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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
Centro de Ciências Humanas - CCH
Programa de Pós-graduação em Memória Social – PPMS
Dissertação de Mestrado
Linha de Pesquisa: Memória e Espaço
Orientador: Marco Aurélio Santana
Cristiane Muniz Thiago
Rio de Janeiro
2007
Rio de Janeiro operário: memórias dos
trabalhadores do bairro do Jacaré.
Rio de Janeiro Operário: Memória dos trabalhadores
do bairro do Jacaré.
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Cristiane Muniz Thiago
Rio de Janeiro operário: memória dos trabalhadores do bairro do Jacaré
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Memória
Social, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito para obtenção do título de Mestre em Memória Social.
Rio de Janeiro
2007
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Cristiane Muniz Thiago
Rio de Janeiro operário: memória dos trabalhadores do bairro do Jacaré
Banca Examinadora
_________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Santana (Orientador) - Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
_________________________________________________________
Profª Drª. Icléia Thiesen - Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO)
_________________________________________________________
Prof. Dr. José Ricardo Ramalho – Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ)
Rio de Janeiro
2007
4
THIAGO, Cristiane Muniz.
Rio de Janeiro Operário: memória dos trabalhadores do bairro do Jacaré
PPGMS/CCH/UNIRIO, 2007.
5
Agradecimentos
Os resultados desse trabalho dependeram da colaboração, do incentivo e da amizade
das inúmeras pessoas que fazem parte dessa trajetória. A todos vocês eu devo meu
reconhecimento.
Aos meus pais pelo apoio e incentivo para que eu realizasse mais essa empreitada
na vida acadêmica. À minha mãe por ter participado de várias etapas desse projeto,
fazendo suas considerações sobre os caminhos que minha pesquisa seguia.
Ao Marco Aurélio, orientador preciso e eficiente, um incentivador indispensável na
minha trajetória. Seu profissionalismo será sempre um parâmetro a me orientar.
À Icléia pela contribuição fundamental nos rumos desse trabalho. E pelo agradável
convívio no ambiente da linha Memória e Espaço, que já me deixa saudades.
Ao professor José Ricardo Ramalho, pelas considerações preciosas e indicações
fundamentais durante a banca de qualificação.
Ao Sérgio pela alegria e ao mesmo tempo angústia de dividir tão de perto o fascínio
por nossa profissão. Por ter sido um grande interlocutor nas questões referentes ao mundo
do trabalho, mas, sobretudo, por fazer parte de uma história que vai muito além dos
limites de nossas considerações teóricas.
A todos os amigos do PPGMS e da linha Memória e Espaço pelos longos debates e
pelos momentos de descontração que nos fizeram recuperar forças para prosseguir. Ao
amigo Alex pelas frutíferas trocas que fizemos nas discussões sobre nossos objetos.
Aos Netsinianos, a diversidade que continua a marcar nosso grupo me fez aprender
muito sobre aos diversos “mundos do trabalho”.
A todos que cederam horas de suas vidas para me presentear com suas histórias.
Esse trabalho não teria sido possível sem a contribuição desses homens e mulheres.
E finalmente, à CAPES pelo apoio financeiro que contribuiu para a realização desse
trabalho.
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Resumo
A presente dissertação tem como tema a memória dos ex-trabalhadores do
complexo industrial do bairro do Jacaré, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Entre
os anos 1960 e 1990 esta região foi caracterizada pela forte presença dos trabalhadores. A
maior parte da mão-de-obra empregada no complexo industrial residia no bairro, na
Favela do Jacarezinho. O objetivo deste trabalho é, através da memória, analisar a
história desse grupo de trabalhadores, sua a atuação no movimento operário e a
importância da esfera comunitária para a formação da identidade de classe. Aspectos do
desenvolvimento urbano, do lazer e da religião também serão abordados, além do
processo de migração que impulsiona a formação do Jacarezinho.
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Abstract
The subject of this dissertation is the collective memory of former-workers of the
industrial district of “Jacaré”, northern area of Rio de Janeiro city. From the 1960s to
the 1990s this area was known for the strong presence of the workers. Most of the
workforce employed by the factories lived in the “Jacarezinho” slum. The purpose of this
work is, through social memory, to analyze the history of these workers, their
performance in the working-class movement and the importance of the communitarian
sphere for the building of the class identity. Aspects such as urban development, leisure,
religion and formation of the “Jacarezinho” slum will also be taken into account.
8
Sumário
Introdução .........................................................................................................................9
Referencial teórico metodológico................................................................................... 16
1.1 - Questões sobre o estudo da memória .......................................................................16
1.2 - Discussão historiográfica.......................................................................................... 26
1.3 - Metodologia da História Oral...................................................................................28
1.4 - Perfil dos entrevistados............................................................................................. 33
Histórias e memórias de um bairro operário............................................................... 37
2.1 - Histórico do bairro.................................................................................................... 37
2.2 - Primeiras indústrias: marcos da memória operária................................................... 40
2.3 - Migração e expansão do bairro.................................................................................47
2.4 - Memórias de um bairro: um nome em questão ........................................................51
2.5 - Formação e declínio de um complexo industrial...................................................... 55
Memória operária e relações de poder: os espaços de um operário........................... 64
3.1 - O Nascimento das Fábricas ......................................................................................65
3.2 – Fábrica e bairro: espaços interligados...................................................................... 68
3.3 - Os primeiros anos de trabalho.................................................................................. 73
3.4 - Do samba a voz e a memória: passado repleto de glória.......................................... 80
Militância e militantes: as várias facetas de um bairro operário...............................86
4.1 - Jacarezinho com a bênção do pai .............................................................................91
4.2 - A esquerda sobe o morro..........................................................................................99
4.3 - “Vou botar pra andar”: anos 1980 e a nova configuração política......................... 108
4.4 - O vôo da águia: o caso dos trabalhadores da fábrica de parafusos......................... 112
Considerações Finais ....................................................................................................121
Bibliografia....................................................................................................................124
Anexos............................................................................................................................130
I - Roteiro de entrevistas................................................................................................. 130
II - Mapa do Jacaré e do Jacarezinho..............................................................................131
III - Fotos ........................................................................................................................ 132
9
Introdução
A presente dissertação tem como tema a memória dos ex-trabalhadores do
complexo industrial do bairro do Jacaré, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Entre
os anos 1960 e 1990 esta região foi caracterizada pela forte presença dos trabalhadores. A
maior parte da mão-de-obra empregada no complexo industrial residia no bairro, na
Favela do Jacarezinho.
1
O objetivo deste trabalho é, através da memória, analisar a
história desse grupo de trabalhadores, sua a atuação no movimento operário e a
importância da esfera comunitária para a formação da identidade de classe. Aspectos do
desenvolvimento urbano, do lazer e da religião também serão abordados, além do
processo de migração que impulsiona a formação do Jacarezinho.
Na década de 1960, o bairro do Jacaré abrigou o segundo maior parque industrial do
Rio de Janeiro. O complexo industrial do Jacaré ocupava cerca de 15 ruas do bairro e
tinha uma enorme diversidade na sua produção. Era possível encontrarmos ali indústrias
de sapatos e bolsas, de materiais farmacêuticos, de vidros, de roupas, metalúrgicas,
gráficas, fábricas de beneficiamento de café etc.
2
Nas ruas do complexo, e na principal
artéria do bairro (rua Nilo Teixeira), diversas cantinas serviam aos trabalhadores das
fábricas, e uma rede de comércio era alimentada pela economia gerada na produção
industrial.
Para entender a memória desses operários, assim como os processos ocorridos no
bairro do Jacaré, a crescente industrialização a partir da década de 1960 e o fim das
atividades de boa parte das indústrias da região nos anos 90, torna-se imprescindível
considerarmos a Favela Jacarezinho que, de acordo com dados do IBGE de 2000, possui
cerca de 36.459 moradores, enquanto o bairro do Jacaré possui por volta de 7.392
1
Nas entrevistas, os moradores do Jacarezinho denominam o espaço de diferentes maneiras. Muitos usam a
expressão “favela”, outros “comunidade carente” ou simplesmente “comunidade”. De acordo com a
posição política e a geração de cada entrevistado as expressões ganham uma conotação diferente. Falar em
“favela” pode representar um instrumento político importante para as gerações mais antigas. A história do
Jacarezinho como precursora do movimento associativo das favelas no Rio de Janeiro enriquece o termo.
No entanto, para outra parcela dos entrevistados, em geral os mais novos, a expressão é pejorativa e o uso
do termo “comunidade” é feito como forma de afirmar uma identidade mais valorizada perante a sociedade.
A opção por usar a palavra favela faz parte de uma reflexão acerca do eufemismo da expressão
comunidade, mas, sobretudo porque marca a história política do Jacarezinho nos anos 60, 70 e 80.
2
Como exemplo de indústrias que tiveram suas filiais no bairro podemos citar: Fábrica de Parafusos Águia,
Company , Glaxo Welcome, Café Moinho de Ouro, Babete Confecções. Entre as principais indústrias ainda
funcionando no bairro temos a Cisper e a General Electric (GE).
10
moradores. Além disso, a maior parte da mão-de-obra do complexo industrial do Jacaré é
moradora do Jacarezinho. Essas pessoas ocuparam aquele espaço a partir de um processo
de migração, em grande parte migrantes nordestinos. A criação do bairro do Jacarezinho
em 1992 não fez com que o local deixasse de ser identificado como uma favela que faz
parte do Jacaré.
Partimos do pressuposto que existia uma forte relação entre o movimento
comunitário e o movimento operário,
3
sendo o espaço do bairro (Jacaré e Jacarezinho)
um dos destaques na memória desse grupo de operários. Refletir sobre o espaço é,
portanto, fundamental para uma melhor análise da história desses trabalhadores,
valorizando os contextos em que os movimentos operários delineiam suas histórias.
A presença no bairro de diversos movimentos políticos e da forte articulação
operária fez com que alguns sindicatos tivessem uma atuação marcante área, entre eles
podemos citar o Sindicato dos Metalúrgicos do Município do Rio de Janeiro, sindicato de
longa tradição no cenário político da cidade; o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias
Gráficas do Município do Rio de Janeiro
4
, mais conhecido com Sindicato dos Gráficos,
um dos mais antigos sindicatos da história do país. Outra instituição com grande
representatividade na região foi o Sindicato dos Trabalhadores das Empresas de
Fabricação, Beneficiamento e Transformação de Vidro, Cristal, Espelho, Fibra e Lã de
Vidro, Cerâmica de Louça, Cerâmica de Barro, Porcelana e Ótica do Rio de Janeiro,
usualmente chamado de Sindicato dos Vidreiros
5
. Interessa-nos saber de que maneira os
filiados destes três sindicatos que trabalhavam e ou moravam no Jacaré e Jacarezinho se
inseriam no movimento operário e comunitário do bairro. O que a análise dos resultados
da pesquisa indicou é que no caso dos trabalhadores que não moravam naquela área o
imaginário sobre a região se constituía de forma bem diversa daqueles que além de
trabalhar ali moravam e tinham quase que todos os seus espaços de sociabilidade no
bairro.
3
Nas primeiras entrevistas a articulação entre movimento operário e movimento comunitário é mencionada
com destaque. Ver Thiago, Cristiane Muniz. Memória e Trabalho no bairro do Jacaré - RJ. Rio de Janeiro,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2004. (Monografia)
4
Sobre os trabalhadores gráficos do Rio de Janeiro ver: (Barbosa, 1991) e (Vitorino, 2000).
5
Ver mapa do Jacaré e do Jacarezinho com a localização dos três sindicatos (Anexo II).
11
Na década de 1990, várias indústrias do complexo industrial são fechadas ou têm
suas atividades reduzidas e cerca de 40 mil trabalhadores perderam seus empregos nas
fábricas do bairro. A partir da experiência do desemprego, os trabalhadores vão construir
novas formas de mobilização e alternativas de emprego. Portanto, o tema do trabalho
versa sobre a memória de ex-trabalhadores de um bairro que já foi representativo da
produção industrial do país, mas que a partir da referida década não atende mais a esse
perfil.
Para definirmos os objetivos desta pesquisa é importante apontar uma preocupação
crescente com a memória do trabalho no Brasil. Contudo, ainda existem lacunas na
literatura sobre o tema que poderão ser preenchidas a partir de um trabalho dedicado à
análise da memória dos trabalhadores. Nesse sentido, analisaremos as repercussões dos
primeiros anos de trabalho desses operários, a formação de uma organização operária e a
influência da proximidade da fábrica com a moradia. A partir do início da década de 1960
temos o cenário das primeiras memórias de um bairro industrial e de uma favela em
ascensão. A memória dos operários do Jacaré também está fortemente marcada pelas
mudanças da década de 1990. A partir de seus depoimentos temos uma perspectiva bem
particular desses fenômenos e podemos perceber de que maneira as memórias desses
homens e mulheres reconstroem esse período.
Num plano mais específico torna-se relevante o estudo do movimento comunitário no
bairro, pois este está diretamente vinculado à participação dos operários em partidos e
grupos políticos e nos sindicatos, logo, estando presente na memória operária, tema
principal da pesquisa. A participação desses operários em movimentos políticos, nos
partidos e nos sindicatos nos primeiros anos no bairro é um dos pontos mais destacados
em suas memórias.
Podemos supor que por conta da grande atividade industrial no local uma série de
movimentos políticos estiveram em disputa pelo espaço. Tentaremos, portanto, mapear os
grupos políticos que atuavam no bairro e as disputas que eles travaram por suas áreas de
influência. Esses grupos estavam de alguma forma no cenário político do Rio de Janeiro.
No caso das disputas entre autênticos e chaguistas no Movimento Democrático Brasileiro
12
(MDB), o Jacarezinho vai nos dar uma dimensão local de uma disputa que ocorria no
nível estadual ou mesmo nacional.
É importante que a análise da memória esteja sempre em confluência com os
acontecimentos que marcaram o período e que estão presentes na historiografia sobre o
movimento operário no Brasil. Neste sentido, o trabalho pretende estudar os
acontecimentos que marcaram o mundo do trabalho nas primeiras décadas da segunda
metade do século XX e seus desdobramentos dentro do bairro do Jacaré. Por isso, apesar
de a bibliografia sobre o bairro no que tange à questão operária ser inexistente, é possível
fazer referência a uma historiografia mais geral.
Na perspectiva deste estudo, pretendemos analisar de que maneira se deu a
interação entre movimento operário e movimento comunitário no espaço do bairro. Não
podemos deixar de problematizar quem eram esses operários, de que maneira esse grupo
se constituiu e quais as diferenças entre as diversas categorias profissionais que
construíram a paisagem do bairro. Podemos considerar o Jacarezinho como um conjunto
de vilas operárias
6
ou uma grande vila operária por ter como peculiaridade reunir um
grande número de operários em torno das fábricas. Essa característica vai determinar uma
maneira particular de articulação desse grupo em relação à mobilização política, ao
trabalho, ao lazer e ao espaço do próprio bairro.
Quais alternativas os operários buscaram como forma de trabalho após o
fechamento da maioria das fábricas na década de 1990? O que fizeram os alfaiates, as
costureiras, os metalúrgicos, os vidreiros? Pretendemos, ainda, identificar e analisar a um
grupo de trabalhadores metalúrgicos, ex-funcionários da Fábrica de Parafusos Águia, que
buscou através da formação de uma cooperativa uma nova inserção no mercado de
trabalho. A partir desse caso podemos identificar algumas das as repercussões dos anos
90 para o bairro do Jacaré.
A relevância do trabalho está em analisar as formas pelas quais se constrói a
memória de ex-trabalhadores, que contribuíram para o desenvolvimento industrial do
6
No Jacaré as indústrias não chegaram a construir casas para seus funcionários, não tendo poder de
coerção, por exemplo, com a cobrança de aluguel. No entanto, algumas das empresas do bairro
extrapolavam seu controle sobre o operário para a esfera privada, por isso estamos usando a analogia com
um espaço constituído por vila-operária.
13
Brasil da década de 1960. Não menos importante é o trabalho de elucidar a história de um
bairro que já foi referência da produção industrial do Rio de Janeiro, e que hoje é visto
como um local em plena decadência tendo atraído para si uma série de estigmas.
Ao tratar do operário não apenas como ator dentro das fábricas e dos sindicatos,
mas também de suas articulações como o bairro, o trabalho contribui para a ampliação do
conhecimento da história dos trabalhadores em uma perspectiva pouco explorada pela
literatura sobre o tema.
Ao privilegiar como fonte as entrevistas feitas com os trabalhadores, a pesquisa
pretende elucidar a relevância de se construir uma história do movimento operário a partir
da memória de seus atores principais, ou seja, os próprios operários. Além disso, o
trabalho será uma contribuição da memória para o estudo das mudanças agudas e recentes
no mundo do trabalho, vindo a contribuir com a literatura sobre o bairro e o complexo
industrial, que é extremamente escassa.
O interesse de estudar essa região surgiu em 2001 quando conheci o cenário que
tento descrever nas próximas páginas. A grande quantidade de fábricas fechadas me
surpreendeu. A chaminé da fábrica Café Moinho de Ouro, camuflada atrás de algumas
casas e prédios, passou a fazer parte do meu trajeto diário. Cheguei a me perguntar se a
fábrica estaria funcionando, mas, dada a ausência do cheiro de café e chocolate, a
resposta era evidente.
Dois outros “monumentos” passaram a fazer parte do meu trajeto quase que diário.
Saindo do Jacaré por São Cristóvão, passamos pela sede do Sindicato dos Metalúrgicos, o
Palácio dos Metalúrgicos. Vindo do Maracanã em direção ao Jacaré, outro prédio
despertava meu interesse, a sede do Sindicato dos Gráficos. Um casarão antigo, mas bem
conservado, localizado em Triagem. Aos poucos comecei a circular mais pelo bairro, até
que me deparei com mais uma sede de associação dos trabalhadores, o Sindicato dos
Vidreiros, localizado no próprio Jacaré. Fazer a relação entre a proximidade destes
sindicatos e a importância operária do bairro só me foi permitido muito tempo depois que
esses prédios passaram-me pela primeira vez no olhar.
No terceiro período de graduação, uma disciplina me colocaria pela primeira vez
em contato com o tema memória, o que me possibilitou levantar novas questões sobre
14
aquele espaço que tanto me chamava a atenção. A curiosidade ganhou algum rigor
acadêmico ao me deparar com a realização de um trabalho sobre o bairro do Jacaré. Com
a orientação precisa da Professora Icléia Thiesen, foi possível aprender a definir um
objeto de pesquisa. Desse trabalho e de um novo começo de orientação, já com o
Professor Marco Aurélio Santana, minha monografia contemplou a memória dos
trabalhadores do bairro do Jacaré.
Para termos uma noção desse cenário, basta um “passeio” pelas ruas do bairro.
Fábricas desativadas e transformadas em moradia ou a persistência de alguma “vida” nas
poucas indústrias funcionando. O próprio Jacarezinho, com seus becos apertados e a
imensidão de seu comércio no Largo dos Tubas, também constitui parte deste excelente
exercício de trabalho de campo. No entanto, entendemos os limites de tal atividade para
os “estrangeiros” nesse espaço. Para estes, uma viagem na linha dois do Metrô Rio,
percorrendo as estações de Del Castilho, Maria da Graça e Triagem, quando o metrô é de
superfície, apresentará uma surpreendente visão da área ocupada pelo Jacaré e pelo
Jacarezinho. Ao tentar descrever esse espaço não consigo atingir todas as suas dimensões,
significados e representações. Para auxiliar a compreensão desse “mundo”, fica o convite
a uma viagem pela linha dois do Metrô Rio.
O que pretendo apresentar aqui é uma nova etapa desse trabalho, com objetivos
mais definidos, novas questões levantadas e um trabalho de campo que me permitiu
conhecer melhor esse mundo, dos prédios dos sindicatos citados ao próprio Jacarezinho,
onde muitas das entrevistas foram realizadas.
O texto foi organizado a partir de quatro capítulos. No primeiro capítulo, realizamos
a análise bibliográfica e a discussão da metodologia adotada na pesquisa. O referencial
teórico que norteou as questões levantadas ao longo do trabalho também é discutido,
além disso traçarmos o perfil dos entrevistados.
No segundo capítulo, faremos um histórico do bairro e analisaremos os marcos da
memória da constituição desse espaço operário. Pretendemos mapear nomes e lugares
que fazem parte dessa história reconstruída na memória desses homens e mulheres. O
espaço do bairro e das fábricas é trabalhado neste capítulo como principal referencial para
a orientação das memórias dessas pessoas.
15
No terceiro capítulo, analisaremos de que maneira a presença das fábricas vai
determinar um novo ritmo à região e aos seus moradores e de que forma as relações de
poder estão presentes na fábrica e na vivência do trabalho operário. Nessa perspectiva, é
importante avaliar de que forma a proximidade com o espaço de moradia faz com que a
disciplina da fábrica atinja o cotidiano dos moradores nos seus espaços de sociabilidade
no bairro e de que modo os trabalhadores constroem formas de contrapor essa hierarquia
vinda da fábrica e que atinge seu cotidiano. Alisaremos também as formas de lazer
presentes no bairro, que em grande medida não são influenciadas pelo ritmo de trabalho.
No quarto capítulo, problematizamos as formas de mobilização desse atores na
militância operária e na ação comunitária. Mapeamos os grupos políticos que estavam
presentes no Jacarezinho nos anos 1960, 70 e 80 e sua articulação na luta comunitária.
Também refletimos sobre o papel dos principais personagens que se destacaram nesse
cenário. A memória sobre a mobilização comunitária aponta para um dos principais
parâmetros que definem uma identidade compartilhada entre os moradores do
Jacarezinho, sejam eles operários, donas-de-casa ou profissionais liberais.
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Capítulo I
Referencial teórico metodológico
[...] o método utilizado é também uma tomada de posição a respeito do objeto
do esforço de produção do conhecimento. Ou seja, a explicação de um método
traz em seu bojo uma concepção a respeito de como construir o objeto a ser
estudado. (Chalhoub, 2003:18)
1.1 - Questões sobre o estudo da memória
Dentre os autores que trabalham a memória em sua perspectiva coletiva e social
temos Maurice Halbwachs e Michael Pollak. Esses autores constituem um campo
determinado do saber abordando, a partir de preocupações próprias, o tema da memória.
Tentaremos compreender a percepção desses autores sobre o tema e a importância da
inauguração do conceito de memória coletiva, proposto por Halbwachs (1990), para as
ciências humanas.
Maurice Halbwachs trabalha o conceito de memória coletiva em sua relação com a
memória individual, a história, o tempo e o espaço. Para a perspectiva desse trabalho,
interessa, sobretudo, a relação entre memória coletiva e memória individual e a relação
entre memória coletiva e espaço. Ao destacar a importância de memória coletiva
Halbwachs, não retira a importância da memória individual. Trabalhar com a associação
das duas significa, portanto, considerar em sua análise que a memória é formada por
conjunto de eventos que faz parte da vida coletiva e por eventos que, embora façam parte
da vida individual, não deixam de estar relacionados com coletivo.
A partir da associação entre memória coletiva e espaço podemos ampliar a
discussão feita por Halbwachs e problematizar a relação entre memória coletiva, espaço e
identidade social. Partindo do pressuposto que a memória é um dos determinantes da
constituição da identidade, torna-se relevante fazermos essa relação. A discussão das
implicações da memória na identidade social é feita por Pollak (1992a). O autor vai nos
auxiliar, ainda, na discussão dos silêncios e dos esquecimentos, mecanismos constituintes
da memória, logo, fazendo parte da constituição da identidade (Pollak, 1992b).
17
Temos que ressaltar que a importância da definição do estatuto da categoria
memória está na sua articulação com o particular, com casos, histórias e memórias de
diferentes países, regiões, bairros que podem fazer parte da elaboração de novos e
pertinentes trabalhos.
Para dialogarmos com a obra de Halbwachs sobre a memória, temos que partir do
seu ponto de orientação, os quadros sociais da memória. O que são esses quadros? Eles
são, por exemplo, a profissão, a religião, a família, o local de trabalho etc. Esses quadros
são um sistema lógico (cronológico e de localização) para a memória. A lembrança é
antecipada por esses quadros sociais (Namer, 1994). A partir da definição de quadro
social da memória, Halbwachs vai partir para a definição de memória coletiva.
Halbwachs (1990) assinala que o homem se caracteriza essencialmente por seu grau
de integração no tecido das relações sociais. A memória é essencialmente coletiva.
Somos estimulados a lembrar a partir de referências coletivas, a partir de grupos dos
quais fazemos parte. Para Halbwachs por mais que tenhamos a impressão de que algumas
memórias são puramente individuais essa sensação não passa de uma variação de grau da
memória coletiva, ou seja, algumas memórias seriam mais características do grupo do
que outras, porém isso não retira de modo algum seu caráter coletivo. O autor ressalta:
“nossos sentimentos e nossos pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e
nas circunstâncias sociais definidas” (Op. cit.:26).
Segundo o autor, nossa percepção da memória como algo individual faz parte do
nosso hábito de não pensar na dimensão do grupo. Esse hábito nos impediria de pensar a
memória como um fenômeno coletivo.
Não estamos ainda habituados a falar da memória de um grupo, mesmo
por metáfora. Parece que uma tal faculdade não possa existir e durar a não ser
na medida em que está ligada a um corpo ou a um cérebro individual
(Halbwachs, 1990:53).
O que Halbwachs propõe não é uma redução do indivíduo ao coletivo. Tal análise
seria incompatível com as análises propostas em sua obra. Myrian Sepúlveda dos Santos
ressalta que somente a partir de Halbwachs e Bartlett foi possível: “rejeitar com maestria
18
a separação entre memória e sociedade e definir a memória como sendo uma construção
social” (Santos, 2003:33). Por questionar as teorias sociais que davam plena autonomia
ao indivíduo em face da sociedade, é compreensível que sua análise destacando a
interação entre indivíduo e sociedade seja feita de forma enfática.
Para Halbwachs, só podemos analisar a memória em relação com o tempo em que
ela esta sendo produzida e não como uma pura representação do passado. Tiramos aí uma
“pureza” da memória para enquadrá-la nas representações individuais e coletivas a partir
do momento em que ela esta sendo construída: “O passado que existe é apenas aquele
reconstruído continuamente no presente” (Halbwachs, 1990:132).
Ao tomarmos como referencial os estudos sobre memória, e que esta é uma
construção do presente, não tiramos sua legitimidade. Pelo contrário, passamos a
relativizar a suposta objetividade dos documentos escritos e oficiais. Sabemos, entretanto
que para a realização desse trabalho, devemos como nos sugere Pollak (1992a),
“controlar” as distorções ao invés de ignorá-las ou de inviabilizar o trabalho por conta de
tais distorções.
Para Halbwachs, o espaço que nos cerca é um referencial do nosso próprio gosto e
do nosso grupo. Os objetos que nos cercam, assim como os lugares são parte de nós
carregadas de significados. Eles não falam por si, mas nós os enchemos de significados.
Podemos entender a partir dessa definição que o espaço e as imagens espaciais
desempenham papel fundamental na memória coletiva. A partir do espaço podemos
analisar características do grupo.
...o lugar recebeu a marca do grupo, e vice-versa. Então, todas as ações
do grupo podem traduzir em temos espaciais, e o lugar ocupado por ele é
somente a reunião de todos os termos (Halbwachs, 1990:133).
Em alguns grupos mais do que em outros a memória coletiva tem seu apoio sobre as
imagens espaciais.
Os grupos dos quais falamos até aqui estão naturalmente ligados a um
lugar porque é o fato de estarem próximos no espaço que criou entre seus
19
membros relações sociais: uma família, um casal pode ser definido, olhando
de fora, como o conjunto das pessoas que vivem na mesma casa, no mesmo
apartamento, e, como se diz nos recenseamentos, sob o mesmo teto
(Halbwachs, 1990:139).
Somente a referência espacial não é suficiente para definir grupos, não basta que
estejam no mesmo lugar para partilhar de uma memória em comum. No entanto, não
existe memória que não tenha um referencial espacial.
Ao consideramos o espaço como parte fundamental da análise da memória, temos
que destacar sua importância na construção das redes de sociabilidade, articulando
diferentes atores e movimentos na mesma direção. Para além de uma mera representação
física, o espaço se torna um importante ambiente que amplia e consolida as relações entre
os grupos.
A identidade dos grupos é assegurada não apenas por sua formação de classe,
religião, filosofia de vida etc., mas tem na identificação com o espaço um importante
paralelo. O significado do espaço para os grupos em geral é bem mais amplo do que
temos por hábito definir, como veremos a seguir a partir dos trabalhos de Pollak.
Seguindo a linha de Halbwachs, Michael Pollak trabalha com a concepção de
memória como um fenômeno que não se limita às representações individuais. Os
elementos constitutivos da memória são os acontecimentos individuais, os
acontecimentos vividos “por tabela”, acontecimentos dos quais a pessoa não participou,
mas que ganharam tamanho significado em sua memória, que ela os percebe como se
tivesse vivido. Além disso, fazem parte da memória pessoas, personagens e, por fim, os
lugares. A partir desses elementos, Pollak vai discutir o fenômeno da memória social,
trazendo algumas abordagens novas em relação os trabalhos de Halbwachs.
Como fato novo, o autor vai destacar a importância da memória para a construção
da identidade individual ou coletiva. A identidade assim como a memória faz parte de um
diálogo com a sociedade, são construídas a partir de parâmetros que não se restringem ao
indivíduo.
A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência
aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
20
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros (Pollak,
1992a:204).
Assim como identidade é um processo negociado com a sociedade, a memória
também o é. A memória e a identidade só são possíveis para a concepção do autor a partir
do social, tendo como referência para a construção desses elementos padrões que fazem
parte do coletivo. A autonomia do indivíduo, diante das exigências dos grupos e da
sociedade, é de uma maneira geral limitada.
Se a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, o espaço
também o é, além de ser um importante referencial para a memória como já referido. Essa
articulação entre memória, identidade e espaço é de grande importância para o estudo dos
fenômenos sociais, já que não é possível dissociar de todo essas três categorias.
O espaço desempenha papel fundamental como ponto de referência na memória
coletiva, além de ser também um dos determinantes na construção da identidade. Um
grupo só partilha da construção de uma memória porque tem uma identidade que
relaciona seus integrantes. Dessa forma, estes últimos criam uma demanda por uma
memória que represente a identidade do grupo. Essa identidade é em geral construída a
partir de características comuns, e o espaço costuma fazer parte dessa construção.
Se “não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial”
(Halbwachs, 1990:143), poderíamos acrescentar que não há identidade que não se
desenvolva num quadro espacial. No caso dos operários, por exemplo, o espaço da
fábrica é de grande relevância. Se a identificação como operários se dá por conta do
trabalho na fábrica, essa identidade por sua vez só foi possível pelo fator trabalho e pelo
determinante em comum do espaço fábrica ou de qualquer outro espaço que seja
identificado como local de trabalho.
Savage (2004), ao discutir a história do trabalho, também ressalta o espaço como
parte fundamental na constituição da identidade de classe. Ao tratar da construção de uma
classe e não da classe, sua análise pode ser utilizada para entender a constituição de
diversos grupos a partir da lógica do espaço.
21
...devemos examinar os contextos em que as vidas operárias são vividas. Isso
significa visualizar tempo e espaço não como pano de fundo da análise
histórica, mas, fundamentalmente como parte intrínseca do próprio processo
de mudança histórica (Savage, 2004:38).
Devemos considerar o espaço além de sua representação usual como pano de fundo,
seja das narrativas históricas ou das memórias. Sua importância na discussão da
identidade e da memória faz com que repensemos seu papel nas análises sociais
valorizando seu desempenho no processo de continuidade e mudança das relações
sociais.
Para analisarmos alguns conceitos como o de exclusão social, dentro do espaço, e
para entender a divisão de espaço entre espaço físico e espaço social será usada a obra de
Pierre Bourdieu (1977). O autor classifica os espaços em dois tipos: o espaço físico, lugar
onde o indivíduo encontra-se situado; e o espaço social, que se pode definir por sua
posição relativa a outro lugar (acima, abaixo) e pela distância que os separa. O espaço
social excludente é marcado por sua característica de inferioridade em relação a outro
lugar, a uma ausência do Estado, conseqüentemente de polícia, escola, postos de saúde,
etc. No entanto, os espaços são marcados por ambigüidades; Relações de excomunhão
existem, assim como alternativas para superá-las são construídas pelos grupos dentro
desses espaços.
Acrescentando ao espaço outras características além de seu status meramente físico,
podemos considerar a definição de “lugar antropológico” para Marc Auge (2001).
Segundo o autor, esses espaços estão repletos de sentidos, para aqueles que o habitam, e
de princípio de inteligibilidade, para quem o observa.
Reservamos o termo “lugar antropológico” àquela construção concreta e
simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das
vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles
a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja (Auge,
2001:51).
O lugar antropológico tem pelos menos três características: ele se pretende
identitário, relacional e histórico. As determinações sociais de um grupo estão prescritas
em um determinado lugar. Nesse sentido, o lugar é um dos palcos da formação de
identidade.
22
No entanto, um mesmo lugar pode ser referência para várias identidades, que
podem relacionar-se entre si. Ao conjugar identidade e relação, esse espaço cria uma
estabilidade que é sua característica histórica. Seguindo a perspectiva de Michel de
Certeau, Augé vai definir essa pretensão relacional do lugar como:
...o que equivale a dizer que, num mesmo lugar, podem coexistir
elementos distintos e singulares, sem dúvida, mas sobre os quais não se proíbe
pensar nem as relações nem a identidade partilhada que lhes confere a
ocupação do lugar comum (Auge, 2001:53)
Se nossa preocupação fundamental na definição de um grupo for unicamente suas
particularidades e singularidades, talvez desejássemos, como nos sugere Augé, que o
grupo a ser estudado fosse uma ilha, talvez ligada a outras, porém única. No entanto, se
os grupos fossem ilhas de homogeneidade em pouco tempo perderíamos o interesse por
seu estudo, bastaria entrevistamos um de seus membros para termos sua história,
pularíamos de ilha em ilha analisando sociedades passiveis de definição em poucos
instantes. O que aprendemos na prática é que essas ilhas não existem, um dos
fundamentos da constituição dos grupos é justamente a sua diversidade, o que não
significa negar sua identidade. A relação com um mesmo espaço configura identidade
mesmo sendo necessário reconhecer as diversidades.
Esse espaço de que trata Augé sofre transformações ao longo do tempo e de acordo
com os interesses determinados pela sociedade ele adquire características e sentidos
novos. De que maneira se dá a manipulação do espaço moderno? E como esse tipo de
manipulação afeta a formação da identidade e a memória coletiva?
Segundo Bauman (1999), a manipulação moderna do espaço pretende a
subordinação do espaço social a um mapa oficializado pelo Estado. Essa visão do espaço
teria como objetivo retirar-lhe o significado coletivo, imprimi-lo uma abstração que o
dissocie de sua história. A reorganização do espaço de acordo com uma ordem inteligível
para o poder público é a base da modernização do espaço. “
Modernização significa, entre
outras coisas, tornar o mundo habitado receptivo à administração supracomunitária, estatal”.
