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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
ROSÂNGELA BUJOKAS DE SIQUEIRA
CONSELHOS DE POLÍTICA E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA:
ANÁLISE DOS SETORES SAÚDE E ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PONTA
GROSSA – PR
PONTA GROSSA
2006
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ROSÂNGELA BUJOKAS DE SIQUEIRA
CONSELHOS DE POLÍTICA E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA:
ANÁLISE DOS SETORES SAÚDE E ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PONTA
GROSSA – PR
Dissertação apresentada para obtenção
do título de mestre na Universidade
Estadual de Ponta Grossa, Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação, Mestrado em
Ciências Sociais Aplicadas, Área de
Sociedade, Direito e Cidadania.
Orientador (a): Dra. Lucia Cortes da Costa
PONTA GROSSA
2006
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Aos meus pais, pelo amor e pela força.
AGRADECIMENTOS
Aos conselheiros dos conselhos de saúde e assistência social, por contribuírem nas
entrevistas e nos diálogos durante a construção dessa pesquisa;
Aos gestores entrevistados, por aceitarem participar deste trabalho;
De maneira muito especial ao Sr. Batistel e a Carla, secretários executivos dos
conselhos, por facilitarem meu acesso as reuniões, aos documentos, entrevistas... e
acima de tudo pelas conversas. À vocês, meu muito obrigada!
À minha irmã Alê, pela ajuda e pelas sugestões;
À professora Lucia, por aceitar meu projeto de mestrado e debater as idéias deste
estudo comigo;
Aos professores: Jussara, Cunha e Luciana, pelas sugestões e apontamentos no
processo de avaliação desta dissertação;
À CAPES e ao Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG, pela oportunidade
da dedicação exclusiva nesta caminhada;
À Regi, colega e amiga, que divide comigo as angústias e as alegrias desta fase da
vida.
RESUMO
Os conselhos de política foram previstos pela Constituição Federal de 1988 como
instrumentos da gestão democrática das políticas sociais. No entanto, eles têm
encontrado limites e dificuldades de atuação. Os obstáculos dizem respeito à falta de
tradição participativa da sociedade brasileira, assim como ao autoritarismo nas relações
políticas e à cooptação da participação. Este estudo analisou a qualidade da
representação da sociedade civil nos conselhos de saúde e assistência social no
município de Ponta Grossa PR, avaliando qual o papel dessa experiência na
construção do interesse público e da democratização da gestão nesses setores. Foi
investigada, da perspectiva dos gestores públicos e dos conselheiros, a compreensão
da concepção de participação e do papel dos conselhos na gestão municipal, através
de aplicação de questionários, análise de atas e observação de reuniões. As
conclusões destacam a importância dos conselhos na formação de sujeitos políticos.
Palavras-chave: conselhos de política; participação; interesse público.
ABSTRACT
Policy councils were thought by the 1998 Federal Constitution as instruments of
democratic administration of social policies. However, they have faced limits and
objections to their performance. The obstacles are related to the lack of tradition of
participation in the Brazilian society, as well as the authoritarianism in political relations
and the manipulation of the participation. This research analysed the quality of the civil
society’s representation in the city councils of public health and social care of Ponta
Grossa PR, evaluating which is the worth of this experience in the public interest’s
construction and in the administration’s democratization in these sectors. It was
investigated, from the perspective of the public administrator and the counselors, the
understanding of the conception of participation and the counselors’ function in the city
administration, with the application of questionnaires, analysis of records and
observation of meetings. The conclusions emphasize the importance of the city councils
in the formation of political individuals.
Keywords: policy councils; participation; public interest.
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1: Renda dos conselheiros............................................................... 104
GRÁFICO 2: Escolaridade dos conselheiros.................................................... 106
GRÁFICO 3: Capacidade de acompanhar a execução das ações após a
deliberação do conselho.................................................................................... 107
GRÁFICO 4: Dificuldade no acesso e interpretação de documentos na área.. 109
GRÁFICO 5: Avaliação do impacto das decisões do conselho na
operacionalização da política............................................................................
110
GRÁFICO 6: Aumento do interesse por assuntos de cidadania após a
participação no conselho................................................................................... 112
LISTA DE TABELAS
TABELA 1: Perfil do gestor municipal................................................................ 87
TABELA 2: Prioridade da política e papel do conselho..................................... 88
TABELA 3: Desafios na operacionalização da política e a contribuição do
conselho na gestão...........................................................................................
91
TABELA 4: Caracterização dos conselhos........................................................ 96
TABELA 5: Periodicidade das reuniões dos conselhos (2005-2006) e
principais temas deliberados.............................................................................
97
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11
CAPÍTULO 1 – ESTADO E SOCIEDADE CIVIL............................................. 15
1.1 Relação Estado e Sociedade Civil na Modernidade................................... 15
1.2 O Estado Capitalista e os Direitos Sociais.................................................. 26
1.3 A Ampliação do Estado............................................................................... 40
CAPÍTULO 2 A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA GESTÃO
PÚBLICA NO BRASIL...................................................................................... 48
2.1 A Regulamentação da Gestão Democrática e Participativa das Políticas
Sociais............................................................................................................... 48
2.2 A Experiência Conselhista no Brasil............................................................ 57
CAPÍTULO 3 A EXPERIÊNCIA CONSELHISTA NOS SETORES SAÚDE E
ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PONTA GROSSA – PR............................................ 71
3.1 Perfil Sócio-Político do Município..................................................................... 71
3.2 A Gestão Descentralizada e Participativa das Políticas de Saúde e
Assistência Social.............................................................................................. 76
3.3 Participação da Sociedade Civil nos Conselhos de Saúde e Assistência
Social em Ponta Grossa: a perspectiva dos
gestores............................................................................................................. 85
3.4 Participação da Sociedade Civil nos Conselhos de Saúde e Assistência
Social em Ponta Grossa: a perspectiva dos conselheiros e dos secretários
executivos dos conselhos....................................................................................... 95
A) Caracterização dos Conselhos de Saúde e Assistência Social......................... 95
B) Caracterização dos Conselheiros de Saúde e Assistência Social..................... 104
C) Avaliação da Participação do Conselho na gestão segundo os
Conselheiros........................................................................................................... 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 123
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 128
APÊNDICE.............................................................................................................. 134
INTRODUÇÃO
A participação da sociedade civil na gestão das políticas sociais está prevista na
Constituição Federal de 1988, como parte das diretrizes da descentralização político-
administrativa do Estado brasileiro. Desta forma, os conselhos de política foram
regulamentados como instrumentos privilegiados do controle social sobre as ações
estatais. Presentes nas três esferas de governo, estes conselhos possuem composição
paritária, e desta forma, possibilitaram aos segmentos organizados da sociedade civil a
participação na gestão das políticas públicas.
Com atribuições no sentido de planejar, propor, fiscalizar e avaliar a
operacionalização das ações e serviços públicos, estes conselhos estão atrelados a um
aspecto técnico-burocrático da gestão pública, no entanto, na medida em que
promovem o encontro dos segmentos organizados da sociedade civil com
representantes do poder público, num diálogo permanente, estes espaços possuem
uma faceta política bastante expressiva. A institucionalização da participação da
sociedade civil na gestão pública responde pela reivindicação de amplos segmentos da
sociedade civil que, nas décadas de 1970 e 1980, organizaram-se na busca da
democratização do Estado brasileiro.
A regulamentação da gestão democrática e participativa das políticas sociais,
embora expresse uma ruptura com o modelo de Estado autoritário, não garante por si
a democratização das relações sociais na sociedade brasileira. Assim, os conselhos
de política, e outros tantos espaços de associativismo, convivem com uma cultura
política marcada pelo corporativismo e particularismo de interesses, características
presentes, em maior ou menor medida, em toda e qualquer moderna sociedade civil.
Desta forma, a construção de uma cultura cívica, que favoreça a transcendência dessa
gama variada de interesses particulares em interesse coletivo, é imprescindível para a
estabilidade e legitimidade do Estado democrático.
Assim, compreendemos que a gestão democrática favorece, na medida em que
cria canais plurais de representação e deliberação políticas, a construção do interesse
público. De acordo com NOGUEIRA (2004), partimos do pressuposto de que nenhuma
sociedade civil é imediatamente política, pois caracteriza-se pelos particularismos de
interesses e pela defesa parcial destes interesses, assim sendo, sua dimensão política
precisa ser construída. Nestes termos, o fomento de canais participativos que articulem
a diversidade de interesses e promovam discussões com visibilidade pública é
fundamental para a legitimidade do poder do Estado.
Portanto, torna-se fundamental a capacitação de atores sociais na promoção de
uma ação política que contribua para a construção do interesse público, garantindo,
inclusive, a coesão social da sociedade civil. Esta pesquisa parte da hipótese que os
conselhos de política, enquanto espaços de representação plural e de deliberação
política, podem apresentar-se como canais educativos na formação de sujeitos
políticos.
Desta forma, nosso estudo analisou a questão da qualidade da participação do
segmento sociedade civil nos conselhos de política. Estabelecemos como critérios para
a compreensão da qualidade desta participação os quesitos: capacidade dos atores de
deliberarem a partir do conhecimento sobre os temas, ou seja, capacidade técnica;
capacidade de exercer ação política, superando a defesa parcial de interesses
corporativos em detrimento do interesse comum; e ainda, dedicação às atividades e
valorização do espaço dos conselhos. Os critérios estabelecidos não buscam mensurar
a qualidade da participação, até mesmo porque isso o nos parece viável, buscam,
acima de tudo, apontar aspectos que demonstrem a validade da experiência
conselhista para a democratização da gestão pública no Brasil.
A pesquisa possui caráter qualitativo, pois se compreende que o objeto de
estudo exige mais que uma análise quantitativa, pois refere-se a um fenômeno
perpassado pelas relações sociais. Assim sendo, o trabalho está estruturado em três
capítulos. O primeiro capítulo responde de que perspectiva concebemos o conceito de
Estado e sociedade civil. A partir da reflexão de conceitos clássicos, destacamos o
Estado como um campo complexo de correlação de forças, esfera que expressa e
articula a disputa de interesses presentes na sociedade civil. O segundo capítulo
contempla a problematização da relação Estado-sociedade civil, destacando o cenário
brasileiro e a experiência conselhista, enquanto instrumento da gestão democrático-
participativa das políticas sociais. Por fim, o terceiro capítulo sistematiza o estudo
empírico dos conselhos de saúde e assistência social no município de Ponta Grossa
PR.
Os dados foram coletados através da observação participante, de entrevista
exploratória, aplicação de questionários e entrevistas estruturadas e semi-estruturadas.
Foram observadas as reuniões dos conselhos no período de um ano, e a
sistematização destas observações foi feita num diário de campo. Estes dados foram
base para a construção dos roteiros de entrevistas e dos questionários aplicados com
conselheiros e gestores públicos. Num primeiro momento realizamos uma entrevista
exploratória com os secretários executivos dos conselhos pesquisados, levantando um
perfil de cada conselho (datas de reuniões, número de membros, segmentos
representados, duração de cada gestão, etc) e os documentos jurídico-operacionais
dos mesmos (lei de criação, decretos e regimento interno). Em seguida aplicamos um
questionário, com questões fechadas, aos conselheiros de saúde e assistência social.
Estes dados nos permitiram traçar algumas características do perfil dos conselheiros e
da qualidade da participação dos segmentos organizados nestes espaços.
As entrevistas, realizadas com os gestores públicos de cada setor e com alguns
conselheiros, nos permitiram analisar a concepção que cada sujeito político possui da
importância da participação da sociedade civil na gestão pública e da relevância dos
conselhos de política neste processo. Como critério, para analisar a perspectiva de
participação de cada sujeito entrevistado, utilizamos a distinção de NOGUEIRA (2004).
O autor aponta quatro modalidades distintas de participação, onde as mais tradicionais,
a assistencialista e a corporativista, respondem, basicamente, por estágios de menor
maturidade política. a participação eleitoral, e principalmente a participação política,
respondem por uma forma mais madura de participação, voltando-se para o âmbito do
interesse coletivo. A análise dos depoimentos destaca de qual perspectiva os sujeitos
envolvidos no processo compreendem a participação da sociedade civil nos conselhos
de política.
Assim, cada setor de política conta com a entrevista do respectivo gestor, de três
conselheiros (um governamental e dois não governamentais) e do secretário executivo
do conselho. Foram selecionados para as entrevistas, a partir das observações, os
conselheiros que haviam participado mais de uma vez do conselho e que
apresentavam uma participação ativa, no sentido da assiduidade e da intervenção nas
reuniões dos conselhos.
Desta forma, no Conselho Municipal de Saúde (CMS) os dois conselheiros
entrevistados, do segmento não governamental, são representantes dos usuários. Um
deles ocupou a presidência deste conselho no ano de 2005; o outro, além de membro
do CMS, é conselheiro no conselho local de saúde e no Conselho Estadual de Saúde.
O conselheiro entrevistado do segmento governamental atua na 3.ª Regional de Saúde
do Paraná e trabalha, neste setor, com o lo de Educação Permanente, promovendo,
entre suas atividades, capacitação para os conselheiros municipais de saúde. No que
tange o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), o entrevistado do segmento
governamental atua diretamente na formulação dos instrumentos de gestão do setor
(planos, relatórios, etc), levando as discussões e as propostas para as reuniões do
conselho. Os representantes da sociedade civil, selecionados para a entrevista,
respondem, respectivamente, pelas entidades de assistência social geral e pelos
usuários, no segmento idoso. O conselheiro das entidades de assistência social geral
foi o primeiro membro eleito do segmento sociedade civil a ocupar a presidência deste
conselho; o conselheiro representante dos usuários, no segmento idoso, possui uma
participação bastante ativa, compondo, inclusive, a comissão de fiscalização
organizada, em 2006, para a fiscalização do uso e aplicação de recursos públicos no
setor idoso.
A análise dos dados conta ainda com o estudo das atas, que sistematizou a
periodicidade das reuniões dos conselhos de saúde e assistência social, os principais
temas deliberados no ano de 2005 e no primeiro semestre de 2006 e destacou, ainda,
algumas polêmicas presentes nas reuniões.
A sistematização dos dados aponta para a possibilidade dos conselhos de
política exercerem papel político-pedagógico na formação de sujeitos políticos atentos
aos assuntos de interesse público.
CAPÍTULO 1
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL
1.1) RELAÇÃO ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA MODERNIDADE
Nas sociedades ocidentais, a secularização do conhecimento, advinda dos ideais
iluministas, inaugurou um campo de reflexão que transformou drasticamente as
relações sociais e de produção no mundo moderno. O rompimento com os dogmas na
explicação da vida dos homens proporcionou aos filósofos da época a possibilidade de
(re) pensarem as relações construídas na sociedade. Desta forma, o papel do Estado e
da sociedade civil passou a ser um tema clássico nas discussões filosóficas e políticas
no ocidente.
Qual o papel do Estado? Em que medida ele deve interferir na vida dos homens
em sociedade? Em quais esferas o Estado tem o poder e a necessidade de
intervenção? Quem decide sobre os assuntos públicos? Quem deve participar na
gestão da coisa pública? Estas, e muitas outras questões fizeram parte das
preocupações que permearam todo o conhecimento que foi se construindo com o
advento do Iluminismo, possibilitando o uso da razão crítica no questionamento dos
antigos dogmas que consolidavam a ordem social do regime feudal, fundada na
imobilidade social e no poder identificado como algo que emanava da divindade.
Desta maneira, para ROUANET (1993), o Estado moderno deve ter como
princípios um novo conceito de lei, firmado através de uma Constituição escrita, que
permitisse a passagem do reino da subjetividade ao da objetividade universal. A
representação popular deveria ser garantida e a publicização das decisões executivas e
judiciárias permitiria que o povo pudesse supervisionar as ações do Estado. Para o
autor, o que se pretendia era alcançar um Estado capaz de assegurar a liberdade, e
que não fosse ele próprio um obstáculo à liberdade. Da sociedade civil esperava-se a
crítica suscetível de orientar o Estado e impedi-lo de transgredir seus limites. Dessa
relação política esperava-se, ainda, emancipar progressivamente as categorias sociais
até então impedidas de participarem do processo político. Assim, na modernidade
existe a distinção entre Estado e sociedade civil, muito embora o Estado seja a
expressão da sociedade civil.
O Estado Moderno deveria constituir-se como espaço público, que voltando-se
ao interesse coletivo tornaria seu poder legítimo, consolidando o Estado de Direito.
Somente quando a sociedade civil reconhece como legítimo o poder do Estado, a
ordem social conhece alguma estabilidade.
Neste sentido, compreendemos a sociedade civil como a esfera dos interesses
particulares, da liberdade do cidadão; onde se legitima, a partir das premissas vigentes,
o pacto que fundará o Estado. As análises de Hegel sobre os conceitos de Estado e
sociedade civil indicavam essa relação. Da esfera da singularidade, os indivíduos
organizam-se em sujeitos coletivos (as corporações, nos termos de Hegel) e através
desse campo de mediações legitimam o interesse público, o momento da
universalidade. De acordo com a interpretação de COUTINHO (1996), a superação, e
ao mesmo tempo a legitimação da prioridade do público, do universal, sobre o privado é
o essencial da teoria do Estado em Hegel. Para Hegel o Estado correspondia ao
momento da “moralidade”, da “vida ética”, da “eticidade”.
Muitas destas idéias circularam pela tradicional sociedade civil ocidental dos
séculos XVII e XVIII, e os filósofos foram fomentando uma série de debates nos
espaços públicos que emergiam, como a imprensa, a academia, e outros menos
formais, como os cafés e os salões. ROUANET (1993) chamou de sociedade civil
tradicional aquela onde “os processos de mobilização são rarefeitos e quando eles não
dispõem de uma rede institucional capaz de canalizá-los” (ROUANET, 1993, p. 159),
diferentemente da moderna, quando se permite “uma mobilização intensa, canalizada
por uma rede institucional adequada, livre da tutela do Estado” (ROUANET, 1993, p.
159). Para o autor, os filósofos criaram um público para suas discussões, e o
mobilizaram com sua prática política. Eles organizaram o modelo original de toda
sociedade moderna, cenário antagônico de argumentos e contra-argumentos, onde se
cria a consciência cívica e a formação de uma opinião plural, contraditória e crítica.
Diante disso, compreende-se que não pode ocorrer a transformação das
estruturas sociais sem a difusão de um novo saber e de uma nova forma de agir. A
tarefa dos filósofos foi traduzir o contexto da época no sentido de favorecer a
organização dos atores sociais para a transformação das estruturas, ou seja,
contribuíram para a formação de uma nova opinião pública.
O debate de idéias, que começa no século XVI, passou a colocar diante desta
opinião pública que estava surgindo temas como o papel do Estado e da sociedade
civil. Os argumentos nem sempre chegavam a consensos, o que positivamente
contribuiu para a construção do debate político, mas um ponto em comum surgia na
diversidade dos debates: a defesa da liberdade.
Maquiavel (1469 1520) foi pioneiro em pensar o papel do Estado Moderno,
contrapondo-se ao idealismo de Platão e Aristóteles. Baseado em suas experiências de
trabalho na administração pública, no século XVI, argumentou sobre o papel do Estado,
a necessidade da estabilidade do poder e da ordem. Alertou que “a ordem tem um
imperativo: deve ser construída pelos homens para se evitar o caos e a barbárie, e,
uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois sempre em germe o seu trabalho
negativo, isto é, a ameaça de que seja desfeita” (SADEK, 2004, p. 18).
Essa reflexão levou Maquiavel a afirmar que não bastava ocupar o poder, era
preciso mantê-lo para que se pudesse de fato governar. Dessa maneira, o governante
deveria possuir qualidades que lhe permitissem garantir a estabilidade e a continuidade
do poder. A virtu foi, para Maquiavel, a qualidade que o governante deveria possuir
para que mantivesse o poder. Era necessário que se tivesse sabedoria para manter o
poder e a ordem. “A força explica o fundamento do poder, porém é a posse de virtú a
chave por excelência do sucesso do Príncipe” (SADEK, 2004, p. 23).
De acordo com SADEK (2004), para Maquiavel, o príncipe que deseja a
estabilidade no poder deve possuir, sobretudo, a sabedoria para agir conforme as
circunstâncias, aparentando possuir as qualidades valorizadas pelos governados. Deve
criar instituições que facilitem o domínio e boas leis. O príncipe não devia ser visto
como um ditador, e mais propriamente como um fundador do Estado, que na época se
encontrava ameaçado por invasões e pela decomposição. Quando a sociedade
passasse a adquirir o equilíbrio, e o poder político houvesse cumprido sua missão de
regenerador, o cenário estaria pronto para a república.
Maquiavel foi muito criticado por sua proposta, que aconselhava aos
governantes uma forma de manter o poder e de controlar o povo através da
demonstração de qualidades que viessem a agradar os governados. Contudo, quando
alertou que “a política tem uma ética e uma lógica próprias” (SADEK, 2004, p. 24), não
deixou de preparar as massas para pensarem os problemas do Estado de seu tempo.
Até então o poder era visto como algo que emanava de Deus, e sua obra propunha um
poder que emanava da história humana, de sujeitos humanos. É semvida um divisor
de águas no pensamento político.
Com Thomas Hobbes (1588 1679) o papel do Estado passa a ser discutido
através do contratualismo
1
, e assume a característica do absolutismo. Para este
pensador é da natureza humana a busca constante pelo prazer e pela felicidade, desta
forma, no estado de natureza, onde cada homem age de acordo com sua própria
vontade, não segurança para a vida de todos, pois todos, em busca de sua própria
satisfação, entrariam numa situação de guerra. Nestas circunstâncias, o pouco que se
pode obter de segurança é garantido somente através da força, e mesmo tendo
conquistado algo para si, nada lhe garante a posse estável daquele bem. Diante desta
argumentação, em relação ao estado de natureza, afirmou Hobbes:
(...) Numa tal situação não lugar para a indústria, pois seu fruto é
incerto; conseqüentemente não cultivo da terra, nem navegação,
nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não
construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as
coisas que precisam de grande força; não conhecimento da face da
Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não
sociedade; e o que é pior de tudo, um constante temor e perigo da
morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta (HOBBES, 1993, p. 64).
Em lugar desse estado constante de guerra de uns contra os outros, Hobbes
argumenta que os homens abrem mão do estado de natureza em prol da liberdade civil,
ou seja, do pacto firmado entre os homens, que através das leis e da indicação de um
soberano (que pode ser um homem ou uma assembléia de homens) se garantirá a
segurança da vida e se fundará a sociedade. De acordo com a interpretação de
RIBEIRO (2004) da obra “O Leviatã”, de Hobbes, “não basta o fundamento jurídico. É
1
O contratualismo caracteriza-se pelas idéias difundidas pelos “filósofos que, entre o século XVI e o
XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou sociedade está num contrato: os homens
viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização que somente surgiriam depois de um pacto
firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política” (RIBEIRO, 2004,
p. 53).
preciso que exista um Estado dotado de espada, armado, para forçar os homens ao
respeito (...)” (RIBEIRO, 2004, p. 61).
O poder do soberano, no Estado hobbesiano, é ilimitado, e desta forma os
governados submetem ao seu representante a capacidade de tomar as decisões e de
representar as suas vontades, acatando as mesmas sem qualquer distinção. O
soberano, em suas ações e decisões, deve garantir a segurança dos seus súditos, caso
isso não ocorra, e somente nesse caso, os súditos podem romper o contrato.
Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira
unidade de todos eles, numa e mesma pessoa, realizada por um
pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como
se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu direito
de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de
homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim
unida numa só pessoa se chama Estado (...) (HOBBES, 1993, p. 74).
À lei civil cabe restringir a liberdade natural dos homens, pois de acordo com
Hobbes, sem essa restrição não seria possível haver a paz. Ao Estado cabe fazer
cumprir as leis e garantir a segurança. Para o pensador, nada mais eficiente que a força
e o medo para que se cumpra o pacto. Ao indivíduo resta acatá-las.
A crítica ao absolutismo monárquico e a discussão da liberdade, do indivíduo
como um sujeito portador de direitos, assim como viríamos a conhecer nos ideais da
Revolução Francesa, começa a tomar corpo com as discussões de John Locke (1632
1704). Assim como Hobbes, Locke se caracteriza como um contratualista, e para
ambos o indivíduo sai do estado de natureza, e mediado pelo pacto, passa viver no
estado civil. Porém, para Locke o estado de natureza não se configura como um estado
de guerra, e sim como um estado de paz e liberdade. Os homens passam a
organizar-se no estado civil pela preocupação com a defesa da vida e da propriedade,
que no estado de natureza estariam à mercê das vicissitudes humanas.
A preocupação com o direito à propriedade ocupa espaço privilegiado no
pensamento de Locke. De acordo com MELLO (2004), no pensamento hobbesiano a
noção de propriedade não existe no estado de natureza, e passa a ser instituída pelo
Estado-Leviatã após a formação da sociedade civil. Desta forma, nesta concepção,
assim como a criou, o Estado pode também suprimir a propriedade. De outro modo,
para Locke a propriedade existia no estado de natureza, e sendo uma instituição
anterior à sociedade, caracterizando-se como um direito natural do indivíduo, não pode
ser violada pelo Estado. Esta análise nos permite compreender que, em Hobbes o foco
da reflexão está centrado no poder do Estado; em Locke o direito do cidadão e os
limites do Estado ocupam o centro de sua sistematização teórica.
Para Locke, o que garantia aos homens o direito à propriedade era o trabalho
dispensado para cultivar a terra e dela tirar benefícios. Desta forma, na medida em que
um indivíduo trabalhava a terra, fazendo dela um espaço produtivo, esta deixava de ser
um direito comum de todos, passando a ser propriedade privada de quem a cultivou.
Vejamos o que argumentou Locke:
(...) Permite-se que pertençam os bens àquele que lhes dedicou o
próprio trabalho, embora anteriormente fossem direito comum a todos.
E, entre os que se consideram como a parte civilizada da Humanidade,
que fizeram e multiplicaram leis positivas para a determinação da
propriedade, ainda vigora esta lei original da natureza, para o início da
propriedade do que antes era comum (...) (LOCKE, 1991, p. 228). (...) A
extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos
produtos usa, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, por assim
dizer, separa-a do comum (...). (...) Deus, mandando dominar,
concedeu a autoridade para a apropriação; e a condição da vida
humana, que exige trabalho e material com que trabalhar,
necessariamente introduziu a propriedade privada (LOCKE, 1991, p.
229-230). (...) É, na realidade, o trabalho que provoca a diferença de
valor em tudo quanto existe (LOCKE, 1991, p. 232).
Neste contexto, para Locke “o que início e constitui realmente qualquer
sociedade política nada mais é senão o assentimento de qualquer número de homens
livres capazes de maioria para se unirem e incorporarem a tal sociedade” (LOCKE,
1991, p. 254), e somente desta maneira tem-se um governo legítimo. É importante
salientar que para este pensador o indivíduo livre é o proprietário, ou seja, aquele que
não deve obrigações a outrem.
Diante deste argumento COSTA (2005) coloca que para John Locke a cidadania
é um atributo de liberdade, e a liberdade vista como a possibilidade de obtenção da
propriedade. “Assim, efetivamente livre para Locke é o cidadão proprietário” (COSTA,
2005, p. 21). Caracterizada como uma visão da burguesia, a defesa desta tese serviu
para justificar os direitos políticos dos proprietários, afirma a autora.
Portanto, ao governo civil cabe, acima de tudo, a defesa da propriedade. E por
este objetivo os homens “abrem mão” do estado de natureza pelo estado civil. Ainda,
de acordo com o pensamento de Locke, cada indivíduo assim procede “com a intenção
de melhor se preservar a si próprio, à sua liberdade e propriedade” (LOCKE, 1991, p.
265).
Para COSTA (2005), com Locke se opera uma mudança na relação entre Estado
e cidadão, onde a norma jurídica parte do direito do cidadão, e não do poder do Estado.
É o direito do indivíduo, do cidadão, que legitimidade ao poder do Estado. Foi assim
que “nasceu o ideal liberal de colocar limites ao poder do Estado e preservar os direitos
do cidadão, a esfera da vida privada como um espaço do livre arbítrio do cidadão,
assegurada pela legitimidade do direito de propriedade” (COSTA, 2005, p. 21). Com
Locke os direitos do cidadão passam a ocupar lugar de destaque nas reflexões sobre o
papel do Estado. No século XX, a luta pela legitimidade dos direitos de cidadania passa
a garantir aos cidadãos o controle social sobre a gestão pública, inscrevendo na
agenda estatal as demandas advindas dos setores organizados da sociedade civil.
No entanto, a análise de COSTA (2005) aponta que na modernidade o conceito
de cidadania é contraditório, pois está preso as determinações da ordem capitalista. “O
homem abstrato, livre e igual é o cidadão que enquanto homem concreto é perpassado
pelas determinações da classe social a qual pertence, sendo a desigualdade social a
expressão mais forte dos limites da cidadania moderna” (COSTA, 2005, p. 22).
Assim, foi Rousseau (1712 1778), no culo XVIII, que problematizou a
questão da desigualdade entre os homens. Um contratualista, assim como Hobbes e
Locke, ele argumentou que o homem no estado de natureza o era mau, passível de
ser enfrentado pela força, nem tampouco preocupado com a garantia da defesa da
propriedade. Para Rousseau estas questões nascem da convivência social entre os
indivíduos, ou seja, nascem com a sociedade. O homem, no estado de natureza, em
sua essência, é bom; a partir do momento que passa a relacionar-se com outros
homens é que virá a tornar-se mau. De acordo com esta interpretação, a maldade não
é um atributo natural, e sim, social. Desta forma também a desigualdade. O autor
considera que entre os homens existe uma desigualdade que seria natural (saúde,
força física, diferenças de idade, etc), mas é a desigualdade política que se desenvolve
em sociedade, autorizada pelo consentimento dos homens. “Esta consiste nos vários
privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais
poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles”
(ROUSSEAU, 1999a, p. 51).
É celebre a afirmação de Rousseau de que o fundador da sociedade civil foi
aquele que tendo cercado um pedaço de terra pronunciou que esta seria propriedade
dele, e em contrapartida encontrou homens suficientemente simples em acreditar nisto.
Quantos crimes e guerras teriam sido poupados, argumentou Rousseau, se os homens
tivessem se defendido deste impostor, lembrando que os frutos pertenciam a todos e a
terra não pertencia a ninguém. Assim, nos parece que para Rousseau a hipótese é que
a propriedade privada é a origem da desigualdade entre os homens.
(...) Ora, nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo,
quando colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos
brutos e das luzes funestas do homem civil, e compelido tanto pelo
instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é
impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso
levado por alguma coisa ou mesmo depois de atingido por algum mal.
Porque, segundo o axioma do sábio Locke, “não haveria afronta se não
houvesse propriedade” (ROUSSEAU, 1999a, p.93).
De acordo com NASCIMENTO (2004), para Rousseau a história hipotética da
humanidade culmina com a legitimação da desigualdade, quando o rico apresenta a
proposta do pacto. Na discussão de ROUSSEAU (1999a) a proposta do pacto tinha
como objetivo assegurar a todos a posse daquilo que lhes pertence. Desta forma, fazia-
se necessário instituir regulamentos de justiça e paz, aos quais todos os homens
seriam obrigados a conformar-se. Não haveria exceções a ninguém, e todos (pobres e
ricos) deveriam submeter-se igualdade mútua de deveres.
Diante desta conclusão denunciou ROUSSEAU (1999a):
Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos
entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente
a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da
desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável
e, para o lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o
gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria (ROUSSEAU,
1999a, p. 100).
Diante desta conclusão, o filósofo que denunciou a desigualdade entre os
homens propôs um pacto social fundado na igualdade entre estes, onde a soberania
emanava do povo e, somente desta forma, o pacto se tornaria legítimo. Para
NASCIMENTO (2004), nos termos de Rousseau, um povo só será livre quando elaborar
suas leis em condições de igualdade. Desta forma, obedecer a tais leis, na verdade,
será submeter-se a deliberação de si mesmo e de cada cidadão. “Isto é, uma
submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um
grupo de indivíduos” (NASCIMENTO, 2004, p. 196).
A vontade geral, para Rousseau, não é caracterizada como a vontade numérica
da maioria, e sim, como o esforço coletivo de traduzir o que há de comum nas vontades
individuais, ou seja, “o substrato coletivo das consciências”.
(...) a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com
a finalidade de sua instituição, que é o bem comum, porque, se a
oposição dos interesses particulares tornou necessário o
estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos
interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses vários
interesses forma o liame social e, se não houvesse um ponto em que
todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir.
Ora, somente com base nesse interesse comum é que a sociedade
deve ser governada (ROUSSEAU, 199 b, p. 85).
