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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
CURSO DE DOUTORADO
O COGNITIVISMO E O DESAFIO
DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA
TESE DE DOUTORADO
GUSTAVO ARJA CASTAÑON
ORIENTADOR: UED MARTINS MANJUD MALUF
JANEIRO DE 2006
1
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GUSTAVO ARJA CASTAÑON
O COGNITIVISMO E O DESAFIO
DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Psicologia.
ORIENTADOR: UED MARTINS MANJUD MALUF
RIO DE JANEIRO
JANEIRO DE 2006
II
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DEDICATÓRIA
Dedico esta tese aos meus Pais, que me ensinaram as duas únicas coisas
realmente fundamentais para qualquer psicólogo e ser humano:
o amor incondicional e o respeito à verdade.
III
AGRADECIMENTOS
À minha amada esposa Nathalie, por seu amor, paciência,
apoio, ajuda, opiniões, pelos longos debates e pelas várias férias
perdidas;
Ao meu querido orientador Ued Maluf, pela extrema
generosidade pessoal e intelectual, sem a qual meu curso e esta
tese não teriam sido possíveis;
Ao meu querido e eterno mestre Helmuth Krüger, pela
constante orientação e por ter sido o maior responsável por
minha formação intelectual e acadêmica;
Ao professor Antônio Gomes Penna, exemplo de Filósofo da
Psicologia no Brasil, que com generosidade me honrou
extremamente com sua participação na avaliação desta tese;
Ao professor Franco Lo Presti Seminério, in memoriam, pela
solicitude em debater comigo os temas desta tese, e que
infelizmente, não pode conhecer seu resultado final.
Aos professores Bernard Range e Alberto Oliva, que se
dispuseram a avaliar este extenso trabalho, e que também muito
me honram com sua participação nesta banca.
IV
Castañon, Gustavo Arja
O Cognitivismo e o Desafio da Psicologia Científica/
Gustavo Arja Castañon. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2006.
xi, 485f.:il.; 31cm.
Orientador: Ued Maluf
Tese (doutorado) – UFRJ / Instituto de Psicologia/
Programa de Pós-graduação em Psicologia, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 463-485.
1. Cognitivismo. 2. Epistemologia. 3. Psicologia
Cognitiva. 4. Racionalismo Crítico. I. Maluf, Ued. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Psicologia, Programa de Pós-graduação em Psicologia. III.
O Cognitivismo e o Desafio da Psicologia Científica.
V
SUMÁRIO
RESUMO VI
ABSTRACT VII
1–INTRODUÇÃO 1
2CRISE EPISTEMOLÓGICA 7
2.1 A Ciência Moderna: surgimento, pressupostos e significados 7
2.1.1 A nova síntese epistemológica 9
2.1.2 O conceito de Ciência Moderna 11
2.1.3 Pressupostos filosóficos da Ciência Moderna 13
2.1.3.1 Realismo Ontológico 13
2.1.3.2 Regularidade do Objeto 14
2.1.3.3 Otimismo Epistemológico 14
2.1.3.4 Pressupostos Lógicos 15
2.1.3.5 Representacionismo 16
2.2 Desenvolvimento Positivista do modelo de Ciência 16
2.2.1 Características gerais do espírito positivista 17
2.2.2 Auguste Comte e o Positivismo francês 18
2.2.3 Jonh Stuart Mill e o Positivismo utilitarista inglês 19
2.2.4 O Positivismo Lógico e o esgotamento do empirismo 20
2.3 O Racionalismo Crítico e a nova concepção de Ciência 25
2.3.1 O surgimento do Racionalismo Crítico e a ligação de Popper com a Psicologia 26
2.3.2 A crítica de Popper à indução 27
2.3.3 O novo inatismo e a rejeição da “tabula rasa” 28
2.3.4 O critério de cientificidade: a falsificabilidade 30
2.3.5 Verdade e Verossimilhança 33
2.3.6 Progresso na ciência: o conhecimento científico como auto-corrigível 34
2.3.7 A defesa da unidade fundamental do método científico 35
2.3.8 As críticas ao Racionalismo Crítico 37
2.4.9 Imre Lakatos: o Racionalismo Crítico além de Popper 41
2.4 Pós-modernismo e Crise Epistemológica 45
2.4.1 Pós-modernismo enquanto fenômeno cultural 45
2.4.2 Lyotard e a “Ciência Pós-moderna” 48
2.4.3 Thomas Kuhn e virada irracionalista da Filosofia da Ciência 51
2.4.4 Paul Feyerabend e Richard Rorty: avançando na dissolução da racionalidade 53
2.4.5 A virada pós-moderna da Sociologia do Conhecimento 56
2.5 Resultados recentes das Ciências: o contexto da crise 59
2.5.1 O Contexto da Crise Epistemológica 59
2.5.2 A Teoria do Caos 60
2.5.3 O Teorema de Gödel 62
2.5.4 A Física Quântica 66
2.5.5 Onde está a crise da ciência? 71
VI
2.6 O projeto da Ciência Moderna ainda está vivo? 74
2.6.1 Crítica à tese da ciência como vivência acrítica de um paradigma 74
2.6.2 Crítica ao princípio da incomensurabilidade dos paradigmas 75
2.6.3 Defesa da distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta 76
2.6.4 Crítica ao anti-representacionismo 78
2.6.5 Crítica à tese forte da Sociologia da Ciência 81
2.6.6 A Ciência Moderna sobrevive ao pós-modernismo e à nova física? 82
3–PSICOLOGIA MODERNA E IMPASSE ENDÊMICO 88
3.1 Psicologia e Ontologia 88
3.1.1 A questão da essência do conhecimento 90
3.1.1.1 Realismo 90
3.1.1.2 Idealismo 93
3.1.2 Pressupostos ontológicos básicos da ciência moderna 95
3.1.3 O Objeto da Psicologia Moderna 98
3.1.4 O Reducionismo Ontológico na Psicologia e a relação mente-corpo 100
3.1.4.1 Reducionismo behaviorista 103
3.1.4.2 Reducionismo fisiológico 104
3.1.4.3 Reducionismo psicanalítico 105
3.1.4.4 Reducionismo sociológico 107
3.1.4.5 Abordagens psicológicas não-reducionistas e o problema mente-corpo 109
3.2 Psicologia e Epistemologia 111
3.2.1 Conhecimento, verdade e ciência moderna 111
3.2.2 A Possibilidade do conhecimento 112
3.2.3 Explicação e Compreensão 113
3.2.4.1 Abordagem explicativa da Psicologia 115
3.2.4.2 Abordagem compreensiva da Psicologia 117
3.2.4.3 Ciência e Filosofia 119
3.2.4 Problemas metodológicos especiais da Psicologia 120
3.2.4.1 Subjetividade do objeto 121
3.2.4.2 Limitação dos controles 122
3.2.4.3 Dificuldade de Quantificação 122
3.2.4.4 Complexidade 123
3.3 A Psicologia à espera da Ciência 124
3.3.1 Os vetos filosóficos à Psicologia científica 124
3.3.2 Antes do Behaviorismo: breve notícia de uma protociência 127
3.3.3 O caso especial da Psicanálise 128
3.4 Behaviorismo: enfim a ciência moderna 132
3.4.1 Definição de Behaviorismo 132
3.4.2 Contextualização histórica: antecedentes 135
3.4.3 Contextualização histórica: fundação 137
3.3.4 Behaviorismo e Ontologia 139
3.4.5 Behaviorismo e Epistemologia 141
3.5 A Revolta Humanista na Modernidade 143
3.5.1 A Fenomenologia e a denúncia do Psicologismo 143
VII
3.5.1.1 O método fenomenológico como método da verdadeira Psicologia 146
3.5.1.2 A crise das ciências e da humanidade européia como crítica do Positivismo 148
3.5.1.3 A crítica ao psicologismo e à Psicologia Experimental 150
3.5.2 A Psicologia Humanista e suas Críticas 155
3.5.1.1 Crítica Humanista a abordagem mecanicista do objeto da Psicologia 157
3.6 O projeto da Psicologia Moderna ainda está vivo? 161
3.6.1 Os vetos filosóficos à Psicologia Moderna 162
3.6.2 Os problemas dos pressupostos da Psicologia 163
3.6.3 Os problemas metodológicos da Psicologia Moderna 164
4–COGNITIVISMO: O NOVO PROJETO DE PSICOLOGIA MODERNA 165
4.1 Ciências Cognitivas: A Psicologia forçada a progredir 165
4.1.1 Antecedentes psicológicos do Cognitivsmo 167
4.1.2 Psicologia Cognitiva e o contexto de seu surgimento 171
4.1.2.1 A paralisia psicológica que propiciou a invasão 171
4.1.2.2 O Surgimento do Racionalismo Crítico e sua influência na Revolução Cog. 172
4.1.3 Avanços teóricos que propiciaram a Psicologia Cognitiva: o anúncio da invasão 176
4.1.3.1 O Advento do Computador 176
4.1.3.2 A Teoria da Informação e a Cibernética 178
4.1.3.3 As Novas Teorias da Neurociência e da Neuropsicologia 182
4.1.3.4 A Gramática Transformacional de Noam Chomsky 183
4.1.4 Ciência Cognitiva hoje 187
4.2 Psicologia Cognitiva e Ontologia 189
4.2.1 Pressupostos Ontológicos da Psicologia Cognitiva 189
4.2.1.1 Cognitivismo e Realismo 189
4.2.1.2 Cognitivismo e Determinismo 190
4.2.2 O Objeto da Psicologia Cognitiva 192
4.2.2.1 O que é cognição? O problema da representação mental 193
4.2.2.2 A Psicologia estuda indivíduos: o solipsismo metodológico 196
4.2.2.3 Outras características especiais do objeto de estudo da Psicologia Cognitiva 200
4.2.2.4 Áreas de estudo da Psicologia Cognitiva 201
4.2.3 A Imagem de Ser Humano no Cognitivismo 202
4.2.3.1 O Ser Humano é dotado de consciência 202
4.2.3.2 O Ser Humano é ativo 203
4.2.3.3 O Ser Humano é movido por causas e razões 203
4.2.3.4 O Ser Humano é orientado a metas 203
4.2.3.5 O Ser Humano é um processador de informação 204
4.2.3.6 O Ser Humano tem seus processos cognitivos governados por regras 204
4.2.3.7 O Ser Humano possui um inconsciente cognitivo 204
4.2.3.8 O Ser Humano constrói as regras que coordenam sua cognição 205
4.2.3.9 O Ser Humano possui tendências inatas para desenvolver certas estruturas 206
4.2.3.10 O Ser Humano reage a significados atribuídos 207
4.2.3.11 O Ser Humano tem emoções que atuam através de cognições 208
4.2.3.12 O Ser Humano é também epistemicamente motivado 209
4.2.4 A Psicologia Cognitiva e o Problema Mente-corpo 210
VIII
4.3 Psicologia Cognitiva e Epistemologia 217
4.3.1 Pressupostos Epistemológicos da Psicologia Cognitiva 218
4.3.1.1 O Construtivismo como nova posição acerca da origem do conhecimento 219
4.3.1.2 Racionalismo, Construtivismo e Inatismo 224
4.3.2 Cognitivismo e Racionalismo Crítico 228
4.3.2.1 Racionalismo Crítico e a questão Inatismo-Construtivismo 228
4.3.2.2 O Racionalismo Crítico implícito do Cognitivismo 230
4.3.2.3 Racionalismo Crítico e o método geral de investigação cognitiva 232
4.3.3 A explicação psicológica no Cognitivismo 233
4.3.4 A circularidade da investigação científica cognitiva 240
4.4 Psicologia Cognitiva e Metodologia 245
4.4.1 A Natureza Integrativa da Pesquisa em Psicologia Cognitiva 245
4.4.2 O Processo Geral de Pesquisa Científica da Psicologia Cognitiva 246
4.4.3 Métodos Descritivos e Psicologia Cognitiva 248
4.4.3.1 Estudo de Casos e Psicologia Cognitiva 249
4.4.3.2 Auto-relatos e Psicologia Cognitiva 254
4.4.4 Métodos Construtivos e Psicologia Cognitiva 256
4.4.4.1 Simulação Computadorizada e Psicologia Cognitiva 257
4.4.5 Métodos Experimentais e Psicologia Cognitiva 260
5–AVALIAÇÃO CRÍTICA DO COGNITIVISMO 265
5.1 Críticas ao modelo cognitivista de Psicologia 265
5.5.1 As críticas behavioristas 266
5.5.2 As críticas materialistas 272
5.5.3 As críticas pós-modernas 277
5.5.4 As críticas humanistas 285
5.5.5 As críticas cognitivistas 305
5.2 O Cognitivismo e os Limites da Psicologia Científica 311
5.2.1 O Cognitivismo e os vetos filosóficos à Psicologia Moderna 311
5.2.2 O Cognitivismo e o problema dos pressupostos filosóficos gerais da Ciência 319
5.2.3 O Cognitivismo e os problemas metodológicos da Psicologia Moderna 323
5.2.4 A Explicação Condicional em Psicologia 325
5.2.5 Complementares e insubstituíveis: Psicologia Científica e Psicologia Filosófica 333
5.2.6 Por uma nova metáfora computacional 340
6–CONCLUSÃO 347
BIBLIOGRAFIA 352
IX
RESUMO
Este é um estudo filosófico sobre os fundamentos ontológicos, epistemológicos e
metodológicos do Cognitivismo. Ele situa este movimento no contexto mais amplo da crise de
cientificidade endêmica da Psicologia, e esta, no debate epistemológico atual. Primeiro, aponta o
Racionalismo Crítico como a posição epistemológica que define o que é ciência moderna hoje.
Segundo, inventaria os principais problemas filosóficos e metodológicos que foram levantados
contra a pretensão de cientificidade da Psicologia ao longo dos últimos duzentos anos. Então, em
face destes problemas, analisa as possibilidades e limites de desenvolvimento de uma Psicologia
científica como a concebe o Cognitivismo. Os pressupostos ontológicos desta abordagem são
estabelecidos, concluindo-se por sua adesão ao realismo em relação ao problema da representação
mental e da consciência, além da adesão predominante à solução interacionista ao problema mente-
corpo. Em relação aos seus pressupostos epistemológicos, conclui-se pela estrita aderência aos
cânones de cientificidade do Racionalismo Crítico, assim como por seu comprometimento com um
construtivismo moderado. Em relação a seus aspectos metodológicos, apontam-se suas inovações,
como o desenvolvimento da técnica de protocolo verbal, estudo de casos com dissociação dupla,
simulação computadorizada e experimentos com PET. Conclui este trabalho que apesar de ter
superado ou contornado a grande maioria dos obstáculos tradicionais ao estabelecimento de uma
Psicologia estritamente científica, o Cognitivismo não ofereceu solução adequada para o problema
da criatividade e da escolha humana, e aumentou exponencialmente o número de variáveis
envolvidas na explicação dedutivo-nomológica psicológica. Desta forma, esta última tornou-se uma
impossibilidade prática, no mínimo, e no caso de aceitação das características humanas acima
citadas, também ontológica. Para resolver este problema, propõe-se a adoção da explicação
condicional em Psicologia, além da divisão da disciplina entre um campo científico e um campo
filosófico. Isto é necessário para que esta não continue sofrendo a amputação de muitos de seus
problemas mais importantes, inabordáveis cientificamente, como as questões relativas à
consciência, ao significado e sentido da experiência, aos valores, à criatividade e à pró-atividade
humanas. A adoção da explicação condicional e da divisão de campos intrínseca a disciplina, pode
oferecer o caminho para a tão distante e sonhada unificação da Psicologia, que se daria no entanto
unicamente no campo científico, com o conjunto das leis condicionais universalmente reconhecidas.
Palavras-chave: Cognitivismo, Epistemologia, Psicologia Cognitiva, Racionalismo Crítico.
X
ABSTRACT
This is a philosophical study on the ontological, epistemological and methodological
foundations of Cognitivism. He places this movement in the widest context of the endemic scientific
crisis of Psychology, and this, in the current epistemological debate. First, it points the Critical
Rationalism as the epistemological position that defines what is modern science today. Second, it
would invent the main philosophical and methodological problems that were lifted up against the
scientific pretensions of Psychology along the last two hundred years. Then, in face of these
problems, it analyzes the possibilities and limits of development of a scientific Psychology as
conceived by Cognitivism. The ontological presuppositions of this approach are established, being
concluded by its adhesion to realism in relation to the problem of mental representation and
consciousness, besides the predominant adhesion to the interationist solution a to the problem mind-
body. In relation to their epistemological presuppositions, it concluded by the strict adherence to the
scientific canons of Critical Rationalism and moderate constructivism. In relation to their
methodological aspects, their innovations are appeared, as the development of the verbal protocol
technique, case study with double dissociation, computational simulation and experiments with PET.
Concluded this work that in spite of having overcome or outlined the great majority of the traditional
obstacles to the establishment of a strictly scientific Psychology, Cognitivism didn't offer appropriate
solution for the problem of creativity and human agency, and it exponentially increased the number
of variables involved in the psychological deductive-nomological explanation. This way, this last one
became a practical impossibility, at least, and in the case of acceptance of the human characteristics
above mentioned, ontological also. To solve this problem, it intends the adoption of the conditional
explanation in Psychology, besides the discipline division between a scientific field and a
philosophical field. That is necessary so that this doesn't continue to suffering the amputation of
many of their more important problems, scientifically unapproachable, as the relative subjects to the
consciousness, meaning and sense of the experience, values, creativity and human agency. The
adoption of the conditional explanation and of the intrinsic division of fields in discipline can offer
the road for the so distant and dreamed unification of Psychology, which would feel however only in
the scientific field, with the group of the conditional laws universally recognized.
Key-words: Cognitivism, Epistemology, Cognitive Psychology, Critical Rationalism.
XI
ASSINATURAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
CURSO DE DOUTORADO
A Tese “O COGNITIVISMO E O DESAFIO DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA”,
elaborada por GUSTAVO ARJA CASTAÑON, foi aprovada pelos membros da banca
examinadora:
Professor UED MALUF
______________________________________
Professor ALBERTO OLIVA
______________________________________
Professor ANTÔNIO GOMES PENNA
______________________________________
Professor BERNARD RANGÉ
______________________________________
Professor HELMUTH KRÜGER
______________________________________
XII
MAGNUM MIRACULUM EST HOMO
XIII
1
INTRODUÇÃO
O tema investigado nesta pesquisa é o da crise de cientificidade endêmica da
Psicologia, que a acompanha desde seu nascimento como projeto de ciência moderna. Nas
últimas décadas essa crise ganhou novos contornos, com as críticas efetuadas tanto pela
Psicologia Humanista como pela filosofia pós-moderna, e principalmente com a emergência
das Ciências Cognitivas.
O problema específico objeto desta pesquisa teórica dentro do tema escolhido é o da
possibilidade e limites de desenvolvimento de uma Psicologia científica nos parâmetros
oferecidos pelo Cognitivismo, em face das dificuldades ontológicas e epistemológicas
próprias da Psicologia e das novas questões impostas tanto por seu próprio desenvolvimento,
quanto pela crise epistemológica trazida pelos desenvolvimentos recentes da Ciência e
surgimento da filosofia pós-moderna.
Pode-se sintetizá-lo com a seguinte pergunta: Quais são as possibilidades e quais são
os limites da Psicologia Cognitiva como disciplina científica moderna? A análise desse
problema passa por três questões intermediárias fundamentais:
Primeiro, o que é uma pesquisa de caráter científico para o projeto da modernidade? O
que a modernidade entende como Ciência? Esta concepção resiste aos próprios resultados da
ciência moderna e questionamentos pós-modernos?
Segundo, é possível conceber a Psicologia como uma disciplina estritamente aderida
aos cânones de cientificidade modernos? O projeto modernista de Ciência Psicológica
sobrevive às críticas ontológicas e epistemológicas efetuadas pelos humanistas e pelos
teóricos pós-modernos?
1
Terceiro, a Psicologia Cognitiva é compatível com a atividade científica conforme
entendida pela modernidade? O Cognitivismo soluciona os impasses colocados ao projeto
modernista de ciência psicológica?
Assim, chega-se à possibilidade de oferecer uma resposta e elaborar algumas
propostas de abordagens novas para estes problemas. Discute-se aqui portanto a questão do
projeto cognitivista de Psicologia moderna, analisando-o do ponto de vista ontológico,
epistemológico e metodológico. A tese é portanto um esforço de delimitar o estado atual da
questão, tendo um caráter de estudo filosófico, onde não coube conduzir qualquer tipo de
pesquisa empírica.
1.1 Hipóteses
A principal hipótese sustentada por este trabalho é a de que a pesquisa psicológica
científica só pode ser realizada sobre os padrões de comportamento e de processamento
cognitivo humano. Os limites para a possibilidade de pesquisa psicológica científica são as
questões da consciência, do significado e sentido da experiência, da qualia, dos valores, da
liberdade e da criatividade humanas, cabendo diante destas à ciência somente a tarefa de
trabalhar sobre suas manifestações secundárias, sendo em sua investigação mera coadjuvante
da Filosofia, além de buscar a determinação das condições necessárias para a emergência de
alguns destes processos psicológicos.
Portanto, através do enorme esforço e parcial sucesso do Cognitivismo em superar
algumas das dificuldades históricas da Psicologia em se constituir enquanto legítima ciência
psicológica, demonstra-se que ficaram mais evidentes alguns limites da atividade científica
em Psicologia e a necessidade de se reconhecer esta disciplina como um campo científico e
filosófico de investigação. Os impasses ontológicos e epistemológicos colocados por
psicólogos humanistas à possibilidade da pesquisa científica psicológica conduzida com base
em pressupostos modernos, apesar de em grande parte terem sido superados pelo
Cognitivismo, explicitaram limites intransponíveis à investigação científica nomotética.
Desta forma, sustenta-se neste estudo a hipótese de que o domínio da ciência é o
campo das causas formais e eficientes. O campo das causas finais, da teleologia, é domínio da
Filosofia, assim como o campo do individual. A distinção de Dilthey entre ciências naturais e
ciências humanas (Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften), o contraste metodológico
de Max Weber entre explicação e compreensão, entre causas e razões, separa não o campo
entre dois tipos de ciência, mas sim o campo onde a ciência pode atuar do campo que é
domínio exclusivo da Filosofia.
2
Assim, conclui-se pela verdadeira complementaridade e irredutibilidade que deve
existir entre as abordagens explicativa (científica) e compreensiva (filosófica) na Psicologia.
Esta tese procura demonstrar que esta disciplina deve se dividir entre um campo científico
(explicativo e falsificável) e um campo filosófico (compreensivo e explicativo infalsificável),
oferecendo uma nova proposta de explicação em Psicologia, a explicação condicional, em
substituição à dedutivo-nomotética e à probabilística. Só dessa forma poderá se superar o
falso dilema da Psicologia de escolher entre destruir o conceito de ciência para salvar a ima-
gem de Homem, ou destruir a imagem de Homem para manter o conceito de ciência moderna.
1.2 Relevância
O status epistemológico das reivindicações de teorias psicológicas é, na verdade, a
mais básica questão da Psicologia. É dispensável a defesa da relevância de tal questão que,
por definição, é fundamental. Análises clássicas anteriores deste problema revelam-se
atualmente defasadas, (Robinson, 1985, Koch, 1985, Giorgi, 1978), pois referentes a períodos
em que a Revolução Cognitiva era nascente e o Behaviorismo ainda era predominante na cena
psicológica. Atualmente, com a emergência do cognitivismo, a sedimentação de uma tradição
humanista e a disseminação do relativismo e ceticismo gnosiológico de pensadores pós-
modernos, o status da questão da cientificidade da Psicologia e seus questionamentos
demandam um novo esforço de análise.
Este esforço deve levar em conta as dificuldades e limites que os pressupostos
epistemológicos modernistas e pós-modernistas trazem em si, assim como o problema da
influência dessas correntes contemporâneas na questão dos pressupostos ontológicos,
epistemológicos e até axiológicos da Psicologia. A realização deste trabalho serve a uma
melhor clarificação dos pressupostos subjacentes ao Cognitivismo, evidenciando sua
integração ou não ao projeto da ciência moderna, além de ter um caráter de contribuição
original, na medida em que, além disto, apresentará algumas novas propostas de abordagem
para o problema da Ciência Psicológica e seus limites. Por fim, poderá a presente tese cumprir
um papel de auxílio didático considerável para aqueles que se interessam por Psicologia
Filosófica e Epistemologia da Psicologia.
1.3 Metodologia
Considerando que esta tese é um estudo filosófico, é evidente que o único tipo de
pesquisa efetuado é a bibliográfica. No entanto, deve-se explicitar: 1) que tipo de dados
teóricos se procurou e 2) a forma de coleta desses dados teóricos. Diante do problema
3
específico objeto da pesquisa teórica, os dados utilizados nesta pesquisa foram os textos onde
autores e cientistas que tratem da questão dos fundamentos epistemológicos e ontológicos da
Psicologia Cognitiva e da abordagem Cognitivista explicitam os fundamentos ontológicos e
epistemológicos de suas respectivas abordagens. É a partir da análise do conteúdo teórico
destes textos que se efetua a crítica epistemológica que é o objetivo desta tese.
Assim estabelecem-se as fontes primárias e secundárias desta tese:
A) Fontes primárias: Textos originais onde os mais representativos autores
cognitivistas que tratam da questão dos fundamentos epistemológicos e ontológicos do
Cognitivismo e da Psicologia Cognitiva explicitam os fundamentos de sua abordagem.
B) Fontes secundárias: Literatura crítica sobre as posições epistemológicas dos mais
representativos autores cognitivistas que tratam da questão dos fundamentos epistemológicos
e ontológicos do Cognitivismo e da Psicologia Cognitiva.
A pesquisa do material para uma tese filosófica é eminentemente uma pesquisa
bibliográfica. Esse tipo de pesquisa, onde se deve levantar toda a produção acadêmica sobre
determinado tema, seguiu um método pessoal, com etapas assim definidas: 1
o
) Indicações de
especialistas, 2
o
) Busca em bases de dados computadorizados, 3
o
) Elaboração do Arquivo
Bibliográfico provisório com as fichas indexadas eletrônicas, 4
o
) Busca nos acervos das
bibliotecas e no portal de periódicos da CAPES, 5
o
) Aquisição nas livrarias virtuais dos títulos
ausentes das bibliotecas brasileiras, 6
o
) Leitura do primeiro arquivo, 7
o
) Elaboração de
arquivo bibliográfico definitivo com as fichas eletrônicas dos livros e artigos indicados pelas
obras do primeiro arquivo, 8
o
) Leitura dos segundos textos, 9
o
) Execução da tese e 10
o
)
Leitura do terceiro e último grupo de textos, paralela à acréscimos à tese.
No presente trabalho, a base de dados principal foi o Psycinfo, com consultas paralelas
ao Philosophical Index. Os artigos foram obtidos na base de periódicos da CAPES e na
biblioteca da USP. Quanto aos livros não conseguidos na referida biblioteca, foram
importados através das livrarias virtuais Abebooks e Alibris.
1.4 Estrutura da Tese
Além da presente introdução, que se encerra com esta descrição de sua estrutura, esta
tese tem mais cinco capítulos. O próximo deles, tem o título “Crise Epistemológica” e procura
explanar o problema do debate epistemológico contemporâneo, cumprindo o objetivo de
situar a crise de cientificidade endêmica da Psicologia no contexto mais amplo da crise
epistemológica atual. Começa pela definição de ciência aceita pela modernidade e pelo
significado que a Ciência Moderna assume desde a Revolução Científica. Depois relembra as
4
características principais do pensamento positivista e de sua forma final em filosofia da
ciência, o Positivismo Lógico, que ofereceu a posição epistemológica hegemônica até a
segunda guerra mundial. No terceiro item, apresenta-se aquela que se estabeleceu, não sem
dificuldades, como a nova posição dominante na filosofia da ciência, o Racionalismo Crítico
fundado por Karl Popper. Em seguida, esse breve panorama histórico lança os olhos sobre
autores pós-modernos – Jean-François Lyotard, Richard Rorty e os “pós-popperianos”
Thomas Kuhn e Paul Feyerabend – e em suas tentativas de dissolução da posição
epistemológica padrão. Concluindo essa contextualização, são sumariamente inventariadas
recentes conquistas da ciência moderna que lançaram perplexidade sobre a comunidade
científica e filosófica, para finalmente responder, de forma fundamentada, à pergunta sobre a
sobrevivência de seu projeto.
No terceiro capítulo, que tem o título de “Psicologia moderna e impasse endêmico”,
esta tese cumpre o objetivo de descrever os problemas particulares da Psicologia na sua busca
pelo estatuto de ciência moderna, para que depois estes possam ser avaliados sob a ótica das
tentativas de solução cognitivistas. Primeiro analisa a relação entre Psicologia e Ontologia,
centrada na questão do objeto de estudo da ciência psicológica. Depois analisa as relações
especiais da Psicologia com a Epistemologia, discutindo a questão da explicação e da
compreensão, assim como as dificuldades metodológicas de investigação do objeto
psicológico. No terceiro item, faz-se uma resumida recapitulação da história de fracassos da
Psicologia em suas tentativas de se constituir como ciência moderna, desde sua fundação
como ciência empírica com o Estruturalismo até a Psicanálise. A seguir, são investigadas as
posições ontológicas e epistemológicas do Behaviorismo, abordagem da Psicologia que foi a
pioneira na constituição de uma Psicologia legitimamente integrada aos preceitos da ciência
moderna. No quinto e sexto item, são analisadas as violentas reações ao Behaviorismo vindas
da Psicologia Humanista e da Fenomenologia, que levantaram graves questões à possibilidade
de a Psicologia vir a se constituir enquanto disciplina científica. Por fim, no último subitem,
procura o terceiro capítulo substanciar as condições de resposta à segunda pergunta básica
desta tese, que é se pode a Psicologia se constituir enquanto ciência moderna.
No seu quarto capítulo, esta tese entra na questão do “Cognitivismo: O novo projeto de
psicologia moderna”. O capítulo começa por uma contextualização histórica do surgimento
desta abordagem, concebida como um atropelamento sofrido pela Psicologia do meio do
século por outras disciplinas científicas que, sem renunciarem ao método científico,
ultrapassaram as fronteiras da Psicologia obrigando-a a uma reação. Estabelece-se com base
em textos de alguns de seus autores mais representativos seus pressupostos e posições
5
ontológicas, com particular destaque a imagem de homem defendida pelo Cognitivismo; suas
posições epistemológicas, com destaque para a compatibilidade com o Racionalismo Crítico e
as relações entre Construtivismo e Inatismo; e por fim, suas inovações metodológicas; como o
protocolo verbal, os experimentos com PET e a simulação computadorizada.
No seu quinto capítulo, esta tese apresenta uma “Avaliação crítica do Cognitivismo”,
com a apresentação e avaliação das críticas efetuadas por autores behavioristas, materialistas,
pós-modernos, humanistas e mesmo cognitivistas a este programa de pesquisa, para enfim
julgar se os problemas levantados no terceiro capítulo foram devidamente superados por esta
nova concepção de ciência psicológica, oferecendo então a resposta deste estudo à sua
questão central. Por fim, são apresentadas as propostas centrais desta tese, de adoção da
explicação condicional em Psicologia, divisão do campo entre uma abordagem científica e
filosófica, e finalmente, de uma nova metáfora computacional.
Em sua conclusão, além da breve recapitulação dos resultados do estudo, defende esta
tese que apesar de a Psicologia Cognitiva merecer o título de ciência psicológica, este
privilégio não constitui livre acesso do método científico a todos os domínios da Psicologia, o
que leva conjuntamente à conclusão que a Psicologia é uma disciplina não-unificável, que
para não ser amputada de domínios significativos de seus problemas, tem que estabelecer uma
relação de complementaridade entre Psicologia científica e filosófica, relação essa necessária
em virtude da irredutibilidade de uma série de fenômenos psicológicos a explicações causais
eficientes ou formais. Portanto, esta conclusão defende a tese da irredutibilidade ontológica
do objeto de estudo da Psicologia, ainda defendendo a complexidade profunda – com níveis
de indeterminação – inerente à condição humana: a mais complexa forma de existência
conhecida no universo.
6
2
CRISE EPISTEMOLÓGICA
Este capítulo procura explanar o problema do debate epistemológico contemporâneo,
cumprindo o objetivo de situar a crise de cientificidade endêmica da Psicologia no contexto
mais amplo da crise epistemológica atual. Começa pela definição e significado que a Ciência
Moderna assume desde a Revolução Científica. Depois relembra as características principais
do pensamento positivista e de sua forma final em filosofia da ciência, o Positivismo Lógico,
que estabeleceu a posição hegemônica em Filosofia da Ciência até a segunda guerra mundial.
Na terceira seção, apresenta-se aquela que se estabeleceu, não sem dificuldades, como a nova
posição dominante na filosofia da ciência, o Racionalismo Crítico fundado por Karl Popper.
Em seguida, esse breve panorama histórico lançará os olhos sobre autores pós-modernos –
Jean-François Lyotard, Richard Rorty e os “pós-popperianos” Thomas Kuhn e Paul
Feyerabend – e suas tentativas de dissolução da posição epistemológica padrão. Concluindo
essa contextualização, são sumariamente inventariadas recentes conquistas da ciência
moderna que lançaram perplexidade sobre a comunidade científica e filosófica, para
finalmente perguntar no último item se, depois de tudo isso, ainda podemos afirmar que o
projeto da ciência moderna – no espírito concebido pela revolução científica – continua vivo.
2.1 Ciência Moderna: surgimento, significados e pressupostos
Quando surge a Revolução Científica, o modelo existente de universo apresentava
todas as coisas ocupando lugares imutáveis, determinados pela qualidade de sua essência. A
Terra ocupava o centro desse Cosmos, onde o homem não dominava e não podia dominar a
7
natureza. O modelo cosmológico era o ptolomeico-aristotélico, dividindo o Cosmos
basicamente entre o mundo sublunar – o mundo da imperfeição, da mudança constante e da
corrupção de tudo – e o mundo celestial supralunar, perfeito e incorruptível. O mundo
sublunar era submetido ao determinismo físico e ontológico da esfera celeste, de onde os
valores “desciam” para a Terra. Esse Cosmos era um todo finito e bem ordenado, no qual a
estrutura espacial refletia também uma estrutura ontológica e axiológica, ou seja, a posição no
espaço revelava também uma hierarquia de perfeição: abaixo, a Terra pesada e opaca, centro
da região sublunar onde reinam a mudança e a corrupção; acima, as esferas celestes dos astros
imponderáveis, incorruptíveis e luminosos. O espaço aristotélico é portanto um conjunto
diferenciado de lugares que possuem naturezas diversas.
A Revolução Científica operou, no decorrer de cerca de um século e meio (de 1543 -
data da publicação do De Revolutionibus de Copérnico - a 1687 - quando foi publicado
Princípios Matemáticos de Filosofia Natural) provavelmente a maior revolução intelectual e
cultural da história da humanidade. Não se trata somente da imagem de mundo que se
transforma durante esse período, mas das idéias sobre a ciência, o homem, as relações entre
ciência e sociedade, ciência e filosofia e ciência e fé. A Terra deixa de ocupar para a ciência o
centro do universo para se tornar nada mais que um planeta entre outros planetas. Do universo
fechado onde residia o homem, surge um universo infinito, cuja concepção nasce da
incorporação do modelo de espaço oferecido pela geometria euclidiana à representação do
universo real. Na Revolução Científica triunfam temas neo-platônicos e neo-pitagóricos que
estiveram há muito sufocados pela escolástica aristotélica. A mística do Sol, presente em
Copérnico e Kepler; o Deus Geômetra, que cria o mundo nele imprimindo uma ordem
geométrica e matemática; são exemplos típicos dessa influência.
Mas é em relação à ciência que obviamente se dão as principais e mais características
transformações do período. É o surgimento da Ciência Moderna, na verdade, o grande
resultado da revolução científica. Daqui por diante, “ciência” não será mais resultado da
intuição privilegiada de um mago ou do comentário a um filósofo de autoridade incontestável.
A ciência qualifica-se enquanto tal, ou seja, enquanto “saber”, porque obtém suas proposições
através de experimentos e demonstrações. A ciência é superior epistemicamente porque é
experimental: teorias rigidamente testadas através dos experimentos, publicamente
controláveis, e sempre aprimoráveis por novos e mais precisos instrumentos de medidas. O
método experimental torna a ciência autônoma, separando-a da filosofia e da teologia.
A filosofia aristotélica é uma filosofia essencialista, ocupada em definir a essência das
coisas, em responder à pergunta sobre “o quê” elas são. A ciência moderna, originalmente
8
denominada filosofia natural, não está mais voltada para a essência ou a substância das coisas
e dos fenômenos, e sim para responder o “como” eles se desenvolvem, busca as funções
matemáticas que os regem. O conhecimento passa a ter, até mesmo por seu caráter público e
experimental, um objetivo prático, em oposição a seu sentido anterior, meramente
contemplativo. A Ciência deve servir para aprimorar as técnicas dos artesãos e aumentar a
produtividade do trabalho humano. O saber dos intelectuais, desta forma, aproxima-se do
saber dos técnicos e artesãos. Fica somente a dúvida levantada por Koyré (1979), sobre a
verdadeira origem deste saber de caráter público e cooperativo: ele nasceu de filósofos e
cientistas como Copérnico e Galileu; ou emergiu dos artesãos superiores (navegantes,
engenheiros de fortificações, técnicos de artilharia, agrimensores, arquitetos, etc.) ?
2.1.1 A nova síntese epistemológica
A Revolução Científica substituiu a física qualitativa de Aristóteles por uma física
quantitativa, onde o princípio identificando o real objetivo à percepção sensível fica
definitivamente rejeitado: as qualidades são relativas a nossos sentidos e a matéria é
quantitativa. Assim, como afirma Japiassú (1997), entre a ciência grega e a ciência moderna, a
diferença se pode sintetizar nos conceitos de experimentação e matematização. A “ciência”
grega nada mais é do que metafísica. Ela permaneceu confinada nos domínios da teoria, sem
nenhuma preocupação com qualquer tipo de validação experimental ou utilidade prática. Esse
descompromisso com a aplicação das teorias tomou dois caminhos distintos no pensamento
epistemológico grego. O primeiro foi o aristotélico, que acreditava na experiência como a
única fonte do conhecimento. Este caminho construiu uma ciência sistemática, rica de
observações, mas puramente qualitativa. Aqui a quantificação não cumpria qualquer papel, o
interesse era essencialista: o objetivo das observações sistemáticas era captar a essência das
coisas e dos fenômenos.
