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nevoentas
237
, sugere a luminosidade e a beleza dessa aparição futura, próximas,
talvez, da fulgurante beleza da deusa e de seus “olhos de luz”
238
.
A esperança e, ao mesmo tempo, a certeza do aparecimento dessa terra
“pura”, “depois” do instante de névoa, revela a busca do eu-lírico por um mundo
perfeito e incorruptível que, instalado, faça esquecer o antes, o “mar/ De lágrimas
sem fim” no qual se vê mergulhado e no qual, para não submergir, é obrigado a se
inventar, ou a reinventar-se, como talvez dissesse a Cecília.
O mar do qual emergirá a terra renovada é, curiosamente, feito das muitas
lágrimas (“sem fim”) do próprio eu-lírico: “mar/ De lágrimas sem fim onde me
invento”. Estranha simbiose essa, que indica o quanto se confunde o sujeito poético
com o tempo que vivencia: o nevoeiro e o vazio que caracterizam esse tempo
simultaneamente provocam sua indistinção e as lágrimas do eu-lírico em razão
dela, enquanto o esperado futuro de pureza para a terra surge dessas lágrimas que
inundam o presente.
Inventar-se em meio às lágrimas, em meio aos dias e às noites, é, portanto,
caminhar, mesmo “sem caminhos”, em direção ao amanhã. Os nevoeiros, acredita-
se, costumam preceder “as revelações importantes”
239
. Inventar-se em meio à
névoa é, assim, ludibriá-la e preludiar o que virá.
Embora a passagem do tempo fique evidente no poema, pelo que até aqui se
considerou, é importante observar que o período de imprecisão parece arrastar-se
indefinidamente em virtude das várias imagens usadas para caracterizá-lo, do
número maior de versos dedicados a essa caracterização e do próprio ritmo desses
versos. Os cinco primeiros, usados para apresentar o nevoento presente, são
pontuados por vírgulas que tornam lenta a leitura, sugerindo a lentidão do próprio
tempo, o que a anáfora, já mencionada, ainda reforça. Os versos finais, ao
contrário, não utilizam vírgulas ao focalizarem o esperado futuro e seu ritmo ágil é
garantido também pelo enjambement.
237
Talvez seja interessante observar, ampliando a analogia com Vênus (Afrodite, para os gregos), que a deusa,
uma das mais importantes da Antiguidade e símbolo do amor, da beleza e do riso, nasce após trágicas
circunstâncias. Urano (o céu) e Gaia (a terra) haviam se unido para produzir os primeiros seres humanos, os
Titãs. Um dos seus filhos, porém, Cronos (o Tempo), castrou seu pai com uma foice e atirou seus genitais no
mar. Da espuma daí resultante é que nasceu Vênus. No canto direito da tela de Botticelli, O nascimento de
Vênus, uma ninfa avança para receber a deusa. É uma das quatro Horas, espíritos que personificavam as
estações do ano. Seu manto branco esvoaça ao vento, bordado de flores entrelaçadas, numa representação da
primavera, estação do renascimento e da renovação (CUMMING, op. cit.).
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HOMERO apud BRUNEL, op. cit., p. 23.
239
CHEVALIER & GHEERBRANT, op. cit., p. 635.