro de Don Sancho Saiz
Carrillo. 1300. Museu de Arte Antiga, Barcelona”.
“Aos pintores antigos da Catalunha” vem logo em seguida de “Aos poetas
antigos espanhóis”, as faces literária e pictórica da Espanha medieval. Sintetiza em
verso as principais impressões da arte românica:
Fundais o horizonte plástico da Espanha.
Fundais a proporção na majestade,
A matéria da vida não transposta,
Antes exposta com lucidez didática
E medida exata da caligrafia.
Sabeis irradiar as cores,
Criais largos panejamentos.
Enganais a pespectiva.
Comprimis a perspectiva.
Rigor de arte e de vida.
Fixais o alto objeto do plástico,
Tradição do primeiro sol futuro
Que irrompe vertical do Apocalipse:
Vive no espaço
O Cristo com sua descendência.
Nos afrescos românicos, medida da Catalunha,
O símbolo em valor concreto já se muda. (PCP, 580)
A religião visualizada em cores e formas vigorosas, “lucidez didática”,
impressionou Murilo. O divino poderia ser transmitido com “exatidão” e “rigor”, o
mbolo transformado em “valor concreto”. Para esse poema, seguramente tomou
como referência o formidável Pantocrator do mestre de San Clemente de Taüll”.
291
Pantocrátor designa a imagem de Cristo mais conhecida em que aparece
representado frontalmente, bendiz com a mão direita e segura o livro com a
esquerda. Retirado da igreja de Sant Climent de Taüll para compor o âmbito V do
291
V. Anexos, Imagens.
123
Museu Nacional de Arte da Catalunha, é uma das obras mais representativas da
arte românica. Termos do poema remetem-nos a essa pintura mural: o Cristo é uma
figura em “majestade”; sua nica branca e cinza e manto azul revelam
“panejamentos”, dobras e ondulações, oferecendo a ilusão de movimento. Letras e
palavras colaboram na lição divina: nos dois lados do Cristo, as letras alfa e ômega,
primeira e última do alfabeto grego, indicam que ele é o princípio e o fim de todas as
coisas (Apocalipse 1, 8; 21, 6; 22, 13); no livro aberto em sua mão esquerda lemos a
inscrição “Ego sum lux mundi” (“Eu sou a luz do mundo”, João 8, 12). Abaixo de
Cristo, sua descendência” em semi-círculo, diversos santos e apóstolos marcados
por arcos e colunas.
292
No entanto, Murilo o se deteve apenas “no alto objeto da plástica”, do
Cristo Todo Poderoso, tendo se aproximado das manifestações mais populares do
culto religioso, como a Virgem de Covet:
Nessa talha policroma
Resumo o estilo severo
Dos primeiros catalães,
Mestres da força, escultores:
Construíram sua fantasia
Com materiais reduzidos.
Ordenaram a solidez
Anulando as formas frouxas.
Substituíram à dureza
Da imagem sacra distante,
A proximidade do humano:
Elementos que ajustados
Pela ternura concisa
E a carga da Idade Média
Criaram a Virgem de Covet. (PCP, 580-581)
A Virgem de Covet encontra-se no âmbito VIII do Museu Nacional de Arte da
Catalunha
293
, ao lado de outras imagens talhadas em madeira. De aspecto stico,
os traços faciais são mais familiares, com um leve sorriso
294
, reconhecidos pelo
poeta: “Substituíram à dureza/ Da imagem sacra distante,/ A proximidade do
humano:”. Porém, o que fora aplicado à escultura valia também para seu verso:
292
CARBONELL I ESTELLER, Eduard et alli. Guía arte románico. Barcelona: Museu Nacional d’Art
de Catalunya, 1998, p. 70-75.
293
V. Anexos, Imagens.
294
Idem, ibidem, p. 111.
124
“Construíram sua fantasia/ Com materiais reduzidos./ Ordenaram a solidez/
Anulando as formas frouxas”. Com pouco e eliminando o excesso, promoveu um
novo direcionamento para sua poesia. Por isso, levantamos a hipótese de que o
“choque” causado pela arte românica, em 1952, pode ter sido um dos estímulos
decisivos para o conduzir à poesia de Siciliana, de 1954-1955, e Tempo espanhol,
de 1955-1958.
2. El Greco, o pintor de Toledo
O interesse de Murilo por El Greco (1541-1614) viria de muito cedo, de uma
leitura do livro de Maurice Barrès, Greco ou Le secret de Toled, aos 17 anos.
295
Por
sinal, esse tulo conserva-se em edição de 1951 nas estantes do poeta,
acompanhado por outros seis exemplares anotados a respeito do pintor.
Nos primeiros anos de Europa, além da arte românica, a cidade de Toledo
revelou-se uma grande surpresa para Murilo, abrindo-lhe o panorama da História.
Em exemplar de El Greco de Manuel de Cossío, cuja folha de rosto registra um
possível instante de leitura “M. M. Madrid, 1952” –, recebeu destaque a descrição
da singular cidade, de “excepcional situação topográfica, áspera e elevada rocha de
granito, apertadamente circunscrita”.
296
Como no título da monografia de Barrès,
Toledo está intimamente associada a El Greco. Nascido em Creta, Domenikos
Theotokopoulos fixou residência em Toledo por volta de 1577. Confirmando sua
identificação com a nova pátria, dedicou duas telas à cidade Vista de Toledo
(1597-1599) e Vista y plano de Toledo (1610-1614) -, como também às vezes
incorporou motivos urbanos em seus quadros. Vista de Toledo, que integra o acervo
do Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, com seus vários planos e nebuloso
céu ao fundo, suscitou em Murilo a arte moderna: “espantosa, pré-moderna vista de
Toledo
297
, precursora da liberdade estética do século XX, prodígio de gênio da
invenção e da metamorfose.
298
Desde o poema “Uma nuvem”, de As metamorfoses,
visita-se o dramatismo da esfera celeste de El Greco:
295
ARAÚJO, Laís Correa de. Op. cit., p. 356.
296
COSSIO, Manuel B. El Greco. 2
a
ed. Madri: Espasa-Calpe, 1948, p. 73-74.
297
Carta geográfica (PCP, 1117).
298
Espaço espanhol (PCP, 1135-1136).
125
Quem poderia pintar esta nuvem?
Só mesmo Domenico Teotocopuli
Mergulhando seu pincel no caos,
Ao sopro da sua estranha lucidez. (PCP, 367)
Em Tempo espanhol, o poema “Toledo”, o mais longo da coletânea, explicita
a relação entre pintor e cidade: “Os objetos de tocaia,/ O céu se abrindo em
crateras/ Como nos quadros de El Greco. (...) Eis Toledo como El Greco a tocou e
pintou:/ O máximo de intensidade no mínimo de espaço.” (PCP, 591). Insiste mais
uma vez, no poema seguinte, “El Greco”: Em Toledo sua matéria e forma própria.”
(PCP, 592). E como não poderia deixar de ser, em Espaço espanhol, a parada em
Toledo obriga a referência a El Greco, irmanados não pelo gênero paisagístico,
mas também pelo Retrato del Cardenal Tavera (1608-1614), o qual poderia
significar o estema da cidade: severa, apostando com a morte, autovisionária,
recriada por um pintor do absoluto que, nascido longe, soube incorporá-la até o
osso; provavelmente sua psique foi alterada pela planta irregular de Toledo.” (PCP,
1137).
Outros quadros mereceram a atenção de Murilo. Em Tempo espanhol, o
poema “O sol de Ilhescas” prepara a El Greco”, a partir do quadro San Ildefonso
(1603-1605), que está no Hospital de Caridad de Illescas:
Quem dá de comer e beber a Ilhescas
Com sua linguagem seca de tijolo
E homens secos?
Ilhescas prepara a Toledo.
Quem dá de comer e beber a Santo Ildefonso
Que, suspenso à parede por El Greco,
Escreve inspirado pela Virgem?
Não vereis uma outra tela tão castiça:
Extraída à substância mineral da Espanha. (PCP, 589)
No sexto segmento do poema seguinte, “Toledo”, realiza uma verdadeira
análise da tela El entierro del Conde de Orgaz (1586-1588)
299
:
299
V. Anexos, Ilustrações.
126
Sobe para o céu o cavaleiro de Orgaz
Que inserido em dois planos
Ainda se comunica à terra
Pelo fogo comprimido de Toledo.
Cada figura toledana que o cerca
Participa da sua morte:
De ferro, surda.
O silêncio explode no quadro,
Na composição cerrada do primeiro plano:
Silêncio e secura de Espanha
Onde a morte, elemento ainda de vida,
Marca a ressurreição do homem nu
Que o segundo plano indica. (PCP, 591)
Nas suas leituras, além do livro de Manuel mez-Moreno inteiramente
dedicado a esse quadro
300
, Murilo valeu-se da observação de Juan Cassou,
marcada com dois traços, sobre uma dualidade, tão ao gosto do poeta, baseada na
dupla formação do pintor: (...) violenta antinomia, antinomia que constituye toda la
riqueza del genio del Greco, esta oposición perpetua entre su pasado oriental; es
decir, litúrgico, alusivo y riguroso, y la lección del Occidente histórico que aspira
incansablemente a aprisionar la realidad que huye.”
301
Nesse sentido, sublinhou na
obra citada de Eugène Dabit as duas diferentes visões sobre El Greco “(...) un
croyant et visionnaire, et les autres un peintre, un hommepara anotar em francês:
“il est tout ça.”
302
Não apenas os homens secos”, “descarnados”, retratados por El Greco
aludem a uma Castilha, a uma Espanha almejadas pela poética de Murilo, como
tamm a “espessura concreta” de Toledo tem seus correlatos na pintura e na
poesia. Murilo destacou, na monografia de Juan Cassou, uma afirmação que
aproxima El Greco a Góngora: “(...) Todo en el Greco, como en Góngora, es
apretado e inseparable, lívido y ceniciento, todo es duro”
303
. Talvez El Greco tenha
conhecido Góngora por intermédio de Fray Hortensio Paravicino, de quem deixou
um retrato. Góngora, por sua vez, escreveu um poema, “Inscripción para el sepulcro
de Domínico Greco”, por ocasião da morte do pintor em 1614. Assinalado por Murilo
em sua edição de Poemas y sonetos, significativamente, no soneto, o sepulcro é
“dura llave”:
300
GÓMEZ-MORENO, Manuel. El entierro del conde de Orgaz. Barcelona: Editorial Juventud, 1951.
301
CASSOU, Juan. El Greco. Trad. José López y López. Barcelona: Ediciones Hymsa, 1934, p. 95-
96.
302
DABIT, Eugène. Op. cit., p. 85.
127
Esta en forma elegante, oh peregrino,
de pórfido luciente dura llave
el pincel niega al mundo más süave,
que dio espíritu a leño, vida a lino.
Su nombre, aun de mayor aliento digno
que en los clarines de la Fama cabe,
el campo ilustra de ese mármol grave.
Venérale, y prosigue tu camino.
Yace el Griego. Here Naturaleza
arte, y el Arte, estudio; Iris, colores;
Febo, luces – si no sombras, Morfeo.
Tanta urna, a pesar de su dureza,
Lágrimas beba y cuantos suda olores
corteza funeral de árbol sabeo.
304
Ao lado do estilo, a temática religiosa, como na arte românica, tornou-se um
meio privilegiado da identificação de Murilo com a pintura de El Greco. Por exemplo,
o dramatismo de seus santos arrependidos, interlocutores emocionais dos crentes,
que se assemelham a eles. Repetia-se assim o efeito causado pela Virgem de
Covet, “Da imagem sacra distante, a proximidade do humano”:
Desde então ajusta ao homem
Seus anjos e seus santos.
O santo participa de s todos,
Comunga nossa matéria mineral,
Comunga nossa aridez e nossa lida.
Por isso El Greco trata-o como homem
Antes de o transladarem aos altares:
Homem castelhano vertical,
Submisso à lei interior que o alimenta e consome.
Quanto ao anjo: sem a ótica do homem,
Quem o situaria? (PCP, 592-593)
3. Velázquez, “eis a pintura”
Último poema da série dedicada ao Siglo de Oro em Tempo espanhol,
“Velázquez” pode ser considerado o centro nevrálgico da história da pintura
espanhola proposta por Murilo. A arte românica e El Greco fundam o horizonte”, o
303
CASSOU, Jean. Op. cit., p. 78.
128
“estilo” pictórico de Espanha, de Castela, enquanto Goya e os artistas do culo XX
avançam na modernidade. Para Murilo, Diego Velázquez (1599-1660) levaria ao
máximo algumas caracterísicas comuns a esse acervo, disseminadas ao longo do
poema:
Andaluz e castelhano,
Resume a tensão espanhola.
Entre precisão e força
Ordena sua paleta.
Eis a pintura.
Eis a matéria do homem a duas dimensões.
Pintando, Velázquez orienta
A rígida consciência de Espanha:
Orgullo castelhano de estrutura,
Ligado à língua e ao solo.
Velázquez sabe: pintar é elucidar o espaço
Aberto ou restrito
Pela marcha do pincel consciente
Velázquez sabe: a cor delimita a forma.
Situando a cor, seu pincel a define:
Suprime a fluidez, a suavidade,
Qualquer elemento opaco ou impreciso.
Suporte da verdade plástica
É o próprio grupo dos nobres:
Entre o rei e o niño de Vallecas
A continuidade da matéria enxuta.
A marcha do pincel voluntário
Constrói o homem na grandeza circunscrita:
Sua dimensão é a cor, a forma definida.
Eis o que o distingue dos outros:
Seu DUENDE não é visível
Como o de Goya, de El Greco.
Entre o minucioso “fantástico” de Flandres
E o gosto superlativo italiano
A linha castigada e enxuta de Velázquez
Demarca os precisos limites
Onde Espanha se reconhece autônoma. (PCP, 599-600)
304
Op. cit., p. 59.
129
Ao contrário de El Greco, por exemplo, a arte sacra não ocupou o centro da
obra de Velázquez, consagrando-se como retratista da corte de Felipe IV (1621-
1665). Pintou do rei aos anões, como Francisco Lezcano, el Niño de Vallecas (1643-
1645)
305
, com a mesma matéria enxuta”. Se El Greco é visionário e pintor ao
mesmo tempo, Velázquez é antes de tudo um pintor. Por isso, além dos importantes
ensaios de José Ortega y Gasset
306
, Murilo destacou uma consideração da
mencionada obra de Eugène Dabit: “(...) ele sabe compor com abastança, mas
jamais cai no decorativo como os Italianos. Mal ele procura exprimir os sentimentos,
ainda menos as idéias. Ele pinta, ele se exprime em pintura.”
307
Dessa maneira,
concentrou-se no pintor, no seu modo de pintar, chegando a ser a própria explicação
de uma arte: “Eis a pintura”. Para tanto, freqüentam o poema o verbo pintar e as
metonímias paleta e pincel.
Velázquez representa o artista consciente, seguro de seu ofício; os verbos
acionados por Murilo indicam essa postura: “ordena”, “orienta” e “sabe” (2 vezes). O
pincel não se deixa levar, marcha “consciente”, “voluntário”. O material de trabalho, a
cor, é a sua “dimensão”, delimitando e definindo a forma, assim como, nesse
momento, a palavra para Murilo. Mais uma vez, a pintura oferece lições para uma
poética: “Suprime a fluidez, a suavidade,/ Qualquer elemento opaco ou impreciso.” A
subtração, que na Virgem de Covet vem anulando as formas frouxas” e em El
Greco aparece em suas figuras “secas”, resulta em Velázquez no enxuto”. Portanto,
não é de estranhar que ele, no Murilograma a João Cabral de Melo Neto”, esteja
entre as preferências dos dois poetas, além de outro pintor em que o fazer se impõe,
Joan Miró.
No segmento final do poema, coloca-se Velázquez no contexto da pintura
espanhola e internacional. Para diferenciá-lo de El Greco e Goya, recorre-se ao
Duende, o encanto misterioso e inefável do cante flamenco, reminiscência da
Sevilha natal do pintor. Seu Duende não é explícito como o dramatismo que muitas
vezes habita as telas dos outros dois, ocultando-se em sua técnica. Por outro lado,
não vai aos extremos do minucioso” ‘fantástico’ de Flandres” e o “gosto superlativo
italiano”, este mencionado no trecho de Dabit, criando uma Espanha "autônoma”,
única, que paira sobre os modelos estrangeiros. Apesar do apreço que nutria pela
305
V. Anexos, Ilustrações.
306
Papeles sobre Velázquez y Goya (Madri: Revista de Occidente, 1950) e Velázquez (Madri: Espasa
Calpe, 1963).
307
DABIT, Eugène. Op. cit., p. 97.
130
Itália e pela Holanda, a Espanha sobressai para Murilo. Se, em relação à Itália, disse
a Cabral que era um país traduzido e, a Espanha, um país por traduzir, ao abordar a
Holanda em Carta geográfica necessitou de seu antípoda, a Espanha:
Esta Holanda de planícies, moinhos, canais, luz difusa, museus exemplares,
prodígio de construção da inteligência e da técnica opondo-se ao despotismo das
águas, exerceu sobre mim desde o primeiro momento uma fascinação que pareceria
singular num homem habitado, como eu, pela figura da Espanha. Certamente a
Holanda e a Espanha são antípodas; por isso mesmo no meu espírito não existe
conflito entre as duas potências, embora a Espanha me apareça mais prestigiosa.
(PCP, 1081)
4. O touro e toureiro Goya
Entre “Velázquez” e “Goya”, apenas o poema Chuva em Castela” a separar
quase um século. O poeta recolhe-se à meseta castelhana diante da decadência
espanhola e da esterilidade artística: “A história circula insatisfeita/ ao largo da
planície autárquica.” (PCP, 600). Entre as cores dos dois pintores, a chuva torrencial
“sacando o preto do branco”.
Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828), ao lado de El Greco, cedo
despertou a admiração de Murilo para a pintura espanhola, de acordo com
indicações de duas obras de sua biblioteca: na folha de rosto da monografia de
Pierre Fréberix
308
, está anotado “M.M 1928”, e na de Juan de la Encina
309
, a
dedicatória, “Ao Murilo com um grande abraço Athos – 1943”.
No poema de Tempo espanhol, Goya é visto sob a ótica da tauromaquia,
sobre a qual, logo adiante, aparecem na coletânea “O rito cruento” e “Na corrida”:
Ao mesmo tempo
Touro e toureiro.
Espanha afiada
Nos dedos segura.
Tem a força de ataque do animal
E a lucidez objetiva do cientista.
308
Goya. Paris: L’artisan du livre, 1928.
309
Goya: su mundo histórico y poético. xico: La Casa de España en México, 1939.
131
O gosto bem espanhol
De passar a vida ao fio da espada. (PCP, 600)
Entusiasta da tourada, Goya transformou-a em motivo pictórico ao longo de
sua obra. Entre 1815-1816, revelando um grande conhecimento da matéria, realizou
uma rie de gravuras intituladas La tauromaquia, que se encontra em edição de
1950 nas estantes de Murilo.
310
A gravura de mero 20 Ligeireza e Atrevimento
de Juanito Apiñani
311
- pode ter sido uma grande sugestão para o início do poema:
com a ajuda de um bastão, o toureiro sobrevoa o touro que investe, “força” e
“lucidez” simultâneas.
Apesar de ter sido pintor da nobreza, Goya não deixou de criticar a sociedade
e os acontecimentos de sua época, principalmente nas séries de gravuras que
deixou, os Caprichos e Desastres de la guerra. A respeito delas, assim se
manifestou Murilo, valorizando a postura “comprometida” do pintor espanhol:
(...) constituem um dos mais fortes libelos jamais levantados pela razão
humana contra os poderes do mal e da destruição, contra qualquer espécie de
guerra, de tortura e de intolerância. Protesto não contra a “guerra grande”, mas
contra as pequenas guerras cotidianas da vida individual, da vida social e política;
contra essas fragmentações da guerra que, somadas, constituem a guerra total.
Assim Goya, por meio do seu enorme poder plástico de captação das forças do mal
apresenta a luta interminável de libertação do homem de seus institintos primitivos,
criando uma obra que é, na sua essência, a de um civilizador.
312
Essa coragem, que parte da imagem da tourada, segue na 3
a
estrofe do
poema intensificada pelo adjetivo cruel – repetido 3 vezes – e pelo verbo investir:
Cruel para conhecer,
Cruel para delimitar
O terririo castigado,
Investindo alternadamente
O corpo da Espanha adversa,
O rosto bifronte da Igreja.
310
GOYA, Francisco de. La tauromaquia. Introdução e notas de Mariano Sanchez de Palacios. Madri:
Aguado, 1950
.
311
V. Anexos, Imagens.
312
“O homem Vedova” In A invenção do finito (PCP, 1355-1356).
132
Cruel mesmo quando trata
Com aparente carinho
O rosa, o prateado e o cinza. (PCP, 600-601)
A outra face da Igreja foi denunciada por Goya nas obras em que expressa a
irracionalidade da Inquisição e o fanatismo religioso. Também Murilo, nos poemas
finais de Tempo espanhol “O padre cego” e “O Cristo subterrâneo”
313
voltou-se
contra a Igreja irmanada com a didatura e os poderosos. Por outro lado, Goya, como
Velázquez, pouco praticou a tradicional pintura de tema religioso. Nesse terreno, ao
mesmo tempo que atacava a Igreja nos Caprichos, encarregou-se em 1798 do
afresco para a cúpula e abóbada da igreja de San Antonio de la Florida. Em lugar do
modelo da cúpula como uma esfera do divino, Goya representou Santo Antonio na
paisagem rochosa da Espanha, aparecendo diante de uma multidão apinhada atrás
de um parapeito, como se tratasse de um fato da vida pública.
314
O encanto de
Murilo por tal obra fez registrá-lo em Espaço espanhol:
Sempre que visito Madrid volto a San Antonio de la Florida, onde (menos o
crânio) sepultaram Goya, sob uma de suas obras maiores, os afrescos que ajudaram
o advento da modernidade; podemos observá-los melhor com a ajuda dum espelho
adrede. Faltando a Goya o timbre religioso, os afrescos resultam numa transposição
da vida madrilena muito mais que da de Santo Antônio. Obra profana, enigmática,
tocada de sensualidade, culmina numa invenção de cor e desenho, planificando o
arbitrário. Anuncia não Manet e Degas, mas também o “pintor” Baudelaire, que de
resto no seu poema À une Madame pressentiu o charme trágico da Espanha. (PCP,
1133)
Nesse caso, ao aproximar o divino do humano, Goya pertenceria à linhagem
do artista anônimo da Virgem de Covet e de El Greco.
Significativo que Murilo não tenha feito nenhuma alusão no poema de Tempo
espanhol às criações fantásticas e pertubadoras dos Caprichos, e sobretudo à fase
final do pintor, as chamadas pinturas negras” e as gravuras dos Disparates, mais
sugestivas para alguém que freqüentou o surrealismo. Nesse momento de sua
poesia, preferiu fixar-se em um Goya mais incisivo, mais concreto, para utilizar o
313
V. Capítulo 2.
314
V. Anexos, Ilustrações.
133
termo chave da coletânea de 1959, que inclusive “inaugura o povo espanhol” (4
a
estrofe). Por isso, a afirmação atribuída a Goya no livro de Pierre Frébérix,
assinalada por Murilo talvez por volta de 1928, pode ser mais apropriada para o
autor de Poemas de 1930 do que o de Tempo espanhol: “A pintura, ele declara,
igual que a poesia, escolhe no universo o que ela encontra de mais apropriado a
seus fins; ela reúne em um só personagem fantástico as circunstâncias que a
natureza apresenta esparsas entre diversos indivíduos, e é apenas graças a esta
combinação sábia e engenhosa que o artista pode aspirar ao título de inventor e
deixar de ser um copista servil.”
315
5. A desordem e a ordem do século XX: Picasso, Gris e Miró
Depois de Goya, sucedem-se alguns poemas até atingirmos o cerne da arte
moderna na Espanha, profundamente vinculada à Paris das vanguardas: Picasso,
Juan Gris e Joan Miró.
Como vimos, Murilo, no começo da década de 20, talvez conhecesse a
“fase azul” de Pablo Ruiz Picasso (1881-1973). De todos os modos, a partir do
contato com a Europa e a Espanha, o pintor passou a ocupar lugar de relevo em seu
museu em forma de palavra. No poema de Tempo espanhol, valoriza-lhe “o estilo de
contrastes”, aliás tamm cultivado pelo poeta em grande parte de sua obra:
“Construindo e destruindo ao mesmo tempo” e fundindo “a força e a contenção”.
Também as metamorfoses” de técnicas e estilos enfrentados pelo pintor seduziram
o múltiplo Murilo. Mais adiante, no segundo segmento de “Guernica”, focalizou um
setor da vasta e impactante tela de 1937:
Sem a beleza do rito castigado,
Aumentando a comarca da fome,
O touro de armas blindadas
Investiu contra a razão:
Eis que já Picasso o fixou,
Destruindo a desordem bárbara,
Com duro rigor espanhol,
Na arquitetura do quadro. (PCP, 618)
315
Op. cit., p. 70.
134
No retrato-relâmpago dedicado a Picasso, retomou o quadro: “O enigma da
tauromaquia, transposto em chave plástico-política de exegese da guerra civil,
explodirá numa dimensão cósmica em Guernica’” (PCP, 1247). Justamente nesse
texto, aproveitou como metáfora crítica a predileção do pintor pela tauromaquia,
explorada ao longo de sua trajetória, assim como fizera com Goya: “Permanecerá
toureiro durante a vida inteira; avesso ao bizanistismo das teorias, polêmico e
ambíguo, toureará os monstros Velázquez, Goya, Delacroix; toureará a pintura
européia do século XX, fechando o ciclo histórico iniciado com a Renascença.”
(PCP, 1246). Ainda segundo Murilo, exacerba “as forças passionais do próprio
instinto”, resultando em um romântico” Picasso, artista de gênio”, freada apenas
durante a militância cubista: “O tempo de hoje, tempo coletivo, continua a ser o
tempo particular do superindividualista Pablo Picasso, provocador da própria
apoteose, distante quase sempre, salvo no período cubista, da rigidez estrutural;
fértil em improvisações e scherzi, infatigável operador do figurativismo, mormente
através dos esquemas da ‘deformação’; de Picasso, mestre de metamorfoses, que
se dá romanticamente em espetáculo, (...)” (PCP, 1247).
Assim, o contraste com o poema seguinte de Tempo espanhol, “Juan Gris”,
torna-se mais evidente, pois se detém em um dos maiores representantes do
cubismo. Da multiplicidade de Picasso passamos à concisão de Gris. Vizinho de
estudio de Picasso em Paris, José Victoriano González (1887-1927), nome
verdadeiro do pintor, impulsionou a passagem do chamado “cubismo analíticopara
o “cubismo sintético”. No cubismo analítico”, fracionava-se a figura em formas
essenciais, decompondo geometricamente os planos para destruir o seu aspecto
aparente, exterior. o “cubismo sintético” procurou o equilíbrio entre a geometria e
o mundo da experiência, ao trazer para a obra objetos da vida cotidiana, a exemplo
das recorrentes garrafas, vasos, xícaras e guitarras. Empregou-se, então, a técnica
do papier collé, que consistia em colar no quadro materiais diversos como recorte de
jornal, de papel de parede ou cartões. Entre 1912 e 1914, Gris levou ao máximo
essa tendência, com rigor de formas e cores.
Embora tenha acompanhado os quadros cubistas de Ismael Nery, entre 1922
e 1927, Murilo elegeu como pintores preferidos os relacionados ao surrealismo, De
Chirico e Ernst. Contudo, data pelo menos de sua primeira temporada na Europa
uma retomada do cubismo, como verificamos na anotação na folha de rosto da
segunda edição de 1946 da obra de Daniel-Henry Kahnweiller, Juan Gris sa vie, son
135
oeuvre, ses ecrits: “Murilo Mendes. París 1955”, ano do início da composição de
Tempo espanhol, que reserva um poema ao pintor:
Espanha, mestra do espaço,
Deu a pureza, medida
Na área total da pintura
Com o gênio da concisão,
Pelo pincel de Juan Gris.
Nessa pintura pensada
Com clareza dialética,
Espanha, dita “irracional”,
Pelos planos de Juan Gris
Mostra o acordo e a simetria. (PCP, 617)
No museu que percorremos, trata-se do poema mais conciso e medido, com
duas estrofes de cinco versos heptassílabos. Cada estrofe contém um período: na
primeira, a ordem sintática é direta, com sujeito, predicado e complementos que
informam lugar, modo e instrumento; na segunda estrofe, esses elementos
sintáticos sofrem um reordenação. Se fizermos uma correspondência sintática com
os versos da primeira, teríamos a seqüência 3-4-1-5-2. Assim, Murilo simula no nível
sintático a nova ordenação a que Gris submete as formas nos seus quadros.
Não se incorporou nenhuma palavra que remetesse às figuras pintadas por
Gris. O que interessa é traçar um breve e certeiro juízo a respeito dessa pintura.
Para tanto, os vocábulos caracterizam tanto a produção de Gris, quanto sugerem um
tipo de poética que interessava, até certo ponto, a Murilo, ao compor a eliminação do
excesso (pureza, concisão) e da espontaneidade (medida, pensada, simetria).
Apesar da longa temporada parisiense, coloca-se Gris como devedor e
revelador do país natal, sujeito gramatical do poema. Uma Espanha “irracional”,
suposta visão do senso comum de países mais ponderados, seria negada pelas
características da pintura cubista. Seguindo o paralelo entre a pintura e a poesia,
poderíamos substituir o irracional” por surrealista”, rótulo que quiseram selar na
poesia de Murilo, mas que nesse momento vinha sendo questionado por outros
parâmetros. Contudo, persistia a tentativa de unir as oposições, a partir da clareza
dialética e do acordo.
Essa não é uma faceta definitiva da percepção estética de Murilo, faltando
ainda o último poema de seu museu espanhol. Peça viva”, pois conheceu
136
pessoalmente Joan Miró, “em Paris, Barcelona, Palma de Maiorca, Roma” (PCP,
1775). O contato com o artista catalão revela-se nas três litografias na coleção de
artes plásticas do brasileiro, uma exibindo a data de 1958 e outra, uma dedicatória
de 1963.
316
Além do poema de Tempo espanhol, Miró rendeu mais um poema
recolhido na coletânea em francês Papiers e um retrato relâmpago da 2
a
série,
datados respectivamente de 1969 e de 1973. Isso equivale a pelo menos 15 anos de
reflexão a respeito do pintor, sem contar que provavelmente lera o fundamental
ensaio de Cabral, publicado no Brasil em 1952.
“Joan Miró” é o único poema da galeria muriliana em que o se menciona
uma referência geogrática, e por extensão, histórico-cultural. Se nos anteriores os
pintores representavam Espanha, Catalunha ou Castela, aqui o artista paira livre
acima de países e regiões:
Soltas a sigla, o pássaro e o losango.
Também sabes deixar em liberdade
O roxo, qualquer azul e o vermelho.
Todas as cores podem aproximar-se
Quando um menino as conduz no sol
E cria a fosforescência:
A ordem que se desintegra
Forma outra ordem ajuntada
Ao real – este obscuro mito. (PCP, 618)
A poesia tamm aproximou Murilo e Miró, pois o pintor manteve fortes laços
com a literatura, desde a escrita de poemas à criação de quadros poemas,
passando pela participação na edição de livros. Na década de 20 em Paris,
estabeleceu amizade com importantes poetas surrealistas, como Robert Desnos,
Benjamim Péret e Paul Éluard, que lhe abriram novas perspectivas, chegando a
explorar em textos a escrita automática. Após o surrealismo, ambos ainda
coincidiam nas preferências literárias, voltando-se aos grandes escritores místicos
da literatura espanhola, San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Jesús. Miró, que em
1942 atravessava uma etapa decisiva de sua obra, dividiu-se entre os místicos
espanhóis e os franceses que inauguraram a poesia moderna: “(...) me enriqueci
enormemente durante esse período de solidão. Lia todo o tempo san Juan de la
Cruz, santa Teresa e poesia - Mallarmé, Rimbaud - . Era uma existência ascética:
316
V. Anexos, Artistas plásticos espanhóis no acervo de Murilo Mendes (CEMM – Juiz de Fora).
137
apenas trabalho.”
317
Utilizava inclusive as comuns antíteses que expressavam a
experiência mística para descrever suas intenções na pintura: “Na verdade, o que
busco é um movimento imóvel, algo que seria equivalente ao que se chama
eloqüência do silêncio ou o que san Juan de la Cruz designava, acho, com as
palavras ‘música calada’”.
318
A oposição mencionada em entrevista de 1959
pertence a 15
a
estrofe de Cántico:
la noche sosegada
en par de los levantes del aurora,
la música callada,
la soledad sonora,
la cena que recrea y enamora.
319
Quanto a Murilo, anotou, por exemplo, os Avisos y setencias espirituales” de
San Juan de la Cruz, sobretudo os que se referem às privações da alma, como o de
número 352:
Reine en tu alma siempre un estudio de inclinarse, no a lo cil, sino a lo más
dificultoso; no a lo más gustoso, sino a lo más desabrido; no a lo más alto y precioso,
sino a lo más bajo y despreciado; no a lo más, sino a lo que es menos; no a lo que es
querer algo, sino a no querer nada, no a andar buscando lo mejor de las cosas sino
lo peor. Deseando entrar por el amor de Jesuscristo en la desnudez, vacío y pobreza
de cuanto hay en el mundo. [sublinhado por Murilo]
320
No poema “São João da Cruz” de Tempo espanhol, publicado no mesmo ano
da entrevista de Miró, explora esses princípios: “Viver: do seu silêncio se
aprendendo.”; “Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.”