O segundo, platônico-pitagórico, foi o da veneração dos números e das idealidades
matemáticas, sem qualquer compromisso com sua aplicação no mundo material. A
matemática e a geometria se tornam um meio de purificação para a alma que se distancia do
mundo sensível, corruptível. Ao contemplar essas idealidades, o ser humano consegue
compreender a real essência do conhecimento. Segundo a teoria platônica das idéias, uma vez
que o verdadeiro conhecimento deve ter necessidade lógica e validade universal, ele não pode
vir do mundo físico, do mundo da experiência, pois este se encontra em permanente alteração
e mudança. Desta forma, o conteúdo estável e as idéias perfeitas que temos sobre os objetos
geométricos ideais não podem proceder do mundo físico, tendo que justificar sua origem num
9
outro plano, que Platão denomina mundo das idéias. Esse mundo das Idéias não é um lugar
físico, mas sim um reino das essências ideais das coisas, porém, mais real do que o mundo
fenomênico, pois imutável. O interesse da filosofia platônica do conhecimento é portanto as
idéias, e com isso ele praticamente se divorcia do mundo físico.
Como defende Japiassú (1997), a nova síntese epistemológica que nos traz a
Revolução Científica é a realizada entre as matemáticas e a experiência. Essa síntese tem
nome, e esse nome é experimentação. Podemos atribuir a Galileu Galilei o aparecimento
dessa síntese revolucionária. Sua tarefa foi a de elaborar um conceito de experiência e de
teoria fundado no recurso inédito à matemática, modelo sem precedentes na história do saber
racional. Ele consegue o que ninguém ainda havia conseguido: formula uma descrição
matemática dos movimentos dos corpos. A unidade entre a experiência e da matemática pode
acontecer na epistemologia galileana porque ele admite o pressuposto que a natureza se
organiza de forma matemática. Assim, a matemática deve definir, na natureza, os sistemas
acessíveis de fenômenos observáveis.
Galileu possui uma crença profunda que as formas matemáticas estão realizadas no
mundo. Para ele, a natureza fala a linguagem da matemática, e portanto só pode ser conhecida
através dessa linguagem, ou seja, de questões que lhe são colocadas através de linguagem
matemática. As respostas vêm, quando as questões são corretamente colocadas através da
experimentação, da aplicação à experiência das leis da medida e interpretação matemática.
Como nos mostra Koyré (1979), ao destruir a imagem aristotélica de Cosmos, Galileu
a substitui pelo esquema de um universo infinito e unitário, submetido à disciplina rigorosa da
física matemática. Ele geometriza o universo, o identificando o espaço físico com o espaço da
geometria euclidiana. Uma nova imagem do universo, quantitativa, atômica e infinitamente
extensa (ou seja, mecanicista) vem substituir a velha imagem qualitativa, contínua, limitada e
religiosa herdada de Aristóteles. Daqui para frente, o universo será concebido como um
contínuo físico de extensão infinita, no interior do qual os fatos físicos se condicionam entre
si em virtude de necessidades materiais e matematicamente calculáveis.
Assim, uma das conseqüências da Revolução Científica foi o divórcio entre o mundo
dos valores (do sentido, das causas finais) e o mundo dos fatos (causas materiais e eficientes).
O pensamento científico não pode mais aceitar as noções de valor, perfeição, harmonia,
sentido, finalidade. A Revolução portanto cinde o mundo em dois. Pascal (1975), profetizaria
diante do universo surgido da Revolução Científica que o homem se encontraria doravante
sob um espaço vazio, onde nenhum valor teria mais lugar: “O silêncio eterno desses espaços
vazios me apavora...” .
10
2.1.2 O conceito de Ciência Moderna
Apesar das demandas pós-modernas por pluralidade semântica e de suas alegações de
uma multiplicidade de “saberes”, se passarmos os olhos superficialmente por enciclopédias
filosóficas e dicionários de Filosofia, encontraremos alguns consensos significativos sobre a
definição de ciência. Ferrater Mora (1994), indica que a palavra ciência é derivada do
vocábulo scientia, substantivo que procede do verbo scire, que significa saber.
Etimologicamente, ciência equivale a "o saber". Deste sentido básico, originário, podem
derivar interpretações errôneas do termo (como as dos pós-modernos), o que leva a borrar
seus limites precisos. Porque há “saberes” que não pertencem à ciência, como o conhecimento
de fatos cotidianos vulgares ou de experiências subjetivas, no entanto, isto não significa que
estes “saberes” não se constituam em formas de conhecimento legítimas. Porém, legítimas em
esferas de legitimidade epistemologicamente distintas.
Para Abbagnano (2000) ciência é o conhecimento que inclua, em qualquer forma ou
medida, uma garantia da própria validade. Segundo a versão clássica deste conceito, essa
garantia seria absoluta, mas com o advento da Ciência Moderna, que não tem pretensões de
saber absoluto, essa definição foi flexibilizada. Segundo Mora (1994), a definição atualmente
mais aceita de ciência (empírica) é aquela que afirma ser ela um modo de conhecimento que
aspira a formular, mediante linguagens rigorosas e apropriadas (e sempre que possível
matemáticas), leis por meio dos quais se regem os fenômenos.
Estas leis, ainda segundo Mora, devem possuir, para ser consideradas sentenças
científicas, várias características em comum. São elas as características Descritiva,
Experimental e Preditiva. A primeira se refere à capacidade para expressar lingüisticamente
de forma precisa séries de fenômenos; a segunda à propriedade de serem comprováveis por
meio da observação sistemática e matematizada dos fatos (de experimentação); a terceira à
capacidade de serem capazes de determinar, seja mediante predição exata ou estatística, o
desenrolar de acontecimentos futuros relativos aos fenômenos sobre os quais versa.
Uma das definições mais aceitas de Ciência Moderna ainda hoje é a elaborada por
Ernest Nagel em “The Structure of Science”, de 1961. Em resumo, define a ciência como
sendo uma atividade com seis características básicas. A primeira é a forma sistêmica da
organização que deve ter o edifício teórico e o conjunto de leis. A segunda é a definição de
métodos de investigação, que também estabeleçam o objeto de estudo e os fatos relevantes
para estudá-lo. A terceira é a redução, a ciência sempre procura reduzir fenômenos a seu nível
mais profundo de fundamentação. A quarta é a objetividade, no sentido de ser controlável,
11
reproduzível e intersubjetivamente observável. A quinta é a claridade das leis e teorias
científicas, estabelecidas em linguagem clara, formalmente impecável e semanticamente
unívoca. Por fim, a sexta característica principal seria a incompletude e falibilidade, o
conhecimento científico está sempre aberto a revisões, nunca é definitivo.
É sempre importante lembrar que estas definições se referem portanto à atividade que
surge da Revolução Científica e suas pretensões. Não se refere a nenhuma tentativa de
fechamento de questão em torno do que é a ciência, mas sim do que ela é para a modernidade.
Esta tese não está preocupada em definir o que deve ser a ciência, e sim, em responder se a
Psicologia é compatível com a definição de ciência que dá a ciência moderna. A questão do
significado do termo e da atividade na atualidade requer muita reflexão, que sucintamente
será esboçada neste capítulo, mas que longe ficará de ser esgotada, pois foge aos nossos
objetivos aqui. Por hora, basta estabelecer um significado coerente com alguns consensos
básicos sobre o que é ciência para a modernidade. Depois, a partir desta definição, é possível
a realização da atividade crítica deste capítulo, assim como rastrear suas origens.
Portanto, essa forma de conhecimento a que a modernidade chama ciência – e aqui
fica claro que não estou me referindo às ciências formais, somente à empírica – fica definida
como a que permite ao menos uma aproximação do conhecimento universalmente válido e
empiricamente comprovável. Ciência é aquele modo de obtenção de conhecimento que aspira
a formular teorias gerais e leis universais que expliquem, de forma cada vez mais acurada,
ainda que probabilisticamente, fenômenos da realidade objetiva.
Desde o Teeteto de Platão estabeleceu-se a visão, considerada válida na Filosofia por
mais de dois milênios, de que conhecimento é crença verdadeira justificada. Como afirma
Oliva (2003), a partir da filosofia moderna os discursos sobre a ciência tendem a estabelecer
que uma proposição, para aspirar à condição de científica, deve ser passível de validação
como verdadeira ou ao menos como provável. Assim, verdadeira é a proposição que
estabeleça correspondência com o estado de coisas ao qual se reporta, e que possa ser
justificada por critérios epistemológicos rigorosamente estabelecidos. O que está em jogo na
ciência é a forma de justificação de crenças verdadeiras.
Podemos observar hoje as tentativas pós-modernas de desconstrução do termo ciência,
através da tentativa de dissolução de seu significado. No entanto isto é irrelevante para nossos
objetivos, uma vez que nesta tese estamos nos referindo ao conceito de conhecimento da
espécie descrita acima, não aos sentidos que os desconstrucionistas, pós-modernos e
adversários da ciência moderna querem dar ou tirar do termo. E são os pressupostos
filosóficos nos quais se baseia a definição acima de ciência que são abordados adiante.
12
2.1.3 Pressupostos filosóficos da Ciência Moderna
Quais são as crenças fundamentais, os pressupostos filosóficos, que estão na base da
empreitada científica moderna caracterizada acima? Estabelecem-se aqui cinco, que para o
tipo de busca delimitado acima, são irredutíveis e necessárias. À exceção dos pressupostos
lógicos, todas elas serão trabalhadas extensivamente neste e no próximo capítulo, quando
buscaremos os principais termos do debate sobre estas posições. No entanto, estão listadas
aqui a titulo de explicitação de pressupostos teóricos necessários ao conceito acima adotado.
A primeira é a crença de que o objeto existe independentemente da mente do observador, a
isto chamaremos Realismo Ontológico; a segunda é a crença na estabilidade, pelo menos em
alguns de seus aspectos, do objeto que se estuda, a isto chamaremos Regularidade do Objeto;
a terceira é a crença de que através do método adequado, podemos vir a conhecer algo sobre o
objeto, a isto chamaremos Otimismo Epistemológico; a quarta é a assunção das leis básicas da
lógica clássica na formulação de argumentos válidos, os Pressupostos Lógicos, e, por último e
não menos importante, a crença de que podemos representar adequada e estavelmente o
mundo através da linguagem, a isto chamaremos aqui, Representacionismo.
2.1.3.1 Realismo Ontológico
Se tivéssemos que indicar a mais básica das crenças que sustentam a atividade
científica, a escolha talvez recaísse sobre a crença de que há algo a ser pesquisado. Esse é o
pressuposto ontológico do realismo, ou seja, a atividade de pesquisa pressupõe antes de
qualquer coisa a existência do objeto que está sendo pesquisado. Essa existência é objetiva, ou
seja, existe num campo do real que tem algum nível de independência em relação ao
observador humano; o objeto não é meramente uma criação da mente humana, antes,
independe, ao menos em algum de seus aspectos, da mesma.
É claro que, depois de Kant, a única posição realista que permanece defensável
filosoficamente é o realismo crítico. Esta posição defende que as representações mentais não
são idênticas aos objetos que visam, mas são influenciadas por estes uma vez que as
expectativas que temos sobre como os objetos se comportarão são muitas vezes frustradas
(falsificadas) por eles. Assim, para o realismo crítico nossas representações sofrem a
influência tanto das impressões provocadas por objetos externos como das expectativas e
crenças do observador, condicionadas ambas ainda, pelos limites e possibilidades de nosso
aparato fisiológico. Não podemos evidentemente, sustentar uma crença oposta a alguma
espécie de realismo como compatível com a atividade científica. Não há como imaginar um
13
ser humano dedicado à investigação científica e ao mesmo tempo descrente quanto à
existência do próprio objeto do esforço de sua investigação.
2.1.3.2 Regularidade do Objeto
Portanto, admite-se que o objeto tem que existir na realidade objetiva. Mas sua
existência não basta para que ele possa ser estudado cientificamente. Uma vez que admitamos
como explicações científicas formulações de hipóteses causais, precisamos necessariamente
assumir que o objeto que está sendo contemplado com estas hipóteses, em ao menos algum de
seus aspectos, esteja submetido a leis. A atividade científica se caracteriza, em suma, pela
busca racional da descoberta das leis que governam um objeto particular.
A crença na regularidade do objeto está vinculada por sua vez ao determinismo e ao
naturalismo, que estão na base da ciência moderna desde Galileu Galilei. O naturalismo é a
crença num universo governado por leis intemporais, fora do jugo da magia, dos deuses, do
acaso ou do caos. Veja como Galileu (1973) descreve essa crença em passagem clássica:
“A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante
nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua
e os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática..” (p. 119)
Ou seja, Galileu possui uma crença profunda de que as formas matemáticas governam
o mundo, de que a natureza é estável e governada por leis matemáticas, e portanto, passíveis
de descoberta. Para ele, a natureza fala a linguagem da matemática, e portanto só pode ser
conhecida através dessa linguagem, ou seja, de questões que lhe são colocadas corretamente
colocadas através de um novo método: a experimentação, a aplicação à experiência das leis da
medida e da interpretação matemática.
2.1.3.3 Otimismo Epistemológico
A crença de que podemos conhecer algo é uma crença de tal forma generalizada no ser
humano que sua posição oposta, o ceticismo radical, é inaceitável tanto ao senso comum
quanto ao senso filosófico. Não faz nenhum sentido imaginar o enorme empenho de conhecer,
admitindo-se previamente que não é possível se chegar a algum conhecimento.
Uma vez que assumimos o pressuposto da possibilidade de se obter conhecimento
válido, imediatamente somos chamados a nos decidir em relação à forma pela qual ele é
adquirido. Ou seja, de que forma obtemos conhecimento? Qual é a sua origem? E a outra
14
decisão conseqüente é: de que forma validamos este conhecimento? Estas são as principais
questões da epistemologia, e as diferentes respostas a estas perguntas, particularmente em
relação à espécie particular de conhecimento chamado de conhecimento científico, é o que
avaliaremos no decorrer deste capítulo.
2.1.3.4 Pressupostos Lógicos
Existem regras básicas de pensamento nas quais está assentado todo o pensamento
humano, e estas são as regras que possibilitam a obtenção de argumentos válidos. As teorias
científicas, uma vez que são produtos do pensamento, apresentam uma estrutura que aplica
estas regras. Estas regras específicas são o que está se chamando aqui de Lógica, das quais
são exemplos os três princípios básicos da contradição, de identidade e o do terceiro excluí-
do. Estes princípios foram explicitados pela primeira vez em Aristóteles, mas encontram-se
presentes no pensamento ocidental desde o surgimento do pensamento de Parmênides.
O princípio da contradição é um princípio negativo, ou seja, ele afirma a impos-
sibilidade de aceitação por parte do pensamento racional da idéia de que um atributo possa
estar presente e deixar de estar presente no mesmo objeto, ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspecto. Este princípio pode ser formulado portanto da seguinte forma: duas proposições
contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras. O princípio da identidade
enuncia-se da seguinte forma: Toda proposição é idêntica a si mesma. O princípio do terceiro
excluído se enuncia: apenas uma de duas proposições contraditórias pode ser verdadeira.
Mais ainda do que no pensamento cotidiano, na formulação de teorias científicas não
se pode aceitar dois postulados ou sentenças que se contradigam. Embora a Ciência Moderna,
conforme descrita por Abbagnano (2000), tenha renunciado à pretensão clássica de
construção de um sistema de mundo ou até de um pensamento sistemático, permanece a
exigência de que as proposições que constituem o corpo lingüístico de uma ciência sejam
compatíveis entre si, isto é, sejam não-contraditórios.
O pós-modernismo pretende conferir a estes princípios lógicos fundamentais tão
somente uma importância prescritiva, ou seja, um status de mais uma das criações da mente
humana cuja importância particular procede de alguma autoridade intelectual. No entanto, não
cabe questionamento para a afirmação de que a ciência moderna é construída sobre estes
princípios, e compartilha da crença neste conjunto básico de princípios de Lógica Clássica.
Portanto, por não ser o debate da lógica contemporânea um dos objetivos desta tese, cabe
somente definir estas crenças como fundamentais para a delimitação do tipo de atividade que
estamos definindo aqui como ciência moderna.
15
2.1.3.5 Representacionismo
O representacionismo é a crença de que podemos representar adequadamente e
estavelmente o mundo através da linguagem. Existe uma implicação necessária entre o
realismo ontológico e o representacionismo. O coração da questão, é que o realismo
ontológico é assumido por nossa linguagem, sendo na verdade sua própria essência. É
absolutamente irrelevante o caráter arbitrário da relação entre significante e significado. Não
interessa se nós chamamos a caneta de “caneta”, ou mesmo a ciência de “ciência”. O que
interessa é o conceito abstrato de caneta e o conceito abstrato de ciência. O realismo
ontológico que sustenta a atividade científica, filosófica e mesmo meramente representacional
é baseado na crença na existência dos conceitos abstratos. Sem este pressuposto, nem mesmo
o entendimento de minhas palavras nesta tese seria possível.
Como observa Matthews (1998), cada declaração sincera é uma tentativa de dar uma
explicação verdadeira sobre algo assumido como real, essa é a essência da ciência. Não é
possível conceber a ciência sem o pressuposto de que a linguagem na qual estão expressas
suas leis é capaz de representar, pelo menos em parte, o mundo a que ela procura se referir.
Assim, estamos admitindo com o representacionismo uma outra crença, que é sobre o
conceito de verdade. Para o representacionismo, verdade é a correspondência entre estruturas
sintáticas e conteúdos semânticos de uma declaração e o estado de coisas do mundo por ela
referido. Ou seja, conhecimento verdadeiro consiste na concordância do conteúdo do
pensamento com o objeto.
2.2 Desenvolvimento positivista do modelo de Ciência
Aqui se buscará repassar, além das origens de alguns preconceitos e de alguns
equívocos, as características principais do pensamento positivista e seu estabelecimento de
um modelo hegemônico de método científico e ciência moderna. Seguirá este item com o
desenvolvimento histórico desta maneira de interpretar a atividade científica, expondo
sucintamente o ambicioso projeto do Positivismo Lógico e oferecendo argumentos que
sustentam que o fracasso desse projeto levou ao esgotamento histórico do empirismo e a
Filosofia como um todo ao grande impasse em que se encontra hoje.
16
2.2.1 Características gerais do espírito positivista
Os representantes mais importantes do Positivismo clássico são Auguste Comte (1798-
1857) e Claude Bernard (1813-1878) na França, e John Stuart Mill (1806-1873) na Inglaterra.
O Positivismo, portanto, insere-se em duas tradições culturais diferentes, a francesa,
racionalista, que vai de Descartes ao Iluminismo, e a inglesa, empirista, que vai de Bacon ao
Utilitarismo. Teve enorme influência na vida cultural de outros países, como a Alemanha,
onde assumiu a forma de cientificismo materialista, mas principalmente na Itália e no Brasil,
onde foi hegemônico na vida política e cultural. Vamos, no entanto, neste pequeno sub-item,
nos concentrar em suas posições epistemológicas.
Apesar destas ramificações, o pensamento positivista apresenta traços comuns que nos
permitem a sua identificação como movimento. Entre eles, talvez a principal seja o da
reivindicação do primado da ciência: nós conhecemos somente aquilo que a ciência nos dá a
conhecer, pois o único método de obtenção de conhecimento seria o das ciências naturais,
onde se identificam as leis que regem as regularidades nas sucessões dos fenômenos. A
ciência preconizada pelo Positivismo deve ser experimental e indutiva. Ela deve ser aplicada
não só ao estudo da natureza, mas também ao estudo do homem e da sociedade. Essa posição
leva a uma postura ideológica conhecida como cientificismo, que é a exaltação ideológica da
ciência como o único meio para resolver, ao longo do tempo, todos os problemas humanos
que até então escravizavam a humanidade, sejam eles naturais ou sociais. A ciência nos
guiaria rumo à construção final de uma sociedade pacífica e solidária. O otimismo
característico do pensamento positivista é o otimismo científico: a crença (acrítica na maioria
das vezes) no progresso contínuo e irrefreável, sem obstáculos, do conhecimento científico.
O Positivismo, embora represente tradição de pensamento autônoma, preservou temas
e crenças fundamentais do Iluminismo: A tendência a considerar os fatos empíricos como
única base do conhecimento, a fé na racionalidade científica como solução dos problemas da
humanidade e a concepção leiga da cultura em contraposição aos pressupostos e teorias
teológicas. A “positividade” da ciência e o clima da filosofia pós-kantiana levam a
mentalidade positivista a condenar a metafísica e “suas doutrinas” como o idealismo e o
espiritualismo. Mais tarde, com a deificação do “fato” e posições materialistas, os positivistas
acabaram mergulhando em metafísicas igualmente dogmáticas, no que Reale & Antisieri
(1991) denominaram “metafísica da ciência”.
17
2.2.2 Auguste Comte e o Positivismo francês
Comte descreve desta maneira o estágio de desenvolvimento histórico que estaria se
inaugurando com o pensamento positivista, o estágio positivo (científico experimental):
“...o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas,
renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos
fenômenos, para preocupar-se somente em descobrir, graças ao uso bem combinado do
raciocínio e da observação, as suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de
sucessão e de similitude”. (1973, Curso de Filosofia Positiva, p.10)
Esta passagem de Comte é uma das melhores sínteses do Positivismo enquanto
posição epistemológica. Diz Comte e os positivistas, que o verdadeiro espírito positivo se
atém à observação dos fatos, limitando-se a raciocinar sobre eles somente para procurar as
relações invariáveis entre os fenômenos, as leis que os regem. Na esteira de Kant, Comte
rejeita as pretensões metafísicas da razão e condena a metafísica ao reino da fantasia. Isto
também está expresso nesta significativa passagem da mesma obra:
“...o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos à
leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível
constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente
inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam
primeiras, sejam finais.” (1973, p.13)
Como herdeiro do Empirismo, o Positivismo considera que a única base verdadeira
para o conhecimento é a observação, a experiência. Devemos sistematizá-la, submetê-la a
regras experimentais, trabalhá-las com o raciocínio; porém, é a experiência a fonte primeira
do conhecimento. É Mill quem vai sistematizar de forma clara a lógica da ciência positivista.
Não devemos no entanto acreditar que os Positivistas, notadamente os franceses
Comte e Bernard, eram empiristas ingênuos. Comte, também influenciado pelo Racionalismo,
compreende que o Empirismo puro nada mais é do que uma “estéril acumulação de fatos”.
Para ele, assim como para Claude Bernard, genial cientista francês criador da medicina
experimental, o objetivo da ciência é buscar a formulação de leis, através da razão, que sejam
capazes de prever o funcionamento dos fenômenos, “segundo o dogma geral da
invariabilidade das leis naturais”. Para Bernard a Ciência Moderna é ciência experimental, em
contraposição à ciência de observação característica do Empirismo, que raciocina sobre fatos
18
da observação natural. A ciência moderna, ou ciência experimental, raciocinará sobre os fatos
obtidos das condições que o investigador planejou e controlou. Mas se não há experimento
sem hipótese prévia, diz Bernard, também não há hipótese sem observação prévia. Assim,
embora num posicionamento (do Positivismo Francês) mais elaborado do que o do
Empirismo Britânico, o Positivismo, em matéria do problema filosófico da origem do
conhecimento, se alinha com a solução empirista.
Comte propôs um sistema de classificação das ciências que as organizava a partir dos
critérios de ordem cronológica de surgimento e de complexidade crescente de cada uma.
Afirma ele que esses dois métodos se complementam, em virtude da ordem implícita da
história. Essa ordem classificatória teria a seguinte seqüência cronológica e da ciência menos
para a mais complexa: Astronomia, Física, Química, Fisiologia e por último a Sociologia, a
mais complexa das ciências, criada por ele e por ele chamada de “física social”. A Psicologia,
para Comte, é metafísica: jamais poderá se constituir como ciência positiva, porque a
consciência não é observável. Ele a dilui entre a Fisiologia e a Sociologia. A Teologia e a
Metafísica, por razões óbvias, mas também a Filosofia, estão excluídas do quadro geral das
Ciências. Para Comte e para o Positivismo como um todo, à Filosofia só cabe o papel de cri-
tica e organizadora das ciências: a Metafísica deve ser abandonada, a Teologia, ridicularizada,
a Ética deve se tornar positiva, emergindo dos resultados da Sociologia. A Filosofia deve se
tornar exclusivamente Epistemologia, mais especificamente, Metodologia das Ciências.
2.2.3 Jonh Stuart Mill e o Positivismo utilitarista inglês
Na Inglaterra, o Positivismo se desenvolveu na esteira da tradição empirista britânica.
Seu representante máximo é John Stuart Mill. Mill ganhou seu lugar na história da Filosofia
principalmente em virtude de suas refinadas análises sobre a lógica da ciência, deixando claro
o caráter empirista intrínseco ao Positivismo, assim como seus pressupostos metafísicos.
Examinando a questão do silogismo, Mill (1959) demonstra sua esterilidade como
método de obtenção do conhecimento, pois se o método de dedução que ele carrega é
universal, o conteúdo de suas proposições é sempre derivado da experiência. Se dizemos que
1) todos os homens são mortais, e que 2) Sócrates é homem, portanto 3) Sócrates é mortal;
temos uma conclusão válida para tais premissas. Mas a validade das premissas em si é dada
porque eu já vi a morte de Paulo, João, Maria; e me contaram da morte de muitos outros seres
humanos. Portanto, é da experiência de casos singulares que extraio as proposições gerais que
estão na base dos silogismos científicos. E a única justificação para crer que as proposições se
19
darão tais quais eu as estou emitindo, é por que elas se deram assim até agora. O método da
ciência portanto é o método da indução, e é este que precisamos investigar em sua validade.
Aqui temos uma formulação radical empirista: para Mill, todos os nossos
conhecimentos e verdades são de natureza empírica, inclusive as proposições das ciências
dedutivas, como a geometria. Segundo ele, a geometria é a ciência “daquelas linhas, daqueles
ângulos e daquelas figuras que realmente existem”. Afirma que mesmo as proposições da
geometria são verdades experimentais, generalizações da observação
Por indução, Mill (1959) entende aquele processo mental por meio do qual inferimos
que aquilo que através da experiência sabemos que é verdadeiro em alguns casos isolados,
será verdadeiro em todos os casos que se assemelhem aos primeiros por determinados
aspectos. Em outras palavras, indução é o processo em que afirmamos que algo que é
verdadeiro para o indivíduo de uma classe é verdadeiro para todos os indivíduos desta
determinada classe. Mill define sumariamente a indução como generalização da experiência.
Mais que isso, Mill explicita claramente a crença ontológica (e portanto metafísica) em
que está baseada a indução. A garantia de que nossas inferências a partir da experiência
venham a descobrir leis que prevejam o curso da natureza é a crença na uniformidade da
natureza em que o universo se estrutura por leis universais e imutáveis. É o determinismo que
está na base de toda a ciência moderna, mesmo a “positiva”.
2.2.4 O Positivismo Lógico e o esgotamento do empirismo
A tradição positivista continuou a se desenvolver mesmo com o arrefecimento do
impulso cultural do Positivismo primevo. O espírito do apego aos “fatos” objetivos, conside-
rados como a base de todo conhecimento, à ciência, considerada o único método seguro de
obtenção de conhecimento, e à epistemologia, como sendo o único papel cabível à atividade
filosófica, encontrou sua máxima e mais elaborada expressão no Positivismo Lógico.
Positivismo Lógico é a denominação que recebeu a produção de uma série de
pensadores, a maioria de origem vienense, entre os quais se destacam Moritz Schlick, Rudolf
Carnap e Otto Neurath, que também é referida às vezes por Círculo de Viena, às vezes por
neo-positivismo. Esse pensamento se caracteriza pelo aprofundamento da atitude caracterís-
ticamente antimetafísica do Positivismo, uma preocupação central com o uso da linguagem na
atividade científica e uma produção intelectual quase que absolutamente voltada para a
análise da estrutura e dos métodos das ciências naturais. Podemos resumir o Positivismo
Lógico como sendo a doutrina epistemológica que sustenta que a ciência consiste em
proposições descrevendo fatos objetivos positivos, mais as relações lógicas entre elas.
20
O princípio mais importante para a compreensão do Positivismo Lógico – e para a
compreensão da crise epistemológica contemporânea de que trata este capítulo – é o princípio
da verificação. Este consiste na afirmação de que só tem sentido as proposições que podem
ser verificadas empiricamente. A verificabilidade de uma sentença era o critério que para o
Positivismo Lógico separava, não só uma sentença metafísica de uma sentença científica, mas
uma sentença desprovida de significado de uma sentença plenamente significativa.
Além desse princípio central, verdadeiro critério de demarcação, podemos descrever
as linhas programáticas centrais do Positivismo Lógico segundo o manifesto original do
grupo, publicado em 1929 por Neurath, Carnap e Hans Hahn, intitulado “A Concepção
Científica do Mundo”. Segundo Reale & Antisieri (1991), estas diretrizes eram: a unificação
da ciência e de todos os seus ramos, incluindo a Psicologia; e o uso da lógica moderna
aplicada ao material das ciências empíricas para a eliminação da metafísica e clarificação dos
conceitos e teorias científicas. A segunda diretriz era nada mais que o meio através do qual
eles pretendiam atingir o objetivo primeiro.
Ainda neste mesmo manifesto, eram classificados os antecessores do grupo, entre os
quais se destacam, como representantes do empirismo e do Positivismo clássico dos quais eles
se julgavam herdeiros, David Hume, Auguste Comte, John Stuart Mill, Richard Avenarius e
Ernst Mach. Ainda neste, em relação ao segundo pé em que se sustenta o Positivismo Lógico,
ou seja, a lógica moderna, são citados os nomes de José Peano, Gottlob Frege, Bertrand
Russell, Alfred Whitehead e Ludwig Wittgenstein.
Cabe aqui ainda uma explicação mais pormenorizada da diretriz fundamental do
Wiener Kreis . Como unificar a ciência? O primeiro passo é a demarcação clara do campo da
ciência para o campo da não-ciência. Como dito acima, para o Kreis essa demarcação era
dada pelo princípio da verificação. Mais do que isso, este princípio era verdadeiro critério de
significância, que distinguiria proposições insensatas de proposições sensatas. E as
proposições sensatas, as proposições plenamente dotadas de sentido, seriam aquelas passíveis
de verificação empírica ou factual, vale dizer, as afirmações das ciências empíricas. Diz
Schlick sobre a questão do sentido das proposições científicas em “Positivismo e Realismo”:
“Entretanto, quando é que compreendo uma proposição? Quando conheço a significação
das palavras que nelas ocorrem? Esta pode ser conhecida por definições. Entretanto, nas
definições ocorrem novos termos, cujo significado por sua vez também é necessário
conhecer. Ora, o processo de definição não pode prolongar-se ao infinito. Portanto, ao
final chegamos a palavras cuja significação não pode ser novamente descrita por uma
21
proposição; esta significação deve aparecer de maneira imediata; a significação da
palavra deve, em última análise, ser mostrada, deve existir como um dado.” (1975, p.50)
Assim, o critério que o Positivismo Lógico estipula para averiguar a verdade ou a
falsidade de uma proposição é que sob determinadas condições, que são indicadas nas
definições, devem ocorrer determinadas coisas. Constatadas estas determinadas coisas,
averiguado está tudo aquilo de que se fala na proposição, ou seja, posso afirmar que conheço
o sentido da proposição. O significado portanto das sentenças reside naquilo que Carnap
chamou de “conteúdo factual”, ou seja, o quanto ele expressa um estado de coisas que pode
objetivamente (neste caso, com o sentido de empiricamente) existir. Essa passagem de Carnap
em “Pseudoproblemas na Filosofia” ilustra bem este conceito:
“O significado de um enunciado reside no fato de que ele expressa estado de coisas
(concebível, não necessariamente existente). Se um enunciado (ostensivo) não expressa
um estado de coisas (concebível), então não tem nenhum significado; só aparentemente é
um enunciado. Se o enunciado expressa um estado de coisas, então é significativo para
todos os eventos; é verdadeiro se esse estado de coisas existe, falso se ele não existe.
Podemos saber se um enunciado é significativo mesmo antes de saber se ele é verdadeiro
ou falso.” (1975, p.162, 163)
Para o Positivismo Lógico, a matemática e a lógica são incapazes de dizer algo sobre o
mundo, mas elas tem um papel fundamental a cumprir, seu papel é o de auxiliar a purificar a
linguagem científica. O trabalho que cabe a filosofia, que no Positivismo era definido pela
epistemologia, aqui se estreita mais: sua função é somente a de analisar a semântica (relação
entre a linguagem e a realidade referente) do discurso científico e a sintática (relação lógica
dos sinais de uma linguagem entre si) deste mesmo discurso. Portanto, o papel da filosofia é a
de ser uma atividade clarificadora da linguagem, uma filosofia da linguagem (ou da
linguagem científica), nada mais. Metafísica, Ética, Religião e outros campos do pensamento
humano são um aglomerado de afirmações inverificáveis e, portanto, para o Positivismo
Lógico, desprovidas de sentido.
Aqui nos aproximamos da segunda característica principal do Positivismo Lógico, que
é o fisicalismo. O princípio da verificação, como observaria mais tarde Popper (1975), entre
outros, é contraditório. Os membros do Kreis estavam conscientes desta contradição, que
consiste no seguinte: o próprio princípio de verificação, deve ser uma assertiva factual para ter
22
sentido. Mas se for, perde o caráter de norma absoluta, de critério de delimitação das
assertivas significantes. Por outro lado, se nós assumimos esse princípio como norma, de
acordo com ele próprio, a norma seria desprovida de sentido. Aqui vemos o mesmo tipo de
circularidade que tem condenado toda a reflexão filosófica empirista, desde Locke, passando
por Hume, Comte, Schlick e finalmente Carnap, à ruína filosófica: o “dado” empírico é por
essência subjetivo, e o fundamento da “objetividade” positiva deve vir de uma reflexão sem
fundamento no empírico.
Carnap tentou escapar às conseqüências desta aporia com a chamada orientação
sintática do Positivismo Lógico, que em verdade lhe forneceu seu formato diferencial e final.
Levando o princípio da verificação à suas últimas conseqüências, chegamos à conclusão que a
linguagem física deve ser a linguagem básica de toda a ciência, da ciência unificada, porque a
cadeia de reduções de definições até conceitos não-redutíveis, deverá encontrar seu termo
unicamente em definições físicas tais como energia, matéria, massa, etc. Tendo chegado aí,
Carnap (1975) acredita que a tarefa do filósofo da ciência não deveria ser nada além da
definição dos conceitos teóricos presentes nas diversas disciplinas científicas em termos
físicos, e na análise lógica da relação entre estes conceitos. A linguagem física deve ser a
linguagem da ciência unificada porque é intersubjetiva (por ser intersensual) e universal.
Assim, para o Positivismo Lógico, toda a linguagem científica, inclusive a psicológica, deve
ser reduzida a conceitos físicos.
Essa tese parece ser auto-evidente em relação às ciências naturais, apesar de uma
segunda vista revelar profundos problemas. Na verdade, mesmo os conceitos físicos, quando
reduzidos a seus componentes últimos e básicos, se revelam muito abstratos e imprecisos. O
que é energia? O que é massa? Podemos definir esses conceitos em relação mútua, mas não
isoladamente. Por exemplo, a fórmula einsteiniana que define energia como massa multipli-
cada pelo quadrado da velocidade da luz. Mas essa forma não tem como definir isoladamente
esses conceitos sem referir-se à metafísica, e metafísicas são diferentes entre si, não tendo
lugar no Positivismo Lógico. Como afirma Maluf (2002), parece existir uma profunda
equação metafísica subjacente a essa fórmula, encarando a realidade física como “a energia
do mistério da criação” se metamorfoseando na matéria, que seria a outra face da energia.
Mas recorrer à metafísica para dotar de sentido qualquer expressão é uma ação vetada (é
a
ação a ser vetada) pelo fisicalismo.
Mas se o fisicalismo é insuficiente como solução final dos problemas das ciências
naturais, problema mais profundo se coloca em relação às ciências humanas. Maluf (2002)
23
defende que necessitamos de uma linguagem teórica sim, mas uma linguagem teórica que
escape ao empobrecimento causado pelo fisicalismo. Precisamos nas ciências humanas de:
“uma linguagem teórica não-redutora para as complexidades não-físicas. Para tanto, seria
imperativa a construção de uma linguagem teórica fora dos critérios do fisicalismo. E que
fugisse às exigências de mensurabilidade, impostas por esse mesmo fisicalismo.” (2002,
pág. 64-65).
Mas então se colocam várias importantes questões. Fugindo de uma linguagem teórica
mensurável, estaríamos abandonando o projeto da ciência moderna, tornando-o impossível?
Por outro lado, ainda se coloca a questão um dia levantada pelo Positivismo Lógico: é
possível criar uma linguagem científica absolutamente mensurável, reduzível a termos físicos
e regras lógicas? A tentativa monumental de unificação da linguagem científica realizada por
estes grandes filósofos, como se sabe, mesmo em âmbito restrito como a física teórica,
resultou em retumbante fracasso. Wittgenstein, filósofo austríaco inspirador do Kreis e do
fisicalismo com sua obra “Tratado Lógico-filosófico”, se tornou símbolo maior deste fracasso.
Isto se dá quando ele realiza uma virada completa em sua produção filosófica descambando
para o mais completo relativismo lingüístico em suas “Investigações Filosóficas”. Esse
movimento de aparente desespero em relação às possibilidades do fisicalismo foi um dos
grandes responsáveis pela derrocada pós-moderna relativista do materialismo. Atrelar as
possibilidades de justificação do conhecimento científico à linguagem baseada no fisicalismo
foi o movimento que, com seu fracasso, levou ao questionamento da ciência moderna como
um todo, como veremos no sub-item “Pós-modernidade e Epistemologia”.
Por fim chegamos a um último grande problema do Positivismo Lógico. Como fugir
(se é que algum positivista realmente queira isso) das conclusões metafísicas materialistas e
reducionistas implícitas neste modelo fisicalista de ciência? Moritz Schlick tinha consciência
dessas dificuldades, e argumentava estar escapando a um posicionamento metafísico, levando
o Positivismo a uma posição – convencionalmente – quase cética. Afirma ele:
“A negação da existência de um mundo externo transcendente seria uma proposição tão
metafísica quanto a sua afirmação. Por conseguinte, o empirismo conseqüente não nega o
transcendente, senão que afirma destituídas de sentido, na mesma medida, tanto a
negação quanto a afirmação do transcendente” (1975, p.69)
24
O mundo físico não pode ter sua existência transcendente afirmada sem que estejamos
caindo em uma posição metafísica, portanto mergulhamos em uma ontologia de tipo
berkeleyana, onde a realidade são os sentidos. Isso no entanto não faz com que o Positivismo
Lógico escape das armadilhas anteriormente colocadas. O princípio de verificação ou é
inverificável, ou não é um princípio.
A causa de todas estas profissões de fé é uma profissão de fé mais antiga, como já foi
dito. É a fé empirista na experiência, e portanto nos sentidos, como fonte primeira e única de
todo conhecimento. Edmund Husserl será um implacável crítico das conseqüências culturais
destas posições, das possibilidades do fisicalismo e de suas aplicações à ciência psicológica.