(Bauman, 1999:40).
Essa adaptação ao mundo moderno representa uma luta por poder. Domesticar o
espaço estranho significa redirecionar o poder local para o Estado. Para alguns autores, a
23
representação do território através dos mapas, por exemplo, pretende negar seus conflitos
e sua história, afirmando sua neutralidade. O espaço sonhado pelos “utopistas urbanos”
deveria ser um lugar “jamais poluído pela história” (Op. cit.:45). Esse tipo de espaço
proporcionaria um tipo de felicidade racional. Entretanto, o que não foi observado é que a
rejeição da história não significa uma rejeição da memória. Mesmo em um território “sem
história”, os indivíduos tendem a construir uma memória que articula o passado com as
demandas do presente, atribuindo novos significados para aquele espaço.
Na maioria das vezes, as políticas públicas não incluem o diálogo com os atores
sociais envolvidos em seus projetos. No entanto, estes vão se articular e de alguma
maneira adaptar a funcionalidade estatal as suas necessidades. É claro que essa adaptação
nem sempre vai contemplar de todo o interesse dos moradores do local.
O ideal desse novo arranjo espacial, proposto pela administração pública, seria que
as funções nas cidades fossem bem delimitadas e ocupassem espaços específicos e
distintos:
No espaço, urbano, assim como na vida pessoal, é necessário distinguir
e separar as funções do trabalho, vida doméstica, compras, diversão, culto,
administração; cada função precisa de um lugar próprio, cada lugar devendo
servir a uma e apenas uma função (Bauman, 1999:49).
Essa divisão proporcionaria uma melhor “arrumação” do espaço, logo um melhor e
maior controle sobre suas atividades. Entretanto, em geral, a organização do espaço não
obedece a esses critérios e as relações travadas entre os diversos níveis da existência de
um indivíduo e da coletividade na qual ele esta inserido se imbricam, fazendo com que
um mesmo espaço represente diversas instâncias.
A manipulação moderna do espaço que prevê essa abstração da sua história e de
seus significados coletivos é feita também a partir de uma “conservação rósea”. Jeudy
(1999) nos chama atenção para a “onda retro” que a sociedade contemporânea vive.
Segundo o autor, estamos diante de uma política de conservação que continuaria a
promover mecanismos para proteger do desaparecimento elementos da nossa cultura.
Com freqüência, o tratamento e a salvaguarda dos patrimônios
orientam-se para um ideal de memória “rósea”. Os conflitos e os
esquecimentos, os erros e os acidentes acabam sendo excluídos de tal modo
24
que o desejo de “reapropriação” das culturas e de seus signos identitários
somente se detém diante de obstáculos técnicos ou políticos (Jeudy, 1999:3).
Esse tipo de conservação do patrimônio pode esvaziar de sentido a memória
construída em torno dele. A primazia do estático reina nesse tipo de política. O ideal é
que a preservação retire do monumento os conflitos subjacentes ao seu significado,
conferindo-lhe uma visão neutra do passado. Qual seria a relação que esses grupos
travariam com esse tipo de patrimônio? A representação da identidade desses grupos
encontraria referência nesse tipo de conservação? Para Jeudy:
As figuras da identidade não se fundamentam numa conservação
estática, imutável. Elas se modificam desafiando toda representação de sua
atemporalidade (Jeudy, 1999:108).
A identidade está em um constante fazer-se, presa a alguns parâmetros, que faz com
que o grupo ainda se identifique como tal, porém em constante mutação se adaptando às
transformações que ocorrem ao longo do tempo e no próprio espaço de referência do
grupo. Se o espaço se torna imóvel, ele não pode, pelo menos por muito tempo,
representar a identidade do grupo. “Limpar” a memória, essa seria a nova orientação
política da preservação do patrimônio.
Mas o branco é também o esquecimento. A recordação incomoda, não
tem lugar senão quando embranquecida, despojada das impurezas que
mancham seu relato (Jeudy, 1999:111).
Seria a promoção voluntária e intencional do esquecimento? Mas a quem interessa
esse esquecimento? Quando “apaziguamos” o passado, tiramos os conflitos do foco
principal da história estamos normatizando um passado mais “agradável” de ser
lembrado. A sociedade não deseja o mal-estar, o conflito e a reflexão. O “róseo” não
apaga de todo o passado, no entanto, não o transforma em mecanismo de reflexão ou
diálogo. O que para alguns grupos da sociedade representa sua história de vida, para
outros representa apenas mal-estar. E o que fazer para essa história ser compartilhada por
todos? Ao imobilizar a memória através de um monumento, estamos reprimindo as
metamorfoses da memória, tão caras a sua representação.
25
A representação da história através de cenas fixas torna a memória imóvel como se
sua construção pudesse ser única. O caráter de permanente construção da memória é
tirado de cena, ficamos com um imobilismo das representações passadas. Mas a memória
não é constantemente reconstruída no presente?
Essa “padronização” da memória afetaria de que maneira os grupos e sua
identidade? Ao homogeneizar o passado, os grupos perdem as referências que
simbolizavam sua identidade. A preservação de sua representação para si e para os outros
é afetada. No entanto, esses grupos promovem formas de reação a esse jogo conciliatório,
muitas vezes negando monumentos impostos como sendo representantes de sua
identidade. Em alguns casos, a negação da memória rósea é feita de forma mais enfática,
como no caso dos operários.
A memória dos operários é, aliás, mais chocante porque, dizem eles com
veemência, “são instrumentos de tortura que são expostos nas vitrines!” As
máquina são belas e sedutoras, elas evocam uma grande época da indústria, e a
burguesia, orgulhosa de eu progresso técnico, se esforça então em glorificar
seu passado, ocultando os sofrimentos que ela engendrou (Jeudy, 1990:119-
120).
Do outro lado das políticas de conservação temos os monumentos abandonados, os
selecionados para não durar, para não guardar memória, ruínas que se decompõem com o
tempo.
Mas sua atração persiste, e eles ainda sabem evocar uma doce nostalgia,
como se os eventos que haviam anunciado seu fim se tornassem os signos de
sua transmutação em símbolos... as chaminés de fábricas, as velhas forjas
enferrujadas, rodas hidráulicas postas por terra, motores quebrados, carcaças
de veículos... esses lugares sem fim são inumeráveis, esses objetos
amontoados que não esperam mais que o olho para poder durar (Op.cit.:126).
Para Jeudy, o lugar abandonado se opõe a reconstituição pelo seu poder de evocar
as lembranças de maneira mais direta e se opondo ao esquecimento da lógica de
conservação. O impacto de uma visita ao “abandono” pode ser maior do que uma visita
ao museu, onde seu caminho já foi traçado previamente e onde o que vai ser lembrado e
esquecido esta definido pela lógica da escolha do acervo e da disposição das peças. É o
caos do lugar abandonado que permite as memórias exercitarem seu fundamento de
lembrança e esquecimento que não segue a ordem cronológica ou temática, como nos
26
museus. É o olhar, de espanto, de recordação, de admiração que provoca a inquietude das
paisagens fora do padrão de conservação.
1.2 - Discussão historiográfica
A partir da memória será travado um diálogo com a historiografia referente a outros
temas pertinentes ao trabalho. Para lidarmos com os conceitos de “classe” e “consciência
de classe”, é imprescindível dialogarmos com autores como E. P. Thompson (1997), que
através de sua análise desses dois importantes conceitos dá sustentação ao trabalho na
discussão dos processos que subsidiam a construção da identidade de classe e da própria
consciência de classe.
Entre os diversos grupos políticos presentes no bairro do Jacaré, podemos destacar a
atuação do Partido Comunista do Brasil (PCB). Para compreendermos a inserção do PCB
no movimento operário, utilizaremos um referencial teórico que aborde sua participação e
suas posições políticas entre os operários. Para essa compreensão foi usado o trabalho de
Marco Aurélio Santana (2001 e 2003).
As implicações das relações travadas dentro e fora da fábrica deixaram sua marca
no corpo e nas lembranças dos trabalhadores, sendo por isso mesmo tema relevante para
o estudo da memória operária. Para tal análise De Decca (1998), ao desconstruir a
redução do acontecimento da fábrica a um mero progresso tecnológico, ressalta a
intenção desta instituição em organizar e disciplinar o trabalhador, retirando-lhe o poder
sobre seu tempo livre e o saber sobre seu oficio.
Assim, não estão em jogo nas fábricas apenas as questões relativas a
acumulação do capital, mas também os mecanismos responsáveis pela
concentração do saber e, conseqüentemente, de dominação social (Op. cit.:39).
Seguindo a mesma trajetória de análise, temos o trabalho de Michelle Perrot (2001),
que vai retratar o operário na França do século XIX. Segundo a autora: “A mecanização
não responde a necessidades técnicas, mas basicamente disciplinares” (Op. cit.:19).
27
Tanto Michelle Perrot como De Decca vão construir suas análises a partir de
conceitos já referidos na obra de Michel Foucault. Ao analisar os mecanismos de poder
que sociedade utiliza para “vigiar e punir”, o autor vai nos dar um grande arcabouço
teórico para a observação das questões referentes a instituição fábrica.
Os estudos que problematizam a relação entre a fábrica e o bairro, também, podem
nos dar importantes paralelos de análise. Paulo Fontes (2004) nos traz a análise do caso
do bairro São Miguel Paulista, um exemplo de aglutinação feita ao redor da fábrica, a
Nitro Química, na década de 1950. Uma comunidade, em grande parte de migrantes
vindos do nordeste, que se estabeleceu em São Miguel Paulista e por décadas morou e
trabalhou no bairro. Esse exemplo nos interessa a partir da medida em que nos mostra
como a proximidade espacial entre local de moradia e local de trabalho servia para uma
maior imposição de disciplina aos trabalhadores e a um domínio do tempo dos operários
além dos muros da fábrica.
Já Regina Morel (2001) nos contempla com o estudo sobre a cidade operária de
Volta Redonda, onde a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), empresa estatal dirigida
por militares durante anos, até a década de 1970 controlava a moradia dos trabalhadores
assim como boa parte dos serviços públicos da cidade como conservação de estradas,
parques e ruas, limpeza urbana, transporte coletivo, serviço de polícia e bombeiros. A
disciplina das fábricas estava presente na vida cotidiana dos trabalhadores, o controle se
estendia aos bairros, atingindo as instâncias mais particulares da vida do operário.
A perspectiva de tratar o Jacarezinho como uma grande vila operária ou um
conjunto de vilas operárias fez com que uma bibliografia sobre o tema passasse a fazer
parte das preocupações teóricas. Nesse sentido, o trabalho de Sérgio Leite Lopes (1988)
vai nos ajudar a problematizar algumas questões. Ao nos apresentar um estudo de caso de
uma fábrica têxtil de Paulista - Pernambuco, o autor nos demonstra a implantação do
controle extra-fabril daquela fábrica com vila operária e nos aponta para a resposta dos
trabalhadores, que pode aparecer em formas mais sutis de contestação, as quais o autor
denomina de “micro-física da resistência”, fazendo alusão ao conceito de Foucault de
micro-física do poder. José Ricardo Ramalho (1989), no estudo da Fábrica Nacional de
Motores (FNM), também nos elucida algumas das questões importantes sobre a extensão
28
do domínio da fábrica sobre o local de moradia e das formas como os trabalhadores vão
se articular para resistir a esse processo.
1.3 - Metodologia da História Oral
Ao escrevermos sobre as memórias de um determinado grupo, corremos o risco
petrificá-las em nosso texto. Quando saímos do trabalho de campo, das entrevistas, da
transcrição temos que fazer um texto, obedecer padrões e “contar uma história” em
algumas páginas. Horas de fitas gravadas são sintetizadas na análise feita em algumas
páginas. Em grade medida, o grupo não se enxerga em nosso trabalho, pelo menos não
por completo. Mas esse não é o nosso objetivo, ao problematizar as questões estamos nos
propondo a analisar acontecimentos e não a reproduzir discursos. Entretanto, de que
maneira evitar a “petrificação” dessa memória ao escrevermos sobre ela? Talvez mais do
que “verdades” devemos nos preocupar em abrir possibilidades, em permitir que o leitor
interaja com o texto para que a interpretação dos fenômenos estudados não se esgote
nessa versão dos fatos. Como nos chama a tenção Henry Rousso:
Ela [a história da memória] permite resistir a essa outra ilusão nefasta
que consiste em acreditar que os historiadores são depositários da verdade... a
história pertence sobretudo aqueles que a viveram e que ela é patrimônio
comum que cabe ao historiador exumar e tornar inteligível a seus
contemporâneos (Rousso, 2001:98).
Escrevendo sobre a memória dos grupos ou sobre a história da memória, temos
mais mecanismos para percebermos que “exumamos” apenas parte da memória desses
atores sociais. O que temos em mãos não é a “verdade” dos fatos, não damos “voz” a
esses atores porque eles são os únicos portadores dessas vozes. O que fazemos é
interpretá-la, tornando-a acessível a um maior número de pessoas.
Ao escolhermos uma temática para trabalhar e ao definirmos o local do estudo, não
fazemos do lugar o que estamos estudando, não podemos reduzir o lugar as nossas
considerações sobre alguns de seus aspectos e sobre a própria memória que se articula
29
com o passado em seu devir incessante de acordo com as novas demandas do presente
(Geertz, 1978).
Para a realização das entrevistas temos que definir um grupo, escolher pessoas que
tenham características em comum e uma identificação com o bairro e com o movimento
operário. No entanto, a partir de que referencial podemos tomar um grupo aparentemente
tão heterogêneo como fazendo parte de uma mesma história e compartilhando de uma
mesma memória?
Costureiras, metalúrgicos, vidreiros, gráficos, trabalhadores da indústria química,
membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do Partido Comunista do Brasil (PC do
B), membros do Partido dos Trabalhadores (PT) (já na década de 1980), líderes
comunitários, dissidentes que foram para grupos de luta armada durante a ditadura,
militantes de orientação católica etc., de que maneira esses diferentes atores sociais
podem ser enquadrados em um mesmo grupo.
A memória compartilhada é que define esse conjunto aparentemente com poucas
ligações como um grupo com algum nível de integração. Essa relação só é possível no
espaço, é a partir desse elemento comum que esse grupo partilha sua identidade e a
construção de uma memória coletiva. No processo de construção da rede de atores, um
dos entrevistados perguntou se uma determinada pessoa dessa “história” já tinha sido
entrevistada. “Você já falou com fulano? Ele é muito mentiroso, mas vale a pena falar
com ele”. A pessoa a quem o entrevistado se refere fez e faz parte de um grupo político
diferente do seu, talvez, o maior fator de discórdia entre os dois. O tal “fulano” ainda hoje
morador do bairro é reconhecido mesmo por seus “inimigos” como uma grande
personalidade, alguém que compartilha da mesma história que os outros. Companheiros e
“inimigos” ao mesmo tempo, o espaço e suas histórias no movimento operário e
comunitário os torna guardiões de uma mesma memória e possuidores de uma identidade
em comum.
Para além da fábrica, o bairro se torna um importante ambiente que amplia e
consolida as relações entre esses operários. A identidade desse grupo é assegurada não
apenas por sua formação de classe, tendo a identificação com o bairro com um importante
paralelo. O local de moradia e de trabalho da maioria dos operários do complexo
industrial do Jacaré é o mesmo, tendo tal espaço para eles um significado bem amplo.
30
No bairro do Jacaré temos um espaço antes ocupado por um grande complexo
industrial, onde as chaminés das fábricas representavam sinal de trabalho, atividade
econômica, luta sindical, movimentos sociais etc. O complexo industrial faliu, as
indústrias saíram da região e o espaço não foi alvo de uma política pública de preservação
do patrimônio industrial, nem tampouco de revitalização do bairro. O que temos é um
conjunto de prédios, alguns invadidos para servirem de moradia, outros simplesmente
abandonados. A chaminé da fábrica Café Moinho de Ouro permanece de pé, com o nome
da fábrica indicando o que aquele símbolo representava. Atrás dos altos muros de um
estacionamento, com aparência de fábrica ainda é possível para um transeunte mais
observador ler a inscrição “Fábrica de Parafusos Águia”, nome da fábrica que antes
ocupava o espaço do estacionamento. De que maneira esse espaço degradado, porém vivo
permanece interagindo com a memória desses operários?
Para tentarmos compreender os significados da memória que esse grupo
compartilha e de que maneira ela é reconstruída nesse espaço do presente, utilizaremos a
metodologia da história oral. A escolha da metodologia da história oral como base de um
trabalho se dá, em geral, pela perspectiva de perceber como homens e mulheres
constroem e narram suas memórias a partir de suas experiências de vida de acordo com o
enfoque de cada pesquisa.
O uso da História Oral pode ser de enorme valia quando tratamos da história e da
memória de setores “excluídos” e “marginalizados” de nossa sociedade. Como assinala
Michelle Perrot: “Muitas vezes observou-se que a história das classes populares era
difícil de ser feita a partir de arquivos provenientes do olhar dos senhores” (Perrot,
2001:186).
A metodologia da história oral parece se colocar a dispor dessa questão, não só por
uma falta de documentos, em alguns casos, mas por buscar uma análise das
representações desses “excluídos” a partir da sua própria concepção do que viveram, que
nos parece adequado a utilização dessa metodologia. Ao tentarmos compreender como se
forma o imaginário de um grupo, suas significações mais importantes, sua própria
imagem, não podemos deixar de admitir que sua identidade é melhor representada por
eles próprios do que por qualquer outro olhar. Quando temos “o olhar do senhor”,
estamos lidando com fontes que refletem uma percepção, muitas vezes distante do que o
31
próprio grupo concebe como sendo sua identidade. Essas fontes não são por isso “falsas”,
ou de uso dispensado, elas podem representar importante conjunto, mas o tipo de trabalho
a ser realizado será outro.
Apesar da nova dimensão que os estudos a partir da metodologia de história oral
trazem ao campo das ciências sociais, como já demonstrado, essa metodologia não deixa
de sofrer criticas, a maioria delas enfatizando a sua subjetividade. No entanto, o objetivo
de quem trabalha com história oral não é fazer um “resgate” dos acontecimentos
históricos, mas sim descobrir como um determinado período foi compreendido por um
indivíduo ou por um grupo através da memória.
A preocupação com uma “verdade” nos depoimentos orais não faz mais parte das
determinações que balizam a prática da história oral. As distorções da história, presentes
nos depoimentos orais deixam de ser um problema e passam a constituir uma rica fonte
de análise.
... acredito que entre o “falso” e o “verdadeiro”, entre aquilo que o relato
tem de mais solidificado e de mais variável, podemos encontrar aquilo que é
mais importante para a pessoa (Pollak, 1992).
Se o objetivo de que trabalha com história oral é problematizar aquilo que é mais
importante para a pessoa, é justamente entre o “falso” e o “verdadeiro” que podemos
analisar nosso objeto de pesquisa. Por outro lado temos a preocupação da discussão de
uma história mais social, como destaca o trecho abaixo.
Por trás dessas críticas estava a preocupação de que a democratização do
ofício do historiador fosse facilitado pelos grupos de história oral, além do
menosprezo pela aparente “discriminação” da história oral em favor das
mulheres, dos trabalhadores e das comunidades minoritárias (Thomson,
2001:66).
Uma ampliação dos enfoques históricos, bem como a democratização do oficio do
historiador e dos cientistas sociais não parece fazer parte da intenção de alguns grupos.
Por esses ou outros motivos, a metodologia da história oral ainda é alvo de críticas.
Entretanto, essa metodologia já conquistou seu status como meio de pesquisa. Não
32
podemos, portanto, supervalorizar as criticas a ponto de inviabilizar a ampliação da
discussão sobre essa metodologia, discussão essa que é bem mais ampla que os temas
apontados pela crítica.
No entanto, se faz necessário que a história oral seja utilizada em parceria com
outras fontes e metodologias. Assim, a partir dos depoimentos e da análise da memória,
poderá ser travado um diálogo com a historiografia referente ao tema pertinente ao
trabalho.
A rede de entrevistados vem sendo construída desde 2002, quando as primeiras
entrevistas foram feitas para a elaboração da monografia de bacharelado. De início,
tentou-se atingir uma diversidade dos atores sociais entrevistados, considerando pessoas
de diferentes ramos da produção e de diferentes filiações políticas. A rede de
entrevistados foi formada a partir da indicação dos próprios entrevistados, tendo como
eixo orientador a prioridade definida pela pesquisa. Em uma nova etapa, já em 2005,
reiniciamos as buscas por pessoas que contribuíssem para a realização da pesquisa.
Seguimos então com uma nova proposta de perfil dos entrevistados. O objetivo foi
entrevistar não só ex-operários, mas moradores do bairro ou ex-moradores que teriam
participado do movimento comunitário e vivenciado sua união com o movimento
operário.
Num primeiro momento, algumas dificuldades prejudicaram a realização do
trabalho. Algumas pessoas se negaram a conceder entrevista, sendo que tal negação não
vinha de forma direta. Em geral, a falta de tempo era alegada como fator a impossibilitar
as entrevistas. Sendo a entrevista: “...uma relação social entre pessoas” (P. Thompson
1998), e não só a entrevista, mas todo o processo para a sua realização e os contatos que
se dão após a mesma por isso, apesar de nos parecer obvio atentar para tal fato, é
importante problematizar as estratégias de aproximação dos entrevistados e da realização
das próprias entrevistas. Não podemos esquecer que o nosso documento interage conosco
durante todo o processo. Tanto que para fazermos a análise das entrevistas e inseri-las no
contexto do trabalho temos que nos distanciar do sabor do café que marca a nossa
memória da imagem dos simpáticos velhinhos que nos recebem em seus espaços,
cedendo seu tempo para as nossas inquietações.
33
A partir de Julho de 2005 as primeiras entrevistas foram feitas. Buscando
problematizar novas questões, foi dada ênfase a uma busca de personagens que
estivessem ligados a sindicatos com forte atuação no bairro. Num primeiro momento, o
Sindicato dos Vidreiros e o Sindicato dos Gráficos foram alvos de visitas e palcos da
realização de algumas entrevistas. Nesse sentido, essas entrevistas demonstraram um
outro perfil do trabalhador do bairro: trabalhadores que não moravam na região e que
construíram uma memória particular em relação ao bairro e ao movimento operário. Em
uma nova etapa da pesquisa, iniciamos o trabalho de campo no Sindicato dos
Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com o objetivo de entrevistar metalúrgicos que tenham
trabalhado no bairro do Jacaré ou tenham sua atuação sindical naquela área. Também
foram entrevistados moradores do Jacarezinho e atores que tiveram algum tipo de atuação
política na região.
De acordo com a metodologia de trabalho adotada as falas dos entrevistados não
sofreram nenhum tipo de alteração, buscando reproduzir o mais próximo possível da fala
original. Quanto aos nomes dos entrevistados, para preservá-los optou-se por evitar expor
a identidade dos mesmos.
1.4 - Perfil dos entrevistados
1 - Moradora do Jacarezinho desde os três anos de idade, quando veio de
Pernambuco para o Rio de Janeiro. Ela nunca trabalhou nas indústrias da região. No
entanto, desde de muito nova militou no movimento comunitário, aproximando-se do
movimento operário e dos grupos de esquerda dentro do bairro. Como professora deu
aula dentro do Jacarezinho, no Colégio da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora (Escola do
Padre Nelson) e no Colégio Imaculada Conceição (Colégio da GE).
2 - Nascido no Jacarezinho, onde viveu boa parte de sua vida, mais de 50 anos,
estando apenas um pequeno período morando fora do bairro. Hoje ele ainda é morador do
Jacarezinho. Começou a trabalhar aos 14 anos nas indústrias do bairro, logo vindo a ser
operário de uma das maiores empresas da região, a GE. Militante do Sindicato dos
34
Metalúrgicos durante anos, agora está afastado. Hoje ele trabalha em uma ONG dentro do
Jacarezinho.
3 - Seu primeiro emprego foi no Sindicato dos Vidreiros como contínuo. Há mais
de trinta anos no Sindicato conhece muito bem sua história, é o principal “arquivo” desta
instituição. Começou a trabalhar no Sindicato quando este ainda funcionava na Praça da
Bandeira, acompanhando toda a campanha para sua transferência para o bairro Jacaré.
4 - Dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos. Ele nasceu no Jacarezinho, onde
morou por mais de quarenta anos. Por motivos pessoais há dois anos saiu do bairro.
Operário desde os nove anos de idade, conhece muito bem o cotidiano dos trabalhadores
na região. Hoje, mesmo fora do bairro, mantém sua militância político-sindical na área.
5 - Nasceu no Rio de Janeiro, no Estácio, não tendo morado no Jacaré ou
Jacarezinho. Profissional gráfico, trabalhou em uma indústria no Jacaré por cerca de dois
anos, depois voltou por um curto período. Ainda hoje atua no Sindicato dos Gráficos,
agora no Departamento dos aposentados.
6 - Migrante de Pernambuco e operário da indústria gráfica. Trabalhou pouco tempo
no Jacaré. Nunca morou no bairro, tendo uma visão sobre o mesmo que se assemelha a
do outro trabalhador gráfico. Também atua no Departamento dos aposentados do
Sindicato dos Gráficos.
7 - Diretor do Sindicato dos Vidreiros, através de sua entrevista podemos ter um
panorama da situação atual do sindicato e de seus filiados. Há pouco tempo na categoria
suas lembranças do bairro de décadas passadas são em grande medida herdadas de
militantes mais velhos do Sindicato.
8 - Ex-militante Sindical em Volta Redonda, cidade onde morou durante boa parte
de sua vida. Hoje trabalhando no apoio a implantação de cooperativas ele vai nos falar de
sua experiência nacada de 1990 ao implantar uma cooperativa com ex-trabalhadores
da Fábrica de Parafusos Águia. Esta fábrica era uma das mais importantes metalúrgicas
do bairro do Jacaré. Através de sua entrevista, podemos ter um perfil desses trabalhadores
e a dimensão dos embates com o Sindicato dos Metalúrgicos, contrário a decisão dos
trabalhadores de montar a cooperativa.
35
9 – Ex-militante do Sindicato dos Metalúrgicos, morador do bairro desde 1999,
quando veio para a região se refugiando da perseguição política que sofria em Niterói,
onde morava. Além disso, escolheu a região com o objetivo de criar as bases do PC do B
no Jacaré, área segundo ele de grande importância para o partido por conta da grande
concentração de operários. Hoje é um atuante militante do PT.
10 - A entrevistada fala com orgulho de ter nascido e morar até hoje no Jacarezinho,
mas de 50 anos no bairro. Costureira desde os 14 anos aprendeu a profissão na fábrica.
Filiada ao Sindicato das Costureiras, mas crítica a essa instituição que ela denomina de
“pelega”. Ainda hoje exerce a profissão em uma cooperativa de costura no próprio bairro.
11 – Nasceu no Espírito Santo, depois migrou para o Paraná e aos 11 anos chegou
ao Rio de Janeiro, indo para o Jacarezinho. Começou a trabalhar, na indústria têxtil, no
bairro, aos 14 anos. Costureira há mais de 30 anos, ainda hoje exerce a profissão na
mesma cooperativa citada anteriormente.
12 – Morador de Higienópolis, bairro próximo do Jacarezinho, o que faz dele um
bom conhecedor da região. Militante do Sindicato dos Metalúrgicos, atuou naquela área,
principalmente na GE, onde chegou a trabalhar por um ano.
13 - Morador do bairro do Jacaré há mais de 50 anos e ex-operário de indústrias do
bairro, onde exercia a profissão de contador. Ele vai nos contar de suas primeiras
lembranças do bairro e de como as transformações urbanas afetaram o dia-a-dia dos
moradores; além de relembrar o tempo em que trabalhou no bairro.
14 - Ex-operário da Fábrica de Parafusos Águia. Morador do Jacaré, trabalhou na
fábrica por sete anos. Hoje ocupa o cargo de preside a Cooperativa de Produção de
Parafusos.
15 – Ex-operário da Fábrica de Parafusos Águia, onde trabalhou por 26 anos.
Apesar de não morar no Jacaré, conheceu bem o dia-a-dia e a mobilização operária na
região. Hoje ocupa o cardo de diretor financeiro da Cooperativa de Parafusos.
16 – Migrante de Alagoas foi morar Praça do Carmo quando chegou ao Rio de
Janeiro. Desde de os anos 60, quando se casou, passou a morar no Jacarezinho. Essa dona
de casa foi uma ativa militante política, no Jacarezinho, junto com seu falecido marido.
36
17 – Jornalista e político atuante no cenário carioca. Foi Secretário Municipal de
Desenvolvimento Social por duas vezes, teve forte atuação no Jacarezinho. Sua base
eleitoral para as eleições à Câmara dos Vereadores, onde assume seu quarto mandato em
2007, também se concentrava no Jacarezinho.
18 – Morador do Jacarezinho e operário no bairro. Ex-militante do Partido
Comunista, esse trabalhador concentrou suas atividades no MDB após a implantação do
bipartidarismo em 1965. Importante líder comunitário, circulava entre o Jacarezinho e a
Federação Estadual das Favelas.
Três das falas citadas no texto são resultado da transcrição de depoimentos de
moradores do Jacarezinho proferidos no I Seminário de Construção do Centro de
Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho, ocorrido nos dia 02 e 03 de
setembro de 2006 na própria favela.
7
O Seminário foi realizado por uma Organização
Não Governamental, o Grupo Herança Negra. Dentre as pessoas que deram depoimentos
durante o Seminário, uma já havia sido entrevistada durante a pesquisa.
8
7
O objetivo do encontro foi: “organizar um seminário na intenção de articular e mobilizar moradores e
simpatizantes da comunidade em prol da criação do Centro Histórico de Referência da Memória do
Jacarezinho, a fim de estabelecer ali um ponto de resgate e pesquisa da memória e auto-estima da
comunidade. O Centro de Memória é definido como: “um espaço dinâmico e capaz de guardar e preservar
o orgulho de uma comunidade, figuras que são e/ou foram importantes para o crescimento e
desenvolvimento dela e mais, o espaço de referência aos mais novos. Espaço político de formação de
idéias”. Projeto de realização do I Seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da
Comunidade do Jacarezinho. s/d. Mimeo.
8
Apesar de não entendermos essas falas como depoimentos de história oral, seu conteúdo é relevante para a
pesquisa e foi incorporado problematizando o contexto que envolveu a produção dessa fonte.
37
Capítulo II
Histórias e memórias de um bairro operário
...a formação de uma classe é um processo espacial, em que identidades
locais e identidades de classe se podem fundir e combinar (Savage, 2004:41).
No bairro do Jacaré, o fato de trabalho e moradia ocuparem o mesmo espaço físico
faz com as identidades locais, entendidas como as relações travadas no ambiente privado
da casa estejam profundamente interligadas com o espaço da rua, do trabalho etc. Neste
caso particular, “casa” e “rua” se fundem de forma muito incisiva. Portanto, a formação
da identidade do grupo estudado se faz a partir dos laços entre esses dois espaços. E tal
afirmação é válida não apenas para os trabalhadores do bairro que se inseriam na
dinâmica industrial. Os moradores que não estavam diretamente vinculados ao trabalho
nas fábricas relatam suas experiências junto ao movimento operário no bairro ou mesmo
a importância do apito das fábricas, que regulava seus horários como um relógio, ou
ainda o cheiro do café e do chocolate que permeia até hoje o imaginário de muitos
moradores.
Partindo da constatação da importância do espaço para tal grupo, optamos por
retomar brevemente a história do desenvolvimento desta região. Em um cenário do Brasil
Colônia, os primeiros núcleos de povoamento da área vão delinear o que seria no século
XX um espaço industrial e operário.
2.1 - Histórico do bairro
O desenvolvimento da região se dá a partir da construção do Engenho Novo dos
Jesuítas. Para traçarmos um histórico da formação do bairro do Jacaré e compreendermos
as transformações que levaram um espaço de produção agrícola a se transformar em uma
área industrial, é preciso remontar à criação da Cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro.
38
Um dos motivos precursores da criação da cidade de São Sebastião foi à fundação
de um núcleo francês em seu território em 1555. Os franceses já exploravam as terras da
colônia portuguesa, mas não com a pretensão de fundar uma colônia. A preocupação com
a posse da terra precipitou a ação de criação da Cidade de São Sebastião em 1565
(Wehling, A. e Wehling, J., 1999).
Sob o comando de Estácio de Sá, uma expedição foi formada com o objetivo criar a
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A distribuição de terras da nova cidade dar-
se-ia através de sesmarias. Uma das primeiras sesmarias a ser doada foi entregue à
Companhia de Jesus. As terras correspondiam a uma área que ia das proximidades de São
Cristóvão até Inhaúma. Já em 1559, um engenho dos jesuítas, mais tarde conhecido como
Engenho Velho dos Jesuítas, se encontrava funcionando na área próxima a São Cristóvão
(Cavalcanti, 2004).
Em 1707, a construção de um novo engenho, mais afastado do centro da cidade, vai
dar nome a uma grande área que ficará conhecida como Engenho Novo dos Jesuítas.
(Gerson, 2000). A região do Engenho Novo será subdividida em vários bairros que hoje
fazem parte da Zona Norte do Rio de Janeiro, entre eles o bairro do Jacaré.
Naquele período, a cidade do Rio de Janeiro teve dois importantes inimigos, os
franceses e os tupinambás. Os franceses invadiram o Rio de Janeiro nos anos de 1555,
1710 e 1711. Na primeira invasão a expulsão definitiva dos franceses só se deu com a
criação de uma cidade sob o comando português, como já referido. Na segunda invasão,
após uma recuada da entrada da baía de Guanabara, os invasores investiram suas tropas
pelo interior da cidade. Passando por Camorim, Jacarepaguá, Engenho Novo e chegando
ao Engenho Velho, de onde partiram para atacar o centro da cidade. Os franceses foram
expulsos, porém, o medo de novas invasões permeava o pensamento de governantes e
habitantes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Esse episódio deixa evidente a
deficiência na defesa do interior da colônia.
Com a expulsão dos Jesuítas do Brasil em 1759, as terras, na cidade do Rio de
Janeiro, que pertenciam a companhia (o Engenho Velho e o Engenho Novo), foram
postas em leilão e arrematadas, em sua maior parte, pelo Sargento-mor Manuel Silva e
Castro. As terras passaram à Maria Dulci, filha do Sargento-mor Manuel Silva e Castro e,
mais tarde, ao Camarista Meyer, um sobrinho de seu falecido marido (Op. cit.).
39
Nas cercanias do Engenho Novo ficavam, a Estrada Real de Santa Cruz (hoje
Avenida Dom Helder Câmara, antiga Avenida Suburbana.), a Praia Pequena e o Arraial
de Benfica. Essas localidades tiveram grande importância comercial no período do final
dos setecentos em diante. Ali se estabeleceram trapiches e grandes armazéns, que
recebiam gêneros alimentícios do interior da capitania. Pela importância estratégica da
região, foi construído um Fortim num dos pontos mais altos do morro do Jacaré (antigo
morro das Palmeiras), nas terras do Engenho Novo (Santos, 1947). A oferta de gêneros
alimentícios poderia abastecer inimigos que invadissem a cidade por aquele ponto. Outra
preocupação era com a possibilidade de, a partir daquela área, se chegar com facilidade a
São Cristóvão, aproximando-se do centro da cidade. Esta estratégia de invasão da cidade
pelo interior foi posta em prática pelos franceses em 1710.