Portanto, Murilo valoriza a intensa relação de Miró com a poesia na abertura
do retrato-relâmpago “Miró declara que o pode separar a poesia da pintura.”
(PCP, 1275) e nas justaposições “peinture-poésie miròïenne” e peintre-poète” do
poema de Papiers (PCP, 1597).
317
ROWEL, Margit, org. Op. cit., p. 295-296.
318
Idem, ibidem, 336.
319
SAN JUAN DE LA CRUZ. Poesía. 11
a
ed. Edição de Domingo Ynduráin. Madri: Cátedra, 2000, p.
252.
320
SAN JUAN DE LA CRUZ. Obras escogidas. Edição de Ignacio B. Anzoátegui. 2
a
ed. Buenos Aires:
Espasa Calpe, 1945, p. 119
138
Ainda no terreno literário, Miró criou “títulos-poemas” para seus quadros:
seguindo a lição surrealista, situa seres comuns, como a mulher ou o pássaro, em
circunstâncias inusitadas. Os versos 4-6 do poema de Murilo “Todas as cores
podem aproximar-se/ Quando um menino as conduz ao sol/ E cria a fosforescência:”
o apenas metaforiza a invenção do pintor, como também recupera a atmosfera
dos “títulos-poemas”. Um deles, datado de 1954, refere-se ao brilho sob a luz do dia:
“A festa dos círculos fosforescentes no nascimento do dia.”
321
No retrato-relâmpago,
os “títulos-poemas” aparecem como confronto a nossa lógica: “Sabe que o mundo
através de seus sistemas gastos impede por exemplo o pássaro de telegrafar à
pedra; impede as estrelas de jogarem os dados; a formiga de pedir a palavra; um
cachorro de puxar aquela moça por um cordel.” (PCP, 1275).
Embora admire em Miró a dimensão onírica e libertária, Murilo não se atreve
a lhe colocar, como tampouco a si mesmo, a designação de surrealista: “Nem
surrealista nem abstrato ortodoxo, escapa às etiquetas.” (PCP, 1275). Da mesma
forma o próprio Miró descartava as classificações:
O senhor ouviu falar de uma bobagem mais considerável do que a
“abstração-abstração”? E me convidam a sua casa deserta, como se os signos que
transcrevi sobre uma tela, desde o momento em que correspondem a uma
representação concreta de meu espírito, não possuíssem uma profunda realidade,
não fizessem parte da realidade! Por outro lado, veja o senhor, concedo uma
importância cada vez maior à matéria de minhas obras. Uma matéria rica e vigorosa
me parece necessária para dar ao espectador esse golpe em pleno rosto que deve
alcançá-lo antes de
intervir a reflexão. Assim, a poesia, plasticamente expressada,
fala sua própria linguagem.
322
Como Cabral em Barcelona no final dos anos 40, Murilo pôde visitar a casa
de Miró em Palma de Mallorca onde guardava os mais variados objetos que utilizava
em suas obras: “(...) bulindo os olhos pequenos, maliciosos, me indica com o dedo
os objetos de artesanato que eu mal consigo elogiar: ele me precede sublinhando
diante de cada um : ‘Es muy bonito...es precioso’. Não há dúvida.” (PCP, 1191).
Murilo, que cada vez mais dava importância ao trabalho artístico, reconhecia
em Miró o “artesão refinado”. Ao retomar no retrato-relâmpago a imagem do
321
Entrevista de 1937 (ROWEL, Margit, org. Op. cit., p. 318).
139
“menino” de Tempo espanhol, ressalta-a a partir de seu tradicional jogo de
contrários: “Organizando a infância futura, consegue, em todos os casos, conciliar
sonho e disciplina racional.” (PCP, 1275). Os versos finais do poema relacionam-se
com o depoimento acima de Miró, na medida em que o contrapõe sua pintura ao
“real”, este colocado sob suspeita como obscuro mito”. E novamente o retrato-
relâmpago desfaz em mão dupla uma suposta contradição: Miró extrai o
maravilhoso da coisa imediata; transforma em realidade a faixa onírica.” (PCP,
1275).
6. Da Espanha ao Brasil: Isabel Pons
Embora o museu de Murilo termine com Miró em Tempo espanhol, ele
prosseguiu um pouco mais em A invenção do finito. Da poesia à prosa, surge, em
meio a vários artistas italianos, a hispano-brasileira Isabel Pons Tranzo (1912),
término da reflexão muriliana ao longo da história da arte espanhola.
Isabel Pons pertence a uma geração de artistas espanhóis, como Joan Ponç,
Pedro Tort e Fernando Odriozola, que vieram para o Brasil e realizaram parte
importante de sua obra.
323
Nascida em Barcelona, desenvolveu uma produção
figurativa, entre retratos e paisagens. Instalando-se no Rio de Janeiro em 1948,
integrou-se não apenas ao cenário artístico brasileiro, mas a todo um contexto muito
diferente de seu país natal: “(....) Acarioquei-me em meio a esta luminosidade
preguiçosa, a esta bagunça deliciosa, em que tudo é tão espontâneo, às vezes
inconseqüente até, mas indispensável para o meu oxigênio interior hoje (...)”
324
E tal
atmosfera acompanhou a mudança decisiva em seu trabalho ao adotar em 1959 a
técnica da gravura em metal: “Creio que nasci gravadora. Quando descobri a
gravura, nunca mais quis saber da pintura. A gravura me depurou, fez-me muito
mais refinada que a pintura, ensinando-me a trabalhar cada milímetro da obra, se
bem que a pintura tenha enriquecido minha gravura, ao obrigar-me a nela incorporar
322
Idem, ibidem, p. 214-215.
323
V. CARVALHO, Agda. A imagem poética hispânica no Brasil: a contribuição pictórica de Isabel
Pons, Pedro Tort, Fernando Odriozola e Joan Ponç. Tese de doutorado. ECA – USP, 2002.
324
O Estado de São Paulo, 12 de junho de 1966 Apud CARVALHO, Agda. Op. cit., p. 31.
140
a cor.”
325
A dimensão artesanal do trabalho de Isabel foi um dos grandes atrativos
para Murilo.
O texto “Isabel Pons”, como muitos outros de A invenção do finito,
anteriormente fez parte do folheto da exposição no Centro Culturale Italo-Brasiliano,
em Milão, de 28 de janeiro a 13 de fevereiro de 1966, em tradução ao italiano de
Giuliano Macchi.
326
Vem com o lugar e a data de elaboração, “Roma, 1-1-1966”, ou
seja, quando Murilo encerrava os poemas de Convergência. Dessa maneira, a
apreciação crítica sobre a artista pode ser relacionada à última coletânea do poeta.
Sintomaticamente, a sua primeira seção é denominada de “Grafitos”, termo utilizado
para as inscrições na gravura de Isabel: “Não se trata de transcrever grafitos: eles se
nos apresentam como protagonistas do muro, da ferrugem, da madeira.” (PCP,
1331). Assim como Isabel, nesse momento Murilo cultivava uma arte mais objetiva
que subjetiva”.
Por outro lado, o olhar de Murilo, habituado aos “fortes contrastes”, identificou
na produção de Isabel “finura e virilidade do traço”, “emprego de tons ora secos,
fechados, ora alegres”, “austeridade e fantasia”. As oposições anunciam a situação
de uma artista entre dois países, Brasil e Espanha, compartilhada pelo autor de
Tempo espanhol: “(...) às vezes se cruzam aqui a secura terrosa da nativa Espanha
e a desenvoltura, o lirismo do Brasil, adotivo.” (PCP, 1331). A “desenvoltura” e o
“lirismo” ganhos pela obra de Isabel na vinda ao Brasil teriam sua contrapartida na
“secura” e “concretude” adquiridas pela poesia de Murilo no embate com a Espanha.
No entanto, o poeta crítico não se limitou a essa conquista; constantemente
instigado pela imaginação, entende que nas gravuras de Isabel “dá-se a passagem
do natural ao super-real”: Ela faz da forja um cenário metafísico, sobrepondo-lhe
uma segunda natureza.” E repassa, de maneira poética, as principais obras de
Isabel:
1 - “Atribui ao pássaro e ao inseto a monumentalidade que se diminui nos edifícios”:
por exemplo, Gafanhoto (1960) e Papagaio (1967);
2 - “O azulão transforma-se em habitante de uma constelação quadrada; em outra
gravura ei-lo que vira uma astronave”: Azulão (1961);
3 “Pela força da matéria recriada o esgotado tema do ‘noturno’ é elevado a uma
nova dignidade”: Noturno (1961);
325
Idem, ibidem, p. 36-37.
326
Acervo da Biblioteca do MASP (Museu de Arte de São Paulo).
141
4 - “um ‘grande personagem’ tanto pode pertencer ao reino mineral, como ao vegetal
ou ao animal”: refere-se à obra de mesmo título de 1962, reproduzida no folheto da
exposição de 1966.
327
E a última frase de Murilo tamm pode ser uma síntese para a série de
artistas espanhóis expostos neste museu: “Sob o signo da metamorfose chegamos à
contemplação de uma natureza domada; resultado da íntima aliança entre arte e
artesanato.”
327
V. Anexos, Imagens.
142
CAPÍTULO 5: Paisagens e figuras da Espanha de Cabral
A Espanha de Cabral é mais a da “paisagem com figuras”, com toureiros,
bailarinas e cantores de flamenco, do que a dos livros e das obras de arte. Nesse
reduzido repertório de temas, os elementos de uma Espanha “exótica” ou “folclórica”
passaram a ancorar firmemente um projeto poético. A partir de Paisagens com
figuras, quase todas as coletâneas do poeta incorporaram a temática espanhola,
recebendo sua síntese em Sevilha andando (1990). Essa constância estimulou
seleções como a de Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate, Poemas sobre España de
João Cabral de Melo Neto (1964)
328
e a da editora Nova Fronteira, Poemas
sevilhanos (1999).
Propomos para este capítulo três eixos para a análise das imagens da
Espanha na poesia cabralina. O primeiro deles versa sobre a paisagem,
atravessando Castela, Catalunha, Andaluzia, e fixando-se em Sevilha. O apreço
pela paisagem espanhola dialoga com a chamada Geração de 98 e seus
sucessores, que colocaram em circulação na Espanha esse parâmetro. Depois,
exploramos a poesia dedicada à tauromaquia e ao flamenco, conjuntos relevantes
não apenas na lírica em ngua portuguesa, mas mesmo em relação à espanhola.
Por último, centramo-nos nos poemas que abordam a religiosidade espanhola nas
três últimas coletâneas de Cabral Agrestes (1985), Crime na calle Relator (1987) e
Sevilha andando (1990) , provocações tardias a sua confissão, na carta a Murilo
de 1959, de apenas tratar do aspecto material da Espanha.
1. Paisagem de Espanha
1.1.A secura de Castela e do Nordeste
Ao se deparar com a paisagem espanhola, Cabral redescobriu a nordestina:
“O meu primeiro posto no exterior (e meu primeiro contato com o exterior) foi
Barcelona, que está na Catalunha. Eu ia muitas vezes a Madri, isto é, atravessava
328
V. Anexos, Traduções da obra de João Cabral de Melo Neto na Espanha.
143
Aragão e a Mancha. encontrei a secura e a essencialidade do sertão
nordestino.”
329
A impressão deixada fez com que a Espanha ingressasse como tema
na sua obra com um livro que chamou de Paisagens com figuras, escrito entre 1954
e 1955, sete anos depois do encontro inicial, quando teve que retornar ao Brasil
acusado de subversão. “Memórias” precoces, a distância motivou o poeta a
recuperar nos versos os espaços percorridos.
O termo paisagemjá aparecera nas duas primeiras partes de O cão sem
plumas, denominadas “Paisagem do Capibaribe”. Além de prestar contas à tradição
do romance nordestino da década de 30, a partir de Paisagens com figuras Cabral
estabelecia nexos com uma vertente inaugurada por escritores da literatura
espanhola conhecidos como Geração de 98, Azorín, Miguel de Unamuno, Antonio
Machado, entre outros. No começo do século XX, abalados pelo desastre da guerra
com os Estados Unidos e pela perda das últimas colônias em 1898, promoveram a
discussão de uma essência” da Espanha. Para isso, voltaram-se à paisagem e ao
homem que a habitava, especialmente a região de Castela, núcleo formador da
nação, segundo a visão deles. A valorização do espaço levou Azorín a afirmar que
“a base do patriotismo é a geografia”.
330
Embasados pelo determinismo de Taine,
consideravam que as condições físicas do lugar imprimiam traços no homem. Por
isso, são sintomáticos títulos como Paisajes (1902), de Unamuno, e España.
Hombres y paisajes (1909), de Azorín. Tendência que continuou, pois Gerardo
Diego publicou um Paisaje con figuras no mesmo ano das Duas águas de Cabral,
1956.
331
Diego e Cabral, não por acaso, traziam um gênero de pintura em seus
títulos, refletindo que literatura e artes psticas haviam compartilhado objetivos,
como aponta María del Carmen Pena no estudo Pintura de paisaje e ideología. La
generación de 98:
Pintura y literatura habían de coincidir en la búsqueda o la invención de un
ideal perdido, que en ocasiones se tornaba amargo y descarnado al poner de relieve
una tierra seca y unos habitantes pobres ligados a los ancestros más oscuros,
mientras que en otras ocasiones se cargaba de un lirismo evasivo penetrado todo él
329
Entrevista a Veja. 28 de junho de 1972, p. 4.
330
Apud RAMSDEN, Herbert. “El problema de España” In Historia y crítica de la literatura española.
Francisco Rico, org. v. 6. Modernismo y 98. José-Carlos Mainer, org. Barcelona: Crítica, 1980, p. 20-
26.
331
Essa observação devo ao Prof. Augusto Massi.
144
de un claro neorromanticismo: en ese sentimiento se formaría gran parte del paisaje
del 98, con sus modelos descriptivos cargados de melancolía, de sobriedad (...).
332
O cenário de uma Espanha basicamente rural que esses autores tinham
diante de si não era muito diferente daquele que Cabral deixara em Pernambuco nos
anos 40. Por outro lado, os centros urbanos, ao contrário de muitos poetas
modernos, o despertaram o interesse do poeta brasileiro: nem o Rio de Janeiro
nem Barcelona, por exemplo, comparecem em sua poesia. E foi o campo desolado e
árido de Castela que o fez recordar o Nordeste brasileiro.
Como desde o início de sua estada espanhola Cabral percorreu a história da
literatura espanhola, é inevitável que tenha consultado os escritores da Geração de
98. Ao analisar os poemas de Paisagens com figuras, percebemos que eles podem
ter-lhe fornecido alguns princípios descritivos. A paisagem cabralina não é apenas
memória da retina, mas também da leitura.
A primeira paisagem espanhola, e por extensão, primeiro poema sobre a
Espanha na obra de Cabral, é “Medinaceli” (Terra provável do autor anônimo do
Cantar do Mio Cid). Recorre, pois, ao poema fundador da literatura espanhola para
inaugurar essa vertente. Anteriormente, a descrição espacial no Poema de Mio Cid
teria sido uma das referências na composição d’O rio. Tomemos, por exemplo, uma
passagem do primeiro canto, em que Cid cavalga por diversos lugares, onde
homens ingressam ao seu grupo:
Otro dia mañana pienssa de cavalgar.
Ixiendos va de tierra el Campeador leal;
de siniestro Sant Estevan -una buena çipdad-
de diestro Alion las torres que moros las han,
passo por Alcobiella que de Castiella fin es ya,
la Calçada de Quinea iva la traspassar,
sobre Navas de Palos el Duero va pasar,
a la Figeruela mio Çid iva posar.
Van acogiendo yentes de todas partes.
333
332
Madri: Taurus, 1998, p. 54.
333
Versos 394-403 do Cantar I. Poema de Mio Cid. 18
a
ed. Edição de Colin Smith. Madri: Cátedra,
1993, p. 150-151.
145
Desta vez, acompanhemos um fragmento d'O rio, Do Apolinário a Paço
Fundo”:
Para o mar vou descendo
por essa estrada da ribeira.
A terra vou deixando
de minha infância primeira.
Vou deixando uma terra
reduzida à sua areia,
terra onde as coisas vivem
a natureza da pedra.
À mão direita os ermos
do Brejo da Madre de Deus,
Taquaritinga à esquerda,
onde o ermo é sempre o mesmo.
Brejo ou Taquaritinga,
Mão direita ou mão esquerda,
vou entre coisas poucas
e secas além de sua pedra. (SA, 91)
Significativo indício da leitura contumaz do Poema de Mio Cid, uma grande
semelhança das expressões “Ixiendos va de tierra” e “A terra vou deixando”. Os
topônimos sucedem-se, realçando-se, em meio a poucas descrições, suas
sonoridades e sugestões semânticas. Reforça-se a incorporação do épico espanhol
na apresentação do binômio espacial: “de siniestro Sant Estevan -una buena
çipdad-/ de diestro Alion las torres que moros las han,”; “À mão direita os ermos/
do Brejo da Madre de Deus,/ Taquaritinga à esquerda,/ onde o ermo é sempre o
mesmo.”.
Durante a viagem, como ao grupo de Cid “Van acogiendo yentes de todas
partes.”, o rio Capibaribe é acompanhado pelos retirantes da seca. Até atingirem
seus destinos, percorrem paisagens semelhantes. Cid e seus companheiros
enfrentam os campos de Castela, onde “La tierra es angosta e sobejana de
mala”
334
, enquanto o Capibaribe segue entre coisas poucas/ e secas além de sua
334
Verso 46 do Cantar I. Idem, ibidem, p. 166.
146
pedra.” A aspereza não é apenas a do ritmo, mas também caracteriza a natureza
representada. A equiparação entre Nordeste-Castela, iniciada em Paisagens com
figuras, já se insinuava n'O rio.
Os escritores espanhóis tamm haviam encontrado no poema épico um
grande exemplo de figuração da paisagem espanhola. Azorín, por exemplo, no
importante ensaio El paisaje en la poesía”, confirma essa referência: “(...) En el
Poema del Cid aparecen nombres de villas, lugares y campiños; de tarde en tarde el
poeta, en un verso, con una indicación sumarísima, compendiosa, nos hace
columbrar un paisaje. Pero como en la llanura castellana, monótona y calcinada,
tienen un valor extraordinario, una vida profunda, unos chopos, unos olmos o unos
alisos que la vista divisa en la extensión inmensa, así en la llanura del Poema del
Cid estas breves indicaciones de paisajes adquieren una significación
considerable.”
335
Mas, como Cabral propõe, trata-se de uma “paisagem com figuras”,
ou melhor, com homens; nesse sentido, Unamuno sugere que a falta de água
condiciona toda a existência: “Se ha dicho que en la literatura castellana apenas hay
paisajes, pero sin demasiada paradoja cabría retrucar que apenas hay en ella más
que paisaje, que los hombres del Poema del Cid o los del Romancero son como
encinas o como rocas, de recio leño o de piedra tierna y de un paisaje sin agua.
Pues el agua es como la conciencia del paisaje; (...) Pero en las tierras sin agua,
hasta los hombres no son más que paisajes, pintura de Dios. ¡Pero que pintura!”
336
No seu poema, Cabral baseia-se na hipótese de estudiosos como Ramón
Menendez Pidal, de que o autor do Poema de Mío Cid teria nascido na cidade de
Medinaceli, um dos palcos da ação do épico:
Do alto de sua montanha
numa lenta hemorragia
do esqueleto já folgado
a cidade se esvazia.
Puseram Medinaceli
bem na entrada de Castela
como no alto de um portão
se põe um leão de pedra.
335
Clásicos y modernos (1913) In Obras escogidas. v. 2. Ensayos. Edição de Miguel Ángel Lozano
Marco. Madri: Espasa Calpe, 1988, p. 886.
336
Andanzas y visiones españolas (1922) In Obras completas. v. 1. Paisajes y ensayos. Madri:
Escelicer, 1966, p. 495.
147
Medinaceli era o centro
(nesse elevado plantão)
do tabuleiro das guerras
entre Castela e o Islão,
entre Leão e Castela,
entre Castela e Aragão,
entre barão e seu rei,
entre o rei e o infanção,
onde engenheiros, armados
com abençoados projetos,
lograram edificar
todo um deserto modelo.
Agora, Medinaceli
é cidade que se esvai:
mais desce por esta estrada
do que esta estrada lhe traz.
Pouca coisa lhe sobrou
senão ocos monumentos,
senão a praça esvaída
que imita o geral exemplo;
pouca coisa lhe sobrou
se não foi o poemão
que poeta daqui contou
(talvez cantou, cantochão),
que poeta daqui escreveu
com a dureza de mão
com que hoje a gente daqui
diz em silêncio seu não. (SA, 120-121)
Os pontos em comum entre Castela e o Nordeste, implícitas em O rio,
tornam-se mais claras. O sertão pernambucano, como Medinaceli, vive um processo
de esvaziamento, como aparecera em O rio: Por trás do que lembro, / ouvi de
uma terra desertada,/ vaziada, não vazia,”. O “esvaziar” não é apenas de pessoas,
mas tamm de significados. Entre a 2
a
e a 4
a
estrofe, o poema volta-se para o
passado, no qual “Medinaceli era o centro”. Em contraste com o imobilismo e o vazio
predominantes, sucedem-se nos versos o movimento e a coletividade de reinos,
regiões e forças políticas das lutas da História. E, na 6
a
estrofe, retorno à atualidade,
o verbo de “esvaziar” passa a “esvair”, intensificando a noção de desaparecimento,
de esgotamento daquele período.
148
Na 5
a
estrofe, adentra-se a cidade, na tentativa de encontrar vestígios do que
aconteceu, mas “Pouca coisa lhe sobrou/ senão ocos monumentos”. A escassez,
traço forte a ligar Castela e o Nordeste, revela-se no poema a partir da preposição
“senão”, logo confrontada pela condicional homófona “se o”, singularizando o que
de mais importante restou da antiga Medinaceli. O “poemão” vale mais que osocos
monumentos”; o monumento literário sobrepõe-se à paisagem, até esse ponto “sem
figuras”, quase uma “cidade fantasma”. Por sua vez, o signo “dureza” correlaciona
paisagem-homem-obra: um poema com a “dureza” de forma e de conteúdo como o
Mio Cid fora realizado “com a dureza de mão” de um autor, que por sua vez nasceu
em uma cidade “dura”, assim caracterizada na imagem do “leão de pedra”.
O verso “com a dureza de mão” conforma duas dimensões temporais, tanto a
forma de escrever do autor medieval quanto a severidade do trato pessoal “com que
hoje a gente daqui/ diz em silêncio seu não. O “silêncio”, que domina a cidade
esvaziada, no verso final remete à censura que cala vozes dissonantes,
experimentada durante décadas na Espanha franquista. Dessa maneira, o não
expressa um tipo de resistência, não verbalizado, mas de qualquer modo percebido,
de discordância com a ordem vigente.
Antonio Machado, no poema “A orillas del Duero”, de Campos de Castilla
(1907-1917) no qual, para Azorín, “a paisagem adquire sua plenitude, seu cabal
desenvolvimento”
337
tamm contrastara um passado guerreiro da figura de Mío
Cid com a decadência atual:
¡Oh, tierra triste y noble,
la de los altos llanos y yermos y roquedas,
de campos sin arados, regatos ni arboledas;
decrépitas ciudades, caminos sin mesones,
y atónitos palurdos sin danzas ni canciones
que aún van, abandonando el mortecido hogar,
como tus largos ríos, Castilla, hacia la mar!
Castilla miserable, ayer dominadora,
envuelta en sus andrajos desprecia cuanto ignora.
¿Espera, duerme o sueña? ¿La sangre derramada
recuerda, cuando tuvo la fiebre de la espada?
Todo se mueve, fluye, discurre, corre o gira;
cambian la mar y el monte y el ojo que los mira.
¿Pasó? Sobre sus campos aún el fantasma yerra
de un pueblo que ponía a Dios sobre la guerra.
La madre en otro tiempo fecunda en capitanes,
madastra es hoy apenas de humildes ganapanes.
337
Clásicos y modernos (1913) In Op. cit., p. 885.
149
Castilla no es aquella tan generosa un día,
cuando Myo Cid Rodrigo el de Vivar volvía,
ufano de su nueva fortuna, y su opulencia,
(...)
338
Seguro leitor de Antonio Machado, Cabral aproximou-se em O rio da imagem
do abandono da terra em direção ao litoral: “que aún van, abandonando el mortecido
hogar,/ como tus largos ríos, Castilla, hacia la mar!. Além disso, o autor de Campos
de Castilla enveredou pela “paisagem com figuras”, trazendo toda a penúria e
sofrimento do homem, como no poema “Por tierras de España”:
(...)
Hoy ve a sus pobres hijos huyendo de sus lares;
la tempestad llevarse los limos de la tierra
por los sagrados ríos hacia los anchos mares;
y en páramos malditos trabaja, sufre y yerra.
Es hijo de una estirpe de rudos caminantes,
pastores que conducen sus hordas de merinos
a Extremadura fértil, rebaños trashumantes
que mancha el polvo y dora el sol de los caminos.
Pequeño, ágil, sufrido, los ojos de hombre astuto,
hundido, recelosos, movibles; y trazadas
cual arco de ballesta, en el semblante enjuto
de pómulos salientes, las cejas muy pobladas.
339
Voltando a Paisagens com figuras, o poema Vale do Capibaribe” funciona
como o contraponto pernambucano a “Medinaceli”:
Vale do Capibaribe
por Santa Cruz, Toritama:
cena para cronicões,
para épicas castelhanas.
Mas é paisagem em que nada
ocorreu em nenhum século
(nem mesmo águas ocorrem
na ngua dos rios secos).
Nada aconteceu embora
a pedra pareça extinta
e os ombros do monumento
finjam história e ruína.
338
MACHADO, Antonio. Poesías completas. Edição de Manuel Alvar. Madri: Espasa Calpe, 2003, p.
152.
339
Idem, ibidem, p. 153-154.
150
(De que seriam ruína,
de que já foram paredes?
Do forno em que o deus da seca
acendia a sua sede?)
E também nada acontece:
raro o pobre romanceiro
da cruz na estrada, mais raro
o crime não rotineiro
com acentos de gesta (ou
as façanhas cangaceiras)
que o vale possa ecoar
e seja cantado em feira.
No mentido alicerce de
morta civilização
a luta que sempre ocorre
não é tema de canção.
É a luta contra o deserto,
luta em que sangue não corre,
em que o vencedor não mata
mas aos vencidos absorve.
É uma luta contra a terra
e sua boca sem saliva,
seus intestinos de pedra,
sua vocação de caliça,
que se dá de dia em dia,
que se dá de homem a homem,
que se dá de seca em seca,
que se dá de morte em morte. (SA, 125-126)
Logo na primeira estrofe, a conexão Nordeste-Castela retorna com mais
força: o Vale do Capibaribe, enquanto “cena para cronicões/ para épicas
castelhanas”, leva-nos a compará-lo à paisagem espanhola onde se desenrolavam
suas ações. A partir daí, o poema lança aproximações e distanciamentos entre os
dois lugares. Diferentemente da turbulenta e heróica história de que Medinaceli foi o
palco, este Vale é paisagem em que nada/ ocorreu em nenhum século”. Por outro
lado, a pedra que parece “extinta” e os ombros do monumento“ simulam “história e
ruína à maneira dos “ocos monumentos” verdadeiros de Medinaceli. Entre
parênteses, levanta-se a hipótese duvidosa de uma origem mítica que dignificasse a
região: talvez teriam sido paredes” do “forno em que o deus da seca/ Acendia sua
sede”. Para um poeta que se voltava às coisas do mundo, a concessão ao plano
imaginário pode ser entendida como um irônico afastamento de quem sabia da
151
verdadeira causa a qual, embora não tão longínqua, tinha sua história do
descaso ecológico e político pelo Nordeste brasileiro. No entanto, o certo é que no
presente nada acontece”, como na esvaziada Medinaceli. Exceção para os “raros”
fatos dignos de alguma nota, ou melhor, canto: “raro o pobre romanceiro/ da cruz na
estrada, mais raro o crime não rotineiro// com acentos de gesta (ou/ as façanhas
cangaceiras)/ que o vale possa ecoar/ e seja cantado em feira.” Os vínculos entre os
dois espaços impõem-se para além da paisagem, fincando raízes na cultura, pois os
cantares populares nordestinos devem muito à matriz ibérica. Em “Vale do
Capibaribe”, porém, é “raro” e “pobre” frente ao “poemão” do Mío Cid que ainda
justifica a lembrança de Medinaceli.
No final de ambos os poemas, a “figura” da paisagem aparece como
resistência à adversidade, contra a ditadura em Medinalceli”, contra a morte em
“Vale do Capibaribe”. O que não seria “tema de canção” ganha espaço em poetas
como Antonio Machado e João Cabral.
O poema final de Paisagens com figuras contrasta as “Duas paisagens” que
permeiam o livro, Espanha e Pernambuco:
D’Ors em termos de mulher
(Teresa, La Bem Plantada)
descreveu da Catalunha
a lucidez sábia e clássica
e aquela sóbria harmonia,
aquela fácil medida
que, sem régua e sem compasso,
leva em si, funda e instintiva,
aprendida certamente
no ritmo feminino
de colinas e montanhas
que lá têm seios medidos.
Em termos de uma mulher
não se conta é Pernambuco:
é um estado masculino
e de ossos à mostra, duro,
de todos, o mais distinto,
de mulher ou prostituto,
mesmo de mulher virago
(como a Castilla de Burgos).
152
Lúcido não por cultura,
Medido, mas não por ciência:
sua lucidez vem da fome
a medida, da carência,
e se for preciso um mito
para bem representá-lo
em vez de uma Ben Plantada
use-se o Mal Adubado. (SA, 140-141)
O poema se inicia com uma referência literária, não declarada nos anteriores,
mas que acima tentamos recuperar: vale-se do romance La bem Plantada, de
Eugenio D’Ors, que apresenta o símbolo da catalanidade frente ao castelhano,
especialmente aos autores da Geração de 98.
340
Ao comentar o nome da
protagonista, Teresa, contrapõe as duas tradições culturais, base das “Duas
paisagens” de Cabral:
Teresa es un nombre castellano. Allá es un nombre stico, ardiente,
amarillo, áspero. Es un nombre que rima con todas estas cosas de que ahora se
habla tanto: “la fuerte tierra castellana, “el paisaje austero, desnudo, pardo”, “los
hombre graves vestidos de fosca bayeta” “Avila de los caballeros” “el alma ardiente
de la santa” “Zuluaga, pintor de Castilla” “El retablo del mar”
“La mística sensualidad,
esposa de Cristo o mujerdeca”. Ya sabéis, ¿no? qué linaje de cosas quiero decir.
Para llegar el mismo nombre a nuestra tierra, y de pasarlo por la boca de otra
manera, adquiere otro sabor. Un sabor a un mismo tiempo dulce y casero, caliente y
sustancioso como el de la torta azucarada. Teresa es un nombre que tiene manos
capaces de la caricia, de la labor y del abrazo. Teresa es a la vez un nombre
modesto y muy fino. Teresa es un nombre hacendoso. Teresa es un nombre para
responder, con voz de contralto: “Servidora, me llamo Teresa”.
341
A paisagem catalã foi abordada nos poemas “Campo de Tarragona” e
“Paisagem tipográfica”
342
, anunciando a perspectiva de D’Ors. Paisagens que
passam pela codificação do homem, que podem ser “lidas”: no campo de Tarragona,
340
ARANGUREN, José Luis L. “Sentido ético de las ficciones novelescas orsianas” In Historia y crítica
de la literatura española. Francisco Rico, org. v. 7. Época contemporánea. 1914-1939. Víctor G. de la
Concha, org. Barcelona: Crítica, 1984, p. 60-65.
341
D’ORS, Eugenio. La bien plantada. Trad. Rafael Marquina, 1911, p. 40-41.
342
V. comentário a esses poemas no Capítulo 3.
153
como uma mapa”, “a face da Catalunha/ é mais clássica de ler.”, enquanto os
“bairros industriais” e as “vilas” acompanham a ordenação da tipografia.
Se D’Ors opõe Catalunha e Castela, Cabral troca até certo ponto os termos
ao trazer Catalunha e Pernambuco, pois sabemos que, no âmbito de Paisagens
com figuras, quando diz Nordeste também está se referindo a Castela. Tanto que no
poema esclarece entre parênteses: “(como a Castilla de Burgos).” O poeta brasileiro
tamm toma de D’Ors a imagem da mulher para representar uma paisagem, que
como veremos a seguir, seria recorrente. Mas como se trata de diferenças entre as
“Duas paisagens”, Catalunha é mulher frente ao “estado masculino” de Pernambuco.
A paisagem e homem descarnados” pela fome e pela seca mostram-se “ossos à
mostra, duro”, variante nordestina da tierra esquelética y sequiza” de Antonio
Machado.
343
E o “mito” de D’Ors, “plantado” na agricultura para valorizar o catalão, é
subvertido por Cabral como o “Mal Adubado”, para figurar negativamente a fome e a
carência do nordestino.