Gastón Bachelard será por igual maneira um severo denunciador da inadequação da descrição
de atividade científica que nos fornece o Positivismo Lógico comparada com a realidade
histórica do desenvolvimento da ciência. Mas é de um vienense, que publicou seu primeiro e
mais importante trabalho numa coleção organizada por proeminentes membros do Kreis, que
o Positivismo Lógico viria a receber os golpes fatais. Seu nome era Karl Popper. São suas
críticas e o novo modelo de ciência moderna que surge com Popper que veremos nos
próximos dois sub-itens.
2.3 O Racionalismo Crítico e a nova concepção de Ciência
Nesta seção, apresentar-se-á o Racionalismo Crítico, que com suas críticas ao
Positivismo Lógico e ao método indutivo na ciência moderna, mudou a forma como
compreendemos o empreendimento científico e conseguiu, não sem dificuldades, alcançar
aceitação geral da maioria de suas teses básicas, que agora são compartilhadas pelos
remanescentes do Positivismo Lógico, pela Nova Filosofia da Ciência e pelo Pragmatismo.
Com sua aderência estrita aos pressupostos fundamentais da ciência moderna, o Racionalismo
Crítico se constitui, hoje, na mais importante e consistente posição em epistemologia, à qual a
Psicologia deveria aderir em seu projeto de se tornar uma disciplina científica nos moldes
exigidos pela modernidade. Serão elencadas aqui algumas teses centrais de Karl Popper e
posteriormente de racionalistas críticos contemporâneos (e incluirei aqui Imre Lakatos), que
mudaram definitivamente o panorama da Filosofia da Ciência e que, como ficará claro no
quarto capítulo desta tese, são plenamente compatíveis com o cognitivismo.
25
2.3.1 O surgimento do Racionalismo Crítico e a ligação de Popper com a Psicologia
Podemos definir 1934 como data de referência para o surgimento do Racionalismo
Crítico, com a publicação (com data de 1935), da “Lógica da Investigação Científica” de Karl
Popper. Esta obra prima foi publicada numa coleção coordenada por Schlick, fato que rendeu
a Popper durante muitos anos, como ele mesmo relata (1999), a acusação profundamente
equivocada de que teria sido membro do Kreis. Na verdade, Popper foi seu maior opositor,
fato óbvio para quem lê mesmo que superficialmente qualquer uma de suas obras e reconhe-
cido por alguns dos mais proeminentes membros do Positivismo Lógico, como Otto Neurath,
que o chamava de “a oposição oficial ao Círculo de Viena” (Popper, 1999, p.89). Apesar de
estarmos a exatos 70 anos de distância deste evento, é importante lembrar que Popper viveu,
em plena atividade intelectual, há até 10 anos atrás, pode assistir o impacto de suas idéias,
responder a diferentes gerações de seus críticos, aperfeiçoá-la e ainda escrever obras seminais
como “Conjecturas e Refutações”, de 1963, e “Conhecimento Objetivo”, de 1974. Em sua
“Autobiografia Intelectual” (1977), publicada originalmente em 1974, Popper afirma:
“Todos sabem, atualmente, que o Positivismo Lógico está morto. Mas poucos se lembram
de que há uma questão a se propor aqui – a pergunta ‘Quem é o responsável?’, ou antes,
‘Quem matou o Positivismo Lógico?’. Receio que eu deva assumir essa
responsabilidade.” (pág. 95-96)
Isto parece ser verdade. Popper contradisse e refutou todas as principais posições
assumidas pelo Positivismo Lógico, colocando obstáculos intransponíveis ao seu ulterior
desenvolvimento. Criticou o princípio da verificação como critério de demarcação e o
substituiu por um conceito quase oposto, o de falsificabilidade; enterrou o método da indução
e provou sua invalidade, substituindo-o por seu oposto, o método hipotético-dedutivo;
desabsolutizou os fundamentos e as pretensões da ciência moderna, os tomando como meras
conjecturas e defendendo uma ciência perfectível; rejeitou plenamente a anti-metafísica
positivista, reabilitando a metafísica como celeiro de idéias científicas. Em suma, o que
realmente fica é a pergunta: como não ver Popper como a antítese do Círculo de Viena?
Outra questão onde prevalece a desinformação sobre a vida de Karl Popper é em
relação a sua estreita relação com a Psicologia. A história dessa ligação e dessa influência está
descrita em sua “Autobiografia Intelectual” (1977). Nos relata ele que o segundo emprego de
sua vida foi na clínica infantil de Alfred Adler, experiência que o marcou profundamente,
26
ajudando inclusive a determinar o próprio rumo de sua reflexão filosófica. Ele ficou tomado
pela convicção de que a estrutura teórica psicanalítica era de caráter profundamente diferente
de estruturas teóricas científicas no campo da física, como a teoria da relatividade
einsteiniana, por exemplo. E passou a refletir sobre o que essencialmente diferenciava, a
Psicanálise e o Marxismo por um lado, e a teoria da relatividade de outro, chegando ao
critério da falsificabilidade, e a conseqüente rejeição da cientificidade da Psicanálise.
Outra questão que poucos conhecem é a influência da Escola de Würzburg na origem
da formação de Popper. Sua tese de doutorado foi sobre metodologia da investigação
experimental do pensamento, orientada por Karl Bühler. A escola de Würzburg, antecedente
do Gestaltismo, caracterizou-se por tentar, pela primeira vez sistematicamente, estudar o
pensamento experimentalmente. Embora não se possam descrever suas pesquisas exatamente
como experimentos, esta escola chegou a conclusões importantes que influenciaram Popper e
a Gestalt. Bühler demonstrou com suas pesquisas que o pensamento tinha elementos
estruturais que não eram de natureza sensorial, e junto com Oswald Külpe demonstrou
também que a experiência dependia também das tendências determinantes inconscientes.
Certamente influenciado pela nascente Psicologia da Gestalt, tendo convivido com
seus fundadores, Popper tem na teoria da percepção gestaltista uma estrutura teórica plena-
mente compatível com sua filosofia da ciência, como demonstrou Donato Oliva (1990). Na
dissertação “Fundamentos epistemológicos e psicológicos da problemática da interação entre
teoria e observação”, são demonstradas as compatibilidades entre as teorias da percepção
particulares e cada uma das principais posições básicas em Filosofia da Ciência. A Filosofia
popperiana, por seu lado, também parece ter influenciado o gestaltismo. Munidos de um fun-
damento epistemológico absolutamente distinto da tradição positivista, a psicologia da gestalt
pode florescer. Ao provar que sequer a percepção humana se dá de forma passiva, a gestalt
ajudou a minar as teses positivistas de “observação pura”, e estabelece paralelo direto com as
teses popperianas, principalmente entre os conceitos de campo e contexto problemático
(Donato Oliva, 1990), que determinariam o que deve ser observado e de que maneira.
2.3.2 A crítica de Popper à indução
Popper ataca frontalmente o problema da indução (o que valida uma inferência
indutiva) resolvendo-o pela sua dissolução. Para Popper a indução não existe. Na verdade,
estrito senso, nunca ninguém realizou uma indução genuína. Essa dissolução do problema se
dá baseada em duas linhas de argumentos centrais: os lógicos e os psicológicos. Em seus
argumentos lógicos contra a indução ele aponta a óbvia falta de validade da indução por
27
enumeração e também a da indução por eliminação, defendida por Mill. Em seus argumentos
psicológicos contra a indução, que mais nos interessam aqui, Popper demonstra que a
observação pura, na qual a mente do pesquisador deve estar livre de pressupostos e hipóteses,
é um mito filosófico.
Vamos aos argumentos lógicos. Como afirma Popper (1975), havia uma concepção
altamente generalizada de que as ciências empíricas se podiam caracterizar pela utilização dos
“métodos indutivos”. Nós chamamos uma inferência de indutiva, quando ela passa da
enunciação de enunciados particulares (obtidos da observação de eventos particulares de um
determinado fenômeno), para enunciados universais, como as teorias científicas, que
pretendem afirmar coisas sobre todos os eventos de um determinado fenômeno. Porém, essa
concepção do método da ciência empírica é falsa. Como afirma Popper (1975) em uma das
passagens mais conhecidas da literatura filosófica contemporânea:
“Ora, de um ponto de vista lógico, está longe de ser óbvio que estejamos justificados ao
inferir enunciados universais a partir dos singulares, por mais elevado que seja o número
destes últimos; pois qualquer conclusão obtida dessa maneira pode sempre acabar sendo
falsa: não importa quantas instâncias de cisnes brancos podemos ter observado, isto não
justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos.” (1975, p.263)
Ou seja, falando de forma geral, se é logicamente inválido inferir que todos os x são y
porque eu observei 132 x e todos eles eram y; é logicamente válido afirmar que nem todos os
x são y se o x número 133 for w. Ou seja, a ciência avança por negação, e não por
conhecimento positivo. O que faz a assertiva “todos os corpos menos densos que a água
flutuam” ser uma assertiva com validade científica, não é o fato de ter sido verificada milhões
de vezes, mas o fato de que, em qualquer uma dessas vezes, ela poderia ter sido refutada,
falsificada. Esta tese de Popper (1975), que ficou conhecida como falsificacionismo, é uma
tese logicamente válida, porque é dedutiva. Mas esta questão será abordada adiante. Voltemos
ao problema lógico da indução.
Este tipo de indução acima descrito, é conhecido como “indução por enumeração”, e,
como demonstrado, é obviamente inválido logicamente. Não podemos sequer estabelecer que
ele estabelece uma alta probabilidade de que o próximo cisne a ser observado seja branco, diz
Popper, porque comparado ao número quase infinito de cisnes que já existiram, existem e
existirão e que não foram observados, qualquer amostragem de cisnes observados tende a
zero, portanto, a significância estatística da amostra tende à zero. Da mesma forma, a
28
“indução por eliminação” é inválida logicamente. Esta última consiste na eliminação das
falsas teorias que concorrem entre si para a explicação de um determinado fenômeno. Uma
vez eliminada as falsas, restaria a verdadeira, acreditavam filósofos como Bacon e Mill.
Porém mais uma vez se trata de concepção ingênua, diz Popper. Ela só seria válida se o
conjunto de teorias possíveis para a explicação de um fenômeno fossem finitas, e como
demonstra Popper, elas são em número ilimitado. Portanto, não interessa quantas teorias se
eliminem, restam sempre infinitas teorias possíveis, o que faz que sequer a probabilidade de
ser verdadeira da teoria sobrevivente aumente.
Portanto o problema da indução não tem solução. A última tentativa de justificá-lo já
tinha sido derrubada por Hume. Ela diz, em última análise, que apesar de não ter fundamento
lógico, devemos recorrer à indução para adquirir conhecimento porque ela tem se manifestado
eficiente para tal. Ou seja, estamos falando de uma justificativa empírica para a utilização da
indução: ela estaria se mostrando eficiente para adquirir conhecimento. Mas como demonstra
Popper (1975), o argumento é circular: estamos aqui inferindo indutivamente que a inferência
indutiva é válida. E para justificar a inferência indutiva que inferiu que a inferência indutiva é
válida? A que recorreremos? À outra indução? Logicamente não é aceitável. Mas isso não
pareceu constituir problema para o Positivismo, que já conhecia estas limitações da indução
desde Hume. Diante das crenças metafísicas que estão por trás desta atitude perante o mundo,
mesmo a razão e a lógica são constantemente sacrificados, e isto acontece até os dias de hoje.
2.3.3 O novo inatismo e a rejeição da “tabula rasa”
Há ainda uma segunda linha de crítica à idéia de indução e da concepção positivista de
conhecimento científico baseado na “observação pura”. Essa linha é a psicológica, ou seja,
podemos criticar a idéia de indução atacando uma idéia psicológica que está vinculada a ela, a
idéia de que seríamos capazes de nos livrar de expectativas, pressupostos e hipóteses e
contemplar o mundo de maneira neutra, para adquirir verdadeiro conhecimento. Esta idéia
está diretamente ligada à doutrina da tabula rasa. Para Popper (1977) esta doutrina acerca do
conhecimento não é nada além de um mito filosófico. Nossa mente é tabula plena, um quadro
negro que está cheio das inscrições que a cultura ou a evolução biológica deixaram em nós. A
tese de que toda observação se faz à luz de uma teoria, ou seja, necessariamente contra ou a
favor de uma hipótese, embora defendida em vários momentos na história da filosofia e da
ciência (como por Auguste Comte e Charles Darwin), foi reintroduzida filosoficamente por
Karl Popper não como uma outra opção de inferência, mas verdadeiramente como o único
tipo de inferência possível.
29
Portanto, toda observação se orienta sempre por expectativas teóricas, conscientes ou
inconscientes. Ou seja, nossas teorias e expectativas sobre a realidade orientam o que
destacaremos do campo perceptual como relevante para observação. Um experimento, por
exemplo, pressupõe sempre alguma coisa a experimentar ou a comprovar. E esse algo são as
hipóteses, as teorias que inventamos para tentar resolver os problemas que a observação
revela em nossa visão de mundo. Ou seja, purgada dos pré-juízos, das hipóteses, como
querem as ilusões positivistas e empiristas, a mente não é mente pura, ela é não-mente. Como
podemos ver, trinta anos antes do surgimento do movimento cognitivista, temos uma teoria
que parece saída de um livro texto de Psicologia Cognitiva.
Isso leva Popper (1999) à conclusão inatista de que todo animal nasce com muitas
expectativas (algo semelhantes a hipóteses), naturalmente inconscientes, e irá, progressiva-
mente, elaborando-as. Penna (2000), ao expor a posição de Popper, afirma que, enquanto os
animais sempre têm estas expectativas inatas inconscientes, os homens as têm somente em
sua maioria. Para Penna, o conhecimento consciente que em nós se revela é resultado de um
processo analítico sobre o corpo a que todos nos submetemos, e este último, o depositário de
informações genéticas resultantes de milhares de anos de evolução da espécie. Esta parece
uma interpretação adequada da posição popperiana. O sentimento de surpresa e frustração
com alguns insucessos, só ocorre porque tínhamos expectativas, mesmo que inconscientes,
que em tal situação a natureza teria se comportado de outra maneira. E isto, a percepção de
um problema, é o início de todo e qualquer processo de conhecimento. Portanto deve estar
presente em homens e animais, porque até animais aprendem.
2.3.4 O critério de cientificidade: a falsificabilidade
Um problema, pois, não é nada mais do que uma expectativa desiludida. E nós
pesquisamos para tentar resolver estes problemas. Mas, para resolvê-los, não há outro
caminho além de imaginar novas formas de interpretar a natureza, na tentativa de achar
alguma na qual aquele problema não existiria. Precisamos de criação, invenção, razão
criativa. Não é na forma como adquirimos uma teoria que podemos garantir sua validade.
Podemos obter uma idéia que venha a se tornar científica de todas as formas possíveis:
intuição, análise exaustiva, sob efeito de alucinógenos, num sonho, sob inspiração divina,
inspirado por alguma observação relevante ou por um mito, e, por fim, com a maior das fontes
de idéias científicas, a metafísica. Nada disso traz em si a validação ou a rejeição de uma
teoria em particular como científica.
30
Aqui Popper (1975b) traça uma distinção fundamental, central para o Racionalismo
Crítico e para a Filosofia da Ciência contemporânea: a distinção entre contexto de descoberta
e contexto de justificação. Uma coisa é a gênese psicológica das idéias, outra, completamente
diferente, é a sua prova como verdadeira ou ao menos provável – o contexto de justificação de
uma teoria. O que então justifica uma idéia qualquer, como conhecimento? Uma vez que a
indução não existe e a verificação é um mito, qual é o critério de cientificidade para Popper?
A falsificabilidade é, para o Racionalismo Crítico, o novo critério de demarcação entre
as assertivas científicas e as não-científicas. Esse critério vem substituir o combalido critério
da verificação na demarcação das proposições científicas. Isso implica numa mudança do
olhar científico que será absolutamente vital para as pretensões científicas da Psicologia: não
é a observação direta de determinados fenômenos que deve fornecer as hipóteses a serem
testadas. Elas podem ser criadas de qualquer maneira possível. O que as fará integradas ou
não ao campo do conhecimento científico é o fato de gerarem ou não conseqüências passíveis
de falsificação. Isso porque elas estão no início do processo, e não na sua conclusão. Uma
hipótese é falsificável se existe uma proposição de observação qualquer, logicamente
possível, que, se estabelecida como verdadeira, implicaria em sua rejeição como falsa.
Estes são os passos que uma teoria cumpre para o Racionalismo Crítico até se tornar
conhecimento científico: Primeiro, constatamos um problema (um teoria que tínhamos não
deu conta da realidade e nos frustrou); segundo, elaboramos hipóteses como tentativas de
solução do problema; terceiro, temos que colocar em teste empírico estas hipóteses (aqui está
a questão do falsificacionismo: se ela não puder ser, em tese, falsificada por nenhuma
observação possível, não pode ser científica); quarto, verificamos se a hipótese foi
corroborada (ou seja, a previsão se concretizou) ou falsificada (a previsão não se confirmou
na observação). Quando corroborada, temos uma teoria científica, que no entanto, tem
validade provisória, até ser refutada por alguma observação. Quando refutada (falsificada),
também temos conhecimento, pois eliminamos uma teoria que agora sabemos ser falsa.
Uma teoria, em si, nunca pode ser diretamente testada. O que podemos testar delas são
algumas de suas conseqüências particulares. Se temos um problema P, e temos uma proposta
de solução que é a teoria T, então acreditamos que a teoria T é verdadeira. Sendo verdadeira,
ela trará uma série de conseqüências particulares empiricamente observáveis: cp1, cp2, cp3,
..., cpn. Se estas conseqüências se constatam, a teoria é provisoriamente corroborada, e aceita.
Se não se constatam, desmentem, falseiam, falsificam a teoria. Esta então é descartada e se
procura outra.
31
Vamos a um exemplo simples deste processo. Se uma criança acredita que objetos
sólidos afundam na água, o que podemos testar dessa teoria são conseqüências particulares
desta tese, como por exemplo, de que esta bola de gude afundará na água. Se afundar, a tese
está corroborada (provisoriamente estabelecida), se boiar, a tese estará refutada. Como a bola
afundará, a teoria estará provisoriamente aceita. Mas outra conseqüência da teoria é que este
pedaço de madeira também afundará. Como podemos constatar empiricamente que isto não se
dá, a hipótese estará então falsificada, e terá que ser substituída por outra mais elaborada, que
não só explique porque a bola de gude afunda como também porque o pedaço de madeira não.
É surpreendente a sintonia de Popper com as teses da Epistemologia Genética de Jean Piaget.
Acima vemos um exemplo que poderia estar se referindo aos conceitos de assimilação e
acomodação. Sobre esta compatibilidade, voltaremos a falar no capítulo quatro desta tese.
Voltando à questão da falsificação, agora podemos dizer que se tornou óbvia sua
condição de critério de cientificidade. Se não podemos imaginar, ao entrar em contato com
uma teoria, qualquer forma de conseqüência empírica dela, ou seja, se não podemos imaginar
nenhuma situação que em tese poderia refutar essa teoria, estamos diante de uma sentença
metafísica, não passível de justificação científica. Se afirmamos que “Deus é uno”, essa
assertiva pode não ser falsa, mas certamente não é científica, pois não há maneira de deduzir
dela nenhuma conseqüência direta que seja testável, ou seja, falsificável. A adequação desse
critério aqui se torna flagrante. Que observação que possa ser feita não confirma esta teoria
metafísica? Por outro lado, que fato poderá desmentir, falsificar tal teoria? Isto, é claro, não
significa que a teoria é falsa, significa, ao contrário, que não podemos em nenhum caso
imaginável provar que ela é falsa. É por isso que para Popper, a Psicanálise é metafísica.
No entanto, diferentemente do critério da verificação do Positivismo Lógico, a
falsificabilidade não se pretende critério de significação, somente se pretende critério de
cientificidade. Ou seja, a afirmação que “Deus é uno”, para Popper, é perfeitamente
significativa, mas totalmente não-científica. Mas embora ela seja absolutamente inútil
empiricamente, porque justifica tudo e não prevê nada, pode ser fonte inspiradora para a
ciência, gerando idéias que, estas sim, podem ter algum conteúdo empírico. Assim, Popper
acredita que, apesar de muitas vezes a metafísica ter contribuído para a estagnação da ciência,
não é possível considerar a possibilidade da descoberta científica sem a fé de cientistas – que
dedicam anos de sua vida perseguindo uma determinada visão da realidade – em idéias
metafísicas, puramente especulativas.
32
2.3.5 Verdade e Verossimilhança
A verdade, para Popper (1975b), é, assim como para Tarski, a correspondência de uma
proposição com os fatos aos quais ela se refere. Temos uma definição de verdade aceita,
portanto. Mas não temos um critério de verdade, ou seja, um critério para estabelecer em
absoluto quando temos diante de nós uma teoria verdadeira, já que as conseqüências dela são
infinitas e jamais poderíamos verificar a todas.
Mas a verdade, definitivamente, é a busca da ciência. No entanto, jamais poderemos
estar certos de tê-la alcançado: estrito senso, o que Popper (1975b) está afirmando é que a
episteme, o saber absolutamente seguro e justificado, não é possível para as ciências
empíricas. Nós só podemos ter teorias melhores que outras, e mesmo que estejamos diante de
uma teoria que seja verdadeira, jamais poderíamos estabelecer isto com certeza, porque
jamais teríamos acesso a todas as conseqüências empíricas possíveis desta teoria.
Portanto o conhecimento científico é feito de conjecturas. Com isso abandona-se a
verdade? Não, é a resposta de Popper. A verdade é o ideal normativo da ciência, seu ideal
regulador. Nunca alcançável, sempre perseguida. A busca, não tem fim; diria Popper no
subtítulo de sua autobiografia. Em “Conhecimento Objetivo” (1975b) ele afirma: “Assim, a
idéia de verdade é absolutista, mas não se pode fazer qualquer alegação de certeza absoluta:
somos buscadores de verdade mas não somos seus possuidores” (p. 53).
Mas se não podemos obter a verdade, o que podemos obter em ciência? Verossimi-
lhança, diz Popper (1994). Em ciência, o que podemos é sempre nos aproximarmos mais da
verdade, elaborando teorias que aumentem seu conteúdo de verdade e diminuam o de falsida-
de. E se não podemos dizer com certeza que esta teoria é verdadeira, podemos dizer com cer-
teza que esta teoria é mais próxima da verdade do que aquela, ou seja, que ela é mais verossí-
mil. Sumariamente, para Popper podemos dizer que uma teoria T2 é mais próxima da verdade
que a teoria T1, predecessora na tentativa de explicar certa ordem de fenômenos, quando:
todas as conseqüências verdadeiras de T1 também são de T2; todas as conseqüências falsas de
T2 (que podem ser zero) são conseqüências falsas de T1; e, T2 explica mais fatos que T1.
O conceito de verossimilhança de Popper é desconcertantemente simples e persuasivo,
porém, como sabemos, se revelou insuficiente quando submetido à formalização lógica.
Conseqüências lógicas contraditórias decorrentes da definição do conceito foram apontadas
pelo racionalista crítico David Miller (1974) entre outros autores, como Pavel Tichy, Herbert
Keuth, e Hermann Vetter (Watkins, 1997). Recentemente, depois de duas décadas de trabalho,
estes problemas de definição formal e de suas conseqüências lógicas, foram resolvidos
(Miller, 1994). Para aqueles que se interessarem pelo debate lógico acerca da formalização do
33
princípio da verossimilhança podem recorrer ao artigo de John Watkins (1997) intitulado
Popperian Ideas on Progress and Rationality in Science” ou ao livro de David Miller (1994)
Critical Rationalism: a restatement and defence” .
Voltando a Popper (1994), a teoria da verossimilhança o leva a demonstrar que quanto
mais fatos uma teoria prevê, menor é sua probabilidade de ser verdadeira, portanto, maior
valor tem. Esse raciocínio é aparentemente paradoxal, mas não tem nada de paradoxo. Quanto
mais se diz, mais se está arriscado a errar. Quando eu digo que choverá quarta, certamente
tenho mais probabilidade de estar certo que quando digo que choverá quarta e quinta. No
entanto, com a segunda assertiva eu prevejo mais, portanto, como teoria para lidar com o
mundo empírico, tem mais valor. Não devemos buscar na ciência a alta probabilidade de
nossas teorias, na verdade, quanto menor for a probabilidade de uma assertiva ser verdadeira,
mais informação ela contém. Com efeito, se disser: “quarta-feira choverá ou não-choverá”;
tenho uma assertiva com cem por cento de probabilidade de se concretizar, mas que não tem
nenhum conteúdo de informação. Portanto, ela não nos acrescenta nenhum conhecimento.
2.3.6 Progresso na ciência: o conhecimento científico como auto-corrigível
Talvez a maior contribuição de Popper à concepção que temos do empreendimento
científico segundo Abbagnano (2000) é que ele é falível, e que sua garantia de validade não
vem do fato de uma certeza infalível, mas da garantia que ele carrega de auto-corrigibilidade e
auto-aperfeiçoamento contínuo. Não sabemos nunca se nossas hipóteses sobre a realidade são
verdadeiras, mas sabemos que, com o método, as teorias e os instrumentos que temos em
dado momento histórico, elas são as melhores disponíveis. A meta da ciência, como diz
Chalmers (1993), é falsificar teorias e substituí-las por outras melhores, que demonstrem
maior possibilidade de serem testadas. Diz Popper:
“O velho ideal científico da episteme – do conhecimento absolutamente certo,
demonstrável – provou ser um ídolo. A exigência de objetividade científica torna
inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre. Pode-se de
fato corroborá-lo, mas toda corroboração é relativa aos outros enunciados que,
novamente, são provisórios.” (1975, p. 383)
Essa concepção não é exclusiva de Popper. Outros, como Bachelard (1974, [1934]), há
muito defenderam a tese da auto-corrigibilidade como característica da ciência moderna. No
entanto, a tese acabou se vinculando a Popper em virtude do rigor e clareza com que ele a
34
defendeu. Para ele, o método da ciência moderna não consiste em defender nossas teorias das
tentativas de refutá-las, e sim, em submetê-las às mais severas críticas e experimentos, com o
objetivo de falsificá-las. Isso se dá não porque Popper, como afirma equivocadamente Chauí
(2003), acredita que o cientista seja guiado pelo falso; mas porque a descoberta do falso nos
leva mais próximo da verdade. Quando descobrimos que uma conseqüência de nossa teoria é
falsa, nos aproximamos da verdade que perseguimos e podemos ainda aperfeiçoar ou
substituir nossas teorias sobre a realidade. É quando erramos, quando nos deparamos com
uma observação inesperada, que tropeçamos no real, saindo da prisão solipsista de nossas
teorias. Diz ainda Popper (1975), no mesmo contexto, sobre a certeza:
“Com o ídolo da certeza (incluindo-se os graus de certeza imperfeita ou probabilidade)
cai um dos baluartes do obscurantismo que barra o caminho do avanço científico,
reprimindo a audácia de nossas questões e pondo em perigo o rigor e a integridade de
nossos testes. (...) o que faz o homem de ciência não é sua posse do conhecimento, da
verdade irrefutável, mas sua indagação persistente e temerariamente crítica da verdade.”
(p.383-384)
Tudo isso pode nos levar a supor que Popper achava que havia uma lei histórica de
progresso na ciência. Mas para Popper (1961), não existe qualquer lei no processo de
mudança histórica, portanto, não há qualquer lei de progresso na ciência, porque a ciência é
um fenômeno cultural. O que temos, ao invés de uma lei de progresso, é um critério de
progresso. Através dos princípios da verossimilhança, podemos saber que uma teoria se
aproxima mais da verdade do que outra, e é por isso que a ciência tende a evoluir, mas não
necessariamente evolui.
2.3.7 A defesa da unidade fundamental do método científico
Assim, mesmo que sumariamente, foram explanados os principais conceitos do
Racionalismo Crítico. Mas há ainda algumas questões que são de interesse especial para a
Psicologia, como a defesa de Popper da unidade do método científico. Em sua obra “Lógica
das Ciências Sociais”, escrita como parte de um debate teórico realizado com Theodore
Adorno, ele expõe suas famosas vinte e sete teses que constituem, de fato, sua teoria das
ciências sociais. Em sua quinta tese, Popper (1999) afirma:
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“O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experi-
mentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se
nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são pro-
postas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente,
então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente.” (p.16)
Popper critica em sua obra duramente a sociologia positivista, que ele denomina
“posição naturalista” em sociologia. Para ele, esta corrente difunde a idéia equivocada e
refutada de que as ciências sociais deveriam aprender das ciências naturais o que é o método
científico. O problema é que ela também não saberia o que é o método científico. Este, para o
“naturalismo”, seria começar com observações e medidas, coletar dados estatísticos,
prosseguir com a indução para chegar a generalizações e à formação de teorias. Assim, para o
naturalismo, as ciências sociais poderiam se aproximar tanto quanto isso é para elas possível,
da objetividade científica. Popper (1999, p.18) afirma que todo este equívoco surge da crença
ingênua de que o método das ciências naturais se baseia em observação pura e indução.
Popper afirma que a dificuldade que as ciências sociais enfrentam pelo fato de as
crenças e valores dos cientistas sociais influírem em suas pesquisas, não constitui nenhum
entrave ao procedimento científico. É um erro, diz ele, acreditar que a objetividade de uma
ciência depende da objetividade do cientista, ou que a atitude de um cientista natural seja mais
objetiva que a de um cientista social. Crenças metafísicas ou religiosas podem interferir muito
mais na disposição de um astrônomo, que ideologias políticas na disposição de um sociólogo.
A objetividade da ciência, assim como a verdade, é um ideal normativo a ser buscado, não
algo que tenhamos absolutamente. E o instrumento privilegiado para alcançá-lo não é uma
tabula rasa, mas uma atitude crítica permanente de toda a comunidade científica. Diz Popper
(1999) em sua décima-quarta tese:
“O que é possível e o que é importante e o que empresta a ciência o seu caráter especial
não é a eliminação dos interesses extra-científicos, porém, mais propriamente, a
diferenciação entre os interesses que não pertencem à pesquisa para a verdade e para o
puro interesse científico na verdade” (p.24)
Uma outra questão de particular interesse para esta tese, a objeção de Popper a
pretensão da Psicologia em se tornar ciência base de todas as ciências sociais. Para ele, a
Psicologia é uma ciência social, visto que nossos pensamentos e ações dependeriam em
36
grande parte de nossas condições e ambientes sociais. Não poderíamos, a princípio, reduzir a
sociologia à Psicologia, uma vez que segundo ele a Psicologia pressupõe idéias sociais
(imitação, linguagem, família). Penna (2000) observa que esta posição popperiana destoa de
posição de seu amigo e colaborador próximo Von Hayek, que defende a Psicologia como a
base de sustentação de todas as ciências sociais. Esta última seria a única posição coerente a
ser adotada por alguém que concebe o método científico como Popper o concebe.
2.3.8 As críticas ao Racionalismo Crítico
O tipo de crítica mais conhecida e repetida por desconhecedores da obra de Popper
contra o modelo popperiano de atividade científica, é a de que este representa uma visão
inadequada do que realmente ocorre quando cientistas estão trabalhando na busca de uma
teoria, pois eles, no mundo real, não estariam atrás de falsificar suas teorias, e sim, de
procurar defender suas teorias que acreditam ser representações adequadas da realidade. Ou
seja, a crítica, como por exemplo a apresenta Chauí (2003) em livro de divulgação de filosofia
básica popular no Brasil, é a de que Popper apresenta um modelo de ciência onde os
pesquisadores estariam perseguindo o falso ao invés da verdade:
“O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria, mas o de provocar o
surgimento de uma nova teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o
cientista, seja a verdade entendida como correspondência entre idéia e coisa, seja
entendida como coerência interna das idéias” (p.226)
Na verdade se trata de um tipo de crítica injustificável. Primeiro, porque simplesmente
não se refere ao pensamento de Popper. Mas, supondo-se que fosse efetivamente pensamento
de Popper o que está sugerido acima, ela estaria lançando mão de um argumento histórico
para criticar um argumento teórico, ou seja, estaria lançando mão de argumentos descritivos,
de como a ciência de fato seria, para criticar uma teoria que em hipótese nenhuma está
preocupada com isto, pois é prescritiva, ou seja, somente se importa com o que a ciência
deveria ser. Se de fato cientistas estão procedendo tentando salvar suas teorias ao invés de
submetê-las a tentativas de refutação, eles simplesmente estariam sendo (caso a tese
prescritiva fosse somente esta) maus cientistas de acordo com a prescrição em questão. Nada
disso mudaria a tese de que a ciência deveria estar sendo praticada de maneira diversa.
Como já foi exposto nesta tese, para Popper a verdade é o ideal regulador da ciência,
mas como tal, jamais podemos ter certeza de tê-la alcançado definitivamente. Por isso, os dois
37
eventos mais importantes da ciência são a corroboração de uma conjectura ousada e a
falsificação de uma conjectura conservadora (Popper, 1994). Isso não acontece porque o
cientista procura o falso, mas porque quando alguma teoria se revela falsa é que ele sabe que
está se aproximando mais da verdade. Quando nossas expectativas sobre o mundo são
frustradas é que tropeçamos no real: esse é o fundamento do realismo popperiano. O tipo de
crítica acima portanto é falsa, porque não se refere ao Racionalismo Crítico, e inválida,
porque mistura duas ordens de argumento diferentes.
Uma outra crítica comum, mas no entanto, mais substancial ao Racionalismo Crítico, é
sobre a questão da base empírica da falsificação. O falsificacionismo, quando analisado por
pessoas que não leram Popper, pode parecer ingênuo, por acreditar que as falsificações
empíricas de uma teoria podem garantir, definitivamente e absolutamente, a sua refutação, ou
seja, uma assertiva absolutamente verdadeira de que aquela teoria é falsa. Só que o
falsificacionismo, não acredita nisto. A partir daqui, vamos nos referir a essa tese como
falsificacionismo ingênuo.
Existe aqui a confusão entre a refutação lógica, absolutamente certa, e a refutação
empírica, tão conjectural como qualquer outra teoria. Para Popper (1975), a refutação lógica é
absoluta e simples: da falsidade de uma conseqüência dedutiva de uma teoria, decorre
necessariamente que ao menos uma de suas premissas seja falsa. Ocorre que com a
falsificação metodológica, o processo é muito mais complexo e sofisticado, e como tudo que
envolve o empírico, também é conjectural. Em outras palavras, para Popper, uma assertiva
que falsifica uma teoria, é também falsificável.
Alan Chalmers (1993) vê nisso um sério obstáculo para o falsificacionismo. Afirma
ele: “As afirmações do falsificacionista são seriamente solapadas pelo fato de que as
proposições de observação dependem da teoria e são falíveis” (p. 90). Ele afirma ainda que
todo falsificacionista acredita que a aceitação da teoria é sempre uma tentativa, enquanto a
rejeição é decisiva (1993, p.90). O problema é que isto é falso. Popper (1975), logo em sua
primeira e mais importante obra (ou seja, desde 1934) já estava consciente destes problemas,
quando dedica todo um capítulo de sua Lógica ao “Problema da base empírica” da
falsificação. Para ele, a própria falsificação é conjectural e pode ser refutada por seu turno.
O resumo da posição de Popper é que se algum cientista crê ter chegado a uma
observação que refute a nossa observação (a que promoveu a falsificação de uma teoria), ele
deve apresentá-la como nós apresentamos as nossas: sob a forma de uma descrição precisa
das condições experimentais que permitirão a nós repetirmos sua observação, instruindo-nos
para testá-la. Se ele não conseguir fazer isso, desconsideramos suas críticas, porque não
38
podem ser empiricamente fundamentadas, ao passo que nossa refutação pode. Como afirma o
racionalista crítico contemporâneo Gunnar Andersson (1994), para refutar uma refutação, não
basta dizer que seu enunciado é conjectural e falível. Isto é o óbvio, é característica de todo
conhecimento empírico. O que é preciso, é mostrar que o resultado do teste é falso, a partir de
outro teste independente.
Nada impede que posteriormente ele consiga refutar nossa observação. Durante anos
os opositores da teoria copernicana afirmavam, com base em uma observação empírica perfei-
tamente legítima (Vênus apresentava nos céus sempre o mesmo tamanho), que essa teoria era
falsa. Anos depois, com o avanço da ótica, pudemos construir telescópios que mostraram que
Vênus, de fato, mudava de tamanho relativo de acordo com a época do ano, conforme Copér-
nico previra. Ou seja, uma observação empírica que teria falsificado uma teoria, se mostrou
falsa anos depois. Mas isto não é novidade para Popper e para nenhum racionalista crítico:
essa é a questão da dependência que toda observação tem da teoria, e que faz a necessidade do
racionalista crítico colocar sempre em crítica o fundamento empírico de suas teorias.
Supondo que a teoria de Copérnico tivesse sido definitivamente rejeitada na época (e
não foi, porque as outras teorias disponíveis acumulavam mais observações que as
falsificavam, ou seja, não havia teoria melhor disponível), isto não comprometeria o
falsificacionismo, porque posteriormente, esta rejeição seria, a seu turno, falsificada (como de
fato foi). Para Chalmers (1993), é precisamente o fato de as proposições de observação serem
falíveis, e sua aceitação apenas experimental e sujeita à revisão, que derruba o
falsificacionismo. Mas é precisamente o contrário: esta posição só derruba o
falsificacionismo ingênuo, que não é defendido por nenhum racionalista crítico; o fato de as
proposições observacionais serem falíveis só confirma a posição crítica.
Em “Conhecimento Objetivo”, Popper (1975b) elabora ainda mais a sua resposta a
essas objeções. Uma proposição de observação sempre pode ser falsa, mas deve ser aceita
como provisoriamente corroborada se naquele momento T ela é resultado das teorias e dos
instrumentos tecnológicos disponíveis como corroborados em T. Ou seja, uma observação
pode se revelar posteriormente falsa, porém, naquele dado momento T, ela é a melhor
disponível, o que faz de sua aceitação como verdadeira a melhor opção disponível ao cientista
crítico. No entanto, como observou Imre Lakatos (1974) melhorando os argumentos
falsificacionistas, isso não significa que ele terá uma justificativa racional para descartar a
teoria provisoriamente falsificada. Isto só acontecerá se, e somente se, houver alguma teoria
que explique mais fatos e melhor, cumprindo os requisitos expostos no princípio da
verossimilhança. Se não houver, ela continua sendo a melhor teoria disponível, e o
39
desenvolvimento ulterior da ciência e dos instrumentos tecnológicos de medida e observação
pode reabilitá-la, antes que se encontre nova teoria melhor. A forma como Lakatos defendeu o
Racionalismo Crítico da mais séria das críticas efetuadas contra ele está no próximo sub-item.