Temeroso de um ataque de navios espanhóis e franceses, o Conde de Resende, que
começou a governar a capitania em 1790, providenciou a construção de Fortes de
Fachina. Entre eles foi construído no Engenho Novo o fortim
9
, que mais tarde se
chamaria Caetano de Madeira. A edificação foi construída, provavelmente, entre os anos
de 1793 e 1795. Para comandar esses fortes foram nomeados capitães, tenentes e alferes,
sem patente, os quais compravam o título de oficiais de fortaleza. Caetano Madeira deve
ter sido um desses oficiais improvisados, comandando assim o Fortim. Nos livros de
registros de oficiais da tropa regular, das ordenanças e milícias, segundo Noronha Santos,
não é encontrada nenhuma referência ao nome de Caetano Madeira. Em 1826, numa
sessão do Senado o Fortim ganha o nome de Caetano Madeira, provavelmente seu nome
foi transmitido por tradição oral até aquela data.
Em 1801, o Conde de Resende sai do governo e os fortes construídos no seu
mandato foram desguarnecidos. A documentação consultada por Santos (1947) indica
uma efêmera utilização do Fortim. Uma das prováveis causas da desativação dos fortes
seria uma diminuição do risco de invasão da cidade.
A construção do Fortim evidencia a importância da região, que vem se
caracterizando ao longo do século XVIII como importante entreposto comercial. As
9
Esse fortim ficava localizado no terreno que hoje pertence ao Instituto São Francisco de Sales (Rua Luiz
Zanchetta, Riachuelo). Nesse espaço além da Igreja temos um colégio que pertence aos Salesianos. O que
restava do fortim (duas guaritas cilíndricas de pedra e tijolo, mais uma pequena parte do muro que
sustentava essas guaritas) foi tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). Hoje as guaritas não mais existem, restando apenas parte do muro.
40
atividades comerciais na região continuaram sendo de grande relevância, nos anos
seguintes. De acordo com uma vereança de 1826, era exigido urgente conserto na Estrada
Real de Santa Cruz, também chamada Estrada Geral que segue para Minas, reiterando as
providências já solicitadas por autoridades municipais no início daquele ano, que
determinavam urgentes aterros até as proximidades do Fortim Caetano Madeira (Op. cit.).
O ano de 1808 marca uma nova fase de desenvolvimento da cidade do Rio de
Janeiro. A vinda da família real para o Brasil vai trazer grandes avanços para a cidade.
Entre as medidas importantes tomadas pela corte no território da colônia, destaca-se o
alvará de 1° de abril de 1808 que abole toda a proibição que existisse no Brasil e nos
demais domínios ultramarinos o desenvolvimento da atividade industrial. (Neves e
Machado, 1999). Na verdade, o Brasil terá que esperar mais alguns anos para ter um
crescimento considerável de suas indústrias. Para a região do antigo Engenho Novo, a
vinda da família real vai representar maior desenvolvimento da área, que receberá parte
da nova população, requalificando áreas como São Cristóvão, que irá abrigar a família
real, e as regiões vizinhas, como o Engenho Novo.
Inaugurada em 1858, a Estrada de Ferro Real D. Pedro II vai caracterizar uma nova
etapa na história da cidade. Dois anos depois, são inauguradas as linhas do subúrbio, o
que será um grande impulso ao desenvolvimento dos bairros cortados pela linha
férrea.(Gerson, 2000). Entre os bairros cortados pela linha férrea, está o Jacaré. Aos
poucos, essa região caracterizada pela produção agrícola vai cedendo lugar ao
desenvolvimento industrial. Nos primeiros anos da década de 1900, a paisagem do Jacaré
já fará referência às indústrias. Passaremos agora a descrever um cenário que em poucos
anos deixa de abrigar fábricas isoladas e se transforma em um grande complexo
industrial.
2.2 - Primeiras indústrias: marcos da memória operária
A partir primeira metade de século XX, com o estabelecimento de indústrias na
região da Avenida Dom Helder Câmara, o Jacaré, passa a ser urbanizado e ocupado. É
nesse período que surge, no bairro, a favela do Jacarezinho. Os cheiros vindos das
41
indústrias, os operários circulando nas ruas e os apitos das fábricas passam a definir esse
cenário.
Já na década de 1920, grandes empresas como a General Electric (GE)
10
ocupavam
a região e empregavam mais da metade dos moradores do Jacarezinho. Essa empresa é
um marco fundamental para a construção das memórias dos moradores e operários desse
espaço.
Mapa do Jacarezinho. Em destaque à fábrica da GE. Fonte : Mapas - Armazém de Dados -
www.rio.rj.gov.br.
Em geral, a GE é citada nas entrevistas, seja por ex-operários da indústria ou apenas
por aqueles que a consideram como parte da história da região. O fato de ter sido uma das
primeiras grandes indústrias a se instalar na área faz da empresa uma referência para o
desenvolvimento da região. A GE desempenhou e desempenha um papel importante
junto ao Jacarezinho, muito além de fornecer trabalho para a mão-de-obra da região.
10
A General Electric é uma indústria multinacional com atividades em mais de 100 países. Em 1919, a
empresa passa a investir na América Latina e instala sua primeira fábrica no Brasil, na Zona Norte do Rio
de Janeiro. Apesar de a localização da fábrica fazer referência a Maria da Graça, seu muro faz divisão com
o Jacarezinho. A GE sempre esteve presente no Jacarezinho através da oferta de empregos, projetos sociais
e a própria cessão de áreas de lazer (campo de futebol) que é utilizada majoritariamente pelos moradores do
Jacarezinho.
42
A GE tava pronta pra servir a gente... e por aí em diante a GE tem sido uma
empresa, a mãe do Jacarezinho até hoje. Eu acredito, se continuar vai ser bom,
mas se ela sair vai ser uma tristeza muito grande pra gente aqui dentro.
11
(ex-
operário e morador do Jacarezinho, grifos meus).
A fala acima nos dá um pouco da dimensão da importância dessa empresa dentro do
Jacarezinho e do receio em relação a sua possível saída do bairro.
12
Ex-funcionário da
GE, apesar das moderações em algumas situações, como atitudes tomadas por dirigentes
da empresa durante as greves, o entrevistado nos ressalta o caráter positivo da relação
travada entre a empresa e o Jacarezinho. Tamanha sua admiração pela empresa que, como
podemos observar em sua fala, confere à GE o título de “mãe” do Jacarezinho.
13
Poderíamos nos perguntar se o Jacarezinho tem um “pai”, diríamos que entre os marcos
da história daquele espaço, o mesmo entrevistado nos fornece mais esse personagem que
como veremos adiante, também faz parte da memória da região
14
.
Mas como o Jacaré e o Jacarezinho cresceram e se transformaram ao longo de quase
80 anos de história? Se nas primeiras décadas de sua constituição a favela ainda não
apontava como um grave problema para a cidade do Rio de Janeiro, nos anos 1950 essa
questão fará parte dos principais debates sobre urbanização e habitação. É nesse contexto
que o Jacarezinho vai enfrentar as tentativas mais incisivas de remoção.
Se acompanharmos os noticiários de jornal da década de 1950 e 1960 podemos
perceber uma crescente preocupação com relação à questão da habitação no Rio de
Janeiro, tendo o tema “favela” recebido considerável destaque. Nesse período, uma
parcela da Igreja se apresenta como ator principal na tentativa de legitimar as habitações
11
Entrevista concedida à autora em 27/07/05.
12
Após a demissão de 358 funcionários da fábrica da GE no Jacarezinho, em Janeiro de 2005, aumentou a
discussão da possível saída da empresa da região. “GE demite 358 no Rio e sindicato diz que outros 700
estão sob ameaça”. O Globo 07 de janeiro de 2005.
13
Como exemplo de projetos sociais desenvolvidos pela GE no Jacarezinho temos o “Crianças Saudáveis,
Futuro Saudável". “A GE Elfun Volunteers, uma organização de voluntários da General Electric Co. -
através de seu braço filantrópico, a GE Foundation - investiu R$ 170 mil para jogar luzes do saber e da
auto-estima em crianças de 4 a 14 anos da comunidade, vizinha à fábrica de lâmpadas que a empresa
mantém desde 1920 em Maria da Graça e que é o primeiro negócio da GE no Brasil. Segundo a presidente
da GE Elfun Volunteers, Flávia Moura, o programa sócio-educativo que começa este mês e deve durar um
ano beneficiará cerca de dois mil alunos da rede pública de ensino. O objetivo é integrar ao currículo
escolar temas como cidadania, auto-estima, higiene, nutrição e saúde preventiva”. In : “Jacarezinho: foco
de luzes do saber e da auto-estima” – O Globo, 06 de setembro de 2003.
14
Padre Nelson Carlos Del Mônaco, pároco da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora é tido por algumas
pessoas como o “pai” do Jacarezinho. No capítulo IV voltaremos a falar desse personagem que faz parte da
memória coletiva dos entrevistados.
43
em morros da cidade. Dom Helder Câmara, através da Cruzada São Sebastião, apóia a
fixação dos moradores em favelas e a urbanização das mesmas. Em artigo publicado em
dezembro de 1955, sem autoria, vemos uma contundente defesa desses espaços e de seus
moradores, atribuindo a culpa de sua situação ao poder público. O texto abaixo foi escrito
em resposta ao debate na Assembléia Legislativa ocorrido dias antes e também publicado
no Jornal o Globo.
15
Ninguém mora numa favela por prazer ou por inclinação. É necessário
que o obrigue a isso. Primeiro porque não ha habitação em número suficiente,
segundo porque os preços dos aluguéis são por demais elevados, terceiro
porque o abandono que esta relegado o homem do campo facilita a sua
migração em busca de centros onde o ganha pão não parece tão difícil.... a
favela é antes de tudo uma questão social. É só dentro desse aspecto é que
deve ser encarada e resolvida... não se pode negar o valor nesse terreno, à obra
pioneira da Fundação Leão XIII,
16
sob o influxo entusiasta de D. José Távora.
Como será injusto levantar restrições a essa notável “campanha de
humanização das favelas”, que tem “ a frente o verdadeiro apóstolo que é D.
Helder Câmara.
17
Defendendo a permanecia dos favelados nas áreas já ocupadas e a melhora nas
condições de vida dessas pessoas, esse grupo encontra resistência entre diversos setores
da sociedade. A reportagem continua criticando os que diferem da posição de apoio às
favelas.
Há um projeto na câmara concedendo crédito de 50 milhões de cruzeiros
à “cruzada São Sebastião”, como também se chama o movimento. Quando o
assunto chegou ao plenário, ao lado dos louvores do Deputado Medeiros Neto,
surgiram reparos dos deputados Osvaldo Lima Filho e Josué de Castro, um
considerando a situação do trabalhador do campo mais aflita e outro batendo
na mesma tecla, dizendo que, enquanto não se der rurícola condições que o
fixem no campo, a questão permanecerá insolúvel. Sem dúvida, há forte
ligação entre os dois problemas. Mas não se pode inferir que as favelas sejam
abandonadas até que os campesinos tenham seus problemas solucionados.
18
15
“Debate sobre o projeto que abre crédito especial para auxiliar a Cruzada São Sebastião na urbanização
de favelas do Distrito Federal”. O Globo, 10 de dezembro de 1955.
16
A Fundação Leão XII foi criada em 1947 para prestar serviços de assistência social aos favelados do Rio
de Janeiro, sendo vinculada a Igreja Católica. Em 1963, torna-se autarquia do Estado ligada à Secretaria de
Serviços Sociais. A partir de 1975 com a fusão do Estado da Guanabara, a Fundação Leão XIII ficaria
subordinada à Secretaria de Governo. (Diniz, 1982)
17
“A favela, questão social”. O Globo, 14 de dezembro de 1955. Capa.
18
Idem.
44
Como podemos perceber, a questão da migração entre em pauta na discussão sobre
moradia e favela no Rio de Janeiro. Outras reportagens relacionam a migração desse
período com a crescente ocupação dos morros e terrenos vazios da cidade. Quase 10 anos
depois da publicação da reportagem citada acima, a questão das favelas continua em
pauta. O surgimento de mais uma favela recebe destaque na imprensa.
A nova favela fica próxima á torre da rádio Globo, é quase toda formada
por nortistas e nordestinos, entre os quais, a metade pelo menos, é de crianças.
Os primeiros barracos foram levantados por um operário do Jacaré Sr.
Alberano Macedo, que se recusou a ir para a Vila Kennedy
19
. Depois
chegaram os retirantes de Pernambuco, Alagoas e Maranhão que ficaram por
ali porque não tinham sequer emprego na cidade.
20
Esse trecho é interessante porque mostra como o problema persiste, e por outro lado
aponta a presença de um operário do Jacaré na ocupação dessa nova favela. A resistência
a se afastar do trabalho certamente foi uma das motivações para sua fixação na Avenida
Brasil. Outro ponto importante é o destaque da falta de emprego entre os novos
moradores da cidade. Como veremos mais adiante, as falas dos entrevistados sempre nos
remetem para um passado de abundância de empregos. A partir da observação da
condição de alguns migrantes podemos, presumir que essa oferta não era tão expressiva
como algumas falas indicam.
Para os moradores do Jacarezinho, a questão da fixação no morro passou por
disputas e acirramentos entre moradores e o poder público. Também nesse espaço da
cidade se faz notar a presença da Igreja Católica e da Fundação Leão XIII. Um dos
marcos na memória dos moradores como uma real possibilidade de fixação na área dá-se
a partir da construção da primeira Igreja Católica. A ordem dos Salesianos, já há algum
tempo no bairro, funcionando dentro da Fundação Leão XIII, dá inicio à construção do
prédio na primeira metade da década de 1960. A importância política e principalmente
simbólica dessa obra no alto do morro é narrada pelos entrevistados.
Eu cresci vivenciando o medo da remoção do pessoal, vão tirar a favela,
vão tirar a favela, vão tirar a beira do rio. Se tirar a beira do rio, vão tirar aqui
em cima também. Quando a Igreja se fixou, é essa a visão que eu tenho, eu
19
O bairro de Vila Kennedy foi inaugurado pelo governador Carlos Lacerda em janeiro de 1964. As casas
populares foram construídas para abrigar moradores removidos de favelas do centro do Rio de Janeiro.
20
“Nova favela cresce na avenida Brasil e ganha gente sem ser notada” – O Globo, 10 de janeiro de 1966.
45
mantenho ela com todas as críticas que tenho ao padre Nelson e o pessoal aos
outros padres ali, mas quando o pessoal viu onde era o grande lixão da favela,
todo mundo que morava na parte meia e alta do morro jogava o lixo ali, que a
população participou daquele mutirão que limpou, que a obra começou e a
Igreja ficou pronta, na cabeça das pessoas, eu sei porque foi a cabeça de meu
pai e de vizinhos ali, se a Igreja tá ali e pela primeira parte da Igreja que é a
parte de baixo, que tem o salão, se ela já estava daquele tamanho com a
perspectiva de ampliar e ai trouxeram o desenho de como seria Igreja, essas
coisas, se a Igreja tá no meio do morro, tá sendo construída e não vai sair a
minha casa também não vai sair. Aí eu presenciei o esforço das pessoas de
melhorar a casa. Aí de repente a gente viu um monte de casa assim de tijolo,
porque a maioria, a minha casa mesmo era de estuque.
21
(professora e ex-
moradora do Jacarezinho).
A fixação da Igreja, uma das primeiras casas de alvenaria no morro, pressupõe a
fixação dos próprios moradores. Isso funciona de maneira prática porque, de fato, a Igreja
certamente acreditava na possibilidade de permanecer na região. E de forma simbólica, os
moradores incorporam o discurso de permanência na área, desta vez com muito mais
fôlego e com um importante álibi, a construção da Igreja.
Paralelamente à construção da Igreja, os moradores criam estratégias de
organização e sobrevivência no espaço ocupado. A resistência dos moradores é destacada
por alguns lideres comunitários da época, que fazem questão de ressaltar a importância
política do Jacarezinho.
O Jacarezinho politicamente, eu considero o Jacarezinho, talvez não
agora, mas agora mesmo, politicamente a comunidade favelada mais
desenvolvida do Rio de Janeiro ou talvez do Brasil. Aqui nasceram grandes
iniciativas comunitárias. Aqui tem a Sueli que é minha filha, foi secretária na
associação de moradores isso em 75, 79. ali nós desenvolvemos um trabalho,
ali na associação de moradores, naquela época, porque o Jacarezinho era
carente de muita coisa, por exemplo aqui a gente não tinha esgoto, tava até
contando pro cara ali. Você morava no Jacarezinho, tinha muita gente, mas
não tinha urbanização, nem asfalto nem nada. Então de tanto as pessoas que
passavam de lá pra cá, criavam aquela lamasinha fininha que não havia como
você não se sujar. E aí a gente saia pra trabalhar, pra passear, todo mundo
levava o seu paninho na mão que é pra chegar na saída lá fora pra pegar a
condução limpar o calçado.
22
(ex-operário e ex-morador do Jacarezinho)
21
Entrevista concedida a autora em 12/07/05.
22
I Seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
46
Antes mesmo dos Salesianos começarem a desenvolver sua obra, os moradores
lutavam por sua permanência no Jacarezinho. No trecho abaixo temos a discrição das
primeiras mobilizações para a permanência do Jacarezinho, antes do início da construção
da Igreja Católica. Apesar de ainda não participar da luta, esse ex-operário nos conta
sobre esse período.
...qualquer cidadezinha que você chega, a primeira coisa que você vê é
uma Igreja, tem sempre uma Igreja, é a primeira coisa que coloca é uma
Igreja... e aqui não foi diferente. A primeira Igreja Evangélica que teve aqui
que eu me lembro, foi aqui a primeira Igreja Batista, foi o Pastor Antídio que
fundou essa Igreja... Inclusive o pastor Antídio, na década de 40, ele até fez
um culto, uma vigília em defesa da não remoção do Jacarezinho porque
naquele tempo entrava cavalaria, entrava um pessoal pra botar os moradores
pra fora, então o pessoal daqui parece que lutaram muito. Eu nem participava
ainda da luta nesse tempo, mas os antigos lutaram muito... até que já entrando
na década de 50, uma outra pessoa que fez a história do Jacarezinho, defendeu
muito, ele chamava, chama, não sei se esta vivo ainda, professor Átila, foi o
cara que ajudou a organizar várias caravanas ao Palácio do Catete, naquele
tempo... Porque tinha presidente da República aqui... Depois ouve uma
conversa que a mulher do Getúlio mandou cessar essa perseguição e daí pra
frente o Jacarezinho pode ter uma vida mais tranqüila.
23
(ex-operário e ex-
morador do Jacarezinho)
Já com a sinalização de permanência no local, o Jacarezinho tem um grande salto
populacional, motivado também pela instalação de novas indústrias. De acordo com as
entrevistas a transformação do espaço é rápida e em grande medida promovida pelos
próprios moradores. Como veremos mais adiante, as décadas de 1960 e 70 vão marcar
uma forte mobilização comunitária que juntamente com ações do poder público, vai
transformar a paisagem do Jacarezinho. Na fala abaixo, temos um panorama das
transformações ocorridas a partir dos anos 1960. Com uma trajetória de migração, essa
senhora nos narra com emoção sua chegada ao Jacarezinho e a história do local a partir
das memórias de seu falecido marido.
Eu, quando eu vim aqui para o Jacarezinho, eu vim de Alagoas né, Maceió. Eu
sou de Maceió. Eu vim com 26 anos, coisa assim... eu tenho 75 né... eu
cheguei aqui no Jacarezinho em 20/03/1960. Mas eu já tinha chegado, eu tava
na praça do Carmo trabalhando em casa de família desde de 57, 57. Aí eu vim
pra aqui, conheci meu marido aqui... ele tinha uma senhora doente, essa
23
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
47
senhora morreu e ele não tinha filho, não tinha nada, aí a gente foi viver, ele
ficou com muita pena de um filhozinho que tinha né, que eu trouxe de Maceió
pra qui, sozinha né, eu e ele. Eu e meu filho, sem parente, sem ninguém. Eu
vim e fiquei aqui e a gente foi lutando. E meu marido era fundador daqui.
Aqui era capinzal, aqui ele fez um chalé, um barraco, do barraco ele fez chalé,
mas isso já foi ele, não foi comigo não. Aí do chalé ele fez essa casa, botou
laje, mas quando eu vim pra aqui tava tudo assim... tijolos, tijolos né...
24
(moradora do Jacarezinho)
A idéia de fundador do local atribuída ao seu marido e a referência ao capinzal foi a
introdução para a narrativa de evolução urbana porque passou o bairro nos anos 1960. A
transformação sofrida pela casa em que essa senhora mora até hoje funciona como uma
metáfora das mudanças do próprio bairro. A narrativa desse contexto de “fundação” do
bairro destaca duas gerações de “fundadores”: a primeira, atribuída a seu marido que faz
referência à época do capinzal e, a segunda, que inclui sua própria participação no
movimento comunitário no começo dos anos 60. A partir dos depoimentos, podemos
presumir que na época da entrada dessa senhora no Jacarezinho o capinzal já começava a
ser uma realidade distante e as primeiras casas de alvenaria passavam a fazer parte do
cenário.
Com o crescimento industrial do bairro no início da segunda metade de século XX,
a migração aumentou. É a partir desse período que boa parte dos entrevistados vai chegar
ao bairro e se familiarizar com o Jacarezinho e os espaços produtivos do Jacaré. A
trajetória de migração e fixação no bairro elucida as expectativas e os problemas
enfrentados no novo espaço. Para compreendermos melhor esse momento, analisaremos
esse processo a partir da fala dos entrevistados.
2.3 - Migração e expansão do bairro
Na década de 1950, com o crescimento do processo de industrialização, a população
do Jacarezinho aumenta com a vinda de migrantes de diferentes regiões do Estado do Rio
de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
25
Grande parte dessas
24
Entrevista concedida à autora em 07/03/06.
25
Relatório do Programa de Desenvolvimento Econômico Local (PDEL).
48
pessoas vai trabalhar nas fábricas da região, indo morar no Jacarezinho. Algumas das
entrevistas realizadas durante o desenvolvimento da pesquisa nos elucidam esse trajeto de
migração. Em geral, uma rede se formava para a vinda das famílias, parentes ou amigos
que migraram antes e serviam como referência para os novos migrantes. A vinda para o
Jacarezinho era decidida pela oferta de emprego no próprio bairro, pela facilidade de
deslocamento para outras regiões da cidade e pela facilidade de se conseguir moradia.
...a gente chegou, não meu pai chegou primeiro. Meu tio veio de Alagoas, meu
tio veio primeiro. Que eu sei que meu tio já morava no Jacarezinho e já
trabalhava no Copacabana Palace como porteiro, aí meu pai fez contato com
ele, ele mandou meu pai vir. Meu pai veio na frente, ficou morando na casa,
na 35 que era do meu tio, ficou morando lá, que depois virou dois quartos e
banheiro. Meu tio já não morava mais no morro e alguns meses depois meu
pai mandou buscar a gente. Então veio eu, minha mãe, meu irmão Ricardo e
minha irmã Carmiha, viemos em três. eu Tinha três anos, Ricardo dois e
Carminha dois meses.
26
(professora e ex-moradora do Jacarezinho)
Na fala acima, temos uma narrativa que se parece com a história de muitos dos
migrantes que vieram para o Jacaré. Primeiro veio um irmão, depois o pai e por fim o
resto família. Filha de migrantes, apesar de ter vindo muito nova para o Rio de Janeiro,
guarda a memória da falta d’água no nordeste, problema também enfrentado quando
chegou à favela Rio de Janeiro. “São coisas, quer dizer eu lembro bastante, que lá em
casa tinha muita lata d’água [Jacarezinho]. Que nordestino já tem pânico de não ter
água”.
27
No caso do bairro, o problema não era a falta d’água por completo, o que
dificultava a vida dos moradores era o fato da água não chegar nos pontos altos do
Jacarezinho, fazendo com que o deslocamento para se conseguir encher as latas d’ água
fosse grande. Em outros pontos da cidade a falta d’água também atinge os moradores e o
problema é apontado como característico do “morro”.
Como nos fez notar uma jovem senhora, mãe de três filhos, moradora do
morro do Cantagalo, a falta de água (um dos grandes problemas que tem que
enfrentar a gente do morro), é a mesma no natal que nos outros dias do ano...
26
Entrevista concedida a autora em 12/07/05
27
Idem.
49
“O melhor presente de natal seria a água no alto do morro” [fala da “jovem”
senhora].
28
Outros personagens nos narram a vinda para o Rio de Janeiro:
Eu estou com 48 anos, eu vim para cá com 11 anos. Eu nasci no Espírito
Santo, fiquei lá até os oito anos, mais ou menos. Aí morei três anos no Paraná,
em Jandaia do Sul, não, em Caloré que é um município de Jandaia. Aí lá nós
ficamos três anos. Nós trabalhamos como colono, é uma vida muito difícil,
minha mãe com muitos filhos, nós éramos dez filhos, seis mulheres e dois
homens. E uma vida muito difícil, a gente era colono e trabalhávamos o mês
todo, a gente não tinha recurso e meu irmão ficou doente, uma série de coisas.
Aí juntamos tudo, minha mãe pegou... meu tio morava aqui no Rio, aqui no
Jacarezinho, aqui no Rio de Janeiro. Aí minha mãe pegou escreveu para ele,
eles falaram para nós virmos, viemos com a cara e a coragem num caminhão
de Pau-de-Arara.
29
(costureira e moradora do Jacarezinho)
Novamente a relação com um parente que morava no bairro facilita a vinda e a
fixação da família. O que podemos perceber nesse caso é uma trajetória de migração, do
Espírito Santo para o Paraná e depois para o Rio de Janeiro. O trecho acima nos fornece
informações importantes, mostrando que os motivos para a migração variam muito de
caso para caso. Nesse episódio, além das necessidades econômicas e do trabalho muito
desgastante, temos uma necessidade de saúde. Quando a entrevistada nos diz e mais “uma
série de coisas”, poderíamos concluir que essa fala resume um conjunto de fatores que
levam a migração. No caso dessa entrevistada, logo depois que chega ao Rio de Janeiro
ela começa sua vida como operária de uma fábrica de costura, atividade que exerce a
hoje, agora como membro de uma cooperativa.
Sobre a origem dos trabalhadores de uma empresa do bairro, a Cisper, temos a
seguinte narrativa.
Hoje nem tanto, mas quando da década de 80 podia se dizer que a grande
maioria era do bairro, principalmente aqui do Jacarezinho. Era um troço
interessante, você pegava a lista de empregados da Cisper
30
e chegava a
encontrar assim na relação dos empregados, quinze nomes com sobrenomes
28
“Fazer as crianças felizes neste natal é a preocupação dos moradores do Cantagalo” – O Globo, 12 de
dezembro de 1955.
29
Entrevista concedida à autora em 04/07/03.
30
A Cisper está no bairro desde 1917 mantendo sua produção até hoje no mesmo local. Porém, algumas
etapas da produção estão sendo feitas em outros estados do país. Apesar de ser uma das empresas mais
antigas no bairro e também contribuir com projetos de desenvolvimento social no Jacarezinho, a empresa
não adquiriu, na memória dos entrevistados, a importância simbólica que é atribuída a “mãe” GE.
50
Ismite, então famílias que vinham do norte já vinham tudo direto pra trabalhar
na Cisper.
31
(funcionário do Sindicato dos Vidreiros).
Como observado na citação acima podemos encontrar o processo de migração feito
por famílias inteiras que conseguiam emprego na mesma fábrica. Alguns estudos
apontam para o incentivo da empresa para que seus funcionários indicassem parentes
para ocupar cargos, mas essa prática não foi relatada nas entrevistas, o que não significa
dizer que mesmo de modo informal ela tenha acontecido.
Mapa do Jacaré. Em Destaque à fábrica da Cisper – Fonte: Mapas – Armazém de Dados -
www.rio.rj.gov.br.
Através das entrevistas, verificamos que mesmo se tratando dos migrantes
nordestinos não existe uma homogeneidade que caracterize essas pessoas em um único
grupo. Migrantes de diferentes “nordestes” e de outras regiões do país, essas pessoas
constituíram uma sociabilidade diferente no bairro. Segundo os entrevistados, não havia
uma união entre eles por conta de sua origem. Essa união se deu com o tempo por conta
das necessidades surgidas no próprio bairro.
31
Entrevista concedida à autora em 09/08/05.
51
...não a família do meu pai não mantinha um elo de aglutinação. Mas isso
já tem a ver lá no nordeste né. Porque meu pai saiu muito cedo de casa no
interior de Alagoas para tentar a vida em Recife, o irmão dele ficou pouco
tempo em Recife veio para o Rio, então as pessoas construíram vidas
distantes, dentro do nordeste mesmo. E quando chegou no Rio não tinha uma
relação muito boa. Minha mãe pela própria carência de estar sozinha,
procurava muito mais as minhas tias, irmãs do meu pai para estar junto, em
contato do que o próprio meu pai e minhas tias, um com outro, mas não havia
aquela coisa da, da família esta sempre junto né... até porque, assim eu não
consigo lembrar de festas naquela época, nem... dentro do Jacarezinho eram
pouquíssimas coisas.
32
(ex-moradora do Jacarezinho)
A fala acima nos chama atenção para outro fator interessante, a separação que vinha
do próprio Estado de origem, a migração dentro da própria região afastava as famílias.
Apesar de ser fundamental a interação com um parente ou amigo que dará as coordenadas
para a migração isso não significa a união dessas pessoas nesse novo espaço. Segundo
essa mesma entrevistada, apesar de existir uma comunidade nordestina antiga no bairro
sua família ficou muito só quando chegou ao Rio de Janeiro.
Essas famílias que chegavam ao Jacarezinho foram marcando sua presença e
criando uma memória sobre aquele espaço. Para aqueles que chegaram ainda crianças ou
que já nasceram no bairro, parte dessa memória foi transmitida pelos pais e avós. Entre os
pontos que merecem destaque na memória está o nome do bairro.
2.4 - Memórias de um bairro: um nome em questão
O espaço hoje considerado como bairro do Jacaré ganhou este status administrativo
em 1981.
33
Mas qual o porquê deste nome para uma região antes caracterizada pela
atividade agrícola e já na época da criação do bairro reconhecida por sua atividade
industrial?
Segundo um dos entrevistado, o nome do bairro surgiu da marca de um querosene.
32
Entrevista concedida à autora em 12/07/05;
33
Em anúncios de aluguel publicados no Correio da Manhã em 1916, já identificamos o Jacaré sendo uma
subdivisão dos subúrbios do Rio de Janeiro. Citado em Marialva Barbosa (1991:147)
52
Um detalhe importante é a origem do nome do bairro Jacaré. Eu não era
nem nascido existia no Largo do Jacaré um português que vendia querosene a
granel e a marca era Jacaré...
34
(morador do bairro)
O entrevistado nos relata que com o tempo o nome Jacaré passou a ser usado para
se referir ao largo e depois deu nome ao bairro. A favela que nasce na região a partir das
primeiras décadas do século XX vai receber no diminutivo o nome do bairro, vindo a se
chamar Jacarezinho. Na época da constituição da favela presumimos, que a população
residente no Jacarezinho fosse bem menor que a população do Jacaré, sendo, portanto,
inteligível que o diminutivo fosse atribuído à favela em criação. Como já vimos, através
de dados mais recentes, hoje essa realidade foi invertida, tendo o Jacarezinho uma
população quase 10 vezes maior que a do Jacaré O querosene da marca Jacaré é da
distribuidora de combustível ESSO, a empresa repassava o produto para algumas
revendedoras que distribuíam o querosene por várias regiões do Brasil
35
. Devemos
lembrar que até a meados do século XX o querosene tinha grande importância na vida das
pessoas, além das geladeiras e fogões utilizarem este combustível, ele era essencial para a
iluminação de casas e ruas.
36
Querosene Jacaré.
Fonte: www.crisderivados.com.br
34
Entrevista concedida à autora em 03/08/02.
35
Retirado da página www.crisderivados.com.br - 10/09/2005.
36
Em Pernambuco o mesmo querosene deu nome a uma banda de rock, “Querosene Jacaré”. O nome foi
dado em homenagem ao pai de um dos integrantes do grupo que vendia o querosene no interior de estado.
Retirado da página: www.reciferock.com.br
.
53
Em um comercial da década de 1950 a ESSO faz propaganda do Querosene
Jacaré.
37
O típico chapéu nordestino que caracteriza um dos personagens em cena nos
chama atenção. A vinculação desse comercial nos grandes centros urbanos como Rio de
Janeiro e São Paulo pode ter tido como público alvo a população nordestina que migrou
para essas cidades. Considerando a forte presença desse grupo no Jacaré e a larga
utilização do querosene, parece-nos plausível que o produto tenha dado nome ao bairro.
Abaixo temos algumas imagens do comercial citado que podem nos ilustrar melhor seu
conteúdo.
Fonte: http://sampa3.prodam.sp.gov.br/ccsp/index.htm
O referido comercial, em desenho animado, era acompanhado por um jingle que
discorria sobre o cotidiano da utilização do produto pela população, assim como as cenas
da animação.
Jingle: Querosene é Jacaré! Querosene é Jacaré! Que claridade tem um
lampião que usa o Querosene Jacaré. No mundo todo é uma beleza cozinhar
com o Querosene Jacaré, e a geladeira gela, gela muito mais com o Querosene
Jacaré. Até pintinho que vive em criadouro é aquecido a vida toda pelo
Querosene Jacaré. É Jacaré, é Jacaré, é Jacaré, Querosene é Jacaré. A
qualidade do Querosene Jacaré é garantida pelo aval ESSO.
37
Querosene Jacaré - comercial da década de 50, em desenho animado, com jingle. Anunciante: ESSO.
Agência: McCann Erickson.
54
Narrador: Querosene puro é Jacaré. A venda nos postos ESSO e casas do
ramo
38
.
Porém, a versão mais citada nas entrevistas sobre o nome do bairro, não faz alusão
ao Querosene Jacaré. A narrativa dos entrevistados é a de que dois Jacarés teriam dado
nome ao bairro. Segundo os moradores um grande Jacaré, fêmea, teria aparecido na parte
baixa do morro e na parte alta os moradores teriam achado outro Jacaré, um filhote,
supostamente filho do Jacaré fêmea achado anteriormente. Dessa visita dos jacarés “mãe
e filho” teria surgido o nome do bairro, como nos demonstra o relato abaixo:
E também, naquela época, aqui se chamava Jacarezinho, vou te dizer
porque o do Jacarezinho que meu pai me contou. Que não fui eu, isso já foi na
época do meu pai. Era Morro da Titica, mas eu ainda era pequeno... mas
segundo as pessoas mais velhas encontraram um Jacaré enorme lá, onde hoje
se chama Jacaré né, dentro do rio, ali perto do Baronesa, por ali. E descendo
mais aqui um pouco, chegando aqui dentro da comunidade encontraram o
filhote do jacaré. Por isso né, o Jacaré e o Jacarezinho. Mas o Jacarezinho eu
acredito que já teve outros nomes que eu não sei, comunidade carente é assim
cada hora né, coloca um nome.