Portanto, para Rousseau é essa vontade declarada, que tende sempre à
utilidade pública, ou seja, a vontade geral, que faz a lei. E ao pacto corresponde a
forma de associação que defenda e proteja cada associado de forma comum, onde
“cada um, unindo-se a todos, obedece contudo, a si mesmo, permanecendo assim
tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social
oferece” (ROUSSEAU, 1999b, p. 70).
Para tanto, fica declarado na obra de Rousseau que este processo não se dá,
evidentemente, de maneira cil. O substrato comum que emerge nas discussões do
povo não acontece de maneira consensual, pelo contrário, quanto mais se diferem
entre si as opiniões, mais chances existem de emergir a vontade geral. Contudo,
quando os indivíduos organizam-se em facções, associações, alertou ROUSSEAU
(1999b), tende a prevalecer a vontade particular de um grupo organizado. Desta
maneira, não haverá tantos votos quantos são os homens, e sim quantas são as
associações. E se uma destas for tão grande que sobreponha todas as outras, o que
prevalecerá será o interesse particular de um grupo, a vontade particular. As reflexões
de Rousseau instigaram muitos autores que o sucederam, e ainda hoje, é um desafio
para os estudiosos da ciência política compreender e refletir sobre as possibilidades de
realização dessa vontade geral nas diferentes esferas da relação Estado e sociedade
civil na democracia moderna.
Para Rousseau o regime democrático somente poderia se realizar num Estado
muito pequeno, onde fosse fácil reunir o povo, não havendo acúmulo de questões e
discussões, e ainda, seria necessário “bastante igualdade entre as classes e as
fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir por muito tempo nos direitos e na
autoridade (...)” (ROUSSEAU, 1999b, p. 151). No esforço teórico que procedeu acerca
da maneira dos homens organizarem-se em sociedade, e das observações tecidas
acerca das desigualdades sociais criadas e sustentadas com o consentimento dos
indivíduos, afirmou ironicamente: “Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia
democraticamente. Governo o perfeito não convém aos homens” (ROUSSEAU,
1999b, p. 151).
O papel das corporações na constituição do interesse público teve outra
receptividade por parte de Hegel, que este defendeu esse momento da organização
dos indivíduos como um espaço de legitimação do interesse coletivo. Como firmar
consensos na diversidade de interesses particulares sem espaços de organização e
formação de opiniões? A constituição da vontade geral, do momento ético-universal,
nos parece exigir espaços de interlocução dos diferentes interesses, e a partir desse
momento se pactua o que se concebe como ético e legítimo para cada sociedade.
Talvez pela descrença no papel das corporações, e de outras formas de organização,
que a análise de Rousseau sobre a democracia tenha sido tão pessimista.
A denúncia da desigualdade entre os homens, que procede de Rousseau,
tomará dimensão crítica, no século XIX, com as reflexões de Karl Marx (1818 1883).
A obra de Marx terá como alvo a crítica do Estado capitalista, que se consolidará como
o modelo predominante de Estado moderno no ocidente. O Estado capitalista foi
acusado, pelos socialistas, de atuar na defesa dos interesses da classe burguesa, e
deste modo, seu papel não respondia ao bem comum, assim como afirmaram alguns
dos clássicos dos séculos precedentes, e sim a um interesse bastante particular o do
capital. Esta conclusão levou Marx e Engels, em 1848, num contexto pós-Revolução
Industrial, a afirmar que o moderno Estado burguês não era senão um comitê para
gerenciar os negócios da burguesia. Desta forma, em sua interpretação o Estado não é
um ente neutro, que zela pelo bem comum, pelo interesse geral, universal, ao contrário;
sua institucionalização é perpassada pela diversidade de interesses que se expressam
na organização da vida dos homens em sociedade. Expressa, em última análise, as
contradições da luta de classes.
É importante destacar que o Estado identificado pelos autores no Manifesto do
Partido Comunista, de 1848, como “o comitê para gerenciar os assuntos da burguesia”
teve como momento histórico determinado o modelo de um Estado “restrito”, pautado
pela autoridade absolutista, pela exploração intensa da capacidade de trabalho do
operariado e pela falta de representação junto ao parlamento. Vivia-se o processo de
reivindicação pelo sufrágio universal, não havia espaços públicos onde a diversidade de
interesses pudesse se expressar, e a luta pela ampliação dos direitos da classe
trabalhadora foi travada por inúmeros conflitos, cercados de violência e repressão.
Muito embora, como afirma COUTINHO (1996), Engels, no fim do século XIX, vivendo
as transformações sociais e políticas daquele momento, considerou que a luta da
classe trabalhadora passaria a ser exercida, em certa medida, através de espaços mais
democráticos, como o parlamento, que a partir da conquista do sufrágio universal tinha
a oportunidade de representar os interesses da classe trabalhadora. Esse processo
tornou, concretamente, a relação Estado e sociedade civil mais complexa, que a
diversidade de interesses presentes na sociedade civil pôde gradualmente se expressar
e se articular na esfera pública. Desta forma, o próprio conceito de Estado passa a ser
revisto, e a expressão “comitê da burguesia” não explica mais a gama variada de
interesses pulsantes na esfera estatal.
1.2) O ESTADO CAPITALISTA E OS DIREITOS SOCIAIS
De acordo com KONDER (2003) a perspectiva socialista de Karl Marx e Friedrich
Engels (1820 1895) foi a que prevaleceu nas lutas dos movimentos operários. Estes
socialistas sustentaram que o proletariado, fazendo a revolução que superaria o
capitalismo, asseguraria o pleno exercício da cidadania efetiva a todos os homens.
O culo XIX trazia as contradições de uma sociedade que por um lado se
modernizava
2
, e por outro, acirrava as condições de pobreza da classe trabalhadora. O
processo de industrialização fomentou um aumento considerável dessa classe, que não
possuindo outra coisa, senão a força de trabalho, dava corpo ao proletariado da época.
As condições precárias de vida e de trabalho da classe operária nutriram uma
permanente insatisfação por parte dos trabalhadores, que ao longo do século XIX
encamparam lutas incessantes em prol do reconhecimento da cidadania.
Diante desta conjuntura, Marx desenvolveu sua concepção de Estado e de
sociedade civil. Imbuído de uma análise sistemática da conjuntura de sua época,
respaldado por uma preocupação tanto política quanto teórica, identificou a diversidade
de determinantes e de interesses presentes na construção do sistema capitalista que
emergia e se complexificava. A análise da economia política identificava o Estado como
uma instituição perpassada pelas relações sociais que se consolidavam na sociedade
civil. O Estado expressava a contradição dos interesses de classe, ou seja, a própria
luta de classes, que como observou Marx, compunha o motor da história dos homens
em sociedade, que transformava as relações sociais e de produção.
2
Nas palavras de KONDER (2003), em 1800 começa a ser adotada a iluminação a gás nas cidades, em
1845 chega a iluminação elétrica; tivemos em 1805 a invenção do tear, que melhorou e barateou a
fabricação de tecidos. O domínio da energia a vapor teve poderosas conseqüências nos transportes. A
telegrafia Morse, que tornou a comunicação mais eficiente. Tivemos, no século XIX, muitas outras
inovações como: a fotografia, o alumínio, o aprimoramento da fabricação do aço, a descoberta do
petróleo, o uso do éter como anestésico, a dinamite, o telefone, vacinas contra a raiva e a difteria, o raio
X, a identificação do bacilo da tuberculose, o cinema, a telegrafia sem fio, entre outras.
Na Ideologia Alemã (1845-1846), Marx e Engels expuseram suas concepções
de Estado e sociedade civil. Contrapondo-se ao idealismo hegeliano, a reflexão
concebe o materialismo histórico como o instrumento capaz de tecer uma análise
atenta dos determinantes sociais, políticos e econômicos produzidos pelo modo de
produção capitalista. Na reflexão dos autores, a sociedade civil corresponde à esfera da
produção material, a esfera estrutural, onde os homens se relacionam socialmente,
onde constroem sua existência. Desta forma, a sociedade civil é o cenário da história,
de onde emanam as instituições políticas, jurídicas, sociais e culturais, que
corresponderão ao que os autores designam como Estado, como o momento
superestrutural.
Para GRUPPI (1986), afirmar que o Estado corresponde a superestrutura não
significa dizer que este seja algo supérfluo, tampouco significa conceber a separação
entre Estado e sociedade civil. Assim, defende o autor, a sociedade civil, as relações
econômicas, vivem num Estado determinado, na medida em que o Estado garante
estas relações. “Pode-se dizer que o Estado é parte essencial da estrutura econômica,
é um elemento essencial, justamente porque a garante” (GRUPPI, 1986, p. 27). Da
mesma forma que o Estado escravista garante a dominação sobre os escravos,
acrescentou GRUPPI (1986), o Estado capitalista garante o predomínio das relações de
produção capitalista, a acumulação capitalista. Portanto, na interpretação marxista
podemos entender o Estado como “um elemento que faz parte integrante das próprias
relações de produção capitalistas, mas é determinado por estas” (GRUPPI, 1986, p.
28).
Marx e Engels afirmaram que não é o Estado que cria a sociedade civil, o Estado
carrega as contradições presentes na sociedade civil. Estado e sociedade civil estão
dialeticamente imbricados. Assim, de uma certa maneira, o Estado é sociedade civil,
que o processo de construção da ordem jurídico-formal carrega a multiplicidade de
determinações sociais que emergem da esfera da sociedade civil. Basta, para tanto,
pensarmos que a própria organização jurídico-formal da sociedade – as legislações, por
exemplo nada mais são do que regulamentações de aspectos políticos e sociais que,
num primeiro momento, se expressam na vida dos homens em sociedade. Para
simplificar, não são as leis que criam necessidades de intervenção social, pelo
contrário, elas expressam a sistematização de temas que surgem na esfera da vida dos
homens, na sociedade civil.
Para MARX e ENGELS (1998) a análise das relações econômicas e sociais
indicava a base fundamental de construção das instituições jurídicas, políticas e
culturais da vida dos homens. Foram estes argumentos que os levaram a acreditar que
os indivíduos manifestam sua existência, seus modos de vida e suas formas de
consciência a partir das condições materiais de existência , ou seja, a partir das
relações sociais que se estabelecem no processo de desenvolvimento e construção da
vida em sociedade. Seria algo como o que postulou o sábio educador Paulo Freire: “a
cabeça pensa onde os pés pisam”
3
GRUPPI (1986) coloca ainda que, na perspectiva de Marx e Engels, o Estado
torna-se uma necessidade a partir de um determinado grau de desenvolvimento
econômico, que gera diferenças na posição dos homens nas relações de produção. No
regime capitalista de produção, que se expressa através da divisão da sociedade em
classes sociais – onde o capital detém os meios de produção e os trabalhadores a força
de trabalho – o Estado contém em suas determinações as contradições da vida material
dos homens, das relações sociais vivenciadas na sociedade civil. “Quando se
produzem essas diferenciações nas relações de produção, determinando a formação
de classes sociais e por conseguinte a luta de classes, surge a necessidade do Estado
(...)” (GRUPPI, 1986, p. 30).
Assim, para que essas classes, com interesses econômicos conflitantes, não
destruam a si próprias e a sociedade, coloca GRUPPI (1986), nasce a necessidade de
uma potência que se coloque aparentemente acima da sociedade, que amenize os
conflitos e os mantenha nos limites da ordem. De acordo com o autor, os escritos de
Engels, no século XIX, alertaram que este poder “que procede da sociedade, mas se
coloca acima dela e fica sempre mais estranho a essa mesma sociedade, é o Estado”
(ENGELS, apud GRUPPI, 1986, p. 31).
Desta forma, o Estado representa a necessidade da regulamentação jurídico-
formal da luta de classes, e assim, de acordo com GRUPPI (1986), além de expressar
3
BETTO, Frei. Paulo Freire: a leitura do mundo. Texto discutido pela professora Dra. Divanir Eulália
Naréssi Munhoz, na disciplina Epistemologia e Método nas Ciências Sociais, no Mestrado em Ciências
Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2004. Não publicado.
a dominação de classe do sistema capitalista, expressa ainda um momento de
equilíbrio jurídico e político, um momento de mediação. “O Estado não é somente um
poder brutal, mas é também a busca de um equilíbrio jurídico, embora contraditório,
provisório, transitório” (GRUPPI, 1986, p. 32).
Desta forma, a relação Estado e sociedade civil é concebida como uma relação
dialética, onde os momentos econômico e político se influenciam e se determinam
mutuamente. De acordo com EVANGELISTA (1997), a crítica dirigida ao marxismo,
dentro das ciências sociais, pronuncia que a teoria socialista em Marx considera o
conjunto das relações sociais, das formas de consciência e dos fenômenos políticos,
como manifestações diretas da esfera econômica, e argumenta, que para esta
concepção o “econômico” e o “político” são considerados como momentos diferentes e
antinômicos da luta de classes. Contrapondo-se a esta argumentação, defendeu
EVANGELISTA (1997) que:
(...) A cientificidade do marxismo não está em buscar em causas
econômicas a explicação do processo histórico, mas em apreendê-lo
como totalidade concreta, em constante estruturação orgânica, onde a
estrutura econômica e as dimensões superestruturais são seus
momentos dialéticos (...) (EVANGELISTA, 1997, p. 47).
O autor entende que, tratando o real como uma totalidade concreta, não
podemos separar o “econômico” do “político”, pois ambos são momentos de uma
mesma realidade, e para que possamos de algum modo interpretá-la não podemos
reduzi-la à sua dimensão mais aparente.
Para LUKÁCS (1979), nos termos de Marx, “o mundo das formas de consciência
e seus conteúdos não é visto como um produto direto da estrutura econômica, mas da
totalidade do ser social” (LUKÁCS, 1979, p. 41). Desta forma, coloca o autor, as
categorias econômicas se apresentam em inter-relação dinâmica com o complexo de
forças do ser social, “onde essas inter-relações encontram naturalmente seu centro no
ponto axial desse ser social, ou seja, no homem” (LUKÁCS, 1979, p. 55). Marx analisa
o desenvolvimento das forças produtivas relacionadas ao processo de construção da
vida em sociedade, do impacto deste processo na determinação das relações sociais
criadas pelos homens em sociedade.
Na Introdução à Crítica da Economia Política (1857), Marx analisa a esfera da
produção considerando a cadeia de relações que perpassam este processo. A
distribuição, a troca e o consumo formam um todo coeso que dão corpo às relações e
as instituições sociais criadas no contexto da sociedade capitalista. MARX (1983)
apontou em suas análises que a produção condiciona a distribuição, o consumo e as
necessidades humano-sociais das sociedades capitalistas. Assim, tanto a relação
produção-consumo, quanto produção-distribuição passam a desmembrar determinantes
que não apenas os econômicos, também os sociais e políticos.
Desta maneira, MARX (1983) argumentou que sem necessidade não
consumo, e desta forma não produção. O consumo não se realiza sem o objeto da
produção, esta por sua vez cria, produz o consumo. Mas o objeto não é a única coisa
que a produção ao consumo, ela determina o seu aspecto, o seu caráter, o
acabamento.
A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida
com faca e garfo, não é a mesma fome que come a carne crua
servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes. Por conseguinte, a
produção determina não o objeto do consumo, mas também o modo
de consumo, e não de forma objetiva, mas também subjetiva. Logo,
a produção cria o consumidor (MARX, 1983, p. 210).
Da mesma forma, conclui MARX (1983), a produção condiciona as formas de
distribuição, não no que diz respeito ao objeto, resultado da produção a ser
distribuído, mas principalmente no que diz respeito ao modo de participação na
produção e nas formas particulares de distribuição. Esse processo se realiza a partir
das relações sociais construídas em sociedade pelos indivíduos. Desvendar estes
determinantes do processo produtivo implica em considerar que a maneira como se
produz e se distribui a riqueza em uma dada sociedade é resultado, além de uma
conjuntura econômica, de uma opção política.
Na contribuição de LUKÁCS (1979), a relação entre produção e distribuição em
Marx nos coloca tanto diante de formas econômicas, quanto do mundo histórico-social,
ou seja, de formas extra-econômicas. O esquecimento dessa relação, frisa o autor,
transforma o marxismo em “economicismo”. Assim, em Marx a produção é entendida
como produção e reprodução da vida humana e, portanto, não pode deixar de ter um
acentuado caráter econômico, social e político. “É essa forma geral da produção que
determina a distribuição no sentido marxiano” (LUKÁCS, 1979, p. 72).
De acordo com MARX (1983), tem-se claro, portanto, que a distribuição dos
produtos implica também a distribuição dos instrumentos de produção e dos próprios
membros da sociedade; mas que o modo de produção que se adota é
fundamentalmente determinante da nova (re) leitura que se fará da distribuição. Como
exemplo, dirá o autor, em todas conquistas existem três possibilidades: primeira, o
povo que conquista impõe ao conquistado seu modo de produção; segunda, deixa
subsistir o antigo modo de produção, e passa a cobrar-se tributos; por fim, pode haver
uma ação recíproca entre os dois, entre o modo de produção do povo conquistador e
do povo conquistado, uma síntese entre os dois. Em suma, colocou MARX (1983), em
qualquer dos casos haverá uma nova resultante do modo de produção adotado, que
por si, configurará uma determinada maneira de distribuição específica. Desta forma,
embora numa primeira observação a distribuição aponte-se como prévia à produção
(seja na distribuição dos instrumentos, das pessoas, da terra, etc) ela própria é, por sua
vez, “um produto da produção, não da produção histórica em geral, mas desta ou
daquela produção histórica determinada” (MARX, 1983, p. 215).
Isto posto, podemos compartilhar da consideração de LUKÁCS (1979), quando
comenta a obra de Marx, afirmando que:
(...) Somente quando o caráter predominante da produção no processo
de surgimento e modificação da distribuição é colocado de modo claro é
que se torna possível compreender corretamente a relação entre
econômico e extra-econômico (LUKÁCS, 1979, p. 73).
Neste sentido, em relação à obra marxiana, aconselha o autor, todo fato deve ser
visto como um complexo dinâmico, que envolve a interação com outros complexos,
sendo determinado por uma multiplicidade de leis. Para LUKÁCS (1979), essa é a
ontologia de Marx, que funda-se na unidade materialista-dialética. Se assim não
pudermos compreender tais articulações, decerto não compreenderemos sequer a
economia em Marx.
Neste sentido, a atuação do Estado é necessária a manutenção e ao
desenvolvimento do modo de produção capitalista. A distribuição de renda e riqueza
produzida neste contexto se realizará predominantemente via políticas sociais. De um
lado estas ações representarão ganhos expressivos à classe trabalhadora, de outro
expressarão incentivo à ordem burguesa como recriação do valor, via salário indireto e
fomento ao fundo público.
Nesta perspectiva, assim como GRUPPI (1986) defendeu a importância do papel
do Estado na garantia e manutenção das relações de produção capitalistas, na
acumulação capitalista, OFFE e RONGE (1984) colocam que o conceito de Estado
capitalista “refere-se a uma forma institucional do poder público em sua relação com a
produção material” (OFFE e RONGER, 1984, p. 123), e de acordo com os autores esta
forma institucional de poder está caracterizada, entre outras coisas, pela dependência
dos impostos, via mecanismos do sistema tributário, do volume da acumulação privada.
Assim, como o Estado depende do processo de acumulação capitalista, seu interesse
“consiste em manter as condições de exteriorização de seu poder através da
constituição de condições políticas que favoreçam o processo privado de acumulação”
(OFFE e RONGER, 1984, p. 124).
É neste sentido, portanto, que o Estado exerceu papel fundamental na
dinamização do processo de industrialização das sociedades ocidentais. IANNI (1989),
afirmou que à medida que a industrialização se desenvolve as forças sociais propiciam
a transformação do Estado em um centro de dinamização das forças produtivas e das
relações de produção. Assim, através de diretrizes financeiras, tarifárias e cambiais,
linhas de crédito, isenções e incentivos, o Estado; segundo IANNI (1989), induz
investimentos, reinversões e expansões. Neste sentido torna-se importante criar toda
uma infra-estrutura necessária à expansão da produção industrial, como rede de
transportes e comunicação, indispensáveis às exigências de um mercado interno em
expansão e as conveniências das relações externas. É desta maneira, portanto, que
para IANNI (1989), adota-se o planejamento econômico governamental nos âmbitos
federal, estadual e municipal; estabelecendo diretrizes, incentivos, favores, induzindo
investimentos, expansões, etc.
EVANS (1993) aponta em suas reflexões a importância crucial do papel do
Estado na aplicação consistente de políticas; seja, por exemplo, na implantação de
indústrias ou na correção de preços. Tal processo depende, de acordo com o autor, de
um conjunto complexo de mecanismos políticos. “A relação de troca entre ocupantes de
cargos e apoiadores é a essência da ação do Estado” (EVANS, 1993, p. 112), e
expressa as opções e decisões políticas no sentido do controle de câmbio, restrições
ao credenciamento de produtores no mercado via tarifas, restrições às importações,
etc. Na análise do autor, os mercados funcionam bem quando apoiados por outros tipos
de redes sociais e com as políticas do Estado. O desenvolvimento econômico depende
da ação dos Estados nacionais no processo de incentivo e expansão do capitalismo. Os
países de industrialização tardia, por exemplo, valeram-se do poder do Estado para
mobilizar recursos necessários à expansão do sistema produtivo. Ao Estado, no
contexto do capitalismo, cabe ainda o estímulo ao investimento em atividades
produtivas, extraindo o excedente, mas também produzindo bens coletivos. Essas
iniciativas do Estado podem gerar modelos distintos de ação, ou seja, modelos voltados
ao desenvolvimento, ou ao contrário, modelos predatórios.
Além de agente estimulador do mercado competitivo, o Estado capitalista ocupa
importância no processo de intervenção da distribuição de renda socialmente
produzida. É necessário reconhecer que as garantias das demandas sociais
representam além de uma forma de manter o controle sobre a ordem capitalista
ganhos substanciais à classe trabalhadora. Pensando de acordo com as indicações de
Marx, que a esfera da produção influencia o modo de distribuição, observamos que no
contexto do Estado capitalista moderno a distribuição da renda socialmente produzida
se dá, entre outras maneiras, via políticas sociais, implementadas através de ações
governamentais. As reflexões acerca da constituição e do papel das políticas sociais
evidenciam um campo bastante polêmico, onde o conflito capital-trabalho se apresenta
como a origem das lutas pela conquista dos direitos sociais. Por isso, VIEIRA (2004)
afirmou que “a política econômica e a política social relacionam-se intimamente com a
evolução do capitalismo” (VIEIRA, 2004, p. 136).
O desenvolvimento da urbanização, com a organização da infra-estrutura,
saneamento básico, habitação, iluminação, transporte, etc; são resultados desse
processo de interlocução das esferas econômica e social. De um lado, a
industrialização, e conseqüentemente a emergência das áreas urbanas, necessitava
dessa infra-estrutura para se desenvolver, e de outro, os trabalhadores reivindicavam
melhores condições de vida. A organização da classe trabalhadora é o grande marco
da luta por direitos sociais e da legitimação do papel das políticas sociais. Para VIEIRA
(2004):
A política social aparece no capitalismo construída a partir das
mobilizações operárias sucedidas ao longo das primeiras revoluções
industriais. A política social, compreendida como estratégia
governamental de intervenção nas relações sociais, unicamente pôde
existir com o surgimento dos movimentos populares do século XIX
(VIEIRA, 2004, p. 140).
A análise de SINGER (2003) nos mostra que, “com todas suas deficiências, as
primeiras Leis Fabris foram os primeiros direitos sociais legalmente conquistados na era
do capitalismo industrial” (SINGER, 2003, p. 222). O autor coloca que as limitações de
idade para o trabalho infantil e da jornada de trabalho para crianças e adolescentes são
intervenções significativas do Estado no funcionamento livre do mercado. Da mesma
forma, outras conquistas da luta dos trabalhadores, ao longo do século XIX e XX,
regulamentaram-se como direitos sociais e políticos. O direito de organização operária,
a redução da jornada de trabalho, a garantia do salário mínimo, a conquista do sufrágio
universal, os direitos previdenciários, o acesso aos espaços de deliberação política,
entre outros.
Diante deste quadro, VIEIRA (2004) coloca que é no cotidiano dessas lutas
políticas que o governo vai fixando a orientação da política econômica e da política
social. Por isso, alerta o autor, a política econômica e a política social constituem uma
unidade, e podem expressar mudanças nas relações entre as classes sociais ou entre
grupos sociais existentes no interior de uma classe. Desta forma,
(...) Não se pode analisar a política social sem se remeter à questão do
desenvolvimento econômico, ou seja, à transformação quantitativa e
qualitativa das relações econômicas, decorrente do processo de
acumulação particular de capital. (...) Não se definindo a si, nem
resultando apenas do desabrochar do espírito humano, a política social
é uma maneira de expressar as relações sociais, cujas raízes se
localizam no mundo da produção (VIEIRA, 2004, p. 142).
É pelo profundo imbricamento das políticas econômica e social que VIEIRA
(2004) se preocupa em expor a importância da planificação e do estabelecimento de
objetivos das ações governamentais. Desta forma observa que, caracterizando-se
como uma decisão governamental, a planificação não consiste apenas em um
problema técnico, sua elaboração depende, sobretudo, de seu conteúdo político. Por
isso alerta que, a criação de planos não pode ser uma função exclusiva dos órgãos de
planejamento, pois se trata também de uma atividade social. Se isso não ocorrer,
denuncia o autor, não existirá planificação, mas unicamente programação econômica.
A relação entre o desenvolvimento econômico e as lutas pelos direitos sociais
acompanha todo o processo histórico que desembocará na reconfiguração do papel do
Estado capitalista. A questão social, originária da emergência do capitalismo e da
conseqüente organização dos trabalhadores na luta pela melhora das condições de
vida, colocou diante do Estado a necessidade da ampliação da intervenção do poder
público na garantia e no reconhecimento da legitimidade das demandas populares.
Desta forma, a pobreza, que antes fora vista como “caso de polícia” , tratada de
maneira repressiva; como bem retratou IANNI (1989), aos poucos assumiu um caráter
político, inscrevendo perante o Estado a necessidade de reconhecimento público.
As organizações e pressões do operariado estiveram atreladas, na primeira
metade do século XX, a significativas crises econômicas. Na década de 1930
vivenciamos a Grande Depressão, que a partir dos Estados Unidos se difundiu por todo
o mundo (que resultou no alto índice de desemprego e aumento da pobreza) e na
década de 1940 tivemos a Segunda Guerra Mundial. SINGER (2003) nos lembra que o
período pós-guerra possibilita às camadas populares a conquista de direitos sociais,
que durante a guerra o Estado concentra suas ações nas atividades bélicas. a
destruição de equipamentos e infra-estrutura econômica e social, greves são evitadas e
reivindicações são adiadas até que a normalidade se estabeleça. Assim, de acordo
com o autor, para compensar os trabalhadores por tais renúncias, os governos fazem
promessas de que os direitos sociais, após o fim da guerra, serão ampliados e
multiplicados.
Neste contexto, de acordo com SINGER (2003) na década de 1930, nos Estados
Unidos, o presidente Roosevelt adotou políticas de expansão do gasto público e de
aprovação de leis trabalhistas, como a regulamentação de sindicatos, a jornada de
trabalho de 40 horas, o salário mínimo, seguro desemprego, etc. Essa política foi
denominada New Deal, e foi notável “porque assumiu a responsabilidade estatal de
combater o desemprego, no que pode ser visto como uma forma moderna de responder
à demanda histórica pelo ‘direito ao trabalho’” (SINGER, 2003, p. 241). COSTA (2005)
observa que, devido ao impacto social da crise de 1929 o governo Norte Americano
apresentou uma atuação mais abrangente por parte do Estado, evitando que a fome e a
miséria deteriorassem a sociedade.
A defesa da intervenção do Estado na economia capitalista, proporcionando o
pleno emprego e o gasto blico como forma de evitar crises econômicas, foi
contemplada pelo economista inglês Keynes (1883 1946). De acordo com COSTA
(2005), a análise dos riscos políticos da crise da economia capitalista proporcionou o
debate sobre a necessidade de regulação da esfera econômica. Assim, as idéias de
Keynes defenderam a necessidade do papel do Estado na “adoção de uma política
econômica voltada para ativar o consumo e expandir a produção em conjunturas
marcadas pela queda da atividade econômica” (COSTA, 2005, p. 51). A autora lembra
que, de acordo com Keynes, “o Estado deveria ter funções mais amplas para evitar as
crises econômicas e sociais, considerando que os gastos públicos eram necessários
para evitar a queda do consumo, mantendo o nível da atividade econômica” (COSTA,
2005, p. 51).
Diante deste contexto histórico, em 1942, na Inglaterra, elaborou-se um dos mais
importantes programas de Seguridade Social. De acordo com SINGER (2003) o Plano
Beveridge foi inovador na medida em que, diante do receituário keynesiano, procurou
universalizar os direitos sociais, propondo que a responsabilidade pelo Estado de Bem-
Estar Social deveria ser assumida pelo Estado e custeado pelos contribuintes. Para
SINGER (2003) essas medidas possibilitaram a implementação do imposto de renda
progressivo, que gravava com mais intensidade as rendas elevadas. Desta forma, o
Plano Beveridge inspirou a construção do Estado de Bem-Estar em numerosos países.
Neste sentido, após a década de 1940 a ampliação do acesso à saúde, educação,
previdência social, assistência social, entre outros; realizou-se de maneira mais efetiva
nos países de economia capitalista.
Para OLIVEIRA (1988) o Estado de Bem Estar, ou Welfare State,
(...) constituiu-se no padrão de financiamento público da economia
capitalista. Este pode ser sintetizado na sistematização de uma esfera
pública onde, a partir de regras universais e pactadas, o fundo público,
em suas diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento
da acumulação de capital de um lado,e, de outro, do financiamento da
reprodução da força de trabalho, atingindo globalmente toda a
população por meio dos gastos sociais.
Desta forma, os gastos sociais colaboraram com a ampliação do capital na
medida em que serviram de salário indireto para a força de trabalho, tornando mais
barata a mão de obra assalariada.
A reflexão de COSTA (2005) nos coloca que nos países em desenvolvimento os
Estados nacionais, através do fundo público, tornaram-se agentes dos processos de
industrialização e de modernização da estrutura produtiva. Porém, de acordo com a
autora, o Estado não foi capaz de alterar a situação de pobreza em que se encontrava
grande parcela da população, já que o objetivo central da política econômica era criar
condições de reprodução para o capital.
Contudo, o processo de industrialização, que suscitou a formação de uma ampla
classe operária, gerou reivindicações dos trabalhadores por direitos sociais. Desta
forma, segue-se no Brasil, a partir da década de 1940, um processo de legalização de
parte das reivindicações do operariado nascente. O Estado, aos poucos, passará a
ofertar serviços previdenciários, de saúde, educação e apoio, através de subvenções,
às ações assistenciais. É legalizado o direito de organização sindical (embora este
tenha sido suprimido durante a vigência do Estado Novo, de 1937 a 1945), criado o
salário nimo, e em 1943 tivemos a regulamentação da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT). Vale lembrar que as primeiras garantias sociais incorporaram somente
o segmento dos trabalhadores urbanos, que atuavam no mercado formal de trabalho.
Assim, de acordo com COSTA (2005), quando analisa o contexto de
modernização do Estado brasileiro, a tarefa de modernizar a sociedade exige a
ampliação da ação do Estado, criando uma nova relação entre os direitos sociais e os
deveres do Estado. “Não se constrói uma economia urbano-industrial sem melhorar a
infra-estrutura social e o nível escolar e sanitário da população” (COSTA, 2005, p. 124).
Na análise da autora, a proposta de desenvolver o país foi concebida como
industrialização, onde o processo de substituição de importação deveria mudar a
dependência do Brasil frente aos países centrais. As políticas públicas tinham o objetivo
de gerar dinamismo econômico, atraindo investimentos externos e alterando a inserção
do Brasil no mercado mundial. Contudo,
A experiência do processo desenvolvimentista no Brasil gerou uma
diferenciação do sistema produtivo, com níveis de distribuição de renda
nos setores mais dinâmicos da economia, sem resolver os problemas
das desigualdades regionais e do quadro social. Porém, não criou
bases efetivas de autonomia para o Estado Nacional, senão, agravou o
processo de dependência (COSTA, 2005, p. 131).
O processo de industrialização brasileiro esteve fortemente apoiado pelo capital
estrangeiro, elevando a dívida externa do país com organismos internacionais, como o
Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). IANNI (1989) alertou para o fato
de que essa relação com a dívida externa pode permitir que bancos estrangeiros e
governos de países imperialistas influenciem decisivamente não os processos
econômicos, mas também os sociais e políticos.