Antes de passar a ela no entanto, voltemos a Popper. A falsificação de uma teoria, como tudo
em ciência, é para ele também conjetural. Andersson (1994) esclarece a posição de Popper
com a tese de que a falsificação de uma hipótese ou teoria deve ser compreendida como uma
falsificação condicional. A quem, equivocadamente, afirme que Popper foi, em qualquer
momento de sua carreira, um falsificacionista ingênuo, remeto a essa interessante metáfora
exposta em sua “Lógica da Investigação Científica”, de 1934:
“A base empírica da ciência objetiva não tem deste modo nada de ‘absoluta’. A ciência
não descansa sobre um penhasco. A estrutura audaciosa de suas teorias descansa, por
assim dizer, sobre um pântano. A ciência é como um edifício construído sobre estacas.
Introduzem-se as estacas desde cima no pântano, mas não até alcançar qualquer base
natural ou ‘dada’; e quando interrompemos nossas tentativas de introduzir nossas estacas
até um estrato mais profundo, não é porque tenhamos alcançado terreno firme. Paramos
simplesmente quando estamos certos de que elas estejam suficientemente firmes para
sustentar a estrutura, pelo menos por enquanto.” (1975, p. 331)
Mas nem só de falsas alegações se fazem as críticas ao Racionalismo Crítico. E entre
as legítimas, a mais poderosa e conhecida delas é a famosa tese Duhem-Quine. Willard Quine
(1975, [1961]), em seu famoso artigo “Two Dogmas of Empiricism”, defende que nenhuma
proposição empírica pode ser definida isoladamente. É um erro acreditar que podemos
comparar proposições empíricas isoladas com o mundo. Sempre que estamos comparando
uma proposição com conteúdo empírico com o mundo, estamos comparando o conjunto
inteiro de nossas teorias sobre o mundo de uma vez só, ou seja, não há falsificação isolada de
uma assertiva empírica. Esta tese na verdade foi levantada no final do século XIX por Pierre
Duhem, eminente cientista francês, e já tinha influenciado Popper profundamente. Também
conhecemos esta tese através do termo inglês “theory-laden”, ou seja, a tese de que nossas
observações empíricas são dependentes de nossas teorias gerais aceitas. Como podemos intui-
tivamente perceber, deve haver algum problema em se relacionar esta, que é uma das teses
centrais de Popper, entre as críticas a seu pensamento. De fato, há. É o que veremos agora.
40
2.4.9 Imre Lakatos e o Racionalismo Crítico além de Popper
O trabalho de Imre Lakatos foi uma tentativa de melhorar o falsificacionismo,
superando algumas das objeções de ordem histórica e filosófica feitas a ele. A primeira
objeção afirmava que a evolução e o progresso da ciência real não correspondiam ao relato
falsificacionista. Teorias com observações substanciadas que as refutavam não eram fácil-
mente abandonadas, e algumas vezes até sobreviviam a essas falsificações com hipóteses
adicionais. Esse foi por exemplo o caso da astronomia ptolomeica, que sobreviveu muitos
anos após a teoria de Copérnico se tornar conhecida. A segunda diz respeito a uma
dificuldade muito importante, de ordem filosófica. Ela é uma questão decorrente da tese
popperiana de que toda observação se faz à luz de uma teoria. Toda proposição de observação
deve ser formulada na linguagem de alguma teoria. Portanto, as afirmações que ela faz serão
precisas na medida em que a linguagem que ela utiliza é precisa e em que a teoria na qual se
baseia a linguagem é precisa. Esta é uma conseqüência da tese Duhem-Quine.
Estes problemas foram enfrentados por Lakatos (1974) com seu conceito de Programa
de Pesquisa. Através da observação de eventos históricos na ciência, ele percebeu uma
questão filosófica não abordada por Popper. Se proposições teóricas não são conclusivamente
falsificáveis, o que leva os cientistas a abandoná-las? Mesmo que uma proposição de
observação, naquele momento, seja coerente com o arcabouço teórico de uma determinada
ciência e tenha sido conseguida através dos melhores instrumentos disponíveis; mesmo que os
cientistas disponham de uma teoria que tenha maior poder explicativo e preditivo; eles podem
simplesmente decidir não abandonar determinada proposição fundamental, que se mantém,
por decisão metodológica, irrefutável.
Isso se dá porque as teorias não são hipóteses isoladas, e sim, um todo estruturado
(Quine, 1975). Sendo assim, uma determinada proposição, uma determinada hipótese da
teoria sempre pode ser protegida, desviando a “responsabilidade” por alguma observação de
falsificação para uma das outras hipóteses desta teoria que não pertença ao seu “núcleo duro”.
O núcleo duro de uma teoria para Lakatos (1974) são aquelas proposições ou hipóteses
fundamentais, entre as muitas hipóteses que constituem uma teoria, que os cientistas
decidiram, por questão metodológica, jamais abandonar.
Esse núcleo duro é o que caracteriza o conceito de programa de pesquisa de Lakatos.
Programa de pesquisa é uma sucessão de teorias no tempo (T1, T2, T3, T4), que se
desenvolvem a partir e em torno de um núcleo duro, que por mera decisão metodológica, se
mantém infalsificável e inalterável. Exemplo clássico disso era a hipótese de que a terra era o
centro do universo, no programa de pesquisa ptolomeico-aristotélico. É só ao longo do tempo,
41
com a tentativa dos membros mais aptos deste programa de manter certa hipótese
infalsificável através da criação de novas hipóteses auxiliares, que um programa de pesquisa
mostra se tem vitalidade ou não: em outras palavras, se determinada hipótese a respeito do
universo (como o atomismo, por exemplo) tem poder explicativo ou se não consegue gerar
hipóteses auxiliares capazes de aumentar nossa compreensão do universo.
Um exemplo clássico de Lakatos (1974) para ilustrar essas idéias é o do caso
imaginário de “mau comportamento planetário”. Suponhamos que um físico, antes de
Einstein, tomasse como núcleo infalsificável de sua pesquisa as leis mecânicas de Newton e
sua lei da gravidade (teoria N), e com seu auxílio buscasse calcular a órbita de um pequeno
planeta recentemente descoberto (p). Mas o planeta desvia-se da órbita calculada com a teoria
N. Ela foi falsificada? Não, para o cientista, que formula a hipótese adicional de que existe um
segundo planeta, desconhecido (p2), que está alterando a órbita de p (Netuno e Plutão foram,
por exemplo, descobertos desta forma). Só que o planeta é tão pequeno, que os astrônomos
não conseguem localizá-lo. A teoria N foi falsificada? Não para o cientista, que pede verba de
pesquisa para construir um telescópio maior. Este último não encontra o planeta. A teoria N
foi falsificada? Não para o cientista, que cria uma nova hipótese que sugere que uma nuvem
de poeira cósmica está escondendo o planeta, o que precisa de mais verba e mais tempo para
ser pesquisado, com o envio de um satélite para isso. Mas o satélite, depois de anos, é
enviado, e depois dos anos necessários para chegar à região da suposta nuvem, não encontra
nada. A teoria N está falsificada? E a teoria do p2? E a teoria da nuvem cósmica? Não para o
obstinado cientista, que decidiu, por uma convenção metodológica baseada em crenças
pessoais, que as leis de Newton são infalsificáveis. O satélite em questão teria recebido
interferência de um campo magnético que teria danificado, e se esse campo não for
localizado, isso ainda não significará o fim da lei de Newton. As leis de Newton só serão
abandonadas pela comunidade científica se surgir uma nova teoria que: descreva mais fatos
que a teoria N (preveja novos fatos), explique os fatos que a teoria N não explica e tenha
menos conseqüências falsas que a teoria N.
A teoria N se constitui num programa de pesquisa, que só pode ser derrubado por um
programa de pesquisa rival mais competente, não por falsificações isoladas. Uma hipótese que
por decisão metodológica se considerou infalsificável, sempre pode ser protegida de
falsificação, desviando-se a responsabilidade pela observação que seria responsável por sua
falsificação para alguma outra parte da complexa teia de hipóteses e suposições (baseadas em
outras teorias) de que são compostas as teorias científicas. Hipóteses ad hoc não são vistas
como uma genuína tentativa de salvaguardar o programa: as novas hipóteses devem aumentar
42
a capacidade preditiva do programa, senão o mesmo começa a ser considerado degenerativo
ao invés de progressivo. Progressivo é o programa de pesquisa que resolve as observações de
fatos aparentemente contrários à suas hipóteses centrais, com novas hipóteses auxiliares que
aumentem sua capacidade de prever novos fenômenos.
O conceito de programa de pesquisa oferece também uma solução para o grave
problema de que toda proposição de observação deve ser formulada na linguagem de alguma
teoria, e portanto os termos utilizados em uma linguagem devem ter seus significados
precisos. Como resolver isto? Fisicalismo? O Racionalismo Crítico, conforme já exposto,
derruba esta idéia. Definições sucessivas? Mas toda cadeia de definições chegará a algum
ponto onde terá que lançar mão de palavras que não poderão ter definições posteriores. Como
afirma Chalmers (1993), um dicionário é inútil a menos que já se conheça o sentido de muitas
palavras. Mas num todo estruturado, num programa de pesquisa, o conceito tem seu
significado preciso definido em função do todo, da estrutura da qual faz parte. Um programa
de pesquisa é uma estrutura, e portanto, a linguagem que ele utiliza é precisa na medida em
que suas teorias são precisas. Assim, o rigor descritivo da linguagem de um programa de
pesquisa passa a ser mais um critério de avaliação de seu próprio estágio de desenvolvimento.
Não é nunca demais lembrar que a tese Duhem-Quine não atinge a epistemologia
popperiana, que a adota explicitamente desde seu surgimento, quase trinta anos portanto antes
do artigo de Quine. No entanto é correto afirmarmos que Popper não ofereceu soluções para
todos os problemas decorrentes desta tese. Isto foi feito por uma nova geração de racionalistas
críticos, que tentaram resolver estes problemas sem incorrer nas dificuldades decorrentes da
posição de Lakatos. Andersson (1994) aponta que apesar de toda teoria ser testada por um
experimento e pelas observações dele decorrentes que são, ambos, carregados de teorias
(theory-laden), a circularidade não é necessária. Para evitá-la, basta que usemos testes que,
embora sejam falíveis e dependentes de teorias, não dependam das teorias problemáticas que
estão sendo testadas. Se você olha por um telescópio e vê luas em Júpiter, algum aristotélico
inflamado pode alegar que o telescópio cria as imagens que aparecem na lente de alguma
forma ou por algum defeito. Já que a teoria da existência ou não das luas é a que está em jogo
(em pano de fundo a de Copérnico), uma evidência comprobatória vinda de um telescópio
pode ser testada independentemente das teorias astronômicas em questão apontando o
instrumento (como de fato fez Galileu) para uma torre de igreja ao longe, mas bem conhecida,
na Terra. Não é a própria teoria em questão aqui que está sendo presumida, mas outra, a ótica.
O problema central apresentado pela tese Duhen-Quine ao falsificacionismo consiste
na constatação – já aceita por Popper desde 1934 – de que quando uma hipótese é falsificada,
43
o erro pode estar em qualquer lugar da longa cadeia de teorias e hipóteses usadas para criar e
testar a teoria em questão. Assim, a questão a ser respondida pelo Racionalismo Crítico é se é
possível encontrar, conjecturalmente, através de escolhas racionais, a hipótese falsa no meio
do emaranhado de hipóteses auxiliares. A resposta é sim, foi dada por Popper em “Conheci-
mento Objetivo” e reelaborada por Andersson (1994) como se segue. Quando por conjecturas
escolhemos uma hipótese como suspeita de falsidade, ela deve ser submetida a testes indepen-
dentes, ou seja, testes que não tenham como pressuposto a hipótese que está sendo avaliada e
que dependam de hipóteses e teorias que são considerados no momento atual da ciência como
não-problemáticos e bem-estabelecidos (sem nenhum evento de falsificação condicional).
Para concluir este item, é importante ainda uma palavra de como John Watkins, emi-
nente racionalista crítico contemporâneo, resolveu alguns erros de Lakatos que pareciam
comprometer aspectos da teoria popperiana da ciência. Watkins (1984), no livro mais impor-
tante do Racionalismo Crítico depois das obras de Popper, “Science and Scepticism”, demons-
tra que, ao contrário do que alega Lakatos (e continuaram alegando autores como Kuhn e
Feyerabend), as regras metodológicas de Popper não exigem que uma teoria seja eliminada
diante de um resultado que contradiz uma previsão, como já vimos. O que se exige é que a
contradição resultante da suposta falsificação, ou seja, a contradição entre a assertiva que des-
creve o fato empírico supostamente refutador e o sistema de teorias e hipóteses, seja resolvi-
da. Isto pode ser resolvido de três formas. A primeira é a mudança de alguma hipótese auxili-
ar, como mostrou Lakatos. A segunda é a mudança na teoria principal. A terceira é a falsifica-
ção da falsificação, ou seja, provar que o experimento foi mal conduzido ou baseado em
teorias falsas (falsificar a teoria em que se baseava um instrumento de medida, por exemplo).
Assim, como claramente demonstra Watkins (1984), a descrição feita por Lakatos de
cientistas que se recusam a abandonar teorias e hipóteses ora falsificadas é plenamente racio-
nal e de acordo com o Racionalismo Crítico. Se um cientista continua a ignorar anomalias e
desenvolver um programa de pesquisa específico, ele tem todo o direito de fazê-lo, e isto é
inclusive plenamente racional, uma vez que ele não está disposto a abrir mão das crenças
metafísicas associadas. O que não é racional, é não reconhecer que no momento a teoria em
questão se encontra falsificada. As anomalias são um problema que deve ser resolvido por
qualquer uma das formas acima, e duas delas podem salvar a teoria. Assim, o que Watkins
(1984) demonstra claramente é que Lakatos ao afirmar que muitas vezes cientistas não levam
a sério refutações incorre numa confusão banal. Ele confunde a decisão de aceitar que uma
teoria é a melhor no momento com a decisão de trabalhar numa teoria que não é a melhor no
momento para tentar corrigir suas falhas. Desta forma, de fato, um cientista pode reformular
44
uma teoria abandonada de forma a explicar tudo o que anteriormente ela tinha deixado de
explicar mais aquilo que a atualmente aceita explica, tornando assim esta teoria novamente
uma candidata ao posto de teoria científica. Até que ele consiga isso (poucos casos na história
da ciência existem para ele se inspirar), sua teoria predileta será somente uma teoria
provisoriamente descartada pela ciência, e ele está apto racionalmente a entender isso.
2.4 Pós-modernismo e Crise Epistemológica
Este item trata das tentativas pós-modernas de dissolução do pensamento
epistemológico. A caracterização do pós-modernismo enquanto fenômeno cultural, no
primeiro sub-item, será meramente pontual, possibilitando a introdução da questão da
epistemologia pós-moderna e sua disseminação do relativismo. No sub-item seguinte,
abordar-se-á Jean-Françoais Lyotard, primeiro teórico de uma suposta “era pós-moderna” e de
uma alegada superação do projeto da ciência moderna, o que teria dado origem ao que ele
denomina “ciência pós-moderna”. Nos seguintes abordar-se-ão os autores Thomas Kuhn,
assim como Paul Feyerabend e Richard Rorty, considerados os mais relevantes representantes
do pós-modernismo em Epistemologia, responsáveis principais pelo ataque contemporâneo à
distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta. Por fim citará o programa
forte em Sociologia da Ciência, que é a forma contemporânea do relativismo epistemológico
que pretende colocar em cheque todo o projeto da modernidade.
2.4.1 Pós-modernismo enquanto fenômeno cultural
A definição de pós-modernidade resumida neste sub-item e boa parte do conteúdo dos
sub-itens seguintes, é baseada em trabalho anterior intitulado “Pós-modernidade e Psicologia
Social: Uma Crítica Epistemológica” (Castañon, 2001). Para o leitor que quiser se aprofundar
no tema, remeto a referida obra, além da bibliografia citada aqui.
Sobre os conceitos com os quais se trabalha nesta tese, um dos mais centrais é o
conceito de pós-modernismo. Ao começar qualquer tentativa de definição do que seja “pós-
modernidade”, temos que recorrer primeiro à análise etimológica. Esta demonstra a
característica de periodização histórica do conceito, que se referiria a algum estágio cultural
posterior à modernidade, aqui tomada como o projeto civilizatório iluminista. Eagleton (1998)
45
diferencia a palavra ‘pós-modernismo’, que se referiria em geral a uma forma de cultura
contemporânea, da palavra ‘pós-modernidade’, que se referiria a um período histórico
específico, assim como a uma linha de pensamento característica desse período histórico.
Então se coloca a questão: É preciso (no sentido de exato e no sentido de necessário)
realmente se falar em algo como um conceito de cultura pós-moderna? Coloca Gianni
Vattimo (1994) que, se falamos todos de pós-modernidade, é porque acreditamos todos que,
ao menos em algum aspecto essencial, a modernidade tenha se concluído. Jameson (1997),
embora desconfie dessa classificação, tamm concorda com ela. Pois embora todos os traços
que se apresentariam como caracterizadores de um período pós-moderno se apresentassem
com abundância na modernidade, nesta última eles seriam traços secundários, e agora, para
ele, seriam os traços principais. O principal destes traços para Lyotard (1990), é a
incredulidade pós-moderna diante das metanarrativas. Outro traço que distingue a pós-
modernidade é a predominância nas ciências sociais e humanas de um discurso mergulhado
no ceticismo gnosiológico.
Reagindo criticamente, Steven Connor (1993) considera que a “pós-modernidade” é
simplesmente a expressão de uma mania à "Scheherazade" de acadêmicos enfadonhos que
buscam, ao mesmo tempo, perpetuar a si mesmos e desviar a atenção de sua crescente
irrelevância. Charles Newman (1985), percorrendo raciocínio semelhante, considera a pós-
modernidade como o sistema representativo de uma "inflação do discurso", que percorre
todos os níveis da sociedade, mas, em especial, as esferas da cultura e da comunicação. Para
Newman, a linguagem crítica e a literária renunciaram deliberadamente a toda relação com
um valor de uso confiável e acumulam obscuridade sobre obscuridade em intermináveis
espirais de autovalidação. Sokal & Bricmont (2001) também discordam totalmente da
descrição de que estaríamos num período histórico “pós-moderno”, e consideram o
pensamento pós-moderno o resultado de apropriações indevidas de termos e conceitos das
ciências naturais por filósofos “incompetentes e ignorantes”, e seus respectivos discursos
como “fashionable nonsense”.
David Harvey (1992) também reconhece a filosofia pós-moderna como nascida na
mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pós-marxista e pós-estruturalista
que abalou Paris depois de 1968, produzindo um sentimento de ódio ao humanismo e ao
legado do Iluminismo. O surgimento da filosofia pós-modernista foi, segundo ele, um
movimento de um enorme aprofundamento no niilismo, que desembocou numa vigorosa
denúncia da razão abstrata e uma profunda aversão a todo processo que buscasse a
emancipação humana através das forças da tecnologia, da ciência e da razão. É o que nos diz
46
de forma diversa Mardones (1994), quando afirma que o que caracteriza o pensamento pós-
moderno é uma espécie de sensibilidade que se pode descrever como “revolta contra os pais
do pensamento moderno”, como uma perda de peso, em virtude do “desencanto”, das grandes
palavras que mobilizaram os homens e mulheres da modernidade ocidental: Verdade,
Liberdade, Justiça, Razão. Também podemos encontrar essa posição em Eagleton (1998), que
afirma ser o pós-modernismo uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de
verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os
sistemas únicos, as grandes narrativas e os fundamentos definitivos de explicação. Para ele, o
pós-modernismo se coloca contra essas normas que ele identifica como pertencentes ao
pensamento iluminista.
Sérgio Paulo Rouanet (1993) demonstra que aquilo a que denominamos pós-
modernismo se manifesta sob a forma de um grande ressentimento contra a civilização
iluminista, traduzindo-se na rejeição global de todo o seu projeto. Esse projeto, em síntese,
visava a emancipação da humanidade através de um conjunto de valores e ideais que
poderiam se resumir em três tendências básicas: racionalismo, individualismo e
universalismo. O racionalismo implicava o desencantamento do mundo pela ciência, a crítica
livre à tradição e à religião (sobretudo à idéia de milagre), a fé na razão e em sua capacidade
de fundar uma ordem racional e de aumentar o poder do homem sobre a natureza. O
individualismo era conseqüência do humanismo iluminista, e significava uma ruptura com as
antigas cosmovisões comunitárias, em que o homem só valia como parte do coletivo. O
universalismo derivava-se da abrangência do projeto civilizatório, ele partia de postulados
universalistas acerca da natureza humana.
Para Rouanet (1993), é contra esta construção que se dirige o pós-modernismo, que ele
descreve de forma sucinta e precisa em três pontos: primeiro, a razão é vista meramente como
agente de dominação sobre a natureza e sobre o homem, e a ciência é vista como ideologia.
Segundo, o pós-modernismo declararia guerra de morte ao sujeito e ao humanismo, que se
traduz por uma guerra ao indivíduo e ao próprio conceito de indivíduo em todas as esferas dos
comportamentos sociais. Terceiro, a Filosofia, em sua vertente pós-moderna, tentaria
dissolver o universalismo iluminista em "pluralismos linguajeiros" como o faz Lyotard
(1990), e seus ideais pacifistas seriam "desmascarados" como manifestações de niilismo.
Também na prática o universalismo sucumbe ao particularismo, ao "discurso da diferença".
Desaparece a idéia de natureza humana comum através de um multiculturalismo que na
prática faz retornar o racismo, o nacionalismo, o regionalismo, o tribalismo. Assim exposto o
quadro da cultura pós-moderna, Rouanet (op.cit.) conclui:
47
"A depreciação da inteligência, a volta do racismo e a reabilitação do nacionalismo são
apenas alguns sinais mais visíveis de uma estrutura que, sem querer medicalizar a
história, eu não hesitaria em chamar de patológica." (p. 99)
Assim, acolhendo os argumentos de Rouanet (1993), Eagleton (1998), Harvey (1992),
Sokal & Bricmont (2001), Connor (1993) e Newman (1985), assume-se aqui a posição de que
ao invés de usar o termo “pós-modernidade”, seria mais adequado se referir a pensamento
pós-moderno ou pós-modernismo como uma vertente cultural e filosófica contemporânea
anti-racionalista, anti-individualista e anti-universalista. Creio que, diante de todo o exposto,
seja correto dizer com Rocco Butiglione (apud. Harvey, 1992, p.47) que a crise moral e
epistemológica do nosso tempo é uma crise do pensamento iluminista. Porque embora o
Iluminismo, seguindo o processo iniciado pelo Renascimento, tenha ajudado a permitir que o
homem se emancipasse da comunidade, da tradição e do “conhecimento” revelado da Idade
Média, sua afirmação do "eu sem Deus" no final negou a si mesmo, já que a razão, sendo um
meio, foi deixada, na ausência da verdade de Deus, sem nenhuma meta espiritual ou moral. A
razão sem valores, é uma razão sem sentido, é uma razão sem razão.
2.4.2 Lyotard e a “Ciência Pós-moderna”
Um dos principais pontos de referência para se compreender o conceito de pós-
modernismo é o filósofo Jean-François Lyotard. Muitos dos principais teóricos e
pesquisadores do fenômeno cultural da pós-modernidade atribuem a Lyotard um papel
fundamental na delimitação da vertente pós-moderna do pensamento contemporâneo.
Podemos citar aqui entre eles Frederic Jameson (1997), Steven Connor (1993), David Harvey
(1992), Perry Anderson (1999), Terry Eagleton (1998) e Sérgio Paulo Rouanet (1987).
Portanto, neste sub-item serão abordados, sumariamente, dois temas fundamentais do
pensamento de Lyotard relevantes para esta investigação, que é sua caracterização da “pós-
modernidade” e seu conceito de “ciência pós-moderna”.
Lyotard escreveu um livro muito influente no atual debate sobre o pós-moderno,
considerado um marco inicial nesta discussão: "La Condition Postmoderne", de 1979
(traduzido para o português como “O Pós-moderno”, 1986). Na primeira página da introdução
a seu livro, Lyotard (1986, p.XV) define a palavra pós-modernidade como sendo: “o estado
da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura
e das artes a partir do final do século XIX”. Seu argumento central nesta obra gira em torno
48
da função da narrativa no discurso e no conhecimento científico. Ele não se interessa
exatamente pelo conhecimento e os procedimentos científicos enquanto tais, mas mais
especificamente pela forma pela qual eles obtêm legitimidade social. Define o conceito de
conhecimento narrativo, que para ele é “o contar uma história de determinada maneira”. É
esta maneira especial de contar uma história que estabelece o direito do contador de histórias
de contá-la: aquilo que se transmite através de sua narrativa é o conjunto de regras
pragmáticas que constitui o vínculo social.
É esse tipo de legitimação de discurso, que a ciência a partir do século XVIII tentou
eliminar, diz Lyotard (1986). Ele afirma que a narrativa do conhecimento científico pretende
requerer uma estrutura de autorização bem distinta, uma vez que diz depender do valor de
verdade atribuído e aceito. A linguagem científica está apartada dos usos da linguagem que
formam vínculos sociais, seu “jogo de linguagem” é outro. Assim, narrativa e ciência se
distinguiriam, porque enquanto a narrativa não exige nenhuma outra forma de legitimação
além de seu próprio desempenho, a ciência não pode validar-se pelos seus próprios
procedimentos. No entanto, se a ciência não pode legitimar-se a si mesma, diz Lyotard, então
nesse ponto ela tem que retornar a uma narrativa que a legitime e conceda autoridade. Para
Lyotard, as duas principais “narrativas” a que a ciência recorre são a política e a filosófica.
Assim ele crê ter provado que qualquer conhecimento científico está condenado à
dependência de uma narrativa de legitimação, uma metanarrativa. Como Lyotard ataca
explicitamente qualquer noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metateoria ou
uma metanarrativa mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas e representadas,
ele vê a pós-modernidade como a época em que isto se tornou generalizado. Ela seria uma
crise de incredulidade diante das metanarrativas, gerada pela perda de legitimidade das
mesmas. O declínio que segundo Lyotard se observa do poder regulatório geral dos
paradigmas da ciência, com a presente profusão de paradoxos e questões indecidíveis,
contribui decididamente para o quadro descrito.
Aqui ela se tornaria mero conhecimento narrativo, pois quando o poder organizador
da ciência começa a desaparecer, ela iria se transformando num conjunto desconexo de espe-
cialismos onde cada qual tem seu próprio modo incompatível de proceder ou jogo de língua-
gem próprio. Nenhum desses “jogos de linguagem” recorre a princípios externos de justifica-
ção, uma vez que o objetivo não é mais a verdade, mas sim, segundo Lyotard, a “performati-
vidade”. As verdades eternas e universais, se é que elas existem, não podem ser especificadas.
Lyotard aqui nos remete ao já alegado no sub-item sobre a tradição positivista: o
atrelamento da cientificidade ao uso preciso de uma linguagem científica e fisicalista leva,
49
com a ruína do projeto do Positivismo Lógico, à crença pós-moderna na ruína da própria
noção e possibilidade do conhecimento. E isso Lyotard deve, e o reconhece explicitamente, a
Ludwig Wittgenstein. O “segundo Wittgenstein” (1975) defende que o pensamento não se
separa das palavras que se usam para expressá-lo. Ele chega a essa conclusão através de sua
teoria social da mente que por sua vez deriva-se de sua teoria social do significado. Esta
afirma que não existe nada parecido com uma linguagem privada. Para ele, a idéia de que a
linguagem e o pensamento começam por experiências privadas é um dos erros filosóficos
mais fundamentais. A linguagem é um convencionalismo. O significado não se baseia nos
objetos, no processo mental ou em entes ideais. Adquire-se através do contato social com
outros habitantes da cultura em questão.
Lyotard (1986) apresenta então uma crença recorrente em círculos pós-modernos: a
idéia de que o poder organizador da ciência começa a desaparecer porque recentes
desenvolvimentos científicos não só mudaram nossa visão sobre o mundo como também
mudaram a natureza do projeto de ciência. Ele afirma que a ciência do século XX está se
transformando em “ciência pós-moderna”, que seria a ciência da “busca de instabilidades”,
depois do que chama de “crise do determinismo”.
Para este filósofo, o determinismo se resume a uma “filosofia positivista da eficiência”
(1986, p.99), que é o que legitima a ciência moderna. Essa eficiência é possível por sua
previsibilidade, pela crença de que os sistemas físicos obedecem a uma “trajetória” que
garante a antecipação do “output” dado o “imput”. Já a “ciência pós-moderna” teria “pouca
afinidade com a busca do desempenho” (p.99), se preocupando primordialmente com
questões relativas à sua legitimidade. Veja a passagem em que Lyotard resume sua posição
em relação ao que chama de “ciência pós-moderna”:
“A idéia que se tira destas pesquisas (e de muitas outras) é de que a preeminência da
função contínua de derivada como paradigma de conhecimento e da previsão está em vias
de desaparecer. Interessando-se pelos indecidíveis, nos limites da precisão e do controle,
pelos quanta, pelos conflitos de informação não-completa, pelos “fracta”, pelas
catástrofes, pelos paradoxos paradigmáticos, a ciência pós-moderna torna a teoria de sua
própria evolução descontínua, catastrófica, não-retificável, paradoxal. Muda o sentido da
palavra saber e diz como essa mudança pode se fazer. Produz, não o conhecido, mas o
desconhecido.” (1986, pág. 108)
50
Como podemos facilmente perceber aqui, trata-se de um rompimento completo com o
projeto de ciência moderna. O que se torna difícil perceber, é o que seria, qual a legitimidade
e qual a utilidade de um tipo de discurso produzido com as características acima. De qualquer
forma, tal linha de argumentos abre uma linha inteira de pesquisa, não percorrida por Lyotard,
que é a de responder se tais teorias científicas citadas por ele realmente colocam em questão a
concepção moderna de saber e de ciência. Infelizmente, escapam à competência profissional
do autor desta tese tais investigações teóricas, mas partes significativas delas foram realizadas
por Alan Sokal & Jean Bricmont, no famoso e polêmico livro “Fashionable Nonsense” (No
Brasil, “Imposturas Intelectuais”, 2001). Esta obra será abordada no sexto item deste segundo
capítulo, dedicado a responder se, diante destes e dos ataques seguintes, o projeto da ciência
moderna continua vivo.
2.4.3 Thomas Kuhn e virada irracionalista da Filosofia da Ciência
A partir do ataque popperiano à ingenuidade objetivista do verificacionismo, várias
posições diferentes se desenvolveram no espaço problemático aberto pela questão. A filosofia
da ciência produzida desde então ficou conhecida como “pós-popperiana” ou ainda “Nova
Filosofia da Ciência”, e, em muitos casos, poderia ser classificada sem dificuldades como
pós-moderna. Este certamente é o caso das teses epistemológicas de Thomas Kuhn.
Embora Kuhn (1991) tenha escrito sua obra capital “A Estrutura das Revoluções
Científicas” (publicada pela primeira vez em 1963), antes das primeiras teorizações acerca do
pós-modernismo, não é difícil reconhecê-lo como legítimo representante deste fenômeno
cultural no campo epistemológico. Essa afirmação se demonstra neste sub-item. Kuhn é o
filósofo da ciência que popularizou o termo paradigma. Apesar de ter ganho inúmeras
conotações em suas vulgarizações (e mesmo devido às imprecisões que podemos perceber no
estabelecimento de seu sentido pelo autor, vide Mastermann, 1974), creio que se pode
estabelecer que no contexto do pensamento kuhniano paradigma significa aquele conjunto de
conquistas científicas universalmente reconhecidas e pressupostos universalmente
compartilhados sobre o método científico, que durante um período fornecem um modelo de
problemas e soluções aceitáveis aos que pesquisam um certo campo da ciência.
Kuhn (1991) oferece contra o falsificacionismo de Popper sua visão própria sobre o
progresso científico, que teria como princípio central a revolução científica. Para ele, a
revolução científica é a substituição de um paradigma que, tendo acumulado um número de
anomalias suficientes, gerou as condições necessárias para o surgimento de um novo
51
paradigma que o substitua dando conta dessas anomalias. É um momento de evolução não-
linear da história da ciência.
Apesar de Kuhn (1991) ter construído vários conceitos importantes para o debate
epistemológico atual, como os conceitos de pré-ciência, ciência normal e ciência revolucioná-
ria, nos concentraremos aqui na questão central apropriada pelo relativismo pós-moderno, que
é sua defesa da incomensurabilidade dos paradigmas. A substituição de um paradigma por
outro ocorre no momento do conflito entre dois paradigmas concorrentes. Neste momento os
seus respectivos partidários os defendem com base em argumentos extraídos do próprio para-
digma. Ou seja, cair-se-ia inevitavelmente numa circularidade, pois se tomaria como pres-
supostos os princípios do próprio paradigma em sua defesa. Proponentes de paradigmas rivais
aderem a conjuntos diferentes de padrões, de princípios metafísicos, de pressupostos básicos.
Para Kuhn, se o paradigma A for julgado por seus próprios padrões, ele pode ser superior ao
paradigma B, ao passo que, se forem usados como premissas os padrões de B, o julgamento
pode ser invertido. Para Kuhn, paradigmas sucessivos dizem coisas diferentes acerca do
universo e de seus objetos, eles são ontologicamente irredutíveis um ao outro, eles são
incomensuráveis. Isso quer dizer que, para Kuhn, nas revoluções científicas as mudanças de
paradigma não são realizadas com fundamento na racionalidade interna do sistema científico:
“Existem razões intrínsecas pelas quais a assimilação, seja de um novo tipo de fenômeno,
seja de uma nova teoria científica, devam exigir a rejeição de um paradigma mais antigo?
Observe-se primeiramente que se existem tais razões elas não derivam da estrutura lógica
do empreendimento científico.” (p. 129)
Este é o componente irracionalista da teoria kuhniana, que embora defenda a
racionalidade como característica do empreendimento científico, defende-a somente em sua
forma instrumental em relação aos pressupostos do paradigma vigente, interna, no contexto de
uma ciência normal. Enumera vários motivos para a assunção de um novo paradigma, como
reorganização gestáltica do quadro conceitual e factual, fé, e principalmente, interesse e
pressão política. Assim Kuhn nega que a razão tenha jurisdição sobre aquilo que é a questão
mais importante do empreendimento científico, que é a revolução científica e as mudanças
axiomáticas. Mais do que isso, ele é irracionalista porque não reconhece que a empreitada
científica é uma empreitada teleológica, uma empreitada que visa o progresso das concepções
humanas sobre o universo em direção à verdade. Para ele, o desenvolvimento científico se dá
a partir de algo (os estágios primitivos de desenvolvimento), e não em direção a algo (a
52
verdade). As questões levantadas por Kuhn, no entanto, são muito importantes, e estão longe
de ter uma resposta trivial. Voltaremos à questão da incomensurabilidade dos paradigmas na
conclusão deste capítulo, pois, sem uma solução para ela, a concepção da ciência como
atividade racional estaria gravemente comprometida.
2.4.4 Paul Feyerabend e Richard Rorty: avançando na dissolução da racionalidade
Por último, cabe aqui citar as teses centrais de dois teóricos que levaram a crítica ao
ideal empirista de ciência ao seu ponto mais radical. Abordam-se aqui algumas teses
principais de Paul Feyerabend e Richard Rorty, baluartes do pós-modernismo contemporâneo.
Com a obra “Contra o Método” de 1975, Paul Feyerabend lança seu “anarquismo
epistemológico”, que pretende provar que a metodologia científica é, na verdade, o grande
fator de entrave ao progresso da ciência.
A tese de Feyerabend que mais nos interessa aqui, é sua crítica à distinção entre
contexto de justificação e contexto de descoberta. Ele afirma que a tese da distinção entre
estes dois contextos não tem papel a cumprir na prática científica. Uma vez que tudo vale, o
contexto da justificação ficaria também subjugado pelo reinado absoluto da criatividade, que
pode validar uma teoria com critérios que venha a desenvolver. Dessa forma, a fronteira entre
o contexto da criação e descoberta de um princípio científico, e o contexto de sua prova e
validação perante os fatos, ficaria dissolvido. A Revolução permanente em ciência
preconizada por Feyerabend (1989) implica na visão da regra metodológica como sendo
sempre reacionária: “O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale.” (p.27 )
Oliva (1990) expõe da seguinte forma o desenvolvimento do ataque às regras de Feyera-
bend. Primeiro, Feyerabend afirma que a história demonstra que os mais autênticos progres-
sos do conhecimento contrariam de uma ou de outra maneira todas as metodologias até hoje
propostas. Não haveria uma só regra que embora plausível e bem fundada deixasse de ser
violada em algum momento. Segundo, ele afirma que há um grande descompasso entre o que
propõe as regras e o que efetivamente fazem os cientistas. Terceiro, procura demonstrar que
todas as metodologias teriam deficiências de fundamentação, daí inferindo que só o vale-tudo
é capaz de manter-se. Por último constata, através de análise histórica, que as regras se consti-
tuem, nos momentos decisivos da ciência, em autênticos entraves à marcha do conhecimento.
Regras são encaradas assim por Feyerabend porque são vistas como armaduras tolhedo-
ras da imaginação criadora e incompetentes mecanismos de justificação (validação científica)
de teorias. No entanto, admitindo-se seu total rechaço às regras metodológicas, tornar-se-ia a
ciência indistinguível do campo estético e metafísico. O Anarquismo epistemológico, ao se
53
declarar contra todas as regras, tenta anular as diferenças de significado entre os diversos
estilos cognitivos, bem como tornar incompreensível a ação intelectual chamada ciência.
Feyerabend (1989) centra sua análise na rejeição às distinções clássicas entre contexto
da descoberta e contexto da justificação, entre linguagem observacional e linguagem teórica, e
entre ciência e metafísica/mito. É um desenvolvimento da crítica ao observacionismo
indutivista empirista, começada com Karl Popper, levado ao seu último grau: o rompimento
com a realidade objetiva. Essa crítica parte do fato de que a ciência não conhece fatos nus: os
fatos de que tomamos conhecimento já são vistos sob certo ângulo, e são precisamente vistos
como fatos porque uma série de pressupostos observacionais recortaram a massa de
percepções de determinada forma, e não de outra.
Bem até aí, nada de novo. Como afirma Oliva (1990), é consenso que já não podemos
ser empiristas em metaciência. Mas Feyerabend não para aí. Partindo do fato de que não há
fatos que possam ser descritos independentemente do esquema teórico reconstitutivo, ele pos-
tula não haver domínio observacional autônomo. Assim, se não há verdade objetiva a alcan-
çar, não há verossimilhança, não há como comparar teorias na busca de uma mais próxima da
verdade, pois são esquemas conceituais e factuais incomensuráveis. Dirige sua crítica portan-
to não mais ao substrato empírico da metodologia científica, mas à própria metodologia em si.