39
(ex-operário e morador do bairro)
O bairro do Jacaré é cortado pelo Rio Jacaré, sendo provável a presença dessa
espécie de animal em suas águas, o que poderia reforçar a versão mais presente entre os
moradores para o nome do bairro. É interessante ressaltar os acontecimentos “vividos por
tabela”, ou seja, a memória quase que “herdada” do pai e dos moradores mais velhos é
parte determinante da memória do próprio entrevistado (Pollak, 1992a). Apesar de não
ser do seu “tempo”, ele sabe como foi, ele tem uma memória sobre o nome do bairro.
O nome Morro da Titica, citado pelo entrevistado, apareceu em outras entrevistas,
faz alusão a uma época em que o esgoto corria pelas ruas e até por dentro das casas
proliferando um enorme mau cheiro no bairro. Percebe-se que essa referência é evitada
pelos moradores, em uma entrevista o nome não é citado, o que se diz é que a
comunidade já teve um nome “estranho”. Outra versão para o nome Morro da Titica
também faz referência ao mau cheiro, no entanto, a justificativa é outra.
38
Transcrição feita a partir do comercial“Querosene Jacaré”: http://sampa3.prodam.sp.gov.br/index.htm.
39
Entrevista concedida á autora em 27/07/05
55
...existia também uma fábrica aqui que era muito conhecida chamada... a
gente chamava muito de... aqui do Jacarezinho né, por isso que chamava
Morro da Titica, tinha uma fábrica, a gente chamava de fábrica de osso, um
mau cheiro terrível, as vezes a gente aqui dentro de casa, hora do almoço, ia
almoçar, então aquele cheiro predominava dentro da casa da gente.
40
(ex-
operário e morador do Jacarezinho)
Além do cheiro da “fábrica de ossos”, mesmo que sem relação aos nomes do local,
outros cheiros predominavam no bairro, muitos deles ainda presentes na memória dos
seus moradores estão diretamente relacionados à presença das fábricas na região. Outro
cheiro que evoca lembranças e que é descrito como agradável pelos moradores, é o aroma
de café e chocolate vindo da chaminé da fábrica Café Moinho de Ouro.
A década de 1990 marca o inicio de uma série de transformações naquela região.
Alguns nomes são escritos na história, legitimados, por exemplo, com a criação do bairro
do Jacaré (1981) e mais de dez anos depois a criação do bairro do Jacarezinho (1992). Por
outro lado os aromas que marcavam bairro, assim como a movimentação dos operários e
os apitos das fábricas vão aos poucos deixando de fazer parte daquele espaço. Os anos
1990 marcam a saída das indústrias bem como o silenciar dos apitos e o apagar das
chaminés.
2.5 - Formação e declínio de um complexo industrial
A diferença entre as décadas de 1950 e 1960 e os anos 1990, no Jacaré e
Jacarezinho, no tocante às transformações urbanas, à produção industrial e à violência são
inúmeras. Com relação às indústrias, podemos falar de uma passagem do ápice ao
declínio. No entanto, outros fatores acompanharam as mudanças no perfil do bairro.
Quanto à criminalidade, podemos considerar uma mudança na freqüência e violência dos
crimes, fator que afetou diretamente a permanência das fábricas e a vida dos moradores
no bairro. Além disso, a polícia, na visão dos moradores, passa a ser considerada uma
grande propagadora da violência no morro.
40
Idem.
56
Nas décadas de 1950 e 1960, podemos encontrar o Jacarezinho nos jornais tendo a
violência como foco de algumas reportagens. No entanto, como nos sugere a análise dos
jornais, as ocorrências mereciam apenas pequenas notas no jornal como é o caso do
exemplo abaixo.
O padeiro Nilson Rangel (brasileiro, solteiro, 23 anos, Rua Isa, 8)
quando fazia entregas no morro do Jacarezinho, foi assaltado por três
indivíduos armados de revólveres, que levaram um relógio, uma caneta
tinteiro e quinhentos cruzeiros. Os mesmos indivíduos, pouco adiante,
assaltaram o operário Francisco de Oliveira Pinto (casado, brasileiro, Rua do
Rio, 23) que foi obrigado a entregar vinte cruzeiros e também, um relógio.
41
É peculiar notar que o assalto envolveu, além do padeiro, um operário morador do
bairro. De acordo com os depoimentos, a investida contra moradores é punida com
severidade pelos próprios criminosos No entanto, no período dessa reportagem a
organização dos marginais não deveria atingir os níveis das próximas décadas. Em outra
reportagem, temos a ocorrência de um assalto à residência nas proximidades do
Jacarezinho.
Nenhuma pista obtida pela 23° D.D. [Delegacia de Defraudações] para a
identificação do assassino do Jornaleiro Astolfo Gonçalves da Silva, 60 anos.
Abatido a pauladas na sexta-feira, em sua residência. O criminoso invadira a
casa para roubar e, na fuga, feriu ainda o filho do Jornaleiro e dois
empregados. O detetive Bretãs disse a O Globo que o morro do Jacarezinho
está sendo vasculhado.
42
O perfil do bairro vai mudar ao longo das décadas com o crescimento industrial e a
mudança na estrutura urbana tanto do Jacaré quanto do Jacarezinho. Como veremos mais
adiante a violência deixa de ser matéria para pequenas notas e ganha as páginas principais
dos jornais, tendo como conseqüência a morte de várias pessoas e um forte impacto nas
indústrias da região. Essas mudanças têm como marco a década de 1960.
Em 1961, Carlos Lacerda assume o governo do Estado da Guanabara promovendo a
ida de várias indústrias para o bairro do Jacaré, criando o complexo industrial do Jacaré.
A localização do complexo foi decidida por ser o Jacaré um bairro central: ele fica perto
da Avenida Brasil e de duas grandes vias arteriais, a Avenida 24 de Maio e a Avenida
41
“Padeiro e operário assaltados no morro do Jacarezinho”. O Globo, 23 de dezembro de 1955.
42
“Morte do jornaleiro”. O Globo, 04 de janeiro de 1966.
57
Marechal Rondon, ambas construídas no governo de Carlos Lacerda. Outra via de acesso
ao bairro é uma passagem de nível que liga a Rua Bráulio Cordeiro (principal rua do
complexo) à avenida Dom Helder Câmara. Essa obra também foi realizada no governo
Carlos Lacerda e ganhou dos moradores do bairro o nome de Buraco do Lacerda. Como
um dos fatores que levou o complexo a ser construído no Jacaré, temos ainda a
proximidade com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), já instalado
no bairro há alguns anos. O SENAI promoveu a formação profissional de trabalhadores
de todos os níveis do complexo industrial.
O apogeu do desenvolvimento industrial no bairro, que se dá a partir da década de
1960, vai ter sua trajetória freada pela conjuntura da década dos anos 1980 e 90. A
crescente inflação e um conjunto de novas medidas econômicas a partir de 1989 vão
determinar novos os rumos para o país. O período que mais impactou a indústria
brasileira provocando sucessivas falências e fechamentos de empresas foi o início da
década de 1990, durante o governo Fernando Collor de Mello. Não fugindo a regra, foi
nesse momento que a maioria das indústrias do complexo industrial do Jacaré reduziram,
consideravelmente o número de empregados, faliram, ou se transferiram para outros
Estados. Nessa conjuntura, o espaço do bairro vai ser redesenhado, os empregos
oferecidos pela indústria não farão mais parte da realidade e outros setores como o
comércio passam a receber essa mão-de-obra.
No complexo do Jacaré, várias situações elucidam a conjuntura de crise que o país
vivia na década de 1990. Um bom exemplo de desemprego estrutural gerado por
inovações tecnológicas é o caso das indústrias de vidro que perdem espaço para a
indústria de plásticos. A indústria de vidro Cisper, que na década de 1980 tinha cerca de
dois mil empregados e produzia, entre outras coisas, garrafas de Coca-Cola 365 dias por
ano, 24 horas por dia, hoje tem cerca de 400 empregados e produz garrafas de Coca-Cola
apenas um dia por ano.
43
O reflexo disso sobre a vida política-organizativa dos trabalhadores é imediato.
Alguns sindicatos diante da considerável perda no número de filiados buscam novas
articulações para que seja possível a permanência das suas atividades. De acordo com
dados do Sindicato de Metalúrgicos do Rio de Janeiro, nos anos 1970, no Jacarezinho,
43
Relato de um funcionário do Sindicato dos Vidreiros.
58
existiam 15 pequenas metalúrgicas. Na atualidade, não existe nenhuma. O bairro do
Jacaré teve na década de 1970, mais de 50 metalúrgicas e na atualidade existem apenas
27.
44
Com o agravamento da crise econômica em meados da década de 1990, a saída das
indústrias do bairro, assim como as falências, se tornaram uma constante. A Company,
por exemplo, que empregava cerca de dois mil empregados, fecha sua unidade no bairro
em 1997, transferindo-se para Miracema, MG, cidade que se engajou na “guerra fiscal”
promovendo uma política de incentivos para a atração de indústrias. Segundo
empresários da região, com a saída da maioria das indústrias a atual paisagem do bairro
lembra um território em guerra.
A primeira impressão que se tem ao circular pela periferia da Favela do
Jacarezinho é de que parte do bairro foi atingida por uma bomba. Ruínas das
indústrias que quebraram financeiramente ou abandonaram o local por causa
da violência já foram apelidadas pelos empresários que ainda resistem como
Nova Hiroshima.
45
(grifos meus).
Segundo um dos entrevistados, o Jacaré virou um “cemitério” de empresas.
Então é por isso que hoje a gente denomina, os grandes jornalistas que fazem a
matéria do passado do Jacaré, eles denominam de cemitério de empresas, não
existe mais, só existe hoje espaço físico, hoje tomada pela prefeitura para a
construção de residências e outros ficaram mesmo, viraram invasão
46
, se
tornaram favelas, espaços físicos enormes e com isso se tornaram moradias.
47
(dirigente sindical e ex-morador do Jacarezinho)
A partir do processo de empobrecimento sofrido pela área decorrente
principalmente da crise da economia, indústrias, como, por exemplo, a Glaxo Welcome
44
Relatório do PDEL
45
“Violência em favelas expulsa indústrias e lojas”. O Globo, 08 de abril de 2001.
46
Um convênio da Prefeitura do Rio de Janeiro com o Governo Federal financiou a construção de um
conjunto habitacional em uma das ruas do complexo industrial do Jacaré. As obras terminaram em 2006 e
os apartamentos já abrigam moradores. Levando em conta o número de ruas com fábricas desativadas e
feitas de moradia o alcance desse projeto é limitado. Na própria rua onde foram construídos os edifícios de
um lado observamos as novas edificações, do outro lado podemos ver o lixo, fábricas fechadas e outras
feitas de moradia. Ver fotos (Anexo III)
47
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
59
(indústria farmacêutica), se transferiram da região também por conta da violência.
48
A
Glaxo tinha cerca de 300 empregados e fechou sua unidade no bairro em 1999,
transferindo-se para Jacarepaguá.
Depois das 15h, os caminhões das transportadoras não entram mais nas ruas
da periferia do Jacarezinho, por causa dos assaltos. Segundo um antigo
comerciante do Jacaré, quando a polícia entra na favela, os traficantes
invadem lojas e indústrias, armados de metralhadoras. Os traficantes
obrigaram o Laboratório Glaxo, último a deixar o bairro, a manter um buraco
que dava acesso ao prédio deles, por onde fugiam - conta o comerciante.
49
Segundo o gerente de comunicação da Glaxo, João Demenech, os dois principais
motivos de a empresa deixar a região foram a falta de espaço para crescer e a necessidade
de instalar máquinas mais modernas, o que o prédio não comportava. Ainda de acordo
João Demenech, a violência no bairro pesou na decisão. No entanto, o vice-presidente da
Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), o empresário João Lagoeiro
Bárbara afirma: “Quisera eu que a troca fosse apenas para o aumento da produtividade.
Se fosse isso o empresário aumentava ali com o custo menor”.
50
O empresário estava se
referindo a questão da violência nos bairros. As opiniões são contraditórias, o que se
verifica no Jacaré é um grande número de galpões e prédios fechados. Se a violência não
pesasse tanto na decisão das indústrias de saírem do bairro, provavelmente esses espaços
seriam reordenados e aproveitados por essas indústrias em expansão.
A violência é um tema em foco na imprensa carioca nos últimos anos, o Jacaré,
assim como o Jacarezinho, recebe destaque em meio a essas reportagens pelos altos
índices de criminalidade da região. As reportagens abordam a questão destacando a
decadência econômica dessas áreas, atribuindo a falta de segurança para a permanência
dos estabelecimentos produtivos como principal fator desse processo. Ainda segundo o
vice-presidente da FIRJAN, João Lagoeiro Barbará, os principais bairros afetados pela
saída das indústrias foram Jacaré, Penha, Santa Cruz, Ramos e Acari.
51
Em 2001, já se
48
Dados obtidos a partir de relato de um funcionário da Associação Comercial e Industrial Regional do
Jacaré e Adjacências (ACIRJA).
49
“Violência em favelas expulsa indústrias e lojas”. O Globo, 08 de abril de 2001.
50
“Insegurança fecha fábricas”. O Globo, 24 de novembro de 2002.
51
“As novas zonas de conflito”. O Globo, 13 abril de 2003.
60
publicava uma relação de bairros afetados com o fechamento de indústrias e suas
principais causas, como podemos ver abaixo.
Jacarezinho: Entre as empresas que faliram ou mudaram do bairro estão: a
Company, a Metrox Indústria Metalúrgica, a Sadia, a Coca-cola, a Direne e
outras. Só a Cirpress (empresa de componentes eletrônicos) oferecia cinco mil
empregos. Atualmente, só existe o esqueleto da fábrica que, depois de
saqueada, foi invadida. O dono da fábrica de calçados Motinha deixou o bairro
porque sua filha foi seqüestrada.
52
A GE, uma das poucas indústrias que permanecem em atividade no bairro também
sofre os efeitos da violência.
Bandidos armados cercaram o local e mandaram para casa dois mil
funcionários. Traficantes do Complexo do Jacarezinho impuseram ontem o
fechamento da fábrica da General Eletric, na Rua Miguel Angelo, 37, em
Maria da Graça. Cerca de dois mil funcionários foram liberados às pressas
após os bandidos, armados com granadas e fuzis pularem o muro da fábrica
duas vezes. Segundo operários que não quiseram se identificar, dois diretores
da empresa ainda tentaram argumentar com os traficantes, mas não tiveram
êxito. Interromper as atividades da empresa, incluindo o funcionamento de um
forno que leva 48h só para reaquecer. O prejuízo será enorme contou um
funcionário.
53
Após esse episódio a fábrica parece ter cogitado a saída do bairro:
A violência é uma ameaça a outras indústrias que ficam na região da General
Electric, em Maria da Graça, próximo à Favela do Jacarezinho. Na quarta-
feira, uma reportagem publicada no site do "The Wall Street Journal" afirmava
que a empresa deixaria o Rio devido à falta de segurança, o que foi negado
pelo diretor-gerente da GE, Brian Herring.
54
Sem dúvida, atualmente, um dos principais problemas do bairro é a falta de infra-
estrutura e de segurança, nas suas principais vias de acesso. Uma delas, Buraco do
Lacerda, vive constantemente inundada, ocorrendo situações nas quais nem ônibus
passam pelo local. Outra via de acesso ao bairro, o túnel Noel Rosa, é um local de
52
“Conheça os casos”. O Globo, 08 abril de 2001.
53
“Tráfico fecha a fábrica no subúrbio”. O Globo, 01 outubro de 2002.
54
“Violência expulsa indústrias vizinhas de favela”. O Globo, 01 de novembro de 2003.
61
assaltos freqüentes. Por fim, a via de acesso mais importante para o bairro, a Linha
Amarela, é cercada por favelas e é palco de cenas de violência cotidianas.
Tiroteios entre polícia e criminosos são outra constante no bairro, fazendo vítimas
principalmente entre moradores.
55
As empresas que ainda permanecem no bairro parecem
verdadeiras fortalezas, com guardas, câmeras de vídeo e muros altos. Hoje, o Jacaré é um
bairro marcado pela violência e pelo abandono. A insegurança está presente na vida de
quem mora ou trabalha no bairro. A fala de um jovem morador do Jacarezinho nos chama
a atenção pela associação entre a violência e o “esquecimento” naquele espaço. Para além
da questão do emprego, a violência afeta a construção da história e da identidade desse
grupo, como nos sugere a fala abaixo.
O que eu penso é que queremos paz, assim os becos hoje virou lugar de
sempre alguém ser baleado, quer dizer, sem paz não vai ter história. Porque
ontem foi um senhor baleado aqui ontem, então ele faz parte da história. Ainda
bem que foi no pé, porque se fosse no peito não tinha mais história.
56
(morador
do Jacarezinho, grifos meus).
No entanto, deve-se assinalar também que o bairro cresce e se rearticula em outras
direções. No caso do Jacarezinho, uma grande rede de comércio serve aos moradores.
Dentro da favela encontramos inúmeras farmácias, salões de cabeleireiro, lojas de roupa,
lojas de celular e eletrodomésticos, lojas de móveis, além de um grande comércio de
gêneros alimentícios.
O Jacarezinho hoje, depois de ser um parque industrial, hoje é um centro
comercial, hoje mudou né. Hoje é um centro comercial, o comércio aqui esta
muito bom, entendeu... E foi crescendo, hoje nós temos aqui tipo um shopping
aqui dentro e roupa de todos os tipos de marcas de roupa existe aqui dentro.
Tem joalheria, você quer uma coisa melhor do que isso na comunidade, ter
uma joalheria aqui dentro, vende ouro, joalheria mesmo que vende ouro,
vende também prata, como vocês chamam bijuteria... Temos mercearias aqui
dentro que hoje deu emprego pra população também. O que ta gerando
emprego aqui é armazém, é lojas de roupa, mais que por outro lado é ruim
55
Como exemplo temos a Morte da costureira Denise Santos, atingida por uma bala pedida durante um
tiroteio entre a Policia Militar e bandidos no Jacarezinho. Após sua morte os moradores fecharam avenida
Dom Helder Câmara, quando ocorreu o confronto com a policia. “Bombas, tiros e morte em 4h de terror no
Jacarezinho” - Extra, 24 de maio de 2005. Capa.
56
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
62
porque a maioria não assina carteira do pessoal né. As pessoas trabalham sem
carteira assinada né.
57
(ex-operário e morador do Jacarezinho)
A rede de comércio é ressaltada pelos entrevistados como uma grande conquista do
Jacarezinho, inclusive no que se refere ao respeito ao patrimônio dos moradores.
Podemos concluir que vender ouro na favela é “seguro”. Isso reforça a ênfase que alguns
moradores dão ao “pacto de não agressão” em relação aos traficantes ou “meninos” como
também costumam ser chamados. Por mais que esse “pacto” seja violado com a freqüente
morte de moradores, por balas vidas tanto da policia quanto dos traficantes, esses
moradores fazem questão de ressaltar um lado “positivo” nessa convivência. Essa
convivência é pautada em uma noção de grupo. Apesar de representarem posições
diferentes, são todos moradores. Por outro lado, o comércio, ao ser comparado com o
emprego gerado na indústria, perde por não garantir direitos como a carteira assinada.
Além dessa rede de comércio, o Jacarezinho conta com uma gama de opções de
lazer, para jovens, adolescentes e adultos. Formada principalmente por bailes funk e
pagodes, existem ainda os inúmeros bares, a Escola de Samba e os campos de futebol e
três rádios comunitárias com programação diversa.
As mudanças no modo de utilização do espaço do bairro do Jacaré, ao longo de
décadas, vão configurando o que seria já na década de 1960 um cenário caracterizado
pela produção industrial. Na memória de seus moradores, podemos destacar a
importância dada às transformações urbanas que a região veio sofrendo ao longo dos
anos. Além disso, os entrevistados falam dos principais personagens do bairro, pessoas
que se destacam na história da região, na luta operária e na atuação comunitária. Temos
ainda, a forte lembrança das primeiras grandes indústrias na área, que são mencionadas
pela marca de seu pioneirismo.
É a partir de década de 1960 que temos o cenário para as questões a serem
problematizadas no próximo capítulo. Nos questionamos de que maneira a presença das
fábricas vai determinar um novo ritmo a região e aos seus moradores. Nos propomos a
analisar de que forma as relações de poder estão presentes na fábrica e na vivência do
trabalho operário. E de que maneira a proximidade com o espaço de moradia fez com que
57
Entrevista concedida à autora em 27/07/05.
63
a fábrica atinja o cotidiano dos moradores nos seus espaços de sociabilidade no bairro.
Pretendemos ainda, problematizar de que modo os trabalhadores constroem formas de
contrapor essa hierarquia vinda da fábrica e que atinge seu cotidiano.
64
Capítulo III
Memória operária e relações de poder: os espaços de um operário
Seria preciso fazer uma “história dos espaços” – que seria ao mesmo tempo
uma “história dos poderes” – que estudasse deste as grandes estratégias da
geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da
sala de aula ou da organização hospitalar, passando pelas implantações
econômico-políticas (Foucault, 2004:212).
As relações travadas dentro e fora da fábrica, tendo como referencial seus códigos
disciplinares, estão presentes na memória operária, deixam sua marca no corpo e nas
lembranças dos trabalhadores. Sendo um dos principais espaços de sociabilidade dos
operários, não podemos deixar de considerar o ambiente da fábrica como elemento
fundamental no trabalho de construção da memória operária.
Dentro e fora da fábrica, quais os tipos de interlocução que esse trabalhador trava
com essa instituição? Que mecanismos de poder estão na pauta de funcionamento dentro
da fábrica? Dentre esses mecanismos de poder, disciplina e controle dos trabalhadores,
temos as máquinas. Aliadas indispensáveis à realização de algumas operações, são ao
mesmo tempo “arma de uma estratégia de dominação” e instrumentos capazes imprimir
marcas na memória e nos corpos dos trabalhadores.
A partir das entrevistas com ex-trabalhadores do complexo industrial do bairro do
Jacaré, buscamos identificar e analisar as marcas deixadas na memória desses operários
pela experiência de trabalho e das disputas travadas no espaço da fábrica. Ao
consideramos a proximidade entre os espaços de trabalho e moradia, no caso específico,
podemos problematizar uma extensão do controle da fábrica, sobre os operários, em seu
local de residência.
A presença no bairro de um grande número de operários fez com que diversos
movimentos políticos e alguns sindicatos tivessem forte atuação no Jacaré, o que não
impedia a coerção exercida sobre os trabalhadores dentro e fora das fábricas.
65
3.1 - O Nascimento das Fábricas
O nascimento das fábricas simboliza, entre ouros fatores, a transferência do controle
da produção dos trabalhadores para o capitalista, o que não significou necessariamente
um avanço tecnológico, mas ,sobretudo, foi uma medida para disciplinar a produção e
direcionar seus lucros. O trabalhador deixa de ser o personagem principal dessa
configuração. Apesar de continuar tendo grande importância na produção, o operário
passa a dividir este espaço com outros personagens que entram em cena: o “capitalista”,
as máquinas e o sistema da produção.
Assim existem dois pontos fundamentais na constituição do sistema de
fábrica; em primeiro lugar, ele não decorreu de um grande avanço
tecnológico; em segundo, as tecnologias empregadas constituíram-se em
elementos de controle e de hierarquia na produção (De Decca, 1998:38).
A máquina vai mudar a relação do operário com o tempo e com seu corpo. A
aceleração do trabalho imposta em grande medida pela máquina, faz com que o
trabalhador se submeta a novos ritmos de trabalho. A nova disciplina da fábrica imprime
suas marcas de forma incisiva na vida do operário, trazendo doenças que vão se tornar
características de algumas profissões.
A estratégia de produção manifestada com a revolução industrial vai ter sua
caracterização mudada ao longo do tempo. Determinadas regras de disciplina não
sobreviveram por um longo espaço de tempo. Mas em que medida as fábricas do século
XX ainda utilizaram um forte aparato repressivo e disciplinador sobre os trabalhadores?
Será possível, através das memórias de operários das décadas de 1960 e 1990, analisar
mecanismos de controle e disciplina que ferem a autonomia operária e marcam seu
corpo? A fala de uma operária da indústria têxtil, com décadas de profissão, pode
começar a nos elucidar as formas de coerção a que estiveram submetidos os operários de
meados do século XX.
...todo fim de costureira isso é dito pelos médicos, é com problema de
nervos, com problema de hemorróidas porque... por isso que o motorista e a
costureira antigamente o salário era igual, porque o fim dos dois, as duas
profissões, isso o médico no INPS me sentou e me falou isso. O fim de
costureira e motorista é com problema de nervo e de hemorróidas, entendeu?
66
E problema de coluna, porque a gente fica muito tempo sentado, a
hemorróidas vem porque o nosso intestino esquenta muito porque a gente
passa o dia todo sentado, e os nervos por causa do serviço, porque tem serviço
que você faz que é mole, mas tem serviço que você tem que ter muita atenção
né, adquire muita paciência, aí você passa a ficar estressado. Esse é o final de
todos.
58
(moradora do Jacarezinho e costureira)
No trecho acima, essa operária nos fala de seu dilema com a profissão que exerce
desde os quatorze anos de idade. Se por um lado sua profissão lhe trouxe a sobrevivência
e algumas realizações, a atividade também foi responsável por problemas em sua saúde.
A maneira com que passou a lidar com o tempo e seu corpo foi alterada,
progressivamente, após seu contato com a máquina de costura em uma fábrica.
Sobre essa nova percepção do tempo, temos a seguinte análise de E. P. Thompson:
“O tempo agora é moeda, ninguém passa o tempo, e sim o gasta” (Thompson, 1998:272).
Ou ainda: [...]“é preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de
produção” (Foucault, 1996:116). A jornada de trabalho de longas horas, sendo a hora
extra
59
quase que incorporada ao cotidiano de algumas profissões, contribui para esse
desgaste físico e psicológico dos trabalhadores, como o referido no depoimento anterior.
As duras regras impostas pelas fábricas continuam presentes e os trabalhadores
contemporâneos são submetidos a condições de trabalho que remetem a uma estrutura do
inicio do século XIX na Europa. Trabalhadores amarrados a máquinas, proibição de ir ao
banheiro ou beber água durante o expediente, proibição de deixar a máquina antes de
atender a um quantitativo de produção, esses são exemplos da apropriação da mão-de-
obra em pleno século XX, como veremos em alguns depoimentos.
A disciplina imposta na fábrica reflete em parte códigos disciplinares presentes em
outras instituições na sociedade. A partir da obra de alguns teóricos sobre o tema,
podemos perceber os semelhantes códigos disciplinares que atingem diferentes grupos
sociais em diversas instituições.
58
Entrevista concedida à autora em 27/06/03.
59
José Ricardo Ramalho nos chama a atenção para a necessidade de se fazer hora extra como meio de
garantir uma sobrevivência mais digna para o trabalhador. O serão ficava incorporado a jornada de trabalho
por necessidade e obrigação. “Na verdade, a partir dos relatos dos trabalhadores pode-se perceber que o
serão, as vezes, era visto negativamente e, outras vezes, era vivido positivamente. No primeiro caso,
referem-se ao cansaço pelo trabalho prolongado, o roubo das horas com a família, o trabalho como
imposição ou obrigação. No segundo caso, os operários falam do fazer serão “por gosto”, como
oportunidade, para aumentar o salário, e também como orgulho pela produtividade da fábrica” (Ramalho,
1989:121).
67
Por conta de “uma simples idéia de arquitetura”, Bentham (1987) propõe mudanças
que poderão resolver a questão da disciplina nos presídios. A arquitetura ideal para
Bentham consistia em uma construção circular com uma torre que ocupa o centro, de
onde os inspetores podem ver todas as celas, que estão dispostas ao redor da torre.
Essa casa de penitência será chamada panóptico, para expressar, com uma só
palavra, sua vantagem essencial, a faculdade de ver, com um olhar, tudo o que
aí se passa (Bentham, 1987:202).
Essa arquitetura permite visibilidade e vigilância permanente sobre os presos. Mas o
autor nos lembra: “O princípio panóptico pode adaptar-se com sucesso a todos os
estabelecimentos onde devem reunir-se inspeção e a economia” (Op.cit.:225).
Segundo Michelle Perrot, utilizando-se da idéia do próprio Bentham: “A
visibilidade e a vigilância também são os princípios da disciplina na fábrica” (Perrot,
2001:56). O princípio do panóptico não se detém a arquitetura, ele é um conjunto de
regras que visam a disciplina, a obediência a hierarquia num investimento rentável.
A disciplina industrial, contudo, se preocupou pouco com a arquitetura das fábricas
no inicio do processo de revolução industrial. Num segundo momento a regulamentação
do espaço se faz necessária e as fábricas vão ganhar a arquitetura como aliada para
disciplinar os trabalhadores. O panóptico, entendido como um conjunto de práticas, será
aplicado na arquitetura da fábrica. Referindo-se à França do início do Século XIX, Perrot
afirma: “As portas são os pontos estratégicos de controle”(Perrot, 2001:57.)
Como já referido, essa estratégia de emprego da disciplina nas fábricas não se
reteve aos primeiros anos da Revolução Industrial. As portas, entre outros mecanismos de
repressão, continuam sendo pontos importantes dentro de uma fábrica e o olhar
disciplinador dos superiores continua a fazer frente à “acomodação” do trabalhador. A
partir das entrevistas percebemos esse uso do espaço como forma de repressão entre os
trabalhadores do bairro do Jacaré.
Tem uma fábrica de confecção que eles pegavam é, eles colocaram bebedor e
o banheiro do lado de fora e quando as meninas entravam para trabalhar, a
maioria era mulher, entrava para trabalhar ele fechava uma porta grande, ele
fechava. Só ia para o banheiro e beber água quando desse a hora do almoço.
Então as meninas ficavam de 8 horas da manhã até as 12 horas sem ir no
banheiro e sem beber água né. E a noite também e tal tinha um monte de coisa
68
desse nível né.
60
(morador do Jacarezinho e ex-dirigente sindical dos
metalúrgicos, grifos meus).
O aumento da produtividade parece ser um dos fatores a determinar tal repressão.
De acordo com vários relatos, as mulheres eram as que mais sofriam nas fábricas onde
regular a ida ao banheiro significava para os patrões um controle maior sobre o
rendimento da produção de suas operárias.
Segundo Michel Foucault (1996), a sociedade contemporânea merece o nome de
“sociedade disciplinar”. A sociedade disciplinar é caracterizada, no inicio do século XIX,
pela reforma e reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da
Europa e do mundo. A lei se volta para a potencialidade dos indivíduos, a preocupação
vai ser com o que eles podem fazer. A vigilância sobre o indivíduo será feita por uma
rede de instituições, como polícia, escola, hospital etc. Para Foucault, a sociedade em que
viveu era caracterizada pelo panoptismo, tipo de poder exercido pelo sistema panóptico.
A preocupação de Foucault foi, sobretudo, mostrar como essa sociedade estava
presente no cotidiano, nas relações institucionais que os indivíduos travam todos os dias.
As fábricas-prisão citadas por Foucault não resistiram ao tempo por sua inviabilidade
econômica e pela resistência dos próprios trabalhadores. No entanto, como ressalta o
autor, elas se adaptaram a novas estruturas como, por exemplo, a criação das cidades
operárias.
3.2 – Fábrica e bairro: espaços interligados
Não só as cidades operárias formam uma nova alternativa para o controle dos
trabalhadores. Podemos citar as vilas operárias construídas pelas próprias empresas e até
bairros inteiros que se construíram ao redor de uma fábrica ou de um complexo industrial.
Seja por iniciativa da própria empresa ou por uma demanda social, os bairros que
crescem em torno das indústrias têm suas características próprias e por vezes servem ao
interesse de melhor controlar a mão-de-obra.
60
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
69
No caso do Jacaré, a proximidade entre moradia e trabalho trazia conseqüências
para a relação entre trabalhadores e a empresa. Segundo podemos observar, essa
proximidade com o trabalho era incentivada pelas empresas.
Então a gente sabia também, que o patrão estimulava. Assim que o patrão
estimulava até que o trabalhador saísse da baixada ou de outros bairros para
vir morar no Jacarezinho porque ele sabia que se aquele trabalhador, se ele
precisasse de noite, sábado, domingo ele entrava. Então era comum, quando
eu era criança os chefes subirem o morro para ir chamar o empregado com
algum problema na fábrica.
61
(professora e ex-moradora do Jacarezinho)
Essa relação de proximidade do trabalhador com o local de trabalho facilitava
atitudes como a citada acima, em que o empregado ficava a disposição do trabalho 24
horas por dia. Outro fator que fazia com que fosse estimulada a fixação do trabalhador
próximo ao local de trabalho era a economia feita pelo empregador, diminuindo custos
com o deslocamento do operário. Quando perguntado se a proximidade com o trabalho
ajudava ao trabalhador, temos a seguinte colocação:
Ajudava pelo seguinte, porque a escola também ficava perto do bairro e
as empresas não tinham... tinham uma despesa a menos na questão de dar um
salário melhor para pagar a passagem, não existia vale transporte, era tirado
mesmo da passagem, do salário do trabalhador.
62
(dirigente sindical dos
metalúrgicos e ex-morador do Jacarezinho)
No caso da Fábrica Nacional de Motores (FNM), Ramalho (1989:107) assegura
que: “não são poucos os que se referem a esta contradição entre as “vantagens”
oferecidas pela FNM para quem se dispusesse a morar nas vilas operárias e o ônus que
representava a interferência direta exercida sobre o tempo livre do operário”. No entanto,
no caso do Jacarezinho essa contradição aparece com menos vigor nas entrevistas.
Mesmo no exemplo citado anteriormente sobre a possibilidade de o chefe ir buscar um
operário no meio da noite o pressuposto do ônus não se destaca com tanta relevância. O
fato de não termos uma vila operária instituída com um regulamento pré-definido sugere
que as possibilidades de extensão do poder da fábrica ao bairro são menores que em casos
como o da FNM, onde a empresa era proprietária das casas dos operários. Entre as
61
Entrevista concedida a autora em 12/07/05.
62
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
70
vantagens de se morar próximo ao trabalho, podemos citar também a dispensa da
marmita.
Quer dizer, aquele trabalhador e a trabalhadora ele não fazia o cálculo de
passagem e nem o próprio cálculo da alimentação, mesmo ele voltando para
casa só tendo arroz, feijão e ovo, para eles tava bom, porque foi e voltou e
comeu rapidinho. Não precisava preparar marmita. Porque o que... sempre
achei interessante no Jacaré, a questão da marmita né! Que marmita sempre
foi uma coisa assim... o pessoal se constrangia de abrir... Então quem leva
marmita ou quem levava marmita gastava mais, porque ele tinha que fazer um
esforço danado pra ter a carne. Porque o trabalhador sempre teve vergonha de
abrir a marmita só ter arroz, feijão e uma verdura, então mesmo que ele
comprasse só um pedacinho de carne pra ele levar era um custo maior. Mas
aquele que ia almoçar em casa, ele comia aquilo que tinha, angu com couve,
arroz puro, arroz com banana, ovo, lingüiça. Alguma coisa assim, bem mais
simples. Mas ele não dava satisfação, ninguém via... E não calculava isso.
