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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
DANIELA CAMPOS DE ABREU SERRA
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA NA GESTÃO DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DE RIBEIRÃO PRETO: O CONPPAC/RP
FRANCA
2006
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
DANIELA CAMPOS DE ABREU SERRA
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA NA GESTÃO DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DE RIBEIRÃO PRETO: O CONPPAC/RP
Dissertação apresentada à Faculdade de História,
Direito e Serviço Social da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do
título de Mestre em Serviço Social (Área de
Concentração: Serviço Social: trabalho e sociedade).
Orientadora: Profª Drª Claudia Maria Daher Cosac
FRANCA
2006
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Serra, Daniela Campos de Abreu
A participação da sociedade civil organizada na gestão do
patrimônio cultural de Ribeirão Preto: o CONPPAC/RP /
Daniela Campos de Abreu Serra. – Franca: UNESP, 2006
Dissertação – Mestrado – Serviço Social – Faculdade de
História, Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Patrimônio cultural – Gestão pública – Ribeirão Preto (SP).
2. Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município
de Ribeirão Preto (CONPPAC/RP).
CDD – 301.2981
DANIELA CAMPOS DE ABREU SERRA
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA NA GESTÃO DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DE RIBEIRÃO PRETO: O CONPPAC/RP
Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de
Mestre em Serviço Social. Área de Concentração: Serviço Social: trabalho e sociedade.
COMISSÃO JULGADORA
Presidente: ______________________________________________________
1º Examinador: ___________________________________________________
2º Examinador: ___________________________________________________
Franca, ______ de _________________________ de 2006
Ao Gabriel e às futuras gerações.
AGRADECIMENTOS
À Profª Drª Claudia Maria Daher Cosac, por partilhar seus conhecimentos,
pela paciência e pela força, que me permitiu continuar trilhando o caminho e vencer os
obstáculos.
Aos representantes de todas as ONGs, movimentos sociais, associações e
todos os cidadãos comprometidos com a gestão urbana democrática, em especial aos
componentes do CONPPAC/RP, que muito auxiliaram durante a pesquisa.
Aos funcionários do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto, não só
pela amizade e carinho no atendimento a tantas solicitações, mas também pelo trabalho pela
preservação do patrimônio cultural local.
À ONG Vivacidade e todos os seus membros, pois, se ainda temos um longo
caminho a percorrer na construção de sociedades sustentáveis, saber que vamos de mãos
dadas torna a caminhada mais enriquecedora.
A todos da Pronto Fatto Estúdio de Comunicações, pela retaguarda durante
minhas ausências.
À minha família, agradeço em particular, pela compreensão e
companheirismo, que formam a base necessária para acreditar e lutar por um mundo melhor.
Tenho muito orgulho de vocês.
À Elisabeth Brayn, que, mesmo com tantos problemas, não me recusou ajuda
e contribuiu para o enriquecimento deste trabalho.
Aos meus amigos queridos, muito obrigada por fazerem parte da minha vida
e pelo apoio, incentivo e paciência, até nas horas de desânimo.
Meu agradecimento especial a tantos seres especiais que cruzaram meu
caminho, a quem não seria possível agradecer individualmente pela colaboração, direta ou
indireta, sem cometer injustiça pelo eventual esquecimento de algum nome, mas sabendo que
cada uma dessas pessoas sabe sua importância.
A transição para a idade solar está realmente a caminho, agora, não
apenas em termos de novas tecnologias, mas, num sentido mais
amplo, como transformação profunda de toda a nossa sociedade e
cultura. A mudança do paradigma mecanicista para o ecológico não
é algo que acontecerá no futuro. Está acontecendo neste preciso
momento em nossas ciências, em nossas atitudes e valores
individuais e coletivos e em nossos modelos de organização social. O
novo paradigma é mais bem entendido por indivíduos e pequenas
comunidades do que por grandes instituições sociais e acadêmicas,
que tendem freqüentemente a manter-se presas ao pensamento
cartesiano. Para facilitar a transformação cultural, será necessário,
portanto, reestruturar nosso sistema de informação e educação, para
que os novos conhecimentos possam ser apresentados e discutidos de
forma apropriada.
(Fritjof Capra, O ponto de mutação, 1997, p. 399)
RESUMO
No século XXI, o desenvolvimento tecnológico alcançado não foi capaz de manter o
equilíbrio ecológico do planeta, comprometendo a sobrevivência das futuras gerações,
gerando debates sobre a necessidade de uma nova visão de mundo. O crescimento econômico
passou a ser questionado, enquanto o desenvolvimento social e a preservação do meio
ambiente passaram a integrar os princípios racionais que informam a defesa dos direitos
humanos e a cooperação entre os povos, originando o conceito de desenvolvimento
sustentável. Ao conhecer o passado, torna-se possível compreender o presente e estabelecer
estratégias de ação capazes de modificar o futuro. Nesta percepção de mundo, a preservação
da memória é vista como instrumento de formação do cidadão, sujeito histórico de direitos e
deveres, capaz de perceber os limites e as possibilidades da vida em sociedade. Memória,
cidadania e educação constituem o tripé da preservação do patrimônio cultural. A
predominância da população mundial nas cidades cria possibilidades de transformar o cenário
urbano em espaço de educação, de valorização da memória e de formação de cidadãos, na
medida em que, utilizando o desenvolvimento tecnológico na adequação do patrimônio ao uso
contemporâneo, os atores políticos podem ser capazes de agir em direção à sustentabilidade.
A Constituição Federal de 1988 instituiu o regime democrático de direito e seu exercício pelo
povo, de forma indireta e direta. Permitiu a participação da sociedade na gestão pública,
garantiu a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural para as futuras gerações.
No entanto, o histórico constitucional brasileiro revelou como é complexo o caminho
existente entre a norma abstrata e a realidade concreta. Entre as possibilidades de exercício da
democracia direta, encontram-se as instâncias denominadas Conselhos Municipais. Quanto à
preservação do patrimônio cultural local, a Constituição Federal definiu a competência do
Município na sua gestão, garantindo a colaboração da comunidade no processo. Em Ribeirão
Preto, a promulgação da Lei nº 7521/1996 trouxe as disposições constitucionais para o
ordenamento jurídico municipal, ao criar o Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural
de Ribeirão Preto (CONPPAC/RP). O estudo da estrutura e das formas de ação do Conselho
permite compreender a participação da sociedade civil na gestão do patrimônio histórico e
cultural da cidade de Ribeirão Preto.
Palavras-chave: patrimônio cultural; gestão pública; conselho municipal; CONPPAC/RP.
ABSTRACT
Technological development was unable to keep the ecological balance in the planet in the 21st
century, jeopardizing the survival of future generations, producing debates about the need for
a new view of the world. Economical growth has been questioned; meanwhile, social
development and environment preservation became part of rational principles which inform
the defense of human rights and the cooperation amongst people all over the world,
originating the concept of sustainable development. Knowing the past makes it possible to
understand the present and settle action strategies that can modify the future. In this
perception of the world, the preservation of memory is seen as a tool of character formation
and historic subject of rights and duties capable of noticing the limits and possibilities of life
in society. Memory, citizenship and education form the trivet for the cultural heritage
preservation. The predominance of the world population in cities makes it possible to change
the urban scenery into a space of education, heritage awareness and citizenship; once using
technological development in the suitability of the patrimony to the present use, the political
actors must be able to proceed towards the sustainability. The Brazilian Federal Constitution
of 1998 established the democratic regimen of law and its practice by people, both in direct
and indirect form. It allowed the participation of society in public management and assured
the preservation of environment and cultural heritage for future generations. Nevertheless, the
Brazilian constitutional history showed the complexity of the path between abstract rule and
factual reality. Amongst the possibilities for the practice of direct democracy, there are the
instances named County Councils - Conselhos Municipais. Regarding the local cultural
heritage, the Federal Constitution defined its management as a municipality duty, assuring the
community cooperation in the process. In Ribeirão Preto, the promulgation of Act nr.
7521/1996 brought the constitutional provision for the county legal ordinance when settled
the Council for Preservation of Cultural Heritage of Ribeirão Preto - Conselho de Preservação
do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto (CONPPAC/RP). The study of the structures and
forms of action of the Council allows the understanding of the participation of civil society in
the management of the historic and cultural heritage in the city of Ribeirão Preto.
Key word – cultural heritage; public management; county council; CONPPAC/RP.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1. Área de abrangência do Aqüífero Guarani...................................................57
Ilustração 2. Carregamento de café para transporte através de linhas férreas..................64
Ilustração 3. Vista da Estação da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro..............................65
Ilustração 4. Theatro Carlos Gomes..................................................................................66
Ilustração 5. Theatro Carlos Gomes..................................................................................67
Ilustração 6. Interior do Theatro Carlos Gomes................................................................67
Ilustração 7. Antigo Mercado Municipal..........................................................................68
Ilustração 8. Obras de construção da fábrica da Companhia Antarctica Paulista.............69
Ilustração 9. Inauguração da fábrica da Companhia Cervejaria Paulista..........................70
Ilustração 10. Prédio da Escola Prática de Agricultura “Getúlio Vargas”..........................71
Ilustração 11. Museus Histórico e do Café.........................................................................71
Ilustração 12. Praça XV de Novembro e Quarteirão Paulista.............................................72
Ilustração 13. Palacete Innechi e prédio da antiga sede da Sociedade Recreativa .............74
Ilustração 14. Foto aérea de Ribeirão Preto........................................................................78
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Representatividade no CONPPAC/RP.................................................................162
Tabela 2. Relação de bens tombados definitivamente .........................................................166
Tabela 3. Relação de bens sob regime de proteção especial (tombamento provisório).......166
Tabela 4. Levantamento do número de presentes nas assembléias do CONPPAC/RP,
em ordem crescente de comparecimento..............................................................192
Tabela 5. Assembléias observadas presencialmente durante o processo de investigação...192
Tabela 6. Os sujeitos da investigação...................................................................................193
Tabela 7. Conselheiros do CONPPAC/RP: idade e estado civil..........................................196
Tabela 8. Conselheiros do CONPPAC/RP: formação escolar.............................................197
Tabela 9. Conselheiros do CONPPAC/RP: tempo de residência em Ribeirão Preto e
tempo de participação no Conselho......................................................................199
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Profissão dos Conselheiros................................................................................194
Figura 2. Idade dos Conselheiros......................................................................................196
Figura 3. Estado civil dos Conselheiros............................................................................196
Figura 4. Escolaridade dos Conselheiros ..........................................................................198
Figura 5. Pós-Graduação dos Conselheiros ......................................................................198
Figura 6. Tempo de residência dos Conselheiros em Ribeirão Preto................................199
Figura 7. Tempo de participação dos Conselheiros no CONPPAC/RP............................200
LISTA DE QUADROS
Quadro 1. Município de Ribeirão Preto: Evolução da População..................................77
LISTA DE SIGLAS
ACIRP Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto
AERP Associação de Ensino de Ribeirão Preto
APH-RP Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto
ARL Academia Ribeirãopretana de Letras
CF Constituição Federal
CIANE Companhia Nacional de Estamparia
COC Colégio Oswaldo Cruz
COMDEMA Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente
CONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do Estado de São Paulo
CONPPAC/RP Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão
Preto
CTA Corpo Técnico de Apoio do CONPPAC/RP
DIP Departamento de Imprensa e Propaganda
DOM Diário Oficial do Município
FHDSS Faculdade de História, Direito e Serviço Social
IAB Instituto dos Arquitetos do Brasil
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICCROM Centro Internacional de Estudos da Preservação e Conservação do
Patrimônio Cultural
ICOM Conselho Internacional de Museus
ICOMOS Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios Históricos
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IRFM Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo
LOM Lei Orgânica do Município
MARP Museu de Arte de Ribeirão Preto
MP Ministério Público
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OEA Organização dos Estados Americanos
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PNPI Programa Nacional de Patrimônio Imaterial
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PUC Pontifícia Universidade Católica
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
TSE Tribunal Superior Eleitoral
UGT União Geral dos Trabalhadores de Ribeirão Preto
UNAERP Universidade de Ribeirão Preto
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................15
CAPÍTULO 1 – DO URBANISMO À CIDADANIA SEM FRONTEIRAS..........................21
1.1. Memória, Cidadania e Educação.................................................................................22
1.2 Desenvolvimento Tecnológico e Urbanismo ...............................................................40
1.3 Ribeirão Preto: uma História para Contar ....................................................................56
CAPÍTULO 2 – ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA DO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO NA GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL............................................80
2.1 Breve Histórico Constitucional Brasileiro e o Regime Democrático de Direito..........81
2.2 A Participação da Sociedade Civil na Gestão Urbana................................................105
2.3 Patrimônio Cultural: Definições Legais e Percepções Sociais...................................115
2.4 Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto
(CONPPAC/RP): Assertivas Legais e Administração .......................................................125
CAPÍTULO 3 – MERGULHANDO NO UNIVERSO DO CONPPAC/RP..........................139
3.1 Metodologia da Pesquisa............................................................................................140
3.2 O Processo de Coleta de Dados..................................................................................144
3.3 Análise e Interpretação dos Dados .............................................................................191
3.3.1 O perfil dos Conselheiros do CONPPAC/RP......................................................193
3.3.2 A fala dos sujeitos selecionados para a investigação ............................................201
CONCLUSÃO........................................................................................................................211
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................221
APÊNDICES..........................................................................................................................228
APÊNDICE A - MODELO DO FORMULÁRIO SEMI-ESTRUTURADO.....................229
APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA................................................................230
ANEXOS................................................................................................................................231
ANEXO A – LEI Nº 7521/1996.........................................................................................232
ANEXO B – LEI COMPLEMENTAR Nº 1243/2001.......................................................239
ANEXO C – LEI Nº 9495/2002.........................................................................................240
ANEXO D – LEI COMPLEMENTAR Nº 2006/2006.......................................................241
ANEXO E – PORTARIA Nº 2067/2001............................................................................242
ANEXO F – PORTARIA Nº 237/2004..............................................................................244
ANEXO G – PORTARIA Nº 1163/2004...........................................................................246
ANEXO H – PORTARIA Nº 1341/2005...........................................................................248
ANEXO I – RESOLUÇÕES DO CONPPAC/RP..............................................................250
ANEXO J – PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR Nº 226/2006..................................254
ANEXO L – PARECER Nº 917/2006................................................................................256
ANEXO M – PARECER S/Nº, DE 14/03/2006.................................................................257
15
INTRODUÇÃO
16
A graduação no curso de Direito, da Faculdade de História, Direito e
Serviço Social da UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
campus de Franca, foi a responsável pelos primeiros conhecimentos adquiridos na área
jurídica. Em 1999, o início do exercício profissional na advocacia revelou as primeiras
inquietações sobre a relação entre a norma abstrata e a realidade concreta.
Em fevereiro de 2000, atendendo a convite de amigos da adolescência, a
aluna pesquisadora aderiu à associação ambientalista Vivacidade, formada, em sua maioria,
por pessoas da área da Arquitetura e Urbanismo, mas, interdisciplinar, com profissionais das
áreas de História, Direito e Economia. A participação em uma ONG revelou-se um processo
contínuo de percepção sobre o papel do indivíduo na construção social.
A sociedade do terceiro milênio precisa enfrentar a crise sócio-ambiental e
garantir a sobrevivência das futuras gerações. A organização da sociedade, com base em suas
novas relações com o poder público, é necessária para a elaboração de estratégias capazes de
construir o ambiente físico e intelectual para estas novas gerações.
A cultura vem sendo apontada como um importante instrumento de
mudança social e, sob esta perspectiva, a preservação do patrimônio cultural passou a integrar
o cotidiano da pesquisadora desde fevereiro de 2000, em virtude das atividades
desempenhadas na ONG Vivacidade. A participação na ONG e os constantes debates com
profissionais da área de Arquitetura e Urbanismo despertaram o interesse pelo tema “cidade”.
Na época, já mais familiarizada com os meandros do universo jurídico, a então advogada
militante interessou-se pela pesquisa da legislação existente sobre o assunto.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira fonte a ser consultada, por
sua própria natureza jurídica de lei máxima do país. Até então, a prática concentrava-se nas
normas constitucionais relacionadas ao ramo do Direito Empresarial. O ordenamento jurídico
brasileiro, eivado de complexidade, precisa ser compreendido como um sistema racional e
orgânico, composto por normas interligadas, distribuídas entre os três níveis de governo
(federal, estadual e municipal), em que não se pode ignorar a hierarquia das leis.
A Carta Magna, ou “Constituição Cidadã”, como passou a ser conhecida,
representa o pacto político do povo brasileiro e em seu texto estão contidos todos os
princípios e garantias fundamentais da sociedade democrática. Quanto mais aprofundava o
estudo da Constituição de 1988, mais clara se tornava a percepção da grandeza do instrumento
jurídico mais importante do país; no entanto, a gestão do meio ambiente urbano foi se
revelando muito mais desafiadora do que a simples garantia linearmente prevista na
legislação.
17
As angústias causadas por esta percepção conduziram à busca pelo
conhecimento científico. A prática clama pela teoria, num movimento cíclico, em que a teoria
também requer a prática. A representação da ONG conduziu a diversas oportunidades de
observação e participação em espaços democráticos, muitos deles envolvendo a gestão
urbana. As primeiras oportunidades ocorreram em audiências públicas promovidas pelo
Ministério Público do Estado de São Paulo, quando se verificou a existência de dois
movimentos distintos, mas interligados: um, em defesa do patrimônio cultural e outro, o
ambientalista. Esta constatação gerou vários questionamentos, pois, até então, a consulta à
legislação constitucional havia revelado que a proteção do patrimônio cultural integra a defesa
do meio ambiente, principalmente o urbano, numa abordagem que não alcança a complexa
riqueza da realidade concreta.
Com o passar do tempo, outras oportunidades foram surgindo, como as
reuniões do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pardo e dos Conselhos Municipais, em
especial os de Patrimônio Cultural, de Urbanismo e de Meio Ambiente. Em 2003, a
participação na I Conferência Nacional de Meio Ambiente foi determinante para a
compreensão da necessidade de aprofundamento teórico das questões vividas na prática.
As motivações que levaram à adesão à ONG Vivacidade foram a crença na
ineficiência do Estado e a necessidade de intervenção e responsabilização da sociedade pelo
enfrentamento da questão social. “Já que o Estado não faz nada, eu vou fazer”. A frase ecoava
no imaginário como um grito de desespero, mas, ao longo do processo de participação nas
esferas democráticas garantidas pela Constituição de 1988, esta visão foi se modificando.
O raciocínio quanto à participação da sociedade, em substituição à atuação
do Estado, revelou-se um grande equívoco no decorrer das disciplinas cursadas durante o
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP. O conteúdo programático
proporcionou o conhecimento teórico necessário à compreensão do papel do Estado, enquanto
agente responsável e escolhido para administrar o país e garantir a eficácia dos direitos
constitucionais para o povo que representa. Por outro lado, no exercício do regime
democrático direto, garantido pelo artigo 1º da Constituição Federal, a sociedade civil não
deve assumir as responsabilidades estatais, mas intervir de forma efetiva no cotidiano da
gestão pública, exigindo transparência e colaborando para a eficácia desta gestão.
À medida que foram se ampliando o conhecimento da legislação e a
participação em espaços democráticos envolvendo a preservação do patrimônio cultural e do
meio ambiente, cresceu o anseio pelo conhecimento científico e o reconhecimento da
importância da cultura, como catalisadora de mudanças sociais.
18
Este conjunto de fatores despertou o interesse pelo tema desta investigação:
a participação da sociedade civil organizada na gestão do patrimônio cultural da cidade de
Ribeirão Preto. Os levantamentos preliminares forneceram subsídios para a delimitação do
objeto deste estudo, interessando à pesquisa a defesa do patrimônio histórico e cultural local,
promovida por meio do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de
Ribeirão Preto - CONPPAC/RP. A permanência nas atividades da ONG Vivacidade, durante
o processo desta investigação, e o envolvimento da pesquisadora com o tema, longe de
representar um viés, ajudou na visão crítica do objeto de estudo.
O objetivo desta Dissertação é conhecer a estrutura e as formas de ação do
CONPPAC/RP, para compreender sua relação com a sociedade civil no exercício da
cidadania e na veiculação responsável do desenvolvimento social, partindo de alguns passos:
a análise do arcabouço jurídico que fundamenta o Conselho na questão do patrimônio
cultural; a reflexão sobre a sua participação ativa na educação da sociedade civil para
preservação deste patrimônio; e a expansão do conhecimento sobre a representação do
Conselho perante a sociedade civil organizada.
A capacidade do ser humano de raciocinar criticamente sobre o mundo à sua
volta é uma das grandes responsáveis pelo alto grau de desenvolvimento tecnológico
alcançado até este início do século XXI. Muitos foram os questionamentos que conduziram o
processo desta investigação: o Conselho Municipal contempla efetivamente o desempenho de
suas atribuições previstas pelo ordenamento jurídico? Qual sua representatividade perante a
sociedade civil? Os procedimentos jurídicos e sociais do Conselho, por sua vez, atendem às
expectativas e necessidades do patrimônio histórico e cultural da cidade de Ribeirão Preto?
Até que ponto as normas jurídicas que definem as instituições componentes do Conselho e
seus respectivos representantes respeitam o princípio racional da seleção de pessoas, por
mérito e conhecimento, sobre as questões do patrimônio histórico e cultural? Os
representantes desempenham seus papéis de acordo com a real motivação do exercício da
cidadania, com relação à sociedade civil? Vêem com clareza os fatores objetivos e subjetivos
que perpassam as questões históricas e culturais inerentes à defesa do patrimônio?
O sistema normativo prevê, de forma generalizada e pontual, os instrumentos
legais da defesa do patrimônio cultural nos três níveis de governo. No entanto, o artigo 30,
inciso IX, da Constituição Federal, inovou ao delegar só aos Municípios a competência para a
gestão do patrimônio cultural local. Tendo em vista as exigências lineares, legalmente
prescritas nos instrumentos jurídicos, pressupõe-se que a função do Conselho de Preservação
do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto (CONPPAC/RP) representa uma limitação à
19
educação formal e política da sociedade civil, tanto quanto constrange a sua participação nas
questões da defesa do patrimônio histórico e cultural da cidade.
O recorte temporal da investigação ficou estabelecido a partir de 1988, ano
da promulgação da Constituição Federal que delega aos Municípios a competência para a
gestão do patrimônio histórico e cultural local, até o mês de agosto de 2006, com o término da
pesquisa.
O Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de História,
Direito e Serviço Social da UNESP, Campus de Franca, através das disciplinas e da produção
científica possibilitou ampla consulta bibliográfica, necessária ao desvelar do objeto deste
estudo. Desde o início, a pretensão foi lançar um “olhar social” ao ordenamento jurídico, pela
angústia cotidiana em torno da ineficácia na implantação dos direitos sociais conquistados ao
longo de séculos, no Brasil.
A cidadania evolui num contexto conflituoso, há pelo menos três séculos, na
Europa. A conquista e ampliação de direitos civis, políticos e sociais foi gradativa e fruto de
um processo eivado de contradições, a partir da lógica capitalista. Esta compreensão só foi
possível pela pesquisa científica em Serviço Social.
Os assistentes sociais ressaltam a necessidade de compreender a profissão
no contexto do capitalismo e da divisão social do trabalho, com o desafio de não reproduzir o
sistema de dominação na prática profissional. O Estado serve aos interesses do mercado e
ambos se apropriam da prática da assistência social como uma estratégia de controle.
O Serviço Social surgiu no Brasil na década de 1930, referendado pelo
modelo europeu e promovido por setores da burguesia com o respaldo da Igreja Católica, o
que lhe conferiu um caráter assistencialista e de reprodução do próprio sistema. Além disto, o
país foi marcado por períodos oscilantes entre democracia e ditadura, dificultando a
organização da sociedade em busca da conquista de direitos. Existia no país um forte
movimento de reconceituação e discussão sobre a identidade profissional do assistente social.
A partir da consolidação do regime democrático, na década de 1980, os Programas de Pós-
Graduação em Serviço Social do Brasil se destacaram na América Latina.
A participação interdisciplinar de profissionais liberais na gestão urbana,
entre eles o assistente social, é muito importante e enriquecedora. Na cidade, manifestam-se
todas as facetas da questão social, mas, além disto, o espaço construído confirma o processo
de controle social. O Serviço Social defronta-se hoje com um importante desafio: dialogar
com arquitetos e urbanistas, engenheiros, historiadores, juristas, economistas e
administradores, na busca de estratégias conjuntas para a construção de cidades sustentáveis,
20
utilizando a memória e a educação para a formação de cidadãos capazes de se organizar em
sociedades igualmente sustentáveis. A sociedade brasileira precisa transformar coadjuvantes
em protagonistas e este é um dos principais desafios da ciência contemporânea.
No capítulo 1 do presente trabalho, “Do Urbanismo à Cidadania sem
Fronteiras”, foram abordados os variados conceitos de memória, cidadania e educação, e as
relações estabelecidas entre elas. Estes conceitos encontram-se contextualizados a partir do
desenvolvimento tecnológico e da concentração populacional nas cidades. Também faz parte
deste capítulo uma síntese da história do Município de Ribeirão Preto, na tentativa de situar as
referências temporais para delimitação do patrimônio cultural local.
No capítulo 2, através da “Análise Sócio-histórica do Ordenamento Jurídico
Brasileiro na Gestão do Patrimônio Cultural”, foi inserido um levantamento da história
constitucional brasileira e do regime democrático de direito, com reflexões sobre a
participação da sociedade civil na gestão urbana. Dentro deste enfoque, abordaram-se as
definições legais e as percepções sociais do patrimônio cultural, bem como a legislação sobre
a gestão do CONPPAC/RP.
O capítulo 3, “Mergulhando no Universo do CONPPAC/RP”, descreveu a
metodologia da pesquisa, o processo de coleta de dados e a análise e interpretação dos dados,
revelando todo o instrumental que conduziu o processo de investigação.
Para finalizar, todo este processo de conhecimento e compreensão do objeto
de estudo acabou por revelar a complexidade das relações estabelecidas em torno da
preservação do patrimônio histórico e cultural, demonstrando que o estudo desenvolvido nesta
Dissertação é só o começo de uma longa caminhada.
21
CAPÍTULO 1 – DO URBANISMO À CIDADANIA SEM FRONTEIRAS
22
Que beleza é saber seu nome.
Sua origem, seu passado e seu futuro.
(TIM MAIA)
1.1. Memória, Cidadania e Educação
A gestão do patrimônio cultural perpassa as questões referentes à memória,
educação e cidadania. Definir quais bens constituem o patrimônio cultural de uma
comunidade implica refletir sobre a memória desta sociedade, os acontecimentos históricos de
determinado período e sua expressão cultural nas mais diversas formas: artística,
arquitetônica, paisagística, arqueológica, museológica, documental e até mesmo imaterial.
Entender o que é patrimônio cultural, questionar porquê, para quem e para
quê preservá-lo são pontos centrais ligados diretamente a uma outra questão, a gestão deste
patrimônio. As reflexões e respostas a estes questionamentos podem demonstrar os valores e
significados coletivamente reconhecidos e as relações estabelecidas com as dimensões
econômica, política, social, ambiental e cultural.
O reconhecimento de uma identidade cultural implica a análise das razões
de preservação da memória e da compreensão de sua importância na sociedade. Qual o
interesse em fatos que aconteceram há cem anos? “Faz tanto tempo”, “nem existia aparelho de
televisão”, “eles eram tão atrasados” ou “não sei, sou jovem”, são respostas recorrentes.
Todavia, a importância da memória vem sendo cada vez mais discutida.
Desde os tempos primitivos, o ser humano já experimentava a relação conflituosa entre as
novas descobertas e a preservação de objetos e pessoas do passado. Ao longo da História, os
valores e significados de cada período foram sendo “impressos” nas construções, obras de
arte, músicas, livros, pesquisas científicas e tantas outras formas de expressão da atividade
humana, as “novas impressões” muitas vezes apagando as “antigas impressões”.
O próprio conceito de memória foi se modificando ao longo do tempo e há
que se considerar as diferenças entre sociedades de memória essencialmente oral e sociedades
de memória essencialmente escrita. Jacques Le Goff (2003) explica a evolução do conceito de
memória em cinco períodos:
1) a memória étnica nas sociedades sem escrita, ditas “selvagens”; 2) o
desenvolvimento da memória, da oralidade à escrita, da Pré-História à Antigüidade;
3) a memória medieval, em equilíbrio entre o oral e o escrito; 4) os progressos da
memória escrita, do século XVI aos nossos dias; 5) os desenvolvimentos atuais da
memória. (p. 423).
23
Quanto ao primeiro período, o autor afirma: “Assim, enquanto a reprodução
menmônica palavra por palavra estaria ligada à escrita, as sociedades sem escrita, excetuando
certas práticas de memorização ne varietur, das quais a principal é o canto, atribuem à
memória mais liberdade e mais possibilidades criativas.” (p. 426).
No segundo período, marcado pela transição da oralidade à escrita, houve
profunda transformação da memória coletiva, que passou a se expressar de duas formas
básicas: a comemoração, através do monumento, que surgia para registrar um acontecimento
memorável, e o documento, enquanto suporte especialmente destinado à escrita,
possibilitando o armazenamento de informações capazes de serem transmitidas através do
tempo e do espaço.
Segundo Leroi-Gourhan, citado por Le Goff (2003, p. 429), “a evolução da
memória, ligada ao aparecimento e à difusão da escrita, depende essencialmente da evolução
social e, especialmente, do desenvolvimento urbano”. E continua:
A memória coletiva, no início da escrita, não deve romper o seu movimento
tradicional a não ser pelo interesse que tem em se fixar de modo excepcional num
sistema social nascente. Não é, pois, pura coincidência o fato de a escrita não anotar
o que não se fabrica nem se vive cotidianamente, mas sim o que constitui a ossatura
duma sociedade urbanizada, para a qual o nó do sistema vegetativo está numa
economia de circulação entre produtos, celestes e humanos, e dirigentes. A
inovação diz respeito ao vértice do sistema e engloba seletivamente os atos
financeiros e religiosos, as dedicatórias, as genealogias, o calendário, tudo o que
nas novas estruturas das cidades não é fixável na memória de modo completo, nem
em cadeias de gestos, nem em produtos. (1964-1965, pp. 67-68) [...] O triplo
problema do tempo, do espaço e do homem constitui a matéria memorável. (idem).
Na Antigüidade, o poder monárquico passou a usar a escrita e registrar sua
memória como forma de dominação, narrando glórias e criando instituições como arquivos,
bibliotecas e museus. “Para Aristóteles – que distingue a memória propriamente dita, a
mnemê, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, a mamnesi, faculdade de
evocar voluntariamente esse passado –, a memória, dessacralizada, laicizada, está agora
incluída no tempo.” (LE GOFF, 2003, p. 435).
Os gregos criaram novas técnicas de memória, a mnemotecnia, “fixando a
distinção entre lugares e imagens, precisando o caráter ativo dessas imagens no processo de
rememoração (imagines agentes), formalizando a divisão entre memória das coisas (memoria
rerum) e memória das palavras (memoria verborum).” (LE GOFF, 2003, p. 437). Colocaram a
memória no campo da retórica, tendência esta que permaneceria por muitos séculos, tendo
sido bastante perceptível no período medieval.
24
Na Idade Média, o conceito de memória passou por grandes transformações.
A difusão do cristianismo, enquanto religião e ideologia dominante, fortaleceu-se com o
monopólio do conhecimento intelectual, mantido por séculos pela Igreja Católica. Tanto o
judaísmo quanto o cristianismo podem ser chamados de “religiões da recordação”. O Antigo
Testamento narra várias passagens em que a memória e a tradição preservam a identidade do
povo judeu. Também são muitos os textos bíblicos que se referem à memória e sua
importância na vida do cristão. A memória da trajetória de Jesus foi transmitida pelos
apóstolos e seus sucessores de geração a geração. Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino
incentivaram a discussão da memória na teologia e seus tratados influenciam milhares de
estudiosos durante séculos.
No período medieval, a Igreja foi a responsável pelos registros históricos
(libri memoriales), os sacerdotes eram responsáveis pelo julgamento de quem deveria ser
lembrado ou não. Na maioria das vezes, esses registros referiam-se a pessoas mortas, mas
também podiam constar pessoas vivas, datas comemorativas ou, ainda, a excomunhão
(damnatio memoriae), cujo significado era justamente banir a pessoa da memória dos cristãos.
O poder da Igreja Católica, no período medieval, exacerbou o caráter
patriarcal de valorização exclusiva da memória da elite dominante, em detrimento de outros
segmentos da sociedade, característica típica daquele período, verificada na política, na
teologia, na arquitetura e nas artes.
A partir do século XII, ainda que os estudantes fossem treinados a decorar
os textos e lições (exercício da mnemotécnica) e o domínio literário convivesse entre o oral e
o escrito, intensificou-se o recurso da escrita como suporte da memória e o aumento da
constituição de cidades fomentou o crescimento dos arquivos urbanos.
O progresso da memória escrita está diretamente relacionado à revolução
causada pelo surgimento da imprensa. Apesar do lento crescimento, desde sua invenção na
China, no século IX, em que era utilizada a técnica de pranchas gravadas em relevo, até o
século XIX, quando foram introduzidos processos mecânicos desenvolvidos no Ocidente,
com a utilização dos caracteres móveis (tipografia), a imprensa foi a grande responsável pelo
aumento constante do registro da memória, sobretudo pela impressão de tratados científicos e
técnicos, que aceleraram e alargaram a memorização do saber.
A mudança no conceito de memória pode ser percebida em cada período
histórico, influenciada pelas relações sociais, sendo revolucionada primeiro pela escrita e
depois pela imprensa, mas o culto aos mortos foi uma das formas mais primitivas de sua
preservação. A morte e o medo do esquecimento, seja do Imperador, dos heróis de guerra ou
25
de qualquer tipo de personalidade histórica, ou ainda em âmbito mais privado e individual,
relativamente a familiares e entes queridos, coloca o tema da memória dialeticamente entre
morte e esquecimento.
Com o declínio do poder político da Igreja, entre os finais dos séculos XVII
e XVIII, reduziu-se a comemoração relacionada aos mortos, ao mesmo tempo em que os
vivos puderam dispor de uma memória técnica, científica e intelectual cada vez mais rica.
Após a Revolução Francesa, os mortos voltaram a ser cultuados, porém de forma mais
distanciada da figura da Igreja e da prática religiosa, evidenciando a intrínseca relação
estabelecida entre memória e morte.
Paralelamente, outras formas de preservação da memória ganharam
importância nesse período. A propósito, a própria Constituição francesa de 1791 previa
expressamente a realização de festas nacionais para recordar a Revolução, como instrumentos
de manutenção do “sentimento revolucionário”.
Além das festas nacionais, a preservação da memória passou a valer-se de
novos instrumentos, como moedas, medalhas e selos postais. No século XVIII, a memória
adquiriu maior amplitude, sendo criados arquivos oficiais, museus e bibliotecas, consultados e
visitados por um crescente número de pessoas, resultando em maior difusão do conhecimento.
Entretanto, embora seja incontestável esta popularização dos registros, o acesso à memória
assim preservada ainda era restrito à minoria da sociedade.
No final do século XIX e início do século XX, dois fenômenos passaram a
ser observados. O primeiro refere-se à busca de superação dos limites da memória,
associando-a ao anonimato. Após a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, vários países
ergueram túmulos ao “Soldado Desconhecido”, em busca da coesão da nação em torno da
memória comum, mostrando o início de um sentimento coletivo, não personificado em heróis
ou representantes da elite, mas sim de toda uma sociedade, sensibilizada pelas perdas sofridas
no processo histórico e que deviam ser relembradas pelas gerações presentes e futuras, com o
claro objetivo de aprender com os atos do passado. O segundo, e mais importante, foi a
invenção da fotografia, outra manifestação revolucionária da memória, tal como a imprensa,
que tornou possível tanto a multiplicação quanto a democratização da memória, com detalhes
visuais até então inexistentes.
Desde meados do século XX, a utilização cotidiana cada vez maior da
imprensa e da fotografia modificou a memória, ao possibilitar o registro cada vez mais fiel e
duradouro dos acontecimentos, mas a revolução tecnológica geraria mudanças ainda maiores.
A invenção do computador e da memória eletrônica permitiu ao ser humano dispor de uma
26
quantidade de informações nunca antes imaginada, impossível de ser armazenada pela
memória humana, por óbvias limitações fisiológicas. Estas mudanças também influenciaram
as Ciências Sociais, a História, a Psicologia, a Antropologia e outros ramos do conhecimento
científico, interessados na investigação acerca da memória.
Pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos
mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos textos do que nas
palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão do olhar
histórico. Conversão partilhada pelo grande público, obcecado pelo medo de uma
perda de memória, de uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente na
moda retrô, explorada sem vergonha pelos mercadores de memória desde que a
memória se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que se vende bem.
(LE GOFF, 2003, p 466).
Ao objeto do presente estudo não interessa o conceito de memória
psicológica, entendida como um processo individual e, sim, o que se pode chamar de memória
social ou coletiva. Este parece ser o ponto central da discussão sobre o que é patrimônio
cultural, já que, para sua constituição, o mesmo deve ser significativo para algum segmento da
sociedade, ainda que minoritário, justificando-se, assim, sua conservação.
Falar de representações, significados, valores e da possibilidade de mantê-
los através do tempo, pela preservação do patrimônio cultural, conduz a reflexões e dilemas
enfrentados há séculos. Será que esta visão preservacionista contraria o ciclo natural de
nascimento, vida e morte? Interessa conservar elementos do passado para as futuras gerações?
Esta relação dialética entre o novo e o velho gera conflitos, mas, também,
expõe a capacidade que uma determinada sociedade tem de manter os traços significativos de
sua memória coletiva para a posteridade.
O ideal do eterno, a ânsia de superação do tempo, estão diretamente
relacionados à preservação da memória coletiva. Desde as múmias do antigo Egito, passando
pelos elixires dos alquimistas, até a mais moderna biotecnologia, a eternidade permeou os
anseios do homem e ficou marcada em cada período da História, segundo a visão de mundo
dominante naquele momento. No século XXI, identifica-se esta memória coletiva como um
fenômeno social em várias formas de expressão, que se convencionou chamar de patrimônio
cultural.
A relação conflitante entre o novo e o velho não foi criada pela
modernidade, mas este período histórico fomentou a discussão da preservação da memória
social como nenhum outro. Além disso, características marcantes da sociedade
contemporânea, como o desenvolvimento tecnológico e o desejo de comodidade,
potencializam o conflito e geram embates entre diferentes conceitos de memória coletiva.
27
“Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo,
localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega ela era vidência e êxtase. O
passado revelado desse modo não é o antecedente do presente, é a sua fonte.” (BOSI, 1994, p.
89).
Uma fonte abundante, contraditória, complexa e cheia de sentimentos. Uma
fonte cuja preservação é muito mais do que “cuidar de coisas velhas”, pois representa a
possibilidade de situar o homem no espaço e no tempo, de estabelecer uma relação importante
entre os membros de uma mesma sociedade. Ao longo do processo histórico, as diferenças
entre os indivíduos acabam por estimular um processo intenso de disputa, desigualdade e
dominação, em que o reconhecimento da memória coletiva torna-se complexo, na medida em
que perpassa fatos e sentimentos individualmente percebidos de formas diferentes.
Como qualquer experiência humana, a memória histórica constitui uma das formas
mais fortes e sutis de dominação e da legitimação do poder. Neste sentido, os
grupos dominantes vencedores na História tentam impor a sua visão e a
perpetuação de uma memória da dominação. Aos vencidos, restam apenas o
esquecimento e a exclusão da História e da política preservacionista. (ORIÁ, 2003,
p. 136).
A Historiografia contemporânea tem tido uma preocupação especial com o
estudo da memória social, percebendo sua importância como instrumento de mudança social,
capaz de romper com as práticas de dominação. Trata-se de uma nova visão histórica, em que
a memória assume papel importante na construção de sociedades sustentáveis, na medida em
que, reconhecendo-se parte integrante da sociedade, o indivíduo é capaz de atuar enquanto
sujeito histórico. Ainda segundo Oriá (2003), nos tempos atuais a memória é uma questão de
cidadania:
Interessa a todos por se constituir um direito fundamental do cidadão e esteio para a
construção da identidade cultural. [...] O direito à memória como direito de
cidadania indica que todos devem ter acesso aos bens materiais e imateriais que
representam o seu passado, a sua tradição, enfim, a sua história. [...] Ora, é a
memória dos habitantes que faz com que eles percebam na fisionomia da cidade,
sua própria história de vida, suas experiências sociais e lutas cotidianas. A memória
é, pois, imprescindível na medida em que esclarece sobre o vínculo entre a sucessão
de gerações e o tempo histórico que as acompanha. Sem isso, a população urbana
não tem condição de compreender a história de sua cidade, como seu espaço urbano
foi produzido pelos homens através dos tempos, nem a origem do processo que a
caracterizou. Enfim, sem a memória não se pode situar na própria cidade, pois
perde-se o elo afetivo que propicia a relação habitante-cidade, impossibilitando ao
morador de se reconhecer enquanto cidadão de direitos e deveres e sujeito da
história. (p. 137-139).
O que é ser cidadão? Oriá conceitua-o como sujeito histórico com direitos e
deveres. Historicamente, os diferentes conceitos de memória, já abordados neste trabalho,
28
refletem-se no conceito de cidadania. Desde a antiga pólis grega, quando o conceito de
cidadão era mais restrito, já que mulheres, crianças e escravos não eram tidos como tais, até o
período contemporâneo, memória e cidadania sempre estiveram relacionadas e foram se
modificando paralelamente, ao longo do tempo.
De qual cidadania estamos falando? A existência de um sistema legislativo
que descreva direitos e deveres a serem seguidos por todos consegue assegurá-la? Sabe-se que
a norma jurídica não é capaz de, por si só, garantir a efetividade de direitos; além disso, o
conhecimento científico dos últimos séculos ocupou-se desta questão, justificando-se as
reflexões sobre o processo histórico do conceito contemporâneo de cidadania.
Nas sociedades primitivas, os usos e costumes constituíam o sistema
normativo e o direito era imposto por poderes tradicionais. Mais tarde, o direito carismático
era revelado por profetas, que interpretavam a Lei de Deus, ou dos deuses, e esta visão de
mundo perdurou por muitos séculos. Posteriormente, o direito natural, baseado no Contrato
Social de Rousseau, em que homens livres instituem o Estado para representar a vontade geral
e o garantir o bem comum, inaugurou o Direito Moderno e introduziu a racionalização no
pensamento ocidental.
Desde a Antigüidade, o conceito de cidadania esteve ligado à Cidade e ao
Direito, mas este vínculo fortaleceu-se significativamente na passagem da Idade Média à
Moderna, na medida em que os valores religiosos passaram a ser substituídos pela razão e
pela Ciência. Nesta nova cosmovisão, os privilégios de algumas minorias são questionados,
tanto quanto os princípios teocráticos e as desigualdades entre os homens, tidos até então
como algo natural ou divino, deixam de ser aceitos e passam por um processo de consciência
histórica. “Essa historicização da desigualdade servirá de pano de fundo para uma das mais
importantes transformações levadas a cabo na trajetória da humanidade: a do citadino/súdito
para o citadino/cidadão.” (MONDAINI, 2003, p. 115).
Até este momento da História, pode-se dizer que o homem vivia um tempo
de deveres não questionados ante a força dos princípios religiosos. Depois, a mudança da
visão teocrática para a antropocentrista trouxe a razão para o centro das relações sociais e
possibilitou a constituição de um Estado de direitos, inaugurando um novo tempo para a
humanidade.
O jusnaturalismo moderno, elaborado nos séculos XVII e XVIII, reflete o
deslocamento do objeto do pensamento da natureza para o homem, característico da
Modernidade. O Direito Natural, como direito da razão, é a fonte de todo o direito.
Direitos inatos, estado de natureza e contrato social foram os conceitos que
permitiram elaborar uma doutrina da sociedade e da História, característica do
29
mundo moderno e que encontrou seu apogeu no Iluminismo. A afirmação de um
direito racional universalmente válido levou à necessidade de codificação, de
organização de um saber lógico, e à corporificação do Direito como sistema. [...] O
Direito se separa da Moral, e o crime, da falta moral ou religiosa. (VIEIRA, 1997,
p. 18).
A análise da relação entre Direito, Estado e cidadania é fundamental no
presente estudo, sendo necessário recorrer a algumas perspectivas elaboradas a partir da Idade
Moderna, para compreensão do conceito contemporâneo.
Nos séculos XVIII e XIX, pós Revoluções Industrial, Americana e
Francesa, o conceito de cidadania da Antigüidade greco-romana teve que ser modificado.
Nesta mudança, três aspectos são importantes: o Estado, o Governo e o Homem. Naquele
momento da História, edificaram-se os Estados Modernos, definiram-se as instituições
públicas e sua separação da sociedade civil, já muito mais numerosa. Os governos
monárquicos e aristocráticos foram substituídos por regimes republicanos e pelos ideais
democráticos de liberdade e igualdade. Os direitos humanos passaram a ser percebidos como
inerentes ao homem, que devem ser protegidos e respeitados pelo poder constituído por ele.
A democracia moderna buscou sua fonte na antiga, mas modificou-se e se,
por um lado, estreitou-se na medida em que transferiu a decisão política aos representantes
eleitos que compõem o governo, por outro ampliou-se, estendendo-se a todos os membros da
nação, com a introdução do sufrágio universal. O princípio da nacionalidade gera confronto
entre dois pensamentos modernos. Os conservadores entendem que a cidadania restringe-se
aos membros de uma nação, com base nos laços de sangue, independentemente do território, o
que exclui estrangeiros e imigrantes; os liberais, por sua vez, entendem que a cidadania está
fundada no contrato e não na filiação. Em ambas as vertentes, o conceito de cidadania está
definido a partir da perspectiva de Nação, com território e fronteiras definidos.
A ampliação ocorrida na modernidade, estendendo os direitos a todos os
seres humanos de uma nação, vem sendo considerada injusta ante o processo de globalização,
que está colocando em pauta a idéia de uma cidadania sem fronteiras, uma vez que os
problemas da humanidade são comuns em toda parte do planeta.
A história do desenvolvimento dos direitos do citadino, a evolução da cidadania na
Europa centro-ocidental, transcorre há pelo menos três séculos – de acirrados
conflitos sociais –, relacionada à conquista de três conteúdos de direitos, diversos
entre si: os direitos civis, no século XVIII; os direitos políticos no século XIX; e os
direitos sociais, no século XX. (MONDAINI, 2003, p. 116).
O pensamento moderno foi marcado por tentativas de elaborar teorias
científicas com pretensões de validade universal, muito importantes na conquista da
30
ampliação dos direitos. Mas, quais foram os impactos da racionalidade proposta pela
modernidade nas relações subjetivas da sociedade contemporânea? Os desafios surgidos na
transição da Idade Média para a Moderna foram superados? A ampliação e codificação dos
direitos proporcionou mais igualdade entre os homens? São muitas as questões, as respostas e
as reticências que envolvem as angústias humanas quanto à igualdade entre os homens e se,
por um lado, parece claro que a Humanidade avançou na conquista e efetivação dos direitos,
por outro, o ideal da igualdade ainda parece distante, exigindo novas mudanças no conceito de
cidadania.
O sistema de produção capitalista, os Estados Democráticos e o avanço
tecnológico não foram capazes de garantir a igualdade entre os homens e, além disto, geraram
um aumento na utilização dos recursos naturais, passível de extinguir a raça humana do
planeta, dependendo das decisões tomadas no presente. Com o fim da Idade Média,
modificou-se a forma como o homem se relacionava com a natureza e, cerca de cinco séculos
depois, esta relação pode determinar o futuro da espécie. Faz-se necessária a construção de
uma nova visão de mundo, em que o ideal de cidadania sem fronteiras parece se fortalecer.
Não se pode negar a racionalidade, sua importância histórica e contemporânea, mas é preciso
debater as mudanças ocorridas nos últimos séculos e a complexidade do novo milênio, sob
uma nova perspectiva. Vasconcellos (2005) aborda com propriedade o que entende como
novo paradigma da ciência.
Portanto, quando se fala de uma “nova epistemologia da ciência”, está se falando de
uma nova visão ou concepção de mundo e de trabalho científico, de uma nova
concepção de conhecimento, implícita na atividade científica – em suas teorias e
práticas. Lembremo-nos de que é também se referindo a mudanças profundas de
visão ou concepção de mundo e de atividade científica que, como já vimos, Capra
(1988) fala de “mudança paradigmática na ciência”. (p. 43).
A autora entende que o paradigma da ciência tradicional parte dos
pressupostos da simplicidade, estabilidade e objetividade, enquanto as dimensões do
paradigma emergente da ciência contemporânea pressupõem a complexidade, a instabilidade
e a intersubjetividade. A crença de que é possível conhecer objetivamente o mundo, sendo
este um dos principais critérios de cientificidade tradicional, parece estar se enfraquecendo
cada vez mais.
[...] a descrição científica será tanto mais objetiva quanto mais se conseguir eliminar
o observador e obter, de um ponto de observação exterior ao mundo, “o nível
fundamental de descrição – a partir do qual tudo o que existe pode, em princípio, ser
deduzido” (Prigogine e Stengers 1979, p. 38). Subjacente a essa busca de descrever
o mundo eliminando toda interferência do observador, está a crença no ‘realismo do
31
universo’. Acredita-se que o mundo, tudo que nele acontece, é real e que existe
independente de quem o descreve. (VASCONCELLOS, 2005, p. 90).
Ainda segundo a autora, o pressuposto epistemológico da intersubjetividade
da ciência contemporânea reconhece a impossibilidade de um conhecimento objetivo do
mundo. Esta impossibilidade já era reconhecida no campo das ciências humanas, mas foi a
física quântica que demonstrou a aplicabilidade deste pressuposto a todos os ramos da ciência.
O observador influencia a observação do objeto e não é possível distanciá-lo, como pretendia
a ciência tradicional.
O paradigma do “desencantamento do mundo”, proposto por Max Weber
(1864-1920), é contestado pelo novo paradigma sistêmico e os estudos acerca da cultura
contemporânea podem sugerir uma estratégia de “reencantamento”. Segundo Santos, “as
culturas humanas são dinâmicas. De fato, a principal vantagem de estudá-las é por
contribuírem para o entendimento dos processos de transformação por que passam as
sociedades contemporâneas.” (1996, p. 26). Quando se fala em mudança de visão do mundo, a
cultura parece ser ponto crucial, pela sua capacidade de alimentar o conhecimento, no
processo de transformação social.
Cultura é uma preocupação contemporânea, bem viva nos tempos atuais. É uma
preocupação em entender os muitos caminhos que conduziram os grupos humanos
às suas relações presentes e suas perspectivas de futuro. O desenvolvimento da
humanidade está marcado por contatos e conflitos entre modos diferentes de
organizar a vida social, de se apropriar dos recursos naturais e transformá-los, de
conceber a realidade e expressá-la. A história registra com abundância as
transformações por que passam as culturas, seja movidas por suas forças internas,
seja em conseqüência desses contatos e conflitos, mais freqüentemente por ambos os
motivos. Por isso, ao discutirmos sobre cultura temos sempre em mente a
humanidade em toda a sua riqueza e multiplicidade de formas de existência. São
complexas as realidades dos agrupamentos humanos e as características que os unem
e diferenciam, e a cultura as expressa. Assim, cultura diz respeito à humanidade
como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações, sociedades e grupos
humanos. (SANTOS, 1996, p. 7-8).
Os temas relacionados à cultura ocupam o pensamento humano desde a
Antigüidade clássica, mas as preocupações sistemáticas com suas representações remetem à
Alemanha do século XVIII, onde a cultura foi uma forma de unificar várias unidades
políticas. Já no século XX, as Américas expressam, nas suas culturas, projetos de nação pós
colonização européia, com o objetivo de buscar sua identidade e situá-la no mundo
globalizado. Aliás, foi durante o período da colonização européia que o padrão econômico
dominante hierarquizou as expressões culturais, com a clara intenção de domínio político dos
povos colonizados, vistos como inferiores ou selvagens.
32
Sob esta perspectiva, será que a arte é capaz de reencantar o mundo objetivo
das fórmulas matemáticas? Este reencantamento é capaz de transformar a atual sociedade?
Será esta uma boa estratégia na busca de sociedades mais justas?
A arte é inseparável da realidade social, econômica, política e cultural dos diversos
países. Hoje, ela tem um papel fundamental na religação da sociedade, na
reorganização do tecido social desfeito pela mercantilização das relações e pela
violência. [...] a arte tem o papel de tornar o mundo digno de ser vivido,
reencantando-o, tornando-o um lugar não apenas de luta pela sobrevivência
cotidiana, mas um lugar de imaginação criadora, de sonho e utopia. É fundamental
reafirmar a importância da arte como impulso transformador de pessoas portadoras
de uma nova visão do ser humano, capaz de elevar a sua auto-estima, de humanizar
e emancipar o espírito. Enfim, de contribuir para o aprimoramento das pessoas e
das sociedades. (FARIA E GARCIA, 2002, p. 57-58).
Diante do mundo cada vez mais globalizado, cresce a necessidade dos meios
científicos pesquisarem a utilização da cultura e da grande variedade de temas correlatos,
como instrumentos de mudança social. Saber se a arte pode auxiliar a mudança da visão de
mundo, ainda dominada por uma tendência puramente objetiva, pode ser um dos eixos da
discussão do novo paradigma da ciência. Compreender as manifestações culturais nas cidades
e suas relações com o processo histórico pode configurar um dos aspectos mais importantes
do conceito de cidadania no século XXI.
A cidadania é um processo de diálogo e negociação para criar e efetivar
direitos (enquanto relação recíproca entre dever e direito). Este processo transita
cotidianamente pelas relações dialéticas entre público e privado, Estado e sociedade. No
século XXI, a sociedade de consumo, teleguiada pelas leis do marketing, potencializa estes
conflitos e gera um sentimento generalizado de valorização do privado, em detrimento do
público.
O que é público é de todos ou de ninguém? As Revoluções Francesa e
Industrial fomentaram, na Europa, o debate sobre a dicotomia entre público e privado, entre
interesses individuais e coletivos, mas, e no Brasil? Como a sociedade brasileira entende o
público, o coletivo? Os brasileiros são capazes de se reconhecerem enquanto povo? A
estabilização política garante a todos a livre escolha de seus representantes, mas existe
efetivamente o Estado Democrático de Direito? Confia-se cegamente nas instituições
públicas, entregando aos detentores do poder a exclusiva gestão da sociedade ou, ao contrário,
participa-se da administração pública, por meio do controle das ações praticadas em nome do
interesse público?
O sentimento de pertencimento a uma determinada sociedade e a
participação no processo de criação e efetivação de direitos é fundamental para se estabelecer
33
os interesses públicos; caso contrário, estes interesses podem representar a vontade de
ninguém, não a de todos, dando lugar a um sentimento de banalização do que é público. Na
busca desse sentimento de pertencimento, o ensino e valorização da memória e a identificação
do patrimônio cultural são instrumentos de mudança social, na medida em que contribuem
para o desenvolvimento político e a cidadania, formando sujeitos históricos.
Dentro deste contexto cauteloso, nosso interesse é demarcar algumas pistas
analíticas em termos de desenvolvimento político, considerando-o tão importante
quanto o desenvolvimento econômico. Este é mais fácil de referenciar, porque mais
mensurável. Nem por isso caímos na armadilha de coincidir “o mais mensurável”
com o “mais importante”. Compreendemos cidadania, assim, como processo
histórico de conquista popular, através do qual a sociedade adquire,
progressivamente, condições de tornar-se sujeito histórico consciente e organizado,
com capacidade de conceber e efetivar projeto próprio. O contrário significa a
condição de massa de manobra, de periferia, de marginalização. (DEMO, 1992, p.
17).
Neste início de milênio, a memória vem sendo identificada como poderoso
instrumento de enriquecimento político e exercício de cidadania. Nas pesquisas científicas,
nos meios de comunicação em geral, na educação, na assistência social, na habitação e em
tantos outros segmentos da sociedade, a memória vem ganhando espaço, tornando-se eixo
central na construção de sociedades sustentáveis. O mundo globalizado passa por um
momento de discussão, nas mais amplas esferas, sobre a necessidade de conhecimento do
passado para a construção do futuro e clama por ações no presente, que determinem um futuro
diferente do que vem sendo anunciado por pesquisadores de todo o globo.
O conhecimento do passado é um processo complexo. A Historiografia vive
um dilema entre a história contada pelas classes dominantes, usada como forma de opressão e
manutenção do sistema vigente, e outras metodologias de pesquisa, que buscam nas minorias
uma outra face da história oficial, apontando outros enfoques até então “apagados” do
passado. A própria lógica do processo de globalização tende a extinguir as comunidades
tradicionais, os hábitos, usos e costumes locais, fomentando um processo de homogeneização
cultural, em que os diversos grupos sociais são levados a um comportamento padrão, capaz de
facilitar o processo de produção e de consumo, força central do sistema capitalista.
Um exemplo representativo desta lógica é a conhecida marca de
refrigerante, fabricada e vendida em todo o mundo. Criado no século XX, é um produto
reconhecido em todo o planeta, completamente desnecessário às reais necessidades do ser
humano; pelo contrário, substitui com desvantagem bebidas naturais e água. Mas sua
estratégia de marketing transformou-o em produto consumido diariamente em todo o mundo e
34
veiculado globalmente pela mídia, incentivando o desejo de seu consumo através de valores
expressos clara ou subliminarmente.
A interconectividade mundial, a serviço da produção e consumo de produtos
e serviços, transforma o cotidiano do homem no século XXI e congrega várias forças na
padronização do ser humano, na tentativa de transformá-lo em mero espectador e consumidor,
convencido de que as coisas mais importantes da vida são os bens materiais e a comodidade
trazida pelos tempos modernos. “Você é o que você tem”. Exemplificando esta frase, um
típico adolescente de classe média que almeja um tênis, uma calça jeans e um telefone celular
de marcas conhecidas, influenciado pela veiculação massiva da mídia, estabelece com estes
bens de consumo uma relação fetichista e, sem eles, não se sente parte do grupo.
E tudo isto é ruim? Depende. Sem qualquer pretensão maniqueísta, toda
moeda tem duas faces. Tomando como exemplo este mesmo tipo de adolescente, não existe
qualquer mal em possuir bens ou a comodidade em geral; todavia, o consumo não pode ser a
base de sustentação dos grupos sociais. Muitos meios de comunicação voltados ao público
jovem, sensíveis a esta questão, ao mesmo tempo em que atuam na lógica do consumo,
também despertam discussões políticas e transmitem informações culturais que estimulam a
reflexão entre os jovens, permitindo-lhes o desenvolvimento de uma visão crítica acerca do
meio a que pertencem.
Conhecer o passado, refletir sobre os fatos e as conseqüências desta
memória social, é um poderoso instrumento de enriquecimento político, na medida em que
situa os cidadãos enquanto sujeitos históricos, capazes de alterar as condições futuras,
interagindo no presente e participando da organização da sociedade nas suas mais diversas
facetas, pois o sentimento de pertencimento a um grupo é inerente ao ser social. Aquele que é
mero espectador de uma realidade com a qual não interage, acaba não se sentindo como parte
do grupo, mas apenas uma engrenagem passando pelas outras, sem qualquer vontade própria.
Seria possível considerar esta pessoa um cidadão? A simples repetição de modelos
comportamentais dados, sem qualquer reflexão antes da ação, é compatível com o conceito
contemporâneo de cidadania?
Sendo o cidadão um sujeito histórico de direitos e deveres estabelecidos a
partir do Estado Democrático de Direito, com sufrágio universal, o conhecimento do passado
leva à reflexão sobre as escolhas feitas e à análise das condições presentes, equilibrando a
relação entre sociedade e Estado, responsável pela efetivação do exercício desses direitos e
deveres. O enriquecimento político, gerado na sociedade pela valorização da memória,
estabelece uma relação importante com a cidadania e motiva mudanças sociais.
35
Pretender mudanças passa, forçosamente, pela análise, reflexão e
compreensão dos acontecimentos passados que geraram conseqüências no presente, passíveis
de modificação. Nesta perspectiva, o direito à memória como exercício de cidadania passa a
ter sentido, porque possibilita a formação de sujeitos críticos, agentes políticos atuantes na
construção da sociedade democrática.
Bertold Brecht, dramaturgo europeu que viveu no início do século XX,
transmite de forma clara a antinomia entre ação e omissão e as conseqüências por ela geradas:
O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos
acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do
peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões
políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo
que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a
prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político
vigarista, pilantra, corrupto e o lacaio dos exploradores do povo (BRECHT, on-
line).
Compreender o passado e as crenças, valores, atitudes e significados que ele
encerra leva à reflexão e a mudanças na perspectiva de mundo, gerando movimentos cíclicos
de volta ao passado, em busca dos alicerces da construção do presente, oxigenada pelo
desenvolvimento científico e tecnológico, que, por sua vez, acarreta mudanças no contexto
futuro. Esta compreensão do passado pode ser um instrumento de formação do “alfabetizado
político”, atuante e ciente da sua condição histórica de sujeito de direitos e deveres: um
cidadão.
Dezoito anos depois de promulgada a Constituição Federal do Brasil de
1988, o processo eleitoral foi consolidado e a economia estabilizada, mas o país ainda
conserva as marcas históricas da colonização e possui uma das maiores concentrações de
renda do mundo. O Estado é usado para fins privados e as marcas das administrações públicas
patriarcais e ineficientes continuam motivando a descrença da sociedade em geral no sistema
democrático. Após tantas lutas, torturas e mortes nos períodos ditatoriais no Brasil, é infeliz o
discurso que trata da descrença nas instituições democráticas.
Uma resposta é imediatamente dada pela ideologia democrática. Segundo os
apologistas da democracia, do século XVIII aos nossos dias (de Voltaire a
Habermas), um dos objetivos e um dos resultados da democracia seria o de
substituir as violências pela tolerância, o enfrentamento por fruto dos ódios pelo
confronto de opiniões, construir espaços de diálogos e de reflexão, tendo como
efeito liberar as expressões e superar os ódios através do reconhecimento das
pessoas e de seus direitos. O diálogo democrático teria como conseqüência permitir
a expressão das hostilidades e, portanto, sua transformação em reivindicações
racionalizadas e o seu abrandamento pela tomada de consciência das oposições de
interesses. A eficácia da democracia permitiria romper os sentimentos de
36
impotência, arrancando os indivíduos de suas ruminações rancorosas, fazendo deles
seres responsáveis por si próprios e membros ativos de uma sociedade participativa.
(ANSART, 2004, p. 23-24).
A crença na eficiência do sistema democrático, na valorização da memória
como instrumento de cidadania e de maior participação da sociedade no próprio sistema,
torna-se dinâmica enriquecedora e capaz de operar mudanças sociais, em busca da
transformação dos povos. Esta estratégia parece viável na construção de sociedades
sustentáveis e, como tal, deve ser discutida e praticada nas mais amplas esferas e segmentos
sociais. As pesquisas científicas, os meios de comunicação e os bens culturais têm missão
estratégica na difusão desta nova visão de mundo.
O que é necessário para a construção de sociedades sustentáveis? É possível
construí-las com as regras do atual modelo econômico? Será que a identidade cultural é capaz
de ultrapassar os limites impostos pelas regras do crescimento e possibilitar o
desenvolvimento social? Questões como estas são cada vez mais discutidas na sociedade. A
capacidade de criação de instrumentos pelo homem, exercida desde os tempos primitivos,
deflagra, no momento atual, um desenvolvimento tecnológico nunca antes experimentado e
esta questão é colocada no contexto local e global, o que possibilita perceber a outra face da
interconectividade mundial.
Por exemplo, um trabalho social de valorização da memória de uma
comunidade indígena e seu comportamento num mundo capitalista globalizado, poderá ser
conhecido por milhares de pessoas em todo o mundo, por meio dos instrumentos criados pelo
desenvolvimento tecnológico. As possibilidades multiplicaram-se com a existência do
telefone, da televisão, do avião, do satélite, da internet e de tantos outros instrumentos que
conectam as pessoas instantaneamente, em dimensões globais. Estas considerações têm sido
conceituadas como “o lado bom da globalização” e parece claro que, nesta linha de raciocínio,
utilizar estes instrumentos em busca da valorização da memória e construção de uma
identidade cultural planetária, capaz de respeitar a diversidade biológica e cultural, constitui o
eixo central das sociedades sustentáveis, baseadas numa cidadania sem fronteiras.
Cristovam Buarque afirma que será “preciso voltar aos fundamentos dos valores
humanos, subordinando a técnica à ética numa nova lógica, capaz de entender o
homem e o resto da natureza como parte de um todo e de redefinir os conceitos de
liberdade e de igualdade nestes tempos das grandes e independentes máquinas que
substituem o trabalho humano e destroem o meio ambiente. Será preciso,
sobretudo, imaginação para inventar um novo conceito de riqueza sem as amarras
da economia, usando esta última apenas como um instrumento”. Essa conversão do
homem para uma lógica, que não a do capital, precisa se impor. [...] Além de
impulsionar transformações sociais, pode contribuir para reencantar o mundo a
37
partir do estabelecimento de fortes trocas simbólicas e formar, assim, uma
comunidade de emoção. (FARIA e GARCIA, 2002, p. 35-39).