Isso vai contra a concepção racionalista clássica de que as idéias capazes de
revolucionar ou ampliar o conhecimento podem surgir de qualquer forma, mas o julgamento
da pertinência delas deve obedecer à critérios definidos: é a diferença entre contexto da
descoberta e contexto da validação. Na tradição clássica, a ciência é aquele ponto de vista
referendado pelos fatos. Abandona-se uma teoria por sua discordância com fatos. Mas se os
fatos estão condicionados pela estrutura teórica que é criada no contexto da descoberta, então
essa fronteira está rompida.
Aqui Feyerabend pretende demonstrar a insustentabilidade da velha distinção entre
linguagem teórica e linguagem observacional, que se escora no princípio da autonomia dos
fatos. Ele ataca esse princípio por duas vias, uma demonstrando que a descrição de qualquer
fato depende de uma teoria, outra afirmando que determinados fatos só podem ser desvelados
com a ajuda de alternativas à teoria a ser testada.
Isso leva então à crítica ao critério de demarcação entre ciência e metafísica/mito,
assim como domínio da descoberta e domínio da justificação, por causa da dissolução deste
último domínio. A mudança de concepções científicas passa a ser explicada por Feyerabend
em grande parte devido a fatores externos não-racionais, como propaganda, política, hipóteses
ad hoc socialmente induzidas.
54
Neste terreno, encontramos o filósofo neo-pragmatista Richard Rorty. Ele é o filósofo
mais associado à corrente da Psicologia Social contemporânea auto-classificada como pós-
moderna: o Construcionismo Social. O fundamento do pensamento de Rorty (1989) é a crença
de que tudo é “essencialmente lingüístico”, toda experiência e comportamento. O mundo é um
texto literário, aberto a múltiplas interpretações. A responsabilidade pela definição da realida-
de é dos membros de uma mesma comunidade discursiva, eles definem a natureza desse texto,
a linguagem que eles pactuam é a realidade. Não há nada além da linguagem a que os indiví-
duos possam recorrer para validar a verossimilhança da linguagem que essa comunidade esco-
lheu para usar. Para Rorty (1989), a verdade nada mais é que um movimento bem sucedido
dentro de um particular jogo de linguagem, uma assertiva aceita pelos membros desta comu-
nidade como verdade. Ou seja, para ele o critério de verdade é o da utilidade social de uma
sentença, portanto, é um critério pragmático. Vamos ver como ele chegou a isto.
Rorty (1979) e outros pós-modernos acreditam que a adoção desse determinismo
lingüístico resolve um dos dilemas básicos da Filosofia, que é o dilema epistemológico: como
identificar as bases da crença verdadeira, da representação correta da realidade. Para ele, a
esperança que se estabeleçam essas bases algum dia, ou mesmo que se prossiga na melhoria
paulatina dessas bases, é uma esperança equivocada. Essa busca pelas bases sólidas para a
construção do conhecimento é a busca cartesiana por modos privilegiados de representação da
realidade, modos que seriam tão auto-evidentes que estariam além de qualquer dúvida. Essa
busca por meios privilegiados de representação da realidade interessa a filósofos que se
ocupam desse tema com os esquemas conceituais mentais que contém essas representações. É
aqui que Rorty acusa os filósofos e cientistas de passarem seu tempo inspecionando,
reparando e polindo esse grande espelho da natureza que seria a mente humana e o conjunto
de suas teorias e conceitos científico-filosóficos. O dilema epistemológico é sobre a direção
em que esse espelho deve ser dirigido. Os racionalistas consideram que é de dentro para fora,
ou seja, partir das idéias criadas para aplicá-las ao mundo. Os empiristas consideram que é de
fora para dentro, ou seja, as sensações devem ser cuidadosamente recebidas, analisadas e
associadas, evitando inclusive a interveniência de idéias. Para Rorty (1979), não existem
meios para julgar de maneira objetiva as representações da natureza em nossa mente, pois não
existem critérios para comparar nossas teorias diretamente com o mundo: qualquer critério de
comparação é ele mesmo uma teoria, portanto, não temos como ir além de teorias, o que
tornaria o realismo num sentido literal, impossível.
Rorty (1979) pensa ter terminado com a disputa sem fim entre racionalistas e
empiristas, ou entre a mente e o mundo, terminando com a própria epistemologia. Ele acredita
55
ter levado a mente do sujeito para o mundo, identificando-a com a linguagem. Este é um
credo básico do Construtivismo Social, o “programa forte” em sociologia da ciência, como
veremos. O Construtivismo Social tem seu ponto de partida não no indivíduo ou no mundo
externo, mas na linguagem, e é nela que localiza o “conhecimento”.
A abordagem de Rorty (1989) ao problema epistemológico, como ele próprio
diagnostica, deve muito ao pensamento do filósofo Ludwig Wittgenstein. Para Rorty, a
maioria do crédito pelo enfraquecimento da estrutura epistemológica da modernidade se deve
a esse pensador. Wittgenstein foi um filósofo efetivamente peculiar, pois encontramos em sua
obra duas fases nas quais seu pensamento se divide de forma oposta. O “primeiro
Wittgenstein”, como se convencionou ser chamada a primeira fase de sua obra, se apresenta
como um filósofo que defende a existência de uma realidade plenamente significativa
independente dos cognoscentes, e que julgava ser a tarefa dos investigadores descrever a
realidade da forma mais rigorosamente lógica possível. Sua teoria figurativa sobre a realidade
é um exemplo de filosofia fundacional “modernista” que defende que a mente reflete a
natureza. O “segundo Wittgenstein” rechaça completamente esses pressupostos “modernistas”
e tem na obra “Investigações Filosóficas” talvez a mais importante e imediata precursora do
pensamento pós-moderno. Wittgenstein (1975) se dedica na segunda fase de seu pensamento
a desmantelar seus primeiros conceitos de atomismo lógico e da teoria representativa da
realidade. Rechaça as noções de que os elementos da linguagem devam ter um único
referente, de que as proposições devam se constituir de elementos independentes cuja verdade
ou falsidade determinam a verdade do enunciado composto, de que a estrutura verdadeira da
linguagem representa a estrutura da realidade e de que portanto todas as linguagens são
traduzíveis por serem no fundo a mesma coisa. Esses quatro rechaços representam o total
abandono de seu primeiro trabalho.
2.4.5 A virada pós-moderna da Sociologia do Conhecimento
A Sociologia do Conhecimento é a disciplina que inspirou o surgimento do Construti-
vismo Social na Sociologia e do movimento Construcionista Social na Psicologia Social
contemporânea. Seu ancestral filosófico é Karl Mannheim, sociólogo que defendia a idéia de
que a sociedade determina toda ideação humana, exceto os conceitos físico-matemáticos. Em
virtude dessa ressalva, afirmava não haver capitulado ao relativismo absoluto.
A expressão Construtivismo Social, surge da obra de Berger & Luckmann (1973), “A
Construção Social da Realidade”, de 1966. Esta é uma obra sobre Sociologia do Conheci-
mento que exerceu grande influência sobre a Psicologia Social e a Sociologia contemporânea.
56
Sua reivindicação principal é a de que a “realidade” é construída socialmente. Define a “reali-
dade” como a qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser indepen-
dente de nossa própria volição, e o conhecimento como a certeza de que os fenômenos são
reais e possuem características específicas. Berger & Luckmann esclarecem que usam esses
termos fora do significado estrito, no sentido do que o homem comum julga como real e como
conhecimento. É portanto uma análise não do conhecimento, mas de suas representações
sociais, das concepções de conhecimento construídas pelo homem comum, independente-
mente de sua realidade ou irrealidade última. Como afirmam Berger & Luckmann:
“Incluir as questões epistemológicas concernentes à validade do conhecimento
sociológico na sociologia do conhecimento é de certo modo o mesmo que procurar
empurrar o ônibus em que estamos viajando”. (1973, p.27)
No entanto, isso é precisamente o que faz o Construtivismo Social ao crer ter colocado
no âmbito da Sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Mais do
que na tradição intelectual supracitada, o Construtivismo Social se apóia no pensamento de
alguns filósofos contemporâneos, entre os quais os principais nomes são os dos autores já
citados neste sub-item: o filósofo precursor do pós-modernismo Ludwig Wittgenstein, o neo-
pragmatista pós-moderno Richard Rorty e os filósofos da ciência Thomas Kuhn e Paul
Feyerabend. Ao rejeitar o realismo ontológico, o Construtivismo Social faz das concepções
socialmente construídas da realidade a única e própria realidade, afastando-se assim dos
limites da Sociologia do Conhecimento e entrando no terreno do pós-modernismo. Essa
posição é o núcleo do chamado “programa forte” em sociologia da ciência, desenvolvido por
sociólogos como David Bloor (1998), Barry Barnes (1990) e Bruno Latour (1987).
Como afirma Oliva (2003), enquanto as filosofias da ciência tradicionais se
comprometiam com a universalização dos métodos das ciências naturais, as epistemologias
“heterodoxas” passaram a acalentar a pretensão que os próprios Berger & Luckmann
consideraram contraditória: a de explicar a racionalidade das ciências, incluindo as naturais,
recorrendo às ciências sociais, em especial à sociologia. Isso se trata de uma grande inversão:
a disciplina mais questionada em sua cientificidade, a sociologia, passa a querer explicar a
condição de cientificidade de disciplinas como a física. Oliva (2003) demonstra que essa
mudança radical nas pretensões da sociologia não decorre de nenhuma mudança interna da
disciplina, e sim das novas concepções epistemológicas surgidas da “nova filosofia da
ciência”, em outras palavras, do pós-modernismo de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend.
57
Em resumo do que se apresentou nos sub-itens anteriores, a filosofia da ciência pós-
moderna afirma que a ciência não é um modo de produção de conhecimento superior aos
outros, e que a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta não é válida.
A posição epistemológica tradicional afirma que a produção da pesquisa pode ser explicada
em termos do ambiente sócio-cultural em que a pesquisa se dá, mas a sua validação, a
aferição do valor epistêmico dela, são determinadas por critérios lógicos e empíricos que em
nada dependem do contexto social. Esses critérios é que são questionados em sua a-
historicidade e universalidade pelos pós-modernistas Kuhn e Feyerabend e pelo
Construtivismo Social, que os julga tão condicionados pelo ambiente sócio-cultural como as
teorias científicas, afinal de contas, estes critérios também seriam teorias.
Oliva (2003) define o Construtivismo Social, ou a tese forte em Filosofia da Ciência,
através de sete características. A primeira seria a já abordada renúncia à enunciação de um
critério de cientificidade, de demarcação entre ciência e não-ciência. A segunda, a também já
explicada rejeição da subordinação do teórico ao observacional, sustentada pela crença de que
é impossível separar minimamente o componente teórico do observacional. A terceira é a
recusa do “objetivismo”, que segundo esta abordagem é a crença de que os resultados da
ciência são determinados pela natureza, para substituí-lo pela crença de que os resultados da
ciência são fruto de “interação social”. A quarta é a concessão de primazia à história da
ciência para julgar a ciência e suas pretensões de conhecimento, que não poderiam ser a-
históricas. A quinta é a inversão do critério de cientificidade: em vez de a ciência natural ser
modelo de ciência, é à sociologia que é dado o poder de explicar ciências como a física, que
eram vistas como modelos de cientificidade. A sexta é a adoção da tese kuhniana da
incomensurabilidade dos paradigmas, já abordada neste trabalho. A sétima, por fim, é a
rejeição da idéia de progresso científico e de superioridade epistêmica da ciência.
Como visto sumariamente aqui, o Construtivismo Social é em seu conteúdo a
repetição das teses básicas de Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Richard Rorty, em nada
acrescentando de substancial às críticas efetuadas por estes filósofos à concepção moderna de
ciência. Portanto, ao enfrentarmos as teses básicas destes filósofos, estaremos por
conseqüência enfrentando as teses básicas do Construtivismo Social, o que será feito no
último item deste capítulo. A única coisa em que o Construtivismo Social difere destes
filósofos é a forma pela qual se apresenta. Mas esta diferença só acrescenta uma nova
contradição a esse emaranhado de contradições pós-modernas. Essa contradição é a
contradição de uma disciplina pré-científica, a sociologia, que jamais conseguiu um único
resultado generalizadamente aceito em toda a sua longa existência, e que, cansada de sua
58
inconsistência como ciência moderna, resolve renunciar à sua história de fracassos honestos
para passar a julgar, através de um pretenso método sociológico que ninguém sabe o que é, a
cientificidade de outras disciplinas científicas que tem acumulado resultados espetaculares
nos últimos duzentos anos. Abordaremos esta questão portanto, no último item deste capítulo.
2.5 Os resultados recentes das Ciências: o contexto da crise
Chegamos então ao quinto item deste capítulo, onde serão sumariamente inventariados
alguns resultados recentes da ciência moderna, particularmente da matemática e da física, que
lançaram perplexidade sobre a comunidade científica e filosófica, levando muitos filósofos e
cientistas a entender que o projeto da ciência moderna e até a razão ocidental estavam num
beco sem saída. Avaliaremos neste item não a validade intrínseca dessas teorias, o que foge ao
escopo desta tese, mas suas conseqüências filosóficas. Concluiremos assim a contextualização
da crise epistemológica contemporânea que tem como objetivo fundamentar a resposta à
primeira questão desta tese: a sobrevivência ou não, do projeto da ciência moderna.
2.5.1 O Contexto da Crise Epistemológica
Como aponta John Searle (2000), a confiança ocidental na racionalidade humana foi
abalada no século XX em virtude de alguns resultados surpreendentes a que chegou a ciência,
particularmente a Física. Muitos autores de peso entenderam que o projeto da ciência moder-
na tinha chegado a um impasse insuperável. Infelizmente, escapa à competência profissional
do autor desta tese (e aos objetivos da mesma) a análise estrita dos fundamentos matemáticos
e físicos destas teorias. Portanto o que será feito aqui, sumariamente, é uma avaliação das
implicações filosóficas destes resultados e a exposição de algumas respostas a estes
problemas dadas por autores das respectivas áreas. Dará-se aqui ênfase à teoria campeã de
citação entre autores pós-modernos, a Teoria do Caos, e às duas teorias que, de fato, trazem
graves implicações à metafísica e à epistemologia: o Teorema de Gödel e a Física Quântica.
Estas três (Teoria do Caos, o Teorema de Gödel e Física Quântica) certamente estão
incluídas entre as teorias campeãs de citação por autores que questionam o projeto da ciência
moderna (principalmente pós-modernos). Além disto podemos listar como muito citadas a
teoria dos fractais, a teoria das estruturas dissipativas, a teoria das catástrofes, a matemática
59
transfinita, as lógicas não-clássicas e as funções não-lineares. Abordaremos aqui em destaque
as três principais a título de exemplo do tipo de confusão que pode ser feita atualmente, e não,
absolutamente, para utilizar essas teorias descontextualizadamente na Psicologia. No entanto,
não podemos ignorar que algumas destas teorias, como o Teorema de Gödel e a Física
Quântica, têm implicações em Filosofia da Ciência e mesmo na teoria do conhecimento que,
obrigando tanto a imagem de ciência como de universo a uma revisão, atingem,
necessariamente e fundamentalmente, a Psicologia.
2.5.2 A Teoria do Caos
Existem vários fenômenos físicos que, embora governados por leis deterministas e
portanto previsíveis em tese, se mostram no entanto aparentemente caóticos, e de difícil e
imprecisa previsibilidade. Isto se dá porque a quantidade de variáveis envolvidas é tão alta, e
muitas vezes algumas delas variam de forma tão intensa, que pequenas alterações nas
condições iniciais desses fenômenos (sistemas na maior parte das vezes retroalimentativos)
provocam enormes alterações nas suas condições finais, que estamos medindo.
Exemplo clássico deste tipo de fenômeno, de sistema altamente complexo, é a atmos-
fera terrestre. São conhecidas e até anedóticas as dificuldades que encontram os meteorolo-
gistas de efetuar previsões adequadas do tempo. Mas, se a atmosfera e suas alterações são
rigorosamente regidas por leis deterministas, porque ela se mostra aparentemente caótica?
Porque não podemos predizer suas alterações? A Teoria do Caos se apresenta como uma
resposta para essas perguntas e mais do que isso: com todo um aparato matemático e estatís-
tico para melhorar as condições de previsibilidade de sistemas altamente complexos. Aqui não
se abordará esta questão matemática ou estatisticamente, mesmo porque, como já foi dito, esta
possibilidade foge à competência do autor. O que será abordado são as extrapolações
filosóficas do uso de tal teoria conforme as explicitaram Sokal & Bricmont (2001).
Quando falamos que sistemas complexos se tornam imprevisíveis devido à sua
extrema sensibilidade às condições iniciais, não estamos dizendo que eles são caóticos estrito
senso, e sim que não temos condições, com os dados e a capacidade de cálculo que temos, de
prever seu desenrolar a longo prazo. Dois sistemas obedecendo às mesmas leis podem, em
determinado momento, estar em estados bastante semelhantes (não iguais), e apesar disto,
logo depois, encontrar-se em estados muito diferentes entre si. Sokal & Bricmont (2001)
exemplificam este fenômeno com o tão citado e pouco entendido “efeito borboleta”, exemplo
que popularizou a Teoria do Caos: o sistema de variáveis que interfere nas condições
atmosféricas é tão complexo que o bater de asas de uma borboleta em Madagascar pode
60
causar um furacão 30 dias depois na Flórida, em virtude das reações em cadeia. A borboleta
sozinha, é óbvio, não pode fazer muito. Mas a questão é que o sistema atmosférico com e sem
a borboleta poderia, a longo prazo, em virtude de sua enorme complexidade, apresentar-se de
formas completamente diferentes. Afirmam Sokal & Bricmont (2001):
“Uma conseqüência prática disso é que não nos consideramos capazes de prever as
condições meteorológicas mais do que umas poucas semanas à frente. Na verdade,
teríamos de levar em conta uma gigantesca quantidade de dados, e com tal precisão, que
mesmo o maior dos computadores imagináveis não daria conta do recado.” (p.139)
Na verdade, podemos resumir satisfatoriamente a questão da aparência caótica de
alguns fenômenos dizendo que quando temos um sistema muito complexo, com muitas variá-
veis em jogo, uma alteração nas condições iniciais desse sistema pode mudar as condições
finais de forma não-mensurável (para o estágio atual de nosso conhecimento). Se Hitler tives-
se morrido na infância, como teria se desenrolado a história humana? Talvez não tivesse
havido segunda guerra, ou talvez ela tivesse vindo vinte anos depois e acabado com a humani-
dade. Mesmo que a história humana estivesse sob leis deterministas (o que quase ninguém
defende mais) como poderíamos prever o desenrolar de um sistema tão complexo? Não
precisamos ir muito longe para compreender a distância abissal que separa o aparente caos de
sistemas muito complexos e a indeterminação. Hoje nos computadores pessoais, já temos uma
capacidade de processamento que era inimaginável vinte anos atrás. Existem, na forma de
jogos, vários simuladores que buscam a reprodução (embora obviamente estejam longe disso)
de sistemas complexos, como o funcionamento de uma cidade ou o desenvolvimento de uma
civilização. Se gravarmos na memória um dado momento do jogo, e variarmos o quadrante
onde escolhemos fundar uma cidade ou posicionar um exército, isso pode alterar as reações
dos habitantes ou dos adversários virtuais de maneira aparentemente caótica. Essa aparência é
porque o sistema de variáveis do programa já é razoavelmente complexa, e você não sabe
todas as funções que estão envolvidas no mesmo. Mas, como obviamente sabemos, um
programa de computador é a coisa mais distante do caos que podemos imaginar.
Porque uma teoria como essa se tornou tão citada em círculos anti-científicos? Afirma-
se muitas vezes que a teoria do caos aponta para os limites da ciência moderna, pois prova
que a ciência não poderia predizer todas as coisas. Embora não seja exatamente isso o que a
teoria do caos prova, a ciência moderna sempre soube (à exceção de alguns cientistas) que
não podia predizer tudo. Esta afirmação portanto é inócua, e não atingiria em qualquer ponto a
61
ciência conforme concebida pela modernidade. Outra questão diferente é a alegação que ela
atingiria mortalmente o determinismo de Laplace. Mais uma vez temos aqui um equívoco,
como demonstram Sokal & Bricmont (2001). O determinismo universal de Laplace não se
confunde com a possibilidade humana de vir a possuir o poder de absoluta previsibilidade da
natureza, pois nunca saberíamos todas as condições iniciais de todos os elementos do infinito
e infinitamente complexo sistema que é a natureza. Para Laplace, a natureza é absolutamente
regida por leis deterministas, mas nós não temos o poder da absoluta previsibilidade mesmo
que descubramos todas estas leis, porque não sabemos todas as condições iniciais do sistema.
Mas não poder prever tudo, é muito diferente de não poder prever nada.
Ao que tudo indica, o determinismo universal de Laplace está enterrado. Porém, a
teoria do caos não deu qualquer contribuição para o seu funeral. Erroneamente apontada como
sinal do fim do determinismo e da ciência moderna, como baluarte do relativismo e do desejo
de caos de quem não suporta a idéia de ordem, a teoria do caos é o contrário disso. Ela é um
esforço relativamente bem sucedido da razão para explicar fenômenos plenamente
deterministas porém aparentemente caóticos.
2.5.3 O Teorema de Gödel
No final do século XIX surgiu entre os matemáticos, dos quais a figura proeminente
foi a do grande matemático alemão David Hilbert, a ambição de tornar a matemática um
sistema estritamente lógico-formal. Um sistema estritamente lógico-formal é aquele que, a
partir da definição de um conjunto limitado e reduzido de axiomas (proposições cuja verdade
não é demonstrável por procedimentos de raciocínio formal, e portanto, básicas e
primordiais), é possível deduzir todos os teoremas válidos daquele sistema e somente eles.
Exemplo mais simples e antigo de um sistema com essas características seriam os Elementos
de Euclides, a geometria euclidiana.
A afirmação de Euclides de que todas e apenas as leis válidas da geometria são
deriváveis como teoremas a partir de seus axiomas, corresponde aos conceitos lógico-formais
modernos da completude e da consistência. Um sistema lógico-formal perfeito deveria possuir
as características da completude, ou seja, ser capaz de derivar de seus axiomas todos os
teoremas verdadeiros daquele campo matemático abordado, e da consistência, que significa
que todos os teoremas gerados a partir de seus axiomas devem ser não-contraditórios entre si,
pois proposições originalmente verdadeiras, não podem gerar conseqüências falsas.
Mas com a publicação em 1931 do teorema da indeterminação de Kurt Gödel, essa
ambição formalista foi, totalmente, destruída (Penrose, 1991; Barker, 1969; Sokal &
62
Bricmont, 2001; Reale & Antisieri, 1991; LaRouche, 1998). Em essência, o que Gödel
demonstrou é que, em um sistema matemático construído com lógica formal, a afirmação que
exige que o sistema seja livre de contradição é, em si própria, um princípio impossível de
demonstrar a partir do próprio sistema.
Um sistema formal incompleto, pode ser resumidamente explicado como um sistema
sobre o qual existem verdades, acerca do campo sobre o qual trata, que não serão dedutíveis
dos seus axiomas. Os axiomas em questão portanto, são incompletos, pois não contém em si
todas as informações que gostaríamos que estivessem neles fixadas. O que Gödel provou com
seu teorema (Barker, 1969; Penrose, 1991) é que todo sistema formal pode ser consistente,
desde que seja incompleto, e que se for completo será, necessariamente, inconsistente. Como
o atributo da consistência é mais fundamental que o da completude, segue-se a sentença co-
mum sobre o teorema de Gödel que afirma que todo sistema formal é necessariamente incom-
pleto, pois não pode conter em si todos os axiomas necessários a sua completa formalização.
Outra conseqüência fundamental é que, se para ser consistente é necessária a
incompletude, modificações no sistema no sentido de ampliar seus domínios necessariamente
implicarão alterações nos axiomas, não dedutíveis do sistema anterior. Ou seja, isso (o
teorema de Gödel) formaliza a noção intuitiva que ordinariamente temos de que uma mudança
numa determinada estrutura teórica, não é dedutível logicamente, precisando de um agente
externo para ser introduzida. Em outras palavras, não há programas logaritmicamente estrutu-
rados que possam provocar nada parecido com uma mudança conceitual, uma introdução de
um teorema perfeitamente consistente com os outros do sistema mas não dedutível de seus
axiomas. Colocando mais uma vez em novos termos a mesma idéia, não há função
logarítmica (ou qualquer outra) que possa alterar a si mesma, portanto, não há programa que
possa alterar a si mesmo. Aqui temos, como assinalou Penrose (1991), mais uma distinção
fundamental entre o processo mental humano e o processamento computacional.
Vamos ver um exemplo concreto destas questões. Como afirma Barker (1969), outra
maneira de formular, concretamente, a conclusão obtida por Gödel é dizer que qualquer
conjunto de axiomas consistentes (que geram teoremas não-contraditórios) sobre a teoria dos
números naturais, por exemplo, nunca abrangerá, na forma de teoremas, todas as verdades
acerca dos números naturais. Algumas axiomatizações podem abranger mais verdades que
outras e, qualquer que seja a verdade, existe alguma axiomatização (ou poderíamos dizer
conjunto de teoremas) que a contém como teorema; não há, porém, uma axiomatização
consistente capaz de abranger todas as verdades, ou seja, completa. É o matemático e filósofo
da matemática Stephen Barker (1969) que afirma que “esse resultado derruba, por completo, a
63
idéia de que a verdade matemática poderia ser identificada à deduzibilidade a partir de
axiomas” (p.129).
Os pós-modernos festejam o teorema de Gödel por causa principalmente dos termos
pelos quais ficou conhecido, como Teorema da Indeterminação ou Teorema da Incompletude.
Mas interpretações menos inconsistentes das conseqüências do Teorema de Gödel por parte
desses autores argumentam que ele é uma demonstração da incompletude da razão, mesmo no
seu domínio máximo, a matemática, o que seria o anúncio definitivo de sua ruína final. Esta
interpretação decorre do erro crasso em que o Positivismo Lógico mergulhou a filosofia da
ciência, identificando a razão à lógica dedutiva. A identificação da racionalidade com meia
dúzia de operações lógicas é o que possibilita a emergência de projetos como a IA forte, que
acredita ser possível reproduzir a mente humana, de forma perfeita, num supercomputador
logarítmico algum dia. Mas o que não está errado na interpretação pós-moderna do teorema
de Gödel é a afirmação de que ele demonstra a falência da lógica dedutiva como fundamento
último da verdade matemática, e portanto, de toda e qualquer verdade.
Não é fácil para um não-matemático perceber, à primeira vista, as enormes
implicações epistemológicas e ontológicas do teorema de Gödel. Quando afirmamos que a
verdade matemática não pode ser identificada à dedução lógica de axiomas estabelecidos,
arbitrariamente ou não, como verdadeiros, estamos dizendo que, até na matemática, o
conhecimento avança por formulação de hipóteses novas, criativas, que apesar de não-
contraditórias com o sistema anterior (no caso da matemática), não podem ser derivadas dele.
Essa conseqüência, ao invés de colocar dificuldades, corrobora espetacularmente (no domínio
da lógica-matemática, além da ciência empírica) a concepção de razão criativa e
conhecimento conjectural de Popper, assim como também sustenta um modelo de ser humano
criativo e indeterminado, da mente de quem, e somente dela, poderia surgir criativamente, e
não dedutivamente, um novo teorema.
Além disso, se não por demonstração, de onde poderia vir o sentimento de descoberta
e certeza de verdade que acompanha estes novos teoremas? Para um dos maiores matemáticos
vivos, Roger Penrose (1991), ele viria da realidade platônica dos conceitos matemáticos:
“Tudo isso mostra que os procedimentos mentais pelos quais os matemáticos chegam aos
seus julgamentos de verdade não têm simplesmente raízes nos procedimentos de um
sistema formal específico. Vemos a validade da proposição Pk(K) de Gödel embora não a
possamos derivar dos axiomas. O tipo de ‘visão’ que o princípio de reflexão envolve
64
exige uma inspiração matemática que não é resultado de operações puramente
algorítmicas passíveis de codificação num sistema lógico formal.” (p.122)
Como explica Penrose, sem o teorema de Gödel existiriam ainda pessoas a acreditar
que noções intuitivas como “auto-evidência” e “significado” poderiam ser utilizadas uma
única vez, na hora de criar o sistema formal, e que a partir de então poderiam ser dispensadas
de qualquer argumentação matemática clara para a demonstração da verdade. Eles teriam um
papel apenas preliminar na definição da verdade matemática, para a qual depois seriam
perfeitamente dispensáveis. Mas como afirma Penrose (1991):
“O teorema de Gödel mostra que esse ponto de vista não é realmente sustentável numa
filosofia fundamental da matemática. A noção de verdade matemática vai além do
conceito do formalismo. Há alguma coisa de absoluto e divino na verdade matemática. É
disso que trata o platonismo matemático (...). Qualquer sistema formal tem uma qualidade
provisória e ‘humana’. Esses sistemas têm, realmente, papéis muito importantes nas
discussões matemáticas, mas só podem ser um guia parcial (e aproximado) da verdade. A
verdade matemática autêntica vai além das simples construções humanas.” (p.124)
Este parágrafo acima reproduzido de Penrose mostra claramente as conseqüências
realistas, em matemática, do teorema de Gödel. Estas conseqüências, certamente, são
profundamente decepcionantes para as pessoas ávidas em decretar a morte da razão: o retorno
a alguma forma de platonismo, como de fato foi preconizado pelos dois maiores lógico-
matemáticos do século XX, o próprio Gödel (como recorda Penrose, p.125) e Gottlob Frege.
John Searle (2000) concorda com a avaliação de Penrose. Para ele, o Teorema de Gödel
revela o oposto do que gostariam os irracionalistas, de fato sustentando a concepção
racionalista clássica que separa a ontologia (o que existe) da epistemologia (como
conhecemos o que existe). Searle acredita que o Teorema de Gödel resgata a noção de
verdade como correspondência com os fatos, e neste caso aqui, o fato é transcendente.
Demonstrabilidade e verificação, diz Searle (2000), são uma questão de descoberta da
verdade, e não podem ser confundidas com os próprios fatos que descobrimos: Gödel teria
demonstrado de forma conclusiva que a verdade matemática não pode ser identificada com a
demonstrabilidade, ela portanto, é transcendente. Mais uma vez, não encontramos aqui neste
tão citado teorema nenhum beco sem saída da razão (somente da ‘razão’ positivista) ou menos
ainda da ciência moderna: a matemática não é ciência empírica, e qualquer extrapolação do
65
teorema de Gödel para as ciências humanas ou se dá por suas conseqüências para a teoria do
conhecimento (minha linha de argumento aqui) ou de forma puramente metafórica. O teorema
de Gödel não é uma aporia da razão: ele é um triunfo da razão criativa sobre o simulacro de
razão positivista, que é a lógica dedutiva.
2.5.4 A Física Quântica
Aqui, mais ainda do que nas teorias matemáticas acima abordadas, esta tese somente
procurará cumprir o objetivo de descrever as interpretações filosóficas dos resultados
experimentais da física quântica, conforme efetuadas pelos seus principais protagonistas e por
alguns físicos contemporâneos, em cujas obras de divulgação científica se baseia este sub-
item: Roger Penrose (1991), Ilya Prigogine (1999), Fritjof Capra (1990) e Stephen Hawking
(1991). As sumaríssimas descrições de algumas características da física quântica só cumprem
o objetivo de indicar a que tipos de fenômenos se referem essas interpretações, motivos
análogos motivam a sucinta contextualização histórica.
No início do século passado, o surgimento da teoria geral da relatividade criada por
Albert Einstein marcou o ápice da concepção de mundo fornecida pela física clássica. Neste
mundo, tudo se comporta de maneira clara e determinista, governado por equações
matemáticas formuladas com precisão. Existem objetos independentes entre si “lá fora”, e
eles são objetivos, tem uma realidade que independe da forma como preferimos vê-los. É
certo que a teoria geral da relatividade provocou mudanças profundas na forma como nós
entendemos o espaço e o tempo, mas não levou a qualquer questionamento sobre essas
crenças básicas a respeito do universo.
Esse universo-máquina, que começou a ser concebido nos trabalhos filosóficos e
matemáticos de Reneé Descartes e físicos de Isaac Newton, levava a outras conseqüências
necessárias. Aqueles que acreditavam que a “máquina de mundo newtoniana” era a descrição
completa da realidade, e que assumiam com isso portanto uma posição monista (diferente da
cartesiana), eram levados a assumir determinada imagem de ser humano. Eles eram levados a
concluir que nossos corpos e cérebros, uma vez que fazem parte da natureza, também se
comportavam de acordo com as mesmas equações clássicas, precisas e deterministas. Assim,
embora tivéssemos a impressão de que nossas vontades conscientes pudessem influenciar
nosso comportamento, isso não passaria de uma ilusão que tinha algum papel ainda não
conhecido a cumprir na evolução da espécie. Ou seja, não possuiríamos livre-arbítrio.
Desde a época de Newton, seu contemporâneo Gotfried Wilhelm Leibniz já
apresentava argumentos filosóficos que contestavam severamente esse modelo de universo.
66
Mas o fato é que, a despeito de esta ser uma cadeia de raciocínio bastante criticável
filosoficamente, este modelo permaneceu até o início do século XX hegemônico nas ciências
naturais. Agora no entanto, ele já não importa muito mais. Pois se não existe consenso entre
os maiores físicos de nosso tempo sobre qual o significado da física quântica, há consenso
(Penrose, 1991; Prigogine, 1999; Capra, 1990; Hawking, 1991) em torno da idéia de que ela
implica na superação definitiva da imagem de mundo newtoniana.
A partir de algumas descobertas de Einstein sobre a natureza dual da luz (que às vezes
se apresentaria como partícula, às vezes como onda), começou no início do século passado a
maior das aventuras intelectuais da ciência moderna: a investigação experimental das
partículas sub atômicas. Einstein batizou as partículas de luz com a palavra quanta
(posteriormente passaram a ser conhecidas como fótons), o que deu origem ao termo e ao
campo de estudo da física quântica.
Poucos anos antes, o começo do estudo experimental do átomo havia revelado um
mundo surpreendente e insuspeitado para o materialismo newtoniano. Ao invés de partículas
sólidas, impenetráveis, como eram concebidas então, encontrou-se um átomo cheio de
tomos”, constituído por grandes extensões de espaço vazio e um núcleo central
extremamente pequeno, orbitado por elétrons ainda menores. Quando a física quântica se
debruçou sobre as partículas sub-atômicas, progressivamente esse mundo foi se tornando mais
estranho e surpreendente: essas partículas (elétrons, prótons e nêutrons) eram entidades muito
abstratas e duais, e dependendo da forma como as observamos, apresentam-se ora como
partículas e ora como ondas (vide o famoso experimento das duas fendas, descrito em
Penrose, 1991, pág. 256 a 284).
Essa natureza dual da matéria e da luz era incompreensível nos padrões da física
clássica. Parece impossível aceitar que algo possa ser ao mesmo tempo uma partícula,
confinada num pequeno volume, e uma onda que se propaga sobre uma vasta região do
espaço. Essa sensação de paradoxo permaneceu até que se percebeu que os conceitos de
partícula e onda eram construções teóricas inadequadas para descrever fenômenos atômicos.
Um próton, desta forma, não é partícula nem onda, mas pode apresentar aspectos de partícula
em algumas situações e aspectos de onda em outras. O que isso significa, segundo Penrose
(1991,p.256), é que o mundo da natureza “consiste de um ingrediente mais sutil, do que as
palavras ‘partícula’ e ‘onda’ transmitem imagens cuja adequação é apenas parcial”.
Assim, a conclusão chegada é a de que nenhuma partícula sub-atômica possuía
propriedades intrínsecas, independentes do seu meio ambiente. As propriedades que elas
apresentam, dependeriam da situação experimental, do aparelho com que o próton ou elétron
67
são forçados a interagir. Mas isso era muito difícil de se admitir, pois era incompatível com
alguns pressupostos da física clássica (mas observe-se, não da ciência moderna).
Passado o primeiro momento de perplexidade, os maiores físicos do início do século
XX se debruçaram sobre os resultados de experimentos em nível atômico e sub-atômico,
buscando uma teoria coerente da realidade “quântica” e uma teoria unificada do universo.
Além de Max Planck e Albert Einstein, que a isso se dedicou até o fim da vida, nomes como
Niels Bohr, Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger, Paul Adrien, Maurice Dirac dedicaram
suas vidas produtivas à busca desse graal da física, e porque não dizer, de todo conhecimento.
Mas seus esforços foram fracassados, assim como têm sido fracassados os esforços neste
sentido de todos os físicos até a presente data. Programas promissores se dissolvem perante
novas observações, teorias abrangentes se revelam limitadas e parciais, uma após a outra. No
entanto, se houve fracasso no sentido de encontrar essa teoria unificada, novas descobertas,
mais surpreendentes e desconcertantes, foram realizadas, e conduziram a uma teoria coerente
da realidade a nível quântico, elaborada em sua maior parte por Heisenberg e Schrödinger.
Heisenberg formulou aquele que é o princípio mais citado por todos aqueles que se
debruçam sobre os enormes desafios da ciência de nosso tempo: o princípio da incerteza. No
entanto, muitas destas citações são flagrantemente absurdas e não correspondem em nada aos
resultados desta grande realização científica (Penrose, 1991; Sokal & Bricmont, 2001). A
grande realização de Heisenberg foi a de formular de forma matematicamente precisa, os
limites em que as categorias clássicas de “partícula” e “onda” poderiam ser aplicadas a
fenômenos atômicos e sub-atômicos. Como afirma Capra (1990), essas realizações marcam o
limite da imaginação humana (atual) no mundo atômico. Sempre que usamos categorias clás-
sicas, plenamente operativas para níveis moleculares (como posição, velocidade, partícula,
onda), para descrever fenômenos atômicos, constatamos (Capra, 1990) que existem pares
destas categorias que estão inter-relacionados e que não podem ser definidos ao mesmo tempo
de modo preciso. Quanto mais enfatizamos um destes aspectos em nossa descrição, mais o
outro se torna incerto: esse é o princípio da incerteza; princípio esse que expressa de forma
matematicamente precisa essa relação de complementaridade entre as categorias em questão.
O resumo do princípio da incerteza é que não é possível medir a posição e o momento
de uma partícula, ao mesmo tempo. Em outras palavras, quanto mais precisamente medirmos
a posição x de uma partícula sub-atômica, menos exatamente seu momento y pode ser
determinado, e vice-versa. Se a posição x fosse medida com precisão infinita, o momento y se
tornaria completamente incerto. O que muitas vezes não se compreende (ou deliberadamente
se omite) em descrições leigas sobre esse princípio, é que o limite dessa “incerteza”, ou seja, a
68
proporção exata em que o nível de determinação de uma das duas grandezas implica no nível
de indeterminação da outra, é fornecido por essa lei científica. Não estamos tratando pois, de
uma incerteza estrito senso. Estamos tratando sim, de um limite para nossas certezas. E isto,
faz toda a diferença do mundo.