Quando a gente dizia, se você ganhar mais, se você não sei o que, você vai
comer melhor: Eu como, como fresquinho né. A gente também, você tinha
esse embate.
63
(professora e ex-moradora do Jacarezinho).
A mesma entrevistada continua falando sobre a dificuldade de se reivindicar
aumento salarial ou fazer uma greve
O que a gente ouvia, os salários nunca foram altos no Jacaré né... Mas
quando você comentava que o salário de São Paulo era maior, o trabalhador
aceitava porque dizia assim: ah eu trabalho perto de casa... Então eu acho que
hoje um grande problema do Jacaré, as fábricas terem fechado e o pessoal ta
trabalhando longe né. Então você não tinha assim, as greves ali eram mais
difíceis, primeiro que todo mundo sabia que se saísse ia ter outro ocupando
espaço, segundo: gente como eu vou fazer greve aqui na porta da minha
casa?
64
No Estado do Rio de Janeiro, temos também como exemplo, de cidade operária,
Volta Redonda. Planejada para abrigar trabalhadores em torno da Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN). Outras regiões do país foram tendo essa configuração, de cidade ou
bairro operário, com pouco ou nenhum planejamento, o que pode ter facilitado as formas
de resistência do operariado à disciplina imposta pela fábrica que se estendia aos locais
de moradia.
63
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
64
Idem.
71
O fato de a região do Jacaré abrigar um complexo industrial pode tornar mais difícil
a apreensão das práticas disciplinares estendidas ao bairro já que esses códigos eram
determinados por orientações diferentes de acordo com cada fábrica ou ramo de
produção. Contudo, isto não impede que identifiquemos, mesmo que pontualmente, a
opressão exercida pelas fábricas sobre os trabalhadores.
Paulo Fontes, em seu estudo sobre os trabalhadores da Nitro Química em São
Miguel Paulista, São Paulo, mostra a dificuldade de uma empresa privada exercer o
controle no bairro, no entanto ressalta que: “Certamente seu poder simbólico e material
sobre a população era enorme e dele temos resquícios até hoje” (Fontes, 1997:73).
Palavras como “castigo” e “punição” aparecem repetidas vezes nas entrevistas revelando
o lado coercitivo do trabalho nesse bairro. Em um depoimento, a análise feita pela própria
entrevistada, que compara o regime da fábrica a disciplina militar.
Essa última firma que eu trabalhei, levei uma advertência. Porque tinha que
dar aquela produção naquele horário, se não desse era punido. E era 150 peças
por hora, e passar esse viés aqui em uma blusa de gola careca, por hora. A
hora que não dava, as vezes o viés era mais largo, mais estreito, a máquina
dava problema, como você esta vendo aqui, aí era punido por causa disso.
Então eu digo que era um regime, tipo um regime... tipo regime militar.
65
(costureira e moradora do Jacarezinho)
O tipo de advertência variava de acordo com a firma ou com a vontade do chefe
responsável, como veremos no exemplo abaixo.
...tinha é patrão que como castigo né prendia o trabalhador na máquina, quer
dizer, dava como castigo ele não pode sair da máquina sabe é o dia todo na
máquina como castigo, enfim tinha muita coisa terrível né. Tinha fábrica que
tinha é o café da manhã né e como castigo aquele dia não tinha o café porque
conversou com o sindicato e tinha muitas coisas assim desse nível e
começamos, aí começamos a trabalhar.
66
(morador do Jacarezinho e ex-
dirigente sindical dos metalúrgicos)
Os operários se fixaram no bairro e passaram a fazer desse espaço uma extensão das
fábricas, sendo mais um lugar de sociabilidade entre os trabalhadores. Se a disciplina da
fábrica influenciava no modo de vida dos trabalhadores no bairro, a resistência a essa
65
Entrevista concedida à autora em 04/07/03.
66
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
72
política não se fez de forma menor. No bairro, os próprios moradores imprimiram sua
força de trabalho na melhoria do espaço de moradia.
Mike Savage (2004), ao problematizar a questão do espaço, com relativo destaque
para o estudo dos trabalhadores, nos faz refletir sobre as maneiras pelas quais a dinâmica
espacial influencia as formas de conflito e a mobilização política dos operários. A
proposta dessa perspectiva é a de que os pesquisadores não negligenciem o papel do
espaço nos estudos sobre trabalho e trabalhadores.
Desejo então sugerir que uma sensibilidade espacial maior nos
possibilita explorar, de modo mais sofisticado, os complexos elos entre
estruturas de classe, formação demográfica de classe e formas de mobilização
política (Op. cit.:40).
É a partir dessa maior sensibilidade espacial, proposta pelo autor que podemos
enriquecer os estudos sobre o mundo do trabalho. No caso nos trabalhadores do bairro do
Jacaré, o espaço é fundamental para entendermos a mobilização política que aparece
como uma das características principais desses homens e mulheres.
A agremiação em torno de uma melhor qualidade de vida, entre os trabalhadores
deste bairro, fez com que práticas sindicais e partidárias, de costume usadas nas fábricas,
fossem levadas para o bairro, fortalecendo o movimento operário e o próprio movimento
comunitário. Os trabalhadores criaram vários tipos de solidariedade, constituindo-se em
um grupo de coesão dentro e fora da fábrica.
As divergências não são negadas; diferentes ramos da produção, filiações a
diferentes partidos e migrantes nordestinos de diversos “nordestes”. Porém, a necessidade
de união em torno de um projeto “único” fez com que esses diferentes atores se
identificassem de forma coesa. Esse tipo de articulação se faz notar quando, por exemplo,
metalúrgicos promovem greves junto às costureiras, greves que envolviam inclusive
moradores do bairro que não eram operários.
Então quando eu ia para a porta das fábricas, as garotas começavam a
reclamar puxa você só faz para os metalúrgicos. Por que você não ajuda a
gente? Aí começamos a trabalhar dos dois lados e o que nós fizemos? Ia para a
porta das fábricas e fazia os dois trabalhos metalúrgicos e costureiras”
...conseguimos botar, fazer passeatas de 1000 e poucas pessoas,
principalmente mulheres na época da greve das costureiras né e aquela
73
multidão de mulheres seguia a gente no meio da rua igual a um doido...
67
(morador do Jacarezinho e ex-dirigente sindical dos metalúrgicos)
Com esse exemplo podemos ver que esse grupo constituiu-se a partir de uma
identidade que ia além do vínculo com as categorias profissionais de classe. O espaço do
bairro, assim como o da fábrica, permitiu a construção de uma identidade entre essas
pessoas que perpassou as diferenças de um grupo tão heterogêneo. Isso não significa
dizer que essas pessoas negavam sua relação com outros grupos para constituir essa
unidade. Savage ressalta a importância do espaço na formação da identidade: “a formação
de uma classe é um processo espacial, em que identidades locais e identidades de classe
se podem fundir e combinar” (Savage, 2004:41). É essa fusão e combinação de
identidades que caracteriza os atores no espaço do bairro do Jacaré.
Neste espaço operário a percepção da relação entre trabalho e vida privada começa
ainda na infância, seja pelo ritmo imposto pelos apitos das chaminés, que funcionam
como relógio ou pela iniciação na fábrica em terna idade. Os primeiros anos de trabalho
também vão ser responsáveis pela formação da identidade de muitos dos entrevistados.
3.3 - Os primeiros anos de trabalho
Falar em infância no Jacaré, Jacarezinho, principalmente para os filhos dos
operários é também relembrar os primeiros anos de trabalho. Bem jovens muitas das
crianças e adolescentes dessa região tinham o seu primeiro contato com a fábrica. Por
vezes, estes jovens definia em terna idade o que viria a ser sua profissão pelo resto da
vida, entrando bem cedo nas redes que permitiriam sua formação profissional e
permanência em um posto de trabalho.
Abordar a questão do trabalho infantil como categoria especifica de análise neste
trabalho pode parecer contraditório com as narrativas dos entrevistados. Para eles apesar
de todas as especificidades de se começar a trabalhar entre os nove e 14 anos de idade,
67
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
74
essa foi apenas a entrada no mundo do trabalho, algo, se não natural, ao menos
extremamente necessário para essas pessoas. Ao longo da pesquisa, pude perceber que
para esses trabalhadores, em sua maioria com mais de 40 anos de idade, a rotina do
trabalho começou na infância. Essas pessoas conheceram muito cedo as duras regras de
trabalho na fábrica.
Eu quando garoto, nos anos 70, eu comecei trabalhar em oficina mecânica
justamente no bairro do Jacaré. Na época, no bairro do Jacaré existiam muitas
empresas de pequeno porte, médio porte e de grande porte. E essas empresas
de pequeno porte, metalúrgica elas empregavam muitos menores, garotos,
garotos assim que precisavam trabalhar e a aprender as profissões dentro da
própria empresa... olha o trabalho, assim como todo menor que não tinha outra
escapatória a não ser na época o trabalho né, se fosse hoje não sei como seria
né, mas só tinha uma alternativa, era fazer biscate né. Ou levar lixo e tal... E
na fábrica era o seguinte todos os garotos eram contratados para fazer o
serviço de limpeza, fazer o serviço de, de boy muitas das vezes. E no decorrer
do tempo o encarregado, o dono da empresa pedia que se aproximasse das
máquinas para aprender ali na prática né, aprender a fabricar peças, a
transformar a matéria prima né, em bens de consumo. Então era a
oportunidade que nós tínhamos de aprender. E a vida na fábrica era muito
dura, cada um tinha que levar sua marmita, não tinha almoço, não tinha plano
de saúde...
68
(dirigente sindical dos metalúrgicos e morador do Jacarezinho)
Começando a trabalhar aos nove anos de idade, nosso entrevistado descreve um
pouco dessa iniciação na vida adulta. Apesar de ressaltar que a vida na fábrica era “dura”,
ele nos mostra outro lado desse processo. Era a oportunidade que tinham de aprender uma
profissão. Para a maior parte dessas crianças e jovens, era necessário contribuir para a
renda familiar, não lhes restando muitas opções além da iniciação ao trabalho ainda bem
jovens.
O controle do operário começava em sua formação. Aprender a profissão na própria
fábrica também podia significar aprender as regras de submissão aos interesses do
empregador bem cedo.
69
Na fábrica o trabalho infantil era muito lucrativo para o
empregador, o menor raramente tinha carteira assinada e seu salário não equivalia ao de
68
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
69
O aprendizado do processo de trabalho a partir do ingresso na linha de produção era comum nas fábricas
e também incluíam os adultos. “Esse processo de investidura da profissão trouxe conseqüências para a
comunidade de trabalhadores que se instalou na FNM, pois muitos foram se interando da exploração de que
eram o objeto no próprio processo aprendizado já diretamente engajados no processo de produção.
Significa também que dentro dele se criaram as expectativas de ascensão dentro da fábrica e se construíram
os primeiros movimentos de resistência as métodos implantados de exploração da força de trabalho”.
(Ramalho, 1989:133)
75
um funcionário adulto que exercesse a mesma função. Na fala abaixo destacamos a
ressalva em relação a carteira assinada.
...muitos não tinham carteira assinada, no meu caso não trabalhei de
carteira assinada esse período todo, de 9 até 17 anos, não trabalhei de carteira
assinada, eu e todos os outros garotos da época... completei 29 anos de
empresa, trabalhando nessa grande empresa, se fosse somar com o tempo de
garoto já estaria aposentado, que eu trabalhei desde de os 9 anos de idade, nas
empresas lá no Jacaré, como garoto de metalúrgica pequena.
70
(dirigente
sindical dos metalúrgicos e ex-morador do Jacarezinho).
Em algumas entrevistas é ressaltada a descoberta da possibilidade de poder
trabalhar bem jovem, em alguns casos inclusive com carteira assinada, o que fazia o
empreendimento mais interessante para os jovens. O “apoio” do governo ao trabalho de
menores também é ressaltado como positivo quando comparado aos dias de hoje.
Agora é em 1970 e 78 por aí eu já era um pouco maior e foi aonde eu
comecei a descobrir que eu poderia trabalhar. Eu tinha catorze anos de idade,
existia aqui dentro do Jacarezinho várias fábricas né. Aqui dentro do
Jacarezinho, nós tínhamos aqui, beirando aí umas quatrocentas fábricas, se não
tiver mais. Não sei que eu ainda não fiz esse calculo, não contei, mas deve ter
mais ou menos umas quatrocentas fábricas que existiam trabalhando,
funcionando legal. Então aqui era, antigamente a gente trabalhava com catorze
anos, existia emprego pra gente, você podia... antigamente o governo deixava
menor trabalhar com carteira assinada né.
71
(ex-trabalhador da GE e morador
do Jacarezinho).
Na fala abaixo mais uma vez o trabalho na infância é referido em um aspecto
positivo. Na infância era possível trabalhar meio turno e estudar. Na fase adulta os
operários eram obrigados a estudar a noite, o trabalho lhes tomava agora mais tempo.
Então era assim: de manhã oficina e a tarde o colégio. E depois quando
foi trabalhar mesmo na empresa, todos nós tínhamos que trabalhar o dia
inteiro e estudar à noite.
72
(dirigente sindical dos metalúrgicos e ex-morador do
Jacarezinho).
As memórias da infância não são marcadas apenas pelas lembranças do trabalho nas
fábricas. A vida na escola também é tida como um ponto de referência, no entanto,
diretamente articulado com a presença das fábricas no bairro. Falar em educação no
70
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
71
Entrevista concedida à autora em 27/07/05.
72
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
76
Jacarezinho quase que pressupõe fazer menção a duas instituições de ensino que
recebiam alunos com bolsas oferecidas por duas grandes indústrias da região, a GE e a
Cisper.
O Primeiro colégio que eu estudei foi na chamada, hoje chamado IEIC,
Instituto de Educação Imaculada Conceição...temos a Igreja lá no Jacarezinho
chamada Nossa Senhora Auxiliadora, o padre Nelson também ele não podia
expressar no colégio, ele também tinha um colégio, o colégio era da Igreja
católica, eu também estudei nesse colégio também.
73
(dirigente sindical dos
metalúrgicos e ex-morador do Jacarezinho).
Esse trecho sintetiza a história percorrida por muitos moradores do Jacarezinho,
estudar no Colégio Imaculada Conceição e na Escola Alberto Monteiro de Carvalho (O
Colégio do Padre Nelson). Como veremos a seguir, essa trajetória está diretamente ligada
ao desenvolvimento industrial do bairro e a uma estratégia de grandes empresários do
complexo industrial do Jacaré, preocupados não só com a educação, mas também com a
legitimação de seu papel social dentro do Jacarezinho.
Nas entrevistas, aparece como orgulho e benefício o fato de muitos terem estudado
dentro do Jacarezinho, ou bem próximo, em colégios particulares com bolsas fornecidas
pela GE e pela Cisper. Em 1960, instala-se no “pé do morro” do Jacarezinho, ou seja, na
parte baixa do morro, o Instituto Imaculada Conceição e muitos alunos do Jacarezinho
passaram a estudar nessa instituição com bolsas fornecidas pela GE. Nas entrevistas, o
critério de seleção dos bolsistas é apontado em suas variações ao longo do tempo. Se de
inicio só os filhos dos funcionários podiam estudar nesse colégio, logo o benefício foi
estendido a outros moradores do Jacarezinho. Isso fez com que a GE tenha até hoje o
respeito e admiração dos moradores, operários e ex-operários da fábrica. Esse tipo de
atitude da empresa em relação aos moradores do entorno fez amenizar situações de
conflito entre a GE e os operários.
É a questão da escola, qual era o grande problema daquela época? Eram
pouquíssimas escolas que tinham na área, mas a escola pública não era pra
favelado, a escola pública era pra classe média ou então se você tivesse
alguma indicação política. Eu nunca estudei em escola pública, nem meus
irmãos, nem meus vizinhos. Foram raríssimos casos de vizinhos, assim da rua
que eu morava na rua próxima que eu lembre que tenha estudado em escola
73
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
77
pública. Ai o que aconteceu, é... tinha a famosa escola da GE [Instituto de
Educação Imaculada Conceição] que existe até hoje que é onde eu fiz primário
e ginásio, Imaculada Conceição, que era uma escola que foi construída é na
descida do Morro em Maria da Graça, onde era pra atender, os alunos, a
criançada próximo e todos os filhos dos funcionários dos trabalhadores da GE,
da General Eletric, tinham direito a uma bolsa integral. Logo depois foi
divulgada que não bastava, é... mesmo não tendo... não sendo filho, podia ter
parentesco, e depois não precisava ter parentesco, só precisava ser indicado. O
que eu entendi, o que depois a gente começou a entender, assim a escola era
particular, era uma área carente, próximo a área carente, o pessoal de Maria da
Graça e Caxambi que poderiam usar a escola, já estavam nas escolas públicas
de lá. Então sobrou poucos alunos para ir pra lá. E a GE dava bolsa na época,
foi nos anos, 69 eu fui para o Ginásio, 66, 67... com isso era muita criança né,
era bolsa integral, só não tinha merenda. Então para o pessoal do Jacarezinho
aquilo era uma escola pública porque não pagava. E foi aberto para toda a
população. Então todo mundo teve direito de estudar ali com bolsas da GE.
74
(professora e ex-moradora do Jacarezinho).
A importância das bolsas da GE é tão grande que a maior parte das pessoas se refere
ao Colégio como sendo o “Colégio da GE”. Em poucas entrevistas a questão das bolsas
foi tratada com mais detalhes, o que ficou na memória foi a expressão que sugere que o
colégio pertencia a empresa. Percebemos, portanto, a força dessa iniciativa da GE, que ao
fornecer algo tão necessário aos moradores, a educação, criou uma imagem positiva e que
permaneceu no imaginário coletivo do Jacarezinho.
74
Entrevista concedida à autora em 12/07/05. Além da entrevistada, seus cinco irmãos estudaram com
bolsas no Colégio da GE, sem nunca ter tido parentes que trabalhassem na fábrica.
78
Vista da Via GE. Do lado direito temos a Jacarezinho, do lado esquerdo o muro da fábrica da GE. Fonte:
Armazém de Dados - www.rio.rj.gov.br
Outro colégio citado nas entrevistas é o Colégio do Padre Nelson. Esse colégio que
funciona na Igreja Nossa Senhora Auxiliadora é mantido com verbas dos Salesianos, da
Cisper e da GE. Muitos alunos, filhos de operários dessas fábricas e moradores do
Jacarezinho, estudam no colégio com bolsas fornecidas pela GE e pela Cisper.
Continuando a contar a história da educação no Jacarezinho, nossa entrevistada
prossegue:
...tempos depois, anos depois com a construção da Igreja, a Igreja saiu,
começou a obra pelos Salesianos dentro do Jacarezinho, onde tinha um lixão
que a população limpou para construir a Igreja e era da obra dos Salesianos.
Os Salesianos têm um histórico de trabalhar com educação né. Em todos os
lugares. Então eles construíram, junto com a Igreja usaram a Igreja como salas
de aula a partir daí também construíram um colégio. E com bolsas integrais,
também da GE numa cota menor, também da Cisper que era a grande
manutendora da escola. Então o que aconteceu? eu continuei na GE mais a
gente já viu a molecada do Jacaré estudando dentro do Jacarezinho, dentro de
um colégio dos Salesianos sem pagar, eram bolsas mantidas pela GE, e pela
79
Cisper, eram duas grandes indústrias que mantinham a escola né, tudo.
75
(professora e ex-moradora do Jacarezinho)
As grandes indústrias do bairro investiam na educação dos filhos de seus operários
e dos próprios moradores do bairro. Quando a entrevistada nos fala que começou a ver os
garotos estudando dentro do Jacarezinho e sem pagar, reconhecemos em seu semblante a
alegria de perceber o desenvolvimento da região e as oportunidades que foram surgindo
para os novos moradores. No entanto, em algumas falas temos uma visão crítica sobre o
posicionamento das empresas. Podemos perceber o questionamento da doação de
algumas práticas por parte dos empresários, como tendo a função de aproximar o
trabalhador e o morador do bairro da empresa criando um sentimento de gratidão em
relação a algumas fábricas. Ramalho (1989) nos chama a atenção para o imobilismo
criado pela prática de oferecer benesses aos operários.
Veremos também que um desses espaços de dominação da fábrica foi
vivido pelos trabalhadores de modo contraditório e complexo, de tal modo que
a percepção da imposição e da exploração era sempre minimizada pela noção
de benesses, o que configurava uma situação na qual as reações significativas
dos trabalhadores permaneceram praticamente inibidas na maior parte desse
período. (Ramalho, 1989:86)
O período a que se refere o autor diz respeito ao momento em que a FNM deixa de
ser estatal e passa a sociedade anônima, mas o controle acionário ainda pertencia a União.
Guardadas as proporções do tipo de intervenção de uma empresa com essas
características, e uma formada apenas pela iniciativa privada, e que não é proprietária das
casas, podemos fazer algumas correlações. Os benefícios oferecidos aos moradores do
Jacarezinho pelas grandes industrias da região inibiam uma ação crítica em relação à
empresa por parte de alguns moradores.
O que eles faziam o tempo todo era um trabalho de... bondade. O
trabalhador já se sentia agradecido, primeiro que ele tinha duas grandes
indústrias, uma multinacional, a Cisper é nacional, não sei como está hoje. O
dono da Cisper ia no Jacaré. Subia o morro a pé, assistia a missa, então a gente
conhecia os donos da Cisper né. A direção da GE subia o morro a pé. A GE, a
Fundação Leão XIII ajudou com equipamento para o curso de torneiro
mecânico e de ajustador, frisador. Montou equipamento e os, os funcionários
da GE que davam aula. A gente tem, se pegar hoje, boa parte pode estar
75
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
80
aposentado. A gente tem centenas de trabalhadores do Jacarezinho moradores
que fizeram esses cursos e que saíram de lá empregados. Todos nas indústrias
em volta do Jacarezinho. Então desde o momento que fizesse o curso de
tornearia, de ajustagem... lá na Fundação Leão XIII. E quem eram os
professores? Todos da GE né, eram funcionários da GE que trabalhavam.
tinha aula de manhã, a tarde e a noite. Todo mundo que fazia o curso, concluía
o curso tinha emprego garantido, nas fábricas aqui. Então o que acontecia o
pessoal gostava dos patrões, porque os patrões davam emprego pra quem
morava aqui. E você tinha duas grandes indústrias que tinha a bondade de dar
as bolsas, como não tinha escola pública suficiente.Você via assim a gente
denunciava isso o tempo todo, tinha alguma resistência na comunidade, eles
diziam: “assim, não tem escola pública, mas tem a GE e tem o Padre Nelson.
Mas lá não é pública - Dá no mesmo, a gente não paga”. E o empresariado
dava bolsa pra todo mundo, então eles eram... você tinha uma população
agradecida ao empresariado, que ajudava né. Dava emprego, dava escola.
76
(professora e ex-moradora do Jacarezinho).
Temos que ressaltar que as bolsas distribuídas para os dois colégios podem não ter
atingindo um grande número de moradores, levando em conta a população do
Jacarezinho. No entanto, no imaginário, principalmente daqueles que se beneficiaram
estudando nessas instituições, o que ficou registrado não deixa dúvida da importância
dessa política para o Jacarezinho.
Além da educação formal a GE também se preocupava com a formação técnica do
trabalhador. Através de um convênio com a Fundação Leão XIII, a empresa oferecia
formação profissional para moradores do bairro. Segundo os entrevistados a
probabilidade de conquistar um emprego, depois de fazer um dos cursos na Fundação
Leão XII, era grande.
3.4 - Do samba a voz e a memória: passado repleto de glória
77
Entre “alegrias” e “tristezas”, a memória desses operários narra uma parte da
história do Jacaré. Um dos entrevistados fez questão de ressaltar: “Teve muita coisa
bonita, gostosa, interessante e teve muitas coisas tristes, chocantes”
78
. Entre a opressão da
76
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
77
O título faz referência a versos do samba “Monarco, voz e memória do samba, um passado de glória”.
Barbeirinho do Jacarezinho, Gilson Bernini, Carvalhaes e Baiano do Pandeiro. Unidos do Jacarezinho,
2005.
78
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
81
fábrica, o trabalho exaustivo e a perseguição na militância havia os momentos ‘bons”.
Não só as conquistas do movimento operário e comunitário representam esses momentos
da “coisa boa”. Mas entre as lutas do movimento de esquerda dentro do Jacarezinho
estava a preocupação com o lazer.
...o nosso embate era político o tempo todo, era um grupo de esquerda
que lutava por melhores condições de vida na favela, por saneamento né, por
lazer, por educação, por trabalho, essas eram as bandeiras de luta.
79
(professora e ex-moradora do Jacarezinho, grifos meus).
As formas de lazer no bairro também estão representadas na construção da memória
desses homens e mulheres. A partir de suas falas conhecemos um universo que vai muito
além do dia-a-dia nas fábricas. Mas quais seriam esses espaços de lazer?
Podemos destacar entre esses espaços o “Samba”. O Jacarezinho, assim como
muitos bairros da região da Suburbana, têm uma tradição de blocos e escolas de samba.
Em 1966 com a junção da Unidos do Jacaré e a Unidos do Morro Azul surge a Unidos do
Jacarezinho. Sobre a formação da Escola de Samba, uma das entrevistas nos fala:
...era o samba, a Escola de Samba, eram três né, depois se fundiram em
duas. Era um bloco, o Não tem Mosquito, a Escola de Samba Unidos..., era
Escola de Samba do Jacarezinho e a do Azul, depois se fundiu a do Azul com
Jacarezinho e se criou a Unidos do Jacarezinho. O Mosquito não quis se aliar e
continuou bloco. Tinha o desfile. Então, o que era o lazer, era a escola de
samba ou o bloco...
80
(professora e ex-moradora do Jacarezinho)
A descrição de uma dos mais importantes formas de lazer no Jacarezinho nos
remete ao espaço do bairro.
Esta Escola está localizada no morro do Jacarezinho, o maior morro do
Estado da Guanabara em número de habitantes, estando localizado no bairro
do Jacaré, o 2° parque industrial do Estado.
81
(Jório e Araújo, 1969).
Entre um dos motivos de orgulho dos moradores desse “grande morro” podemos
citar a participação de Hildemar Diniz (Monarco) como compositor da escola
82
. Sua
79
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
80
Idem.
81
Hoje a quadra da Unidos do Jacarezinho esta localizada na Avenida Dom Helder Câmara, no bairro de
Vieira Fazenda.
82
importância foi tamanha que em 2005 o enredo da Unidos do Jacarezinho homenageou o
“Poeta” do samba.
Além da Escola de Samba, havia as festas promovidas pela Igreja Católica. Essas
festas eram outro ponto de encontro que agregava os moradores do bairro.
...o que você tinha de festa para aglutinar? Eram as festas organizadas
pela Igreja. Eram as festas de São João e coisa de coroação de Nossa Senhora,
é aquela coisa do ato de Natal. E eu, desde de pequena, eu me envolvi muito
na Igreja, eu participava. A minha mãe como era muito católica e essa
ausência da família, também, então eu participava, de festa junina na... Eu
minha mãe, meus irmãos, festa junina, festa de Natal. Qualquer coisa que
tivesse na Igreja, que sempre foi uma forma de aglutinar... Assim, a Igreja
Católica sempre foi muito forte no Jacaré né.
83
(professora e ex-moradora do
Jacarezinho).
Outra forma de lazer mencionada nas entrevistas teve um importante apelo político.
Mas, sobretudo, parece ter envolvido diversos segmentos de moradores. “A gente
construiu três festivais de música dentro do Jacarezinho, com esse intuito de divulgar
mesmo música de protesto”. Pode parecer contraditória, mas os festivais foram realizados
dentro da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora. Na organização e fazendo a locução do
evento, nossa entrevistada nos narra os três anos de festival.
E a gente construiu na época dos festivais, a gente construiu três festivais na
Igreja, mesmo o padre metendo porrada na gente, a gente conseguia fazer
alguma coisa lá. Nós fizemos festival, 72, 73, 74, com música de protesto,
muito bom. Era organizado pelos alunos [alunos do colégio que funcionava
dentro da Igreja], a gente já estava na escola, alguns professores ajudaram.
Engraçado, foi a partir daí... que eu já fazia um trabalho dentro da escola né.
Foi a partir daí que eu me juntei aos grupos de esquerda. Porque aí algumas
dessas pessoas foram assistir o festival aí me conheceram lá e a partir daí eu
comecei a ser convidada em 72 a fazer parte do Grupo Amarelo dentro do
Jacaré, quer dizer, depois a gente botou nome de Grupo Amarelo (risos) foi a
partir daí dos festivais.
84
(professora e ex-moradora do Jacarezinho).
82
Monarco criou alguns enredos para a escola, além de compor quatro sambas-enredo. Um dos sambas
mais importantes composto pelo autor foi o “Vila rica de Pilar” (1969). Após conquistar o 2° lugar no
desfila do grupo B a escola desfilou em 1970 no primeiro grupo. (Vianna, 2004)
83
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
84
Idem. Em uma das campanhas para eleição na Associação de Moradores do Jacarezinho a disputa era
entre um grupo mais a “esquerda” e seus opositores. A cor vermelha escolhida para a chapa vinculou esse
primeiro grupo os comunistas. Para minimizar o impacto entre os moradores, o grupo resolve usar a cor
amarela em sua chapa. Na época, como forma de deboche, os opositores usavam a seguinte expressão: “os
comunistas amarelaram”. A partir dessa eleição, esse grupo passa a ser conhecido como o Grupo Amarelo.
83
Os artistas que cantaram nos festivais eram em sua maioria personalidades musicais
do próprio Jacarezinho. Entre eles, o grupo ligado a Escola de Samba marcou presença.
Era o pessoal do morro, era todo mundo. Quem mais freqüentou o primeiro
ano... o primeiro ano do festival em 72, foi o pessoal do grupo jovem da Igreja
e alguns alunos e fez muito sucesso. O segundo ano a gente fazia três dias, e
no segundo ano já ampliou e já chegou algumas pessoas do samba, da Escola
de Samba e eu me lembro... aí o que aconteceu, o pessoal do samba... a gente
ensaiava dentro da Igreja. Quem era o conjunto, a gente tinha um conjunto pra
acompanhar, pessoas do Jacarezinho, alguns do grupo jovem, músicos e a
gente montou uma banda. Tinha bateria, guitarra, baixo, era um na bateria e
três... Eu sei que era guitarra, baixo, era guitarra... e eles acompanhavam todas
as músicas. Então o pessoal se escrevia a gente fazia os ensaios na Igreja
sábado a tarde, depois ia pro festival. Aí o pessoal do samba veio para se
escrever, a gente, claro que aceitamos e inclusive um deles... ele é um dos
grandes compositores da Mangueira, que já ganhou alguns sambas enredos na
Mangueira. Aí a música deles era muito legal.
85
(professora e ex-moradora do
Jacarezinho).
Além dos festivais e do samba, o futebol e as festas entre amigos são destacados
entre as formas de lazer mais comuns.
Agora dos costumes das pessoas, vamos botar assim, da questão da
cultura, as questões mais pelo lado do lazer existia... na área de lazer vo
tinha várias opções, quer dizer, pra nossa juventude... campo de futebol, tinha
um atrás do outro, quer dizer, tá se divertindo e podendo criar uma ampla
amizade do próprio bairro. Assim, o ano novo, a confraternização, quer dizer,
isso vem desde o tempo do meu pai. Então, aquela questão das famílias se
reunir. E depois tinha aquele movimento de confraternização, cada um ia na
casa do outro, a gente fazia mesmo a confraternização. Eu mesmo ia terminar,
ia acabar de festejar o dia todinho lá dentro do Jacarezinho, na casa de amigos
meus dentro do Jacarezinho. A gente saía percorrendo, e a gente ficava lá
dento do Jacarezinho, comemorando dentro das casas das pessoas. Então, quer
dizer, falando assim, dá até saudade daquela época da minha infância.
86
(ex-
dirigente sindical dos metalúrgicos)
85
Entrevista concedida à autora em 12/07/05. O samba no Jacarezinho “exportou’ nomes para outras
escolas de samba. Alguns dos compositores do Jacarezinho, já trabalharam para grandes nomes do samba.
Barbeirinho do Jacarezinho e Rody do Jacarezinho já compuseram para Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho.
Até hoje Barbeirinho usa o Jacarezinho em seu nome, motivo de orgulho para o compositor e para os
moradores do Jacarezinho.
86
Entrevista concedida à autora em 09/05/03.
84
Para os homens, o futebol era o principal meio de diversão, seja nos campos dentro
das fábricas, ou nos demais espalhados pelo bairro. O lazer com a bola significava
também encontrar velhos amigos e fazer novos laços de amizade. No caso dos campos de
futebol dentro das fábricas
87
, destaca-se o campo da GE. A empresa costumava organizar
campeonatos que reuniam os operários de diversos setores
88
.
E existia aqui é, depois que eu foi crescendo e tal, nós tínhamos aqui
três campos, três meios de diversão que eram os campos né, nós tínhamos três
campos chamado campo do Sapão, nesse campo do Sapão existia três campos
né, onde hoje em dia existe o Brizolão e o CCDC.... [Centro Comunitário de
Defesa da Cidadania – órgão de competência do Governo do Estado do Rio de
Janeiro].
89
(morador do Jacarezinho e ex-trabalhador da GE).
Outro entrevistado nos fala do futebol como parte do cotidiano do Jacarezinho e
acrescenta os bailes realizados na sede dos clubes como importante espaço de
sociabilidade, onde, por ventura poder-se-ia até arranjar um casamento.
Olha, pra começar, eu vou dizer o seguinte: nós estamos reunidos aqui, nesse
local aqui já foi um grande campo de futebol, aqui era um campo de futebol e
tinha o nome de, se não me engano era Céu Azul. A sede era aqui na rua
Joaquim Silva. O campo era aqui e a sede era ali... eu já joguei futebol aqui no
Jacaré em quase todos os campos que existiam. Era uma prática esportiva que
eu gosto, adoro muito futebol. E aqui o Jacarezinho já foi um celeiro de
craques, aqui já teve grandes jogadores de futebol, alguns chegaram a ser
profissionais e outros não. Mas era um grande divertimento para essa
comunidade, eram os domingos à tarde por conta do futebol. Se jogava
futebol, via o seu time jogar, vários times bons. E depois do futebol tinha um
87
Fontes( 2002) chama atenção para o controle da Nitro Química sobre os espaços de lazer. No entanto, ele
ressalta as diversas estratégias criadas pelos operários para burlar esse a vigilância da fábrica. No caso do
futebol, a fundação de times por grupos informais que jogavam em suas ruas e vilas “abria um espaço de
autonomia em relação à gestão e controle da empresa e de outras instituições empresariais que procuravam
influir no lazer operário, como o Serviço Social da Indústria (SESI)”. Citando Bárbara Weinstein, o autor
destaca a tentativa de organizações empresariais como o SESI de regulamentar o futebol de Várzea. No Rio
de Janeiro, a Fundação Leão XIII também tentou impor regras para a prática de futebol nos campos das
favelas. Em artigo publicado no O Globo de dezembro de 1955, podemos observar a iniciativa dessa
instituição para impor regras ao futebol praticado nos campos de várzea das favelas.