A construção de sociedades sustentáveis passa por este reencantamento do
mundo, por uma convivência do ser humano em harmonia com o meio ambiente natural, pela
formação de cidadãos capazes de conhecer e respeitar as diversas identidades culturais ao
longo do tempo. Falar de tempo é falar de história. Tratar da aspiração humana pela
eternidade, da construção da memória coletiva, da importância do conhecimento científico
acumulado, implica a discussão do ensino de História. Sob qual ótica devem ser transmitidos
os acontecimentos históricos ocorridos em outras circunstâncias, completamente
desconhecidas? Este ensino simplesmente reproduz os sistemas de dominação presentes nos
mais diversos períodos históricos, ou leva à reflexão, à crítica construtiva?
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa
experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais
característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje
crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o
passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é
lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim
do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que
simples cronistas, memorialistas e compiladores. (HOBSBAWM, 1995, p. 13).
As políticas educacionais são discutidas em todo o planeta e as
metodologias do ensino formal, não-formal ou informal são recorrentes objetos de estudo em
pesquisas científicas nos diversos ramos do conhecimento, além de espaço de luta política por
ampliação de direitos na educação das sociedades. Alguns países em desenvolvimento, como
é o caso da Coréia do Sul, estabeleceram a educação como eixo estratégico de crescimento
econômico e operaram mudanças profundas no sistema de ensino. No caso do Brasil, ainda
que avanços tenham sido feitos, como demonstram as melhorias dos índices de alfabetização,
o sistema de ensino tende a uma formação, denominada por Paulo Freire (1987) de
“bancária”:
Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se
oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.
Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No
fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das
hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora
da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se
arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há
criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na
reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no
mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também. (p. 58).
38
A preservação do patrimônio cultural, como instrumento de cidadania, está
ligada à visão de uma educação capaz de formar sujeitos históricos, que saibam refletir e atuar
na construção da sociedade, utilizando a identidade cultural como referencial para reflexão
sobre a ação social. A História, enquanto ramo do conhecimento científico encarregado da
compreensão do passado, parte integrante dos currículos escolares em todos os níveis, tem
papel fundamental na formação de cidadãos que tenham acesso ao ensino formal. Ao
considerar a educação não-formal e informal como instrumentos adicionais de formação de
agentes políticos, as possibilidades se multiplicam. Cada grupo social pode encontrar formas
próprias de diálogo e reconstrução da memória coletiva, gerando processos educativos tão
valiosos quanto os oficialmente reconhecidos.
Por Educação Patrimonial, entende-se a utilização de museus, monumentos,
arquivos, bibliotecas – os “lugares da memória”, para usarmos a expressão do
historiador francês Pierre Nora, no processo educativo, a fim de desenvolver a
sensibilidade e a consciência dos educandos e futuros cidadãos da importância da
preservação destes bens culturais. A Educação Patrimonial nada mais é do que a
educação voltada para questões atinentes ao Patrimônio Cultural, que compreende
desde a inclusão nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de
disciplinas ou conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a
conservação do Patrimônio Histórico, até a realização de cursos de aperfeiçoamento
e extensão para os educadores e a comunidade em geral, a fim de lhes propiciar
informações acerca do Patrimônio Cultural, de forma a habituá-los a despertar nos
educandos e na sociedade o senso de preservação da memória histórica e o
conseqüente interesse pelo tema. (FERNANDES, 1992, p. 273).
O desafio do novo milênio reside na capacidade do ser humano de construir
sociedades sustentáveis. O desenvolvimento tecnológico e as conseqüências do processo de
globalização geram realidades diferentes, como a própria alteração do conceito de tempo,
modificado pelos avanços nas áreas da comunicação e do transporte. Graças a estes avanços, a
sociedade civil vive um momento de organização local e atuação mundial e colabora com o
reencantamento do mundo, utilizando as novas tecnologias na valorização da solidariedade
entre os povos e respeito à diversidade cultural.
Este desafio depende estrategicamente de uma nova visão da educação.
Evocando ainda Paulo Freire (1987):
A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual
os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e
em que se acham. Se, de fato, não é possível entendê-los fora de suas relações
dialéticas com o mundo, se estas existem independentemente de se eles as
percebem, é verdade também que a sua forma de atuar, sendo esta ou aquela, é
função, em grande parte, de como se percebam no mundo. Mais uma vez se
antagonizam as duas concepções e as duas práticas que estamos analisando. A
“bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas certas razões que
explicam a maneira como estão sendo os homens no mundo e, para isto, mistifica a
realidade. A problematizadora, comprometida com a libertação, se empenha na
39
desmistificação. Por isto, a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda tem nele o
selo do ato cognoscente, desvelador da realidade. A primeira “assistencializa”; a
segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação, inibe a
criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da consciência
como um desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação
ontológica e histórica de humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à
libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos
homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem
autenticar-se fora da busca e da transformação criadora. (p. 72).
Com esta visão de educação, capaz de estimular a reflexão e a ação, de
formar sujeitos históricos e de organizar a sociedade civil, completa-se o tripé da preservação
do patrimônio cultural: memória, cidadania e educação, relacionadas reciprocamente em
movimento rítmico e interdependente, em condições de operar mudanças sociais e construir
sociedades sustentáveis.
40
O novo já nasce velho.
(O RAPPA)
1.2 Desenvolvimento Tecnológico e Urbanismo
Um dos aspectos de maior interesse, neste estudo, é a influência do
desenvolvimento tecnológico na sociedade contemporânea e sua utilização na gestão urbana.
As facilidades criadas pelo homem, ao longo dos séculos, estão diretamente
relacionadas ao crescimento da produção científica e sua utilização em favor do sistema de
produção capitalista, sendo este um fator primordial na análise das inovações tecnológicas.
Caso não se compreenda bem esta relação entre capital e tecnologia, pode-se cair no equívoco
de entender o desenvolvimento tecnológico fora da perspectiva histórica que caracteriza a
sociedade mundial do século XXI como digital. Neste exato momento, milhares de pessoas
estão conectadas por uma rede mundial de computadores, a um só tempo simples e complexa.
Ultrapassando os limites físicos ou institucionais representados pelas fronteiras das nações,
esta comunicação planetária reflete parte dos avanços tecnológicos que interferem no modo
de vida da sociedade contemporânea.
Há cerca de cem anos, os países europeus já colhiam os frutos da
modernidade e acabavam exportando aos demais países do mundo novos produtos, modos de
vida, meios de transporte, ou seja, suas culturas. O transporte ferroviário era utilizado para
interligar as principais regiões da Europa, auxiliando as conexões internacionais feitas por
transporte marítimo, naquele momento já bastante desenvolvido.
A importância da ciência, no século XX, é indiscutível. Descobertas
científicas influenciaram a moral, a estética, as artes, a economia e o campo social. A visão do
mundo e o sistema de valores que estão na base da cultura ocidental foram formulados, em
suas linhas essenciais, nos séculos XVI e XVII. Como assinala Capra (1997), a concepção de
um mundo organicamente estruturado, que predominou até os anos 1500, deu lugar a uma
visão mecanicista, alterando radicalmente o pensamento moderno.
A estrutura científica dessa visão de mundo orgânica assentava em duas autoridades:
Aristóteles e a Igreja. No século XIII, Tomás de Aquino combinou o abrangente
sistema da natureza de Aristóteles com a teologia e a ética cristãs e, assim fazendo,
estabeleceu a estrutura conceitual que permaneceu inconteste durante toda a Idade
Média. A natureza da ciência medieval [...] baseava-se na razão e na fé, e sua
principal finalidade era compreender o significado das coisas e não exercer a
predição ou o controle. [...] A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos
XVI e XVII. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela
noção do mundo como se ele fosse uma máquina, e a máquina do mundo converteu-
se na metáfora dominante da era moderna. Esse desenvolvimento foi ocasionado por
41
mudanças revolucionárias na física e na astronomia, culminando nas realizações de
Copérnico, Galileu e Newton. A ciência do século XVII baseou-se num novo
método de investigação, defendido vigorosamente por Francis Bacon, o qual
envolvia a descrição matemática da natureza e o método analítico de raciocínio
concebido pelo gênio de Descartes. (p. 49-50).
Pelo pensamento cartesiano-newtoniano, o mundo é uma máquina cujas
operações podem ser determinadas com exatidão, por meio de leis físicas e matemáticas, uma
forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional. E foi esta visão de mundo que
direcionou o desenvolvimento tecnológico dos últimos séculos. As Ciências Sociais também
foram influenciadas por este pensamento e a idéia de que o homem poderia ser explicado e
compreendido por fórmulas matemáticas até hoje permeia muitas pesquisas científicas desta
área do saber.
Contemporaneamente, podem-se citar inúmeras situações típicas deste
paradigma. Por exemplo, o mundo do trabalho foi completamente modificado pelas pesquisas
da ciência da Administração e pelo ideário do “homem máquina”. Os métodos do sistema de
produção industrial, segundo os princípios de Taylor e Fayol, espelham a concepção de
mundo cartesiana-newtoniana e ainda são utilizados no século XXI, já que, para determinados
sistemas de gestão, ainda são os mais eficientes.
Outro exemplo, a Teoria Geral das Organizações Sociais, criada por Max
Weber, e o modelo de dominação burocrático, capaz de linearmente estabelecer as condutas
racionais a serem seguidas pelo “homem programado”, ainda que concebidos no fim do
século XIX, até hoje são implantados em empresas nacionais e multinacionais, públicas e
privadas, através de manuais de conduta e normas de trabalho que regulam o procedimento de
milhares de funcionários.
Os mais importantes tratados internacionais do século XX foram
influenciados pelo paradigma newtoniano-cartesiano. A Revolução Francesa também foi
concebida sob este modelo e, quem sabe, só tenha ocorrido pelo seu fortalecimento, já que, no
fim da Idade Média, a mudança do teocentrismo para o antropocentrismo é que abriu as portas
para o desenvolvimento da ciência.
A perspectiva histórica do desenvolvimento tecnológico é fundamental para
se abordar a cidade e compreender a cidadania contemporânea implica a discussão do meio
ambiente urbano. Desde a Grécia e Roma antigas, o conceito de cidadania está relacionado à
cidade, a pólis, conceito este que, respeitadas as limitações históricas, constitui um dos
elementos da relação entre o desenvolvimento tecnológico e o urbanismo. As cidades
contemporâneas enfrentam desafios mais complexos, como, por exemplo, a maior densidade
42
populacional, a desigualdade social, o uso e ocupação predatórios do solo e tantos outros. Mas
a cidade continua sendo o espaço por excelência para o exercício da cidadania e participação
no sistema democrático.
Falou-se anteriormente sobre a importância do paradigma newtoniano-
cartesiano para o desenvolvimento tecnológico alcançado no século XXI e o exame do
significado da palavra “tecnologia” deixa ainda mais clara esta relação. Segundo o Dicionário
Houaiss (2001), “tecnologia s.f. (1783 cf. ZT) 1 teoria geral e/ou estudo sistemático sobre
técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da
atividade humana (p.ex., indústria, ciência, etc.) 2 p.met. técnica ou conjunto de técnicas de
um domínio particular 3 p.ext. qualquer técnica moderna e complexa.” (p. 2683).
O primeiro registro escrito da palavra tecnologia, de que se tem notícia, data
do século XVIII, com um sentido diretamente relacionado aos ideais do paradigma
newtoniano-cartesiano. A partir de então, fomentado pela consolidação da Revolução
Industrial, do sistema de produção capitalista e da pesquisa científica, identifica-se um
processo de crescimento da tecnologia e de fixação dos ideais da modernidade.
O filósofo social inglês Anthony Giddens e seu discípulo, o professor de
política da Universidade de Nottingham, Christopher Pierson (2000), tratam deste assunto,
explicando a sua definição de modernidade:
Simplificando, modernidade é sinônimo de sociedade moderna ou civilização
industrial. Mais detalhadamente, está associada a: a) um conjunto de atitudes
perante o mundo, como a idéia de que o mundo é passível de transformação pela
intervenção humana; b) um complexo de instituições econômicas, em especial a
produção industrial e a economia de mercado; c) toda uma gama de instituições
políticas, como o Estado nacional e a democracia de massa. Graças sobretudo a
essas características, a modernidade é muitíssimo mais dinâmica do que qualquer
tipo de ordem social preexistente. É uma sociedade – mais precisamente, um
complexo de instituições – que, à diferença de todas as culturas anteriores, vive no
futuro e não no passado. (p. 73).
Ao contrário de muitos cientistas, Giddens não acredita que se possa falar
em pós-modernidade. “O que os outros chamam de pós-moderno é para mim a radicalização
da modernidade. [...] Por isso prefiro falar de modernização reflexiva [...] e só podemos
refletir sobre a modernidade através da modernidade; isto é, através, também, da ciência e da
tecnologia.” (p. 87-88).
O papel da ciência e da tecnologia e as três implicações da modernidade,
propostas por Giddens, podem ser identificados como fatores que alimentam o
desenvolvimento tecnológico. Mais uma vez, é útil o recurso à definição do termo, para se ter
uma melhor compreensão do que seja desenvolvimento: “1 ação ou efeito de desenvolver(-
43
se); 2 aumento da capacidade ou das possibilidades de algo; crescimento, progresso,
adiantamento.” (HOUAISS, 2001, p. 989). Este aumento de capacidade e de possibilidades,
gerados pela tecnologia, a busca do crescimento e do progresso são essenciais na ideologia da
revolução burguesa, da qual originou-se a atual sociedade industrial. “Com o campo de visão
da realidade delimitado por essa idéia diretora, os economistas passaram a dedicar o melhor
de sua imaginação a conceber complexos esquemas do processo de acumulação de capital no
qual o impulso dinâmico é dado pelo progresso tecnológico.” (FURTADO, 1974, p. 16).
E quais benefícios o progresso tecnológico trouxe às sociedades urbanas
contemporâneas? No século XXI, usando um telefone celular, é possível falar
instantaneamente com alguém do outro lado do mundo, trocar informações em tempo real,
enviar documentos eletronicamente armazenados com caracteres ou imagens. Ou, estacionado
num posto de combustível, enquanto o frentista abastece o carro, pode-se refletir sobre o alto
custo da energia de um modo geral, tão necessária na vida moderna. Provavelmente, o
frentista não possui recursos financeiros nem acesso à alta tecnologia, mas precisa saber
operar a caixa registradora digital e as máquinas de cartão de crédito, tal a complexidade da
vida moderna.
Ainda que o desenvolvimento tecnológico proporcione comodidade em
parâmetros nunca antes existentes, estes benefícios não estão à disposição de todos e o que
determina o acesso aos mesmos são as condições econômicas e sociais. Aqueles que possuem
recursos financeiros suficientes para sobrevivência da família e consumo da tecnologia
existente, têm possibilidades semelhantes ao que se via nos filmes de ficção científica dos
anos 1980.
De qualquer forma, parece que o desenvolvimento tecnológico possui em si
uma certa força democrática, de modo que, quanto mais se avança e se criam novas
tecnologias destinadas às classes mais favorecidas, a tecnologia obsoleta é disponibilizada às
pessoas de menor poder aquisitivo. Esta tendência pode ser verificada no contexto local,
nacional e internacional, já que o próprio Brasil, como toda a América Latina, passa por um
processo de capitalismo tardio e muitas vezes é o destino da tecnologia obsoleta dos países
desenvolvidos, o que, de alguma forma, fomenta o próprio desenvolvimento. Exemplificando,
o uso do telefone celular, no Brasil, nos últimos cinco anos, teve crescimento contínuo e a
inovação tecnológica, aliada ao aumento do consumo de novos aparelhos, gerou a venda de
aparelhos semi-novos em sistema “pré-pago”, possibilitando o acesso à tecnologia por
segmentos sociais economicamente menos favorecidos, criando maior facilidade de conexão
entre si.
44
Este exemplo conduz a outra reflexão sobre o desenvolvimento tecnológico:
para quê e para quem? Ou seja, a ciência a serviço de quem? De um lado, a tecnologia
obsoleta assim aproveitada tem seus méritos, ao disponibilizar maiores recursos aos
economicamente menos dotados, mas, de outro lado, acaba por reproduzir um padrão de
comportamento social excludente, típico da lógica capitalista. Em se tratando de acesso à
tecnologia de ponta, a minoria concentradora da renda goza de vantagens estratégicas em
relação à maioria, que disputa a menor parte das riquezas produzidas, já que aquela elite é que
financia o desenvolvimento tecnológico que atenderá primeiramente aos seus próprios
interesses. O atual padrão de desenvolvimento tecnológico está sofrendo modificações e é
discutido em fóruns mundiais e locais, daí a importância de se compreender o processo
histórico em que ele vem ocorrendo.
Com a consolidação do capitalismo, após a Revolução Industrial, a lógica
burguesa de investimento em ciência e tecnologia gerou um fenômeno chamado de Revolução
Tecnológica, que transformou radicalmente a vida humana: jornal impresso, rádio, televisão,
fax, microcomputador, celular, internet e tantos outros recursos, presentes no cotidiano de
milhares de pessoas em todo o mundo. No século XXI, transformam-se as relações sociais e,
de forma às vezes assustadora, democratizam-se as informações em tempo real, num processo
nunca vivenciado pelas sociedades anteriores.
Será que a globalização e a conectividade gerada pelo desenvolvimento
tecnológico espelham o ápice do instinto humano de convivência com os semelhantes? O
instinto de sobrevivência dos antepassados primatas levou-os a se organizar em bandos, pois,
juntos, tinham mais chances de sobreviver aos ataques dos predadores. Como é notório,
segundo a teoria darwinista, foi justamente este convívio social e a necessidade de
comunicação que biologicamente deram origem à evolução do cérebro humano e ao aumento
da capacidade de raciocínio da espécie. Esta nova função fisiológica, aliada à posição ereta e
ao polegar opositor, fez do Homo sapiens a espécie dominante do planeta Terra.
A modernidade marca uma nova dinâmica social e o processo de
globalização é fruto das mudanças ocorridas em todo o mundo, principalmente durante o
século passado. Em 1876, a invenção do telefone; em 1920, a veiculação do primeiro
programa de rádio e, em 1919, a primeira travessia do Atlântico por avião, foram alguns dos
vários fatos históricos importantes neste processo de mundialização, propiciados pelo
desenvolvimento tecnológico e científico. Para se ter uma idéia, quando se trata de transporte,
pode parecer simples falar das rotas marítimas portuguesas do século XVI, mas, sem a
invenção das caravelas e o incremento da tecnologia naval, a perspectiva geográfica dos
45
povos ocidentais não seria modificada. A propósito, conforme Fausto (2004, p. 27), é curioso
observar que a duração aproximada das viagens marítimas, de Salvador a Lisboa, nos séculos
XVII e XVIII, era de 85 dias (frota) e 40-45 dias (navio isolado).
Exemplos como este conduzem a reflexões sobre o “Breve Século XX”,
ressaltado em “A Era dos Extremos” de Eric Hobsbawm (1995). Nesta obra, um dos maiores
historiadores da atualidade, na condição de observador participante, analisa os principais
acontecimentos históricos do século XX e reflete sobre as escolhas políticas, econômicas,
sociais, culturais, ambientais e suas conseqüências no processo histórico e na formação da
sociedade do novo milênio, permitindo-se não chegar a qualquer conclusão ou previsão, ante
a complexidade do tema. “Meu objetivo é compreender e explicar por que as coisas deram no
que deram e como elas se relacionam entre si.” (p. 13).
Neste livro, a estrutura do Breve Século XX parece uma espécie de tríptico ou
sanduíche histórico. A uma Era de Catástrofe, que se estendeu de 1914 até depois
da Segunda Guerra Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de
extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos que
provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que
qualquer outro período de brevidade comparável. Retrospectivamente, podemos ver
esse período como uma espécie de Era de Ouro, e assim ele foi visto quase
imediatamente depois que acabou, no início da década de 1970. A última parte do
século foi uma nova era de decomposição, incerteza e crise – e, com efeito, para
grandes áreas do mundo, como a África, a ex-URSS e as partes anteriormente
socialistas da Europa, de catástrofe. À medida que a década de 1980 dava lugar à de
1990, o estado de espírito dos que refletiam sobre o passado e o futuro do século
era de crescente melancolia fin-de-siècle. Visto do privilegiado ponto de vista da
década de 1990, o Breve Século XX passou por uma curta Era de Ouro, entre uma
crise e outra, e entrou num futuro desconhecido e problemático, mas não
necessariamente apocalíptico. Contudo, como talvez os historiadores queiram
lembrar aos especuladores metafísicos do “Fim da História”, haverá um futuro. A
única generalização cem por cento segura sobre a história é aquela que diz que
enquanto houver raça humana haverá história. (HOBSBAWM, 1995, p. 15-16).
Dentre os acontecimentos históricos que marcaram o século XX, ressalta a
importância da Segunda Guerra Mundial, para a compreensão do significado do “homem-
máquina”, do potencial destrutivo da tecnologia em prol da dominação econômica, da disputa
política de territórios e dos horrores que, de alguma forma, inspiraram a humanidade a buscar
uma nova visão de mundo.
As origens da Segunda Guerra Mundial produziram uma literatura histórica
incomparavelmente menor sobre suas causas do que as da Primeira Guerra, e por
um motivo óbvio. Com as mais raras exceções, nenhum historiador sério jamais
duvidou de que a Alemanha, Japão e (mais hesitante) a Itália foram os agressores.
Os Estados arrastados à guerra contra os três, capitalistas ou socialistas, não
queriam o conflito, e a maioria fez o que pôde para evitá-lo. Em termos mais
simples, a pergunta sobre quem ou o que causou a Segunda Guerra Mundial pode
ser respondida em duas palavras: Adolf Hitler. (HOBSBAWM, 1995, p. 43).
46
Sem dúvida, Hitler foi o principal protagonista dos fatos históricos da
Segunda Guerra Mundial e seus atos são lembrados até hoje como exemplos condenáveis. Em
1941, o exército alemão invadiu o território soviético, com vistas não só à dominação
territorial, mas também à tomada de reservas de petróleo, necessário como matéria-prima para
a indústria bélica e a produção de combustíveis. Talvez por excesso de confiança, baseado nas
inúmeras vitórias anteriores, Hitler ignorou a ameaça representada pelo rigoroso inverno
europeu oriental e acabou tendo que bater em retirada. Pode-se dizer, assim, que a condição
climática foi um dos fatores determinantes da derrocada do III Reich. A natureza ajuda a
vencer o “homem-máquina”: ainda que os avanços tecnológicos permitam ao ser humano
utilizar mais intensivamente a natureza no seu modo de vida moderno, não é possível dominá-
la totalmente.
O poderio militar de Hitler não foi capaz de vencer a natureza e o inverno de
40ºC negativos inviabilizou a utilização da tecnologia bélica alemã, enquanto o Exército
Vermelho, através de técnicas tradicionais de guerrilha na neve, fizeram de Stalin um
importante personagem histórico na virada da Segunda Guerra Mundial.
Até então, os Estados Unidos da América auxiliavam os Aliados nas
negociações diplomáticas e no envio de equipamentos e soldados para a Europa, mas, após o
ataque aéreo japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí, declararam guerra ao
Japão e passaram a atuar maciçamente na Segunda Guerra, cujo final, após a derrota de Hitler
na Europa, foi marcado pela explosão das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki. Este
acontecimento brutal marcou a história da humanidade e a segunda metade do século XX. O
período seguinte, denominado “Guerra Fria”, ficou caracterizado pelo medo de uma Terceira
Guerra Mundial e do poderio nuclear das duas potências antagônicas (EUA e URSS), capaz
de acabar com a vida humana no planeta Terra.
Os episódios da Segunda Guerra Mundial mostraram à humanidade o
potencial destrutivo do uso equivocado do desenvolvimento tecnológico, levando à busca pela
cooperação entre os povos, a integração econômica e a aplicação da tecnologia em favor do
consumo pacífico.
Uma vez vencida a guerra, multiplicaram-se os esforços de cooperação e integração
internacionais. Os norte-americanos continuaram a pressionar nesse sentido, em
parte porque temiam vir a ser as principais vítimas de um retorno à autarquia, e
também porque estavam convencidos de que esse era o único meio de reerguer a
Europa. [...] No mundo do pós-guerra, o mais proeminente desses elementos tem
sido o cognitivo – o crescimento do conhecimento científico e sua transposição para
uma espantosa gama de novos produtos e técnicas. Qualquer um de nós é capaz de
redigir uma lista dessas inovações, muitas das quais passaram, no espaço de uma
geração, de curiosidades a esteios fundamentais da vida e do trabalho no século XX
47
– desde o rádio portátil em miniatura que o adolescente hipnotizado prende ao
ouvido enquanto anda pela rua, até o gravador do amante da música ou do
antropólogo e os imensos computadores de muitos milhões de dólares da IBM.
(LANDES, 2005, p. 548).
A preocupação com a reconstrução dos países e com a retomada do
crescimento econômico marcou o período pós Segunda Guerra. A expansão da indústria, nos
países tanto capitalistas quanto socialistas, desenvolvidos ou subdesenvolvidos, ocasionou o
crescimento da economia mundial de forma nunca vista, possibilitando, também, a aplicação
prática da pesquisa científica, em todos os ramos do saber.
Em comparação com 1950, o uso de materiais naturais ou tradicionais – madeira e
metal tratados à maneira antiga, fibras ou estofos naturais, e mesmo a cerâmica –
em nossas cozinhas, móveis e roupas pessoais baixou de maneira impressionante,
embora a badalação em torno de tudo que é produzido pela indústria de higiene
pessoal tenha sido tanta que obscureceu (pelo exagero sistemático) o grau de
novidade de sua produção muitíssimo aumentada e diversificada. Pois a revolução
tecnológica entrou na consciência do consumidor em tal medida que a novidade se
tornou o principal recurso de venda para tudo, desde os detergentes sintéticos (que
passaram a existir na década de 1950) até os computadores laptop. A crença era que
“novo” equivalia não só a melhor, mas a absolutamente revolucionado.
(HOBSBAWN, 1995, p. 261).
Esta lógica ainda é percebida no século XXI e é de fundamental importância
no presente estudo, pois a preservação do patrimônio cultural passa, de certa maneira, pela
contraposição entre o novo e o velho. A crença de que o novo é melhor pode prejudicar a
conservação de bens representativos da história, comprometer a formação de sujeitos
históricos e o exercício da cidadania. Com efeito, a preservação do patrimônio cultural
edificado gera um típico conflito na sociedade contemporânea e espelha o choque do novo
versus velho.
Uma cidade equilibrada deve conectar o espaço e o homem. Sendo a
conectividade um ponto central no meio ambiente urbano, os vazios (edificados ou não) são
apontados pelos urbanistas como um dos maiores problemas nas cidades contemporâneas.
Discutir a utilidade do espaço vazio cria muitas possibilidades. Por
exemplo, a possibilidade de se construir uma mansão (antigamente chamada “casarão”) para
residência de uma família abastada com cinco membros e seus empregados, totalizando,
digamos, dez pessoas. Outra possibilidade seria a construção de um prédio comercial, onde,
durante o horário comercial, centenas de pessoas ocupassem o espaço e, no período noturno,
ficasse totalmente vazio. Ou ainda, poderia ser construído um prédio de dez andares, com
quarenta apartamentos para residência de pelo menos duzentas pessoas. Seria possível até
48
deixar o terreno desocupado e ainda obter renda, locando-o para instalação de propaganda ou
estacionamento de veículos.
Optar por uma ou outra utilidade do espaço é expressar significados, crenças
e valores. Este processo de escolha torna-se mais complexo quando incorpora a variável
tempo: nesta hipótese, o terreno está ocupado por um casarão, construído por uma geração
anterior, atualmente sem moradores e, portanto, sem utilidade.
Um casarão abandonado é considerado como vazio urbano, muitas vezes
tornando-se foco de tensão social, na medida em que o abandono quase sempre reflete-se em
aumento de criminalidade ou danos à saúde pública. Acontece que este vazio urbano
representa parte da história da sociedade local, do espaço e das pessoas que dialogaram com
ele, identifica a cultura da comunidade e pode, em última instância, servir para a formação de
sujeitos históricos através da educação ambiental.
O que é mais importante: preservar os valores “impressos" nesta construção
ou utilizar o espaço de um ponto de vista meramente econômico? Integrar o patrimônio
cultural à gestão urbana, enquanto instrumento de cidadania, assumindo os desafios desta
prática, sem dúvida vai depender do conceito de memória dessa sociedade, da capacidade
técnica dos profissionais envolvidos na discussão da utilidade do espaço e dos interesses
econômicos envolvidos em cada uma das propostas que surgirem. O grande desafio é
justamente conciliar a preservação de elementos representativos do passado com as
necessidades e interesses do presente, sem perder de vista os seus efeitos no futuro. O
desenvolvimento tecnológico pode ser um eficiente instrumento de conciliação, pois é capaz
de possibilitar novas formas de utilização do espaço, anteriormente inexistentes ou inviáveis,
e preservar elementos significativos da história.
O desafio reside na capacidade da sociedade utilizar técnicas desenvolvidas
ao longo de séculos para armazenar o conhecimento produzido e preservar o patrimônio
cultural representativo de determinado período histórico, aceito pela sociedade como
importante no reconhecimento da sua identidade. “Em um mundo de fluxos globais de
riqueza, poder e imagens, a busca pela identidade, coletiva ou individual, atribuída ou
construída, torna-se a fonte básica de significado social.” (CASTELLS, 1999, p. 23). Ainda
que o desenvolvimento tecnológico e científico gere mudanças, a reprodução das relações
sociais, ao longo do tempo, busca no passado as referências para o comportamento atual.
Partindo desta premissa, não se pode crer, necessariamente, que o novo seja melhor, mas, sim,
parte de um processo contínuo de construção social, que não obrigatoriamente exclua o velho.
49
Extrapolando a questão da preservação do patrimônio cultural, esta crença
no milagre da novidade gera conseqüências também na conservação dos recursos naturais e na
dinâmica da sociedade contemporânea. Existem vários exemplos dos reflexos do
desenvolvimento tecnológico nos mais diversos segmentos da sociedade, mas destaca-se
apenas um: a comunicação de massa, especificamente a televisão.
Um dos acontecimentos recentes mais marcantes para a população mundial
foi o atentado terrorista às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, EUA. A
velocidade com que as imagens chegaram às TVs de quase todo o mundo provoca reflexões
pelas conseqüências do fato, significativas e profundas. Ainda que cada meio de comunicação
possa ter expressado sua versão acerca da complexa questão, o fato é que a informação
chegou ao conhecimento de quase toda a população mundial em tempo real, através de
imagens espetaculares, graças ao desenvolvimento tecnológico existente no século XXI.
O acesso à informação precisa ser entendido como parte fundamental do
processo de formação política das sociedades e os recursos utilizados precisam ser
compreendidos como instrumentos, despidos de preconceito. Não são poucas as críticas ao
potencial de alienação da sociedade através dos meios de comunicação, principalmente da
televisão, mas também não se pode desprezar sua capacidade de formação desta mesma
sociedade e, novamente, o desenvolvimento tecnológico colabora com a diversificação dos
próprios meios de comunicação, contribuindo para a disseminação da informação. E o que se
entende por informação? Segundo o Dicionário Houaiss: “informação s.f. 1 comunicação ou
recepção de um conhecimento ou juízo.” (2001, p. 1615).
A partir da década de 1970, após a invenção do microprocessador e do
microcomputador, a revolução tecnológica possibilitou a criação contínua de instrumentos
cada vez mais aptos a potencializar a comunicação, estabelecendo uma nova dinâmica social.
Como assevera Manuel Castells:
Uma nova economia surgiu em escala global nas duas últimas décadas. Chamo-a de
informacional e global para identificar suas características fundamentais e
diferenciadas e enfatizar sua interligação. É informacional porque a produtividade e
a competitividade de unidades ou agentes nessa economia (seja nas empresas,
regiões ou nações) dependem basicamente de sua capacidade de gerar, processar e
aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos. É global
porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação, assim como
seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação,
tecnologia e mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou
mediante uma rede de conexões entre agentes econômicos. É informacional e
global porque, sob novas condições históricas, a produtividade é gerada, e a
concorrência é feita em uma rede global de interação. E ela surgiu no último quartel
do século XX porque a Revolução da Tecnologia da Informação fornece a base
material indispensável para essa nova economia. É a conexão histórica entre a base
50
de informação/conhecimentos da economia, seu alcance global e a Revolução da
Tecnologia da Informação que cria um novo sistema econômico distinto.
(CASTELLS, 1999, p. 87).
A economia informacional e global tornou a sociedade mundial e
interconectada. A questão social envolve peculiaridades locais, influenciadas pela condição
histórica de cada sociedade, mas, cada vez mais, percebe-se que os principais problemas
enfrentados são de toda a humanidade e estão ligados à questão da eqüidade, da justiça social,
que, de certa forma, representa uma releitura contemporânea do princípio da igualdade entre
os homens. A esta temática incorporou-se a questão ambiental, cujas conseqüências são
percebidas em nível mundial e têm sido uma importante força motriz no processo de
organização das sociedades, local e mundial. Ainda que o desenvolvimento tecnológico tenha
representado uma ameaça ao equilíbrio ecológico, só através dele será possível desenvolver
um processo limpo de produção.
A mesma lógica aplica-se à informação. Quanto maior o acesso à
informação, maiores são as possibilidades de reflexão, organização e atuação dos atores
sociais. As gerações anteriores tinham padrões de conduta estabelecidos tradicionalmente,
limitadores da ação social. O acesso à informação, cada vez mais fácil e rápido no século
XXI, revoluciona os antigos padrões e cria maiores possibilidades de reflexão para o ser
humano. Esta característica da modernidade é abordada por Giddens (2000):
A reflexividade tem dois sentidos: um que é bastante amplo, e outro que diz
respeito mais diretamente à moderna vida social. Todo ser humano é reflexivo no
sentido de que pensar a respeito do que se faz é parte integrante do ato de fazer,
seja conscientemente ou no plano da consciência prática. A reflexividade social se
refere a um mundo que é cada vez mais constituído de informação, e não de modos
preestabelecidos de conduta. É como vivemos depois que nos afastamos das
tradições e da natureza, por termos que tomar tantas decisões prospectivas. Nesse
sentido, vivemos de modo muito mais reflexivo do que as gerações passadas. (p.
87).
Viver de modo mais reflexivo e entender a modernidade pela modernidade,
ou seja, pela ciência, revela a importância do papel da ciência e do desenvolvimento
tecnológico na construção de sociedades sustentáveis. A desigualdade gerada pelo modelo de
desenvolvimento, pautado exclusivamente na idéia de progresso da ciência e tecnologia em
prol do crescimento econômico e em detrimento do meio ambiente, está levando à mudança
de paradigma da ciência contemporânea.
A visão cartesiana mecanicista do mundo tem exercido uma influência poderosa
sobre todas as nossas ciências e, em geral, sobre a forma de pensamento ocidental.
O método de reduzir fenômenos complexos a seus componentes básicos e de
procurar os mecanismos através dos quais esses componentes interagem tornou-se
51
tão profundamente enraizado em nossa cultura que tem sido amiúde identificado
com o método científico. Pontos de vista, conceitos ou idéias que não se ajustavam
à estrutura da ciência clássica não foram levados a sério e, de um modo geral,
foram desprezados, quando não ridicularizados. Em conseqüência dessa
avassaladora ênfase dada à ciência reducionista, nossa cultura tornou-se
progressivamente fragmentada e desenvolveu uma tecnologia, instituições e estilos
de vida profundamente doentios. [...] O excessivo crescimento tecnológico criou
um meio ambiente no qual a vida se tornou física e mentalmente doentia. Ar
poluído, ruídos irritantes, congestionamento de tráfego, poluentes químicos, riscos
de radiação e muitas outras fontes de estresse físico e psicológico passaram a fazer
parte da vida cotidiana da maioria das pessoas. (CAPRA, 1997, p. 226).
As conseqüências deste pensamento podem ser percebidas claramente nas
cidades e na relação que se estabelece entre o desenvolvimento tecnológico e a qualidade de
vida de seus habitantes. Como trabalhar a gestão urbana num cenário assim desfavorável?
Refletir sobre o papel da ciência no desenvolvimento urbano implica, com efeito, uma nova
visão de mundo.
O conhecimento passa atualmente por uma reconstrução crítica e o
pensamento sistêmico está no bojo das discussões sobre o novo paradigma da ciência,
propondo a visão de um mundo complexo, intersubjetivo e instável. Complexo, porque não
pode mais ser visto em pedaços, departamentalizado, segmentado: “Tudo o que cortamos em
pedaços, sejam as células ou as patas de uma rã, perde o sentido.” (MORIN, 2004, p.57).
Instável, porque vivemos em um mundo cheio de incertezas: “A incerteza faz parte do destino
humano, mas ninguém está preparado para enfrentá-la.” (MORIN, 2004, p.57). E, finalmente,
intersubjetivo, porque um objeto só passa a existir em relação a um observador, a partir do
momento em que este o distingue.
Sem um observador, nenhuma distinção acontece e nenhuma realidade se constitui
para ele. Conclui-se, então, que nenhum observador pode fazer referência a algo
real, que exista independentemente dele, para validar sua experiência.
(VASCONCELLOS, 2005, p.140).
Diante de tais premissas, o conhecimento será sempre relativo e não pode
existir distinção entre o saber de um cientista, o de um intelectual e o de um cidadão comum
a hierarquização do saber deixa de existir. Tal concepção de mundo não admite a mútua
desqualificação entre os detentores do saber, quaisquer que sejam, como se um conhecimento
fosse mais importante do que outro. Ao contrário, é mais solidária e promove o respeito entre
os seres humanos, modificando a forma de se relacionarem entre si e com o meio ambiente
natural.
Refletir sobre a modernidade através da ciência carece da visão sistêmica e
da mudança de paradigma capazes de modificar a “vida física e emocionalmente doentia” da
52
sociedade do século XXI, como bem salientou Capra (2002). Não se trata de abandonar o
conhecimento acumulado ao longo da história humana, mas de repensar a atuação social,
diante da complexidade dos tempos atuais.
Falou-se dos reflexos do desenvolvimento tecnológico nas relações sociais,
mas será que a cidade favorece a conexão entre os seres humanos? É possível usufruir de
qualidade de vida no meio ambiente urbano? A mudança de paradigma da ciência
contemporânea pode auxiliar na construção de cidades sustentáveis?
Ainda que as cidades já existissem desde a Antigüidade, após a Revolução
Industrial e a adoção do capitalismo como sistema de produção é que o processo de
urbanização se tornou parte inerente do modo de vida moderno.
As cidades são como transformadores elétricos: aumentam as tensões, precipitam as
trocas, caldeiam constantemente a vida dos homens. Não nasceram elas da mais
antiga, da mais revolucionária divisão do trabalho: os campos de um lado, as
chamadas atividades urbanas do outro? “A oposição entre a cidade e o campo
começa com a passagem da barbárie à civilização, do regime das tribos ao Estado,
da localidade à nação e encontra-se em toda a história da civilização até os nossos
dias”. Karl Marx escreveu estas linhas na sua juventude. A cidade é corte, ruptura,
destino do mundo. Quando surge, portadora da escrita, abre as portas ao que
chamamos de história. Quando renasce na Europa, com o século XI, começa a
ascensão do pequeno continente. Floresce na Itália, e é o Renascimento. É assim
desde as cidades – poleis – da Grécia clássica, depois as medinas das conquistas
muçulmanas, até os nossos dias. Todos os grandes momentos do crescimento se
exprimem por uma explosão urbana. Quanto à questão: serão as cidades a causa, a
origem do crescimento?, é tão inútil pô-la como perguntar se o capitalismo é
responsável pelo desenvolvimento econômico do século XVIII ou pela Revolução
Industrial. A “reciprocidade das perspectivas”, cara a Georges Gurvitch, entra aqui
plenamente em jogo. A cidade tanto cria a expansão como é criada por ela. Mas o
certo é que, mesmo quando não é a cidade a fabricá-la com todas as suas peças, é
ela a ditar as leis do jogo. E na cidade este jogo revela-se melhor do que em
qualquer outro posto de observação. (BRAUDEL, 1996, p. 439).
Este poder da cidade, enquanto espaço de troca e de organização social,
pode ser aliado ao desenvolvimento tecnológico em benefício da qualidade de vida do ser
humano, independente de classe social, credo, idade, raça, opção sexual ou qualquer outro
traço que diferencie os indivíduos. É importante que a humanidade reflita sobre as escolhas e
crenças das gerações anteriores e consiga utilizar todo o desenvolvimento tecnológico
acumulado, numa perspectiva histórica e de construção de sociedades sustentáveis.
As relações estabelecidas entre o desenvolvimento tecnológico e o
urbanismo acabam expressando a visão de mundo e a concepção de sociedade do grupo.
Estando ambos em sintonia e comprometidos com a utilização da ciência na gestão urbana,
geram múltiplas possibilidades de mudança social.
53
A idéia central dessa concepção sistêmica e unificada da vida é a de que o seu
padrão básico de organização é a rede. [...] Vimos, em particular, que na Era da
Informação – na qual vivemos – as funções e processos sociais organizam-se cada
vez mais em torno de redes. Quer se trate das grandes empresas, do mercado
financeiro, dos meios de comunicação ou das novas ONGs globais, constatamos
que a organização em rede tornou-se um fenômeno social importante e uma fonte
crítica de poder. No decorrer deste novo século, dois fenômenos em específico
terão efeitos significativos sobre o bem-estar e os modos de vida da humanidade.
Ambos esses fenômenos têm por base as redes e ambos envolvem tecnologias
radicalmente novas. O primeiro é a ascensão do capitalismo global; o outro é a
criação de comunidades sustentáveis baseadas na alfabetização ecológica e na
prática do projeto ecológico. [...] Já vimos que a forma atual do capitalismo global é
insustentável dos pontos de vista social e ecológico. O chamado “mercado global”
nada mais é do que uma rede de máquinas programadas para atender a um único
princípio fundamental: o de que o ganhar dinheiro deve ter precedência sobre os
direitos humanos, a democracia, a proteção ambiental e qualquer outro valor.
Entretanto, os valores humanos podem mudar; não são leis naturais. As mesmas
redes eletrônicas nas quais correm os fluxos financeiros e de informação podem ser
programadas de acordo com outros valores. A questão principal não é a tecnologia,
mas a política. O grande desafio do século XXI é da mudança do sistema de valores
que está por trás da economia global, de modo a torná-lo compatível com as
exigências da dignidade humana e da sustentabilidade ecológica. Com efeito, vimos
que esse processo de remodelação da globalização já começou. (CAPRA, 2002, p.
267-268).
O atual sistema de valores está programado para atender exclusivamente aos
interesses econômicos e gera reflexos significativos nas formas de gestão urbana. O valor
econômico do terreno é mais importante do que a função social da propriedade e são enormes
os desafios da gestão urbana democrática, confundindo-se a atuação social com a defesa de
interesses pessoais. Mudar a programação deste sistema de valores implica a mudança da
visão de mundo, a compreensão da interdependência dos seres humanos e da teia da vida, daí
a preocupação de Capra com a “alfabetização ecológica”.
O padrão básico de organização em rede, da Era da Informação, tem no
desenvolvimento tecnológico um importante instrumento de comunicação entre os diferentes
segmentos sociais, fomentando a reflexão sobre o papel individual na construção social, os
deveres e direitos dos sujeitos históricos, suas possibilidades de ação e modificação.
As danosas conseqüências ao meio ambiente e a desigualdade social,
geradas pelo atual sistema econômico, vêm sendo cada vez mais questionadas, global e
localmente. O que mais interessa ao presente estudo são as relações estabelecidas no âmbito
local, especificamente na dinâmica social urbana, entre o homem e a cidade, sem perder a
perspectiva histórica e global.
O capitalismo industrial teve reflexo no crescimento urbano e trouxe sérias
conseqüências à cidade ocidental européia do século XIX. O Urbanismo moderno, guindado a
disciplina autônoma nessa época, entendia ser possível a reorganização do espaço urbano para
54
a resolução de todos os problemas. Nesse mesmo momento histórico, dentro do Urbanismo
surgiu um forte movimento sanitarista, com a preocupação principal de conter epidemias e
pragas, resultantes da ocupação desordenada dos espaços urbanos, encorajada pela Revolução
Industrial.
A intrínseca relação entre a nova disciplina e seu objeto de estudo (a cidade
industrial) gerou críticas e questionamentos, como os de Françoise Choay (1965), na medida
em que seu objetivo focava a organização da “cidade máquina”, de acordo com os interesses
do sistema capitalista. Durante a primeira metade do século XX, o Urbanismo passou por
constantes renovações teóricas e ainda passa por profundas discussões sobre sua atuação
prática e seu papel enquanto instrumento de manutenção do sistema e da desigualdade social.
O Urbanismo surgiu sob a influência do paradigma newtoniano-cartesiano e
foi marcado pela crença na solução dos problemas urbanos pelos métodos da ciência positiva,
em que os aspectos sociais e políticos não eram considerados. Esta visão ainda marca a
prática de muitos arquitetos e urbanistas, pautada na execução de projetos puramente técnicos,
ainda que esteticamente defensáveis, mas incapazes de incorporar as múltiplas dimensões da
vida humana: políticas, econômicas, sociais e ambientais.
Daí a importância de se incorporar a mudança de paradigma da ciência
contemporânea às reflexões atuais, fomentando a discussão teórica do Urbanismo a partir da
visão sistêmica, revendo o conceito de cidade através de ponderações sobre o processo
histórico, cujo resultado é este mundo complexo, intersubjetivo e instável do século XXI.
A cidade não pode mais ser pensada apenas do ponto de vista técnico e
fragmentado, pois ele é insuficiente para a complexa gestão urbana contemporânea. Os
gestores urbanos precisam conhecer a cidade e os fatos que determinaram seu perfil atual,
buscar o sentimento de pertencimento desta sociedade, permitir a convivência entre os seres
humanos, a construção da identidade cultural e o reencantamento do mundo a partir da cidade.
Na medida em que um sujeito é estimulado por ações educativas (na mais
ampla acepção do termo educação), passa a ter o sentimento de pertencimento a determinado
lugar da História, passa a interagir com o sistema social na qualidade de cidadão, não mais
reproduzindo meramente modelos ditados por uma vontade além da dele, mas tornando-se
efetivamente um ser social, enquanto ser histórico.
A cidade é o local propício para se identificar formas de expressão da
memória e as possibilidades criadas pelo desenvolvimento tecnológico, na discussão técnica
do Urbanismo, precisam dialogar com a demanda social pela preservação do patrimônio
cultural, sob a perspectiva de cidadania plena e instrumento de gestão urbana. Seguindo a
55
perspectiva de “pensar global e agir local”, as múltiplas relações entre cidade e cidadão e o
padrão de organização da sociedade em redes, comprometidas com o desenvolvimento
sustentável, espelham a trajetória do urbanismo à cidadania sem fronteiras, em busca da
consciência ecológica planetária.
56
És linda jóia no veludo
Dos nossos verdes infinitos cafezais
E se em ti amada terra temos tudo
Ainda procuramos dar-te mais.
(HINO DE RIBEIRÃO PRETO)
1.3 Ribeirão Preto: uma História para Contar
Analisar e compreender a gestão do patrimônio cultural de uma cidade
constitui tarefa árdua e complexa, mas instigante e enriquecedora. Estudar a história da cidade
e entender os valores da comunidade são passos fundamentais para o alcance dos resultados
buscados neste estudo; entretanto, desde as pesquisas preliminares surgiu uma dúvida: por
onde começar a contar a história de Ribeirão Preto? Simplesmente a partir da fundação da
cidade, seguindo os registros disponíveis em sua ordem cronológica, ou retrocedendo no
tempo, na tentativa de situar as condições naturais da região e examinar sua importância no
processo de ocupação? Considerando que os fatores geográficos, em geral, contribuem
fortemente para a determinação do tipo de ocupação, muitas vezes até direcionando os fatos
que se desdobram historicamente, optou-se pela última alternativa, para, ainda que de modo
breve, dar uma visão panorâmica dos aspectos físicos que acabaram por dar lugar ao que hoje
é a cidade de Ribeirão Preto.
Antes, registre-se que a macro-região de Ribeirão Preto tem uma rede de
ensino formal expressiva, constituindo-se em pólo científico respeitado internacionalmente.
Tornou-se a quinta região em participação na renda do Estado de São Paulo e vem
apresentando um desenvolvimento econômico sempre crescente. Por sua importância
estratégica, acumulou-se farta fonte bibliográfica sobre a história de Ribeirão Preto e região.
Sem pretensão de cunho historiográfico, a opção metodológica deste estudo pressupõe a
análise dos fatos históricos mais significativos, buscando a compreensão da lógica social na
gestão urbana contemporânea.
A teoria evolucionista de Darwin revolucionou o conhecimento científico,
ao sistematizar o conhecimento sobre fenômenos que ocorrem no meio ambiente natural e a
propagação desta e de outras teorias científicas similares, nos meios acadêmicos, tem
provocado questionamentos importantes sobre a possibilidade, tanto da evolução do ser
humano rumo ao desenvolvimento sustentável, quanto da extinção da raça humana no planeta.
Numa análise linear, as duas possibilidades podem ser caracterizadas como extremidades. De
fato, parece que as relações sociais e suas conexões com o meio ambiente natural são bem
57
mais complexas e dinâmicas, tornando-se cada vez mais enfraquecidas as teorias extremistas a
propósito de qualquer questão proposta no século XXI.
A análise do processo histórico de uma cidade como Ribeirão Preto pode
fornecer subsídios para o debate destas questões. Há milhões de anos, processos naturais
físicos, químicos e biológicos foram responsáveis pela formação geológica do planeta. Como
resultado, formou-se um sistema hídrico subterrâneo, integrante do macro-sistema conhecido
como “Ciclo da Água”, vital para a sobrevivência dos seres vivos. Os mais de quinhentos mil
habitantes da cidade de Ribeirão Preto (IBGE, on-line), no início do século XXI, têm seu
abastecimento de água exclusivamente extraído daquele sistema, denominado Aqüífero
Guarani
1
, um dos maiores reservatórios subterrâneos de água doce do mundo. Ocupando uma
área de 1,2 milhões de km², estende-se pelo Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, mas sua
maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total), abrangendo os Estados de
Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, conforme se observa na Ilustração 1, a seguir.
Ilustração 1. Área de abrangência do Aqüífero Guarani, na América do Sul (campo destacado em azul)
O Aqüífero serve como fonte de abastecimento de água para milhares de
pessoas e diversos setores produtivos, mas a superexploração dos recursos hídricos e o
aumento das fontes de poluição podem comprometê-lo para uso das futuras gerações. Esta
preocupação levou à criação do “Projeto para a Proteção Ambiental e Desenvolvimento
1
Mais informações podem ser obtidas no endereço eletrônico do Projeto de Proteção Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável do Aqüífero Guarani: http://www.sg-guarani.org.
58
Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani”. Implementado por acordos envolvendo os quatro
países mencionados, a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Banco Mundial e
outras agências de coordenação, o projeto pretende aumentar o conhecimento sobre o recurso
e propor um marco técnico, legal e institucional para sua gestão coordenada entre Argentina,
Brasil, Paraguai e Uruguai, visando sua preservação. A gestão urbana atual defronta-se com
um grande desafio quanto ao uso e ocupação do solo em relação a este recurso natural, já que
a impermeabilização da superfície, aliada ao crescente consumo, pode exaurir as atuais fontes
do abastecimento público.
A ocupação da região de Ribeirão Preto, a partir do século XIX, foi
facilitada por características naturais presentes no território: fartos recursos hídricos
superficiais e subterrâneos, solo rico em nutrientes, vegetação semi-tropical e relevo pouco
montanhoso. Apesar da importância desses recursos, faltavam, no passado, a motivação
política e econômica para uma gestão segura dos mesmos, que produzissem resultados
positivos ao longo do tempo.
No século XVIII, o Brasil era administrado segundo os interesses da Coroa
portuguesa, na lógica do sistema colonial. Após os ciclos econômicos da extração do pau-
brasil e da cana-de-açúcar, os interesses concentraram-se na exploração das riquezas minerais,
como o ouro e as pedras preciosas encontradas em Minas Gerais e Goiás. Nesse período, a
região de Ribeirão Preto era praticamente desabitada, havendo, porém, traços de ocupação
anterior, em épocas mais remotas, além de registros da presença de alguns indígenas em
localidades próximas
2
. É certo, entretanto, que havia pequenas propriedades agrícolas de
subsistência, que serviam de pousos e paragens a comerciantes e outros viajantes,
especialmente ao longo da Trilha de Goiás, a principal rota de passagem para o Oeste e Norte,
que não passava pela área onde atualmente está localizado o Município de Ribeirão Preto,
mas circundava Casa Branca, Batatais e Franca.
À medida que as áreas de mineração se expandiam, intensificava-se o fluxo das
trocas com os núcleos de população mais antigos, criando e sedimentando antigas
trilhas e caminhos. Negociantes, tropeiros, autoridades ou simples aventureiros
circulavam periodicamente pelas estradas, contribuindo para a fixação de
moradores ao longo dos percursos. Na beira dos caminhos iam se disseminando
ranchos, roças e vendas de gêneros da terra e surgindo locais para abastecimento e
pernoite, os pousos. Os pousos ofereciam aos viajantes acomodações extremamente
precárias que, em muitos casos, não diferiam muito das casas de morada dos
2
No Museu Histórico e Cultural Simonense, na cidade de São Simão (cerca de 50 km de Ribeirão Preto), é
possível visitar um acervo arqueológico com artefatos das eras da Pedra Lascada, Pedra Polida e da Cerâmica.
Mais informações sobre o povoamento da região, inclusive quanto à presença de comunidades indígenas, ver
LAGES, 2004.
59
proprietários, já em outros casos havia uma certa distinção entre ambos.
(BACELLAR, 1999, p. 17).
A análise do contexto nacional e internacional dos séculos XVIII e XIX
pode auxiliar a compreensão dos fatos regionais, razão pela qual buscar-se-á dar uma visão
geral deste contexto, antes de prosseguir com o relato da história local.
No final do século XVIII, as expedições ao interior do Brasil, em busca de
metais preciosos, tinham modificado a extensão geográfica do país, ao mesmo tempo que as
dimensões fixadas pelo Tratado de Tordesilhas não correspondiam mais às fronteiras reais da
ocupação portuguesa.
À medida que o território se modificava, crescia a população brasileira.
Embora os índios, os menores de sete anos e, muitas vezes, os escravos não fossem
computados nas contagens da população realizadas pela Coroa, é interessante citar os dados
disponíveis sobre a população do Brasil Colonial em 1819: 3.596.132 de habitantes, sendo
2.488.743 livres e 1.107.389 escravos. (FAUSTO, 2004, p. 137).
A vinda da família real, em 1808, e a abertura dos portos por Dom João VI
são alguns dos acontecimentos históricos importantes, antecessores à declaração da
Independência do Brasil, em 1822, que contribuíram para a continuidade do modelo
econômico colonizador português, baseado na cessão de terras públicas aos aliados, grandes
propriedades rurais, mão-de-obra escrava e produtos para a exportação.
A elite promotora da Independência não tinha interesse em favorecer rupturas que
pudessem pôr em risco a estabilidade da antiga Colônia. É significativo que os
esforços pela autonomia, que desembocaram na Independência, concentraram-se na
figura do rei e depois na do príncipe regente. [...] Na esfera internacional, vimos
como a Inglaterra garantiu e apressou o reconhecimento da Independência. O Brasil
não fez restrições ao comércio inglês, estabeleceu relações de dependência com o
mundo financeiro britânico e, contrariando “as tendências republicanas e
desagregadoras” do resto do continente, adotou o regime monárquico. (FAUSTO,
2004, p. 147).
Alguns historiadores entendem que a Independência foi um processo
pacífico e sem qualquer ruptura, enquanto outros entendem tratar-se de um momento
revolucionário. De qualquer forma, ambas as correntes parecem concordar quanto à
predominância da vontade da elite, pós Independência, e da ausência de grandes mudanças no
modelo econômico que vigorava até então. Os filhos dos proprietários rurais, que iam estudar
na Europa e voltavam ao país influenciados pelas idéias liberais, tiveram importante papel na
emancipação política brasileira, mas a manutenção do modelo escravista talvez tenha sido o
60
ponto central para a continuidade da Monarquia, uma contradição em face de todas as
influências liberais européias.
Pode-se dizer que uma das principais conseqüências da Revolução Industrial
foi o crescimento das cidades, mas, naquele momento histórico, estas conseqüências só foram
sentidas na Inglaterra e nos países europeus. Enquanto a cidade de Londres tinha uma
população de 800.000 habitantes em 1780, a cidade do Rio de Janeiro tinha 38.707 habitantes
na mesma época. (FAUSTO, 2004, p. 137-138).
E quem eram esses habitantes? A sociedade da época era formada pela
pequena elite detentora das grandes propriedades rurais, pela maioria de escravos e negros
libertos e pela existência de alguns grupos minoritários tipicamente urbanos: os burocratas, os
militares, os pequenos comerciantes e prestadores de serviço, praticamente todos com pouco
acesso à educação. Cada segmento da sociedade brasileira da época entendia o processo de
independência política de uma forma diferente.
Para o povo composto de negros e mestiços a revolução da Independência
configurava-se como uma luta contra os brancos e seus privilégios. Para os
despossuídos a revolução implicava a eliminação das barreiras de cor, a realização
da igualdade econômica e social, a subversão da ordem. Para os representantes das
categorias superiores da sociedade, fazendeiros ou comerciantes, a condição
necessária da revolução, no entanto, era a manutenção da ordem e a garantia de seus
privilégios. [...] Para as elites que tiveram a iniciativa e o controle do movimento,
liberalismo significava apenas liquidação dos laços coloniais. Não pretendiam
reformar a estrutura de produção nem a estrutura da sociedade. (COSTA, 1987, p.
33).
O pagamento de uma compensação à Coroa Portuguesa no valor de 2
milhões de libras, através de um empréstimo externo contraído pelo Brasil em Londres,
consolidou o processo de Independência, formalizado por um tratado com Portugal em agosto
de 1825. Este fato é indicado por alguns historiadores como o primeiro endividamento
externo brasileiro.
O processo brasileiro de independência da Coroa Portuguesa foi marcado
pela crise do sistema colonial tradicional, gerada pelos malefícios que este trazia ao sistema
de produção capitalista industrial, em processo de consolidação na Europa ocidental. No
mesmo período, várias colônias da América passaram pela emancipação política, inspirada
nas Revoluções Francesa e Americana.
O sistema colonial montado segundo a lógica do capitalismo comercial e em função
dos interesses do Estado absolutista entrou em crise quando a expansão dos
mercados, o desenvolvimento crescente do capital industrial e a crise do Estado
absolutista tornaram inoperantes os mecanismos restritivos de comércio e de
produção. Os monopólios e privilégios que haviam caracterizado o sistema colonial
61
tradicional apareceriam então como obstáculos aos grupos interessados na produção
em grande escala e na generalização e intensificação das relações comerciais. O
extraordinário aumento da produção proporcionado pela mecanização era pouco
compatível com a persistência de mercados fechados e de áreas enclausuradas pelos
monopólios e privilégios. O sistema colonial tradicional passou a ser criticado. A
teoria econômica foi reformulada e os postulados mercantilistas substituídos pelas
teses do livre-cambismo, mais adequadas ao novo estágio de desenvolvimento
econômico e aos interesses dos novos grupos associados ao processo de
industrialização. (COSTA, 1987, p. 18).
A adoção do regime monárquico no Brasil manteve a dependência
econômica da Inglaterra, a mão-de-obra escrava e o sistema de produção agrícola monocultor
e latifundiário.
A decadência da produção das minas de ouro e pedras preciosas motivou o
esvaziamento das vilas e cidades formadas em função da atividade mineradora, provocando
um refluxo e a ruralização da população mineira, que também migrou para as capitanias de
São Paulo e Rio de Janeiro. Os habitantes acablocados dos pousos, os descendentes dos
sesmeiros e posseiros, os descendentes dos paulistas povoadores do Caminho de Goiás,
misturaram-se aos novos entrantes mineiros, formando os arraiais, as primeiras fazendas e as
povoações que dariam origem às futuras freguesias e vilas do sertão paulista. A
predominância dos mineiros na região de Ribeirão Preto foi observada até o final do século
XIX, quando produtores de café fluminenses, paulistas e colonos estrangeiros, notadamente
italianos, começaram a disputar a hegemonia daqueles primeiros ocupantes do território.
A partir do século XIX, a cultura do café passou a ser o principal produto da
economia brasileira e as condições naturais da região eram propícias ao seu cultivo, mas a
comunicação com São Paulo e outras cidades era realizada através de tropas de burros, o que
tornava o transporte lento e difícil, inviabilizando um intercâmbio comercial regular. A
ascensão da cultura cafeeira, em detrimento das culturas tradicionais como a cana-de-açúcar e
o algodão, levou a um deslocamento da primazia econômica, até então localizada nas
províncias do Nordeste, para as regiões de café do Centro-Sul, atingindo o nordeste paulista
no fim do século XIX. Este fato mudou radicalmente o perfil da região. Para se ter uma idéia,
antes do boom cafeeiro, Ribeirão Preto não possuía autonomia política, fazendo parte da área
sob jurisdição da freguesia de São Simão, da qual somente se destacou em 1870.
À medida que a população crescia, quer por migração ou por natalidade, o
adensamento dos ranchos entre os córregos Retiro, Ribeirão Preto, Palmeiras,
Esgoto e Laureano, além de uma infinidade de córregos menores, deu origem a um
aglomerado de casas, tipicamente rural e bucólico, que pouco se diferenciavam
entre si na sua simplicidade. (BACELLAR, 1999, p. 35).
62
Em 1845, para atender às necessidades religiosas da população, José Mateus
dos Reis, um dos mais antigos moradores do território, doou à Igreja 40 mil réis em terras da
Fazenda das Palmeiras, com a condição de se levantar no local uma capela dedicada a São
Sebastião das Palmeiras. Contudo, nem esta doação nem as subseqüentes, feitas em 1852,
foram suficientes para a formação do patrimônio exigido pelas normas eclesiásticas da época,
que deveria corresponder a um mínimo de 120 mil réis. Provavelmente, esses doadores
construíram no local uma capelinha dedicada a São Sebastião, tamanha era a influência
religiosa na sociedade da época. A doação de partes de grandes áreas à Igreja, além de trazer
prestígio ao doador, trazia também vantagens econômicas, através da valorização do entorno,
pois as capelas que ali se construíam ensejavam a instalação do comércio e as áreas adjacentes
ao patrimônio doado poderiam ser negociadas para chácaras e outras moradias.
Assim, logo que o montante foi alcançado, o frabiqueiro nomeado pelo Bispo, para
exercer a função de zelador dos bens do Santo, requereu ao magistrado que o
quinhão que coubesse ao mártir São Sebastião fosse demarcado entre os Ribeirões
Retiro e Preto. [...] O juiz despachou favoravelmente em dezenove de junho de
1856, posteriormente esta data ficou estabelecida como a da fundação de Ribeirão
Preto, que faz sua trajetória de conquistas jurídicas: 1870, Freguesia; 1871, Vila;
1889, Cidade; 1902, Comarca; em 1908 foi instalada a Diocese, um ano após a
criação da Catedral. Por estes dados temos demonstrado claramente o rápido
crescimento experimentado por Ribeirão Preto. A prosperidade agrícola estimulou
um rápido crescimento populacional, o município teve sua população aumentada de
3.000, em 1869, para 12.033 habitantes, em 1890, e 59.195 habitantes, em 1900.
(MERCADANTE JUNIOR, 1988, p. 54-55).
A penetração do café na região ocorreu a partir de 1870 e alterou
radicalmente não só o panorama agrário como a área urbana. Novos melhoramentos foram
introduzidos, garantindo o estabelecimento de uma rede de comércio e de serviços para
atender às novas demandas econômicas, sociais e culturais. “A produtividade em Ribeirão
Preto foi superior aos demais municípios, provavelmente em função das boas terras ou mesmo
devido à melhor organização das fazendas locais.” (BACELLAR, 1999, p. 42).
Pelo ressenceamento de 1873 o povoado contava com 5.552 habitantes, dos quais
857 eram escravos. Com efeito, Ribeirão Preto não ficou isenta da participação da
mão-de-obra escrava em sua formação inicial, embora as possibilidades da
exploração do trabalho escravo já se encontrassem bastante limitadas e mesmo em
processo terminal, devido aos efeitos da lei de extinção do Tráfico Negreiro, de
1850 e à aproximação da Campanha Abolicionista, a partir de 1870. Em 1874, a
vila contava com quatro ruas, seis travessas e dois largos. Sucede-se um período de
crescimento moroso, durante o qual seus habitantes estão preocupados com o
reconhecimento do território, com as dificuldades de comunicação e de
administração. (BORGES, 1999, p. 18).