Os físicos contemporâneos não estão de acordo sobre o significado desses resultados
experimentais, exceto talvez, sobre a inadequação completa das interpretações de pós-
modernistas sobre estes fenômenos (Sokal & Bricmont, 2001). Veja o que nos fala Penrose
(1991) sobre algumas das descrições e interpretações correntes sobre estes resultados:
“Em certas descrições, somos levados a acreditar que se trata apenas de alguma
imperfeição inerente ao processo de medição. (...) Em outras descrições, ficamos sabendo
que a incerteza é propriedade da própria partícula e seu movimento tem aleatoriedade
inerente, ou seja, seu comportamento é intrinsecamente imprevisível em nível quântico.
Em outras descrições ainda, somos informados de que uma partícula quântica é algo
incompreensível, à qual os conceitos de posição e momento clássicos são inaplicáveis.
Não me satisfaço com tais descrições. A primeira é um tanto enganosa; a segunda,
certamente errada; a terceira, indevidamente pessimista” (p.275)
Erwin Schrödinger nos ofereceu posteriormente a segunda teoria fundamental da física
quântica, a equação de Schrödinger, que por sua vez também é inadequadamente citada. Esta
equação nos fornece a descrição matemática de como uma função de onda realmente evolui
no tempo, e dá, ainda segundo Penrose (1991), “uma evolução completamente determinista da
função de onda, uma vez especificada essa função, a qualquer momento!” (p.277). Mas o
estranho com a equação de Schrödinger é que ela só é plenamente determinista enquanto
aplicada a níveis quânticos. Com efeito, nestes casos ela nada apresenta do indeterminismo
que se supõe ser uma característica inerente da teoria quântica. Mas sempre que mudamos o
processo em questão e pretendemos realizar uma medição ampliando os efeitos quânticos até
o nível clássico, temos que adotar procedimentos diferentes de cálculo, probabilísticos. É esse
segundo tipo de procedimento que introduz a probabilidade na teoria quântica. Porém
probabilidade, não é ausência de ordem: com efeito, só podemos calcular probabilidades
precisas de eventos (e os cálculos da equação de Schrödinger são precisos), onde há alguma
ordem, ainda não percebida em suas causas últimas, subjacente ao fenômeno. Diz Penrose
(1991) sobre este fenômeno:
69
“Isso é, sem dúvida, muito estranho e misterioso. Mas não é um quadro incompreensível
do mundo. Há muita coisa nele governada por leis muito claras e precisas. Não há, porém,
regra clara, ainda, sobre quando se pode invocar a regra probabilista R em lugar da regra
determinista U” (p.278)
Mas essa é apenas uma, entre muitas opiniões sobre o significado destes fenômenos.
Para Niels Bohr (Capra, 1990; Penrose, 1991; Prigogine, 1999), significado objetivo algum
pode ser atribuído à descrição de mundo apresentada pela teoria quântica. Para ele, o estado
quântico de um sistema não é dotado de realidade física concreta, agindo apenas como
sumário do conhecimento sobre esse sistema. Bohr introduziu então o conceito (já utilizado
aqui) de complementaridade: segundo ele, “partícula” e “onda” são imagens inadequadas e
aproximadas da mesma realidade, que só pode ser descrita adequadamente (por enquanto)
através destas duas descrições.
Para Capra (1990), que compartilha das opiniões de Bohr, a descoberta do aspecto
dual da matéria e do papel fundamental da probabilidade demoliu a noção clássica de objetos
sólidos. A nível sub-atômico, os objetos materiais sólidos da física clássica “dissolvem-se em
padrões ondulatórios de probabilidade” (p.75). Segundo Bohr, a física quântica revela um
modelo de universo que só é compreensível se abandonarmos as crenças mecanicistas e
assumirmos que o universo é um todo indivisível. Veja declaração de Bohr (apud. Capra,
1990, p.75): “As partículas materiais isoladas são abstrações, e suas propriedades são
definíveis e observáveis somente através de sua interação com outros sistemas”.
De outro lado, muito diferente é uma terceira interpretação de todo este estado de
coisas, efetuada pela maior mente de nosso tempo, Albert Einstein. Ele, que jamais pode
aceitar que a teoria quântica, desenvolvida a partir de algumas de suas descobertas, fosse uma
descrição definitiva de uma realidade física (assim como Bohr), passou os últimos anos de sua
vida procurando salvar (ao contrário de Bohr) a imagem de mundo proporcionada pela física
clássica. Sua tese era a das “variáveis ocultas”, que em suma, propunha a existência de
variáveis locais, ainda não conhecidas, que determinariam as funções probabilísticas que
emergiam da teoria quântica e que em breve seriam descobertas, salvando a imagem
determinista e objetiva do universo. No entanto, Einstein falhou em suas tentativas. Como
afirma Penrose (1991), aparentemente o que mais perturbava Einstein era menos a presença
de certo nível de indeterminação na teoria do que a falta de objetividade e verossimilhança da
imagem de mundo que surgia da física quântica. Porém Einstein não podia aceitar lacunas no
modelo determinista clássico de universo, e sua perplexidade perante os resultados
70
desenvolvidos a partir de suas originais descobertas ficou imortalizada nesta famosa
declaração a Max Born (apud. Penrose, p.310):
“A mecânica quântica é muito impressionante. Uma voz interior, porém, diz-me que ela
ainda não é a coisa definitiva. A teoria produz muito, mas quase não nos coloca mais
perto do segredo do Velho. Eu, de qualquer maneira, estou convencido de que Ele não
joga dados.”
Há ainda uma quarta posição, derivada da posição einsteiniana, que supera os
problemas experimentais que refutaram a tese das “variáveis ocultas locais”. Esta foi
apresentada por David Bohm e é uma interpretação, dos fenômenos quânticos, rival da teoria
atual: a teoria das variáveis ocultas não-locais. Bohm prova que, se considerarmos essas
variáveis ocultas como tendo uma existência não localizada no espaço, capaz de afetar partes
do sistema em regiões arbitrariamente distantes, de forma instantânea, podemos salvar uma
imagem de mundo determinista, porém, em prejuízo severo do que consideramos a sua
imagem “objetiva”.
De outro lado, como afirma Penrose (1991), é sua crença que, se estivermos dispostos
a dispensar a imagem “determinista” (enfatiza-se, de tipo laplaceana) de mundo e preservar o
que consideramos ser uma imagem objetiva dele, a teoria quântica padrão será suficiente.
Existem muitas interpretações diferentes para esses resultados, efetivamente,
enigmáticos. Nada há de estabelecido como interpretação hegemônica até então. Talvez por
isso, e por incompreensão de tema tão complexo e difícil, a teoria quântica seja tão mal
utilizada em argumentos pós-modernos. Vamos no entanto, partir para a conclusão deste item,
através da análise das implicações de algumas destas interpretações.
2.5.5 Onde está a crise da ciência?
Não encontramos o “beco sem saída” para a ciência na teoria quântica. Encontramos
becos sem saída para algumas concepções clássicas e materialistas de mundo, não para a
ciência moderna. Ele estaria talvez então na teoria dos fractais, na teoria das estruturas
dissipativas ou na teoria das catástrofes? Ou então é na matemática transfinita, nas lógicas
não-clássicas e nas funções não-lineares que se encontra a ruína da razão e da ciência?
Aparentemente em nenhum destes lugares. As três primeiras teorias não são mais do que
modelos matemáticos construídos para determinados tipos de fenômenos ou formações
geométricas (Penrose, 1991, Prigogine, 1996). A matemática transfinita, formulação original
71
da teoria dos conjuntos, é descoberta de Georg Cantor, muito citada e pouco compreendida,
que se constitui numa das mais esplêndidas construções racionais da humanidade, com sérias
implicações ontológicas semelhantes às do Teorema de Gödel. Já as lógicas “não-clássicas” se
dividem em dois tipos, as que não são, estritamente, não-clássicas, e as que não encontram
acolhida entre lógicos e matemáticos, sendo por eles, rejeitadas. Já as funções não lineares são
por sua vez funções matemáticas perfeitamente racionais que muitas vezes são extrapoladas
indevidamente dos seus domínios, utilizadas em metáforas inadequadas (Sokal & Bricmont,
2001; Penrose, 1991). Não podemos nos dedicar a descrever todas estas questões, o que por si
só, feito de maneira conseqüente, teria que ser obra de uma equipe multidiciplinar dedicada a
um trabalhoso projeto de pesquisa.
Parte desta pesquisa foi realizada com maestria, competência e muito bom humor por
Jean Bricmont e Alan Sokal (2001), este último físico da Universidade de Nova York que se
tornou academicamente célebre em virtude de sua paródia de artigo pós-moderno que foi,
apesar das incríveis absurdos deliberados que defendia, publicada na revista “Social Text”,
um dos órgãos oficiais da cultura pós-moderna.
Apesar de toda a fragilidade das alegações pós-modernas contra a ciência moderna,
não podemos ignorar o fato que, para a maioria dos físicos de nosso tempo, parece certo que
muito da visão de mundo construída até o início do século XX pela ciência moderna estava
profundamente equivocada. Muitos de seus axiomas parecem incompatíveis entre si. Mas,
aquilo com que todos os grandes físicos criadores da teoria quântica parecem concordar, é
com o caráter provisório dessa teoria, que não teria ainda alcançado um estado de maturidade
teórica. Todos os físicos citados no sub-item passado, são dessa opinião. Então, porque não
poderíamos considerar os problemas surgidos da física quântica na visão de mundo como
decorrentes do estado incipiente da mesma?
Mesmo que tomássemos essa descrição da realidade como definitiva (como vimos,
uma opinião como essa seria anti-científica), estaríamos diante de várias interpretações
alternativas deste problema, nenhuma delas no entanto, decretando qualquer espécie de aporia
à ciência moderna (a exceção, no entanto, de interpretações literárias de não-físicos pós-
modernos). Mesmo que abandonemos o determinismo laplaceano, não nos encontraríamos,
segundo a física quântica, diante de um universo caótico, muito pelo contrário. Por outro lado,
a dissolução da imagem de objetividade que nos foi legada pela física clássica, também não
acarretaria a derrocada do realismo.
Sobre essa segunda idéia cabe um esclarecimento maior. Mesmo que chegássemos a
adotar a interpretação da teoria quântica que implica na interferência do observador e da
72
situação experimental (em contrário da teoria das variáveis ocultas) nas propriedades mensu-
radas das partículas sub-atômicas, isso não representa o fim do realismo, uma vez que as
condições experimentais ou a crença do experimentador não determinariam a configuração na
qual a partícula irá aparecer, somente a condicionariam. Ou seja, implicaria em uma influên-
cia no sistema do qual a partícula e o observador fazem parte. Apesar de isto ser incompatível
com alguns pressupostos da física clássica, não é em absoluto incompatível com os pres-
supostos básicos da ciência moderna, que só necessita da condição de independência parcial
entre o objeto e o sujeito para que se dêem as condições de uma investigação deste objeto.
O recente conceito de feedback oriundo da teoria da informação é um instrumento
adequado para se compreender esta questão. O fato de a interação com o sujeito de
investigação alterar o comportamento de determinado objeto, não inviabiliza o seu estudo,
desde que ele se direcione também para as descobertas dos padrões e leis que regem essa
interação mútua. Essa interação, como todo sistema que trabalhe com o feedback negativo de
informação, tenderá para a auto-regulação e o equilíbrio em algum novo patamar. Calcular
essa tendência de limite onde se estabilizará o processo é o objetivo dos sistemas retro-
alimentativos. Exemplo disso é o processo de ajuste de um míssil guiado pelo calor do alvo,
que por sua vez, é móvel e não tripulado (um outro míssil, por exemplo). Disparado em certa
direção original, o míssil corrige sua rota de acordo com as informações vindas do ambiente.
Por sua vez o alvo móvel, também deve corrigir sua rota em função da presença do míssil, o
que provoca a alteração da trajetória do míssil, que provoca a alteração da trajetória do alvo,
em ajustes cada vez menores até que um limite de ajuste adequado é alcançado, o que
geralmente resulta em grande desgraça para o alvo. Poderíamos dizer que um sistema deste
não é regido por leis? Ou que o alvo, ao reagir ao míssil, não é real?
Portanto, a influência (não determinação) do sujeito no comportamento do objeto de
estudo não é um problema para o realismo ontológico, somente para um tipo de imagem que
se faz do mundo objetivo. Esta diferenciação é fundamental para a Psicologia, e será abordada
em função de nossa disciplina no próximo capítulo. Por hora, só cabe efetuar novamente
nossa pergunta: onde está o fim da ciência moderna? Não conseguimos o encontrar em lugar
nenhum da física quântica. De resto, a última observação que se faz fundamental aqui é que,
caso a ciência moderna, tendo sido levada à suas últimas possibilidades (e isto não
aconteceu), tivesse concluído com base em seus resultados que uma de suas crenças básicas
era falsa (o que também não aconteceu), isso não teria sido um resultado (uma refutação)
espetacular? Só a ciência moderna, na sua busca por padrões e leis na natureza, poderia
revelar, se existissem tais, aspectos da realidade que resistem em se enquadrar em descrições
73
deterministas. E isto também, se aconteceu de fato na física quântica, é mais um espetacular
resultado que só a ciência moderna seria capaz de proporcionar à humanidade.
2.6 A Ciência Moderna ainda está viva?
Chegamos então ao termo deste capítulo, neste item procurará dar uma resposta
fundamentada à questão-título. Serão aqui criticadas as principais alegações da epistemologia
pós-moderna contra a posição padrão em Filosofia da Ciência. Por fim, se oferecerá uma
resposta à pergunta de se ainda é possível sustentar que, depois de todos estes
questionamentos e resultados recentes na física, o projeto da ciência moderna – no espírito
concebido pela revolução científica – continua vivo.
2.6.1 Crítica à tese da ciência como vivência acrítica de um paradigma
Quando Kuhn (1991) afirma que os princípios do paradigma vigente são semelhantes
às regras de um jogo, com a diferença de que em um jogo as regras são todas explícitas e seu
caráter meramente convencional e arbitrário é óbvio, enquanto nos paradigmas a coisa não
seria bem assim, julgo que ele incorre primeiro numa distorção e segundo numa contradição
sutil. Primeiro, é a questão da diferença entre contexto de justificação e contexto da
descoberta, pois se no contexto da descoberta a criação das “regras” do paradigma pode ser
arbitrária ou não-racional, elas não se estabelecem por mera convenção, mas porque foram
justificadas no contexto da justificação.
Segundo, uma vez que ele deixa claro que as regras do paradigma seriam não
explícitas e inconscientes, ele está explicitando e tornando conscientes para os cientistas essas
características dos paradigmas, que a partir de agora não deverão mais as apresentar nas suas
regras (Castañon, 2001). Daqui para frente, e efetivamente é o que podemos acompanhar na
prática científica, a questão dos pressupostos filosóficos que subjazem a uma teoria científica
se torna central na ciência moderna. Portanto, uma vez que se estabeleça como dominante o
paradigma kuhniano de Filosofia da Ciência, paradoxalmente deixará de proceder sua
descrição da ciência normal como vivência acrítica de um paradigma, colocando de volta os
parâmetros do paradigma dentro do princípio básico científico do ceticismo metodológico. O
espírito crítico, atributo essencial do empreendimento científico para Popper, se alguma vez
74
esteve ausente na ciência normal em relação a seus pressupostos, com o aparecimento e
acolhimento da teoria de Kuhn não pode estar mais.
2.6.2 Crítica ao princípio da incomensurabilidade dos paradigmas
A segunda crítica se dirige à alegação de incomensurabilidade dos paradigmas. É
contraditório e antiintuitivo afirmar que, mesmo nas mudanças conceituais mais radicais, não
exista algo que permaneça o mesmo. Se não existisse esse algo, os dois paradigmas sequer
poderiam ser reconhecidos como referentes a uma mesma determinada ordem de coisas. Mais
do que isso, não se pode falar em desenvolvimento sem falar em progresso, e progresso é
sempre em direção a algo, na ciência, a verdade. Portanto, uma vez que reconhecemos uma
teoria como preferível a uma outra em relação a uma determinada ordem de coisas, não
podemos deixar de implicitamente reconhecer que a ciência é teleológica. Além do mais, se
um experimento crucial é visto como anomalia num paradigma e evidência comprobatória em
outro, como pode Kuhn afirmar que esses paradigmas são incomensuráveis? Pois não é este
experimento crucial um experimento científico em ambos? Isso, sem dúvida, indica um
conhecimento de fundo comum aos dois paradigmas, capaz portanto, de compará-los.
Na verdade, julgo particularmente que a diferença entre ciência normal e revolução
científica no sentido de Kuhn pode ser expressa em outros e mais claros termos filosóficos. A
ciência normal é o conjunto daqueles argumentos científicos que não envolvem mudança de
pressupostos filosóficos admitidos naquele determinado programa de pesquisa, e que podem,
portanto, ser apresentados em termos de lógica formal. Já a revolução científica poderia ser
definida como a hipótese superior platônica, uma mudança nos pressupostos filosóficos
admitidos por um programa de pesquisa, implicando em argumentos que não podem ser
dedutíveis através de lógica formal, implicando em alguma extensão, uma mudança nos
pressupostos da ciência.
Como define Oliva (1990), a regra suprema clássica do ideal de ciência é a de que só
podemos acatar teorias devidamente respaldadas na ordem dos fatos pertinentes e só devemos
abrir mão das teorias quando conflitam com contra-exemplos. Ciência se pode resumir como
o processo no qual nossas teorias são julgadas por fatos e consistência lógica. Essa regra é o
fundamento de toda e qualquer metodologia científica. Falindo a regra suprema se pode atacar
qualquer outra modalidade de regra. Se não há regras alternativas superiores, o que está em
questão não é a falência do modelo empirista (com fundamento no empírico) de ciência, e sim
a falência da própria pretensão de regulamentar a atividade de produção de conhecimento
chamada ciência. Mas ao que parece estamos ainda longe disso. Como demonstrou Gunnar
75
Andersson (1994), a história da ciência mostra que nas revoluções científicas não há mudan-
ças radicais no significado de todos os conceitos, nem todos são considerados problemáticos
pelos defensores de cada paradigma. Assim, ao comparar paradigmas concorrentes, podemos
utilizar a linguagem com apenas os chamados conceitos observacionais, além de outros con-
ceitos que dependem de teorias, mas não das que estão sendo questionadas. Mesmo na ausên-
cia de uma tradução entre conceitos de diferentes “paradigmas”, podemos comparar teorias
com base em observações de testes não-problemáticos, que utilizam conceitos cujo significa-
do não é diverso nos paradigmas em competição. Como exemplifica Gewandsznajder (1999),
tanto os defensores de Copérnico quanto os de Ptolomeu podiam descrever a trajetória da Lua
de um modo que pudesse ser aceito como não problemático por ambas as partes. Em outras
palavras, a tradução completa não é necessária para a avaliação de teorias ou “paradigmas”.
Kuhn defende com a incomensurabilidade a tese de que houve uma mudança radical
no termo “massa” quando da passagem do paradigma newtoniano para o paradigma
einsteiniano (antes só havia “massa”, agora há diferença entre “massa” e “massa de repouso”)
No entanto, como argumenta Watkins (1984), na teoria de Einstein há uma fórmula que
permite relacionar massa com massa de repouso, o que demonstra que a teoria de Einstein
contém a teoria de Newton com um caso especial no qual um conjunto x de condições são
mantidas constantes. Sendo assim, é claro que as duas teorias podem ser comparadas quanto à
sua abrangência e profundidade. Mais do que uma mudança de significado, o que ocorreu foi
um aumento das categorias semânticas.
2.6.3 Defesa da distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta
A tese da incomensurabilidade dos paradigmas, leva autores como Feyerabend (1989)
a querer abolir a distinção entre proposições observacionais e proposições teóricas. Isso nos
conduz à tese que é central para a assim denominada “epistemologia pós-moderna”: a aboli-
ção da distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta. Para Feyerabend,
essa distinção não tem papel a desempenhar na prática científica. Essa afirmação se baseia na
crença de que, uma vez que tudo vale, o contexto da justificação fica também subjugado pelo
reinado absoluto da criatividade, que pode validar uma teoria com quaisquer critérios que
venha a desenvolver. Dessa forma, a fronteira entre o contexto da criação e descoberta de um
princípio científico, e o contexto de sua prova e validação perante os fatos, fica dissolvido.
Isso vai contra a concepção racionalista clássica de que as idéias capazes de
revolucionar ou ampliar o conhecimento podem surgir de qualquer forma, mas o julgamento
da pertinência delas deve obedecer a critérios definidos: é a diferença entre contexto da
76
descoberta e contexto da validação. Na tradição clássica, a ciência é aquele ponto de vista
referendado pelos fatos e logicamente consistente. Abandona-se uma teoria por sua
discordância com fatos. Mas se os fatos estão condicionados pela estrutura teórica que é
criada no contexto da descoberta, então para Feyerabend essa fronteira está rompida.
Mas isso é um grande erro. O condicionamento da observação de certos fatos à nossa
estrutura teórica, não é idêntico à sua determinação por essa estrutura. A adesão a essa
posição seria a renúncia ao realismo ontológico, ou seja, a crença de que existe um mundo
que é, ao menos em parte, responsável por nossas impressões sensoriais. Em outras palavras,
o que Feyerabend está dizendo é que a realidade, como algo que independe de nossa
consciência, não existe, ou no mínimo não é acessível. Como demonstrou Popper (1975),
nossas observações são condicionadas por nossas teorias, porém não determinadas por elas;
isso é constatado quando nossas expectativas teóricas sobre o mundo são frustradas por
alguma observação. Quando isso acontece, tropeçamos numa realidade que se faz impor,
apesar de nossa vontade e nossas teorias.
Ao indicar que não existem fatos que possam ser descritos independentemente do
esquema teórico reconstitutivo, Feyerabend não fala nada que o racionalismo não defenda
desde o Menom, há dois mil e quinhentos anos. Isso, ao contrário do que ele conclui, não
implica na total relativização idealista dos fatos. O fato de que a realidade objetiva só é
apreendida por meios de esquemas conceituais falhos, não implica a sua inexistência. Ao
tomar-se por verdadeira a asserção de Feyerabend, a atividade científica se revela
absolutamente desprovida de significado. Essa é a real conseqüência de seu Anarquismo
Epistemológico, e não a libertação da ciência.
Mas não são só as contradições entre as nossas observações e a realidade o fundamen-
to da distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta. Essa é a questão da
base empírica, da coerência que nossas teorias tem que manter com nossas observações. Mas
há ainda a questão da consistência interna de nossas hipóteses sobre o mundo entre si: a
necessidade de não-contradição na estrutura de nossas teorias. A questão da consistência
lógica não tem qualquer tipo de dependência em relação ao contexto de descoberta.
O fato de o contexto de justificação e o contexto de descoberta serem ambos funda-
mentais para a atividade científica, não os faz da mesma ordem epistemológica. Pode-se resu-
mir essa posição da seguinte forma: no contexto da descoberta pode-se criar qualquer coisa,
mas o contexto da justificação sempre existirá e será classificatório. Podem-se criar outras
regras básicas de justificação, mas o fato de certas regras serem defasadas, falhas ou novas
não eliminará nunca o fato de que sempre haverá teorias que são enquadradas por elas como
77
condizentes com seus padrões e teorias que não serão assim por elas enquadradas. O nome (o
significante) que no entanto vai ser dado ao conjunto de teorias que se ajustam a essas regras
(se são teorias científicas, mitos, teorias metafísicas), esse sim, depende do contexto histórico.
Então voltamos à filosofia da ciência: quais as regras que vamos escolher para chamar de
ciência e porque? Ou melhor, quais as regras que acharemos que nos guia a representações
melhores da realidade? Mesmo que o critério não seja mais a adequação de nossas teorias ao
mundo que elas pretendem descrever, outro critério aparecerá, e o que nos fará escolher a ele?
Na verdade, como diz Oliva (1990), o anarquismo no fundo parece uma desistência do
trabalho de delimitar fronteiras entre tipos de investigação, da questão da demarcação. Se não
há regras confiáveis de obtenção e justificação de teorias científicas, a coerção e a propaganda
passam a ser tão importantes quanto a consistência e a eventual concordância com os fatos. A
crítica séria à questão da distinção entre contexto de justificação e contexto da descoberta foi
a elaborada por Kuhn, sobre a suposta incomensurabilidade dos paradigmas, a qual já foi
criticada nesta tese. Como exposto em trabalho anterior (Castañon, 2001), o pensamento de
Feyerabend é tão cheio de contradições e aporias, que às vezes leva a pensar quem sobre ele
se debruça que tudo pode não passar de uma mera peça de publicidade. Pode-se concluir sem
dificuldades que as confusões e contradições podem ser fruto até de uma brincadeira com
vistas a provocar as convicções racionalistas do leitor, reforçando um método irracionalista,
isso para não acreditar que podem ser fruto de mera desonestidade intelectual, como se
insinua na introdução de sua obra (1989):
“Tenha-se sempre em mente que as demonstrações e a retórica usada não expressam
profundas convicções minhas. Apenas mostram como é fácil, através de um recurso ao
racional, iludir as pessoas e conduzi-las ao nosso bel-prazer.” (p. 43)
2.6.4 Crítica ao anti-representacionismo
O anti-representacionismo defende, em suma, não haver nem poder haver uma relação
fixa ou intrínseca entre as palavras e o mundo que elas representariam. A linguagem é
somente um convencionalismo. Essa é uma das teses principais do construtivismo social.
Como afirma Smith (1994) essa concepção mergulha no relativismo radical. Causa
surpresa a ele que o construtivismo social não apresente suas posições como “resultado de
patológica saturação social” (op.cit., p.408), mas sim como reivindicações de verdade. Com
indignação, Smith (1995) em outro texto observa que enquanto os pós-modernistas negam
qualquer privilégio epistemológico especial à ciência se comparada à intuição ou ao mito, eles
78
reclamam implicitamente para a crítica pós-moderna um patamar epistemológico no qual
julgam a ciência de uma posição privilegiada, e isso, através da linguagem.
O estudo da linguagem como um convencionalismo não deixa lugar para a realidade.
Se a filosofia abandona o projeto de se “polir” enquanto espelho do mundo como sugeriu
Rorty, então parece condenada a se tornar uma casa de espelhos lingüísticos onde um espelho
reflete palavras para um outro espelho que reflete palavras para outro infinitamente num “jogo
de linguagem” que sempre se referirá a outras palavras mas nunca à coisa em si. Ora, se as
proposições não podem representar a realidade, então elas se referem unicamente a outras
proposições, e assim infinitamente. Prawat (1996) observa que desta maneira Rorty cai em
sua própria armadilha, que é a assunção de que estamos totalmente confinados às palavras.
Em uma crítica semelhante, John Maze (2001) expõe as contradições internas do
Construcionismo Social, correlato psicológico do Construtivismo Social. Estas incluem sua
incapacidade para afirmar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa em virtude de seu anti-
representacionismo e seu argumento de que o objetivismo é inerentemente autoritário. Maze
demonstra a vinculação do Construcionismo Social a Jacques Derrida e ao desconstrucionis-
mo, vinculação por meio da qual o Construcionismo é uma espécie de desconstrucionismo e
os enganos seguem portanto de um no outro. A metateoria do Construcionismo Social, se-
gundo Maze (2001), embora assuma que toda teoria epistemológica coerente deva ser auto-
reflexiva, nega que qualquer assertiva possa ser verdadeira, assim como nega existirem reali-
dades independentes a serem referidas por essas assertivas. No entanto, trata dos discursos
como tendo existência objetiva e assume que sua própria assertiva sobre o discurso é verda-
deira. Assim, o Construcionismo Social se contradiz em suas premissas básicas. Assumindo o
anti-representacionismo do desconstrucionismo, o Construcionismo Social chega ao mesmo
ceticismo desesperado do primeiro. Como afirma Maze (2001, p.393), o aforisma descons-
trucionista de que não existe nada além do texto se revela como a versão idiossincrática de
Derrida para o idealismo clássico. Diz ele: “o reconhecimento da possibilidade e necessidade
de objetividade no discurso não é, como alguns construcionistas reclamam, autoritário. É sim
essencial para uma crítica efetiva do dogma social” (p.393).
Matthews (1998) observa que cada declaração sincera é uma tentativa de dar uma
explicação verdadeira sobre algo assumido como real;
“Quando eu declaro que dirigi meu carro para a loja, eu não estou dirigindo nem
visitando uma representação simbólica ou manifestação simbólica de ‘carro’ ou ‘loja’. Eu
79
estou dirigindo um veículo real de 2000 libras através do tempo e do espaço para um
lugar”. (p.24)
Voltando à questão do realismo ontológico, podemos estabelecer a implicação
necessária entre este e o representacionismo. O coração da questão, é que o realismo
ontológico é assumido por nossa linguagem, sendo na verdade sua própria essência. O ataque
ao representacionismo é na verdade o ataque ao realismo ontológico, à base da metafísica
ocidental. É absolutamente irrelevante o caráter arbitrário da relação entre significante e
significado. Não interessa se nós chamamos a caneta de “caneta”, ou mesmo a ciência de
“ciência”. O que interessa é o conceito abstrato de caneta e o conceito abstrato de ciência. O
realismo ontológico que sustenta a atividade científica, filosófica e mesmo meramente
representacional é baseado na existência real dos conceitos abstratos. Sem este pressuposto,
nem mesmo o entendimento de minhas palavras nesta tese seria possível. Como afirma Searle
(2000), os ataques ao realismo na filosofia pós-moderna não são motivados por argumentos,
porque todos estes são “obviamente débeis”. Para ele, estes ataques são motivados por uma
vontade de potência:
“Nas universidades, principalmente em várias disciplinas das ciências humanas, parte-se
do princípio de que, se um mundo real não existe, então a ciência natural repousa sobre a
mesma base das ciências humanas. Ambas lidam com interpretações sociais, não com
realidades independentes. Partindo desse princípio, formas de pós-modernismo,
desconstrutivismo e assim por diante são desenvolvidas com facilidade, já que foram
completamente desvinculadas das enfadonhas amarras e limites de ter de enfrentar o
mundo real. Se o mundo real é apenas uma invenção – uma interpretação social destinada
a oprimir os elementos marginalizados da sociedade – então vamos nos livrar do mundo
real e construir o mundo do que queremos. Esta, acredito, é a verdadeira força psicológica
em ação por trás do anti-realismo no final do século XX.” (p.27)
Concluindo este subitem, por hora cabe o reconhecimento de que, com a falência do
fisicalismo, é necessário o enfrentamento filosófico da questão da linguagem na ciência.
Embora seja óbvio o caráter convencional da linguagem, sua capacidade de representar, pelo
menos aproximadamente, conceitos e idéias que são intersubjetivas deveria ser óbvia para
qualquer um que conseguisse ler um manual de instruções e aprendesse assim a lidar com um
novo aparelho eletrônico. Encontrar a resposta para essas duas características aparentemente
80
opostas da linguagem, só é possível, como intuiu Penrose (1991), com o retorno a um
realismo ontológico de matriz platônica, não só na matemática, mas também na linguagem.
2.6.5 Crítica à tese forte da Sociologia da Ciência
Na verdade a Sociologia da Ciência pós-moderna, o Construtivismo Social, não
acrescenta novos argumentos à cruzada pós-moderna contra a razão e a ciência. Ela é
essencialmente, como demonstrou Oliva (2003), a aplicação às Ciências Sociais das teses
epistemológicas da “Nova Filosofia da Ciência”, não decorrendo de nenhum tipo de revolução
teórica ou avanço técnico ocorrido dentro da Sociologia.
A novidade aqui é só a nomenclatura e a natureza dos esforços para justificar as teses
de Kuhn e Feyerabend, o que acrescenta uma nova contradição a esse emaranhado de
contradições que temos demonstrado. Aqui, se pretende que a natureza provisória e histórica
da ciência seja provada através de investigações empíricas de caráter sociológico, ou seja,
invocando o poder epistemológico especial da própria ciência.
A primeira e mais conhecida contradição desta posição é a contradição relativista
padrão. Se mesmo nossos raciocínios lógicos, matemáticos e empíricos são manifestações de
hábitos de pensamento histórica e socialmente construídos, não tendo validade para além
daquela cultura, o que dizer do raciocínio que acaba de afirmar essa condição universal e a-
histórica de historicidade? Ele é relativo historicamente, ou afirma algo a respeito de como as
coisas efetivamente são, sempre? Ele pretende descrever adequadamente uma realidade tal
qual ela é? O que este raciocínio é, acho que nunca saberemos, mas seja o que for, é
contraditório e se auto-anula.
A tese forte na sociologia do conhecimento, como afirma Oliva (2003), deve muito ao
fato, conhecido por todo filósofo ou historiador da ciência, de que existe um grande fosso
entre as versões idealizadas do método científico (as prescrições da filosofia da ciência pura),
que são logicamente impecáveis mais distantes da realidade, e a prática rotineira dos
cientistas. A lógica da pesquisa tem a pretensão de estabelecer um ideal normativo, um
modelo de como a ciência deveria ser, enquanto a sociologia se volta para a compreensão de
como a ciência de fato é, ou seja, um fato social em curso. O problema é que a sociologia
deve necessariamente se basear em algum modelo de como a ciência deveria ser, para:
primeiro, reconhecer, entre as infinitas atividades em curso na sociedade, quais são aquelas
que ela vai chamar de ciência e estudar; segundo, utilizar em sua investigação uma
metodologia específica. Mesmo porque, como argumenta Oliva (2003), a sociologia usa, para
fazer sua investigação, uma metodologia construída previamente e não os procedimentos que
81
depois encontra em uso nas comunidades científicas que estuda. E se o sociólogo não utiliza a
metodologia “adequada”, para fazer a pesquisa, qual a que ele emprega? Por isso, é
absolutamente necessário que se dirija ao seu objeto munido de uma concepção de ciência. O
que pode fazer diferença é se essa concepção é baseada numa abordagem descritiva (de como
de fato é praticada) ou prescritiva (de como deveria ser praticada).
Ainda Oliva lembra que caso a Sociologia da Ciência fosse puramente descritiva, ela
não teria como criticar os procedimentos da ciência real, o que é um contra-senso. Seu papel
seria o de descrever e aceitar o modelo praticado de ciência, e não criticá-lo, pois não haveria
ponto de vista legítimo a partir do qual realizar conseqüentemente essa crítica.
Expondo a mesma coisa de outra maneira, o que está em jogo aqui é um contra-senso
flagrante: o que justifica as teorias da sociologia da ciência pós-moderna são seu suposto
status científico, portanto, isso requer uma especificação prévia do que seja ciência; no
entanto, se essa especificação só pode vir por meio de um estudo científico da ciência, como
começar esse estudo? É por isso que a ciência como objeto de estudo, afirma Oliva (2003), é
um caso típico de domínio constituído por fatos pré-interpretados: o estudioso não tem como
se dirigir a ela sem uma pré-concepção dela mesma.
Fica então a pergunta: se a tese forte da Sociologia da Ciência nos parece, pelo menos
à primeira vista, uma versão piorada das teses de Kuhn e Feyerabend (com uma pitada de
Rorty), porque é defendida por parte significativa dos sociólogos contemporâneos? Segundo
um dos maiores filósofos vivos, John Searle (2000) a questão é motivacional:
“Se toda realidade é uma ‘construção social’, então somos nós que estamos no poder, e
não o mundo. A motivação profunda para a negação do realismo não é este ou aquele
argumento, mas uma vontade de potência, um desejo de controle, e um ressentimento
profundo e duradouro. Esse ressentimento tem uma longa história e aumentou no final do
século XX devido a um grande ressentimento e ódio em relação às ciências naturais (...)
isso é alimentado pelos trabalhos de pensadores como Kuhn e Feyerabend (...)” (p.39)
2.6.6 A Ciência Moderna sobrevive ao pós-modernismo e à nova Física?
Esta resposta impõe uma diferenciação anterior a ela. Existem três espécies de críticas
à Ciência Moderna. A primeira espécie de crítica é a externa, a pós-moderna, que não
compartilha dos mesmos pressupostos que a modernidade. Sobre essas críticas, já nos
debruçamos aqui, concluindo por sua inconsistência. A segunda espécie de crítica é interna ao
projeto da modernidade mas externa à própria ciência, ou seja, são as críticas filosóficas como
82
as de Husserl (que abordaremos no próximo capítulo) e Popper. Mas essas críticas não
questionam a possibilidade ou o valor da ciência moderna, só o alcance dela. Elas ressaltam
seus limites, não advogam a causa de sua impossibilidade. A terceira e última espécie de
crítica a que está submetida a ciência moderna é a resultante de seus próprios resultados, e
esse é o tipo mais importante de crítica, pois é absolutamente interna.
Ao abordarmos a primeira espécie de crítica, somos tentados a afirmar que ela não
provoca qualquer impacto real sobre a ciência. A Ciência Moderna está viva nos elevadores
em que entramos hoje, no computador em que digito esta tese, nos seis bilhões de seres
humanos que habitam um planeta onde antes de seu aparecimento não eram capazes de
sobreviver mais que trezentos milhões de habitantes. Como declarou Noam Chomsky (apud.
Sokal & Bricmont, 2001), outro entre os maiores filósofos e cientistas vivos, as ciências
modernas são tesouros culturais que estão entre as mais marcantes conquistas humanas. Como
outros, merece uma relação de respeito e escrúpulo.
O respeito (não submissão) à ciência moderna e às crenças que as fundamentam se
equivalem, na sociedade ocidental, ao respeito que devemos ter para com pais que nos deram
tudo o que tinham. E como todo homem honrado tem que reconhecer, o que a Ciência
Moderna nos legou não foi pouco. Quando abandonam o discurso político pós-moderno e
voltam para as suas casas dirigindo seus carros, será que, efetivamente, os pensadores pós-
modernos acreditam que a descrição que a mecânica newtoniana apresenta não é uma
aproximação da realidade? Não procura descrever um mundo real, que existe de forma
independente deles? E quando estão lendo um livro traduzido qualquer sobre as ciências que
irão atacar, ou simplesmente quando pedem uma pizza pelo telefone, será que realmente
acreditam que a linguagem não é capaz de, ao menos aproximadamente, ser instrumento de
comunicação de conceitos intersubjetivos? Em suas análises, os pós-modernos querem nos
fazer acreditar que sim. Mas eles não estão dispostos a renunciar a um fato muito
significativo: o enorme legado de sucessos e benefícios da Ciência Moderna; motivo pelo
qual, ao que parece, eles não acreditam muito no que defendem.