1.2. Andaluzia e “ainda, ou sempre, Sevilha”
Cabral descobriu outra paisagem para além da amplidão e secura castelhana,
ativando uma complexa relação entre regiões da Espanha e de Pernambuco:
(...) Vivi na Espanha, sem ter podido conhecer Andaluzia, de 1947 a 1950,
quando fui para Londres. Em 1956 voltei para a Espanha e, desta vez, para Sevilha,
na Andaluzia. A Andaluzia é, do ponto de vista agrícola, a região mais fértil da
Espanha. E foi a região do mundo com que mais me identifiquei: devo lembrar que
sou pernambucano da Zona da Mata, zona fértil, e não do sertão, embora me
identifique melhor com o sertão seco, assim como tenho mais afinidade com o
alagoano Graciliano Ramos do que com meu primo Gilberto Freyre. Os meus
sentimentos entre a Andaluzia e a Mancha e Aragão têm a mesma ambigüidade que
existe no meu eu pernambucano, entre o homem de Zona da Mata, rtil, e o do
sertão, seco, que conheço apenas de passagem, mas que me marcou
profundamente. uma afinidade entre a Mancha e Aragão e o nordeste seco. Mas
nenhuma entre o nordeste da Zona da Mata e a Andaluzia.
344
343
Verso 24 de “Un loco” de Campos de Castilla (MACHADO, Antonio. Op. cit., p.163).
344
Entrevista a Veja. 28 de junho de 1972, p. 4.
154
A distinção entre as duas regiões compõe a quarta parte do poema
“Pernambucano em Málaga”, de Serial:
A cana doce de Málaga
dá dócil, disciplinada:
dá em fundos de quintal
e podia dar em jarras.
Falta-lhe é a força da nossa,
criada solta em ruas, praças:
solta, à vontade do corpo,
nas praças das grandes várzeas. (SA, 292)
Por outro lado, a identificação foi total com a Andaluzia, e mais
especificamente, Sevilha, que de Quaderna (1960) a Sevilha andando (1990)
pouco se deteve nas demais comunidades espanholas. Se Castela é o masculino,
Andaluzia, por sua vez, marca o feminino, tema incorporado à obra cabralina a partir
de Quaderna. Em Baixa Andaluzia”, de A educação pela pedra, dá-se a medida do
entusiasmo do poeta acostumado a caatingas e a mesetas:
Nessa Andaluzia coisa nenhuma cessa
completamente, de ser da e de terra;
e de uma terra dessa sua, de noiva,
de entreperna: terra de vale, de coxa;
donde germinarem ali pelos telhados,
e verdadeiros, jardins de jaramago:
a terra das telhas, apesar de cozinha,
nem cessa de parir nem a ninfomania.
De parir flores de flor, não de urtiga:
os jardins germinam sobre casas sadias,
que exibem os tais jardins suspensos
e outro interior, no pátio de dentro,
e outros sempre onde da terra incasta
dessa Andaluzia, terra sem menopausa,
que fácil deita e deixa, nunca enviúva,
e que de ser fêmea nenhum forno cura.
2
A terra das telhas, apesar de cozida,
não cessa de dar-se ao que engravida:
segue do feminino; aliás são do gênero
as cidades ali, sem pedra nem cimento,
feitas só de tijolo de terra parideira
de que herdam tais traços de femeeza.
(Sevilha os herdou todos e ao extremo:
a menos macha, e tendo pedra e cimento). (EPD, 35-36)
155
Após discorrer sobre toda uma região, os versos finais em parênteses
revelam a cidade mais fêmea. Em lugar da paisagem natural predominante, Cabral
passou a freqüentar um determinado espaço urbano. Tal visitação vinha desde O
rio, no qual denunciou o “que existe por debaixo/ do Recife contado em Guias”,
alusão ao Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934), de
Gilberto Freyre. Embora o Recife seja menos constante do que Sevilha em sua obra,
nos poemas “Coisas de cabeceira, Recife” e “Coisas de cabeceira, Sevilha” (A
educação pela pedra), alinhou as duas cidades, a natal e a adotiva, “em uma
prateleira na memória”.
Além do afetivo, Sevilha possibilitou a Cabral uma teoria da cidade, não
apenas para compreendê-la, mas tamm para apresentá-la como modelo para
outras cidades, chegando a propor “Sevilhizar o mundo” (Sevilha andando). Se
anteriormente estabelecera um diálogo com os escritores da Geração de 98 e sua
contrapartida catalã na figura de Eugenio D’Ors para formular sua teoria da
paisagem, no caso sevilhano, divergia do escritor Joaquín Romero Murube,
recordado no poema “O segredo de Sevilha” de Sevilha andando:
De Joaquim Romero Murube
ouvi certa vez: “De Sevilha
ninguém jamais disse tudo.
Mas espero dizê-lo um dia.”
Morreste sem haver podido
a prosa daquele projeto;
Sevilha é um estado de ser,
menos que a prosa pede o verso.
Caro amigo Joaquim Romero,
nem andaluz eu sou, sequer,
mas digo: o tudo de Sevilha
está no andar de sua mulher.
E às vezes, raro, trai Sevilha:
pude encontrá-lo muito longe,
no andar de uma não sevilhana,
o tudo que buscas. Ainda? Onde? (EPD, 338-339)
Romero Murube ocupou o cargo de diretor e conservador do Alcázar de
Sevilha de 1934 a 1969, ano da sua morte, tendo recebido personalidades da
política e da cultura, entre elas o poeta diplomata brasileiro que esteve na cidade de
1956 a 1958 e de 1962 a 1964. Componente do grupo Mediodía, vertente sevilhana
156
da Geração de 27, escreveu seis livros de poesia até 1948. A partir de então,
dedicou-se cada vez mais à sua obra ensaística, na qual Sevilha tornou-se o tema
central.
345
Como está na 1
a
estrofe do poema de Cabral, Romero Murube idealizava
uma grande obra sobre a sua cidade: “Mi mayor orgullo sería hacer un libro definitivo
sobre Sevilla. Como esta ciudad es la menos conocida de todas las ciudades
españolas, aunque el vulgo crea lo contrario, sé lo difícil de mi empeño. Pero no creo
que haya nada bueno literariamente por los cauces de la facilidad y de lo cómodo.
He de ir a eso a mi libro sobre Sevilla difícil y en eso trabajo, dudo, sufro, sueño,
fracaso y me divierto.”
346
De acordo com ele, o “segredo de Sevilha” seria indefinível: Sevilla en la
Literatura, en el Arte, será siempre una fina interrogación desafiadora. Hay ciudades
Venecia, Toledo, Alejandría cuyo espíritu ha quedado para siempre fijado en las
páginas de algunos escritores. Con Sevilla esto no es posible, porque repugna a la
esencia misma, al alma misteriosa de la ciudad. El secreto de Sevilla es una
constante mutación, es un fluir inextinguible de algo recóndito que moviliza y
mantiene estas sucesiones, siempre llenas de igual vitalidad y dinamismo.”
347
Ao
contrário, Cabral propõe captar esse “segredo” no andar da sevilhana, que inclusive,
de tão característico, poderia até mesmo ser identificado em uma não sevilhana.
Mas a teoria da cidade de Cabral começara em Quaderna. No poema
singelamente intitulado “Sevilha”, o símile principal é cidade-roupa. Já a 1
a
estrofe da
parte 1 mostra a singularidade de Sevilha frente a outras cidades:
A cidade mais bem cortada
que vi, Sevilha:
cidade que veste o homem
sob medida. (SA, 236)
Na parte 2, expõe a vantagem sevilhana em relação às cidades modernas,
desproporcionais à dimensão humana:
345
Compõe-se de Sevilla en los labios (1938), Discurso de la mentira (1943), Memoriales y
divagaciones (1959), Lejos y en las manos (1959) e Los cielos que perdimos (1964).
346
Apud CORTINES, Jacobo e LAMILLAR, Juan. “Belleza ordenada” In MURUBE, Joaquín Romero.
Obra selecta. v. 1. Silencios de Andalucía (Lírica y Narrativa). Sevilha: Fundación José Manuel Larra,
Diputación de Sevilla, Ayuntamineto de Sevilla e Fundación El Monte, 2004, p. XXIII.
157
Nem com os gestos do corpo
nunca interfere,
qual roupa ou cidade que é
cortada em série. (SA, 237)
Quanto à parte 3, uma série de imagens intensificam a intimidade do homem
com Sevilha: casa quarto roupa camisa. A interiorização crescente atinge a do
contato sexual:
E mais que intimidade
até com amor
como um corpo que se usa
pelo interior. (SA, 238)
O advérbio de tempo ainda na estrofe final sugere a permanência de um
antigo modelo de cidade ao alcance do homem:
sevilhano em quem se encontra
ainda o gosto
de ter a vida à medida
do próprio corpo. (SA, 238)
A correlação cidade-corpo, ou melhor ainda, cidade-mulher, permeia os
poemas seguintes sobre Sevilha, principalmente a última coletânea. E essa
associação pode inclusive acompanhar a poética cabralina, como no poema
“Retrato” (Sevilha andando):
(...)
A intensidade sevilhana:
expressão de cidade plana,
sem montanhas nos arredores,
sem arranha-céus, gritos, odes,
cidade toda em canto-chão,
limpa e varrida até o não.
Numa cidade tal Sevilha
só pode dar-se a não prolixa,
347
Discurso de la mentira In MURUBE, Joaquín Romero. Obra selecta. v. 2. Los cielos perdidos
(Prosa ensayística). Sevilha: Fundación José Manuel Larra, Diputación de Sevilla, Ayuntamineto de
Sevilla e Fundación El Monte, 2004, p. 84.
158
a que prefere a linha pura:
nela lhe basta, o que é nervura;
(...) (EDP, 347)
Nesse aspecto, Castela e Sevilha irmanam-se pela escassez, distintas de
paisagens exuberantes e cidades gigantescas.
O poema final de Sevilha andando e, por extensão, de toda a obra de Cabral,
é o significativo “Sevilha e o progresso”, síntese de sua teoria da cidade:
Sevilha é a única cidade
que soube crescer sem matar-se.
Cresceu do outro lado do rio,
Cresceu ao redor, como os circos,
conservando puro seu centro,
intocável, sem que seus de dentro
tenham perdido a intimidade:
que ela só, entre todas as cidades,
pode o aconchego de mulher,
pode o macio existir do mel,
que outrora guardava nos pátios
e hoje é de todo antigo bairro. (EPD, 384-385)
Sevilha não é apenas a mais”, tornando-se única”, pelo menos no universo
do poeta. Embora tenha crescido, a cidade manteve seu centro antigo, sua feição
anterior.
Além disso, Cabral também investe na comparação entre cidades e regiões,
mostrando-se sensível à diversidade que come o território espanhol e seus
conflitos. Se antes houve contraponto entre Castela e Catalunha, dessa vez
diferencia a Andaluzia dessas duas regiões, que se julgam superiores:
O castelhano e o catalão
têm pobreza e riqueza tristes.
Assim desprezam a Andaluzia:
vêm-na africana ou sacrílega.
(“Sevilha e a Espanha”, Sevilha andando, EPD, 361)
159
Catalunha e sua capital, Barcelona, de pretensões européias de além
Pirineus, não reconhecem a vitalidade andaluza e sevilhana:
(...)
Durante essas ruas paris
de Barcelona, tão avenida,
entre uma gente meio londres
urbanizada em mansas filas,
chegava a desafio
seu caminhar sevilha:
que é levando a cabeça
em flor que fosse espiga.
(“Uma sevilhana pela Espanha”, Serial, SA, 314)
(...)
Barcelona? Dançar é em vão,
não aplaudem, sentam nas mãos.
Coitados, são de uma outra gente.
Não são? Mas querem que se pense.
(“A entrevistada disse, na entrevista:”, Agrestes, EPD, 236)
A Catalunha, tira a tristeza
de querer ser muito mais França,
que não a interessa, senão,
enquanto Espanha, dá-lhe entranhas.
(“Sevilha e a Espanha”, Sevilha andando, EPD, 361)
Madri, apesar de ostentar a severidade castelhana e a posição de capital, é
suscetível à ação sevilhana sobre sua austera atmosfera:
(...) Dentro da vida de Madrid,
onde Castela, monja e bispa,
alguma vez deixa-se rir,
deixa-se ser Andaluzia,
logo se descobria
seu ter-se, de Sevilha:
como, se o riso é claro,
mais riso em quem ria.
_________________
Através túneis de museus,
museus-mosteiros que amortiçam
a luz já velha, castelhana,
sobre obras mortas de fadiga,
tudo ela convertia
no museu de Sevilha:
museu entre jardins
160
e caules de água viva.
(“Uma sevilhana pela Espanha”, Serial, SA, 314-315)
Porém o contraste maior deu-se justamente entre duas cidades andaluzas,
Sevilha e Córdoba, como verificamos em “A sevilhana que é de Córdoba” (Sevilha
andando):
Essa sevilhana de fora
tem outra dimensão por dentro.
Não é sevilhana, é cordobesa,
cidade de imóvel silêncio.
Bem cordobês foi “Lagartijo”,
foram “Guerrita” e “Manolete”
que toureavam como Sêneca,
cordobês, tinha o pensamento.
Podia ser de Santa Marina,
ou nascer na Praça do Potro,
em qualquer dos bairros de Córdoba,
de atmosfera funda de poço.
Não sei por onde nasceu Sêneca,
em que bairro, em que quarteirão,
mas vi tourear “Manolete”,
sua severa resignação.
A sevilhana que é de Córdoba,
dos toureiros não teve a lição,
mas aprendeu em Sêneca mesmo
o rigor denso da expressão.
Sevilha e Córdoba: Andaluzia
que se expressa por fora ou é dentro,
como a sevilhana de quem falo,
cujo andaluzismo eu me invento. (EPD, 341-342)
O mencionado Romero Murube apresentara em termos próximos as
diferenças entre Sevilha e Córdoba:
(...) desde el punto de vista especulativo e intrascendente de las divagaciones
literarias, que para ser buen amante de Sevilha es muy conveniente la sabia lección
que Córdoba nos ortoga en muchas cosas: al guirigay continuado, una cura de
silencio; al preciosismo narcisista, la robusta y escueta arquitectura de lo firme.
161
Quizás sin que sepamos justificarlo, vemos a Córdoba como problema, y a
Sevilla como aventura. Córdoba es una ciudad con raíces; Sevilla es una ciudad de
alas y sonrisas. Allí nace un amplio silencio, fecundo y expectante; aquí bulle una
musiquilla, un rumor perenne, que en su placentera continuidad llega a veces a
excluir la posibilidad de un más profundo o exaltado acorde. (...)
(...) Dijimos en otros escritos cómo la sabidua halla en Séneca la más alta
expresión cordobesa. (...)
348
O ensaísta, como Cabral, associa o toureiro Manolete a sua cidade natal,
Córdoba:
El cetro de la gloria taurina andaluza reposa con plena majestad entre las
sedas y cenizas del gran Manuel Rodríguez. Bien: pues creemos que el
toreo de
“Manolete” era limitado y excesivamente arquitectónico. Como cordobés esencial, a
su limitación le dio una profundidad inigualable, la de su valentía sin límites. Y a su
arquitectura, esa frialdad irritante, desde el punto de vista artístico, de ejecutar los
pases mirando al gradeo, mientras el toro rozaba los hilos de la chaquetilla...
“Manolete” creaba en las plazas silencios pavorosos: lo que él hacía, parecía que
nadie más que él podía hacerlo.
(...) Las faenas del artista cordobés se ordenaban en pases previstos,
escalonados, como las rimas cinceladas de un soneto gongorino... Arquitectura.
349
A singular aproximação entre tauromaquia e literatura, no caso do tamm
cordobês Góngora, remetia à recuperação promovida pela Geração de 27, que via
no poeta do século XVII um grande exemplo de consciência e construção.
350
Aliás,
Cabral, na carta de 1947 a Bandeira em que relata suas leituras espanholas, repete
entusiasmado por três vezes o nome de Góngora. Em carta seguinte, de 4 de
setembro desse ano, conta que teve o privilégio de ver as últimas atuações de
Manolete, comparando-o, não a Góngora, mas a Valéry, exponte moderno dos
poetas conscientes: (Faz hoje uma semana que um miúra matou Manolete,
considerado o melhor toureiro que já aparecera até hoje. Seja dito de passagem
que era um camarada fabuloso: vi-o algumas vezes aqui em Barcelona e imaginei
348
Memoriales y divagaciones In MURUBE, Joaquín Romero. Obra selecta. v. 2. Op.cit., p. 153-154.
349
Idem, ibidem, p. 154-155.
350
V. Capítulo 2.
162
que era Paul Valéry toureando...).
351
Em “Alguns toureiros”, de Paisagens com
figuras, recupera Manolete, o mais deserto/ o toureiro mais agudo,/ mais mineral e
desperto,”. A paisagem a que se volta é o Nordeste: “o de figura de lenha,/ lenha
seca de caatinga,”. O seu modo de tourear, de parcimonia e controle de
movimentos, continuava a promover vínculos literários, “lição de poesia” ao
demonstrar aos poetas a não poetizar sua poesia, a não se servir de rompantes
passionais.
Quanto a Córdoba, comparece em “A palo seco” de Quaderna em meio a
imagens de precisão, depuração e construção, inclusive a arquitetura levantada por
Romero Murube:
4.3. A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos. (SA, 234-235)
Poderíamos nos perguntar por que Cabral não transferiu sua paisagem da
árida Castela para a sóbria Córdoba, em princípio, mais afim com sua poética? Uma
possível resposta estaria justamente na coletânea Quaderna, escrita entre 1956 e
1959, e que contém três poemas decisivos de sua temática espanhola: “Estudos
para uma bailadora andaluza”, “A palo seco” e Sevilha”, três facetas da Andaluzia
“de fora” que se alternariam ou se articulariam na obra posterior. Devemos lembrar
que nesse período entrou em contato com o Tempo espanhol de Murilo, que se
abria a várias paisagens da Espanha. Talvez provocado em parte pelo livro do
amigo, redirecionou sua Espanha para torná-la menos “amesquinhada” frente à
totalidade muriliana. Em termos de paisagem, era capaz também de falar de outra
Espanha, diferente da masculina, estéril e severa Castela, enveredando pela
feminina, fértil e exposta Andaluzia. Dessa maneira, é sintomática a oferta de
Quaderna a Murilo.
351
SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 34.
163
Mas Córdoba não fora esquecida. Retorna na última coletânea para ratificar a
ambigüidade que Cabral sempre manteve entre suas paisagens, comparando-as e
longe de estabelecer uma escolha definitiva. Os toureiros cordobeses dessa vez
encontram seu paraleo literário no patrício Sêneca, raíz de uma linhagem espanhola
de pensamento e escrita concisos e severos. Mesmo que a sevilhana não tenha
visto Manolete como Cabral, aprendera em Sêneca o rigor denso da expressão”. Se
Cabral relacionara Medinaceli com o autor anônimo do Poema de Mio Cid, no final
de obra Córdoba reflete-se na obra de Sêneca, referência também para o poeta que
poderia vir de muito antes.
2. O gosto pelos extremos: a tauromaquia e o flamenco
Desde seu primeiro contato com a Espanha, o flamenco e a corrida de touros
impactaram Cabral, que passou a assistir a seus espetáculos: (...) em Barcelona
havia lugares onde havia quadros flamencos. Os catalães não gostam de flamenco,
mas eu era um freqüentador inveterado desses lugares.”
352
Em meio às últimas
atuações do toureiro Manolete, idealizou uma antologia de “poetas de autores
espanhóis modernos que tenham como tema as ‘corridas de touros’”.
353
Embora o
projeto não se tenha concretizado, alguns dos poemas que dedicou à corrida de
touros e ao flamenco ao longo de sua obra poderiam figurar em qualquer antologia
desses temas. Infelizmente, isso não costuma acontecer. A revista espanhola Litoral,
em seu mero 238 de 2004, dedicou ao flamenco um alentado volume intitulado La
poesía del flamenco. Entre ensaios, fotos e reproduções de artes plásticas, figura “El
flamenco en la lírica contemporánea”, cujo único autor não espanhol é Rainer Maria
Rilke. Para o leitor brasileiro ou familiarizado com a literatura brasileira, provoca no
mínimo espanto a ausência de João Cabral de Melo Neto. Além de evidenciar o
desconhecimento da obra cabralina relacionada à Espanha entre os atuais
acadêmicos e escritores espanhóis, pode indicar dissonância dela frente aos modos
tradicionais de tratar os temas daquele país, como bem observaram os não menos
espanhóis Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate sobre “A palo seco”:
352
Entrevista de 1991 (ATHAYDE, Félix, org. Op. cit., p. 17).
164
Contrasta fortemente a interpretação que este poeta brasileiro nos oferece do
popular espanhol com a levada a cabo, sobretudo a partir dos anos vinte, pelos
poetas espanhóis autores da chamada poesia neopopular, tão próxima ao tipismo
para forasteiros, que terminou por degenerar em letra de canção aflamencada. É
que o popular tem que ser visto como Cabral o viu: em profundidade, deixando de
um lado o acidental, que costuma ser produto da interpretação alheia, e buscando o
substancial. Ninguém poderá pensar que pecamos de nacionalismo se, relacionando
este poema e muitas de nossas considerações anteriores com o fato de que Cabral
tenha escrito a última e mais importante parte de sua obra a partir de seu profundo
contato
com a Espanha, afirmamos que sua estética soube fundir o ibérico, o ibero-
americano de Pernambuco, com o hispânico e que, através deste poeta brasileiro, o
espanhol tem sido um elemento importantíssimo da síntese de elementos cultos e
populares que produziu uma das obras poéticas mais importantes do Brasil e, em
geral, dos últimos decênios.
354
Cabral diz na carta a Murilo de 1959 que reduzia flamenco e corrida de
touros, componentes de uma “Espanha espiritual”, a uma “lição de estética” desde
os poemas “Alguns toureiros” e “Diálogo” de Paisagens com figuras. Nesse sentido,
sobretudo os paradigmáticos “Estudos para uma bailadora andaluza” e “A palo
seco”, de Quaderna, foram amplamente comentados pela fortuna crítica do autor,
em função de serem interpretantes da poética cabralina.
355
No entanto, sem perder
essa noção, as três artes, a corrida de touros, o cante e o baile flamencos, o só
foram relacionadas entre si, como tamm ao substrato cultural espanhol o
andaluz, mais especificamente.
Em primeiro lugar, o poeta valoriza a economia de recursos, ao contrário de
uma vertente de exuberância na lírica espanhola:
(...)
Vi também Julio Aparício
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
353
Carta de 4 de setembro de 1947 a Manuel Bandeira (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 33-34).
354
CRESPO, Angel e BEDATE, Pilar Gómez. Realidad y forma en la poesía de Cabral de Melo.
Separata da Revisa de Cultura Brasileña. n. 8, Madri, março 1964, p. 67.
355
Sobre “Estudos para uma bailadora andaluza”, v. NUNES, Benedito. Op. cit, p. 114-116; LIMA,
Luiz Costa. Op. Cit., p. 298-306; ESCOREL, Lauro. A pedra e o rio. Uma intrepretação de João
Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: ABL, 2001, p. 91-96; BARBOSA, João Alexandre. Op. cit., p.
170-176; SECHIN, Antonio Carlos. Op. cit., p. 134-139; e a respeito de “A palo seco”, v. BARBOSA,
João Alexandre. Op. cit., p. 159-163 e SECHIN, Antonio Carlos. Op. cit., p.152-155.
165
espontânea, porém estrita.
(“Alguns toureiros, SA, 131)
(...)
já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
de sua perna polida.
(“Estudos para uma bailadora andaluza”, SA, 202)
I.1. Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
(“A palo seco”, SA, 231)
Embora despojados, o baile e o cante flamencos representam verdadeiras
lutas para atingir um ponto “extremo”: mesmo gosto dos extremos,/ de natureza
faminta,// gosto de chegar ao fim; A palo seco é o cante/ de grito mais extremo:”.
Assemelham-se ao enfrentamento entre toureiro e touro, entre vida e morte,
comparados em alguns poemas:
Mas o timbre desse canto
que acende na própria alma
o cantor da Andaluzia
procura-o no puro nada,
como à procura do nada
é a luta também vazia
entre o toureiro e o touro,
vazia, embora precisa,
em que se busca afiar
em terrível parceria
o fio agudo de facas
o fio frágil da vida.
(“Diálogo”, Paisagens com figuras, SA, 137)
166
A Espanha é uma coisa de tripa,
do que mais abaixo do estômago;
a Espanha está nessa cintura
que o toureiro oferece ao touro,
e que é de donde o andaluz sabe
fazer subir seu cantar tenso,
a expressão, explosão, de tudo
que se faz na beira do extremo.
(“España en el corazón”, Agrestes, EPD, 237)
Porque é que todo sevilhano
quer viver-se no aceiro da morte?
Não é povo de jogadores
que estime o deus baixo da sorte.
Para o andaluz ser matador
é o sonho que sonha de jovem,
como ser bailaor, cantaor,
ele tenta ser quando acorde,
e que é também viver sobre um fio
tenso, por em cima da morte,
onde andar como equilibrista
sobre um fio agudo de cobre.
(“A imaginação perigosa”, Sevilha andando, EPD, 384)
Portanto, as imagens de “Estudos para uma bailadora andaluza” e A palo
seco”, por exemplo, articulam a tensão entre a manifestação do flamenco e o seu
“vazio”, sua “morte”.
A força de “Estudos para uma bailadora andaluza” reside na dialética de
movimento e estaticidade, explosão e contenção: fogo e cinza (“primeiro estudo”);
cavaleira dominante e égua rebelada, variante feminina do toureiro e do touro
(“segundo estudo”); atenção curvada do telegrafista e a telegrafia (“terceiro estudo”);
camponês cavando a terra e árvore fincada na terra (“quarto estudo”); e as duas
estátuas, do começo e do final da dança, mas acesas, desafiantes (“quinto estudo”).
Quanto a “A palo seco”, o grande embate -se com o silêncio.
Desproporcional, pois o cante encontra-se “sem tempero ou ajuda”, despido e
pouco”, enquanto o silêncio, concretizado em metal, pele, líquido, ora pesado, ora
levíssimo, e tela, é difícil de ser rompido. O silêncio inclusive pode matar” o cante:
esmagá-lo e afogá-lo, se indefeso, ou apodrecê-lo, se tem frestas.
Nas obras posteriores, em lugar de apenas descrever ou definir o baile e
cante flamencos, Cabral voltou-se aos seus principais nomes, aos quais
provavelmente assistiu ao vivo em suas estadas espanholas: De Bernarda a
167
Fernanda de Utrera” (A educação pela pedra)
356
; “A Antonio Mairena, cantador de
flamenco” (Agrestes)
357
; “Manolo Caracol”
358
, “Carmem Amaya, de Triana”
359
e “Niña
de los peines”
360
(Sevilha andando). Em alguns desses poemas, expõe o que se
esconde por trás do cante, a dor que dilacera o cantor a partir das imagens da
navalha e do punhal:
(...)
Canta a partir de íntima fenda
e sempre pensa que umamea
que com a navalha dos olhos
abriu-lhe fundo com seu ódio
ferida que de dia esconde
para que de noite ele sonde
onde é que se localiza
(mas não quer curá-la, é seu guia).
(“Manolo Caracol”, EPD, 377)
(...)
é um metal rouco, como roto,
metal que dói, dilacerado,
como um metal de nervo exposto.
Raro ele canta de punhais.
Foge-os cantando flores vivas.
Há muitas flores no que canta
Como em Frederico Garcia,
ou Lorca, que escreve do amor
e das mil flores que sabia.
Mas no flamenco o amor aponta
como punhal entre margaridas.
O flamenco fala do amor
como ele, também floralmente,
mas no flamenco um punhal oculto
nesse canteiro cresce sempre.
(“Niña de los peines”, EPD, 380-381)
Talvez esses poemas sejam mais uma tentativa de mostrar uma Espanha
menos “amesquinhada”, que não fosse apenas uma “lição de estética”, frente à
356
Fernanda Jiménez Peña. Utrera, 1927. V. La poesía del flamenco, p. 250.
357
Antonio Cruz García. Mairena del Alcor, Sevilha, 1909-1983. V. Idem, p. 210-211.
358
Manuel Ortega Juárez. Sevilha, 1909-1973. V. Idem, p. 242.
359
Barcelona, 1913-1963. V. Idem, p. 246-247.
360
Pastora Pavón Cruz. Sevilha, 1890-1968. V. Idem, p. 206-208.
168
Espanha muriliana, aproximando-se, de certa maneira, da lírica espanhola sobre o
flamenco. Basta comprovar o início dos poemas dedicados a Manolo Caracol e a
Niña de los peines, respectivamente de Daniel Pineda Novo e Pablo García Baena,
que emulam a dor do cante:
Tu grito fue de angustia y puñalada
como um tremendo ¡ay! de profecía
y tu voz afilá fue la armonía
al relente de turbia madrugada...
361
Giralda de las voces... Padecía
por su garganta un ave prisonera.
Era la pena de la petenera
y era un vuelo de llanto y agonía.
362
Cabral investe tanto no universo interior do flamenco que assume a voz da
bailadora Carmen Amaya, distanciando-se do espectador dos “Estudos para uma
bailadora andaluza”. Ela conta que tomou lições para sua dança com a tourada:
“Fui numa tarde à Maestranza,
vi Pepe Luís (toureiro e dança)
com ele é que aprendi que a morte
é que faz o sotaque mais forte,
e que não traz mal a quem a toque:
pois raro acede a quem a invoque.
Por isso, que pus no baile
a morte e seu arrepiar-se.
Supersticiosa, sou cigana,
vivo muito bem com a tal dama:
Ela faz mais denso o meu gesto
e só virá no meu dia certo.” (EPD, 379-380)
Pode ser que no poema de Quaderna pensasse em Carmen Amaya, na
“floraa que seus braços dão vida,/ densa floresta de gestos/ a que dão vida e
agonia.O depoimento que Vicente Marrer realizou sobre a bailadora corrobora a
fala imaginária de Cabral: “Gitanilla desgarbada, flaca, menuda, casi encorpórea,
361
Idem, p. 244.
169
con cara de ídolo trágico y remoto, pómulos asiáticos, de ojos largos cargados de
presagios, brazos retorcidos, nerviosa, desgreñada como un bicho malo, mimbreña y
violenta...”
363
Cabral, no momento final de sua obra, pôde construir suas histórias
com os mitos do flamenco e das corridas de touro, e não apenas valer-se de um
mile para sua poética.
3. A Sevilha espiritual
Nas últimas obras escritas durante a cada de 80 Agrestes (1981-1985),
Crime na calle Relator (1985-1987) e Sevilha andando (1987-1989), - ao lado das
“iias fixas” espanholas, Cabral aproximou-se em mais de um poema da
religiosidade do país, ou melhor dizendo, de Sevilha. Vinte anos atrás, confessara a
Murilo a sua incapacidade em abarcar uma Espanha “espiritual”. Longe de uma
conversão, esses poemas indicam, a partir de situações ou narrativas, uma abertura
à instigante mescla que os andaluzes realizaram de sagrado e profano:
(...)
que é religiosa e pa,
que faz o sinal da cruz
frente a um bordel ou um banco
se monumental e com luz.
(“Oásis em Sevilha”, Sevilha andando, EPD, 353)
Recuperando os termos da carta de 1959, evitou a “Espanha negra” da
Castela “monja e bispa” e defendeu a Espanha branca” de Sevilha, esclarecendo
não haver em suas crenças bruxaria ou magia, argumentos dos ataques do
catolicismo oficial:
Não há tal embrujo em Sevilha.
Tudo é solar e sem mistério
e a superstição do sevilhano
é um manso animal doméstico,
com quem se convive, carrega
nos braços; mais bem é mascote,
362
Idem, p. 208.
363
Idem, p. 247.
170
é como um gato ou um cachorro
que quando incômodo se enxote,
se insulta quando necessário,
puro totem, nu de religião,
nu de ocultismo, metafísica,
teologia trazida ao chão;
que se obedece por que sim,
e que, bicho de casa, servo
(seja uma Virgem, um sinal-da-cruz)
não morde, é íntimo, é um gesto.
(“El embrujo de Sevilha”, Sevilha andando, EPD, 361-362)
Três poemas de Agrestes põem em cena o catalocismo por meio de
mulheres, como não poderia deixar de ser, sevilhanas. Não são beatas, mas trazem
a faceta do inconformismo, da ingenuidade ou da emoção.
Para isso, o poeta faz com que surpreendamos uma “Conversa de Sevilhana”
com seu parceiro na cama:
Se vamos todos para o inferno:
e é fácil dizer quem vai antes:
nus, lado a lado nesta cama,
lá vamos, primeiro que Dante.
Eu sei bem quem vai para o inferno:
primeiro, nós dois, nesses trajes
que ninguém nunca abençoou,
nós, desabençoados dos padres. (EPD, 227)
Saindo do âmbito da moral cristã, ela desafia, com sentido de desforra,
figuras sociais merecedoras do inferno, até chegar à autoridade máxima:
Enfim, quem manda vai primeiro,
vai de cabeça, vai direto:
talvez precise de sargentos
a ordem-unida que há no inferno. (EPD, 228)
Nos outros dois poemas de Agrestes, o eu lírico, escamoteado ao longo da
obra cabralina, testemunha a reverência de sevilhanas diante de símbolos católicos.