A transição da mão-de-obra escrava para a do imigrante foi fortalecida, no
país, pela Lei de Terras (1850), refletindo a ligação intrínseca existente entre a política agrária
63
e de mão-de-obra, bem como as influências do sistema econômico sobre ambas. A
substituição da mão-de-obra escrava demandava a importação de trabalhadores e esta
legislação buscava limitar o acesso à propriedade daqueles que viriam ao Brasil para o
trabalho no campo, além de proibir a doação de terras públicas e fomentar a demarcação e
registro das terras particulares. A relação do homem com a terra e a visão de mundo da elite
brasileira influenciaram as mudanças nas políticas de terra e de mão-de-obra. A historiadora
Emília Viotti da Costa (1987) analisa as duas principais correntes deste período histórico:
O conflito entre esses dois diferentes pontos de vista reflete a transição, iniciada no
século XVI mas concluída apenas no século XX, de um período no qual a terra era
concebida como sendo domínio da Coroa, para um período no qual a terra tornou-se
de domínio público; de um período no qual a terra era doada principalmente como
recompensa por serviços prestados à Coroa, para um período no qual a terra é
acessível apenas àqueles que podem explorá-la lucrativamente; de um período no
qual a terra era vista como sendo uma doação em si mesma, para um período no qual
ela representa uma mercadoria; de um período no qual a propriedade da terra
significava essencialmente prestígio social, para um período no qual ela representa
essencialmente poder econômico. A mudança de atitudes frente à terra correspondeu
à mudança de atitudes em relação ao trabalho: escravidão e certas formas de
servidão foram substituídas pelo trabalho livre. (p. 141).
Com o fim da escravidão, a adoção do regime republicano passou a ser um
caminho quase que natural. Os imigrantes italianos, que vieram substituir a mão-de-obra
escrava, trouxeram experiências de luta contra o capital, dos movimentos anarquistas e
disseminaram, no Brasil, as concepções de luta por igualdade e liberdade (JOSÉ FILHO,
2002, p. 67). A formação histórica de Ribeirão Preto foi influenciada pela chegada desses
imigrantes, principalmente italianos, marcando o crescimento da cidade com os ideais e
modos de vida europeus.
64
Ilustração 2. Carregamento de café para transporte através de linhas férreas na Fazenda Chimboraso, sede de
um conjunto de fazendas de propriedade da Cia. Agrícola Ribeirão Preto. A área total dessas fazendas alcançava
2.200 alqueires, onde existiam cerca de 2 milhões de cafeeiros, além de plantações de milho e criação de gado
(caracu). Local: atual município de Cravinhos. Data: década de 1920/1930. Fotógrafo: Theodor Preising.
Registro: 301-APH-RP. Fonte: Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.
Em trinta de julho de 1883, foi inaugurada a linha férrea construída pela
Companhia Mogiana, interligando Ribeirão Preto, Campinas e São Paulo. A partir de então, o
crescimento da vila foi avassalador, imensas fortunas se fizeram do dia para a noite e Ribeirão
Preto iniciou seu ciclo de modernidade. O trem portava consigo facilidade no transporte de
pessoas e cargas, levava o café e trazia os mais diversos produtos industrializados, importados
ou da nascente indústria nacional, transformando a dinâmica social local.
Ribeirão Preto, assim como todas as cidades que estavam em crescimento na época,
era desprovida de planejamento urbano; seus habitantes eram pessoas simples, que
através da intuição e da improvisação construíam casas, igrejas e pequenos
edifícios, esquecendo-se de toda e qualquer ordem arquitetônica e da utilização da
pintura, mesmo a decorativa. A instalação da estrada de ferro em 1883, cujas causas
maiores estavam no transporte direto do produto que sustentava a economia
brasileira, o café, bem como na fixação do povoamento e na facilitação de
transporte dos habitantes do meio rural para a vila, atesta o alto grau de progresso
da região à época. Pelo recenseamento de 1886, o povoado contava com 10.420
habitantes. [...] Quando ocorreu a proclamação da República, as mudanças da
cidade eram bem visíveis; a sua economia passara a existir em função da
monocultura cafeeira, com a utilização da mão-de-obra imigrante. Isto cria as
condições estruturais necessárias para preencher o hiato social que fora criado pelo
avanço acelerado da área rural. A participação ativa dos imigrantes foi o elemento
que veio suprir as necessidades de desenvolvimento cultural da cidade. (BORGES,
1999, p. 21-22).
A Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889)
foram acontecimentos históricos importantes para a região de Ribeirão Preto, na medida em
65
que o primeiro determinou a adoção da mão-de-obra imigrante e o segundo iniciou no Brasil o
período da Primeira República, marcada pela política de medidas governamentais protetoras
da cultura cafeeira.
Entre a última década do século XIX e os anos 1930, Ribeirão Preto recebeu
48.424 trabalhadores estrangeiros, que constituíram o grosso da mão-de-obra nas fazendas,
trabalhando em geral em sistema de colonato, um misto de remuneração por tarefa e por
medida colhida. Para sua instalação, nas fazendas foram criadas as colônias, edificadas em
pontos estratégicos para o controle da rotina de trabalho e a vigilância, sempre próximos a
algum curso d’água.
As condições de trabalho na lavoura eram duras e traumáticas, exigia-se do
imigrante trabalho e obediência, como se ele também fosse um escravo, culminando no êxodo
rural desses trabalhadores, que preferiram engendrar esforços no nascente mercado urbano a
se submeterem às condições de trabalho que lhes eram impostas.
O café, a ferrovia e o imigrante contribuíram para que, no final do século
XIX, o povoado existente não só tivesse se transformado em cidade, como já inaugurasse a
sua fase áurea. Com a cafeicultura, fortunas foram acumuladas, o progresso se instalou na
cidade, que refletia, para o país e para o mundo, uma grande pujança econômica.
Ilustração 3. Vista da Estação da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro, quando da solenidade da chegada a
Ribeirão Preto do Bispo Auxiliar, Dom Manoel da Silveira Delboux. Local: Av. Jerônimo Gonçalves. Data:
18/abril/1940. Registro: 279-APH-RP. Fonte: Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.
66
Em 1894, com a chegada de François Cassoulet, garçom vindo de Paris,
Ribeirão Preto teve seu primeiro cassino (o Eldorado), com prostitutas, atrações estrangeiras,
rodadas de jogos e champanhe francês, para deleite da elite cafeeira, exclusivamente
masculina. Com a inauguração do cassino, a vida noturna da cidade tornou-se agitada.
Nasciam os primeiros ares boêmios da cidade, ainda marcantes na sociedade ribeirãopretana,
conhecida atualmente como a “Capital do Chope”.
No mesmo ano, formou-se um consórcio de coronéis para a construção do
Theatro Carlos Gomes. Ao ser inaugurado, em sete de dezembro de 1897, passou a ser o
centro dos principais acontecimentos culturais da cidade e palco dos espetáculos de grandes
companhias estrangeiras. A modernidade européia chegou a Ribeirão Preto e vale a pena
observar que o Theatro Carlos Gomes foi projetado pelo famoso arquiteto, Ramos de
Azevedo, o mesmo que veio a projetar o Teatro Municipal de São Paulo, uma década mais
tarde.
Ilustração 4. Theatro Carlos Gomes, inaugurado em 1897 e demolido em 1946. Local: atual Praça Carlos
Gomes. Fonte: acervo ONG VIVACIDADE.
67
Ilustração 5. Theatro Carlos Gomes. Data: 1935. Registro: 307-APH-RP. Fonte: APH-RP.
Ilustração 6. Interior do Theatro Carlos Gomes. Data: 1935. Registro: 308-APH-RP. Fonte: APH-RP.
Um comércio variado abastecia toda a região, a cultura floresceu e uma
pequena parcela da população, detentora da maior parte das riquezas, adotou um
comportamento cosmopolita, visando demonstrar seu poder e prestígio através da
modernidade. “Como resultado desse rápido desenvolvimento econômico, Ribeirão Preto
iniciou sua ‘Belle Époque’, e por sua vida noturna efervescente adquiriu a reputação de ‘Petit
Paris’ do Brasil.” (WALKER, 2000, p.40).
68
No início do século XX, a sociedade ribeirãopretana aspirava a sua
europeização. Para ela, modernidade e civilização constituíam sinônimos e sua ambição era
ser parte integrante do universo da “Belle Époque”. Esta aspiração fez com que os imóveis se
submetessem a grandes projetos arquitetônicos, provocando expressivas mudanças na
paisagem local. No lugar das habitações simples da vila de outrora, surgiram as belas
residências dos Coronéis do Café, inspiradas nos modelos europeus, notadamente o francês.
O crescimento urbano, caracteristicamente desordenado no primeiro período
de ocupação de Ribeirão Preto, passou a ser orientado por uma lógica sanitarista, preocupada
em evitar epidemias e doenças contagiosas, comuns nos espaços urbanos do início do século
XX. Em 1889, foi inaugurado o novo Cemitério Público e, em 1896, foi criado o primeiro
hospital da cidade: a Sociedade Beneficente Santa Casa de Misericórdia.
Em 1903, foi inaugurado o Matadouro Municipal, às margens do Ribeirão
Preto. Iniciou-se a instalação da rede pública de água e esgotos, finalizada no ano seguinte e,
em 1905, as principais vias públicas foram arborizadas e calçadas com paralelepípedos. A
inauguração do Mercado Municipal, em 1900, além de oferecer melhores condições sanitárias
aos produtos comercializados, principalmente os de origem animal e vegetal de fácil
degradação no clima quente da região, expressa a existência de uma rede de comércio e
serviços na passagem para o século XX.
Ilustração 7. Antigo Mercado Municipal, construído em 1900 e destruído no incêndio de 1942. Fonte: Acervo
ONG VIVACIDADE.
69
A acumulação do capital cafeeiro fomentou o início do processo de
industrialização
3
de Ribeirão Preto. Exemplificando, em 11 de agosto de 1911, foi inaugurada
a Companhia Antarctica Paulista e, em 1913, era fundada a Companhia Cervejaria Paulista,
causando forte impacto na economia local e no crescimento urbano.
A indústria nascente, em particular a indústria de São Paulo, encontra a força de
trabalho necessária ao seu desenvolvimento no mercado de trabalho constituído
pela imigração em massa provocada pela expansão cafeeira e organizada pela
grande burguesia cafeeira através do Estado que ela controla diretamente. [...] A
massa de trabalhadores imigrantes que vem para o Brasil a partir dos anos 1880
representa certamente um mercado consumidor para a indústria nascente, mas ela
representa antes de tudo a formação do mercado de trabalho. Esse aspecto é
essencial para a compreensão dos verdadeiros laços que unem indústria nascente e
economia cafeeira. Ao destacarmos esse aspecto podemos analisar o nascimento da
indústria dentro das relações capitalistas no Brasil, cujo centro é a economia
cafeeira. [...] O crescimento vertiginoso da eletrificação e da urbanização,
elementos fundamentais para a indústria nascente, não podem ser entendidos sem
que consideremos os progressos simultâneos da indústria. Ele é, ao mesmo tempo,
condição e resultado dos progressos da indústria. (SILVA, 1985, p. 99).
Ilustração 8. Obras de construção da fábrica da Companhia Antarctica Paulista, inaugurada em 11 de agosto de
1911. Data: 1911. Fotógrafo: Ernesto Kuhn. Registro: 175-APH-RP. Fonte: Arquivo Público e Histórico de
Ribeirão Preto.
3
V. MARCONDES, Renato Leite. Comércio e Indústria em Ribeirão Preto de 1890 a 1962.
http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/scultura/arqpublico/i14principal.asp?pagina=/scultura/arqpublico/artigo/i14in
dice.htm. Acesso em 07/07/2006.
70
Ilustração 9. Inauguração da fábrica da Companhia Cervejaria Paulista, em 18 de abril de 1914, na Avenida
Jerônimo Gonçalves.
Trinta e três aparelhos de telefones foram ligados e o primeiro jornal diário
da cidade começou a circular no ano de 1898, seguindo-se a instalação da rede pública de luz
elétrica, no ano seguinte e, em 1910, foi inaugurada a primeira agência dos correios. O
crescimento econômico e urbano demandou a criação de instituições de ensino e, em 1924, foi
fundada a Associação de Ensino de Ribeirão Preto (AERP, atual UNAERP – Universidade de
Ribeirão Preto), iniciando a constituição do atual pólo acadêmico e científico, reconhecido
internacionalmente, como já salientado. Em 1951, foi fundada a Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP), transferida em 1953 para a Fazenda Monte Alegre.
Durante o apogeu do café, a área foi coberta por quinze milhões de pés e era uma das sessenta
propriedades rurais do “Rei do Café”, Francisco Schmidt. Após sua morte e com o declínio da
produção cafeeira, em 1940, a fazenda foi vendida pelos herdeiros ao governo do Estado de
São Paulo para fundação da Escola Prática de Agricultura e, na década de 50, cedida para a
USP.
71
Ilustração 10. Prédio da Escola Prática de Agricultura “Getúlio Vargas”, construído na década de 1940 e
transferido em 1952 para a Universidade de São Paulo para abrigar a Faculdade de Medicina. Local: Campus da
USP. Data: final da década de 1950. Registro: 227-APH-RP. Fonte: Arquivo Público e Histórico de Ribeirão
Preto.
Ilustração 11. Museus Histórico e do Café, o primeiro (à esquerda) instalado na casa da sede da antiga Fazenda
Monte Alegre, construída por João Franco de Morares Octávio na década de 1870, e o segundo (ao fundo),
inaugurado em 26 de janeiro de 1957. Local: atual Campus da USP. Data: 1960. Registro: 286-APH-RP. Fonte:
Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.
72
Em 1929, a crise do café modificou o perfil das propriedades rurais, onde a
produção do café foi gradativamente substituída por outras culturas, como algodão, cana-de-
açúcar e cereais e pela pecuária, mas seus efeitos foram minimizados na região, em razão do
crescimento econômico gerado pela recente industrialização e pela consolidação da rede de
comércio e serviços. Em 1930, a Cia. Cervejaria Paulista inaugurou o Theatro Pedro II, em
meio a um hotel e um prédio comercial, também de sua propriedade, localizados em frente à
praça XV de Novembro, na região central de Ribeirão Preto. Conhecido como “Quarteirão
Paulista”, o complexo foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT)
4
, órgão
estadual de preservação do patrimônio cultural.
Ilustração 12. Praça XV de Novembro e Quarteirão Paulista (Theatro Pedro II, Edifício Meira Júnior e Central
Hotel, posteriormente denominado Palace Hotel). Data: 08/julho/1930. Fotógrafo: Rainero Maggiori. Registro:
09-APH-RP. Fonte: Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.
O projeto arquitetônico do Theatro Pedro II foi inspirado em casas de
espetáculos européias e serviu de palco para corpos de baile, companhias teatrais e
operísticas, nacionais e internacionais. Nos anos 1960, sofreu diversas intervenções,
transformando-se em cinema. Em 1980, um incêndio destruiu a cobertura, o forro do palco e
4
Resolução da Secretaria de Estado da Cultura nº 26, de 15/12/1993, publicada no Diário Oficial do Estado de
São Paulo de 16/12/1993.
73
grande parte do interior, inviabilizando seu uso, até a obra de restauro e a reinauguração, em
1996.
Completando o cenário urbano representativo do capital industrial, em 1936
foi erguido o primeiro edifício da cidade: o Prédio Diederichsen, com cinco andares
destinados a escritórios, consultórios, residências, cinemas e hotel.
Um exame da evolução dos sistemas social e econômico do Estado de São Paulo
logo revela que, realmente, não há qualquer tema importante que não esteja direta e
fortemente relacionado a um fator chave, o café. Foi o aumento da produção de
café, no final do século XIX e início do século XX, que levou São Paulo a ocupar
uma posição econômica proeminente entre os Estados brasileiros. Foi a economia
cafeeira que estimulou a onda de imigração que contribuiu para a rica e variada
mistura étnica visível no Estado. E foi o capital acumulado pelos barões do café que
financiou o incrível crescimento industrial que tornou o Estado a mais importante
região industrial da América Latina. (WALKER, 2000, p. 21).
A paisagem urbana foi se modificando desde o fim do século XIX até o
início do XX, mas, no final dos anos 1920, auge da economia cafeeira antes da crise mundial,
as construções coloniais existentes entre a Avenida Jerônimo Gonçalves e a Praça XV foram
destruídas, para dar lugar às construções arquitetônicas inspiradas no modelo europeu. O
primeiro núcleo urbano da cidade, em torno da antiga Matriz, expandiu-se pelo quadrilátero
central
5
, após a inauguração da Catedral Metropolitana de São Sebastião de Ribeirão Preto,
em 1920, construída no estilo romântico e linhas góticas, com vitrais coloridos e afrescos de
Benedito Calixto em seu interior.
Em 1922, ano do centenário da Independência, Ribeirão tinha 3.240 casas, a
maioria do período colonial, segundo dados da década de 1940 da Diretoria de
Obras da prefeitura. O total de imóveis progrediu nos anos seguintes, devido ao
surto progressista provocado pela alta do café, entre 1926 e 1930, o que fez surgir
palacetes e o Quarteirão Paulista, onde está o Palace Hotel e o Pedro 2º. Foi nessa
fornada desenvolvimentista que imóveis do período colonial, que tinham como
características os telhados “caindo” para o lado de fora da casa e batentes grossos
de madeira, foram demolidos. Por causa da quebra da Bolsa de Nova York (1929) e
da Revolução Constitucionalista (32), houve estagnação até 1935, quando Antonio
Diederichsen começou a erguer o primeiro edifício da cidade. (FOLHA
RIBEIRÃO, 2006, p. 10).
A construção dos casarões, lojas, praças, teatros, órgãos públicos, enfim, toda
a infra-estrutura moderna a que a sociedade ribeirãopretana aspirava na época, modificou a
paisagem urbana, apagando as marcas das construções coloniais. Expressando idêntica
tendência, a elite do final da década de 1970 e início dos anos 1980 perpetuou a forma de
crescimento urbano totalmente despreocupada com a preservação do patrimônio cultural
5
Trecho delimitado pelas quatro principais avenidas da região central de Ribeirão Preto, atualmente
denominadas Jerônimo Gonçalves, Francisco Junqueira, Independência e Nove de Julho.
74
edificado, destruindo os palacetes e grandes edificações construídos no auge da economia
cafeeira.
Um dos casos flagrantes desta lógica foi a demolição do Palacete Innechi, na
esquina da atual Rua Duque de Caxias com a Rua Barão do Amazonas, onde foi construído
um moderno prédio de concreto aparente, para instalação de uma grande instituição
financeira.
Ilustração 13. Palacete Innechi e prédio da antiga sede da Sociedade Recreativa, o primeiro (à esquerda)
construído em 1929 (atual Banco Itaú) e o segundo (à direita), inaugurado em 1908, depois sediou a Câmara
Municipal, entre os anos de 1956 e 1984 e atualmente abriga o Museu de Arte de Ribeirão Preto - MARP. Local:
Rua Duque de Caxias, esquina com Barão do Amazonas. Data: 1930. Registro: 281-APH-RP. Fonte: Arquivo
Público e Histórico de Ribeirão Preto.
A crise da economia cafeeira marcou o início da Era Vargas, que perdurou de
1930 a 1945, atravessando o período da Segunda Guerra Mundial. Getúlio Vargas foi uma
figura de grande expressão na história política brasileira do século XX. Apoiado pela Igreja
Católica, foi eleito pela primeira vez em 1930, pelo voto indireto, governou o país ora sob
regime ditatorial, ora aparentemente democrático, censurou a imprensa, criou a Companhia
Siderúrgica Nacional e a Petrobrás. Foi o responsável por reformas significativas no serviço
público, pela criação dos Ministérios do Trabalho, da Indústria e do Comércio, da Educação e
da Saúde, além de mudanças nas legislações trabalhista, previdenciária e sindical, baseadas na
estatização das relações de trabalho. “A política trabalhista do governo Vargas constitui um
75
nítido exemplo de uma ampla iniciativa que não derivou das pressões de uma classe social e
sim da ação do Estado. [...] As organizações operárias, sob controle da esquerda, tentaram se
opor [...] mas a tentativa fracassou.” (FAUSTO, 2004, p. 336).
Na história de Ribeirão Preto, é possível identificar um reflexo desta
tentativa de oposição ao governo Vargas. Com o aumento da industrialização, nas décadas de
1920 e 1930, cresceu também o operariado e outras profissões tipicamente urbanas, dando
margem ao processo de organização e formação política desses trabalhadores. Com os
sindicatos obrigatoriamente vinculados ao Ministério do Trabalho e, por conseqüência,
fortemente submetidos à vontade governamental, os comunistas foram afastados da direção da
União Geral dos Trabalhadores de Ribeirão Preto (UGT), na época a principal organização
dos trabalhadores da cidade:
Mesmo com o reduzido número de militantes no Brasil, principalmente no Estado
de São Paulo, fato que provocava uma atuação político-social restrita do Partido
Comunista do Brasil, surgiu em Ribeirão Preto um pequeno grupo de simpatizantes
do comunismo, por volta de 1923. Esse grupo era formado por Guilherme Milani,
Rômulo Pardini, Gustavo Wierman e outros, sendo que os dois primeiros tinham
saído do movimento anarco-sindicalista. O grupo reunia-se na casa de Milani para
discutir a organização do movimento operário e a criação de uma associação de
defesa dos interesses dos trabalhadores em Ribeirão Preto. Como resultado da
atuação desse grupo, fundou-se, em 30 de março de 1925, a UGT – União Geral
dos Trabalhadores de Ribeirão Preto, tendo seus estatutos registrados em cartório
no dia 6 de maio do mesmo ano. [...] os comunistas participaram ativamente da
campanha de arrecadação de fundos para a construção da sede própria da UGT,
inaugurada em 4 de janeiro de 1934, e construída pelos próprios associados. No
prédio da União passaram a atuar vários sindicatos ministerialistas, que se
mantiveram ligados à UGT até 1941. [...] Além dos choques com os integralistas, a
fração sindical do PCB teve de enfrentar a ampliação da ação repressiva da
Delegacia Regional de Polícia, que intensificou as investigações da atuação
comunista na UGT, mantendo essa instituição sob constante vigilância A situação
agravou-se depois da organização da Aliança Nacional Libertadora em Ribeirão
Preto. [...] bem próxima à UGT, a ANL reuniu várias agremiações no seu curto
período de existência legal na cidade. O presidente do diretório local, Antônio
Campos, conseguiu a adesão oficial da UGT, do PSB e dos comunistas. (ROSA,
1997, p. 40-97).
O imigrante europeu influenciou o modo de vida local, especialmente o
aspecto político, com seus ideais comunistas e anarco-sindicalistas, que acabaram sendo
determinantes na organização do movimento operário em Ribeirão Preto, o qual só não se
aperfeiçoou por força da repressão policial local, que seguia as diretrizes federais impostas
por Vargas e pela elite dominante, pouco interessada nessa organização. As políticas
econômicas de proteção governamental, inicialmente do café e da indústria (que beneficiava
os detentores do capital cafeeiro) e posteriormente incentivando a diversificação agrícola,
76
marcando o início do cultivo de cana-de-açúcar, hoje a principal atividade econômica
regional, traziam prestígio ao Governo Vargas na região de Ribeirão Preto.
Do final da década de 1930 até sua queda em 1945, Getúlio Vargas adotou
programas econômicos em geral favoráveis à economia paulista. Tentou amenizar
as perdas dos barões de café e, mais importante ainda que isso, incentivou, por
meio de concessão de crédito, a industrialização e a diversificação da agricultura.
Por esse motivo, São Paulo emergiu da Era Vargas com uma economia, embora
diferente, ainda assim vigorosa. A importância relativa do café havia diminuído e a
diversificação da agricultura e a contínua industrialização tomaram seu lugar.
(WALKER, 2000, p. 23).
Durante o período do Estado Novo (1937-1945), cabe destacar a nomeação
de Fábio de Sá Barreto, que administrou Ribeirão Preto, como prefeito interventor de 1936 a
1944. Representante da antiga aristocracia paulista, ainda hoje é um dos prefeitos mais
lembrados, em boa parte por sua preocupação com o embelezamento da cidade. Sob sua
administração, foram realizadas melhorias no sistema sanitário municipal, nos parques, praças
e remodelações no Jardim Zoológico e Botânico (atual Bosque Municipal Fábio Barreto).
Os projetos de embelezamento de Fábio Barreto restauraram o orgulho civil local e
a economia começou a se restabelecer em resposta às políticas da administração
Vargas visando ao favorecimento da diversificação. Mesmo antes de 1937, o
algodão havia-se tornado uma importante cultura na região. Agora, durante o
Estado Novo, e especialmente após o princípio da Segunda Guerra Mundial, o
Instituto do Açúcar e Álcool estimulava o cultivo da cana-de-açúcar, facilitando
generosos empréstimos a uma taxa de juros de 3% através do Banco do Brasil e
permitindo práticas monopolistas e grandes lucros. (WALKER, 2000, p. 97).
Na metade do século XX, enquanto a Europa e a Ásia promoviam a
reconstrução pós Segunda Guerra, o Brasil passava por breve período democrático (1945-
1964). O sistema eleitoral estava mais honesto, o voto tornou-se obrigatório, inclusive para
mulheres e jovens maiores de dezoito anos, desde que alfabetizados. Ribeirão Preto
caracterizou-se por uma economia estruturada em ampla e diversificada rede comercial e de
serviços (ressaltando as áreas de saúde e educação), no centro de umas das regiões mais
importantes da agroindústria brasileira. A vocação urbana pode ser identificada claramente
nesse período, demandando equipamentos urbanos que pudessem atender ao contínuo
crescimento populacional.
No âmbito social, Ribeirão Preto mudou radicalmente. [...] tornou-se,
especificamente, mais “brasileira”, mais urbana e, presume-se, mais alfabetizada,
enquanto permaneceu em sua maioria branca e – ao menos formalmente –
predominantemente católica. [...] O crescimento geral de aproximadamente 60 mil
habitantes, em 1912, para aproximadamente 130 mil, em 1960, não é
particularmente notável, mas o que é interessante é a radical urbanização ocorrida.
Enquanto a população rural decaiu em dois terços, o setor urbano expandiu mais de
seis vezes. Como conseqüência, o Município, que era quase 68% rural, em 1912,
77
chegou próximo de 90% urbano, em 1960. Esses números certamente refletem uma
mudança significativa da economia, baseada na agricultura durante a República
Velha, para uma economia mista com grande ênfase em serviços urbanos e nos
setores comercial e industrial durante as décadas de 1940 e 1950. (WALKER,
2000, p. 44-45).
A cidade conservou esta vocação urbana e, segundo dados mais recentes,
começa o século XXI com mais de 500 mil habitantes e quase 100% (cem por cento) da
população na zona urbana, como se pode observar no Quadro 1.
Quadro 1. Município de Ribeirão Preto: Evolução da População
Ano
População
Participação na
População do Estado
População
Urbana
População
Rural
Taxa de
Urbanização
1980 316.918 1,27% 306.837 10.081 96,81%
1991 434.142 1,38% 424.311 9.831 97,75%
1996 455.810 1,34% 453.684 2.126 99,53%
2000 504.923 1,37% 502.760 2.163 99,57%
Fonte: Fundação SEADE e Censo IBGE, 2000, in RIBEIRÃO PRETO, on-line.
Os índices populacionais refletem a importância da economia local, cuja
diversidade comercial e de serviços influencia as relações políticas e sociais da macro-região
para além das divisas estaduais.
Tornou-se a quinta Região em termos de participação na renda do Estado e
continua apresentando crescente desenvolvimento sócio-econômico, calcado na
diversificação da economia e na qualidade de vida da população, constituindo-se no
grande responsável pela atração que o município de Ribeirão Preto exerce sobre um
território que ultrapassa os limites da Região Administrativa, integrando novos
limites géo-econômicos como algumas cidades do Estado de Minas Gerais,
notadamente as do “Triângulo Mineiro”. Compõem a Região Administrativa 86
municípios e 3 milhões de habitantes, distribuídos por uma área de 36.000Km²
(maior que os territórios dos Estados de: Alagoas – 27.933,1 Km², Sergipe –
22.050,3 Km² - IBGE/1998) e renda percapta de U$ 5.500. Sua economia resulta
num Produto Interno Bruto (PIB) de aproximadamente US 17 bilhões. (COSAC,
1998, p. 30).
Os dados estatísticos mostram a complexa dinâmica urbana de Ribeirão
Preto, daí o interesse pelos caminhos percorridos pela preservação do patrimônio cultural, no
diálogo com a gestão urbana. O crescimento contínuo exige a manutenção e ampliação dos
equipamentos urbanos, entendidos no seu sentido mais amplo, compreendendo as vias
urbanas, áreas verdes, equipamentos sociais e culturais, saneamento básico e o mais
necessário à qualidade de vida minimamente satisfatória dos habitantes da cidade.
78
Ilustração 14. Foto aérea de Ribeirão Preto, focalizando o Quadrilátero Central. (PREFEITURA RIBEIRÃO,
on-line).
A sociedade ribeirãopretana é vista por muitos como acolhedora,
característica esta provavelmente ligada ao regular fluxo migratório que aqui se verifica,
atraído pelas atividades econômicas e culturais. Entretanto, como qualquer cidade, revela
também um lado mais fechado, que algumas vezes chega a impedir a sua plena integração
com os migrantes. De acordo com Walker (2000),
[...] caracterizou-se como uma sociedade muito aberta, ou seja, uma sociedade em
que pessoas de todos os tipos eram provavelmente bem aceitas e onde a mobilidade
social era bastante livre. Esse fato positivo é provavelmente atribuído não apenas à
cordial característica genérica dos brasileiros, mas também à afortunada história do
próprio Município. Ribeirão Preto desenvolveu-se durante um período de fartura,
quando se poderia esperar que invejas e preconceitos acontecessem pouco, e
qualidades de cooperação e generosidade, bastante. [...] No entanto, nenhuma
sociedade no mundo é, ou jamais foi, completamente aberta ou completamente livre
de preconceitos. Ribeirão Preto não é uma exceção. (p. 48-49).
A formação histórica e a ocupação da região onde atualmente se localiza o
Município de Ribeirão Preto confirmam a existência de um patrimônio cultural local a ser
preservado. Por outro lado, como salientou a Historiadora e Arquivista Tânia Registro
6
,
poder-se-ia também falar em “patrimônios culturais”, em face da própria diversidade
histórica.
O crescimento urbano acelerado, um dos efeitos do capitalismo globalizado,
exige racionalidade na gestão e otimização de recursos. Incorporar a vertente da preservação
do patrimônio cultural à gestão urbana contemporânea passa pelo entendimento da
complexidade relacionada ao desenvolvimento sustentável.
6
Observação colhida em contato informal com funcionários do Arquivo Público e Histórico Municipal, durante
o processo de coleta de dados da presente investigação.
79
No ano de 2006, Ribeirão Preto comemora o sesquicentenário de sua
fundação. Se, por um lado, o crescimento econômico trouxe benefícios incontestáveis para o
crescimento da cidade, por outro, cada vez mais se percebem, no cotidiano, os malefícios
presentes nas grandes cidades brasileiras: má distribuição de renda, proliferação de favelas,
aumento da criminalidade, caos na saúde pública, poluição e outros reflexos da questão sócio-
ambiental, que precisam ser enfrentados pela gestão urbana.
A promulgação da Constituição Federal em 1988 iniciou novo ciclo na
gestão urbana, inspirando mecanismos de controle democrático direto, dentre eles os
Conselhos Municipais. O Estatuto da Cidade, legislação federal regulamentadora do artigo
192 da Constituição Federal, que trata do direito à cidade, obriga os municípios que especifica
à elaboração ou atualização do Plano Diretor
7
e estabelece como prazo final para sua
implementação o ano de 2006.
A preservação do patrimônio cultural atua na formação de cidadãos e estes,
motivados pelo sentimento de pertencimento ao espaço urbano, passam a interagir de forma
mais qualitativa na política. Esta interação gera o “empoderamento” da sociedade civil e
fortalece o processo de enriquecimento político, em diversas formas de expressão: voto
consciente, participação nas instituições democráticas (Conselhos Municipais, audiências
públicas, plebiscitos, projetos de lei de iniciativa popular), organização da sociedade civil
através de associações, sindicatos, movimentos sociais ou partidos políticos e tantas outras,
experimentadas em todo o território nacional.
No próximo capítulo, tratar-se-á do sistema normativo responsável pelo
estabelecimento da relação entre patrimônio cultural e cidadania. Este sistema é passível de
análise racional e pode fornecer subsídios para a melhoria da gestão urbana democrática, um
dos principais desafios dos administradores municipais no século XXI. Analisar as atitudes do
passado, reconhecer uma identidade cultural local, capaz de gerar reflexões sobre o presente e
planejar ações no futuro, exigem um ordenamento jurídico compatível com as limitações e
possibilidades da atuação da sociedade civil. Daí a importância de se conhecer a legislação
existente sobre o tema.
7
Conjunto de leis municipais destinadas a garantir a gestão urbana democrática.
80
CAPÍTULO 2 – ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA DO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO NA GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
81
Não haverá paz
Não haverá jamais
Ordem e progresso algum
Sem justiças e políticas sociais
Sem leis iguais pra qualquer um.
(TRIBO DE JAH)
2.1 Breve Histórico Constitucional Brasileiro e o Regime Democrático de Direito
No capítulo anterior, falou-se sobre o conceito contemporâneo de cidadania,
relação social complexa estabelecida na conquista e efetivação de direitos pelos sujeitos
históricos, com deveres estabelecidos pelo ordenamento jurídico, sistema burocrático racional
que rege a gestão da sociedade democrática. Muitas vezes, o exercício da cidadania se
ressente da carência de atualizações legislativas, mas deve-se entendê-lo de forma ampla, de
modo a se compreender que a efetividade do direito é tão importante quanto sua existência.
A Constituição Federal de um país é a lei suprema do ordenamento jurídico,
a maior de todas dentro da hierarquia das normas, não podendo ser contrariada nem
desrespeitada. Todavia, desde os tempos da primeira Constituição Imperial de 1824, a
sociedade brasileira tem com a lei uma relação conflitante. O desrespeito ao ordenamento
jurídico constitui prática recorrente e cotidiana desde os tempos do Império, época em que
surgiu uma expressão, usada para indicar algo que existe só na fachada, feito para não ser
aplicado: “para inglês ver”. Fausto (2004) esclarece em detalhes a origem do que acabou se
tornando um conhecido dito popular:
Uma lei de 7 de novembro de 1831 tentou pôr em andamento o tratado ao prever a
aplicação de severas penas aos traficantes e declarar livres todos os cativos que
entrassem no Brasil, após aquela data. A lei foi aprovada em um momento de
temporária queda no fluxo de escravos. Logo depois, o fluxo voltou a crescer e os
dispositivos da lei não foram praticamente aplicados. [...] A lei de 1831 foi
considerada uma lei “para inglês ver”. Daí em diante, essa expressão, hoje fora de
moda, se tornou comum para indicar alguma atitude que só tem aparência e não é
para valer. (p. 194).
O ordenamento jurídico regula de forma racional o relacionamento entre a
sociedade e o Estado, sendo importante analisar a história política brasileira para compreender
a relação existente entre os direitos e deveres consagrados na norma jurídica constitucional e
sua efetivação na realidade social.
A história constitucional do Brasil, de conhecimento indispensável a quantos
buscam estudar nossas instituições políticas e sociais, representa um dos mais
profundos mergulhos na compreensão do passado nacional. [...] Em verdade, tem
essa história um fundamento elitista porque o povo não a escreveu. Em seu nome
agitaram-se porém os movimentos mais célebres que despertaram em todo o País
82
uma consciência nacional no propósito de estabelecer a identidade do elemento
brasiliense, assentado já sobre os alicerces de um pluralismo social a que algumas
idéias generosas de nossa formação serviram sem dúvida de bandeira, laço de união
e base de congraçamento. Assim, por exemplo, no Primeiro Reinado, durante os
episódios da dissolução da Constituinte, durante a viagem mineira do Imperador,
bem como por ocasião da noite carioca das garrafadas. Tudo culminou no 7 de
abril, mas prosseguiu depois com os movimentos da Maioridade e da Abolição, até
chegar à República, onde o civismo do povo mostrou a face renovadora, seguida da
Reação Republicana e posteriormente da Aliança Liberal de 30, sem falar depois
nos comícios em favor da FEB, precursores da redemocratização de 1946 e fator de
aluição do Estado Novo e da ditadura de 37. Também foram significativas as
campanhas de rua em prol do monopólio estatal do petróleo e, de último, a
memorável cruzada das “diretas-já”. O poder soberano do povo, em estado puro,
ditando a vontade suprema da Nação, só tem aparecido em ocasiões raras, de sorte
que seu exercício político imediato fica freqüentemente coartado pela
intermediação e infidelidade de governantes habituados ao poder sem freio e sem
limitações. (BONAVIDES, 1991, p. 05).
Conhecer a história constitucional brasileira facilita a compreensão das
formas contemporâneas de exercício da democracia direta e o entendimento do objeto deste
estudo. A Constituição Federal de 1988 é a sétima promulgada no Brasil desde a
Independência e a sexta desde a Proclamação da República, mas os ideais republicanos
remontam às Revoluções Inglesa (Revolução Industrial), Americana e Francesa. Montesquieu
(1689-1755), o filósofo da Revolução Francesa, em sua obra “O Espírito das Leis”, contribuiu
para a formação do ideal democrático moderno, influenciando a formação de governos por
todo o mundo, inclusive o Brasil:
Existem três espécies de governo: o REPUBLICANO, o MONÁRQUICO e o
DESPÓTICO. Para descobrir-lhes a natureza, basta a idéia que deles têm os
homens menos instruídos. Eu suponho três definições, ou melhor três fatos: um que
“o governo republicano é aquele em que o povo num corpo, ou somente uma parte
do povo, tem o poder soberano; a monarquia é aquele onde um só governa, mas por
leis fixas e estabelecidas; ao invés que, no despotismo, um só, sem leis e sem
regras, conduz tudo por sua vontade e seus caprichos.” Eis aí o que chamo de a
natureza de cada governo. É preciso ver quais são as leis que resultam diretamente
desta natureza e que, conseqüentemente, são as primeiras leis fundamentais.
(RODRIGUES, 2000, p. 21).
O Brasil colonial vivia sob um regime de governo despótico desde 1500,
quando os portugueses iniciaram a ocupação, dominação e exploração do território americano
que lhe coube no Tratado de Tordesilhas. Passaram-se trezentos anos e três grandes ciclos
econômicos, pau-brasil, açúcar e ouro, mas foi a vinda da família real que, em 1808, marcou o
início da modernidade no país e, após abertura dos portos, o intercâmbio comercial
possibilitou também maior aproximação com os ideais europeus de liberdade do século
XVIII.
83
Uma série de influências sociais – principalmente econômicas – algumas anteriores
à chegada do príncipe mas que só depois dela se definiram ou tomaram cor,
começaram a alterar a estrutura da colônia no sentido do maior prestígio do poder
real. Mas não só do poder real – que se avigorou, mesmo nas mãos moleironas de
D. João; também das cidades e das indústrias ou atividades urbanas. Também estas
se avigoraram e ganharam maior prestígio. (FREYRE, 2003, p. 106).
Durante séculos, o modelo de colonização imposto pelos portugueses para a
ocupação e uso do território brasileiro caracterizou-se pela exploração dos recursos naturais e
humanos e pela confusão entre o público e o privado. Os efeitos negativos da política
neoliberal e da globalização, abordados no capítulo anterior, são sentidos em todo o planeta,
mas, como muitos países em desenvolvimento, o Brasil apresenta este cenário agravado pelas
diferenças historicamente impostas. A trajetória histórica brasileira, a partir da sociedade
colonial, fornece subsídios à análise sociológica contemporânea e, com isto, a construção de
meios de enfrentamento da questão social, tendo em vista a diversidade da formação cultural
brasileira.
A importação de escravos africanos, de tribos e culturas diferentes,
submetidos a condições desumanas de trabalho, sem respeito aos laços familiares e culturais
originários, atendeu exclusivamente aos interesses dos colonizadores portugueses. O modelo
de grande latifúndio, estabelecido no período colonial, ainda hoje conserva suas raízes em
algumas regiões menos povoadas do Brasil, concentrando a terra em poder de umas poucas
famílias tradicionais.
Após a Independência do Brasil, em 1822, adotou-se o regime monárquico
com a promulgação da Constituição Imperial, em 1824. Ainda que, na análise contemporânea,
seja difícil entrever o salto político representado por este texto constitucional, pois não se
configurou como democrático conforme a definição de Montesquieu, percebe-se o avanço
quando comparado ao modelo despótico, uma vez que o poder atribuído ao Monarca passou a
ser limitado por leis fixas e estabelecidas.
Indubitavelmente, existe um núcleo material nas Constituições sem o qual não se
pode falar em Estado. Se este pressupõe organização e se esta é fornecida por
instrumentos normativos cogentes, imperativos, derivam eles do exercício do poder.
Assim, é norma substancialmente constitucional aquela que identifica o titular do
poder. [...] O teor dessa norma identificadora da titularidade e do exercício do poder
é que permite a organização. Antes do chamado Estado de Direito, que o mundo
conheceu após os movimentos de prestígio do indivíduo, corporificados nas
Revoluções Inglesa, Americana e Francesa, não se põe em dúvida a existência de
um Estado: aquele chamado Absoluto. Portanto, fundava-se numa Constituição que
se assentava, muitas vezes, em norma única: sempre aquela indicadora do titular do
poder. Seu enunciado: “todo poder emana do Soberano” ou “emana da divindade de
que o Soberano é representante”. (TEMER, 1995, p. 22-23).
84
No dizer do autor, Constituição não é exclusividade do governo de natureza
republicana, mas é necessária à formação do Estado e à titularidade do poder. A primeira
Constituição brasileira (1824) foi elaborada por Dom Pedro, Imperador Constitucional do
Brasil, após a dissolução da Assembléia Constituinte (que havia sido eleita pela minoria de
homens brancos e mestiços que podiam votar), motivada por disputas entre Executivo e
Legislativo, com o apoio dos militares, caracterizando a forma de exercício do poder vertical
e centralizador.
A Constituição representava um avanço, ao organizar os poderes, definir atribuições,
garantir direitos individuais. O problema é que, sobretudo no campo dos direitos,
sua aplicação seria muito relativa. Aos direitos se sobrepunha a realidade de um país
onde mesmo a massa da população livre dependia dos grandes proprietários rurais,
onde só um pequeno grupo tinha instrução e onde existia uma tradição autoritária.
(FAUSTO, 2004, p. 149).
O país foi dividido em províncias, administradas por presidentes nomeados
pelo Imperador, assegurando-se alguns direitos individuais e uma certa liberdade de
pensamento e de manifestação. Nesse período, a nascente imprensa brasileira teve importante
papel nas críticas à política monárquica.
As guerras na Província Cisplatina e a disputa pela navegação no Rio da
Prata agravaram os problemas financeiros do governo que, somados aos baixos preços dos
produtos brasileiros e à retirada de todo o ouro das reservas do Banco do Brasil por Dom João
VI em sua volta a Portugal, forçaram a emissão de moeda sem lastro. Ainda que não existisse
o termo “inflação”, o papel moeda emitido pelo Tesouro, na prática comercial, era negociado
abaixo do seu valor nominal.
Em meio a essa crise econômica, a morte de Dom João VI, em Portugal,
reacendeu o sentimento anti-lusitano. O receio de que Dom Pedro assumisse o trono
português, com o risco de um retrocesso do Brasil aos tempos de colônia do Reino Unido de
Portugal, precipitou algumas revoltas urbanas e forçou o Imperador a abdicar do trono em
favor de seu filho, Dom Pedro II, à época com apenas cinco anos de idade, dando lugar ao
período da Regência (1831-1840).
Esse período histórico foi marcado pela luta pela integridade territorial do
Brasil e pela disputa entre liberais e conservadores acerca do papel do Estado, descentralizado
nas Províncias ou centralizado na figura do Império. Esta discussão foi a semente dos dois
partidos políticos imperiais (o Conservador e o Liberal), mas alguns historiadores salientam
que as diferenças ideológicas entre eles eram maiores enquanto não estavam organizados em
partidos políticos. Essa organização partidária ocorreu paralela à consolidação do Estado
85
centralizador, após alguns avanços descentralizadores no período Regencial, como a criação
das Assembléias Provinciais, responsáveis pela nomeação de funcionários públicos e
arrecadação de impostos nas Províncias. Ambos os partidos acabaram por se organizar em
torno do poder centralizado, em busca de pequenos poderes e vantagens pessoais. Já neste
período histórico, a troca de partido pelos políticos era constante e sem qualquer motivação
ideológica, permanecendo as duas correntes unidas em torno da manutenção do sistema
escravista.
Por um desses paradoxos comuns à política, e mais ainda à política brasileira, não
foram os conservadores, mas os liberais, que apressaram a ascensão de Dom Pedro
II ao trono. Superados pelas iniciativas “regressionistas”, os liberais promoveram no
Congresso a antecipação da maioridade do rei, por mais uma interpretação arranjada
do Ato Adicional. Assim, ainda adolescente, Pedro II assumiu aos catorze anos o
trono do Brasil, em julho de 1840. As medidas de “regresso” prosseguiram após
1840. (FAUSTO, 2004, p. 175).
Note-se que a monocultura, traço marcante no modelo econômico
brasileiro desde o regime colonial, passou, na segunda metade do século XIX, por uma
mudança significativa, quando a cana-de-açúcar cedeu importância à cultura cafeeira. Em
conseqüência, a produção do café para exportação tornou-se a principal atividade econômica
brasileira, deslocando o pólo dinâmico do país para o Centro-Sul, o que revolucionou os
transportes e os meios de comunicação. Com o crescimento da economia cafeeira, através da
mão-de-obra escrava, aumentaram as pressões internacionais, principalmente por parte da
Inglaterra, e o governo imperial brasileiro viu-se forçado a encampar o processo de abolição
da escravidão.
O Brasil dependia financeiramente dos ingleses e estes viviam as
conseqüências da consolidação do capitalismo industrial e de alguns avanços dos movimentos
operários ingleses na definição de direitos humanos e do trabalhador. Num primeiro
momento, a comercialização da mão-de-obra escrava africana para as colônias americanas foi
responsável pelo enriquecimento do capitalismo industrial inglês, evidenciando uma clara
relação entre a escravidão e acumulação de capital; em um segundo momento, a escravidão
passou a ser questionada, ante a crescente demanda de mão-de-obra para a indústria e a
formação do mercado consumidor: o crescimento do próprio capitalismo tornou a escravidão
inaceitável aos ingleses.
No século XX, com o desemprego em toda parte, com trabalhadores ansiosos e
dispostos a aceitar qualquer emprego, é difícil compreender que houve um tempo no
qual arranjar trabalhadores para a indústria constituía um verdadeiro problema.
Parece-nos ‘natural’ que exista uma classe de pessoas ansiosa para entrar numa
86
fábrica, a fim de trabalhar em troca de salários. Mas isso não é absolutamente
‘natural’. (HUBERMAN, 1986, p. 162).
Com o poder decorrente da conservação de sua integridade territorial no
regime monárquico, embora dependendo economicamente da Inglaterra, o Brasil conseguiu
resistir às pressões políticas inglesas por longo período, até efetivamente pôr fim à escravidão.
A Inglaterra intensificou a fiscalização do tráfico de escravos, inclusive em águas e portos
brasileiros, sendo a grande responsável pelo fim da escravidão no país. O pernambucano
Gilberto Freyre (2003) aborda a questão de forma brilhante:
O que aqui se sustenta, porém, é que os ingleses concorreram por meio do
aperfeiçoamento tanto de ordem técnica como de ordem moral – e, principalmente,
por meio de nova técnica de produção e de transporte – a mecânica, o vapor – para
dificultar a sobrevivência da escravidão entre os homens. O que não significa que
em sua luta a princípio meio vaga, depois sistemática, contra a escravidão, no Brasil,
não agissem por motivo de crua rivalidade econômica: a da produção mecânica a
vapor, ainda cara, com a produção por meio do braço escravo ou servil, por algum
tempo mais barata que a mecânica ou a vapor, dada a situação do escravo em áreas
tropicais em comparação com a do operário em áreas de clima frio e de vida mais
cara do que nos trópicos. (p. 623).
Parece significativo que a principal força pelo término da escravidão fosse
externa e a maioria da sociedade brasileira, habituada à escravidão dos negros, concordasse
com esta prática, justificada pelo poder econômico. A cultura da sociedade tem o poder de
transformar em verdade o que a História mostra ser um equívoco. Os negros eram
considerados pela maioria como seres inferiores e as conseqüências desta visão ainda são
sentidas na sociedade brasileira contemporânea.
Para os proprietários rurais, a escravidão constituía-se em um dos pilares da
economia e, ainda que as opiniões políticas divergissem, a unidade em torno da mão-de-obra
escrava superava qualquer diferença, inclusive quanto ao regime de governo. A elite
escravocrata fortaleceu a política imperial centralizadora para que esta fosse capaz de se opor
às pressões inglesas e, considerando os limites impostos pela dependência econômica do
Brasil para com a Inglaterra, manteve, enquanto pôde, a escravidão.
Após muita pressão da Inglaterra, a partir de 1850, mudanças culturais e
legislativas levaram ao maior controle do tráfico ilegal de escravos e a própria sociedade
começou a condenar a prática da escravidão, pois, à medida que as fugas cresciam, os
métodos de repressão tornavam-se mais agressivos e os abusos incomodavam as comunidades
locais. O movimento abolicionista no Brasil foi crescendo à medida que parte da sociedade se
tornou sensível à causa e passou a alimentar a discussão sobre a questão, inclusive
87
organizando clubes financiados por parte da elite, com o objetivo de comprar cartas de
alforria ou facilitar a fuga e abrigo de escravos que conseguiam escapar das senzalas.
Os fazendeiros reagiram diferentemente nas distintas áreas, mas, por volta de 1880,
a maioria deles estava convencida de que a escravidão era uma causa perdida. Além
disso, outros tipos de investimento tinham se aberto a eles: estradas de ferro, bancos
e indústrias. Face a essas novas possibilidades, a imobilização do capital,
característica do sistema escravagista, não era mais racional. Parecia haver maior
oportunidade para diversificar o investimento de capital. O sistema de crédito havia
se expandido, criando novas possibilidades de financiamento de trabalhador livre; a
revolução tecnológica nos transportes e as crescentes demandas do mercado
internacional haviam criado novas possibilidades para a expansão da produção e
para a especialização. Os métodos de processamento do café e do açúcar também
tinham melhorado, permitindo uma melhor divisão do trabalho. Após a interrupção
do tráfico de escravos, o preço dos escravos aumentou vertiginosamente. O custo
de manutenção dos escravos parecia, em algumas áreas, igualizar-se ou mesmo
exceder o nível salarial local. (COSTA, 1987, p. 247).
Inviabilizada a utilização da mão-de-obra escrava, a adoção do regime
republicano era tida como certa, tanto que o espaço temporal decorrido entre a Lei Áurea (13
de maio de 1888) e a Proclamação da República (15 de novembro de 1889) foi de pouco mais
de um ano, iniciando novo período na História do Brasil.
A Inconfidência Mineira e o Manifesto Republicano de 1870 são citados
como fatos históricos representativos da antiga aspiração republicana no Brasil. No manifesto,
a Monarquia brasileira foi mencionada como anomalia na América do Sul, diante dos países
vizinhos, ex-colônias espanholas, que já haviam adotado o regime republicano. Ainda assim,
os problemas econômicos, políticos e sociais enfrentados pelo Brasil Império incidem sobre
as razões da proclamação da República, dentre elas o fato de que os cafeicultores do Sul do
país conclamavam a novo regime de governo, baseado na mão-de-obra livre.
A incapacidade do governo imperial para dotar o país de um sistema monetário
adequado, bem como sua inaptidão para encaminhar com firmeza e positivamente a
solução do problema da mão-de-obra, refletem em boa medida divergências
crescentes de interesses entre distintas regiões do país. Nas etapas anteriores,
mesmo que fossem reduzidas as relações econômicas entre essas regiões, nenhuma
divergência de interesses fundamentais as separava. No norte e no sul as formas de
organização social eram as mesmas, as classes dirigentes falavam a mesma
linguagem e estavam unidas em questões fundamentais, como fora o caso da luta
pela manutenção do tráfico de escravos. Nos últimos decênios do século as
divergências começam a aprofundar-se. A organização social do sul transformou-se
rapidamente, sob a influência do trabalho assalariado nas plantações de café e nos
centros urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região da colonização das
províncias meridionais. As necessidades de ação administrativa no campo dos
serviços públicos, da educação e da saúde, da formação profissional, da
organização bancária, etc., no sul do país são cada vez maiores. O governo
imperial, entretanto, em cuja política e administração pesam homens ligados aos
velhos interesses escravistas, apresentava escassa sensibilidade com respeito a esses
novos problemas. A proclamação da República em 1889 toma, em conseqüência, a
88
forma de um movimento de reivindicação da autonomia regional. (FURTADO,
1988, p. 171).
O reconhecimento da República no exterior era importante para a obtenção
de crédito, o que motivou os industriais do café, adeptos das idéias liberais, a convocarem a
Assembléia Constituinte. O jurista Rui Barbosa teve papel fundamental na elaboração dos
decretos que antecederam a instalação da Constituinte, além de revisar o texto da comissão
nomeada para elaboração do Anteprojeto de Constituição, enquanto o Governo Provisório foi
administrado pelo Marechal Deodoro da Fonseca. Esta alternativa militar não agradou a
parcelas da sociedade e um ano após, a Assembléia Constituinte foi eleita. A partir deste
período da História do Brasil, a política passou a ser dominada pelos militares em vários
outros momentos, determinando a oscilação entre períodos democráticos e ditatoriais.
As mudanças socioeconômicas ocorridas na Primeira República (1889-
1930) e a Constituição Federal de 1891 representaram importantes avanços no
desenvolvimento brasileiro, mas os problemas econômicos e a dependência internacional
marcaram o século XX e trouxeram graves conseqüências aos sistemas político e jurídico. As
instituições públicas da Primeira República eram fracas e incapazes de garantir a efetividade
do texto constitucional; ao mesmo tempo, os militares desprezavam sua aplicação e
constantemente se envolviam em conflitos locais. As fraudes eleitorais maculavam a
representatividade democrática e, assim, as sementes da Revolução de 1930 estavam
plantadas.
A decisão de Washington Luís de indicar para a sucessão presidencial outro
paulista, Júlio Prestes, fortaleceu a Aliança Liberal, formada pelos Estados de Minas Gerais e
Rio Grande do Sul e por setores militares em torno da candidatura de Getúlio Vargas. A
questão social foi tratada pelo governo como caso de polícia, sujeito à repressão, dificultando
os movimentos da classe operária, permanecendo sem solução os problemas sociais gerados
pelo processo de urbanização e industrialização. Desde as campanhas eleitorais, a Aliança
Liberal defendeu a necessidade de estabelecer um Estado social, ainda que admitindo o uso da
força, e fomentou o sentimento revolucionário dos diversos segmentos sociais insatisfeitos
com a manipulação do sistema eleitoral.
A crise econômica de 1929 e a alta produtividade brasileira do café, naquele
ano, trouxeram conseqüências negativas ao setor e coincidiram com o período eleitoral,
agravando a disputa entre a Aliança Liberal e os políticos paulistas. A vitória eleitoral de Júlio
Prestes, em março de 1930, não foi suficiente para manter a Primeira República e
desencadeou a revolta que ficou conhecida como a “Revolução de 30”, que marcou o fim do
89
Estado liberal no Brasil e elevou Getúlio Vargas à presidência. Iniciou-se o Estado Getulista,
de 1930 a 1945, período em que duas Constituições Federais foram promulgadas e muitas
mudanças socioeconômicas marcaram a História do Brasil.
Os vitoriosos de 1930 compunham um quadro heterogêneo, tanto do ponto de vista
social como político. Eles tinham-se unido contra um mesmo adversário, com
perspectivas diversas: os velhos oligarcas, representantes típicos da classe
dominante de cada região do país, desejavam apenas maior atendimento à sua área
e maior soma pessoal de poder, com um mínimo de transformações; os quadros
civis mais jovens inclinavam-se a reformular o sistema político e se associaram
transitoriamente com os tenentes, formando o grupo dos chamados “tenentes civis”;
o movimento tenentista – visto como uma ameaça pelas altas patentes das forças
armadas – defendia a centralização do poder e a introdução de algumas reformas
sociais; o Partido Democrático – porta-voz da classe média tradicional – pretendia o
controle do governo do Estado de São Paulo e a efetiva adoção dos princípios do
Estado liberal, que aparentemente asseguraria seu predomínio. [...] Um novo tipo de
Estado nasceu após 1930, distinguindo-se do Estado oligárquico não apenas pela
centralização e pelo maior grau de autonomia como também por outro elementos.
Devemos acentuar pelo menos três dentre eles: 1. a atuação econômica, voltada
gradativamente para os objetivos de promover a industrialização; 2. a atuação
social, tendente a dar algum tipo de proteção aos trabalhadores urbanos,
incorporando-os, a seguir, a uma aliança de classes promovidas pelo poder estatal;
3. o papel central atribuído às Forças Armadas – em especial o Exército – como
suporte da criação de uma indústria de base e sobretudo como fator de garantia da
ordem interna. Tentando juntar estes elementos em uma síntese, poderíamos dizer
que o Estado getulista promoveu o capitalismo nacional, tendo dois suportes: no
aparelho de Estado, as Forças Armadas; na sociedade, uma aliança entre a
burguesia industrial e setores da classe trabalhadora urbana. Foi desse modo, e não
porque tivesse atuado na Revolução de 1930, que a burguesia industrial foi
promovida, passando a ter vez e força no interior do governo. (FAUSTO, 2004, p.
326-327).
O Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930, instituiu o Governo
Provisório presidido por Getúlio Vargas e toda a força revolucionária acabou por transformar
“mudança social” em “ditadura”, centralizando no Poder Executivo as funções do Legislativo
e dissolvendo o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas estaduais e todas as
Câmaras Municipais. O Decreto também determinava a sujeição da Constituição Federal de
1891 e das Constituições Estaduais aos atos do novo governo e dos seus representantes, até
que uma nova Assembléia Constituinte pudesse deliberar sobre a reorganização constitucional
do país.
A demora no processo eleitoral fomentou o confronto militar com os
paulistas na Revolução de 1932, vista pelo governo federal como ato separatista e pelos
revoltosos como constitucionalista. Na prática, ainda que derrotada pelas tropas federais, teve
importância por pressionar a realização da eleição da Assembléia Constituinte, no ano
seguinte. Muitos partidos políticos surgiram, das mais variadas tendências, mas, com exceção
dos comunistas, na ilegalidade, e da Ação Integralista, nenhum outro teve representação
90
nacional. Pouco organizados, suas atuações ficaram restritas a um âmbito local, o que
permitiu, nas urnas, a vitória das elites regionais.
No programa de reconstrução nacional, em 1930, estava prevista a reforma
do sistema eleitoral, desacreditado ante as fraudes e vícios do período da Primeira República.
Deve-se compreender que o foco da atenção de Vargas incidia sobre os partidos políticos,
enquanto centros de tensão e desordem social. No entanto, o controle das atividades
partidárias era habilmente mascarado por ações políticas que atendiam a antigas
reivindicações, como o voto secreto e a ampliação do direito às mulheres.
O aprimoramento da legislação trabalhista auxiliou Vargas na estratégia de
identificação com as classes menos favorecidas, formando ampla base teoricamente
democrática. De qualquer forma, a política sindicalista desse período foi marcada pela tutela
estatal e não pelo movimento dos trabalhadores. Uma das conseqüências desta política, a
Constituinte de 1933, contou com membros do Legislativo, eleitos pelo sufrágio universal, e
membros eleitos por trabalhadores e empregadores, os “classistas”, maculando o processo
democrático daquele período.
A Assembléia Constituinte reunida em 1933 contrasta com a de 1891, inicialmente
pelo entusiasmo com que a população a acolheu, ao contrário da indiferença que
envolveu a primeira Constituinte republicana. Os constituintes eram em número de
214, entre os quais uma inovação e peculiaridade: 40 deputados “classistas”; 18
representantes dos empregados, 17 dos empregadores, três dos profissionais liberais
e dois dos funcionários públicos. As correntes de pensamento mais diversas
estavam aí representadas, pois além dos “classistas”, viam-se, ainda, deputados
como Zoroastro Gouvêa e Lacerda Werneck, eleitos pelo Partido Socialista. As
preocupações parecem adquirir âmbito nacional. Um fato muito importante não
pode ser esquecido: as mulheres votaram pela primeira vez, o que fez do Brasil um
dos pioneiros do voto feminino em todo o mundo. (BONAVIDES, 1991, p. 319).
Em 14 de julho de 1934, foi promulgada a segunda Constituição Federal do
Brasil, inspirada na de Weimar, República que se instalou na Alemanha entre o fim da
Primeira Guerra Mundial e a ascensão do nazismo.
Vargas era contrário aos princípios políticos do liberalismo, que havia
influenciado a Constituição de 1891, mais por temer a não consolidação de seu poder do que
pela questão ideológica. Mas, com a Constituição Federal de 1934, o Estado social no Brasil,
inspirado no welfare state europeu, convenceu a sociedade das mudanças pretendidas pelo
movimento de 1930.
Seguindo uma certa tendência européia do pós-guerra, mas que na verdade só iria
se firmar definitivamente ao término da Segunda Grande Guerra, alguns dos
preceitos do chamado “Welfare State” foram consagrados no texto. Pela primeira
vez na história constitucional brasileira, considerações sobre a ordem econômica e
91
social estiveram presentes. Uma legislação trabalhista garantia a autonomia
sindical, a jornada de oito horas, a previdência social e os dissídios coletivos. A
família mereceria proteção especial, particularmente aquela de prole numerosa. O
deputado Prado Kelly foi em larga medida o responsável pela inclusão de um outro
item social até então inédito: um capítulo especial sobre a educação.
(BONAVIDES, 1991, p. 319).
As disposições sobre a ordem econômica e social, na Constituição de 1934,
pretendiam possibilitar a todos existência digna e, pela primeira vez em textos constitucionais,
condicionou o direito de propriedade ao interesse social e coletivo, garantindo a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia e justa indenização.
A divisão de poderes permaneceria tripartite, mas o Executivo foi fortalecido com
maiores faculdades para decretar o estado de sítio. Foi mantido o mandato de quatro
anos para o presidente, impedida a sua reeleição e abolida a figura do vice-
presidente. (BONAVIDES, 1991, p. 319).
Os três poderes clássicos da teoria de Montesquieu foram mantidos no texto
constitucional, mas, na prática, com o escopo de garantir a segurança nacional, evitar a
ampliação do movimento comunista e manter a paz política e social, o texto constitucional
criou grandes possibilidades de concentração de poder no Executivo. Além do levante armado
paulista em 1932, o mundo estava influenciado pelos traumas da Primeira Guerra e pelas
circunstâncias prováveis de novo confronto armado mundial, com a ascensão de Hitler ao
poder na Alemanha, em 1933. Estes fatores influenciavam a sociedade brasileira a aceitar a
liderança de Vargas e a concentração do poder em nome da paz social.
O fortalecimento do Poder Executivo também pode ser verificado na
atuação estatal, no desenvolvimento da indústria de base, muitas vezes financiada por
empréstimos externos, e no aprimoramento dos serviços públicos, com a implementação de
novas práticas administrativas inspiradas por princípios racionais.
Em meio ao conturbado e disputado cenário político desenhado no período,
foi divulgado, nacionalmente, um possível plano de insurreição comunista, conhecido como
“Plano Cohen”, o que constituiu o estopim para o golpe de 10 de novembro de 1937 e para o
início do Estado Novo, que durou até 1945.
As bases burocráticas necessárias à manutenção do poder de Vargas foram
formadas no período de 1930 a 1937, mas a Constituição de 1937, escrita por Francisco
Campos (Ministro da Justiça) e promulgada por Vargas com apoio do exército no dia do
golpe, impôs o regime ditatorial em nome da segurança nacional, com dispositivos que nunca
antes haviam sido aplicados. Exemplificando, era prevista a existência dos três Poderes
independentes e harmônicos, enquanto, na realidade, a estrutura legislativa e judiciária
92
permanecia sob o controle do Executivo. As marcas históricas deste período podem ser
sentidas atualmente, pois, ainda que melhoras significativas tenham ocorrido, a estrutura
financeira dos três Poderes permanece centralizada nos cofres públicos da União.
As esperanças democráticas idealizadas pela Revolução de 30 sucumbiram
diante dos princípios autoritários da Constituição de 1937. As conquistas da nova legislação
eleitoral, representadas pelo voto secreto e a inclusão da mulher no sistema, perderam
significado valorativo no regime do Estado Novo, concentrador de poder nas mãos do
Presidente Getúlio Vargas e dos interventores por ele nomeados.
A geração autoritária se reunia em torno de um princípio básico: a organização,
naquele momento da história brasileira, e que era considerada mais importante e
urgente que a participação. Esse princípio, adotado pela Constituição de 37, foi
utilizado por Getúlio Vargas em seu próprio benefício, ou seja, a participação foi
tão limitada que passou a ser exclusiva do Presidente, eufemismo para o que se
deveria chamar propriamente de ditador. (BONAVIDES, 1991, p. 332).