Como afirma Oliva (1990), historicamente se constata que a insatisfação com
concepções prevalecentes de racionalidade faz emergir o irracionalismo. Pode-se ver
claramente isso acontecendo nos dias atuais: grande parte do combustível retórico do pós-
modernismo relativista se deve à falência do empirismo como epistemologia e ideal de
racionalidade. O problema é que, em meu julgamento, o empirismo sempre foi e sempre será
irracionalista. O ceticismo contemporâneo é todo derivado da destruição do dogma empirista
83
efetuado por David Hume. O que faliu no século passado foi, como já abordado
anteriormente, o simulacro positivista-lógico de racionalidade, não a razão.
O triunfo acadêmico de concepções relativistas ou anarquistas em Epistemologia não
influiria muito no desenvolvimento da ciência moderna numa sociedade pragmática como a
sociedade capitalista. Não implicaria porque não funciona, não propõe nada, não tem impacto
prático nenhum na pesquisa empírica. Mas tem impacto político. E esse impacto é,
claramente, conservador. Como afirmou Stanislav Andreski (apud. Sokal & Bricmont, 2001)
isso acontece porque o pensamento claro e lógico conduz à acumulação e difusão de
conhecimentos, o que mais cedo ou mais tarde solapa a ordem tradicional. Pensamento
confuso, por outro lado, leva a lugar nenhum e pode ser tolerado indefinidamente sem
produzir nenhum impacto no mundo.
Enquanto isso, uma vez que corporações capitalistas só se importam com o que funcio-
na, com o que pode controlar melhor a natureza e aumentar nossa produtividade, os centros de
pesquisa ligados às grandes corporações simplesmente não sofrem ou sofrerão qualquer
impacto real do pensamento pós-moderno. No entanto, nas instituições estatais, eminentemen-
te políticas, o impacto é devastador. Este processo está fazendo o poder das grandes corpora-
ções capitalistas aumentar enormemente em relação às instituições públicas. Isto porque nos
centros de pesquisa governamentais, a vaga pós-moderna já alcançou posição hegemônica no
terceiro mundo, especialmente nos institutos de humanidades. Isso implicará uma progressiva
elitização do saber, com o aumento do poder das oligarquias por trás das grandes corporações
e dos países aos quais elas efetivamente pertencem (ou que pertencem a elas).
A ciência moderna conseguiu se impor, apesar do autoritarismo e irracionalismo de
alguns grupos fundamentalistas e dogmáticos, com a força dos fatos, da clareza teórica e dos
resultados pragmáticos de sua aplicação. Apesar de não ser a única, como queria o
Iluminismo, a ciência é a maior força emancipatória da humanidade, e continuará a ser. Mas
essa ciência libertadora do jugo da ignorância e do autoritarismo é a que permite ao menos
uma aproximação do conhecimento universalmente válido e empiricamente comprovável, que
transcenda as idiossincrasias culturais. É aquele modo de obtenção de conhecimento que
aspira a formular, mediante linguagens rigorosas e apropriadas (e sempre que possível
matemáticas), leis universais que expliquem, ainda que probabilisticamente, fenômenos da
realidade objetiva. Este ideal descrito acima não é meramente um ideal “modernista” de
ciência. É um ideal de conhecimento seguro sobre os fenômenos que permitiu à espécie
humana um amplo aumento de sua liberdade frente às limitações que o meio-ambiente
impunha sobre sua existência na Terra.
84
Assim podemos abordar uma espécie de crítica de segunda espécie. Essa é a crítica de
Husserl (1966), quanto ao alcance da ciência, que abordaremos no próximo capítulo, e que
tem por parte de muitos dos herdeiros da fenomenologia uma interpretação equivocada. A
crítica é que a Ciência Moderna fracassaria na tentativa de capturar o significado da
experiência individual e do mundo da vida. Husserl só lembrava o fato de que isto não é
possível à ciência, portanto seu poder cultural deve ser limitado, como suas possibilidades
são. Seus seguidores transformaram isso numa acusação de fracasso. Mas não se pode acusar
alguma coisa de fracassar em algo que nunca foi seu objetivo, e para o qual não foi feita.
O erro filosófico que está por trás desta interpretação tem longa tradição. Ele se trata
da confusão entre o domínio da ciência e o domínio da filosofia. O domínio da ciência é o
campo das causas eficientes. O campo das causas finais, da teleologia, é domínio da Filosofia.
A distinção de Dilthey entre ciências naturais e humanas (Naturwissenschaften e
Geisteswissenschaften), o contraste metodológico de Max Weber entre explicação e
compreensão, entre causas e razões, separa no meu julgamento não o campo entre dois tipos
de ciência, mas sim o campo onde a ciência pode atuar do campo que é domínio exclusivo da
Filosofia. O sentido, não é questão da ciência. É questão da Filosofia.
Aqui nos deparamos com mais um limite imposto, não à ciência moderna, mas às
pretensões positivistas sobre a ciência moderna: o limite de seu domínio, de seu campo
explicativo. Motivos, valores, razões, criatividade, liberdade, sentido, justiça, não são
conceitos que possam receber tratamento investigativo adequado (embora possam receber de
algum tipo, indireto e limitado) pela ciência moderna. O outro limite, não é o de domínio, mas
o de alcance no seu próprio domínio, que é o das causas eficientes.
Assim, chegamos à terceira espécie de crítica à ciência moderna, que é a que surge dos
resultados da física (e somente da física) contemporânea. O mundo estranho e quase
inacreditável que todos aqueles que tentam compreender algo de física quântica são levados a
observar, como que por uma fresta de porta, leva mesmo o mais convicto dos defensores do
determinismo laplaceano à perplexidade completa. Mas, ainda assim, não podemos esquecer
em nenhum momento que quem descobriu essa fresta, quem nos conduziu pela mão até ela,
foi a própria ciência moderna.
Ilya Prigogine (1996), eminente físico vencedor do prêmio Nobel de química, escreveu
em 1996 um livro muito influente no atual debate sobre as mudanças na ciência, intitulado
caracteristicamente “O Fim das Certezas”. Afirma ele na introdução desta obra que:
85
“Essa física tradicional unia conhecimento completo e certeza: desde que fossem dadas
condições iniciais apropriadas, elas garantiam a previsibilidade do futuro e a
possibilidade de retrodizer o passado. Desde que a instabilidade é incorporada, a
significação das leis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimem
possibilidades.” (p.12)
Caso Prigogine esteja certo, e a teoria quântica atual também, o hiper-determinismo de
Laplace está refutado pelos atuais resultados da Física. Assim como Popper (1975b),
Prigogine não identifica ciência e certeza, nem ciência e determinismo. Isso não marca no
entanto, para nenhum dos dois, o fim da ciência moderna. Isso é somente o fim de uma forma
de encará-la, e de encarar o universo que ela investiga: o fim do determinismo laplaceano.
Estamos, para Prigogine (assim como para Popper), no começo da aventura da ciência, da
“paixão de inteligibilidade” que caracteriza o mundo ocidental. Esse começo, é o “ponto de
partida de uma nova racionalidade que não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e
ignorância” (Prigogine, 1996, p.14).
A ciência moderna não depende da crença no determinismo laplaceano para
sobreviver, ela depende, isso sim, da crença na regularidade do objeto, ou seja, na crença de
que, em ao menos algum de seus aspectos, o objeto seja estável, se submeta a padrões.
Podemos por exemplo imaginar perfeitamente uma cadeira “mágica”, na qual a cor variasse
de maneira não-determinista caótica, mas na qual também se mantivessem estáveis algumas
de suas características, como a forma em que se apresenta. Poderíamos estabelecer
conhecimento sobre a forma da cadeira e suas causas, mas nunca sobre a cor da cadeira e suas
causas. Mas isso também não implica necessariamente a ininteligibilidade (voltaremos a isso
no quinto capítulo) da cor da cadeira, e sim, que esse aspecto seria inabordável pela ciência
moderna, a não ser, em seu estabelecimento como fenômeno não-determinista. Seria o
fracasso da ciência em estabelecer um padrão de causas para um determinado fenômeno que
estabeleceria, cientificamente, o fato de que ele não se submete a este tipo de análise
determinista, causal. Mesmo que esse estabelecimento (o de fenômeno não-determinista)
fosse, como tudo em ciência, provisório e conjectural.
Assim, mesmo a atual derrota, não do determinismo, mas do determinismo absoluto de
Laplace na ciência moderna, pode ser provisório. Luminares do pensamento humano como
Neils Bohr, Werner Heisenberg, Albert Einstein e Stephen Hawking acreditam que uma teoria
nova e mais abrangente vai unificar a física quântica à teoria da relatividade e dissolver como
anomalias superadas as surpreendentes e estarrecedoras observações e conclusões teóricas a
86
que fomos levados pela física quântica. Já foi citada aqui a correspondência de Einstein em
que ele afirma que sua resistência a considerar a física quântica como descrição apropriada da
realidade vinha do fato dele se recusar a rejeitar a crença de que “Ele não joga dados”.
Stephen Hawking (1991) por sua vez, que é talvez o maior físico vivo, acredita ainda que
estamos próximos do fim da aventura científica, prestes a decifrar o “pensamento de Deus”.
No entanto, a posição defendida nesta tese, com base em novos argumentos saídos da
Psicologia, é que Prigogine, Penrose e Popper estavam certos. Estamos no começo de uma
busca sem fim, onde o universo não poderá mais ser encarado como uma máquina
determinista laplaceana, mas que também não se torna com isso um universo sem quaisquer
padrões ou leis, onde imperaria o puro caos. A verdade é mais fantasticamente elaborada que
isso, e como dizia Albert Einstein, “sutil é o Senhor, mas não malicioso...”
De uma forma ou de outra, com uma ou outra das posições vistas agora, resta uma cer-
teza. Para seus próprios atores, seus protagonistas, assim como para a população leiga, a ciên-
cia moderna está mais viva do que nunca, sabe mais do que nunca, e foi mais longe do que o
mais megalômano dos sonhos humanos de quatrocentos anos atrás, jamais sonhou chegar.
E enquanto houver pessoas que acreditam no realismo crítico, na universalidade dos
princípios lógicos, na regularidade de aspectos da natureza e na capacidade representativa da
linguagem; enquanto algumas dessas pessoas, por sua vez, testarem suas teorias consistentes
sobre a realidade através de observações matematicamente controladas e mensuradas, teremos
ciência moderna, e com ela, sucesso no avanço de nossas concepções sobre o universo.
87
3
PSICOLOGIA MODERNA E IMPASSE ENDÊMICO
Este capítulo cumpre o objetivo de descrever os problemas particulares da Psicologia
em sua busca pelo estatuto de ciência moderna. Primeiro analisa a relação entre Psicologia e
Ontologia, centrada na questão de seu objeto de estudo. Depois investiga as relações especiais
da Psicologia com a Epistemologia, discutindo a questão da possibilidade de investigação do
objeto psicológico. No terceiro item, faremos uma resumida e direcionada recapitulação da
história de tentativas frustradas da Psicologia em atingir o estatuto de ciência moderna, do
Estruturalismo à Psicanálise. A seguir, se definirão as posições ontológicas, epistemológicas e
metodológicas do Behaviorismo, abordagem da Psicologia que foi a pioneira na constituição
de uma Psicologia legitimamente integrada aos preceitos da modernidade. No quinto item,
serão analisadas as violentas reações ao Behaviorismo vindas da Psicologia Humanista e da
Fenomenologia, questionamentos estes ainda inseridos de uma forma ou de outra no projeto
filosófico geral da modernidade, e que levantaram graves questões à possibilidade de a
Psicologia vir a se constituir enquanto disciplina científica. Por fim, no último item, se
procura elaborar uma sistematização dos problemas filosóficos e metodológicos levantados ao
longo dos capítulos dois e três que precisam ser enfrentados para que se responda à segunda
pergunta desta tese, que é se pode a Psicologia se constituir como ciência moderna.
3.1. Psicologia e Ontologia
Este item pretende abordar questões fundamentais da Psicologia que dependem direta-
mente de seus fundamentos ontológicos. Qualquer abordagem em Psicologia assume, explíci-
88
ta ou implicitamente, crenças acerca da natureza de seu objeto de estudo que determinam seu
desenvolvimento como programa de pesquisa (Lakatos, 1974). Portanto, este item cumpre o
objetivo de explicitar que tipos de escolhas metafísicas são essas, para que ao investigarmos
posteriormente a Psicologia Cognitiva, seus posicionamentos particulares possam se tornar
mais claros, assim como suas implicações e relações com os das demais abordagens.
A Ontologia, enquanto ciência do ser, é o estudo da essência das coisas, daquilo que
elas são em si mesmas, apesar das aparências que possam ter e das mudanças que elas possam
sofrer. Poderíamos utilizar aqui também o termo, mais geral, metafísica, para designar o tipo
de reflexão que desenvolveremos. Porém, o termo ontologia, que etimologicamente significa
ciência do, teoria racional do (logia) ser (onto), parece mais adequado.
Antes dos possíveis questionamentos que possam surgir quanto à possibilidade da
realização de tais estudos depois de Kant, deve-se esclarecer que podemos encarar a ontologia
como o estudo das condições necessárias para o conhecimento do objeto, ou seja, a
determinação daquelas características, mesmo que em caráter conjetural, sem as quais o
estudo dos objetos das outras ciências seria impossível. Assim, poderíamos entender a
importância da reflexão ontológica sobre os fundamentos da ciência definindo a ontologia
ainda como o estudo dos objetos de estudo das outras ciências.
Já vai longe o tempo da ingenuidade cientificista que julgava ser possível e desejável
banir a Ontologia, a Epistemologia, e conseqüentemente a Psicologia Filosófica para o campo
da arqueologia do pensamento. Essa ingenuidade intelectual característica dos herdeiros do
Positivismo na Psicologia se estendia, durante o reinado do Positivismo Lógico, por todos os
demais campos da ciência. Hoje, a Psicologia é reconhecida como disciplina das ciências
empíricas, e não como disciplina filosófica. No entanto, assim como em todos os outros
campos da ciência, a Filosofia assume um lugar privilegiado e insubstituível em relação à
ciência psicológica: o lugar de sua própria definição e avaliação.
Neste item portanto abordaremos cinco questões. A primeira é a questão da essência
do conhecimento. A segunda a questão das posições ontológicas assumidas pela ciência, sem
as quais sua existência seria impossível. A terceira é a questão específica do objeto de estudo
da Psicologia, a quarta, a questão dos vários tipos de reducionismo presentes em nossa
disciplina e suas implicações com seu maior problema metafísico herdado da filosofia, a
questão da relação mente-corpo.
89
3.1.1 A questão da essência do conhecimento
O conhecimento representa uma relação entre um sujeito e um objeto, e é nessa
relação que consiste o verdadeiro problema do conhecimento. Ordinariamente, podemos
pensar no conhecimento como uma determinação do sujeito pelo objeto. Mas também
poderíamos pensar no conhecimento como uma determinação em sentido inverso, do objeto
pelo sujeito. Desta forma, coloca-se a questão primeva do conhecimento humano: Qual é o
fator determinante no mesmo, o sujeito ou o objeto? Antes de transportar esta reflexão para a
Psicologia, exporemos sucintamente as principais posições gerais dentro da Ontologia, que se
dividem em duas gerais.
3.1.1.1 Realismo
Existem as mais diversas acepções para o termo realismo, que às vezes chegam a ser
bastante diferenciadas. Portanto aqui, ao invés de buscar um sistema de referência baseado em
definições de autores e filósofos, estabeleceremos definições próprias que serão usadas nesta
tese. Já exposto sucintamente aqui, o que podemos dizer de universal sobre as definições de
realismo é que elas se referem aquelas posições que admitem a existência de uma realidade
objetiva, independente da consciência. Ou seja, existe o ser independente do sujeito. O
realismo, em algumas de suas versões, pode admitir a influência do sujeito sobre os objetos da
realidade objetiva, mas não a criação por ele destes últimos: pelo menos em algum de seus
aspectos, o objeto que estamos investigando deve existir de forma independente do sujeito
que dele toma consciência.
Vamos dividir aqui em pelo menos três as posições acerca do realismo. A primeira é o
realismo ingênuo, posição há muito abandonada na história da filosofia. Krüger (1984)
classifica de realismo ingênuo aquele que sustenta que os objetos correspondem exatamente
aos conteúdos da percepção, muitas vezes sequer distinguindo o próprio conteúdo da
percepção do objeto em si. Psicólogos influenciados pelo pós-modernismo (Von Foerster,
1984; Von Glasersfeld, 1984; Gergen, 1989) denominam essa posição objetivismo, e a
atribuem à ciência moderna. No entanto, esta acusação é falsa. Não será essa acepção do
termo “objetivismo” que adotaremos aqui, nem se pode sustentar seriamente que o realismo
ingênuo seja defendido por qualquer filósofo ou cientista nos dias de hoje. O realismo
ingênuo é uma posição pré-metafísica do problema da essência do conhecimento.
Uma segunda posição, derivada diretamente desta, é a que denominaremos realismo
natural ou, aí sim, objetivismo, e que encontra muitos defensores ainda hoje, apesar dos
problemas filosóficos que acarreta. Para o realismo natural, nossas percepções do mundo
90
empírico são provocadas unicamente pelos objetos que delas são alvo, e apesar de não
corresponderem exatamente aos objetos que a teriam provocado (a cor vermelha é percebida
por nós, mas não está no objeto, só é provocada por ele), não tem interferência de nossas
cognições: nossas percepções são unicamente frutos da relação do objeto com nosso sistema
nervoso, sem interferência de nossa mente. Não se pode deixar de observar que até hoje
existem autores que defendem o realismo natural ou objetivismo, e que parecem
implicitamente admitir a tese lockeana de que só as qualidades secundárias (cor, odor, sabor,
etc.) não pertencem às próprias coisas, mas as qualidades primárias (as propriedades espaciais
e temporais) sim. Essa posição, depois da teoria geral da relatividade, passou a ser, ao menos,
dissimulada por aqueles que nela acreditam. Não é característica da espécie de objetivismo
que estamos definindo aqui, e pode-se dizer seguramente que, hoje, fisicamente e
filosoficamente, esta é uma tese indefensável.
Apesar de saber que os atributos que irreflexivamente atribuímos aos objetos tem
fundamento nas formas a priori de nosso sistema nervoso, a posição que estamos denominan-
do até aqui de realismo natural, acredita que estes atributos são objetiva e diretamente
determinados por estes objetos em nossa consciência. O construtivismo contemporâneo, em
suas versões realistas ou relativistas, passou a denominar essa posição objetivismo, utilizando
este termo em uma acepção diversa da que tradicionalmente era utilizado em teoria do
conhecimento. A partir deste momento, aceitaremos nesta tese o novo significado para este
termo, e também denominaremos objetivista a posição característica do realismo natural. O
objetivismo contemporâneo não têm em absoluto a forma frágil das posições realistas
ingênuas da filosofia antiga. Mesmo assim, permanece a crença (advogada pelo Positivismo
Lógico por exemplo) em que nossas representações mentais são diretamente provocadas por
objetos exteriores à mente, sem interferência de nossas teorias sobre o mundo. Essa é uma
característica da posição empirista em matéria de origem do conhecimento. O Positivismo
Lógico tem uma posição aparentemente ambígua sobre a questão do realismo. Apesar de o
fisicalismo apontar para crenças de base estritamente materialistas e objetivistas, a rejeição da
metafísica defendida por esta escola faz com que ela se recuse a aceitar explicitamente a tese
metafísica de que a realidade exterior a nossa consciência determina seu conteúdo (como
vimos em Schlick, 1975). No entanto, como todo o Positivismo Lógico constrói seu edifício
teórico como se o objetivismo fosse uma realidade, passaremos a considerar nesta tese esta
posição como virtualmente objetivista. Observemos que o que se encontra por trás deste tipo
de realismo é uma visão passiva do sujeito no processo de conhecimento, ou ao menos no
processo de percepção, que de resto é típica da tradição empirista.
91
A terceira distinção básica entre as posições realistas que adotaremos aqui é o que
denominaremos realismo crítico. Para este último, não se pode afirmar que pertençam ou não
ao objeto as propriedades dos conteúdos da percepção (cor, sabor, cheiro, som, extensão), mas
sim, à consciência. Essas qualidades seriam reações de nossa consciência que dependem de
sua organização particular, mas que no entanto são reações a algo que precisa ser objetivo
para ter causado estas reações, e causá-las com estabilidade. A essas “reações” dá-se o nome
de representações. Em suma, elas tem um fundamento objetivo, e daí o realismo da posição
que, segundo Johannes Hessen (1978), acredita que “O fato do sangue nos parecer vermelho
e o açúcar doce tem de estar fundado na natureza destes objetos” (p. 95).
Mais do que isso, o realismo crítico baseia-se no princípio de que a relação de
conhecimento não modifica completamente os seres entre os quais se estabelece, restando
algo nestes seres que não está submetido à mudança e que não se esgota nesta relação,
subsistindo para além dela. Um dos principais nomes do realismo crítico contemporâneo é,
novamente, Karl Popper. Em sua obra “Conhecimento Objetivo” (1975b), ele defende o
caráter objetivo (intersubjetivo e real, referente a algo exterior à nossa consciência) do
conhecimento científico. Para ele, o fundamento da objetividade de nosso conhecimento não
seria a determinação de nossa mente pelos objetos do mundo exterior, através dos sentidos,
mas sim, a existência do erro. O vetor do conhecimento se altera: são nossas teorias sobre o
mundo que guiam o que destacamos da enorme massa de percepções que está disponível a
nós, conduzindo nossas observações, mas não as determinando. Isso porque, apesar de nossas
expectativas teóricas sobre o mundo condicionarem muito do que vemos nele, elas sempre
podem ser frustradas por alguma observação que nos revela algo que nunca esperaríamos
observar. O erro, acredita Popper, é a prova subjetiva e racional da existência do mundo
exterior. Uma vez que não existe observação que não se faça à luz de uma teoria, a defesa de
um conhecimento objetivo se dá através da constatação que nossas expectativas teóricas, ou
seja, nossas expectativas sobre o que vamos observar na natureza, nem sempre se realizam.
Caso nossas teorias sobre a realidade a determinassem, jamais teríamos frustradas quaisquer
expectativas. Continuaríamos portanto eternamente, afirma Popper, com o mesmo
conhecimento com o qual viemos ao mundo. Mas quando esperamos algo da realidade que
não acontece, ou não esperamos algo que acontece, tropeçamos numa realidade que se impõe
à nossa vontade e às nossas expectativas, demonstrando assim sua existência para além de
nossa mente. O erro, para Popper, é a nossa porta de acesso à realidade objetiva. Assim, o
realismo crítico é a crença em que construímos nossas representações do objeto a partir de
92
nossa razão, porém estas representações vão sendo progressivamente moldadas por uma
realidade objetiva que as transcende.
Estas são as posições realistas que definiremos aqui. Mas cabe ainda citar um
argumento em defesa do realismo que não se pode reduzir estritamente à ordem da
racionalidade, e que tem sobrevivido à crítica filosófica ao longo do tempo. Este é o que nos é
oferecido pela tese conhecida pelo nome de realismo volitivo. Entre os filósofos que defende-
ram essa posição, estão teóricos tão diversos como Maine de Biran, Arthur Schopenhauer,
Wilhelm Dilthey e Max Scheler. Para eles, o fundamento de nossa crença numa realidade
externa a nossa consciência é a oposição que ela oferece à nossa vontade. Caso nossa vontade
jamais encontrasse resistência, não teríamos motivos para acreditar em nada exterior à nossa
consciência. Neste caso, como colocado anteriormente, não nos encontramos diante de um
argumento puramente racional para o realismo, mas de um argumento que certamente revela
parte da origem de nossa poderosa crença afetiva na existência de um mundo externo a nós.
3.1.1.2 Idealismo
O idealismo sustenta a tese de que não há coisas reais, ou seja, coisas que independam
da consciência. Assim, as coisas não são mais do que conteúdos da consciência. Sua
existência consiste em sua apercepção por nossa consciência, ou seja, em se tornarem
conteúdos desta última. A consciência portanto é a única coisa real.
O idealismo contemporâneo é conseqüência direta da obra de Immanuel Kant. Ele
deriva da posição kantiana acerca da essência do conhecimento conhecida pelo nome de
fenomenalismo. O fenomenalismo é mais uma das sínteses tentadas na monumental tentativa
de síntese filosófica que é o significado do conjunto obra de Kant. Segundo esta teoria, não
conhecemos as coisas em si, mas somente como se nos apresentam, ou seja, somente
conhecemos o fenômeno. Existe realidade objetiva, mas não podemos conhecer sua essência.
Na verdade, o objetivismo e o realismo crítico também sustentam esta tese. O
fenomenalismo se distingue do primeiro por negar que são os objetos exteriores a mente que
determinam seu conteúdo, mesmo que somente suas próprias representações. Já em relação ao
realismo crítico, a distinção é a negação por parte do fenomenalismo de que qualquer tipo de
representação que temos sobre a realidade externa seja resultado de uma interação com a
coisa-em-si. Para Kant (1974), não só as formas de nossa sensibilidade, mas também os
conceitos supremos do pensamento são formas a priori de nossa consciência: quando
aplicamos aos fenômenos os conceitos de substância, causalidade, possibilidade e
necessidade; estamos aplicando formas e funções a priori do entendimento que funcionam
93
independentemente de nossa vontade. Assim, para o fenomenalismo, quando tratamos de
conhecer as coisas, introduzimo-las, por assim dizer, nas formas da consciência. Não temos
diante de nós nunca a coisa em si, mas somente a coisa como se nos apresenta, ou seja, o
fenômeno. Hessen (1978) resume dessa forma a posição fenomenalista:
“1. A coisa em si é incognoscível. 2. O nosso conhecimento permanece limitado ao
mundo fenomênico. 3. Este surge em nossa consciência porque ordenamos e elaboramos
o material sensível em relação às formas a priori da intuição e do entendimento.” (p. 111)
Mas aqui podemos entrever a impossibilidade filosófica da posição fenomenalista.
Quando ela advoga a completa incognoscibilidade da essência do objeto ou da coisa-em-si,
torna o único objeto de pesquisa possível as formas a priori da consciência. Portanto, não
resta nenhuma porta na estrutura de pressupostos kantianos para o estabelecimento racional da
existência objetiva da coisa-em-si. Mais do que isso, as sensações representam para Kant um
puro caos. Não ofereceriam nenhuma ordem: toda ordem viria da consciência. No entanto esta
posição é totalmente insustentável. Se o material das sensações carece de toda a determinação
e características estáveis, como utilizamos ora a categoria de substância, ora a categoria de
causalidade, ora outra qualquer para ordenar este material? É como afirma com propriedade
Hessen (1978): “No que é dado deve existir um fundamento objetivo que condicione o
emprego de uma categoria determinada. Portanto o que é dado não pode carecer de toda a
determinação” (p.115). Se a coisa-em-si apresenta certas determinações, há no que é
objetivamente dado indicações acerca da coisa-em-si, ou seja, das propriedades objetivas do
objeto. É claro que estas determinações não precisam corresponder exatamente às nossas
formas mentais, porém, o princípio da completa incognoscibilidade da coisa-em-si revela-se
inconsistente, só deixando como alternativa coerente para aqueles que admitem a teoria da
relação sujeito-objeto kantiana a adoção de uma posição estritamente idealista.
Como se afirmou antes, o idealismo sustenta a tese de que não existe nada além da
consciência e seus conteúdos. Esta é a conseqüência necessária da tese da completa
inacessibilidade da coisa-em-si, que determina que as únicas coisas das quais podemos estar
certos de sua existência são as idéias, os conteúdos de nossa consciência. As coisas não são,
portanto, mais do que conteúdos da consciência, pois não há qualquer acesso à coisa-em-si.
Antes de Kant esta posição já havia sido desenvolvida, por caminho filosófico diverso,
por um empirista, o bispo-filósofo inglês George Berkeley, naquilo que conhecemos hoje pelo
nome de idealismo moderno. Há uma outra variação da posição idealista no idealismo lógico,
94
defendido pelo neokantismo. Este prega que o objeto da consciência não existe nem em nós
(idealismo tradicional) nem fora de nós (realismo), ele precisa ser concebido pelo pensamen-
to. Para o idealista lógico o objeto não é uma coisa real nem um conteúdo da consciência pura
e simples, mas um conceito, um ser lógico-ideal. O que podemos portanto resumir da posição
idealista em qualquer de suas manifestações, é que para o idealismo o objeto do conhecimento
não é algo real, e sim algo ideal. Podemos ainda, não sem protesto de alguns fenomenólogos,
classificar a posição de Edmund Husserl, já abordada nesta tese, como idealista. A
justificativa para isso, é que Husserl (1973) considera as essências, que são entes ideais, os
únicos objetos de conhecimento, e a existência do mundo exterior como algo a ser colocado
“entre parênteses”. Em virtude dessa ressalva da redução fenomenológica, muitos defende-
riam a posição de que a fenomenologia de Husserl não é idealista, pois as essências tem
existência real e o mundo externo não é negado. Mas o certo é que só as posições ontológicas
posteriores de Nicolai Hartmann e Max Scheler levaram a fenomenologia para uma posição
estritamente realista, de uma espécie particular de realismo crítico (Abbagnano, 2003).
3.1.2 Pressupostos ontológicos básicos da ciência moderna
Não cabe neste trabalho, obviamente, qualquer tentativa de resolução da questão
ontológica em filosofia. O objetivo desta sucinta explanação é explicitar a íntima relação entre
Ontologia e ciência moderna, e assim, necessariamente, entre Ontologia e Psicologia. Existem
pressupostos ontológicos indispensáveis para a atividade científica, os quais, explicitamente
ou não, são assumidos pela ciência moderna. Portanto, o que pretendo definir aqui é a
essência da questão ontológica que subjaz o exercício da ciência moderna, definindo com isso
também, aquelas posições ontológicas que são incompatíveis com a atividade científica.
3.1.2.1 A necessidade do Realismo
Desde já então se descarta a concepção idealista para a prática científica empírica, uma
vez que se não há coisas reais, ou seja, coisas que independam da consciência; se as coisas
não são mais do que conteúdos da consciência individual e não existem fora dela, então não
podem ser pesquisadas experimentalmente ou objetivamente. Só poderiam ser pesquisadas
filosoficamente enquanto entes lógico-ideais ou meras criações psíquicas, e unicamente pela
própria consciência que as produziu. Se não há um objeto que independa do sujeito, o único
objeto de estudo possível é o próprio sujeito em sua individualidade. Estudo esse que não é
passível de experimentação ou demonstração. Observe-se que este veto é somente em relação
as ciências empíricas: a lógica e a matemática são ciências formais que independem da
95
existência real de um mundo exterior a nossa consciência para se constituírem racionalmente.
A Psicologia, em tese, como ciência da consciência, poderia prescindir do realismo para
existir, mas não para existir enquanto ciência moderna. Constituída desta forma (com
pressuposto idealista), a Psicologia não seria nada além de uma fenomenologia, como queria
Husserl. Mas estaria limitada em suas pretensões de generalização do conhecimento, para a
qual teria que pressupor uma espécie de realismo, ou seja, a existência de processos
psicológicos reais na mente de outros sujeitos, além do princípio da regularidade do objeto.
Pressupondo isto, já teria deixado de ser idealista. A ciência empírica pressupõe sempre
alguma espécie de realismo. De mais a mais, o objetivo da ciência moderna é o conhecimento
sobre as leis que regem um mundo que, de antemão, se aceita como real e objetivo. John
Searle (2000) expressa muito bem porque acha que há algo de muito errado em se debater esta
questão hoje em dia:
“...o realismo externo não é uma teoria. O fato de existir um mundo lá fora não é uma
opinião que eu tenho. Pelo contrário, trata-se da estrutura necessária para que seja até
possível defender opiniões ou teorias sobre coisas como os movimentos planetários.
Quando se debate os méritos de uma teoria, como a teoria heliocêntrica do sistema solar,
deve-se partir do pressuposto de que existe uma maneira de como as coisas realmente são.
De outro modo, o debate não pode começar.” (2000, p.38)
Assim, como já foi exposto neste trabalho, a mais básica das crenças que sustentam a
atividade científica é a de que há algo a ser pesquisado. Ou seja, a atividade de pesquisa
pressupõe antes de mais nada a existência objetiva do objeto que está sendo pesquisado, mes-
mo que os processos ou estados desse objeto sejam inacessíveis à observação direta humana
(como amor, instinto ou pensamento). Assim, o realismo ontológico é pressuposto fundamen-
tal da ciência moderna, ela já parte desta assunção sobre a realidade, a qual não coloca (e nem
cabe a ela colocar) em questão. No entanto, o objetivismo, o realismo natural, parece tese que,
embora compatível com a atividade científica, é bastante frágil filosoficamente, encontrando
obstáculos mesmo no seio dos próprios resultados da física (Vide 2.6.4). Só resta portanto à
ciência moderna a porta do realismo crítico, a forma contemporaneamente aceita de realismo.
3.1.2.2 Determinismo é o mesmo que Regularidade?
Outro pressuposto ontológico, ou seja, um pressuposto acerca da natureza do ser, da
natureza do objeto a ser investigado, é necessário à atividade científica. Este é o da presumida
96
ordem com que se manifestam fenômenos no mundo. Para descobrirmos leis acerca das
manifestações de um objeto, é necessário que ele se manifeste de acordo com leis. Em outras
palavras, é necessário que ele se manifeste de forma regular, para que se obtenham
explicações científicas, ou seja, para que se formulem hipóteses causais.
A ciência moderna pode, ao contrário do que afirmam alguns teóricos pós-modernos,
admitir que o objeto de nossa investigação seja influenciado pelo sujeito do conhecimento; o
que não pode certamente admitir é que ele seja por ele completamente determinado, o que
implicaria em idealismo (ou então em pensamento mágico!). Assim, caso exista interferência
mútua entre sujeito e objeto, cabe a ciência moderna a descoberta daquelas leis, daqueles
padrões, por meio dos quais ocorre essa interação, ou determinar aquelas características do
objeto que não sofrem qualquer interferência do sujeito.
Como já exposto nesta tese, qualquer atividade de busca de conhecimento se baseia na
crença de que, ao menos em algum de seus aspectos, o objeto seja estável, ou que sua
transformação se submeta a leis ou padrões estáveis. Se nada permanece, nada se pode
afirmar sobre nada. Como já foi exposto aqui, o exemplo da “cadeira mágica”, ilustra esta
sutileza. Vimos que se imaginássemos uma cadeira na qual a cor variasse de maneira caótica
ou não-determinista, mas na qual também se mantivessem estáveis algumas de suas
características, como a forma em que se apresenta, poderíamos estabelecer conhecimento
sobre a forma da cadeira e suas leis, mas nunca sobre a cor da cadeira e suas leis (pois não
existiriam). Portanto, algum conhecimento poderia ser estabelecido, em tese. E é por isso que
a ciência moderna admite o pressuposto de regularidade do objeto.
Aqui encontramos o que é, em meu julgamento, o ponto crítico de toda a Psicologia, e
talvez não só da Psicologia mas de todo o conhecimento humano. A suposição de que os
fenômenos da natureza (inclusive o Ser Humano) se manifestam através de uma ordem, é
desafiada por argumentos céticos de sentido relativista que, apesar de fracos e inconsistentes,
estão muito disseminados em nosso tempo. Ou seja, aquele conjunto de argumentos que
denominamos nesta tese de filosofia pós-moderna. Estes argumentos encontram acolhida
especial nas Ciências Sociais, onde através de citações e utilizações inadequadas das
freqüentemente pouco compreendidas teorias abordadas no segundo capítulo, se defendem os
desejos niilistas de autores pós-modernos. Como vimos no capítulo dois, estas teorias não são
relativistas, mas isso é algo que alguns teóricos se recusam a aceitar. De qualquer forma, é
significativo que teorias que tenham como cerne a idéia da incerteza e do probabilismo dos
fatos empíricos, encontrem campo dentro do coração da ciência, a Física. É sem dúvida um
fenômeno característico de nosso zeitgeist. O pressuposto da ordem do objeto continua não só
97
de pé no mundo físico, como é e sempre será condição indispensável à obtenção de
explicações científicas, pelo menos enquanto o vocábulo científico mantiver o significado que
a ciência moderna confere atualmente a ele.
3.1.3 O Objeto da Psicologia Moderna
Sendo a ciência psicológica uma ciência empírica, compartilha com estas disciplinas
os mesmos problemas comuns às ciências que buscam o conhecimento sobre o mundo
empírico. O primeiro destes problemas, como vimos no primeiro item do segundo capítulo, é
o que concerne ao estatuto ontológico do objeto de pesquisa, ou seja, à natureza dos
fenômenos que se busca conhecer. De acordo com as crenças que admitamos inicialmente
sobre o objeto, ele se torna passível ou não de investigação experimental. Os pressupostos que
se admita sobre nosso objeto de estudo trazem implicações determinantes sobre a possibili-
dade ou não de se obter conhecimento científico, e mesmo sobre a possibilidade de se possuir
qualquer outro tipo de conhecimento sobre ele, de forma que a discussão sobre o estatuto
ontológico do objeto de estudo da Psicologia é a mais fundamental das questões a se abordar
num processo de reflexão sobre a constituição da Psicologia enquanto ciência moderna.
Este trabalho sustenta a tese de que a Psicologia moderna tem na questão de seu objeto
de estudo o seu dilema central. Para ser ciência, acredita-se que seu objeto deve se comportar
dentro da ordem natural, ser determinado por ela, ou ao menos, ser determinado por leis
próprias. Estas leis devem existir para que possam ser estudadas, descobertas, e estas
descobertas obedeçam às características de explicações científicas: sejam hipóteses causais
descritivas, experimentais e preditivas. Mas um objeto assim mereceria a denominação de ser
humano? O Behaviorismo considera que sim. A Psicologia Humanista considera que não.
Esta é a situação complexa em que se encontra a Psicologia, que não consegue chegar a um
acordo sequer quanto ao que está estudando, quanto ao estatuto ontológico de seu próprio
objeto de pesquisa. Em nossa disciplina convivem posições inteiramente antagônicas em
relação ao problema do livre-arbítrio humano. O Behaviorismo e a Psicanálise com suas
concepções deterministas de Homem e cartesiano-newtonianas de universo, a Psicologia
Existencial e Humanista com sua defesa do livre-arbítrio humano, a Psicologia Cognitiva com
sua dubiedade característica e a Psicologia Social de influência pós-moderna com a rejeição
(impossível) tanto do determinismo newtoniano como do livre-arbítrio humanista.
Karl Popper (1975b) considera que a aparente confirmação, pelo determinismo das
teorias físicas e seu brilhante sucesso, do determinismo laplaceano, é o mais sério obstáculo
no caminho para uma explicação da liberdade, da criatividade e da responsabilidade humana.
98
Ou seja, se determinismo laplaceano, então não-homem. Psicologia é uma palavra originada
de radicais gregos e quer dizer “estudo da alma”. Mas seu objeto de estudo esteve bem longe
de, no século passado, ter tido muita semelhança com algo parecido com uma “alma humana”.