Em Bancos & Catedrais”, conta da sevilhana que estando em Madri se benzia
diante de um grande edifício que lembrasse uma igreja:
171
Quando de carro comigo
por Sevilha, Andaluzia,
passando por cada igreja,
recolhida, te benzias.
Pela larga Andaluzia
ninguém se engana de igreja:
amplas paredes caiadas
com portais pardos, de pedra.
Contudo, quando comigo
pela Vila de Madrid,
notei que tu te benzias
passando o que, para ti,
lembrava vulto de igreja.
O que era monumental
fazia-te imaginar:
eis mais outra catedral. (EPD, 228-229)
Mas a ilusão de ver igrejas onde se encontram bancos é ironicamente em
parte confirmada, pois para o eu lírico o catolicismo e o poder econômico podem
relacionar-se:
Sem querer, não te enganavas:
se não eram catedrais
eram matrizes de bancos,
o verbo de onde as filiais.
Só erravas pela metade
benzendo-te em frente a bancos;
quem sabe foram construídos
para lucrar desse engano? (EPD, 229)
No poema “O mito em carne viva”, mais uma sevilhana, transposta à Castela,
deixa-se comover com uma pintura da Crucificação, desabafando em sua variante
andaluza do espanhol:
Em certo lugar de Castela,
num dos mil museus que ela é,
ouvi uma sevilhana,
a quem pouco dizia a Fé,
ante uma Crucificação
comovida dizer
a emoção mais nua e crua,
corpo a corpo, imediata, ao pé,
sem compunção fingida,
172
sem perceber sequer
a névoa que a pintura
põe entre o que é e o que é:
Lo quié habrá sufr’io e’ta mujé! (EPD, 230)
Na segunda parte do poema, em lugar de desfazer o equívoco de uma visão
como em “Bancos & Catedrais”, adere-se à veracidade da perspectiva desta
sevilhana, sem pretensões religiosas ou eruditas, apenas humana; para ela não é
mais uma representação pictórica de caráter sagrado, mas sim veículo que desperta
emoções cujos símiles estão no mundo contemporâneo, o cinema e a televisão:
Eis a expressão em carne viva,
e por que viva mais ativa:
nua, sem os rituais ou as cortinas
que a linguagem traz por mais fina.
A Crucificação para ela
não era o que um pintor num tempo:
para ela era como um cinema
narrando um acontecimento,
era como a televisão
dando-o a viver no momento. (EPD, 231)
Contudo, nos museus da Andaluzia, como “O Museu de Belas Artes” (Sevilha
andando), a arte sacra perderia sua expressão em carne viva” por causa de seu
luminoso entorno:
Este é o museu menos museu.
No Convento de las Mercedes,
palácio de tijolos frescos
nada há de Convento nele.
Há jardins internos e fontes
surtindo águas vivas em fios
e a enorme luz que se abre invade
tristes Cristos, sombrios bispos,
pendurados pelas paredes,
mornos filhos da Renascença
que a custo dão-se à dor e ao sério
naquela invasão de sol sem crença. (EPD, 366)
173
A Semana Santa, uma das maiores manifestações do catolicismo espanhol,
que se mostra não apenas como devoção, mas também como espetáculo,
comparece na produção final cabralina narrada do ponto de vista das populações
marginalizadas, os ciganos, ou do povo das ruas. Em “Numa sexta-feira Santa”, de
Crime na calle Relator, conta-se a experiência de alguém o identificado
provavelmente reminiscência do diplomata Cabral -, cujas impressões não
interessam em meio às ações de ciganos com nomes próprios:
(...)
Preferiu passá-la em Utrera
que a faz em mais pobre maneira,
mas onde queria assistir
o Cristo Cigano que ia ir
reentrar na Matriz de Utrera
nos braços das saetas da Pepa.
Pepa, grande por bulerías,
cantando saetas estrearia, (EPD, 294)
A confluência de culturas revela-se tanto na denominação “Cristo Cigano”,
quanto na ocorrência das saetas, copla flamenca cantada na procissão da Semana
Santa. Além das saetas, permitidas pela Igreja, mencionam-se outros tipos de
flamenco, as bulerías, o cante e baile flamencos festivos, e as siguiriyas, o cante
flamenco de música e temas tristes, como a morte e os sofrimentos do homem.
Como nem sempre essas distinções estão claras para a força expressiva do cigano,
pode sofrer as retaliações do poder legal e religioso, irmanados durante a ditadura
franquista:
Passa que cantar por saetas,
cante que aceita a própria Igreja,
faz-se com o mesmo compasso
das siguiriyas, que os ciganos
carregam no pulso e na língua
para confusão da polícia.
Porém se algum guarda-civil
tiver o ouvido mais sutil
174
e sentir que cantor ia
não por saetas mas siguiriya,
leva o infrator para a cadeia
por desaforo a Franco e à Igreja.
Ora, o cigano canta o que pode,
não aprende: é o que dele jorre,
e sua garganta em carne viva
não sabe linha que a divida. (EPD, 294-295)
No entanto, Pepa canta a volta do Cristo por siguiriyas e não por saetas,
“sacrílega infração” percebida por um guarda-civil “competente em flamenco que
apenas quer aparentar o cumprimento da ordem:
(...)
E às cinco da man de Utrera,
manhã santa da Sexta-Feira,
quer levar tudo ao Delegado:
por cante e aplaudir o cantado
(Extraterritorial presente
soltou-os, sem mais incidentes). (EPD, 295-296)
Por fim, a testemunha ocular presencia uma manifestação do genuíno
flamenco, em plena Sexta Feira Santa, na intimidade da “casa da Cortés”:
(....)
Pois ocultos, na Santa Sexta,
deram a si próprios grande festa.
Sendo ele o só espectador
(cada artista logo o ignorou)
viu o melhor flamenco até ali:
o que cada um faz para si,
quando sem público que dê terra
cada um expõe sua febre elétrica.
Nunca ele viu Semana Santa
celebrada tão das entranhas. (EDP, 296)
De Utrera a Sevilha, o poeta reveste-se de cronista para seguir as procissões
da “Semana Santa” (Sevilha andando). As imagens sagradas são redimensionadas
175
a uma condição humana e popular, como o Cristo “já cinqüentão”, inclusive pelo
homem que o acompanha do bar, soltando seu comentário sem cerimônia como a
sevilhana diante da Crucificação:
(...)
O sevilhano o olha da porta
do bar, e pensa: “Pobre homem,
em que enrascada se meteu”,
e volta ao bar onde consome. (EPD, 357)
Mas as grandes estrelas são as Virgens das diversas Confrarias, recebidas
quase sensualmente como mulheres:
(...)
cada sevilhano tem a sua,
amante ideal com quem vive.
Elas parecem ter vinte anos,
filhas, mais do que mães do Cristo
que vão seguindo até o Calvário:
choram em diamantes festivos.
(...)
Cada qual pertence a uma Virgem,
defende-a como um torcedor;
cada Virgem tem seu partido,
como um clube de futebol.
Delas discutem os milagres,
o valor das jóias que têm,
mas a virtude principal
é saber qual é mais mulher. (EPD, 357-358)
Não das sevilhanas, dos ciganos e do povo das ruas compõe-se o quadro
religioso apresentado por Cabral. Entre os poemas de Sevilha andando, atingiu os
padres em “O asilo dos velhos sacerdotes”; um longo período intercalado por
orações adjetivas ironiza as atividades comuns da carreira de um padre, am de
denunciar a condenação do flamenco e a prática da intriga:
Os padres velhos de Sevilha,
que pastorearam toda a vida
176
que tanto sofreram dos hálitos
beatos nos confessionários,
que pastorearam, literalmente,
gado, galinhas, até gente,
que mastigaram o macarrão
do seu latim de igreja, em vão,
que puxaram as ladainhas
para cobrir as bulerías,
e ameaçavam com o inferno
quem se revelasse flamenco,
um inferno de labaredas
e música rança de igreja,
que só sabiam do silêncio
da fala baixa de intriguentos, (EPD, 367)
Rompe-se a expectativa de um triste fim condizente com tais condutas,
sugerido desde a palavra asilo do título, pois os padres terminam em uma
acolhedora Sevilha, mas não menos patéticos:
têm boa aposentadoria:
vêm dos povoados a Sevilha,
viver em paz a arquitetura
desse palácio de paz muda,
de muros frescos de tijolo,
onde num pátio deleitoso,
mordem com dentes que lá vão
o silêncio, final sermão. (EPD, 367-368)
Identificamos dois modelos discursivos em relação às imagens da Espanha
no decorrer da obra cabralina: em um primeiro momento, de Paisagens com figuras
a A educação pela pedra, descreveram paisagens, artes e condutas, como modelos
estéticos e até mesmo éticos; nas três últimas obras publicadas, narrou-se sobre
uma Andaluzia e uma Sevilha que não foram vistas nem pelo olhar do exotismo do
estrangeiro, nem pelo olhar preconceituoso das demais regiões espanholas, da
Igreja e do Estado, mas sim por um poeta cronista que soube expressar as
177
contradições dessa cultura. Por meio de um determinado lugar, conseguiu chegar a
uma “Espanha total”.
178
CAPÍTULO 6: Os tempos da Espanha de Murilo
“(...) tema aliás de toda a literatura contemporânea, em vários escritores,
inclusive em Machado de Assis, especialmente no capítulo sete de Brás Cubas, o
delírio, é o problema do tempo... Não em vão escrevi Tempo e eternidade, Tempo
espanhol. Enfim, eu sou hanté pelo problema do tempo.”
364
O depoimento de Murilo
é revelador não apenas para determinadas coletâneas, mas para o conjunto de sua
obra, na medida em que buscou elaborar uma concepção do tempo, da História. E
quando se refere ao tempo, quase sempre evoca seu par complementar, o espaço.
Por isso, além de Tempo espanhol, escreveu o livro de viagens Espaço espanhol.
No estilo dos aforismas de O discípulo de Emaús, poderíamos afirmar que, para
Murilo, o tempo é poesia e o espaço é prosa, ou melhor, prosaico. No final do texto
dedicado à cidade espanhola de Genora, o poeta volta-se às duas noções que
delimitam a experiência humana:
Quem me restituirá na sua complexidade estimulante o corpo terrestre de
Gerona? Quando? Giramos a vida em torno deste advérbio de tempo. “Quando?”,
Gerona, é geral interrogação de todos os dias. Seremos nós homens o próprio tempo
resumido em carne e osso? Gerona, a epopéia da criação do mundo, o
conhecimento acelerado da matéria, superando agora as fórmulas de Einstein,
desenrolam-se no tempo, diante dos nossos olhos iniciados; não terminaram; mas
todos queremos nos libertar do tempo qualitativo e quantitativo. Haverá alguma coisa
mais obsedante do que o tempo? Em Gerona vi mais uma vez o tempo, toquei-o;
esse tempo que às vezes tomamos do espaço. O espaço! Queremos agora libertar-
nos tamm do espaço. Oculto na tua cápsula, cosmonauta, distingues ou não as
plataformas de Gerona, o espaço de Gerona, o homem de Gerona? (PCP, 1164-
1165)
Bem ao gosto do Modernismo da cada de 20, ele partiu de um presente
circunstancial, do Rio de Janeiro e seu subúrbio, fazendo uma excursão pelo
passado do país em chave satírica, na História do Brasil. Mas o permaneceu
nessa posição, estimulado pela abertura a novas dimensões, graças ao surrealismo
364
ARAÚJO, Laís Correa de. Op. cit., p. 357.
179
e à amizade decisiva com Ismael Nery. O pintor formulou o sistema essencialista
como preparação ou introdução ao catolicismo, fundamentado na “abstração do
tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência, na
redução do tempo à unidade, na evolução sobre si mesmo para descoberta do
próprio essencial, na representação das noções permanentes que darão à arte a
universalidade.”
365
O princípio da universalidade, almejado por Murilo desde o início
de sua produção poética, e que remava contra a manacionalista do Modernismo,
possibilitou-lhe que cada vez mais absorvesse as propostas do amigo. A última parte
da obra de estréia, Poemas, significativamente intitulada Poemas sem tempo”,
desenvolve a “sucessão, analogia e interpenetração de formas”
366
entre membros da
família, primeira tentativa de figurar uma permanência para além das contingências
cronológicas.
Tais percepções, depois da firme adesão ao catolicismo, configuram-se na
coletânea Tempo e eternidade, escrita em 1934, na qual vários poemas apostam no
doutrinário para enfrentar a convulsão política da década de 30, no Brasil e no
exterior, que desembocaria na Segunda Guerra Mundial. A “Filiação” do eu lírico à
eternidade, em detrimento do tempo e do espaço, afirma-se:
Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando-me em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado. (PCP, 250)
Muitos poemas com as formas verbais do futuro apontam o fim dos tempos e
o encontro de Cristo na eternidade. Às vésperas do conflito mundial, situado pela
pertubadora imagem das crianças que dormem com fuzis, Murilo lança sua “História”
(As metamorfoses, Livro Primeiro, 1938):
365
MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. Op. cit., p. 65.
180
Os mares se contraem.
As nuvens esticam as asas.
O espaço abre-se em sedes e clamores.
Dos que nasceram há mil anos
E dos que ainda vão nascer.
Há uma convergência de presságios
Nos jardins cobertos de rosas migradoras
E nos berços onde dormem crianças com fuzis.
O espírito poderoso que fundirá os tempos
Espera, impaciente, nos átrios celestes. (PCP, 330)
A História com orientação providencialista do divino passa a nortear a poesia
muriliana escrita sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, cujas imagens muitas
vezes foram inspiradas no Apocalipse: o Livro Segundo de As metamorfoses (1941),
intitulado provocativamente como “O Véu do tempo”, a encobrir a redenção da
eternidade; Mundo enigma (1942); e principalmente, Poesia liberdade (1943-1945).
Na última coletânea comparece o único poema de toda a obra de Murilo em que o
tempo é tematizado nas mais diversas ações de um presente contínuo, anunciando
o poder que assumiria na poesia posterior:
O tempo cria um tempo
Logo abandonado pelo tempo,
Arma e desarma o braço do destino.
A metade de um tempo espera num mar sem praias,
Coalhado de cadáveres de momentos ainda azuis.
O que flui do tempo entorna os pássaros,
Atravessa a pedra e levanta os momumentos
Onde se desenrola – o tempo espreitando – a ópera do espaço.
Os botões da farda do tempo
São contados – não pelo tempo.
O relojoeiro cercado de relógios
Pergunta que horas são.
O tempo passeia a música e restaura-se.
O tempo desafia a pátina dos espíritos,
Transfere o heroísmo dos heróis obsoletos,
Divulga o que nós não fomos em tempo algum. (PCP, 434)
Tempo e espaço não são meramente desprezados, mas se constituem a
partir do concreto, do signo perene da pedra: Atravessa a pedra e levanta os
monumentos/ Onde se desenrola o tempo espreitando a ópera do espaço.” As
imagens descontínuas tentam materializar a abstrata noção de tempo, assim como
366
Idem, p. 30.
181
uma série dos contemporâneos aforismas de O discípulo de Emaús (1945). No de
número 251, por exemplo, em três concisas frases formulou a trajetória da
humanidade sob a ótica do cristianismo: “A criação é a tese. O pecado original,
fundador do tempo e da história, é a antítese. O juízo final é a síntese.” Em vários, o
par tempo-espaço não se desvincula:
33: O reino de Deus está em nós. Não está sujeito ao tempo nem ao espaço.
54: O tempo e o espaço são duas categorias anacrônicas que o homem deveabstrair se
quiser conquistar a poesia da vida.
253: A ciência é o estudo do tempo e do espaço. A poesia é a aventura no tempo e no
espaço. A religião é a ciência fora do tempo e do espaço.
541: O tempo é uma dimensão do espírito, o espaço é uma dimensão do corpo.
623: O espaço e o tempo estão catalogados e previstos.
715: Os princípios mecânicos só podem funcionar no tempo e no espaço. O espírito livre os
supera. [grifos nossos]
Os aforismas citados associam tempo-espaço como categorias subjugadas à
eternidade divina, única aspiração válida. O binômio tempo-espaço tornou-se crucial
no conjunto da poesia muriliana formado por Contemplação de Ouro Preto, Siciliana
e Tempo espanhol, obras circunscritas por um determinado espaço cidade, ilha e
país e recuadas no tempo. O que a fortuna crítica de Murilo geralmente reconhece
como um novo período da obra que se volta a uma realidade empírica corresponde
a um mergulho profundo na tradição, na História, mas sem abandonar os princípios
católicos.
A primeira lição de História deu-se na Minas Gerais natal, em Ouro Preto, a
Vila Rica colonial redescoberta pela primeira geração modernista. Ao lado do sogro,
o historiador português Jaime Cortesão, e do diretor do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), Rodrigo Melo de Franco Andrade, visitou no
final dos anos 40 a antiga capital mineira, sensibilizando-se com seus monumentos
e suas histórias. A paisagem montanhosa e irregular que configurou todo um traçado
urbano imprime sua permanência no poema de abertura da coletânea de 1954,
“Motivos de Ouro Preto”:
182
(...)
E contra a dispersão das ossadas no tempo,
Que o amor à forma e a Promessa rejeitam,
Da pedra o testemunho antigo se levanta,
Poder do Itacolomi e o da Pedra perene. (PCP, 458)
Contudo, na Europa, Murilo deparou-se com muitos mais séculos de História,
que convivem em um mesmo lugar como registros de diferentes épocas. Entre
diversos locais para uma primeira eleição, aportou à ilha da Silia, de história
anterior a Cristo, que deixou ruínas integradas à natureza pela força da pedra.
367
Depois das igrejas de Ouro Preto, circulou entre os templos e túmulos da ilha para
ratificar a participação de tudo e de todos na eternidade:
(...)
Confronto-me ao que foi antes de mim:
Em 1901 eu tinha
Seis milhões de anos.
Os que dormem sob as lápides,
Antecipando o futuro,
Viram o deus permanecer
Desde o princípio do tempo
Nas colunas geminadas. (“O Claustro de Monreales”, PCP, 569)
Finalmente, ampliou os horizontes para a Espanha em Tempo espanhol,
última obra poética de uma incessante produção começada na metade dos anos 20,
antes de enveredar pela prosa e pelas últimas experimentações de Convergência.
Ao contrário de uma tradição crítica proposta por Haroldo de Campos que vê,
sobretudo nesse livro, o ápice de um caminho de depuração e construção formais,
podemos apresentá-lo como uma interpretação decisiva da temática do tempo.
Assim, Murilo escolheu uma das mais intensas nações católicas da História, a
Espanha de “lição de ética exemplar, da qual um dos temas fundamentais é a
justaposição do homem interior ao homem exterior, inserido na história mas
consciente do valor da sua alma individual, (...)” (PCP, 1471).
A tensão tempo e eternidade” integrou-se de forma harmoniosa em Tempo
espanhol. Diferentemente da linha progressista e materialista da História do Brasil
da década de 30, percorre-se a história dos primeiros povos da Antigüidade à
367
Ver a análise de Davi Arrigucci Jr. do poema “As ruínas de Selinunte”, no ensaio “Arquitetura da
memória” (O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000).
183
ditadura franquista segundo uma interpretação figural. Estudado por Erich Auerbach,
em relação à Idade Média cristã, a interpretação figural é o modo patrístico e
escolástico de definir e orientar cristãmente o sentido do tempo na experiência
histórica. A figura é, basicamente, a relação, especular e substancial, estabelecida
entre homens, coisas e eventos do Antigo e do Novo Testamentos; “algo real e
histórico que anuncia alguma outra coisa que também é real e histórica. A revelação
entre os dois eventos é revelado por um acordo ou similiaridade.”
368
Dessa maneira,
as pessoas e fatos do Velho Testamento são prefigurações do Novo Testamento,
como Moisés é uma prefiguração e Cristo seu preenchimento. Os acontecimentos
não apenas se remetem um ao outro, mas também à promessa do fim dos tempos e
do verdadeiro reino de Deus, que, de acorodo com a doutrina cristã, sempre existiu
e sempre existirá.
A construção temporal do livro de 1959 corresponde a um deslocamento
geográfico, figurando determinados espaços como palcos de determinados tempos.
Ratifica a íntima associação tempo-espaço tamm em Espaço espanhol, no qual
não apenas descreve cidades, mas tamm constrói seus tempos. Em mais de uma
passagem é evidente sua preocupação com a alteração de uma ordem antiga para
dar lugar à modernidade do século XX
369
, quando, final da década de 60, a Espanha
já abandonava seu caráter predominantemente rural. Nesse aspecto, concorda com
João Cabral, citando o poema Sevilha” de Quaderna
370
: Deduzimos portanto que
Sevilha é feita à medida humana; esse texto implica uma censura ao gigantismo de
368
AUERBACH, Erich. Figura. Trad. Duda Machado. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 27. Murilo
Marcondes Moura, para a leitura de “Janela do caosde Poesia liberdade, valeu-se da noção de
figura desenvolvida por Auerbach (“História: figura da eternidadeIn Murilo Mendes. A poesia como
totalidade. Op. cit., p. 170-172).
369
“Ainda existirão espanhóis dentro dos arranha-céus?” (Madrid, PCP, 1126); “(...) O caráter da
antiga Ávila ‘mística e tradicional, honesta e dura’, custará talvez a se adaptar aos hábitos dos últimos
invasores: o técnico e o capitão de indústria” vila, PCP, 1139); “(...) Depois regresso às margens do
Pisuerga; debruço-me no parapeito; e, pisuergando, auguro para os homens a impossível
mansedumbre que subsiste na água barrenta de um rio castelhano a exorcizar os poderes mecânicos
do século.” (Valladolid, PCP, 1148); “(...) O processo de modernização demorou um pouco mas
esse implantando aqui. Perto do Palácio de los Momos, de tão singular fantasia, com suas janelas
em ajimez, instalaram um posto de gasolina; muitas lojas do centro se americanizaram. O fim do
mundo virá por efeito de bombas americanas ou chinesas? De qualquer modo, não por bombas
espanholas.” (Zamora, PCP, 1152); “(...) Cada vez que volto aqui pergunto-me preocupado se esta
gente conservará seu caráter específico mesmo depois de tantos anos de governo ditatorial, de
americanização e de rápida industrialização. Naturalmente muitos hábitos estão-se modificando,
assim será cada vez mais: de qualquer modo creio que os traços característicos da psique espanhola
permanecerão apesar das fortes pressões internas e externas.” (Salamanca, PCP, 1155); “(...) ponho-
me a congeminar o que será o futuro da terra palentina; por exemplo, se a forma desses campos,
dado o avanço da urbanização espanhola, subsistirá no dia de amanhã; é mais provável que segundo
a metáfora bíblica, seja logo mudada como um vestuário.” (Palencia, PCP, 1157).
370
V. Capítulo 5.
184
tantas cidades modernas que perderam, quase, a relação com seu criador e
protagonista, o homem.” (PCP, 1176)
Tempo espanhol pode ser considerada uma das obras mais elaboradas e
coesas de Murilo, mais que um mero conjunto de poemas ou um desfile histórico-
artístico. Por isso, ao longo da coletânea, identificamos núcleos espaço-temporais
que seguiremos neste capítulo: as origens e a Idade Média; os séculos XVI e XVII, o
chamado Siglo de Oro, na região de Castela; um intermezzo, entre o século XVIII e
início do XX; a Andaluzia; e por último, a ditatura franquista e as vanguardas
artísticas na Catalunha.
1. O começo e o fim da Espanha
Os 11 primeiros poemas de Tempo espanhol acompanham a formação e a
Idade Média, regredindo até às montanhas catalãs de “Monteserrate”, “Anteriores ao
primeiro homem”:
Eis o território disforme
Onde o espírito sincopado
Tenta escalar Deus e a pedra:
Espanha por se construir. (PCP, 578)
Espaço espanhol, por sua vez, abre-se com o texto sobre Altamirae suas
pinturas rupestres, as quais para Murilo permanecerão inclusive no fim dos tempos
no lugar de outras conquistas mais recentes e civilizadas do homem: “Coisa
estranha: ao deixar esta cova tenho a sensação de haver penetrado nos arcanos do
fim do tempo, em vez de retornar ao princípio. No fim do tempo, isto é, quando se
acumularem as ruínas do que foi o homem e seu esforço de levantar o monumento
da história; quando restarem vestígios, não do seu ‘idealismo’, da sua ‘arte’, da
sua ‘ciência’, mas da sua substituição mágica pelo animal das cavernas.” (PCP,
1122). Segundo Murilo, esse animal pode ser um “longínquo pressentimento do rito
taurino”, assim como a “Cabeça de touro maiorquina”, de Tempo espanhol.
185
Montserrat e Altamira são “terra de Espanha, sim, mas não história de
Espanha.” (PCP, 1121). No entanto, prefiguram elementos da Espanha que virá. Tal
processo ocorre de maneira plena logo no poema de abertura, “Numancia”:
Prefigurando Guernica
E a resistência espanhola,
Uma coluna mantida
No espaço nulo de outrora.
Fica na paisagem térrea
A dura memória da fome,
Lição que Espanha recebe
No seu sangue, e que a consome. (PCP, 577)
Numância é o nome de uma população desaparecida a 7 km da atual cidade
de Soria. No último bloco do texto a respeito da cidade em Espaço espanhol, Murilo
extende a compreensão do conciso poema:
Descortino o horizonte de Numância, deserto, imensurável a olho nu. Observo
a vegetação rasa onde um ou outro resto de coluna se salienta, algum marco a
assinalar o episódio da grande resistência aos romanos; recuando nos séculos
descubro a atualidade de Numância na sua gesta épica. Resistência; não deveria ser
esta a palavra de ordem universal? Resistência à agressão, à lei do lobo ou da
raposa, a qualquer violência, fardada ou não. (PCP, 1144)
Depois de 14 anos de lutas, um cerco em 133 a.C. venceu Numância pela
fome. Os habitantes preferiram a morte a se entregar, chegando a incendiar a
cidade para que não ficasse para os romanos. História convertida em mito, tanto que
o adjetivo numantino entrou para a língua espanhola com o significado, que resiste
con tenacidad hasta el límite, a menudo en condiciones precarias".
Após a evocação que o título “Numancia” pode conotar, a palavra inicial do
poema, o verbo prefigurando, inaugura a concepção histórica que norteia Tempo
espanhol. Assim como Murilo aprendera a história dos judeus como uma figura do
surgimento de Cristo, a resistência de Numância aos romanos é uma figura de
outras resistências do século XX na Espanha: do bombardeio a Guernica em 1937,
que se tornou símbolo das atrocidades da guerra no mundo contemporâneo, e da
186
ditadura franquista, velada nesse começo e explícita nos últimos poemas.
Acontecimentos similares pela imposição da carência e pela morte dos adversários.
No último “setor” de Tempo espanhol, que analisaremos mais adiante, o poema
“Guernica” pode ser visto como preenchimento da figura de “Numancia”:
“Aumentando a comarca da fome,”, o episódio segue a lição recebida do episódio da
Antigüidade. Mas o verbo final, consome, indica que o drama repercute ainda na
atualidade. O que parecia o começo pode anunciar o fim.
2. O núcleo de Espanha: Castela e o Siglo de Oro
Os 20 poemas seguintes a maior seqüência de Tempo espanhol
adentram Castela e o denominado Siglo de Oro, que entre os séculos XVI e XVII
correspondeu ao período de maior esplendor nas artes espanholas. Murilo explicitou
a importância crucial desses espaço e tempo espanhóis: “(...) o ambiente da meseta
castelhana remete-nos a uma época nuclear da Espanha: quando de novo se
encarna historicamente o tema da vocação sagrada do homem, aperfeiçoando-se a
disciplina dos sentidos, ampliando-se a visão das fronteiras da morte; quando a
consciência das duas tarefas, a terrestre e a transcendente, se resume na pessoa
de Santa Teresa, segundo alguns tão reveladora da substância espanhola quanto
Cervantes.” (PCP, 1144). Para a Antologia poética de 1964 que ele mesmo
preparou, o maior número de poemas de Tempo espanhol advém desse período.
371
Seguindo a tradição dos escritores da geração de 98
372
Murilo foi,
naturalmente, leitor de Unamuno e Azorín, entre outros – revisita o tópico da Castela
escassa e áspera:
Na estepe de Castela o homem mede a sede,
Mede o sol, desdém e força.
Na estepe de Castela
O homem mede suas malandanças,
Caminha com a rudeza a tiracolo.
Na estepe de Castela
Campos desnudos, vento e argila,
Céu côncavo, cifrado,
Determinam o espaço substantivo,
371
“Santa Teresa de Jesus”, “São João da Cruz”, “Lida de Góngora”, “Tema de Calderón” e “Tempo
de Quevedo” (Lisboa: Livraria Morais Editora, 1964).
372
V. Capítulo 5.
187
O estilo do silêncio
E o silêncio cria o homem de Castela. (“Homenagem a Cervantes”, PCP, 587-
588)
As noções de concretude e depuração – associadas na imagem do “silêncio e
solidão sólidos” de Toledo , que caracterizam Tempo espanhol, encontram nessa
parte sua formulação mais veemente.
Murilo, jamais circunscrito por um tempo determinado, estabelece paralelos
entre o Siglo de Oro e o século XX, conjugando passado e modernidade. O início do
poema “Ávila” aproxima o movimento do o sobre a cidade castelhana da
experiência mística de Santa Teresa: “O avião abrindo curvas dá guinadas/ Como os
movimentos da alma na escrita de Santa Teresa.” (PCP, 584). Por outro lado, como
repetiria em várias passagens de Espaço espanhol, o avanço do progresso pode
interferir em toda uma tradição:
(...)
Castela interior que me demarcas,
Correspondes à outra Castela clássica,
Ameaçada Castela: aqui a indústria
Já inaugura sua máquina indiscreta. (“Homenagem a Cervantes”, PCP, 588)
Desde que retire os homens da sua condição precária, o poeta não se opõe
ao desenvolvimento. A resistência uma das palavras-chave de Tempo espanhol
ao tecnicismo da época atual virá da memória do patrimônio artístico da Espanha,
no poema em questão, o maior símbolo dele:
Mas, se deve nutrir teus homens secos,
Que venha e permaneça a máquina indiscreta:
Frente ao excesso mecânico da técnica,
Frente a moinhos com radar, Dulcinéias de vidro, armaduras atômicas,
Responderá o equilíbrio de Cervantes. (PCP, “Homenagem a Cervantes”,
588)
A transposição de El Quijote ao presente do poeta dá-se também com outro
texto fundamental do Siglo de Oro, La vida es sueño, no poema “Tema de
Calderón”. Segismundo, ao ser retirado de sua “torre atômica”, depara-se com o
desconcertante cenário de um centro urbano:
188
(...)
Caminho entre semáforos e máquinas.
São andaimes, passos arritmados, poeira,
As pequenas combinações da vida, suor,
A linguagem dos ácidos, nada álacre. (PCP, 597)
As dúvidas do Segismundo original ampliam-se e tornam-se os dilemas do
intelectual contemporâneo:
(...)
Quem finalmente sou, esqueleto letrado,
Alienado eco? A injustiça não me cabe
A mim só: qualquer um a reclama e recebe.
Mas eu sonho a injustiça, ou a suporto?
Eu sonharei a vida, ou a vida me sonha?
Aprendi do meu sangue, ou da essência de Espanha?
Calderón, ainda no contexto atual do século
LA VIDA ES SUEÑO. (PCP, 597)
De todos os modos, na leitura do ensaio Escila y Caribdis de la literatura
española”, de Dámaso Alonso
373
, Murilo destacara que o segredo do Siglo de Oro
estava na síntese da tradição medieval espanhola e do Renascimento europeu:
“Esta es la clave del momento culminante de España, del momento en que se
concentran nuestras energías y nuestros valores; por eso ha de ser también la
explicación de toda el alma española.”
374
Ernest Robert Curtius, em seu clássico
Literatura Européia e Idade Média Latina, defende a importância do Siglo de Oro ao
se valer da noção de “teatro do mundo”, totalidade que seguramente fascinou Murilo:
“(...) A literatura áurea espanhola conservou a substância do Ocidente cristão. Via na
história um ‘arquivo dos tempos’ em que os povos de todas as épocas e lugares
tinham consignadas suas recordações. Os reis e heróis, os mártires e camponeses
são atores do grande teatro do mundo. Poderes sobrenaturais intervêm nos
destinos. Tudo é dominado pelo encadeamento da graça e da sabedoria de
Deus.”
375
Além de acompanhar em suas leituras o desenrolar do “teatro do mundo”,
recuperou o freqüentado tópico da brevidade da vida em “Inspirado em Lope de
373
V. Capítulo 2.
374
ALONSO,maso. Estudios y ensayos gongorinos. Op. cit., p. 24.
375
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e Idade Média Latina. Trad. Teodoro Cabral e Paulo
Ronái. São Paulo: Hucitec: Edusp, 1996, p. 195-1966.
189
Vega” e principalmente em “Tempo de Quevedo”, peça importante na concepção da
História em Tempo espanhol:
Quevedo, a angústia do tempo
Informa tua visão concreta.
A Espanha sem relógio mede o tempo
No instrumento elíptico da caveira.
Mas o último anjo, matemático,
Virá para reunir a caveira geral,
Virá para ceifar todo o angelismo:
Empunhando a trombeta construída
Com implacável certeza,
Medida e timbre justos,
Fará o homem se conhecer
Nos seus limites precisos.