O período da história brasileira denominado Estado Novo tem sido objeto de
pesquisas científicas nas mais diversas áreas do conhecimento, que revelam o perfil
contraditório de Getúlio Vargas, ora grande Estadista, ora cruel Ditador. Através da censura
aos meios de comunicação e da constante preocupação com a divulgação oficial, ao constituir
o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), subordinado diretamente à Presidência da
República, o Estado Novo formou ampla opinião pública a seu favor.
O Estado Novo é rico no significado político, social e econômico. Do ângulo
constitucional, no entanto, é quase nulo. Sua Carta não foi aplicada. O governo
poderia ter o mesmo procedimento sem ela, pois só contou com o seu desejo e a
segurança de ação bem determinada relativa a seus fins. Não houve Constituinte, o
documento que impingiu foi apenas um exercício intelectual, que poderia ter sido
dispensado. Uma curiosidade na história do Direito nativo, não mais. (IGLÉSIAS,
1986, p. 59).
Esta crítica corrobora a inquietação inicial deste estudo, ou seja, as relações
estabelecidas entre os cidadãos e o ordenamento jurídico, capazes de garantir a eficácia do
estado de direito. A Constituição de 1937, elaborada longe da legalidade necessária ao Estado
moderno e desrespeitada pelo próprio Presidente da República, impôs raízes históricas às
relações sociais e comprometeu a eficácia da própria Constituição Federal de 1988. “Eficácia
diz respeito às condições fáticas e técnicas da atuação da norma jurídica e ao seu sucesso. A
eficácia vem a ser a qualidade do texto normativo vigente de produzir, ou irradiar, no seio da
coletividade, efeitos jurídicos concretos.” (DINIZ, 1992, p. 27).
A promulgação da quinta Constituição brasileira, em 1946, foi precedida
pela saída de Getúlio Vargas da presidência e pelo fim do Estado Novo. A Segunda Guerra
93
Mundial colocou em xeque o regime ditatorial no Brasil, pois, ao apoiar os países Aliados
(Estados Unidos, Reino Unido, França e URSS) contra os regimes fascista e nazista, os
movimentos internos pela redemocratização do país fortaleceram-se, apontando a
incongruência entre a posição política externa e a realidade interna. A imprensa começou a
burlar a censura, insuflando os movimentos em favor da realização de eleições diretas.
No ano decisivo de 1945, surgiram também os três principais partidos que iriam
existir no período 1945-1964. A antiga oposição liberal, herdeira da tradição dos
partidos democráticos estaduais, adversária do Estado Novo, formou, em abril, a
União Democrática Nacional (UDN). A princípio, a UDN reuniu também o
reduzido grupo dos socialistas democráticos e uns poucos comunistas. A partir da
máquina do Estado, por iniciativa da burocracia, do próprio Getúlio e dos
interventores nos Estados, surgiu o Partido Social Democrático (PSD), em junho de
1945. Afinal, em setembro de 1945, foi fundado o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), sob a inspiração também de Getúlio, do Ministério do Trabalho e da
burocracia sindical. Seu objetivo era o de reunir as massas trabalhadoras urbanas
sob a bandeira getulista. A UDN se organizou em torno da candidatura de Eduardo
Gomes. O PSD, em torno da candidatura de Dutra. (FAUSTO, 2004, p. 385).
O processo da saída de Getúlio Vargas da presidência e toda a massa de
manobra formada durante o Estado Novo, fizeram dele o grande vencedor das eleições de
1945, ao declarar, às vésperas da eleição, seu apoio ao general Dutra, eleito Presidente apesar
de sua pouca expressão popular. Na eleição seguinte, Vargas voltou democraticamente ao
poder para o mandato 1950/1954, que não concluiu em razão de seu suicídio, em agosto de
1954.
Os anos decorridos entre 1945 e 1964 têm sido denominados pelos
historiadores como “Período Democrático” e tornou-se o retrato mais próximo deste tipo de
regime a que o país teve acesso até 1988.
Neste estudo, interessa refletir sobre o sistema eleitoral brasileiro, com o
objetivo de buscar a compreensão histórica do regime democrático de direito. Por isso, é
importante observar que o processo eleitoral vem sofrendo modificações desde o início da
constituição do Estado brasileiro e, se atualmente há questionamentos sobre os processos
decisórios irrisoriamente discutidos com a sociedade civil organizada, o que remete a questões
de memória histórica, o povo brasileiro pode ser considerado aprendiz no que diz respeito à
participação, à inclusão, à cidadania efetiva: o exercício da democracia.
As eleições de 1945 despertaram um grande interesse na população. Depois de anos
de ditadura, a Justiça Eleitoral ainda não ajustara o processo de recepção e
contagem de votos. Pacientemente, os brasileiros formaram longas filas para votar.
Nas últimas eleições diretas à Presidência da República, em março de 1930, tinham
votado 1,9 milhão de eleitores, representando 5,7% da população total; em
dezembro de 1945 votaram 6,2 milhões, representando 13,4% da população. [...]
Nas quatro eleições presidenciais desde 1945, o eleitorado crescera bastante, como
94
resultado da urbanização e do maior interesse pela participação política. De 5,9
milhões em 1945, passou a 7,9 milhões em 1950; 8,6 milhões em 1955 e finalmente
11,7 milhões em 1960, na última eleição direta para presidente da República que o
país conheceu até 1989. (FAUSTO, 2004, p. 398-437).
A limitada participação da sociedade no sistema eleitoral, no século XX,
oscilava entre ditaduras e eleições e não podia ser considerada como “vontade da maioria”,
princípio básico do regime democrático. Hoje, é possível perceber avanços no processo
eleitoral brasileiro, pelo menos no tocante ao aumento quantitativo do número de eleitores e
sua proporcionalidade ao número de habitantes. Comparando informação do IBGE (IBGE,
on-line) sobre a população brasileira em 2000 – 169.799.170 habitantes – com dados do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE, on-line) relativos ao mesmo ano – 109.826.263 eleitores
cadastrados –, observa-se que quase 65% da população brasileira estava inserida no sistema
eleitoral.
Esta perspectiva é importante para a compreensão da participação da
sociedade civil na gestão urbana contemporânea, pois os instrumentos de democracia indireta
são necessários no regime democrático de direito. Tanto na administração pública quanto nos
órgãos legislativos, a escolha dos representantes pelo sufrágio universal encontra-se aliada aos
instrumentos de democracia direta e não substituída por estes. Daí a importância da melhoria
quantitativa e qualitativa do processo eleitoral na perspectiva de gestão urbana democrática,
proposta pela Constituição Federal de 1988. Também é interessante notar a relação que existe
entre o aumento do número de eleitores no período 1945-1960 (Fausto, 2004) e o crescimento
do processo de urbanização, tendo em vista que a cidade é espaço privilegiado para o
exercício da cidadania.
No dia 18 de setembro de 1946, foi promulgada a quinta Constituição
brasileira, que marcou a política desenvolvimentista do Estado. Sob este novo ordenamento
desenrolaram-se os governos de Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, Café Filho, Juscelino
Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart e Marechal Castello Branco, este último militar
imposto pelo Golpe de 1964.
Fiel às linhas do liberalismo clássico, a Constituição representa avanço pequeno
relativamente às anteriores de 91 e 34, sobretudo se for considerada a profunda
mudança verificada no país de 30 em diante. Reafirma os princípios liberais
daqueles documentos, incorpora a legislação social feita sob o Estado Novo – no
que se revela falta de sentido crítico, pois esse não tinha nada de liberal e carecia
mesmo de legitimidade trabalhista –, não mais. Ora, a sociedade e a economia são
bem diversas, de modo que a expressão política devia ser mais avançada. De fato, a
política negou o Estado Novo, mas não se livrou de muitas de suas construções
antidemocráticas, mantendo a legislação trabalhista tuteladora, as medidas
equívocas de segurança nacional. (IGLÉSIAS, 1986, p. 63).
95
O texto constitucional de 1946 foi elaborado sob a égide do Poder
Executivo, a exemplo do ocorrido nas Constituintes de 1890 e 1933. Tentou conciliar o
Estado liberal e o Estado social, estimulando “as esperanças de lograr-se um compromisso de
bom senso realista, uma trégua institucional entre as forças de renovação e as de conservação.
Com aquele documento, aspirava-se a um meio termo na transação de princípios”
(BONAVIDES, 1991, p. 414). Pela primeira vez, surge no texto constitucional a expressão
“justiça social” e a possibilidade de intervenção do Estado no setor econômico.
A Constituição a todos assegura “trabalho que possibilite existência digna”. Eleva o
trabalho a “obrigação social”. Proclama o princípio da intervenção do Estado no
domínio econômico. Traça-lhe as bases que assentam no “interesse público”;
projeta-lhe os limites, que são “os direitos fundamentais”, objeto das garantias
contidas na Constituição; condiciona enfim o uso da propriedade “ao bem-estar
social” e dispõe que “a lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder
econômico”. [...] O quadro agora é distinto de 1934. Já não tropeçamos em
inovações doutrinariamente radicais. Se a Declaração adianta um passo, recua outro
tanto. O constituinte cauteloso se arreda do reformismo teórico que inspirou a obra
de 1934 e se revela parcimonioso ou relutante em abrir estrada a reformas fáceis.
(BONAVIDES, 1991, p. 414-415).
Os anos 1950, o presidente Juscelino Kubitschek, a construção de Brasília e
a mudança da capital federal precisam ser compreendidos na perspectiva de aliança entre as
diversas forças da sociedade brasileira na construção do regime democrático de direito.
No governo JK, a sociedade brasileira entrou na modernidade, simbolizada
pela construção de Brasília e a mudança da capital federal para o Centro-Oeste, o que
consolidou a integridade territorial brasileira. Com a construção de Brasília, Oscar Niemeyer
e Lúcio Costa, inspirados nas idéias do arquiteto suíço Le Corbusier, elevaram o nível da
arquitetura moderna brasileira. O concreto armado possibilita a criação de prédios que mais
parecem monumentais esculturas concretistas, as estruturas não são escondidas porque são
consideradas belas e as construções sinuosas sobre piloti
8
e com grandes vãos abertos
dialogam de forma inédita com os projetos urbanísticos e paisagísticos. Com a inauguração da
nova capital federal do país, a arquitetura moderna deixa de ser uma mera curiosidade para se
tornar a norma em vigor, a fisionomia do Brasil que progride aceleradamente.
O Golpe de 1964 fechou o período democrático e mostrou a força dos
movimentos conservadores, submetendo novamente o Brasil ao regime ditatorial e
suprimindo o Estado de direito, sob o manto da revolução. No contexto mundial, o período da
Guerra Fria dividiu os países entre capitalistas e socialistas, a geopolítica constituiu-se em
dois pólos, um liderado pelos Estados Unidos da América do Norte e outro pela União das
8
Piloti: cada uma das colunas que sustentam uma construção, deixando livre o pavimento térreo.
96
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Os problemas enfrentados pelo Brasil no domínio
econômico, como o descontrole da inflação e a dependência de investimentos externos,
agravaram as questões políticas, facilitando a intervenção militar nas instâncias de poder, ante
o descontentamento da classe média.
O primeiro ato das reformas de Jango marcou o começo do fim de seu governo. Um
sinal de tempestade veio com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
organizada em São Paulo, a partir das associações das senhoras católicas ligadas à
Igreja conservadora. Cerca de 500 mil pessoas desfilaram pelas ruas de São Paulo,
a 19 de março, em uma demonstração de que os partidários de um golpe poderiam
contar com uma significativa base social de apoio. [...] Na realidade, João Goulart e
a cúpula que o apoiava tinham uma visão equivocada do quadro político. Eles
tomavam o que se passava nas esferas do poder como expressão do que se passava
na sociedade. Acreditavam também que, em sua maioria, o Exército era partidário
das reformas propostas pelo governo, pois expressava, por sua história e pela
origem de seus integrantes, a vontade popular. Existiam sim os “golpistas”, mas
eles eram uma minoria, controlada pelo dispositivo militar e pela ação dos quadros
inferiores. É certo que a maioria da oficialidade preferira, ao longo dos anos, não
quebrar a ordem constitucional, mas havia outros princípios mais importantes para
a instituição militar: a manutenção da ordem social, o respeito à hierarquia, o
controle do comunismo. Quebrados esses princípios, a ordem se transformava em
desordem, e a desordem justificava a intervenção. (FAUSTO, 2004, p. 460-461).
A questão da ordem figurava fortemente no inconsciente social brasileiro,
em profunda relação com o apoio social ao regime ditatorial. A análise deste período de
exceção ditatorial, por sua contemporaneidade, vem sendo objeto de pesquisas científicas
buscando compreender a aceitação social da violência ante a ameaça de desordem. O medo
foi cultuado na sociedade e o inimigo, eleito como ‘bode expiatório’, o comunismo. A censura
cuidava do controle das informações veiculadas nos meios de comunicação e o movimento
cultural passou a ser fiscalizado sob a ótica da repressão, silenciando qualquer tentativa de
resistência.
Prisões ilegais, injustificadas, torturas e atos violentos dos mais variados
mancham este período histórico no Brasil. Os “inimigos” do Brasil eram professores
universitários respeitados internacionalmente, artistas de teatro e cinema, músicos, poetas,
escritores, jornalistas, líderes comunitários, estudantes e qualquer um que ousasse externar
qualquer crítica ao governo militar. A organização da sociedade civil foi proibida e era vista
como um perigo à ordem social, sendo coibida pelo uso da violência. Em nome da defesa do
país, foi elaborada uma legislação adequada ao uso da força.
O movimento de 31 de março de 1964 tinha sido lançado aparentemente para livrar
o país da corrupção e do comunismo e para restaurar a democracia, mas o novo
regime começou a mudar as instituições do país através de decretos, chamados de
Atos Institucionais (AI). Eles eram justificados como decorrência do “exercício do
Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções”. O AI-1 foi baixado a 9 de abril
de 1964, pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
97
Formalmente, manteve a Constituição de 1946 com várias modificações, assim
como o funcionamento do Congresso. Este último aspecto seria uma das
características do regime militar. Embora o poder real se deslocasse para outras
esferas e os princípios básicos da democracia fossem violados, o regime quase
nunca assumiu expressamente sua feição autoritária. Exceto por pequenos períodos
de tempo, o Congresso continuou funcionando e as normas que atingiam os direitos
dos cidadãos foram apresentadas como temporárias. (FAUSTO, 2004, p. 465-466).
A aparência de restaurar a democracia no país foi uma das armas mais
importantes do governo militar, minimizando as conseqüências dos atos de violência, como
restritos à pequena parcela da população “subversiva” que devia ser combatida. O
alinhamento político aos Estados Unidos e ao bloco capitalista facilitou a obtenção de
empréstimos e investimentos externos, minorando os problemas econômicos e fortalecendo o
sentimento de satisfação popular com o governo. Todavia, as conseqüências financeiras
marcaram profundamente a década de 1980, com reflexos até hoje nos cofres públicos
brasileiros.
Desde o “Movimento Revolucionário de 1964”, três atos institucionais,
inúmeros decretos-leis e atos punitivos transformaram o ordenamento jurídico em uma colcha
de retalhos, o que tornou necessária a promulgação de novo texto constitucional. O Presidente
Marechal Castello Branco conferiu ao Legislativo o caráter de Constituinte e, através do Ato
Institucional n.º 4, determinou exíguo prazo para aprovação da Carta elaborada pelo Poder
Executivo e a promulgação da Constituição, em 24 de janeiro de 1967, imprimiu um aparente
caráter democrático ao país. Na realidade, tratou-se de documento autoritário, que infringia
princípios federativos e democráticos, inaceitáveis a uma República da segunda metade do
século XX. “Prova de que a lei não significava nada é a continuação dos Atos Institucionais e
dos Atos Complementares: editam-se, depois da Constituição, mais 13 Atos Institucionais e 3
Atos Complementares.” (IGLÉSIAS, 1986, p. 77).
O mais famoso foi o AI-5, cuja leitura, na íntegra
9
, possibilita a
compreensão da “antilei”, do arbítrio cometido em nome da lei e ordem social, da ânsia de
centralização do poder pelo Executivo, desrespeitando princípios básicos do direito moderno.
Não existiam mecanismos capazes de questionar o poder público, os atos realizados em nome
da revolução não eram passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário, o Legislativo foi
fechado, o Executivo outorgou-se a prerrogativa da elaboração de leis e os funcionários
públicos poderiam ser punidos de diversas formas, de acordo com a vontade dos dirigentes
nomeados pelo Poder Executivo.
9
V. BONAVIDES, 1991. O autor traz dispositivos legais de toda história constitucional, entre eles, a íntegra do
AI-5 promulgado em 13 de dezembro de 1968. (p. 788-791).
98
As constantes alterações do texto constitucional de 1967 e o emaranhado de
normas conflitantes entre si levaram à aprovação da Emenda Constitucional n.º 1, de 17 de
outubro de 1969, que praticamente reescreveu a Constituição de 1967 e, por isto, é
considerada por alguns juristas como nova Constituição.
O ordenamento jurídico brasileiro, no período militar, contradiz os
princípios fundamentais do direito. Foi utilizado para fortalecer o Poder Executivo e viabilizar
a ação repressiva em detrimento dos direitos humanos e sociais, previstos na Constituição de
1967 mas não efetivados pela estrutura funcional do Estado, enquanto o foco de atenção
governamental se mantinha na repressão política e na manutenção do poder. Será que este
papel dos órgãos públicos em favor do poder de polícia, em prejuízo dos direitos humanos e
sociais, surgiu após 1964? Até que ponto as Constituições brasileiras serviram como
instrumento de democracia fundamental na construção de sociedades mais justas? Os órgãos
públicos responsáveis pela execução das normas constitucionais eram orientados para outras
funções, de acordo com a vontade dos representantes do Poder Executivo, e isto aconteceu em
diversos momentos da história política brasileira.
[...] a Constituição de 37 foi o germe (o Estado Novo foi sua realização) de
Constituições autoritárias e a justificação teórica das ditaduras posteriores. Se é
certo que Vargas implementou uma modernização do aparelho de Estado, criando
uma burocracia mais eficiente e dando contribuições diversas à consolidação e
codificação dos principais ramos do direito, e iniciando o processo de
industrialização do País, de que é exemplo Volta Redonda, é também certo que
atribuiu a essa burocracia renovada poderes muito mais amplos do que seria
normal. Em suma: na completa ausência do Legislativo (ele nunca foi convocado),
esse poder transferiu-se para as mãos da tecnoburocracia, que o exercia na
realidade. Mais uma vez, uma conjunção que nos é familiar: autoritarismo e
tecnocracia. (BONAVIDES, 1991, p. 333).
O autoritarismo e a tecnocracia são marcas históricas importantes e também
precisam ser considerados na análise da participação da sociedade civil na gestão urbana, pois
trazem conseqüências à relação contemporânea estabelecida entre o cidadão comum e o poder
público, típica dos Conselhos Municipais. O desvelar do objeto deste estudo é enriquecido por
esta percepção, pois o jurista do século XXI não pode se ater aos aspectos lineares da norma
jurídica, devendo se debruçar sobre os aspectos sociais, econômicos, políticos, ambientais,
além de extrapolar seu raciocínio para as dimensões interna e externa, local e global.
Esse entrelaçamento complicador da natureza das relações humanas numa
sociedade em crise quais são todas as sociedades que se deparam com as questões
primárias de cultura política e desenvolvimento econômico. Produz-se desse modo
no jurista puro, no constitucionalista afeiçoado a regras puramente normativas, em
que se exaure o campo de sua visualidade do Direito, uma incompreensão total do
processo em curso, uma incapacidade ou impotência em discernir soluções que
99
façam a ordem jurídica cumprir as funções irrecusáveis a um modelo genérico de
sociedade, qual este, já às vésperas do terceiro milênio, surpreendido por uma
revolução tecnológica que avulta tão importante quanto a revolução ideológica
precedente. Daqui se infere, na idade da informática, a necessidade quase dramática
que tem o jurista de ampliar o raio de suas indagações a outras províncias do
conhecimento social, onde há de buscar o auxílio de recursos e meios cognitivos
coadjuvantes a fim de interpretar, com mais segurança e utilidade, o direito
aplicável à mudança e à renovação institucional. (BONAVIDES, 1991, p. 11).
Sob esta perspectiva, foi necessário aprofundar a pesquisa bibliográfica,
para compreender o processo que conduziu à promulgação da Constituição Federal de 1988,
base jurídica com que o país entra neste complexo século XXI. O texto consagra diversos
instrumentos democráticos de participação direta e indireta que refletem a organização
alcançada pela sociedade civil através do movimento pelas eleições “Diretas Já”, na década de
1980. Este movimento constituiu a base do Terceiro Setor no Brasil e amplia a visão do objeto
da presente investigação.
A falência política, social, econômica, financeira e sobretudo ética, após
vinte e dois anos de regime ditatorial, marcou as instituições públicas, constituindo-se no
principal desafio ao processo de redemocratização, moralização e eficiência da gestão pública.
O período de transição da ditadura militar instalada em 1964 para a Nova República
foi, certamente, o mais doloroso de todos quantos a história marcou em nosso País.
Da Monarquia para a República não se observaram excessos que registrassem,
como neste período, a violência do poder autoritário, com presos políticos sem
culpa formada, torturas nos cárceres. Assassínios cometidos em todo o País sob a
égide de uma doutrina de segurança que não era outra coisa senão a segurança do
poder arbitrário fugindo ao debate público e à eleição do presidente da República,
dos governadores e dos prefeitos. [...] Abria-se o caminho para o encontro de
soluções democráticas, forçando o governo militar a admitir a participação da
comunidade até então ilhada e permanentemente sob suspeita, especialmente, o
setor universitário e os intelectuais, sitiados como se vivessem uma fase de guerra
intestina. [...] Mas, somente em 1984 se explicitaram as manifestações da sociedade
e a movimentação das organizações associativas como a Ordem dos Advogados do
Brasil, as federações e sindicatos de trabalhadores, com o apoio ostensivo da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em 17 de abril de 1984, iniciou-se a
grande campanha popular de rua, com mais de um milhão de pessoas no Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, exigindo as eleições diretas em todos os níveis.
(BONAVIDES, 1991, p. 444-445).
Após duas décadas do regime mais violento da história do Brasil, a
sociedade levantou-se contra a ditadura e, das mais variadas formas de expressão, clamava
por um país democrático. A “Carta aos Brasileiros”, lida em 1987 na Faculdade de Direito das
Arcadas (Largo São Francisco – USP) pelo jurista Godoffredo Teles Júnior, pode ser citada
como uma das manifestações importantes da sociedade civil que, historicamente, influenciou
a instalação da Constituinte de 1987 e o texto constitucional de 1988. Como última
determinação do governo militar, o Colégio Eleitoral escolheu e indicou um civil para
100
Presidente da República, Tancredo Neves, cujo falecimento prematuro levou à posse do vice,
José Sarney, responsável pela convocação das eleições para a Assembléia Nacional
Constituinte, em 1986.
Pela primeira vez na história do Brasil, o texto constitucional foi elaborado
por legisladores eleitos pelo voto direto, sem qualquer documento preestabelecido pelo Poder
Executivo. Muitos dos deputados e senadores constituintes destacaram-se pela atuação no
movimento de redemocratização, mas, num país de tamanho continental como o Brasil, cujas
desigualdades regionais espelham o processo histórico de ocupação, torna-se necessário levar
em consideração as variadas formas de manipulação do eleitorado. Os partidos políticos
tiveram pouco tempo para se organizar e, por se tratar de processo lento e gradual (ainda em
curso), as bases ideológicas não estavam claramente definidas, facilitando a movimentação de
grupos com interesses específicos, conhecidos no jargão político como lobbies.
Conscientemente, os Constituintes de 1987 partiram da estaca zero para
elaboração da nova Carta e, ainda que justamente esta tenha sido uma das maiores
dificuldades enfrentadas, a divisão em comissões temáticas possibilitou ampla discussão dos
mais variados aspectos da realidade estrutural e conjuntural com a sociedade brasileira,
cabendo à Comissão de Sistematização organizar as propostas encaminhadas e elaborar o
projeto de Constituição. As votações em primeiro turno começaram no início de 1988, um
longo ano de discussões, conflitos entre o Congresso Nacional e a Presidência da República,
pressões dos meios de comunicação de massa e descrédito da sociedade, preocupada com a
consolidação da transição democrática.
[...] duas tendências ficaram evidentes no debate e votação dos temas sociais e
direitos dos trabalhadores, na questão da terra e da propriedade, da reforma agrária,
do capital estrangeiro, das riquezas do subsolo, da política de informática, da
comunicação, da estrutura sindical com o pluralismo ou a unidade (a esquerda
dividida ou abstendo-se de votar como ocorreu com o PT), do direito de greve, da
reforma tributária. Em algumas dessas questões é possível estabelecer uma certa
divisão ideológica, mas a interferência dos governos federal e estaduais chega a
apagar a marca doutrinária dos constituintes ou das próprias legendas, conflitando
posições pessoais ou partidárias. [...] Pode-se, no entanto, pelas decisões assumidas,
concluir que a maioria constituinte era conservadora e o mais fiel retrato de sua
composição pode ser melhor aferido pelas votações de alguns pontos conflitantes.
Através dessas votações e da posição assumida pelos constituintes, conclui-se que o
perfil da Constituinte de 1987-1988, embora conservadora, tem características
muito especiais, às vezes, até mesmo contraditórias, refletindo interesses grupais ou
regionais em detrimento do essencial, mas, na realidade, representando a Sociedade
no seu conjunto, com todas as suas intranqüilidades, preocupações, instabilidade e
deficiências de formação e de prática política. (BONAVIDES, 1991, p. 473-474).
Em sessão solene no dia 5 de outubro de 1988, o Presidente do Congresso
Nacional, Ulysses Guimarães, promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil,
101
formada por 250 artigos representativos da diversidade da sociedade brasileira e com a missão
de estabelecer no país o regime democrático de direito. As deficiências de formação e de
prática política são marcas da “pobreza política”, identificada pelo sociólogo Pedro Demo
(1998) como aspecto pouco abordado ao tratar do desenvolvimento do país, visto por muitos
como restrito ao domínio econômico. Ao tratar da exclusão social, comentando o modelo de
seguridade social (os ativos pagam pelos inativos) e o universalista (oferta de serviços
universais e gratuitos), ressalta que em ambos a participação política foi posta em segundo
plano. “Nos dois casos, despreza-se a relação central da pobreza, que é a questão política,
resumida no déficit de cidadania. Para que exista um mínimo de justiça social, não basta
assistência estatal, nem mercado, mas é essencial a competência humana de intervenção na
economia e no Estado.” (p. 11).
A Constituição Federal de 1988, no Título I – “Dos Princípios
Fundamentais”, consagra, no artigo 1.º, os fundamentos do Estado democrático brasileiro e,
na qualidade de cláusula pétrea, imutável pelo legislador ordinário, inclusive por emenda
constitucional, estabelece a espinha dorsal do ordenamento jurídico brasileiro, capaz de
propiciar maior participação da sociedade civil na gestão pública e nas esferas políticas:
Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
A previsão constitucional do regime democrático e do seu exercício direto
ou indireto (através de representantes eleitos) é matéria de fundamental interesse ao presente
estudo, na medida em que os Conselhos Municipais configuram-se como instrumentos da
democracia direta, constitucionalmente garantida a todos os cidadãos brasileiros a partir de
1988.
No momento da promulgação da Constituição, a sociedade brasileira vivia
uma situação democrática, em busca da construção e consolidação do regime e, para
compreender os caminhos e desafios envolvidos, há que se conhecer a história constitucional
brasileira. Caso contrário, pode-se interpretar o texto constitucional em vigência como uma
conquista social maior do que realmente é. Com a crença de que a Constituição de 1988
representa um avanço legislativo significativo na ordem normativa brasileira, principalmente
102
no tocante à proteção do meio ambiente e à questão cultural, é preciso ter a percepção de que
muitos são os desafios a serem enfrentados na efetivação dos direitos humanos e sociais no
Brasil. Um deles, talvez o mais importante, constitui-se na maior participação da sociedade
civil nas questões políticas. As instituições públicas estão se fortalecendo, na mesma medida
em que a consciência política amplia a necessidade de viver em comunidade, de participar das
discussões e das decisões, de maior fiscalização do poder público e do próprio mercado. O
conjunto destes fatores tem provocado mudanças nas relações entre sociedade e Estado no
Brasil.
O modelo colonial ainda marca a realidade de regiões menos povoadas no
Brasil e é o fortalecimento das instituições públicas e da organização da sociedade civil que
poderá modificar esta realidade. Tomando como exemplo o trabalho escravo, prática ainda
existente em pleno século XXI, sua erradicação tem mobilizado as mais diversas instituições
públicas e privadas, nacionais e internacionais, em um esforço conjunto na busca da
efetivação de direitos.
Com um enfoque inédito no Brasil, a Constituição Federal de 1988 exalta a
participação da sociedade civil no processo político, seja através de instrumentos da
democracia representativa (ou indireta), seja pela prática direta, através de organismos
especialmente criados para esta participação. Os Conselhos Municipais são espaços
democráticos capazes de potencializar a participação da sociedade civil na gestão urbana,
ampliando a perspectiva clássica da democracia direta ateniense, onde só “homens livres”
podiam se manifestar. Na medida em que a Constituição atual garante a igualdade de todos os
cidadãos, permite a participação de todos e a livre manifestação do pensamento, o que
significa um passo importante no caminho da inclusão social que deverá alcançar todos os
setores da atividade social.
Esta realidade permite maior cooperação entre os habitantes da cidade na
gestão urbana, mas encontra obstáculo na perspectiva ideológica de conflitos de classes. O
século XXI aponta a necessidade de uma nova visão de mundo, capaz de entender a
interdependência entre os povos, entre os homens e a natureza, entre o planeta Terra e o
cosmo.
A ênfase dada à luta na teoria de Marx sobre a evolução histórica é paralela à
ênfase de Darwin na luta dentro da evolução biológica. De fato, diz-se que a
imagem favorita de Marx sobre si mesmo era a de “Darwin da sociologia”. A idéia
da vida como uma luta constante pela existência, que tanto Darwin quanto Marx
ficaram devendo ao economista Thomas Malthus, foi vigorosamente promovida no
século XIX pelos darwinistas sociais, que influenciaram, se não Marx, certamente
muitos de seus seguidores. Creio que sua visão da evolução social enfatiza
103
exageradamente o papel da luta e do conflito, esquecendo o fato de que toda luta
ocorre na natureza dentro de um contexto mais amplo de cooperação. Embora, no
passado, o conflito e a luta tenham ocasionado importantes progressos sociais, e
constituam, com freqüência, uma parte essencial da dinâmica de mudança, isso não
significa que sejam a fonte dessa dinâmica. Portanto, adotando a filosofia do I
Ching ao invés da concepção marxista, acredito que o conflito deve ser minimizado
em épocas de transição social. (CAPRA, 1997, p. 32).
O autor acima citado retrata a dificuldade dos ocidentais na compreensão de
preconceitos culturais, mas este entendimento permite uma análise mais abrangente e
compatível com a visão do mundo contemporâneo e a construção de sociedades sustentáveis.
Os filósofos chineses viam a realidade, a cuja essência primária chamaram tao,
como um processo de contínuo fluxo e mudança. Na concepção deles, todos os
fenômenos que observamos participam desse processo cósmico e são, pois,
intrinsecamente dinâmicos. A principal característica do tao é a natureza cíclica de
seu movimento incessante; a natureza, em todos os seus aspectos – tanto os do
mundo físico, quanto os dos domínios psicológico e social – exibe padrões cíclicos.
Os chineses atribuem a essa idéia de padrões cíclicos uma estrutura definida,
mediante a introdução dos opostos yin e yang, os dois pólos que fixam os limites
para os ciclos de mudança: “Tendo yang atingido seu clímax, retira-se em favor do
yin; tendo o yin atingido seu clímax, retira-se em favor do yang”. [...] Na cultura
chinesa, o yin e o yang nunca foram associados a valores morais. O que é bom não
é yin ou yang, mas o equilíbrio dinâmico entre ambos, o que é mau ou nocivo é o
desequilíbrio entre os dois. [...] Um dos mais importantes insights da antiga cultura
chinesa foi o reconhecimento de que a atividade – “o constante fluxo de
transformação ou mudança”, como o chama Chuang-tsé – é um aspecto essencial
do universo. A mudança, segundo esse ponto de vista, não ocorre como
conseqüência de alguma força, mas é uma tendência natural, inata em todas as
coisas e situações. O universo está empenhado em um movimento e uma atividade
incessantes, num contínuo processo cósmico a que os chineses chamaram tao – o
“caminho”. (CAPRA, 1997, p. 33-34).
A Constituição Federal de 1988 e os Conselhos Municipais podem ser
articulados sob este paradigma, reunindo habitantes da mesma cidade no mesmo espaço,
aberto a todas as classes sociais, credos, raças, opiniões, com o objetivo precípuo de construir
sociedades sustentáveis. Espaços de troca por excelência, quando aliados à vontade política
municipal comprometida com a gestão urbana transparente e democrática, os Conselhos têm
apresentado resultados interessantes nos diversos Municípios brasileiros.
O alfabeto político compreende a importância da ação e busca estratégias de
organização e de participação. A consciência histórica comprometida com a justiça social
encontra espaços de participação legitimados pelo ordenamento jurídico nos Conselhos
Municipais. Estas esferas de participação popular vêm se aprimorando desde a promulgação
da Constituição de 1988 e estão relacionadas ao crescimento da sociedade civil organizada, à
maior participação política nas questões sócio-ambientais e ao percurso histórico decorrido
104
nos últimos vinte anos do “caminho” (tao), capaz de levar ao equilíbrio pelo aprendizado do
processo democrático.
Outro exemplo de esfera pública instituinte são os conselhos municipais, estes cada
vez mais caracterizados como modelos de gestão das políticas sociais. Sua
importância fundamental está no fato de constituir um canal de descentralização das
deliberações sobre as ações do governo e de coordenação das ações da sociedade
civil em torno da efetivação das políticas sociais necessárias para combater a
exclusão social. Nesse sentido, ele é o grande canal de interlocução entre a esfera
estatal e a sociedade. (LOPES, 2000, p. 15).
Como já foi dito, a Constituição Federal de 1988, ao estabelecer que o poder
emana do povo e que o mesmo poderá ser exercido de forma direta, nos termos
constitucionais, elege os Conselhos Municipais como um dos principais instrumentos
jurídicos capazes de possibilitar a participação da sociedade civil na gestão urbana. Interessa
ao presente estudo o Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de
Ribeirão Preto (CONPPAC/RP), responsável pela gestão do patrimônio cultural local,
analisada ao longo desta pesquisa.
105
Grande pátria desimportante
Em nenhum instante
Eu vou te trair (Não vou te trair)
(CAZUZA)
2.2 A Participação da Sociedade Civil na Gestão Urbana
A história constitucional brasileira, analisada no subitem anterior, é
reveladora da complexidade das relações entre a realidade social e a norma abstrata, prevista
na Constituição Federal de 1988. Embora o texto constitucional consagre a possibilidade de
participação da sociedade civil na gestão urbana contemporânea, muitos fatores
complicadores ou impeditivos da concretização desta previsão legal são encontrados no
processo histórico da formação do Estado brasileiro, como já mencionado.
A crescente urbanização, desde o século XX, concentra nas cidades os
dilemas da questão social; aliás, a Constituição de 1988, no Título III, ao tratar “Da
Organização do Estado”, em seu artigo 30, houve por bem conceder ao Município autonomia
na organização político-administrativa nacional. Paradoxalmente, o artigo 23 estabelece
competência comum entre União, Estados e Municípios nas questões relativas à efetividade
de direitos básicos como acesso à saúde, cultura, educação e ciência, proteção do meio
ambiente, habitação e saneamento básico. Além disso, a ausência, até hoje, de normas
infraconstitucionais claras sobre os limites desta competência concorrente contraria o
princípio da racionalidade.
A regulamentação do artigo 23 da Constituição Federal, através de lei
complementar, conforme previsto em seu parágrafo único, poderá estabelecer um novo Pacto
Federativo racional para o desenvolvimento de uma política urbana sustentável, apto a
concretizar os direitos básicos dos cidadãos, já consagrados no texto constitucional
10
. A
autonomia política do Município, exclusividade do ordenamento jurídico brasileiro,
certamente é um dos mais importantes aspectos para a construção de modelos locais e
regionais, capazes de garantir os direitos constitucionais e a eqüidade social.
Além da lacuna normativa, acima mencionada, a falta de continuidade das
políticas públicas no Brasil pode ser identificada como mais um obstáculo a uma gestão
10
A pesquisadora apresentou este tema como proposta em comunicação oral no VI Encontro de Pesquisa na
Área de Serviço Social da PUC-Campinas e UNICAMP, nos dias 26 a 28 de outubro de 2005, no Anfiteatro 5 da
Faculdade de Medicina da UNICAMP, com resumo publicado em Caderno (ISSN: 1808-8732). O tema também
foi debatido na 2.ª Conferência Nacional das Cidades, promovida pelo Ministério das Cidades em 2005, da qual
a pesquisadora teve a oportunidade de participar, na qualidade de delegada, nas etapas municipal (Ribeirão
Preto) e estadual (São Paulo).
106
urbana eficaz. O que se observa é que, a cada nova Constituição promulgada, praticamente
delineia-se o perfil de um novo Estado. Considerando-se que a de 1988 é a sétima desde a
Independência, percebe-se não só a falta de continuidade política, mas, também, de formação
institucional do Estado. Cabe à sociedade brasileira modificar esta lógica política, por meio da
participação ativa e ordenada na gestão urbana e no processo de consolidação do regime
democrático de direito, criando modelos locais e regionais integrados em um projeto nacional
de desenvolvimento sustentável.
Pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento têm defendido a
necessidade de construção de um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, com
estratégias de administração pública capazes de garantir a sobrevivência das futuras gerações.
Diversas experiências, em todo o Brasil, têm mostrado que a participação da sociedade civil
na gestão urbana auxilia a continuidade das políticas sociais e gera maior transparência na
utilização dos recursos humanos, financeiros e materiais, quase sempre escassos.
A descentralização do poder é uma tendência identificada já antes da
promulgação da Constituição de 1988, mas, além do aspecto político-jurídico, sua
concretização envolve a questão tributária, tema cuja reforma emperra nos meandros
regimentais do Congresso Nacional há anos, reduzindo as possibilidades de realização de
muitos dos direitos constitucionais. A disputa fiscal não se enquadra na ótica de
interdependência dos entes federativos e compromete o processo de construção de sociedades
sustentáveis: a partir de uma visão orgânica, é possível compreender que o desenvolvimento
do município somente poderá representar uma alavanca ao desenvolvimento nacional, se
inserido solidariamente num projeto regional.
A reforma tributária precisa atender às necessidades impostas pela
descentralização administrativa do Estado, pois o processo crescente de urbanização e a falta
de recursos públicos para infra-estrutura apenas têm transformado os espaços urbanos em
meras bolsas de especulação imobiliária.
O processo de industrialização e urbanização, ao promover o crescimento das
cidades, no caso brasileiro, [...] exige, simultaneamente, recursos governamentais
para a construção de uma infra-estrutura produtiva regional e nacional, como as
redes rodoviárias, portos, telecomunicações, recursos para a implantação de
indústrias estatais de base, como as de extração de petróleo, minério,
petroquímicas, siderúrgicas, e para o subsídio a setores e grupos econômicos
considerados prioritários. [...] A escassez de recursos públicos, destinados às
cidades ao longo de décadas, vem acumulando brutal déficit na oferta da infra-
estrutura e de serviços urbanos, e as poucas áreas que recebem esses
melhoramentos públicos, que em geral no Brasil são as áreas periféricas. Essa
escassez de recursos públicos destinados às cidades provoca assim a exacerbação, a
ampliação da renda diferencial imobiliária, traduzida na ampliação da diferença de
107
preços de terrenos, de imóveis construídos e de seus aluguéis. (CAMPOS FILHO,
1989, p. 53).
Aos exemplos mencionados pelo autor, relacionados à infra-estrutura
produtiva regional e nacional, acrescenta-se a vertente ambiental, especialmente a carência de
redes de saneamento básico, de gestão dos recursos hídricos e dos resíduos, de áreas verdes e
de unidades de conservação natural. Outro aspecto digno de nota é o desenvolvimento
tecnológico e seus efeitos na gestão pública: a informatização dos processos de gestão e
relacionamento com a sociedade civil, por exemplo, possibilita maior transparência e
eficiência no uso dos recursos públicos.
A liberdade de imprensa, consolidada após quase vinte anos da promulgação
da atual Constituição, tem fomentado, no país, a discussão sobre o impacto da carga tributária
na sociedade e a gestão financeira dos recursos arrecadados. A maior organização e
participação da sociedade civil nas esferas políticas também têm contribuído para um maior
conhecimento da questão. O histórico da carga tributária brasileira revela que a mesma
apresenta crescimento constante, equiparando-se atualmente à de países desenvolvidos,
enquanto os serviços públicos jamais correspondem às necessidades sociais.
No tocante à mensuração do desenvolvimento, que constitui reflexo direto
da utilização dos recursos públicos, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) parte do pressuposto de que o aspecto econômico é apenas um dos referenciais para
esta avaliação, devendo ser complementado pelos aspectos social, político e cultural inerentes
à qualidade de vida. Assim, com base em análises estatísticas e informações sobre estes
tópicos, criou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), publicado como parte do
Relatório anual da instituição. A propósito, note-se que, em 2005, o Brasil ficou em 63º lugar
no ranking mundial, atrás de países como Argentina, Uruguai, Cuba e México. Com base
nesses Relatórios de Desenvolvimento Humano, calculados retrospectivamente até 1975, o
PNUD propôs os “Oito Objetivos do Milênio”
11
, que constituem estratégias para a construção
de sociedades sustentáveis. Observe-se que, além do PNUD, outros órgãos componentes da
Organização das Nações Unidas (ONU) também adotaram esses Objetivos do Milênio como
meta orientadora de suas ações em nível mundial.
11
Objetivos do Milênio: 1. Erradicar a extrema pobreza e a fome; 2. Atingir o ensino básico universal; 3.
Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar
a saúde materna; 6. Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; 7. Garantir a sustentabilidade ambiental;
8. Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. As propostas podem ser consultadas no site:
http://www.pnud.org.br/odm/index.php?lay=odmi&id=odmi.
108
Conforme já antes referido, a criação da ONU, fruto do sentimento de
reconciliação mundial pós Segunda Guerra, representou importante marco histórico para a
conceituação contemporânea de direitos humanos, desenvolvimento, sustentabilidade e
eqüidade social. O caminho do diálogo e da negociação baseada em dados científicos, com a
participação de representantes da maioria dos países do mundo, definindo conjuntamente os
desafios a serem enfrentados pela sociedade planetária, precisa de regras capazes de lidar com
a complexidade desses objetivos. Estas regras podem ser identificadas nas características
fundamentais comuns às organizações em geral, independentemente de seu porte ou do grau
de formalidade de sua atuação. Como menciona Friedberg (1982):
Ainda que seja apenas de modo informal, já existem, portanto, as diferentes
características de uma organização, a saber: - a existência de um objecto definido; -
uma divisão das tarefas e dos papéis e a sua descrição amiúde pormenorizada; -
uma divisão da autoridade por cadeias hierárquicas cuja função é assegurar a
conformidade do comportamento de cada membro com os fins da organização; -
um sistema de comunicações, logo de relações e de interdependências entre os
diferentes membros; - um conjunto de critérios objectivos para avaliar e controlar
os resultados da organização. Esta omnipresença do fenómeno organizacional e a
sua importância doravante crucial seriam em si mesmas razões suficientes para
tentar analisá-lo, para lhe compreender os mecanismos e os efeitos, mas há mais. É
que, além disso, uma organização não é neutra. Ela não é uma simples correia de
transmissão, uma mediação passiva entre os objectivos fxados e os meios
necessários para os alcançar. Agindo como um filtro que não deixa passar senão
certas iniciativas ou certas acções, ela dispõe, ao invés, de uma lógica própria. (p.
445).
O fenômeno organizacional pode ser identificado nos mais diversos níveis
do sistema social, desde um grêmio escolar ou uma pequena empresa até uma multinacional
ou órgãos supranacionais, como a ONU, reforçando a importância contemporânea da
sociologia das organizações. Por exemplo, as reflexões das Ciências Sociais passaram, mais
recentemente, a ser influenciadas pelos conceitos de gestão, estratégia e meta, antes restritos
ao ramo da Administração, propiciando a interdisciplinaridade e contribuindo para a mudança
da visão de mundo.
Dentre as características fundamentais das organizações, destaca-se a
“divisão da autoridade por cadeias hierárquicas”, demonstrando a relação intrínseca existente
entre poder e organização e a “divisão das tarefas e dos papéis” gera a estrutura em que o
superior hierárquico encontra os limites e as possibilidades no exercício da autoridade.
“Assim, o poder é uma relação de força em que um dos parceiros pode tirar mais que o outro,
mas em que, do mesmo modo, um deles nunca está completamente desprovido frente ao
outro.” (FRIEDBERG, 1982, p. 456).
109
Max Weber (1864-1920) contribuiu significativamente para a teoria
sociológica das organizações, ao analisar as formas de dominação e o tipo ideal de
organização burocrática. Para ele, são três os tipos de dominação legítima: a) tradicional, em
que a autoridade é legitimada pela propriedade de bens, por laços sanguíneos ou patriarcais;
b) carismática, exercida tanto por motivações religiosas, heróicas ou de liderança e
entusiasmo, inspirando os dominados e legitimando sua autoridade; c) racional-legal,
legitimada por uma estrutura formal composta por normas, diretrizes e hierarquia clara e
definida. Esta classificação foi estabelecida a partir da justificativa que o dominado apresenta
quanto à legitimação do ato, e não quanto à forma de execução do poder, por parte do
dominador.
Partindo da noção de dominação racional, Weber analisou as características
da organização burocrática, sem efetivamente definir o que é burocracia. O elemento que
diferencia este sistema social dos demais é a racionalidade na divisão do trabalho, realizada
através de métodos administrativos de finalidade clara. Determinar a existência ou não de
racionalidade, numa organização, dependerá da coerência entre os procedimentos adotados e
os fins almejados. “Pela sua estrutura e pelas suas regras de funcionamento, a organização
intervém também, indirectamente, a um outro nível: ela reforça, se acaso as não cria,
solidariedades entre os diferentes indivíduos que se encontram numa mesma situação e
partilham as mesmas condições.” (FRIEDBERG, 1982, p. 455).
Pode-se dizer, então, que, ao criar ou reforçar solidariedade entre os
indivíduos, as organizações desempenham papel fundamental na construção de sociedades
sustentáveis e podem contribuir para a educação ambiental e a compreensão da
interdependência dos seres vivos. E mais, aliando esta visão à “analítica do poder”, de Michel
Foucault, percebe-se que as organizações podem gerar solidariedade e saber. “A relação entre
poder/saber perpassa toda a analítica do poder foucaultiana. A idéia geral é a de que todo
ponto em que se exerce poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saberes.”
(MOTTA e ALCADIPANI, 2004, p. 121).
Voltando ao tema central, dentro desta perspectiva, constata-se que a gestão
urbana depende de incontáveis organizações (públicas ou privadas, simples ou complexas) e a
participação da sociedade civil gera solidariedade entre os indivíduos e possibilita a formação
de saber, pois ambas são possíveis através da relação de poder definida pela estrutura e regras
de funcionamento da organização responsável pela gestão urbana. No que diz respeito aos
Conselhos Municipais, observa-se que os mesmos possuem estrutura burocrática para
viabilizar o exercício da democracia direta, além de ensejar a prática para a formação de saber
110
e solidariedade entre os habitantes da mesma cidade. Todavia, tomando por base a observação
realizada junto ao CONPPAC/RP, pode-se afirmar que esta estrutura ainda deixa a desejar,
conforme se verá no próximo capítulo deste trabalho.
O processo histórico, desde os seres primitivos até a modernidade, gerou
desafios para o século XXI, cuja superação poderá representar a sobrevivência da espécie
humana no planeta, o que leva ao debate sobre os papéis do Estado e da sociedade civil, pela
própria relação intrínseca entre eles. As Ciências Sociais absorveram os conceitos clássicos
12
definidos pelos filósofos nos séculos XVII a XX, para, a partir daí, promoverem a construção
do conceito contemporâneo de sociedade civil, capaz de compreender a interdependência
entre Estado e sociedade civil.
A relação entre estes dois pólos vem sendo modificada ao longo da história
política brasileira, como conseqüência das mudanças culturais que acabarão levando ao
“ponto de mutação”, de que fala Fritjof Capra (1997, p. 380-410). Neste contexto, a
Constituição de 1988 representa importante avanço legislativo quanto à participação social na
gestão pública. As novas práticas democráticas acabam por atuar como catalisadoras desta
mudança.
Enquanto a transformação está ocorrendo, a cultura declinante recusa-se a mudar,
aferrando-se cada vez mais obstinada e rigidamente a suas idéias obsoletas; as
instituições sociais dominantes tampouco cederão seus papéis de protagonistas às
novas forças culturais. Mas seu declínio continuará inevitavelmente, e elas acabarão
por desintegrar-se, ao mesmo tempo que a cultura nascente continuará ascendendo
e assumirá finalmente seu papel de liderança. Ao aproximar-se o ponto de mutação,
a compreensão de que mudanças evolutivas dessa magnitude não podem ser
impedidas por atividades políticas a curto prazo fornece a nossa mais robusta
esperança para o futuro. (CAPRA, 1997, p. 409-410).
Os dados estatísticos internacionais levantados pelo PNUD fornecem
subsídios técnicos à sociedade civil organizada, nas suas relações institucionais com o Estado.
A publicação anual do IDH ensejou a elaboração de dados estaduais e locais, segundo os
mesmos parâmetros. O Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil
13
publicou o IDH do
Estado de São Paulo, 3º do ranking nacional. Ribeirão Preto foi classificado como 21º na
posição nacional, atrás de cidades como São Caetano do Sul, Santos e Jundiaí. É de suma
importância notar que o crescimento econômico, isoladamente, não é capaz de promover
12
São inúmeros os conceitos de sociedade civil, expressos por importantes figuras do pensamento ocidental, cujo
detalhamento extrapola os limites deste trabalho. Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, descreve com
detalhes estes conceitos. (BOBBIO, 2000, p. 1205-1211).
13
Baseado nos microdados dos censos de 1991 e de 2000 do IBGE, permite a consulta do IDH dos 27 Estados
da Federação e dos 5507 Municípios brasileiros. O Atlas foi desenvolvido em parceria pelo PNUD, IPEA e
Fundação João Pinheiro. Mais informações: http://www.pnud.org.br/atlas/oque/index.php.
111
justiça social e equilíbrio ecológico, que exigem o desenvolvimento sustentável para sua
concretização.
Uma das características predominantes das economias [...] tanto a capitalista quanto
a comunista, é a obsessão com o crescimento. O crescimento econômico e
tecnológico é considerado essencial por virtualmente todos os economistas e
políticos, embora nesta altura dos acontecimentos já devesse estar bastante claro
que a expansão ilimitada num meio ambiente finito só pode levar ao desastre. A
crença na necessidade de crescimento contínuo é uma conseqüência da excessiva
ênfase dada aos valores yang – expansão, auto-afirmação, competição – e está
relacionada com as noções newtonianas de espaço e tempo absolutos e infinitos. É
um reflexo do pensamento linear, da crença errônea em que, se algo é bom para um
indivíduo ou um grupo, então, quanto mais desse algo houver melhor será. [...]
Num certo sentido, a crença comum no crescimento justifica-se porque ele é uma
característica essencial da vida. Mulheres e homens sabem disso desde os tempos
antigos, como podemos ver pelos termos usados na Antiguidade para descrever a
realidade. [...] O que há de errado nas atuais noções de crescimento econômico e
tecnológico, entretanto, é a ausência de qualquer limitação. Acredita-se comumente
que todo crescimento é bom, sem se reconhecer que, num meio ambiente finito, tem
que existir um equilíbrio dinâmico entre crescimento e declínio. Enquanto algumas
coisas têm de crescer, outras têm de diminuir, para que seus elementos constituintes
possam ser liberados e reciclados. [...] A mais grave conseqüência do contínuo
crescimento econômico é o esgotamento dos recursos naturais do planeta. [...] o
equilíbrio ecológico também requer justiça social. (CAPRA, 1997, p. 205-208).
Note-se que Capra defende a incompatibilidade entre desenvolvimento
sustentável e os sistemas capitalista e comunista, pois ambos buscam o crescimento a
qualquer custo. Somente a readequação do conceito de crescimento ao contexto da escassez
dos recursos naturais e da eqüidade social poderá representar a mudança dos atuais modelos
de produção praticados no planeta, ou, como apontam alguns estudiosos, não passará de uma
falácia. Aliás, pesquisas científicas em todo o mundo têm mostrado claramente a incapacidade
do meio ambiente natural de suprir a demanda dos modos de produção existentes no mundo
contemporâneo.
Até o século XX, partia-se do pressuposto de que os recursos naturais eram
inesgotáveis. Hoje, tanto a evidência de sua escassez quanto os danos gerados pela atividade
humana estão obrigando à modificação do paradigma das ciências contemporâneas. Ao longo
deste estudo, a expressão “desenvolvimento sustentável” é utilizada com o mesmo significado
consagrado pela “Cúpula da Terra”, realizada no Rio de Janeiro em 1992, a qual ficou
conhecida popularmente como ECO-92 e configurou importante marco histórico na difusão
mundial do conceito desta nova proposta de desenvolvimento.
Sob a perspectiva ecológica portanto, a sustentabilidade se assenta em três
princípios fundamentais: a conservação dos sistemas ecológicos sustentadores da
vida e da biodiversidade; a garantia da sustentabilidade dos usos que utilizam
recursos renováveis e o manter as ações humanas dentro da capacidade de carga
dos ecossistemas sustentadores. O conceito de desenvolvimento sustentável é
112
portanto muito complexo e controvertido, uma vez que para ser implantado exige
mudanças fundamentais na maneira de pensar, viver, produzir, consumir etc. Assim
os quatro fatores de ordem antropogênica que mais influenciam na sustentabilidade
ambiental são: a poluição, a pobreza, a tecnologia e os estilos de vida. Uma vez que
o desenvolvimento sustentável apresenta além da questão ambiental, tecnológica e
econômica, uma dimensão cultural e política, ele exige a participação democrática
de todos na tomada de decisão para as mudanças que se farão necessárias para a
implementação do mesmo. (FRANCO, 2001, p. 26-27).
A participação democrática nas políticas públicas encontra na Constituição
de 1988 o arcabouço jurídico necessário para sua efetivação e, dentro desta nova perspectiva,
baseada na cooperação entre os seres e novos modos de vida, pode representar a
sobrevivência das gerações futuras. A Carta de 1988 preocupou-se com esta questão: “Todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, 1988, artigo 225). É importante enfatizar que o texto constitucional não deve ser
interpretado de forma fragmentada, já que se configura como um conjunto de normas que
dialogam entre si. A política urbana foi tratada especificamente em capítulo próprio, nos
artigos 182 e 183, regulamentados em 2001 pelo Estatuto da Cidade:
Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição
Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos,
esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e
interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,
da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. (Lei
n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, Artigo 1.º).
A definição legal de meio ambiente, no direito positivo brasileiro,
está prevista na Lei 6938/1981 (Lei da Política Nacional de Meio Ambiente). Ela o conceitua
como o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3.º, inciso I). Desta
forma, vê-se que o meio ambiente urbano está, de fato, englobado na proteção constitucional
ampla disposta no artigo 225, acima transcrito. Reforçando esta tese, basta observar que o
próprio Estatuto da Cidade, em seu artigo inaugural, incorporou textualmente o equilíbrio
ambiental como requisito para a execução da política urbana.
As diretrizes gerais da política urbana são descritas no artigo
seguinte, em dezesseis incisos que formam o seu arcabouço teórico e determinam como seu
objetivo o ordenamento e pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana.
113
Entre outros princípios, o mesmo diploma legal contempla a “garantia do
direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (artigo 2.º, inciso I). Interessante
notar a incorporação do termo “cidades sustentáveis” ao ordenamento jurídico. O legislador
descreveu o conjunto de direitos fundamentais do brasileiro morador da cidade, colocando a
sustentabilidade como garantia de sobrevivência humana no presente e no futuro.
No mesmo artigo, o inciso segundo corrobora a existência de instrumentos
jurídicos capazes de permitir o exercício da democracia direta na construção dessas cidades
sustentáveis: “gestão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (artigo 2.º,
inciso II).
A nova visão de mundo e a percepção da interdependência entre os seres
estimulam a “cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da
sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social” (artigo 2.º, inciso
III).
Interessa, para os fins deste estudo, destacar a previsão legal da “proteção,
preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural,
histórico, artístico, paisagístico e arqueológico” (artigo 2.º, inciso XII).
Antes de sua aprovação, o Estatuto da Cidade foi amplamente discutido no
Congresso Nacional. Vários setores da sociedade civil organizada contribuíram para sua
elaboração técnica, dentre eles o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e diversas
faculdades de Arquitetura e Urbanismo de todo o país. Estabeleceu um marco histórico no
planejamento urbano, mas um dos maiores desafios para sua implementação é a participação
da sociedade civil, seja pelas dificuldades dos cidadãos em comparecer a reuniões,
assembléias, votações legislativas e tantas outras possibilidades de exercício da democracia,
seja por entraves nos próprios órgãos públicos e a resistência à nova visão de mundo que ele
contempla.
A participação da sociedade civil na gestão urbana pode ser exercida nas
instâncias dos Conselhos Municipais, bem no sentido do ditado popular “pensar global, agir
114
local”
14
, estimulando o processo de organização social urbana, capaz de promover o exercício
da cidadania sem fronteiras, pela compreensão da interdependência entre os seres vivos e
utilização da tecnologia da informação, no fortalecimento da organização social nos diversos
níveis: local, regional, nacional e global. Sob esta perspectiva, é possível perceber a força com
que surgem os vários segmentos sociais comprometidos com a construção de sociedades
sustentáveis, em que o regime democrático de direito representa a base jurídica necessária e
indispensável para a gestão urbana contemporânea.
14
Esta expressão surgiu nos anos 1980, como parte das estratégias empresariais japonesas. Pesquisa pela internet
mostrou a ampla difusão do conceito, de autoria atribuída a Akio Morita, aliás, quem primeiro usou o termo
"glocalização" para designar esta expressão: (http://www.janelanaweb.com/vento/assalto.html).
115
Ô, abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do serrado
Bota o rei congo no congado
Brasil! Brasil!
(Ary Barroso)
2.3 Patrimônio Cultural: Definições Legais e Percepções Sociais
A abordagem do assunto “patrimônio cultural” é uma tarefa bastante
complexa, um processo de conhecimento, em que a teoria e a prática exigem cuidado e
responsabilidade. A etimologia da palavra patrimônio já acena para a complexidade da
discussão sobre o tema:
Patrimônio. 1 Herança familiar 2 Conjunto de bens familiares 3 fig. Grande
abundância; riqueza, profusão (p. artístico) 4 Bem ou conjunto de bens naturais ou
culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país ou mesmo
para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para que seja(m)
protegido(s) e preservado(s). (HOUAISS, 2001, p. 2151).
Além da análise etimológica, interessa refletir sobre as relações
estabelecidas entre a sociedade, o patrimônio, a percepção do conceito e a importância da
memória em cada período histórico. O patrimônio cultural de uma sociedade relaciona-se com
sua memória, mas ambos não podem ser compreendidos como simples sinônimos.
A questão do patrimônio se situa numa encruzilhada que envolve tanto o papel da
memória e da tradição na construção de identidades coletivas, quanto os recursos a
que têm recorrido os Estados modernos na objetivação e legitimação da idéia de
nação. Permeando essas dimensões, está a consideração do uso simbólico que os
diferentes grupos sociais fazem de seus bens – e aqui me refiro tanto à produção
quanto à conservação ou destruição – na elaboração das categorias de espaço e
tempo. Ou seja, o valor que atribuem a esses bens enquanto meios para referir o
passado, proporcionar prazer aos sentidos, produzir e veicular conhecimento. Esses
diferentes valores atribuídos são, na civilização ocidental, regulados por duas
noções que se articulam sobre as categorias de tempo e espaço – a noção de história
e de arte. A primeira, enquanto reelaboração do passado, a segunda, enquanto
fruição in praesentia. Nesse sentido, os bens que constituem os patrimônios
culturais se propõem como marcas do tempo no espaço. Mas foi apenas quando, no
final do século XVIII, o Estado assumiu, em nome do interesse público, a proteção
legal de determinados bens a que foi atribuída a capacidade de simbolizarem a
nação, que se definiu o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional.
(FONSECA, 2005, p. 51).
Como já mencionado no capítulo 1, a humanidade sempre se relacionou
com a memória, seja pelo culto aos mortos, seja pelas práticas de memorização anteriores à
escrita. O interesse desta investigação prende-se às relações estabelecidas pela sociedade com
a preservação do patrimônio histórico e cultural, inicialmente estruturado a partir das noções
de arte e história.
116
Na Antigüidade e na Idade Média, quando ainda não se falava em
patrimônio cultural, mercadores e antiquários promoviam a circulação dos objetos de arte,
que, mais tarde, passaram a ser apreciados também por seu valor histórico ou cultural,
particularmente a partir do Renascimento, quando houve um movimento de revalorização da
herança greco-romana. “Pode-se situar o nascimento do monumento histórico em Roma, por
volta do ano 1420. [...] Um novo clima intelectual se desenvolve em torno das ruínas antigas,
que doravante falam da história e confirmam o passado fabuloso de Roma [...].” (CHOAY,
2001, p. 31)
15
.
Após a Revolução Francesa, o patrimônio histórico e artístico passou a ser
visto como instrumento para a construção da identidade nacional, fundamental na formação
dos Estados modernos, modificando o conceito de patrimônio. Em 1837, foi criada a primeira
Comissão dos Monumentos Históricos da França, que marcou o período, ao atribuir ao
patrimônio a visão monumental. Naquele momento, três grandes categorias de patrimônio
histórico eram consideradas: os remanescentes da Antigüidade, os edifícios religiosos da
Idade Média e alguns castelos.
Logo depois da Segunda Guerra Mundial, o número dos bens inventariados
decuplicara, mas sua natureza era praticamente a mesma. Eles provinham, em
essência, da arqueologia e da história da arquitetura erudita. Posteriormente, todas
as formas da arte de construir, eruditas e populares, urbanas e rurais, todas as
categorias de edifícios, públicos e privados, suntuários e utilitários foram anexadas,
sob novas denominações: arquitetura menor, termo proveniente da Itália para
designar as construções privadas não monumentais, em geral edificadas sem a
cooperação de arquitetos; arquitetura vernacular, termo inglês para distinguir os
edifícios marcadamente locais; arquitetura industrial das usinas, das estações, dos
altos-fornos, de início reconhecida pelos ingleses. Enfim, o domínio patrimonial
não se limita mais aos edifícios individuais; ele agora compreende os aglomerados
de edificações e a malha urbana: aglomerados de casas e bairros, aldeias, cidades
inteiras e mesmo conjuntos de cidades, como mostra “a lista” do Patrimônio
Mundial estabelecida pela Unesco. (CHOAY, 2001, p. 12-13).
No ordenamento jurídico brasileiro, é perceptível a influência do conceito
de patrimônio cultural, predominante na Europa no começo do século XX. A Constituição de
1934, primeira a tratar do tema no Brasil, não se referiu textualmente ao patrimônio histórico
e artístico nacional, mas determinou a obrigação do poder público quanto à proteção das
belezas naturais e dos monumentos de valor histórico ou artístico.
É, no entanto, somente com o decreto-lei nº. 25, de 30 de novembro de 1937, que se
regulamenta a proteção dos bens culturais no Brasil. Esse texto, além de explicitar
os valores que justificam a proteção, pelo Estado, de “bens móveis e imóveis”, tem
15
A historiadora e professora da Universidade de Paris, Françoise Choay, é referência internacional sobre o tema
de preservação do patrimônio cultural edificado. O conhecimento teórico da questão pode ser aprofundado em:
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio
. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2001.
117
como objetivo resolver a questão da propriedade desses bens. Desde então, todas as
Constituições brasileiras têm ratificado a noção de patrimônio em termos de
direitos e deveres, a serem observados tanto pelo Estado como pelos cidadãos.
(FONSECA, 2005, p. 38).
O Decreto-lei nº 25/1937, que criou no país o instituto do tombamento,
iniciando no Brasil a formação da estrutura burocrática responsável pela preservação do
patrimônio histórico e artístico nacional, ainda hoje integra o ordenamento jurídico vigente. O
regime do Estado Novo valeu-se do instituto do tombamento
16
e da identidade nacional do
povo brasileiro, como parte das estratégias de comunicação de massa utilizadas para
manutenção do governo autoritário.