88
Hoje em dia, o campo da GE fica aberto para o acesso do público que é majoritariamente de moradores
do Jacarezinho. Segundo um entrevistado: “A empresa que deixou o acesso livre, mas sendo que se você
for observar direito, ao redor do campo tem um muro da GE então aquelas pessoas só tem acesso àquele
espaço físico que é da GE [do campo de futebol], mas como a GE não vai medir força e tal [ele esta se
referindo as constantes invasões do campo para a prática do futebol], liberou aquilo, mas aquele espaço é da
GE, [o muro]é quebrado, virou um portão assim improvisado né”.
89
Entrevista concedida à autora em 27/07/05.
85
bailezinho à noite em cada sede de cada clube aqui do Jacarezinho. E ali se...
se namorava, se noivava e até casava porque era o cotidiano do Jacarezinho
era ali. Agora a história do Jacarezinho é uma história muito rica
politicamente...
90
(ex-operário e morador do Jacarezinho).
A fala acima é de um dos mais importantes lideres comunitários do Jacarezinho.
Ex-comunista e militante atuante, ele marcou presença na associação de moradores e na
Federação de Favelas do Rio de Janeiro. O trecho citado, atípico no seu discurso, mostra
um outro lado de sua experiência no bairro. Apaixonado por futebol, o militante também
se deixa levar pelas lembranças dos campos de futebol que marcaram sua juventude.
Entre a atuação no movimento operário e comunitário, e o próprio trabalho, esses
homens e mulheres encontravam nos espaços de lazer outra forma de sociabilidade. Nas
horas onde a descontração e a alegria predominavam, o grande Jacarezinho mostrava um
outro lado de sua história. Orgulhosos com as manifestações culturais existentes no
bairro, seus moradores lembram com alegria dos tempos de glória do Samba e dos
festivais de música.
No entanto, a forte atuação do movimento operário e comunitário no bairro não
permite-nos esquecer a atuação política desse grupo. No próximo capítulo veremos os
embates, conquistas e refluxos desses operários na militância política nas fábricas e
dentro do Jacarezinho.
90
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
86
Capitulo IV
Militância e militantes: as várias facetas de um bairro operário
A história operária é parte da história da sociedade, ou melhor, da história de
certas sociedades que possuem características especificas em comum.
Relações de classe, qualquer que seja a natureza da classe, são relações entre
classes ou camadas que não podem ser adequadamente descritas se analisadas
isoladamente, ou apenas em termos de suas divisões ou estratificações
internas. Isso implica um modelo do que são as sociedades e como funcionam.
(Hobsbawm, 1987: 29)
A presença dos sindicatos junto às fábricas era uma tarefa realizada em confronto
com as empresas. A distribuição de boletins, a organização de uma comissão dos
operários ou o fato de falar com um membro do sindicato poderia resultar em forte
retaliação sobre os operários. As reações patronais eram as mais diversas possíveis,
chamar a polícia durante manifestações era freqüente. No entanto, outras atitudes
reservadas ao âmbito da própria empresa também eram comuns. A fala de um funcionário
do Sindicato dos Vidreiros exemplifica ação de uma empresa durante a greve.
Então a empresa, ela sempre se preparou pra todos esses embates né,
fazendo como ela sempre fez, é não só as promessas, mas toda a infra-
estrutura dentro da empresa. Ela, por exemplo, segurava o pessoal que tava
naquele turno, não deixava ir embora pra casa né, aí preparava lá, tinha o
dormitório, colchonete, essas coisas todas pra aquele pessoal que tava dentro
da empresa não sair, continuar na fábrica. E os que vinham mesmo, que em
cada turno, por exemplo, uns cinqüenta funcionários, meia dúzia fizesse a
greve ele ia ficar mal visto né, perante a empresa, que se quarenta e cinco
entrou, cinco ficou do lado de fora...
91
(funcionário do Sindicato dos
Vidreiros).
A ameaça da perda do emprego ou de ficar “mal visto” na empresa imprimia tanta
violência no imaginário operário como a possível agressão física exercida pela polícia
durante as manifestações na porta da fábrica, fato também citado nas entrevistas.
Tanto é que na hora de você se sindicalizar na GE tinha um problema lá é o
caso, o próprio caso da empresa quando via chegar o desconto do sindicato
91
Entrevista concedida à autora em 09/08/05.
87
pergunta lá se você queria vir a ser sindicalizado ou se você queria trabalhar.
92
(ex-funcionário da GE e dirigente sindical dos metalúrgicos)
Outra fala nos mostra como o PCB era estigmatizado pelos empresários
93
, sendo
sinônimo de “má influência” para o operariado. As punições a membros e simpatizantes
do partido eram feitas a partir da demissão, o que segundo o entrevistado inibia outros
operários de participar do partido e de movimentos reivindicativos como um todo.
Então os comunistas, eles ficavam, como dizer clandestinos nesse partido o
MDB, lá uma vez ou outra conseguia se infiltrar numa fábrica pra fazer o
trabalho político, falar de sindicato... Mas quando era descoberto
imediatamente era demitido. Então, isso assustava as massas. Então foi um
período muito difícil.
94
(dirigente sindical dos metalúrgicos e ex-morador do
Jacarezinho)
O medo do desemprego, por perseguição política, está presente na fala dos
trabalhadores que participavam de alguma articulação no movimento operário, não sendo,
contudo, fator inteiramente restritivo à ação dos mesmos. Os operários construíram
formas de se articular mesmo com a opressão exercida pelos patrões.
Assim a conscientização dentro do trabalho trabalhava o tempo todo isso. O
pessoal sempre denunciava é tanto que... a gente sempre teve grande
problema, o nosso pessoal vivia desempregado, por causa disso né, que era
demissão mesmo. A gente tinha um leque de desempregado muito grande. Os
militantes ficavam desempregado muito rápido. Quando o pessoal via que o
pessoal tava ali questionando, botava pra fora. Até o número de prisões que a
gente teve acho que foi mínima. Porque a gente saía [do emprego] era
demitido muito rápido... Porque o que acontecia também, o Jacarezinho tinha
uma característica diferente da boa parte das favelas, era uma favela operária e
também tinha a grande preocupação do desemprego. Então você tinha uma
militância que ao mesmo tempo era de frente, mas ao mesmo tempo recuada.
Então você tinha os trabalhadores que te davam todo o apoio, mas não vinham
para a linha de frente com medo de perder o emprego né. Não só de perder o
emprego, mas de ser preso e torturado, sempre teve esse medo, neguinho tinha
medo de apanhar (risos), todo mundo tinha medo das porradas. Então, era
assim, mas a gente até conseguia fazer grandes reuniões, grandes debates.
92
Entrevista concedida à autora em 09/05/03
93
Paulo Fontes (1997) analisa como a Nitro Química construía abertamente um discurso anticomunista
através de seu o jornal, o Nitro Jornal.
94
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
88
Leitura, troca de material, a gente conseguia fazer essa troca mesmo sendo de
grupos diferentes, forma de encaminhar a luta diferente.
95
(professora e ex-
moradora do Jacarezinho)
O trecho acima traz uma grande riqueza de informações. A partir da fala do
entrevistado, captamos as contradições vividas pelo movimento operário no bairro. Se por
um lado temos um espaço operário, por outro temos o desemprego presente para aqueles
que de alguma forma contrariavam os interesses dos patrões. A militância era combativa,
mas recuava nos momentos em que julgava necessário para a manutenção de alguma
estabilidade. E, acima de tudo, nessa fala percebemos como os operários e o movimento
social como um todo conseguiam construir formas de permanecer atuando mesmo em
meio à repressão e à ameaça de desemprego.
Esse controle do patrão sobre o operário era presente também em seus espaços de
lazer,
96
caracterizando a fábrica como uma instituição total. Esse conceito é definido por
Goffman (1987)
97
e utilizado em referência às fábricas prisão. No entanto, tomamos a
licença de utilizá-lo para nos referirmos a instituição fábrica de uma maneira geral. Mas
até que ponto alguns preceitos das fábricas prisão estão tão distantes das unidades
produtivas contemporâneas?
Segundo Goffman (1987), nossos estabelecimentos industriais modernos podem
apresentar recursos aplicados, como refeitórios e espaços de lazer, no entanto há uma
preocupação para que “a linha comum de autoridade não se estenda a eles”. A realidade
das fábricas no início do século XX no Brasil não se adapta de todo a essa afirmativa. De
acordo com a realidade do bairro do Jacaré, parece-nos, ao contrário, que a preocupação
era com que a autoridade estivesse presente também nesses espaços alternativos, mas de
maneira mais sutil. Episódios como o narrado abaixo demonstram de que maneira a
fábrica poderia interferir nos momentos de lazer do operário.
95
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
96
Ao utilizarmos o conceito de Instituição Total temos que ter a compreensão de que ele não esgota toda a
realidade social. Como vimos no capítulo anterior, nem todos os espaços de lazer eram controlados pelos
“códigos de fábrica”. Tampouco a vida do operário se limitava aos espaços e formas de lazer oferecidos
pelas fábricas.
97
“Uma instituição total pode ser definida como um local de resistência e trabalho onde um grande número
de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de
tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. (Goffman, 1987:11)
89
E tinha uma coisa também que eu nunca me esqueço, foi que na hora do
almoço os trabalhadores de uma empresa que tem aqui perto... os
trabalhadores iam jogar bola na hora do almoço, que é o horário deles, e a
empresa proibiu de jogar bola... como eles não obedeceram a coisa mudou... o
Sílvio, que era o gerente geral, mandou que o segurança fosse lá pegar as
bolas... E os trabalhadores, brincando com o segurança começaram a dar olé
no segurança com a bola, um jogava para o outro, jogava para o outro os
seguranças ficam igual um doido atrás da bola (risos), entendeu? E aí deu
como castigo né, porque a fábrica tinha um café da manhã com pão e tirou o
café e o pão. E aí eu, como diretor sindical, e os companheiros também nós
fomos para lá e aí chegava lá fazia o maior estardalhaço, carnaval danado, ia
com som, aí fazia boletim, denunciava, aí fazia um barulho danado lá.
98
(ex-
dirigente sindical dos metalúrgicos e morador do Jacarezinho)
Assim como as greves, as manifestações na porta da fábrica e divulgação de
boletins funcionavam como forma de se contrapor à estrutura de trabalho, mas outras
formas, não tão convencionais, porém não menos válidas, eram usadas pelos operários.
Quer dizer, todos os funcionários dentro da tua qualificação profissional, de
cada grupo tinham... cada seção tinha o seu time né. Tinha o time dos
supervisores. Quando a gente pegava eles a gente metia-lhe a porrada, metia o
pau nele pra machucar. Aqueles supervisores que eram ruins com a gente, a
gente pegava eles pra machucar mesmo, mas depois ficava tudo bem, era só
na hora do futebol porque depois era todo mundo amigo (risos).
99
(ex-operário
da GE e morador do Jacarezinho, g
rifos meus).
A fala acima nos demonstra que as formas de reação ao controle e a disciplina na
fábrica podiam aparecer de forma mais sutil. Uma partida de futebol podia se tornar um
espaço legítimo, onde os trabalhadores extravasavam sua insatisfação com os
supervisores “ruins”.
Essa característica do Jacaré e do Jacarezinho de reunir trabalho e moradia em um
mesmo espaço determinou, como já vimos, uma configuração especial ao bairro. Essa
configuração de uma grande “Vila Operária” fez com que a luta no chão de fábrica, nos
sindicatos e nos partidos políticos atingisse o espaço do bairro. É nesse contexto que o
Jacarezinho desenvolve um importante movimento comunitário. Da mesma forma que
moradores participavam de greves importantes nas fábricas do Jacaré, lideres sindicais
vão empregar suas energias nas reivindicações de uma insurgente favela. Em um
interessante episódio de mudança de mão numa das ruas principais do Jacarezinho, temos
98
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
99
Entrevista concedida à autora em 27/07/05.
90
a dimensão da utilização das práticas sindicais em uma manipulação dentro da associação
de moradores. Por conta do congestionamento da via principal da favela, os moradores,
em assembléia, decidem torná-la mão única, mas: “nós não percebemos que no meio do
caminho tinha um posto policial né”.
O Meio Quilo,
100
um dos chefes do tráfico no morro, discorda da decisão e segundo
o entrevistado se pronuncia exigindo a mudança imediata: “meu pessoal todinho vai ter
que, vai ser obrigado a passar pelo posto policial né, isso tá errado!”.
Nós colocamos para ele: nós fomos aprovados numa assembléia... Nós
fazemos uma outra assembléia né e ele foi e concordou que a gente fizesse
uma outra assembléia nos ajudou a convocar (risos) a assembléia para que na
assembléia a gente votasse contra né. Só que tinha uma galera do PT né que
era grupo radical, do é trotskista... tanto [quanto] eu, também vinha tudo de
fora fazer o movimento aqui, não morava aqui né. Eles não sabiam do que
estava acontecendo e eles estavam contra, eles estavam a favor da proposta
original... e eles chamavam a gente de muda de casaca né... E eu não podia
falar porque estava mudando né. Aí comecei usando a forma pelega de lidar
com assembléia, que tem uma forma interessante que você percebe, a
assembléia tem vários momentos, tem momentos que você tá muito cheio né e
que você percebe que a sua proposta vai perder aí você não bota ela para
aprovar, enrola, aí você vai desgastando aí as pessoas vão se cansando, vão
saindo vão indo embora, vão esvaziando. Quando tiver bem esvaziado, você
vê que dá, que a maioria está do seu lado aí você coloca em votação tá e
ganha...
101
(ex-dirigente sindical dos metalúrgicos e morador do Jacarezinho)
Além da utilização da prática “pelega”, nesse caso também podemos perceber os
embates com que o movimento comunitário teria que lidar. O tráfico de drogas já era um
problema nos anos 80, exigindo muita flexibilidade dos líderes comunitários.
Entre operários, indústrias e o tráfico de drogas temos outro importante
personagem, a Igreja Católica Nossa Senhora Auxiliadora. Palco de discursos inflamados
contra comunistas e simpatizantes da causa, essa instituição também faz parte desse
cenário. Mais do que a própria Igreja um dos seus párocos, Nelson Carlos Del Mônaco,
fez história neste espaço. Tendo sua construção afiançada por uma grande indústria da
100
Meio Quilo foi morto em 1987 numa tentativa de fuga do presídio Frei Caneca, com o auxilio de um
helicóptero. Meio Quilo também ganhou notoriedade por protagonizar um romance com a filha de
Francisco Amaral
, ex vice- governador do Rio de Janeiro no mandato de Moreira Franco.
101
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
91
região, sua articulação no Jacarezinho se fazia através de uma atuação incisiva que
marcou a memória de muitos dos moradores.
4.1 - Jacarezinho com a bênção do pai
Apesar de o Jacarezinho contar com inúmeras igrejas de diferentes orientações
religiosas, a instituição que mais merece destaque nas falas dos moradores é a Paróquia
Nossa Senhora Auxiliadora. Já nos foi relatado que o Jacarezinho tivera uma mãe, a GE.
Mas será a Igreja o “pai” do Jacarezinho? Falar na Igreja da Ordem dos Salesianos
significa, para os moradores mais velhos, evocar o nome do Padre Nelson,
102
que
segundo nos induz a pensar um dos entrevistado, foi o “pai” do Jacarezinho.
Padre Nelson Carlos Del Monaco nasceu em Lorena, São Paulo, filho de
imigrantes, pai Italiano e mãe Francesa. Com 15 anos desperta seu interesse por uma
carreira de sacerdote. Em 1962, passa a morar no Jacarezinho e entra para a história dessa
favela. Figura presente na memória de católicos e não católicos, ele comandou uma série
de ações em promoção da comunidade e foi também pivô de alguns embates políticos
entre grupos mais à “esquerda” e a própria Igreja. Para se ter uma idéia de sua presença
na memória e na vida dos moradores do Jacarezinho, a Igreja é até hoje conhecida como
“Igreja do Padre Nelson”. E o colégio mantido dentro da Igreja também é conhecido
como “Colégio do Padre Nelson”. Quando os entrevistados falam da Igreja Católica no
Jacarezinho, destacam o nome desta figura. No entanto, a fala abaixo nos chama a
atenção para um “esquecimento” de outros padres que passaram por aquela Igreja.
Após a morte do Padre Nelson a própria Igreja, através de uma publicação em sua
homenagem o elevou a categoria de “herói do Jacarezinho”, o que deve ter contribuindo
para o silêncio em relação a outros padres que atuaram no mesmo espaço.
102
Padre Nelson faleceu em setembro de 1999. Seu velório foi um evento no Jacarezinho, seu corpo foi
acompanhado por centenas de moradores até a saída do morro. “Em vida socorreu as mãos e o coração do
povo nas enchentes. Agora uma enchente de mãos e corações conduz pelas ruas do Jacarezinho o seu
herói”. (COGO, s/d:capa)
92
Fala-se do Padre Nelson, mas se esquece do Padre César, que veio antes do
Padre Nelson... que e era realmente uma pessoa [o Padre Nelson] muito
polêmica... tinha qualidades imensas mas era muito reacionário. Eu gostava
muito dele, mas ele era extremamente reacionário, mas ele realmente fez
muito trabalho, tem uma história muito bonita. Fiquei muito triste quando ele
morreu tá, fiquei muito triste [ela se emociona], mas a gente vai morrer
mesmo né. Mas companheiros nossos aqui já se foram muitos.
103
(moradora
do Jacarezinho e ex-militante do Grupo Amarelo)
Apesar de ser-lhe atribuído o titulo de “extremamente reacionário”, ele não deixa de
despertar admiração e respeito, mesmo naqueles grupos que sofreram as conseqüências
de seu rígido posicionamento político. O Padre Nelson é tido, pela própria Igreja, como o
“pai” do Jacarezinho, exaltado em suas qualidades e lembrado como o grande
evangelizador daquela região. Através do texto abaixo podemos acompanhar os passos
desse homem desbravando o inócuo Jacarezinho.
Antes de Morar no Jacarezinho, Padre Nelson fazia parte da comunidade do
Instituto São Francisco de Sales, do Riachuelo-RJ. Juntamente com o Padre
César Del Grosso, visitava o Jacarezinho com freqüência. As visitas foram se
transformando num projeto de evangelização e catequese. O bairro era muito
pobre, povoado de migrantes, em sua maioria nordestinos, mineiros, capixabas
e norte-fluminenses. As condições de moradia e higiene muito precárias.
(Cogo, s/d:7)
A construção da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e do espaço que abrigaria a sede
da Obras Profissionais e Sociais Santa Rita de Cássia são um capítulo importante que
marca a trajetória desse personagem na comunidade. “No principio só existia uma lixeira,
Padre Nelson comprou o local”. O texto continua narrando as dificuldades financeiras
encontradas para transformar a lixeira em um espaço privilegiado dentro do Jacarezinho.
É nesse momento que uma das indústrias mais importantes da região “estende sua mão”.
Quando tudo parecia impossível apareceu a mão estendida de Dona Beatriz
Monteiro de Carvalho, dona da fábrica de vidros Cisper. Ela e seu esposo,
Alberto Monteiro de Carvalho, foram os primeiros grandes colaboradores da
obra do P. Nelson. Até hoje ajudam generosamente a Escola que recebeu o
nome de Escola Alberto Monteiro de Carvalho. O Sr. Joaquim Monteiro de
Carvalho herdou do pai o grande amor por essa insigne instituição de
103
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
93
educação do Morro do Jacarezinho. Em pouco tempo, aquele buraco de lixo
virou um formigueiro de operários. Padre Nelson soube envolver toda a
comunidade na construção da Igreja e da escola. Foram inúmeras promoções e
festas da comunidade, para dar continuidade às construções. (Cogo, s/d:7)
Segundo alguns entrevistados a permanência da favela atendia ao interesse das
próprias empresas. “O Jacarezinho sempre teve um histórico de remoção desde de Vargas
né, e a própria indústria pedia menos repressão pra garantir a presença do operário
trabalhando”. A construção da Igreja funciona como uma garantia da permanência da
favela, como veremos através dos depoimentos.
Em meio à construção da Igreja ocorre uma das maiores enchentes da cidade do Rio
de Janeiro. Padre Nelson nos fala sobre o dia 10 de janeiro de 1966.
Na segunda-feira, dia 10 de janeiro, após ter celebrado a santa missa e falado
ao povo, como faço habitualmente, numa imitação das boas-noites Salesianas,
precisamente às 21h30mim, caiu sobre a Guanabara uma forte chuva. Parecia
que o céu vinha abaixo. Faltou luz. As águas caiam a cântaros e encheram,
impiedosamente, as naves da Igreja. Saí pela rua para ajudar a socorrer as
vitimas. Trabalhei sem cessar até as três da madrugada. Tentei retornar ao
Colégio Salesiano, mas não encontrei o caminho de volta. Choveu a semana
toda. As obras, inacabadas, serviram de abrigo aos flagelados das chuvas.
(Cogo, s/d:8)
A enchente de 1966 afetou todo o Rio de Janeiro, trazendo o caos para a cidade.
104
No Jacarezinho a falta de canalização do Rio Jacaré fazia com que durante as chuvas a
inundação fosse inevitável. Sobre as chuvas alguns moradores lembram das destruições
causadas e como a construção da Igreja também representa uma nova etapa em relação às
enchentes.
É tanto que na enchente de sessenta e cinco, de são Sebastião a minha casa
caiu e era no meio do morro né. Era onde é hoje a associação de moradores.
No meio do morro. Então não teve, teve a quantidade de chuva. Porque teve a
enchente do Rio transbordar e caiu porque a maioria das casas era de estuque e
104
“Desde o inicio da noite de ontem, a cidade sofre os efeitos do mais violento temporal de sua história,
que praticamente, anulou os transportes, prejudicou as comunicações, reduziu ao mínimo as atividades em
todos os setores e, o que é pior, deixa um saldo trágico de dezenas de mortes, centenas de desabamentos,
milhares de pessoas ao desabrigo, grande número de feridos, sem contar os prejuízos materiais em casas de
comércio, estabelecimentos industriais, garagens e dispensas inundadas, em todas as Zonas, pois não
houve, em toda a Guanabara, exceção à violência dos elementos. “Dezenas de mortes no maior temporal
de todos os tempos”. O Globo. 11 de janeiro de 1966. Capa.
94
choveu muito, ficou muito encharcada as paredes e caiu né. A gente ficou
desabrigada da chuva, mais a partir dali, não a partir da enchente... a própria
Igreja, quando as pessoas viram que a Igreja estava ali firme e forte, que ia
crescer e ficar maior, ninguém ia deixar só a Igreja ali, ia deixar as casas.
Então as pessoas começaram né... todo mundo começou a melhorar suas
casas... no fundo, no fundo eles tinham quase certeza de que não seriam
removidos, mais precisava de uma prova, melhor. Apesar que há muito tempo
a polícia não perseguia mais, não derrubava barraco. Mas quem já tinha
passado pelo processo de derrubada de barraco, de ameaça de remoção, tinha
muito medo né, tinha muito medo.
105
(professora e ex-moradora do
Jacarezinho)
A maior confiança na permanência no Jacarezinho fez uma transformação
habitacional. No lugar dos barracos, novas casas de alvenaria com uma estrutura que
suportava melhor a força das águas. Outro líder comunitário nos chama atenção para a
luta da canalização do Rio Jacaré e o modo como eles remediavam a situação durante as
cheias do rio. Como veremos mais adiante a canalização do Rio Jacaré é um projeto que
só se concretiza mais de 20 após a enchente de 1966.
Os barracos estavam todos dentro do rio e quando chovia o Jacarezinho
era enchente, inclusive tem esse histórico também, muita enchente, pessoas
perdiam tudo e era terrível. A esquerda fazia movimento para recuperar as
coisas das pessoas... chegamos uma época [que] quando chovia a gente
formava comissão de grupo: oh choveu vamos correr a gente ia para o final do
rio ta, pra tentar com corda pegar crianças, mulheres, pessoas que estavam
morrendo afogada. Enfim, a gente dava muito socorro mesmo ali. Bom, tinha
essa luta também de canalização do Rio Jacaré, que o Jacarezinho tinha duas
lutas fortes básicas, canalização do Rio Jacaré, não podia falar em assembléia
sem falar na canalização do Rio Jacaré né, e contra a ditadura militar.
106
(ex-
dirigente sindical dos metalúrgicos e morador do Jacarezinho)
No ano de 1970, parte da construção da Igreja estava concluída com a inauguração
do salão Paroquial e de uma sala de aula. O Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara
empossou Padre Nelson como o primeiro pároco da Paróquia de Nossa Senhora
Auxiliadora. Esse momento marca uma nova inserção desse homem na história do
Jacarezinho, agora como responsável pela Igreja e uma importante obra social. Mas sua
intervenção na comunidade ia muito além da administração da escola e da orientação
105
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
106
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
95
religiosa. Quando perguntamos sobre o papel da Igreja na mobilização dos moradores,
temos a seguinte resposta:
Não, a Igreja só mobilizava em função dela. Depois a gente descobre porque.
Porque os padres Salesianos daquela Igreja eram reacionários, apoiaram a
ditadura. Mas dentro da Igreja, mas o próprio discurso da Igreja conflitava
com os padres. Porque quando diz dividir o pão, os pobres juntos, aquele
discurso da unidade... dividir o que tem, ninguém pode ser tão rico, o rico tem
que dividir a riqueza. Então o próprio discurso da Igreja, por mais que os
padres não comungassem do socialismo, dessa luta, mas a própria leitura
bíblica, a própria colocação era assim né. E a Igreja sempre, como eles eram
de direita, os militantes do morro, que já tinha comunista, prestista, os
operários, nunca tiveram uma participação na Igreja. Os operários do Jacaré,
enquanto resistência se agruparam isoladamente da Igreja, porque a Igreja não
permitia isso né. Tanto que a igreja, não sei hoje, mais até pouco tempo não
tinha nenhuma pastoral funcionando dentro da Igreja, pela própria repressão
do Padre Nelson. Ele era uma pessoa simpática e boa, mas era
repressor.
107
(professora e ex-moradora do Jacarezinho)
Um dos episódios que marca a passagem de Padre Nelson no Jacarezinho
demonstra seu poder de negociação com os diversos grupos na favela. Um dos moradores
do Jacarezinho adquiriu uma dívida com o tráfico e não pagou. Ele acabou sendo
“condenado” a morte. É nesse momento que algumas lideranças, entre elas membros do
PC do B e o Padre Nelson, entram na negociação para evitar a morte do rapaz.
Aí nós fizemos um grupo de moradores junto com a Igreja, junto com as
lideranças locais e ia lá intervir, fazia uma discussão com os caras... fui eu o
Padre Nelson e o pastor de Igreja que não tá mais aí, o Santinho né, e algumas
pessoas da liderança. Nós fomos lá conversar com o tráfico né. E o cara, ele
tava já o dia todo no sol amarrado sem beber água, bebendo água salgada...E
nós fomos conversar com eles. Receberam a gente muito bem, como de praxe
eles sempre recebiam a gente muito bem e tal. E fizemos um acordo com
eles... e o acordo era o seguinte, ele liberava pra família pagar e ele sumia
dali... ele sumia do Jacarezinho, ia ser expulso. E acabamos ainda fazendo
uma campanha né, é sem dizer que tipo de campanha, a gente falava que era
campanha da Igreja, entendeu? mas não era campanha da Igreja, era campanha
né, pra gente arrecadar dinheiro... “mas você é católico, você é crente? Então o
que você é?” [perguntas de alguns moradores dirigidas ao entrevistado]. Aí
pegamos, arrecadamos algum dinheiro, a família também arrecadou algum e
tal e pagamos o cara né.
108
(ex-dirigente sindical dos metalúrgicos e morador
do Jacarezinho)
107
Hoje funciona na Igreja do Jacarezinho a Pastoral da Saúde. Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
108
Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
96
É interessante notar a presença do padre nessa negociação ao lado de seus
opositores políticos dentro do morro. Nesse caso, o próprio militante era questionado por
outros moradores. “Mas você é católico?”. Sua atuação junto ao movimento operário e ao
movimento comunitário e sua opção partidária não deveriam deixar dúvida entre os mais
próximos sobre sua não filiação à Igreja. Nem por isso a campanha deixou de ter êxito e
uma vida foi salva por conta da articulação entre a Igreja e os demais grupos políticos do
Jacarezinho.
No Jacarezinho dois moradores receberam a maior condecoração do Município do
Rio de Janeiro, entre eles Padre Nelson. No requerimento para a concessão da Medalha
Pedro Ernesto podemos observar um breve histórico da atuação do Padre no Jacarezinho.
Requeiro à Mesa Diretora na forma regimental, seja concedida a MEDALHA
PEDRO ERNESTO ao PADRE NELSON CARLOS DEL MÔNACO, Pároco
da Igreja Paroquial de Nossa Senhora Auxiliadora, na comunidade do
Jacarezinho, pelo intenso trabalho de conscientização e organização,
desenvolvido junto à população daquela comunidade ao longo de 32 anos de
sua vida dedicados a realização de importantes obras sociais no Jacarezinho.
109
(Vereador Pedro Porfírio – PDT)
A cerimônia de entrega da medalha foi realizada na própria Igreja, reunindo
moradores e admiradores do padre. O evento rendeu um novo comentário no Diário
Oficial da Câmara Municipal. Desta vez o vereador Pedro Porfírio, que oferece a medalha
ao Padre Nelson, solicita moção de reconhecimento ao funcionário da Câmara que se
dispôs a ir até o Jacarezinho presidir o cerimonial.
O servidor EUCLIDES DE OLIVEIRA PORTILHO, chefe do cerimonial da
Câmara Municipal do Rio de Janeiro, nos deu no dia 27 de abril uma bela
demonstração de compromisso e respeito ao trabalho desenvolvido por
servidores públicos, comprometidos com a qualidade e competência dos
serviços que prestam à população de nossa cidade. O servidor foi o único
funcionário da Casa que se dispôs a deslocar-se à comunidade do Jacarezinho
para dirigir os trabalhos do Cerimonial em Sessão Solene de entrega da
Medalha de Mérito Pedro Ernesto ao Padre Nelson Carlos Del Mônaco, de 81
anos de idade, metade dos quais vividos à frente da Pastoral do Jacarezinho.
Despido dos temores naturais diante da propaganda negativa que se faz sobre
o clima de violência e risco de nossas favelas, o companheiro Portilho mais
que cumpriu com suas obrigações de servidor investido em cargo de chefia,
deu uma demonstração inequívoca de respeito e solidariedade aos moradores
109
Diário Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 25 de agosto de 1994.
97
de nossas comunidades mais carentes, em especial do Jacarezinho, pelo que
merece nosso aplauso e reconhecimento.
110
(Vereador Pedro Porfírio – PDT)
Em seu discurso percebemos o imaginário sobre a favela neste período. Para além
de motivos pessoais e ou identificação partidária, apenas um funcionário transpôs a
“propaganda negativa sobre as favelas” e subiu o morro. Desse modo, apesar de estar
cumprindo seu trabalho mereceu, na opinião do vereador, uma monção de
reconhecimento.
Pedro Porfírio teve ativa participação junto ao Jacarezinho, sendo este um dos seus
locais privilegiados de voto nas eleições para a câmara dos vereadores até o ano de 2000.
Com uma trajetória de militância política que remonta à adolescência no Ceará, foi preso
político na década de 1970 e um dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista
(PDT), partido com grande inserção no Jacarezinho nos anos 1980. Secretário Municipal
de Desenvolvimento Social
111
por dois mandatos, Porfírio atuou em importantes projetos
na favela, como a canalização do Rio Jacaré. Mas por que homenagear o Padre Nelson,
um anti-brizolista convicto, segundo o próprio vereador?
Porque ele é uma das personalidades do Jacarezinho, ele gostava muito
do Jacarezinho, ele fez muito bem ao Jacarezinho como pessoa, independente
de ser padre compreende? Ele era muito bom pro Jacarezinho. Ele era um
cara, ele era muito respeitado até pelo pessoal, entendeu? Da rapaziada. Ele
era capaz de parar uma coisa, uma situação lá, entendeu? Ele batizou o
Romário
112
, ele batizou o Meio Quilo...
113
(Jornalista e ex-vereador)
Além dos serviços prestados ao Jacarezinho como a construção da escola, Padre
Nelson carregava o diferencial de circular entre os diversos “mundos” morro. Entre a
“rapaziada” (jovens ligados ao tráfico), entre eles o Meio Quilo, e do outro lado, os
moradores que se beneficiavam de ações da Igreja que promoviam uma melhor qualidade
de vida.
No entanto, outros grupos sofreram sua enfática perseguição, que incluía discursos
inflamados durante as missas contra “comunistas” infiltrados no Jacarezinho. A
110
Idem. 12 de maio de 1995.
111
A Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) foi criada em 1979 com objetivo de atender a população
mais carente da cidade, sobretudo os favelados. (Diniz, 1982)
112
Romário de Sousa Faria (o Baixinho) nasceu em 1966 no Jacarezinho, onde morou até os 3 anos de
idade. Jogador de futebol de destaque no cenário nacional e internacional é lembrado pelos moradores do
Jacarezinho por ser um dos craques que saiu da favela.
113
Entrevista concedida à autora em 17/10/06.
98
perseguição da Igreja, personificada na figura de Padre Nelson vai atingir principalmente
os grupos mais progressistas o Jacarezinho. Entre estes temos as pessoas que ajudaram a
fundar a associação de moradores e que ficaram conhecidas como o Grupo Amarelo.
Só que a associação no início eram os comerciantes, era o poderio
econômico pra controlar com o apoio da Igreja. E a gente combatia o tempo
todo isso. Contra a Igreja, não era contra a Igreja, era contra o padre que
fazia aliança com esses caras, não tinha uma luta, eles apoiavam políticos da
direita, eles apoiavam a ditadura.
114
(professora e ex-moradora do Jacarezinho,
grifos meus).
Quando uma das entrevistadas fala das perseguições sofridas por seu marido,
segundo ela Brizolista doente e um dos fundadores do Grupo Amarelo, a Igreja,
novamente, na figura do Padre Nelson aparece como responsável pelos embates. Essa
senhora católica e freqüentadora da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora sofria durante as
missas por ver seus amigos e seu marido serem atacados pelo Padre Nelson, mas nem por
isso ela deixou de freqüentar a igreja ou fazer parte dos movimentos de contestação
dentro do Jacarezinho.