Desta forma, no Brasil, os direitos sociais funcionaram também como forma de
controlar as reivindicações de amplos segmentos populares diante das insatisfações
geradas pelo processo contraditório de modernização do país e acirramento das
condições de pobreza da classe trabalhadora. Concentração de renda e repressão
política foram os fatores que, aliados, movimentaram segmentos da sociedade civil nas
décadas de 1970 e 1980. O país viveu a represália da Ditadura Militar durante duas
décadas (1964 1984) e embora os direitos sociais tenham sido ampliados de alguma
forma, como a extensão da cobertura aos trabalhadores rurais, a ação do Estado na
área social foi residual no sentido da distribuição de renda.
A partir dos anos 1980 a teoria econômica keynesiana passou a ser rejeitada
pelos países de economia capitalista. As eleições de Tatcher, na Inglaterra, e de
Reagan, nos Estados Unidos, significaram a retomada da ortodoxia econômica, com
contenção de gastos públicos, controle da inflação e retirada do Estado na intervenção
da economia. O ficit público foi apontado como resultado do processo da ampliação
das ações do Estado no financiamento da área social. OLIVEIRA (1988) acredita que
este argumento possui um indisfarçável acento ideológico, pois o termo “crise do
Estado-Providência” é mais freqüentemente “associado à produção de bens sociais
públicos e menos à presença dos fundos públicos na estruturação da reprodução do
capital” (OLIVEIRA, 1988, p.11).
Desta forma, o neoliberalismo, movimento político que se generaliza a partir da
década de 1980, passou a atacar de maneira enfática os custos do Estado de Bem
Estar. Como conseqüência da hegemonia dessa corrente de idéias, os estados
nacionais passaram a reduzir os gastos na área social. Nas palavras de COSTA (2005),
o ideal do livre mercado foi a bandeira desse movimento conservador, que redefiniu as
relações sociais no mundo trabalho, causando a flexibilização do emprego, a
terceirização da produção e o desemprego estrutural, e como conseqüência a quebra
do poder político dos sindicatos. A globalização da economia exigiu dos países
periféricos a adesão aos preceitos neoliberais, e a classe trabalhadora, que participava
precariamente do acesso a renda e a riqueza produzida, teve seus direitos sociais
ameaçados. Neste cenário, a política social se encontra num campo bastante complexo
de disputa e legitimação de interesses, pois como direito social representa a
desmercantilização do consumo, via distribuição de renda e acesso aos serviços
públicos, no entanto; inserida no modelo político neoliberal torna-se alvo do processo
de mercantilização das necessidades humanas. Temos assistido, nos países de
economia capitalista, em maior ou menor grau, a invasão do mercado na prestação de
serviços básicos e essenciais à sobrevivência, como saúde e educação.
No Brasil, o cenário das décadas de 1970 e 1980 foi representado pela
articulação da diversidade de segmentos da sociedade civil, que não reconhecia no
Estado a representação do interesse coletivo. IANNI (1989) havia colocado que na
história da formação do capitalismo no Brasil, as razões do Estado e do capital
confundem-se. Neste sentido “o discurso do poder foi principalmente o da economia,
das razões do capital; e não o da política, no sentido de dirigência, hegemonia” (IANNI,
1989, p. 263). Assim, alegou o autor, numa sociedade em que o Estado se compromete
com setores restritos, a maioria do povo se sente sem representação. “Há um profundo
divórcio entre amplos setores da sociedade (...) e as tendências expressas no Estado”
(IANNI, 1989, p. 262).
A mobilização popular, para inscrever na agenda pública as demandas dos
setores tradicionalmente marginalizados da sociedade, tomou espaço na década de
1980, e considera-se a promulgação da Constituição da República de 1988 como o
marco histórico da conquista dessas reivindicações. O direito de a sociedade civil
organizada participar da gestão do Estado é regulamentado, e assim o próprio conceito
de Estado torna-se ampliado, englobando a diversidade de interesses nas discussões e
deliberações públicas.
1.3) A AMPLIAÇÃO DO ESTADO
A partir do século XX a classe trabalhadora passou a consolidar uma série de
conquistas sociais e políticas. O sufrágio universal possibilitou a representação de
demandas populares nos parlamentos, e a organização da classe trabalhadora deu
forma aos sindicatos e partidos políticos. Neste sentido, tivemos como resultado deste
processo a pressão por parte dos segmentos organizados da sociedade civil por
espaços de participação nas decisões públicas.
Gramsci (1891 1937), vivenciando o contexto histórico do século XX, com a
dinâmica da ampliação dos sindicatos, dos partidos políticos de massa e a proliferação
dos meios de comunicação que muitas vezes foram utilizados pelo operariado como
veículo de denúncia da exploração e de articulação de movimentos políticos
sistematizou um de seus conceitos centrais, o de “Estado Ampliado”.
De acordo com COUTINHO (1996) a ampliação do conceito de Estado nos
marxistas mais recentes resulta do desenvolvimento objetivo do modo de produção e
da formação econômico-social capitalistas. Desta maneira, ao introduzir novas
determinações na esfera do ser social e da política, “a dinâmica do desenvolvimento
histórico-ontológico tornou necessária a superação dialética de uma concepção ‘restrita’
do Estado, na medida em que o próprio Estado se ampliou objetivamente (...)”
(COUTINHO, 1996, p. 17).
A diversidade de interesses presente na sociedade civil pressionava as
autoridades públicas; e as inúmeras organizações de massa passaram, em certa
medida, a influenciar nas decisões do Estado. Isso, evidentemente, nos lugares onde a
sociedade civil havia se desenvolvido a tal ponto. Desta forma alertou GRAMSCI
(2000), existia a necessidade de um acurado reconhecimento do caráter nacional de
cada Estado. Foi assim que o autor concebeu os conceitos de sociedades orientais e
ocidentais, percebendo tais especificidades.
No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e
gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma
justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer
uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma
trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de
fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado (...)
(GRAMSCI, 2000, p. 262).
Portanto, na diferenciação do autor as sociedades ocidentais são mais
complexas, se expressam através da pluralidade de organizações, e desta maneira
suas demandas se incorporam ao Estado, inscrevendo no espaço público os conflitos
sociais, políticos e econômicos vivenciados no âmbito da sociedade civil.
Na interpretação de BOBBIO (1982), se nos termos de Marx a anatomia da
sociedade civil deve ser buscada na economia política, nos de Gramsci não é a
estrutura econômica que determina a ação política, mas sim a interpretação que se tem
dela e das chamadas leis que governam o seu movimento. Segundo o autor, Gramsci
não esquece as condições materiais, mas tem consciência de que as condições
materiais, por si s, não movem a história. O movimento da história depende da
consciência que esse ou aquele grupo social tem acerca das possibilidades de ação e
de luta que lhe são permitidas pelas condições concretas. Por causa dessa relação os
temas da ideologia, da cultura, da educação e do papel dos intelectuais ocuparam
espaço importante nas análises do pensador italiano.
Neste sentido, Gramsci incorpora ao conceito de sociedade civil os diversos
canais de expressão que se originam a partir do século XX, e que expressam na esfera
pública a diversidade de interesses sociais. Esses canais como escolas, meios de
comunicação, igrejas, etc foram por ele denominados de “aparelhos privados de
hegemonia”, e exercem a função de formação da opinião pública, ou seja, designam “o
conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias
(...)”. (COUTINHO, 1984, p. 78). SIMIONATTO, analisando o pensamento político de
Gramsci, alerta que esses aparelhos podem inculcar nas classes exploradas uma
subordinação passiva, através de ideologias formadas historicamente, e “quando isso
acontece, a subalternidade social também significa subalternidade política e cultural”
(SIMIONATTO, 2004, p. 44).
Na análise de COUTINHO (1996), a sociedade civil em Gramsci corresponde ao:
(...) conjunto das instituições responsáveis pela representação dos
interesses de diferentes grupos sociais, bem como pela elaboração
e/ou difusão de valores simbólicos e de ideologias; ela compreende
assim o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, as
organizações profissionais, os meios de comunicação, as instituições
de caráter científico e artístico, etc (COUTINHO, 1996, p. 54).
Na medida em que os segmentos da sociedade civil se organizam, se articulam e
conseguem inscrever suas demandas no espaço público, o Estado incorpora parte
dessas reivindicações, como vimos, por exemplo, na conquista dos direitos sociais. A
regulamentação das legislações trabalhistas pode ser vista como um dos resultados
desse processo.
Assim, o Estado conta com uma esfera de aparelhos burocrático-coercitivos, que
asseguram o monopólio legal; e também com uma esfera do consenso, que expressa a
“vontade política coletiva” dos segmentos da sociedade civil. A primeira (a esfera da
coerção) Gramsci identifica como “sociedade política” e a segunda (a do consenso)
como “sociedade civil”. De maneira bastante sintética, podemos colocar que para o
autor o “Estado Ampliado” corresponde à sociedade política mais sociedade civil. De
acordo com GRAMSCI (2000), na linguagem comum, no cotidiano, costuma-se
relacionar o Estado com a sociedade política, contudo, adverte, esta é uma concepção
vulgar de Estado.
Estabelecer a relação de consenso entre a diversidade de interesses presentes
na sociedade civil implica na realização da hegemonia. Para GRAMSCI (2000) a
realização dessa “vontade política coletiva” garante a legitimidade moral e política dos
valores compartilhados pelos indivíduos. Por isso em suas análises as questões da
“formação de opinião” e da “política” ocupam espaço relevante. Para o autor, a
consolidação do poder de direção do Estado se com a conquista da hegemonia no
âmbito da sociedade civil. É a sociedade civil quem legitima o poder do Estado. Para
SIMIONATTO (2004), a estratégia de realização da hegemonia aponta para um
processo de luta na conquista da direção político-ideológica dos setores mais
expressivos da população, como forma de manter o poder.
Com isso GRAMSCI (2000) coloca que, o que se entende por opinião pública
está estreitamente ligado à hegemonia política, ao momento de contato entre a
“sociedade política” e a “sociedade civil”, entre a força e o consenso. Desta relação
pode-se exemplificar que, quando o Estado “quer iniciar uma ação pouco popular, cria
preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos
elementos da sociedade civil” (GRAMSCI, 2000, p. 265).
De acordo com COUTINHO (1989), no capitalismo tende a prevalecer os
interesses da classe proprietária, e esta, através do “Estado-coerção” e dos “aparelhos
privados de hegemonia”, legitima seu poder econômico e político. Para o autor, na
interpretação de Gramsci a conquista da hegemonia se na medida em que uma
classe se transforma em classe nacional, dirigente. Uma classe torna-se dominante na
medida em que detém o consenso da maioria da população, ou seja, quando mantém a
hegemonia na sociedade civil.
Mesmo que no capitalismo exista essa tendência de concentração do poder
político e econômico numa classe, Gramsci apontou a sociedade civil como um espaço
onde a disputa pela legitimidade de interesses oportuniza uma maior permeabilidade da
diversidade de demandas na gestão de assuntos de interesse público. Sua tese
colabora na interpretação de questões contemporâneas, na medida em que a
sociedade civil expressa uma gama bastante variada de lutas políticas.
COUTINHO (1996), ao discutir as categorias hegemonia e vontade geral, aponta
um diálogo entre as reflexões de Gramsci, Rousseau e Hegel. Gramsci define a política
como “catarse”, ou seja, a entende como o momento da superação de interesses
egoístico-passionais, corporativos, transcendendo ao nível ético-político, onde
prepondera o interesse universal. Em Rousseau, acrescenta COUTINHO (1996), a
vontade geral se realiza mediante a construção de um sujeito coletivo, que atuando
segundo o interesse comum, subordina a ele os interesses puramente privados. Em
Hegel, reflete o autor, a sociedade civil, que corresponde à esfera dos interesses
privados, sofre as mediações das associações particulares e culmina na
universalização da vontade, no momento ético, que nos termos hegelianos corresponde
ao Estado. Desta forma, na discussão de COUTINHO (1996), a hegemonia
corresponde a aceitação consensual de um mínimo de regras e valores coletivamente
partilhados por governantes e governados, que se materializa através da criação da
vontade coletiva, que articulando diferentes grupos sociais é capaz de operar a
superação de seus interesses “econômico-corporativos” em função da criação de uma
consciência “ético-política”, “universalizadora”.
Diante destes argumentos nota-se a importância de reconhecer que a política é
uma atividade que necessita de construção coletiva, e que a legitimidade do pacto
político está na capacidade do Estado de expressar e garantir o que em comum na
diversidade de interesses presentes na sociedade civil. Essa disputa de interesses na
construção de um projeto político nos faz crer que o Estado é “um campo de disputas,
no qual a correlação de forças, a movimentação social e a organização política dos
interesses têm papel decisivo” (NOGUEIRA, 2004, p. 61). Por isso, NOGUEIRA (2004)
defende que o Estado pode ser assimilado tanto como uma estrutura de dominação
quanto como parâmetro ético de convivência, local de encontro de discussões e
soluções para os problemas sociais.
A construção de um pacto político que expresse a articulação da diversidade de
interesses e a construção do interesse coletivo depende, decisivamente, de canais
mediadores de discussão e do engajamento político de atores sociais. Viver a política
implica na disposição do “sair-de-si e pensar o outro: pensar portanto o conjunto de
interesses, a correlação de forças, o governo, a dominação, as necessidades e as
possibilidades” (NOGUEIRA, 2004, p. 63). Neste sentido, a gestão democrática e
participativa pode vir a representar uma forma de viver a política, onde os sujeitos
aprendam a participar dos processos de discussão e construção de um patamar mais
ético de convivência em sociedade, afinal “nenhuma sociedade civil é imediatamente
política. Sendo o mundo das organizações, dos particularismos, da defesa muitas vezes
egoísta e encarniçada de interesses parciais, sua dimensão política precisa ser
construída” (NOGUEIRA, 2004, p. 103).
Desta forma, percebe-se que inscrever na esfera pública as demandas advindas
de setores subalternos da sociedade, ainda hoje, é um imenso desafio. No contexto
capitalista, o Estado, e mais especificamente a sociedade política (aqui compreendida,
nos termos gramscianos, como o momento da coerção e da manutenção da ordem),
tende a privilegiar iniciativas de incentivo ao capital. No entanto, no contexto das
modernas sociedades ocidentais a expansão dos canais democráticos de participação
veio, principalmente a partir do século XX, assumindo cada vez mais espaço no âmbito
da sociedade civil (momento da mediação, do consenso e da tomada de posição da
diversidade de interesses), provocando discussões de relevância pública, como a
garantia dos direitos sociais e humanos.
Amplos segmentos da sociedade civil vêm se organizando na defesa de um
patamar mais ético de convivência entre os homens. No Brasil, por exemplo,
observamos a partir da década de 1980, principalmente, a organização de uma
multiplicidade de canais mediadores na relação Estado e sociedade civil. Os
movimentos sociais, associações de bairro e conselhos gestores de política são alguns
exemplos dessa relação. A organização desses segmentos sociais implica no
reconhecimento por parte da esfera estatal das demandas de setores tradicionalmente
excluídos dos processos de decisão política, de setores que muitas vezes não se
reconhecem nas tomadas de posição dos Estados nacionais. Ainda assim, é necessário
reconhecer a complexidade da moderna sociedade civil, que, como alertou Gramsci,
abarca uma diversidade de interesses. no seio da sociedade civil um tensionamento
entre a divergência de interesses dos segmentos organizados, que por um lado, atuam
com valores individualistas privados, e por outro, buscam o interesse coletivo, público.
Para COUTINHO (1984) Gramsci, ao tecer a proposta da “reforma intelectual e
moral”, da importância da revolução cultural, parece supor a necessidade de uma luta,
no terreno da política, para eliminar a alienação que se expressa num Estado separado
da sociedade. Ao frisar a importância da obra gramsciana para a interpretação do
contexto brasileiro, COUTINHO (1984) lembra que o progresso das forças produtivas e
a modernização da estrutura social no Brasil se fizeram através da conciliação dos
interesses das classes que dominavam economicamente (latifundiários e burguesia em
ascensão), ou seja, “de cima para baixo”, marginalizando as forças populares das
grandes decisões nacionais. Esse processo pode ser relacionado ao que Gramsci
chamou de “Revolução Passiva”
4
, para destacar a ausência das massas no processo
de transformação econômico-social de uma sociedade.
NOGUEIRA (2000) acredita que o processo de modernização econômico-social
vivenciado pelo Brasil, principalmente a partir da década de 1960, deu vigor à
movimentação e vocalização de demandas de diversos segmentos da sociedade civil.
No entanto, essas agregações caracterizaram-se mais em expressões de interesses
particulares do que na fundação de novas concepções de mundo ou de programas para
a sociedade. Isso tudo porque, defende o autor, a fase mais forte do processo de
modernização transcorreu em conexão com uma longa ditadura política. Assim, “nós
nos tornamos modernos no plano da economia e da sociedade, no plano dos valores e
da movimentação social, sem conseguirmos modernizar as instituições políticas de
representação” (NOGUEIRA, 2000, p. 123).
Ainda assim, COUTINHO (1984) acrescenta que o impacto da repressão da
Ditadura Militar no Brasil fomentou a construção de forças democráticas no âmbito da
sociedade civil, onde lutava-se para a formação de um novo regime político, centrado
no consenso, e não na coerção. A conquista do regime democrático brasileiro, na
década de 1980, expressa, entre outros determinantes, a organização dos segmentos
da sociedade civil. Por isso COUTINHO (1984) defendeu que a luta pela democracia
representou a construção de um projeto de hegemonia na sociedade brasileira.
Para NOGUEIRA (2000), o inegável avanço da democracia política nos anos de
1980 e 1990, no Brasil, encontrou limites na precária politização da sociedade, pois os
setores mobilizados conservavam a dificuldade de passar do plano imediato da
reivindicação econômico-corporativa à política estatal, o que acabou gerando um fosso
entre a sociedade civil e o Estado. O Estado passou a responder aos interesses dos
segmentos mais articulados e que exerciam mais pressão política. O poder público
esteve, neste sentido, comprometido com o desenvolvimento industrial do país e com
os setores sociais a ele vinculados. “Ao invés de se impor aos interesses privados, o
4
A reflexão acerca da “revolução passiva” vivenciada pelo Brasil pode ser encontrada, de maneira mais
aprofundada, em: FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. 3.ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1987.
poder público continuou reduzido a objeto desses interesses” (NOGUEIRA, 2000, p.
123).
Quando a sociedade não se reconhece nas tomadas de decisão do Estado,
que estas, por vezes, respondem aos interesses particulares de alguns segmentos
específicos da sociedade, os canais de mediação do processo de construção do
interesse coletivo perdem legitimidade e visibilidade pública. Neste contexto, os
interesses privados confundem-se com os interesses públicos, e a sociedade civil não
reconhece como legítimas as ações estatais. Desta forma, a esfera pública encontra-se
muitas vezes comprometida com interesses privados, expressando a disputa particular
de alguns segmentos da sociedade civil. Os interesses privados, expressos nas
decisões políticas da esfera estatal, refletem a luta de interesses particulares travada no
bojo da sociedade civil, nas relações sociais cotidianas. Existe a necessidade da
criação de uma cultura política, que reconheça a esfera pública como o interesse
comum.
Nessa “crise cultural” pelo reconhecimento do público, como interesse comum,
como vontade geral, é necessário um aprimoramento dos canais mediadores de
discussão, de formação de opinião. A luta pela concretização dos preceitos
democráticos depende, em grande medida, do amadurecimento das instituições
políticas.
CAPÍTULO 2
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA GESTÃO PÚBLICA
NO BRASIL
2.1) A REGULAMENTAÇÃO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA DAS
POLÍTICAS SOCIAIS
No Brasil, o movimento histórico que começou a articular-se principalmente a
partir da cada de 1970, no processo de luta pela democracia, expressou a
organização da diversidade de interesses em prol de um interesse geral, comum.
GOHN (2005a) escreve que por causa disso, na linguagem política corrente, o termo
sociedade civil, no Brasil, se tornou sinônimo de participação e organização da
população civil do país na contestação do regime militar. Esse processo contribuiu para
a construção de um referencial no imaginário político nacional, argumenta a autora,
onde funda-se a crença de que a sociedade civil deveria se mobilizar e se organizar
para alterar o status quo no plano estatal, onde imperava um regime não democrático,
que privilegiava, através de políticas públicas, o grande capital, considerando as
demandas das camadas altas e médias da população. “Este cenário estimulou o
surgimento de inúmeras práticas coletivas no interior da sociedade civil, voltadas para a
reivindicação de bens, serviços e direitos sociopolíticos, negados pelo regime vigente”
(GOHN, 2005a, p. 71).
A luta reivindicatória pela democratização do Estado brasileiro promoveu a
articulação de diversos segmentos da sociedade civil com o mesmo objetivo. A
sociedade civil, marcada pelas contradições da desigualdade econômica e política,
lutava por um Estado que reconhecesse as demandas populares e inscrevesse nas
agendas públicas o atendimento dessas necessidades.
Desta maneira, a pluralidade de interesses cedeu lugar a um sujeito coletivo, que
buscando superar a heterogeneidade dos segmentos sociais, tornou hegemônica a luta
pela ampliação de espaços de participação na gestão pública, como um dos
instrumentos do processo de atendimento das reivindicações populares, como
saneamento básico, saúde, transporte, educação, segurança pública, entre outros.
Neste contexto histórico, a luta contra a ditadura significou o eixo comum, a hegemonia,
dos diferentes segmentos organizados. Este cenário ganhou outros contornos na
década de 1990, com a abertura democrática, onde a liberdade de expressão e
organização eliminou o inimigo comumo Estado autoritário e centralizador – tornando
mais complexa a disputa por recursos e poder, que dividem e enfraquecem a luta social
se não houver uma consciência política. Diante desta realidade, a luta pela hegemonia
e a organização da sociedade civil tornam-se fundamentais.
Para SADER (1988) a noção de “sujeito coletivo” significa a coletividade onde se
elabora uma identidade, organizando práticas através das quais seus membros
defendam seus interesses e suas vontades, constituindo-se em lutas. Os movimentos
sociais que emergem a partir da década de 1970, na cidade de São Paulo, são
expressões desse processo, que de acordo com o autor, apresentavam a preocupação
da elaboração de identidades coletivas como forma do exercício de suas autonomias.
São exemplos os Movimentos dos Favelados, os movimentos populares nos bairros da
periferia, os Clubes de Mães, que se generalizam na grande São Paulo (que mais tarde
dariam origem aos primeiros conselhos de saúde), o “Movimento do Custo de Vida”, o
crescimento de correntes sindicais, o aparecimento das Comunidades Eclesiais de
Base, as greves a partir de 1978, a formação do Partido dos Trabalhadores, etc.
Os segmentos organizados da sociedade, em especial os movimentos sociais,
foram mediadores do processo de construção de uma vontade coletiva, a de conquistar
a legitimidade de um espaço público, onde os assuntos de gestão social fossem
discutidos e deliberados com visibilidade pública, com transparência. A busca pelo
reconhecimento do direito de se ter direitos foi o imperativo desses movimentos.
Buscava-se ainda o direito de participar e de decidir sobre as ações estatais,
influenciando as políticas públicas e fiscalizando a operacionalização dos serviços
sociais.
De acordo com o Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática (1999), o
conceito de sociedade civil, que surge neste contexto, está ancorado numa concepção
de democracia que não se restringe somente às instituições e aparatos legais; mas
remete-se à democracia como uma forma de sociedade, envolvendo suas práticas
sociais e culturais. O termo comporta uma diversidade de organizações, contudo, o que
elas carregam de comum é a construção de um campo ético-político pautado na
promoção da igualdade e da justiça social. De acordo com a reflexão, os movimentos
sociais, organizados pela luta da construção da democracia, impulsionaram um
processo de democratização que não diz respeito apenas à instituição de um regime
democrático, mas sim a contribuição da democratização das relações sociais.
Os movimentos populares das décadas de 1970 e 1980 propuseram uma nova
forma de fazer política, onde os assuntos de interesse público passaram a fazer parte
das discussões entre os segmentos sociais, e as tomadas de decisões deveriam estar
pautadas nessas discussões. A Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), foi um sujeito importante no processo de discussão crítica dos problemas
sociais vivenciados pelos trabalhadores.
De acordo com SADER (1988), foi no começo da década de 1970, com um
grupo de jovens da Igreja Católica, que o tema da justiça social se fez presente nas
cerimônias e encontros religiosos. Ao longo da década, agentes pastorais foram
mobilizados para atuarem nas periferias de São Paulo, “se ligando a lutas populares,
denunciando a injustiça das estruturas vigentes e assumindo progressivamente
posturas de contestação política” (SADER, 1988, p. 150).
A organização desse movimento abriu espaço para a constituição de equipes de
educação popular nas periferias, que promoviam a alfabetização segundo o método de
Paulo Freire, que na época fora reprimido pelo regime militar vigente. Esse movimento,
articulado pela Igreja Católica, ficou conhecido como Teologia da Libertação, e teve um
significado muito importante no processo de organização dos movimentos populares e
na luta pelo atendimento das demandas das periferias. Dessa forma, o trabalho de
alfabetização esteve associado à politização dessas camadas populares. No método
proposto por Paulo Freire,
(...) O aprendizado da leitura e da escrita é inseparável do uso que se
faça desse instrumental na vida prática e, postulando um despertar
crítico do educando, ele se vinculado à tomada de consciência das
condições de vida e à elaboração coletiva de projetos de auto-
organização. (...) Para os educadores a alfabetização era um meio para
a formação de consciências críticas no interior de coletividades auto-
organizadas (SADER, 1988, p. 148).
Em 1981 calculava-se que houvesse 80 mil CEBs em todo o país, embora esses
números fossem imprecisos, acrescenta SADER (1988). Em geral cada CEB possuía
de 10 a 30 membros e contava com um coordenador, que propunha a pauta,
assegurava a circulação da palavra e sistematizava as decisões. De acordo com
SADER (1988) os temas eram reflexões bíblicas, problemas vividos no cotidiano dos
membros e aspectos práticos de alguma iniciativa decidida pela comunidade. As
iniciativas coletivas das CEBs atuavam lutando, por exemplo, para a organização de
creches comunitárias, para mobilização reclamando da falta de ônibus, organização de
mutirões na construção de salões paroquiais, reivindicação para coleta de lixo,
organização de movimentos para defesa dos moradores em loteamentos clandestinos e
para os direitos de saúde dos moradores dos bairros, direitos à educação, etc. Desta
forma, alerta SADER (1988) que “no lugar do pedido de um favor apareceram as
reclamações de um direito” (SADER, 1988, p. 162).
SADER (1988) nos relata, ainda, que a estrutura organizacional criada pelas
CEBs deu origem a uma série de outros movimentos, que a população percebeu que
a organização popular surtia efeito na conquista das reivindicações dos moradores das
periferias. Foi neste sentido que, no fim da década de 1970, formou-se o movimento de
saúde da zona leste de São Paulo. Com o apoio de médicos sanitaristas, e com a
organização de pesquisas e de jornais comunitários, buscava-se conhecer as
necessidades dos moradores dos bairros, e assim a população organizada logrou uma
série de conquistas, como a instalação de postos de saúde nos bairros e o direito de
participar na avaliação dos serviços prestados. O levantamento do diagnóstico de
saúde nos bairros permitiu que os depoimentos individualizados das pessoas se
tornassem demandas coletivas, com visibilidade pública.
Do encontro entre os médicos sanitaristas e grupos de mulheres, que haviam
formulado uma noção de direitos a partir das CEBs, surgiram as primeiras comissões
de saúde, em 1977. Segundo SADER (1988), a contribuição dos médicos subsidiou os
moradores na formulação das reivindicações e no modo de levá-las até as autoridades
públicas, acelerando “um processo de aprendizagem das modalidades de
enfrentamento da burocracia estatal” (SADER, 1988, p. 269). O resultado desse
processo de mobilização popular culminou com a criação dos primeiros conselhos de
saúde de São Paulo. Para SADER (1988):
(...) Era um outro modo de fazerem a população participar da política,
porque não se referia a temas abstratos e uma representação
institucional, mas a uma participação direta a partir de um tema
concretamente vivido. (...) Através da prática do controle popular sobre
os centros de saúde, o movimento de saúde da zona leste ensaiava a
passagem da pura luta reivindicativa para uma ação política, de
participação na gestão dos serviços públicos (SADER, 1988, p. 275 e
277).
No Brasil, a institucionalização da participação popular na gestão das políticas
públicas expressa o processo de organização popular, o exercício democrático de
articulação dos segmentos populares, das discussões coletivas e das tomadas de
decisões. Essa vivência permitiu à sociedade civil a revisão do conceito de controle
social, que, de um modelo de Estado autoritário, que reprimia as manifestações da
sociedade, controlando seus movimentos, conquista-se a legitimação do direito dos
segmentos organizados de participarem das decisões de assuntos blicos,
fiscalizando e controlando as ações estatais.
NOGUEIRA (2000), ao retratar o processo de transição democrática no Brasil,
acrescenta outro condicionante. Defende que o país se modernizou sem modificar o
padrão de desenvolvimento histórico, ou seja, continuamos amarrados à modernização
conservadora, e mesmo entrando em contato com vários frutos modernos como
novos seres sociais, novos sujeitos políticos, diferenciação, individualização não
conseguimos conhecer a materialização de um ordenamento político inovador, mesmo
vivendo o período democrático. Para o autor, pensar um projeto de futuro para a
sociedade brasileira implica em conceber um processo de reposição de sujeitos, ou de
emergência de novos sujeitos, viabilizando o enfrentamento do atual quadro de
dilaceração, fragmentação e complexidade, no qual, entre outras coisas, tornou difícil
pensar a política e propor ações em longo prazo.
O processo de democratização do Estado brasileiro foi impulsionado pela
articulação de movimentos sociais, políticos e econômicos gerados no âmbito da
sociedade civil. De um lado devemos considerar a relevância e a influência das
organizações populares na transição democrática da década de 1980, e de outro,
temos que atentar para o movimento político-econômico vivenciado pelo Brasil neste
período. COSTA (2005) nos adverte que, no Brasil, o golpe militar de 1964
proporcionou uma ampla abertura ao capital externo, subordinando o país ao líder
hegemônico do bloco ocidental, os Estados Unidos. “De 1974 até 1979 o Estado
empreendeu uma ‘marcha forçada’ na economia brasileira, buscando manter os
mesmos índices de crescimento econômico verificados no período do milagre brasileiro
(1967-73)” (COSTA, 2005, p. 135) . Neste contexto, de acordo com a autora, o que
ocorreu foi que:
Depois do fim do padrão ouro, com a ruptura unilateral feita pelos
Estados Unidos, a crise do petróleo e a crise mexicana, a conjuntura
econômica do mundo se redefiniu. O Banco Mundial e o FMI foram
então usados para garantir o pagamento das dívidas externas pelos
países periféricos, que ao subirem as taxas de juros, agravou ainda
mais a situação financeira dos países pobres. Ainda podemos colocar
como fator de fragilização das economias periféricas a crescente
desvalorização dos termos de troca e o avanço tecnológico que
aumentou as distâncias entre os países centrais e os periféricos
(COSTA, 2005, p. 136).
Desta forma, COSTA (2005) nos coloca ainda que a década de 1980, no Brasil,
foi marcada pelo descontrole da inflação, queda dos índices de arrecadação da receita
fiscal e maior concentração de riquezas numa parcela menor da população, agravando
ainda mais o quadro social brasileiro. O financiamento do empreendimento de
industrialização (no setor de base e na criação de um sistema integrado para o setor
industrial, na parte metal-mecânica) contou com empréstimo do capital estrangeiro.
Assim, a crise da década de 1980 conviveu com o impasse do pagamento da dívida
externa. A autora nos informa que a proposta do FMI, para garantir o pagamento do
serviço da dívida externa, esteve centrada no corte dos gastos públicos, no controle da
inflação, na privatização das esferas produtivas estatais, na abertura econômica e no
impulso do setor exportador. “O fim da ditadura foi anunciado pelo esgotamento do
modelo de desenvolvimento econômico feito com o aporte de capital externo” (COSTA,
2005, p. 137).
De um lado, os movimentos populares pressionavam o Estado para a abertura
da participação democrática e pela reivindicação de melhores condições de vida, de
outro, como bem destacou COSTA (2005), os setores conservadores de direita também
acusaram o Estado de ineficiência no controle da inflação e de dificultar o crescimento
econômico. Desta forma, nota-se que o processo de transição democrática, que
culmina com a promulgação da Constituição Federal de 1988, não garantiu de maneira
efetiva a distribuição de renda e riqueza, ou seja, a desigualdade social não fora
superada mesmo no contexto de universalização dos direitos sociais.
O Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática (1999) alerta que o
consenso formado no plano da sociedade civil na década de 1980, na luta contra a
ditadura, cedeu espaço, no contexto democrático, a institucionalização da diversidade
de interesses. Nesse caso, a heterogeneidade de posições e demandas emergem com
mais força e os projetos políticos nem sempre se unificam em torno de um objetivo
comum, tornando-se, desta forma, muito mais complexos. Os espaços de discussão e
deliberação blicas passam a exigir dos segmentos populares uma outra postura, ou
seja, além do caráter reivindicatório é necessário negociar e travar parcerias.
O agravante deste cenário é que, na década de 1990, com a hegemonia da
adoção da política neoliberal nos regimes capitalistas, o papel dos Estados na
intervenção da economia e no financiamento das políticas sociais torna-se bastante
frágil. É necessário frisar que seu papel não é frágil indistintamente, ou seja, o Estado
torna-se fraco para atender as demandas sociais, porém forte para manter a ordem
capitalista.
De acordo com SOARES (2001), o receituário neoliberal, em oposição ao
keynesianismo, consiste na eliminação do Estado como agente econômico, na drástica
redução do tamanho e dos gastos com o Estado de Bem Estar Social, diminuindo o
déficit fiscal e reduzindo o gasto público, e na liberalização do mercado. Neste contexto,
a universalização das políticas sociais cede lugar a focalização do atendimento aos
segmentos mais empobrecidos da sociedade e numa fragilização da qualidade e da
estrutura dos serviços sociais prestados pelos Estados nacionais.
No Brasil, vivenciamos na década de 1990 uma realidade bastante peculiar.
COSTA (2005) nos lembra que, na América Latina, não chegamos a efetivar um
sistema de proteção social, desta forma, a crise do Estado não deve estar relacionada
aos custos do sistema de proteção social. A autora denuncia que a crise em que vivem
os países em desenvolvimento é a crise da falta de proteção social, que evidencia a
precariedade dos serviços públicos que não consegue elevar o padrão de vida da
população. Neste sentido, “as razões da crise financeira do Estado estão relacionadas
ao sistema da dívida pública (interna e externa) e da subalternidade dos países em
desenvolvimento dentro da economia mundial” (COSTA, 2005, p. 217).
No Brasil, a promulgação da Constituição de 1988 teve como foco a
universalização do acesso aos direitos sociais, como saúde e educação; e a
responsabilização do Estado na execução e garantia destes direitos. No tocante a
política econômica, a década de 1990 implementou o receituário neoliberal; o resultado
deste processo pôde ser visto, no Brasil, pela crise do financiamento da saúde pública,
pela perda de qualidade do ensino ofertado pelo Estado e na focalização do
atendimento das demandas assistenciais; muito embora tenhamos registro de
conquistas no campo social, como a garantia do programa de transferência de renda a
idosos e portadores de deficiência
5
sem condições de trabalho e de provimento de seu
sustento. Neste sentido, a implementação das políticas sociais brasileiras convive com
duas tendências distintas: universalizar e focalizar o atendimento.
Diante deste contexto contraditório é importante destacar que à medida que os
gastos públicos, com políticas sociais, sofrem os ajustes do modelo neoliberal, a
qualidade da deliberação da sociedade civil sobre esses recursos também se fragiliza.
A reforma neoliberal, empreendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, a
partir de 1994, defendeu a necessidade de se reduzir o peso de um modelo de Estado
burocrático. Assim, de acordo com COSTA (2005), as estratégias adotadas na reforma
do Estado foram: a privatização e as reformas administrativa e previdenciária; a
reforma tributária gerou um impasse, devido a dificuldade de mudar os processos de
concentração de renda e riqueza no Brasil. NOGUEIRA (2004) coloca que, buscando
maior adesão a proposta de reforma do Estado, prometeu-se que a abertura econômica
e a estabilidade monetária renderiam maior desenvolvimento ao país, e
conseqüentemente mais emprego, renda, ascensão e melhoria de vida. Tais promessas
não se cumpriram, argumenta o autor, e ao não se cumprirem frustraram expectativas e
5
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) está previsto na Lei n.º 8.742/93, no artigo 20, como a
garantia de 1 salário mínimo mensal á pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 anos
(revogado para 65 anos a partir do Estatuto do Idoso, Lei n.º 10.741/03, artigo 34) ou mais e que
comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família.
tornaram insuportável a ausência de regulação e de proteção pública consistente.
Assim, principalmente na América Latina, as sociedades foram ficando sem um Estado
que as regulasse e protegesse, e ao mesmo tempo, sem expansão econômica, sem
emprego e sem renda. Por extensão, coloca NOGUEIRA (2004), a política,
compreendida na perspectiva de Gramsci, como idéia, atividade e perspectiva, foi
rebaixada, convertida em ação pouco nobre, suscetível à corrupção e a manipulação.
Diante desta análise, NOGUEIRA (2004) alerta que a reforma do Estado não deve
concentrar todos os esforços na racionalização do aparelho administrativo e na
melhoria da gestão, deve considerar também de suma importância a preocupação em
fortalecer o Estado como ambiente democrático de mediação política, pactuação e
integração social.
Desta maneira, o Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática (1999)
levanta que, num contexto de diminuição do papel do Estado no gasto público com
políticas sociais um deslocamento dessas atribuições à sociedade civil, ou seja,
passa-se para a “responsabilidade privada” questões que faziam parte do domínio dos
direitos. Nessa perspectiva a sociedade civil, que com o processo de institucionalização
da participação se torna mais propositiva e aberta às parceiras, entra em conflito com a
perspectiva que busca o fortalecimento dos atores sociais no controle progressivo do
Estado e do mercado. Na reflexão do Grupo de Estudos, as organizações da sociedade
civil, que atuam no contexto de ampliação da participação democrática atrelada ao
modelo neoliberal, carregam um desafio na consolidação das lutas ocorridas nas
décadas de 1970 e 1980, pois,
Ao se tornarem mais propositivas, passaram a estar sempre no limiar
entre constituírem-se como aprofundadoras da democracia e da
cidadania através da expansão da esfera pública; e/ou tornarem-se
substitutas do papel estatal de fornecer serviços públicos aos cidadãos
(Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática ,1999, p. 31).
Estes são, também, os desafios dos espaços de participação da sociedade civil
na gestão das políticas sociais no Brasil. Os conselhos gestores de política
representam um dos canais de fiscalização das ações estatais e de formação de
demandas coletivas, advindas da diversidade de segmentos da sociedade civil.
Enquanto espaços institucionalizados, previstos em lei como parte da estrutura da
gestão democrática e participativa das políticas sociais, os conselhos de política atuam
na teia burocrático-administrativa da gestão pública, e por isso, enfrentam o desafio de
articular os segmentos organizados da sociedade civil no diálogo com os
representantes da esfera governamental. A participação da sociedade civil, neste
contexto, deverá considerar o papel das parcerias, dos prazos administrativos e das
negociações políticas como instrumentos do processo de deliberação. A participação
assume uma outra função, que não mais somente a reivindicativa, mas assume o papel
de co-autora das ações e serviços blicos. É neste sentido que o exercício
democrático, via participação nos conselhos de política, tem apresentado uma série de
dificuldades e desafios no processo de gestão das políticas sociais.
2.2) A EXPERIÊNCIA CONSELHISTA NO BRASIL
No Brasil, foi através da Constituição Federal de 1988 que se regulamentou a
participação da sociedade civil na gestão das políticas sociais. Como uma das diretrizes
do processo de gestão das políticas sociais, a participação da sociedade civil tem como
meta controlar e fiscalizar as ações estatais, inscrevendo na agenda pública as
demandas advindas de setores organizados da sociedade.
SOUZA (2004) nos lembra que esse perfil da participação, como forma de
controle social sobre as ações estatais, além de recente, indica uma nova concepção
na relação entre o Estado e a sociedade civil no Brasil. Na década de 1950 o estímulo à
participação se deu via trabalho comunitário. A participação comunitária tinha como
foco a contribuição ao desenvolvimentismo brasileiro, alerta a autora. Os centros
comunitários, seguindo o modelo norte americano, prestavam assistência social aos
mais pobres, trabalhando noções de autocuidado, higiene e solidariedade. Os
programas de atendimento davam atenção aos temas da maternidade, tuberculose,
doenças venéreas, saúde mental, entre outros. Por todo o Brasil, e principalmente nas
áreas rurais, foram criados os centros comunitários e a “população foi chamada a
participar desse esforço coletivo de construção de uma sociedade desenvolvida e
moderna (SOUZA, 2004, p. 172). Nessa perspectiva, caracterizada por SOUZA (2004)
como funcionalista, mascarava-se os antagonismos de classe, e a comunidade era
vista como uma “unidade consensual, com problemas e interesses comuns”, onde a
integração ao “sistema é primordial para a manutenção da ordem, da harmonia e para
o progresso” (SOUZA, 2004, p. 173).
Neste contexto, o envolvimento da sociedade supria o espaço de atuação do
Estado, que, como coloca SOUZA (2004), a participação comunitária era entendida
como a sociedade completando o Estado, e este, por sua vez, passou a “incentivar a
colaboração da sociedade na execução das políticas sociais por meio do voluntariado e
do apelo à solidariedade dos cidadãos” (SOUZA, 2004, p. 173). A participação da
comunidade apresentava uma característica bastante conservadora, que o foco era a
execução de atividades, nada no campo da fiscalização e definição de prioridades.
Somente com a emergência dos movimentos sociais, a partir da década de 1970,
como vimos, é que a participação assume outras características. Apontada como
participação popular, essa movimentação adquiriu contornos reivindicatórios,
trazendo como proposta de atuação o “aprofundamento da crítica e a radicalização das
práticas políticas opositoras ao sistema dominante” (SOUZA, 2004, p. 174). Os
segmentos organizados da sociedade lutavam para que a participação superasse o
caráter de execução e assumisse papel no tocante a fiscalização das ações do Estado
e nas decisões referentes às políticas sociais.
Para SOUZA (2004) a conquista desse direito, o de participar na gestão das
políticas sociais, definiu uma nova modalidade de participação: a participação social.
Neste sentido, a participação que se pretende não é somente a de grupos excluídos,
como fora no desenvolvimento de comunidade, mas sim a do conjunto da sociedade,
formado pela diversidade de interesses, onde a luta social visa garantir “a
universalização dos direitos sociais, a ampliação do conceito de cidadania e a
interferência da sociedade no aparelho estatal” (SOUZA, 2004, p. 175). A autora
evidencia um processo de ruptura no conceito de controle social. Se na década de 1950
o controle era exercido pelo Estado, no sentido de manter a ordem e a harmonia social,
na década de 1970 o conceito passa um período de transformação, que se consagra
principalmente na década de 1990, onde o controle social passa a significar a
participação da sociedade civil organizada na fiscalização e na deliberação de assuntos
de relevância pública, como a gestão das políticas sociais.
A classificação da autora aponta a possibilidade de uma ruptura com um
processo tradicional de participação. No entanto, é sabido que a evolução histórica não
se de maneira linear, e nem tampouco rompe bruscamente com as características
do passado. Neste sentido, a gestão participativa ainda pode conservar características
de um modelo de participação mais tradicional.
Para NOGUEIRA (2004), as modalidades de participação expressam diferentes
graus de consciência política coletiva, correspondendo à maior ou menor maturidade,
homogeneidade e organicidade dos grupos sociais. Desta forma, o autor distingue
quatro modalidades de participação. O modelo de participação assistencialista
responde por uma natureza filantrópica ou solidária. Essa modalidade de participação
foi dominante nas fases que precederam à afirmação dos direitos de cidadania. “Ela
também tende a predominar nos estágios de menor maturidade e organicidade dos
grupos sociais ou de menor consciência política coletiva (...)” (NOGUEIRA, 2004, p.
131). A participação corporativa representa um modelo fechado em si, que objetiva
um propósito particular. Assim, ganham apenas aqueles que pertencem a um grupo
específico ou à associação. Para NOGUEIRA (2004), as duas modalidades de
participação interpenetram-se, que ambas “estão articuladas de maneira estreita com
problemas existenciais imediatos, práticos, concretos, quase sempre de fundo
econômico” (NOGUEIRA, 2004, p. 131). As duas últimas modalidades, embora
distintas, respondem por uma forma mais madura de participação, voltando-se ao
âmbito dos interesses coletivos. Desta forma, a participação eleitoral interfere na
governabilidade e diz respeito a coletividade, embora possa estar condicionada por
escolhas individuais, particulares e despojadas de estratégias que vislumbrem o longo
prazo. A modalidade que se realiza tendo em vista o Estado, ou seja, a organização da
vida social em seu conjunto, a convivência, é a participação política. Na análise do
autor, é mediante a participação política que a “vontade geral”, o “pacto social” se
objetiva, se recria e se fortalece. No entanto, no mundo moderno “(...) os grupos
sociais seguem trajetórias nas quais se combinam diferentes graus de consciência
política e de atuação prática” (NOGUEIRA, 2004, p. 133).
A gestão participativa logrará êxito quanto mais os segmentos da sociedade civil,
mediatizados pela participação política, conseguirem transcender de interesses
corporativos e imediatos para formas de pensar coletivamente um padrão ético-político
de convivência. Neste sentido, quanto mais aberto e transparente for o processo de
diálogo da diversidade de segmentos da sociedade civil, tanto mais chance terá o
Estado de expressar o substrato comum destes interesses, de tornar-se democrático.
Desta forma, prevista em lei, a participação da sociedade civil na gestão pública
se realiza, entre outros espaços (como fóruns, conferências, assembléias, etc), via
conselhos gestores de política. Os conselhos tornaram-se uma modalidade de
participação bastante expressiva no Brasil. TATAGIBA (2002), utilizando-se da
definição da pesquisa/estudo “Conselhos Municipais e Políticas Sociais” (IBAM, IPEA,
Comunidade Solidária, 1997) distingue a experiência conselhista em três modalidades
distintas. Os conselhos de programas foram entendidos como aqueles que se
encontram vinculados a programas governamentais específicos, trabalhando com a
noção de clientelas específicas, supostamente beneficiárias dos programas. Podemos
citar como exemplo os conselhos do bolsa família, que tornaram-se obrigatórios, em
2006, nos municípios brasileiros, como forma de acompanhar a implementação e a
fiscalização do programa nacional de transferência de renda. Os conselhos temáticos
foram apontados como aqueles que existem na esfera municipal por iniciativa local, ou
mesmo por estímulo estadual, sem vinculação imediata a um sistema ou legislação
nacional. Aqui cabem os exemplos dos conselhos da mulher, da cultura, de transportes,
segurança pública, anti-drogas, entre outros. os conselhos de política se
distinguem pelo fato de estarem previstos em legislação nacional, apresentando ligação
às políticas públicas mais estruturadas. Considerados como parte do sistema nacional,
apresentam atribuições definidas legalmente no plano da formulação, deliberação e
implementação das políticas em cada esfera de governo, compondo práticas no
processo de planejamento e fiscalização das ações. Assim, estes conselhos “dizem
respeito à dimensão da cidadania, à universalização de direitos sociais e à garantia ao
exercício desses direitos” (TATAGIBA, 2002, p. 49). Neste perfil encontramos, por
exemplo, os conselhos de saúde, assistência social, educação e direitos da criança e
do adolescente.
É sabido que a Constituição Federal de 1988 “adotou como princípio geral a
cidadania e previu instrumentos concretos para seu exercício, via democracia
participativa” (GOHN, 2005b, p. 177), neste sentido, a participação da sociedade civil foi
regulamentada como uma das diretrizes da operacionalização das ações e serviços
públicos. O sistema descentralizado e participativo de gestão, previsto por esta
Constituição, garantiu a autonomia de cada ente federativo (união, estados e
municípios) na gestão das políticas sociais, onde cada esfera de governo possui
autonomia no financiamento e na implementação dos serviços públicos. Neste contexto,
os conselhos de política passaram a fazer parte desse sistema de gestão, e juntamente
com os planos e fundos orçamentários, caracterizaram-se como requisitos obrigatórios
nas transferências de recursos entre as esferas de governo. Obrigatórios, tanto em
âmbito nacional, estadual como municipal, estes conselhos inovaram a relação Estado
e sociedade civil no Brasil, que passaram a garantir legalmente o direito (e também o
dever) da sociedade civil participar nas decisões pertinentes a gestão das políticas
sociais.
Compostos de maneira plural, os conselhos devem possuir composição paritária,
onde haja a representação do poder público e dos segmentos organizados da
sociedade civil. Constituindo-se como espaços públicos de discussão e deliberação, o
papel dos conselhos se remete em aprovar orçamentos públicos, definir prioridades de
investimento, traçar diretrizes de ação e propor políticas junto às esferas
governamentais. Cabe ainda, fiscalizar a aplicação dos recursos e a execução das
ações e serviços, tornando público o processo de implementação das políticas sociais.
TATAGIBA (2002), destaca que a inovação destes espaços se dá, dentre outros
motivos, por permitir que setores tradicionalmente excluídos dos processos de decisão
política possam influenciar a produção das políticas públicas no Brasil. Contudo,
adverte a autora, a garantia da paridade nos conselhos, por si só, não é “capaz de
assegurar que estes setores ocupem de forma eficaz esse espaço e neles realizem os
seus interesses” (TATAGIBA, 2002, p. 71).
É importante resgatar que a cultura política brasileira não tem tradição
participativa, ou seja, as decisões políticas, por muito tempo, realizavam-se centradas
nos altos escalões do governo. O processo de negociação com a sociedade civil foi
permeado por práticas clientelistas e populistas; a indevida apropriação de recursos
públicos e a falta de transparência nas decisões políticas
6
também se configuraram
como parte da construção histórica do Estado brasileiro. Romper com essa “tradição
histórica” é um desafio da sociedade brasileira, que ainda hoje conserva muito destas
características nas relações sociais. Temos assistido, freqüentemente, denúncias de
desvio e de aplicação de recursos públicos, e nas relações mais cotidianas,
observamos a busca “do levar vantagem em tudo”. Divulgou-se, através da imprensa
nacional
7
, que em desrespeito a Lei de Responsabilidade Fiscal
8
, o governo federal
liberou verbas orçamentárias a municípios que não prestaram contas, como deveriam,
de seus gastos. De acordo com a auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União
(TCU), há indícios de que, em 2004, de um total de 5.429 ordens de pagamento
emitidas pelo governo, 4.961 (91,4%) podem ter beneficiado municípios com
pendências registradas. As auditorias do TCU estão sendo realizadas em todo território
nacional, através do sistema de sorteios de municípios ou de denúncias registradas, e
vêm demonstrando que a prática de irregularidades no uso de recursos públicos e na
abertura de processos de licitação são recorrentes nos municípios brasileiros. Os
auditores fiscalizam a documentação dos municípios, os processos de licitação,
averiguam a existência de denúncias no Ministério Público (MP) e realizam entrevistas
com usuários de serviços blicos e de programas sociais, como os do Sistema Único
de Saúde (SUS) e os do programa bolsa família. Neste sentido, podemos considerar a
relevância da capacitação e do fortalecimento de mecanismos de fiscalização do uso e
aplicação de recursos públicos no Brasil.
Tornou-se pública, ainda, a denúncia
9
de que no primeiro semestre de 2004 de
cada R$ 4,00 destinados ao Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
6
Para maiores esclarecimentos sobre o tema, consultar: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens
Livres na Ordem Escravocrata. 4.ª ed. São Paulo: Unesp, 1997.
7
SOUZA, Josias. Governo verba a prefeitos que não prestam contas. Folha de São Paulo online,
23 de abril de 2006.
8
Lei Complementar n.º 101 de 4 de maio de 2000. De acordo com o Ministério da Fazenda, a LRF
estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, mediante
ações em que se previnam riscos e corrijam os desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas
públicas, destacando-se o planejamento, o controle, a transparência e a responsabilização como
premissas básicas.
9
MENDES, Vannildo; WEBER, Demétrio. Fraudes levam 75% das verbas do Fundef. O Estado de
São Paulo, São Paulo, 11, abr, 2003.
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) R$ 3,00 estavam sendo desviados
e, portanto, apenas R$ 1,00 era aplicado corretamente. O relato considerou que os
mecanismos fiscalizadores deste processo eram deficientes, ou encontravam-se
instrumentalizados pelos fraudadores (empresas “fantasmas”, políticos inescrupulosos,
“máfia” de fornecedores, etc). Dos 281 municípios investigados pela auditoria da
Controladoria Geral da União (CGU), desde abril de 2003, constatou-se desvios em
mais de 90% dos casos. De acordo com a denúncia, dos últimos municípios
fiscalizados, selecionados pelo programa de sorteio, concluiu-se que os conselhos e as
comissões de fiscalização municipais não têm atuação efetiva, sendo muitos membros
dos conselhos indicados pelo próprio prefeito, o que, evidentemente, compromete a
imparcialidade das decisões. De acordo com a reportagem, pela lei, a fiscalização do
Fundef não é responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), mas do MP e dos
Tribunais de Contas da União e dos Estados. Desta forma, os conselhos de política dos
municípios são os principais mecanismos para apresentar denúncias e acionar o MP.
Na fala do, então, diretor de acompanhamento do fundo, pelo MEC, consta em relação
aos conselhos que: "onde eles funcionam bem, as denúncias de desvio diminuem". O
grande impasse, de acordo com as denúncias, reside no fato da falta de
aperfeiçoamento de mecanismos de controle social, deixando a desejar, por exemplo,
na falta de formação, capacitação dos conselheiros.
O Ministério da Educação (MEC) reconhece que a maioria dos
conselhos de acompanhamento não desempenha sua principal tarefa,
que é fiscalizar a aplicação do dinheiro repassado pelo fundo. O maior
problema é a influência exercida pelos prefeitos, que, na prática,
definem quem serão os conselheiros. E, assim, manipulam a
fiscalização (...). Licitações com indícios de irregularidade envolvem R$
1,045 milhão somente nas áreas da educação, da saúde e da
assistência social (MENDES e WEBER, 2003).
Desta forma, os desafios impostos aos conselhos de política são os mesmos
vivenciados pela prática democrática brasileira. A diversidade de estudos na área
10
tem
10
Entre os estudos destacamos: TATAGIBA, Luciana com “Os Conselhos Gestores e a Democratização
das Políticas Públicas”, de 2002; LUCHMANN, Lígia com “Os Conselhos Gestores de Políticas Públicas:
desafios do desenho institucional”, de 2002 e GOHN, Maria da Glória com “Conselhos Gestores e
participação sociopolítica”, de 2003.
demonstrado uma série de impasses na efetivação do papel e da atuação destes
conselhos. Dentre os impasses, destacamos os seguintes:
Quanto mais marcada, a cultura local, pelo autoritarismo, clientelismo e
pelo patrimonialismo nas relações políticas, mais difícil e frágil torna-se a
atuação dos conselhos;
Centralização das informações relevantes na esfera governamental,
que, muitas vezes o executivo ocupa a presidência dos conselhos,
dificultando o processo de fiscalização;
Necessidade da ampliação e do estímulo à participação do segmento da
sociedade civil, considerando o quadro de desigualdade social instalado
na realidade brasileira;
Dificuldade dos segmentos da sociedade civil em interpretar documentos
e legislações pertinentes, o que acaba por prejudicar a qualidade do
processo de fiscalização e proposição de políticas;
Fragilidade dos membros governamentais em executar as decisões do
conselho, que muitas vezes são designados funcionários sem
qualificação na área pertinente para participarem destes espaços;
Frágil articulação dos conselheiros com a base a qual representam, ou
seja, nem sempre as propostas e deliberações são discutidas com o
segmento mais amplo;
Dificuldade de acesso às documentações necessárias, como planos,
orçamentos, relatórios de gestão, etc;
Vetos governamentais nas ações dos conselhos, inviabilização de
atividades e cooptação da participação;
Falta de reconhecimento dos gestores da área sobre o papel e a
importância dos conselhos de política, o que acaba se refletindo tanto na
falta de apoio com infra-estrutura de trabalho para os conselhos, como no
processo de garantir legitimidade as deliberações;
Ausência de mecanismos jurídicos que apóiem os conselhos no processo
de respeitabilidade e implementação das deliberações votadas;
Falta de mecanismos que acompanhem e responsabilizem os
conselheiros no processo das deliberações;
Falta de autonomia no processo de fiscalização e dificuldade em trabalhar
com a estrutura burocrática;
Existência puramente formal dos conselhos, que acabam assumindo um
papel burocrático-cartorial, deixando de promover o debate público e a
deliberação coletiva.
LUCHMANN (2002), relata a importância em se reconhecer que a participação
de atores e/ou segmentos da sociedade civil não garante, por si própria, a reversão de
uma lógica de poder em direção ao aprofundamento da democracia. A autora aponta a
necessidade de se pensar na qualificação dessa participação, apurando os elementos
constitutivos de uma efetiva reformulação nos mecanismos de decisão. Importa notar
ainda que, os fatores impeditivos de processos participativos são complexos, adverte
LUCHMANN (2002), pois envolvem questões de natureza política, econômica, social e
cultural, “e que dizem respeito a uma sociedade estruturalmente assentada sobre os
pilares do clientelismo, do autoritarismo e das desigualdades sociais” (LUCHMANN,
2002, p. 46). Para a autora, as dificuldades vivenciadas pelos conselhos de política
apresentam similaridades significativas, ou seja, tendências recorrentes em manifestar
problemas e dificuldades comuns, o que em sua interpretação dá suporte para a afirmar
que o desenho institucional dos conselhos parece ser fator limitativo no
estabelecimento do aprofundamento da democracia. Exemplo característico, coloca
LUCHMANN (2002), são os conselhos paritários, que mesmo com a paridade numérica
entre sociedade civil e Estado, o último tem apresentado maior “poder de fogo” em
relação à primeira, e a questão da representatividade dos setores comunitários tem se
dado sem contornos sólidos, defende a autora.
Ainda assim, é importante resgatar que os conselhos de política expressam a
mobilização popular e representam um dos instrumentos da gestão descentralizada e
participativa das políticas sociais no Brasil. Suas funções não substituem outros
espaços de articulação e pressão popular, como os movimentos sociais, as
conferências, assembléias públicas, fóruns, entre outros; pelo contrário, os conselhos
devem promover a articulação da diversidade de movimentos na promoção de
discussões públicas mais amplas. Sem dúvida que, como espaços institucionalizados e
representativos, os conselhos carregam as polêmicas e os dilemas da democracia
representativa brasileira.
COMPARATO (2006)
11
nos adverte que a população brasileira não se reconhece
no sistema democrático representativo, e as instituições políticas, como o Congresso
Nacional, não inspiram confiança em pelo menos 90% da sociedade brasileira. O
sistema democrático representativo não consegue garantir a legitimidade do bem
comum em detrimento dos interesses particulares de classes ou grupos. Como
exemplo, cita COMPARATO (2006), o que se pagou em juros de um mês da dívida
pública correspondeu ao investimento do ano de 2005 no maior programa social do
governo Lula, o bolsa família. Para ele, decisões políticas desta natureza respondem
pelo particularismo de interesses dos segmentos que ocupam os órgãos públicos.
Neste sentido, argumentou que o modelo de democracia moderna, devido à própria
complexidade das sociedades, não favorece a participação direta, e por isso a
fiscalização por parte da sociedade civil representa um ponto crucial do sistema
democrático. É necessário que se amplie os canais de denúncia e facilite a acesso a
estas instâncias, defende COMPARATO (2006).
Neste contexto, a experiência conselhista tem aberto a oportunidade de acesso
aos segmentos organizados da sociedade civil na gestão de assuntos de relevância
pública, capacitando sujeitos políticos no processo de compreensão da estrutura
burocrática estatal, inscrevendo uma perspectiva política em detrimento da técnica-
racional nos debates públicos. Os conselhos de política têm se apresentado ainda
como canais de denúncia das irregularidades na prestação de serviços públicos, de
defesa dos direitos de cidadania e de espaços de aprendizado político-pedagógico na
formação de atores sociais. Supomos que o exercício democrático é algo que se
aprende na vivência política dos processos que envolvem decisões públicas.
11
COMPARATO, Fábio Konder. Ética, Cidadania e Democracia. Palestra proferida em 17 de abril de
2006, na cidade de Ponta Grossa, como parte dos atos públicos organizados por movimentos da
sociedade civil (Associação da Ordem dos Advogados do Brasil, Associação de Moradores, Movimento
Ética e Cidadania, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e Universidade Estadual de Ponta
Grossa) como forma de mobilização e conscientização política para as eleições de 2006.
Assim, a experiência pedagógica da participação, via conselhos de política, tem
demonstrado aos estudiosos da área que a democracia é, sem dúvida, um exercício
que se constrói no cotidiano das relações sociais.
Neste sentido, mesmo entre os chamados institucionalistas, que priorizam os
desenhos institucionais como foco dos processos decisórios, a participação política vem
ocupando espaço relevante de análise. Para PUTNAM (2005), a ciência política sempre
se preocupou com o estudo das instituições, contudo, definiu o autor, o “novo
institucionalismo” passou a abordar as questões institucionais com novo vigor e
criatividade. Os novos institucionalistas, segundo ele, diferem em muitos aspectos, mas
tendem a convergir em dois pontos fundamentais: primeiro, que “as instituições
influenciam os resultados porque moldam a identidade, o poder e a estratégia dos
atores” (PUTNAM, 2005, p. 23) e segundo porque as instituições são moldadas pela
história. PUTNAM (2005) acrescenta no seu estudo que as instituições governamentais
recebem subsídios do meio social e geram reações a esse meio. Assim, na experiência
da democratização dos governos regionais na Itália moderna, PUTNAM (2005)
salientou que a cultura cívica de determinadas regiões favoreceu o desenvolvimento
dos governos locais. A virtude cívica destes cidadãos residia, argumentou o autor, no
reconhecimento e na busca do bem público à custa de todo interesse puramente
individual e particular. Ainda que tenha defendido que o contexto social e a história
condicionam profundamente o desempenho das instituições, PUTNAM (2005) concluiu
que mudando-se as instituições formais pode-se mudar a prática política. O autor
destacou que a reforma regional no contexto italiano “propiciou aprendizado social,
‘aprendizado na prática’. A mudança formal induziu a mudança informal e tornou-se
auto-sustentada” (PUTNAM, 2005, p. 193).
PATEMAN (1992) argumenta que Rousseau pode ser considerado o teórico por
excelência da participação. A autora levanta que toda a teoria política de Rousseau
apóia-se na participação do cidadão na tomada de decisões, e que em sua teoria a
participação é mais do que um complemento para os arranjos institucionais, ela provoca
um efeito de integração, fornecendo a sensação de que cada cidadão “pertence à sua
comunidade. A função central da participação na teoria de Rousseau, defende
PATEMAN (1992), é educativa, pois para o pensador o sistema participativo ideal é
“concebido para desenvolver uma ação responsável, individual, social e política como
resultado do processo participativo” (PATEMAN, 1992, p. 38). Assim, de acordo com a
autora, nos pressupostos de Rousseau quanto mais o cidadão participa, mais ele se
torna capacitado para fazê-lo. O processo de tomada de decisões via participação
popular constrói um referencial coletivo das deliberações, desta forma, as decisões que
são operacionalizadas mediante discussões coletivas têm maior probabilidade de
serem aceitas pelos indivíduos. Os indivíduos se reconhecem nas tomadas de decisões
coletivas.
PATEMAN (1992) coloca ainda que as reflexões de Mill
12
também contribuem
para pensar o papel da democracia participativa. Para a autora, Mill destaca a
importância de experiências participativas em nível local, e desta forma defende que os
indivíduos em um grande Estado podem se capacitar em participar do governo da
“grande sociedade” se as qualidades subjacentes desta participação forem fomentadas
e desenvolvidas a nível local. “É por meio da participação a nível local que o indivíduo
‘aprende a democracia’” (PATEMAN, 1992, p. 46).
Diante do reconhecimento da importância da participação dos segmentos
populares na gestão pública, SANTOS (2003) defendeu a necessidade de articulação
da tradicional democracia representativa a democracia participativa. Nos termos do
autor, o confronto entre a democracia representativa e a democracia participativa
terá solução na medida em que a recusa da participação de segmentos da sociedade
for substituída pelo delineamento de formas de complementaridade entre as duas
formas de democracia, contribuindo para o aprofundamento de ambas. Para ele, nesta
complementaridade reside um dos caminhos da reinvenção da emancipação social.
NOGUEIRA (2004) levanta que, antes de tudo, a gestão participativa busca
modificar a relação governantes e governados, na medida em que traz o cidadão para a
órbita do governo e da comunidade, facilitando, assim, a construção de modalidades
novas e superiores de abertura do Estado à sociedade.