No Brasil, a temática do patrimônio – expressa como preocupação com a salvação
dos vestígios do passado da Nação, e, mais especificamente, com a proteção de
monumentos e objetos de valor histórico e artístico – começa a ser considerada
politicamente relevante, implicando o envolvimento do Estado, a partir da década
de 1920. Já estavam então em funcionamento os grandes museus nacionais, mas
não se dispunha de meios para proteger os bens que não integravam essas coleções,
sobretudo os bens imóveis. A partir de denúncias de intelectuais sobre o abandono
das cidades históricas e sobre a dilapidação do que seria um “tesouro” da Nação,
perda irreparável para as gerações futuras, pela qual as elites e o Estado seriam
chamados a responder, inclusive perante as nações civilizadas, o tema passou a ser
objeto de debates nas instituições culturais, no Congresso Nacional, nos governos
estaduais e na imprensa. Segundo Rodrigo Melo Franco de Andrade, essa “foi uma
idéia longamente amadurecida em nosso meio” (Andrade, 1987, p. 50). Mas foram
alguns intelectuais modernistas que elaboraram, a partir de suas concepções sobre
arte, história, tradição e nação, essa idéia na forma do conceito de patrimônio que
se tornou hegemônico no Brasil e que foi adotado pelo Estado, através do Sphan.
Pois foram esses intelectuais que assumiram, a partir de 1936, a implantação de um
serviço destinado a proteger obras de arte e de história no país. (FONSECA, 2005,
p. 81).
A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN)
17
impulsionou a construção teórica sobre o patrimônio histórico e artístico
brasileiro, nos moldes das ideologias dos intelectuais que assessoraram o órgão público, nos
anos iniciais da política de preservação no país, os quais, sob a liderança de Rodrigo Melo
Franco de Andrade, formavam um grupo integrado por arquitetos e intelectuais modernistas,
como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Mário de Andrade. “A obsessão pela invenção de uma
tradição é parte integrante do imaginário modernista que domina a Academia SPHAN. [...]
pretendiam incorporá-la em novas formas e com finalidades diferentes”. (SANTOS, 1996, p.
78-91).
16
Por exemplo, a cidade de Ouro Preto foi tombada em 1938 por determinação do SPHAN, cinco anos depois de
ser declarada como Patrimônio Nacional pelo Presidente Getúlio Vargas. Em 2 de setembro de 1980, na quarta
sessão do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO, realizada em Paris, Ouro Preto foi declarada Patrimônio
Cultural da Humanidade.
17
Posteriormente transformado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
118
A influência desse grupo intelectual predominou por décadas na política de
preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Basta lembrar que a construção de
Brasília (1956-1960)
18
, proposta pelo Presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), ficou a
cargo de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Considerada o ápice da arquitetura moderna, seus
monumentos de concreto são capazes de representar o poder das decisões políticas do Brasil
moderno, desenvolvimentista e continental.
A partir dos anos 1960, a atuação do SPHAN passou a ser considerada
como inadequada aos novos tempos. A necessidade de compatibilização da gestão dos bens
culturais aos imperativos do desenvolvimento econômico, bem como a integração do Brasil
aos novos parâmetros internacionais de preservação de bens culturais, serviram de
combustível às críticas da intelectualidade brasileira quanto à atuação eminentemente técnica
e elitista do SPHAN, que se apresentava como atividade à margem das questões fundamentais
da sociedade, pouco representativa da pluralidade cultural brasileira e alienada em relação aos
problemas fundamentais do desenvolvimento nacional.
Após a Segunda Guerra Mundial, como braço da ONU voltado
especificamente para as questões educacionais, científicas e culturais, foi criada a UNESCO
(“United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization”). A teoria evolucionista,
pautada pela superioridade das raças, passou a ser questionada pelos políticos e intelectuais de
diversos países, reunidos naquela organização mundial, fomentando uma nova visão de
mundo baseada na diversidade cultural e interdependência dos seres.
As lacunas humanas deixadas pela guerra são irreparáveis, o historiador Lucien
Febvre é fuzilado quando atuava no movimento de resistência; o filósofo Walter
Benjamin se suicida na fronteira da Espanha. A UNESCO surge em um momento
específico de posicionamento por parte dos intelectuais ocidentais em relação aos
outros povos: o paternalismo herdado do colonialismo e do imperialismo adquire
uma outra face, que não deixa de se levar pelos resíduos eurocêntricos. Porém, sua
proposta reafirma os ideais da Constituição Universal dos Direitos Humanos ao
colocar para os povos de todo o mundo – sem distinção de raça, sexo, linguagem ou
religião – suas intenções de alcançar através da educação uma maior união. [...]
Cultura, educação e ciência convergem para conceitos que envolvem a manutenção
das tradições; o reconhecimento do passado de cada povo; a valorização do
patrimônio que se substancializa na cultura material e imaterial de todo e qualquer
grupo social. (GONÇALVES, 2001, p. 177-178).
18
Antigos ideais de interiorização da capital do Brasil datam do século XVIII. Em 1789, os Inconfidentes
mineiros propunham uma república nova e independente de Portugal, cuja Capital seria S. João del Rey. Com a
independência do Brasil, em 1822, os ideais são percebidos na Constituição Imperial, destacando-se, entre os
seus idealizadores, a figura de José Bonifácio de Andrada e Silva, ardoroso defensor da idéia de mudança da
Capital para o interior. Em 1894, após expedição liderada pelo astrônomo Luiz Cruls e integrada por médicos,
geólogos e botânicos, um levantamento sobre topografia, clima, geologia, flora, fauna e recursos materiais da
região do Planalto Central foi apresentado ao Governo Republicano.
119
A UNESCO patrocinou a criação de Conselhos Internacionais voltados para
as questões patrimoniais, como o Conselho Internacional de Museus (ICOM), o Conselho
Internacional dos Monumentos e Sítios Históricos (ICOMOS) e o Centro Internacional de
Estudos da Preservação e Conservação do Patrimônio Cultural (ICCROM). Segundo
Gonçalves (2001)
19
, todos estes organismos internacionais têm em comum
[...] a proposta de difusão do conhecimento por meio da conservação e proteção de
livros, obras de arte e monumentos históricos e científicos; pelo estímulo à
cooperação entre as nações em todos os ramos da atividade intelectual, incluindo
intercâmbio de educadores e cientistas; pela disposição de informações a respeito
dos bens culturais, artísticos, históricos, científicos, além do Patrimônio Natural e,
acima de tudo, pela disposição em auxiliar países em momentos de crise, sem, no
entanto, interferir na independência e na autonomia de cada nação. (p. 178).
Em maio de 1964, o ICOMOS organizou o II Congresso Internacional de
Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos. Os debates e resultados dos trabalhos
científicos foram consolidados na “Carta de Veneza”
20
, um dos mais importantes tratados
internacionais sobre a preservação do patrimônio cultural.
Na década de 1970, os movimentos ecológicos, fortalecidos principalmente
nos países desenvolvidos, motivaram o debate mundial sobre a questão ambiental. Em junho
de 1972, a Assembléia Geral das Nações Unidas promulgou a “Declaração de Estocolmo”,
enfatizando a importância da preservação dos recursos naturais para a sobrevivência das
futuras gerações. No mesmo ano, em Paris, a 17ª. Sessão da Conferência Geral da UNESCO
aprovou a “Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”. No
Brasil, esta Convenção foi ratificada pelo Decreto-lei nº 80.978, de 12 de dezembro de 1977.
No vocabulário internacional, percebe-se a mudança do conceito de patrimônio, substituindo
o adjetivo “histórico e artístico” por “cultural”, aproximando a preservação patrimonial da
questão ambiental.
No Brasil, além das influências externas e após a fase mais dura da
repressão, o regime militar percebeu, no campo da cultura, um importante recurso ideológico
para a legitimação do poder e criou instituições financiadoras da produção cultural, como a
Embrafilme e a Funarte. Abolindo o discurso da “segurança nacional”, passou a adotar
19
Em sua tese de doutorado, Gonçalves (2001) analisa com detalhes os paradigmas e reflexos dos modelos
documentais produzidos entre 1945 e 1999, por instituições internacionais que surgiram sob os auspícios da
UNESCO, reunindo e descrevendo as categorias típicas do patrimônio: histórico, arqueológico, arquitetônico,
mobiliário, natural e subaquático.
20
No endereço eletrônico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é possível
consultar a íntegra dos tratados e documentos internacionais envolvendo a preservação do patrimônio cultural,
elaborados ao longo de todo o século XX, incluindo a Carta de Veneza. No novo milênio, as redes internacionais
envolvidas na questão patrimonial enriquecem a teoria e a prática, comunicam-se pela internet e organizam
grandes encontros mundiais.
120
conceitos como “pluralidade cultural” e “desenvolvimento cultural”, buscando adequar, ainda
que superficialmente, a política federal aos novos tempos.
Durante a década de 70, sob a ditadura militar, as primeiras mudanças significativas
em relação à anterior se fizeram em nome de uma modernização: era importante
apresentar a prática de preservação como compatível (e não como conflitante) com
o processo de desenvolvimento. No final da década de 70, quando teve início o
período de “distensão”, o grupo liderado por Aloísio Magalhães, que assumiu em
1979 o cargo de Diretor do IPHAN – integrado à Secretaria da Cultura do MEC,
criada em 1981 – foi buscar na elaboração das noções de “participação da
comunidade” e, posteriormente, já na fase de redemocratização, na noção de
“direitos culturais”, os recursos para legitimar uma política cultural que se queria
democrática. (FONSECA, 1996, p. 154).
A nova conceituação de patrimônio cultural reflete as influências teóricas
dos organismos internacionais e a percepção das possibilidades geradas pela cultura, enquanto
instrumento de transformação social. Se, de um lado, o governo militar soube reconhecer o
poder de influência social da cultura, por outro, o movimento organizado em prol da
redemocratização também teve nas expressões culturais os instrumentos mais importantes de
difusão dos ideais democráticos.
As influências internas e externas foram absorvidas pela Constituição de
1988, que redefiniu o conceito de patrimônio e os instrumentos técnicos capazes de protegê-
lo:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1°. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2°. Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação
governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela
necessitem.
§ 3°. A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e
valores culturais.
§ 4°. Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5°. Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos. (artigo 216).
Como se vê, a expressão “patrimônio cultural”, prevista expressamente no
texto constitucional, contempla os bens materiais e imateriais, consagra o direito à memória
121
dos diferentes grupos sociais. As normas constitucionais brasileiras estão, portanto, alinhadas
às recomendações dos órgãos internacionais. O § 1º do artigo 216 garante a colaboração da
comunidade no processo, de forma coerente com o exercício da democracia direta,
consagrado no artigo 1º, e traz inovações quanto à gestão patrimonial, ao ampliar os
instrumentos técnicos necessários à preservação.
O instituto do tombamento, instrumento jurídico de preservação mais
conhecido pela sociedade, deve ser aliado à realização de inventários, registros, vigilância e
desapropriação. Exemplificando a importância dos outros mecanismos, o recurso do
inventário pode evitar o abandono de imóveis tombados individualmente, pois, ao possibilitar
a análise do conjunto do patrimônio cultural local, é capaz de fornecer subsídios técnicos aos
responsáveis pela decisão do tombamento. O inventário permite, também, delimitar as
possibilidades de intervenção e alteração de uso da propriedade, informações raras nos
processos de tombamento, viabilizando a preservação racional do patrimônio cultural.
Como podemos constatar, o legislador constituinte aceitou integralmente a moderna
conceituação de patrimônio cultural, deixando de lado as expressões até então
consagradas nos textos constitucionais anteriores, tais como: “patrimônio histórico,
artístico, arquitetônico, arqueológico e paisagístico”. Não se discute mais se o
patrimônio cultural do país constitui-se apenas dos bens de valor excepcional ou
também daqueles de valor cotidiano; se inclui monumentos individualizados ou em
conjunto; se apenas a arte erudita merece proteção ou também as manifestações
populares; se contém apenas os bens produzidos pelo homem ou se engloba
também os bens naturais; se esses bens da natureza envolvem somente os dotados
de excepcional valor paisagístico ou inclusive o simples ecossistema. Enfim, todos
esses bens, sejam naturais ou culturais, materiais ou imateriais, tangíveis ou
intangíveis, estão incluídos no patrimônio cultural do país, desde que os mesmos
sejam portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes
elementos étnico-culturais formadores da nação brasileira. [...] Com a ampliação do
conceito de patrimônio cultural, expresso em nossa atual Constituição, abrem-se
perspectivas para a adoção de uma nova política de proteção ao nosso acervo
histórico que possibilite a construção de uma memória plural. (ORIÁ, 2003, p. 134-
135).
A noção mais abrangente de patrimônio cultural incorporou os diferentes
grupos étnicos formadores da sociedade brasileira, rompendo a visão elitista de preservação
das manifestações, bens e valores representativos do luxo e da ostentação, passando a integrar
a perspectiva de cidadania, constituindo direito fundamental de todos os brasileiros.
Esta maior abrangência pode ser percebida pela promulgação do Decreto
Federal n° 3551, de 04 de agosto de 2000, que, conforme consta em sua ementa, instituiu o
“Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural
brasileiro” e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), cujo objetivo é
viabilizar
122
[...] projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da
dimensão imaterial do patrimônio cultural. É um programa de fomento que busca
estabelecer parcerias com instituições dos governos federal, estadual e municipal,
universidades, organizações não-governamentais, agências de desenvolvimento e
organizações privadas ligadas à cultura, à pesquisa e ao financiamento. (Decreto
Federal n° 3551/2000, ementa, on-line).
Os efeitos negativos da homogeneização cultural, gerada pelo processo de
globalização, tornaram as tradições populares e as culturas regionais em importantes
instrumentos para a construção de sociedades sustentáveis, tanto quanto para a mudança de
visão de mundo. Por se tratar de uma preocupação mundial, a diversidade cultural passou a
ser considerada como patrimônio comum da humanidade. Os Estados membros da UNESCO
adotaram a “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural” comprometendo-se a
reconhecer, defender e divulgar ativamente seus benefícios no âmbito local, nacional e
internacional.
Todo país que se diz moderno, que aceita os padrões mínimos de dignidade da
pessoa humana, de desenvolvimento, justiça social e cidadania, não pode furtar-se a
garantir o direito de seus cidadãos à cultura, aqui entendida na sua acepção mais
ampla. A própria Constituição de 1988, como vimos, estatui, em seu artigo 215,
que: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais” (grifos do autor). Num país onde os mais elementares
direitos de cidadania são negados à grande parcela da população, a cultura, às
vezes, é encarada como algo supérfluo e, até mesmo, desnecessário, face às
demandas mais prementes dos setores subalternizados da sociedade brasileira. No
entanto, entendemos que o direito à cultura deve ser encarado na perspectiva de
direito de cidadania e direito fundamental da pessoa humana. Ao falarmos que a
cultura é um direito fundamental a ser assegurado a todos os brasileiros,
concluímos que estes mesmos cidadãos devem ter, primeiramente, o direito de
produzir cultura, bem como o direito de acesso aos bens culturais, o direito de
participar, interferindo no processo de decisões que envolvam a política cultural do
país e, por último, o direito à memória histórica. (FERNANDES, 1992, p. 272-
273).
Pelo breve histórico do direito constitucional brasileiro, percebe-se o desafio
que se estabeleceu para que os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição em
vigor se concretizem. A dependência econômica externa, a escravidão, as oscilações entre
regimes republicanos ditatoriais e democráticos, que marcaram a sociedade brasileira
contemporânea, constituem outros fatores que dificultam a concretização desses direitos,
dentre os quais se incluem os direitos culturais.
No caso dos direitos culturais a questão é mais complexa, sobretudo nos países que
se originaram das colônias européias e foram marcados pela escravidão. Esses
países herdaram uma noção de cultura duplamente restrita: não apenas em termos
de classes sociais – na medida em que não se reconhecia, do mesmo modo que nas
metrópoles, o caráter de cultura às produções e práticas dos estratos populares
como também em termos geográficos, pois, mesmo após a independência, a
123
verdadeira cultura era aquela importada das metrópoles européias. [...] A expressão
direitos culturais foi incluída na Constituição brasileira de 1988 (art. 215), mas, até
hoje, a não ser em casos excepcionais, essa temática não foi incorporada às
políticas públicas na forma de propostas de trabalho. Nesse sentido, os direitos
culturais no Brasil não passam de direitos fracos, meras declarações de boas
intenções. Tema cada vez mais presente nas agendas políticas nacionais e
internacionais, a questão da cultura encontra, no Brasil, fortes resistências por parte
da classe política, que costuma considerar (nem sempre de forma explícita) que na
sociedade brasileira há necessidades muito mais prementes a serem atendidas (e
também, muito provavelmente, que esse tipo de discurso “não dá voto”). Aos olhos
da maior parte dos políticos brasileiros, esse não é um campo propício ao exercício
à afirmação do poder; e essa postura fica evidente na ausência do tema em
programas de partidos e plataformas de eleição. Por outro lado, vem se observando
recentemente um crescente interesse de governos de estados e municípios em
marcar sua atuação com iniciativas na área da cultura. (FONSECA, 2005, p. 74-75).
A Constituição de 1988 consagra o patrimônio cultural no rol dos direitos
culturais que devem ser garantidos pelo Estado, mas, ante as necessidades de sobrevivência de
parte da população brasileira, acabam sendo relegados ao nível de direitos secundários. Por
outro lado, na perspectiva de organização da sociedade civil para implementação das garantias
constitucionais, utilizando a preservação do patrimônio cultural como instrumento de
exercício da cidadania, surgem novas práticas políticas, fundadas nos direitos culturais como
catalisadores das mudanças sociais e caminhos eficazes para a construção da justiça social
21
.
No contexto de uma política cultural mais ampla é que se deve repensar
criticamente a política de proteção, resgate e preservação de nosso Patrimônio
Histórico-Cultural. Quando se fala neste repensar, não se entenda apenas o mero
formalismo de mudanças administrativas, com a criação e substituição de órgãos
públicos destinados a exercer a tutela jurídica de nosso acervo cultural – prática tão
em voga na vida político-administrativa do país. Mais que isso, necessitamos de
uma nova postura do Poder Público, que encare a questão da proteção do
Patrimônio Cultural como algo prioritário no rol de suas políticas públicas. Por
outro lado, consideramos que uma política eficaz para o Patrimônio Histórico-
Cultural, que enseje o exercício de nossa cidadania, deve compreender a ação do
Poder Público e da sociedade civil como um todo em três grandes áreas de atuação,
a saber: a Educação Patrimonial, a Pesquisa e a Preservação. Sem estes elementos
articulados conjuntamente, toda e qualquer política para o acervo cultural estará
fadada ao fracasso. (FERNANDES, 1992, p. 273).
A Constituição de 1988 estabelece, no artigo 30, inciso IX, que compete aos
Municípios “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a
legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. A leitura combinada dos artigos
constitucionais citados neste estudo comprova a existência de normas constitucionais
suficientes para a preservação do patrimônio cultural de Ribeirão Preto e garante a
21
Alguns exemplos a citar, entre vários que vêm sendo observados no país são os diversos projetos sociais
desenvolvidos nas favelas do Rio de Janeiro e comunidades carentes de Salvador, que utilizam formas de
expressão cultural como instrumentos de inclusão social.
124
participação da sociedade civil neste processo, porém, imediatamente levanta-se a questão
recorrente: será que a existência das normas garante a eficácia do direito?
Voltar os olhos sobre a legislação que rege a matéria permite constatar que o
caminho para o alcance desta eficácia, que começou a ser desbravado pelas inovações trazidas
pelas normas constitucionais, já se encontra preparado pela existência de legislação inferior,
especialmente, no que concerne ao presente estudo, da lei municipal que criou o Conselho de
Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto (CONPPAC/RP), como
será detalhado adiante.
Resta, pois, examinar o quanto a sociedade civil já percorreu e ainda tem a
percorrer neste caminho, rumo à consagração do direito e dever de participação na gestão
urbana e atuar na aplicação das diretrizes norteadoras da preservação do patrimônio que,
afinal, lhe pertence.
125
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim-donde nóis passemo
dias feliz de nossa vida
(Adoniran Barbosa)
2.4 Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto
(CONPPAC/RP): Assertivas Legais e Administração
No entrar do novo milênio, a orientação política do Estado brasileiro tem
permitido o fortalecimento da percepção social quanto à importância do regime democrático
de direito.
Já no final da década de 1980, a consolidação deste regime de governo
tornou-se o principal objetivo dos mais diversos segmentos sociais. Os resquícios da violência
cometida na defesa do regime ditatorial precisavam ser expurgados do imaginário brasileiro,
mas, passados vinte anos, há que se buscar nesta base a falta de motivação, de engajamento e
de espírito público que ainda se verificam na sociedade no início do século XXI.
O histórico do direito constitucional demonstra a instabilidade da formação
política e administrativa do Estado brasileiro. O ordenamento jurídico pátrio transforma as
regras sociais em normas técnicas. Ninguém pode alegar desconhecer a lei, mas a legislação
torna-se incompreensível até aos estudiosos do Direito. O jurista francês Georges Ripert
(1880-1958) afirmou certa vez: “Se o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga,
ignorando o Direito” (TEIXEIRA, on-line). Esta famosa frase alertou sobre os paradoxos
enfrentados pelas ciências jurídicas, na relação entre a previsão legal e a realidade social.
A sociedade moderna racionalizou as relações sociais através do
ordenamento jurídico, mas sendo a contingência a característica marcante da sociedade
contemporânea, revela-se insuficiente a prescrição legal, ainda que constitucional. Na
verdade, o direito previsto abstratamente no ordenamento jurídico não garante a eficácia da
norma na vida prática, que é também influenciada pelos aspectos econômico, social, político,
cultural e ambiental.
Ao analisar a gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto, a pesquisa
documental e bibliográfica permitiu a verificação da existência de legislações constitucional,
federal, estadual e municipal perfeitamente capazes de garantir o exercício democrático dos
direitos culturais, em especial a preservação do patrimônio cultural local. O ordenamento
jurídico é a ferramenta necessária para a formação de sujeitos históricos comprometidos com
a gestão urbana sustentável, mas este instrumento precisa ser utilizado no exercício da
cidadania nos espaços democráticos, como, por exemplo, os Conselhos Municipais.
126
Não se pretende que todos os brasileiros conheçam a íntegra do texto
constitucional. No entanto, os direitos e garantias fundamentais devem ser incorporados ao
cotidiano das pessoas. Quando se fala em cidadania, enquanto espaço de conquista e
efetivação de direitos, há que se ter a perspectiva da necessidade de conhecimento dos direitos
já existentes. A partir daí, torna-se possível compreender a ordem jurídica como instrumento e
não como algo que, simplesmente por existir, possa garantir a cidadania plena.
Perante um número significativo de pessoas, o direito previsto na
Constituição Federal oscila entre o status de “conquista” e “letra morta”. Freqüentemente
ouvem-se frases como “a Constituição não serve para nada, porque o que está escrito ali não
acontece na realidade”. Este tipo de argumentação é extremamente prejudicial à sociedade
contemporânea, pois, dada a complexidade das relações sociais na atualidade, não é possível a
construção social sem normas. A legislação precisa ser utilizada pelos cidadãos como
ferramenta de promoção da justiça social no seu aspecto mais amplo: “a gente não quer só
comida, a gente quer comida, diversão e arte. [...] a gente não quer só dinheiro, a gente quer
inteiro, e não pela metade” (TITÃS, on-line).
A partir desta perspectiva, percebe-se a importância dos Conselhos
Municipais responsáveis pela gestão cultural, interessando ao objeto deste estudo aquele que
se relaciona com a preservação do patrimônio cultural local. Analisando a legislação
municipal existente a respeito do tema após a Constituição de 1988
22
, verificou-se que os
direitos culturais locais encontram-se primeiramente tratados na Lei Orgânica do Município
(LOM) de Ribeirão Preto, promulgada em 05 de abril de 1990.
Do seu Título V, “Da Ordem Econômica e Social”, composto por oito
capítulos, interessa a este trabalho o Capítulo VII, “Da Educação, da Cultura e do Desporto”,
formado por três seções. Dentre elas, deve-se atentar para a Seção II – “Da Cultura”,
composta pelos artigos 181 a 187.
O Município, em cooperação com a União e o Estado, garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, mediante: I -
garantia de liberdade de criar, produzir, praticar e divulgar valores e bens culturais;
II - promoção de amplo e livre acesso aos meios e bens culturais; III - planejamento
e gestão do conjunto das ações, garantida a participação de representantes da
comunidade; IV - reconhecimento, pelo Poder Público, dos múltiplos universos e
modos de vida da realidade nacional, em suas formas diversas de expressão,
manifestas no Município, preservando os valores que formam a sua memória e
22
Para conhecimento da legislação municipal anterior à promulgação da Constituição de 1988, ver artigo
publicado na revista eletrônica “Museu”, escrito pela historiadora Tânia Cristina Registro, do Arquivo Público
Municipal de Ribeirão Preto, em co-autoria com a socióloga Silvia Maria do Espírito Santo. (REGISTRO;
SANTO, on-line).
127
identidade; [...] VI - cumprimento, por parte do Município, de uma política cultural
não intervencionista, visando à participação de todos na vida cultural, notadamente
da população mais carente, com ênfase para a programação de eventos em bairros
periféricos; [...] VIII - preservação dos documentos, obras e demais registros de
valor histórico ou científico; (LOM, artigo 181).
Da leitura deste artigo, ressalta a previsão do respeito à diversidade cultural,
do amplo acesso à cultura, da cooperação com os outros dois níveis de governo e a garantia da
participação de representantes da comunidade no planejamento e gestão das ações culturais.
Na seqüência, o artigo 182 da LOM define o patrimônio cultural local.
Constituem patrimônio cultural municipal os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referências à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade, nos quais se
incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as
criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico. Parágrafo Único – Os bens culturais, a que
alude o presente artigo, ficarão sob a proteção especial do Poder Público Municipal,
na forma da lei.
Observe-se a sincronia deste artigo da LOM com o artigo 216 da
Constituição Federal, já citado neste trabalho. Aliás, não por acaso, uma vez que foi redigido
em obediência aos ditames da própria Constituição, cujo Ato das Disposições Transitórias, em
seu artigo 11, parágrafo único, determinou que todas as Câmaras Municipais brasileiras
deveriam aprovar a Lei Orgânica dos respectivos municípios, respeitando o disposto no novo
texto constitucional.
Com base nesta mesma regra, pode-se dizer que, a partir de 1988, a lei
orgânica de um município equivale a uma Constituição local, por isso é hierarquicamente
superior a todas as demais leis municipais, que não podem contrariá-la. Por todas estas razões,
ainda que se possa criticar a norma municipal por ser mera cópia da constitucional
23
, na
verdade deve-se reconhecer a importância da inserção expressa dos direitos culturais na
ordem jurídica municipal, arcabouço normativo da gestão urbana local.
Além do disposto na LOM, verifica-se a existência de normas municipais
específicas declarando este ou aquele bem, individual ou coletivamente, como sendo
representativo da história local.
Durante a década de 1990, foram declarados de valor histórico, através de
legislação municipal os seguintes bens: • Lei nº 8.445 de 20 de maio de 1.995:
Acervo do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto; • Lei nº 6.826 de 02 de
junho de 1.994: Imóvel sede da CIANE – Cia. Nacional de Estamparia, antiga
23
O caput e os cinco incisos de ambos os artigos são idênticos, modificando-se apenas os parágrafos.
128
Indústria Matarazzo; [...] • Lei nº 6.597 de 20 de Janeiro de 1.993: Mercado
Municipal; • Lei nº 6.514 de 16 de Outubro de 1.992: Acervos dos Jornais: “Diário
da Manhã”, “A tarde” e “A Palavra” – Modificada pela Lei nº 6.576 de 22 de
dezembro de 1.992; • Lei nº 6.067 de 21 de agosto de 1.991: Hotel Brasil; • Lei nº
5.697 de 13 de março de 1.990: Define o uso do Theatro Pedro II. Ainda neste
período, foi criado o Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto (Lei Comp. Nº
130 de 02 de julho de 1992), com a finalidade de sistematizar a ação do poder
público municipal sobre a documentação produzida, promovendo o recolhimento e
proteção dos documentos e criando o Museu de Arte – MARP. (REGISTRO;
SANTO, on-line).
Do ponto de vista jurídico, a legislação municipal que declara um bem como
de valor histórico não gera os mesmos efeitos do ato administrativo de tombamento.
Exemplificando, o edifício do antigo Hotel Brasil
24
, localizado na atual Avenida Jerônimo
Gonçalves, na esquina com a Rua General Osório, às margens do córrego Ribeirão Preto e da
extensa fila de palmeiras imperiais plantadas no início do século passado, embora de interesse
histórico reconhecido por lei desde 1991, encontra-se desocupado e sofrendo o desgaste
provocado pelas intempéries e pelas depredações, sem que esta situação possa ser eficazmente
revertida, pela falta do tombamento.
O pedido para aprovação do projeto de construção de um grande hotel, de
propriedade de Vicente Viccari, foi encaminhado à Prefeitura Municipal em abril
de 1921. Neste mesmo ano, o projeto de autoria do engenheiro Antônio Soares
Romêo, foi aprovado pelo Prefeito Municipal João Rodrigues Guião (Proc. Adm.
Nº 42/1921 - Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto). [...] Conforme
depoimento de Domingos Belíssimo (antigo funcionário do Hotel Brasil), entre os
anos de 1930 e 1955 ficaram hospedados no hotel muitos estadistas, membros de
associações internacionais, homens de negócios e clubes de futebol, como por
exemplo, o Vasco da Gama, o Coritiba, o Boca Juniors e o River Plate. (ARQUIVO
RIBEIRÃO, on-line).
Com efeito, a Lei Municipal nº 6067/1991
25
considerou o prédio do Hotel
Brasil como de valor histórico e arquitetônico, mas, ainda que seu artigo 3º determine ser do
Executivo Municipal a obrigação de providenciar o tombamento do bem, não se tem notícia
da existência de tal ato administrativo. A ausência do decreto municipal de tombamento gera
conseqüências jurídicas; por exemplo, se o proprietário pretender executar a restauração do
prédio, será impedido de beneficiar-se dos incentivos fiscais federais previstos, se o mesmo
24
No link “História de Ribeirão”, do site do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto, é possível obter
breve relato sobre o Hotel Brasil, além de indicação bibliográfica e foto tirada em 1956:
http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/scultura/arqpublico/i14principal.asp?pagina=/scultura/arqpublico/historia/i14
indice. Último acesso em 09/07/2006.
25
A íntegra da lei municipal 6067/1991 pode ser vista em
http://www.camararibeiraopreto.sp.gov.br/camara/leis/1991/l6067.pdf. Último acesso em 15/07/2006.
129
ainda não estiver formalmente tombado
26
, exigência para a proposição do projeto ao
Ministério da Cultura, órgão responsável pela aprovação deste tipo de iniciativa.
Em Ribeirão Preto, observou-se que a existência de legislações esparsas
sobre a preservação de bens representativos da história local, acaba por dificultar a gestão do
patrimônio cultural, pois perde-se a perspectiva de integração e interdependência, inerentes ao
contexto histórico em que estes bens passam a ter significado social. De qualquer forma,
durante a década de 1990, além dessas leis, a questão da preservação do patrimônio cultural
local despertou a mobilização de diversos atores sociais, públicos e privados.
Em 1993, entre as políticas públicas desenvolvidas pelo Executivo Municipal,
estava a criação e/ou fortalecimento dos Conselhos Municipais. Além disso, estava
residindo na cidade, neste momento, a Delegada do IBPC (Instituto Brasileiro do
Patrimônio Cultural), a arqueóloga Maria Lúcia Franco Pardi, que em visitas
constantes a sede do Arquivo Histórico (na ocasião instalado no mezanino da Casa
da Cultura), propôs para a então Diretora do Arquivo, Prof. Dra. Maria Elízia
Borges a realização de um encontro municipal sobre patrimônio cultural, com o
objetivo de chamar e estender a discussão sobre a preservação do patrimônio e a
necessidade de criação de um Conselho de Patrimônio para toda a comunidade,
estudantes e sociedade civil organizada. Foi realizado no auditório da Casa da
Cultura, em 06 de maio de 1993, o debate: Patrimônio Cultural do Município de
Ribeirão Preto, promovido pela Secretaria Municipal da Cultura [...]. A partir deste
encontro foi organizado um grupo de trabalho, integrado inicialmente pelos
funcionários das Secretarias Municipais: Marília Rodrigues, Sérgio Lago, Maria
Elizia Borges e Tania Cristina Registro (Secretaria da Cultura), Maria Helena
Cividanes (Secretaria dos Negócios Juríidicos), Milton Gonçalves de Almeida
(Secretaria de Obras e Serviços), Kátia Maria Vieira (Diretoria de Obras
Particulares), representante do IBPC - Maria Lúcia Franco Pardi, do IAB - Valéria
Valadão, da Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Ribeirão Preto
- Maria Cecília Baldochi Medeiros e da Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil
- Simone Kandratavicius, com o objetivo de desenvolver trabalhos de pesquisa e
propor minuta de lei para a criação do Conselho de Preservação do Patrimônio
Cultural de Ribeirão Preto. Este Grupo de Trabalho, integrado posteriormente por
José Antônio Lanchoti (da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento), reuniu-
se sistematicamente durante os anos de 1993 e 1994. Neste período foram
promovidos os levantamentos da legislação federal, estadual e municipal sobre
preservação do patrimônio, a partir do que se elaborou uma minuta de lei que foi
encaminhada em 1995 para o IPHAN e CONDEPHAAT para apreciação. Após as
apreciações destes órgãos foi elaborado o projeto de lei n. 1417 e encaminhado em
01 de agosto de 1996 para a Câmara Municipal, pelo Prefeito Municipal Antônio
Palocci Filho. O projeto foi aprovado em discussão única em 16 de setembro de
1996. Em 17 de outubro de 1996, através da Lei n. 7.521, foi criado o Conselho de
Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto – CONPPAC-
RP. (REGISTRO; SANTO, on-line).
A criação do CONPPAC/RP iniciou nova fase na gestão urbana e na forma
de participação da sociedade civil organizada. Seguindo a disposição do artigo 30, inciso IX,
26
A relação dos documentos obrigatórios para este fim pode ser encontrada no site do Ministério da Cultura:
http://www.cultura.gov.br/upload/DOCUMENTOS%20OBRIGAT%D3RIOS_1111694801.doc. Último acesso
em 09/07/2006.
130
da Constituição de 1988, já estudado, a Lei Municipal nº 7521/1996
27
criou a estrutura
normativa necessária à efetivação deste direito constitucional. Seu artigo 1º vincula o
Conselho à Secretaria da Cultura, estabelece sua organização como colegiado de caráter
consultivo e deliberativo, atribuindo-lhe o status de representante da comunidade na
assessoria ao Poder Público Municipal quanto às questões da preservação do patrimônio
cultural local.
As atribuições e competências do CONPPAC/RP são descritas no artigo 2º,
onde estão estabelecidos os limites e possibilidades da atuação dos Conselheiros:
As atribuições e competências do CONPPAC/RP são:
I – formular e definir as diretrizes para a política municipal de valorização e
preservação do patrimônio cultural, compreendendo o histórico, artístico,
arqueológico, arquitetônico, documental, museológico, paisagístico, ambiental,
dentre outros;
II – coordenar e integrar as atividades públicas referentes a essa política;
III – proceder a estudos para elaboração e aperfeiçoamento de recursos
institucionais e legais, genéricos e específicos, para consecução da política prevista
no inciso I;
IV – sugerir aos Poderes Públicos Municipal, Estadual e Federal medidas para
cumprimento das exigências decorrentes da execução dessa política, inclusive com
aperfeiçoamento da legislação em vigor, se houver;
V – manter permanente contato com organismos públicos e privados, nacionais e
internacionais, visando a obtenção de recursos, cooperação técnica e cultural, para
valorização e preservação dos bens culturais do município;
VI – propor e colaborar na execução de programas educacionais e culturais que
visem a preservação de patrimônio;
VII – acionar os órgãos competentes para localizar, inventariar, catalogar e
documentar os bens culturais do município;
VIII – deliberar sobre o tombamento de bens móveis e imóveis de reconhecido
valor para a preservação da memória do município;
IX – adotar medidas necessárias a que se produzam os efeitos do tombamento e
outras ações de preservação;
X – pleitear benefícios aos proprietários de bens tombados;
XI – concretizar sanções previstas em lei, a fim de garantir a preservação do
patrimônio cultural do município;
XII – elaborar seu regimento interno. (Lei nº 7521/1996, artigo 2º).
Como se observa, a legislação municipal permite ao CONPPAC/RP
formular e definir as diretrizes para a política municipal de preservação do patrimônio cultural
na sua mais ampla conceituação, compreendendo o histórico, artístico, arqueológico,
arquitetônico, documental, museológico, paisagístico e ambiental. Desta forma, reconhece a
participação da sociedade civil em um dos aspectos mais importantes da gestão urbana, a
formulação e definição de políticas públicas.
Outro ponto significativo a ser analisado neste artigo 2º é a possibilidade de
contato entre o CONPPAC/RP e organismos públicos e privados, nacionais e internacionais,
27
Anexo A.
131
visando a cooperação técnica e cultural, podendo, inclusive, obter recursos para a preservação
do patrimônio cultural local. O desenvolvimento tecnológico e a globalização facilitam estes
contatos e geram amplas possibilidades de cooperação, que, se implementadas, certamente
contribuem para a melhor atuação do órgão. A perspectiva do papel da educação na
preservação do patrimônio cultural também foi objeto de preocupação nas atribuições e
competências do CONPPAC/RP, podendo este propor e colaborar na execução de programas
educacionais.
Como não poderia deixar de ser, o instituto do tombamento também se
encontra previsto na lei, cabendo ao CONPPAC/RP deliberar sobre o reconhecimento do
valor de bens móveis e imóveis para a preservação da memória do Município e adotar as
medidas necessárias para a efetivação do tombamento, inclusive pleiteando benefícios aos
proprietários de bens tombados.
Quando se trata de bens imóveis privados, é comum o proprietário sentir-se
lesado pelo tombamento, muitas vezes dificultando as medidas de preservação do patrimônio
edificado. A utilização do disposto na legislação municipal pode melhorar o relacionamento
entre o CONPPAC/RP e o proprietário, numa perspectiva de interdependência na construção
da sociedade sustentável. Na qualidade de representante da sociedade junto ao Poder Público
Municipal, nas questões relativas à preservação do patrimônio cultural, o CONPPAC/RP é
formado por voluntários indicados pelos órgãos relacionados na lei municipal.
O CONPPAC/RP será composto por pessoas de comprovado reconhecimento
público e com notórios conhecimentos relativos às finalidades do Conselho,
indicadas pelos órgãos abaixo relacionados, como seus representantes, e nomeadas
pelo Prefeito Municipal, podendo cada entidade indicar um titular e um suplente
para o Conselho:
I – Secretaria Municipal de Planejamento;
II – Secretaria Municipal de Obras e Serviços;
III – Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos;
IV – Secretaria Municipal do Meio Ambiente;
V – Secretaria Municipal da Cultura;
VI – Conselho Municipal da Cultura;
VII - CONDEMA/RP (Conselho de Defesa do Meio Ambiente);
VIII – ACI – Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto;
IX – OAB – Ribeirão Preto (Ordem dos Advogados do Brasil – Ribeirão Preto);
X – AEAARP – Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Ribeirão
Preto;
XI – IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil – Núcleo Regional de Ribeirão Preto;
XII – Conjunto das Instituições de Ensino Superior instaladas em Ribeirão Preto;
XIII – FABARP – Federação das Associações de Bairro de Ribeirão Preto;
XIV – ALARP – Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto;
XV – ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras. (Lei nº 7521/1996 artigo 3º).
A escolha das Secretarias Municipais para a composição do CONPPAC/RP,
constante do artigo 3º da lei em estudo, revela a justa preocupação do legislador com os
132
diversos aspectos envolvidos na preservação do patrimônio cultural. De fato, não seria
possível imaginar a discussão do patrimônio ambiental, sem a participação da Secretaria de
Meio Ambiente. Nem a compreensão da burocracia envolvida nos processos administrativos
de tombamento, sem a Secretaria de Negócios Jurídicos. Muito menos, pensar a gestão do
patrimônio cultural sob a perspectiva de desenvolvimento urbano sustentável, sem o
envolvimento da Secretaria de Planejamento. Todavia, esta previsão literal não tem levado ao
benefício prático que norteou sua inclusão no texto legal, como se verá adiante.
Outros dois aspectos da composição do CONPPAC/RP são interessantes ao
objeto deste estudo. O primeiro consiste na superioridade numérica dos órgãos representantes
da sociedade civil organizada, quando comparados ao número de órgãos públicos, sendo
cinco representantes das Secretarias Municipais e dez da sociedade. O segundo está na
inclusão de outros dois Conselhos Municipais, o de Cultura e o de Meio Ambiente,
demonstrando a interdependência existente entre os Conselhos e fomentando a visão
estratégica da gestão urbana.
Posteriormente, a Lei Complementar nº 1243, de 01 de outubro de 2001
28
,
alterou os artigos 3º e 27 da Lei 7521/1996, com o objetivo de adequar a composição do
CONPPAC/RP às mudanças ocorridas na estrutura administrativa da Prefeitura Municipal de
Ribeirão Preto, especialmente quanto à Secretaria de Meio Ambiente, que foi anexada à de
Planejamento, e à Secretaria de Obras e Serviços, transformada em Secretaria de Infra-
Estrutura.
No ano seguinte, a Lei Municipal nº 9495, de 12 de março de 2002
29
,
alterou novamente o artigo 3º da Lei 7521/1996, reformulando mais uma vez a
representatividade do CONPPAC/RP:
[...]
I – Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão Ambiental;
II – Secretaria Municipal de Infra-Estrutura;
III – Procuradoria Geral do Município;
IV – Secretaria Municipal da Cultura
V – Conselho Municipal da Cultura;
VI – CONDEMA/RP (Conselho de Defesa do Meio Ambiente);
VII – ACI (Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto);
VIII – OAB – Ribeirão Preto (Ordem dos Advogados do Brasil);
IX – AEAARP (Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Ribeirão
Preto);
X – 01 (um) representante das Instituições de Ensino Superior instaladas em
Ribeirão Preto;
XI – FABARP (Federação das Associações de Bairro de Ribeirão Preto);
XII – ALARP (Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto);
XIII – ARL (Academia Ribeirãopretana de Letras). (Lei nº 9495/2002, artigo 1º).
28
Anexo B.
29
Anexo C.
133
É importante notar que o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) foi
excluído da composição do Conselho, o que acabou por gerar alguns descompassos na
administração do CONPPAC/RP, como ainda se verá, neste trabalho. No breve histórico
sobre o órgão, pode ser observada a participação constante e intensa de representantes do
escritório regional do IAB em Ribeirão Preto, cujo representante foi o primeiro Diretor do
CONPPAC/RP, cumprindo mandato até o ano de 1999. Atualmente, o IAB exerce importante
atuação na cidade de Ribeirão Preto, nas questões relativas à preservação do patrimônio
cultural (particularmente o edificado), mesmo sem representatividade no Conselho.
A última alteração sofrida pela Lei Municipal 7521/1996 ocorreu pela
promulgação da Lei Complementar nº 2006, de 02 de maio de 2006
30
, que modificou seus
artigos 3º, 13, 18, 21 e 27. Fruto de longos embates entre o CONPPAC/RP e alguns
vereadores da Câmara Municipal, após o tombamento provisório de dezenas de imóveis do
sítio histórico de Bonfim Paulista
31
e da discussão técnica do projeto arquitetônico de
restauração da Algodoeira Matarazzo
32
, esta Lei Complementar foi considerada
inconstitucional pelos membros do CONPPAC/RP, que acionaram o Ministério Público do
Estado de São Paulo (MP), requerendo a proposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade
perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com o objetivo de restaurar, então, a
norma tal como vigia anteriormente.
O artigo 18 da Lei Municipal 7521/1996 dispõe: “o processo de
tombamento poderá ser iniciado a pedido de qualquer interessado, proprietário do respectivo
bem, e do Corpo Técnico de Apoio, protocolado junto à Secção de Protocolo Geral da
Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto”. A Lei Complementar nº 2006/2006 alterou este
artigo excluindo o cidadão (“qualquer interessado”) do exercício deste direito
33
.
O artigo 5º da Constituição de 1988, em seu inciso XXXIV dispõe: “são a
todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos
Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Por sua vez,
o artigo 215 da CF garante a todos os brasileiros o exercício dos direitos culturais. Ao analisar
30
Anexo D.
31
No final de 1994, o CONPPAC/RP tombou provisoriamente setenta e seis imóveis em Bonfim Paulista,
distrito de Ribeirão Preto. Entre eles, todos os prédios que ficam em volta da Praça Central, incluindo a antiga
sede da CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz), a praça onde está a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim e a
primeira casa, antiga sede da fazenda que deu origem ao distrito.
32
Processo administrativo nº 02.2004.020536-0. Prédio localizado na esquina da atual Rua Saldanha Marinho,
com a Rua Campos Salles.
33
Nova redação do artigo 18 da Lei Municipal 7521/1996 dada pelo inciso III do artigo 1º da Lei Complementar
nº 2006/2006: “O processo de tombamento poderá ser iniciado a pedido do proprietário do respectivo bem, e do
Corpo Técnico de Apoio, protocolado junto à Seção de Protocolo Geral da Prefeitura Municipal de Ribeirão
Preto”.
134
conjuntamente estas normas constitucionais e a mencionada inovação introduzida pela Lei
Complementar nº 2006/2006, constata-se a inconstitucionalidade da legislação municipal. Ao
excluir o direito do cidadão de requerer o tombamento de um bem, independente da condição
de proprietário ou funcionário público integrante do Corpo Técnico de Apoio (CTA), a nova
lei fere o direito de petição ao Poder Público para preservação da memória, um direito
cultural.
Também a composição do Corpo Técnico de Apoio do CONPPAC/RP foi
alterada pela edição da Lei Complementar nº 2006/2006. Originalmente, o mesmo era
composto por funcionários das Secretarias Municipais:
O Corpo Técnico de Apoio do CONPPAC-RP será composto por funcionários das
Secretarias Municipais de Planejamento e Desenvolvimento, da Cultura, do Meio
Ambiente, de Obras e Serviços, dos Negócios Jurídicos, de Governo e da Fazenda,
aos quais caberá a manutenção de um corpo próprio especializado, bem como: I
fornecer subsídios técnicos que forem necessários ao Conselho; II – proceder e
incentivar a capacitação e aprimoramento técnico dos seus funcionários, a fim de
qualificá-los quanto à questões de memória e preservação; III – viabilizar as
decisões do Conselho; IV – instruir tecnicamente os processos de tombamento; V –
encaminhar proposições e estudos atinentes à questão de preservação, para
deliberação do Conselho; VI – divulgar as decisões, projetos e trabalho
desenvolvidos pelo Conselho; VII – promover estratégias de acompanhamento e
fiscalização da preservação e uso dos bens tombados; VIII – propor a aplicação das
sanções previstas em lei. PARÁGRAFO ÚNICO – O Corpo Técnico de Apoio será
coordenado por um dos profissionais que o compõem e será subordinado ao
CONPPAC-RP. (Lei nº 7521/1996, artigo 27).
A alteração legislativa realizada em 2006 manteve os procedimentos
técnicos de atuação do Corpo Técnico de Apoio previstos na lei de 1996, incluindo, em sua
composição, um representante da Câmara Municipal de Ribeirão Preto. Interessa lembrar,
entretanto, que a Lei nº 7521/1996, em virtude das mudanças na estrutura administrativa da
Prefeitura, havia sofrido duas alterações anteriores a esta. A Lei Complementar nº 1243, de 01
de outubro de 2001, já havia alterado o artigo 27 da Lei nº 7521/1996. No entanto, o
legislador de 2006, ignorou esta alteração de 2001 ao compor o CTA com funcionários de
Secretarias extintas, como a de Meio Ambiente e a de Obras e Serviços, revelando uma
impropriedade técnica que demanda correção para que o dispositivo legal seja aplicado de
forma coerente.
Além do Corpo Técnico de Apoio, o artigo 1º, inciso I da Lei
Complementar nº 2006/2006 modificou a composição do próprio Conselho, prevista no artigo
3º da Lei Municipal 7521/1996, incluindo o inciso XIV com a previsão de participação de um
representante da Câmara Municipal de Ribeirão Preto no CONPPAC/RP. Neste caso, o
135
legislador municipal observou a redação dada pela Lei nº 9495/2002, que havia alterado a lei
original de 1996.
Como nenhuma alteração foi introduzida quanto aos requisitos técnicos a
serem observados na indicação do representante, seja no Conselho, seja no CTA, a
participação de representante da Câmara Municipal de Ribeirão Preto no CONPPAC/RP, pelo
menos em tese, constitui fator positivo na alteração de 2006, no sentido de ampliar as ações
de preservação do patrimônio cultural local.
Por fim, a Lei Complementar nº 2006/2006 alterou o disposto nos artigos 13
e 21 da Lei nº 7521/1996
34
.
Ficam, pela presente lei complementar, alteradas expressões legais a seguir
relacionadas, da Lei Municipal nº 7521, de 17 de outubro de 1996 (Dispõe sobre a
criação do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de
Ribeirão Preto e dá outras providências), que são as seguintes: [...] II – Acrescenta
parágrafo único ao artigo 13, com a seguinte redação: “Artigo 13 - [...] Parágrafo
Único – Os incisos I e II do presente artigo, somente se consumarão “ad
referendum” da Câmara Municipal, mediante deliberação do respectivo Decreto
Legislativo.” [...] IV – Acrescenta parágrafo único ao artigo 21, com a seguinte
redação: “Artigo 21 - [...] Parágrafo Único – A decisão do Conselho de que trata o
“caput” do presente artigo, somente será possível, após deliberação do Poder
Legislativo Municipal, na conformidade do disposto no parágrafo único do artigo
13, bem como os processos em andamento.” (Lei Complementar nº 2006/2006,
artigo 1º).
O artigo 2º da Constituição de 1988 dispõe que “são Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A tripartição
do poder, inspirada nos ideais da Revolução Francesa e base do Estado moderno, reconhece
mecanismos importantes de controle entre os três poderes, mas a competência de cada um e a
independência entre eles constituem a base do regime democrático. A leitura combinada deste
artigo com os artigos 23 (inciso III), 24 (inciso VII) e 30 (inciso IX), também da CF,
demonstram a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 2006/2006.
O artigo 23, inciso III, da mesma Constituição, inclui entre as funções de
competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a proteção
dos documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os
monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos. E o artigo 24,
inciso VII, conferiu à União, aos Estados e ao Distrito Federal competência
concorrente para legislar sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico,
34
Artigo 13, incisos I e II: “No exercício de suas atribuições, caberá ao Conselho: I – propor às autoridades
competentes o tombamento total ou parcial dos bens necessários à sua preservação histórico-cultural, bem como
a desapropriação, se for o caso; II – sugerir a celebração de convênios com entidades públicas e particulares,
objetivando a preservação do patrimônio de que trata o artigo anterior;”
Artigo 21: “Decide-se o tombamento por resolução do Conselho, publicada no Diário Oficial do Município e
em mais 2 (dois) jornais de grande circulação na cidade, da qual caberá, no prazo de 15 (quinze) dias, direito à
impugnação por qualquer pessoal, física ou jurídica, protocolado junto à Secção de Protocolo Geral da Prefeitura
Municipal de Ribeirão Preto.”
136
turístico e paisagístico, o que significa que a União limitar-se-á a estabelecer
normas gerais, exercendo os Estados a competência suplementar, na forma dos §§
1º a 4º do artigo 24. Aos Municípios foi dada a atribuição de “promover a proteção
de patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora
federal e estadual” (art. 30, inciso IX). Vale dizer que eles não têm competência
legislativa nessa matéria, mas devem utilizar os instrumentos de proteção previstos
na legislação federal e estadual. (DI PIETRO, 2003, p. 132, grifo do autor).
Reafirma-se que o instituto do tombamento é previsto na Constituição de
1988 como instrumento de preservação dos direitos culturais relacionados ao patrimônio
cultural, e sua operacionalização continua regulamentada por legislação federal através do
Decreto-lei nº 25/1937. Desta forma, a Lei Complementar nº 2006/2006 invadiu a
competência do Poder Executivo municipal, ao condicionar o tombamento do patrimônio
cultural local ao referendo da Câmara Municipal de Ribeirão Preto. De acordo com o artigo
24, inciso VII do texto constitucional, cabe à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
sobre a matéria, restando ao Município utilizar os instrumentos previstos na legislação federal
ou estadual para preservação.
O tombamento efetua-se por meio de um procedimento administrativo, ou
seja, de uma sucessão de atos preparatórios da inscrição do bem no Livro do Tombo.
“Empregando o vocábulo tombamento, o direito brasileiro seguiu a tradição do direito
português, que utiliza a palavra tombar no sentido de registrar, inventariar, inscrever nos
arquivos do Reino, guardados na Torre do Tombo
35
(cf. Hely Lopes Meirelles, 1996:490).”
(DI PIETRO, 2003, p. 133, grifos do autor). A origem histórica do instituto do tombamento,
pouco conhecida na atualidade, estigmatiza o instrumento de preservação do patrimônio
cultural, na medida em que a palavra “tombar”, além de registrar, arrolar, significa também
derrubar, cair no chão.
Assim, a preservação do patrimônio cultural edificado, através do instituto
do tombamento, muitas vezes enfrenta o desafio de esclarecer a população local sobre a
diferença entre o instrumento de proteção e a derrubada do imóvel. Em Ribeirão Preto, tal fato
pôde ser observado quando o CONPPAC/RP declarou o tombamento provisório de setenta e
seis imóveis no Distrito de Bonfim Paulista
36
. Ao receberem a notificação do tombamento,
muitos proprietários ficaram confusos e entenderam que o seu imóvel poderia ser (ou seria)
35
“A história da Torre do Tombo remonta, pelo menos, aos finais da Idade Média. Com efeito, desde 1378 que o
principal arquivo português se denomina Torre do Tombo, e assim é conhecido em todo o mundo, onde é,
justamente, considerado um dos mais antigos e valiosos arquivos nacionais. A origem deste nome tão singular
prende-se com o facto de os principais documentos que o rei mandava guardar - o Recabedo Regni, ou Livro do
Tombo, onde se registravam as suas propriedades e direitos - se conservarem numa torre, a torre Albarrã, do
castelo de São Jorge, em Lisboa.” (IANTT, on-line).
36
Processo administrativo nº 02.04.034596-0.
137
demolido, gerando desespero na comunidade e prejuízo à imagem do CONPPAC/RP, uma
vez que a população local passou a ver na atuação do Conselho um risco ao seu patrimônio. A
obrigatoriedade de referendo do tombamento pela Câmara Municipal de Ribeirão Preto não é
capaz de resolver esta questão, que demonstra a importância da promoção de ações
educativas, visando ao esclarecimento da população sobre o real significado do tombamento e
suas conseqüências para a preservação do patrimônio cultural.
De qualquer forma, o legislador municipal revelou desconhecer o
ordenamento jurídico, ao introduzir dispositivos inconstitucionais na legislação em estudo,
dificultando a preservação do patrimônio cultural local. Os representantes legitimamente
eleitos através do mecanismo da democracia indireta não podem impedir ou opor obstáculos
ao exercício da democracia direta, sob pena de contrariarem o disposto no parágrafo único do
artigo 1º da Constituição Federal de 1988
37
.
O tombamento, enquanto ato administrativo, é de responsabilidade do
Executivo Municipal e não pode ser limitado pela ação legislativa, sob pena de invasão de
competência. Tanto é assim, que a Lei nº 9605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), na Seção
IV, denominada “Dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural”,
reconhece a proteção exercida por qualquer um dos três Poderes: Executivo, Legislativo e
Judiciário.
Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por
lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico,
ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico,
etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em
desacordo com a concedida: pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
(Lei Federal nº 9605, de 12 de fevereiro de 1998, artigo 63).
O que se verifica, na verdade, é que a Lei de Crimes Ambientais preocupou-
se com a colaboração dos três Poderes na preservação do patrimônio cultural, tipificando
criminalmente a conduta lesiva, mas deixando clara a independência entre seus atos. O
CONPPAC/RP, tendo como objetivo principal a assessoria ao Poder Público Municipal na
preservação do patrimônio cultural local, constitui espaço privilegiado nas relações de
cidadania, pois o seu objeto (o patrimônio cultural), por si só tem a capacidade de fomentar
maior participação social, na medida em que sua preservação pode formar sujeitos históricos
de direitos e deveres, cientes da sua condição de protagonistas na construção social
sustentável.
37
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição” (CF, artigo 1º, parágrafo único).
138
Os desafios impostos pela complexidade da gestão urbana do século XXI
precisam ser encarados pela sociedade civil sob a nova perspectiva da construção social. A
percepção da incapacidade do atual sistema de desenvolvimento econômico na realização da
justiça social gera diferentes reações na sociedade. A preservação do patrimônio cultural pode
revelar as raízes históricas do atual paradigma e propor outras formas de desenvolvimento
mais sustentáveis.
Os riscos de sobrevivência da espécie humana no planeta são divulgados
freqüentemente pelos meios de comunicação de massa e atestados por cientistas do mundo
todo. Será que, ainda assim, a crença no paradigma mecanicista deve perseverar, prejudicando
as novas visões e práticas sociais? A idéia do “desenvolvimento a qualquer custo” é
questionada pelos organismos internacionais, mas indaga-se: como esta prática ocorre no
Município de Ribeirão Preto? O ordenamento jurídico é efetivo na gestão do patrimônio
cultural local?
A metodologia da pesquisa e a análise e interpretação dos dados coletados
neste estudo contribuíram para as respostas a estes e outros questionamentos presentes desde
o início da investigação, em busca da compreensão da relação estabelecida entre o
ordenamento jurídico, a gestão do patrimônio cultural e a perspectiva de construção de
sociedades sustentáveis.
139
CAPÍTULO 3 – MERGULHANDO NO UNIVERSO DO CONPPAC/RP
140
3.1 Metodologia da Pesquisa
A base lógica da investigação seguiu o método indutivo.
O objetivo do método indutivo é a generalização probabilística de um caso
particular.(...) A indução é um processo pelo qual, partindo de dados ou observações
particulares constatadas, podemos chegar a proposições gerais. (RICHARDSON,
1999, p. 35).
Realizada a escolha do método, a pesquisa foi baseada no estudo sócio-
histórico, considerando que os acontecimentos atuais ganham sentido na relação com o
contexto do passado do qual se originaram e, para a compreensão da situação presente, a
análise do percurso histórico desses acontecimentos torna-se essencial ao significado, à
representação aproximada da realidade em questão.
O objeto da presente investigação conduziu à escolha do estudo proposto por
se tratar historicamente de questões relativas à defesa do patrimônio histórico e cultural de
uma localidade, Ribeirão Preto, bem como da participação da sociedade civil no processo, da
efetivação da educação, da emancipação da sociedade, que confere especificidade às questões
sociais.
Segundo Minayo (2003):
O objeto das Ciências Sociais é histórico. Isto significa que as sociedades humanas
existem num determinado espaço cuja formação social e configuração são
específicas. Vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro, num
embate constante entre o que está dado e o que está sendo construído. Portanto, a
provisoriedade, o dinamismo e a especificidade são características fundamentais de
qualquer questão social. (MINAYO, 2003, p. 13).
A ciência busca a verdade dos fatos e, neste sentido, não é diferenciada das
outras formas de conhecimento. Entretanto, para que um conhecimento seja considerado
científico, é necessária a adoção de procedimentos, de instrumentos técnicos que possibilitem
sua verificação.
Desta forma, escolhido o método de estudo científico, optou-se pela
abordagem quanti-qualitativa, devido à complexidade da investigação, pois a simples análise
estatística das variáveis não seria suficiente para desvendar o objeto de estudo. No entanto,
foram úteis na seleção dos sujeitos da investigação e na análise dos respectivos perfis,
aspectos estes fundamentais às reflexões sobre a participação ativa, efetiva, dos sujeitos na
responsabilidade de implementar ações educativas voltadas à sociedade civil, para a
preservação do patrimônio histórico e cultural de Ribeirão Preto.
141
Por outro lado, a investigação denotou a aplicação de procedimentos outros,
que analisassem questões como valores, significados, crenças e atitudes, característicos da
abordagem qualitativa, através da fala dos sujeitos da investigação.
Os estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever a
complexidade e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais,
contribuir no processo de mudança de determinado grupo e possibilitar, em maior
nível de profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos
indivíduos (RICHARDSON, 1999, p.80).
Minayo (2003) ressalta que a diferença entre quantitativo e qualitativo é de
natureza, e complementa: “O conjunto de dados quantitativos e qualitativos, porém, não se
opõem. Ao contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage
dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia.” (p.22).
As pesquisas sociais abrangem um universo de elementos tão grande que
muitas vezes torna-se impossível investigar sua totalidade. Ao iniciar um projeto de pesquisa
neste campo, é fundamental delimitar o conjunto de elementos que possuem determinadas
características. O universo da presente investigação foi estabelecido de forma linear, levando
em consideração o disposto no Artigo 1.º da Lei Municipal 7521/1996:
Fica criado, junto à Secretaria Municipal da Cultura, o Conselho de Preservação do
Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto – CONPPAC/RP, órgão colegiado de caráter
consultivo e deliberativo, encarregado de representar a comunidade e assessorar o
Poder Público Municipal em assuntos referentes à preservação do patrimônio
cultural do município de Ribeirão Preto.
Neste sentido, o universo limitou-se ao CONPPAC/RP, reconhecido através
da legislação municipal como o órgão encarregado de representar a comunidade, de acordo
com o artigo 30, inciso IX, combinado com o artigo 216, §1º, ambos da Constituição Federal
de 1988, que determinam a colaboração da comunidade com o Poder Público Municipal na
proteção do patrimônio histórico e cultural.
Na pesquisa social podem-se utilizar diversos tipos de amostragem,
classificadas em dois grandes grupos: amostra probabilística e não-probabilística. O presente
estudo utilizou a técnica de amostragem não-probabilística intencional, a partir do
CONPPAC/RP como um todo: a lei municipal que determina os órgãos competentes para sua
composição, a nomeação interna de cada Conselheiro e a portaria, também municipal, que
formaliza a indicação.
Os elementos que formam a amostra relacionam-se intencionalmente de acordo
com certas características estabelecidas no plano e nas hipóteses formuladas pelo
pesquisador. Se o plano possuir características que definam a população, é
142
necessário assegurar a presença do sujeito-tipo. Desse modo, a amostra intencional
apresenta-se como representativa do universo. Entende-se por sujeitos-tipos aqueles
que representam as características típicas de todos os integrantes que pertencem a
cada uma das partes da população (RICHARDSON, 1999, p. 161).
A relação intencional estabelecida entre a amostra e a presente investigação
dá-se pelo artigo 3º da Lei Municipal 7521/1996, que enumera as entidades públicas e
privadas que compõem o CONPPAC/RP, garantindo a representação do universo, levando à
seleção da amostra:
O CONPPAC/RP será composto por pessoas de comprovado reconhecimento
público e com notórios conhecimentos relativos às finalidades do Conselho,
indicadas pelos órgãos abaixo relacionados, como seus representantes, e nomeadas
pelo Prefeito Municipal, podendo cada entidade indicar um titular e um suplente
para o Conselho:
I – Secretaria Municipal de Planejamento;
II – Secretaria Municipal de Obras e Serviços;
III – Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos;
IV – Secretaria Municipal do Meio Ambiente;
V – Secretaria Municipal da Cultura;
VI – Conselho Municipal da Cultura;
VII - CONDEMA/RP (Conselho de Defesa do Meio Ambiente);
VIII – ACI – Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto;
IX – OAB – Ribeirão Preto (Ordem dos Advogados do Brasil – Ribeirão Preto);
X – AEAARP – Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Ribeirão
Preto;
XI – IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil – Núcleo Regional de Ribeirão Preto;
XII – Conjunto das Instituições de Ensino Superior instaladas em Ribeirão Preto;
XIII – FABARP – Federação das Associações de Bairro de Ribeirão Preto;
XIV – ALARP – Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto;
XV – ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras. (Artigo 3º da Lei Municipal
7521/1996).
Ao delimitar o universo e selecionar a amostra não-probabilística
intencional, ambos baseados na legislação municipal acima referida, a mesma conduziu à
identificação dos sujeitos da pesquisa: os Conselheiros do CONPPAC/RP. Adotou-se a
técnica de entrevista semi-estruturada, através da aplicação de formulário
38
contendo
perguntas abertas e fechadas, que tanto possam caracterizar o perfil dos sujeitos como
proporcionar diálogo aberto sobre o objeto de estudo. Foram selecionados oito Conselheiros,
o que corresponde a 55% do universo, de acordo com os seguintes critérios:
1) Representantes da Diretoria, eleitos pelos membros do Conselho: o
Presidente e o 1º Secretário;
2) Representantes dos órgãos públicos diretamente envolvidos nas
questões de preservação do meio ambiente: a Secretaria de
Planejamento e Gestão Ambiental e a Secretaria da Cultura;
38
O modelo do formulário semi-estruturado encontra-se no Apêndice A.
143
3) Representantes das associações de classe envolvidas:
no desenho físico dos locais de preservação do patrimônio histórico e
cultural: a Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto
(ACIRP);
na análise de questões sociais pertinentes ao ordenamento jurídico: a
Seção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB);
nos aspectos que dizem respeito à veiculação de ações educativas
dirigidas à sociedade civil: as Instituições de Ensino Superior;
4) Representante das associações de moradores: a Federação das
Associações de Bairro de Ribeirão Preto (FABARP).