Quando foi nos anos 80... Ele foi muito perseguido lá na marinha por
causa do Brizola, ele era doente e ele foi muito perseguido, aqui mesmo. A
Igreja do Padre Nelson, ainda sambaram ele um bocado, sambaram não,
assim... coisava ele... pra ver se ele tinha alguma coisa de comunista né,
porque antigamente era comunista né. Brizola era comunista e todo mundo
assim era comunista. Para ele, Padre Nelson, era todo mundo comunista, mas
não era nada de comunista. E assim foi, a gente ficou aqui trabalhando...
115
(moradora do Jacarezinho)
A morte de Padre Nelson, em setembro de 1999 causa uma grande comoção no
Jacarezinho. O padre é transformado em herói no discurso da Igreja e de muitos
moradores da favela. Até as metralhadoras do tráfico silenciaram com a morte deste
importante personagem.
O povo do Jacarezinho o tinha como eterno. Sabia mas não queria que ele
morresse... ele tinha que ser para sempre o Herói do Jacarezinho. Os muitos
que sonharam com ele, na noite de 25 para 26 de setembro de 1999, acertaram.
Algo de estranho pesava no ar, quando ele foi levado ao hospital, na manhã do
114
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
115
Entrevista concedida à autora em 07/03/06.
99
domingo. As dez para as quatro o morro silenciou. Os foguetes não
espocaram. As metralhadoras baixaram. Uma paz surda envolveu o morro. O
impensável acontecera. O telefone anunciava o nunca esperado desfecho final
do P. Nelson del Mônaco. (Cogo, s/d:1, grifos no original).
Independente do adjetivo que possamos usar para qualificar o Padre Nelson, “bom”,
“reacionário”, “carismático”, podemos concluir que sua estada no Jacarezinho rendeu-lhe
um lugar cativo na memória dos moradores. De uma maneira geral, podemos identificar o
respeito por esse homem como um consenso por parte de católicos e não católicos,
grupos mais progressistas e outros conservadores. Apesar de imprimir medo e repúdio,
talvez a melhor definição que tivemos dele foi a de ser um árbitro na comunidade. Sua
capacidade de negociação e inserção em diversos grupos lhe garantiu o respeito de que os
árbitros necessitam para desempenhar sua função de diálogo entre grupos opostos. Seja
com o tráfico, com os empresários ou com o Estado, Padre Nelson esteve presente
mediando os interesses dos moradores do Jacarezinho.
A seguir apresentaremos a configuração de um dos grupos mais importantes da
história do Jacarezinho, o Grupo Amarelo. A partir da fala de alguns de seus membros e
de observadores de seu trabalho poderemos entender o porquê desse conjunto ter sido
alvo de um padre e uma Igreja que se apresentava como “conservadora”. Em um período
onde a militância política tinha como determinante a união de forças, esse grupo se
mostrou coeso e capaz de atingir alguns de seus objetivos.
4.2 - A esquerda sobe o morro
Em uma favela de um bairro operário do Rio de Janeiro, surge na década de 1960
um grupo que reunia moradores do local com o objetivo de lutar por melhores condições
de vida, começando por mudar a história do seu próprio espaço. Esse grupo reunia
mulheres e homens com as mais diferentes histórias de vida: operários, donas-de-casa,
professores, sendo alguns destes membros ou simpatizantes de outras instituições como
por exemplo a Igreja Católica e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). O Grupo
Amarelo, como ficou conhecido, fez parte da fundação da Associação de Moradores
100
desta localidade. No Jacarezinho, a “esquerda” sobe o morro e faz história a partir da
constituição do Grupo Amarelo.
Como já referido, o Grupo Amarelo foi criado a partir da união de alguns
moradores com objetivo de trazer melhor qualidade de vida para o Jacarezinho. Esse
grupo se uniu para disputar a direção da associação de moradores em uma época em que
as chapas eram identificadas por cores. Eles escolheram a cor vermelha, talvez por
influência dos comunistas que figuravam entre seus membros. Mas eles passaram a ser
identificados diretamente com o comunismo, fato que poderia trazer-lhes rejeição de
alguns moradores. A opção foi recorrer à cor amarela. Desde então, esse grupo passou a
ser chamado de Grupo Amarelo ou Chapa Amarela.
Em um bairro fortemente marcado pela presença operária e pela participação de
diversos grupos políticos, o Grupo Amarelo passa a ser um ambiente privilegiado de
agregação desses diferentes personagens. Constituído a partir da necessidade de
transformações urbanas no próprio Jacarezinho, esse grupo tem sua atuação reconhecida
por diversos moradores. A falta de estrutura urbana, o descaso do poder público e um
conjunto de práticas que também visavam a transformação da sociedade reuniu essas
pessoas. Uma das grandes mobilizações desse grupo se deu a partir da idéia da criação da
Associação de Moradores do Jacarezinho. A heterogeneidade do grupo vinha, sobretudo,
da diversidade entre moradores que formaram o próprio Jacarezinho, como já foi
ressaltado. A necessidade de afirmação nesse novo espaço acabou agregando algumas
pessoas. Longe de negar a diversidade e os conflitos, tal necessidade fez prevalecer um
sentimento de unidade. Questões como o fornecimento de água no alto do morro, a
democratização do acesso a luz e asfaltamento das ruas estavam na pauta de
reivindicações da melhoria urbana do morro. Esse grupo enfrentou, ao longo de sua
militância, o embate com outras forças políticas que também disputavam espaço entre os
moradores. Entre esses grupos podemos destacar os lacerdistas no inicio da década de
1960 e os chaguistas anos mais tarde.
Um dos personagens que compõe esse cenário é um operário militante PCB.
Auxiliar de serviços gerais, migrante nordestino, ele nos conta um pouco do papel
político de alguns militantes no bairro. Ex-presidente da associação de moradores e da
101
Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ)
116
, esse militante
articulava sua atuação no Jacarezinho e em outras favelas do Rio de Janeiro. Na década
de 1970, o Jacarezinho já era uma grande favela e com a pouca inserção do Estado, a
associação de moradores fazia o papel deste, calçando e iluminando ruas. “Ao invés da
prefeitura fazer, a gente era que fazia, o que era errado do ponto de vista político”.
117
Em
princípio, a filosofia política do PCB defendia o fortalecimento do Estado para que este
realizasse os melhoramentos dos quais a sociedade necessitava. Porém, para os
moradores do Jacarezinho, não havia tempo para se esperar por uma transformação maior
da sociedade. O mesmo entrevistado vai narrar o início das mobilizações para a criação
da associação de moradores.
Então a gente, eu, por exemplo, depois que eu entrei eu comecei a participar
aqui no Jacarezinho na associação de moradores, na antiga associação de
moradores... e quem era o presidente era o Hermes... e esse era ligado ao
Lacerda, aqui alguém já ouviu falar no Lacerda? E depois veio o golpe de 64
e o Lacerda estava na crista do golpe. Era o cara no Rio de Janeiro que
representava, a força civil, o poder civil no golpe militar. E aí esse Hermes
começou a fazer besteira pra caramba, começou a usar o golpe pra reprimir as
pessoas. Eu mesmo no principio fui muito reprimido e outros companheiros.
Conclusão da história, saímos quase todos, desse centro social [associação de
moradores] ele acabou fechando e aí ficou sem associação de moradores até
1966.
118
(ex-operário e ex-morador do Jacarezinho).
O ano de 1964 marca o inicio de consideráveis perdas para os movimentos sociais.
Neste estudo de caso, podemos ter a dimensão de como alguns laços políticos poderia
determinar os rumos de todo um grupo. Esse ex-operário consegue nos identificar a
extensão de uma ditadura que transbordava o âmbito militar e atingia o cotidiano das
pessoas. Apesar desse primeiro momento, o grupo se rearticula e já em 1966 volta a atuar
na Associação de Moradores do Jacarezinho.
116
Em 1979, nosso entrevistado lidera um movimento de cisão na FAFERJ, criando e assumindo a
presidência da FAFERJ dissidente, como ficaria conhecida. “A cisão na cúpula do movimento dos
favelados ocorreria em 1979, manifestando-se sob a forma de uma campanha, dirigida por quatro
associações de favelas, entre as quais destacava-se a dos moradores do Jacarezinho, cuja ênfase seria a
renovação da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ). Segundo os líderes desse
grupo, a Federação encontrava-se desativada, permanecendo alheia aos principais problemas enfrentados
pela população favelada”. (Diniz, 1982:144)
117
Entrevista concedida à autora em 20/01/03.
118
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
102
Quando em 65 nós começamos a organizar um movimento de
resistência aqui no Jacarezinho e reorganizamos essa associação de moradores
que está aí, ela foi reerguida e reinaugurada em 1965, dois anos depois do
golpe militar. E daí vivemos uma febre de grupos que nós desenvolvemos
aqui. As pessoas, os grupos se organizaram por ruas, nesse tempo se
organizava praticamente por rua. As ruas arrumavam manilhas lá com a
Região Administrativa e outros pediam a políticos e fazia a própria
reurbanização da sua própria rua, como nós fizemos lá no nosso na rua
Armando Sodré que a vala era mais alta que a gente e hoje esta lá bonitinho. E
isso tudo foi uma luta que foi desenvolvendo em várias etapas.
119
(ex-operário
e ex-morador do Jacarezinho).
Junto com a organização dos moradores, o poder público também intervia, como foi
o caso da iluminação do Jacarezinho. Segundo os entrevistados, a luz de cabine era fraca
e não atendia as necessidades das pessoas. No governo Carlos Lacerda, as cabines são
banidas e junto com um grupo de moradores é criada a comissão de luz.
Era luz de cabine, depois um grupo de moradores organizou a luz. Criou a
comissão de luz e a partir daí o sistema melhorou porque a própria população
que comprou seus postes para ter poste, fiação pra que a iluminação
melhorasse, para a pessoa ter luz de rua mesmo no Jacaré.
120
( professora e ex-
moradora do Jacarezinho).
Nesse período, os moradores também insistiam na necessidade de a Light entrar nas
favelas, realidade que foi sendo aos poucos modificada com a intervenção da FAFERJ.
No caso do asfaltamento de algumas ruas, o Grupo Amarelo e os Chaguistas entram em
conflito.
O Jacarezinho na década de 50 e 60 tinha um grupo local que se reunia em
torno da Chapa Amarela, o grande líder foi o Irineu Guimarães né naquela
época. Era um cara politizado, luta armada. Geraldo Barbeiro também era
muito politizado, João Vidreiro, que morreu, era filiado ao PT, morreu. O
Geraldo e o João foram pro PT. E tinha o grupo clientelista ligado ao Laércio
da Fonseca que era Chaguista que era o cara, o Laércio e a irmã dele, que
botou aquele asfalto todo e levava benefícios na época da eleição em troca do
apoio.
121
(Jornalista e ex-vereador).
Nas palavras do ex-militante do Grupo Amarelo, encontramos a narrativa deste
episódio. Apesar de criticar a maneira como o poder público se apresentou naquela
119
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
120
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
121
Entrevista concedida à autora em 17/10/06.
103
ocasião, ele acaba por assumir a dificuldade de contestar a obra diante dos outros
moradores.
Até que depois foi entrando o asfalto, erradamente mas entrou. Foi uma luta
política e quem colocou esse asfalto aqui foi no governo Chagas Freitas.
Colocou asfalto e nós até protestamos muito porque se jogou o asfalto sem
nenhum tipo de saneamento e nós queríamos primeiro o saneamento pra
depois o asfalto. Então como naquela época existia grupos aqui políticos se
juntou todo mundo, protestou... A gente protestou muito mas veio o asfalto e
também foi um tiro que voltava contra nós porque na verdade não tinha
esgoto, mas acabou com a lama. Então foi um grande avanço. E a pessoa que
foi creditado esse trabalho chamava-se Ilza Mauricío da Fonseca, ela saiu
daqui naquela época, do Jacarezinho, com quase 15 mil votos. Nessa eleição,
era imbatível, ficou por muito tempo imbatível.
122
(ex-operário e ex-morador
do Jacarezinho).
Outro personagem do Grupo Amarelo é João Gomes.
123
Ele foi durante 16 anos
presidente do Sindicato dos Vidreiros, participou da criação da Associação de Moradores
e foi um dos presidentes desta instituição. Quem vai nos falar dessa grande liderança
ativa no movimento sindical e comunitário no Jacarezinho, onde morou desde que chegou
no Rio de Janeiro, é um funcionário do Sindicato dos Vidreiros. Trabalhando no sindicato
há mais de 30, esse funcionário é o principal “arquivo” desta instituição. Segundo ele,
João Gomes, assim como muitos, vieram do Nordeste, da Paraíba, para o Jacarezinho,
serviu o exército por cinco anos e depois ingressou na Cisper, a maior indústria de vidro
do bairro, empresa em que trabalhou até se aposentar.
Ele também disputou votos para o legislativo estadual em 1986, mas não teve
sucesso nessa empreitada. Apesar da forte identidade de classe de alguns de seus
componentes, como era o caso do próprio João Gomes, o vínculo com o espaço do bairro
constituiu um elemento central para a união desse grupo.
...o João que faleceu, que era daqui da comunidade. Líder comunitário né,
porque participou da comissão de luz da favela do Jacarezinho, quando tinha a
comissão de luz, da associação de moradores e participava do sindicato. E
tinha uma vida política também porque ele era militante do PT... e filiado ao
122
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
123
João Gomes faleceu em meados da década de 1990. Em sua homenagem, o prédio do Sindicato dos
Vidreiros recebeu seu nome com a inauguração de uma placa na entrada da instituição.
104
PT. Participava do PT, participou da fundação do PT, da fundação da CUT,
seu João Gomes.
124
(funcionário do Sindicato dos Vidreiros).
Apesar da distinção feita entre liderança comunitária e “vida política”, o que
tentamos demonstrar através da trajetória de vida dessas pessoas é justamente a
interligação entre esses espaços. A experiência política seja no movimento comunitário,
no sindicato ou nos partidos políticos fortalecia a atuação em outras esferas da sociedade.
Esse personagem foi um “mediador espacial”
125
, atuando entre o local e o nacional. João
Gomes foi outro morador do Jacarezinho condecorado com a Medalha Pedro Ernestro.
Ao conceder esta medalha de mérito ao Sr. João Gomes Filho, o fazemos na
certeza de estarmos homenageando centenas de companheiros que assim como
João mereciam esta comenda. João Gomes se dedicou ao longo dos anos a
servir aos trabalhadores, buscando sempre organizá-los, na perspectiva de
conquistar uma sociedade mais justa e fraterna. Apresentamos nesta
justificativa um breve histórico das atividades desse companheiro onde
poderemos ter uma visão mais ampla da importância deste homem em certo
momento da história do nosso país. Eleito em novembro de 1966, Secretário
do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Vidros, Cristal, Espelho,
Cerâmica de Louças, Porcelana e Ótica do Município do Rio de Janeiro
(STIVCECLPOMRJ). Assumiu a presidência do Sindicato em 1968, sendo
reeleito para mais cinco gestões, em dezembro de 1985 assumiu o Conselho
Fiscal (85/88), em 1990 assume o cargo de Juiz Classista Representante dos
Empregados na 19ª Junta de Conciliação e Julgamento do Tribunal Regional
do Trabalho da 1ª Região. Em 1974 o nosso companheiro foi eleito presidente
da Confederação Brasileira dos Trabalhadores Cristãos; em 1975 assumiu a
Presidência do Movimento de Orientação Sindicalista, e em 1981 entra para o
Departamento Nacional dos vidreiros. Este companheiro que pretendemos
homenagear com esta comenda deixou seu nome escrito na História da Classe
Trabalhadora Brasileira, atuando na Fundação da CUT, participando de
Círculos Operários Cristãos; da comissão de Luz do Jacarezinho e da
Associação de Moradores do Jacarezinho, etc. Quando do ano de 1986 o nosso
companheiro entra para o diretório Estadual do PT e disputa uma cadeira de
Deputado Estadual pelo PT/RJ.
126
(Vereador Adilson Pires - PT).
É importante notar que toda a participação política de João Gomes junto a Igreja
Católica aconteceu fora do Jacarezinho. Homenageado por sua participação no “local” e
124
Entrevista concedida à autora em 09/08/05.
125
“Precisamos admitir a mobilidade e fluidez espaciais. No lugar de inquirir quem é o mais importante, se
é o local, se é o nacional, no caso de suas respectivas importâncias poderem ser pesadas e medidas, é
melhor examinar não só as complexas interligações entre níveis espaciais distintos, mas também como
mediadores espaciais – pessoas capazes de se moverem entre as escalas espaciais – podem vir a ter um
papel-chave na geração de formas de mobilização política”. (Savage, 2004: 42).
126
Diário Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 28 de agosto de 1995.
105
no “Global” ele fez, assim como outros militantes, o elo entre o Jacarezinho e os
movimentos políticos. O fato de figuras como João Gomes e Padre Nelson merecerem o
respeito e a admiração de moradores do Jacarezinho e de políticos com alguma atuação
na região aponta para o caráter agregador daquele espaço.
Entre as lideranças desse grupo, também podemos citar a presença de uma dona
de casa que saiu do interior de Alagoas com seu filho, “sem parente, sem ninguém”,
vindo para o Rio de Janeiro trabalhar como doméstica. Após se casar, ela deixou o
emprego e foi morar no Jacarezinho. Em sua narrativa nos fala do Grupo Amarelo e da
Associação de Moradores.
A gente fez um Grupo Amarelo, o Grupo Amarelo era muito querido. Não era
porque era meu marido não, mas era muito bom. E aí fundamos a Associação
de Moradores. Até hoje eu sou uma das fundadoras, e até hoje eu pago, eu
acho que ninguém paga a associação como eu pago, que eu sou fundadora. Ali
onde é a Casa da Paz, ali naquele galpão... eu até hoje, eu pago a associação,
não preciso, graças a deus, até hoje.
127
(moradora do Jacarezinho e ex-
militante do Grupo Amarelo).
Outra moradora do Jacarezinho, professora da Escola Alberto Monteiro de
Carvalho, nos conta sua entrada no Grupo Amarelo. Ela veio de Alagoas com três anos de
idade. Seu tio foi o primeiro da família a migrar, depois veio seu pai e por fim a família
se reuniu com a vinda de sua mãe e seus irmãos para o Jacarezinho. Essa mesma
entrevistada vai nos contar a origem do nome “Grupo Amarelo”.
...tanto que o nosso grupo, a gente colocou a cor amarela, porque as eleições
na época era por cor. Porque eles diziam que o nosso grupo eram os
comunistas, os vermelhos, e nós botamos a cor... nós íamos botar a cor
vermelha, tanto na Associação de Moradores, quanto na comissão de luz... E
nós tivemos que nos identificar com o amarelo porque principalmente o padre,
ele em todas as missas dizia: não vote nos comunistas e dava o nome, só que
quando surgiu, a primeira chapa a gente botou amarela, aí eles falavam os
comunistas amarelos (risos)... e a gente ganhou as eleições...
128
(professora e
ex-moradora do Jacarezinho).
A diversidade na formação política dentro do Jacarezinho é destaque na fala dos
entrevistados, no entanto prevalecia uma lógica de união. Para enfrentar as adversidades
127
Entrevista concedida à autora em 07/03/06.
128
. Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
106
do período do regime ditatorial no país e para alcançar as transformações desejadas no
âmbito local havia o esforço de tentar suprimir as diferenças.
Nós tínhamos MR8, nós tínhamos prestistas, nós tínhamos PCB, que era o
Tião padeiro era PCB, nós tínhamos o pessoal da Igreja ligada a Dom Helder
Câmara, tinha a sigla, agora me deu um branco... Então ali a gente tinha de
grupamento organizado de esquerda uns cinco ou seis pelo menos no
Jacarezinho, células mesmo. Mais que dentro do Jacaré a gente se unia para
fazer uma grande frente né. Porque a gente era referência, porque o pessoal
conseguia fazer o trabalho nas fábricas contra a ditadura né.
129
(professora e
ex-moradora do Jacarezinho).
No entanto, essa união tinha limites claros. Nem todo tipo de prática era feito por
todos os militantes de esquerda do Jacarezinho. Para alguns, limites ideológicos
impunham barreiras, mas as restrições poderiam ser de ordem variada.
...qualquer que seja o grupo político que o pessoal participava, que alguns
eram organizados outros não, não era organizado, porque quando algum
pessoal me dava material pra ler, eu lia, quando queria se aprofundar mais eu
dizia, gente eu não aquento tortura, eu era muito pequena, era muito magra...
eu casei com vinte e dois anos quarenta e cinco quilos. Então eu sempre fui
muito miúda, então eu dizia, gente eu não aquento porrada, então eu vou estar
na luta, vou tá aí mas eu não quero fazer parte de nenhum grupo. Porque o
meu medo, eu preferia estar dentro do Jacaré na resistência, trabalhando ali, o
Jacaré me conhecendo, sabendo que eu estava lutando, brigando, trabalhando
a Igreja, fazendo oposição. Minha preocupação era o seguinte, como eu era
muito miúda, gente se algum dia alguém me pegar, o que eu vou fazer da
minha vida, eu não vou trair meus companheiros e minhas companheiras.
Então eu preferi não participar de nenhum grupo organizado naquela época.
Ficar específica na luta comunitária.
130
(professora e ex-moradora do
Jacarezinho).
Apesar da ditadura vigente e dos limites claros que o sistema impunha ao
desenvolvimento da atividade política, esse grupo investia suas forças numa atuação que
transpunha o atendimento das necessidades urbanas do Jacarezinho. Além de pleitear a
direção da associação de moradores e a diretriz de determinadas intervenções do Estado
no Jacarezinho, o Grupo Amarelo também se manifestava nas eleições municipais e
estaduais apoiando candidatos que acompanhassem seu posicionamento político ou
lançando candidatos do próprio grupo.
129
Idem.
130
Entrevista concedida à autora em 12/07/2005.
107
O pleito eleitoral neste período no Jacarezinho constitui um capítulo à parte.
Diversos nomes disputavam votos entre os operários e moradores. Entre eles, correntes
políticas opostas marcavam um conflito entre idéias e realizações. Durante o período de
bipartidarismo vivido no país, a disputa no Jacarezinho era entre dois grupos do MDB.
De um lado os autênticos que reunia alguns comunistas, e do outro lado os chaguistas.
131
Laércio Maurício da Fonseca
132
e sua irmã Hilza foram dois desses nomes ligados ao
grupo do Chagas Freitas com grande êxito eleitoral, incluindo uma forte votação no
Jacarezinho.
Outros dois nomes que figuram entre os eleitos pelo Jacarezinho são Lysâneas
Maciel e Edson Khair.
133
Tidos como oposição dentro do MDB, eles representaram o
voto dos grupos de esquerda dentro do Jacarezinho, como o dos integrantes do Grupo
Amarelo, obtendo considerável apoio naquela região.
Em compensação o Edson Khair, que era do grupo autêntico do MDB e
o Lysâneas Maciel em 74 tiveram uma grande votação lá [no Jacarezinho]. O
Lysâneas deve ter tido uns seis, sete mil votos em 74 lá. Lá é a 8ª Zona, você
sabe? O Edson teve uns cinco mil votos lá.
134
(Jornalista e ex-vereador).
O apoio a essa dobradinha renderia alguns problemas internos para os militantes do
Jacarezinho.
131
Após 1965, com a implantação do bipartidarismo, o Rio de Janeiro viveu um momento particular. O
MDB e a Arena dominavam a cena política. Dentro do MDB diversos grupos disputavam a liderança do
partido. Entre eles, podemos destacar os chaguistas, articulados em torno da liderança de Antônio de Pádua
Chagas Freitas, governador do Estado da Guanabara em 1970 e mais tarde Governador do Estado do Rio de
Janeiro. Identificado por seu posicionamento não ideológico na política e por traços como a tradição
familiar de seus parlamentares, os chaguistas, diferiam dos autênticos que se diziam ideológicos e
preocupados com discussões nacionais. (Didiz, 1982)
132
Os irmãos Fonseca são filhos de Chrispim Maurício da Fonseca, ex-vereador do Município do Rio de
Janeiro e irmãos de Velinda Mauricio da Fonseca, também ex-vereadora. Com a morte de Velinda em
1968, sua irmã Hilza se candidata a deputada estadual nas eleições de 1970. Laércio se elege vereador em
1976, assumindo a presidência da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A atuação da família Fonseca se
concentrou no Méier e adjacências, com destaque o Jacarezinho. (Diniz, 1982). Como homenagem póstuma
o Vereador Sebastião Ferraz do PMDB (também com tradição política na região Méier e ex-membro do
MDB) propôs dar o nome de Laércio a uma rua no Méier. Plenário Teotônio Villela, 19 de Abril de 2006.
133
Em 1978 Edson Kahir foi o terceiro deputado federal, do MDB, mais votado no Jacarezinho. Do
primeiro ao terceiro lugar, em número de votos, temos os deputados chaguistas. Em quinto lugar temos
outro deputado autêntico, Délio dos Santos, ex-presidente da Fundação Leão XIII no Governo de Negrão de
Lima. No mesmo ano o deputado estadual mais votado entre os autênticos no Jacarezinho foi o comunista
Raimundo de Oliveira, ocupando o quarto lugar em votos. Do primeiro ao terceiro lugar os candidatos mais
votados do MDB eram do Grupo Chaguista. (Diniz, 1982)
134
Entrevista concedida à autora em 17/10/06.
108
A gente fazia campanha muito camuflada pro MDB. Na primeira
eleição, 74... a gente elegeu o Lysâneas e o Edson Khair. Nós, no Jacaré,
fizemos um acordo, qualquer que seja o grupo político que o pessoal
participava, que alguns eram organizados outros não... naquela época todo
mundo se juntou e a gente se juntou e fez campanha de Lysâneas, Edson Khair
e Tunico, que é o Tunico Carlos de Carvalho [vereador], era na época do
MR8. Mas a gente... na oposição e a gente fez e os três foram eleitos. Aí
depois o povo do Jacaré queria matar a gente porque o Lysâneas foi cassado
[1976]. Deputado cassado, comunista, aí o pessoal: “ah agora a gente vai ser
descoberto, a gente vai ser preso também né”. Era o grande medo. Então é
isso, a gente ficava bem perto da comunidade, fazendo luta interna e
trabalhando isso pra população. E com isso a gente conseguiu ganhar a
associação de moradores, a comissão de luz, unia todas as forças né.
135
(professora e ex-moradora do Jacarezinho).
A união que caracterizou esse grupo de moradores do Jacarezinho vai ser aos
poucos alterada a partir de 1979. Os anos 1980 marcam ascensão de novas siglas
partidárias. As conseqüências desse processo e a maneira como esses atores vão se
posicionar repercutem até hoje no cenário político daquele espaço.
4.3 - “Vou botar pra andar”: anos 1980 e a nova configuração política
Com a abertura política e a anistia em 1979, a configuração política no Jacarezinho
vai ser alterada. Os militantes do Grupo Amarelo seguem um caminho diferente dentro e
fora do Jacarezinho. Com o fechamento da maior parte das fábricas no bairro, o
movimento operário, por sua vez, sofre um progressivo esfalecimento na região e a
Associação de Moradores deixa aos poucos de ser um espaço privilegiado para esse
grupo. A década de 1980 marca uma nova etapa na história das mobilizações políticas no
Jacarezinho.
Quando foi em 80, agora vou botar para andar mais. Aí que foi em 80, em 80
foi a volta do Brizola. Brizola estava no exílio e voltou. E meu marido era
muito brizolista. Então nosso grupo se desfez, a gente foi pro Brizola e eles
foram para o PT, mas sem a gente... Ficamos amigos, a gente não brigava.
Depois veio o Lysâneas Maciel que era do PDT e foi pro PT, mas sempre a
gente amigo e foi assim minha filha minha vida foi assim e tô aqui até
hoje.
136
(moradora do Jacarezinho e ex-militante do Grupo Amarelo).
135
Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
136
Entrevista concedida à autora em 07/03/06.
109
Segundo outro entrevistado, esse momento de cisão é definido também de acordo
com a relação com o líder. Nesse caso o Brizolismo ganha força pelo carisma atuação dos
membros do PDT no Jacarezinho.
Foi... porque teve o processo... todos estavam no MDB antes né, todos
estavam na luta política mais definida, quando veio o processo, a abertura
cada qual tinha um caminho. Quem era orgânico como o Irineu que era do
MR8 ficou dentro da orientação do MR8. Agora o povo, ele tem uma relação
com o líder que ultrapassa a relação orgânica. Então o Brizolista, não sei se é
hoje como era antes, mas naquela época era muito brizolista, ta entendendo? E
passava por cima. Agora o PT demorou muito pra se fazer na favela...
137
(jornalista e ex-vereador).
Uma de nossas entrevistadas relata a honra de receber o Brizola em sua casa por
mais de uma vez. Uma dessas ocasiões foi especial pois marcou a comemoração da
primeira eleição para o Governo do Rio de Janeiro em 1982. “Foi lá que o Brizola
almoçou, você sabia, ela era mulher do Chicão, lá que o Brizola em 82 comeu churrasco,
é ela é Brizolista doente”.
Gosto muito do Brizola, lutei por ele, fundei o partido, sou fundadora do
meu partido. Sou a 4° pessoa da Zonal. Sou suplente do Diretório Municipal
que o presidente é o neto do Brizola. E todos eles me botam, eles gostam
muito de mim. Participo até hoje, nós vamos pra reunião, vamos pro
partido.
138
(ex-militante do Grupo Amarelo e moradora do Jacarezinho).
Nessa fala, podemos perceber como a relação com o “líder” vai além da questão
política. A identificação com o PDT e sua fundação não se distancia do seu afeto pelo
Brizola. A abertura possibilitou o retorno de antigos personagens da vida política do país
e o surgimento de outros expoentes no nível nacional. Nesse contexto, os grupos políticos
vão disputar adesão entre aqueles que fizeram parte da Chapa Amarela no Jacarezinho.
No entanto, esse fenômeno não é restrito a esse espaço, país a fora podemos acompanhar
esse momento político onde a unidade perde espaço para a multiplicidade de idéias e
grupos políticos.
137
Entrevista concedida à autora em 17/10/06.
138
Entrevista concedida à autora em 07/03/06.
110
Esta divisão ocorrida na década de 1980 teria se dado não só pela conjuntura
política do país, mas também por conta de uma divisão geracional. Quando uma das
entrevistadas se refere aos “meninos” que se juntaram ao Grupo Amarelo na década de
1970, ela está falando de uma geração no mínimo trinta anos mais nova. São justamente
esses “novos” que vão seguir o caminho do Partido dos Trabalhadores (PT).
Uma das entrevistadas que optou por participar da formação do PT, narra o primeiro
contato com o que viria a ser o Partido dos Trabalhadores e nos fala como o grupo foi
dividido a partir de então.
Foi antes da fundação porque como a gente já tinha sindicalista no grupo né e
a gente já tinha toda... a gente participava ativamente de tudo que acontecia
em São Paulo, a gente tinha todas as informações e a gente tinha reunião
semanal, todo mundo junto. A gente usava muito o Sindicato dos Vidreiros. E
quando surgiu a oportunidade de construir o partido, nós participamos de toda
a discussão do processo de criação do partido, discussão de teses. Então o
Jacarezinho foi invadido. Porque como era uma área operária, foi invadido por
diversos grupos da esquerda pra construir tese, discussão de regimento, de
estatuto, de não sei o que. A gente passava horas e horas e madrugadas.
Quando era de dia, quando era noite a gente fazia as reuniões no Sindicato dos
Vidreiros... o pessoal do Jacaré sofreu muito nessa discussão do partido
porque como era é..., o pessoal achava que todo mundo era, podia ficar no que
ia ser o PT, o pessoal do Jacaré porque todo mundo tinha uma linha operária.
Só que depois a gente viu que não, cada um foi para um lado. Os diferentes
grupamentos políticos do país procuravam a gente porque, como eu te disse,
no Jacaré a gente fez um grande grupão. Independente de que linha política
seguia, a gente era um grupão interno. Fora, cada um seguia a sua linha, e o
que aconteceu com o PT foi isso. Então as pessoas saiam e vinham pro
Jacarezinho para ter o apoio da base, de militância comunitária porque o
partido não ia ficar restrito a sindicalista. Então por isso que a gente era
procurado né. Então é importante ter o partido, então tá, aí se criou, aí vai,
vamos fazer as filiações.
139
(professora e ex-moradora do Jacarezinho).
Se por um lado se rompia uma unidade de décadas dentro do Jacarezinho, era o
momento de novas construções políticas. O PT e o PDT criaram importantes bases que
figuram até hoje na política do local. Nas palavras de um entrevistado, depois do
Chaguismo foi o momento do Jacarezinho viver o Brizolismo.
E quando o brizolismo veio, o Jacarezinho se identificou muito com o
Brizolismo porque a idéia do Brizola era não depender do político pra
comunidade ter acesso ao poder, aos órgãos da prefeitura, do Estado. O meu
139
Entrevista concedida à autora em 12/07/05
111
primeiro cargo na prefeitura foi sub-prefeito da Zona Norte que incluía o
Méier e o Jacarezinho e passei então a me apaixonar pelo Jacarezinho, eu
tenho uma grande paixão pelo Jacarezinho.
140
(jornalista e ex-vereador).
O período do inicio dos anos 1980 com Brizola à frente do Governo do Estado, o
efeito “Brizolismo” se destaca no cenário da cidade. A canalização do Rio Jacaré, feita
por uma prefeitura aliada ao PDT, ajuda a projetar esse grupo dentro do Jacarezinho.
Então eu passei a estudar, trabalhar, fui ser Secretario de Desenvolvimento
Social. Fiz a canalização do Rio Jacaré, que era uma coisa que estava há 20
anos esperando. Tinha até uma verba a fundo perdido do BID, Banco
Interamericano de Desenvolvimento, que ninguém usava porque pra fazer o
projeto que o BID queria era inviável. Era um projeto que removia as casas 40
metros da beira do Rio, do meio do rio, e eu consegui mudar pra 15 metros. Aí
no lugar de remover três mil casas removemos 500 e construímos dois
conjuntos. Um na verdade... foi o Nelson Mandela ali na Leopoldo Bulhões e
o ouro o Samora Machel, que eles chamam de Mandela dois.É basicamente o
pessoal da beira do Rio Jacaré... (jornalista e ex-vereador).
Do outro lado, fora do poder público, um dos lideres da Associação de Moradores
nos fala sob sua perspectiva sobre a canalização do Rio Jacaré.
A canalização do Rio Jacaré, quando nós levantávamos, porque nesse rio nós
vimos morrer muita gente, aí dava chuva, a última que deu que eu me lembro
foi em Janeiro, carregava os barracos de madeira, que era tudo de madeira,
pegava os barracos de madeira e saia igual balde... nós vínhamos começando a
implantar a idéia que nós tínhamos que canalizar o Rio, ninguém acreditava,
ninguém... e foi feita a canalização, foi na minha administração na associação
de moradores. E nós que organizamos junto com a Secretária de
Desenvolvimento Social do Município e exigimos que grande parte das
pessoas que iam fazer o levantamento e o projeto... deviam ser do Jacarezinho,
eles aceitaram, mas eu sinceramente nem me recordo as pessoas daquela
época que participaram dessa empreitada. E o Rio acabou sendo canalizado.