O tempo se medirá, concreto,
Depois de esgotada a clepsidra.
E tua angústia do tempo
- Tansitório Quevedo que já foste -,
Aferida a rigor, torna-se vã.
Saberás. Saberás. (PCP, 597)
A representação do “fim dos tempos”, comum em obras como Tempo
eternidade e Poesia liberdade, retorna em Tempo espanhol avaliada pelas diretrizes
de sua poética: matemático, construída, justos, rigor. O que é direcionado a
Quevedo vale para as outras figuras da coletânea, “transitórias” e que “já foram, as
quais, no Juízo Final, encontrarão a eternidade.
3. Os arredores da História
Depois de uma parte tão essencial e antes de enfrentar o século XX, 8
poemas indiretamente percorrem mais de dois culos de História da Espanha.
Longa e penosa trajetória, que envolveu, entre outros acontecimentos, a decadência
do Império espanhol, a invasão napoleônica e a desastrosa guerra com os EUA em
1898. Enquanto houve na pintura a grandiosidade de Goya
376
, nas letras, a
inadaptação e a estagnação da tradição espanhola frente ao Neoclassicismo e ao
376
V. Capítulo 4.
190
Romantismo. Porém, no final do culo XIX, assiste-se ao início de uma
recuperação, como por exemplo a “Pedra de Unamuno”. Além disso, a resistência
do espanhol revela-se na permanência da tauromaquia, com os poemas “O rito
cruento” e “Na corrida”.
Por outro lado, o primeiro e último poemas dessa seqüência “Chuva em
Castela” ePueblo”, ambos selecionados para a Antologia poética de 1964
ampliam a noção de História em Tempo espanhol.
Ao se voltar à meseta castelhana, o poeta abandona, por um momento, a sua
típica secura:
A história circula insatisfeita
Ao largo da planície autárquica.
Entre a marcha das amapolas
Se orientam
Se levantam
Os pés aquedutos.
Chove a galope
Cavalos horizontais
Sacando o preto do branco
Chovem a galope.
Alturas compactas se procuram.
Parte-se o galope em fragmentos. (PCP, 600)
O fragmento inicial, por meio da cara associação a Murilo, tempo-espaço,
sintetiza um período no qual a Espanha não encontrara seu rumo. Diante do
presente estéril, as imagens pontuam-se entre o remoto passado e a espera do
porvir: o aqueduto, ruína da ocupação romana, e a forte chuva, rara e desejada na
região. Simultaneamente, vislumbram-se o fim e o começo.
Quanto a “Pueblo”, remete-nos às pequenas populações da Espanha de
todos os tempos:
O pueblo subsiste no ar, no sol de poeira,
Nos quadrados de cal e na secura.
Subsiste na conversa organizada
Em torno da água pública da fonte.
191
Um som qualquer ressoa prolongado
No ouvido de animal, pessoa ou casa.
Os minutos pacientes limam os dias.
O pueblo destacando-se da história
Participa do obscuro de cada um.
E participam todos deste pueblo
Que rejeitando a idéia do aniquilamento
Joga aos dados a ressurreição da carne. (PCP, 604)
Não estamos mais diante das cidades repletas de História, que possuem
identidade peculiar, para a qual um nome diz muito Ávila, Segovia, Toledo, etc.
– mas sim do pueblo anônimo, de qualquer parte do território espanhol. Ainda assim,
subsiste palavra próxima da resistência que percorre a coletânea tanto no meio
físico, quanto no modo de vida comunitário.
O poema descreve a quase imobilidade e silêncio do pueblo, os quais
induzem a uma lenta passagem do tempo cronológico. A parada momentânea no
desfile artístico e urbano vem reforçar a linha mestra de Tempo espanhol. Embora
esteja à margem da História oficial, isso não impede a “subsistência eterna do
pueblo, pois aposta, no fim dos tempos, na “ressurreição da carne”.
4. Tempo andaluz
Na quarta parte segundo a divisão aqui proposta de Tempo espanhol, 12
poemas concentram-se na Andaluzia. “Paisagem com figuras”, para retomar o título
e a proposta de Cabral, onde a História quase não comparece, a não ser quando se
refere ao domínio árabe em Granada:
(...)
Tu me deste séculos de outrora rudes estandartes
O gênio africano enxertado no castelo da Europa,
A tensão de duas culturas díspares;
E no limite desse tempo épico
A certeza geométrica da cruz. (PCP, 610)
192
Murilo investiu em um passado próximo do observador, seja para opassante”
de Sevilha, o cante flamenco ou os Jardins do Generalife. Tanto que, diferentemente
de outros momentos da coletânea, a 1
a
pessoa toma mais direitos frente ao
objetivismo descritivo da 3
a
: basta verificar a seção 2 de “Tempo de cante flamenco”,
com a repetição em cada estrofe de “Eu no flamenco”. Aliás, como o título do poema
indica, trata-se de um tempo marcado pelo ritmo do canto e da dança,
continuamente renovado. E o poeta integra-se de tal modo à vitalidade desse
universo, que por um instante desafia a morte, como no final do poema Granada”:
“Os minutos aumentados aprestavam os dentes:/ E tive gana da vida, não quis
morrer para sempre.” (PCP, 611) Assim, podemos considerar o penúltimo momento
de Tempo espanhol como uma intensificação dos princípios de resistência e
transcendência concentrados no presente.
A opção de Murilo pelos contrários fez com que se dirigisse às três cidades
andaluzas mais características: Resulta inútil confrontar Granada, Sevilha e
Córdoba, todas fortemente tocadas pelo gênio árabe, mas diversas, opostas mesmo,
cada uma com seu timbre intransferível. Entretanto, das três, Granada é a mais
espetacular e fantástica, Sevilha a mais feminina e festeira, Córdoba, a mais enxuta
e secreta.” (PCP, 1181). Vale compará-lo ao depoimento sobre as mesmas cidades
de Cabral: (...) Mesmo cidades como Córdoba, sendo o contrário de Sevilha, têm a
mesma força andaluza. (....) É engraçado que, das cidades da Andaluzia, Granada é
aquela que menos me interessa. Acho que Granada é uma cidade cenográfica,
como a Bahia.”
377
Por isso, além de não ter composto nenhum poema a respeito de
Granada, para a Antologia poética de Murilo Mendes em 1966
378
, apenas escolheu
da parte andaluza o poema “Córdova”:
Conheço-te a estrutura tersa,
Toda nervo e osso, contida
Em labirintos de cal
E em pátios de vida secreta,
Córdova áspera e clássica
Alimentada de África.
Como não te entregas de súbito,
Quem te aproxima terá sempre fome
E não dirá: Córdova de meus amores.
377
ATHAYDE, Félix, org. Op. cit., p. 17.
378
MENDES, Murilo. Antologia poética. Seleção de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro:
Fontana; Brasília: INL, 1976.
193
Um nome seco e esdrúxulo te designa,
Sol desdenhoso, Córdova concreta. (PCP, 610)
Apesar de tamm não haver dedicado nenhum poema a Córdoba, salvo um
significativo “A sevilhana que é de Córdoba”
379
, Cabral, ao destacar a realização
muriliana, manifesta a concordância com uma poética concisa e objetiva.
5. Tempo de hoje e de sempre na Catalunha
Nos 13 poemas finais de Tempo espanhol o poeta vai chegando ao tempo
que lhe coube viver em uma região que não se sente Espanha: “(....) A Catalunha
atrai-nos pelo seu espírito de independência, sua tradição de anarco-sindicalismo,
de lutas operárias, estudantis; e, talvez devido à proximidade da França, pela sua
abertura européia. Portanto, quem diz Barcelona diz Catalunha e Europa.” (PCP,
1166). Ainda para Murilo, é tamm Barcelona o berço de grandes artistas da
modernidade, como Gaudí, Picasso e Miró.
380
Em lugar de repassar algum episódio da Guerra Civil Espanhola, em uma
coletânea tão marcada pelas letras, fez alusão a ela por meio de dois poetas que
morreram durante o conflito: nos poemas “Canto a García Lorca” (Recordando que
soubeste/ Defrontar a morte seca/ Vinda no gume certeiro/ Da espada silenciosa) e
“Palavras a Miguel Hernández” (“Breve provando a experiência do homem,/ O
sangue defrontando o touro aceso,/ O sol negro da prisão e da morte.”). Mas isso
está longe de significar algum tipo de condescendência com o regime franquista,
pois as realizações da última parte de Tempo espanhol representam as mais
contundentes e comprometidas de toda a obra muriliana. Não está ao lado do poder,
nem do padre que “abençoa a espada”, mas sim do povo espanhol: o indignado
“chofer de Barcelona”, os operários em greve, os estudantes, os prisioneiros, os
“padres inconformistas”. Mais um motivo para esse espaço privilegiado do livro ser a
Catalunha, onde seu nacionalismo tornou-se uma forma de resistência à opressão
de Franco:
379
V. Capítulo 5.
380
Sobre Picasso e Miró, v. Capítulo 4.
194
O estilo de Barcelona
Formou-se na rebeldia.
Provém de cultura densa
À base de sangue e vida. (“Barcelona”, PCP, 614)
Em tal luta, ainda que “subterrânea”, a morte é presença inevitável. O “chofer
de Barcelona”, por exemplo, deseja uma nova Espanha a partir de uma guerra civil,
espécie de Apocalipse:
(...)
Mas a virada aí vem:
De novo a morte ao volante,
As igrejas incendiadas,
O fogo da guerra civil.
Vejo uma única saída;
Nos matarmos uns aos outros,
Todos nós; então a Espanha
Recomeçará outra vez.- (PCP, 615-616)
Contudo, alerta-se que o verdadeiro fim vida ordem divina: “A morte lúcida
não vida espada do homem,/ Antes vida estocada de Deus.(“O padre cego”,
PCP, 618). A morte que tanto fascina o espanhol representa apenas o término do
tempo e da história:
O real explode com a morte.
A contenção espanhola da morte
Explode em fogo e fim.
Explode a morte agredida pelo espanhol.
Explode o silêncio espanhol da morte.
Morte: tempo físico que explode
Largando a pele da memória,
Tempo da memória que explode
Substantivamente. (“Morte situada na Espanha (La Caridad-Sevilha)”), PCP,
620)
O poema que encerra a coletânea, “O Cristo subterrâneo”, mais do que ser o
estágio mais recente de uma história em progressão, aponta para sua correlação
divina:
195
Descubro um Cristo secreto
Que nasce na Espanha súbito.
Não é o Cristo vitorioso
Dos afrescos catalães,
Nem o Cristo de Lepanto
Suspenso por uma torre
De espadas, velas, paixões.
Não investe uma colina,
Não brilha no meio do altar
Entre ornamentos de prata.
Nem no palácio dos ricos,
Nem no báculo dos bispos.
É um Cristo quase secreto
Que nasce das catacumbas
Da Espanha não-oficial.
Nasce da falta de pão,
Nasce da falta de vinho,
Nasce da funda revolta
Contida pela engrenagem
Da roda de compressão.
Nasce da fé maltratada
Vagamente definida.
É um Cristo dos operários
Atentos, em pé de greve,
Filhos de outros operários
Mortos na guerra civil.
É um Cristo dos estudantes
Sem dinheiro para as taxas.
É um Cristo dos prisioneiros
Que no silêncio cultivam
A pura flor da esperança.
É um Cristo de homens-larvas,
Famintos, inacabados,
Morando em covas escuras
De Barcelona e Valência.
É um Cristo do tempo incerto.
É um Cristo do vir-a-ser,
Formado nos corações
Da Espanha que não se vê. (PCP, 620-621
)
Se levamos em conta a cosmovisão de Murilo, o “tempo incerto”, “o vir-a-ser”,
não implica apenas na superação da censura e penúria da Espanha franquista, mas
principalmente a redenção coletiva no Reino de Cristo. Firmemente ancorado na
História e no espaço, o horizonte da eternidade circula por
Tempo espanhol. Assim,
o poeta atinge o universalismo buscado desde o início de sua obra: o que foi, é e
será para os espanhóis, mesmo com eventos e personagens distintos entre si, vale
para todos.
196
Considerações finais
Na ausência de uma história da poesia brasileira do século XX, os trabalhos
que aproximem dois ou mais poetas podem contribuir para diminuir essa lacuna.
Várias são as possibilidades, e no caso de Cabral e Murilo, ainda escassos.
381
A
relação entre ambos, enfatizada por eles próprios e pela crítica
382
, é exemplar nesse
sentido: embora fossem muito diferentes, quase contrários talvez o interesse
mútuo surgisse justamente dao longo de suas carreiras não deixaram de ser
amigos e trocar experiências. Se o primeiro contato deu-se entre o “mestre” e o
“discípulo”, quando o Cabral estreante foi buscar elementos para sua poética no
Murilo maduro, o demorou muito para se configurar um diálogo entre iguais”,
entre dois grandes poetas. Mais do que insistir em uma inversão de posições a
presença de Cabral em Murilo preferimos pensar em intercâmbios em um
momento forte da trajetória deles, que para um vai de O rio (1954) a A educação
pela pedra (1961), e, para o outro, de Contemplação de Ouro Preto (1954) a
Convergência (1970). Sintomaticamente, durante tal período esteve mais presente a
vivência e a transfiguração, nas respectivas obras, do país estrangeiro que os unia
entre dissonâncias.
Dessa maneira, o presente estudo pretendeu tamm desenvolver outro
aspecto não muito explorado, o das fontes estrangeiras na poesia brasileira
moderna. A incorporação da Espanha na obra de Cabral e de Murilo tornou-se, tanto
pela qualidade, quanto pela extensão, um conjunto único na literatura brasileira.
Além disso, a pesquisa revelou-nos que eles foram protagonistas decisivos nas
relações literárias entre Brasil e Espanha. No lado de cá, voltado ao modelo francês
e norte-americano, chamaram a atenção para uma rica tradição literária e novos
autores. No país ibérico, reverteram o caminho natural do “centro” para a “periferia”:
os dois representaram possibilidades altamente bem realizadas de conciliar
381
Para Cabral, v. sua relação com Bandeira em LIMA, Luiz Costa. Sobre Bandeira e Cabral In
Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002, p. 57-69, e com Drummond em GLEDSON, Jonh. Influências
e impasses. Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 233-
262. Quanto a Murilo, v. ANDRADE, Fábio de Souza. Jorge de Lima e Murilo Mendes: confluências e
divergências In O engenheiro noturno. A lírica final de Jorge de Lima. São Paulo: Edusp, 1997, p. 29-
67.
382
V. Introdução.
197
vanguarda e uma significação humana frente a um contexto dominado por uma
poesia “social” limitada esteticamente.
Na esteira de uma concepção da literatura espanhola ainda corrente no
momento em questão, Cabral e Murilo abordaram a Espanha com um estilo
marcado pelas noções de concreto”, “objetivo” e realista”, entre outras. Enquanto
para Cabral essa apropriação foi fundamental para constituir uma poética muito
singular na lírica luso-brasileira, para Murilo serviu como conquista de uma
depuração e controle contrários à impulsividade característica de sua produção.
Cabral e Murilo pensaram a Espanha não apenas em uma perspectiva
literária, mas também pictórica, plástica, detendo-se em vários artistas que lhes
possibilitassem ratificar suas poéticas. Nos poemas, em particular, desejaram “dar a
ver” a Espanha, fosse uma paisagem, uma figura ou um espetáculo, como o
flamenco, em imagens sugestivas.
Seguindo a fértil lição da Geração de 27, foram além das vanguardas e se
abriram ao popular, como Cabral, e à História, como Murilo. Até mesmo a
concepção urbana deles não tinha a ver com a atração cosmopolita do século XX,
ao preferirem a Espanha que ainda custava a acertar os ponteiros com a
modernidade; por isso retiraram-se à meseta castelhana, ao pueblo, às cidades ao
“alcance do corpo”.
Para completar, as contradições da Espanha, “exótica” para os demais
europeus do outro lado dos Pireneus, seduziram os dois poetas brasileiros que se
aventuraram fora de suas fronteiras. que não se sentiam tão estrangeiros, não
precisavam acentuar as tintas daquilo que era distinto, mas sim buscar dimensões
universais, uma ética e um tempo que pertencem a todos os homens e lugares.
198
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383
A sigla MM indica que o exemplar pertence à biblioteca de Murilo Mendes (Centro de Estudos
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RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Tradução de lvia M. L. Moretto
e Guacira Marcondes Machado. São Paulo: Edusp, 1997
211
Anexos
212
Brasil e Catalunha
João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata brasileiro que reside aqui ao
serviço do seu país, assimilou em pouco tempo bastante elementos da nossa
cultura para nos dar, com as suas traduções de algumas Tannkas de Carles Riba,
uma mostra da sua sensibilidade singular e amiga. Eis aqui uns exemplos de como,
de poeta a poeta, não há segredos em idiomas irmãos:
TANNKA XIII
Direi limões,
maçãs rosadas, rosas,
sal e conchas,
e pensarão que passas
entre os jardins e a onda.
384
Corresponde a:
Diré llimones,
pomes rosades, roses,
sal i petxines,
i es pensaran que passes
entre els jardins i l’ona.
TANNKA XXXVI
Tristes bandeiras
do crepúsculo! Contra elas
sou púrpura viva.
Um coração serei, na escuridade;
de novo púrpura, com a alba.
385
No original:
Tristes banderes
del crepuscle! Contra elles
sóc porpra viva.
Seré un cor dins la fosca;
porpra de nou amb l’alba.
386
384
Trata-se de um dos “Tannkas de les quatre estacions”, intitulado “Eugenia”.
385
A tradução enviada por Cabral a Bandeira, em carta de 20 de julho de 1948, além de apresentar
o título - “Inscrição sobre um retrato oferecido em tempos de guerra- revela variações: “Tristes
bandeiras/ do crepúsculo! Contra elas sou/ rpura viva./ Um coração serei, na escuridade;/ de
novo púrpura, com a aurora.” (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 91)
386
O título original é “Inscripció Sobre un retrat ofert a J. i A. En temps de guerra”.
213
TANNKA XXXVIII
Como quem repousa
no amor ou na onda,
dormes, filho
da guerra, no inumerável
regaço ausente da fuga.
387
Tradução de:
Com qui reposa
en l’amor o en l’onada,
fill de la guerra,
dorms en la innumerable
falda absent de la fuga.
388
João Cabral imprimiu, pessoalmente e em sua casa, o seu livro de versos
Psicologia da composição, onde aprofunda rumo à personalidade do poeta com
uma nítida austeridade de expressão e um lirismo que se mantém na linha das
proximidades Guillén-Riba e de certa manera, Valéry.
[TRIADÚ, Joan. Ariel. Revista de les arts. a. 3, n. 16, Barcelona, abril 1948, p. 40.]
387
A tradução enviada por Cabral a Bandeira, em carta de 20 de julho de 1948, intitula-se “Criança
refugiada adormecida” (SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p. 91)
214
Quinze poetas catalães
389
Introdução e tradução de João Cabral de Melo Neto
Quis a Revista Brasileira de Poesia apresentar em suas páginas uma série
de quinze poetas catalães, dos que venho estudando e traduzindo alguns anos.
Nesta série, vão apenas os poetas nascidos depois do início do século XX. A data,
aliás, não foi escolhida por nenhum motivo especial e sim, unicamente, pela
necessidade de limitar uma determinada quantidade de versos, suscetível de ser
publicada num só número de revista.
Como disse, o princípio do século XX não está aqui como critério
psicológico. Na verdade, a posição dos poetas cataes incluídos nesta antologia
não difere essencialmente dos poetas catalães imediatamente anteriores, isto é,
dos poetas que vieram depois de Josep Carner, nascido em 1884, entre os quais
se encontra, por exemplo, o mestre de quase todos os que são aqui dados a
conhecer: Carles Riba, em minha opinião o autor mais considerável da língua
catalã. Algum dia apresenterei, também, uma outra rie desses poetas mais
antigos e, especialmente, uma seleção de poesias desse mesmo Riba, cuja
transposição para a língua portuguesa tenho a ponto de concluir.
A ter que definir a posição dos poetas posteriores a Carner, eu diria, sem
que desrespeite por isso as diferenças individuais de cada um deles, que é a sua
uma posição de defesa, defesa tensa, da língua catalã. O mencionado Carner foi
talvez o primeiro poeta a ter consciência da situação especialíssima do idioma de
que servia, uma vez que a longa e importante série de autores que
promoveram a Renascença
*
, de Verdaguer (n. em 1845) a Maragall (n. em 1860),
estiveram sempre condicionados pelo deslumbramento dessa voz ressuscitada, ao
mesmo tempo que prejudicados por uma concepção demasiado romântica da
literatura e dos fenômenos da linguagem.
388
O título original é “Infant refugiat adormit”.
389
Publicado na parte "Anexos" do livro Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond
(SÜSSEKIND, Flora, org. Op. cit., p.277-309). Incluímos as pequenas biografias da seção “Os
poetas deste número” provavelmente redigidas pelo próprio Cabral -, com correções e
acréscimos, além de indicar a obra que integra o poema e possíveis variantes.
*
A Renascença a que faço alusão, aqui, é o ressurgimento da língua catalã como idioma literário,
realizado em meados do século XIX, após séculos de uma absoluta hibernação provocada por
circunstâncias históricas.
215
Invocar a situação da língua catalã é absolutamente importante para
justificar tal definição, por ser, afinal de contas, a poesia, primordialmente, um uso
da linguagem. Pois o fato dessa língua românica, falada (e não exclusivamente)
por cinco milhões de poessoas, própria de uma região que se caracterizou sempre
por uma situação geográfica de passagem (passagem de guerreiros, na
reconquista; de mercadores e soldados; passagem entre Castela e a França, a
Itália, o Oriente), ter sido obrigada sempre a defender seu caráter próprio contra
influências numerosas e poderosas, me parece suficiente para explicar a fisionomia
atual dessa poesia, à qual o conhecimento das novas teorias relativas à existência
da linguagem se veio acrescenter, dando-lhe o aspecto presente que a faz uma
poesia mais de professores e filólogos do que de jornalistas, de conscientes mais
do que inspirados.
Modernamente, é fácil compreender-se uma maior crispação verificada
nessa atitude de autodisciplina e lucidez, se tomamos em conta a porcentagem de
pessoas não catalãs que acorrem atualmente à Catalunha, atraídas por
possibilidades de vida mais fácil numa região altamente industrializada; e (fato este
último mais importante para os poetas mais jovens ou em elaboração), se levarmos
em conta o fato de ser esta uma ngua já não ensinada nas escolas, impressa
em livros de caráter puramente literário e, absolutamente, desprovida de imprensa;
e, finalmente, se nos damos conta do que tudo isso representa de negativo para a
existência de um idioma e, portanto, de uma literatura.
Evidentemente, em tais condições, não é possível, sem o grande risco de
estar escrevendo em outro idioma, uma atitude romântica de abandono à pura
espontaneidade e uma cega ou, mais justamente, enceguecida entrega ao
impulso de criar.
Até aqui, observações objetivas. E, agora, se me é permetida uma parte de
julgamento, eu diria que essa atual posição a que foram levados os escritores
catalães uma posição materialista diante da criação poética talvez contenha
uma sugestão digna de ser considerada por parte de poetas de outros idiomas não
ameaçados.
[Revista Brasileira de Poesia. a. 2, v. 1, n. 4, São Paulo, fev. 1949.]
216
1. Mariano Manent
Lloança del fang
Lloaré el fang, per ço que hi fou la vida
i aquella sang que bull al nostre cos.
Mos ulls de fang pressenten el repòs
i la immortal claoror de l'altra Vida.
Lloaré el fang, per ço com fou pastada
la nostra carn del fang inconscistent
i dins l'argila immóbil i colrada
el buf de déu entrà com la sement.
Louvação do barro
Cantarei o barro, porque nele esteve a vida
e este sangue que ferve em nosso corpo.
Meus olhos de barro pressentem o repouso
e o clarão imortal de uma outra vida.
Cantarei o barro porque foi amassada
a nossa carne do barro inconsistente
e na argila curtida e inanimada
o sopro de Deus entrou como a semente.
Nasceu em Barcelona em 1898
390
. Viagens por quase toda a Europa. Fundador da
Revista de Poesia e de Quaderns de Poesia. [Faleceu em 1988]. Livros publicados:
La branca, 1918; La collita de la boira, 1920; L’aire daurat, 1928; L’ombra, 1931
391
.
É autor ainda de uma grande antologia da poesia inglesa contemporânea,
traduzida por ele mesmo para o catalão e castelhano. [O poema "Lloança del fang"
integra a obra La branca. Poemes (1916-1918). Segundo a edição consultada (La
acacias salvajes. Edição bilingüe catalão/ espanhol de Alex Susanna. Trad. José
Agustín Goytisolo. Barcelona: Edciones del Mall, 1986, p. 24), transcrevemos as
seguintes variantes: 1: Lloaré el fang que un dia fou veire de la vida, 2: d'aquell
5: Llloaré el fang, perquè va ser pastada 6: inconsistent, 7: immòvil 8: Dèu]
390
No periódico consta “1900”.
391
No periódico consta “1930”.
217
2. Joan Oliver (Pere Quart)
N. XIX
(Les Decapitacions)
Sens tija, sola,
corol.la
que em la nit serena
vola,
errivola
ànima em pena,
livida
(com son visatge
a la bella vida).
Maridatge
d'ala i neu,
fruit celeste,
(testa
sacra
de Madama
Anna Bolena
rediviva em simulacre)
cendra i flama,
lluna plena.
Poema XIX
De As Decapitações
Sem caule,
corola
que na noite serena
voa, errante
alma penada,
lívida
(como seu rosto
de despedida
à bela vida).
Casamento
de asa e neve,
fruto celeste
(cabeça
sacra
de Madame
Ana Bolena
rediviva em simulacro),
cinza e chama,
lua plena.
Nasceu em Sabadell, cidade da província de Barcelona, em 1899
392
. Publicou alguns livros
com o pseudônimo de PEDRO QUARTO. Exilado de Espanha desde a Guerra civil.
[Faleceu em 1986]. Publicou: Uma tragèdia a Lil.liput, 1928; Les decapitacions, 1934;
Cataclisme, 1935; Allò que tal vegada s’esdevingué, 1936; Oda a Barcelona, 1936;
Bestiari, 1936; Contraban, 1937. Obteve o Prêmio Folguera no ano de 1936. [Segundo a
edição consultada (Obra poética. Barcelona: Edicions Proc, 1975, p. 35), transcrevemos as
seguintes variantes: Epígrafe: "Sweets to sweet farewell", de Shakespeare 1: Sens tija,
sola 2: corolla 4:
vola 5: donivola 6: ànima en pena; 10: a bella vida). 12:
d'ala de neu, 14: testa 16: madama 18: rediviva en simulacre, 19: cendra i flama]
392
No periódico consta “1900”.
218
3. Tomás Garcés
Llegenda
Cavallers de barba blanca
per un aspre viarany.
Potser tornen de cacera,
poteser van a guerrejar
Canyes altes i florides.
un bressol vora el canyar.
Entre flors de satalia,
el somriure de l'Infant.
Descavalquen, s'agenollen,
si el sabessin bressolar!
Amb la boira s'esvaïen
la cacera i el combat.
Neixen albes, cauen fulles,
passen aigües riu enllà.
Pels camins de la ribera,
sense brides, els cavalls.
Lenda
Cavaleiros de alvas barbas
na vereda a cavalgar.
Talvez regressem da caça,
talvez partam a guerrear.
Capinzal alto e florido,
um berço no capinzal.
Entre flores, rosas brancas,
o Infante sorrindo está.
Descavalgan, se ajoelham,
se o soubessem embalar!
Com a névoa se dissiparam
o combater e o caçar.
Nascem albas, tombam folhas,
águas no rio a passar.
Nos caminhos da ribeira,
cavalos, sem brida, já.
Nasceu em Barcelona em 1901. Bacharel em Direito e Licenciado em Filosofia.
[Faleceu em 1993]. Livros publicados: Vinte cançons, 1922; L’ombra del lledoner,
1924; El somni, 1927; Paradis, 1931: Notes sobre poesia, 1933; El senyal, 1935; El
caçador, 1947. [Datado de 1944, o poema "Llegenda" foi publicado na obra Grèvol i
molsa. Vint-i-quatre poemes de Nadal (1953). Segundo a edição cosultada (Poesia
completa. Edição de A. Susanna. Barcelona: Columna, 1986, p. 293),
transcrevemos as seguintes variantes: 1: Cavallers de barba blanca. passen
aigües riu enllà]
219
4. Rosa Leveroni
Cançó
Totes les albes há encès
el clam ardent d'una flama.
Tots els estels han donat
un plor subtil de rosada.
El perfum posa carmí
al cor de la rosa blanca
i la daina, dins la font,
cercava un mirall de plata.
He sentit uma cançó
i no sé qui la cantava:
semblava venir de lluny
entre sospirs com de branca
i deia ben dolçament:
Ai la trista enamorada!...
Canção
Mil auroras acendeu
o ardente grito da chama.
Dez mil estrelas nos deu
o pranto sutil do orvalho.
Punha o perfume carmim
na alma desta rosa branca
e uma cerva pela fonte
buscava o espelho de prata.
Percebi uma canção
e não sei quem a cantava:
entre suspiros de ramos,
como de longe, chegava,
dizendo bem docemente:
Ai da triste enamorada!...
Nasceu em Barcelona, em 1910. Bibliotecária da Biblioteca da Universidade de
Barcelona. [Faleceu em 1985]. Livro publicado: Epigrames i cançons, 1938. [Esta
"Cançó" foi publicada sob o título "Dotze cançons (fragments) XI" na revista Ariel (a.
2, n. 12, Barcelona, set.-out. 1947, p. 76). Posteriormente, foi recolhida em
Epigrames i cançons. Não registramos variantes.]
220
5. Bartomeu Rosseló-Pòrcel
A Mallorca, durant la guerra civil
Verdegen encara aquells camps
i duren aquelles arbredes
i damunst del mateix atzur
es retallen les meves muntanyes.
Allí les pedres invoquen sempre
la pluja difícil, la pluja blava
que ve de tu, cadena clara,
serra, plaer, claror meva!
Sóc avar de la llum que em resta dins els [lls
i que em fa tremolar quan et recordo!
Ara els jardins hi són com músiques
i em torbem, em fatiguem com em un tedi lent.
El cor de la tardor já s'hi marceix,
concertad amb fumeres delicades.
I les herbes es cremen a turons
de cacera, entre somnis de setembre
i boires entintades de capvestre.
Tota la meva vida es lliga a tu
com en la nit les flames a la fosca.
A Maiorca, durante a guerra civil
Reverdecem ainda aqueles campos
e permanecem aqueles arvoredos
e sobre o mesmo azul
se recortam as minhas montanhas.
Ali as pedras invocam sempre
a chuva difícil, a chuva azul
que vem de ti, cordilheira clara,
serra, prazer, claridade minha!
Sou avaro do que me resta de tua luz
e que me faz estremecer quando te evoco!
Ali os jardins são agora como a música
e me turbam, fatigam com seu tédio lento.
Ali o coração do outono já murcha
em harmonia com fumeiros delicados.
E as ervas são queimadas pelos cerros
de caça, entre sonhos de setembro
e névoas tingidas de ocaso.
Toda a minha vida se liga a ti,
como na noite, as chamas à treva.
Nasceu em Ciutat de Mallorca, Maiorca, em 1913. Estudos universitários em Barcelona e
Madrid, na célebre Residência de Estudantes onde viveram Lorca, Alberti e outros poetas
antes da Guerra Civil. Faleceu em 1938
393
. Livros publicados: Nou poemes, [1933];
Quaderns de sonets, [1934]; Imitació del foc (póstumo), [1938]. ["A Mallorca, durant la
guerra civil", datado de "Barcelona, setembre 1937", foi publicado na coletânea Imitació del
foc. Segundo a edição consultada (Obra poética. Edição bilingüe catalão/ espanhol de
Joan Mas y Vives.
Trad. Xavier Rodríguez Baixeiras. A Coruña: Espiral Maior, 2002, p.
118), registramos as seguintes variantes: 3: damunt 17: capvesre]
393
No periódico consta “1937”.
221
6. Joan Teixidor
Infant
Tots les jardins s'han fet per tu,
i les flors i les pedres.
No intentis saber més; mira
la llum penjada a l'arbre.
Quan seràs gran oblidaràs
aquesta pau divina.
I, sense esment, tindrás enyor
del que ara tens i et sobra.
Menino
Todos os jardins se fizeram para ti
e as flores, as pedras.
Não tentes saber mais, contempla
a luz pendurada na árvore.
Quando grande, não te lembrarás
desta paz divina.
Mas uma obscura saudade haverá no desejo
do que agora te sobra.
Nasceu em Olot, província de Gerona, em 1913. Licenciado em Filosofia. Jornalista
profissional, crítico literário e artístico. [Faleceu em 1992]. Livros publicados:
Poemes, [1932]; Joc partiti, [1935]; L’aventura fràgi, [1937]; Camí dels dies, 1948.
[O poema Infant” encontra-se na coletânea Camí dels dies. Segundo a edição
consultada (Miscel.lània poètica. Olot: Edicions Municipals, 1988, p. 57),
registramos a seguinte variante: 3: més: mira]
222
7. Salvador Espriu
Monolac de Esther
Quant et perdis endins
del desert de la tarda
i t'assedegui el balu
de la mar tan llunyana,
et sentiràs mirtat
per la meva mirada.