Através da metodologia ora apresentada, o objeto do presente estudo foi
desvelado considerando as limitações da pesquisadora e os propósitos de uma dissertação de
Mestrado ante a dinâmica do processo histórico e social, sem qualquer pretensão de esgotar as
discussões sobre o assunto.
144
3.2 O Processo de Coleta de Dados
A sociedade do século XXI concentra-se nas cidades e o crescimento urbano
gera conseqüências positivas e negativas, a serem observadas pelos gestores contemporâneos.
A crise ambiental é uma das principais responsáveis pela mudança de paradigma das ciências,
possibilitando que se consolide uma nova visão de mundo, em que a interdependência entre os
seres desperta novas formas de relacionamento entre homem, espaço e tempo, afetando as
relações que se estabelecem no meio ambiente urbano.
Os meios científicos têm contribuído para a compreensão teórica do que seja
desenvolvimento sustentável e para a criação de técnicas e equipamentos capazes de gerar
práticas igualmente sustentáveis. Lembrando Giddens (2000), “só podemos refletir sobre a
modernidade através da modernidade; isto é, através, também, da ciência e da tecnologia.” (p.
87-88). Sob esta perspectiva, a pesquisa científica fornece subsídios ao crescimento urbano
sustentável e contribui para reflexões críticas sobre a modernidade.
O interesse pelo objeto deste estudo nasceu da observação das relações entre
o conhecimento científico e a prática social, transformando o decorrer do processo de coleta
de dados em uma experiência enriquecedora, na medida em que o conjunto de instrumentos
adotados na investigação foram esclarecendo os questionamentos sobre o tema.
A interdisciplinaridade revelou-se ponto central na análise da gestão urbana
e a consulta bibliográfica transitou pelas áreas do Direito, Serviço Social, História,
Arquitetura e Urbanismo, Ciências Sociais e Ecologia.
A pesquisa bibliográfica, aliada à pesquisa documental, à observação
sistemática e direta das assembléias
39
do Conselho Municipal, revelaram a complexidade
envolvida na gestão do patrimônio cultural.
O processo de coleta de dados para esta investigação forneceu um conjunto
de informações rico e extenso. Ao todo, foram 32 (trinta e duas) atas de assembléias
analisadas, 15 (quinze) das quais a aluna pesquisadora participou presencialmente, o que
corresponde a 47% do universo selecionado. As outras 17 (dezessete) atas foram também
analisadas na íntegra, incluindo as respectivas listas de presença.
Uma das preocupações centrais, percebidas durante o estudo, foi a
elaboração do inventário dos bens culturais, instrumento capaz de racionalizar e sistematizar
39
Esclarecendo que, para fins práticos, optou-se por mencionar apenas “assembléias” para designar as
assembléias gerais ordinárias, detalhando o tipo de assembléia apenas para as extraordinárias.
145
as ações do CONPPAC/RP. O inventário é um dos instrumentos previstos na Constituição de
1988 para preservação do patrimônio cultural. O ato de inventariar significa “relacionar,
catalogar, listar (série de coisas), [...] enumerar, descrever (algo) com inclusão de pormenores,
minúcias” (HOUAISS, 2001, p. 1643).
A história de Ribeirão Preto registra a existência de um patrimônio cultural
local a ser preservado, mas a realização do inventário é fundamental para a adoção de um
programa estratégico na gestão do patrimônio. A leitura combinada dos artigos 30, inciso IX e
216 da Constituição de 1988 demonstra a responsabilidade do município na realização do
inventário, bem como a adoção de outras medidas necessárias à preservação do patrimônio
cultural local. Paradoxalmente, a Lei Municipal 7521/1996, ao criar o CONPPAC/RP, não
transferiu esta responsabilidade ao Conselho.
Pelo contrário, vê-se no artigo 2º, inciso VII, entre as atribuições e
competências, que o Conselho pode “acionar os órgãos competentes para localizar,
inventariar, catalogar e documentar os bens culturais do município”, auxiliando o Poder
Público na gestão do patrimônio cultural local. A pesquisa documental das atas das
assembléias do CONPPAC/RP revelou a preocupação dos Conselheiros quanto à realização
desse inventário em Ribeirão Preto e sua conexão com a perspectiva da sustentabilidade no
desenvolvimento urbano.
No dia 03 de outubro de 2003, na Casa da Cultura, realizou-se a primeira
Assembléia Ordinária do CONPPAC/RP, sob a presidência de um arquiteto e urbanista,
secretariado por uma socióloga. Esteve presente o Secretário de Planejamento e Gestão
Ambiental da época, que comentou estas questões.
A Secretaria de Planejamento interage em todas as questões da cidade. A primeira
coisa em sua opinião a ser discutida é a sustentabilidade para que o bem fique de
pé; ou seja para que este tenha como se manter. Como por exemplo o Palace deverá
ter projetos culturais para se sustentar; já a casa da Rua Caramuru, o que terá ? É
necessário que haja ocupação de imóvel para que este seja sustentável. A segunda é
o que tombar. Bem tombado não pode ser abandonado. Reafirma, é necessária a
ocupação. Para isso precisa ser feito uma lei de incentivo para que o proprietário
possa manter o bem vivo. Solicitou ao Senhor Presidente Cláudio que estude a
possibilidade de conseguir alguma forma de parceria a fim de que se possa concluir
o trabalho de documentação de bens a qual já está sendo realizada por funcionários
da Secretaria de Planejamento mais precisa de material fotográfico, para o registro
desses imóveis em estudo. Este registro por meio de fotografia é de relevante
importância. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de 03/10/2003).
A referência ao “Casarão da Caramuru”, relacionada ao sentido de
abandono e má conservação, demonstra a conotação negativa atribuída ao instituto do
tombamento. Ao tratar da “sustentabilidade para que o bem fique de pé”, o Secretário acabou
146
por incorporar o outro significado da palavra “sustentável”, mas, ao mesmo tempo, toca em
pontos cruciais envolvidos na gestão eficiente do patrimônio cultural local: a necessidade de
incentivo à ocupação, a descrição do que e como preservar e a necessidade de parceria entre o
CONPPAC/RP e a Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão Ambiental, para a
realização do inventário.
O desdobramento desta questão pôde ser percebido pela pesquisa da Ata da
Assembléia de 27 de janeiro de 2004, quando se deliberou sobre a formação de uma comissão
de Conselheiros para acompanhar os trabalhos da Secretaria, inclusive propondo a realização
de parcerias: “Para que se torne possível a realização dos trabalhos fotográficos necessários na
formação da documentação deste inventário foi sugerido que se tente uma parceria com
comerciantes da área fotográfica possibilitando assim a execução dos trabalhos.” (Ata da
Assembléia CONPPAC/RP de 27/01/2004).
O tema também foi tratado na Assembléia seguinte:
O conselheiro Lanchote sugeriu e por votação foi acatado que deverá ser solicitado
por ofício ao Secretário Municipal de Planejamento o envio do seguinte material
para que fique nos arquivos do Conppac com a finalidade de dar continuidade e
conclusão no inventário dos imóveis possíveis de ser tombado em nosso município:
Levantamento iconográfico elaborada pela Senhora Cristina Abud, levantamento
Patrimonial feito pelo CONDEPHAAT e ficha catalográfica feita pela Secretaria
Municipal de Planejamento e Gestão Ambiental e Ong Vivacidade. Devendo ser
também oficiado à Instituição Moura Lacerda solicitando a confecção de cópias
coloridas do levantamento iconográfico feito pela Arquiteta Cristina Abud. (Ata da
Assembléia CONPPAC/RP de 02/03/2004).
A pesquisa documental revelou alguns aspectos interessantes quanto ao
inventário dos bens culturais de Ribeirão Preto. Como visto acima, desde a Assembléia de
outubro de 2003, o tema vinha sendo discutido nos seus mais amplos aspectos, ente eles, a
proposta de trabalho conjunto entre o CONPPAC/RP e a Secretaria de Planejamento e Gestão
Ambiental; a criação de Comissão de Conselheiros para tal; a perspectiva da necessidade de
captação de recursos junto à iniciativa privada; e a requisição de documentos
40
existentes na
Secretaria e importantes para o trabalho do Conselho.
Os documentos revelam a consciência sobre a importância deste
instrumento na gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto, mas, em nenhum momento,
foi mencionado o disposto no artigo 2º, inciso VII da Lei Municipal 7521/1996, ou seja, a
40
Os documentos mencionados na Assembléia de 02 de março de 2003 pelo arquiteto Lanchoti, na época
Conselheiro do CONPPAC/RP representando a Secretaria de Infra-estrutura, poderiam auxiliar ampliando a
visão estratégica nas ações do Conselho, atualmente pautada em pedidos individuais de preservação.
147
atribuição do Conselho para acionar os organismos públicos responsáveis pela realização do
inventário.
E mais, após a Assembléia de 02 de março de 2004, não houve nenhuma
menção ao inventário, devendo-se registrar que, até o presente momento, o Município de
Ribeirão Preto não possui um inventário descritivo do patrimônio cultural local
41
.
A inexistência do inventário gera graves conseqüências na defesa do
patrimônio edificado, pois a dinâmica de crescimento urbano influencia diretamente sua
preservação. Quando o tombamento de prédios históricos acontece de forma individualizada e
sem referência às características imateriais envolvidas na sua construção, a preservação do
patrimônio perde o sentido para boa parte da sociedade.
É difícil imaginar os habitantes de uma cidade identificando-se com um
prédio construído no século passado, simplesmente pelo fato dele ter sido construído no
século passado. Esta construção precisa ‘falar’ a este cidadão, precisa mostrar-lhe o contexto
histórico do qual faz parte e porque ele faz parte dos bens que merecem ser preservados. Mas
como pensar em ‘contexto histórico’, enquanto se trabalha para preservar este ou aquele bem,
de forma individualizada, casuisticamente? Se o CONPPAC/RP não possui dados gerais sobre
a cidade de Ribeirão Preto, como estabelecer uma gestão do patrimônio cultural integrada ao
crescimento urbano, de forma que um não seja empecilho para o outro?
O panorama geral fornecido pelo inventário dos bens culturais é capaz de
fornecer subsídios de fundamental importância para a formação da identidade coletiva da
sociedade ribeirãopretana, possibilitando a adoção de critérios globais de quais bens devem
ser preservados para conservação desta identidade. Através desta ferramenta, é possível
pensar a preservação do patrimônio cultural local na perspectiva do desenvolvimento urbano
sustentável.
A investigação revelou uma série de conflitos entre o CONPPAC/RP e os
interesses econômicos envolvidos na gestão urbana municipal, mas não se pode cometer o
equívoco de “engessar” o desenvolvimento urbano, sob a alegação da preservação do
patrimônio cultural edificado. Da mesma forma, não se pode extinguir os traços edificados da
história de Ribeirão Preto para privilegiar o crescimento urbano a qualquer custo.
41
Os contatos formais mantidos com o CONPPAC/RP e a Secretaria de Cultura revelaram que, até agosto de
2006, não foi concluído o inventário dos bens culturais de Ribeirão Preto, mas existem pedidos de captação de
recursos federais para sua execução, elaborados pela Divisão de Preservação Histórico-Cultural do
Departamento de Atividades Culturais da Secretaria Municipal da Cultura. Em 2003, era a Secretaria de
Planejamento e Gestão Ambiental que aparecia como a responsável pela elaboração do inventário.
148
De qualquer forma, o processo de coleta de dados ampliou a percepção
sobre o objeto de estudo e demonstrou que os embates entre o CONPPAC/RP e os adeptos do
desenvolvimento sem limitação poderiam ser minimizados, senão evitados, caso existisse o
inventário e uma visão global na gestão do patrimônio cultural edificado.
Logicamente, o inventário, isoladamente, não representa senão dados
reunidos, mas, bem utilizado como instrumento de gestão sustentável, é capaz de harmonizar
o espaço urbano, integrando à fisionomia contemporânea os edifícios remanescentes,
representativos da história local. Em Ribeirão Preto, o crescimento urbano já destruiu grande
parte deste passado. As edificações coloniais do século XVIII foram dizimadas pelas
construções em estilo europeu, no auge da economia cafeeira na década de 1920 (um típico
contexto de ‘modernidade’, na época) e, atualmente, são as construções do período cafeeiro
que estão sendo destruídas, para dar lugar a uma arquitetura denominada por alguns como
‘moderna’, mas sem qualquer relação teórica com os princípios do movimento modernista.
A pesquisa revelou que os processos de tombamento existentes no
CONPPAC/RP envolvem predominantemente bens imóveis e construídos durante a primeira
metade do século XX, ou seja, representativos do apogeu da cultura cafeeira. Quase todos os
exemplares daquele período foram destruídos nas três últimas décadas e o inventário dos
remanescentes certamente permitiria reintegrá-los ao meio ambiente urbano e contextualizá-
los a todos os cidadãos.
A sociedade deve ser formada e informada sobre a defesa do patrimônio
cultural. Precisa ser estimulada a compreender que sua preservação não é um empecilho à
ocupação do espaço, pelo contrário, representa parte da sua história e, por isto, deve ser
conservada para os seus descendentes. Esta reflexão conduz ao entendimento do termo
‘sustentado’ em relação à preservação, à melhoria qualitativa do meio ambiente, e
‘sustentável’ ao longo do tempo, como herança às gerações futuras.
A leitura e análise das atas das assembléias do CONPPAC/RP e a utilização
da técnica de observação sistemática e direta desvelou a percepção dos Conselheiros sobre a
educação e a informação da sociedade nas questões relativas à preservação patrimonial.
Na Assembléia do CONPPAC/RP de 06 de julho de 2004, a “conselheira
Sonia, da UNAERP sugere a criação de uma carta educativa. O presidente coloca este assunto
como pauta da próxima reunião devido à sua importância.” Como determinado, o assunto foi
retomado na assembléia seguinte:
[...] e, a questão da educação patrimonial. Neste momento, o Presidente do
Conselho, Cláudio Henrique Bauso, assume o comando da reunião. O Conselheiro
149
Antonio Carlos Tórtoro, sugere que o CONPPAC tenha um site para a divulgação
de seus trabalhos, como resumos dos processos, atas, dentre outros assuntos, e diz
ainda que, o Conselho poderia utilizar enquanto não tem o seu próprio domínio, o
espaço do site http://www.movimentodasartes.com.br, entrando em contato com
Sueli, responsável pelo domínio. É colocada em votação a proposta sobre a criação
de um site para o CONPPAC dentro do espaço da Secretaria da Cultura e a mesma
é aprovada por 11 (onze) votos. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
13/07/2004).
No site oficial da Prefeitura de Ribeirão Preto
42
há um link para os
Conselhos, sendo possível acessar uma página exclusiva do CONPPAC/RP
43
. No entanto, as
informações disponíveis resumem-se ao texto da Lei Municipal 7521/1996, que criou o
Conselho, aos textos das alterações na legislação em 2001 e 2002 e à informação sobre a
realização das reuniões na primeira terça-feira do mês, na Casa da Cultura às 17h00min. Não
há informações sobre os trabalhos do Conselho, nem resumo dos processos, nem atas, como
sugerido pelo Conselheiro Antonio Carlos Tórtoro.
Na Assembléia de 17 de agosto de 2004, o assunto voltou a ser abordado:
“E após isso, comentado sobre a Cartilha de Conscientização para o Patrimônio, a Conselheira
Gisele sugere a publicação da mesma, quando estiver pronta, em jornais.” A pesquisa
documental das atas das assembléias revelou que o assunto da cartilha ficou sem menção em
ata
44
até o ano de 2006, quando foi retomado:
O presidente Claudio inicia a reunião informando sobre a Cartilha de Educação
Patrimonial que será elaborada pelo CONPPAC, Secretaria da Cultura e Ong
Vivacidade. Assim, ele entrega o convite aos representantes da Vivacidade,
oficializando a participação desta entidade no trabalho. [...] Lílian diz que a cartilha
seria uma ferramenta dentro de um programa de Educação Patrimonial, que não
existe, mas observa que o objetivo da cartilha neste momento seria diminuir a
resistência da população aos tombamentos, uma vez que a informação e o
conhecimento facilitariam a preservação do patrimônio. Desta forma, definir o
público-alvo e as diretrizes da Cartilha são informações iniciais essenciais para que
o trabalho seja adequado aos seus objetivos. Quando estiver pronta, deverá ser
enviada ao Secretário da Cultura para aprovação e posterior impressão. (Ata da
Assembléia CONPPAC/RP de 07/02/2006).
Nesta assembléia, estava representando o suplente da Secretaria Municipal
da Cultura, o chefe da Divisão de Preservação Histórico-Cultural do Departamento de
Atividades Culturais. Sua percepção quanto à resistência da população ao instituto do
tombamento, demonstra a importância da elaboração de material informativo sobre as
42
http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/index.html.
43
O acesso também é possível através do link da Secretaria da Cultura, na mesma página.
44
A observação sistemática e direta permitiu o conhecimento de que o assunto foi mencionado em outras
assembléias, mas não constou em ata.
150
questões da defesa do patrimônio cultural local, bem como a necessidade de melhorar a
comunicação entre o Conselho e a comunidade.
O CONPPAC/RP pode representar o canal de comunicação entre a teoria da
preservação e a comunidade diretamente relacionada com sua execução. Exemplificando,
quando a Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto criou o Grupo Gestor do
Calçadão, foram escolhidos dois Conselheiros para acompanharem o processo.
O presidente informa que o Grupo Gestor do Calçadão solicitou ao CONPPAC a
indicação de duas pessoas para representar esse conselho no referido Grupo, que
tem como objetivo a revitalização do centro da cidade, juntamente com a ACI e
outras entidades. Os indicados para compor esse Grupo foram Cláudio Bauso,
como titular e Claudia Perencin, como suplente. Daniela da ONG Vivacidade
propõe que o CONPPAC ofereça um fórum de educação patrimonial aos
comerciantes, para conscientizá-los quanto aos aspectos de comunicação visual e
valorização do patrimônio histórico e arquitetônico do centro. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 03/05/2005).
O desdobramento desta pesquisa, em decorrência do conhecimento teórico
adquirido, permitiu à pesquisadora dar sugestões às ações do CONPPAC/RP durante a
observação, enriquecendo tanto o processo de pesquisa quanto a socialização desta perante os
sujeitos. Outro fator recorrente que merece destaque, o trabalho desenvolvido junto à
Organização Não-Governamental Vivacidade também foi ampliado durante o presente
processo de coleta de dados, trazendo clareza quanto à importância da ação conjunta entre
sociedade civil organizada e comunidade científica.
Além do inventário e da educação patrimonial, esta investigação revelou a
existência de outra questão importante referente à preservação do patrimônio cultural local: a
organização administrativa do CONPPAC/RP. A Lei Municipal 7521/1996 criou o Conselho
vinculado à Secretaria Municipal da Cultura e estabeleceu as diretrizes gerais de seu
funcionamento, mas, a operacionalização de suas atividades requer outras medidas
administrativas, fora de seu campo de ação.
Explicando, o artigo 3º da lei municipal define quais as entidades que terão
representantes no CONPPAC/RP, mas sua nomeação é ato privativo do Prefeito Municipal,
através de Portaria publicada no Diário Oficial do Município (DOM), o que só ocorre após o
recebimento, via CONPPAC/RP, de ofício das entidades com a indicação e respectivos dados
pessoais.
Uma multiplicidade de atos, como a elaboração do regimento interno, o
registro de atas, o andamento dos processos administrativos, os relatórios elaborados pelo
Corpo Técnico de Apoio do CONPPAC/RP, além de outras medidas administrativas,
151
permeiam o cotidiano dos Conselheiros e muitas vezes dificultam, até mesmo entravam, a
gestão do patrimônio cultural local.
Os contatos formais e informais realizados, aliados à pesquisa documental,
permitiram a reconstrução do histórico dos representantes nomeados, das Diretorias eleitas
desde a criação do Conselho, em 1996, e das respectivas administrações municipais às quais o
mesmo está submetido, devido a sua vinculação com a Secretaria da Cultura.
O movimento para a criação do Conselho de Preservação do Patrimônio
iniciou-se na gestão do Prefeito Antonio Palocci Filho (1993-1996), quando a Secretaria da
Cultura realizou o debate “Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto”. Do encontro
resultou a criação de grupo de estudos para a elaboração do projeto de lei, o que ocorreu
durante toda aquela gestão, tendo a legislação sido aprovada somente em 17 de outubro de
1996.
Os contatos formais com o atual Presidente do CONPPAC/RP, revelaram
que a redação do disposto no artigo 9º da Lei 7521/1996
45
foi estrategicamente definida para
intercalar os mandatos dos Conselheiros aos mandatos dos Prefeitos, de forma que as
alterações dos representantes do CONPPAC/RP não coincidissem com a mudança do governo
municipal.
A gestão do Prefeito Luiz Roberto Jábali (1997-2000) iniciou-se juntamente
com o primeiro mandato do Conselho (1997-1999), tendo como Presidente um arquiteto e
urbanista, representante do IAB. A pesquisa documental junto aos arquivos do
CONPPAC/RP, na sede da Secretaria Municipal da Cultura, não foi capaz de revelar muitos
dados do Conselho nesse período, prejudicando o aprofundamento das reflexões. Segundo o
Presidente, não ocorreu nenhuma nomeação para o mandato dos anos de 2000-2001,
contrariando a determinação legal, informação esta que foi corroborada pela pesquisa
documental.
No dia 07 de janeiro de 2002, foi publicada, na edição nº 6448 do Diário
Oficial do Município, a Portaria nº 2067, de 26 de dezembro de 2001
46
, nomeando os
membros para comporem o CONPPAC/RP durante o biênio 2002-2003. Neste período,
ocupou o cargo de Presidente do Conselho outro arquiteto e urbanista, representante das
instituições de ensino superior. Este mandato enfrentaria a transição da administração do
Prefeito Antonio Palocci Filho (2001-2002) para o vice, Gilberto Maggioni (2003-2004).
45
Lei Municipal 7521/1996, artigo 9º: “Será de 3 (três) anos o primeiro mandato dos membros do Conselho e de
2 (dois) anos os mandatos seguintes.”
46
Anexo E.
152
Como no período anterior, a pesquisa documental pouco revelou sobre as ações do
CONPPAC/RP nos anos de 2000 a 2003, intervalo em que nenhum processo de tombamento
foi finalizado.
Em fevereiro de 2003, um acontecimento marcou a defesa do patrimônio
cultural de Ribeirão Preto e a história do CONPPAC/RP: o Ministério Público do Estado de
São Paulo, através da Curadoria do Meio Ambiente, promoveu uma audiência pública
47
, nos
autos do inquérito civil instaurado em virtude da ameaça de demolição dos galpões das
Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), antiga CIANE (Companhia Nacional de
Estamparia). Em meio à audiência, foi mencionado que o imóvel em que funcionou a
Cerâmica São Luiz seria objeto de pedido de tombamento junto ao Conselho de Patrimônio,
mas, dois meses depois, a demolição quase total do imóvel provocou grande celeuma perante
a sociedade civil, motivando a proposição de ação judicial pelo MPESP.
A seguir, várias audiências públicas foram organizadas para discutir a
questão da preservação do patrimônio cultural de Ribeirão Preto e os problemas envolvendo
estes dois exemplares da história da industrialização na cidade conduziram a críticas sobre a
atuação do CONPPAC/RP no município. Dentre os problemas identificados, a falta de
quórum nas reuniões do Conselho foi o mais citado. Toda esta situação levou o MPESP a
instaurar inquérito civil, registrado sob o nº 0098/2003, para apurar as atividades do
CONPPAC/RP. Todas as entidades participantes do Conselho e seus representantes,
nomeados Conselheiros pela Portaria nº 2067/2001, foram intimados a comparecer em
audiência.
Os Conselheiros presentes à audiência elegeram, naquele mesmo ato, o
representante do Conselho Municipal da Cultura, arquiteto e urbanista, como o novo
presidente do CONPPAC/RP e uma socióloga, representante da Secretaria Municipal da
Cultura, como secretária. Os representantes comprometeram-se a participar mais ativamente
do CONPPAC/RP, o que conduziu à reorganização do Conselho, como revela a pesquisa
documental das atas das assembléias.
O senhor Cláudio H. Bauso iniciou a reunião agradecendo a presença de todos e
passou a informar a reorganização do CONPPAC, mostrando a importância do
comparecimento dos membros na reunião para que haja quórum e para que possa
deliberar sobre vários assuntos. Principalmente a elaboração do Regimento Interno,
pensando em uma proposta de mudança de Lei. Hoje temos treze representações e
precisamos ampliar esta representatividade. Fez ainda a colocação de que o
conselho atual deve se basear em três pontos básicos o poder público, a sociedade
civil e os representantes técnicos. [...] O Presidente pontuou vários assuntos em que
o Conppac não está acompanhando e mostrando a importância desse
47
A pesquisadora esteve presente à audiência como representante da ONG Vivacidade.
153
desconhecimento. Mais para que tudo isso possa ocorrer precisamos re estudar a lei
e fazer o regimento. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de 21/10/2003).
O conhecimento da legislação e a elaboração do regimento interno
constituem pontos fundamentais neste momento de reorganização do CONPPAC/RP, tendo a
pesquisa documental revelado esta preocupação em diversos momentos subseqüentes. Em 2
de dezembro de 2003, na última Assembléia do Conselho do ano, o assunto foi novamente
abordado. Apesar da proposta de criação de uma comissão específica para elaborar o
regimento, optou-se pela elaboração de minuta, para posterior discussão pelos Conselheiros:
O Senhor René
48
sugeriu que seja formada uma comissão de elaboração do novo regimento
interno. Após algumas considerações ficou estabelecido que o Senhor René deverá montar
uma minuta a qual será apresentada ao conselho na próxima reunião o qual será analisado,
votado e aprovado.”
No dia 08 de janeiro de 2004, foi publicada, no Diário Oficial do Município,
a Portaria nº 237
49
, por meio da qual o então Prefeito, Gilberto Maggioni, nomeou os
membros do CONPPAC/RP escolhidos durante a audiência nos autos do inquérito civil,
acima mencionado, em agosto do ano anterior. Salienta-se que, dentre estes representantes,
quatro acabaram por integrar a amostra selecionada nesta investigação enquanto sujeitos da
pesquisa, como expresso no item 3.1 deste trabalho, sendo eles os representantes: da
Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão Ambiental, do Conselho Municipal da
Cultura, da Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto e do Conselho Municipal de
Defesa do Meio Ambiente.
Na ata da assembléia de 27 de janeiro de 2004, nenhuma referência sobre a
recente publicação da citada Portaria, nem da retroação de seus efeitos a 03/10/2003
(constante do preâmbulo da mesma), fatos extremamente importantes, pois deram validade às
decisões tomadas nas assembléias realizadas a partir da eleição dos Conselheiros, na
audiência junto ao MPESP. No entanto, a questão da legislação que regulamenta o
funcionamento do CONPPAC/RP e a elaboração do regimento interno foram novamente
objeto de deliberação.
A conselheira Silvia sugeriu que o Presidente marque uma reunião com o Prefeito
para que se discutam vários assuntos referentes ao conselho. A conselheira Rogéria
lembrou que antes de ser marcada esta reunião é preciso estar pronto o regimento
interno e a proposta de alteração da Lei que rege o Conppac. A Conselheira
Fernanda ficou incumbida de agilizar os trabalhos de modificação do regimento e
48
Compareceu na assembléia como visitante.
49
Anexo F.
154
entrar em contato com a O.A.B. (Ordem dos Advogados do Brasil). (Ata da
Assembléia CONPPAC/RP de 27/01/2004).
A pesquisa permitiu perceber o sucesso das providências propostas no final
de janeiro. Na Ata da Assembléia de 02 de março de 2004, consta que, em “[...] relação ao
Regimento Interno, foram distribuídas cópias para avaliação dos conselheiros.” Na
Assembléia de maio de 2004, oito meses após o reinício das atividades do Conselho (outubro
de 2003), finalmente foi aprovado o Regimento Interno do CONPPAC/RP.
[...] passou a palavra para a Conselheira Dra. Maria Cristina a qual leu a minuta do
regimento interno o qual foi analisado e modificado em alguns artigos. Após
conclusão da analise foi colocado em votação e aprovado com 08 votos. Dando
prosseguimento, foram lidas, analisadas e aprovadas as minutas de notificação e
resolução que deverão ser feitas para todos os processos que deram entrada até a
presente data no Conppac, imediatamente, e aos que virão. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 04/05/2004).
A leitura da Ata da Assembléia de 02 de março de 2004, revela o
desdobramento de outra questão importante no desvelar do objeto deste estudo: a preocupação
dos membros do CONPPAC/RP quanto ao trâmite dos processos administrativos de
tombamento e os efeitos gerados sobre a preservação do bem objeto do pedido. Segundo a Lei
Municipal 7521/1996, artigo 18, o pedido de tombamento deve ser encaminhado à Seção de
Protocolo Geral da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. Após sua autuação, segue à
Secretaria da Cultura para encaminhamento ao CONPPAC/RP, o qual, conforme já
mencionado, vincula-se à estrutura administrativa dessa Secretaria.
A demora deste trâmite processual tem se caracterizado como entrave à
preservação do patrimônio cultural edificado. Por exemplo, um pedido de demolição deve ser
submetido à Secretaria de Infra-Estrutura, que, sem a informação da existência de qualquer
restrição jurídica, como é o caso do tombamento, acaba autorizando a obra, sem questionar o
eventual valor histórico do imóvel, tarefa esta, aliás, que não é de sua alçada.
Após várias colocações dos conselheiros foi deliberado que para que haja uma
maior agilização no tramite dos processos de solicitação de tombamento de imóveis
do município de Ribeirão Preto o Presidente do CONPPAC deverá oficiar ao
Secretário Municipal de Cultura solicitando que este oficie ao secretário de
Administração para que este determine ao Setor de Protocolo da Prefeitura
Municipal que quando do momento de recebimento do protocolo de qualquer
pedido de Tombamento de Imóvel seja feita uma cópia deste expediente e esta seja
enviada diretamente ao Secretário Municipal de Infra-estrutura. Ficando
estabelecido que o Secretário de Infra-estrutura ao receber esta cópia deverá
suspender qualquer ato de intervenção no imóvel sem a conclusão do processo de
tombamento que estará sendo analisado pelo Conppac. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 02/03/2004).
155
Pode-se perceber a dificuldade enfrentada pelos Conselheiros do
CONPPAC/RP na operacionalização do trâmite processual necessário até o ato final do
tombamento, um dos objetivos da política de preservação do patrimônio cultural. A
demolição da Cerâmica São Luiz, após o anúncio do pedido de tombamento, mostrou ao
Conselho a complexidade da gestão urbana envolvendo a preservação histórica.
O espaço da antiga Cerâmica São Luiz estava abandonado e, juntamente
com os terrenos onde se localizavam o Matadouro Municipal e as Indústrias Reunidas
Francisco Matarazzo (antiga CIANE), formava um imenso vazio urbano às margens do
ribeirão Preto, foco de problemas característicos de áreas abandonadas, como criadouro de
mosquitos da dengue, depósito irregular de resíduos sólidos, recintos ermos que contribuem
para o aumento da criminalidade, além da depredação do patrimônio edificado.
A demolição dos prédios da Cerâmica para construção de um hipermercado
recuperou a área abandonada, além de gerar empregos diretos e indiretos, contribuindo para o
crescimento econômico e o desenvolvimento social da cidade de Ribeirão Preto. A análise das
atas das assembléias e dos processos administrativos do CONPPAC/RP, aliada à observação
sistemática e direta, revelou a preocupação dos Conselheiros quanto às questões do uso do
patrimônio cultural, entendido este como parte integrante da preservação. Ainda utilizando o
exemplo da Cerâmica, convém enfatizar que os construtores poderiam perfeitamente utilizar
elementos da arquitetura do imóvel para compor o projeto do novo hipermercado. Por
exemplo, no sentido empreendedor, vislumbrar que o forno poderia compor o cenário da
padaria, formando um agradável café para os clientes; pensar em desenvolver ações
educativas no próprio espaço relacionando a estética do ambiente à alimentação e construção
civil, enquanto inerentes à qualidade de vida em sociedade, com reflexos favoráveis à imagem
pública da empresa.
Observa-se, assim, o quanto os interesses econômicos imediatistas, aliados à
falta de compromisso com a preservação, podem fazer em prejuízo da memória cultural,
expressos no patrimônio edificado.
As possibilidades de integração harmônica de construções antigas a obras
novas são infinitas e podem ser vistas em diversas experiências brasileiras e internacionais
como, por exemplo, o caso da Fábrica Confiança, indústria têxtil do Rio de Janeiro fundada
em 1885, onde atualmente está instalado um moderno hipermercado. São bem conhecidos,
também, os inúmeros castelos medievais conservados em suas características originais e
transformados em rentáveis empreendimentos hoteleiros, espalhados por toda a Europa. A
vertente da sustentabilidade passou a integrar os projetos técnicos, mas ainda existe o conflito
156
entre o antigo padrão de desenvolvimento, pautado exclusivamente no crescimento
econômico, e o novo padrão sistêmico e interdependente.
A presente investigação revelou a preocupação do CONPPAC/RP na
difusão desta nova visão de gestão do patrimônio cultural edificado. Por outro lado, as atas
das assembléias demonstram a predisposição dos Conselheiros na adequação dos espaços,
inclusive pela demolição parcial, mantendo fachadas e elementos arquitetônicos
representativos, porém, permitindo o uso contemporâneo seguro e racional dos imóveis. No
entanto, percebeu-se certa resistência dos proprietários à utilização tanto da tecnologia quanto
da absorção de novos conceitos em prol da preservação do patrimônio, o ‘sustentado
sustentável’ relacionando o passado com o inútil e desqualificando o que é velho.
Daí a importância do envolvimento do CONPPAC/RP em ações educativas,
valorizando a preservação do patrimônio cultural sob a perspectiva da construção de
cidadania, através da conservação de elementos significativos do passado, capazes de auxiliar
o cidadão contemporâneo na construção de sociedades sustentáveis. O significado é capaz de
qualificar o velho, de fomentar o sentimento de pertencimento à história que se pretende
preservar, gerando um ciclo virtuoso na formação de sujeitos históricos, de protagonistas
políticos, ou seja, cidadãos participantes da gestão urbana, agentes da solidariedade necessária
à construção e preservação continuada do terceiro milênio.
Ao tratar do envolvimento do CONPPAC/RP na educação da sociedade
civil, no que diz respeito à preservação do patrimônio cultural local, a pesquisa conduziu à
análise da representatividade das instituições de ensino superior no Conselho revelando
novamente a existência de entraves administrativos e dificuldades na compreensão da
legislação vigente.
O próximo assunto em pauta foi como estar resolvendo o inciso XII do artigo 3º da
Lei 7.521 que estabelece a indicação de um titular e suplente do Conjunto das
Instituições de Ensino Superior instaladas em Ribeirão Preto, depois de longa
discussão ficou determinado que deverão ser oficiados todos os Reitores das
Instituições de Ensino Superior do Município convidando-os para reunião a ser
realizada com a presença do Presidente deste Conselho onde deverão resolver a
melhor forma de representatividade destas instituições. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 04/05/2004).
O assunto entrou em pauta na Assembléia de 06 de abril de 2004, quando
foi deliberada a convocação das entidades que compõem o Conselho para nomeação dos
titulares e suplentes que deveriam representá-las no mandato de 2004-2005. A nomeação
anterior havia sido realizada com o objetivo de reativar as ações do CONPPAC/RP até o
157
término do mandato em curso, de acordo com a audiência realizada em 2003, nos autos do já
mencionado inquérito civil, movido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
A dificuldade na compreensão da legislação vigente pode ser percebida pela
análise da Ata da Assembléia realizada especificamente com os representantes das instituições
de ensino superior de Ribeirão Preto:
O Senhor Cláudio Bauso iniciou a reunião agradecendo a presença de todos e
passou a explicar o motivo do convite para esta reunião, que está embasado na
melhor leitura do artigo terceiro, inciso décimo segundo da Lei sete mil quinhentos
e vinte e um de dezessete de outubro de um mil novecentos e noventa e seis o qual
determina que seja representado como membro do Conppac o “Conjunto das
Instituições de Ensino Superior existentes no Município. Lembrando que na época
da publicação da referida Lei apenas a Instituição de Ensino Moura Lacerda possuía
a Faculdade de Arquitetura e que desde então passou-se a convidar apenas esta para
compor o Conselho. Neste momento de mudança de biênio e de membros que
deverão compor o novo, chegasse a necessidade de melhor leitura deste artigo e de
um denominador comum entre as sete instituições ora instaladas no município de
Ribeirão Preto. Após várias explanações ficou estabelecido com a concordância de
todos os representantes das instituições presentes, que as sete deverão ser
representadas com a indicação imediata de um titular e um suplente através de
oficio dirigido ao Secretário Municipal da Cultura para que este possa providenciar
o encaminhamento dessas indicações juntamente com as outras que compõe o todo
dos membros do Conppac para o senhor Prefeito Municipal o qual deverá nomeá-
los através de Portaria. Nada mais havendo a ser tratado o senhor Cláudio encerou a
reunião informando que deverá entrar em contato com as duas instituições que não
estavam presentes neste ato (COC e UNIP), colocando as definições acordadas
nesta reunião. (Ata da reunião CONPPAC/RP com as Instituições de Ensino em
13/05/2004).
No dia 25 de maio de 2004, foi publicada, no Caderno do Poder Executivo
do Diário Oficial do Município, a Portaria nº 1163
50
, de 20 de maio do mesmo ano, nomeando
os membros relacionados para comporem o CONPPAC/RP para o biênio 2004-2005. A
nomeação incluiu Conselheiros titulares e suplentes das sete instituições de ensino superior de
Ribeirão Preto, sendo elas: USP, UNAERP, UNIP, Barão de Mauá, Moura Lacerda,
Faculdades Bandeirantes e Faculdades COC.
Durante um ano, as atividades do CONPPAC/RP contaram com a
participação efetiva dos representantes das instituições de ensino superior. No entanto, a
análise jurídica solicitada pela nova gestão do Executivo Municipal, quando eleito o atual
Prefeito Welson Gasparini, concluiu pela ilegalidade da nomeação de um representante titular
e um suplente de cada instituição de ensino, já que tanto a redação original da Lei 7521/1996,
quanto sua alteração pela Lei nº 9495/2002, previam apenas dois representantes (titular e
suplente) para o conjunto das universidades.
50
Anexo G.
158
Na Assembléia de 19 de abril de 2005, esta interpretação foi posta em
prática sendo eleito o representante titular do Centro Universitário Barão de Mauá, e o
suplente do Centro Universitário Moura Lacerda. Como critério para a escolha, o conjunto das
instituições consideraram aquelas que ofereciam os cursos de História e Arquitetura e
Urbanismo, por sua afinidade com as questões do CONPPAC/RP.
A pauta desta reunião refere-se à indicação de dois nomes para o CONPPAC, uma
vez que no momento este Conselho tem sete instituições de ensino superior em sua
composição e o Departamento Jurídico da Prefeitura entende que apenas um titular
e um suplente devem representar as sete instituições. [...] Deve-se ressaltar que
todos os representantes indicados terão direito à voz, mas não à voto, devendo
comparecer às reuniões como convidados, colaborando no entendimento das
questões. O conjunto das instituições de ensino terá direito, portanto, a um voto.
[...] O conselheiro da FABAN Robinson L.M. Ribeiro considerou a importância do
CONPPAC estar mais próximo às faculdades, divulgando seus objetivos e trabalho.
O conselheiro Herbert L. Travitzki da UNIP destacou a necessidade da presença de
todos os indicados pelas faculdades para que as reuniões possam acontecer com um
grande número de técnicos. Tendo em vista o ajuste imposto pela Lei 9495 de 12 de
Março de 2002, os presentes aprovaram que a indicação fosse feita por eleição,
nesta data, convalidando as decisões anteriores e ajustando a participação das
instituições de ensino superior neste conselho. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP
de 19/04/2005).
No capítulo 2 deste estudo, foi abordada a existência de mecanismos
jurídicos que amparam a preservação do patrimônio cultural. No entanto, em diversos
momentos, a pesquisa documental constatou a dificuldade dos Conselheiros na aplicação
prática desses mecanismos. A questão envolvendo a representatividade das instituições de
ensino superior demonstra claramente os entraves existentes entre a norma abstrata e a
realidade concreta.
Como se viu na introdução deste estudo, esta questão foi um dos primeiros
aspectos que motivaram a realização desta investigação. Como o CONPPAC/RP pode
desempenhar efetivamente suas atribuições, previstas no ordenamento jurídico, com
conhecimento e compreensão deficientes da legislação vigente? A resposta influencia
diretamente a gestão do patrimônio cultural local em Ribeirão Preto.
No início de 2004, quando da reestruturação do CONPPAC/RP, percebia-se
grande preocupação quanto à existência de quórum nas assembléias, ocasião em que a
participação de sete novos Conselheiros, oriundos das instituições de ensino superior,
representou importante força de renovação no Conselho. Pelo exame das atas de maio de
159
2004
51
a abril de 2005
52
, nota-se que os representantes deste segmento compareceram e
participaram de todas as assembléias.
No decorrer desse período, surgiram várias idéias e projetos com a intenção
de envolver os estudantes universitários nas questões da preservação do patrimônio cultural
local, o que poderia representar também maior envolvimento do CONPPAC/RP nas ações
relativas à educação da sociedade civil no processo. Porém, verificou-se que após a
Assembléia de 19 de abril de 2005, quando ocorreu a eleição de um único representante do
conjunto das instituições de ensino superior, esta participação se esvaziou.
Atualmente, tanto o Conselheiro titular, quanto o suplente, têm exercido
importante atuação no Conselho ao representar o conjunto das universidades, mas notam-se
perdas quantitativas e, conseqüentemente, qualitativas, principalmente no tocante às ações
educativas, um dos pontos ainda problemáticos na gestão do patrimônio cultural em Ribeirão
Preto.
Os órgãos responsáveis pela composição do CONPPAC/RP, relacionados
no artigo 3º da Lei 7521/1996, com as modificações introduzidas pela Lei 9495/2002,
abrangem as várias faces da gestão do patrimônio cultural, respeitando a interdisciplinaridade
nas questões relativas à sua preservação, inclusive quanto à complexidade jurídica envolvida.
A Procuradoria Geral do Município e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Seção de
Ribeirão Preto, são entidades representadas no Conselho e, mas, nenhum representante destes
dois órgãos esteve presente na Assembléia Extraordinária realizada no dia 13 de maio de
2004, em que foi resolvida a participação de um titular e um suplente de cada instituição de
ensino superior.
Naquela assembléia, o desconhecimento e o despreparo para a compreensão
da linguagem jurídica é que acabaram conduzindo à deliberação ilegal que levou à nomeação
de um representante de cada instituição, já que a legislação municipal determina textualmente
a participação de “01 (um) representante das Instituições de Ensino Superior instaladas em
Ribeirão Preto” (inciso X da Lei 7521/1996, na redação dada pela Lei 9495/2002). Aliás,
desrespeitando também a previsão normativa quanto ao quórum, o único Conselheiro a
comparecer na referida assembléia foi o Presidente, arquiteto e urbanista representante do
Conselho Municipal da Cultura, cuja formação e prática não se relaciona a questões jurídicas.
51
Mês da publicação da Portaria 1163/2004 de nomeação de sete conselheiros titulares e respectivos suplentes,
representantes de cada uma das instituições de ensino superior de Ribeirão Preto.
52
Mês da assembléia em que foi apresentado o parecer do Departamento Jurídico da Prefeitura Municipal,
apontando a ilegalidade da participação de um conselheiro por instituição de ensino.
160
De qualquer forma, o trâmite administrativo prevê que as deliberações do
CONPPAC/RP sejam encaminhadas à Secretaria Municipal da Cultura para as devidas
providências e, no caso de nomeação de Conselheiros, posteriormente remetidas ao gabinete
do Prefeito Municipal que, no caso presente, referendou a deliberação ilegal ao publicar a
Portaria 1163/2004, revelando que os problemas relacionados à compreensão da legislação
também podem ser percebidas nos demais órgãos públicos envolvidos. Este fenômeno foi
observado não só no Conselho e nos órgãos da administração pública, como também nos
meios de comunicação, principalmente na sociedade. E mais, quando se trata da legislação
constitucional e federal, o desconhecimento e dificuldade de compreensão são ainda mais
perceptíveis, revelando tratar-se de uma questão crítica a ser enfrentada pelos gestores
públicos.
A partir de março de 2004, houve a nomeação de um representante da OAB
– Seção de Ribeirão Preto e, desde então, passou a comparecer assiduamente às Assembléias
do CONPPAC/RP. No decorrer desta investigação, percebeu-se nitidamente a importância da
participação de profissionais diretamente envolvidos com a área jurídica na gestão do
Conselho.
Em contrapartida, o exame das listas de presença das assembléias do
CONPPAC/RP revelou que os representantes da Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos,
tanto o titular quanto o suplente, tiveram participação irrisória, contribuindo para o aumento
das mencionadas dificuldades quanto ao entendimento das questões jurídicas por parte dos
representantes do Conselho como um todo.
Uma de suas raras participações pôde ser verificada na primeira assembléia
realizada após sua nomeação, pela Portaria 1163/2004, na qual foram eleitos os ocupantes dos
três cargos da Diretoria do CONPPAC/RP: o Presidente e os 1º e 2º Secretários.
O presidente agradece a presença de todos inclusive dos visitantes, explanando a
pauta do dia e sobre a eleição da diretoria do CONPPAC. Enfatiza sobre a
importância da disponibilidade das pessoas que poderão se candidatar aos cargos da
diretoria, para que os trabalhos do conselho não sejam prejudicados. [...] O
conselheiro Antônio Carlos Tórtoro sugere a todos que, devido ao trabalho já
realizado na gestão anterior e, ao seu conhecimento dos processos, histórico e
também, à condição da mudança de governo no ano de 2005 que, o conselheiro
Cláudio Henrique Bauso, continue como Presidente do Conselho. Maria Cristina
Gonçalves da Silva de Castro Pereira, da OAB, ratifica a proposta de Tórtoro e
propõe ainda que o conselheiro Edson Salerno Junior continue como 1° Secretário e
para 2° Secretário, o conselheiro Antonio Carlos Tórtoro. [...] A votação é aberta e
nenhum conselheiro se candidata e nenhuma chapa é formada, sendo eleitos então,
por 15 (quinze) votos (entre os titulares e os suplentes) Cláudio Henrique Bauso
para Presidente do CONPPAC; Edson Salerno Junior, 1° Secretário e Antonio
Carlos Tórtoro como 2° Secretário. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
06/07/2004).
161
Como já se viu no capítulo 2, a Lei 9495/2002, que alterou o artigo 3º da Lei
7521/1996, ao promover a adequação dos membros do CONPPAC/RP aos órgãos públicos
resultantes da reforma administrativa da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, acabou por
excluir a representação do IAB. Além do aspecto da ilegalidade da participação de sete
conselheiros das instituições de ensino superior, verifica-se que, em julho de 2004, foi
irregularmente eleito como 1º Secretário do Conselho um arquiteto e urbanista, que, de acordo
com a Portaria 1163/2004, representava o IAB. Outro equívoco que ratifica as afirmações
anteriores, quanto aos entraves gerados pelo desconhecimento da legislação municipal.
A pesquisa permitiu verificar a intensa atuação deste Conselheiro, no
período em que ocupou o cargo de 1º Secretário do CONPPAC/RP. As ações do Conselho
envolvem uma infinidade de trabalhos burocráticos e administrativos que, em tese, deveriam
ser supridos pela Secretaria Municipal da Cultura, mas acabam sendo desempenhados pelos
próprios Conselheiros, principalmente os eleitos para a Diretoria.
Torna-se importante explicar este raciocínio. Uma assessoria mais adequada
poderia ter resolvido rápida e satisfatoriamente o problema verificado quanto à obtenção de
quórum nas assembléias, recorrendo-se ao disposto no artigo 7º da Lei 7521/1996: “O
previsto no artigo anterior
53
, também ocorrerá com a ausência do representante por 2 (duas)
reuniões consecutivas ou 3 (três) alternadas, em um mesmo exercício/ano, sem justificativa
aprovada”. No entanto, no sistema de participação da sociedade na gestão urbana, a exclusão
de um representante deveria ser pensada como resultado de um processo claro e objetivo.
O 1º Secretário demonstrou cuidado com os procedimentos burocráticos e
administrativos. Quanto à mesma questão do quórum, consta da Ata da Assembléia de 3 de
agosto de 2004: “Em seguida, o Conselheiro Edson explica que alguns conselheiros estão
fazendo as justificativas de suas respectivas faltas às reuniões do Conselho verbalmente, e
que, as mesmas deveriam ser feitas por escrito, sugerindo que o novo processo seja aplicado
já na próxima reunião.”
No decorrer do processo da coleta de dados, após o resultado das eleições
municipais de 2004, tomou posse como Prefeito Municipal o Sr. Welson Gasparini. Sendo o
CONPPAC/RP parcialmente formado por representantes de Secretarias Municipais, as quais
usualmente os indicam entre seus ocupantes de cargos de confiança (e não de cargos de
carreira, como seria ideal), a mudança da administração municipal afeta a composição do
53
Artigo 6º da Lei 7521/1996: “Deixando quaisquer dos órgãos ou entidades de indicar representantes, sua
representação se extinguirá por todo o mandato, reduzindo-se o quórum”.
162
Conselho, a partir do momento em que os indicados pela gestão anterior acabam tendo que ser
ratificados ou substituídos pelo novo Chefe do Executivo.
A pesquisa revelou que justamente esta mudança da administração
municipal é que motivou a solicitação de parecer jurídico quanto à nomeação efetuada pela
Portaria 1163/2004, no tocante à representação do IAB e dos sete Conselheiros das
instituições de ensino superior.
Iniciamos a reunião com apresentação dos conselheiros e convidados. O presidente
Cláudio Bauso relata o entendimento do Departamento Jurídico da Prefeitura sobre
a questão das instituições de ensino superior, que confirma apenas dois nomes para
representar as sete instituições que participam do CONPPAC, sendo eleitos em
reunião anterior, conforme registro em ata. Sobre a exclusão do IAB - Instituto dos
Arquitetos do Brasil, deste Conselho, ocorrida por alteração na Lei do CONPPAC
em 2002, que não foi considerada pelo conselho, que elegeu o representante do IAB
como primeiro secretario, fomos orientados a ratificar os ofícios e documentos
assinados por este secretario e já encaminhados. Os sete conselheiros presentes com
direito a voto foram unânimes em ratificar as assinaturas do conselheiro do IAB nos
processos, legalizando assim essa questão. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
03/05/05).
Na edição do DOM de 11 de maio de 2005, foi publicada a Portaria nº
1341/2005, por meio da qual o Prefeito Municipal nomeou os representantes titulares e
suplentes dos órgãos identificados na Tabela 1, a seguir.
Tabela 1. Representatividade no CONPPAC/RP
Órgão Representatividade
Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão Ambiental Titular Suplente
Secretaria Municipal de Infra-Estrutura Titular Suplente
Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos Titular Suplente
Secretaria Municipal da Cultura Titular Suplente
Conselho Municipal da Cultura Titular Suplente
Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente Titular Suplente
Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto Titular Suplente
Ordem dos Advogados do Brasil Titular Suplente
Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Ribeirão Preto Titular Suplente
Conjunto das Instituições de Ensino Superior Titular Suplente
Federação das Associações de Bairros de Ribeirão Preto Titular Suplente
Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto Titular Suplente
Academia Ribeirãopretana de Letras Titular Suplente
A observação sistemática e direta das assembléias e a leitura das atas
revelaram que uma série de assuntos urgentes, como a autorização de obras na Avenida Nove
de Julho, o processo de tombamento da Algodoeira Matarazzo, além da escassa presença de
Conselheiros nas assembléias, contribuíram para a lentidão no processo de recomposição da
163
Diretoria, após a publicação da Portaria 1341
54
. Ainda que o Diário Oficial do Município
tenha dado publicidade à nomeação em maio de 2005, apenas em agosto foi realizada nova
eleição, para substituição do 1º Secretário, anteriormente ocupado pelo representante do IAB.
Outro fator interessante relacionado a esta substituição é que a eleição da
Diretoria em 2005 constituiu novo mandato, sendo eleitos ocupantes de todos os cargos e não
apenas do 1º Secretário, como seria correto para suprir a ilegalidade acima apontada.
Ficou definido que será feito levantamento dos membros faltosos para
encaminhamento de ofício solicitando a indicação de novos representantes.
Passamos então à eleição da diretoria do CONPPAC ficando da seguinte forma:
Presidente – Cláudio Henrique Bauso, Primeira Secretária – Cláudia Maria Ferreira
Perencin e Segunda Secretária – Fúlvia Andréa Dantas Freitas. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 02/08/2005).
Todavia, o artigo 9º da Lei 7521/1996 determina: “Será de 3 (três) anos o
primeiro mandato dos membros do Conselho e de 2 (dois) os mandatos seguintes”. A Portaria
1341/2005 revogou a Portaria 1163/2004, mas nada dispôs quanto ao período do mandato dos
representantes nomeados. Desta forma, juridicamente, iniciou-se novo mandato que, segundo
o artigo citado, deve vigorar para o biênio 2005/2006. No entanto, a observação sistemática
das assembléias de 2006
55
permitiu conhecer as discussões sobre uma nova eleição neste
mesmo ano, o que contraria o disposto na lei municipal. Estes dados corroboram as reflexões
anteriores sobre as dificuldades enfrentadas pelo CONPPAC/RP no manejo das normas
legais.
Além disto, percebeu-se a retomada do tema sobre o regimento interno,
como se o mesmo não tivesse sido aprovado em 2004 e, em nenhum momento do processo de
coleta de dados, verificou-se a sua aplicação, seja nos processos administrativos de
tombamento, seja na condução de questões polêmicas abordadas nas assembléias. Enfim,
apesar da Assembléia de 04 de maio de 2004 ter validamente aprovado o Regimento Interno,
os membros do CONPPAC/RP e a Secretaria Municipal da Cultura continuam atuando como
se o mesmo não existisse no ordenamento jurídico do Conselho.
Cláudio ressaltou ainda a urgência de se elaborar o regimento interno do Conppac,
uma vez que ao concluir mais este lote de processos o conselho estabeleceu normas
concretas tornando, desta forma, possível a aplicação da lei de criação do conselho
sendo necessário apenas formalizá-las no regimento, sugeriu a criação de uma
comissão para tratar do assunto e também da reformulação da lei com a inclusão de
entidades ainda não representadas no Conppac, como o assunto não estava na pauta
os conselheiros acharam que seria mais adequado tratar na próxima reunião. [...]
54
Anexo H.
55
As atas das assembléias realizadas após fevereiro de 2006 ainda não haviam sido aprovadas até o término
desta investigação e, portanto, não fazem parte dos dados coletados.
164
Desta forma ficou definido que na próxima reunião a pauta contará com [...]
votação sobre a instalação de grupo de estudo para elaboração/adequação do
regimento interno e reestruturação da lei e, finalmente, leitura do relatório final da
Câmara Municipal sobre o Patrimônio Cultural Histórico de Ribeirão Preto. (Ata da
Assembléia CONPPAC/RP de 13/09/05).
O despreparo em lidar com as normas legais conduz a ações ineficientes na
gestão dos bens culturais, dificultando e restringindo o potencial de formação de sujeitos
históricos. Ribeirão Preto possui um grande número de bens materiais e imateriais passíveis
de proteção legal, existindo, portanto, uma forte demanda a ser atendida pela Secretaria
Municipal da Cultura, com a colaboração da comunidade, representada pelos Conselheiros do
CONPPAC/RP.
A gestão do patrimônio cultural local só é possível a partir da
operacionalização do sistema normativo, um dos grandes desafios a serem enfrentados com
prioridade. Se, por um lado, o ordenamento jurídico amplia e fornece respaldo às
possibilidades de ação, por outro, acaba por cerceá-la, na medida em que os Conselheiros não
têm assessoria para tal, tendo que aprender empiricamente com os equívocos praticados, no
cotidiano de suas atividades.
A proposta de formação de comissões de trabalho, deliberada na Assembléia
de 13 de setembro de 2005, acima transcrita, foi tema presente em várias ocasiões anteriores,
como se depreende da leitura da Ata de 17 de maio de 2005: “O presidente Cláudio inicia
propondo a formação de comissões de trabalho – Comissão de Legislação, de Triagem e de
Relatoria.” No mês seguinte, em 07 de junho: “O presidente inicia apresentando novamente a
proposta das três comissões de trabalho, triagem de processos, relatoria de análise de
processos e legislação do CONPPAC.”
A Comissão de Relatoria chegou a funcionar e agilizou o trâmite processual
de diversos pedidos de tombamento, já a de Triagem e a de Legislação não chegaram
efetivamente a atuar. De qualquer forma, a criação das três demonstram a preocupação do
CONPPAC/RP quanto ao manejo do ordenamento jurídico, seja na fase de estudo, seja na de
processamento, ou ainda na de organização.
Estas providências revelaram um anseio coletivo, no âmbito do
CONPPAC/RP, pela mudança da legislação municipal. Entretanto, ainda que a legislação
precise de ajustes, a pesquisa demonstrou que o conhecimento e compreensão das normas
existentes, por si só, contribuiriam para maior eficiência da gestão do patrimônio cultural
local.
165
Dos pontos passíveis de modificação na legislação atual, o que mais
interessa ao objeto deste estudo encontra-se na representação, prevista no artigo 3º da Lei
7521/1996. O processo de coleta de dados reuniu inúmeras informações que demonstram a
insatisfação dos atuais membros do CONPPAC/RP com a pequena representatividade da
sociedade ribeirãopretana, imposta linearmente pela legislação atual. Os Conselheiros
entendem que a representação deve ser ampliada, incluindo todas as instituições de ensino
superior do município, organizações não-governamentais ambientalistas, outras associações
culturais e, principalmente, o retorno do IAB, cuja exclusão, pela Lei 9495/2002, restou sem
justificativa nesta investigação.
Os dados coletados nas listas de presença demonstraram que durante a
vigência da Portaria 1163/2004, a média de comparecimento dos Conselheiros nas
assembléias foi a maior de todo o período analisado, e a observação sistemática revelou
enfático envolvimento de todos os Conselheiros, motivados pela presença dos novos membros
e perspectivas diferentes para a implantação das ações. O CONPPAC/RP poderia representar
melhor a sociedade civil organizada com a ampliação do número de entidades, o que também
contribuiria para as ações de educação e formação de sujeitos históricos.
Outro instrumental que se apresentou essencial ao estudo constitui a análise
dos processos administrativos. A Lei 7521/1996, embora trate dos mecanismos existentes para
a preservação do patrimônio cultural local, não pode ser utilizada de forma isolada. A partir
da hierarquia das leis, estas ficam submetidas à Constituição e legislação federal as quais não
podem contrariar. No entanto, percebeu-se a utilização primordial da lei municipal, em
detrimento do Decreto-lei Federal 25/1937, que regulamenta o processo de tombamento, e
não vem sendo observado nos processos administrativos em Ribeirão Preto.
A pesquisa documental revelou a existência de onze bens culturais imóveis
já tombados definitivamente por obra do CONPPAC/RP, como se vê na Tabela 2.
166
Tabela 2. Relação de bens tombados definitivamente
Identificação do bem Localização Nº Processo
Remanescente Cerâmica São Luiz Rua Municipal, 32 02.03.015239-5
União Geral dos Trabalhadores Rua José Bonifácio, 59 02.03.028424-0
Antiga Sede da Câmara e Cadeia Municipal Rua Cerqueira César, 371 02.02.073817-6
Algodoeira da Indústria Reunidas Francisco Matarazzo
(IRFM)
Quadrilátero Ruas José
Bonifácio, Campos Sales,
Saldanha Marinho e Prudente de
Moraes
02.04.020536-0
Palacete Joaquim Firmino Rua Florêncio de Abreu, 411 02.04.006587-8
Hospital Santa Tereza Avenida Adelmo Perdizza, 495 02.04.015495-1
Túmulo Veiga Miranda Cemitério da Saudade 02.04.006588-6
Palacete Albino de Camargo Rua Visconde de Inhaúma, 241 02.04.027471-0
Estação do Alto Rua Ernesto Petersen, s/n 02.03.018602-8
Casarão Murdocco Rua São José, 606-610-616-624 02.04.015755-1
Companhia Eletro Metalúrgica Brasileira Avenida Brasil, 1724 02.03.026116-0
Quanto aos processos administrativos com deliberação pelo tombamento
provisório, verificou-se a existência de diversos imóveis no Distrito de Bonfim Paulista, um
imóvel na zona rural, e dez bens culturais na zona urbana, entre eles, casarões, praças e
avenidas:
Tabela 3. Relação de bens sob regime de proteção especial (tombamento provisório)
Identificação do Bem Localização Nº Processo
Casarão Jorge Lobato Rua Álvares Cabral, 716 02.04.011717-7
Conjunto Arquitetônico do Centro
Histórico do Distrito de Bonfim Paulista
Ruas e praças do Centro 02.04.034596-0
Estação Ferroviária Silveira do Val ou
Santa Tereza
Condomínio “Estação Primavera” 02.03.034648-3
Avenida Nove de Julho Avenida Nove de Julho 02.04.007613-6
Avenida Jerônimo Gonçalves Avenida Jerônimo Gonçalves 02.04.07614-4
Praça Sete de Setembro Quadrilátero Ruas Florêncio de Abreu, Sete
de Setembro, Lafayete e Floriano Peixoto
02.04.030436-8
Praça Coração de Maria Quadrilátero Ruas Cônego Dantas,
Martinico Prado, Rodrigues Alves e
Coronel Luiz da Cunha
02.04.030437-6
Praça Camões Quadrilátero Ruas Visconde Inhaúma,
Bernadino de Campos, Tibiriçá e Rui
Barbosa
02.04.030435-0
Fazenda Santa Iria Rodovia Abrão Assed, km 53 02.04.041087-7
Delegacia de Polícia Rua Duque de Caxias, 1048 02.04.017059-0
Residência Rua Duque de Caxias, 625 02.05.031909-0
Residência Rua Luiz Gama, 503 02.05.030064-0
167
Durante o processo de coleta de dados, do total de vinte e três processos
administrativos, descritos nas tabelas 3 e 4, optou-se pela análise aprofundada de oito
56
,
buscando revelar a estrutura burocrática que envolve a ação do CONPPAC/RP.
O primeiro critério adotado para a seleção desses processos consistiu na
existência de decreto do Prefeito Municipal determinando o tombamento definitivo, publicado
no Diário Oficial do Município e já decorrido o prazo para eventual impugnação. Identificou-
se a existência de apenas três processos que atendem a esta condição: os prédios da Câmara e
Cadeia Municipal, da Cerâmica São Luiz e da União Geral dos Trabalhadores. O segundo
critério residiu na existência de resolução do CONPPAC/RP declarando o tombamento
definitivo, sendo selecionados os processos da Algodoeira IRFM, do Palacete Joaquim
Firmino e do Hospital Santa Tereza. Por fim, utilizou-se o critério de existência de resolução
declarando o tombamento provisório, selecionando-se o processo do imóvel da rua Álvares
Cabral, 716 (Casarão Jorge Lobato) e do conjunto arquitetônico do Centro Histórico de
Bonfim Paulista.
O material coletado permitiria aprofundar diversas reflexões sobre os
processos administrativos. É neles que os Conselheiros, auxiliados pelo Corpo Técnico de
Apoio, consignam suas percepções, valores e significados da compreensão do acervo de bens
que formam o patrimônio cultural de Ribeirão Preto. No entanto, os objetivos pretendidos por
esta investigação restringem a análise apenas aos aspectos jurídicos envolvidos na gestão,
focando a pesquisa documental nos instrumentos processuais existentes, desde o pedido até o
ato administrativo de tombamento definitivo.
Em linhas gerais, o processo administrativo de tombamento de bens móveis
e imóveis obedece à seguinte sistemática: o pedido de tombamento
57
deve ser apresentado à
Seção de Protocolo Geral da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, utilizando formulário
padrão, que pode ser adquirido em qualquer papelaria. O protocolo resulta na abertura de
expediente administrativo que é encaminhado ao CONPPAC/RP, por intermédio da Secretaria
Municipal da Cultura. Somente após a deliberação do Conselho, favorável à abertura do
respectivo processo administrativo, o expediente retorna à Secretaria da Cultura, onde então é
autuado, transformando-se no processo formal de tombamento.
Após este trâmite, o pedido é incluído em pauta de assembléia do
CONPPAC/RP e submetido à discussão e apreciação. Sendo verificada a existência de
56
Estes oito processos representam 35% do universo de vinte e três processos administrativos de tombamento.
57
Artigo 18 da Lei 7521/1996 (modificado pela Lei Complementar 2006/2006).
168
quórum
58
, os Conselheiros deliberam quanto à procedência do tombamento e, sendo o caso,
emitem resolução determinando a abertura do respectivo processo; a partir de então, o bem
estará sob o regime especial de proteção
59
, com os mesmos efeitos do tombamento
definitivo
60
. É importante observar que a legislação exige que esta resolução seja publicada no
Diário Oficial do Município e também notificada ao proprietário
61
. Cumpridas estas
formalidades, o processo é encaminhado ao Coordenador do Corpo Técnico de Apoio, para as
providências relacionadas aos estudos técnicos necessários à perfeita instrução do processo.