12
John Stuart Mill (1806 – 1873) , pensador liberal influente do século XIX, “em sua teoria social e política,
assim como em outros assuntos, partiu de uma adesão fervorosa às doutrinas de seu pai [James Mill] e
de [Jeremy] Bentham, criticando-as severamente mais tarde, de tal modo que ele forneceu um excelente
exemplo das diferenças entre as teorias do governo representativo e das democracias participativas (...)”
(PATEMAN, 1992, p. 42).
Nestes termos, os conselhos de política representam espaços públicos de
vocalização de demandas oriundas da sociedade civil e a possibilidade da construção
de projetos políticos para operacionalização das políticas sociais. Enquanto
instrumentos da gestão democrática e participativa podem favorecer a construção do
interesse coletivo e do reconhecimento do papel do Estado como a esfera da pactuação
pelo interesse público. A diversidade de interesses presentes nestes conselhos deve
estar explícita nas discussões e na construção de projetos políticos, viabilizando
deliberações que respondam ao substrato comum destas demandas. Quanto mais as
discussões nos conselhos tornarem claras as diferenças de projetos, maior a
possibilidade de construção do interesse público.
Desta forma, é necessário que se fortaleça a compreensão da participação
política, englobando nas discussões blicas a diversidade de interesses presentes na
sociedade civil. Para isso, os sujeitos envolvidos nestes espaços devem estar
capacitados e formados para conseguirem compreender essa relação e influenciarem
na construção de um projeto hegemônico para o Estado. Um pacto político será
verdadeiramente democrático quando conseguir abarcar o máximo possível do que
de comum nessa diversidade. Se um projeto político for assim construído, aumentam
suas chances de se tornar legítimo e representativo. Para NOGUEIRA (2004), participar
é fazer-se representar no debate público democrático, onde os pontos de vista se
explicitam e se formatam os consensos fundamentais, onde se constituem as opiniões,
as lutas pela hegemonia e se constrói, em maior ou menor dose, uma idéia de ordem
pública e de comunidade política. Assim, “tão relevante quanto a decisão é o modo (o
processo, o caminho institucional) como se delibera, como se debatem os temas e
como se organiza uma agenda” (NOGUEIRA, 2004, 153).
Para o autor, não porque acreditar que a participação, mesmo que
corporativa e gerencial num primeiro momento, não possa politizar-se, considerando a
comunidade política em sua abrangente e dinâmica contraditoriedade. “Na medida em
que uma participação organizada com vistas à conquista de um direito ou ao
atendimento de uma demanda mostre-se aberta aos outros e ponha-se o desafio da
emancipação (isto é, da ruptura com a subalternidade, da recusa à manipulação),
evidentemente se compromete com a democratização” (NOGUEIRA, 2004, P. 144). Por
isso, no Estado democrático de direito é importante a regulamentação das regras
procedimentais e das instituições representativas, canais que possibilitam a viabilização
de diálogos e da construção do interesse público.
No que tange as políticas sociais, os gestores públicos devem considerar a
importância esse processo, fomentando, inclusive, os canais articuladores de discussão
e criação de consensos. “A ausência de mediações procedimentais ou institucionais
sugeriria apenas a imagem populista do governante que interage diretamente com seus
governados” (NOGUEIRA, 2004, p. 160).
Nos parece pertinente concluir que a experiência dos conselhos de política vem
promovendo a possibilidade de inovação da relação entre Estado e sociedade civil no
Brasil. Não podemos ignorar a expressiva movimentação que estes espaços públicos
têm realizado no cenário brasileiro, como a organização de encontros temáticos,
capacitações de sujeitos políticos e discussões políticas com visibilidade pública, como
as conferências, que vêm reunindo uma diversidade de segmentos e demandas sociais.
Desta forma, nos interessa analisar a qualidade da participação dos segmentos
organizados da sociedade civil na gestão das políticas sociais em âmbito municipal, via
experiência conselhista.
Para tanto, os dados empíricos deste estudo retratam, nas experiências dos
conselhos municipais de saúde e assistência social de Ponta Grossa, a qualidade da
participação do segmento sociedade civil no processo da gestão democrático-
participativa destas políticas em âmbito municipal. A análise da qualidade da
participação atenta para os aspectos da dedicação a participação nos conselhos
(assiduidade, envolvimento nas atividades, interesse demonstrado e valorização do
espaço dos conselhos), capacidade de tomar decisões a partir do conhecimento
(capacidade técnica) e cultura cívica (capacidade de ação política de transcender do
interesse corporativo ao coletivo).
A qualidade da participação dos segmentos organizados da sociedade civil nos
conselhos, bem como as concepções dos sujeitos sobre a importância da participação
e do papel dos conselhos, apontam o debate acerca da maturidade política dos atores
envolvidos nesse processo gestão (conselheiros e gestores públicos) e da
potencialidade de ação destes espaços de decisão política.
CAPÍTULO 3
A EXPERIÊNCIA CONSELHISTA NOS SETORES SAÚDE E
ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PONTA GROSSA – PR
3.1) PERFIL SÓCIO-POLÍTICO DO MUNICÍPIO
De acordo com o censo de 2000, do IBGE, Ponta Grossa é um município de
porte médio, contando com 273.616 habitantes; destes, 266.552 residem na área
urbana e 6.917 na área rural. Os dados do IBGE apontam, para 2005, uma população
estimada em 300.196 habitantes.
Durante o século XIX a base produtiva de Ponta Grossa era a pecuária,
consolidada através de grandes propriedades rurais, o que legitimou a concentração
dos poderes econômico e político nos fazendeiros da região. Mesmo com o processo
de industrialização doculo XX, a tendência da representatividade nas elites locais se
mantinha significativa. Desta forma, “o tradicionalismo, reforçado pelas relações das
famílias proprietárias de terras, diminui as possibilidades de surgimento de relações
sociais diferentes das dominantes, principalmente quando as relações são dominadas
pelo econômico e extrapolam para o mando político da cidade” (LUIZ, 1997, p. 73).
Assim, no que compete a vida política, de acordo com SILVA (1994), dos treze prefeitos
da primeira metade do século XX, é expressiva a representação da tradicional
oligarquia rural que sempre controlou o poder político local. Para o autor, essa
tendência também esteve presente no legislativo da época.
Essa tendência i perdurar décadas, e atrelada as conseqüências da
industrialização da região, com o abandono do campo e expansão da cidade,
consolidará um município desigual social e politicamente. De acordo com
BOURGUIGNON (1997), o aumento dos índices da população residente em favelas nas
décadas de 1970 e 1980 ilustra o grau em que a pobreza se espalhou pela cidade, fator
decorrente da concentração de terras no meio rural e do crescimento econômico no
meio urbano, desprovido de mecanismos de distribuição de renda. Em 1960 a
população favelada correspondia a 0,8% da população urbana, em 1988 representava
10%. que se considerar, pensando em número absoluto, devido à expansão da
zona urbana e o aumento de sua população, que o índice é bastante significativo.
Na análise de LUIZ (1997), a década de 1970 expressou a fragilidade dos canais
de incentivo às relações sociais comunitárias. Assim, “(...) os monopólios econômicos,
associados aos políticos, não permitiram a ascensão tranqüila de um pensamento
social crítico” (LUIZ, 1997, p. 85). BOURGUIGNON (1997), analisando o Plano Diretor
de Ponta Grossa, de 1967, destacou que em relação a “dinâmica social” o documento
considera que “a tradição sócio-cultural dos proprietários rurais fundamenta as relações
no município, dando-lhe caráter estático e aumentando o grau de influência das
tradicionais famílias pontagrossenses no âmbito das decisões políticas”
(BOURGUIGNON, 1997, p. 100).
No município, a década de 1980 acompanhou, em certa medida, o movimento
nacional pela organização de espaços de participação popular. LUIZ (1997) destaca
que, em 1984, é eleito, pelo PMDB, o prefeito que pela primeira vez na história da
cidade trará como lema o incentivo a participação da sociedade civil. Assim, as
associações de moradores se tornaram os principais espaços criados e fomentados
nesta gestão. A autora constatou em suas análises a participação destas associações
na formulação da Lei Orgânica Municipal do período, no entanto, denuncia que das
quatro propostas de emenda ao anteprojeto de lei, enviadas pelas associações,
nenhuma foi aceita. BOURGUIGNON (1997) relata que de 1983 a 1996 os
representantes do executivo municipal pertenciam a uma mesma tradição familiar e a
um mesmo segmento político (empresários e agropecuaristas), preservando a elite na
condução do poder local. Otto Santos Cunha (1983/1987), prefeito eleito pelo PMDB;
Pedro Wosgrau Filho (1988/1992), eleito pela coligação partidária PDC, PFL e PL; e
Paulo Cunha Nascimento (1993/1996), representado pela coligação PFL, PL, PSDB,
PDS e PRN, compuseram o perfil dos prefeitos do período.
Ainda assim, as décadas de 1980 e 1990 marcam a emergência de uma série de
movimentos da sociedade civil no município. Merecem destaque
13
a fundação do Centro
de Defesa dos Direitos Humanos, movimento que se origina de uma corrente de idéias
articuladas por membros da Pastoral Universitária, ala progressista da Igreja
13
Os dados estão baseados no levantamento realizado por LUIZ (1997), como parte da caracterização do
município no estudo da atuação das ONG’s em Ponta Grossa.
Católica/Teologia da Libertação, Grupo Ecológico dos Campos Gerais, Movimento
Municipal de Meninos e Meninas de Rua, Movimento de Conscientização da Raça
Negra, Movimento Estudantil Secundarista, representação do Movimento Sem Terra,
Associação Geral dos Moradores em Terrenos Irregulares, Associação dos Mutuários
da Habitação, Central de Movimentos Populares, Planejamento Participativo Municipal
e alguns Conselhos Municipais, como os dos setores da saúde, assistência social e de
proteção à criança e ao adolescente.
LUIZ (1997), tomando nota dos comentários publicados na imprensa estadual
14
na década de 1990, relata que as publicações destacavam Ponta Grossa como a
“cidade dos prefeitos ricos”, onde a maioria da população em situação de pobreza
preferia votar em ricos. De acordo com o trabalho de LUIZ (1997), a imprensa publicou,
em 1992, que a grande maioria dos prefeitos de Ponta Grossa foi fruto do entusiasmo
do eleitorado, sempre emotivo para testar os nomes das famílias tradicionais e
consolidadas financeiramente. No que se refere a desigualdade social no período, de
acordo com BOURGUIGNON (1997), o censo de 1991, do IBGE, divulgou que 65,40%
dos chefes de domicílio pontagrossenses ganhavam de ½ até 3 salários mínimos.
Na eleição de 1996 “a dinastia Cunha não conseguiu eleger seu sucessor, sendo
derrotada por Jocelito Canto, representante da coligação PSDB/PMDB/PMN”
(BOURGUIGNON, 1997, p. 104). Natural do estado do Rio Grande do Sul, Jocelito
Canto, radialista, chega a Ponta Grossa em 1992, iniciando sua carreira numa rádio
local. Seu programa (Tribuna do Povo) tornou-se bastante popular por realizar doações
ao público (medicamentos, material de construção, passagens, alimentos etc)
15
. No ano
de 1996, o “radialista popular” foi eleito prefeito de Ponta Grossa. Seu mandato teve na
assistência social, com ênfase no assistencialismo, o foco de atuação de seu governo.
BOURGUIGNON (1996) argumenta que o discurso de cunho populista foi o
grande marco da eleição do radialista. Como prefeito, aos fins de semana Jocelito
Canto, reunindo aproximadamente 250 servidores públicos, realizava o programa “Ação
nos Bairros”, onde pessoalmente acompanhava a distribuição de alimentos, brindes,
consultas médicas e realização de “brincadeiras” na periferia do município. “Mesmo
quando está em seu gabinete, Jocelito não se nega a conversar com o povo, que forma
14
O Estado do Paraná, 25 de outubro de 1992.
15
http:www.plantaodacidade.com/prefeitos/prefeitos.htm Acesso em: 03/jul/06.
fila para se encontrar com o prefeito” (jornal Diário da Manhã, 27/04/97, apud
BOURGUIGNON, 1997).
A eleição de Jocelito Canto, ainda que expresse uma forma bastante populista e
clientelista de administração pública, representou, em certa medida, uma espécie de
rompimento com a tradição oligárquica que compunha historicamente o poder local em
Ponta Grossa. No entanto, podemos observar, no que se refere as coligações
partidárias, que os partidos políticos que se alternaram no poder são os mesmos, o que
evidencia a fragilidade do sistema partidário como proposta de organização política e
de um projeto de sociedade.
Nas eleições de 2000 o prefeito eleito, Péricles de Holleben Mello, representava
a coligação PT/PMDB, sua proposta de governo visava, entre outros projetos, fomentar
espaços de participação da sociedade civil na gestão municipal.
O Plano de Governo da gestão municipal de 2001-2004 destacava participação
popular como um instrumento capaz de desencadear o processo político de geração de
consciência e cidadania. Assim, datam desta gestão, entre outras iniciativas, a criação
do Orçamento Participativo, com os Conselhos de Vila e o Fórum Geral do Orçamento
Participativo; a reativação de conselhos desestruturados, como o Conselho Municipal
de Turismo; o fomento do diagnóstico participativo da política urbana e do Conselho do
Plano Diretor. Na área da saúde, articulando a população das periferias, criou-se a
proposta inovadora dos Conselhos Locais de Saúde. Data desta época a criação de 26
conselhos locais, que reuniam lideranças comunitárias na discussão dos problemas de
saúde vivenciados pelos moradores dos bairros.
Com o slogan “Cidade Viva” estas iniciativas expressaram a tentativa do governo
deste período em incentivar a participação popular na gestão das políticas públicas em
âmbito municipal. O incentivo as atividades culturais, através da criação da Fundação
Cultural, como os Núcleos Avançados de Cultura, na periferia da cidade; a Orquestra
Sinfônica de Ponta Grossa e eventos artísticos em praças públicas, também foi
característica desse governo
16
.
16
PONTA GROSSA, Secretaria de Governo e Recursos Humanos, Coordenadoria de Planejamento
Estratégico, Coordenadoria de Mobilização e participação Comunitária, Secretaria de Finanças. Caderno
Especial: prestação de contas popular sobre o plano plurianual 2002-2005 e levantamento de
prioridades gerais para a indicação de investimentos públicos. Ponta Grossa, 2004.
No pleito eleitoral de 2004 o candidato do PT, à reeleição, adotou a estratégia de
campanha de aliar-se a Jocelito Canto, enfrentando na disputa eleitoral o candidato da
coligação PSDB/PFL, Pedro Wosgrau Filho, que fora prefeito de 1989 a 1992. O
candidato do PSDB/PFL obteve êxito nessa disputa e assumiu a prefeitura municipal
em 2005. O resultado dessa eleição pode demonstrar, de um lado, o vínculo da
sociedade pontagrossense com o conservadorismo político, no entanto, de outro modo
somos levados a inquirir que a estratégia de campanha do candidato do PT,
vinculando-se a Jocelito Canto, foi um agravante no que compete a uma proposta de
governo que pregava uma maneira progressista de gerir os assuntos públicos, dando
ênfase, como vimos, a participação da sociedade civil no processo de gestão. A aliança
entre Péricles e Jocelito foi bastante contraditória, pois envolvia uma perspectiva de
governo pautada na gestão democrática e participativa, e outra, profundamente
marcada por relações clientelistas. O ocorrido, evidentemente, causou estranheza
diante da população local.
O governo de 2001-2004 expressou a primeira tentativa sistemática de fomentar
espaços de participação popular na gestão pública. Ainda assim, embora se considere
o êxito da gestão petista no que se refere a um projeto de governo que estimulou a
participação da sociedade civil em âmbito local, é necessário destacar que não se
logrou uma transformação na cultura política do município, que ainda revela o
conservadorismo local. Os avanços conquistados nesta gestão conviveram com os
desafios de consolidação de um governo democrático. Na área da assistência social,
por exemplo, valorizou-se, no que se refere ao cargo de gestor do setor, o
conhecimento na área, e assim, a política vislumbrou avanços no que compete a forma
de gestão, ampliando a participação dos segmentos envolvidos no setor no
planejamento e fiscalização das ações e serviços. No entanto, no decorrer da gestão
alterou-se quatro vezes o cargo de secretário municipal de assistência social, o que
dificultou a legitimidade e a estabilidade das propostas de governo para a área.
No que se refere a atual gestão, de Pedro Wosgrau Filho (PSDB/PFL), embora
consideremos cedo tecer avaliação acerca deste governo, é importante registrar que
houve a desmobilização de espaços como o Orçamento Participativo e os Conselhos
Locais de Saúde. O presente estudo, analisando as experiências conselhistas dos
setores da saúde e assistência social, traz indicativos de um perfil de gestão resistente
em dialogar com a sociedade civil.
No que compete ao perfil sócio-econômico do município, de acordo com a
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS)
17
, a área urbana possui 24 favelas
(mais de 50 domicílios) e 112 focos de favelas (menos de 50 domicílios); 8 mil famílias
residem em ocupações irregulares, 12 mil famílias encontram-se abaixo da linha da
pobreza e 15 mil famílias encontram-se cadastradas em programas de transferência de
renda, do governo federal. A renda média per capita do pontagrossense, em 2000, era
de R$ 318,22, e cada família possuía, em média, 4,5 pessoas.
O quadro econômico-social do município se reflete em demandas por serviços
sociais públicos, especialmente nas áreas da saúde e assistência social.
No que compete a experiência conselhista, o município conta com 44 conselhos
municipais, contudo, nem todos se encontram em pleno funcionamento
18
. Os conselhos
mais estruturados, com sede própria e reuniões periódicas, estão ligados as políticas
que contam com orçamento fixo e fundo orçamentário próprio, como é o caso da saúde
e assistência social.
3.2) A GESTÃO DESCENTRALIZADA E PARTICIPATIVA DAS POLÍTICAS DE
SAÚDE E ASSISTÊNCIA SOCIAL
No Brasil, a descentralização político-administrativa e a universalidade no acesso
aos direitos sociais foram os grandes marcos inovadores previstos pela Constituição
Federal de 1988 para a área das políticas sociais. Novidade no trato da gestão das
políticas sociais, a descentralização visa garantir maior autonomia aos entes federativos
no processo de planejamento, implementação e avaliação das ações e serviços
17
As informações sobre o diagnóstico social do município estão de acordo com o Plano Municipal de
Assistência Social 2006, organizado pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Ponta Grossa
(SMAS). Os dados do documento estão baseados no censo de 2000, do IBGE; em dados do Instituto
Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES); e ainda, em cadastros da própria
SMAS.
18
Dados cedidos pelo Departamento Jurídico da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa.
públicos. Marcado pelo padrão centralizado de gestão, o cenário brasileiro exigiu uma
série de medidas jurídico-operativas no processo de regulamentação dos pressupostos
constitucionais. Por isso, de acordo com ARRETCHE (2000), é necessário fomentar
fatores institucionais
19
de adesão à descentralização. Para a autora o legado de
políticas prévias (influência da herança institucional), as regras constitucionais (que
determinam procedimentos que facilitam ou impedem a emergência de desenhos
institucionais) e a engenharia operacional (condições particulares de operacionalização
dos serviços) são fatores decisivos do processo de descentralização de determinada
política social.
No que compete a política de saúde, as iniciativas de descentralização do setor
tiveram início no começo da década de 1980, com a criação das Ações Integradas em
Saúde (AIS). Para CARVALHO; MARTIN e CORDONI JR (2001), as AIS significaram
uma tentativa de integração das ações curativas, preventivas e educativas em saúde,
que no Brasil tradicionalmente operaram de forma fragmentada. Para os autores, na
prática esta iniciativa serviu mais como mediação para a implantação do Sistema
Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) em 1987, que a partir da Constituição
Federal de 1988 organizou-se no Sistema Único de Saúde (SUS).
Nos termos de ARRETACHE (2000), o legado de políticas prévias na saúde,
entre outros determinantes, favoreceu o desempenho do SUS na década de 1990.
Assim, esse setor foi o único das políticas sociais brasileiras que reuniu condições
institucionais em favor de uma reforma efetiva. A regulamentação da saúde através de
leis ordinárias também contribuiu sobremaneira neste processo. É importante destacar
ainda que a sociedade civil exerceu, neste setor, papel fundamental de articulação e
pressão política na construção e regulamentação do SUS. ARRETCHE (2000) coloca
que, como um dos resultados da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em
1986, formou-se uma Comissão Nacional de Reforma Sanitária, encarregada de
elaborar um projeto de lei, que incorporando as deliberações desta Conferência, fosse
debatido na Constituinte. Expressando a disputa de interesses que envolvem decisões
19
Para ARRETCHE (2000), o processo de descentralização político-administrativa não pode ser pensado
sem a interferência de fatores relacionados à natureza das instituições no âmbito das quais se tomam as
decisões e se implementam as reformas. Neste sentido, é necessário considerar o conjunto de
procedimentos legais que geram incentivos ao comportamento dos atores, impactando de maneira
decisiva em processos de descentralização.
políticas desta natureza, a autora analisa que, a despeito de várias emendas
supressivas de setores mais conservadores da sociedade, o texto constitucional
estabeleceu a saúde como direito universal.
Na Constituição Federal de 1988, artigo 194, a saúde compõe parte do tripé da
seguridade social brasileira. Regulamentada no artigo 196, é prevista como direito de
todos e dever do Estado. Tem como diretrizes: a descentralização, com comando único
em cada esfera de governo; o atendimento integral, com prioridade às atividades
preventivas e a participação da comunidade na gestão das ações e serviços na área.
De acordo com a lei, o SUS deve ser financiado com recursos do orçamento da
seguridade social, da União, dos estados e dos municípios, além de outras fontes.
De acordo com o INSTITUTO PÓLIS (2002), foram declarados como princípios
doutrinários do SUS: o caráter único, a integralidade e a universalidade. Os princípios
de organização do sistema prevêem a descentralização, por meio da municipalização, e
a regionalização com hierarquização da atenção e controle público. O município torna-
se o lócus privilegiado na execução da política de saúde, além de assumir aspectos
referentes a contrapartida no financiamento das ações e serviços em saúde. Os
governos federal e estadual têm o papel de promover e custear parte do processo.
As legislações ordinárias do setor, como a Lei n.º 8.080 de 1990 e a Lei n.º 8.142
de 1990
20
, especificaram as regras de transferências orçamentárias e deram
legitimidade a participação da sociedade civil no processo de gestão. As Normas
Operacionais Básicas (NOBs) de 1991, 1993 e 1996
21
, elaboradas pelo Ministério da
Saúde, tiveram a finalidade de nortear e organizar de maneira mais sistemática as
atribuições de cada ente federativo; e o Decreto 1.232, de 1994, conhecido como
20
A Lei n.º 8.080 sofreu o veto do, então, presidente Fernando Collor na disposição sobre a participação
da sociedade civil e na forma do financiamento via transferência, direta e automática, de recursos
federais aos fundos estaduais e municipais. Como reação a esta iniciativa autoritária promulgou-se a Lei
n.º 8.142, de 1990, que garantiu a participação da comunidade no SUS, estabelecendo este requisito
como fundamental na transferência de recursos entre as esferas governamentais.
21
A NOB/91 sistematizou o financiamento por produção, onde os municípios passaram a receber
recursos por procedimentos executados; a NOB/93 regulamentou a gestão do SUS, na medida em que
propôs as modalidades de gestão: semiplena, parcial e incipiente; e a NOB/96 alterou a forma de
financiamento do setor, instituindo o Piso de Atenção Básica (PAB), que garante o pagamento de uma
quantia fixa por município/habitante/ano. O valor desse recurso pode variar conforme a adoção, pelo
gestor municipal, de algumas modalidades de atenção à saúde preconizadas pelo Ministério da Saúde,
como: Programa Saúde da Família (PSF), o Programa de Agentes Comunitários (PACS), o combate à
carências nutricionais, vigilância epidemiológica e campanhas de prevenção (câncer de mama, câncer de
próstata, hipertensão arterial, diabetes, etc) (INSTITUTO PÓLIS, 2002).
“Decreto Fundo a Fundo”, regulamentou o repasse direto de recursos financeiros do
fundo nacional de saúde para os fundos estaduais e municipais de saúde.
A questão do financiamento do SUS é bastante polêmica, que a organização
do sistema esteve atrelada ao momento de contra-reforma do Estado brasileiro. Para o
INSTITUTO PÓLIS (2002) o reconhecimento do direito de exploração da assistência à
saúde pela iniciativa privada (prevista na lei 8.142/90), a incerteza sobre as fontes de
financiamento e as isenções fiscais às instituições “ditas” filantrópicas representam
parte desta questão. Desta forma, em setembro de 2000 foi aprovada a Emenda
Constitucional n.º 29 (PEC 29), que tem como objetivo principal regulamentar um
percentual mínimo de investimento pelas três esferas de governo. No caso da União, no
ano de 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde deveria
responder pelo total do exercício financeiro de 1999, acrescido de no mínimo 5%. Do
ano de 2001 a 2004, deveria ser aplicado o valor do ano anterior, corrigido pela
variação do Produto Interno Bruto (PIB). Aos estados coube investir, até 2004, 12%, no
mínimo, do que se arrecada em impostos; ao município ficou estabelecido que, até
esse mesmo ano, deveria ser investido, em saúde, 15% do total da arrecadação.
Outra novidade prevista pelas NOBs, mais especificamente pela de 1993, é a
criação das Comissões Intergestoras Tripartites (CIT) e Bipartites (CIB). A CIT é
composta pelos gestores federal, estaduais e municipais, e as CIBs reúnem o gestor
estadual e os gestores municipais de cada ente federativo. “Estas comissões foram
originalmente concebidas para favorecer o contato entre gestores, promover a
descentralização e agilizar a operacionalização das decisões tomadas pelos Conselhos
Nacional e Estaduais de Saúde” (INSTITUTO PÓLIS, 2002, p. 12).
Pela mobilização da sociedade civil e por força da lei, os conselhos de saúde
foram criados nas três esferas de governo, compondo, juntamente com o fundo
orçamentário e com os planos de saúde, requisito obrigatório na transferência de
recursos na área. Os conselhos representam canais de controle social da política, e
cabe a estes espaços, basicamente: definir prioridades das ações; estabelecer
diretrizes na construção de planos; discutir, acompanhar, controlar e avaliar a
operacionalização da política de saúde. Neste sentido, a agenda de saúde, o plano de
saúde e os relatórios de gestão são instrumentos de suma importância no processo de
monitoramento e acompanhamento das ações e serviços prestados.
No que diz respeito a gestão municipal, a agenda em saúde programa as
prioridades de atendimento e as metas a serem atingidas, que irão nortear a construção
do plano municipal. Para o Ministério da Saúde (2002), o plano de saúde deve conter a
descrição da situação de saúde da população, levantando situações que podem
contribuir, ou não, para promover a saúde de uma determinada localidade (saneamento
básico, coleta de lixo, tratamento de água, condições de trabalho e moradia, transporte,
alimentação, estruturas de atendimento em saúde e educação, etc). Essas informações
é que irão definir as ações e os recursos necessários (orçamento) para implementar a
política de saúde. Os relatórios de gestão têm a função de prestar contas sobre o que
foi executado, o quanto foi gasto e os resultados obtidos. A atuação dos conselhos de
saúde é fundamental na formulação destes documentos e na fiscalização dos mesmos.
São os segmentos organizados da sociedade civil que, em parceria com o poder
público, devem indicar quais são as necessidades e prioridades da política de saúde.
Para ARRETCHE (2000), o desenho institucional da política de saúde, definindo
fontes de financiamento e modalidades de gestão, favoreceu a adesão dos municípios
brasileiros a descentralização das ações e serviços na área. A autora conclui em seu
estudo que, quanto mais sistematizados forem os desenhos das políticas (atentando
para engenharia operacional, legado de políticas prévias e regras constitucionais),
maior a possibilidade dos municípios aderirem ao projeto descentralizado, pois com
regras claras é possível “calcular” os custos e benefícios políticos desta adesão.
ARRETCHE (2000) chama isto de “barganha federativa”, ou seja, cada nível de
governo busca transferir a outra administração a maior parte dos custos políticos,
financeiros e administrativos da gestão, e reservar para si a maior parte dos benefícios
dela derivados.
É por isso que, para ARRETCHE (2000), a política de assistência social
encontrou resistência por parte dos municípios brasileiros no processo de adesão a
descentralização das ações e serviços na área. Diferente da saúde, a assistência social
não possui políticas prévias de descentralização, e nem tampouco regulamentou de
maneira sistemática as fontes de financiamento.
Juntamente com a saúde, a política de assistência social compõe parte do tripé
da seguridade social brasileira e destina-se a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição. De acordo com a Constituição Federal de 1988,
essa política tem por objetivos: a proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção
da integração ao mercado de trabalho e a habilitação e reabilitação das pessoas
portadoras de deficiência e a promoção de sua integração no mercado de trabalho.
Pela lei, garante-se ainda, um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover sua própria
subsistência ou de tê-la provida por sua família.
No que compete as diretrizes da política, essa Constituição prevê, no artigo 204,
a descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais
da política à esfera federal e a coordenação e execução dos programas às esferas
estaduais e municipais, bem como a entidades beneficentes de assistência social. A
participação da população na formulação e controle da política está prevista neste
mesmo artigo, também como parte das diretrizes. Assim como a saúde, o
financiamento da assistência social deve ser realizado com o orçamento da seguridade
social, além de outras fontes.
No entanto, no Brasil, a regulamentação da assistência social se deu através de
uma precária organização institucional. Tradicionalmente vinculadas ao estigma da
caridade e da filantropia, as ações na área foram prioritariamente operacionalizadas
pela iniciativa privada, na figura de entidades beneficentes e filantrópicas, ligadas, ou
não, a ordens religiosas. MESTRINER (2001) argumenta que, longe de assumir o
formato de política social, a assistência social desenrolou-se décadas como doação de
auxílios, revestida pela forma do favor e da tutela, conservando características de uma
prática circunstancial e imediatista. Por isso, no fim, mais reproduz a pobreza e a
desigualdade social na sociedade brasileira, que opera de maneira descontínua em
situações pontuais, defende a autora. O estudo de MESTRINER (2001) aponta que, ao
longo do século XX, o que o Estado brasileiro fez na área da assistência social foi
fomentar, através de convênios e subvenções
22
, as iniciativas advindas das ações de
22
Entre tantas legislações apontadas por MESTRINER (2001) como exemplos de fomento do poder
público à iniciativa privada na área da assistência social (entidades filantrópicas), destacamos:
entidades filantrópicas. O Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), primeira
iniciativa institucional do Estado na área, criado em 1938, tinha por meta subsidiar as
ações das entidades privadas. Em 1942 criou-se a Legião Brasileira de Assistência
Social (LBA), muito lembrada por inaugurar a prática do “primeiro-damismo” na
coordenação de ações na área assistencial.
Assim, a Constituição Federal de 1988 representou a possibilidade de ruptura
com o estigma que, historicamente, caracterizou a assistência social no Brasil como a
política da ajuda e do favor aos mais necessitados. A assistência social constituiu-se,
durante décadas, numa série de ações desarticuladas e isentas de qualquer tipo de
acompanhamento, controle ou avaliação. Sua inserção no texto constitucional, de 1988,
como política pública, já que financiada pelo orçamento da seguridade social, significou
uma grande conquista para a área. No entanto, sua sistematização, através de
legislação ordinária, se deu de maneira precária e com muita luta
23
. A Lei n.º 8.742 de
1993, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), foi que regulamentou de maneira
mais precisa a operacionalização da política nacional de assistência social, extinguindo
as antigas instituições (CNSS e LBA) e criando o Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS).
A LOAS definiu que a assistência social é direito do cidadão e dever do Estado,
devendo prover o acesso aos mínimos sociais, garantindo o atendimento às
necessidades básicas. De acordo com a lei, esta política realiza-se através de um
conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade. Neste sentido,
regulamentou-se a atuação das entidades beneficentes de assistência social. Pela
LOAS, no artigo 3.º, são entidades e organizações de assistência social aquelas que
prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos beneficiários da lei,
bem como as que atuam na defesa e garantia de seus direitos. É importante destacar
que a sistematização do perfil destas entidades beneficentes é uma polêmica no setor,
Constituição Federal de 1934, com contribuições à caridade oriundas de taxas alfandegárias a bebidas
alcoólicas e embarcações; Certificado de Utilidade Pública em 1935; Subvenção Federal, regulamentada
entre 1935 e 1938; em 1945, isenção na aplicação de tetos mínimos de salário dos funcionários; isenção
da contribuição da cota patronal previdenciária e Certificado de Filantropia, ambos em 1959; isenção de
impostos sobre importações em 1965. E mais recentemente, lei dos voluntários, em 1998; e lei das
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e Termo de Parceria, ambas em 1999.