Foi a grande vitória dos moradores dos Jacarezinho. mudou muito...
141
(ex-
operário e ex-morador do Jacarezinho).
140
Entrevista concedida à autora em 17/10/2006. Dessa paixão pelo Jacarezinho surgiu um romance: Os
assassinos das sextas-feiras. O romance é protagonizado por um jornalista em fim de carreira que tem sua
aposentadoria antecipada de forma arbitrária. O livro que mistura a sátira da vida social com um mistério
policial, relata um pouco do universo de uma favela carioca. Com uma habilidade notável, o autor mistura
ficção e realidade ao contar histórias sobre o Jacarezinho. O assassino das sextas-feiras queria acordar o
mundo, a cena final se passa no Jacarezinho porque: “no dia em que o morro descer junto, [para a
Revolução] vai ser um Deus nos acuda”. Ainda segundo o autor, sua última esperança de proletariado era o
Jacarezinho, por isso escrever um romance que se passa em seus becos.
141
I seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
112
Homens e mulheres, operários e donas-de-casa construíram um dos grupos mais
importantes da história do Jacarezinho. Apesar da diversidade de sua composição, eles se
reconheciam por uma identidade relacionada, sobretudo ao espaço do bairro. Apesar de a
década de 1980 ter desfeito esse grupo, sua importância como um marco de união e
cooperação entre os moradores do Jacarezinho é evidente nos depoimentos. O sonho da
construção de um partido que pudesse atender aos interesses de todos não se concretizou.
O PT agregou, mas não foi unanimidade entre os moradores do Jacarezinho, nem
tampouco entre os operários do país. Apesar de um certo tom de nostalgia ao falar do
passado e da organização política do bairro, podemos perceber que de alguma forma a
memória desse grupo continua servindo como exemplo a ser seguido pelas novas
gerações. Alguns membros do Grupo Amarelo estão hoje mais distantes da vida política,
outros ainda permanecem atuando dentro e fora do bairro. Apesar das diferenças e
disputas existentes entre os membros do grupo, o que marca sua história é justamente a
capacidade de unir as diferenças, sem anulá-las. Na memória dos moradores do
Jacarezinho, a “esquerda” subiu o morro, fez história e marcou a experiência de vida de
mais de uma geração.
Mas os anos 80 representam mais que a abertura política e a divisão desse grupo.
Passados os anos de ascensão do movimento comunitário e do movimento operário, o
bairro do Jacaré convive com a saída das indústrias, o crescimento da violência e o
desemprego. Entre as várias indústrias que fecharam temos o caso da Fábrica de
Parafusos Águia, desde dos anos 30 na região. Seu fechamento trouxe conseqüências para
seus mais de 300 funcionários que se viram obrigados a repensar sua profissão e seu elo
com o bairro. Apesar de não representar uma experiência que esgote o bairro nos anos 90,
o caso da “Águia” e de seus trabalhadores nos dá uma boa noção dos impactos desse
período no bairro. Além disso, esse exemplo nos remete para uma questão vivida por
trabalhadores, sindicatos, vilas e cidades operárias nesse período.
4.4 - O vôo da águia: o caso dos trabalhadores da fábrica de parafusos
A partir de 1990, a maior parte das fábricas do complexo industrial encerrou suas
atividades por falência ou transferência da região. Foi nesse mesmo período que a
113
Parafusos Águia, com quase 300 trabalhadores, começou a apresentar problemas na
produção, com um progressivo descumprimento dos direitos trabalhistas, até seu
fechamento, no fim dos anos de 1990. Interessa-nos, ainda, analisar “o vôo da Águia”, ou
seja, de que maneira esses operários construíram uma alternativa para o desemprego,
formando uma cooperativa. Com o fechamento da fábrica, os trabalhadores receberam
como indenização o maquinário da empresa. Ao passo que muitos vendiam as máquinas
para obterem um rendimento mínimo, um pequeno grupo propôs a formação de uma
cooperativa de trabalho. Nesse contexto, o Sindicato dos Metalúrgicos aparece com
destaque na fala dos entrevistados. Ao negar apoio à iniciativa de construção de uma
cooperativa, a instituição passou a ser hostilizada por esse grupo e deixou de ser, então, o
espaço legítimo de representatividade destes trabalhadores.
Podemos concluir que a saída encontrada pelos operários da Parafusos Águia
constituiu uma exceção em face dos demais trabalhadores do bairro, que em geral foram
buscar seu sustendo em atividades fora da produção industrial. Além disso, esses homens
tiveram que construir novos referenciais em termos de espaço e identidade.
Só podemos entender as memórias dos ex-operários da Fábrica de Parafusos Águia
a partir da compreensão do espaço em que a fábrica estava localizada. A fábrica se
instalou no bairro do Jacaré na década de 1930, quando o local ainda não havia se
constituído como um centro de produção industrial. A seguir, temos uma descrição do
espaço que por mais de 60 anos serviu ao funcionamento da fábrica:
[...] prédios: localizados a rua Luiz Zanchetta, n.ºs 94 a 114, no bairro do
Riachuelo,
142
freguesia do Engenho Novo. Construção antiga, em estrutura de
concreto armado, alvenaria de tijolos, onde anteriormente funcionava a
Fábrica de Parafusos Águia S/A. O imóvel compreende as edificações
existentes no n.º 94 a 114 da citada Rua Luiz Zanchetta. Apresenta-se com
fachada em massa corrida, muro alto, portões de ferro com acesso para carga e
descarga de caminhões e demais veículos além de pedestres; as janelas e
portas com esquadrias de ferro e dispõem internamente dos seguintes
compartimentos: Dois galpões com cobertura de alumínio e piso de cimento:
com depósito para guarda de matéria-prima utilizada pela fábrica; Três outros
galpões com cobertura de alumínio e piso em cimento, todos em regular
estado de conservação. Pátio para carga e descarga de caminhões com rampa e
portão de ferro. Pátio de estacionamento para veículos, com cobertura; área
142
Para fins analíticos, englobamos alguns pequenos bairros no entorno do Jacaré, como o Riachuelo,
fazendo parte da mesma área.
114
com projeto de construção de vestiários, banheiros, com início de execução,
localizada no segundo pavimento. Casa localizada nos fundos da fábrica onde
reside o vigia e antigo funcionário da fábrica, constituída de três quartos, sala,
copa/cozinha, varanda e dois banheiros. Portaria com cabine para Segurança e
vigia, diversas salas e departamentos onde funcionava toda estrutura
administrativa da fábrica, além do refeitório, salão de jogos e banheiros, estes
localizados no segundo pavimento. O Terreno: medindo 108,00m de frente
pela Rua Luiz Zancheta; nos fundos, em linha quebrada, mede 13,90m mais
12,37m, 12,17m, 12,04m, 8,00m, 2,00m, 10,05m, 20,00m, 10,03m, 10,93m,
77,00m à direita; 61,62m à esquerda. Proprietária: Fábrica de Parafusos Águia
S/A. – Área edificada de 5.703,00m².
143
O espaço descrito acima é o cenário em que a memória de centenas de homens e
mulheres ancora um dos seus principais referenciais. Na época da falência da fábrica,
alguns de seus operários tinham 25, 30 anos de trabalho na “Águia”. Trabalhar ali
representava para muitos fazer um pequeno trânsito entre local de trabalho e de moradia.
No caso dos trabalhadores da “Águia”, alguns estudos
144
enfatizam a rivalidade
criada com o sindicato a partir da perspectiva da formação de uma cooperativa, deixando
de problematizar qualquer questão relativa ao espaço do bairro e à integração das práticas
sindicais ao cotidiano dos trabalhadores.
Com o fechamento da Parafusos Águia nos anos 1990, um grupo de trabalhadores,
22 dos quase 300 operários, propôs a formação de uma cooperativa. A Cooperativa de
Produção de Parafusos completou 10 anos de existência em 2005. Sua formação implicou
uma série de questões para o grupo fundador, o que incluiu a quebra do elo entre esses
operários e o Sindicato dos Metalúrgicos.
Os trabalhadores da “Águia” tinham uma forte participação no sindicato, a fábrica é
lembrada como uma das que marcavam presença no cenário sindical do bairro. Um
dirigente sindical dos metalúrgicos lembra da fábrica da seguinte maneira:
Não existem... muitas empresas não existem mais no Jacaré, poucas
hoje, né? Eu posso te dar o exemplo de grandes empresas que não existem
mais hoje no Jacaré, as chamadas falidas... E também uma grande indústria de
parafusos, chamada Parafusos Águia, ali no bairro do Jacaré, ela também
comportava uma média de 600 a 700 trabalhadores, também de carteira
assinada, em turnos diurnos e noturnos, né, era 24 horas. E sem contar também
com a desvalorização do local, [o que] ajudou muito a enfraquecer o setor
143
Edital de Leilão da Fábrica de Parafusos Águia, 29/06/05.
144
Ver, por exemplo, Tiriba (1997).
115
produtivo no Jacaré
145
. (dirigente sindical dos metalúrgicos e ex-morador do
Jacarezinho).
Quando perguntado sobre o destino dos trabalhadores desta fábrica o mesmo
entrevistado nos responde:
Houve uma tentativa de cooperativa... uma tentativa que devido os
trabalhadores não terem conhecimento do mundo dos negócios, né, e também
a questão da própria dificuldade de entrar no mercado, essa cooperativa
funciona muito precariamente lá em Caxias, precariamente mesmo, viu?
146
Segundo os membros da cooperativa, ao procurarem o sindicato em busca de apoio
para a nova empreitada, a resposta foi a seguinte: “Somos e sempre seremos contra o
cooperativismo”. Já o dirigente sindical quando perguntado se o sindicato apoiou a
iniciativa dos trabalhadores, responde de forma direta.
Não, o Sindicato na época ele não deu apoio, porque o sindicato naquele
ano tinha... já estava entrando no país a questão das cooperativas, né, de mão-
de-obra, e o Sindicato como naquela data e como até hoje é contra qualquer
tipo de cooperativa de mão-de-obra. Na nossa categoria, no nosso acordo
coletivo, nós não assinamos cooperativa de mão-de-obra. A empresa tem que
assinar a carteira do trabalhador, tudo bonitinho, aquela coisa toda. Então, por
isso que o nosso sindicato não deu nenhum apoio. Deu apoio, sim, na questão
de preservar os bens daqueles. Na justiça, tudo, todos os contatos possíveis foi
para que os trabalhadores recebessem as indenizações, a cooperativa não.
147
(dirigente sindical dos metalúrgicos e ex-morador do Jacarezinho).
Para aqueles operários, começava uma nova jornada em busca de reconhecimento e
renda para a sua sobrevivência. Ao lembrarem desse momento, os trabalhadores da
“Águia” colocam os seus principais dilemas.
E parou assim, ficou todo mundo na rua, digamos assim. Fizeram um acordo
com o pessoal, esse acordo foi assim pra tentar amenizar, digamos assim,
pessoas que tinham 20, 30 anos de casa, de fábrica; receberam máquina velha,
outros não receberam até hoje. Foi feita uma média, mais ou menos, ninguém
tinha conhecimento de valor de máquina, máquina fora do mercado já, sem
valor. Qual a alternativa nossa? Era receber aquelas máquinas pra não ter o
prejuízo total. Aí foi quando surgiu a idéia: fundar uma cooperativa, fundar
145
Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
146
Idem.
147
Entrevsita concedida à autora em 20/10/05.
116
uma cooperativa, mas só que ninguém conhecia nada, ninguém tinha idéia de
nada, valores. Aí chegou no ponto, as pessoas optaram, a maioria, a grande
maioria ceder as máquinas pra cooperativa em comodato
148
. (ex-funcionário
da Fábrica de Parafusos Águia e membro da Cooperativa de Produção de
Parafusos).
A idéia de fundar uma cooperativa é encarada ao mesmo tempo com entusiasmo e
receio. No entanto, era uma das poucas possibilidades que esses trabalhadores
vislumbravam. Se compararmos a sua fala em 1997
149
, quando a cooperativa dava seus
primeiros passos, com a perspectiva atual que têm, perceberemos um inevitável desânimo
com a seqüência da história. Se por um lado eles permanecem trabalhando, as
dificuldades e as crises constantes fizeram com que os sonhos dessem lugar a uma
realidade de trabalho duro e de busca constante para a manutenção de uma renda mínima
para os cooperados.
Quanto ao sindicato, misturam nostalgia com ressentimento, ao lembrarem da falta
de apoio da entidade:
Chegamos, mas nessa hora o sindicato não deu apoio não, o sindicato só dá
apoio quando você está empregado, está descontando pra ele. Até mesmo nós
recorremos ao sindicato pra um galpão na época pra guardar o maquinário;
eles não liberaram não, não liberaram não. Ficamos sem apoio, foi muito
difícil.
150
(ex-funcionário da Fábrica de Parafusos Águia e membro da
Cooperativa de Produção de Parafusos).
Na análise de outro personagem envolvido com a criação da cooperativa, a
perspectiva é bem parecida. Para ele “o sindicato só trabalha com incluído, excluído fica
fora”
151
, ou seja, o trabalhador que não pode contribuir para o sindicato estaria fora desse
espaço que outrora era um dos caminhos para sua inclusão no jogo social. Esse caminho
passava de forma evidente pela aquisição de um emprego formal, de carteira assinada, e
pelo vínculo sindical.
148
Entrevista concedida à autora em 05/01/06.
149
Ver Tiriba (1997).
150
Entrevista concedida à autora em 05/01/06.
151
Entrevista concedida à autora em 30/11/05. Ligado a uma ONG, este ex-sindicalista participou do
processo de formação dos trabalhadores da Fábrica de Parafusos para a implantação da cooperativa. É
interessante notar que o entrevistado foi dirigente sindical em Volta Redonda e o papel que ocupa hoje,
enquanto defensor da economia solidária e crítico de algumas posições do sindicato, em parte contraria os
princípios de sua formação de sindicalista.
117
Por outro lado, entre os membros da cooperativa podemos observar uma forte
ênfase dada à atuação dos trabalhadores da “Águia” junto ao sindicato.
Participavam... greve tava todo mundo lá na porta, não entrava ninguém, o
pessoal pagava o sindicato. O pessoal usava o sindicato pra atendimento
médico que tinha lá, usava o sindicato direto. Agora, quando a cooperativa
precisou do sindicato, igual ele falou, pra botar um galpão, pra guardar o
maquinário que a gente tava tirando da fábrica, ele não cedeu. A gente acha
até... a gente conversa às vezes que por cooperativa ser uma coisa nova, eles
podem ter ficado com medo. Vai acabar as empresas, vai virar tudo
cooperativa e ninguém vai trabalhar pro sindicato. Não sei se isso tava na
cabeça deles, mas parece que tava. Porque nós não vimos motivo pra não
apoiar. Se eles tiveram tantos anos do lado do trabalhador, naquela hora que o
trabalhador precisou deles, eles não deram a mão, não apoiaram. E o pessoal
pediu na época apoio pra tirar só o maquinário de dentro da fábrica e arrumar
um lugar pra guardar provisório até se alugar um outro local, a ajuda deles pra
intermediar alguma coisa. [Foi] onde eles não forneceram essa ajuda.
152
(ex-
funcionário da Fábrica de Parafusos Águia e membro da Cooperativa de
Produção de Parafusos).
Se por um lado fica a idéia de que o sindicato só trabalha com os “incluídos”, por
outro, ao nos concentramos nas histórias desses sindicalistas que misturam suas vidas à
estrutura sindical, percebemos que tal análise pode ser reducionista. Quando perguntamos
para um dirigente sindical qual a importância dessa instituição para a sua vida, obtivemos
uma nova perspectiva da situação.
Na vida, ele [o Sindicato dos Metalúrgicos] tem assim um papel muito
significante pra mim, desde garoto operário, né, metalúrgico, mesmo sem
carteira assinada... e conhecer a questão da injustiça social de perto. Porque
você morar numa favela e trabalhar de biscateiro como garoto, então, quer
dizer, você conhece a injustiça social muito de perto, você conhece na prática,
né, como se diz ali na gíria, na carne. Então com isso te gera, como [em]
qualquer ser humano, uma revolta. Uma revolta de tentar mudar aquela
situação, ou mesmo de você ficar ali um franco atirador, né, aquilo subir pra
mente você cometer loucuras até mesmo besteiras, né? Então já [existia] o fato
da revolta, mas meu sentimento era de mudar, ou mudar a minha vida, a vida
das pessoas. Então, por eu gostar da política, pelo que eu acabei de falar no
início, meus avós, meus vizinhos antigos lá, que eu chamava de avós (não
conheci meus avós), aqueles que eu chamava de avós lá no Jacaré, eles
passaram esse sentimento pra mim, [era] então um sentimento e você vendo na
carne... Então o Sindicato se tornou pra mim um leque de tudo aquilo que eu
152
Entrevista concedida à autora em 05/01/06.
118
vislumbrava dentro do meu ego lá como garoto. Então a própria revolta de
discutir com a burguesia, dizer que tá errado, contestar e até mesmo de colocar
muitas das vezes via justiça eles na parede, isso pra mim já me satisfaz muito,
entendeu?
153
(dirigente sindical e ex-morador do Jacarezinho).
Na fala acima, o sindicato é caracterizado como um mecanismo de inclusão social,
meio de se fazer algum tipo de justiça em relação à condição de muitos dos operários. No
entanto, esse sindicato pouco se parece com aquele descrito pelos trabalhadores da
“Águia”. Mas falar do papel desempenhado pela instituição nesse caso específico, sem
levar em conta o contexto vivido pelo sindicalismo na década de 1990, limitaria nossa
reflexão. E se o modelo de emprego sofreu impactos nessa década, o sindicato também
foi afetado com as mudanças nas relações de trabalho.
Então, se você fizer uma comparação do passado pra hoje, houve uma
regressão muito grande no movimento sindical. Eu acho inclusive que isso que
eu tô me referindo ao sindicato daqui é nas outras categorias também,
entendeu? Tu vê Sindicato dos Metalúrgicos já está em campanha salarial mas
tu não escuta nem falar. Antigamente, tava aqui o carro de som, tava passando
por aqui, que aqui atrás tinha uma fábrica muito grande que era a “Águia”, né?
Os sindicatos pra te dizer nem carro de som eles têm mais, né? Antigamente
todo sindicato tinha carro de som, a gente aqui que era um sindicato
pequenininho tinha carro de som.... mas antigamente ter um carro de som era
honra do sindicato. Estar na porta da empresa com carro de som falando lá
nem que seja uma besteira qualquer, mas tava ali marcando posição... Os anos
90 também foi muito bom, mas chegou aí próximo de 2000 o troço foi caindo
num marasmo e se pode dizer [que] nesses últimos três, quatro anos, aí
vivemos num marasmo, vivemos no empurródromo, empurrando com a
barrica até por falta de lideranças mesmo. O movimento sindical são
lideranças, se não tiver uma grande liderança, você não consegue fazer o
movimento, na realidade, é isso.
154
(funcionário do Sindicato dos Vidreiros).
Se a manutenção de uma renda mínima era necessária para a sobrevivência, por
outro lado esses trabalhadores tinham que se afirmar como cooperativados, redefinindo
suas memórias em relação ao sindicato e a outros espaços, como o do próprio bairro. A
afirmação de uma nova identidade em meio à perda de vários vínculos identitários era um
desafio. Se antes eles faziam parte de um dos maiores e mais combativos sindicatos da
153
Entrevista concedida à autora em 20/10/05. Ele nasceu no Jacarezinho, onde morou por mais de 40 anos.
Ao falar da importância do sindicato para a sua vida e do significado de ter nascido em uma favela, a
emoção tornou-se evidente em seu semblante.
154
Entrevista concedida à autora em 09/08/05. O entrevistado está no sindicato há mais de 30 anos, desde
então, acompanha não só a história dos vidreiros, como a história do bairro e das fábricas e sindicatos que
atuavam naquele espaço.
119
história carioca, agora esse espaço não mais lhes pertencia. Com a implantação da
cooperativa em Duque de Caxias, outra referência foi afetada. Boa parte desses
trabalhadores era de moradores do Jacarezinho: “Eles iam de bicicleta para a fábrica,
agora não dá para ir de bicicleta pela linha Vermelha”, relata um dos entrevistados. Os
trabalhadores consideraram, inclusive, a possibilidade de ir morar em Duque de Caxias.
A aproximadamente 220km da “Águia”, em outro município, está localizada a
COOPARJ – uma viagem feita de carro em certa de 30min, com fluxo bom. No entanto,
para esses trabalhadores, a distância não pode ser medida dessa forma. Boa parte dos
operários da COOPARJ alterna-se entre dois ou três ônibus para chegar ao local de
trabalho. Quando perguntados sobre a possibilidade de fixação em Caxias, com a
construção de uma vila para os cooperativados, a resposta foi a seguinte: “uma coisa foi o
sonho, outra é a realidade”.
Ah, foi difícil, até o pessoal acostumar com a distância, o deslocamento. Aqui,
aqui é muito contramão; tem cooperado que ele pega até quatro conduções pra
chegar aqui. Pessoa que mora acima de Queimados às vezes vem pra cá, vem
pra Nova Iguaçu, pega pra Queimados, pega pra Nova Iguaçu, pega de Nova
Iguaçu pra Caxias e de Caxias pra essa área aqui, aí fica difícil... Do Jacaré
eles pegam duas conduções ainda. Ou de trem até Caxias, ou pega um ônibus
pra Caxias, de Caxias pega um outro pra cá (pra Avenida Brasil, da Avenida
Brasil pega um pra cá). É, fica difícil.
155
(ex-funcionário da Fábrica de
Parafusos Águia e membro da Cooperativa de Produção de Parafusos).
Com dificuldades financeiras, a cooperativa sobrevive precariamente e o sonho de
reunir novamente os trabalhadores próximos ao local de trabalho agora não faz mais parte
de uma perspectiva “real”.
Problematizamos a questão do espaço como referencial importante para a
construção da memória e da identidade dos grupos sociais. Por outro lado, mostramos
como as novas demandas impostas aos trabalhadores, desempregados e subempregados a
partir da década de 1990 trouxeram rupturas com espaços antes privilegiados por um
grupo de operários. Diferentes desafios em termos da construção de uma outra identidade
e de novas relações com o espaço são colocados para essas pessoas.
155
Entrevista concedida à autora em 05/01/06.
120
Ao mesmo tempo, os sindicatos depararam-se com uma nova realidade, sua pauta
está mudando, assim como o perfil dos trabalhadores membros dessa instituição. Nesse
contexto, surge uma demanda da sociedade de que a instituição dê conta dos problemas
de uma conjuntura bem maior. Se por um lado podemos problematizar o papel do
sindicato diante dos desempregados, é preciso que também tenhamos em vista o fato de
não caber apenas à instituição o dever de amortizar para os trabalhadores todo o impacto
“negativo” de mais de uma década.
Os trabalhadores da “Águia”, assim como tantos outros, estão buscando sua
sobrevivência, encarando novos desafios e propondo-se a prosseguir em meio às
tormentas. Se por um lado romperam com o espaço da fábrica, com o sindicato e com o
próprio bairro laços de décadas, por outro, estão se dispondo a construir uma nova
história. Esses operários representam uma trajetória de luta e perseverança diante dos
novos desafios que se apresentam aos trabalhadores, aos sindicatos e a tantos movimentos
sociais.
Novos partidos foram formados, os grupos se articularam e se rearticulam em
diversas direções. Mas o reconhecimento de um passado onde a unidade prevalecia ainda
marca a memória dos operários e moradores do Jacarezinho num sentimento que mistura
nostalgia e esperança num novo momento do movimento comunitário e operário no país.
121
Considerações Finais
Os apitos das fábricas apontavam para o despertar de um novo dia, para hora do
almoço ou para o lanche do fim da tarde. O aroma do chocolate ou do café vindos da
Café Moinho de Ouro “perfumava” as casas. O ritmo das fábricas determinava a vida de
centenas de pessoas. Operários ou apenas moradores do Jacaré e do Jacarezinho viviam
uma experiência comum na história industrial do Brasil, a de morar em circunstâncias
que se assemelhavam as de uma grande vila operária. Os benefícios eram evidentes,
morar perto do trabalho significava economia no transporte e no tempo de deslocamento,
além da possibilidade de dedicar mais tempo a família. No entanto, essa realidade era
vivida com contradições pelos moradores. Entre coerção e benefícios, eles tentavam
traçar um ambiente que lhes fosse adequado. Grandes empresas como a “mãe” GE
destacavam-se nesse cenário ambíguo, tentando manter seus funcionários e o próprio
Jacarezinho sobre seu domínio. Desde os pequenos embates que envolviam práticas
pouco reconhecidas pelo próprio movimento operário às costumeiras greves, esses
trabalhadores expressavam suas insatisfações e reagiam às imposições das fábricas.
Apesar de algumas empresas tentarem impor regras também ao tempo livre dos
trabalhadores, era possível extravasar esse universo fabril nos jogos de futebol, nas festas
da Igreja ou nas rodas de samba. Longe das fábricas, futebol e samba também ritmavam o
dia-a-dia dessas pessoas.
No Jacarezinho, a luta comunitária ganhou contornos especiais por conta da
peculiaridade de essa favela estar num bairro operário e abrigar um grande contingente de
trabalhadores. Os embates políticos passaram a fazer parte do cotidiano daquele espaço.
A disputa pela associação de moradores ou a forma de conduzir a transformação urbana
naquele espaço passou a ser pauta de discussão de operários e donas-de-casa, atingindo o
Jacarezinho como um todo. Nesse momento, para além da identidade de classe, homens e
mulheres construíram uma identidade que reunia diferentes atores a partir do espaço do
Jacarezinho. O Grupo Amarelo ganha projeção, seus lideres se destacam na ação
comunitária. A “esquerda” subiu o morro entre os apitos das fábricas, o esgoto correndo
pelas ruas, homens e mulheres carregando água para abastecer suas casas e becos mal
iluminados pela luz fraca de cabine. Nesse ambiente, militantes e moradores
122
desenvolveram uma união em torno da melhoria das questões urbanas dentro da favela.
No entanto, esse grupo não se restringiu apenas a esse tipo de ação, mas também faziam
campanha e pleiteavam votos para aqueles candidatos que julgassem adequados a sua
perspectiva política.
Entre demais as instituições que marcaram a história do Jacarezinho, fazendo um
contraponto com o Grupo Amarelo, temos a Igreja Católica. Tida por alguns como
reacionária e aliada dos políticos de direita, esta instituição também faz parte da memória
coletiva dos moradores do Jacarezinho. A imagem de Nossa Senhora Auxiliadora pode
ser vista por quase todos os pontos do morro. Esse monumento, que fica no alto da Igreja,
de mesmo nome, uma das primeiras obras de alvenaria no Jacarezinho, é quase tão
onipresente como um dos responsáveis por sua concepção. Padre Nelson personifica toda
essa história. Temido e respeitado, esse homem foi além de suas atribuições de sacerdote,
fez política na favela e, ao se colocar contra os comunistas, conquistou antipatias. Mas no
Jacarezinho, Igreja e comunistas, assim como tantos outros moradores, tinham algo em
comum. A identidade desse grupo com seu espaço de moradia ultrapassou a relações de
classe, opções religiosas e predileções políticas. Todos faziam parte de uma das maiores
aglomerações humanas da cidade. Apenas se partimos dos pressupostos de que a
identidade é híbrida e de que a memória é constantemente reconstruída no presente,
podemos entender o que fazia desse conjunto de pessoas um grupo que se auto-
reconhecia e era reconhecido como tal.
A oposição que marca as escolhas de cada indivíduo dentro desse grupo não
impediu que momentos de coalizão fizessem parte dessa história. Uma grande enchente
ou a morte iminente de um morador poderia unir comunistas e católicos num mesmo
esforço de preservar os “filhos” do Jacarezinho.
Mas os anos de 1990 chegam e trazem mudanças que afetam os diversos atores
presentes naquele espaço. No Grupo Amarelo, por exemplo, de acordo a inclinação
política dos membros, cada um segue um caminho diferente. Os resultados da pesquisa
apontam para uma dispersão desse grupo, o que sugere que sua força também estava
concentrada no próprio momento político que o país vivia. Em tempos de repressão, a
melhor maneira para se manter vivo era a união. Apesar de partirem de pontos em
comum, a abertura política possibilitou o estreitamento de outros laços. O cenário da
123
produção industrial também mudou muito. Indústrias fechadas, outras feitas de moradia,
o emprego tornou-se escasso e o apito das fábricas silenciou. A Igreja já não representa a
força política de outrora.
Uma favela operária, um movimento comunitário forte, um bairro industrial e um
universo de histórias. Das greves dos operários à mobilização comunitária. Na memória
dos velhos militantes, saudosismo e esperança de que suas histórias sirvam como
exemplo para os jovens moradores.
Muitas das reflexões que levantei aqui só foram possíveis a partir do contato com os
relatos de vida desses homens e mulheres que fizeram parte da história do Jacarezinho. A
particularidade de cada indivíduo foi aos poucos permitindo a construção de uma imagem
do coletivo. E para encerrar minhas considerações nada mais apropriado do que usar um
trecho de uma fala de um dos entrevistados. Citando Aristóteles e falando para uma
platéia havida por um discurso que apontasse para um futuro prospero esse homem de
mais de 80 anos arranca aplausos e emoção do púbico.
Então meu amigo, nós somos seres políticos e quando você fala isso o cara
diz: “ah eu não gosto de política, política eu não gosto”. Eu não estou falando
de eleição, eu estou falando de política. Política é dialogo entre uma pessoa e
outra, saber porque a gente veio nesse mundo. Porque a gente só vai ter
bondade nesse mundo... se a gente não construir, ninguém vai fazer por nós,
não vamos esperar que não cai do céu e ninguém faz. Se nós queremos um
Jacarezinho mais organizado do que esse, somos nós que temos que nos reunir
e ir pra rua, discutir com as donas-de-casa, com seus filhos e lutar, lutar
porque nós temos direito... Eu quero continuar essa luta aqui pra gente
organizar um grande movimento político, cultural, recreativo pra que o
Jacarezinho mostre ao estado do Rio de Janeiro e ao mundo que aqui vive o
grande proletariado dessa cidade
156
. [aplausos]. (ex-operário e ex-morador do
Jacarezinho).
Apesar de todas as adversidades que marcam o cenário do Jacaré e do Jacarezinho
nos dias atuais a ambição de se “construir” uma trajetória própria ainda faz parte das
perspectivas desses homens e mulheres. As análises realizadas nesse estudo apontam para
um universo onde o espaço foi determinante na construção da identidade desse grupo e a
memória resignificada no presente torna possível a continuidade dessa história.
156
I Seminário de Construção do Centro de Referência Histórico da Comunidade do Jacarezinho.
Jacarezinho – RJ, 02/09/06.
124
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(ACIRJA) referente aos galpões desocupados e invadidos no bairro.
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documento foi produzido pelo o Serviço de Estudos e Realização Empresarial
Social (SERE), uma entidade alemã que dá assistência a comunidades carentes em
países como o Brasil.
Banco de dados do Instituto Pereira Passos da Prefeitura do Rio de Janeiro.
128
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www.oidobrasil.com.br
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www.ge.com/br/
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http://sampa3.prodam.sp.gov.br/ccsp/index.htm
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“Fazer as crianças felizes neste natal é a preocupação dos moradores do Cantagalo”. O
Globo, 12 de dezembro de 1955.
“A favela, questão social”. O Globo, 14 de dezembro de 1955. Capa.
“Padeiro e operário assaltados no morro do Jacarezinho”. O Globo, 23 de dezembro de
1955.
“Morte do jornaleiro”. O Globo, 04 de janeiro de 1966.
“Nova favela cresce na avenida Brasil e ganha gente sem ser notada”. O Globo, 10 de
janeiro de 1966.
“Dezenas de mortes no maior temporal de todos os tempos”. O Globo, 11 de janeiro de
1966. Capa.
Diário Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1994.
Diário Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1995.
Diário Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 12 de maio de 1995.
“Violência em favelas expulsa indústrias e lojas”. O Globo, 08 de abril de 2001.
“Prioridade máxima para o bairro do Jacaré”. Diário Oficial do Município do Rio de
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“Tráfico fecha a fábrica no subúrbio”. O Globo, 01 outubro de 2002.
“Insegurança fecha fábricas”. O Globo, 24 de novembro de 2002.
“As novas zonas de conflito”. O Globo, 13 de abril de 2003.
“Violência expulsa indústrias vizinhas de favela”. O Globo, 01 de novembro de 2003.
“GE demite 358 no Rio e sindicato diz que outros 700 estão sob ameaça”. O Globo, 07 de
Janeiro de 2005.
“Bombas, tiros e morte em 4h de terror no Jacarezinho”. Extra, 24 de maio de 2005.
Entrevistados
1 - Entrevista concedida à autora em 03/08/02.
2 - Entrevista concedida à autora em 20/01/03.
3 - Entrevista concedida à autora em 09/05/03.
4 - Entrevista concedida à autora em 27/06/03.
5 - Entrevista concedida à autora em 04/07/03.
6 - Entrevista concedida à autora em 22/08/03.
7 - Entrevista concedida à autora em 12/07/05.
8 - Entrevista concedida à autora em 27/07/05
9 - Entrevista concedida à autora em 04/08/05.
10 - Entrevista concedida à autora em 09/08/05.
11 - Entrevista concedida à autora em 10/08/05.
12 - Entrevista concedida à autora em 10/08/05.
13 - Entrevista concedida à autora em 20/10/05.
14 - Entrevista concedida à autora em 30/11/05.
15 - Entrevista concedida à autora em 05/01/06.
16 - Entrevista concedida à autora em 05/01/06.
17 - Entrevista concedida à autora em 07/03/06.
18 - Entrevista concedida à autora em 17/10/06.
Capa: Chaminé da Fábrica Café Moinho de Ouro. Foto tirada pela autora em 10/10/05.
130
Anexos
I - Roteiro de entrevistas
Eixos temáticos
1 - Trajetória de vida:
Trajetória dos pais
Tempo no bairro (De moradia e ou trabalho)
Primeiras lembranças da região
Espaços de lazer no bairro
2 - Trabalho e militância:
Primeiros anos de trabalho
Atuação dos sindicatos na região
A rotina dentro da fábrica
Formas de organização dos operários
Militância comunitária
O papel da Igreja Católica no bairro
3 - Década de 1990:
Atuação dos sindicatos durante.
Novas opções de trabalho.
Transformações urbanas no bairro.
131
II - Mapa do Jacaré e do Jacarezinho
132
III - Fotos
Rua Alberto Haas. Do lado direito temos um conjunto habitacional que foi construído pela Prefeitura em
parceria com o Governo Federal. Do outro lado da rua, galpões vazios e muita sujeira. Foto tirada pela
autora em 10/10/05.
Rua Alberto Hass. Foto tirada pela autora em 10/10/05.
133
III – Fotos
Vista do complexo industrial do Jacaré. Ao fundo a Favela do Jacarezinho. Foto tirada
pela autora em 10/10/05.
/
Chaminé da fábrica Café Moinho
de Ouro. Foto tirada pela autora
em 10/10/05.
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