O CTA constitui parte essencial no processo administrativo de tombamento,
já que é responsável pela sua instrução técnica e, sendo formado por funcionários das
Secretarias Municipais elencadas na legislação, conta com a estrutura administrativa do
Executivo Municipal para a elaboração de seus pareceres, que deve abranger todas as
informações técnicas necessárias para atender aos quesitos que o CONPPAC/RP formula em
cada processo, através de formulário próprio, no qual são identificadas em quais Secretarias
Municipais os dados devem ser buscados. No âmbito do CTA, o processo recebe informações
e parecer de cada componente, conforme a área de atuação da Secretaria que o mesmo
representa.
O representante da Secretaria da Fazenda deve informar sobre a localização
precisa do bem, anexando ficha cadastral especificando a titularidade do domínio, nome e
endereço do proprietário.
Ao funcionário da Secretaria de Infra-Estrutura caberá a descrição do bem,
as informações quanto à sua atual utilização e o estado de conservação, anexando a
documentação necessária e disponível, como fotografias, desenhos e plantas.
O membro do CTA responsável pela representação da Secretaria da Cultura
fornecerá informações quanto ao histórico do bem objeto do processo de tombamento,
analisando a sua importância histórica e cultural e o seu significado para a constituição da
memória em Ribeirão Preto, anexando documentos e indicação bibliográfica relacionada com
o bem em exame.
Ao representante da Secretaria de Planejamento e Gestão Ambiental são
solicitados: a planta do imóvel; o documento aerofotogramétrico da área; planta de
localização na planta parcial da cidade, em escala compatível; dados sobre a legislação de uso
do solo na região onde se localiza o imóvel; identificação das principais características,
58
Artigo 24 da Lei 7521/1996.
59
Artigo 20 da Lei 7521/1996.
60
Artigo 30 da Lei 7521/1996.
61
Artigo 19 da Lei 7521/1996.
169
relevância e quaisquer outras observações que possam subsidiar a decisão sobre o
tombamento e, quando for o caso, projeção de área de abrangência a ser preservada.
Quanto às Secretarias Municipais de Negócios Jurídicos e de Governo, por
sua própria natureza jurídica, na maioria dos processos analisados nesta pesquisa, a
solicitação do CONPPAC/RP restringiu-se à ciência e solicitação genérica de informações, de
acordo com o objeto do pedido de tombamento.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, observou-se que o fato de a
coordenação do CTA ser desempenhada pelo representante da Secretaria de Governo conferiu
maior agilidade ao trâmite do processo administrativo junto aos demais representantes, já que
o CONPPAC/RP encaminha os procedimentos e solicita as informões ao coordenador,
como já mencionado acima. Antes da nomeação do atual Coordenador do CTA
62
, os
Conselheiros precisavam localizar com qual funcionário estava este ou aquele procedimento
e, muitas vezes, os processos voltavam ao Conselho sem o parecer técnico da respectiva
Secretaria, aumentando o tempo de tramitação dos processos de tombamento.
O processo de coleta de dados desta pesquisa, de acordo com o recorte
temporal, se deu entre os anos 2004 a 2006 e, durante este período, percebeu-se o aprendizado
dos Conselheiros e dos membros do CTA, relativamente às questões da preservação do
patrimônio cultural de Ribeirão Preto. Tanto o conhecimento da legislação, quanto do próprio
trâmite processual foram sendo aperfeiçoados, na mesma medida em que a história da cidade
e a existência de bens remanescentes representativos dos tempos áureos da Capital do Café
foram se revelando como um conjunto de bens a serem preservados para as futuras gerações.
A preservação do patrimônio cultural, no conjunto, é de fundamental
importância para a formação da identidade coletiva. Por outro lado, tombamentos isolados e
fora desta perspectiva podem ser ineficientes e pouco representantivos para a sociedade. Os
dois primeiros tombamentos definitivos realizados na cidade, relativos ao remanescente da
antiga Cerâmica São Luiz e ao prédio da União Geral dos Trabalhadores, ambos construídos
no início do século XX, originaram-se por acordo judicial, tendo a Prefeitura Municipal
participado da conclusão do processo com a formalização do tombamento.
Neste estudo, já se falou do papel do Ministério Público do Estado de São
Paulo, na retomada das atividades do CONPPAC/RP em 2003, após a abertura do inquérito
civil nº 0098/2003. Se, por um lado, foi necessária a abertura de procedimento de investigação
62
Apesar da lei municipal que criou o CONPPAC/RP ser de 1996, a pesquisa documental não identificou a
nomeação de coordenador do CTA em período anterior a 2005, quando foi nomeado o representante da
Secretaria de Governo.
170
das atividades do Conselho e da atuação dos Conselheiros, questionando-se a
responsabilidade destes pela inoperância do mesmo, por outro, após a realização da audiência
e das advertências realizadas pelo Promotor de Justiça, o funcionamento do CONPPAC/RP
tornou-se regular e sintonizado com as ações do MPESP para a preservação do patrimônio
cultural de Ribeirão Preto.
No dia 15 de setembro de 2005, foi realizada outra audiência nos autos do
mesmo inquérito, para verificar o acordado em 2003 e, por meio da técnica da observação,
constatou-se a aliança entre as atividades do CONPPAC/RP e da Curadoria do Meio
Ambiente do MPESP. Tal fato foi mencionado na Assembléia do CONPPAC/RP de 04 de
outubro de 2005: “Sobre a audiência ocorrida no Ministério Público, o Promotor [...] nos
convocou para oferecer apoio ao trabalho do CONPPAC, disponibilizando-se para ajudar no
que for necessário.”
A investigação revelou informações interessantes quanto às relações
estabelecidas entre o CONPPAC/RP e o Ministério Público. Em 2003, após a demolição
quase total da antiga Cerâmica São Luiz (interrompida graças a uma medida liminar judicial
requerida pelo MPESP), aquele órgão realizou uma série de audiências públicas para
esclarecer o assunto, às quais acorreram vários representantes da sociedade civil, incluindo
cidadãos identificados com a causa, estudantes universitários e participantes de organizações
não governamentais, que assumiram postura de cobrança com relação a atuação efetiva do
CONPPAC/RP. Em seguida, na qualidade de defensor da ordem jurídica e do regime
democrático
63
, o MPESP instaurou inquérito civil para apurar as ações dos Conselheiros, o
que, num primeiro momento, causou constrangimento entre as duas instituições, mas se
tornou o impulso necessário à reorganização do Conselho que culminou, em 2005, em
parceria com a Promotoria Pública.
O Conselho não tem poder de polícia, ou seja, não tem competência jurídica
para investigação das ações depredatórias ao patrimônio cultural, portanto, todas as denúncias
recebidas por ele são encaminhadas ao MPESP. A pesquisa revelou que os Conselheiros
obtêm no Ministério Público o apoio institucional que, muitas vezes, não encontram na
Prefeitura Municipal.
A análise dos processos administrativos também demonstrou que, dos vinte
e três processos de tombamento em trâmite pelo CONPPAC/RP, onze já foram objeto de
resolução pelo tombamento definitivo, no entanto, apenas para três já existe Decreto do
63
Artigo 127 da Constituição Federal de 1988.
171
Prefeito Municipal publicado no D.O.M.
64
, restando oito em situação de pendência. Dos três
imóveis formalmente tombados, dois o foram por determinação judicial, nos autos do
processo envolvendo a demolição da antiga Cerâmica São Luiz, em virtude de acordo
realizado entre o Ministério Público, a construtora, o proprietário do terreno e a Prefeitura,
como será explanado adiante.
Após a concessão de medida liminar, no referido processo, impedindo a
continuidade da demolição e a realização das obras de construção de um hipermercado, a
construtora optou pela negociação de medidas compensatórias, à espera de decisão judicial
quanto ao mérito. A demolição havia sido autorizada pela Secretaria Municipal de Infra-
Estrutura, que posteriormente justificou-se com a alegação de inexistência de tombamento do
local. Realmente, como anunciado na primeira audiência pública, promovida pelo Ministério
Público para discutir o destino do prédio da antiga CIANE (IRFM), o pedido foi efetuado,
mas não houve tempo hábil para a resolução de tombamento provisório pelo CONPPAC/RP.
De qualquer forma, o Poder Judiciário poderia considerar o bem de
importância histórica e, na omissão do Poder Público Municipal na sua preservação, decretar
judicialmente o tombamento, obrigando a Prefeitura a inscrevê-lo no Livro de Tombo. Os
interessados no empreendimento comercial optaram pela realização de acordo judicial e
adoção de medidas compensatórias, ao invés de esperar o final da ação judicial que, como é
de conhecimento notório, tem levado anos até solução definitiva.
Muitas audiências e reuniões foram realizadas e a proposta de acordo foi
amplamente discutida com a sociedade. A construtora comprometeu-se a doar R$ 100.000,00
(cem mil reais) ao Fundo Pró-Cultura, destinados a obras nos Museus Histórico e do Café; a
adquirir e restaurar o imóvel localizado na Rua José Bonifácio nº 59 (antiga União Geral dos
Trabalhadores - UGT) e, por último, a manter e restaurar os elementos originais
remanescentes da antiga Cerâmica São Luiz: o pórtico de entrada, a casa do caseiro, um
galpão, um forno, três chaminés, o calçamento de paralelepípedos e várias árvores.
Cumprindo o acordo judicial, foi publicado no Diário Oficial do Município
de 30 de janeiro de 2004 o Decreto 12/2004, determinando o tombamento definitivo do
remanescente da Cerâmica São Luiz e, no dia 27 de fevereiro do mesmo ano, foi publicado o
Decreto nº 48/2004, determinando o tombamento definitivo do prédio da antiga UGT.
A demolição da antiga Cerâmica São Luiz mobilizou diversos segmentos da
sociedade quanto à questão da preservação do patrimônio cultural, despertando o interesse dos
64
Os artigos 22 e 23 da Lei 7521/1996 prevêem esta obrigatoriedade no procedimento do tombamento.
172
meios de comunicação, além de ter sido a catalisadora do processo de reorganização do
CONPPAC/RP. Pela primeira vez na história de Ribeirão Preto, a demolição de um imóvel de
importância histórica gerou a adoção de medidas compensatórias em benefício do patrimônio
cultural local. “O Conselheiro Tórtoro
65
fazendo uso da palavra sugeriu que em relação a
parte preservada pelo tombamento da Antiga Cerâmica São Luis as três torres sejam
transformadas em símbolo da primeira conquista do Conppac.” (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 02/12/2003).
Como acima relatado, os dois primeiros tombamentos foram realizados pelo
CONPPAC/RP por força de acordo judicial. Além deles, a pesquisa localizou um terceiro,
objeto do processo administrativo nº 02.2002.073817-6, onde consta a publicação, no D.O.M.
de 26 de julho de 2004, da Resolução do CONPPAC/RP nº 0014/2004, declarando o
tombamento provisório do imóvel localizado na Rua Cerqueira César nº 620, construído no
início do século XX para abrigar a Câmara Municipal e a Cadeia Pública, o qual foi tombado
definitivamente por meio do Decreto nº 0443/2004, publicado em 22 de dezembro do mesmo
ano.
A Ata da Assembléia de 27 de janeiro de 2004 também revelou dados
interessantes para a reflexão sobre a preocupação do CONPPAC/RP quanto à educação da
sociedade nas questões referentes às intervenções em prédios tombados:
O Presidente passou a falar a respeito do tombamento do prédio da “Câmara e
Cadeia”, o qual servirá de exemplo de que mesmo sendo um prédio que está sob os
cuidados da Prefeitura Municipal vem sendo cuidadosamente estudado para
verificação se será fornecida o alvará de intervenção de reforma no prédio.
O artigo 30, inciso IX da Constituição de 1988 estabelece a competência do
Poder Público Municipal para gerir o patrimônio cultural local; desta forma, é fundamental
que os próprios órgãos públicos municipais solicitem a autorização do Conselho para a
realização de intervenções em bens de valor histórico, até mesmo para servir de exemplo de
cunho educativo à sociedade e aos proprietários privados.
O parecer da representante da Secretaria da Cultura no CTA, disponível nos
autos do processo administrativo e no site do Arquivo Público Municipal, esclarece bem as
razões técnicas para o tombamento definitivo do referido imóvel.
Segundo os documentos até o presente momento levantados, podemos afirmar que
apesar de construído para sede da Cadeia e Casa de Câmara, o prédio existente na
atual Rua Cerqueira César 365, abrigou somente a Cadeia Pública no período
contínuo de 1889 a 1904. A Câmara Municipal possivelmente funcionou neste
65
Representante da ARL (Academia Ribeirãopretana de Letras).
173
local, no pavimento superior, somente no período próximo a 1890-1892,
permanecendo funcionando em casas alugadas até o ano de 1908, quando foi o
prédio reformado para então abrigar somente a Administração Municipal (Câmara e
Prefeitura) até 1917, ano em que foi inaugurado o Palácio Rio Branco. Finalmente,
concluímos que mesmo faltando os esclarecimentos de algumas lacunas sobre o
processo de construção propriamente dito bem como o detalhamento quanto ao uso
do referido imóvel ao longo do tempo, podemos afirmar que trata-se de um marco
importante para a história de Ribeirão Preto. Remanescente do período de formação
da então “Villa de São Sebastião do Ribeirão Preto”, o edifício é um testemunho
vivo do processo civilizatório de nossa cidade. (REGISTRO, on-line).
Entre o final do século XIX e início do XX, o cenário urbano de Ribeirão
Preto, modificado pela tríade café, ferrovia e imigração, precisou adequar-se ao crescimento
da importância política da cidade. Um marco da pujança econômica da cidade, na época, foi a
construção, em 1917, do Palácio Rio Branco, destinado a abrigar os órgãos da administração
municipal (Prefeitura e Câmara Municipal) e que até hoje sedia a Prefeitura Municipal.
Outro imóvel representativo desse período da história de Ribeirão Preto é o
da antiga Algodoeira Matarazzo, cujo pedido de tombamento, registrado sob o nº
02.2004.020536-0, foi objeto da Resolução nº 0011/2004 do CONPPAC/RP, que o colocou
sob o regime de preservação especial previsto no artigo 19 da Lei 7521/1996.
O parecer do CTA, constante dos autos do processo administrativo de
tombamento, trouxe informações sobre a biografia de Francisco Matarazzo (1854-1937) e sua
importância para o desenvolvimento da industrialização no Brasil, bem como dados sobre o
nascimento da indústria na cidade de Ribeirão Preto.
Segundo Vichnewski (2004) no final de 1934 a empresa Matarazzo adquiriu um
terreno entre as ruas Saldanha Marinho, José Bonifácio, Campos Salles e Prudente
de Moraes, para construção de uma fábrica para beneficiamento de algodão e de
azeite (e para extração de querosene); a construção estava prevista para o ano de
1935. O requerimento solicitando aprovação do projeto para construção da citada
fábrica foi encaminhado ao Prefeito Municipal de Ribeirão Preto em 21 de agosto
de 1935 (planta n. 27, proc. adm. N. 27/1935 – Arquivo Público e Histórico de
Ribeirão Preto). (REGISTRO, on-line).
A proximidade com a linha férrea determinou a escolha do terreno onde foi
instalada a primeira sede das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM) em Ribeirão
Preto. Algum tempo depois, o crescimento da empresa foi tão grande que, em 1945, levou-a a
adquirir um terreno de 151 mil metros quadrados, na região onde posteriormente se originou o
bairro dos Campos Elíseos e onde foi construído um complexo industrial capaz de suprir a
demanda do mercado, a já mencionada CIANE.
Atualmente, mesmo com o tombamento provisório, o prédio em que
funcionou a Algodoeira Matarazzo encontra-se sem uso, abandonado aos efeitos das
174
intempéries, gerando problemas sociais na região onde está localizado. A primeira menção à
negativa do atual proprietário
66
quanto à restauração do imóvel pôde ser verificada em agosto
de 2004:
É lida após este fato, a carta de Camila Aguilera, representante da UNIP, sobre o
pedido de tombamento da Algodoeira Matarazzo, sendo que já existe um
interessado no imóvel, uma igreja evangélica, que diz já ter feito um levantamento
sobre as condições do local e que seria muito difícil a preservação de alguns itens.
A conselheira Maria Cristina diz que há um bem maior a ser discutido, e que dessa
forma, todos os interessados devem ser chamados para uma visita à uma das
reuniões do CONPPAC para entender o que é o tombamento e que os mesmos
estejam acompanhados do projeto para que o Conselho possa analisar a situação,
atitude aprovada por todos os Conselheiros. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
03/08/2004).
Como recomendado pela Conselheira representante da Ordem dos
Advogados do Brasil (um dos sujeitos selecionados para a composição da amostra desta
investigação), o representante da entidade proprietária do imóvel compareceu à Assembléia
do mês seguinte, relatando:
que a intenção é de que neste local seja construído um templo que deverá abrigar
aproximadamente três mil pessoas e também para desenvolvimento de trabalhos
sociais. O segundo secretário, Antonio Tórtoro, pediu a palavra e sugeriu que fosse
encaminhando ao CONPPAC, o projeto arquitetônico, o qual deverá ser apreciado
pelo C.T.A., onde já está o referido processo para ser instruído com os pareceres
deste corpo de apoio. O senhor Presidente retomou a condução da reunião e propôs
ao Pastor que traga os documentos solicitados com urgência, assim como o
esclareceu com o apoio de alguns conselheiros, que o fato do imóvel estar sendo
tombado não impedirá que seja construído o referido templo, mas que se houver um
projeto onde haja notada preservação do valor histórico cultural do mesmo, um
acordo poderá ser estabelecido entre as partes interessadas. A Conselheira Maria
Cristina salientou em suas explicações que o CONPPAC visa também às funções
sociais e o tombamento não é uma desapropriação e principalmente que este
Conselho não “negocia”, palavra usada pelo Pastor Anselmo durante sua
explanação inicial, mas sim discute critérios para o bem maior do município. (Ata
da Assembléia CONPPAC/RP de 01/09/2004).
O processo de coleta de dados permitiu também a percepção quanto à
predisposição dos Conselheiros do CONPPAC/RP para a aprovação de projetos
arquitetônicos que considerem as principais características do imóvel tombado, sem a
obrigatoriedade de manter toda a estrutura, sensíveis à necessidade de adequação ao uso
contemporâneo. No entanto, também se percebeu a dificuldade dos proprietários na
compreensão da importância da preservação do patrimônio cultural edificado, condicionando
a ocupação e uso à demolição ou descaracterização total do bem. O processo da Algodoeira
66
Igreja Internacional da Graça de Deus.
175
Matarazzo exemplifica esta dificuldade, além da utilização de pressões políticas, na tentativa
de impedir o tombamento do imóvel.
Analisando o processo da Algodoeira Matarazzo, o presidente propõe que sejam
incluídos no processo, toda comunicação recebida por este Conselho por parte dos
atuais proprietários e as respostas enviadas, para documentar os fatos ocorridos
paralelamente ao processo, registrando as pressões sofridas por este conselho para
que o imóvel não fosse tombado. A conselheira e advogada Maria Cristina
recomenda que coloquemos essa comunicação como “Questões Incidentais”, em
um apenso ao final do processo. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
07/06/2005).
A falta de compreensão e o desconhecimento da legislação levam os
proprietários a atitudes extremas, incluindo a tentativa de demolição de bens cuja preservação
encontra-se em discussão. Este tipo de conduta foi verificado em alguns processos, inclusive o
da Algodoeira Matarazzo, conforme se depreende do trecho da mesma Assembléia de junho
de 2005: “Voltando ao processo da Algodoeira Matarazzo, constatou-se a necessidade de
colocar folhas de informação no processo para relatar o incidente da pré-demolição do local,
que culminou em um termo de ajustamento de conduta no Ministério Publico.”
Após estes incidentes iniciais, que acabaram por retardar o andamento
processual, inclusive prejudicando as demais atividades do Conselho quando da deliberação
do tombamento definitivo da Algodoeira Matarazzo, os Conselheiros expressaram o valor
histórico do bem em questão e as motivações para sua preservação.
Em seguida, colocou-se em pauta o processo da Algodoeira Matarazzo. O processo
já havia sido relatado e discutido em reunião anterior, quando se observou aspectos
da industrialização de Ribeirão Preto. Assim, o imóvel em questão se insere no eixo
histórico do desenvolvimento industrial que se desenvolveu ao longo das margens
do córrego Ribeirão Preto, destacando-se além dele a Cervejaria Paulista, em 1913,
a Cerâmica São Luiz, os galpões da Ceagesp, o Frigorífico Oranges, o antigo
Matadouro, o complexo de galpões da Cianê, todos se servindo ao longo da Estrada
de Ferro da Companhia Mogiana e da Estação Ferroviária. Este eixo orientou o
traçado urbano e o desenvolvimento industrial nas primeiras décadas do século XX.
Pela importância do imóvel dentro deste contexto, o Conppac votou a favor do
tombamento definitivo, por unanimidade, ou seja, sete votos a favor, nenhum
contra, nem abstenções. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de 05/07/2005).
A análise do tombamento da Algodoeira Matarazzo permitiu compreender
questões fundamentais envolvidas nesta preservação. Além da legislação específica da defesa
do patrimônio, as normas jurídicas urbanísticas também influenciam os projetos de ocupação
do local. Este dado pode ser percebido no mesmo relatório do CTA:
5- Quanto ao uso do imóvel recomenda-se observação da legislação em vigor: este
imóvel está localizado em Zona de Uso Misto II- ZUM II, onde são permitidas
atividades com índice de risco ambiental 1,0 de acordo com a lei 8.681 de 20 de
Janeiro de 2000, que dispõe sobre a ocupação industrial e de prestação de serviços
176
no município de Ribeirão Preto e da outras providências. As atividades permissíveis
estão dispostas no anexo 3 da lei, onde descreve a relação de atividades com seus
valores dos índices de risco ambiental de fontes potenciais de poluição. (Processo
administrativo 02.2004.020536-0 - Relatório CTA ao CONPPAC/RP em
09/09/2005).
O parecer do CTA foi aprovado por unanimidade na Assembléia do
CONPPAC/RP de 13 de setembro de 2005. A resolução do Conselho, expedida no dia 28 do
mesmo mês, foi registrada sob o nº 01/05 e deu conhecimento, aos interessados em geral e ao
proprietário em especial, que o “bem imóvel, situado no quadrilátero circundado pelas ruas
José Bonifácio, Campos Sales, Saldanha Marinho e Prudente de Moraes, antiga Algodoeira
Matarazzo por seu valor histórico e arquitetônico, fica sob proteção de tombamento”.
A leitura da Ata da Assembléia de 08 agosto de 2005 revelou a
concordância dos proprietários do imóvel na apresentação de um projeto arquitetônico
contemplando a preservação de elementos significativos do imóvel, mas só em dezembro do
mesmo ano, a assembléia contou com a presença do arquiteto responsável pelo projeto.
Em seguida, o arquiteto Carlos Alberto Cortes da Igreja Internacional da Graça,
proprietária do imóvel onde funcionava a antiga Algodoeira Matarazzo, apresenta
uma perspectiva virtual da fachada da nova igreja que lá será construída,
respeitando as diretrizes do Corpo Técnico de Apoio, uma vez que o CONPPAC
decidiu pelo tombamento definitivo do imóvel, com condicionantes de preservação.
[...] Retornando ao assunto da Igreja Internacional da Graça, julgamos insuficiente
apenas a perspectiva virtual para avaliarmos o projeto e decidimos solicitar ao
arquiteto também a planta baixa com indicações do que será demolido e
preservado, os acessos ao público e demais informações que foram objeto das
diretrizes de preservação estabelecidas pelo Corpo Técnico. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 06/12/2005).
Em virtude do estado de conservação do imóvel, o CONPPAC/RP acabou
acatando o parecer do CTA, que propôs a preservação apenas da fachada, que faz frente para
a Rua Saldanha Marinho. O projeto apresentado pelo atual proprietário previa a demolição
desta fachada original e a construção de uma réplica, com frente para a Rua José Bonifácio.
Tal proposta revela um juízo de valor que desrespeita a noção de memória,
além de total incompreensão quanto à importância das técnicas construtivas do início do
século, já que a edificação de uma cópia da fachada do imóvel jamais poderia representar os
valores intangíveis da construção original. Como se isto não bastasse, o episódio revelou
também uma provável incapacidade de recorrer aos instrumentos tecnológicos atuais que
propiciem o uso adequado do imóvel sem descaracterizá-lo.
Respeitando os critérios estabelecidos para a seleção dos processos
administrativos desta coleta de dados, outro tombamento interessante a ser analisado é o
177
Palacete Joaquim Firmino, registrado sob o nº 02.2004.006587-8, relacionado com a história
de Veiga Miranda.
A título de esclarecimento, registre-se que João Pedro da Veiga Miranda foi
patrono da Academia Ribeirãopretana de Letras, um dos órgãos componentes do
CONPPAC/RP. Foi figura proeminente da política local: além de vereador e Prefeito
Municipal de 1908 a 1909, ocupou os cargos de deputado estadual e federal. O Presidente da
República, Epitácio Pessoa, em visita a Ribeirão Preto, em 1921, ficou hospedado no casarão
da atual Rua Florêncio de Abreu, 411, na época residência de Joaquim Firmino, sogro de
Veiga Miranda. Em razão desse acontecimento, a antiga residência de Joaquim Firmino ficou
conhecida, durante vários anos, como Palacete Veiga Miranda.
Em janeiro de 2004, alguns meses após o reinício das atividades do
CONPPAC/RP, verificou-se a deliberação quanto a este bem representativo do patrimônio
cultural de Ribeirão Preto.
O Conselheiro Tórtoro pediu que o Senhor Presidente deste conselho entre com o
processo de tombamento do Túmulo do Doutor Veiga Miranda no cemitério da
Saudade e também sugeriu que se entre com o processo de tombamento do imóvel
da rua Florêncio de Abreu, número quatrocentos e onze, antigo prédio que estava
instalada a Secretaria Municipal da Fazenda. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
27/01/2004).
No dia 16 de julho de 2004, foi publicada, no D.O.M., a Resolução nº
0006/2004
67
do CONPPAC/RP, determinando o tombamento provisório do imóvel. Um ano
depois, houve deliberação quanto ao tombamento definitivo:
Sobre o Palacete de Joaquim Firmino ou Casarão de Veiga Miranda, o conselheiro
Antonio Carlos Tórtoro, relata episódios históricos ocorridos ali, o presidente
Cláudio relata aspectos físicos e de conservação do imóvel, e o conselho delibera a
favor do tombamento definitivo, também por unanimidade. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 05/07/2005).
Após vistoria realizada em 01/09/2005, o CTA ofereceu um segundo
parecer, no qual constaram suas recomendações sobre os elementos do imóvel a serem
preservados:
1 – O edifício principal – Palacete, objeto de pedido de tombamento possui muitos
elementos que se apresentam como originais, tais como: alvenaria, telhado, janelas,
pisos, algumas portas e janelas. Assim, mesmo que alguns elementos terem sido
alterados ao longo do tempo, o estado de conservação do edifício é razoável, e,
apresenta significativa importância histórica e arquitetônica. 2 – O CTA indica o
tombamento do Palacete Joaquim Firmino – Veiga Miranda, fixado como limite a
metragem do terreno no qual encontra-se inserido, portanto, sem a necessidade de
67
Anexo I.
178
fixação de área envoltória de preservação; 3 – Recomenda-se a restauração
completa do imóvel; sempre em observação quando as pequenas reformas ou
adaptações na parte de alvenaria, telhado, parte elétrica, hidráulica, entre outras, as
quais deverão ser executadas em observância a manutenção das características
originais do edifício com material de qualidade compatível aos originais; 4 –
Observa-se ainda a necessidade de um projeto para os jardins defronte ao edifício,
que vise a possibilidade de visualização do edifício por parte dos transeuntes, além
de garantir que não haja concentração de umidade no entorno do edifício bem como
se afaste o perigo de que galhos de árvores danifiquem os telhados. [...] 7 – Quando
aos prédios anexos, tendo em vista que as inúmeras e diversificadas ocupações dos
edifícios resultaram em profundas modificações da planta original; recomenda-se
que sejam mantidas as fachadas originais, mas liberadas as dependências internas
para adequações e reformas; [...]. (Processo administrativo 02.2004.006587-9 -
Relatório CTA ao CONPPAC/RP em 09/09/2005).
Através da Resolução nº 0002/2005, de 28 de setembro de 2005, o
CONPPAC/RP declarou o tombamento definitivo deste imóvel, sem impugnação no prazo
legal, como se depreende da leitura da Ata da Assembléia de 8 de novembro de 2005: “Sobre
o Palacete de Joaquim Firmino, como não houve nenhum pedido de impugnação, deve ser
encaminhado à Secretaria da Cultura, para que o Secretário encaminhe ao Poder Executivo
para que no prazo de trinta dias se manifeste sobre o pedido e promova as medidas
conseqüentes.”
Por último, é interessante registrar que, em 2004, a ACIRP e a Polícia
Militar manifestaram ao CONPPAC/RP, o interesse conjunto na instalação de um posto
militar na Praça XV de Novembro, no centro da cidade.
Em seguida foi dada a palavra para o senhor Lino Strambi que expôs o motivo da
presença dos representantes da ACIRP (Associação Comercial e Industrial de
Ribeirão Preto) e do Capitão nesta reunião. O senhor Lino colocou que tem tido
dificuldades com o CONDEPHAAT para interferências na área central da cidade,
ou seja, nas aprovações de projetos como por exemplo a permanência do Posto
Policial Militar na Praça XV de Novembro. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
06/04/2004).
Esta pretensão acabou sendo frustrada, uma vez que a construção interferiria
negativamente na paisagem da Praça, que constitui bem tombado pelo CONDEPHAAT
(órgão estadual equivalente ao CONPPAC/RP). Assim, considerando a importância da
instalação do posto policial para a manutenção da segurança pública no centro comercial de
Ribeirão Preto, o mesmo acabou sendo alocado no Palacete Joaquim Firmino, que já se
encontrava desocupado na ocasião.
O último processo administrativo, analisado segundo o critério da existência
de resolução do Conselho declarando o tombamento definitivo, é o que trata da preservação
do imóvel localizado na Avenida Adelmo Perdizza nº 495, onde funciona o Hospital
Psiquiátrico Santa Tereza. O processo de tombamento foi instaurado pelo CONPPAC/RP, na
179
Assembléia de 06 de julho de 2004, sujeitando o bem ao regime especial de proteção, de
acordo com o artigo 19 da Lei 7521/1996, originando a Resolução nº 0003/2004
68
do
Conselho, publicada no Diário Oficial do Município em 16 de julho de 2004.
Na Ata da Assembléia de 05 de julho de 2005, verifica-se deliberação
quanto à vistoria do local pelos Conselheiros do CONPPAC/RP, visando maior compreensão
do espaço a ser tombado. Embora as atas do Conselho, a partir de fevereiro de 2006, ainda
não tenham sido aprovadas, pela observação sistemática sabe-se que o tombamento definitivo
foi decidido na Assembléia realizada em 04 de julho de 2006 e o processo encaminhado ao
CTA, para definição da área de abrangência, de acordo com o disposto no artigo 15 da Lei
7521/1996.
O cuidado dos membros do CONPPAC/RP no encaminhamento do processo
ao CTA para descrição da área de ambiência do bem objeto de tombamento, importante
medida na preservação do conjunto representativo da proteção especial, também visa garantir
que construções vizinhas não interfiram na visualização do edifício histórico.
O processo de coleta de dados revelou a existência de outros bens culturais
em regime de proteção especial, pendentes da resolução de tombamento definitivo e
representativos do período cafeeiro de Ribeirão Preto. Seguindo este critério, um dos itens
selecionados diz respeito ao processo administrativo nº 02.2004.011717-7, referente ao
tombamento do imóvel localizado na Rua Álvares Cabral, nº 716.
O imóvel foi construído em 1922 e serviu de residência a Jorge Lobato. Seu
pai, Rodrigo Lobato, político influente no cenário nacional, entre outros cargos que ocupou,
foi Presidente da Província do Rio Grande do Norte
69
. Jorge Lobato formou-se em Engenharia
Civil e chegou a Ribeirão Preto no ano de 1905. Trabalhou como engenheiro da Cia. Mogiana
de Estradas de Ferro e foi professor do Colégio do Estado (atual Otoniel Mota) e também
comerciante, agricultor e empresário.
A Resolução nº 0004/2004
70
do CONPPAC/RP, acatando pedido de
tombamento provisório deste imóvel (Casarão Jorge Lobato), foi publicada no D.O.M. no dia
16 de julho de 2004. A localização e características arquitetônicas deste bem foram
consideradas ideais para sediar um projeto do SEBRAE, exposto ao CONPPAC/RP na
Assembléia de 02 de março de 2004:
68
Anexo I.
69
Presidente da Província, durante o Brasil Império (1822 a 1889), era nomeado pelo Imperador e equivalia ao
atual Governador de Estado.
70
Anexo I.
180
O Presidente Cláudio Bauso inicia a reunião apresentando o Técnico do SEBRAE,
senhor Marcos Aurélio Manaf, que veio ao Conselho apresentar a proposta de
parceria num projeto de restauração de algum imóvel importante que possa servir
como um centro de comercialização de artesanato com enfoque em design
doméstico projetado por arquitetos, engenheiros, paisagistas e decoradores. Este
imóvel seria recuperado através do incentivo da Lei Rouanet. A recuperação
também treinaria mão de obra especializada neste ofício, podendo se tornar um
centro permanente de treinamento. O artesanato orientado poderá garantir a
inclusão social de pessoas desempregadas, ajudando-as a gerar renda. O SEBRAE
propõe que o CONPPAC faça um levantamento inicialmente, das possíveis
entidades meio (gestoras) e entidades fim (produtoras), que comporiam um órgão
gestor, que futuramente poderia se tornar uma ONG ou uma OSCIP, sem fins
lucrativos. A proposta foi recebida pelos conselheiros com satisfação e entusiasmo.
A presença do SEBRAE na assembléia trouxe à luz a existência de outras
possibilidades de preservação e ocupação do patrimônio cultural local, que podem ser
encampadas pelo Conselho, conforme já previsto no artigo 13, inciso II da Lei 7521/1996, que
permite a realização de convênios com entidades públicas e privadas. Entretanto, a captação
de recursos junto ao Ministério da Cultura, como proposto, exige que o tombamento
definitivo do imóvel esteja concluído, com a publicação do respectivo decreto municipal.
Na Assembléia de 03 de agosto de 2004, foi constituída uma comissão para
vistoria do Casarão:
Em seguida, é criada uma comissão para a visita à casa da Rua Álvares Cabral, 716,
formada pelos Conselheiros Edson Salerno Junior; Cláudio Henrique Bauso; Dulce
Guimarães; Daniela Campos; Lílian Rodrigues e Mario Muraca; a ser realizada no
dia 11 de agosto às 14 horas. Maria Cristina diz que é importante uma autorização
por escrito para que a visita seja realizada, a fim de que não haja problemas.
A pesquisadora esteve presente no dia designado, no entanto, a visita não se
realizou, conforme pode ser comprovado pelo trecho da Ata da Assembléia de 02 de agosto
de 2005: “[...] o conselho não teve autorização do proprietário para vistoria devendo ser
encaminhada solicitação para o advogado constituído.” Atualmente, o processo encontra-se
em fase de análise para deliberação quanto ao tombamento definitivo.
Outro pedido em fase de estudos técnicos pode ser verificado nos autos do
processo nº 02.2004.034596-0, referente ao tombamento do conjunto arquitetônico do Centro
Histórico do Distrito de Bonfim Paulista. Inicialmente denominado “Villa Bonfim”, sua
ocupação se deu por volta de 1880, fomentada pela cultura do café. Em 1883, a chegada da
Cia. Mogiana de Estradas de Ferro impulsionou o crescimento do povoado, que contava com
uma estação própria para escoar sua produção. O comércio local desenvolveu-se e servia
principalmente as fazendas próximas. Em 1924, outra importante estrada passou a integrar o
sistema viário da Vila: a Estrada de Rodagem São Paulo-Ribeirão Preto.
181
Após a crise do café, a retirada dos trilhos da Cia. Mogiana da Vila Bonfim
e a construção da Rodovia Anhangüera, as grandes propriedades rurais do entorno foram
desmembradas em sítios e chácaras, concentrando a atividade econômica na produção de
hortaliças e frutas. Atualmente, a região de Bonfim Paulista sofreu grande valorização
imobiliária, em virtude da implantação de inúmeros condomínios fechados de alto padrão.
A Resolução nº 0016/2004 do CONPPAC/RP decidiu pela abertura do
processo de tombamento do Centro Histórico de Bonfim Paulista, Distrito de Ribeirão Preto,
determinando o regime especial previsto no artigo 19 da Lei 7521/1996, para cerca de
sessenta imóveis representativos do período de fundação do povoado. Os bens tombados em
regime provisório estão distribuídos pelo núcleo inicial da urbanização do Distrito, sendo que
cinco imóveis localizam-se na Avenida Presidente Vargas, doze na Praça Barão do Rio
Branco, sete na Praça Bonfim, três na Rua Capitão José Lopes Otero, trinta na Rua Felisberto
Almada e um em cada uma das ruas Coronel José da Silva, Emilio Moreno do Alagão e Sete
de Setembro.
Este estudo já abordou a questão da resistência ao instituto do tombamento,
quase sempre causada pelo desconhecimento da legislação e do próprio significado do termo,
entendido literalmente pelos proprietários em sua acepção de ‘derrubada’, ‘demolição’. Nos
autos do processo de tombamento há menção expressa a esta interpretação equivocada.
Além das notificações individuais aos proprietários dos bens, o tombamento
provisório desses imóveis foi amplamente divulgado pela imprensa local, gerando mais
dúvidas do que esclarecimentos aos moradores de Bonfim Paulista. Pela primeira vez, o
CONPPAC/RP realizou, em 21/11/2004, uma audiência pública em conjunto com a Secretaria
de Planejamento e Gestão Ambiental, visando esclarecer a população do Distrito quanto à
importância do Plano Diretor no planejamento do crescimento urbano e aos procedimentos
técnicos envolvidos no tombamento.
O Doutor Ricardo Rocha iniciou a reunião se apresentando e relembrando que esta
é a quarta vez que estão em Bonfim para tratar dos assuntos referentes ao Plano
Diretor. Informou que nesta noite também serão expostas e esclarecidas as dúvidas
relativas ao processo administrativo de Tombamento Provisório dos imóveis de
Bonfim Paulista. [...] passou a palavra para o Senhor Cláudio Henrique Bauso,
Arquiteto, Membro do Conselho Municipal da Cultura e Presidente do CONPPAC.
O Senhor Cláudio fez uma longa apresentação detalhando os tramites de um
processo de Tombamento com a finalidade de esclarecer aos presentes os
fundamento deste informando principalmente que no atual estágio o Processo está
em fase provisória e que só após a analise do Corpo Técnico de Apoio e que será
possível a analise definitiva pelo CONPPAC, levando a resolução de Tombamento
definitivo sobre a qual terão, após serem notificados, prazo de 15 dias para
apresentar impugnação. Para fundamentar a posição de que este imóveis devem ser
Tombados e que com o Tombamento será possível um ganho para o Distrito passou
182
a apresentar visualmente locais onde os Tombamentos foram bem sucedidos com
lucros sociais gerando empregos, turismo cultura e rural. Enfatizou que o bem
coletivo sobrepõe ao individual. As Cidades que foram usadas para exemplificar os
tombamentos que deram bons resultados para os moradores locais foram: O
Pelourinho em Salvador- Bahia, São Luiz do Paraitinga –São Paulo e Santana do
Parnaíba. [...] Em seguida os moradores presentes começaram a dar sinais de
impaciência e iniciaram algumas perguntas a respeito do Tombamento proposto.
Pela falta e informação e pelo não entendimento das explicações dadas até o
momento a grande maioria se mostrou contrária ao processo, insistindo que a
pessoa que entrou com o pedido de Tombamento não tem condições de dar uma
justificativa convincente para essa realização deste processo. [...] Em seguida
mesmo com um inicio de conversas paralelas o Doutor Ricardo voltou a condução
da reunião para pedir que se apresentassem alguns voluntários que deverão compor
uma comissão de acompanhamento do processo de Tombamento e dos Trabalhos
do Plano Diretor, desta forma concluída: Ana Paula Alexandre Maurino, Cristiane
Bortolin, Francisco Puga, Hector Magazoni, Irene Bortonin Afonso, José Wilson
Toni, José Eugênio Bortolin, João D’Andrea, Luiz Gonzaga Longo, Paulo Cruz,
Paulo Pereira, Rita de Cássia Longo, Vergílio César. (Ata da Audiência Pública
realizada com representantes da Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão
Ambiental, CONPPAC/RP e moradores de Bonfim Paulista, realizada no dia
21/11/2004, no Salão Egreggio’s no Distrito de Bonfim Paulista).
Compareceram à audiência, observada presencialmente pela pesquisadora,
cerca de cento e cinqüenta pessoas, a maioria constituída por moradores e proprietários.
Destacaram-se as presenças do Presidente do CONPPAC/RP, e do 1º Secretário, além de
alguns observadores e líderes comunitários locais.
Vários casos foram relatados sobre proprietários de imóveis tombados que,
ao receberem a notificação de tombamento, entenderam que seus imóveis seriam
sumariamente demolidos, desesperando-se ante a possibilidade de perderem seu patrimônio,
no caso de alguns, o único bem de moradia. O texto da notificação encaminhada pelo
CONPPAC/RP aos proprietários, comunicando a abertura do processo de tombamento e o
regime de proteção especial, sem informações mais precisas e esclarecedoras, foi duramente
criticado pela comunidade, durante a audiência.
O fato de alguns proprietários sequer terem sido notificados, quando a
imprensa local divulgou a notícia, também foi objeto de críticas pela comunidade. Ainda que
se considerem as críticas quanto ao texto da notificação encaminhada pelo CONPPAC/RP aos
proprietários, dois pontos revelaram-se como centrais no descontentamento dos proprietários:
o primeiro deles, a existência do regime especial de preservação do bem, enquanto tramita o
processo administrativo e o estudo do Corpo Técnico de Apoio, sem consulta anterior ao
proprietário e, o segundo, consiste na alegação de que o tombamento desrespeita o direito de
propriedade.
Quanto ao primeiro, note-se que o procedimento do CONPPAC/RP
fundamentou-se estritamente na legislação municipal que, por sua vez, obedece ao disposto
183
no Decreto-lei Federal nº 25/1937, que regulamenta o processo de tombamento em todo o
território nacional e, portanto, em razão do princípio da hierarquia das leis, deve ser
observado pelos municípios. De qualquer forma, a lei permite ao CONPPAC/RP o
tombamento provisório e o regime especial de proteção do bem sem a necessidade de
comunicação prévia ao proprietário, para evitar que, iniciada a etapa de estudo técnico, o
patrimônio cultural sofra danos que comprometam a preservação pretendida pelo tombamento
definitivo
71
.
O segundo ponto, relacionado ao direito de propriedade, demanda algumas
reflexões mais profundas. Inicialmente, é importante esclarecer a questão jurídica. O artigo 5º
da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais, dispõe, em seu caput:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...]”. Seguem-se 78 incisos, contendo os
termos em que estes direitos são garantidos, destacando-se o inciso XXII: “é garantido o
direito de propriedade” e o XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”. A
preservação do patrimônio cultural insere-se na função social da propriedade e o instituto do
tombamento não interfere no uso do imóvel, apenas condiciona as intervenções à aprovação
do órgão responsável, para evitar sua descaracterização, podendo o proprietário dispor do
mesmo, como melhor lhe convier.
O que se percebeu no processo de tombamento do Centro Histórico do
Distrito de Bonfim Paulista, também se verificou em vários outros procedimentos. A
resistência dos proprietários ao tombamento também está vinculada aos interesses
econômicos da especulação imobiliária e à visão desenvolvimentista da gestão urbana, em que
os valores históricos não são considerados importantes, quando comparados às necessidades
de crescimento da cidade.
Durante a audiência pública em Bonfim, o Presidente do CONPPAC/RP fez
sua apresentação mostrando imagens de duas cidades do Estado de São Paulo, São Luiz do
Paraitinga e Santana do Parnaíba, onde os sítios históricos foram preservados e o turismo
cultural sustenta a economia local, enquanto tecia explicações quanto ao instituto do
tombamento. Os dois locais possuem características arquitetônicas e históricas semelhantes ao
Distrito de Bonfim Paulista e o próprio crescimento urbano de Ribeirão Preto, em direção ao
71
A demolição da antiga Cerâmica São Luiz pode ser citada como exemplo da importância do tombamento
provisório.
184
Distrito
72
, pode representar oportunidades de negócio, como restaurantes, bares, galerias, lojas
e tantas outras possibilidades, para atender aos novos moradores.
No entanto, como pode ser verificado na Ata da Assembléia do
CONPPAC/RP de 30/11/2004, existem interesses imobiliários na verticalização de Bonfim
Paulista, como conseqüência da valorização do metro quadrado, após as aprovações dos
condomínios. Daí a importância da atuação do Poder Público na defesa dos interesses
coletivos, impedindo este tipo de negócio predatório, em que o patrimônio cultural edificado é
sacrificado em nome do interesse econômico.
Uma gestão urbana que respeite o meio ambiente e o patrimônio cultural
tornou-se fundamental nos tempos atuais, quando a crise sócio-ambiental conduz a novas
práticas, capazes de compreender a interdependência entre os seres e a diversidade cultural
como instrumentos de transformação do ambiente urbano. A Constituição de 1988 é uma
ferramenta importante neste processo. Garante o direito à propriedade privada condicionada à
função social e não deixa dúvidas quanto à legalidade do instituto de tombamento, além de
garantir expressamente a diversidade cultural como direito, previsto no seu Título VIII,
denominado “Da Ordem Social”.
O embate entre duas visões antagônicas sobre o crescimento urbano tornou-
se evidente ao longo da coleta de dados desta investigação, e o processo de tombamento do
Centro Histórico de Bonfim exemplifica os desafios existentes para que o direito, prescrito na
Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, federal e municipal, se concretize
com eficácia na gestão urbana, caracterizada como democrática e sustentável: de um lado,
aqueles que defendem o crescimento urbano a qualquer custo, colocando as questões
ambientais e culturais como entraves a este crescimento e, de outro, aqueles que defendem
uma nova visão, percebendo o crescimento econômico como parte integrante do
desenvolvimento social, e a democratização das decisões de gestão urbana do município como
sinal de enriquecimento político.
A polêmica gerada após o tombamento provisório do Centro Histórico de
Bonfim Paulista teve vários desdobramentos. Inicialmente, alguns dos moradores que se
ofereceram para participar da Comissão sugerida na audiência pública de 21/11/2004
compareceram à Assembléia Extraordinária, convocada pelo CONPPAC/RP para formalizar a
atuação da referida comissão.
72
A pesquisa revelou que foi aprovada a construção de vários condomínios na região, todos destinados às classes
A e B, alguns já concluídos e outros em fase de implementação.
185
O Presidente do Conselho, Cláudio Henrique Bauso inicia a reunião apresentando
os membros do CONPPAC aos visitantes de Bonfim Paulista, explicando os
motivos para a reunião extraordinária. [...] Em seguida, Cláudio começa a reunião
para instrução dos moradores de Bonfim Paulista, já explicando sobre a tramitação
e os modos de como deve-se atuar quando há um pedido de vistas no processo, ou
uma análise de inteiro teor. A conselheira Maria Cristina acrescenta que a reunião,
caso os moradores desejarem, pode ser gravada. Porém, todos concordam que não
há necessidade. O Presidente diz então que o processo está sob análise do C.T.A. e
que eles tem trinta dias para uma manifestação, podendo ser este prazo prorrogado
para mais trinta dias e, que os conselheiros do CONPPAC não são funcionários da
Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. Logo após, o Sr. Paulo Henrique Pereira,
morador de Bonfim, abre a discussão sobre as várias dúvidas que os moradores
deste Distrito tem sobre o processo administrativo, pedindo a explanação das
mesmas. [...] Cláudio dá exemplos de monumentos que dão certo como
tombamento, como o Theatro Pedro II, o Palace Hotel, a UGT e que, esta condição
oferece mecanismos para benefícios, citando leis, para exemplificar. [...] Tórtoro
sugere ao Presidente da Associação de Moradores de Bonfim Paulista e aos demais,
que façam um levantamento histórico e arquitetônico e que apresentem ao
CONPPAC, pois isso ajudaria o Conselho a analisar o processo. João Antonio
Dandrea diz que o grupo ajudará. [...] Paulo Henrique diz que os moradores farão
uma reunião em Bonfim para decidir seu posicionamento, trazendo o mesmo ao
CONPPAC posteriormente. [...] O Sr. Paulo Henrique diz que suas dúvidas foram
sanadas e agradece o Conselho. [...] Em seguida, o Sr. Heitor explica que os
moradores irão se reunir em Bonfim e que entrarão em contato com o CONPPAC
assim que tiverem uma posição. (Ata da Assembléia CONPPAC/RP de
30/11/2004).
A pesquisa documental e a observação sistemática não revelaram qualquer
outro contato desta Comissão com o CONPPAC/RP, nem dados referentes a levantamentos
históricos e arquitetônicos foram fornecidos para auxiliar o estudo do CTA que, por sua vez,
embora pressionado a agilizar o trabalho, ainda não o concluiu alegando carecer da infra-
estrutura necessária. Os constantes pedidos de vista, tanto dos proprietários, quanto de
Vereadores Municipais e da Casa Civil, também têm dificultado o trabalho do CTA,
tumultuando o andamento processual.
Uma das maiores críticas dos moradores de Bonfim Paulista diz respeito ao
fato de estar sendo pretendido o tombamento coletivo de dezenas de imóveis, enquanto que,
na zona urbana de Ribeirão Preto, eles somam pouco mais de vinte bens. No entanto, esta é
uma interpretação equivocada, já que muitos dos processos mencionados também representam
um conjunto maior de bens, como é o caso da Avenida Nove de Julho e das praças, pois
abrangem todos os imóveis nela localizados. Além disso, fora os processos administrativos do
CONPPAC/RP, existem os bens tombados pelo CONDEPHAAT em Ribeirão Preto. Deve-se
registrar, aliás, que o órgão estadual elogiou a ação do Conselho Municipal no tombamento
do conjunto arquitetônico de Bonfim Paulista, entendendo o instrumento de preservação de
sítios históricos mais eficiente que tombamentos isolados.
186
As atas de assembléia revelaram poucas informações a respeito da
integração entre o CONPPAC/RP, o CONDEPHAAT e o IPHAN, mas a técnica de
observação e os contatos formais e informais foram primordiais para a compreensão desta
relação. Inicialmente, é importante ressaltar que os Conselhos possuem competências
exclusivas e legislações específicas, mas o ordenamento jurídico ratifica a interdependência
entre os diversos níveis de governo. A Constituição de 1988, ao tratar da preservação do
patrimônio cultural, estabelece a competência comum entre os três entes da Federação: União,
Estado e Município. A relação estabelecida entre eles foi assunto discutido pelos membros do
CONPPAC/RP, em outubro de 2003:
A Senhora Fernanda perguntou se o Conselho está ligado a algum Conselho Federal
ou Estadual. O Presidente senhor Cláudio informou que não, é municipal, há sim o
contato com outros conselhos para troca de experiências. A senhora Fernanda
continuou perguntando de onde vem às verbas para sobrevivência do Conselho. O
Presidente senhor Cláudio respondeu que o Conppac está atrelado a Secretaria
Municipal da Cultura e este órgão é que dá esta subsistência. (Ata da Assembléia
CONPPAC/RP de 21/10/2003).
A pesquisa revelou que há algumas trocas de experiência, que poderiam ser
ampliadas, contribuindo para a perspectiva de maior sustentabilidade na gestão do patrimônio
cultural local. A leitura das atas das assembléias propiciou a obtenção de algumas
informações sobre os bens imóveis tombados pelo CONDEPHAAT, as quais extrapolam os
limites deste trabalho.
Retomando o processo de tombamento do Centro Histórico de Bonfim
Paulista, a investigação revelou que, uma vez que o estudo do CTA não foi concluído até
agosto de 2006, os imóveis permanecem em regime de proteção especial. Em que pesem os
elogios do órgão estadual ao procedimento de tombamento conjunto pelo órgão municipal, o
desdobramento desta ação do CONPPAC/RP resultou na aprovação de legislação municipal
alterando a composição e algumas das atribuições do Conselho.
O processo de coleta de dados desta investigação demandou visitas à
Câmara Municipal
73
para pesquisa da legislação municipal relativa ao objeto deste estudo.
Numa dessas visitas, em 23 de fevereiro de 2006, verificou-se a apresentação, na Sessão da
Câmara Municipal de Ribeirão Preto do dia 21 do mesmo mês, por iniciativa do Vereador
Marinho Sampaio, nascido em Bonfim Paulista, do Projeto de Lei Complementar nº
226/2006
74
.
73
Em virtude de alterações no site da Câmara Municipal de Ribeirão Preto, a pesquisa pela internet foi
prejudicada, sendo necessárias visitas pessoais.
74
Anexo J.
187
Lê-se na ementa do projeto de lei: “Dispõe sobre alterações, modificações e
acrescenta expressões legais a Lei 7521 de 17.10.1996 (criação do Conselho de Preservação
do Patrimônio Cultural – COMPPAC) e dá outras providências” (sic). Segundo informações
da Secretaria da Câmara Municipal, o projeto seria submetido às Comissões Permanentes de
Legislação, Justiça e Redação, de Educação e de Finanças, para posterior votação em
plenário.
A informação sobre o projeto de lei, obtida durante a investigação foi
transmitida ao CONPPAC/RP, inicialmente pelo envio de correspondência eletrônica (e-mail)
e posteriormente na Assembléia ordinária de 07 de março
75
. Os Conselheiros não tinham
conhecimento da apresentação do projeto de lei complementar, mas, após a análise das
alterações propostas, concluíram que as mesmas não seriam aprovadas pela Comissão de
Legislação, Justiça e Redação, por contrariarem as disposições da Constituição de 1988.
Posteriormente, constatou-se o equívoco desta conclusão dos Conselheiros,
pois a referida Comissão, em Sessão realizada na Sala das Comissões, no dia 13 de março de
2006, através do Parecer nº 917
76
, manifestou-se favorável à aprovação do projeto. No dia
seguinte, novo parecer desta Comissão, sem numeração, propôs outra redação ao parágrafo
único do artigo 21 da Lei Municipal 7521/1996, tornando confuso o texto da lei, mas
buscando garantir que os processos de tombamento em andamento sejam referendados pela
Câmara Municipal
77
. Incorporando estas alterações, o projeto de lei complementar foi
colocado em pauta para ser votado na Sessão de 21 de março de 2006.
Na mesma data, o CONPPAC/RP realizou uma Assembléia Extraordinária
para discutir a estratégia de enfrentamento da questão, já que o projeto propunha alterações
profundas no modo de atuação do órgão e na própria condução dos processos de gestão do
patrimônio cultural da cidade. A posição dos Conselheiros foi coesa quanto à
inconstitucionalidade da mudança proposta pela Câmara Municipal e deliberaram pela
presença de todos os membros do CONPPAC/RP na Sessão do dia 28 de Março, quando o
projeto de lei seria submetido a votação em segundo turno. O Secretário da Cultura esteve
presente na Assembléia Extraordinária, colocando a impossibilidade de articulação política
pela Secretaria, cabendo ao próprio CONPPAC/RP defender seu posicionamento junto aos
Vereadores.
75
A Ata da Assembléia de 07/03/2006 ainda não foi aprovada e, portanto, não faz parte do corpo de dados
utilizados nesta investigação, mas os elementos do diário de campo elaborado pela utilização da técnica de
observação, complementam os dados referentes ao período de março a agosto de 2006.
76
Anexo L.
77
Anexo M.
188
Três Conselheiros estiveram presentes na Sessão da Câmara do dia 21 de
março e solicitaram verbalmente o direito de manifestação de um representante do
CONPPAC/RP na tribuna, antes da votação do projeto em segundo turno.
A Sessão do dia 28 de Março teve a participação de dezenas de estudantes
do curso de História, representantes das organizações não-governamentais ambientalistas,
moradores de Bonfim Paulista, cidadãos envolvidos com a defesa do patrimônio cultural e
vários Conselheiros do CONPPAC/RP. De um lado, uma faixa defendia o direito
constitucional de propriedade e, de outro, cartazes escritos pelos estudantes universitários
defendiam a importância da preservação do patrimônio histórico, uma cena reveladora do
embate das posições antagônicas sobre o projeto.
Apesar das solicitações feitas na Sessão do dia 21, nenhum Vereador
apresentou o pedido do uso da tribuna, para um representante do CONPPAC/RP, frustrando a
pretendida manifestação do Conselho. Sob muitos protestos e aplausos, enquanto um
Vereador ainda ocupava a tribuna, solicitando a retirada da pauta para discussão do projeto
com os membros do CONPPAC/RP, o projeto de lei foi aprovado em segundo turno,
passando-se para a discussão do próximo item da pauta, enquanto os presentes simplesmente
não conseguiam entender se o projeto havia sido aprovado ou retirado da pauta.
Após algumas manifestações ruidosas, indagando sobre o que havia
efetivamente acontecido, a notícia da aprovação se cristalizou no plenário, revelando a divisão
de sentimentos e impressões quanto à alteração aprovada: os moradores de Bonfim Paulista
comemorando e os demais interessados demonstrando sua indignação quanto à atuação dos
vereadores. O desenrolar dos acontecimentos naquela Sessão da Câmara Municipal
demonstrou a complexidade da compreensão da gestão do patrimônio cultural local, inclusive
por parte daqueles que recebem numerários da sociedade com a missão de legislar a favor do
bem comum.
Dez anos após a promulgação da Lei 7521/1996 e três depois da audiência
realizada pelo Ministério Público, nos autos do inquérito civil nº 0098/2003, o CONPPAC/RP
conseguiu se reorganizar. Formou um grupo interdisciplinar e coeso de Conselheiros
envolvidos na defesa do patrimônio cultural de Ribeirão Preto que, voluntariamente, dedicam
parte significativa de seu tempo às atividades do Conselho.
Durante todo o período de observação das assembléias, a investigação
revelou a dificuldade enfrentada pelos Conselheiros nas ações do CONPPAC/RP,
principalmente pela deficiência da estrutura disponibilizada pela Secretaria Municipal da
Cultura, em todas as gestões administrativas, desde a sua criação, em 1996.
189
Quando se fala da estrutura necessária ao funcionamento do CONPPAC/RP,
entende-se o conjunto de recursos humanos, físicos e financeiros necessários à gestão do
patrimônio cultural de uma cidade como Ribeirão Preto. No entanto, após a aprovação do
projeto de lei nº 0226/2006, o Prefeito Municipal sancionou a lei por silêncio, como lhe
faculta o artigo 43, parágrafo único da Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto (uma
espécie de sanção tácita da lei). Assim, a Lei Complementar nº 2006
78
foi publicada no Diário
Oficial do Município do dia 11 de Maio de 2006. Esta opção do gestor Municipal demonstrou
desconhecimento da legislação constitucional que o obriga a preservar este patrimônio.
O processo desta coleta de dados já estava encerrado, quando foi agendada
uma audiência entre o Prefeito Municipal e os membros do CONPPAC/RP, que se realizou no
dia 12 de Julho, no Palácio Rio Branco.
Estiveram presentes o Prefeito Municipal, Welson Gasparini; o
Coordenador do Corpo Técnico de Apoio, Jorge Alves de Oliveira Neto; seis Conselheiros
titulares: o Presidente do CONPPAC/RP (Conselho de Cultura), a 1ª Secretária,
(COMDEMA), o representante do conjunto das instituições de ensino superior, da Secretaria
da Municipal da Cultura, da Academia Ribeirãopretana de Letras e da OAB; além do
Conselheiro suplente da Secretaria da Municipal da Cultura e da autora deste trabalho, na
qualidade de observadora.
Durante a audiência, que durou cerca de quarenta e cinco minutos, o
Prefeito consultou o texto da Lei 7521/1996, demonstrando pouco conhecimento quanto à
legislação municipal que rege a gestão do patrimônio cultural local. Os Conselheiros
informaram sobre o histórico de funcionamento do CONPPAC/RP e as dificuldades
enfrentadas nos processos de tombamento. Dentre todos os pontos discutidos, o que pareceu
despertar maior interesse do Prefeito foi a informação de que o ato de tombamento é feito por
Decreto do Prefeito Municipal, após o estudo do Corpo Técnico e a deliberação dos
Conselheiros no respectivo processo administrativo, chegando a declarar sua suposição de que
o tombamento era feito por “meia dúzia de pessoas que compareciam às assembléias” (sic).
Além do debate sobre a questão da preservação do patrimônio cultural e das
ações do CONPPAC/RP, os Conselheiros entregaram ao Prefeito Municipal um ofício
79
,
manifestando sua perplexidade e indignação com a aprovação da Lei Complementar nº
2006/2006, além de solicitarem melhorias na estrutura de funcionamento do órgão, a
regulamentação da lei municipal de incentivos fiscais de IPTU e ISS sobre imóveis tombados
78
Anexo D.
79
Ofício nº 0008/2006 – CONPPAC.
190
e maior agilidade nas atividades de competência da Prefeitura, em relação aos processos de
tombamento já apreciados pelo CONPPAC/RP
80
.
Os instrumentos de investigação previstos na metodologia desta pesquisa
foram capazes de revelar o objeto de estudo, fornecendo informações valiosas para a
compreensão da defesa do patrimônio cultural em Ribeirão Preto. A pesquisa documental
pertinente às atas das assembléias e dos processos administrativos, aliada à técnica da
observação sistemática e direta, possibilitou percepção ampla da estrutura e formas de ação do
CONPPAC/RP, permitindo o alcance dos objetivos fixados no início da investigação.
A finalização do processo de coleta de dados utilizou a técnica de entrevista
semi-estruturada, através da aplicação de formulário contendo perguntas abertas e fechadas,
que pudessem tanto caracterizar o perfil dos sujeitos, como proporcionar diálogo aberto sobre
o objeto de estudo. No próximo item, a análise e interpretação destes dados demonstrarão a
relevância da abordagem quanti-qualitativa nesta investigação, revelando informações
importantes sobre a gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto.
80
As Resoluções do CONPPAC/RP emitidas em 2006 ainda não foram publicadas no Diário Oficial do
Município, além dos processos pendentes de publicação de Decreto de tombamento definitivo, listados na Tabela
2.
191
3.3 Análise e Interpretação dos Dados
O conhecimento teórico, exposto nos capítulos 1 e 2, foi experimentado
através do instrumental técnico definido na metodologia deste estudo, inicialmente pela
pesquisa documental com observação sistemática e direta e, num segundo momento, pela
utilização da entrevista semi-estruturada, que forneceu tanto dados quantitativos que
permitiram traçar o perfil dos Conselheiros do CONPPAC/RP, quanto informações
qualitativas a partir dos relatos dos sujeitos selecionados nesta investigação.
A abordagem quanti-qualitativa foi necessária para o desvelar do objeto
deste estudo, pois a complexidade da gestão do patrimônio cultural carece de análises
interdependentes que revelem suas várias facetas. Os instrumentos de pesquisa utilizados
foram integrados entre si, sendo que a observação presencial das assembléias do
CONPPAC/RP, durante todo o processo de coleta de dados, permitiu analisar as ações e a
estrutura do Conselho, mas ao complementar o instrumental com a técnica da entrevista, foi
possível aprofundar alguns aspectos destas ações.
Embora seja de competência exclusiva dos Municípios a gestão do
patrimônio cultural local, juntamente com a sociedade civil, a participação da comunidade
ribeirãopretana nas assembléias do CONPPAC/RP é extremamente reduzida, quando
comparada ao número de habitantes da cidade, como se vê na Tabela 4. Foram analisadas 32
listas de presença anexadas às respectivas atas, perfazendo um total de 448 presentes, o que
representa uma média de 14 pessoas por assembléia.
Uma observação interessante a respeito desta tabela refere-se ao reduzido
número de presentes em relação ao total de assembléias: apenas em uma assembléia, em datas
diferentes, estiveram presentes mais de quinze participantes, o que pode denotar a pequena
participação da sociedade no CONPPAC/RP e a inexistência da percepção social quanto à
importância desta participação. Por outro lado, convém ressalvar que a pauta das assembléias
pode interferir de maneira significativa no número de presentes, em função do interesse que o
tema desperta na comunidade.
192
Tabela 4. Levantamento do número de presentes nas assembléias do CONPPAC/RP,
em ordem crescente de comparecimento
Número de
Pessoas
Presentes*
Datas das Assembléias Analisadas
Total de
Assembléias
8 07/10/2003; 16/03/2004; 20/04/2004; 13/05/2004; 17/05/2005 5
10 19/04/2005; 07/06/2005; 07/02/2006 3
11 19/11/2003; 04/05/2004; 14/12/2004; 08/11/2005 4
12 13/09/2005; 06/12/2005 2
13 27/01/2004; 01/09/2004 2
14 21/10/2003; 02/12/2003; 01/06/2004; 05/07/2005 4
15 13/07/2004; 17/08/2004; 03/05/2005; 02/08/2005; 04/10/2005 5
16 06/04/2004 1
18 05/10/2004 1
19 02/03/2004 1
22 08/06/2004 1
23 03/08/2004 1
24 06/07/2004 1
31 30/11/2004 1
Total Geral 32
* Considerando todos os presentes mencionados nas atas, sem distinção entre conselheiro titular ou
suplente, funcionário público ou visitante.