23
De acordo com ARRETCHE (2000), Fernando Collor vetou integralmente o texto da Lei n.º 8.742 de
1993.
que a LOAS não previu de maneira clara os critérios para a regulamentação destas
entidades e suas funções na operacionalização da política de assistência social. Esta
discussão está em pauta na agenda do CNAS.
No que se refere as diretrizes, a Lei n.º 8.742 reforça a descentralização político-
administrativa, com comando único em cada esfera de governo; prevê a participação da
sociedade civil na formulação e no controle da política; e acrescenta que, a primazia da
responsabilidade na condução da assistência social é do Estado.
A falta de sistematização acerca do papel de cada ente federativo,
principalmente no que diz respeito ao financiamento das ações e serviços neste setor,
assim como a precária definição do papel das entidades beneficentes de assistência
social, gerou um quadro bastante polêmico no processo de operacionalização da
política, que acabou, mesmo após a Constituição Federal de 1988, conservando alguns
aspectos tradicionais de ações na área, como o assistencialismo e a cultura do favor na
prestação dos serviços.
De acordo com ARRETCHE (2000) apenas em 1997, através de portarias
ministeriais, instituiu-se a sistemática de repasses de recursos e organizou-se Norma
Operacional Básica da Descentralização, operacionalizada a partir de 1999. Até então,
os recursos eram repassados da União para os estados, e estes tinham autonomia para
repassá-los, ou não, aos municípios. Essa NOB introduziu na área da assistência
social, de maneira semelhante ao SUS, as comissões intergestoras (CIT e CIB). Ainda
assim, mesmo que tenha sistematizado a proposta de transferência de recursos entre
as esferas governamentais, nesta NOB nada se colocou em relação importância da
regulamentação do montante de recursos a serem repassados por cada esfera de
governo.
Assim, foi a NOB de 2005 que trouxe, de maneira mais consistente e
operacional, a proposta de organizar e sistematizar a rede de atendimento assistencial
e o percentual de investimento no setor, promovendo a universalização do atendimento.
Pretende-se normatizar as ações na área, prevendo a adesão dos municípios a
diferentes modalidades de gestão, assim como a organização de uma rede
regionalizada e hierarquizada de atendimento, garantindo o acesso universal dos
usuários ao sistema, bem como estabelecer o percentual nimo de investimento em
5% do orçamento, no setor. A NOB 2005 vem regulamentar a política nacional de
assistência social através da implantação do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS).
Nos municípios, o espaço privilegiado de planejamento e controle da política de
assistência social é o conselho municipal de assistência social (CMAS). Este conselho,
paritário e deliberativo, tem por atribuições, além do planejamento e do controle social
da política, cadastrar entidades de assistência social e estabelecer critérios para
celebração de convênios entre o poder público e as entidades privadas. Juntamente
com o fundo orçamentário e com o plano municipal, este conselho compõe requisito
obrigatório no processo de gestão da política nacional de assistência social.
É importante notar que, em ambos os setores, saúde e assistência social, as
ações e serviços públicos contam com a parceria da iniciativa privada. No que tange a
saúde, o mercado (planos de saúde, indústria farmacêutica, etc) no setor um espaço
de lucro bastante expressivo. no caso da assistência social, o incentivo do poder
público, através de convênios e subvenções, às entidades filantrópicas tem gerado uma
busca expressiva do setor na regulamentação de suas atividades, via cadastro nos
conselhos de assistência social. Neste sentido, as discussões nos conselhos municipais
de saúde e assistência social, espaços de deliberação das políticas, têm expressado a
disputa de interesses dos segmentos envolvidos na prestação de serviços nestas
áreas. O corporativismo dos setores privados é um desafio a ser superado nas
discussões e deliberações políticas destas áreas. Neste sentido, se faz necessário o
reconhecimento, por parte do órgão gestor, da importância de espaços públicos e
representativos de deliberação das políticas. Os conselhos municipais de saúde e de
assistência social podem contribuir no processo de mediação da construção de uma
política de atendimento que responda as demandas coletivas, ao interesse público.
3.3) PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NOS CONSELHOS DE SAÚDE E
ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PONTA GROSSA: A PERSPECTIVA DOS GESTORES
No município de Ponta Grossa, através da Secretaria Municipal de Saúde (SMS),
os serviços e ações de saúde blica são operacionalizados por uma rede de
atendimento composta de 40 Unidades Básicas de Saúde (UBS), sendo que, 29 delas
comportam o Programa Saúde da Família (PSF)
24
. O município conta, ainda, com 8
Hospitais Gerais e 2 Centros Médicos voltados, respectivamente, para o atendimento
da Mulher e de Especialidades (CMM e CME)
25
. Caracterizada, nas modalidades de
gestão do SUS, como gestão ampliada da atenção básica, a gestão municipal deve ter
como foco de atuação as ações de prevenção em saúde, bem como as vigilâncias
sanitária e epidemiológica.
A assistência social, tendo como órgão gestor a Secretaria Municipal de
Assistência Social (SMAS), operacionaliza a política através das ações na gestão de
programas e projetos na área, assim como na em parceria com a sociedade civil,
através das entidades beneficentes de assistência social. Entre os principais programas
e projetos executados pelos departamentos da SMAS
26
temos: o Bolsa Família; o
Benefício da Prestação Continuada (BPC); o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI); Suplementação Alimentar, através da Unidade de Produção de
Alimentos (UPA)
27
; além de benefícios eventuais e emergenciais (passagens, alimentos,
etc).
O poder público, contando com a parceria da sociedade civil na execução das
ações e serviços na área assistencial, estabeleceu convênio com 162 entidades
beneficentes de assistência social
28
. Através do cadastro no CMAS, estas entidades
têm acesso a subvenções sociais oriundas do poder público, e na contrapartida
24
De acordo com o Ministério da Saúde, a Saúde da Família é entendida como uma estratégia de
reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes
multiprofissionais em Unidades Básicas de Saúde. As equipes atuam com ações de promoção da saúde,
prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais freqüentes, e na manutenção de saúde
da comunidade. As equipes são compostas, no mínimo, por 1 médico de família, 1 enfermeiro, 1 auxiliar
de enfermagem e 6 agentes comunitários de saúde. Quando ampliada conta ainda com: 1 dentista, 1
auxiliar de consultório dentário e 1 cnico em higiene dental. Cada equipe se responsabiliza pelo
acompanhamento de cerca de 3 mil a 4 mil e 500 pessoas.
25
Os dados foram cedidos pela 3.ª Regional de Saúde – PR.
26
1) Departamento de Administração dos Serviços Sociais (DASS): tem por objetivo administrar planos,
propor e administrar convênios entre o poder público e as entidades privadas, elaborando e
acompanhando o desenvolvimento de projetos na área. 2) Selo Social: certifica empresas do município
que desenvolvam ações de responsabilidade social. 3) Departamento de Assuntos Comunitários
(DEPAC): atua na implantação de serviços e ações no atendimento a famílias em situação de
vulnerabilidade e risco social. 4) Departamento da Criança e do Adolescente: realiza a gestão da política
de atendimento à criança e ao adolescente (orçamento, acompanhamento de projetos, mobilização,
capacitação de funcionários e atendimento).
27
Projeto executado pelo DEPAC, que produz e distribui para as entidades assistenciais cadastradas pão,
macarrão e leite de soja, beneficiando os usuários atendidos pela rede assistencial do município.
28
Lista das entidades disponível no http://cmaspg.vilabol.uol.com.br/entidades.html
executam o atendimento dos usuários da política. Cabe ao CMAS, além de cadastrar
estas entidades, fiscalizar e avaliar os serviços prestados de acordo com o disposto na
legislação do setor. Conta-se, ainda, por disposição na NOB/SUAS de 2005, com a
implantação de 4 Centros de Referência de Assistência Social (CRAS)
29
, como requisito
do sistema regionalizado e hierarquizado de atendimento.
Os gestores municipais de saúde e assistência social respondem pela prestação
de serviços dos setores, e aos respectivos conselhos cabe, além de planejar a política
com o órgão gestor, monitorar, fiscalizar e avaliar as ações e serviços prestados.
Desta forma, a tabela a seguir explicita características do perfil dos gestores de
saúde e assistência social de Ponta Grossa, bem como suas concepções da
participação da sociedade pontagrossense na gestão das políticas em questão.
TABELA 1: Perfil do Gestor Municipal – Ponta Grossa –2006
Área Formação/experiência
Avaliação sobre a participação da
sociedade civil
Saúde
Médico especializado em ginecologia e
obstetrícia/ foi secretário municipal de
saúde em 1980/81 e 1989/92.
“Do planejamento de ações muito
pouco (...) a visão leiga de saúde as
vezes encontra barreiras que eles não
conseguem entender. Então participam
muito mais, seja através do próprio
Conselho Municipal de Saúde, ou (...)
em reuniões que a gente faz com as
comunidades de bairro, eles participam
29
De acordo com a NOB/SUAS de 2005, o CRAS é uma unidade pública estatal de base territorial,
localizado em áreas de vulnerabilidade social, que abrange um total de a 1000 famílias/ano. Executa
serviços de proteção social básica, organiza e coordena a rede de serviços socioassistenciais locais da
assistência social.
muito mais apontando falhas (...) na
confissão de carências (...)”
30
.
Assistência
Social
Bacharel em ciências econômicas e
sociais, especialista em gerenciamento
de pessoas/ foi secretário de indústria e
comércio em 1989/92. Declarou
proximidade com a assistência social
“pela formação cristã”.
“No planejamento não participação,
na definição de prioridades também não
(...). Então, na execução das ações e
serviços, vamos dizer assim, é a grande
participação da sociedade”
31
.
Fonte: Entrevista. Org. da autora.
A gestão democrática e participativa das políticas sociais prima pela inscrição do
planejamento e do controle social sobre as ações e serviços públicos. Desta forma, a
fala dos gestores evidencia uma polêmica no processo de compreender a participação
da sociedade civil na gestão das políticas de saúde e assistência social em Ponta
Grossa. Estas concepções de participação estão relacionadas a uma perspectiva
tradicional, que dizem respeito ao apontamento de carências e a execução dos
serviços, nada no campo da construção do interesse público, do planejamento de ações
estatais, e assim, podemos aferir da dificuldade em que os órgãos gestores podem
apresentar em operacionalizar políticas sociais que respondam as demandas coletivas.
As falas dos gestores públicos nos indicam uma perspectiva de gestão que não valoriza
os espaços de participação da sociedade civil, principalmente na falta de
reconhecimento do planejamento participativo na gestão pública. Podemos aferir, pela
concepção dos gestores, que a operacionalização das políticas sociais em âmbito
municipal não prima pela transparência no processo de definição das prioridades, nem
tampouco vem sendo construída de maneira democrática. Como fomentar espaços de
formação de consensos e de construção do interesse público numa gestão que não
compreende, não favorece espaços de discussão e deliberação públicas?
É sabido que o planejamento das políticas sociais envolve a disputa da
diversidade de interesses dos segmentos da sociedade civil, e desta forma, é de suma
importância que esse processo envolva espaços de discussão pública na construção de
um projeto político de governo. A definição das prioridades de atendimento pode
30
Os depoimentos do secretário municipal de saúde, retratados neste trabalho, foram coletados através
de entrevista, realizada em 02 de dezembro de 2005.
31
Os depoimentos do secretário municipal de assistência social, retratados neste trabalho, foram
coletados através de entrevista, realizada em 30 de novembro de 2005.
apontar que projetos políticos estão sendo construídos. Os dados abaixo representam a
tentativa de evidenciar essa questão nos depoimentos dos gestores.
TABELA 2: Prioridade da política e papel do conselho – Ponta Grossa – 2006
Área Prioridade da política Avaliação sobre o papel do conselho
Saúde
“Prioridade? Todas! [quando
assumimos a gestão, a saúde]
estava relativamente
desorganizada, [por isso] existe
carência nas Unidades Básicas de
Saúde, no Centro Municipal de
Especialidades, no Centro
Municipal da Mulher, no Pronto
Socorro, no Hospital da Criança...
em todos os setores. a
prioridade é a saúde (...)”.
“Trazer a voz da população até a gente e o
papel de fiscalizador dos gastos e ações da
saúde. Ele fiscaliza as contas, tudo... mas
fiscaliza as contas do que já se fez, não do
que se vai fazer. Em algumas ações que a
gente vai desenvolver tem que levar para a
aprovação do Conselho, todas as ações que
consomem verbas do Fundo Municipal de
Saúde tem que ser autorizadas pelo
Conselho Municipal de Saúde. (...) Mas eu
acho que precisa ainda um amadurecimento
político da sociedade. Até a eleição, a prática
da democracia, ainda necessita de uma
evolução e de um amadurecimento político
da população. (...) Enquanto existir
distribuição de benesses numa campanha
política é sinal que a sociedade ainda não
amadureceu”.
Assistência
Social
Assistência
Social
(cont.)
“Na verdade nós não priorizamos,
porque quem tem necessidade,
tem necessidade! Nós estamos
procurando atacar todas as áreas.
Evidente que existem programas
mais ativos, mas não que sejam
elencados como prioridade. Todos
os programas são atacados de
forma conjunta e os recursos são
mais ou menos assim, o existe
um dispêndio maior, mas é
proporcional, é claro. Meu maior
custo hoje é o departamento da
criança e do adolescente, mas
enquanto eu tenho 3 mil idosos,
eu tenho 20 mil crianças. o
custo é diferente”.
“É o órgão fiscalizador da política da
assistência social, e a ele devo me reportar.
Eu coloco o conselho de assistência social
como a autoridade maior da assistência
social no município. Vejo dessa forma e
trabalho com o conselho como se ele fosse
assim... o real entendimento por parte dos
conselheiros de que a política social deve
ser, evidentemente, elaborada e norteada
pelo conselho, e eu aceito isso assim com
muita tranqüilidade, porque entendo que é
dessa forma que deva ser. (...) O grande
complicador da participação da sociedade
civil na gestão da política da assistência é
que eu, administrador público, tenho que me
preocupar com a origem de recursos, a
aplicação e a legalidade da aplicação desses
recursos. E essa visão ainda, infelizmente, a
sociedade não tem, ela acha que as coisas
são muito fáceis”.
Fonte: Entrevista. Org. da autora.
Na concepção dos gestores, a falta da definição de prioridade no atendimento
das políticas de saúde e assistência social parece refletir a fragilidade do financiamento
e a grande procura pelos serviços públicos. Como a demanda pelos serviços é grande,
priorizar “soa” como privilegiar um setor em detrimento de outro. Contudo, é necessário
reconhecer que as políticas sociais exigem a definição de prioridades de investimento,
respeitando os diagnósticos sócio-econômicos de cada realidade em particular. A
sistematização do planejamento e a definição de prioridades de ação significam o
resultado de uma decisão política, que deve, acima de tudo, expressar o interesse da
coletividade, da comunidade a qual se representa. Neste caso, a participação dos
canais democráticos de discussão, como os conselhos de política, devem colaborar na
construção do planejamento e das prioridades de atendimento, pois, em se tratando de
política social, “a elaboração de um plano depende sobretudo de seu conteúdo político”
(VIEIRA, 2004, p. 145), e neste sentido, a definição das prioridades de atendimento e
das metas a serem atingidas “refletem a realidade socioeconômica e cultural de um
lugar ou de um país em um determinado momento de sua história, e isto configura uma
tomada de decisão política, pois política quer dizer a relação entre pessoas e poderes”
(BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, P. 63).
Sem dúvida que as decisões políticas refletem o amadurecimento político das
instituições democráticas, porém, assim como defendeu NOGUEIRA (2004), nenhuma
sociedade é imediatamente política, ao contrário, o interesse público, a vontade geral,
como diria Rousseau, se realiza mediante a construção de um sujeito coletivo, e isso,
evidentemente, não se realiza sem muito esforço. Os conselhos de política, na medida
em que inscrevem uma diversidade expressiva de interesses na construção do
interesse público, devem ser reconhecidos pelos gestores como instrumentos
fundamentais da gestão pública. Isto porque, a operacionalização das ações e serviços
de cunho blico não deve responder somente pelo caráter técnico, burocrático e
financeiro de implementação, deve sim primar, sobretudo, pelo atendimento de
demandas sociais coletivas, diagnosticadas no processo de planejamento. De acordo
com a fala dos gestores, a gestão das políticas de saúde e assistência social em Ponta
Grossa não favorece a discussão pública e nem facilita a construção de um projeto
político que atenda o interesse coletivo. Esses condicionantes limitam a atuação dos
conselhos de política nos setores, que os próprios órgãos gestores o valorizam a
gestão democrática como eixo fundamental no planejamento das ações e serviços
públicos prestados nas áreas da saúde e assistência social no município.
O confronto de idéias e de projetos políticos não deve ser concebido como algo
que emperra, que prejudica a operacionalização das políticas sociais, pois a construção
do interesse público é permeada pelo conflito de interesses. Rousseau, no século
XVIII, em um contexto onde as sociedades ainda não haviam se tornado tão
complexas, apontou que a construção da vontade coletiva não se referia apenas a
soma das vontades individuais, e sim ao substrato comum presente na diversidade de
interesses. Assim, o conflito é inerente a todo processo de construção do interesse
público.
Nesta perspectiva, é compreensível que o processo de decisão política, que
emerge de instâncias participativas, envolva uma série de polêmicas e disputas, mas é
necessário reconhecer ainda que o próprio Estado é um campo de correlação de
forças, onde a organização política de interesses tem papel decisivo na construção da
integração social dos segmentos organizados da sociedade civil.
A tabela 3 tenta sistematizar, a partir da perspectiva dos gestores, os principais
desafios de cada política e a contribuição dos conselhos municipais de saúde e
assistência social no processo de operacionalização das ações e serviços no setor.
TABELA 3: Desafios na operacionalização da política e a contribuição do conselho na
gestão – Ponta Grossa – 2006
Área Desafios da política Contribuição do conselho na
gestão
Saúde
“Principalmente o baixo investimento (...) o
retrato da saúde de hoje é um retrato de
anos de governo anteriores, municipais,
estaduais e federal, que não se deu a
atenção devida à saúde, não se fez
investimentos que deveriam ter sido feitos
“O conselho contribui com uma
série de indicações, com uma série
de reivindicações, acontece que a
saúde está tão carente, tem
durante esse tempo (...), e por outro lado, o
que está acontecendo hoje é que a
população está empobrecendo, é uma
demanda muito maior de serviços públicos
(...)”.
necessidade de tantas medidas (...),
é tanta carência que o conselho não
sabe nem sugerir, a verdade é essa!
Todo mundo conhece as carências
da saúde”.
Assistência
Social
Nós temos que colocar um basta no dar,
nós temos que criar programas que a
pessoa ganhe, mas que contrapartida. E
essa contrapartida de que o filho tem que ir
para escola... eles não param de fazer filho
para ir pra escola, para receberam mais
recursos. (...) Tinha que ter um programa
muito sério contra natalidade. Deus nos
dotou de capacidade de discernimento para
saber o que é certo e o que é errado, mas
esse pessoal não sabe o que é certo e o
que é errado. (...) Essas pessoas devem
ser reinseridas no contexto da comunidade,
devem fazer parte da atividade produtiva,
para que tenham o “saborzinho” de receber
uma remuneração no final do mês. Querem
pagar salário? Ponham esse povo pra
trabalhar! (...) Hoje o grande problema do
município é o recurso financeiro.
Infelizmente Ponta Grossa está quebrada, a
prefeitura municipal também. Não sei
quanto tempo vai para colocar isso em
ordem, talvez passe a atual administração e
não se recupere o estrago feito”.
“(...) Nós temos 162 entidades
cadastradas no conselho, e ele
gerencia o repasse de recursos
para essas entidades através de
planos de aplicações, de convênios
e da fiscalização de objetivos (...).
Em termos de política, de
desenvolver uma política de
assistência social, me parece que o
conselho é um pouco inibido, eu
não sei se porque não de se deu
oportunidade para isso, ou porque
ele está preocupado muito mais
com relação a manutenção
pecuniária das entidades e dos seus
programas, do que realmente do
desenvolvimento de programas e
projetos novos de assistência
social”.
Fonte: Entrevista. Org. da autora.
é conhecida a contradição que envolve a operacionalização das políticas
sociais no Brasil, onde, por um lado, pela Constituição Federal de 1988 universalizou-se
o acesso a uma gama de direitos sociais, e por outro, o investimento estatal na
prestação dos serviços públicos sofreu o ajuste econômico que limitou os gastos
públicos e os investimentos na área social, principalmente na década de 1990. A
precarização na cobertura do atendimento e na qualidade dos serviços prestados, bem
como o aprofundamento das desigualdades sociais, construídas historicamente por
contextos sócio-econômicos determinados e por opções políticas, deflagraram um
modelo de Estado que pouco responde aos interesses oriundos dos segmentos
populares da sociedade civil, vale dizer, da maioria usuária das políticas sociais.
Desta forma, diante de um modelo de Estado que, historicamente privilegiou o
capital, através de políticas públicas, em detrimento de maior distribuição de renda e
atendimento de demandas advindas de setores subalternos da sociedade a grande
maioria da população tornou-se bastante complexa a compreensão por parte de
amplos segmentos da sociedade civil brasileira de que a esfera estatal não se resume a
esfera da coerção, para retomar a expressão gramsciana, e sim ao momento ético-
político, de construção dos patamares de civilidade em que desejamos viver. Por esta
contradição, NOGUEIRA (2004) alertou que a política, defendida por Gramsci como
idéia, atividade e perspectiva, foi convertida em ação pouco nobre, subordinada a
corrupção, a defesa de interesses particulares. A retomada desta discussão deve
buscar fortalecer o Estado como o momento de mediação política e de integração
social.
No que se refere a gestão participativa no município de Ponta Grossa, a
interpretação dos gestores sobre a contribuição dos conselhos no processo de gestão
da saúde e da assistência social, relacionando-a mais a uma instância burocrática de
cadastramento, repartição de verbas e apontamento de falhas no sistema, do que na
participação democrática do planejamento e fiscalização das ações, não contribui na
compreensão do Estado enquanto a esfera que representa o interesse coletivo. A
sociedade pontagrossense, de acordo com os gestores, parece não possuir um canal
efetivo de participação que garanta a inscrição dos interesses da comunidade na
agenda blica. Podemos inquirir que, quanto mais a administração pública resiste no
diálogo com a sociedade e não reconhece o papel das instâncias democráticas e
deliberativas de participação, como os conselhos de política, menos possibilidades têm
as ações em atenderem aos interesses da coletividade. Ainda, a falta de
reconhecimento e de estímulo à participação da sociedade civil não favorece a
construção de uma cultura cívica, elemento essencial na formação do interesse público
e do fortalecimento do governo democrático.
De acordo com PUTNAM (2005) numa comunidade cívica a cidadania
caracteriza-se primeiramente pela participação nos negócios públicos. O interesse
pelas questões blicas e a devoção às causas públicas são os principais sinais de
virtude cívica. Para o autor, os cidadãos da comunidade cívica não têm de ser
altruístas, os cidadãos buscam, nessa comunidade, o interesse próprio definido no
contexto das necessidades públicas gerais, o interesse próprio é sensível aos
interesses dos outros. Neste contexto, os cidadãos consideram o domínio público algo
mais que um campo de batalha para a afirmação do interesse pessoal. “Tal
comunidade será tanto mais cívica quanto mais a política se aproximar do ideal de
igualdade política entre cidadãos que seguem as regras de reciprocidade e participam
do governo” (PUTNAM, 2005, p. 102). Partindo desta análise, a gestão democrática e
participativa das políticas sociais, a medida que aproxima os segmentos organizados da
sociedade civil dos assuntos de governo, pode favorecer a construção do interesse
público e da cultura cívica.
Em relação à gestão municipal da saúde em Ponta Grossa, segundo o gestor, a
carência de recursos do setor e a conseqüente precariedade da amplitude do
atendimento atribuem ao conselho de saúde um papel formal, que este quadro, para
o gestor, não permite aos conselheiros, nem tampouco favorece, a oportunidade de
propor ações. Queremos destacar que o papel dos conselhos não se remete somente a
proposição técnico-operativa das ações e serviços públicos, mas se refere também a
expressão de canais de participação política, ou seja, são instrumentos que possibilitam
a organização e a visibilidade de construção do interesse público.
O gestor da assistência social aponta, assim como o da saúde, a falta de
recursos como o grande desafio da política. A avaliação desse gestor sobre as
dificuldades de operacionalização da assistência social no município evidencia um
discurso bastante conservador, onde a pobreza é compreendida sobre a ótica da
moralidade, enfatizando uma perspectiva tradicional de compreensão do tema para
setores mais conservadores da sociedade, aquela que tende “culpar” os pobres pela
situação em que se encontram. Esse discurso nos demonstra o quanto o
conservadorismo está presente em setores da administração pública municipal.
Em relação ao conselho municipal de assistência social, o entrevistado declarou
perceber uma ação pouco propositiva dos segmentos representados neste conselho, e
destacou o corporativismo das entidades como um possível empecilho. É necessário
reconhecer que a disputa particular de interesses caracteriza a sociedade civil e, neste
sentido, a participação corporativista representa um modelo presente em espaços de
decisão política.
No entanto, os conselhos de política, enquanto instrumentos da gestão
democrática das políticas sociais, possibilita a discussão pública e a construção de
demandas coletivas. NOGUEIRA (2004) discute que mesmo o indivíduo autocentrado
pode ser politizado, pois o está definitivamente indiferente à comunidade política. A
questão é descobrir qual política e qual Estado podem responder a tarefa de mediação
dessa potência política. Assim, consideramos que a participação democrática pode
favorecer o momento de superação de interesses corporativos, transcendendo ao nível
ético-político. Os conselhos de política podem vir a favorecer essa totalização política,
articulando a síntese de interesses presentes nas posições defendidas pelos
segmentos organizados da sociedade civil. Para tanto, é necessário fomentar a
construção de canais mediadores da vontade coletiva, pois pensar um projeto de
Estado democrático envolve pensar em sujeitos políticos participativos.
No que tange a concepção de participação dos gestores de saúde e de
assistência social de Ponta Grossa, podemos avaliar que as modalidades
assistencialista e corporativista ficam mais evidentes nos depoimentos. Embora
reconheçam o papel dos respectivos conselhos municipais, a importância da
participação da sociedade civil é destacada no plano da execução de ações e do
apontamento de falhas, e no que compete ao planejamento, a falta de amadurecimento
político e o corporativismo justificam a ausência dos segmentos organizados nesse
processo.
3.4) PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NOS CONSELHOS DE SAÚDE E
ASSISTÊNCIA SOCIAL EM PONTA GROSSA: A PERSPECTIVA DOS
CONSELHEIROS E SECRETÁRIOS EXECUTIVOS DOS CONSELHOS
De acordo com PATEMAN (1992), é no processo de participação decisória que
os sujeitos desenvolvem uma ação social e política responsável, e assim, vale dizer que
a construção de uma cultura cívica e de um modelo de Estado democrático dependem,
em grande medida, das instituições e regras que regulamentam e fomentam a
participação política dos segmentos organizados da sociedade civil.
Assim, os dados apontam aspectos relevantes da qualidade da participação da
sociedade civil nestes espaços de discussão e decisão políticas. As análises têm como
critérios para avaliar a questão da qualidade da participação da sociedade civil nos
conselhos o destaque para o interesse dos conselheiros com assuntos de relevância
pública, a capacidade de percepção da importância da superação do interesse
corporativo em detrimento do público e a capacidade de tomar decisões pautadas no
conhecimento dos temas tratados, ou seja, a capacidade técnica.
A) Caracterização dos Conselhos de Saúde e Assistência Social
Os conselhos municipais de saúde e de assistência social foram criados, em
Ponta Grossa, na década de 1990, atendendo as disposições legais. Num primeiro
momento sendo presidido pelos respectivos gestores, estes conselhos exerciam
funções ligadas ao campo consultivo. No correr da cada, através de
regulamentações
32
, os conselhos de saúde e de assistência social lograram uma série
de conquistas. Hoje nada consta que devam ser presididos pelos secretários da pasta,
e assumem funções de caráter deliberativo.
TABELA 4: Caracterização dos conselhos – Ponta Grossa – 2006
Conselhos Lei de
criação
Composição
33
Representatividade
CMS
4.658 de
1991
12
governamentais
Administração Pública (3), Prestadores de Serviços
de Saúde (3) e Trabalhadores de Saúde (6)
12 não
governamentais
Usuários do Sistema (12)
32
Na área da assistência social, o decreto 017/96 e o decreto 414/97, dispondo, respectivamente, sobre o
conselho; designação e representante. Na saúde, entre tantos decretos, destacamos o 153/93, que
dispõe sobre a composição do CMS, o 466/97, que aprova o regimento interno.
33
E conta com os respectivos suplentes.
CMAS
5.372 de
1995
9
governamentais
SMAS (2), SMS (1), SME (1), SMF (1), SMAJ (1),
PROAMOR (2) e FAPI (1)
34
9 não
governamentais
Entidades Idoso (1), Entidades Criança e
Adolescente (1), Entidades Assistência Social Geral
(1), Entidades Pessoas Portadoras de Deficiência (1),
Profissionais da área (2) e Usuários do Sistema (3)
Fonte: Regimento Interno. Org. da autora.
A garantia de participação dos usuários dos serviços públicos nos conselhos de
política foi uma das grandes inovações destes espaços na relação Estado-sociedade
civil, após a Constituição Federal de 1988. Como podemos ver, no CMS a presença dos
usuários é bastante expressiva. O diferencial deste conselho, se comparado aos de
outros setores de política, é ser composto de 50% dos usuários do sistema de saúde
pública. Essa idéia legitima a concepção clássica, defendida por Locke no século
XVII, que o Estado, através do governo, deve servir ao cidadão, pois de acordo com
esta interpretação, é o direito do cidadão que dá legitimidade ao poder do Estado.
No que se refere à dinâmica de funcionamento destes conselhos, os dois
possuem reuniões mensais. Assim, a tabela 5 retrata a periodicidade das reuniões,
evidenciando o pleno funcionamento dos conselhos, ainda que exista a possibilidade
deste ser exercido no plano formal. De maneira sintética, foram retratados os principais
temas deliberados nas reuniões. Os dados desta tabela estão baseados nas análises
das atas de reuniões. É necessário frisar que os conselhos, além de reuniões ordinárias
e extraordinárias, contam também com reuniões de comissões temáticas
35
. No entanto,
as atas não registram essa variedade de encontro dos conselheiros.
34
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Secretaria
Municipal de Educação (SME), Secretaria Municipal de Finanças (SMF), Secretaria Municipal de
Administração e Negócios Jurídicos (SMAJ), Fundação Municipal Proamor de Assistência Social
(PROAMOR) e Fundação Municipal de Promoção ao Idoso (FAPI).
35
As comissões temáticas se organizam nos principais temas que envolvem a gestão de cada política, e
estão previstas nos regimentos internos dos conselhos. Assim, o CMS conta com as seguintes
comissões: acompanhamento do sistema de atenção básica; acompanhamento do sistema hospitalar e
especialidades; conselhos locais de saúde; ética e controle social; gestão do trabalho no SUS e saúde do
trabalhador; orçamento em saúde e, em casos especiais, comissões temporárias especiais. O CMAS
conta com as comissões de: avaliação e acompanhamento; documentação e cadastros; finanças;
segmento da criança e do adolescente; segmento do idoso; segmento das pessoas com deficiência e
segmento da assistência social geral.
TABELA 5 : Periodicidade das reuniões dos conselhos (2005 – 2006) e principais
temas deliberados – Ponta Grossa – 2006
Conselhos Datas das Reuniões Principais Temas
Deliberados
CMS
2005: 25/01; 22/02; 15/03; 19/04;
17/05; 21/06; 19/07; 16/08;
20/09; 18/10; 16/11; 13/12.
2006: 17/01; 21/02; 28/03; 24/04;
09/05.
Compra de equipamentos,
contratação recursos humanos
(OSCIP), implantação PSF, regimento
interno, qualificação profissional,
projeto Hospital Regional,
encaminhamento de denúncias de má
prestação de serviços, verbas do SUS
para hospitais credenciados,
organização e avaliação de
Conferência Municipal, reivindicação
de infra-estrutura para o CMS, posse
dos conselheiros, reorganização de
comissões temáticas.
CMAS
2005: 25/01; 22/02; 29/03; 07/04;
26/04; 31/05; 22/06; 19/07;
05/08; 30/08; 27/09; 25/10;
13/12.
2006: 31/01; 21/02; 28/03; 25/04;
31/05.
Projetos de subvenções e convênios,
plano de aplicação do SAC
36
,
organização e avaliação de
Conferência Municipal, projeto de
implantação do CRAS, apreciação do
Plano Municipal Plurianual, eleição de
conselheiros, apreciação do Relatório
Anual do Fundo Orçamentário,
critérios de partilha dos recursos,
apreciação do Plano SUAS 2006.