Etern príncep, Jacob,
tindràs sempre companya
que peregrini amb tu
por segles e paraules.
Suportaràs la mort,
com a l'ocell la branca.
Ai, enemic cami
de les hores i l'aigua,
galop d'altius arquers
contraris a l'estàtua
de sal de qui volg
esdevenir de marbre!
Si et tombes, els teus ulls
glaçaran esperances.
Poble trist, amb record
de ciutats molt cremades.
No t'acull cap repòs
d'ombra bona, de casa.
Només somnis, al fons
de la meva mirada.
Monólogo de Esther
Quando te perderes dentro
do deserto da tarde
e te der sede o azul
do mar tão distante,
sentirás que és olhado,
pelo meu olhar.
Eterno príncipe, Jacob,
terás sempre companhia
contigo peregrinando
através séculos, palavras
Suportarás a morte
como o ramo ao pássaro
Ai, inimigo caminho
das horas, das águas,
galope de altivos archeiros
contrários à estátua
de sal do que pensou
vir a ser mármore!
Se tu cais, os teus olhos
gelarão esperanças.
Povo triste, à lembrança
das cidades abrazadas.
Nenhum repouso te acolhe
de sombra doce, ou casa.
Apenas sonhos, no fundo
do meu olhar.
Nasceu em 1913, na cidade de Santa Coloma de Farners, província de Gerona. Autor de
livros de contos, novelas e peças de teatro. [Faleceu em 1985]. Sua obra poética se
compõe de diversos livros, entre os quais Cementiri de Sinera, [1948], talvez o mais
importante. [O "Monolac de Esther" pertence ao terceiro fragmento da peça Primera
història d'Esther. Improvisació per a titelles (1948), publicado pela primeira vez na revista
Ariel (a. 3, n. 16, Barcelona, abril de 1948, p. 32). Não registramos variantes.]
223
8. Joan Vinyoli
Al vent de tardor
Vent de tardor, vent solitari,
vent de la nit,
obscura força que es deslliga
de l'infinit i torna a l'infinit,
arremolina't dintre meu, conjura
contra el meu cor la teva força,
arrenca já l'escorça
del fruit que no madura.
Ao vento de outono
Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de uma vez a casca
do fruto que não madura.
Nasceu em Barcelona em 1914. Formação autodidata. Perfeito conhecedor da
literatura alemã. Tradutor de Rilke, Hölderlin, Nietzche e Hofmann. [Faleceu em
1984]. Publicou: El primer desenllaç, 1937. [O poema "Al vent de tardor" faz parte
do livro De vida i somni (1948). Segundo a edição consultada (Obra poètica
completa. Edição de Xavier Maciá. Barcelona: Edicions 62, 2001, p. 40) o título é
"Vent de tardor".]
224
9. Josep Romeu i Figueras
Juny
Més nobles que l'or, el blats
oscil.len, madurs, i onegem,
revenen i van al vent
en tardes sagrades, dolces,
Esperen avui la falç
per dar-se sumisos i amples.
Sabéssim l'amour del fruit
que serva la mel profunda
i cau, nodriment de Déu,
en fer-se madur i perfecte.!
Junho
Nobres, mais do que o ouro, as espigas
oscilam, maduras, e ondulam
e vêm e vão ao vento,
em tardes sagradas, doces.
Esperam agora a foice
para dar-te submissas, largamente.
Conhêcessemos o amor do fruto
que recolhe o mel profundo
e cai, alimento de Deus,
ao fazer-se maduro, completo!
Nasceu em Ódena, província de Barcelona, em 1917. Licenciado em Línguas
Românicas pela Universidade de Barcelona. Primeiro Prêmio do Concurso
Montserratino, em 1942. [O poema "Juny" foi publicado no livro Terra (1943).
Segundo a edição consultada (Tots els poemes. Barcelona: Columna, 1953, p. 57),
transcrevemos as seguintes variantes: 1: els 2: oscil.len, fimbrants 3: revénen
4: en tardes sagrades, dolces. 6: submisos 7: ¡Sabéssim l'amour del fruit]
225
10.Josep Palau i Fabre
Sonet intrauterí
Des del teu mal, des de la teva entranya,
dels de les teves llàgrimas, vull ser uma
veu – germinal.
Pensar-te des de tu, des del teu centre
dir-te, des de la flor suprema dels teus ulls.
Jo vul desnéixer en tu.Tot home vol desnéixer
en un amor, un si.
Ah! fes-me petit petit, fins que jo sigui pols
estremida, pol. len del teu ventre.
Soneto intrauterino
Desde teu mal, desde tua entranha, desde tuas
[lágrimas
quero ser uma voz – germinal.
Pensar-te desde ti, desde teu centro contar-te,
[desde a flor
suprema de teus olhos.
Quero desnacer em ti. Todo homem quer
[desnacer num
amor, num seio.
Ah! faze-me pequeno, pequeno, até que eu seja
[pó
enfebrecido, pólen de teu ventre.
Nasceu em Barcelona, em 1917. Estudos de Letras na Universidade desta cidade.
Atualmente vive na França, onde se incorporou ao movimento existencialista.
Livros publicados: L’aprenent de poeta. Imitació de Rosseló-Pòrcel, [1943]; Càncer,
[1946]. [O poema "Sonet intrauterí" foi publicado em Càncer. Segundo a edição
consultada (Poemes de l'Alquimista. Edição bilingüe catalão/ espanhol. Trad. Juan
Goytisolo. Barcelona: Galaxia Gutemberg/ Círculo de Lectores, 2002, p. 230), o
poema apresenta-se em uma única estrofe de 4 versos que correspondem as 4
frases.]
226
11. Joan Barat i Creus
Any Nou
Mitja nit, cendra
i epíleg d'un tros de mi
i del temps: reprendre
uma sang i un camí
etern, sense comprendre.
Ano Novo
Meia-noite, epílogo
e cinza de um pouco de mim
e do tempo; outra vez empreender
um sangue e um caminho
eterno, sem entender.
Nasceu em Barcelona, em 1918. Formação autodidata. [Faleceu em 1996].
Publicou Poemes, 1947. [O poema “Any Nou” encontra-se na obra Poemes, na
qual não registramos variantes.]
227
12. Joan Perucho
És per aixó que estimo
Marbre o lluna glaçada,
errívola,
com pensatiu asfòdel navegues per un cel
[d'esperança
mentre tes mans ignoren les macilentes febres,
els horrors de la mort sobre el fang
o la injúria envilida
que sota encoratjadoras paraules
adrecen els homes a llurs amants secrets.
Jo voldria estimar-te
com el delicat insecte estima la petita memòria
[d'una flor
o com la terra estima el nùvol,
tombat serenament a uma armoniosa presència
que perduri en la llum del teu cos
tan esvel i tan jove.
Però somni que atança somni,
vida que alena vida
no perdona uma boca, uma inútil tortura;
no perdora un amor que arrela com um arbre
furiosamente alçat damunt d'un ventre
o una terra materna.
És per això que estimo
aquesta canço que ara agonitza.
É por isso que estimo
Mármore ou lua gelada,
errante,
como pensativo asfódelo navegas por um céu
[de esperança
enquanto tuas mãos ignoram as macilentas
[febres,
os horrores da morte sobre o lodo
ou a injúria vil
que sob encorajadoras palavras
dirigem os homens a suas amantes secretas.
Desejaria estimar-te
como o delicado inseto estima a pequena
[memória de uma flor
ou como a terra estima a nuvem
prostado serenamente ante uma harmoniosa
[presença
que perdura na luz de teu corpo
tão esbelto e jovem.
Porém o sonho que aproxima sonho,
vida que alenta vida
não perdoa uma boca, uma inútil tortura;
não perdoa um amor que se enraíza como
[árvore
alçada furiosamente por cima de um ventre
ou de uma terra materna.
É por isso que estimo
esta canção que ora agoniza.
Nasceu em Barcelona em 1920. Magistrado. [Faleceu em 2003]. Publicou Sota la
sang, 1947. [O poema "Ès per aixó que estino" foi publicado na obra Sota la sang.
Segundo a edição consultada (Obres completes. v. 8. Poesia. Barcelona: Edicions
62, 1996, p. 29), registramos as seguintes variantes: 15: atansa 22: aquesta vella
canço]
228
13. Joan Triadú
Endimion (Fragment)
Encara és un repòs de les ferides
que láire es llevi, pàtria, del seu son
cansat i taciturn, amic a penes
de les fràgils banderes, dels cabells
més àgils d'un amor, i del somriure
del nostre mar encès de pur matí,
vora la vida. Sempre m'acompanyen
els silencis amics i el cansament
més dolç del seu parlar, quan l'abraçada
pobla els arenys de fruit, ric d'una mort
bens guardada en els anys i les lluites,
i em torna les banderes en el vent
de l'espattla segura i exaltada,
mentre els infants ara, amb els ulls de nit,
aspiren la claror del cel salvatge,
i no respon una veu a llur crit,
però fugen ocells de benvinguda.
Endimião (Fragmento)
É ainda um repouso às feridas
que o ar desperte, pátria, de seu sonho
cansado e taciturno, amigo apenas
de fragéis bandeiras, dos cabelos
mais agéis de um amor, e do sorriso
do nosso mar – aceso de pura manhã,
ao lado da vida. Sempre me acompanham
os silêncios amigos e essa fadiga
tão doce de seu falar, rico de uma morte
bem guardada nos anos e nas lutas
- quando um abraço povoa as areias dos
frutos
e me devolve as bandeiras no vento
do ombro seguro e exaltado;
enquanto as crianças agora, com olhos de
noite,
aspiram o clarão do céu selvagem,
sem que uma voz responda ao seu chamado
que serve apenas para afugentar os
pássaros
[de boas-vindas.
Nasceu em Ribes de Freser, província de Gerona, em 1921. Licenciado em línguas
clássicas. Tradutor de Píndaro. Atualmente vive em Liverpool, de cuja Universidade
é leitor de catalão. Publicou Endimió, 1948. [O fragmento de Endimió (Barcelona:
Editorial Ariadna, 1948, p. 17) apresenta as seguintes variantes: 11: ben 13:
l'espatlla]
229
14. Jordi Sarsanedas
Posaré el meu amor...
Posaré el meu amor que és tan llarg co les
[venes
a la boca cendrosa d'aquell infant esquerp
entre la pau humil de les darreres cabres.
Vull besar aquella fam que li afina la passa
i posar um somni lleu en el cani rapat
i el reflexe darrer de la nostra mimosa.
Colocarei o meu amor
Colocarei o meu amor, tão longo como as veias,
na boca de cinza daquele menino esquivo
entre a paz humilde das derradeiras cabras.
Quero abraçar a fome que lhe dá aquele passo
[sutil,
pousar um sonho leve na sua cabeça rapada
e o reflexo da flor da nossa mimosa.
Nasceu em Barcelona, em 1924. Realizou estudos universitários em sua cidade
natal em em Paris. Sem livro publicado. [O poema titulado por Cabral trata-se da
11
a
estrofe de “Goigs fragmentaris de Barcelona nostra” do livro A trena de sorra
(1945-1948) (1948). Segundo a edição consultada (Fins a un cert punt. Poesia
1945-1989. Barcelona, Edicions 62, 1989, p.22, registramos as seguintes variantes:
1: amor, que és tan llarg co les venes, • 6: reflex]
230
15. Jordi Cots i Moner
Viure amb fe cada hora santa...
Viure amb fe cada hora santa,
com si a l'endemà partíssim
cap a un país estranger,
sense comiats l'hora nostra.
I arrencar del cel la pluja,
i el temps dels teus ulls, amiga,
ocell, flor de neu, per mirar-te.
Oh el ritme greu de la Mort!
La Mort en els meus cabells,
segura com uma rosa.
Viver com fé...
Viver com fé cada hora santa
como se amanhã partíssemos
para um país estrangeiro,
sem despedir a hora nossa.
E arrancar do céu a chuva,
e de teus olhos o tempo, amiga,
pássaro, flor de neve, para contemplar-te.
Oh o ritmo grave da Morte!
A Morte nos meus cabelos
presa como uma rosa.
Nasceu em Barcelona, 1927
394
. Estudante de Direito. o tem livro publicado. [O
poema integra a coletânea Fidelitad (1948). Segundo a obra consultada (D'allà on
ve la veu 1951-1957. Seguit de la reedició de Fidelitat. Barcelona: Els llibres de
l'Ossa Menor, 1958, p. 48) registramos a seguinte variante: 10: rosa!]
394
No periódico consta “1924”.
231
Traduções de Joan Brossa ao catalão de três poemas d´O engenheiro
A bailarina
A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.
A três horas de sono,
mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.
Entre monstros feitos
A tinta de escrever
a bailarina feita
de borracha e pássaro.
Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar.
La Ballarina
La ballarina feta
De goma i ocella
Balla sobre el trespol
Anterior del somni
A tres hores de son.
Més enllà dels somnis
En les secretes cambres
Que revela la mort
Entre monstres sorgits
De la tinta d´escriure
La ballarina feta
De la goma i l´ocella:
De diària i lenta
Goma que mastego
De l´ocell o l´insecte
Que no vaig a caçar
232
As nuvens
As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;
são estátuas em vôo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;
são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;
são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos.
Els núvols
Els núvols són cabell
Creixent con les riuades;
Són el gest blanquinós
De la cantora muda;
Són estàtues en vol
Al riberal d’un mar;
Flora i fauna lleugeres
De llunys països de vent;
Són l’ull pintat
Degotant inmòbil;
La dona que s’atansa
A la barana del son;
Són la mort (l’espera de)
Darrera els ulls tancats;
La metgia, blanca!
En blanc, els postres dies.
233
A paisagem zero
(pintura de Monteiro, V. do R.)
A luz de três sóis
ilumina as três luas
girando sobre a terra
varrida de difuntos.
Varrida de defuntos
mas pesada de morte:
como a água parada,
a fruta madura.
Morte a nosso uso
aplicadamente sofrida
na luz desses sóis
(frios sóis de cego);
nas luas de borracha
pintadas de branco e preto;
nos três eclipses
condenando o muro;
no duro tempo mineral
que afugentou as floras.
E morte ainda no objeto
(sem história, substância,
sem nome ou lembrança)
abismando a paisagem,
janela aberta sobre
o sonho dos mortos.
El paisatge zero
La llum de tres sols
Il lumina tres llunes
Rodant sobre la terra
Exempta de difunts.
Exempta de difunts
Però amb pesadesa de mort:
Com l’aigua estancada
El fruit madur.
Mort per a usar nosaltres
Aplicadament soferta
En la llum d’aquests sols
(Sols gelius d’un cec);
En les llunes de goma
Pintades blanc i negre;
En els tres eclipses
Condemnant el mur;
En l’estiu mineral
Que arruixá les flores.
I mort també em l’objecte
(sense història, sustància,
sense nom ni remenbrança).
Abismant el paisatge
Finestra oberta sobre
Els somnis dels morts.
[Dal au set. Barcelona. jul.-ago.-set. 1949. Não constam os poemas originais em
português.]
234
Tapiès, Cuixart, Ponç
Se a obra de Mi traz à pintura uma linguagem e uma sensibilidade
especiais - pessoais - ela constitui, sobretudo, uma luta para dar à pintura uma
mecânica nova. Essa luta se define negativamente: mais que impor outro sistema
de composição, ela trata de se defender do conjunto das leis de composição
estabelecidas pelo Renascimento e completadas depois, dentro do mesmo espírito.
Trata de se defender de tudo o que se dirige a assegurar o esqueleto dessa pintura
renascentista: rigidez e equilíbrio, estática do quadro.
Essa luta (e é luta e luta dolorosa porque se contra leis que se
entranharam no hábito, nas mãos e nos olhos dos pintores) vem a ser, assim, uma
luta para garantir aos artistas a liberdade de compor. Liberdade de entregar-se a
seu jogo fora dessas ou daquelas receitas de equilíbrio. Liberdade para
desassociar as idéias de compor e equilibrar. Liberdade para dar à idéia de
equilíbrio un sentido de maior riqueza que o da simples estabilidade de pesos.
Dessa liberdade de composição, conseguida por Miró em seus melhores
momentos, com muito maior freqüência a partir de 1940 ou 41, parecem começar a
tirar proveito os três jovens pintores que agora expõem. Parece que a obra de Miró
constituiu para eles o testemunho de um tipo de composição menos rígida; parece
que lhes demonstrou serem possíveis outras composições, além das meras
variações do estatismo; que era possível a liberdade de sintaxe onde o formalismo
moderno havia conquistado unicamente a liberdade da metáfora.
O que caracteriza estes três pintores, de mitologia e linguagem tão diversos,
é, portanto, o fato de coincidir em tipos de composição igualmente independentes
da composição estática tradicional. Mas essa caracterização se oferece pelo lado
negativo, porque o estado de espírito com que abordam essa liberdade é
absolutamente distinto nos três. Tapiès a possui sem buscar suas razões e
implicações; e usa dela sem se dar conta. Cuixart parece ter consciência clara
dela, e inclusive se encontra interessado em defendê-la. Ponç, por último, menos
instintivo do que Taps e menos intelectual que Cuixart, manm-se numa atitude
intermediária e não a ignora, mas tampouco a considera como ponto de partida.
E do mesmo modo que são diferentes os estados de espírito com que
empregam essa liberdade, são diversos, no terreno estrito da composição, os
resultados a que os três chegam. É diferente, por ejemplo, o comportamento de
235
cada um dos três em relação à moldura, ou melhor, com o limite da superfície do
quadro. (Todos sabemos a importância do limite do quadro na composição
tradicional; e que a partir dele é quando se establece, de fora para dentro, o
trabalho de equilibrar e fixar o conjunto.)
Em Tapiès o exercício daquela liberdade se expressa com desprezo às
imposições do limite do quadro. Tapiès não pensa, simplesmente não se preocupa
com o limite do quadro. Este não é nunca, em sua pintura, o ponto de partida para
a composição. E mais de uma vez deve ter se encontrado, inclusive, surpreendido
pelo término material de sua tela, término que lhe terá aparecido, no curso de seu
trabalho, quando menos esperava. Sua pintura tira proveito, mais de uma vez, de
um raro estremecimento que parecem provocar certos volumes bastante próximos
à moldura, certos pesos excesivamente poderosos que ele não se preocupou em
neutralizar, procurando-lhes a distância ideal da moldura que os teria estabilizado.
E não é pouco o partido que sua pintura (digo “sua pintura” e não “o pintor”, porque
Tapiès me parece o menos intelectual dos três que aqui nos ocupam) obtém dessa
orden instável, dessa como iminência de catástrofe. O que não constitui um de
seus menores encantos, colaborando com o que poderiam chamar as “leis físicas”,
ou a “gravidade” desse mundo poético tão rico no qual o artista se move
permanentemente.
Cuixart, muito mais intelectual, conhece o perigo que se esconde no limite
da tela e trata de evitá-lo. Como Ulisses, é rtil em artimanhas. Cuixart evita a
consideração do limite. Não é tão instintivo como para poder menosprezá-la e
muito astuto para arriscar-se a um corpo a corpo com ela. Cuixart evita a
consideração do limite da tela, colocando muita distância entre a moldura e a coisa
pintada, diminuindo esta, reduzindo-a a pequenos grupos de coisas dentro de uma
superfície muito mais vasta. Procura criar para as coisas que pinta um meio infinito,
a fim de impedir que os olhos do espectador, ao contemplar a coisa pintada,
tenham seu campo visual condicionado pela moldura. O olho espectador, então,
poderá se entregar ao ritmo interno da coisa pintada, que se encontra solta no
espaço, à maneira de constelações. O olho não esobrigado a considerar uma
superfície determinada, pintada de tal ou qual modo, mas coisas que a superfície -
cujos limites lhe escapam - mal contém. Distanciar-se da moldura significa, para
Cuixart, defender sua liberdade de compor, sua liberdade de entregar-se a coisas e
ritmos livres.
236
Em Ponç, essa liberdade é, tamm, de outra orden. Em Tapiès significa o
poder de menosprezar qualquer limitação; em Ponç significa poder diminuir até o
mínimo o trabalho de compor. Em Cuixart essa liberdade se encontra defendida a
cada passo; Ponç a aproveita, possui certa consciência dela, mas despois a
esquece. Ele não pinta sua liberdade: se serve dela como de algo que lhe permite
entregar-se mais completamente ao sentido do objeto que pinta. A composição,
para ele, é quase sempre um simples aproveitamento econômico da superfície.
Quer entregar-se à figura e por isso atribui menos importância à mecânica da tela.
Compor, para ele, é preencher a superfície o mais delicadamente possível,
pintando símbolos suplementários onde ainda reste espaço livre. Mas a uma
liberdade maior de sintaxe tem que corresponder, forçosamente, maior liberdade
de metáfora. Em Ponç esta é bem visível na absoluta liberdade com que parece
acometer o que mais mostra interessar-lhe: a figura, livre de qualquer sistema
interno conseqüente, de qualquer estilização.
João CABRAL DE MELO
[Cobalto 49. n. 3, Barcelona, 1949. A tradução ao castelhano é de Rafael Santos
Torroella.]
237
Xilografia popular na Catalunha
Esporádicas notícias em inventários reais e diocesanos testemunham que a
xilografia na Catalunha era conhecida nos séculos XIII e XIV. Estes exemplos, no
entanto, não chegaram a nossos dias para que possamos discernir sua origem ou
procedência.
Em pleno século XV, na organização social da Catalunha, tem corpo jurídico
um grêmio de naipers e estampers; isso demonstra uma arraigada indústria
impressora, no momento de ser introduzido entre nós a arte de imprimir
propriamente dita. Ao redor de 1470, emigrantes alemães e holandeses passam
nossa fronteira portadores do rebento tipográfico.
A plástica germânica tinge com marcado matiz nossa gravura, embora com
o Renascimento, a Itália obrigue a constantes vacilações que, junto a uma falta de
artistas que produzam originais para ser levados à xilografia, agravam o problema
da criação, obrigando aos gravadores a copiar as xilografias importadas ou a
inspirar-se nelas.
Todo este caos plástico passa a um cosmos em que se cristaliza, dois
séculos mais tarde, a gravura que conhecemos como gravura popular.
É nela que o verdadeiro gravador se livra do jugo do artista e se converte em
seu próprio criador, simplifica sua gramática plástica e com o mínimo de recursos
técnicos consegue expressar o poético sentido popular da arte. quem,
equivocadamente, a tem chamado primitiva. Na verdade é um retorno; as
experiências eram demasiado eruditas para resistir à perenidade de sua
expressão, para chegar triunfante a este sentido primário e popular da arte.
238
El caçador
Un matí a trenc d'albada,
jo m'en vaig anar a caçar.
Saltant barrancs i muntanyes
una nina vaig trobar.
Entauleu conversa amb ella,
jo l'amor li demaní.
La resposta que ella em feia:
- Caçador, us burleu de mi.
...
e com ela se funde todo o poético
e o poético se infunde na indústria
239
[TORMO, Enric. O cavalo de todas as cores. n. 1, Barcelona, 1959]
240
Entrevista com Enric Tormo
RSC: Como o senhor começou a trabalhar com tipografia?
ET: Minha formação é de tipógrafo. Como eu tinha Belas Artes, depois tipografia,
dediquei-me à edição. Então, trabalhava em empresas de edição, em editoras ou
colaborando em outras empresas, até que, depois de alguns anos, na Escola de
Artes Aplicadas, para toda a coisa do livro. Eu sempre estive dentro do mundo do
livro. Em 67, em colaboração com o Museu Tecnológico e o diretor, que era meu
amigo, fundamos o Museu do Livro e de Artes Gráficas, que está no Pueblo
Español de Montjuïc. Meu mundo foi sempre o livro. Além disso, minha esposa é
bibliotecária. Ela era bibliotecária de uma instituição estatal, que tinha uma
biblioteca, única na Espanha, dedicada às artes gráficas e ao livro, que claro, me
facilitou muita informação do ponto de vista técnico, histórico.
RSC: O senhor tinha experiência com livros antes dessa época?
ET: Sim. Desde o ano 40, 41, já me dediquei a trabalhos de edição como assessor,
como responsável de produção, ou seja, toda a mecânica da confecção do livro.
RSC: O senhor se lembra como conheceu Cabral?
ET:Acho que foi através de Brossa, eu diria. Como ele o conheceu, não saberia
dizer.
Além disso, meu pai praticava muito a fotografia, então, tamm recolhi esta
parte de documentação gráfica.
RSC: Lembra-se de quando Cabral decidiu ter a prensa, como o ajudou?
ET: Passou-se tantos anos, exatamente não sei. Conhecemo-nos e ele me disse
que queria montar uma prensa e se eu podia ajudar. Acompanhei-lhe, comprou
uma Minerva e uma Boston, e uns tipos; pegou o goldoni, que é o tipo mais fácil de
trabalhar do ponto de vista estético. E comprou todo um rolding, que tinha os
corpos, o 8, o 10, o 12, o 18, eu acho. Comprou as ferramentas, o componedor, a
prensa de provas, em um cômodo tinha tudo isto. Fui bastante tempo,
periodicamente, quando me necessitava e me chamava: Tormo, será que pode
passar pois tenho uns problemas? Eu ia, ajudava-o.
Eu lembro que ele tinha um problema, dor de cabeça sempre, sempre
estava com uma aspirina e lhe apertava o nervo, a carótede. E aqui em Barcelona
se operou, mas não tirou nada disso.
241
RSC: Inclusive, parece que essa atividade de impressão foi uma espécie de
terapia...
ET: Sim, para ter uma atividade. Às tardes passava divertindo-se, distraindo-se,
seguramente como terapia, porque realmente necessitava. Eu me lembro que
estávamos falando, e me dizia: desculpe, um momento, vou tomar uma aspirina.
RSC: Podemos voltar a falar da edição do livro Joan Mi? O senhor conheceu
Miró também nesse período?
ET: Conheci Miró através de Brossa. Vou te contar a história. Quando regressamos
[de Salamanca], nos liberaram do exército de Franco, e o pai de Brossa era
gravador de pranchas de bronze para encadernação, isto que se imprime. Prats
você viu os chapéus, na fita, levam uma marca, isso tamm era uma prancha e a
encarregava nessa oficina, onde trabalhava Brossa, porque seu pai era gravador e
morreu jovem. Então Brossa foi trabalhar na casa de um amigo que era gravador
de bronze e Prats encarregava esse gravador as marcas dos chapéus. Brossa ia
levá-los à casa de Prats, e ali iniciou a amizade com Prats. Entre nós falávamos de
arte, de Miró. Brossa entrou em relação com Miró através de Prats. Um dia fomos
ver Miró uma noite com Prats, e ali estivemos falando de tal material. Tenho uma
carta de Miró a Brossa dizendo-lhe que queria falar comigo. Fui à casa de Miró. Ele
havia preparado durante a guerra em Paris uma coleção de litografias desenhadas
sobre papel e que tinham que passar à tiragem e trouxe de Paris. Havia que fazer
esse trabalho. Eu me encarreguei da impressão dessas litografias que são
conhecidas como série Barcelona, de o sei quantas litografias são, 50, não sei
quantas. Cuidei da tiragem. Quando Miró começou nesse mundo da gravura, da
ilustração, havia um editor suíço, Gerard Cramer, que lhe propôs fazer uma edição
de um livro de Paul Eluard, se chama A toute preuve, acho que é o melhor livro que
se fez com gravuras, 300 e tantas de madeiras foram feitas e se imprimiu em Paris.
Eu preparei para Miró todas as madeiras, ele gravou-as e colocava as provas na
prensa. Íamos a Paris com as madeiras, levá-las ao impressor que as devia
imprimir. Demoramos para fazer esse livro, desde que começou até que apareceu,
8 anos. Miró o fazia quando podia. Esse livro é muito apreciado.
RSC: Cabral tinha relação de amizade com Miró? O trabalho de edição entre os
três foi fácil?
242
ET: Sim. Quando fizemos este (Joan Mi, de Cabral, 1950), eu estava trabalhando
com o livro de Cramer. O livro de Cabral é a metade do formato do livro de Paul
Eluard, é o mesmo papel.
RSC: Trabalharam esse livro de Miró na gráfica que se chama...
ET: Bachs. Mas essa é uma prensa comercial, onde a gente é muito apressada. O
livro está composto à mão e em português, esse é o problema. Porque os
tipógrafos não estavam habituados em compor em um idioma estrangeiro.
Eu tenho uma boa lembrança dessa colaboração com toda essa gente,
como todo esse mundo.
RSC: Poderia contar sobre sua possível ida ao Brasil?
ET:Cabral insistia muito. Dizia: você tem que ir ao Brasil por essa época, 49, 50
; se você fosse ao Brasil, seria o pai da tipografia brasileira. Eu disse: não, já tenho
bastante em ser pai dos pequenos que temos. Ocorreu essa anedota. Fomos ao
cais, paramos à saída do barco e estivemos falando com Matarazzo. Estive falando
com minha esposa e desistimos. Essa é uma postura um pouco covarde,
francamente, mas quando se tem uma família, um trabalho, ir embora, pegar um
barco...
Barcelona, fevereiro de 2005
243
Prólogo a En va fer Joan Brossa
Este livro de Joan Brossa reúne os primeiros passos do autor no sentido de
realizar uma poesia mais amplamente humana. Mais amplamente humana, ou seja:
com o grande tema dos homens. E não estritamente humana, com os temas de um
homem, individual, embora continuem os temas, do seu refeitório, do seu quarto,
dos seus álcools, das suas máquinas de fugir da realidade.
Esta distinção é muito importante. Talvez o problema essencial da arte atual
- a procura de um caminho que a leve a uma outra coisa, a procura de uma porta
de saída -, a superação do seu formalismo é reduzida a isto: o reencontro dos
homens. A coisa primordial não consiste em abandonar a deformação e a
estilização nem, simplesmente, em retornar a uma representação clara do objeto.
O fato primordial é saber que objeto se vai pintar, que objeto é digno de se pintar. E
fazer retornar à arte o tema dos homens.
Aqui um grande número de artistas irritados contra a falsa profundidade
do balbuceio, contra o mundo falso dos surrealismos em que foram encontrar
instalada a poesia, e a qual haviam começado a tomar seriamente interessante
fazer notar a diferença de tom entre um Apollinaire ou um Max Jacob e um jovem
poeta de hoje; aquilo que para os primeiros era humor” para os poetas de hoje se
torna solenidade. Os primeiros “fingiram acreditar, os jovens de hoje acreditam
realmente - daí seu tom místico, solene ou desesperado), que lutem hoje para
encontrar uma nova forma mais próxima às realidades. Mais, como dizem eles:
realista.
A tendência é muito mais generalizada do que nos parece, e esta obesessão
se enraíza inclusive em alguns dos que, com mais intensidade - camuflada em
desespero - continuamente exercitam-se em todos os truques conhecidos para criar
esta falsa dimensão arbitrária de realidade.
Contudo, nem sempre estes jovens artistas situam a questão sob a
perspectiva correta. O realismo não é uma questão de forma. É essencialmente
uma questão de substância, de assunto. Uma maçã em uma bandeja, pintada com
o “trompe-l’oeil”, não será realismo no verdadeiro sentido, mas academicismo.
Conseguir, outra vez, a cópia exata de um objeto não nos conduz a nenhuma saída
definitiva: retornam ao ponto de partida. Vão ser as maçãs pintadas - ou a contínua
limitação da realidade naquilo de mais restrito, como esta maçã -, o que vai
244
conduzir ao formalismo atual. Da maçã aos simples círculos amarelos e vermelhos
de um quadro abstrato, o ponto é mínimo. Vai ser o abandono da dignidade, ou
seja, da importância humana (para os homens) dos assuntos, o longo caminho que
vai fazer desembocar os artistas em uma arte que nega radicalmente o assunto. De
fato, a importância, para os homens, de um quadro com uma bandeja de maçãs e
de um quadro com círculos de cor é absolutamente a mesma. Em certo sentido,
quando a pintura vai descender até a natureza morta, ao nu, à paisagem de
tabique, vai começar a se tornar abstrata.
Perfeitamente consciente de tudo isso, Joan Brossa vai empreender a sua
reação para o outro extremo da corda. Ele já havia explorado anteriormente todas
as variedades do formalismo e todos os recantos dos gabinetes de magia. Desde o
balbuciar minuciosamente orquestrado dos Sonets de Caruixa, até à “ópera de
quatro vinténs” de Dragolí, alternados, sempre, com as prosas e o teatro de
alucinação sistemática, com os quais procurou a quinta pata do gato e a tima
cara do dado. Ele havia chegado a ser forte nesta retórica, tão forte que, ele
mesmo, a havia acrescentado com novos capítulos de sua invenção. Irritado
tamm contra toda esta magia, que chegara a acreditar mais real que o real”,
Brossa, contrariamente a muitos destes jovens que se debatem na atual busca da
“forma realista”, vai seguir o caminho oposto: cantar o “real” com a forma que
dispunha.
Ele, apesar de tudo, já parecia conhecer mesmo a força deste “real” e intuía
que acabaria, fatalmente, por explorar a sua retórica, eliminando tudo o que de
falso e artificial, e dando novo sentido - saturando de conteúdo - ao que nela pode
constituir enriquecimento para o homem nacnica de comunicar-se com os outros
homens.