Além dos dados quantitativos visualizados na mesma tabela, é importante
ter em conta a expressão de cada órgão componente do Conselho perante a sociedade. Na
verdade, cada Conselheiro personifica a instituição que representa, fato que pôde ser
observado tanto presencialmente, quanto no exame dos documentos. Interessante notar que os
visitantes também costumam identificar as organizações a que pertencem, destacando-se a
participação de estudantes universitários e de pós-graduação, associações de bairro,
organizações não-governamentais e proprietários de imóveis.
A representatividade dos órgãos componentes do Conselho, prevista de
forma abstrata no artigo 3º da Lei 7521/1996, foi constatada pela observação presencial das
assembléias do CONPPAC/RP. Ao longo da investigação, foram acompanhadas 21 (vinte e
uma) assembléias, possibilitando ‘mergulhar’ no universo da pesquisa.
Tabela 5. Assembléias observadas presencialmente durante o processo de investigação
Ano Datas das assembléias Total
2003 02/12 1
2004 02/03; 01/06; 06/07; 03/08; 30/11 6
2005 03/05; 07/06; 05/07; 02/08; 13/09; 04/10; 08/11; 06/12 8
2006 07/02; 07/03*; 21/03*; 04/04*; 06/06*; 04/07*; 01/08* 7
Total Geral 21
* Assembléias observadas, porém não computadas na coleta de dados por não terem atas
aprovadas até o final da investigação e, portanto, não incluídas na Tabela 4.
193
Assim como a observação das assembléias, o acompanhamento das ações do
Conselho, no período da pesquisa, permitiu um conhecimento mais próximo do perfil dos
Conselheiros, cuja análise constitui o subitem 3.3.1, enquanto que o resultado das entrevistas
realizadas, encontra-se no subitem 3.3.2, a seguir.
3.3.1 O perfil dos Conselheiros do CONPPAC/RP
A metodologia para o desenvolvimento desta investigação, exposta no item
3.1, definiu a utilização da técnica de entrevista em dois momentos distintos. Num primeiro
momento, aplicando-se formulário estruturado
81
a todos os Conselheiros do CONPPAC/RP,
nomeados pela Portaria nº 1341/2005
82
e, num segundo momento, utilizando os critérios
também descritos no item 3.1, foram selecionados oito sujeitos para contato pessoal e diálogo
aberto, conforme roteiro
83
preestabelecido.
Os sujeitos da investigação, identificados numericamente para facilidade da
exposição, com a indicação do órgão ou entidade que representam, assim como sua área de
atuação profissional, são os que constam na Tabela 6, a seguir.
Tabela 6. Os sujeitos da investigação
Conselheiro
Órgão Componente do CONPPAC/RP
(Portaria 1341/2005)
Qualificação Profissional
1
Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão
Ambiental
Arquiteto e urbanista
2 Secretaria Municipal de Infra-Estrutura Engenheiro civil
3 Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos Não informado
4 Secretaria Municipal da Cultura Agente cultural
5 Conselho Municipal da Cultura Arquiteto e urbanista (Presidente)
6 Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente Arquiteto e urbanista (1º Secretário)
7 Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto Comerciante
8 Ordem dos Advogados do Brasil Advogado
9
Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia
de Ribeirão Preto
Não informado
10 Conjunto das Instituições de Ensino Superior Professor Doutor
11
Federação das Associações de Bairros de Ribeirão
Preto
Não informado
12 Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto Professor Ensino Médio
13 Academia Ribeirãopretana de Letras Microempresário (2º Secretário)
Obs.: As linhas em destaque correspondem aos oito sujeitos selecionados para entrevista.
81
Apêndice A.
82
Portaria publicada no DOM de 11/05/2005. V. Anexo H.
83
Apêndice B.
194
O formulário foi aplicado a dez Conselheiros, que representam 77 % do
universo de componentes do CONPPAC/RP. Por impossibilidade de contato, foram excluídos
da aplicação do formulário os representantes da Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos,
da Associação de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Ribeirão Preto e da Federação das
Associações de Bairros de Ribeirão Preto; em relação a este último, a exclusão também
acabou prejudicando a amostra selecionada para as entrevistas.
A diversidade é importante na composição do CONPPAC/RP. E mais,
defende-se que qualquer alteração da norma de regência do Conselho não poderá descartar a
percepção do legislador de 1996, que deu ênfase adequada ao caráter técnico das instituições
que o compõem. Por sua vez, os órgãos responsáveis pela nomeação dos Conselheiros
também precisam adotar critérios que respeitem o disposto na legislação, indicando
representantes com “conhecimento notório” sobre a preservação do patrimônio cultural.
Enquanto a Tabela 6 permite visualizar as diferentes áreas de atividade profissional dos
Conselheiros, na Figura 1 pode-se observar a predominância de profissionais da Arquitetura e
Urbanismo.
Perfil Conselheiros - Profissão
10%
10%
20%
10%
10%
10%
30%
Comerciante
Microempresário
Professor
Advogado
Agente Cultural
En g e n h e i ro C i vi l
Arquiteto e Urbanista
Figura 1. Profissão dos Conselheiros
No item 3.2, observou-se que a totalidade dos processos de tombamento, ao
longo de toda a existência do CONPPAC/RP, refere-se a bens do patrimônio cultural
edificado. É provável que esta predominância esteja relacionada com a experiência
profissional dos Conselheiros e seus conhecimentos acadêmicos, já que, como se verifica pelo
perfil dos mesmos, 40% são profissionais das áreas de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia
Civil. As tendências contemporâneas conceituam o patrimônio cultural como um conjunto de
bens materiais e imateriais, portanto, preservar a memória do município de Ribeirão Preto vai
195
além do tombamento de prédios históricos, daí a necessidade de outros profissionais no
CONPPAC/RP, como, por exemplo, sociólogos, antropólogos e outros, capazes de ampliar o
campo de ação do Conselho.
A aplicação do formulário permitiu identificar a presença de um agente
cultural entre os Conselheiros.
O agente cultural é um cidadão tanto do poder público (Agentes Culturais Públicos)
como da sociedade civil (Agentes Culturais Comunitários), que se relaciona com as
práticas e ações culturais no município. O agente cultural não é um mero
“administrador” de atividades culturais, mas deve ter uma sensibilidade voltada
para o sócio-cultural, exercendo ativamente sua função de elo de ligação entre o
poder público e as comunidades. Deverá exercer o papel de gestor de processos
culturais da cidade, com capacidade inventiva e formadora de massa crítica.
(BNDES, on-line).
No caso do CONPPAC/RP, sendo o agente cultural representante da
Secretaria Municipal da Cultura, tem condições de atuar como elo entre as ações do Conselho,
o órgão ao qual está vinculado e a comunidade. Pelas próprias características da profissão,
está apto a contribuir com seus conhecimentos para as funções do CONPPAC/RP e ajudar a
promover a educação política da sociedade.
A maior participação de advogados, profissionais do Serviço Social ou
outras áreas das Ciências Sociais e da Educação, das quais, apenas para exemplificar, pode-se
destacar a Pedagogia, História e Geografia, ou seja, uma ampliação do perfil profissional dos
Conselheiros, poderia representar avanços significativos na atuação do CONPPAC/RP. Caso
esta diversidade venha a ser contemplada por uma nova norma, será fundamental que o
legislador municipal observe critérios que garantam um perfil técnico e multidisciplinar, ao
mesmo tempo em que consagre o conhecimento não formal e a ampliação da participação
comunitária.
O levantamento do perfil também possibilitou identificar a faixa etária e o
estado civil dos membros do CONPPAC/RP, como pode ser visualizado na Tabela 7. Com
base nestes dados, observa-se que a média de idade dos atuais Conselheiros situa-se na faixa
de 40 a 50 anos (Figura 2), enquanto o percentual dos casados atinge 90% (noventa por cento)
do total (Figura 3). É interessante observar que a maior participação de organizações não-
governamentais e de movimentos estudantis secundaristas e universitários poderia representar
uma alteração deste perfil, pois, de modo geral, são segmentos constituídos por pessoas de
uma faixa etária mais baixa. Pode-se afirmar que a combinação harmônica da experiência da
maturidade com a impetuosidade da juventude, via de regra, permite vitórias mais
consistentes nas ações coletivas.
196
Tabela 7. Conselheiros do CONPPAC/RP: idade e estado civil
Conselheiro Idade Estado Civil
1 39 Casado
2 56 Casado
3 44 Casado
4 50 Solteiro
5 57 Casado
6 60 Casado
7 50 Casado
8 53 Casado
9 35 Casado
10 44 Casado
Perfil dos Conselheiros - Idade
39
56
44
50
57
60
50
53
35
44
0
10
20
30
40
50
60
70
12345678910
Conselheiros
Idade
Figura 2. Idade dos Conselheiros
Perfil dos Conselheiros - Estado civil
90%
10%
Casado
Solteiro
Figura 3. Estado civil dos Conselheiros
197
Sob a perspectiva de que a família constitui o núcleo primário de
organização da sociedade, será que as ações do CONPPAC/RP são discutidas pelos
Conselheiros em seus lares? Será que a educação política é transmitida pelos Conselheiros à
sua família e contribui para a construção de sociedades sustentáveis a partir do lar? Se, por um
lado, os dados quantitativos obtidos pela aplicação do formulário permitiram traçar o perfil
dos Conselheiros, tal como pretendido no início desta investigação, por outro, levou à
descoberta de outros ângulos passíveis de análise, descortinando o início de um longo
caminho a ser percorrido na compreensão do objeto deste estudo.
O formulário também forneceu informações quanto ao grau de instrução dos
Conselheiros. A escolaridade dos responsáveis diretos pelas ações do CONPPAC/RP provoca
reflexos na sua atuação. Ainda que as relações internas no Conselho estabeleçam trocas e
gerem educação, o conhecimento formal sobre as questões que envolvem a preservação do
patrimônio cultural constitui importante instrumento para a eficiência da gestão do Conselho e
a educação política da sociedade. A Tabela 8 mostra a predominância do nível superior
completo e os diferentes tipos de pós-graduação.
Tabela 8. Conselheiros do CONPPAC/RP: formação escolar
Conselheiro Escolaridade Pós-Graduação
1 Ensino Médio Nenhum
2 Superior Especialização (2)*
3 Superior Latu Sensu (2)*
4 Superior Nenhum
5 Superior Doutorado
6 Superior Latu Sensu
7 Superior MBA
8 Superior Especialização (3)*
9 Superior Latu Sensu
10 Superior Incompleto Nenhum
* Os números entre parênteses referem-se à quantidade de pós-gradua-
ções cursadas.
Os dados acima permitem perceber duas questões interessantes. Embora a
maioria dos Conselheiros tenha nível superior completo, os tipos de pós-graduação, quando
cursados, têm carga horária com aprofundamento teórico e prático menor do que o permitido
para o nível de Strictu Sensu, seja em grau de mestrado ou de doutorado. As Figuras 4 e 5, a
seguir, permitem visualizar melhor estes dados.
198
Perfil dos Conselheiros - Escolaridade
10%
80%
10%
Ensino Médio
Superior Completo
Superior Incompleto
Figura 4. Escolaridade dos Conselheiros
Perfil Conselheiros -s-graduação
30%
20%
30%
10%
10%
Nenhum
Especialização
Latu Sensu
MBA
Strictu Sensu
(Doutorado)
Figura 5. Pós-Graduação dos Conselheiros
Ainda que 80% dos Conselheiros tenham curso superior completo, verifica-
se que 30% não têm formação posterior à graduação, além do pequeno percentual de Strictu
Sensu. Através do aprofundamento teórico acadêmico, o conhecimento científico é importante
e auxilia os Conselheiros na gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto.
Além do conhecimento científico, a preservação do patrimônio cultural de
Ribeirão Preto pode ser enriquecida pelo conhecimento não formal, daí o interesse em dados
que fornecessem informações sobre o tempo de residência dos Conselheiros na cidade, além
do tempo de participação no próprio Conselho. Tais informações podem ser visualizadas na
Tabela 9.
199
Tabela 9. Conselheiros do CONPPAC/RP: tempo de residência em Ribeirão Preto
e tempo de participação no Conselho
Conselheiro
Tempo de residência
em Ribeirão Preto
Tempo de participação
no CONPPAC/RP
1 16 anos 9 meses
2 Desde o nascimento Desde a fundação
3 19 anos 3 anos
4 48 anos 3 anos
5 Desde o nascimento 2 anos
6 50 anos 1 ano
7 33 anos 8 meses
8 Desde o nascimento 9 meses
9 16 anos 2 anos
10 44 anos 3 anos
O tempo de residência dos Conselheiros do CONPPAC/RP em Ribeirão
Preto constituiu dado interessante, revelando que 40% (quarenta por cento) dos sujeitos
residem na cidade desde o nascimento e boa parte há mais de duas décadas, o que facilita o
conhecimento de fatores históricos locais e, muitas vezes, auxilia os Conselheiros na
formação de convencimento sobre o tombamento, como se visualiza na Figura 6.
Perfil Conselheiros - Tempo de residência em RP
40%
20%
10%
10%
10%
10%
Desde que nasceu
16 anos
19 anos
33 anos
48 anos
50 anos
Figura 6. Tempo de residência dos Conselheiros em Ribeirão Preto
Os últimos dados fornecidos pelo formulário, referentes ao tempo de
participação dos Conselheiros no CONPPAC/RP, também constantes da Tabela 9, revelaram
que 50% (cinqüenta por cento) dos sujeitos participam do Conselho entre 2 e 3 anos,
200
conforme se visualiza na Figura 7, mas, considerando que a criação do Conselho ocorreu em
1996, pode-se considerar bastante recente a participação dos atuais Conselheiros.
Perfil Conselheiros - Tempo de participação no
CONPPAC/RP
10%
10%
20%
10%
20%
30%
Desde a fundação
8 meses
9 meses
1 ano
2 anos
3 anos
Figura 7. Tempo de participação dos Conselheiros no CONPPAC/RP
É de se lembrar, também, que este aspecto guarda relação com a disposição
legal quanto ao tempo dos mandatos dos Conselheiros: tratando-se de pessoas indicadas pelos
órgãos e entidades constituintes do CONPPAC/RP, sua permanência na função, por mais de
dois anos (prazo legal dos mandatos), sempre dependerá do alvitre das instituições que
representam. Esta observação reforça a colocação anterior, no tocante à necessidade de
adoção de critérios técnicos para a escolha dos representantes, de modo a evitar a exclusão de
participantes de excelente formação e interesse, evitando também as indicações casuísticas e
aleatórias, ou, pior, movidas por interesses que escapam à esfera estritamente técnica.
Os dados mostrados pela Tabela 9 e pela Figura 7 auxiliam a compreensão
das dificuldades enfrentadas na operacionalização do ordenamento jurídico existente, já que,
quanto maior o tempo de participação, maior o contato e conhecimento da legislação.
Este quadro leva a crer que uma alteração legislativa, no sentido de estender
o tempo de mandato dos Conselheiros para um mínimo de três anos, por exemplo, poderia ser
extremamente vantajosa, com ganhos de eficiência do trabalho por eles desempenhado. Uma
outra alternativa, igualmente interessante, seria a de legalmente garantir, na estrutura do
CONPPAC/RP, a constituição de um setor permanente de assessoria jurídica e administrativa,
de modo a suprir as naturais carências de conhecimentos específicos dos Conselheiros,
especialmente se o quadro vier a ser ampliado, como atrás referido.
Os relatos que serão analisados no subitem 3.3.2 expressam as limitações na
atuação dos Conselheiros, causadas pelo desconhecimento do ordenamento jurídico, enquanto
201
sistema hierarquicamente organizado, além de outros dados qualitativos importantes no
desvelar do objeto deste estudo.
3.3.2 A fala dos sujeitos selecionados para a investigação
O perfil dos Conselheiros do CONPPAC/RP permitiu conhecer dados
quantitativos que influenciam as ações do Conselho, na medida em que a atuação profissional,
a formação acadêmica, o tempo de residência em Ribeirão Preto e o tempo de atuação no
CONPPAC/RP geram conseqüências nesta atuação. No entanto, optou-se pela abordagem
quanti-qualitativa, capaz de trazer mais subsídios à complexidade da investigação, pois a
simples análise estatística das variáveis não seria suficiente para desvendar o objeto de estudo.
Após a aplicação do formulário estruturado e levantamento do perfil dos
Conselheiros, foram agendadas entrevistas individuais com os sujeitos selecionados e
estabelecido diálogo aberto, através de três questões genéricas, conforme roteiro prévio
84
: a)
quais as atividades do CONPPAC/RP?; b) qual a sua opinião sobre o ordenamento jurídico
em defesa do patrimônio histórico e cultural? e c) como é estabelecido o diálogo entre o
CONPPAC/RP e a sociedade civil?
Com autorização expressa de cada um dos sujeitos, as entrevistas foram
gravadas, o que permitiu fidedignidade aos depoimentos e qualidade no manuseio dos dados.
Estas entrevistas
85
foram extremamente valiosas para se extrair uma síntese do pensamento do
CONPPAC/RP quanto às diversas questões abordadas neste estudo.
Quanto à primeira questão, sobre as atividades do CONPPAC/RP, as
respostas permitiram a análise dos limites e possibilidades das ações dos Conselheiros na
gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto. Soou unânime, entre os Conselheiros, o
sentimento de responsabilidade quanto ao comparecimento às assembléias mensais do
CONPPAC/RP. Como exposto anteriormente, até o ano de 2003, o Conselho tinha problemas
para alcançar o quórum necessário às deliberações sobre tombamento. Quase todos os
Conselheiros expressaram o comprometimento com a participação nas assembléias. O relato a
seguir expressa este dado, ao mesmo tempo em que levanta a questão dos procedimentos
internos do Conselho:
84
Apêndice B.
85
Para contornar o caráter informal do diálogo aberto e garantir o sentido das falas, foi necessário, em algumas
delas, fugir à literalidade da linguagem coloquial, sem, contudo, desrespeitar a pureza do conteúdo.
202
O CONPPAC se reúne mensalmente em reuniões ordinárias e, se for o caso,
algumas extraordinárias. Internamente, o CONPPAC tem um trabalho de
recebimento de processos, de avaliação preliminar para serem colocados nas
reuniões, discutir o tombamento provisório, responder ofícios de entidades, do
Ministério Público. (Conselheiro nº 6).
Interessante observar, nesta fala, a separação das atividades do Conselho
entre as assembléias e os procedimentos internos. Sem dúvida, a própria legislação municipal
estabelece uma Diretoria do Conselho (composta por um presidente e dois secretários), bem
como determina que a Secretaria Municipal da Cultura forneça a infra-estrutura necessária ao
funcionamento do CONPPAC/RP. No entanto, na maioria das vezes, as ações dos
Conselheiros não componentes da Diretoria resumem-se à participação nas assembléias, sem
qualquer envolvimento com outras atividades, como a tramitação dos procedimentos
administrativos de tombamento, vistorias técnicas, ações envolvendo a educação da sociedade
ou, ainda, mobilização para exigência de medidas necessárias, por parte dos órgãos públicos.
Também não foi mencionada, nas entrevistas, a existência de ações do
CONPPAC/RP referentes à organização ou participação em treinamentos relacionados com a
preservação do patrimônio cultural. Ao contrário, a inexistência de treinamento dos
Conselheiros foi mencionada em um dos relatos:
Eu acho que falta um treinamento para os Conselheiros. No momento em que eles
assumem, talvez fosse interessante ter essa cartilha do CONPPAC. O que é
preservar? O que a gente quer preservar? Como vai preservar? Pelo menos esta
introdução eu acho que está faltando ainda. (Conselheiro nº 6).
De acordo com o relato, a formação teórica dos Conselheiros precisa ser
vista como ferramenta de gestão do patrimônio cultural de Ribeirão Preto. Além do que, a fala
traduz a inexistência de diretrizes nas atuais ações do CONPPAC/RP, ou seja, não há
consenso sobre o que deve ser preservado, nem tampouco como preservar. Ao mencionar que
os Conselheiros não recebem qualquer orientação quando tomam posse, deixa claro que a
administração do CONPPAC/RP depende do conhecimento prévio que os Conselheiros
tenham sobre a matéria.
Muitas vezes, este conhecimento prévio não é suficiente para alcançar a
eficiência na gestão do patrimônio cultural, tornando limitadas as ações do Conselho. Outro
relato exemplifica este raciocínio:
Nós temos certas dificuldades. A própria legislação do CONPPAC, nosso
regimento interno, muitas vezes nós não sabemos até que ponto podemos ir. Então,
acho que a lei tem que ser melhor adequada, para ser obedecida e nós temos que
prestar mais atenção a essa legislação. (Conselheiro nº 10).
203
No tocante à segunda questão formulada, convém registrar,
preliminarmente, que as observações presenciais das assembléias e a análise das atas haviam
fornecido dados sobre as dificuldades quanto à operacionalização do ordenamento jurídico.
Durante as entrevistas, foi possível verificar o pensamento dos Conselheiros sobre o quanto o
ordenamento jurídico acrescenta ou prejudica em relação à defesa do patrimônio cultural.
Com exceção do representante da OAB – Seção de Ribeirão Preto, os Conselheiros ouvidos
foram unânimes quanto à sua dificuldade de compreensão da norma jurídica, mas, por outro
lado, expressaram o entendimento de que a lei em vigor é suficiente para a preservação do
patrimônio cultural. Um dos relatos condensa esta percepção: “A lei é generosa, mas é
desobedecida, não apenas pelas brechas, mas por nossa mentalidade, que está aqui em
Ribeirão exemplarmente povoando a nossa Câmara Municipal.” (Conselheiro nº 10).
As entrevistas ocorreram após a aprovação da Lei Complementar nº
2006/2006, exposta nos itens 2.4 e 3.2, daí a referência à atuação da Câmara Municipal de
Ribeirão Preto. No entanto, para esta análise, torna-se mais interessante refletir sobre a
“generosidade” atribuída à legislação, em contraposição à desobediência da mesma. Ao longo
da construção teórica, muito se refletiu quanto às relações entre a norma abstrata e a realidade
concreta. O relato expressa claramente esta conflituosa relação, já que, além de eventuais
lacunas na lei, há que se enfrentar as maneiras de pensar que conduzem ao descumprimento
da legislação. E aqui procede outra reflexão: o fato é cultural.
Na esteira dos comentários sobre a legislação, a maioria dos Conselheiros
abordou a precariedade da estrutura funcional do Conselho, o que inclui a já mencionada
questão da assessoria. Verificou-se que a Secretaria disponibiliza uma funcionária para esta
tarefa, como se constata no seguinte relato:
Existe uma funcionária que é colocada à disposição do Conselho, para fazer
recebimento de telefonemas, dar andamento burocrático aos processos, por
orientação sempre dos membros da Diretoria. Então, ela simplesmente dá um
apoio, mesmo, de agente administrativo. (Conselheiro nº 4).
Durante todo o processo de coleta de dados, identificou-se que uma das
maiores dificuldades dos Conselheiros encontra-se no trâmite administrativo dos processos de
tombamento. Ainda que a Lei 7521/1996 trate genericamente deste procedimento, parte da
legislação de Direito Administrativo aplica-se aos processos de tombamento, o que dificulta
sobremaneira as ações dos Conselheiros, principalmente os representantes da sociedade civil.
Este dado encontra-se expresso no seguinte relato: “Agora veio uma secretária, que não tem
204
conhecimento do trâmite burocrático dos processos e nós, como sociedade civil, também não
temos este conhecimento.” (Conselheiro nº 6).
As dificuldades na compreensão da legislação que, seguramente,
comprometem a eficiência da gestão do patrimônio cultural da cidade, e os obstáculos
existentes nas relações entre o CONPPAC/RP e o Executivo Municipal podem ser observadas
de forma condensada no relato a seguir:
Não estamos entendendo bem o que o Executivo entende a respeito do próprio
Conselho que criou, nós estamos tendo dificuldade de saber até o tempo de
mandato ou quando é a eleição. O Conselho tem a identidade que nós demos nestes
últimos dois anos, e esta identidade está conflitando com a legislação. Por que?
Porque o nosso entusiasmo e a nossa maneira de fazer a leitura da importância deste
momento, está muitas vezes esbarrando no que está escrito, e então deixamos de
concretizar alguma situação que nos poderá ser cobrada mais tarde. E ficamos
presos ao rigorismo da leitura de um Executivo limitado. Para o Executivo, hoje, a
fotografia do CONPPAC é 3x4; eu queria que ela fosse 30x60, mas não vamos
conseguir, se, como membros, não trabalharmos para isto. Porque, na verdade, nós
é que estamos fazendo o Conselho evoluir. E a mudança legislativa terá que
acompanhar a maturidade que o CONPPAC está adquirindo. (Conselheiro nº 8).
Este relato demonstra a necessidade de lucidez nas relações entre o
Conselho e a Prefeitura, ou seja, se, por um lado, o Executivo Municipal não consegue
compreender a magnitude das ações do CONPPAC/RP, por outro, os próprios Conselheiros
precisam se convencer sobre o seu papel na defesa do Conselho e da gestão do patrimônio
cultural junto ao próprio poder público.
Outro dado interessante, extraído deste relato, é o entusiasmo dos
Conselheiros com as ações do CONPPAC/RP, as quais, muitas vezes, esbarram nas
dificuldades decorrentes do desconhecimento da legislação. Enquanto os Conselheiros ficam
discutindo questões administrativas, como, por exemplo, qual o tempo de mandato, se o
regimento está aprovado ou não e outras questões procedimentais, os valores, crenças e
significados da preservação da memória ficam relegados a um segundo plano, malgrado seja
esta a razão primária da existência do CONPPAC/RP.
Indiscutivelmente, memória, educação e cidadania formam o tripé da
preservação do patrimônio cultural, mas como se pode refletir sobre a gestão sustentável deste
conjunto de bens representativos, se os Conselheiros estão mais ocupados com questões
procedimentais, do que com a discussão dos valores a serem preservados? Mais do que isto,
os membros do CONPPAC/RP precisam dialogar abertamente com a sociedade civil e
demonstrar a importância da preservação do patrimônio cultural na construção de sociedades
sustentáveis.
205
A última pergunta do roteiro das entrevistas buscou esclarecer como pode
ser estabelecido este diálogo. Os relatos expressaram que o entrosamento do CONPPAC/RP
com a sociedade civil e a divulgação de suas ações se dão, majoritariamente, através dos
veículos de comunicação de massa. Um dos relatos resume claramente o fato: “Acho que a
imprensa é que está mais levando isto para a população.” (Conselheiro nº 7).
A comunicação de massa é uma característica do século XXI, mas sua
utilização deve ser complementar às ações educativas diretas, caso contrário corre-se o risco
de estimular o processo de constrangimento que existe, ainda hoje, entre o CONPPAC/RP e a
sociedade. Alguns relatos permitem perceber a falta de compreensão da sociedade quanto ao
trabalho do Conselho:
É um trabalho de alta responsabilidade social, mas que não está sendo entendido
pela comunidade como algo realmente importante. Sabemos até que muitos nos
consideram malucos, por acharem que queremos fazer tombamento de tudo,
atrapalhando o crescimento da cidade, a modernidade, a melhora das condições de
vida, quando, na verdade, não é nada disso. (Conselheiro nº 5).
Não são apenas os mais ricos que vêm fazendo restrição à lei, existem outras
esferas mais poderosas, ligadas à dominação política e social, que vão pelo mesmo
caminho. Os proprietários fazem uma grande restrição. Não entendem, não querem
ouvir, não percebem que o pedido do tombamento não significa restrição à
propriedade, tornam-se surdos para a generosidade da lei. A lei não quer tirar a
propriedade, isto ninguém quer ouvir. Nós estamos roucos de tanto falar sobre isto.
Acho que nós não estamos sendo eficazes quanto à educação. Creio que nós temos
que sistematizar o nosso trabalho. Estamos falando de uma cartilha há muito tempo,
mas esta cartilha não é feita, uma coisa muito morosa. As entrevistas que nós
estamos dando, aqui e ali, não surtem efeito. Para começar, o Prefeito não nos
escuta. O Secretário da Cultura não intervém de uma forma adequada junto ao
Prefeito. Existem algumas confusões conceituais na questão de cultura, que
precisam ser resolvidas. A educação patrimonial é fundamental. (Conselheiro nº
10).
Os meios de comunicação transmitem informações à sociedade, mas, por
sua própria característica, ao mesmo tempo em que contribuem para o debate, carecem de
conhecimento teórico sobre a questão do patrimônio cultural. A maior interação entre as ações
do CONPPAC/RP e as entidades que representam a sociedade na gestão e defesa deste
patrimônio pode gerar maiores possibilidades de educação da sociedade civil. A visão
desenvolvimentista, incapaz de preservar a memória da cidade, e os interesses da especulação
imobiliária dificultam as práticas sustentáveis e representam um dos principais desafios do
Conselho. A educação e a maior participação da sociedade civil constituem estratégias
necessárias à melhoria da gestão do patrimônio cultural local. Os sujeitos demonstraram a
percepção da importância do CONPPAC/RP na educação da sociedade, como sintetiza o
206
seguinte relato: “Acho que o nosso trabalho no Conselho também tem que partir para este
lado, da educação patrimonial”. (Conselheiro nº 1).
Ainda que a questão da educação seja fundamental na preservação do
patrimônio cultural e que os Conselheiros tenham esta percepção, a investigação revelou certo
descompasso entre o pensamento e a prática. Na verdade, nem a Secretaria Municipal da
Cultura, nem os Conselheiros mobilizam esforços consistentes na elaboração de estratégias
para a educação da sociedade.
No item 2.2, quando se tratou das organizações sociais e da análise
foucaultiana do poder, concluiu-se pela possibilidade de formação de saberes através da
participação da sociedade na gestão urbana. No entanto, apenas um dos relatos expressou esta
percepção: “Toda vez que eu saio de uma reunião, eu acho que aprendi alguma coisa.”
(Conselheiro nº 7).
O CONPPAC/RP deve atuar na educação política da sociedade e, para tanto,
precisa estabelecer estratégias para melhorar o seu diálogo com ela, contribuindo para a
compreensão das ações de preservação do patrimônio cultural. O Conselho poderia,
estrategicamente, atuar em três linhas de frente: estimular a participação da comunidade nas
assembléias, utilizar os meios de comunicação de massa para o esclarecimento da população
em geral e desenvolver ações educativas fora do cotidiano do CONPPAC/RP, como, por
exemplo, palestras em escolas, universidades, sindicatos e associações de bairro.
Outra possibilidade interessante seria estimular a troca de informações e
saberes entre o CONPPAC/RP e as entidades que o compõem. Na prática, além da
participação dos Conselheiros, na qualidade de representantes dessas entidades, observou-se
pouca, senão nenhuma, integração entre ambos. Em virtude disto, além de perder
oportunidades de maior contribuição desses órgãos nas ações do CONPPAC/RP, há que se
pensar sobre a legitimidade desta representação. Um dos relatos exprimiu esta preocupação:
Uma crítica que eu faço em relação aos Conselhos: apesar do amadurecimento e do
perfil correto, os sujeitos ainda são pouco representativos. Por exemplo, acho que
ninguém sai de uma reunião do CONPPAC e procura seus pares para discutir todas
as situações que se colocam internamente. Parece-me que os membros do
CONPPAC sentam-se e definem de acordo com suas idéias. Felizmente, nós temos
a sorte de participar de uma gestão onde as pessoas têm bom senso, são
profissionais, mas, de uma forma geral, nos Conselhos, isto não acontece. As
pessoas representam uma entidade, mas não dão retorno à mesma. Elas
comparecem, dão sua opinião, falam, decidem, discutem e, às vezes, quando se
manifestam não é para seus pares, mas para a imprensa. (Conselheiro nº 4).
O relato acima revela uma opinião importante sobre a atuação dos
Conselhos Municipais em geral. Através de uma postura crítica, o sujeito aborda um ponto
207
fundamental, ao questionar a atuação dos Conselheiros do CONPPAC/RP, no tocante ao
compartilhamento das informações com suas entidades de origem, o que remete ao
questionamento sobre a própria representatividade dos Conselheiros, que se afigura como
uma via de mão dupla, condição para que ela se expresse com eficácia.
Outros relatos indicam que estas comunicações são feitas informalmente
durante reuniões gerais das entidades que representam, ou quando questionados sobre algum
caso específico.
A postura crítica também expressa a importância da formação individual dos
Conselheiros escolhidos pelas entidades, tanto no sentido da cultura acadêmica, quanto de
discernimento. Como revela outro relato, por se tratar de entidades expressivas, as escolhas
dos representantes devem seguir critérios técnicos capazes de garantir uma representação à
altura.
Tenho a impressão de que os membros do Conselho realmente têm este nível
porque cada entidade faz a indicação de um profissional que ela reputa como
efetivamente representante daquele segmento. E talvez por este motivo, acabe se
formando um grupo de intelectuais ou de formados em grau universitário, não
propositadamente, mas circunstancial, porque, na verdade, as entidades são
instituições de peso, que a comunidade tem como fonte de referência social. Então,
eu acho muito importante a participação, mas não sou elitista. Acho extremamente
importante a oportunidade de convivência e troca de idéias com pessoas de preparo
formalizado menor, cuja vivência é altamente produtiva. (Conselheiro nº 8).
O perfil dos Conselheiros forneceu dados quanto à escolaridade dos
representantes do CONPPAC/RP, verificando-se que 80% dos Conselheiros têm curso
superior completo. Assim como já observado nas atas de assembléias, as entrevistas
revelaram a percepção sobre a importância da alteração da lei municipal para ampliar a
representatividade do Conselho e integrar outras entidades à atual composição. O relato
anterior acrescenta um dado importante a ser considerado nesta possível e desejada alteração
da legislação, que pode representar uma modificação do perfil traçado nesta investigação.
Acompanhando os debates contemporâneos da Historiografia e os
questionamentos quanto ao uso da História como instrumento de dominação, bem como a
valorização mundial dos conhecimentos tradicionais na construção de sociedades
sustentáveis, os sujeitos revelaram a importância da participação diversificada no
CONPPAC/RP. Ao mesmo tempo em que o conhecimento técnico é importante e deve ser
implementado de forma interdisciplinar, uma representação diversificada, oriunda dos mais
diversos extratos sociais, é uma necessidade imperiosa para a discussão profícua da
importância histórica de bens significativos de uma sociedade. Vários relatos expressam um
208
discurso coeso quanto à ampliação quantitativa e qualitativa dos representantes do
CONPPAC/RP:
Claro que é necessária a participação da população em geral. Acho que
determinados setores têm que estar presentes, as ONGs, por exemplo, são
importantes, determinadas instituições da cidade também podem ajudar, justamente
o pessoal sem curso superior, para dar mais representatividade. (Conselheiro nº 1).
Acho que é importante que a comunidade, não necessariamente de nível superior,
entre na formação do Conselho. Mas acho que boa parte deveria ser, pois são
pessoas que têm que enfrentar uma série de contestações. Muitas vezes, vários
setores da sociedade fazem questionamentos, quando então esta formação é
importante para a resposta. (Conselheiro nº 10).
Na verdade, na época, não havia tanta participação popular quanto hoje. Nós
saímos da faculdade no momento em que o regime da ditadura era absolutamente
dominante. Às vezes, eu me pergunto se a ditadura teria uma vantagem sobre o
tempo atual, porque na ditadura a gente sabia o que podia. Hoje não há este limite,
mas você não pode nada, porque, na verdade, tudo é tão subvertido, tudo tão mal
lido, tão corrompido que o idealista acaba desaparecendo. Às vezes parece até o
“bobo da corte”, querendo realizar utopias. Mas hoje, pela minha maneira de vida,
pela minha maturidade profissional, pela minha vivência, estou absolutamente
convencida de que se não houver uma participação popular em todos os níveis, não
haverá uma realidade. (Conselheiro nº 8).
Estas falas fornecem o subsídio para finalizar a análise quanto à necessidade
de ampliar a representatividade do CONPPAC/RP, pois deixaram clara a percepção quanto ao
amadurecimento do Conselho e da própria sociedade. Por um lado, após vinte anos
consecutivos de regime democrático, estabilização econômica e desenvolvimento tecnológico,
a sociedade brasileira começa a alterar seus antigos padrões de subserviência ao Estado e a
buscar instâncias de participação na gestão pública, e Ribeirão Preto não foge à regra. Por
outro lado, superadas as dificuldades iniciais enfrentadas pelo CONPPAC/RP até 2003, a
permanência de alguns representantes em mandatos consecutivos permitiu-lhes condições de
melhor operacionalizar o ordenamento jurídico e os procedimentos administrativos, podendo
se ocupar mais detidamente com as discussões sobre os valores, crenças e significados da
história de Ribeirão Preto, o que torna mais enriquecedora e produtiva a participação da
sociedade nas assembléias.
Outro dado interessante pode ser observado no último relato. O sujeito
identifica os Conselheiros como “bobos da corte” e narra as dificuldades dos “idealistas” na
sociedade contemporânea. A crise de paradigma da atual sociedade foi amplamente debatida
nos capítulos 1 e 2, e esta situação demonstra claramente a oposição entre a cultura dominante
e a emergente, narrada por Fritjof Capra (1997), ao falar do “ponto de mutação”. Interessante
observar, ainda, que o próprio sujeito, de certa forma, conclui o raciocínio “à Capra”. Ao
209
narrar que toda a sua experiência de vida conduz à conclusão sobre a necessidade de
participação popular para se concretizar a realidade, demonstra a percepção sobre a
interdependência entre os seres, ou seja, os mais bem formados pelos meios científicos estão
interligados aos mais simples e sem formação escolar, num processo de troca em que as
experiências se completam, não se excluem.
Os Conselheiros têm consciência da importância da memória na construção
de sociedades sustentáveis. Ainda que não utilizando a expressão “sustentabilidade”,
demonstraram-se sensíveis quanto à preservação do patrimônio cultural e preocupados quanto
aos rumos da política patrimonial em Ribeirão Preto, que não podem ser dissociados dos
rumos que a própria sociedade há de tomar em direção ao futuro, sem perder os referenciais
do passado. Eis alguns relatos:
Eu acho, no caso específico de Ribeirão Preto, que as pessoas que conhecem a
história da cidade têm que urgentemente tomar uma posição. Como já falei em
várias ocasiões, para a mídia ou para pequenos grupos em palestras, nós estamos
perdendo referenciais históricos importantíssimos. E não só na questão das
edificações, como também na questão da memória. (Conselheiro nº 10).
A história de um povo, a história de uma cidade, a história de vida, não é como
entrar num antiquário, comprar alguma coisa e colocar na parede. Não é criar uma
medalha e homenagear alguém como cidadão ribeirãopretano, isto não diz nada. Eu
preciso passar para os meus filhos, para os meus netos, para a descendência (eu não
sei quantas gerações virão), a história da sua origem. Uma pessoa que não tem
origem precisa se cuidar, porque senão acaba dando um tiro na cabeça. Não tem
condição de saber de onde veio, para onde vai, qual é o seu sentido, qual é o seu
destino, qual é a sua vocação. (Conselheiro nº 8).
Ainda quanto à análise da construção de sociedades sustentáveis,
acompanhando o conceito contemporâneo de patrimônio cultural, verificou-se que os
Conselheiros compreendem o patrimônio natural como parte integrante daquele. O relato a
seguir sintetiza este pensamento: “Temos que garantir não só o patrimônio edificado, mas
também o natural, por uma questão de qualidade de vida para as gerações futuras.”
(Conselheiro nº 6).
Em 2006, Ribeirão Preto comemorou cento e cinqüenta anos da data de sua
fundação, considerada oficialmente como sendo 19 de junho de 1856. O sesquicentenário foi
comemorado por vários tipos de movimentos culturais: teatro, música, literatura, dança,
fotografia, entre outros. Pode-se perguntar: se não houver um movimento forte e bem
intencionado para a preservação da memória local, o que haverá a comemorar, no futuro? É
possível conceber a realização de festejos desta natureza, quando o patrimônio representativo
do passado é relegado ao segundo plano, por inércia ou por falta de condicionamento cultural
210
das pessoas envolvidas? De qualquer modo, a diversidade das atividades realizadas nas
comemorações reflete bem a sociedade ribeirãopretana: heterogênea e, em conseqüência,
complexa.
O processo de coleta, de análise e de interpretação dos dados desta pesquisa
desdobrou parte desta complexidade, mas este é apenas o início de uma longa caminhada. A
riqueza dos dados representou uma das maiores dificuldades na investigação, pois todos
exprimiam significados, valores e crenças de parte da sociedade, retratada no Conselho por
indivíduos que legalmente aceitaram a investidura para definir o que é patrimônio cultural
local e atuar em sua defesa.
Muitos são os desafios a serem enfrentados pelo CONPPAC/RP, pelo
Executivo Municipal e pela própria sociedade na gestão do patrimônio cultural de Ribeirão
Preto e a investigação revelou alguns limites e possibilidades que podem auxiliar na adoção
de estratégias que tragam melhorias a esta gestão, num futuro que, espera-se, seja breve.
211
CONCLUSÃO
212
A participação da sociedade civil organizada na gestão do patrimônio
cultural da cidade de Ribeirão Preto pode ser analisada sob diversos ângulos, daí a
importância que teve a adoção do instrumental técnico desta investigação, para revelar os
aspectos primordiais, inerentes à defesa deste patrimônio.
A pesquisa bibliográfica permitiu a construção do conhecimento teórico,
exposto nos capítulos 1 e 2, necessário para a compreensão dos dados analisados no capítulo
3, conduzindo à conclusão desta pesquisa científica. Como mencionado na introdução, mesmo
antes da aprovação da aluna pesquisadora no processo de seleção do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social da UNESP, em 2004, a preservação do patrimônio cultural
passou a integrar seu cotidiano desde fevereiro de 2000, em razão das atividades
desempenhadas na ONG Vivacidade.
O conhecimento teórico, adquirido ao longo da investigação, trouxe
compreensão sobre o papel do Estado e da sociedade, tornou-se fundamental para o
enfrentamento da angústia inicial que motivou o interesse nesta pesquisa: a complexa relação
entre o direito abstrato contido na norma escrita e a realidade concreta. Num contexto de
economia globalizada e população mundial predominantemente urbana, refletir sobre os
conceitos de cidadania implica compreender as relações entre Estado e sociedade.
O desenvolvimento tecnológico transformou estas relações e, atualmente,
são muitos os exemplos da maior interação entre esses dois pólos, utilizando os variados
meios de comunicação, que transformaram o cotidiano contemporâneo. Por outro lado, tanta
tecnologia ainda não foi capaz de recuperar e manter o equilíbrio ecológico do planeta,
comprometendo a sobrevivência das futuras gerações. A crise ambiental vem gerando
incessantes debates sobre a necessidade de uma nova visão de mundo.
No século XXI, a noção de tempo modificou-se substancialmente e, como
poucos da espécie humana vivem cem anos, percebe-se um senso comum em chamar de
antigo qualquer coisa, pessoa ou acontecimento com mais de um século. No entanto, quando
se pensa na história da humanidade, este mesmo período pode ser considerado “ontem”. Os
humanos, classificados como a espécie Homo sapiens (expressão latina que significa “homem
racional”), surgiram no planeta há cerca de cento e cinqüenta mil anos. Ao conviverem em
bandos, aumentaram suas chances de sobrevivência aos ataques de predadores, levando
nossos ancestrais a perceberem as vantagens da vida coletiva. Isto estimulou o
desenvolvimento das formas de comunicação e criou padrões comuns de linguagem,
formando as primeiras sociedades primitivas.
213
O conceito de memória foi se modificando ao longo da história, mas não se
pode negar que sua transmissão antecede a criação da escrita e está presente no cotidiano do
homem antes da espécie humana dominar o planeta. De qualquer forma, a difusão da escrita
representou um marco histórico nas formas de organização da sociedade e de transmissão da
memória. Na Antigüidade, o poder monárquico utilizou a escrita nesta difusão da memória
enquanto instrumento de dominação.
Com o advento da Idade Média, a Igreja Católica apropriou-se do domínio
do registro da memória e estabeleceu o monopólio do conhecimento e dos registros históricos,
que perduraria por um milênio. Durante esse período, a aliança política entre o poder
monárquico e a Igreja criou sua própria forma de contar a história, utilizando-a para organizar
a sociedade dentro das regras que lhe convinham.
A forma como a sociedade estava organizada tornou os ideais democráticos
gregos e romanos esquecidos durante séculos, até que o Renascimento, no século XIV,
ressuscitou esses ideais clássicos e os difundiu pela Europa. Logo depois, a partir do século
XV, a utilização da imprensa na Europa ocidental e o aperfeiçoamento das técnicas de
impressão contribuíram para esta difusão e acabaram por comprometer o poder da Igreja e o
seu monopólio do conhecimento e do registro da memória.
As Revoluções Industrial, Americana e Francesa romperam com as formas
autoritárias de organização e buscaram, nos antigos ideais republicanos e democráticos, a base
teórica para a formação dos institutos necessários à organização da nova sociedade. Naquele
momento da história, os Estados nacionais estavam definindo suas fronteiras, utilizando o
conceito de cidadania para estabelecer o vínculo com os habitantes de seu território e
estimular a formação da identidade nacional.
Naquele período, esta transformação foi influenciada pelo fortalecimento e
consolidação do paradigma newtoniano-cartesiano. Os conhecimentos científicos e
tecnológicos passaram a refutar os princípios religiosos e experimentaram o mundo sob outra
ótica. O advento da modernidade transformou o cotidiano social e consolidou a dominação da
espécie humana em todo o planeta, fortalecendo também a visão de que, através da ciência e
da tecnologia, o homem poderia controlar a natureza.
Nos séculos XIX e XX, entre as descobertas e as invenções viabilizadas
pelo desenvolvimento tecnológico, destaca-se a fotografia, que revolucionou as formas de
preservação da memória, através de imagens com detalhes visuais idênticos ao objeto
capturado pelas lentes.
214
Em se tratando de memória documental, o desenvolvimento tecnológico, de
certa forma, “eternizou” sua existência e catalisou sua difusão. A Revolução Tecnológica
criou muitas possibilidades que ilustram este raciocínio. Atualmente, com o uso de um
computador doméstico, é possível acessar os sites dos maiores museus do mundo e imprimir a
imagem de um documento, por exemplo, do tempo do Império Romano.
Após a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de construção de uma nova
visão de mundo começou a surgir na sociedade. A criação da ONU, da UNESCO e de tantos
outros organismos internacionais marcou o início de um processo baseado nos direitos
humanos e na cooperação entre os povos. O crescimento econômico passou a ser questionado,
enquanto o desenvolvimento social e a preservação do meio ambiente passaram a integrar os
princípios racionais que informam a defesa dos direitos humanos e a cooperação entre os
povos, originando o conceito de desenvolvimento sustentável.
Atualmente, após a percepção de que os problemas sociais mais graves são
comuns a toda a humanidade, aqueles organismos internacionais estabeleceram as “Oito
Metas do Milênio”, capazes de garantir a manutenção da espécie humana e a qualidade de
vida de todos os habitantes do planeta. Uma nova visão de mundo, necessária para alcançar
estas oito metas, pode ser estimulada através da preservação da memória.
Conhecer o passado torna possível compreender o presente e estabelecer
estratégias de ação que possam modificar o futuro. Sob uma nova percepção do mundo, a
preservação da memória é vista enquanto instrumento de formação do cidadão: sujeito
histórico de direitos e deveres, apto a perceber os limites e possibilidades da vida em
sociedade.
Ser cidadão significa reconhecer-se enquanto ator da história, suscetível de
ir além da omissão, de interagir com o sistema que o domina, cumprindo os deveres impostos,
mas reivindicando os direitos conquistados. Este trabalho, com base no conceito freiriano de
educação, estabeleceu o tripé da preservação do patrimônio cultural: memória, educação e
cidadania.
As relações entre estes três fatores da preservação do patrimônio cultural
formam um sistema circular e virtuoso para o enriquecimento político da sociedade. Pensar a
gestão deste sistema implica perceber a questão do patrimônio como complexa, instável e
intersubjetiva. Inspira uma nova visão de mundo, em que a crença de que é possível conhecer
objetivamente o mundo parece estar se esgotando.
Esta investigação procurou desvendar os vários aspectos envolvidos na
preservação do patrimônio cultural. A sociedade, ao expressar os conceitos e valores
215
atribuídos à memória, cidadania e educação, estabelece critérios que determinam quais bens
devem formar o conjunto denominado patrimônio cultural. Ou seja, dependendo da percepção
desta sociedade, resquícios do passado serão preservados para as futuras gerações, ou
simplesmente destruídos e esquecidos, apagados da história.
A predominância da população mundial nas cidades cria possibilidades de
transformar o cenário urbano em espaço de educação, valorização da memória e formação de
cidadãos, na medida em que, utilizando o desenvolvimento tecnológico na adequação do
patrimônio ao uso contemporâneo, permite que a cidade atue como catalisadora de atores
políticos capazes de agir em direção à sustentabilidade.
A potencialidade do espaço urbano e do patrimônio cultural para a
construção de sociedades sustentáveis demanda a existência de legislação constitucional
capaz de garantir a gestão pública democrática e a preservação do meio ambiente. No Brasil, a
Constituição de 1988 garante esta preservação para as futuras gerações.
O histórico constitucional brasileiro, descrito no item 2.1 deste trabalho,
revelou como é complexo o caminho existente entre a norma abstrata e a realidade concreta.
O colonialismo e a escravidão estão nas raízes históricas da política brasileira e das
dificuldades de concretização do regime democrático, desde a Proclamação da República.
Esta percepção é fundamental no desvelar do objeto deste estudo, pois a participação da
sociedade civil na gestão urbana não fez parte do cotidiano político nacional até a
redemocratização do país na década de 1980 e, ainda hoje, está em processo de maturação.
A Constituição de 1988, ao definir as bases do Estado brasileiro, instituindo
o regime democrático de direito e seu exercício pelo povo de forma indireta e direta, permitiu
o crescimento da participação da sociedade na gestão pública. Entre as possibilidades de
exercício da democracia direta, encontram-se as instâncias denominadas Conselhos
Municipais.
O texto constitucional garante a preservação do patrimônio cultural, mas,
como não poderia deixar de ser, não definiu quais são os bens que formam a identidade e a
memória de um país de dimensões continentais e diversificação cultural como o Brasil. Em se
tratando de preservação do patrimônio cultural local, a Carta Magna define a competência
exclusiva dos Municípios na sua gestão, garantida a colaboração da comunidade no processo.
Em Ribeirão Preto, a promulgação da Lei Municipal nº 7521/1996 trouxe as
disposições constitucionais para o ordenamento jurídico local. Por meio desta lei, foi criado o
Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto -
CONPPAC/RP, órgão responsável pela gestão patrimonial, vinculado à Secretaria Municipal
216
da Cultura, formado por voluntários representantes de vários órgãos públicos municipais e de
entidades da sociedade civil organizada.
A dinâmica e o funcionamento do CONPPAC/RP revelaram subsídios
teóricos e práticos para a análise da participação da sociedade civil na gestão urbana e dos
valores, significados e crenças envolvidos na definição do que é ou não patrimônio cultural,
para a sociedade ribeirãopretana.
A cidadania e a educação são bases necessárias para a construção de
sociedades sustentáveis. Anteriormente, falou-se sobre a importância de ambas e da relação
estabelecida com a memória, na formação do tripé da preservação do patrimônio cultural. Sob
esta perspectiva, incorporar a política pública de preservação do patrimônio cultural na gestão
urbana pode ser estratégia de fomento da participação e organização da sociedade civil em
outros setores, como defesa do meio ambiente, saúde, assistência social, educação e
habitação. O patrimônio cultural é capaz de despertar no cidadão o sentimento de
pertencimento à sociedade e ao espaço onde vive, enriquecendo a interação homem-espaço-
tempo, gerando conseqüências positivas na gestão urbana e no desenvolvimento sustentável.
O diversificado instrumental utilizado na pesquisa foi capaz de atingir o
objetivo previsto e responder aos questionamentos que motivaram a realização desta
investigação. A pesquisa bibliográfica e documental, a observação sistemática e direta, os
contatos formais e informais e as entrevistas realizadas com os sujeitos da pesquisa
garantiram a abordagem quanti-qualitativa necessária ao desvelar do objeto deste estudo.
Para compreender a participação da sociedade civil organizada na gestão do
patrimônio cultural da cidade de Ribeirão Preto e sua defesa a partir do CONPPAC/RP, foi
necessário conhecer a estrutura e formas de ação do Conselho. Para tanto, foram analisadas as
normas jurídicas que fundamentam a preservação do patrimônio cultural local, refletindo-se
sobre a representatividade do CONPPAC/RP e sua participação na educação da sociedade.
Ainda que outras legislações municipais tratassem da preservação do
patrimônio cultural, somente oito anos depois da promulgação da Constituição de 1988, é que
veio à luz a Lei Municipal 7521/1996, que criou o CONPPAC/RP. De 1996 até a conclusão
desta pesquisa, o Município de Ribeirão Preto passou por quatro gestões administrativas e, em
nenhuma delas, a gestão do patrimônio cultural local foi encarada como um objetivo
estratégico de desenvolvimento social.
As reflexões sobre os entraves que impedem uma gestão eficiente do
patrimônio cultural local permitiram concluir que, por mais que a Constituição de 1988
consagre a sua preservação como um dos direitos culturais a serem garantidos pelo Estado, as
217
necessidades de sobrevivência da população acabam relegando-a a uma posição secundária.
Por outro lado, ainda que existam iniciativas isoladas, de modo geral, a pesquisa não revelou
uma perspectiva do Poder Público Municipal em direção à preservação do patrimônio
cultural, como instrumento de exercício da cidadania.
A interpretação dos dados quantitativos demonstrou que são os
representantes das entidades da sociedade civil os verdadeiros responsáveis pela gestão do
patrimônio cultural local, evidenciando uma espécie de inversão de valores, em relação ao que
determina a norma constitucional. Os Conselheiros, cidadãos comprometidos com a
preservação da memória da sociedade ribeirãopretana, exercem, sem qualquer tipo de
remuneração, todas as funções administrativas necessárias à atuação do CONPPAC/RP.
Os atos administrativos envolvidos no andamento dos processos, atas,
emissão de correspondências e tantos outros de natureza administrativa, acabam sendo
executados pelos próprios Conselheiros, que não dispõem de pessoal abalizado para tanto
mas, ao mesmo tempo, e de certa forma contraditoriamente, não exigem do Executivo
Municipal o cumprimento de suas funções constitucionalmente previstas. Como se isso não
bastasse, esta situação, aliada à dificuldade na compreensão e aplicação das normas jurídicas,
tantas vezes mencionada neste trabalho, limita sobremaneira a atuação técnica dos
Conselheiros. Em conseqüência, o CONPPAC/RP acaba por não desempenhar
satisfatoriamente suas atribuições específicas, previstas pelo ordenamento jurídico.
A falta de uma visão estratégica na gestão do patrimônio cultural de
Ribeirão Preto pode ser exemplificada pela inexistência de um inventário dos bens culturais
do município. Ainda que amplamente citado como instrumento de gestão sustentável e
previsto como ferramenta de preservação na Constituição de 1988, nenhuma das
administrações municipais, desde 1996, assumiu a responsabilidade de realizá-lo, nem
tampouco os Conselheiros conseguiram se mobilizar para exigir esta tarefa do poder público.
Desta forma, os procedimentos jurídicos e sociais do Conselho não contemplam efetivamente
as expectativas e necessidades do patrimônio cultural local.
A aplicação do formulário possibilitou o levantamento do perfil dos
Conselheiros. Aliada a outras técnicas de investigação, levou à percepção de que os mesmos
têm uma noção clara dos fatores objetivos e subjetivos que perpassam as questões históricas e
culturais referentes à defesa do patrimônio cultural de Ribeirão Preto. O perfil também
revelou que a maioria das entidades respeitou o princípio racional na seleção de seus
representantes perante o CONPPAC/RP, por mérito e conhecimento, pois os Conselheiros
indicados têm competência técnica quanto às questões do patrimônio histórico e cultural,
218
embora enfrentem as mencionadas dificuldades na compreensão e utilização do ordenamento
jurídico enquanto instrumento de gestão.
Durante o processo de coleta de dados, verificaram-se documentos e relatos
dos sujeitos que apontam para a necessidade de alteração da legislação municipal. Entre
vários pontos apresentados como passíveis de discussão, a ampliação da participação da
sociedade civil ecoou mais forte. É unânime o entendimento sobre a importância de se
criarem novas cadeiras no Conselho, destinadas a ONGs e a todas as instituições de ensino
superior localizadas em Ribeirão Preto. Outros segmentos também foram citados, como
entidades religiosas, estudantes universitários e secundaristas, além de outros que possam
oferecer a contribuição de seus conhecimentos não formais.
Uma conclusão a que também se chega, quanto à necessidade e
conveniência de alteração da legislação, diz respeito a uma possível ampliação do tempo de
mandato dos Conselheiros, como forma adicional de contornar a dificuldade quanto ao
conhecimento das normas jurídicas, uma vez que um tempo maior de permanência na função
lhes permitiria adquirir maior desenvoltura nesta área, como levantado no subitem 3.3.2 deste
trabalho.
Em 2004, a participação temporária dos representantes de todas as
universidades nas atividades do CONPPAC/RP demonstrou a importância e potencialidade da
interação entre a gestão pública e a comunidade científica. A elaboração de uma cartilha de
conscientização da sociedade sobre as questões referentes à preservação do patrimônio
cultural foi tema recorrente durante o processo de coleta de dados, mas, tal como ocorrido
com o inventário, ainda não se tornou realidade. A deficiência de educação da sociedade, nas
questões relativas à preservação do patrimônio cultural de Ribeirão Preto, tem sido um dos
grandes entraves à eficácia da legislação.
As relações do CONPPAC/RP com a sociedade estabelecem-se basicamente
de duas formas: diretamente, com os proprietários dos bens passíveis de tombamento, ou de
forma mais ampla, através dos meios de comunicação de massa. A participação de visitantes
nas assembléias do Conselho tem sido pequena, principalmente quando comparada ao número
de habitantes de Ribeirão Preto. Quando ela ocorre, normalmente está relacionada à defesa de
interesses específicos, sendo poucos os que não são Conselheiros e participam constantemente
das atividades do Conselho.
Os Conselheiros mais atuantes revelaram-se cidadãos com graduação no
ensino superior e conscientes do seu papel na construção de sociedades sustentáveis,
colaborando ativamente com a execução das atividades do CONPPAC/RP. Qualquer tipo de
219
interferência em desacordo com os pareceres do Corpo Técnico de Apoio do CONPPAC/RP,
seja ela de natureza partidária, moral, jurídica ou religiosa, tem sido rechaçada pelos
Conselheiros. No entanto, observando critérios técnicos, os mesmo não deixam de demonstrar
sensibilidade quanto à necessidade de adaptação e adequação de bens passíveis de
tombamento ao uso contemporâneo, muitas vezes aceitando, inclusive e se for o caso, a sua
demolição parcial.
O ordenamento jurídico ora representa o sistema burocrático que dá suporte
à preservação do patrimônio cultural, ora se torna um empecilho administrativo à discussão de
valores, significados e crenças, esta mais enriquecedora no que concerne à memória e à
identidade cultural.
O conhecimento da legislação é um dos desafios enfrentados pelos
Conselheiros e o Executivo Municipal pouco tem colaborado para superá-lo. Os
representantes da Secretaria de Negócios Jurídicos estiveram presentes em poucas
assembléias e são freqüentes as dúvidas referentes ao trâmite dos processos administrativos.
Parte das questões levantadas é resolvida pelos representantes da OAB-Ribeirão Preto, mas,
muitas vezes, trata-se de questões específicas do Direito Administrativo, que seriam
facilmente resolvidas por um corpo de funcionários versados nas áreas jurídica e
administrativa, o que parece ser uma proposta digna de atenção.
De fato, o sistema normativo prevê, de forma generalizada e pontual, os
instrumentos legais da defesa do patrimônio cultural nos três níveis de governo. No entanto, o
artigo 30, inciso IX, da Constituição Federal, delega só aos Municípios a competência para a
gestão do patrimônio cultural local. Em Ribeirão Preto, a pesquisa revelou que esta questão
não está entre as prioridades das últimas administrações públicas municipais, nem tampouco a
valorização da cultura enquanto instrumento de mudança social. Tendo em vista as exigências
legais, linearmente prescritas nos instrumentos jurídicos, a função do CONPPAC/RP se torna
limitante à educação formal e política da sociedade civil, tanto quanto constrange a sua
participação nas questões da defesa do patrimônio histórico e cultural da cidade, confirmando-
se o pressuposto desta investigação.
As relações entre memória, cidadania e educação são capazes de fomentar a
participação política da sociedade civil. A efetivação do regime democrático de direito, no
Brasil, depende deste enriquecimento político e os Conselhos Municipais constituem espaços
de exercício da democracia direta, criados pela Constituição Federal e normas inferiores,
destinados a garantir a gestão urbana democrática e contribuir para este enriquecimento.
220
O início do terceiro milênio representa um marco histórico para a
humanidade e o processo de transformação é perceptível por todo o planeta e em todos os
níveis da sociedade. O conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico utilizados a
serviço da sociedade representam uma estratégia para a construção de sociedades
sustentáveis.
E como será uma sociedade sustentável? Só a História poderá dizer. Não há
modelos, fórmulas, regras, ou qualquer disposição linear que, isoladamente, seja capaz de
construí-la. As relações entre os seres humanos e destes com o meio ambiente natural
determinará a existência da espécie humana, no futuro. De qualquer forma, até agora, o
exercício da cidadania, como integrante voluntária do CONPPAC/RP, e o conhecimento
teórico, adquirido ao longo do percurso do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, da
FHDSS, UNESP, campus de Franca, levaram à conclusão de que é possível enfrentar os
desafios impostos pelo processo histórico e, através dele, refletir sobre novas ações no
presente, alterando as previsões drásticas do futuro das próximas gerações. O tripé da
preservação do patrimônio cultural, memória, educação e cidadania, também constitui fator
estratégico para reflexão e participação na construção destas novas sociedades: igualitárias,
solidárias e em harmonia com a natureza.
Utopia, dirão alguns... Mas o sonho é inerente ao ser humano: o ideal de
uma fraternidade de homens, de um mundo compartilhado entre todas as pessoas, um mundo
sem fronteiras, sem fome, sem violência e tantas outras questões que limitam a sociedade.
A pesquisa revelou alguns caminhos primordiais que podem ser trilhados
nesta direção, mas, de qualquer forma, é só o início da caminhada.
221
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227
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228
APÊNDICES
229
APÊNDICE A - MODELO DO FORMULÁRIO SEMI-ESTRUTURADO
1. Nome: ___________________________________________________________________
2. Idade: ___________________________________________________________________
3. Estado civil: ______________________________________________________________
4. Profissão: ________________________________________________________________
5. Escolaridade:
5.1. Ensino fundamental: completo ( ) incompleto ( )
5.2. Ensino médio: completo ( ) incompleto ( )
5.3. Ensino superior: completo ( ) Ano de formatura: _______ incompleto ( )
Curso: _______________________________________________________________
5.4. Pós-graduação
Latu sensu (220h a 360h): Não ( ) Sim ( )
Qual (is): ___________________________________________________________
Especialização (menos de 220h): Não ( ) Sim ( )
Qual (is): ___________________________________________________________
Strictu Sensu (Mestrado e Doutorado): Não ( ) Sim ( )
Área: ______________________________________________________________
MBA (360h a 600h: Não ( ) Sim ( )
Qual (is): ___________________________________________________________
Cursos de Finais de Semana: Não ( ) Sim ( )
Qual (is): ___________________________________________________________
6. Residência (cidade): ________________________________________________________
7. Há quanto tempo mora em Ribeirão Preto? ______________________________________
8. Qual entidade representa no Conppac/RP? ______________________________________
9. Há quanto tempo participa do Conppac/RP? _____________________________________
10. É titular ou suplente no Conppac/RP? _________________________________________
230
APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA
1. Quais as atividades do Conppac/RP? (limites e possibilidades)
2. Qual a sua opinião sobre o ordenamento jurídico em defesa do patrimônio histórico e
cultural? (o que acrescenta e o que prejudica)
3. Como é estabelecido o diálogo entre o Conppac/RP e a sociedade civil? (a educação e
as subjetividades)
231
ANEXOS
232
ANEXO A – LEI Nº 7521/1996
233
234
235
236
237
238
239
ANEXO B – LEI COMPLEMENTAR Nº 1243/2001
240
ANEXO C – LEI Nº 9495/2002
241
ANEXO D – LEI COMPLEMENTAR Nº 2006/2006
242
ANEXO E – PORTARIA Nº 2067/2001
243
244
ANEXO F – PORTARIA Nº 237/2004
245
246
ANEXO G – PORTARIA Nº 1163/2004
247
248
ANEXO H – PORTARIA Nº 1341/2005
249
250
ANEXO I – RESOLUÇÕES DO CONPPAC/RP
251
252
253
254
ANEXO J – PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR Nº 226/2006
255
256
ANEXO L – PARECER Nº 917/2006
257
ANEXO M – PARECER S/Nº, DE 14/03/2006
258
259
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