Fonte: Atas das reuniões. Org. da autora.
A análise das atas evidenciou polêmicas em torno das decisões aprovadas. O
CMS envolve maior número de polêmicas, fato que está ligado ao grande volume de
recursos financeiros destinados ao setor, bem como ao interesse particular de alguns
segmentos organizados da saúde, como os prestadores de serviço. Nas atas constam
uma série de discussões em torno da falta de informações, ou de clareza, na prestação
de contas da política de saúde. É importante registrar que o CMS passou por um
momento de conflito, em 2006, com as esferas do executivo e do legislativo no
município.
36
O Serviço de Ação Continuada (SAC) é um programa do governo federal, para a área da assistência
social, que destina recursos a serem aplicados em políticas de atendimento nos segmentos da criança e
do adolescente, do idoso e das pessoas portadoras de deficiência.
Através do decreto n.º 729/06, o executivo tentou mudar a composição do CMS.
Vejamos no relato do secretário executivo deste conselho o que ocorreu:
(...) O prefeito fez um decreto lei e mandou para a câmara, de certa forma meio escondido,
diminuindo para doze os membros do conselho. E ainda diz o decreto que o prefeito (...) tem o
direito de escolher e nomear as entidades [representadas no conselho]. (...) Um vereador
tentou ainda, como emenda, colocar mais uma entidade dos farmacêuticos e, de certa forma,
ele piorou mais ainda [a situação]. o conselho tomou conhecimento desse decreto e
começou a batalha. A gente foi na câmara conversar com os vereadores, um dos membros do
conselho foi a Brasília, conversou com o conselho nacional, outros foram para o estado,
conversar com o conselho estadual (...), foram conversar com o promotor, outros foram pra
imprensa, saiu até uma reportagem! Foi bem movimentado, cada um fez a sua parte, mas todo
o conselho ficou unido (...). A gente defendeu que era uma questão assim, a partir do momento
que mexesse no conselho ele perderia o caráter deliberativo, o caráter de independência,
democrático, transparente. (secretário executivo/CMS)
37
A tentativa do executivo de “esvaziar” o conselho fortaleceu o eixo comum de
luta dos conselheiros, e neste sentido, tornou-se hegemônica a organização e a
reivindicação para garantir a representatividade deste espaço. O executivo voltou atrás,
e a composição do CMS permaneceu como havia sido eleita pela VI Conferência
Municipal de Saúde, realizada em outubro de 2005. O depoimento do secretário
executivo do CMS destaca a importância desse conflito na retomada das discussões do
papel e da importância do conselho na gestão da política de saúde em Ponta Grossa.
O conselho anterior estava meio morno, não tinha muito questionamento, não tinha esse poder
de fogo, de briga. Agora esse conselho, com tudo o que aconteceu, a impressão que mexeu
com as raízes do conselho, as pessoas de certa forma lembraram de novo o que é o conselho,
porque devemos lutar. E espero que isso não suscite uma disputa política, uma mágoa de um
com o outro, mas que todos compreendam que o conselho é para melhorar o SUS, para
fortalecer, consolidar o SUS, no sentido de que cada um sua contribuição, cobrando de
quem precisa cobrar, mas de uma maneira técnica, legal, sem que exista aquelas cores
partidárias, que isso é muito prejudicial para o conselho. (secretário executivo/CMS)
Na fala do secretário executivo do CMS a participação assume uma postura
política, onde o engajamento dos conselheiros deve responder pelo interesse público,
nesse caso, contribuindo para o fortalecimento do SUS. O corporativismo, decorrente
37
Os depoimentos do secretário executivo do CMS, retratados neste trabalho, foram coletados através de
entrevista realizada em 23 de março de 2006.
da disputa partidária, aparece como um dos entraves ao estabelecimento de um sujeito
coletivo nesse processo.
Nota-se, pela análise das atas, que temas importantes a serem deliberados pelo
CMS ficaram fora da agenda de aprovações. Embora tenhamos registrado discussões
acerca da avaliação do plano municipal de saúde e do relatório de gestão, com a
prestação de contas, a aprovação destes documentos, com definição de prioridades e
avaliação dos gastos realizados pelo poder público, não foi realizada. Consta na ata
04/2005 que a comissão de orçamento se reuniu na sala da SMS e confirmou o
investimento de 15% do orçamento do município no setor, conforme prevê a PEC 29,
contudo, aparece: “mas não aprovaram as contas para poderem analisar melhor
posteriormente”. A ata 05/2005 relata ainda que, quando cobrado sobre a prestação de
contas da gestão 2001 2004, o órgão gestor declarou ao CMS que os documentos
(plano municipal, agenda municipal e quadro de metas) haviam sido enviados ao
CMS, e o recebimento constava em ata. O então presidente do CMS declarou que
“juntamente com a secretaria executiva iria procurar este documento e que se
encontrado seria então apresentado a este CMS”. Nos parece pertinente concluir que
existe uma dificuldade por parte dos conselheiros no trato dos documentos na área. Em
outra ata, na 07/2005, essa questão fica mais evidente. Um conselheiro, representante
dos trabalhadores em saúde, questiona a demora na entrega da prestação de contas, e
relata que recebera um documento oficial “que ajuda, mas não é suficiente”. O
representante dos trabalhadores em saúde argumentou que “os conselheiros têm que
conhecer um pouco de receitas e despesas” e “pede à mesa [diretora do CMS] que
solicite ao ISPG
38
um técnico para auxiliar a comissão [de orçamento] nestes trabalhos”.
As atas registram ainda manifestações dos conselheiros em relação aos prazos
administrativos para a aprovação dos documentos. Na ata 01/2006 consta a fala de um
representante dos trabalhadores em saúde registrando que “o CMS sempre aprovou
tudo em cima da hora”, e este conselheiro dirige uma reivindicação ao representante da
SMS, solicitando que o mesmo “traga ao CMS as coisas que estão acontecendo na
Secretaria”. As atas expressam uma série de solicitações ao órgão gestor, denunciando
a falta de repasse das informações pertinentes a avaliação da gestão em saúde.
38
O Instituto de Saúde de Ponta Grossa (ISPG) era o antigo órgão gestor do município, que nesse ano,
2006, foi substituído pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
A questão da falta de clareza sobre o papel e as atribuições do CMS aparece na
ata 04/2006. A reunião teve como pauta a instalação do Hospital Regional no município
de Ponta Grossa, e o conselheiro representante da SMS apresentou o projeto do
hospital. A discussão foi permeada de questionamentos, pois o projeto estava pronto
e sendo divulgado à comunidade, e o CMS ainda não havia obtido informações a
respeito da prioridade de atendimento e das fontes de financiamento deste hospital.
Quando questionado sobre o planejamento da implantação do Hospital Regional, o
representante da SMS declarou: “Não sei quem vai definir, creio que será o conselho”.
A fala evidencia a falta de clareza acerca das atribuições e das competências do CMS
na gestão da política de saúde no município.
No que se refere a aprovação do orçamento no setor saúde, encontra-se algum
registro na ata 05/2006, onde consta que “a comissão de orçamento fez oito reuniões e
trouxeram documentos de análises levantadas que foram aprovadas nas reuniões”.
Ainda que a gestão municipal possua características autoritárias, como vimos
pela tentativa do executivo de mudar a representatividade do CMS, é necessário
registrar que o próprio conselho tem apresentado dificuldade em lidar com documentos
técnicos e com prazos administrativos. Na fala do secretário executivo podemos
confirmar essa questão.
Quero dizer o seguinte, o gestor entregou em tempo hábil até o plano. O conselho passado, na
minha opinião, deixou um pouco a desejar, porque de certa forma não se terminou de ler esse
plano e muito menos aprovar. O certo seria ler e estudar todo ele, porque não significa que do
jeito que vem do gestor tem que ser aprovado, ou também tem que ser desaprovado. É papel
do conselho ler, analisar, perceber, ver se está certo. Aprova, se tiver alguma coisa pra mudar,
muda. Pede pra mudar. Hoje, se viesse uma promotoria, alguma coisa assim, o município teria
até problema. (secretário executivo/CMS)
Diante desta questão nota-se a importância da capacitação para os conselheiros.
Os cursos de capacitação não devem se resumir em destacar o papel do conselho e
em apresentar as legislações do setor. Devem ser mais que isso, devem, de acordo
com GOHN (2005b), tratar de temas como a elaboração e a gestão de políticas
públicas, pois, é preciso entender os espaços da política para que se possa fiscalizar e
também propor. “(...) É preciso capacitação ampla que possibilite a todos os membros
do conselho uma visão geral da política e da administração” (GOHN, 2005b, p. 181).
De acordo com as atas, as reuniões do CMAS apresentam menos polêmicas nas
discussões e deliberações. Nos parece coerente afirmar que o montante de recursos do
setor e a natureza da prestação dos serviços (entidades sem fins lucrativos)
caracterizam essa questão. Ainda assim, a questão do critério de partilha aparece como
uma discussão relevante neste conselho. Consta na ata 130/2005 questionamentos e
solicitação de alteração do plano de aplicação dos recursos do Serviço de Obras
Sociais (SOS)
39
. Os representantes de entidades questionam o valor do repasse e a
falta de prestação de contas. Os questionamentos salientam “a lei é para todos, porque
para o SOS tem essa diferença?” Na ata 132/2005 registra-se uma discussão da
readequação do critério de partilha, com vistas a implantação dos CRAS. É feita, pelo
poder público, a proposta de reduzir em 20% os repasses às entidades e redirecionar
esse recurso para a atuação dos CRAS. Não consenso, nem deliberação. Os
ocorridos revelam como é expressiva atuação das entidades beneficentes de
assistência social nos debates de critério de partilha dos recursos.
O desafio do CMAS é normatizar a atuação destas entidades, pois além de um
número expressivo de serviços cadastrados (162 entidades) nem sempre os planos de
ação destas instituições respondem a legislação do setor. São recorrentes as atividades
ligadas a ordens religiosas, e em muitos casos, a evangelização é caracterizada como
atividade assistencial. Portanto, a ruptura com essa perspectiva tradicional de
operacionalização dos serviços na área assistencial ainda é uma dificuldade da política.
Encontramos registros nas atas de expressões como: para iniciar a reunião do CMAS
“o presidente invoca a presença divina...”.
Os avanços da atuação do CMAS o registrados, por exemplo, na atuação do
segmento dos usuários na fiscalização da aplicação e uso dos recursos públicos.
Consta da ata 132/2005, que um representante dos usuários denuncia a falta de
repasse da FAPI aos grupos de idosos do município. O CMAS organizou uma comissão
de fiscalização, que tinha como objetivo acompanhar os planos de aplicação dos
recursos daquela Fundação. O representante dos usuários, que realizou a denúncia, foi
39
É importante lembrar que o Serviço de Obras Sociais (SOS), fundado em 1973, é uma entidade
beneficente de assistência social (filantrópica) presidida pela primeira dama do município.
membro da comissão, acompanhou o processo, levando, junto com a comissão, a
denúncia até o gestor do setor. A comissão relatou que o recurso, usado pela FAPI,
estava sendo aplicado na compra de cestas básicas, e como resultado da fiscalização
da comissão do CMAS o montante deveria ser revisto e entregue aos grupos de idosos.
É importante relatar a atuação do segmento representante dos usuários, pois, em se
tratando da política de assistência social, esta representação foi durante muito tempo
subalternizada. Essa vivência pode demonstrar a abertura democrática que este
conselho vem representando à participação da sociedade civil.
Os casos da luta dos conselheiros de saúde, para manter a composição do CMS,
e a participação significativa do segmento dos usuários, no CMAS, podem apontar para
uma modificação na relação governantes e governados. Nestas experiências, o poder
público teve que rever sua posição, mediado pelo diálogo, através dos conselhos, com
os setores organizados da sociedade civil.
Ainda assim, evidentemente, os conselhos possuem uma série de dificuldades
no processo de gestão das políticas de saúde e assistência social em Ponta Grossa. Os
depoimentos dos secretários executivos dos conselhos trazem aspectos relevantes:
(...) Eu acho que o desafio do conselho é conquistar, ou reconquistar, esse direito que os
conselheiros têm pela lei, e até mesmo uma questão moral, de lutar por uma vida melhor para
todos. Acho que o maior desafio do conselho é fazer esse intercâmbio com a administração,
com o gestor, que as duas partes entendam que precisa crescer e que cada um respeite o
outro. Que o gestor dê condições de trabalho, porque hoje a gente tem pouca estrutura, poucas
condições, principalmente porque o conselho não pode ficar entre quatro paredes, o papel do
conselho é ir até as pessoas, para que as pessoas sejam informadas dos seus direitos, do que
está acontecendo na saúde. Então hoje, o maior desafio do conselho, na minha opinião, é fazer
com que essas coisas fiquem mais claras e que sejam respeitadas e colocadas em prática. A
questão de assim, não olhar a lei, mas das pessoas perceberem que se não tiver um
conselho forte, atuante, o próprio município pode perder, as próprias pessoas podem perder
(...). (secretário executivo/CMS)
Acho que o grande desafio desse conselho (...) é fazer com que ele seja entendido e que as
deliberações sejam aceitas. O conselho não é visto como um órgão importante, como um órgão
deliberativo, onde suas decisões devem ser executadas. A gente sente assim que, se os “altos
cargos” pudessem fechar o conselho, teriam feito! Só não fazem porque existe uma lei
federal e está atrelado ao recebimento de recursos. Esse é o grande desafio, mas a gente tem
que reconhecer que em outros desafios a gente avançou, como espaço físico, material... nesse
sentido existe um total apoio. Mas é assim, hoje mesmo a gente teve uma reunião, e uma
conselheira colocou que o conselho está muito “apagadinho”. Ele está brigando pouco, devia
brigar mais, se impor mais nas suas decisões. Mas a gente que o conselho está
incomodando, e as pessoas querem acabar com aquilo que incomoda, que perturba. Nós
somos vistos como os criadores de problema. Na gestão [municipal], existe uma dificuldade em
se entender que as decisões do conselho não são de uma ou outra pessoa, não é daquela que
entrega o ofício, ou que assina um documento. A decisão é tomada em votação, não é de uma
pessoa. Eu faço questão de colocar nos documentos e deixar claro nas atas que “o conselho
decidiu em reunião ordinária que...” para que fique claro. E se alguém deve ser cobrado,
pressionado, não é essa ou aquela pessoa, e sim o conselho. (secretário executivo/CMAS)
40
Na fala dos secretários executivos o espaço do conselho expressa a defesa do
interesse coletivo, seja com o objetivo “de lutar para uma vida melhor para todos”, ou
quando se defende que a “decisão é tomada em votação, não é de uma pessoa”.
Contudo, é evidente que estes espaços são permeados pela correlação de forças e de
interesses particulares, próprios da organização de toda sociedade civil. Ainda assim,
as falas apontam para o reconhecimento de um espaço que, em sendo público,
oportuniza a construção do interesse coletivo.
Nos relatos acima, o maior desafio dos conselhos reside no diálogo com a
gestão municipal. E como vimos, através do depoimento dos gestores, o poder público
apresenta uma certa resistência em reconhecer a importância da gestão participativa.
Participar da gestão envolve mais do que a execução de atividades e o apontamento de
falhas. Envolve, acima de tudo, o espaço de vocalização dos diferentes pontos de vista
e a construção de consensos que irão nortear um projeto democrático de governo. O
modo como uma gestão pública concebe os espaços de decisão política revela a
maturidade política que possui seus gestores.
O estudo das atas e os depoimentos dos secretários executivos dos conselhos
evidenciaram uma valorização do espaço dos conselhos como canais de participação
na construção do interesse público. As polêmicas que permeiam os processos de
deliberação apontam, de um lado, a dificuldade dos segmentos da sociedade civil no
trato dos documentos técnicos, e de outro, a falta de clareza dos representantes
governamentais sobre o papel e as competências dos conselhos. A organização dos
conselheiros seja no caso da saúde para manter a composição do CMS, bem como
40
Os depoimentos do secretário executivo do CMAS, retratados neste trabalho, foram coletados através
de entrevista realizada em 21 de junho de 2006.
no CMAS para fiscalizar a aplicação dos recursos aponta aspectos de uma
participação de qualidade política, ou seja, aquela que se articula e se fortalece na
defesa do interesse público.
B) Caracterização dos Conselheiros de Saúde e Assistência Social
GRÁFICO 1: Renda dos conselheiros
CM S
Caracterizão da faixa de re nda dos
conselheiros
Ponta Gros sa 2006
20%
Até 3 s.m.
Mais de 3 s.m.
CM AS
Caracte rização da faixa de re nda dos
conselheiros
Ponta Gros sa - 2006
68%
32%
mais de 3 s m
até 3 s m
Fonte: Questionário. Org. da autora.
Os socialistas, e antes deles Rousseau, haviam denunciado como fator
limitativo à participação política o acesso a renda. Com Locke, como vimos, uma
mudança na relação Estado e cidadão, onde a norma jurídica parte da liberdade do
indivíduo, e este, portanto, é quem legitima o Estado. No entanto, as desigualdades
sociais colocaram limites à liberdade dos indivíduos, inclusive nas possibilidades de
interferirem nas decisões de cunho político.
A desigualdade social afeta sobremaneira os pressupostos democráticos do
Estado de direito, pois os direitos civis, sociais e políticos não se efetivam numa
sociedade marcada pela pobreza extrema. KERSTENETZKY (2002), nos alerta que
algo em torno de 1/3 dos brasileiros é pobre, embora o país seja relativamente rico,
considerando sua renda per capita. Desta forma, mesmo diante do crescimento
econômico, o Brasil tende a concentrar a propriedade de ativos valiosos, como capital
físico, terra, educação e ativos financeiros. O enfrentamento desse quadro de
desigualdade poderia se dar pelo reconhecimento de direitos civis e políticos iguais.
Contudo, “a efetividade da igualdade de direitos civis e políticos é perturbada pela
desigualdade econômica” (KERSTENETZKY, 2002, p. 660). Em relação aos direitos
políticos, a reflexão de KERSTENETZKY (2002) destaca que, seu exercício pleno não
se esgota no voto ou na elegibilidade, e sim na garantia de relações menos formais,
“como a capacidade dos indivíduos de expressarem opiniões, deliberarem, participarem
de partidos políticos e de campanhas eleitorais” (KERSTENETZKY, 2002, p. 660). De
acordo com autora, essas capacidades são vulneráveis “à disponibilidade de recursos,
como informação, tempo e dinheiro, cuja distribuição, pois, importa uma vez que afeta a
conversão de direitos políticos formais em direitos políticos efetivos” (KERSTENETZKY,
2002, p. 660).
O perfil da caracterização da renda dos conselheiros, demonstrando que no CMS
80% dos representantes ganham mais de 3 salários mínimos e no CMAS 68% deles
ganham mais de 3 salários mínimos, nos leva a crer que o acesso a renda é um fator
que influencia a participação em espaços decisórios.
GRÁFICO 2: Escolaridade dos conselheiros
CM S
Caracterização da e scolaridade dos
conselheiros - Ponta Gros sa 2006
80%
20%
Com ensino
superior
Sem e ns ino
superior
CM AS
Caracterização da escolaridade dos
conse lheiros - Ponta Grossa - 2006
84%
16%
com ensino
superior
sem ensino
superior
Fonte: Questionário. Org. da autora.
Assim como o fator renda, a escolaridade dos conselheiros indica um perfil
diverso daquele representado pela sociedade brasileira em geral. No CMS 80% dos
conselheiros declararam possuir ensino superior, e no CMAS 84% responderam possuir
ensino superior. No CMS, a composição que privilegia um maior número de usuários
dos serviços públicos pode explicar porque nesse conselho o número de membros que
não possuem ensino superior é mais expressivo que no CMAS.
Os autores FUKS; PERISSINOTTO e RIBEIRO (2003), ao analisarem 4
conselhos (saúde, assistência social, trabalho e direitos da criança e do adolescente)
de Curitiba, capital paranaense, indicam a forte presença, entre seus membros, de um
perfil considerado de elite. No estudo, apenas 33,3% dos conselheiros possuem renda
inferior a 10 salários mínimos e 66,7% possuem ensino superior. Em outro estudo,
realizado pelo IPARDES (2003) na região metropolitana de Curitiba, a questão da alta
escolaridade dos membros dos conselhos também se repete. A pesquisa, que envolveu
10 municípios, dos 26 que compõe a região metropolitana de Curitiba, apontou que
46,9% dos 341 conselheiros pesquisados possuem nível superior completo.
É necessário destacar que o acesso a renda e a escolaridade dos conselheiros
são condicionantes que influenciam na qualidade de participação destes sujeitos
políticos, considerando que as atividades dos conselhos exigem a capacidade de
interpretar documentos técnicos dos setores, como as legislações, planos, orçamentos,
etc. No entanto, a participação política não é determinada pelo acesso a renda e pelo
grau de escolaridade dos sujeitos políticos. Outros condicionantes afetam
decisivamente o processo de construção dessa modalidade de participação. A ênfase
em canais que suscitem a cultura cívica é, neste sentido, fundamental. Gramsci
destacou a importância da articulação da cultura, da educação e da política na
construção de um projeto hegemônico de sociedade que viabilizasse a transcendência
do interesse corporativo ao interesse público. Nos termos de Gramsci, esse processo
de mediação foi denominado de catarse.
No que se refere a atuação dos conselhos, a capacidade de acompanhar a
implementação e execução das ações deliberadas, assim como a dificuldade no acesso
e interpretação dos documentos da área, a avaliação do impacto destes conselhos na
operacionalização das políticas e o interesse, por parte dos conselheiros, por assuntos
de relevância pública são fatores importantes na caracterização da qualidade da
participação da sociedade civil no processo de gestão democrática das políticas sociais.
GRÁFICO 3: Capacidade de acompanhar a execução das ações após a
deliberação do conselho
CM S
Capacidade de acom panhar im ple m e ntão
e e xecução das ações
Ponta Grossa 2006
28%
12%
56%
4%
Não
Sim
Pouco
Não responderam
CM AS
Capacidade de acom panhar
im plem então e execução das ações
Ponta Grossa 2006
42%
11%
42%
5%
Sim
Não
Pouco
Não
responderam
Fonte: Questionário. Org. da autora.
Na discussão das polêmicas que envolvem as reuniões do CMS foram
registradas as dificuldades que este conselho possui tanto no acesso às informações
da gestão do setor, quanto a habilidade na fiscalização e avaliação das ações e
serviços prestados. Os dados acima confirmam essa questão, onde somente 12% dos
conselheiros afirmam conseguir acompanhar o processo de implementação e execução
das ações em saúde no município. 56% dos entrevistados do CMS afirmam possuir
pouca capacidade de acompanhar o processo de implementação e execução destes
serviços, e por fim, 28% deles atestam o não acompanhamento desse processo. Os
dados provavelmente retratam uma característica peculiar do setor saúde, a
complexidade técnica que envolve a gestão desta política, assim como o volume
expressivo de recursos que acompanham a operacionalização das ações e serviços na
área, já que a universalidade do atendimento abarca um número grande de usuários do
sistema.
Assim, diferente do CMS, no CMAS um maior número de conselheiros afirmam
conseguir acompanhar a implementação e a execução das ações e serviços na área.
42% dos conselheiros consideram possível o acompanhamento desse processo. No
entanto, a mesma proporção, 42%, declararam pouca capacidade de
acompanhamento, e 11% acreditam não conseguir acompanhar a implementação e
execução das ações e serviços assistenciais.
No Brasil, o controle social na gestão democrática e participativa das políticas
sociais é o grande diferencial da participação social, modalidade de participação
inovadora da relação Estado e sociedade civil, garantida pela Constituição Federal de
1988. Contudo, os dados apontam que os conselhos de política têm apresentado uma
precária capacidade de acompanhamento da implementação e da execução dos
serviços na área, o que nos leva a concluir que existe uma fragilidade no próprio
acompanhamento das deliberações tomadas pelos conselhos.
A disponibilização, pelo órgão gestor, dos resultados atingidos pelos setores de
política, bem como os recursos aplicados em cada atividade são instrumentos
essenciais do processo de avaliação das políticas sociais. Assim, os relatórios de
gestão e os planos municipais de governo, além de documentos técnicos de definição
de metas e de acompanhamento das atividades, o também instrumentos políticos de
gestão, que evidenciam as prioridades de atendimento e a correlação de forças
presente em um planejamento político. Foi neste sentido que VIEIRA (2004) defendeu
que o planejamento das políticas sociais é uma atividade social, por isso envolve as
disputas de interesses e a formação de consensos.
Os dados evidenciam que a capacidade técnica dos conselheiros, de
fiscalizarem a implementação das deliberações tomadas nos conselhos de saúde e
assistência social, não se realiza de maneira efetiva, pois parte expressiva dos sujeitos
envolvidos no processo apresenta dificuldade em exercer o controle social sobre as
ações públicas.
GRÁFICO 4: Dificuldade no acesso e interpretação de documentos na área
CM S
Dificuldade no acesso e
inte rpretão de docum e ntos
Ponta Grossa 2006
28%
36%
32%
4%
Sim
Não
Pouco
Não
responderam
CM AS
Dificuldade no acesso e
interpretação de docum entos
Ponta Grossa 2006
26%
42%
32%
sim
pouco
o
Fonte: Questionário. Org. da autora.
A dificuldade no acesso e na interpretação dos documentos é, sem dúvida, um
fator que interfere diretamente na qualidade da participação. Desta forma, o gráfico 4
evidencia que, no CMS, 28 % de seus membros declararam possuir dificuldade nesse
processo, 32% apontam como sendo pouca a dificuldade e 36% deles atestam não
possuir dificuldade no acesso e na interpretação de documentos referentes a gestão da
política de saúde. No CMAS, 26% dos entrevistados responderam possuir dificuldade,
42% acreditam ter pouca dificuldade e, por fim, 32% não possuem dificuldade no
acesso e interpretação dos documentos no setor.
Se comparados, os índices de dificuldade no acesso e na interpretação de
documentos são parecidos entre os dois conselhos. Desta forma, observando os
questionários respondidos pelos conselheiros, no caso do CMS, dos conselheiros que
afirmaram não possuir dificuldade, 55,5% deles representa o segmento dos usuários, o
que nos leva a concluir que a facilidade no acesso e na interpretação de documentos
na área da saúde não é exclusiva ao segmento governamental. O mesmo ocorre em se
tratando do CMAS, pois, dos conselheiros que afirmaram não possuir dificuldade no
acesso e na interpretação dos documentos da política de assistência social, 83%
correspondem ao segmento não governamental.
Portanto, neste estudo somos levados a considerar que, nos conselhos
pesquisados, de maneira significativa, o segmento não governamental considera-se
apto a interpretar os documentos de avaliação da gestão, e desta forma aumenta a
probabilidade do impacto dos conselhos na avaliação da prestação dos serviços
públicos em saúde e assistência social.
Vejamos o que colocam os conselheiros em relação ao impacto exercido pela
atuação do CMS e do CMAS na gestão das políticas de saúde e assistência social em
Ponta Grossa.
GRÁFICO 5: Avaliação do impacto das decisões do conselho na
operacionalização da política
CM S
Avaliação do im pacto das decis ões do
cons elho na operacionalização da
saúde - Ponta Grossa 2006
24%
16%
56%
4%
Sim
Não
Pouco
Não
responderam
CM AS
Avaliação do im pacto das decisões do
conselho na ope racionalização da
assis tência s ocial - Ponta Grossa 2006
58%
42%
0%
Sim
Pouco
Não
Fonte: Questionário. Org. da autora.
O CMAS avalia de maneira mais positiva o impacto na gestão da política de
assistência social. 58% de seus membros acreditam que este conselho exerce impacto
no processo de operacionalização dos serviços e ações no setor. Na área da saúde,
somente 24% dos conselheiros consideram que o CMS exerce impacto na
operacionalização da política.
Nesta análise, devemos considerar que a realização das entrevistas com o CMS
ocorreu concomitantemente com o conhecimento, por parte dos conselheiros, do
decreto proposto pelo executivo municipal, que tinha como objetivo reduzir o número de
membros deste conselho. Ainda assim, é necessário destacar também que a gestão da
assistência social, pela natureza das ações e do montante de recursos, é
operacionalizada com menor disputa de interesses, se comparada ao setor da saúde.
De qualquer forma, os dados nos fazem apontar que o CMAS, na perspectiva de
seus conselheiros, se apresenta mais atuante no sentido de direcionar as ações da
política de assistência social.
Obviamente que, em se tratando da perspectiva dos conselheiros, essa análise
carrega algo de subjetivo, pois a avaliação do conselho, e do próprio processo de
participação, reflete o grau de amadurecimento político de cada espaço institucional.
Para PATEMAN (1992), a experiência educativa do processo de participação da
sociedade em instâncias de decisões políticas colabora no processo de
amadurecimento da consciência política dos segmentos organizados. No mesmo
sentido, PUTNAM (2005) defende a tese de que as mudanças institucionais refletem,
ainda que gradualmente, a mudança de identidades, valores, poderes e estratégias nas
práticas políticas. Assim, instituições democráticas, que privilegiam relações horizontais
de poder, estimulam a criação de capital social, ou seja, as características das
organizações sociais, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para
aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas. Para PUTNAM
(2005), o capital social é fundamental para fazer a democracia funcionar.
GRÁFICO 6: Aumento do interesse por assuntos de cidadania após a participação
no conselho
CM S
Caracterizaçãodo aum ento do
interesse por as suntos de cidadania
Ponta Grossa 2006
76%
8%
16%
Muito
Não
Pouco
CM AS
Caracterizaçãodo aum ento do
interesse por assuntos de cidadania
- Ponta Grossa 2006
95%
5%
0%
muito
o
pouco
Fonte: Questionário. Org. da autora.
De maneira expressiva, nos parece correto afirmar que os conselhos têm
exercido papel político-pedagógico na construção de atores sociais atentos para temas
de relevância pública. Do CMS, 76% de seus membros consideram o aumento de
interesse por assuntos de relevância pública após a participação no conselho. Na área
da assistência social, 95% dos conselheiros consideram o aumento de interesse. Desta
forma, podemos aferir que os conselhos de política contribuem na formação de sujeitos
políticos, que viabilizam a discussão em torno de assuntos de interesse público.
NOGUEIRA (2004), levanta a tese de que, a construção de um pacto político que,
expressando a articulação da diversidade de interesses presentes na sociedade civil,
garanta o interesse coletivo, depende, em grande medida, de canais mediadores de
discussão e do engajamento de atores sociais.
No que se refere a outros espaços de associativismo freqüentados pelos
conselheiros, os dados apontaram que, no CMS o espaço mais expressivo de
vinculação participativa é a associação profissional, seguido de outros conselhos e em
terceiro lugar, com a mesma adesão, partidos políticos e movimentos sociais. Os
menos freqüentados são os sindicatos, as associações de moradores e outros. No
CMAS, os movimentos religiosos e outros conselhos ocupam lugar destaque no que se
refere a outros espaços de associativismo freqüentado pelos conselheiros. Os espaços
com menos adesão a participação, apontados pelos conselheiros do CMAS, foram:
sindicatos, movimentos sociais, associações de moradores e partidos políticos
41
. Esta
relação demonstra as tendências de interesses presentes no espaço dos conselhos,
onde no CMS a disputa por segmentos profissionais é um desafio; no CMAS, as
entidades religiosas também compõem parte da correlação de forças e disputa de
interesses em torno dos critérios de partilha dos recursos do setor.
C) Avaliação da participação do conselho na gestão segundo os conselheiros
DECISÃO EM SER CONSELHEIRO
Muito embora os espaços de decisão política devam representar a defesa do
interesse público, variados podem ser os motivos que levam os atores sociais a se
engajarem em lutas e movimentos políticos. Contudo, é necessário que estes espaços
participativos possam articular essa variedade de motivos e interesses, fomentando a
capacidade social de colaborar na construção de interesses comuns. Assim, os
depoimentos abaixo retratam os motivos particulares que levaram os conselheiros a
participarem dos conselhos municipais de saúde e assistência no município de ponta
Grossa.
Além de ter um conhecimento da causa, de discutir, de defender, particularmente pelo fato de
ter um problema na família e achar que deveria ter alguém pra tentar defender essas pessoas,
que são menos favorecidas pelo sistema. Então desde da época da minha aposentadoria,
por 1988 e 89, eu participo ativamente, com gosto, porque gosto mesmo. (conselheiro não
governamental/usuário/CMS).