Por que Joan Brossa pôde chegar a isso (conversas com amigos; simples
acasos; fastídio, simplesmente) é quase impossível de investigar e definir. No
entanto, se observarem tudo aquilo que anteriormente escrevia, esta evolução nos
mostra com uma lógica interna evidentíssima. Talvez por que não fosse uma de
suas originalidades o seu repertório, profusamente cotidano e popular?
Contrariamente a quase toda a poesia catalã e atual, preocupada sempre pelo
vocábulo nobre, pouco corrente, erudito ou arcaico, era na realidade mais humilde,
no léxico da cozinha, da feira de praça e do fundo de oficina, onde Brossa ia buscar
o material para elaborar as suas complicadas mitologias. Por isso é compreensível
245
que, ao pressentir a falsidade de toda a sua temática anterior, se tenha colocado
cara a cara com este seu vocabulário concreto e, a partir dele, da realidade da
cozinha, da feira e do fundo de oficina, onde o havia recrutado.
A propósito, a realidade da cozinha, da feira e do fundo da oficina não é
muito propícia à degustação da natureza morta, ociosa. A maçã existe ali, quando
existe, para ser comida, ou para ser disputada. A realidade que Brossa vai
descubrir de novo não era o gozo ocioso de um objeto. Aquela realidade estava
ritmada por uma luta acesa, na qual nenhum abandono não era possível. Ali o
sofrimento não é uma horta para ser cultivada, nem uma coisa para elevar à
dignidade, mas, ao contrário, uma coisa que busca ser superada. Esta luta está
alerta; é essencialmente viril e, no fundo, que não se interrompe nem é
submetida, otimista.
Este livro reúne os primeiros passos que vai fazer Brossa fora da atmosfera
impregnada de magia de cartão postal. A evolução desta nova tendência da sua
poesia, cuja tendência assitem o nascimento neste livro, frágil como a fonte de
onde brota um rio, haveria de prosseguir posteriormente: prossigue posteriormente.
Eu sinto cada dia mais robusta e fortalecida o que aqui é encarado vacilante e
somente desponta. Conseqüentemente, o livro ganha um novo interesse
psicológico, já que mostra ao claro o processo absolutamente ejemplar seguido por
Joan Brossa e que me orgulhece de haver podido acompanhar.
João CABRAL de MELO
[BROSSA, Joan. En va fer Joan Brossa. Barcelona, Cobalto, 1951, p. 9-13. A
tradução ao catalão é de Rafael Santos Torroela.]
246
Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto
As vozes” destes dois poetas, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto,
juntas neste mesmo disco, vão sentir-se muito à vontade. Sendo embora de duas
gerações distintas e com certas oposições entre si, são vozes da mesma família
poética. Pois os poetas se distribuem, naturalmente, segundo o seu temperamento e
o seu estilo, por famílias estéticas diferentes. E estes dois pertencem ao mesmo
grupo que podemos chamar dos modernistas “clássicos”.
São de gerações distintas: Murilo Mendes, estreante de 1931, pertence ao
famoso grupo da segunda geração moderna, que veio trazer a mensagem dos
novos em sua plenitude, com Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de
Andrade e Jorge de Lima, para falar dos ases dos ases. João Cabral de Melo
Neto pertence à chamada “geração de 45”, embora estreasse em 1942 com a
sua finíssima flauta da Pedra do sono. Já pertence ao neo-modernismo, portanto.
Ambos, porém, são da mesma família de espíritos, a que chamo de
“clássicos”, por oposição aos “românticos”. Pois classicismo e romantismo não são
apenas duas escolas literárias sucessivas. São dois temperamentos estéticos que
coexistem nas mesmas escolas. Enquanto um Manuel Bandeira, um Carlos
Drummond, um Murilo Mendes, um João Cabral são clássicos” do modernismo ou
do neo-modernismo; - um Augusto Frederico Schmidt, um Jorge de Lima, um
Alphonsus de Guimarães Filho, como na primeira haviam sido um Mário de
Andrade, um Cassiano Ricardo (que depois evoluiu para o clássico), um Menotti
del Picchia, são “românticos” do movimento.
O que encontramos na poesia de Murilo Mendes como na de João Cabral é
a mesma sobriedade incisiva, a mesma graça hieroglífica, a mesma concisão
cristalina, um senso parecido de “humour”, a mesma predominância dos metais
sobre as cordas, em oposição ao que encontramos na estilística, mesmo dos mais
modernos “românticos”. Em ambos a mesma dureza penetrante, que João Cabral
exprime tão bem no seu último e admirável poema Uma faca lâmina, agreste e
inesquecível como uma página de Graciliano Ramos e certos poemas da Poesia
em nico de Murilo. Mas entre Murilo e João Cabral esta outra diferença:
naquele a constante presença de Deus, na aridez dos desertos humanos: neste a
“ausência”, que nem a “bola”, nem o “relógio”, nem a “faca”, os três símbolos de
sua poética máscula, ascética e inflexível conseguem substituir.
247
Pelas suas afinidades, como pelas suas disparidades, as vozes destes dois
grandes poetas, mestres da sutileza, da alusão, dos ritmos curtos e penetrantes, e
ambos ultimamente falando igualmente a voz da terra, na Contemplação de Ouro
Preto de Murilo Mendes e no Rio de João Cabral (que corresponde, em linguagem
brasileira, ao que foi o Vouga do venerável Antonio Correia de Oliveira em
Portugal) são vozes que se unem a uma geração de distância, no mesmo coro
cristalino, sutilíssimo e ariélico, que faz da poesia moderna um dos grandes
momentos da nossa evolução lírica.
Tristão de Athayde
[Poesias Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. LPP 010 Poesias
Festas Discos – Rio de Janeiro. Direção de Irineu Garcia e Carlos Ribeiro. [1956?]
248
Epígrafes da 1
a
edição de Tempo espanhol (1959)
Mester trago fermoso, no es de juglaria
LIBRO DE ALIXANDRE, ANÓNIMO, SÉC. XIII
Qualquier omne que la oya, si bien trobar supiere
Puede más añadir e enmedar lo que quisiere
ARCIPRESTE DE HITA
Conmigo solo contiendo
En una fuerte contienda,
Y no hallo quién me entienda,
Ni yo tampoco me entiendo
JORGE MANRIQUE
Yo no digo mi canción
Sino a quién conmigo va.
ROMANCE DEL INFANTE ARNALDOS
Que muero porque no muero
SANTA TERESA DE JESÚS
Un poco de luz y no más sangre
CERVANTES
Peñascosa pesadumbre
CERVANTES (SOBRE TOLEDO)
A mis soledades voy,
De mis soledades vengo
LOPE DE VEGA
Las horas que limando están los días,
Los días que royendo están los años
GÓNGORA
Me duele España
MIGUEL DE UNAMUNO
249
Nota preliminar a “Poemas de Murilo Mendes”
Dentro da literatura brasileira não se pode considerar Murilo Mendes (nascido
em 1901, publica seu primeiro livro em 1930) fora do fluir ulterior do modernismo”
nome incômodo para nós, porque traz em seguida à mente uma relação, que é falsa,
com o modernismo hispânico”: o “modernismo” brasileiro apenas se inaugura,
digamos, oficialmente em 1922, embora estivesse em gestação poucos anos antes.
Dentro da literatura mundial, Murilo Mendes de inscrever-se nesse grande
movimento que descobre o valor poético do subconsciente, dos sonhos e dos
impulsos primários, representados antes de tudo pelo “surréalismefrancês, mas do
qual se podem encontrar também, espalhadas por várias literaturas, muitas raízes,
umas vezes imediatamente anteriores, outras profundas no tempo.
Não é Murilo Mendes um seguidor” de uma moda: nele, provavelmente, não
se teria produzido o poeta com seu rico conteúdo sem a coincidência de sua vida
com esse momento em que se rompe o dique represado do homem mais interno, do
homem mais subterrâneo, e em que ao encadeamento lógico pode substituir a
inconexa variedade dos fragmentados materiais da explosão. Está claro que, nem
em Murilo Mendes, o poema pode ser uma mera acumulação de detritus e raízes:
precisamente em sua poesia uma oscilação entre elementos conceituais ligados por
gica e elementos puramente imaginativos: aalgum livro que se inclina em
direção ao primeiro: assim no momento do encontro de Murilo com o catolicismo,
quando, em colaboração com Jorge de Lima, publica Tempo e eternidade, 1935. A
maioria de sua obra, no entanto, fixa-se no segundo. Seria bem compreensivo,
inclusive nos casos que parecen mais extravagantes, pensar em uma simples
amontuação: esse suceder-se de imagens desligadas tem seu sentido profundo; é
uma espécie de callida junctura, se bem muito diferente da de Horacio; os
fragmentos que parecem inconexos se associam para produzir a intuição total do
poema na mente do leitor. Isto se faz, além disso, dentro do rompimento total das
normas da composição poemática e inclusive salvo em algum livro do ritmo (e
não há que mencionar sequer a rima).
Nestas notas Murilo se parece a outros poetas de seu momento. Retomo
agora meu tema anterior. Cada poeta tem seu momento exato para nascer. Murilo
pôde ganhar estatura de grande poeta pelo fato providencial de sua coincidência
humana com essa época de explosão do represado. Assim, o que se derramou em
250
abundância na produção poética de Murilo Mendes forma uma enorme vazão
significativa. Falando João Cabral de Melo da poesia de Murilo Mendes, diz: “Ela foi,
sobretudo, a que me ensinou a dar precedência da imagem sobre a mensagem, do
plástico sobre o discursivo.” Essa precedência é muito certa em Murilo Mendes e
confirma o que antes eu disse. Mas acredito ser necessário acrescentar que da
poesia de Murilo Mendes sai outro tipo de transcendental “mensagem”. Dessa
enorme acumulação de materiais imaginativos (expressiva, como vimos, por si
mesma) sai uma poderosa violência para as mentes e os corações. Poucos livros de
poesia contemporânea movimentam tão completamente o leitor, como este tomo de
Poesias 1925-1955, de Murilo Mendes: na relação do homem com sua origem, na
relação individual com a vida, na relação social. Poucos livros poderão contribuir
mais à construção de uma humanidade melhor, de um mundo melhor.
Há muita tradição oculta sempre em qualquer técnica revolucionária. Porque o
poeta expressa, juntando-os, o significado dos tempos antigos, do que ele realiza no
presente e do futuro que adivinha. Em ninguém melhor do que em Murilo Mendes se
esta equivalência de distâncias. Acredito que em sua própria poesia se realiza de
modo evidente o que ele diz falando do “poeta futuro”:
O poeta futuro já se encontra no meio de vós.
Ele nasceu da terra
Preparada por gerações de sensuais e de místicos:
Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos,
Encerrando no espírito épocas superostas.
O homem sereno, a síntese de todas as raças, o portador da vida
Sai de tanta luta e negação, e do sangue espremido.
O poeta futuro já vive no meio de vós
395
[ALONSO, Dámaso. Revista de Cultura Brasileña. a. 1, n. 1, Madri, jun. 1962, p. 7-
9]
395
“O poeta futuro” In As metamorfoses (PCP, 319)
251
Enquete sobre a literatura brasileira de vanguarda
Roma, 23 de julho de 1964.
Queridos Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate:
Infelizmente não disponho de tempo para responder longamente, como
desejaria, à enquete sobre a literatura de vanguarda no Brasil, para a excelente
revista que publicam em Madri.
No entanto, não querendo deixar sem resposta o interessante questionário,
resumo aqui, em duas palavras, o que penso a respeito do assunto.
Todas as formas e expressões de literatura de vanguarda devem ser
estimuladas e reconhecidas. Em nossa época, no Brasil, a literatura de vanguarda
começa em 1922. Deu obras importantíssimas, e mais que tudo, deu o grande
impulso em direção à renovação da literatura brasileira. Desde 1922 até hoje
assistimos a magníficas manifestações da vanguarda literária. Nos últimos anos, a
poesia concreta, a poesia-práxis, tem apresentado, tanto na parte teórica, quanto
na parte prática, documentos de primeira ordem.
Em nossa época, a vanguarda constitui já uma tradição. Além disso, nunca
se é suficientemente vanguardista. Não oponho a vanguarda à tradição; oponho-a,
isso sim, ao academicismo.
Nosso tempo afortunadamente é um tempo de transformações
constantes, diárias. A literatura não é, sem vida, a ciência, mas deve refletir
tamm as formidáveis mutações da ciência. O que acima de tudo caracteriza o
espírito de nossa época é a vanguarda em tantos e tão variados setores. A
literatura de vanguarda no Brasil tem que procurar corresponder, no plano estético
e de pesquisa de uma nova dimensão da palavra, a alguns dos anseios mais
válidos e autênticos do homem de hoje.
M.M.
[Revista de cultura brasileña. mero extraordinario sobre literatura de vanguardia.
Tomo 3, n. 11, Madri, dez. 1964, p. 356-357]
252
Nota aos Poemas inéditos de Murilo Mendes
O último livro de Murilo Mendes, Tempo espanhol, apareceu em Lisboa em
1959. Na mesma cidade, publicou o escritor sua Antologia Poética, em 1964. Mas
desde o ano citado primeiramente, Mendes não havia dado a conhecer nenhuma
mostra de sua mais recente ocupação poética. Agora, com a publicação destes
sete poemas inéditos, escritos entre 1959 e 1963, o autor de Contemplação de
Ouro Preto nos oferece a ocasião de tomar conhecimento de suas últimas
preocupações temáticas e estilísticas.
O contato com a realidade espanhola, que tanto influiu em seu compatriota
João Cabral, parece ter atuado em análogo sentido em relação ao grande poeta
mineiro: um desejo de concreção, de sobriedade expressiva, de plasticidade não
isenta de inquietudes metafísicas, se descobre nestes inéditos de Murilo Mendes.
Tanto o ar surrealista de seus primeiros livros quanto o barroquismo dos versos em
que cantou a antiga capital de Minas Gerais, cedem, agora, diante da sobriedade
expressiva e o rigor da construção; uma construção que quer (e consegue) ser
nova, não por um mero desejo de originalidade, mas pelo que não se pode verter
um pensamento original em um forma que o o seja. A fronteira entre a prosa e o
verso, segundo os conceitos tradicionais, é aqui bastante imprecisa. A busca de
uma expressão “totalmente poéticaparece prescindir do quanto possa lembrar a
preconceito.
Estes Murilogramas, este Grafito e outros poemas que Murilo Mendes
publica aqui revelam também sua longa permanência na Itália e sua participação
na vida literária e artística italiana. Ainda permanecem vestígios no léxico (ahimè,
tessera, baleno, barlume) ou na formação de palavras (-ésimo) destas obras. Está
claro que em nossa tradução respeitamos essas vozes italianas.
396
Excetuando o “Murilograma à Filha de Miguel Torga” o conhecido poeta
contemporâneo português e o “Natal 1961” todas as outras poesias têm tema
italiano, da literatura (Cavalcanti) ou da pintura (Capogrossi, Carla Accardi) ou da
arquitetura (Borromini) ou da música (Monteverdi). Neste último poema é onde o
poeta parece entregar-se a certo automatismo expressivo, mais de forma que de
fundo. Mas é que ainda os versos dedicados à filha de Torga têm, incrustadas de
396
Nota dos autores: Tampouco ressaltamos tipograficamente estas vozes italianas, tendo em vista
que o autor não o faz no original.
253
propósito, algumas vozes italianas. Por quais estranhas vias iria a dar don Luis de
Góngora com o distante Guido Cavalcanti, e inclui-lo nos “estrangeiros, dulcíssimos
poetas”? Dante, que foi seu amigo (Guido, vorrei que tu e Lapo ed io...) e lhe
sobreviveu uns quinze anos, recorda-o nessa passagem do Purgatorio citado por
Murilo Mendes (são palavras em boca de Oderisi: l’altro Guido” é Guinicelli, poeta
um pouco anterior a Cavalcanti). Os quatro últimos versos do Murilograma são do
próprio Cavalcanti e pertencem a um soneto que, por sua grande beleza, não nos
resistimos a transcrever:
Tu m’hai si piena di dolor la mente
che l’anima si briga di partire;
e li sospir che manda il cor dolente,
mostrano a li occhi che non pon soffrire.
Amor, che lo tu’grande valor sente,
dice:- Mi duol che ti convien morire
per questa fera donna, che neente
par che pietate di te voglia udire.
Io vo come colui ch’è fuor di vita,
che pare, a chi lo sguarda, ched el sai
fatto di rame o di pietra o di legno,
che sé conduca sol per maestria,
e porte ne lo core una ferita
che sai, com’egli è morto, aperto segno.
*
Todos estes poemas, entre os quais certamente sobressai Murilograma à
Filha de Miguel Torga, mostram a recente evolução do poeta em direção a uma
condensação de palavra e de pensamento: os problemas filosóficos (“Que é um
ser?”) tomam agora uma posição central em sua poesia. A expressão pode
alcançar intensa concentração:
O pintor constrói o signo
O signo mede o pintor
254
Fundo e forma caminham em direção a uma síntese reveladora da constante
capacidade de Murilo Mendes para tomar o pulso a sua época e nos oferecê-la
transcendida em exemplos da melhor poesia.
[ALONSO, Damaso e CRESPO, Ángel. Revista de cultura brasileña. n. 12, Madri,
março 1965, p. 5-7]
255
Nota bibliográfica
MENDES, Murilo: Italianíssima, 7 Murilogrammi. Strenna per gli Amici, Milano,
MCMLXV, 26 págs. Com uma ilustração de Lucio Fontana.
Nossa revista foi a primeira em publicar as composições que o poeta mineiro
Murilo Mendes batizou com o título de murilogramas. Dos sete que come este
breve livro, dois deles – os dedicados a Guido Cavalcanti e a Claudio Monteverdi
se contam entre as composições inéditas que oferecemos a nossos leitores,
juntamente com outras, que por não estarem dedicadas a temas italianos ou por
não serem murilogramas, não fazem parte da curta coleção que queremos
comentar. Esta, por sua vez, é parte do livro inédito Contacto, cuja aparição de
surtir, sem dúvida, benéficos efeitos sobre a nova poesia do Brasil. Afirmamos isto
porque estamos seguros de que a intensa corrente humanista que alimenta a este
livro a julgar pelas mostras que dele conhecemos de fecundar e esclarecer
os propósitos da mais avançada poesia brasileira contemporânea.
Nós que viemos seguindo, passo a passo, o desenvolvimento poético do
Brasil, e admirando sua fecundidade formal e sua rica veia temática, temos a
impressão de estar assistindo à fundação de um novo humanismo capaz das mais
arriscadas sínteses. A atual poesia brasileira, sem renegar suas origens
peninsulares nem sua longa aprendizagem ocidentalista, tem sabido incorporar-se
(na medida do possível sem violências desnaturalizadoras), além das conquistas
de um americanismo cido e de cara ao futuro, aspectos fundamentais da melhor
poesia oriental, tudo isso através de sínteses originais e abertas, ou seja,
absolutamente antidogmáticas, embora o calor de algumas polêmicas possa fazer,
por enquanto, que pensemos o contrário. Imaginemos o que separa esta nova
poesia a incorporação, através da última obra de Murilo Mendes, da mais viva
tradição italiana, vigorada mediante uma inteligentíssima compreensão pelo
gênio do extraordinário poeta mineiro.
A opção do escritor que vive durante longos anos fora de sua terra costuma
ser a saudade, se não acabar aquele por integrar-se, nunca completamente, na
cultura do país que reside, esquecendo, ou deixando longe, as origens geográficas
de sua própria obra. Não é este o caso de Murilo Mendes, quem, se por um lado
256
cedeu ao atrativo da impressionante cultura italiana, soube por outro unir suas
experiências com as preocupações das letras de seu país.
A montagem de seus poemas italianos refletem uma profunda preocupação
por evitar a discursividade, por conter qualquer desbordamento em benefício da
expressão ajustada, sóbria, mas, ao mesmo tempo, sugestiva ou, melhor dizendo,
capaz de profundas e prolongadas ressonâncias. Assim, estes poemas são faces
de lâminas móveis – não saberíamos definí-los de outra maneira – cujas vibrações,
à medida que vamos tocando-as uma a uma, acabam por confundir-se
harmonicamente. Isto quer dizer que semelhantes poemas participam de valores
ideográficos e musicais e apontam em direção a soluções que vem preocupando
aos poetas mais conscientes do Brasil.
Em que medida / Leopardi
Será tua linguagem
Tangente à – rompida – nossa?
Não fui a Recanati: vou aos CANTI.
Assim começa um dos murilogramas, expressando a preocupação por fazer
nossas as palavras dos grandes poetas italianos. E Mendes termina no belíssimo
poema a Cavalcanti – por incorporar-se as próprias palavras do italiano:
Explicas a automização:
IO VO COME COULI CH’É FUOR DI VITA,
CHE PARE, A CHI LO SGUARDA, COME SAI
FATTO DI RAME O DI PIETRA O DI LEGNO,
CHE SÉ / CONDUCA SOL PER MAÏSTRIA,
intervindo, inclusive, no texto de Guido com um signo de pontuação (/) que sublinha
a intenção da citação.
Valham estas duas mostras para dar uma idéia da riqueza de procedimentos
da recente poesia de Murilo Mendes; nova, ademais, porque a matéria poética, que
em outros livros deste autor permanecia em certo estado de fluidez, se ordena nela
257
de acordo com canônes abertos no sentido em que é aberto um ideograma ,
sem abandonar, graças ao profundo impulso musical que a conforma, um tom
melancólico muito ocidental e, por conseqüência, muito brasileiro.
Esperemos que a aparição de Contacto nos permita calibrar o alcance da
mensagem que Murilo Mendes de dirigir, através da brasileira, a toda a poesia
de nosso tempo.
[CRESPO, Ángel. Revista de Cultura Brasileña. n. 16, Madri, mar. 1966, p. 95-97]
258
Jorge Guillén
•Segundo Aubrey F. G. Bell, solidez, equilíbrio, concentração, intensidade, humour
são as qualidades castelhanas por excelência. Creio que elas se encarnam de
modo exemplar na obra e na pessoa de Jorge Guillén. Sua preocupação de
limpidez e artesanato rigoroso ligam-no a Paul Valéry, de cuja linha estética ele
partiu.
•Seria hoje acadêmico escrever que J. G. domina a linguagem. Qualquer poeta
autêntico deve dominar a linguagem, do contrário não poderia fazer poesia.
Menciono este truísmo porque foi, entre os anos 1940-50 usado e abusado por
vários críticos, particularmente no Brasil: e nem todos eram ingênuos, muito pelo
contrário. Voltava então à cena o conhecido diálogo Mallarmé-Degas. Ora,
Mallarmé advertira um pintor, nenhum poeta precisaria de tal conselho.
•J. G. espanholizou, transformou e alargou o projeto da arquitetura valéryana;
sendo a dimensão da sua poesia única, pessoal, intransferível. Consideramos um
poeta que usa com atenta disciplina, liberdade, fantasia, ao mesmo tempo metros
tradicionais e metros livres; curtos ou largos; que nunca chega mesmo à ruptura da
linguagem, porque se propõe sempre a arquitetura do poema. Espírito dialético por
inclinação e cultura, diria que reúne pontos inconciliáveis: subjetividade e
objetividade, abstrato e concreto, imanência e transcendência. Numerosos
exemplos se encontram ao longo de sua obra, que poderia trazer como epígrafe
este verso: “Alma, fiel a un volumen”.
•J. G., diurno (provém da luz castelhana, luz de personalidade forte, diria até
intelectual) exorciza os espantalhos da noite, aceitando “sus potencias breves/ bajo
un sigilo sin horror ni enigma.” Num tempo dilacerado como o nosso, tempo de
negação da vida, do próprio homem (não me refiro à negação de Deus, pois todas
as outras negações são conseqüências desta), torna-se milagrosa a figura de um
poeta que adere ao mundo (“porque es mi sino/ propender con fervor al universo”);
que sofre aosso com a desordem (“oh torpe caos!”), que erige a exatidão em
divindade, encontrando palavras definitivas para seu desafio castelhano-planetário
259
à fatalidade das “postrimerias”, presentes todo o dia ao espanhol: “Por mí no mi
moriré. Me morirán”.
•Acenando no início ao nculo estético Guillén-Valéry, fi-lo em situação à crítica
que geralmente o define. Mas, diante de um poeta desta altura, é claro que não se
deve tratar de univocidade. No prefácio à Selección de poemas, publicado na
Espanha em 1965, J. G. informa-nos que foi desde muito jovem atraído pela
construção rigorosa de Les fleurs du mal; seguindo-se mais tarde a descoberta de
Leaves of grass. Indicações certamente preciosas; mas não me sirvo delas para
fixar limites a uma obra que caminha no tempo sob signos diversos, inclusive os de
Dante e Mallarmé.
Num ensaio dos anos 50 Dámaso Alonso explica J. G. em contraposição a certa
linha crítica unilateral, atenta apenas ao plano intelectualístico desta obra, que
entretanto surge muitas vezes das sensações e dos impulsos mais elementares do
humaníssimo “quase animalíssimo” Jorge Guillén.
397
Cántico, desenvolvido e reelaborado durante quase 50 anos; Maremágnum,
precedido de Clamor; e Homenaje, constituem o vasto tríptico guilleniano,
completado por ensaios de problemática da linguagem e da criação literária, de que
se destaca Lenguaje y poesía: ensaios fundados, com licença de Gracián, em
agudeza–engenho. Os textos de Guillén são férteis em pontos de exclamação e de
interrogação, o que poderá afastar certos leitores exigentes. Mas o poeta não usa à
maneira dos românticos estes sinais de pontuação. Fazem parte do texto, acham-
se inseridos nele, direi: correspondem a uma palavra, talvez a uma série de
palavras, talvez a uma metáfora. Guillén geometriza a capacidade de entusiasmo
do espanhol, organizando o que eu chamaria a praxis do lirismo. Sob o ponto de
vista da comunicabilidade penso que a obra de J. G. abarca um raio de ação muito
mais vasto que o de Valéry, se bem talvez não contenha um pezzo” antológico da
tessitura de “Le cimetière marin”. O citado Dámaso Alonso escreve: “Jorge Guillén
es, entre todos los poetas hoy vivos, el de mayor contenido de pensamiento, aquel
397
Nota do editor: Trata-se do ensaio "Los impulsos elementales en la poesía de Jorge Guillén”,
incluído no livro Poetas españoles contemporáneos, que integra a biblioteca do poeta. O trecho
mencionado, à página 242, recebeu um traço à margem.
260
cuya imagen del mundo es más nítida em su poderosa unidad, com infinita
variedad em el pormenor.”
•A obra de J. G. constitui um dos monumentos da poesia espanhola, e não só
deste século. Como se escreveu que na Espanha o maior monumento é o
homem, terminarei dizendo uma palavra sobre o homem Guillén. Ele é alto, muito
magro, moreno, espanholíssimo, olhos pequenos, pesquisadores; delicado e
dinâmico. A “signorilitá” é uma de suas características mais fortes. Esgrime a
palavra com rigor mordente. Homem-texto, “ragiona”, entre lucidez e ironia, de
fatos, pessoas, coisas; passa com agilidade do plano estético para o cotidiano
impregnado de um fervor cortês. Até seus óculos são personalíssimos. É tocado
pelo prazer de respirar. De total simplicidade, sabe ouvir e dialogar como poucos.
•Há muitos anos que o pratico. Encontramo-nos várias vezes, em Roma, Florença,
Lisboa e Algarve. Uma das nossas últimascitas” foi no Jardim Botânico de Lisboa,
sítio remansoso no centro da cidade, dando-nos a ilusão de que a natureza ainda
existe. Falamos de literatura, da crise universal, “una crisis/ que não se acaba
nunca,/ esa contradicción que no nos deja/ vivir nuestro destino”, em particular a
crise de Portugal e da recíproca Espanha, “esa incógnita España no más fácil de
mantener en pie/ que el resto del planeta.” O poeta anima-se, e de repente,
abrangendo com o olhar agudíssimo talvez a totalidade das árvores, exclama:
“Quiero vivir! oferece-me mais um de seus livros; uma vez eu lhe disse que o texto
das suas dedicatórias me fará passar à posteridade. Findo o encontro, no instante
da despedida ele comenta: “Caso raro, estivemos juntos duas horas sem comer,
nem beber.” Regressa ao hotel, para prosseguir a leitura de Os Maias.
Murilo Mendes.
1969-1974.
R.R. – 2
a
série
(Retratos-relâmpo)
[Manuscrito em 5 folhas – Arquivo Jorge Guillén – Biblioteca Nacional – Madri]
261
Correspondência de Cabral e Murilo com escritores espanhóis
João Cabral de Melo Neto - Joan Brossa (Fundación Joan Brossa
Barcelona)
1.Carta de Londres, 8 de janeiro de 1951.
2.Carta de Londres, 6 de maio de 1951.
João Cabral de Melo Neto - Gabino-Alejandro Carriedo (Arquivo Gabino-
Alejandro Carriedo - Fundación Jorge Guillén – Valladolid)
1.Carta de 9 de junho de 1966.
2.Carta de Berna, 26 de agosto de 1966.
3.Carta de Berna, 9 de dezembro de 1966.
João Cabral de Melo Neto - Rafael Santos Torroella (Arquivo Rafael Santos
Torroella)
1.Carta de Barcelona, 31 de outubro de 1950.
2.Carta de Barcelona, 7 de novembro de 1950.
3.Carta sem cabeçário (papel impresso do Consulado de Londres e envelope com
carimbo de 30 de novembro de 1950).
4.Carta de Londres, 7 de dezembro de 1950.
5.Carta sem cabeçário (envelope com carimbo de 24 de janeiro de 1951).
6.Carta de Londres, 29 de maio de 1951.
7.Carta de 12 de junho de 1951.
8.Carta de Londres, 20 de agosto de 1951.
9.Carta do Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1955.
10.Carta de Sevilha, 16 de maio de 1956.
11.Carta de Sevilha, 10 de agosto de 1956.
12.Carta de 28 de janeiro de 1957.
13.Carta de Sevilha, 19 de fevereiro de 1957.
14.Carta de Sevilha, 26 de abril de 1957.
15.Carta de Sevilha, 19 de maio de 1957.
16.Carta de Marselha, 11 de novembro de 1958.
17.Carta de Monte Carlo, 18 de janeiro de 1959.
18.Carta de Marselha, 3 de fevereiro de 1959.
262
19.Carta de Marselha, 5 de fevereiro de 1959.
20.Carta de Marselha, 23 de fevereiro de 1959.
21.Carta de Marselha, 13 de março de 1959.
22.Carta de Madrid, 25 de junho de 1962 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
23.Carta de Berna, 16 de outubro de 1966.
24.Carta sem cabeçário (papel impresso do Consulado do Brasil).
25.Carta sem cabeçário (papel impresso do Consulado de Londres).
Murilo Mendes - Ángel Crespo (Arquivo Ángel Crespo)
1.Carta de Roma, 14 de julho de 1968.
2.Carta de Roma, 5 de julho de 1970.
Murilo Mendes - Dámaso Alonso (Arquivo Dámaso Alonso - Real Academia
Española - Madri)
1.Carta de Roma, 19 de março de 1959.
2.Carta de Roma, 21 de abril de 1959.
3.Carta de Madri, 16 de setembro de 1959.
4.Cartão postal de Florença, 14 de abril de 1961 (a Damaso Alonso e Eulalia
Alonso).
5.Cartão postal de Madri, 24 de julho de 1961 (a Damaso Alonso e Eulalia Alonso).
6.Carta de Roma, 10 de fevereiro de 1962 (a Eulalia Alonso).
7.Carta de Roma, 3 de novembro de 1963 (a Damaso Alonso e Eulalia Alonso).
8.Cartão postal do Museu do Prado, 30 de setembro de 1965 (a Damaso Alonso e
Eulalia Alonso).
9.Cartão postal de Roma, novembro de 1966.
10.Carta de Roma, de 14 de setembro de 1968.
11.Carta de Roma, de 19 de dezembro de 1969.
Murilo Mendes - Gabino-Alejandro Carriedo (Arquivo Gabino-Alejandro
Carriedo - Fundación Jorge Guillén – Valladolid)
1.Carta de Roma, 10 de julho de 1964.
2.Carta de Roma, 28 de maio de 1967.
3.Postal de Roma, dezembro de 1968.
4.Carta de Roma, 3 de abril de 1969.
263
5.Carta de Roma, 22 de junho de 1969.
6.Carta de Roma, 10 de julho de 1969.
7.Carta de Montedor (Minho), 27 de agosto de 1969.
8.Carta de 5 de agosto de 1970.
9.Carta de Roma, 22 de fevereiro de 1971.
10. Carta de Roma, 15 de março de 1971.
11.Carta de Roma, 17 de outubro de 1971.
12. Cartão de Roma, 1974.
Murilo Mendes - Jorge Guillén (Arquivo Jorge Guillén - Biblioteca Nacional -
Madri)
1.Carta de Roma, 2 de março de 1959.
2.Carta de Roma, 27 de outubro de 1959.
3.Carta de Roma, 10 de janeiro de 1960.
4.Cartão postal de Valladolid, setembro de 1960.
5.Cartão postal de Roma, 28 de dezembro de 1960.
6.Cartão postal de Roma, 26 de fevereiro de 1961.
7. Carta de Roma, 30 de abril de 1961.
8. Carta de Roma, 19 de maio de 1961 (a Jorge Guillén e Irene Guillén).
9. Carta de Roma, 2 de abril de 1962.
10.Carta de Roma, 16 de maio de 1962 (em espanhol).