42
É que é uma luta social, o conselho é uma luta de classe, embora muita gente não entenda
assim, mas eu entendo assim. Aonde tiver luta de classe e o pobre tenha que se mobilizar para
conseguir os seus direitos, a gente tem que estar lá... qualquer pessoa que ache que esse
modelo não está favorecendo a maioria das pessoas tem que participar. (conselheiro não
governamental/usuário/CMS)
43
Eu tive um convite na gestão anterior e fui, mas assim sem saber o que era o conselho, fui
aprender lá. Freqüentando as reuniões a cada dia eu fui me empolgando e fui gostando. Eu
estava conselheira pelo conselho regional de farmácia, e quando entrei na regional eu mudei
para gestor estadual. (conselheiro governamental/administração pública/CMS)
44
41
Os gráficos que ilustram estes dados estão no apêndice deste trabalho.
42
Depoimentos coletados através de entrevista em 17 de janeiro de 2006.
43
Depoimentos coletados através de entrevista em 21 de março de 2006.
44
Depoimentos coletados através de entrevista em 8 de fevereiro de 2006.
Porque eu atuo na área da assistência social e achei que seria bom para a entidade ter um
representante dentro do conselho. (conselheiro não governamental/segmento assistência social
geral/CMAS)
45
Para representar a entidade. (conselheiro não governamental/usuário/CMAS)
46
Fui indicada, e fiquei satisfeita em ser, porque como eu trabalho com essa parte de
aprimoramento de gestão, junto com as entidades, com assessoramento, era necessário que
participasse do conselho para também poder passar para as entidades sobre as decisões,
trabalhar nas capacitações, para tentar capacitar principalmente as entidades não
governamentais, para que elas participem mais da elaboração da política. (conselheiro
governamental/administração pública/CMAS)
47
Os representantes do segmento da sociedade civil, no CMS, carregam
condicionantes sociais nos motivos de adesão ao conselho. De acordo com BAKHTIN
(1992), podemos afirmar que as formas de expressão e de compreensão de uma dada
realidade social encontram-se marcadas pelo horizonte social de uma época e pela
inserção em grupos sociais determinados. Essa “luta social” que os indivíduos
reconhecem como necessidade nas relações cotidianas, expressa, em última análise,
um valor social compartilhado por uma classe, ou grupo social. É importante destacar
também que o segmento dos usuários do sistema de saúde tem a necessidade de
articular a luta pela defesa do SUS, que esse setor de política é bastante visado pelo
mercado. Assim, o acesso dos usuários ao sistema público de saúde, bem como a
ampliação da cobertura do atendimento, respondem, em maior ou menor dose, as
pressões dos segmentos organizados que lutam no setor.
No CMAS, fica claro, no que compete a sociedade civil, a defesa da
representação da entidade. É necessário destacar que a representatividade da
sociedade neste conselho não se realiza por entidades, e sim por segmento de
atendimento da política. No caso do representante do usuário da assistência social, de
maneira mais contraditória, a fala expressa a representação da entidade e não dos
usuários. A construção histórica da política, fortemente vinculada ao apoio do poder
público às entidades beneficentes, bem como a realidade da rede de atendimento
assistencial de Ponta Grossa, podem explicar parte desse vínculo forte dos
45
Depoimentos coletados através de entrevista em 16 de dezembro de 2005.
46
Depoimentos coletados através de entrevista em 8 de fevereiro de 2006.
47
Depoimentos coletados através de entrevista em 15 de dezembro de 2005.
conselheiros com suas entidades. A rede do município é composta prioritariamente pela
iniciativa privada, e como analisamos, o próprio gestor da política identifica o foco de
participação da sociedade civil na execução da política. Desta forma, assim também as
ações do CMAS têm dispensado maior atenção a normatização do financiamento e da
regulação da prestação de serviços destas entidades. O que queremos dizer é, neste
caso, nos parece que o modo como se operacionaliza a política condiciona a
compreensão que os segmentos organizados da sociedade têm acerca da participação.
Assim, no CMAS as discussões atentam, em grande medida, a aspectos mais pontuais
da política, e menos no debate de temas relevantes que perpassam a assistência
social, como diagnósticos locais das desigualdades sociais e suas conseqüências.
Os depoimentos apontam a valorização dos conselheiros no reconhecimento da
importância e da relevância do papel dos conselhos, contudo, a capacidade da
construção e da defesa do interesse público, em detrimento de corporativismos ou
interesses particulares, é um desafio destes espaços.
Ao que se refere aos segmentos governamentais, em ambos os conselhos os
representantes expressam interesse nas discussões da área. Assim, a indicação por
parte do poder público não é o único motivo que sustenta a adesão à participação
destes conselheiros, o que favorece, é claro, o processo dialógico de construção das
deliberações coletivas.
Embora a análise aponte a fragilidade ainda existente nos conselhos no que
compete a defesa consistente do interesse público, os dados possibilitam identificar
estes espaços de deliberação política como potencialmente capazes de formar atores
sociais engajados na participação política. Cabe aos gestores da área apoiarem essa
modalidade institucional de participação, capacitando sujeitos políticos que, ao
intervirem no processo de gestão, possibilitem maior eficiência na operacionalização
das políticas sociais e promovam coesão social entre os diversos segmentos da
sociedade civil. PUTNAM (2005) coloca que a diversidade de associações civis
presentes na sociedade contribui para a eficácia e a estabilidade do governo
democrático, isso não por causa dos efeitos internos que exerce sobre os indivíduos
que participam, mas também pelos efeitos externos que reagem sobre a sociedade de
uma forma geral.
AVALIAÇÃO DA IMPORTÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL
TATAGIBA (2002) destacou que a inovação dos conselhos de política reside,
entre outros motivos, na oportunidade de inserir nos debates públicos e nas decisões
políticas segmentos que estiveram, no Brasil, tradicionalmente excluídos destes
espaços.
Assim, o relato dos conselheiros expressa os significados atribuídos a
importância da experiência participativa na gestão das políticas de saúde e assistência
social em âmbito municipal.
É muito grande a importância. Eu vinha para o conselho sem saber que a sociedade toda, as
pessoas do meu movimento, podia trazer, se quisesse (...). Eu acho que essa participação é
fundamental. Se o dia que eu viesse, da minha entidade tivesse uns 4 ou 5, da outra entidade
mais um tanto, mesmo as pessoas que não são conselheiras, mas que as vezes vão entender
mais do que eu, que sou conselheira, (...) seria uma força muito grande. Nós temos que
começar a trazer as pessoas pra . Tem resistência (...) o é fácil para as entidades
trazerem, mas é importante que venham. (conselheiro não governamental/usuário/CMS)
O próprio governo federal reconhece essa importância, veja a distribuição do nosso conselho,
50% é usuário (...). É muito importante ter a representação, mas daqui a pouco não existe tanto
a participação. Nós temos que por na cabeça dos nossos companheiros, que representam a
suas entidades, que realmente participem e levem ao conhecimento da sua entidade o que
acontece e o que não acontece. Quanto mais você difundir o que está acontecendo dentro do
conselho, a comunidade toma maior conhecimento. (...) Essa semana eu estive no Pronto
Socorro, dando uma olhadinha lá, e o pessoal cobra o conselho: “Ah, mas esse conselho não
funciona...” Mas, as vezes nem sabe qual é o papel do conselho, ou não, não é mesmo? A
gente tem que por na cabeça desse companheiro o que é o conselho, o que é conselheiro,
qual a sua importância. (conselheiro não governamental/usuário/CMS)
Se pensar, não é o usuário, são os trabalhadores de saúde que estão envolvidos com o
SUS, os prestadores, os hospitais, eles têm um ponto de vista deles, a faceta deles que a gente
tem que considerar, não é? A tabela defasada do SUS é um problema... então tudo isso tem
que estar no meio para discutir, pra misturar mesmo, e dali saírem encaminhamentos
interessantes. (conselheiro governamental/administração pública/CMS)
É importante porque é a sociedade civil que conhece a realidade das necessidades. Em
qualquer área, social, de saúde, de educação. E o que acontece com o órgão gestor é que eles
querem implementar programas mais para caracterizar a gestão do que, muitas vezes, pra
atender uma necessidade específica da população. Então, eu acho importante a sociedade civil
estar representada no conselho, porque ela que, conhecendo a realidade de fato, pode indicar
o que seria melhor para a cidade, para o estado. (conselheiro não governamental/segmento
assistência social geral/CMAS)
Se o povo o participa pra eles [poder público] tudo é dez. Eu acho que desde que a
sociedade comece a se mostrar, a por o ponto de vista dela, as pessoas vão pensar melhor
antes de elaborar as coisas. Porque as vezes eles fazem as leis, elaboram os negócios, sem
saber a realidade do povo, do povão, não de uma elite. Em geral eles fazem o pensamento de
uma elite (...). Mas que é difícil, o povo não gosta de participar. Eu também não queria, mas
depois eu pensei “não, eu tenho que ir, alguém tem que ir” (...). (conselheiro não
governamental/usuário/CMAS)
É muito importante porque é um espaço de participação popular. É onde a democracia
acontece. Se a população não participar dessas decisões a vontade vai ser voltada para o
poder público, que de repente nem sempre é aquilo que a população está precisando. Então
essa participação é primordial. (conselheiro governamental/administração pública/CMAS)
O que de comum nestas falas é o reconhecimento da possibilidade de
inscrever na esfera blica as demandas advindas da diversidade de interesses
presentes na sociedade civil. Para os entrevistados, é importante poder influenciar a
gestão das políticas de saúde e assistência social, na medida em que é a sociedade, na
sua diversidade representativa, que pode indicar as prioridades de atendimento e
democratizar a operacionalização das políticas sociais. As falas valorizam o
reconhecimento dos conselhos como espaços que possibilitam a inclusão de demandas
advindas de setores que, tradicionalmente, foram subalternizados nos processos de
decisão política. Os conselhos são vistos como espaços potenciais de realização da
democracia.
Neste sentido, o reconhecimento da importância da participação da sociedade
civil parece indicar a possibilidade em se conceber os conselhos de política como
canais articulares do substrato comum presente na particularidade dos interesses
envolvidos em processos decisórios. Quanto mais estimuladas forem as discussões nos
conselhos, tornando mais claras as diferenças de interesses e de projetos políticos dos
segmentos envolvidos, mais chances a gestão das políticas sociais terá de construir um
projeto de intervenção plural e transparente.
Podemos concluir, com base nas falas dos conselheiros, que a participação
política, aquela que de acordo com NOGUEIRA (2004) tem em vista a organização da
vida social e a construção da vontade geral, é a modalidade idealizada de participação
nas experiências conselhistas. Evidentemente, como apontou o mesmo autor, os
grupos sociais atuam combinando diferentes graus de consciência política, e assim
também, diferentes modalidades de participação.
PAPEL DO CONSELHO
Como é sabido, aos conselhos de política cabe planejar, propor, fiscalizar e
avaliar a prestação de ações e serviços públicos. Neste sentido, os conselhos, além de
fiscalizarem a operacionalização das políticas sociais, são também canais democráticos
que devem influenciar na construção de planos de atuação e implementação de
políticas, garantindo a inscrição de demandas coletivas, advindas dos segmentos
organizados da sociedade civil, em projetos de governo. Servem, além de tudo, como
processo de aprendizagem política na construção do interesse público.
Para os entrevistados, os conselhos têm como função:
A fiscalização do gestor e do assunto que vem sendo tratado (...) Ter também participação ativa
pra tentar fazer não as devidas cobranças, mas ajudar dentro daquilo que for possível (...)
Eu acho que o conselho é isso, gerenciar uma série de problemáticas que haja naquela área,
tentar uma solução através dos canais competentes, dando um respaldo maior para a
comunidade que se está representando. (conselheiro não governamental/usuário/CMS)
A principal função é fiscalizar a saúde. Gasto, despesa, cunho social... quer dizer, se a “Dona
Maria está sendo atendida, se não está sendo atendida, porque não atendeu...” Eu acho que
no geral é o controle da saúde, saber o que está acontecendo e opinar sobre o que está
acontecendo. Então não adianta também a gente saber e dizer: “ah, agora está acontecendo
isso, mas eu não posso fazer nada, ou não quero, não vou me indispor com as pessoas que
estão lá...” daí não adianta! (conselheiro não governamental/usuário/CMS)
O principal papel do conselho de saúde é fiscalizar, por mais que seja uma palavra pesada,
mas eu acho que é isso mesmo, é fiscalizar, estar atento às ações de saúde do município. E
nesta fiscalização está embutido o acompanhamento como parceiro, sugerindo, porque eu vejo
que os gestores têm uma missão, a de realizar as ações em saúde de seu município. Muitas
vezes eles não têm a noção do que a população deseja e precisa, e o controle social tem ser
considerado. O gestor inteligente, na minha opinião, ele considera a opinião do controle social.
Então eu acho que o conselho que está representado, na sua grande maioria, 50% pelo
controle social, pelo usuário do sistema, é um instrumento que vale muito para o gestor. O
gestor inteligente tem que ouvir o conselho, ele precisa caminhar junto para fazer uma boa
gestão. (conselheiro governamental/administração pública/CMS)
É definir a política de assistência social no município e fiscalizar para que o órgão gestor
implemente o que é deliberado pelo conselho, num diálogo constante com o órgão gestor.
(conselheiro não governamental/segmento assistência social geral/CMAS)
De fiscalizar... acompanhar. Apesar de que tudo é difícil. (conselheiro não
governamental/usuário/CMAS)
Deliberar sobre a política de assistência, decidir e fiscalizar. Todas as decisões estão na mão
do conselho, e cabe a ele também fiscalizar se essas decisões estão sendo cumpridas pelo
poder público. A função básica é essa. (conselheiro governamental/administração
pública/CMAS)
A fiscalização do órgão gestor e do respeito a operacionalização das
deliberações é, para os conselheiros entrevistados, o papel dos conselhos. Nas falas
aparece também a função de representar a comunidade, a coletividade, dialogando e
decidindo sobre os rumos da política. A fiscalização como forma de controlar a atuação
do Estado é um tema recorrente na ciência política. Hobbes, Locke e Rousseau
retrataram, com o contratualismo, a importância das constituições e os dilemas dos
Estados democráticos.
No plano da compreensão da modalidade de participação que deve exercer os
conselhos, e a gestão democrática das políticas sociais de uma maneira geral,
podemos colocar que os entrevistados possuem uma identidade comum, organizada
pela articulação dos interesses populares e com vistas a inscrever nas agendas
governamentais o atendimento destas demandas, destes direitos. As falas relacionam
os conselhos como mediadores na construção de sujeitos coletivos, nos termos em que
colocou SADER (1988), de uma coletividade que se organiza na defesa de suas
vontades, de seus interesses.
No entanto, o exercício democrático da participação não é algo que se constrói
imediatamente com instituições plurais e representativas de participação. Pelo
contrário, o processo dialógico de construção do interesse público é permeado de
conflitos, de disputas particulares de interesses e de poderes. A crítica sarcástica de
Rousseau de que o governo democrático, por ser tão perfeito, caberia aos deuses e
não aos homens, nos faz pensar sobre a complexidade de construir um pacto político
que atenda a vontade coletiva, e não ao interesse dos grupos com maior poder de
articulação e pressão políticas.
Se o exercício democrático é, como supomos, um processo que se realiza
mediante a prática político-pedagógica da participação em espaços de decisão, não
dúvida em se afirmar que os conselhos de política são espaços de relevância pública,
que causam impacto na gestão dos assuntos públicos. A valorização por parte dos
conselheiros da importância dos conselhos na gestão das políticas sociais, como canais
que possibilitam a democratização da relação Estado-sociedade civil, bem como o
reconhecimento destes espaços como mediadores na construção do interesse público,
voltado para o atendimento das demandas sociais, contempla o critério da avaliação da
qualidade da participação no quesito valorização e reconhecimento da importância dos
conselhos e atende, ainda, ao critério da capacidade de favorecer a ação política dos
segmentos organizados. No entanto, a potencialidade destes espaços de fomentarem a
participação política, primando pela defesa do interesse público, não garante de
maneira eficaz a completa superação de ações corporativistas nestes espaços. Não é
exagero frisar novamente que os grupos sociais atuam articulando graus diferentes de
consciência e ação políticas.
PARA QUE O CONSELHO AVANCE
A vivência da democracia não é algo que surge de maneira espontânea na
sociedade, principalmente em se tratando da complexidade das sociedades modernas,
que intensificaram e acirraram a disputa por interesses privados. Da mesma forma a
gestão das políticas sociais, que expressa um modelo de Estado que carrega a
correlação de forças presente na sociedade civil. Neste sentido, o amadurecimento das
instituições políticas e da consciência política dos segmentos organizados da sociedade
civil é fundamental na construção de um pacto político que favoreça a integração social
e a convivência entre os indivíduos.
Assim, entre os desafios apontados pelos conselheiros para o amadurecimento
político dos conselhos constam:
Que realmente os conselheiros que estão assumindo agora, que haja em cima deles um curso
de capacitação bastante forte, porque a gente até fez um curso anteriormente, mas foi um
cursinho meio (...). Um curso forte com relação às funções do conselho e até com relação a
direitos e deveres, porque dependendo do interesse, da boa vontade desse conselheiro, vai
avançar na prática e vai prevalecer a função que o conselho exige. Porque monta um grupo
de pessoas pra vir na reunião, escutar, bater papo e depois ir embora, não leva a nada!
(conselheiro não governamental/CMS)
Eu acho que o que faz avançar o conselho são os conselheiros. Então está faltando é formação
para os conselheiros. Porque conselho sem conselheiro não... então o conselheiro tem que ter
noção do que está fazendo para poder avançar, quando o conselheiro avançar, o conselho
avança junto. (conselheiro não governamental/CMS)
Informação, informação. Capacitação para conselheiros, inclusive a gente está planejando fazer
isso pela regional, pelo pólo de educação permanente. Eu acho que informação. (conselheiro
governamental/CMS)
Falta, talvez, um instrumento jurídico que obrigue o órgão gestor a executar as deliberações do
conselho, aquilo que o conselho considera como prioridade para a política de assistência do
município, e falta também uma abertura de diálogo do órgão gestor, porque esse diálogo
sempre parte do conselho, mas nunca é atendido a contento pelo órgão gestor (...).
(conselheiro não governamental/CMAS)
Maior participação dos conselheiros, porque a gente que o conselheiro falta, talvez se eles
impusessem, né? Faltou três vezes tira e põe outro, quem sabe o pessoal [participasse
mais]. (conselheira não governamental/CMAS)
Ainda falta à comunidade perceber essa importância. A participação dos representantes da
sociedade civil, ainda precisa melhorar um pouco, precisa aumentar, porque muitas vezes eles
vêm, mas acabam não discutindo tanto, então essa participação precisa melhorar. E a visão
que o poder público tem do conselho precisa melhorar também, perceber a importância das
decisões que são tomadas. (conselheiro governamental/CMAS)
A formação de sujeitos políticos é o ponto fundamental, na opinião dos
conselheiros, para que os conselhos avancem em suas práticas. A abertura de diálogo,
por parte do órgão gestor, também é um apontamento importante, principalmente em se
tratando de uma gestão municipal resistente ao diálogo com a sociedade civil.
Capacitar sujeitos políticos envolve trazê-los para a esfera de governo, onde se
exercitam as possibilidades de articular e atender demandas coletivas. A eficiência da
administração pública depende, em grande medida, de conhecimento técnico, mas
também de engajamento político por parte dos segmentos organizados da sociedade
civil. De acordo com PUTNAM (2005), a “consciência que cada um tem de seu papel e
de seus deveres como cidadão, aliada ao compromisso com a igualdade política,
constitui o cimento cultural da comunidade cívica” (PUTNAM, 2005, p. 192). Por isso,
para o autor, o contrato social que sustenta a colaboração na comunidade cívica não é
garantido pelo cunho legal, e sim moral.
Desta forma, capacitar atores sociais no sentido de promover maior qualidade da
participação da sociedade civil na gestão pública é fundamental, e faz parte, inclusive,
das atribuições dos órgãos gestores. Os conselhos de política têm sido vistos pela atual
gestão, de Ponta Grossa, como aparelhos burocráticos do processo técnico-legal das
políticas sociais, e desta forma, subestima-se sua capacidade de ação.
Os depoimentos dos conselheiros, diferentemente dos gestores públicos,
valorizam o espaço dos conselhos e apontam que a institucionalização da participação
vem promovendo a capacitação dos segmentos organizados da sociedade civil. Essa
relação se de maneira dialética, pois, se de um lado a experiência conselhista tem
capacitado atores sociais no processo de participação na gestão pública, de outro, na
medida em que avança, essa experiência exige maior capacitação destes sujeitos
políticos. Os discursos dos conselheiros nos levam a crer que a instituições formais de
participação podem fomentar a mudança de práticas políticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, a participação da sociedade civil na gestão das políticas sociais foi
regulamentada, através da Constituição Federal de 1988, como parte das diretrizes da
descentralização político-administrativa do Estado brasileiro. Neste sentido, os
conselhos de política constituíram-se como espaços institucionalizados e formais de
participação da sociedade civil no planejamento, fiscalização e avaliação das ações e
serviços públicos.
No entanto, é importante reconhecer que a experiência conselhista, que
formalizou o direito da sociedade civil de participar na gestão dos assuntos públicos,
carrega historicamente a luta social de segmentos organizados da sociedade civil, que
em contestação ao modelo de Estado centralizador e repressivo brasileiro fortaleceram
o consenso pela busca da democratização. Este determinante inscreveu nos espaços
formais de discussão e deliberação blicas, regulamentados pela Constituição de
1988, um aspecto político. Assim, embora tenham assumido funções no campo
burocrático-operativo, os conselhos de política também representam espaços de
articulação de demandas e de construção do interesse público. Com composição
paritária, estes conselhos não estão isentos dos conflitos e disputas de interesses que
envolvem a diversidade de segmentos da sociedade civil e a esfera do Estado.
Enquanto um campo que expressa a correlação de forças que permeia a construção de
qualquer pacto político, a gestão democrática e participativa das políticas sociais tem
como grande desafio a construção de consensos e do interesse público.
A cultura cívica, enquanto capacidade de transcendência dos interesses
particulares e corporativos ao interesse público, é bastante frágil na sociedade
brasileira, isto porque, historicamente a relação Estado-sociedade civil o favoreceu a
construção de um pacto social que sustentasse um patamar ético-político de
convivência social. Reconhecendo que a legitimidade do poder de Estado está na
capacidade de garantir o cumprimento do pacto social firmado no âmbito da sociedade
civil, podemos inquirir que aí reside uma das principais polêmicas do contexto brasileiro.
Considerando a particularidade histórica do Brasil, podemos afirmar que foi o
Estado que fundou a sociedade civil, e não o contrário, e desta forma, o pacto que
norteou a ação desse Estado não partiu da construção de um consenso no âmbito da
sociedade civil. No Brasil, a população não firmou o pacto ético-político que
caracterizaria a legitimidade do poder de Estado, foi o Estado que, fundado pelos
colonizadores portugueses, “criou” o povo que habitaria a nação
48
. Esse determinante
histórico o possibilitou que a sociedade civil brasileira identificasse a esfera estatal
48
A clássica obra de Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder”, analisa de forma aprofundada esta
polêmica do Estado brasileiro.
como o momento ético-político de construção e defesa do interesse público, isso tudo
porque, diga-se de passagem, o Estado brasileiro tradicionalmente representou a
defesa de um interesse bastante particular, o do capital.
LAHUERTA (2001) coloca que, no caso do Brasil, a marca mais perversa no
estabelecimento de uma cultura política autoritária é a da escravidão, que agregou à
tradição ibérica (com seu organicismo e sua catolicidade ultramontana, etc) formas de
mando sobre subalternos que condicionaram toda a história política e cultural posterior.
O autor defende que ao longo do século XX, principalmente a partir de 1930,
desenvolveu-se no Brasil uma tendência do reconhecimento dos direitos, havia, de
acordo com LAHUERTA (2001), “um movimento cultural que acompanhava o processo
de modernização em curso na sociedade brasileira e procurava dar a esse processo de
modernização uma consciência de si, inclusive no sentido de formular uma agenda para
o futuro”
49
(LAHUERTA, 2001, p. 37). O golpe militar de 1964 interrompeu toda e
qualquer iniciativa de democratização das relações sociais na sociedade brasileira,
centralizando o comando dos assuntos públicos e reprimindo de maneira violenta as
manifestações culturais e políticas da sociedade civil. Assim, a sociedade brasileira
modernizou-se, a partir do desenvolvimento capitalista, no campo econômico, sem,
contudo, modernizar-se no aspecto político. A perversa concentração de renda e
riqueza é o exemplo mais característico desse processo histórico.
Esse contexto histórico criou um fosso entre o Estado e a sociedade civil
brasileira, e por fim, tornou desacreditada aquela perspectiva que relaciona a esfera
estatal ao bem comum, ao interesse público. Foi essa polêmica que se tornou, nas
décadas de 1970 e 1980, o eixo comum de luta da diversidade de segmentos da
sociedade civil, na reivindicação da democratização do Estado brasileiro. E ainda
assim, a vivência democrática brasileira convive com a carência de uma cultura cívica
que, garantindo a defesa do interesse público, possa conceber o Estado como o
momento ético-político de construção do interesse coletivo.
49
De acordo com o autor, o exemplos de manifestações culturais, do período que antecede o golpe
militar de 1964, as iniciativas promovidas pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, as campanhas
realizadas em defesa da escola pública, a constituição dos Centros Populares de Cultura CPCs (nas
suas várias seções estaduais), a formulação da Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, o Cinema Novo,
o Teatro Arena, etc.
É nesse campo complexo de disputa de interesses e correlação de forças que se
insere a gestão democrática e participativa das políticas sociais no Brasil. No desafio de
conceber a política como idéia, valor e projeto é que os conselhos ganham importância
e dinamismo. Enquanto instrumentos da gestão democrática, estes conselhos
aproximam os segmentos organizados da sociedade civil da esfera estatal, inserindo os
sujeitos políticos na órbita do governo e exigindo, assim, que a sociedade civil se
capacite a pensar os problemas comuns, os problemas da gestão pública. E por outro
lado, pressiona o poder público na abertura de diálogo e na democratização das
informações e decisões políticas.
Diante desta leitura examinamos a questão da qualidade da participação da
sociedade civil, em Ponta Grossa, no processo de gestão das políticas de saúde e
assistência social. Como vimos, a atuação destes conselhos encontra no poder público,
entre outros limites, um impasse bastante significativo na efetiva atuação da
modalidade participativa de gestão. Os gestores públicos estão imbuídos de uma
perspectiva que considera a participação na sua modalidade mais conservadora,
aquela que substitui o Estado, executando ações de cunho social e opinando sobre as
ações e serviços públicos prestados. O resultado dessa característica de gestão, que
resiste ao diálogo e a democratização de decisões políticas, reafirma, ou ainda
agrava, a contradição construída no cenário brasileiro. Qual seja, a de um Estado
separado da sociedade civil, que não responde pelo interesse público, que
operacionaliza as políticas sociais a contento das necessidades mais básicas da
sociedade, deixando a desejar no que se refere a construção de um pacto social
afiançador da cidadania.
Das discussões presenciadas nos conselhos, vimos tentativas dos gestores de
negociarem projetos relativos a gestão da saúde e da assistência social nos gabinetes,
envolvendo um ou outro segmento dos conselhos. Quando não, a tentativa de
pressionar sujeitos participativos para que os conselhos deliberassem de acordo com a
programação de prioridades do poder público. Os conselhos têm sido vistos, pelo órgão
gestor, como aspectos burocráticos e cartoriais do processo de gestão, que muitas
vezes, por conta das polêmicas travadas nestes espaços, impedem que as decisões
sejam tomadas “a toque de caixa”.
Da parte dos conselheiros, é evidente que existem particularismos e
corporativismos na prática política, seja por filiação ou simpatia partidária, por
interesses voltados a segmentos profissionais ou religiosos. Ainda assim, as reuniões
são ricas no que diz respeito aos diálogos e a convivência política. É visível por parte
dos segmentos oriundos da sociedade civil o interesse no acompanhamento das
discussões e na adesão as atividades dos conselhos. As sedes dos conselhos recebem
freqüentemente conselheiros envolvidos em atividades extraordinárias, como as
reuniões temáticas das comissões. No campo da saúde, a articulação dos conselheiros
tem programado visitas de fiscalização nos estabelecimentos de atendimento em
saúde, bem como vem promovendo uma variedade de reuniões nas periferias, através
da articulação dos conselhos locais de saúde. Mais pela resistência dos conselheiros,
do que pelo apoio do gestor de saúde, os conselhos locais de saúde vêm se reunindo e
discutindo questões relativas as demandas da comunidade no setor.
Assim, ainda que tenha dificuldade em planejar, propor e controlar as ações do
poder público na operacionalização da saúde no município, o CMS vem ganhando
visibilidade pública e se mostrando potencialmente capaz de articular mecanismos que
favoreçam o controle social sobre as ações estatais.
Na assistência social, a relação clientelista e personalista de distribuição direta
de recursos às entidades beneficentes encontrou, no CMAS, a possibilidade de revisão
desta prática que, tradicionalmente, caracterizou a operacionalização das ações no
setor. O conselho logrou uma atuação que, neste sentido, vem tentando regular de
maneira mais consistente a rede de atendimento assistencial. Por conta disso, as
entidades e segmentos organizados envolvidos nesta área de atuação vêm capacitando
sua atuação e participando cada vez mais do espaço do CMAS. É comum
presenciarmos, além dos conselheiros titulares e suplentes, dirigentes e profissionais
das entidades do setor nas reuniões deste conselho.
Os conselhos vêm se popularizando frente aos segmentos que atuam nas áreas
das políticas de saúde e assistência social, recebem com freqüência a presença de
estudantes e profissionais dos setores em suas reuniões e sedes. Estes espaços estão
sendo reconhecidos, inclusive, como canais de denúncias da prestação de serviços
e do uso indevido de recursos públicos. É interessante registrar ainda que o Ministério
Público vem se tornando um parceiro presente na garantia das reivindicações dos
conselhos. A visibilidade pública que estes espaços vêm ganhando fortalece a atuação
dos segmentos organizados da sociedade civil. É necessário que se divulgue, de
maneira mais ampla e consistente, para a comunidade local, qual o papel e as
atribuições dos conselhos, para que estes espaços não sejam compreendidos como
parte do poder público
50
, e sim como arranjos institucionais públicos.
Assim, o estudo aponta que mesmo diante de uma gestão conservadora, de uma
cultura local marcada pelo autoritarismo e pelo patrimonialismo, os conselhos têm
logrado conquistas, que vem promovendo discussões públicas de cunho político.
Seja em partes pelo legado da administração pública anterior (2001-2004), que
incentivou a participação da sociedade pontagrossense na gestão municipal das
políticas sociais, mas principalmente, pela institucionalização de uma modalidade de
participação que, mesmo diante de um contexto histórico pouco favorável a seu pleno
desempenho, vem modificando a relação Estado-sociedade civil, promovendo o
engajamento de atores sociais em discussões políticas e capacitando, político-
pedagogicamente, segmentos da sociedade civil para a participação política.
Após dezoito anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, embora
ainda carreguemos as contradições de uma sociedade civil marcada por relações
conservadoras, de cunho clientelista e patrimonilista, convivemos com espaços
institucionais que vem promovendo discussões políticas capazes de construírem uma
cultura política mais atenta ao interesse público. Enquanto processo histórico, na
medida em que nenhuma sociedade civil é imediatamente política, como destacou
NOGUEIRA (2004), o amadurecimento dos canais institucionais de construção do
interesse público envolve o próprio amadurecimento da sociedade civil brasileira.
REFERÊNCIAS
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determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: FAPESP,
2000.
50
No organograma da SMAS, de Ponta Grossa, o CMAS aparece como parte da estrutura administrativa
desta secretaria. O fato deixa evidente que os próprios técnicos que atuam no setor ainda não
compreendem de maneira clara qual a natureza, o papel e as atribuições deste conselho.
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APÊNDICE
ESPAÇOS DE ASSOCIATIVISMO FREQUENTADOS PELOS CONSELHEIROS DE SAÚDE E
ASSISTÊNCIA SOCIAL
CMS
Espaços de Associativismo - Ponta Grossa 2006
10
7
6
6
5
4
2
2
2
Associação
Profissional
Outros
Conselhos
Partido
Político
Movimentos
Sociais
Movimentos
Religiosos
ONG
Sindicatos
Associão
de
Moradores
Outros
Fonte: Questionário. Org. da autora
CMAS
Espaços de associativismo - Ponta Grossa 2006
8
8
4
3
3
3
2
2
2
1
Movimentos
religiosos
Outros
conselhos
Outros
Grupos de
convivência
Associão
profissional
ONG
Partido
político
Associão
de
moradores
Movimentos
sociais
Sindicato
Fonte: Questionário. Org. da autora
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