11.Carta de Monte Gordo, 26 de julho de 1962 (em francês).
12. Carta de Lisboa, 3 de agosto de 1962 (em francês a Jorge Guillén e Irene
Guillén).
13. Carta de Lisboa, 5 de agosto de 1962 (a Jorge Guillén e Irene Guillén).
14. Carta de Lisboa, 7 de agosto de 1962 (em espanhol a Jorge Guillén e Irene
Guillén).
15. Cartão postal do Porto, 22 de agosto de 1962 (em espanhol).
16. Carta de Roma, 5 de novembro de 1962.
17. Cartão de aniversário de Roma, 18 de janeiro de 1963.
18. Carta de Roma, 14 de fevereiro de 1963.
19. Cartão postal de Roma, 28 de fevereiro de 1963.
21. Cartão postal de Roma, 19 de março de 1964 (a Jorge Guillén e Irene Guillén).
22. Carta de Roma, 6 de julho de 1964: Comentário da leitura da obra de Guillén.
264
23. Cartão de Roma, 1967 (a Jorge Guillén e Irene Guillén).
24. Carta de Roma, 6 de fevereiro de 1967 (em espanhol).
25. Carta de Roma, 4 de março de 1967 (em italiano, espanhol, francês e
português).
26. Cartão postal de Nova Iorque, 3 de setembro de 1967 (em italiano a Jorge
Guillén e Irene Guillén).
27. Cartão postal de Roma, dezembro de 1968 (a Jorge Guillén e Irene Guillén).
28. Carta de Roma, 20 de março de 1969 (em espanhol).
29. Carta de Roma, 22 de janeiro de 1970 (em português, francês, italiano e
espanhol).
30. Carta de Roma, 1 de janeiro de 1971 (em espanhol, italiano, francês e
português).
31. Carta de Roma, 11 de janeiro de 1972 (em italiano).
32. Carta de Roma, 12 de maio de 1973 (em italiano, francês, espanhol e
português).
33. Cartão postal de Roma, 11 de dezembro de 1973 (em italiano a Jorge Guillén e
Irene Guillén).
34. Carta de Roma, 20 de outubro de 1974 (em italiano).
Murilo Mendes - Rafael Santos Torroela (Arquivo Rafael Santos Torroella)
1.Carta de Madri, 31 de maio de 1953.
2.Carta de Madri, 24 de setembro de 1959 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
3.Carta de Roma, 3 de janeiro de 1960.
4.Carta de Roma, 23 de fevereiro de 1960.
5.Carta de Roma, 8 de março de 1960 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
6.Carta de Roma, 2 de julho de 1960 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
7.Carta de Roma, 9 de novembro de 1960.
8.Cartão postal de Roma, janeiro de 1961.
9.Carta de Roma, 15 de fevereiro de 1961 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
10.Cartão postal de Gerona, 24 de setembro de 1962.
11.Cartão postal de Florença, 28 de setembro de 1962.
12.Carta de Roma, 13 de abril de 1963.
13.Carta de Roma, 27 de junho de 1965.
14.Carta de Madri, 30 de setembro de 1965 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
265
15.Carta de Roma, 23 de dezembro de 1965 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
16.Carta de Roma, 15 de outubro de 1966 (a Maite Santos Torroella).
17.Cartão postal de Roma, 29 de setembro de 1967 (a Maite Santos Torroella e
tamm escrito por Saudade Cortesão).
18.Cartão postal de Barcelona, 2 de agosto de 1968 (a Maite e Rafael Santos
Torroella).
19.Cartão postal de Roma, dezembro de 1968.
20.Carta de Roma, 22 de junho de 1969 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
21.Carta de Roma, 10 de julho de 1969 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
22.Carta de Roma, 2 de janeiro de 1970 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
23.Carta de Roma, 19 de maio de 1971 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
24.Carta de Roma, 22 de junho de 1971 (a Maite e Rafael Santos Torroella).
Murilo Mendes- Rafael Alberti (Fundación Rafael Alberti Puerto de Santa
María- Cadiz)
- Carta de Roma, 26 de fevereiro de 1968.
Rafael Alberti Murilo Mendes (ALÇADA, João Nuno. Entre Poetas e
Pintores: Murilo Mendes e os seus Amigos Europeus. Separata dos Arquivos
do Centro Cultural Caluste Gulbenkian. v. XXXVIII. Lisboa-Paris, Fundação
Caluste Gulbenkian, 1999, p. 502-503)
- Carta de Antibes, França, de 16 de fevereiro de 1968.
266
Dedicatórias autógrafas em livros
1941
1. “A Murillo (sic) Mendes, cordialmente José Bergamín. México. Nov. 1941”
(Disparadero español. 3
a
ed. México: Editorial Seneca, 1940 Centro de Estudos
Murilo Mendes – Juiz de Fora)
2. “Al poeta Murillo Mendes muy amistosamente José Bergamín México Nov. 1941”
(El pozo de angusia. México: Editorial Seneca, 1941 Centro de Estudos Murilo
Mendes – Juiz de Fora)
1942
3. “A Murilo Mendes, com admiração e amizade. João Cabral de Melo Neto. Re. 7.
1942” (Pedra do sono. Recife: Oficinas Gráficas de Drechsler & Cia.,1942. Edição
do autor – Centro de Estudos Murilo Mendes – Juiz de Fora)
1947
4.“A Garcia Vilella, cordialmente, 27.X.47 João Cabral de Melo Neto. (O
engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945 Acervo Francisco García
Vilella)
1948
5.“A Garcia Villela, para desaprender português, João Cabral de Melo Barcelona,
1948.” (Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antíode. Barcelona: O
Livro Inconsútil, 1947 – Acervo Francisco García Vilella)
6.“A Carles Riba, homenagem de admiração de João Cabral de Melo Neto
Barcelona, 1948.” (Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antíode.
Barcelona: O Livro Inconsútil, 1947 - Biblioteca de Catalunya – Barcelona)
7. “A Jorge Guillén, homenagem de João Cabral de Melo Neto Barcelona,
14.VIII.948 (Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e Antíode.
Barcelona: O Livro Inconsútil, 1947 – Biblioteca Pública de Valladolid)
8.“A Enric Tormo, Maestro, este primeira incursão a seus domínios, J. Cabral de
Melo Barcelona, 23. XI. 48” (Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e
Antíode .Barcelona: O Livro Inconsútil, 1947 – Biblioteca particular de Enric Tormo)
267
9. “A Enric Tormo, fraternalmente, João Cabral de Melo Neto De sua Barcelona,
23.XI.948 (O engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945 Biblioteca
particular de Enric Tormo)
1949
10.“A Rafael Santos Torroella, poeta e amigo João Cabral de Melo Neto Barcelona,
outubro, 1949” (O engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945
Biblioteca particular de Rafael Santos Torroella)
11.“A Santos Torroella lembrança da tarde de 8.10.949 João Cabral de Melo Neto
Barcelona” (Psicologia da composição com a bula de Anfion e Antíode.
Barcelona: O Livro Inconsútil, 1947 Biblioteca particular de Rafael Santos
Torroella)
1950
12.“Ao Garcia Vilella, lembrança de João Cabral de Melo Neto Barcelona, VIII
1950” (O cão sem plumas. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1950 Acervo Francisco
García Vilella)
13.“A Joan Brossa, fraternalmente, João Cabral de Melo Neto Barcelona, 16. 8.
950” (O cão sem plumas. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1950 - Fundación Vila
Casals – Barcelona)
14.“Ao Tormo, com um abraço afetuoso do Cabral Barcelona, VIII-950” (O cão sem
plumas. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1950 – Biblioteca particular de Enric Tormo)
1953
15. “Para los poetas Murilo y Saudade Mendes, El Gallo y la tierra (drama histórico)
con toda la amistad y cariño de José Antonio Novais Madrid 53” (El Gallo y la tierra.
Madri: Ediciones Ensayos, 1952 Centro de Estudos Murilo Mendes Juiz de
Fora)
16.“Para Saudade y Murilo Mendes, mis queridos amigos, triste porque se marchan
y aún no han marchado. Alfonso Pintó Barcelona, 16 de junio de 1953” (Habitado
de sueño. Coleção Mensajes. Madri: Jura, 1950 – Centro de Estudos Murilos
Mendes – Juiz de Fora)
268
1955
17. “Para Saudade y Murilo, con el cariño y la admiración de siempre José Antonio
Novais Madri julio 55(Miedo y hombre. Guadalajara: ColeçãoDoña Endrina, 1955
– Centro de Estudos Murilos Mendes – Juiz de Fora)
18.“A Maria da Saüdade e Murilo, amigos deste taquígrafo do rio e por procuração
do próprio, of. João Cabral de Melo Neto. Rio, set. 1955” (O rio ou relação que faz
o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. São Paulo: Comissão do IV
Centenário da cidade de São Paulo, Serviço de Comemorações Culturais, 1954 -
Centro de Estudos Murilo Mendes - Juiz de Fora)
1956
19.“Ao Tormo, com um abraço do Cabral. Barcelona, 1956” (Duas águas: poemas
reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956 – Biblioteca particular de Enric
Tormo)
20.“A Maite e Santos, com um abraço afetuoso de seu amigo Cabral. Barcelona,
1956” (Duas águas: poemas reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956
Biblioteca particular de Rafael Santos Torroella)
1957
21.“A Rafael Alberti, em testemunho de admiração e simpatia o grande SALUDO
de Murilo Mendes. Roma, 25 maio 1957.” (Office Humain. Trad. Dominique Braga e
Saudade Cortesão. Paris: Seghers, 1957 Fundación Rafael Alberti Puerto de
Santa Maria, Cádiz)
1958
22.“A Murilo Mendes, en recuerdo de una charla en poesía y amistad de su
compañero Vicente Aleixandre Madrid, 10 de octubre 1958” (La destrucción o el
amor. Buenos Aires: Editorial Losada, 1954 - Centro de Estudos Murilo Mendes -
Juiz de Fora)
23.“Para Murilo Mendes, con la compañía poética y la amistad naciente - y
esperemos que larga - de Damaso Alonso Madrid 10 de oct. 58” (Antología: crítica.
Edição de Vicente Gaos. Madrid: Escelicer, 1956 - Centro de Estudos Murilo
Mendes - Juiz de Fora)
269
24.“A Jorge Guillén, poeta ilustre, homenagem de antiga admiração e simpatia de
Murilo Mendes. poles, 19.12.1958” (Office Humain. Trad. Dominique Braga e
Saudade Cortesão. Paris: Seghers 1957 – Biblioteca Pública de Valladolid)
1959
25.“A um grande poeta: A Jorge Guillén, em renovado testemunho de admiração e
amizade, e para marcar o prazer de vê-lo aqui em minha casa, Murilo Mendes.
Roma, 30 out. 1959” (Siciliana. Trad. A. A. Chiocchio. Caltanissetta-Roma:
Sciascia, 1959 – Biblioteca Pública de Valladolid)
1960
26.“Ao querido Enric Tormo e gentil senhora, afetuosa lembrança do amigo e
admirador Murilo Mendes. Roma, fev., 1960” (Tempo espanhol. Lisboa: Morais
Editora, 1959 – Biblioteca particular de Enric Tormo)
27.“A Jorge Guillén, poeta exemplar, com a afetuosa admiração e amizade de
Murilo Mendes. Roma, fevereiro 1960.” (Tempo espanhol. Lisboa: Morais Editora,
1959 – Biblioteca Pública de Valladolid)
28."Ao Ángel Crespo, este livro arqueológico João Cabral de Melo Madrid, 15
anos depois" (O engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945 - Biblioteca
particular de Ángel Crespo)
29. "A Ángel Crespo, este livro em cueiros, com um abraço de seu já amigo Madrid
set. 1960 João Cabral de Melo Neto" (Quaderna. Lisboa: Guimarães Editores,
1960 - Biblioteca particular de Ángel Crespo)
30.“Ao Carriedo, com um abraço afetuoso do João Cabral de Melo Madri, 1960”
(Quaderna. Lisboa: Guimarães Editores, 1960 – Biblioteca Pública de Valladolid)
31. “A Maite y Rafael, com um abraço amigo do João Cabral de Melo Neto Madrid,
1960” (Quaderna. Lisboa: Guimarães Editores, 1960 - Biblioteca particular de
Rafael Santos Torroella)
32."A Ángel Crespo, para assinalar nosso primeiro contacto pessoal, com grande
simpatia oferece Murilo Mendes Madrid, 16-IX-1960" (Tempo espanhol. Lisboa:
Livraria Morais Editora, 1959 - Biblioteca particular de Ángel Crespo)
270
1961
33. "Para Ángel Crespo e María Luísa, esta pequena lembrança com o sincero
afeto e as saudades do amigo e admirador Murilo Mendes Roma, janeiro 1961"
(Poesias. 1925-1955. Rio de Janeiro: Livraria Jo Olympio Editora, 1959 -
Biblioteca particular de Ángel Crespo)
34. "A Ángel Crespo, con mi admiración y amistad João Cabral de Melo Neto"
(Dois parlamentos. Madrid: s. ed., 1961 - Biblioteca particular de Ángel Crespo)
35.“Ao Carriedo, com um abraço afetuoso do Cabral Madrid, 1961” (Dois
parlamentos. Madrid: s. ed., 1961 – Biblioteca Pública de Valladolid)
36. “A Maite e Rafael, com um abraço amigo do João Madrid, 1961” (Dois
parlamentos. Madrid: s. ed., 1961 - Biblioteca particular de Rafael Santos Torroella)
37. “A Jorge Guillén e Dona Irene homenagem de admiração e amizade de Murilo
Mendes” “molto molto affetuosamente Giuseppe Ungaretti” (Finestra del caos. Trad.
Giuseppe Ungaretti. Milão: All'Insegna del pesce d'oro, 1961 – Biblioteca pública de
Valladolid)
38. Viva España! Aos queridos Ángel Crespo e Maria Luísa Lembrança muito
afetuosa de Murilo Mendes. Roma 1961.” (Finestra del caos. Trad. Giuseppe
Ungaretti. Milão: All'Insegna del pesce d'oro, 1961 Biblioteca blica de
Valladolid)
39. “Amigo João: He aqmi nuevo libro, que habla de cosas de la vida, de la ‘vida
e morte severina’ que tú lo sabes. Se te echa de menos por aquí. Un fuerte abrazo
de Gabino Alejandro Carriedo Madrid 1961”. Anotação de Cabral: “General Mola
289 Madri 16” (El corazón en un puño. Santander: Publicaciones La isla de los
ratones, 1961 – Biblioteca particular de Augusto Massi)
1962
40. “A Jorge Guillén, homenagem cordial de seu admirador antigo João Cabral de
Melo Neto 1962” (Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961 – Biblioteca
Pública de Valladolid)
41. "Ao caro Ángel Crespo, com um abraço do João Cabral de Melo Neto Madrid,
1962" (Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961 - Biblioteca particular
de Ángel Crespo)
271
42. “Ao Carriedo com um abraço afetuoso e a admiração do Cabral Madrid, 1962”
(Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961 Biblioteca Pública de
Valladolid)
43. “Aos queridos amigos Maite e Rafael, saudades do João. Sevilla, 1962
(Terceira feira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961 - Biblioteca particular de
Rafael Santos Torroella)
44. “A Jorge Guillén e Dona Irene, contente por encontrá-los em terra portuguesa,
com todo o afeto e admiração de Murilo Mendes. Lisboa, 29. 8. 1962.” (Poemas de
Murilo Mendes. Trad. Dámaso Alonso. Separata da Revista de Cultura Brasileña. a.
1, n. 1, Madri, 1962 – Biblioteca Pública de Valladolid)
45. “A Jorge Guillén, poeta exemplar, amigo, querido e admirado; e à gentilíssima
senhora Irene Guillén Homenagem afetuosa de Murilo Mendes. Roma, 27
novembro 1962” (Murilo Mendes. Organização de Ruggero Jacobbi; tradução de
Anton Ángelo Chiocchio, Ruggero Jacobbi, Luciana Stegagno Picchio e Giuseppe
Ungaretti. Milão: Nuova Accademia Editrice, 1961 - Biblioteca Pública de Valladolid)
46. "Aos queridos Ángel Crespo e Maria Luisa lembrança afetuosa de Murilo
Mendes Roma 1962" (Murilo Mendes. Organização de Ruggero Jacobbi; tradução
de Anton Ángelo Chiocchio, Ruggero Jacobbi, Luciana Stegagno Picchio e
Giuseppe Ungaretti. Milão: Nuova Accademia Editrice, 1961 - Biblioteca particular
de Ángel Crespo)
47. "Aos queridos Dámaso Alonso e Dona Eulalia, figuras da Espanha essencial,
homenagem afetuosa do amigo e admirador fiel MM. Roma 1962" (Finestra del
caos. Trad. Giuseppe Ungaretti. Milão: All´Insegna del Pesce Oro, 1961 Real
Academia Española - Madri)
1963
48. "Ao caro Ángel Crespo, com abraço afetuoso do João Cabral de Melo Sevilha,
1963" (Poemas escolhidos. Lisboa: Portugália, 1963 - Biblioteca particular de Ángel
Crespo)
49. “Ao Carriedo, com um abraço do João Cabral de Melo Sevilha, 1963” (Poemas
escolhidos. Lisboa: Portugália, 1963 - Biblioteca Pública de Valladolid)
50. “Aos caros Maite e Rafael, seu amigo João Cabral de Melo Sevilha, 1963”
(Poemas escolhidos. Lisboa: Portugália, 1963 - Biblioteca particular de Rafael
Santos Torroella)
272
51. “A Rafael Alberti, grande de Espanha, homenagem de Murilo Mendes. Roma,
Natal 1963.” (Tempo espanhol. Lisboa: Morais Editora, 1959 Fundación Rafael
Alberti – Puerto de Santa María, Cadiz)
52. “A Rafael Alberti e Maria Teresa Leon, com os melhores votos de feliz estadia
na Itália, seu amigo e admirador Murilo Mendes. Roma, dezembro 1963.” (Murilo
Mendes. Organização de Ruggero Jacobbi; tradução de Anton Ángelo Chiocchio,
Ruggero Jacobbi, Luciana Stegagno Picchio e Giuseppe Ungaretti. Milão: Nuova
Accademia Editrice, 1961 - Fundación Rafael Alberti – Puerto de Santa María,
Cadiz)
1964
53. “A Jorge Guillén = Grande de España = com todo o afeto e admiração do seu
Murilo Mendes. Roma, 31.10.64.” (Poemas sobre España de João Cabral de Melo
Neto. Trad. e nota crítica de Ángel Crespo e Pilar Gomez Bedate. Separata de
Cuadernos Hispanoamericanos. n. 177, Madri, set. 1964 Biblioteca blica de
Valladolid)
54. “A João Cabral de Melo, este libro, en parte dedicado a él (en la mejor parte)
398
con un abrazo de Ángel” (Cartas desde un pozo. 1957-1963. Santander:
Publicaciones La isla de los ratores, 1964 – Biblioteca particular de Augusto Massi)
1965
55. “Ao querido Jorge Guillén, figura exemplar de homem e poeta; admiradíssimo;
com as minhas homenagens à Senhora Dona Irene, afetuosamente oferece Murilo
Mendes. Roma 1965.” (Siete poemas inéditos. Trad. Dámaso Alonso e Ángel
Crespo. Separata da Revista de Cultura Brasileña. n. 12, Madri, março 1965
Biblioteca Pública de Valladolid)
1966
56. "Ao caríssimo Crespo, com a amizade e admiração do João Berna, 1966" (A
educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966 - Biblioteca particular
de Ángel Crespo)
398
Trata-se do poema “Homenaje a João Cabral de Melto Neto”, inserido nessa coletânea.
273
57. “Ao querido Carriedo, com a admiração do Cabral Berna, 1966” (A educação
pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966 - Biblioteca Pública de
Valladolid)
58. “Al maestro y amigo João Cabral de Melo, a quien tanto quiero y admiro; a
quien tanto quisiera tener cerca. Con el mejor de mis abrazos Gabino Alejandro.”
(Los animales vivos (1951-1952). Carboneras de Guadazaón: El Toro de Barro,
1966 – Biblioteca particular de Augusto Massi)
59. “Aos queridos amigos Maite e Rafael, com a velha amizade do João Berna,
1966” (A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966 - Biblioteca
particular de Rafael Santos Torroella)
60. “Roma 1966. A Jorge Guillén e D. Irene, com muitas saudades & Auguri do
amigo & admirador Murilo Mendes.” (Sette poesie inedite di Murilo Mendes.
Italianissima. 7 Murilogrammie. Milão: Strema per gli amici, 1965 Biblioteca
Pública de Valladolid)
61. "Para Ángel e Maria Luisa, com muito afeto, MM. Roma, 1966" (Sette poesie
inedite di Murilo Mendes. Italianissima. 7 Murilogrammie. Milão: Strema per gli
amici, 1965 - Biblioteca particular de Ángel de Crespo)
1968
62. Ao Carriedo, com um abraço do admirador e amigo grato Cabral 1968.”
(Poesias completas (1940-1965). Rio de Janeiro: Sabiá, 1968 Biblioteca Pública
de Valladolid)
63. “Para Andrea e Carriedo com admiração e afeto, Murilo Mendes. Madrid 2. 9.
1968” (Tempo espanhol. Lisboa: Morais Editora, 1959 Biblioteca Pública de
Valladolid)
1970
64. “Aos queridos Rafael & Maria Teresa: Viva o dia 16 de dezembro 1902 que viu
nascer um homem e poeta singular/ solar. Viva o amor a liberdade a poesia.
Viva a Espanha livre. Abaixo o processo de Burgos, abaixo os netos dos
inquisidores, falsos cristãos. VIVA A LIBERDADE! Roma. 16. 12. 1970. M. M.” (Le
metamorfosi. Trad. Ruggero Jacobbi. Milão: Lerici Editori, 1964 - Fundación Rafael
Alberti – Puerto de Santa María, Cadiz).
274
1971
65. “Viva o dia 16 de janeiro 1902 (ou 1922?...) Aos muito queridos e admirados
Rafael & Maria Teresa, abraços e votos de Poesia e Liberdade em 1972
(extensivos a Aitana). Murilo. Roma, 16. 12. 1971.” (Poesia libertá. Trad. Ruggero
Jacobbi. Milão: Accademia Sansoni, 1971 - Fundación Rafael Alberti Puerto de
Santa María, Cadiz)
1972
66. “A Carriedo e Andrea, duas flores da minha amada Espanha, com a afetuosa
amizade do Murilo Mendes. Roma 1972.” (Poesia libertà. Ed. Ruggero Jaccobi.
Milão: Accademia-Sansoni, 1971 – Biblioteca Pública de Valladolid)
67. Aos queridos Gabino-Alejandro Carriedo e Andrea, lembrança afetuosa de
M.M. Roma 1972.” (Poliedro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972 – Biblioteca
Pública de Valladolid)
1976
68. "Ao caro Ángel Crespo, com a velha amizade e admiração do João Cabral de
Melo Neto Dakar, 1976" (Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1975 - Biblioteca particular de Ángel Crespo)
69. “Aos queridos Maite e Rafael, nosso de sempre, João Cabral de Melo Dakar,
1976” (Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1975 - Biblioteca
particular de Rafael Santos Torroella)
1980
70. “A mi querido maestro y amigo João Cabral de Melo Neto, con el recuerdo
permanentemente y la pena de no recibir noticias suyas. Su affemo. Gabino
Alejandro Mayo 1980” (Nuevo compuesto descompuesto viejo (Poesía 1948-
1978). Madri: Peralta, 1980 – Biblioteca particular de Augusto Massi)
275
Poemas e livros dedicados
A ALBERTI, Rafael
“Jardins do Generalife” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A ALEIXANDRE, Vicente
“Sevilha” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A ALONSO, Damaso
“Toledo” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A ALONSO, Damaso e GUILLÉN, Jorge “Grandes de Espanha”
Espaço espanhol (1994), de Murilo Mendes.
A ALTOLAGUIRRE, Manuel
“O sol de Granada” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A BERGAMÍN, José
“Ávila” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A BOUSOÑO, Carlos
“O passante de Sevilha” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A CARRIEDO, Gabino-Alejandro
“Rios sem discurso” In A educação pela pedra (1966), de João Cabral de Melo
Neto.
A CERNUDA, Luis
“O sol de Ilhescas” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A CRESPO, Ángel
“Para a feira do livro” In A educação pela pedra (1966), de João Cabral de Melo
Neto.
276
A DIEGO, Gerardo
“Chuva em Castela” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A GUILLÉN, Jorge
“Monteserrat” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A MELO NETO, João Cabral de
“Oda lliure a Joan Ponç” In Sortija (1948) de Joan Brossa.
“Nadie” In Nadie. Poemas del avión (1954), de Rafael Santos Torroella.
Parábola (1959), de Murilo Mendes.
“Camí a dret fil” In Sonets de Caruixa In Poesia rasa (1970), de Joan Brossa.
399
“Variaciones en torno a la recta” In Los lados del cubo (1973), de Gabino-Alejandro
Carriedo.
“Vela” In Lembranças e deslembranças (1972-1980) (1988), de Gabino-Alejandro
Carriedo.
A MELO, João e Stella Cabral de
“El toro” In Habitado de sueño (1950), de Alfonso Pintó.
A MENDES, Murilo
Quaderna (1960), de João Cabral de Melo Neto.
Parte Noturnos In Y otros poemas (1973), de Jorge Guillén.
“A voz dos meus avós” In Lembranças e deslembranças (1972-1980) (1988), de
Gabino-Alejandro Carriedo.
A OTERO, Blas de
“Pueblo” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A PINTÓ, Alfonso
“Crianças de Tarragona” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
399
Esse poema não consta da primeira edição de 1949, impressa por Cabral.
277
A TORMO, Enric e Maria
“Barcelona” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A TORROELLA, Rafael Santos
“A Palo seco” In Quaderna (1960), de João Cabral de Melo Neto.
A TORROELLA, Rafael e Maite Santos
“Manola” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
A NOVAES, José Antonio
“Madrid” In Tempo espanhol (1959), de Murilo Mendes.
278
Traduções da obra de João Cabral de Melo Neto na Espanha
1.Rafael Santos Torroella: Fragmentos VII e VIII de “Psicologia da composição”;
“El ingeniero”; Dois primeiros fragmentos de “El perro sin plumas” (Antología de la
poesía brasileña. Edição de Renato de Mendonça. Madri: Ediciones Cultura
Hispánica, 1952)
2.Ángel Crespo:
2.1. Seis poemas de Serial (“El contra el sí”, com fragmentos de Miró”,
“Mondrian”, Juan Gris” e “Juan Dubuffet”, e El huevo de gallina”) (Revista de
Cultura Brasileña. n. 1, Madri, jun. 1962, p. 42-51)
2.2. “Poema(s) de la cabra” (Más barato. Negro de vida. Solo corteza), Estudios
para una bailadora andaluza” e “A palo seco”, de Quaderna; “Lluvias”, de Serial
(Antología de la poesía brasileña. Desde el Romanticismo a la Generación del
cuarenta y cinco. Barcelona: Seix Barral, 1973)
2.3. A la medida de la mano. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1994
3.Ángel Crespo e Pilar Gomez Bedate:
3.1. “Pernambuco en Málaga”, “Lluvias” e “Una sevillana en España”, de Serial;
“Estudios para una bailadora andaluza”, “A palo seco” e Sevilla”, de Quaderna;
“Medinaceli”, “Imagens en Castilla” e “Diálogo”, de Paisagens com figuras (Poemas
sobre España de João Cabral de Melo Neto. Separata de Cuadernos
Hispanoamericanos. Revista mensual de cultura hispánica. a. 59, n. 177, Madri,
set. 1964, p. 333-351);
3.2. “El toro de Lidia”, “El futbol brasileño evocado desde Europa”, El museo de
todo” e “Doble díptico”, de Museu de tudo (Revista de Cultura Brasileña. n. 41,
Madri, jun. 1976, p. 30).
4.Ángel Crespo e Gabino-Alejandro Carriedo:
4.1. Vida y muerte Severina, auto de navidad pernambucana. (Primer acto. n. 75,
Madri, jun. 1966, p. 52-59)
4.2. Poema(s) de la cabra” (Más barato. Negro de vida. Solo corteza), A palo
seco” de Quaderna; “El huevo de gallina”, de Serial (Ocho poetas brasileños.
Carbonera de Guadazón (Cuenca): El Toro del Barro, 1966)
279
5. Gabino-Alejandro Carriedo:
5.1. “Tejiendo la mañana”, de A educação pela pedra (Breve relación casi periódica
de poesía distinta contemporánea y no homologada. n. 1, Madri, 1968, p. 8)
5.2. Encuentro con un poeta”, de Paisagens com figuras. (Homenaje a Miguel
Hernández. Edição de Maria de Gracia Ifach e Manuel Garcia Garcia. Barcelona,
Plaza & Janes, 1975)
5.3.Dos parlamentos. (Poesia, revista ilustrada de información poética. n. 9, Madri,
1980, p. 67-79)
6.Pablo del Barco: La educación por la piedra. Madri, Visor, 1982.
7. Cintia Massip Bonet: L’Enginyer. Psicologia de la composición amb la faula
d’Anfió i Antioda. Barcelona: Edicions 62, 1994.
280
Traduções da obra de Murilo Mendes na Espanha
1. Alfonso Pintó: “Ventanas del caos”, de Poesia liberdade (Antología de poetas
brasileños de ahora. Barcelona: El Libro Inconsútil, s.d.)
2. Rafael Santos Torroella: Los dos lados”, de Poemas; “Anti-elegía”, “Mozarte
“Juego”, de Os quatro elementos; “Ana Luisa”, “Poema abierto”, “Pariente próximo”,
“Poema barroco” e “Pertubación”, de Mundo enigma; “Deseo”, “Tiempos sombríos”,
“Murilo niño” e “Memoria”, de Poesia liberdade. (Antología de la poesía brasileña.
Edição de Renato de Mendonça. Madri: Ediciones Cultura Hispánica, 1952)
3. Dámaso Alonso: Jandira” de O visionário; “El fuego” de Os quatro elementos;
“Poema espiritual”, “Las cuatro de la tarde” e “El amor y el cosmos”, de A poesia
em pânico; “Poema barroco”, de Mundo enigma; “Abstracción”, de Poesia
liberdade; El rito humano e “El muerto”, de Sonetos brancos; “Allá lejos”, de
Parábola; “Faena de Góngora” e Córdoba”, de Tempo espanhol (Revista de
Cultura Brasileña. a. 1, Madri, jun. 1962, p. 10-18)
4. Dámaso Alonso e Ángel Crespo: “Murilograma à filha de Miguel Torga”,
“Murilograma a Guido Cavalcanti”, “Murilograma a Carla Accardi”, “Grafito para
Capogrossi”, “Natal 1961”, “Morte de Borrominie Claudio Monteverdi” (Revista de
cultura brasileña. n. 12, Madri, março 1965, p 8-21)
5. Ángel Crespo: “El niño sin pasado”, “Mapa” e “Canto del novio”, de Poemas;
“Biografía de la melena” e “Novíssimo Prometeu”, de O visionário; Estrelasde Os
quatro elementos; “Caballos”, “El pastor pianista” eAnte un cadáver”, de As
metamorfoses; “Ideas rosas”, de Meditação de Agrigento”, de Siciliana; “San Juan
de la Cruz”, de Tempo espanhol. (Antología de la poesía brasileña. Desde el
Romanticismo a la Generación del cuarenta y cinco. Barcelona: Seix Barral, 1973)
281
Artistas plásticos espanhóis no acervo de Murilo Mendes
400
1. ALBERTI, Rafael:
Los ojos Picasso (II), 1966 (Gravura em metal/ papel 9/ 50; 64,1 x 49, 9 cm;
ass./dat.)
Dedicatória: Para Saudade y Murilo Mendes, grandes amigos R. Alberti 66”. No
retrato-relâmpago sobre Alberti, Murilo comenta a vertente plástica: “(...) Alberti
começou a vida como pintor. Escreveu mesmo um livro, A la Pintura, que gira todo
em volta dessa grande arte. Ultimamente dedicou-se em Roma à gravura, cnica
que tem estudado com fervor e minúcia, manifestando ofício seguro seguro e dom
de invenção na série de gravuras de chumbo ‘Los ojos de Picasso’. A interpretação
da poesia e da pintura no campo da obra albertiana é um fato consciente,
voluntário, pois muito ele programou sua ação: ...’pintar la Poesía/ com el pincel
de la Pintura’. (PCP, 1224)
2.MIRÓ, Joan:
Nebuleuse, 195 (Litografia/ papel 42/100; 49,6 x 65, 1 cm; ass./dat.)
S/ título, 1967 (Litografia/ papel;11,3 x 16,5 cm; ass./dat.). Dedicatória: “Joan Miró
Vous Souhaite une Bonne anné. 1967”
S/ título (Litografia, 42/100; 49,7 x 65 cm; ass./ n. dat.)
3.PICASSO, Pablo:
S/ título, 1934 (Água-forte/ papel; 44 x 33,5 cm; ass./ dat.)
S/ título, 1947 (Litografia/ papel 11/50; 65 x 50 cm; ass./ dat.)
400
Centro de Estudos Murilo Mendes – uiz de Fora.
282
Imagens
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