Mesmo porque, “almas” não são observáveis, e seriam auto-determinadas. A ciência estuda
relações entre variáveis, ou seja, tenta descobrir funções (de preferência matemáticas) entre
eventos observáveis na natureza. Assim, como a experiência humana não pode ser alvo de
observação direta, só podemos inferi-la através de suas manifestações secundárias, ou seja, os
comportamentos humanos.
Como afirmam Marx & Hillix (1973), não existe uma forma de definir o objeto de
estudo da Psicologia de uma maneira que seja considerada aceitável por todos os psicólogos,
mesmo porque qualquer definição neste sentido pode restringir muito seu campo de pesquisa.
Isto aconteceu com o Behaviorismo. Ao definir que o objeto de estudo da Psicologia era o
comportamento de um organismo, os Behavioristas se dedicaram a estudos que pareciam
muito distantes da realidade humana, e inadequados como Psicologia. Mesmo o comporta-
mento é algo que depende de interpretação para ser observado, e houve um momento dentro
da Psicologia em que o grande debate acerca do objeto passou a ser se as variáveis dependen-
tes de pesquisa deveriam se definir em grandes unidades molares de comportamento (como
um passo numa caminhada, por exemplo) ou como queria Guthrie, em função de unidades
elementares deste (flexão do músculo adutor, por exemplo). Marx & Hillix (1973, p. 69)
propõem a seguinte definição para Psicologia, compatível com o Behaviorismo, definição que
qualificam de “rudimentar”: “Psicologia é a ciência que estuda as relações entre os
acontecimentos ou condições antecedentes e o comportamento conseqüente dos organismos”.
Se passarmos uma vista por como os manuais mais tradicionais dessa disciplina definem
seu objeto de estudo, veremos que a definição Behaviorista já não é mais a hegemônica.
Davidoff afirma que a Psicologia, com o advento da escola cognitivista, passou a ser
comumente definida como “a ciência que estuda o comportamento e os processos mentais”.
Para Weiten (2002), uma definição que faça justiça à moderna diversidade do campo diria que
a Psicologia é aquela “ciência que estuda o comportamento e os processos fisiológicos e
cognitivos subjacentes ao comportamento”. Ainda para Atkinson (2002), a Psicologia é “o
estudo científico do comportamento e dos processos mentais”. Como uma variedade muito
ampla de tópicos podem se encaixar nesta definição, podemos aceitá-la provisoriamente como
representativa da Psicologia como um todo, enquanto formos aqui passando em vista pelas
definições que as várias abordagens do problema psicológico sugerem para o problema do
objeto, até chegarmos no capítulo quatro à explicação de como se operou esta transformação.
99
Mas mesmo partindo desta definição provisória, já podemos entrever alguns problemas
específicos que tal objeto oferece para a investigação científica, como sua subjetividade, a
limitação nos controles que podemos impor à ele na investigação, a dificuldade de quantificá-
lo e ainda sua extrema complexidade. Vamos analisar estes problemas no capítulo dedicado à
relação entre a Epistemologia e a Psicologia.
3.1.4 O Reducionismo Ontológico na Psicologia e a relação mente-corpo
Quando definimos o objeto de estudo da Psicologia como sendo o comportamento do
organismo e os processos mentais, estamos efetuando meramente uma delimitação. Mas se
procurarmos uma resposta causal mais profunda, se perguntarmos o que causa
comportamentos e processos mentais, ou ainda o que são comportamentos e processos
mentais, estamos adentrando na questão ontológica propriamente dita.
A principal destas questões é a da redução ontológica em Psicologia, ou seja, a
tendência a reduzir todos os fenômenos psicológicos a um único princípio causal, que perma-
nece inalterável no decorrer de todas as transformações que os fenômenos experimentam.
Quando procuramos estabelecer a causa única de um fenômeno, ou responder o que é ele em
essência, é importante lembrar que nos afastamos de uma posição estritamente positivista,
uma vez que esta tradição filosófica rejeita a busca por explicações causais e pela essência
última dos fenômenos – buscas estas que são metafísicas – acreditando se limitar à busca
pelas leis que governam as transformações dos fenômenos. Como vimos antes no entanto, tal
postura “anti-metafísica” não se sustenta, pois está baseada em pressuposto metafísico sobre a
regularidade do objeto de estudo. A busca das causas de um fenômeno, portanto, é uma
interpretação das leis que o regem, e não pode ser confundida com a busca destas leis.
Uma refinada análise deste problema da Psicologia se encontra num texto clássico,
publicado como introdução a um extenso “Tratado de Psicologia Experimental” do início da
década de sessenta, por Paul Fraisse e Jean Piaget. Em “A Explicação em Psicologia e o
Paralelismo Psicofisiológico”, Piaget (1968) esclarece a forma que o mito anti-metafísico
ganha nas explicações psicológicas behavioristas e fisiologistas. Como veremos adiante no
item dedicado à abordagem explicativa da pesquisa psicológica, toda explicação é causal, e se
distingue da pura descrição de regularidades (as leis, suposta meta única do Positivismo) pela
atribuição, dedutiva, de relações de causa e efeito. Piaget (1968) lembra que no interior dos
sistemas explicativos, as leis se coordenam por relações estritamente lógicas, formais, de
regularidades que obedecem as regras da dedução lógico-matemática. Entretanto: “Os
modelos que servem de substrato à dedução requerem, ao contrário, uma coordenação dos
100
planos ou campos de realidade e comportam, por conseguinte, um conjunto de juízos de
existência.” (Piaget, 1968, p.134). Ou seja, nas premissas primeiras, no campo das causas
originárias, é preciso sempre um juízo de existência, um juízo ontológico ou metafísico.
E preciso portanto, neste ponto da exposição, oferecer uma definição mais precisa para
o conceito de redução. Para Abbagnano (2003), redução em ciência consiste em considerar
que certas ordens de fenômenos estão sujeitas a leis mais bem estabelecidas e precisas de uma
outra ordem de fenômenos ontologicamente mais fundamental. Por exemplo, considerar que
fenômenos orgânicos estão submetidos às leis dos fenômenos físicos (o mecanicismo em bio-
logia, que se opõe ao vitalismo). Carl Hempel (1970) afirma que podemos dizer que uma dis-
ciplina científica é redutível à outra quando (a) se pode definir os conceitos da primeira com
conceitos da segunda e (b) derivar as leis da primeira das leis da segunda. Assim, a Biologia
seria redutível à Física caso (a) todos os conceitos biológicos fossem definíveis em termos dos
conceitos físicos; e (b) todas as leis da Biologia fossem deriváveis das leis da Física.
Na explicação, em último nível, se tem que chegar ao irredutível. Se uma ação é
causada por desejo e desejo é um estado físico cerebral, que foi causado pelo conjunto dos
impulsos somáticos, que foram causados por reações químicas nas células, que foram
causadas pela reação com moléculas vindas do exterior e do interior do organismo que
entraram em contato com o sistema nervoso, e que em última análise são constituídas de
átomos e estes de partículas subatômicas, então tudo se reduz a Física Quântica. Isto é
reducionismo. Seria perfeito para o Positivismo se não sobrasse a pergunta: o que é uma
partícula subatômica? O ideal positivista de ciência consiste em reduzir os juízos de existência
(o que existe de fato e causa o fenômeno explicado) de ciências mais complexas, os
postulados básicos da Química por exemplo, a termos finais de explicações físicas, que se
sustentam em juízos de existência da Física. Posto isso, o Positivismo se daria por satisfeito,
pois a metafísica estaria expurgada da Ciência. O problema, é que os pressupostos de que a
Psicologia é redutível à Biologia, e esta à Física, são pressupostos metafísicos, uma vez que as
teorias-ponte (Hempel, 1970) destas disciplinas não estão estabelecidas. E, mais do que isso, a
premissas das leis básicas da Física, por ser a ciência básica (para o Positivismo), sempre
serão juízos de existência irredutíveis, portanto, plenamente metafísicos.
Meu argumento é simples, e se constitui na primeira das idéias básicas defendidas por
este trabalho. Uma vez que as explicações físicas, modelos de toda a ciência moderna, são
sempre em última análise apoiadas em juízos de existência irredutíveis, juízos metafísicos,
não existe nenhum motivo (uma vez que teorias-ponte não estão construídas) formal ou
metodológico para que não se aceitem conjecturalmente juízos de existência irredutíveis na
101
Psicologia. Ou seja, não há nenhuma razão metodológica ou epistemológica para deixarmos
de aceitar processos intencionais de consciência como causas de comportamento, a não ser, o
preconceito metafísico materialista positivista que ainda reina na ciência moderna. Piaget
(1968) aponta duas opções não-redutoras, dois outros modelos de explicação psicológica ao
problema mente-corpo, o paralelismo psicofísico e o interacionismo. Atualmente, o Cognitivi-
smo optou por uma posição interacionista, que será abordada em mais detalhes no subitem
4.2.4. Concluindo, Piaget (1968) demonstra que a escolha metafísica de base determina a
escolha em relação aos modelos explicativos (os vários reducionistas e os vários não-
reducionistas) causando a complexidade e fragmentação do campo da Psicologia. Porém, esta
tese defenderá a separação da questão da explicação psicológica do problema mente-corpo, o
que acabaria com uma das maiores fontes de fragmentação no campo da Psicologia.
Voltaremos a isto no subitem 5.2.4.
Voltando à questão da metafísica positivista, pode-se perceber aqui que todo o
programa epistemológico do Positivismo Lógico é reducionista em sentido forte, pois apesar
de dissimular uma posição metafísica acerca da natureza da realidade, sustenta a redução de
todos os termos da ciência a termos físicos, o que implica na crença de que a ordem física é a
única ordem de realidade. O fisicalismo, portanto, é a redução ontológica por excelência,
baseada numa crença monista materialista (não pan-psíquica) acerca do ser. De um
inicialmente sério, porém inexeqüível propósito, o fisicalismo se transportou para uma
posição de álibi científico de proposições pseudo-científicas. Enquanto qualquer posição que
pareça não aderir estritamente à severa redução ontológica representada pelo fisicalismo
costumava no século XX a ser rechaçada como resquício de metafísica, dualismo e
espiritualismo, as mais absurdas e insustentáveis posições teóricas encontravam seu procurado
ar de respeitabilidade e aceitação acadêmica pela mera adesão ontológica (sem qualquer
seriedade metodológica), e portanto metafísica, ao fisicalismo.
Essa é uma das preocupações de Ued Maluf (2002) que defende que o fisicalismo é a
característica dominante de duas grandes etapas da cultura humana, que ele denomina cultura
II e cultura III. Maluf apresenta alguns exemplos destas extrapolações, como a absurda tese
de Henry Adams que acreditava ter aplicado a segunda lei da termodinâmica à teoria da
história, ou ainda uma nova forma de reducionismo fisicalista apresentada pelo físico-
matemático já abordado neste trabalho Roger Penrose. De fato, Maluf demonstra que, apesar
de apresentar sua tese como uma crítica à redução da mente e da consciência a qualquer
modelo computacional, Penrose (1991) cria uma forma particular de redução fisicalista, a
102
“redução quântica”. Ele acredita que a mecânica quântica poderá oferecer explicações acerca
da atividade cerebral e do fenômeno da consciência, definitivamente explicando-os.
Na Psicologia, a redução ontológica fisicalista assume três formas básicas: a
behaviorista, a fisiológica e a psicanalítica, e gera com sua falência ainda uma quarta forma,
a pós-moderna, que é o reducionismo lingüístico ou sociológico. Vamos portanto descrever
estas quatro formas de reducionismo ontológico na Psicologia, para analisarmos no capítulo
três como a Psicologia Cognitiva lida com este problema.
3.1.4.1 Reducionismo behaviorista
Quando transportamos o problema da redução mecanicista da Biologia para a
Psicologia, nos deparamos com o problema da relação mente-corpo. Enquanto na Biologia o
modelo de mundo newtoniano-mecanicista defende que não existe algo como ‘força vital’ ou
‘enteléquia’ nos organismos, na Psicologia este tipo de veto se estende ao conceito de mente.
É a resolução do problema do dualismo cartesiano eliminando a substância mental, e fazendo
da matéria (seja lá o que isso seja) a única substância no universo. É o monismo materialista.
Assim como para o mecanicismo as leis biológicas podem ser reduzidas às leis físicas, o
reducionismo em Psicologia sustenta que todos os fenômenos psicológicos são
fundamentalmente de natureza biológica (e portanto, segundo o mecanicismo, físico-
química). Assim, os termos e leis específicos da Psicologia poderiam e deveriam ser
reduzidos aos da Biologia, os da Biologia aos da Química, e os da Química aos da Física.
O Behaviorismo procura reduzir qualquer discurso sobre fenômenos psicológicos a um
discurso sobre fenômenos de comportamento. Na medida em que estímulos e respostas podem
ser descritos em termos físico-químicos, suas definições operacionais forneceriam especifica-
ções do significado das expressões psicológicas em termos biológicos, químicos e físicos.
Como afirma Hempel (1970), os behavioristas concordam em insistir em critérios objetivos de
comportamento para características, estados e eventos psicológicos, mas são omissos quanto à
relação entre os fenômenos psicológicos e os correspondentes fenômenos de comportamento
que o definiriam. Ou seja, o behaviorismo não define se os comportamentos são manifesta-
ções públicas daqueles eventos psicológicos ou se eles são os eventos psicológicos.
Para Gilbert Ryle (1949), ao dizermos que alguém fala russo, estamos dizendo que
alguém é capaz de, em determinadas situações-estímulo particulares, emitir uma espécie
particular de comportamento que é considerado característico de uma pessoa que compreende
e fala russo. Ou seja, para Ryle, termos psicológicos se referem a um modo econômico e
eficiente de se comunicar sobre aspectos intrincados do comportamento, principalmente
103
aqueles que se referem a propensões a comportar-se de maneira característica em certas
situações (quando dizemos que uma pessoa fala russo não estamos dizendo que ela fala russo
o tempo todo, mas somente que ela tem propensão a falar russo em certas situações-estímulo).
Ora, ele acredita que esta forma de redução da linguagem psicológica, e da própria psicologia,
nos libertaria de um desconcertante problema (que só é problema para o monismo
materialista), conhecido pela expressão cunhada por ele: “ghost in the machine”.
Para o reducionismo behaviorista estamos livres de procurar o fantasma na máquina
mecanicista, no autômato humanóide que seria o ser humano. Ao reduzir desta forma a
Psicologia, não precisaríamos mais procurar pelas entidades e processos mentais que estariam
por “trás” da fachada física. Esta posição é extremamente frágil filosoficamente, e acarretaria
em alguns protestos legítimos dos chamados “behavioristas metodológicos”. Para eles, este
tipo de redução não é uma redução ontológica, mas simplesmente metodológica: não se trata
de negar o evento psicológico por “trás” do comportamento, mas suspender o juízo sobre ele
porque o mesmo não é observável. Porém, apesar desta ser uma muito representativa posição
na tradição behaviorista, o tipo de “behaviorismo radical” definido aqui, que de resto era
defendido pelo maior nome do Behaviorismo, Burrhus Skinner, é reducionista em sentido
estrito e precisa ser definido entre as formas de reducionismo ontológico da Psicologia.
3.1.4.2 Reducionismo fisiológico
Outra disciplina a que se pensou que a Psicologia pudesse ser reduzida é a Fisiologia.
Aqui, a corrente energética cerebral será a essência última de um ato psíquico. Os trabalhos
sobre a percepção de Helmholtz são antigos e famosos exemplos deste este tipo de esforço,
assim como o não menos famoso e estranhamente passional pacto onde ele e mais três colegas
fisiologistas alemães do fim do século XIX assinaram um termo de compromisso com seu
próprio sangue, jurarando dedicar suas vidas a provar que não havia nos organismos nada
mais do que forças físico-químicas (Schultz, 1989).
Nos últimos anos, com o avanço da neurociência, o reducionismo fisiológico ganhou
nova e renovada força, gerando o programa conhecido como materialismo eliminativo. O
principal representante desta abordagem é Paul Churchland (1991, [1981]). Para Churchland
(1991), nossas intenções, desejos, crenças e pensamentos (a folk psychology, o conjunto de
conceitos adotados pela Psicologia do senso comum, como definiremos provisoriamente, até o
fim do quarto capítulo) não são entidades ontologicamente reais, em cuja existência possamos
acreditar, mas somente ilusões da linguagem que serão progressivamente substituídas pelos
conceitos fisiológicos estabelecidos pelo avanço das neurociências. A Psicologia, como
104
ciência, seria um estágio tão provisório quanto primitivo de abordar o problema humano, e os
psicólogos devem se conformar com este estado provisório da disciplina e esperar pela
substituição progressiva de todo vocabulário psicológico pela terminologia neurocientífica.
Araújo (2003) indica como idéia central do materialismo eliminativo a de eliminar da
Psicologia os termos da folk psychology, uma vez que estes seriam comprometidos com uma
tradição dualista (para eles, sinônimo de anticientífica), mostrando-se portanto inadequados a
uma redução a estados e processos cerebrais. Para incorporar a Psicologia ao corpo da ciência,
o materialismo eliminativo prega a substituição destes termos por “conceitos compatíveis com
as descobertas neurocientíficas” (Araújo, 2003, p.17). É interessante, para efeito de substan-
ciar umas das principais idéias defendidas nesta tese, pontuar que os criadores do projeto de
materialismo eliminativo não foram os Churchland, mas sim Paul Feyerabend e Richard Rorty
no começo de suas vidas acadêmicas (Araújo, 2003). Esta observação só reforça a tese
defendida aqui de que o relativismo lingüístico característico do pós-modernismo é uma
posição que decorre da falência do fisicalismo e da não renúncia por seus ex-defensores do
materialismo implícito da posição falida.
Robinson (1985) define o materialismo eliminativo como a teoria que insiste que os
termos mentais vão ser sucessivamente removidos do vocabulário científico à medida que as
descobertas científicas das neurociências forem mostrando como, para cada um destes termos,
existe um único evento neural ou físico que exaustivamente o descreve. Além disto, e por
causa disto, o materialismo eliminativo defende a tese da identidade entre fenômenos mentais
e cerebrais, postulando que cada assim chamado ‘estado mental’ é de fato um estado cerebral
que se refere sempre invariavelmente a tal estado mental. Ou seja, estamos diante de mais um
reducionismo de cunho fisicalista, entre os quais se destaca como o mais explícito dos
reducionismos materialistas. Veremos os problemas associados a esta posição no item 5.1.2.
3.1.4.3 Reducionismo psicanalítico
O reducionismo psicanalítico reduz todas as reações e condutas humanas a um único
princípio causal, a libido. Para Freud, essa energia psíquica é primeiramente concentrada em
certas atividades orgânicas, como a oral, para ir se deslocando progressivamente para
atividades anais, narcísicas, genitais e exteriores, catexizando os objetos e disfarçando-se
(sublimação), em função dos bloqueios à sua livre expressão, em tudo aquilo que
ilusoriamente acreditaríamos que faz a vida humana cheia de sentido, como o sentimento do
belo, do bom, do justo, do verdadeiro e do sagrado.
105
A libido é pois, energia sexual, ou mais estritamente, o conjunto de demandas
somáticas. De acordo com a interpretação que dermos sobre o status ontológico do conceito
de ‘libido’, rumaremos para um reducionismo de cunho vitalista ou, como queria o
fisiologista Freud, de cunho fisicalista-fisiologista. Parte da força de atração da Psicanálise é
devida à obscuridade ontológica do conceito de libido, que a aproxima do irracionalismo
romântico do século XIX. Se interpretarmos esse conceito, como fazem grande parte dos
psicanalistas, a partir do espírito vitalista implícito em sua forma, entramos num tipo original
de irracionalismo antropológico que se deve ao verdadeiro e não-reconhecido (por Freud)
precursor da Psicanálise, Arthur Schopenhauer.
Para Schopenhauer (1950) a vontade (que em sua filosofia tem o sentido de desejo) é a
essência da realidade, e tem primado ontológico sobre a inteligência e a razão, que só surgem
no homem para servir a essa vontade de vida. Esse princípio vitalista foge ao conceito
mecanicista do século XIX: o homem é em essência atividade da vontade de vida, e não
reação de elementos físico-químicos. Schopenhauer era um idealista, e são conhecidas suas
ironias sobre o que ele denominava “grotesco materialismo” do século XIX. Assim, se
interpretamos a libido como a enteléquia vitalista ou a coisa-em-si kantiana (como o faz
Schopenhauer), estaríamos na psicanálise como quer Campos (1973) diante de um
reducionismo psicológico.
No entanto esta não era a intenção de Freud (1975) que deixa claro no seu “Projeto
para uma Psicologia Científica” que quando falamos de libido estamos falando de forças
físico-químicas, forças que um dia seriam passíveis de descrição em termos fisiológicos. Em
uma passagem de “Esboço de Psicanálise” Freud (1974, p.107) afirma que “Não se pode
discutir que a libido tenha fontes somáticas, que ela flua para o ego de diversos órgãos e
partes do corpo”. Atualmente, o movimento conhecido como “neuropsicanálise”, tem procla-
mado a necessidade de voltar ao programa do projeto original freudiano, que nada mais é que
um projeto de redução fisiológica da terminologia psicanalítica. Essa parece ser a posição que
melhor representa a ontologia psicanalítica (ao menos a freudiana), que como demonstrou
Capra (1990) é plenamente integrada à visão newtoniana-mecanicista de universo.
Portanto, os três tipos de reducionismos descritos acima são de ordem estritamente
fisicalista. Em outros termos, poderiam ser integrados a um grande projeto de materialismo
eliminativo. Assim, se provarmos a inadequação do programa eliminativista, estaremos
provando a inadequação destes três tipos de reducionismos fisicalistas (à exceção da
interpretação vitalista não-freudiana do reducionismo psicanalítico). Sobre esta questão
retornaremos no item dedicado às críticas ao Cognitivismo. Agora, temos que abordar a mais
106
excêntrica forma de reducionismo, o reducionismo lingüístico ou sociológico derivado da
filosofia de Wittgenstein, que por sua vez é conseqüência dos graves problemas que enfrenta
o reducionismo fisicalista.
3.1.4.4 Reducionismo sociológico
Se interpretarmos as reações individuais em função unicamente das interações entre
estruturas culturais de grupos sociais, estamos reduzindo o processo psíquico às influências
sócio-culturais. Quando se defende que o ser humano, suas alegações de conhecimento e seus
jogos de linguagem são fruto única e exclusivamente do ambiente sócio-cultural onde está
imerso, estamos reduzindo o fenômeno psicológico a um fenômeno sociológico.
Não se pode deixar de constatar os aspectos estranhos deste tipo de reducionismo, que
é uma espécie de idealismo sem sujeito, e, obviamente, relativismo radical. Mais do que isso,
trata-se de um reducionismo, se é que isso é possível, “para cima”, uma vez que o fenômeno
sociológico é de uma ordem de complexidade superior ao fenômeno psicológico. Este tipo de
redução conduz a esquemas de interação e não de redução simples (Campos, 1973).
Como foi possível que a Psicologia chegasse a assimilar tal tipo de posição que, além
de acarretar todas as contradições que um idealismo sem sujeito pode acarretar e todas as
fragilidades (já abordadas nesta tese) do sociologismo, ainda atenta contra a própria existência
da ciência psicológica e dissolve seu objeto de estudo? A resposta é longa, e começa com
Wittgenstein e a derrocada do fisicalismo. Quando este insiste na tese de basear os modelos
psicológicos e sua linguagem estritamente com base no observável e mensurável, em outras
palavras no comportamento externo (behaviorismo) ou interno (fisiologismo) dos organismos,
ele ainda assim está falando em experiências internas. Ora, não existe observação experimen-
tal ou mensurada que não seja ela própria uma sensação, um estado privado de consciência do
cientista. Este é o problema. Vamos circunstanciá-lo. Diz Wittgenstein (1975, §243):
“Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio,
anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito?
– Não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira? – Acho que não. As palavras
desta linguagem devem referir-se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas
sensações imediatas, privadas. Um outro pois, não pode compreender esta linguagem.”
Wittgenstein ilustra a tese da incomunicabilidade do estado mental e da natureza
essencialmente social da linguagem através do seu famoso dilema do inseto na caixa. O
107
significado dos termos não é dado, diz Wittgenstein, por estados mentais referentes a
sensações, mas por “jogos de linguagem” que emergem das relações sociais. Não podemos
saber se o ‘vermelho’ que aparece para mim é o ‘vermelho’ que aparece para outrem. Portanto
convencionaríamos dentro de determinado jogo de linguagem que tipos de ações são
eficientemente coordenadas pelo uso da palavra ‘vermelho’, e nada mais. É também famosa a
exortação que Wittgenstein fazia a seus alunos em Cambridge, quando dizia que não devemos
nos perguntar sobre o significado de uma palavra, e sim sobre o seu uso. O ‘inseto’ de
Wittgenstein são nossos estados mentais (o termo é ‘beetle’, 1975, §293):
“Ora, alguém me diz, a seu respeito, saber apenas a partir de seu próprio caso o que sejam
dores! – Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que
chamamos de ‘besouro’. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que
sabe o que é um besouro apenas por olhar o seu besouro – Poderia ser que cada um
tivesse algo diferente em sua caixa. Sim, poderíamos imaginar que uma tal coisa se
modificasse continuamente. – Mas, e se a palavra ‘besouro’ tivesse um uso para estas
pessoas? – Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não
pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a
caixa também poderia estar vazia. – Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se
‘abreviar’; seja o que for, é suprimido. Isto significa: quando se constrói a gramática da
expressão da sensação segundo o modelo de ‘objeto e designação’ então o objeto cai fora
de consideração, como irrelevante.”
O objeto referente portanto é irrelevante. Ele é uma ficção, como diz Robinson (1985)
sobre Wittgenstein, não ontológica, mas gramatical. É claro que Wittgenstein acredita na
existência das sensações que seriam os referentes das palavras. Mas o problema aqui não é o
da existência do objeto, e sim o de sua referência. Se um termo é inteligível, seu referente
deve ser público. Assim, termos que descrevem sensações privadas têm seu significado
estabelecido pelos padrões de comportamento associados inicialmente a eles (como gritos e
choro à ‘dor’), aos quais, com o tempo, eles virão a substituir. O problema é que essa posição
elimina o aspecto especificamente psicológico de todos os comportamentos humanos, da
mesma forma como o behaviorismo o faz. Porque a questão psicológica continua a ser se
determinadas palavras que buscam expressar estados psicológicos efetivamente o expressam,
ou seja, a questão é sobre o que de fato existe psicologicamente.
Outro problema é que a posição de Wittgenstein acaba resultando em reducionismo
lingüístico, uma vez que ao insistir na tese de que devemos basear os modelos psicológicos e
108
sua linguagem estritamente com base nos comportamentos inicialmente associados às
palavras, ele ainda assim está falando em experiências internas. Ora, não existe observação de
um comportamento que não seja ele próprio uma sensação, e como tal, um estado privado de
consciência do cientista, um besouro na caixa. Somando-se a isso a adoção pelo
Construcionismo Social da absurda e extensamente refutada (Chomsky, 1971, 1981; Fetzer,
1988, 2000; Gardner, 1995, 1996; Greene, 1976; Penrose, 1991; Pinker, 2004; Sternberg,
2000) tese de que o pensamento é linguagem – e que não existe pensamento sem linguagem
entramos numa quase infinita casa de espelhos lingüísticos onde cada palavra refletiria outras
palavras sem nunca se referir diretamente a um significado percebido como estado subjetivo.
É essa a conseqüência das teses wittgensteinianas adotadas por abordagens pós-modernas
como o Construtivismo Social (Sociologia), o Construcionismo Social (Psicologia Social) e
por pensadores como Rorty. Encontramos em versões mais radicais do Construcionismo
Social inclusive a reivindicação de que a única realidade é a linguagem (!), transformando as
alegações lingüísticas de Wittgenstein em tese ontológica: o reducionismo lingüístico.
3.1.4.5 Abordagens psicológicas não-reducionistas e o problema mente-corpo
Foi demonstrado que todos os tipos de reducionismo psicológico , mesmo o pós-
moderno, tem suas raízes na ambição fisicalista (que é neo-nominalista) do Positivismo
Lógico. Sua associação inextricável fica mais explícita quando verificamos que a posição
sobre o problema mente-corpo que deriva do fisicalismo é a mesma defendida por autores
pós-modernos como Feyerabend e Rorty (Araújo, 2003).
É a solução materialista do problema mente-corpo que está inextricavelmente associada
ao reducionismo em Psicologia. Da mesma forma, as abordagens não reducionistas da
Psicologia, quando não o são em sentido somente metodológico, devem assumir alguma
espécie de solução dualista ou monista pan-psíquica para o problema mente-corpo. O
Paralelismo Psicofísico (Piaget, 1968) e o Interacionismo (Sperry, 1993, Popper & Eccles,
1977), são as duas principais posições acerca deste problema que implicam, implícita ou
explicitamente, em alguma forma de dualismo.
Quando assumimos que o problema psicológico não pode, em essência, ser reduzido à
terminologia das ciências físicas, geralmente estamos também assumindo que ele não se
resume a fenômenos físicos. Esta é, na maior parte das formulações anti-reducionistas, uma
conseqüência necessária, dissimulada apenas em virtude do preconceito materialista reinante
na ciência moderna desde o advento do positivismo. Será demonstrado que a posição
humanista quatro itens à frente e a posição cognitivista que abordaremos no quarto capítulo
109
são exemplos de posições não-reducionistas em Psicologia que têm, se consideradas em
profundidade, implicações não-reducionistas em relação ao problema mente-corpo.
O que propiciou o desenvolvimento de uma posição não-reducionista por parte do
cognitivismo foi o advento do Funcionalismo na Filosofia da Ciência do século vinte. Este
conjunto de idéias, que começou a se desenvolver a partir do artigo de Hilary Putnam “Minds
and Machines”, de 1961, levantou sérios (se não intransponíveis), obstáculos à utopia
reducionista na Psicologia e em todas as ciências. A idéia central do Funcionalismo é a de que
a organização de elementos físicos ao nível abaixo do nível da realidade que pretendemos
explicar determina propriedades dos níveis acima, as quais, do ponto de vista da física, são
acidentais. Num exemplo que ficou famoso, Putnam (1980) afirma que nem o fato de um pino
quadrado não entrar num buraco redondo pode ser explicado somente com base em moléculas
e átomos. Explicamos com base na rigidez de ambos os materiais, e apesar de a rigidez do
material poder ser explicada pela sua microestrutura, ela é uma propriedade emergente desta.
Além disso, uma explicação sobre o que causa a rigidez do material não é ao mesmo tempo
uma explicação de porque o prego quadrado não entra num buraco redondo. As propriedades
que emergem nos níveis superiores dos fenômenos têm estrutura própria (no caso, um
quadrado e um círculo – as formas geométricas da organização das moléculas do material), o
que indica um nível de autonomia em relação ao nível inferior (na Biologia, o organismo e a
vida em relação à Química, na Psicologia, a mente em relação ao cérebro, num computador, o
software em relação ao hardware, etc.). Para Putnam (1980), a idéia de redução não reflete a
prática científica real, ela é um erro porque ignora a estrutura adquirida pelos níveis
superiores de fenômenos que se pretende reduzir. Assim, poderíamos afirmar que o que marca
a necessidade de uma nova disciplina científica é a emergência de propriedades estruturais
irredutíveis nos fenômenos de nível superior (a biologia por exemplo é necessária ao invés de
uma química extremamente complexa, não por conta da simplificação somente, mas por conta
da emergência de propriedades irredutíveis nas macro-estruturas, como o organismo vivo).
Assim abordamos outro aspecto da tese levantada neste trabalho sobre os juízos de
existência metafísicos, e este é que, visto pelo ângulo da Filosofia da Ciência do final do
século XX, o reducionismo se mostra como realmente é: metafísica. Antes de ser uma
necessidade metodológica, ele é uma máscara que psicólogos e filósofos usam para promover
alegações ontológicas a priori materialistas como se fossem necessidades métodológicas e
epistemológicas que estão na raiz do próprio espírito científico. O reducionismo fisicalista,
como postura metafísica, é altamente questionável, como postura metodológica, é uma fraude
metafísica. Retomaremos este argumento em detalhes no subitem 5.2.4.
110
3.2. Psicologia e Epistemologia
Abordaremos neste item os principais problemas da relação entre Epistemologia e
Psicologia. Aqui o termo Epistemologia é considerado em sentido estrito, como o estudo das
condições de obtenção e validação do conhecimento sobre os objetos. O primeiro dos proble-
mas epistemológicos especiais a serem abordados aqui é o da definição de conhecimento, e da
relação entre conhecimento e verdade. O segundo, o da possibilidade do conhecimento. O ter-
ceiro, a questão dos tipos de conhecimento sobre a realidade, a explicação e a compreensão,
com as diferenças entre as suas respectivas abordagens, nomotética e idiográfica. O problema
da origem do conhecimento assim como o do método científico, já foi exaustivamente
investigado no capítulo dois, razão pela qual, depois de breves considerações de sua aplicação
ao estudo psicológico, concluiremos este item com os problemas especiais de aplicação do
método experimental em Psicologia, que guarda relação direta com o problema ontológico.
3.2.1 Conhecimento, verdade e ciência moderna
No caminho para a obtenção de conhecimento, a primeira pergunta que devemos fazer
é sobre a natureza do próprio conhecimento. Como já foi exposta nesta tese, a definição
tradicional de conhecimento continua sendo a oferecida por Platão no Teeteto a mais de dois
mil anos, de crença verdadeira justificada. Conhecimento é crença, porque deve ser uma
proposição a qual obrigatoriamente aderimos subjetivamente; essa crença é verdadeira,
porque deve corresponder em seu conteúdo semântico e estrutura sintática a realidade que
pretende representar; e ser justificada porque deve ter em si um meio de comprovar sua
validade para seu detentor e para outros.
E o que queremos dizer quando afirmamos que uma crença – particularmente uma
teoria científica sobre o mundo empírico – é verdadeira? A ciência moderna – que é voltada
para a obtenção de conhecimento sobre o mundo empírico – adota a definição de verdade
como a correspondência entre o conteúdo semântico e estrutura sintática do pensamento e a
realidade objetiva que ele pretende descrever. Temos portanto uma definição de verdade mas
não um critério de verdade: não podemos decretar que qualquer proposição sobre a realidade
empírica é verdadeira, mas temos um critério para determinar que uma proposição está mais
próxima da verdade que outra. A verdade é algo do qual podemos nos aproximar (nas ciências
111
naturais), sendo nada mais que um ideal normativo, sempre perseguido, sempre mais
próximo, nunca alcançável. Mas este é um processo difícil e cheio de armadilhas.
Pode-se encontrar outra definição de verdade para aqueles objetos do conhecimento
que não são reais, objetivos, mas sim ideais, e tem sua existência somente para a consciência.
São os objetos da lógica e matemática, para os quais a definição de verdade é a de concordân-
cia do pensamento consigo próprio, em outras palavras, não-contradição. Todo pensamento
que não se contradiga a si mesmo, é verdadeiro, desde que não se refira a uma realidade que o
transcenda, empírica. Assim, não nos interessa aqui esta definição. Cabe ainda somente a
observação, que o método de obtenção e validação de conhecimento matemático e lógico é o
método dedutivo clássico, que parte de verdades auto-evidentes (ou hipóteses conjecturais) e
deduz-se a partir delas todas as conseqüências lógicas de suas admissões como verdadeiras.
Ou seja, de axiomas, partimos para a construção e demonstração de teoremas.
Também, como estamos abordando o problema da ciência moderna, não nos interessa
a definição pragmática para o conceito de verdade, pois não é adotada pela mesma. Para o
pragmatismo, verdadeiro é o que é útil, verdadeira é aquela crença que conduza o homem
com eficiência para a consecução de seus objetivos pragmáticos. Como já abordado, o
objetivo desta tese não é o debate sobre questões milenares em teoria do conhecimento, o
objetivo é a discussão da crise de cientificidade endêmica da jovem Psicologia, e portanto,
precisamos definir o padrão de cientificidade requerido pela Ciência moderna.
3.2.2 A Possibilidade do conhecimento
Não iremos nos debruçar aqui longamente sobre uma questão filosófica tão básica, e já
abordada no capítulo dois. No entanto, é necessário ressaltar que, diretamente em relação à
Psicologia, esta é uma questão particularmente importante. Essa importância vem do fato de
que dentro de nossa disciplina proliferam posicionamentos absolutamente insustentáveis,
filosófica e cientificamente. Isso se deu em virtude, além da natureza altamente complexa do
objeto da Psicologia, do extremo grau de subjetividade a que a pesquisa psicológica está
exposta. Refiro-me às formas especiais de ceticismo que são o subjetivismo e o relativismo.
A Psicologia, infelizmente, além de suas naturais dificuldades ontológicas e metodoló-
gicas, ainda tem que lutar contra a presença dessas posições anticientíficas e anti-racionais em
seu ambiente acadêmico. As principais contradições inerentes a esses posicionamentos são
duas. A primeira é que, uma vez que a atividade científica só é possível adotando-se uma
perspectiva ontológica realista, para a ciência, verdadeira é toda proposição que corresponda
na sua estrutura sintática e conteúdo semântico à realidade objetiva que ela procura expressar.
112
Ora, se um juízo corresponde a um objeto real exterior e independente ao pensamento, esse
juízo será real para qualquer um que o possua. Qualquer um que mantenha o conceito de ver-
dade da teoria de correspondência e ao mesmo tempo afirme que não há verdade universal-
mente válida, está contradizendo-se. Este tipo de contradição demonstra que as variações
relativistas são posições totalmente incompatíveis com os pressupostos e objetivos da ciência.
Sim, e não só neste ponto. Pois quando, no caso do subjetivismo, formula-se o juízo de
que "toda verdade é subjetiva", obviamente se quer afirmar com isso que a verdade é
subjetiva para todos, e não só para quem formula. A isso poderia retorquir afirmando que se
toda verdade é subjetiva, então na minha subjetividade a verdade é universalmente válida. Da
mesma forma com o relativismo. Quando sustenta a tese de que toda verdade é relativa, o
relativista formula uma proposição absoluta e universal: em todos os lugares e todos os
tempos a verdade só é relativa a cada lugar e período em particular. Este segundo tipo de
contradição demonstra que o relativismo é incompatível também com a Filosofia. É necessá-
ria, portanto, para a Psicologia, a adoção de uma posição de otimismo epistemológico, ainda
que esta tenha de ser uma posição criticista, como a assumida pelo Racionalismo Crítico.
3.2.3 Explicação e Compreensão
Vimos nos capítulos e itens acima etapas necessárias a serem resolvidas por uma
teoria do conhecimento. A primeira das perguntas a responder no caminho do conhecimento é
sobre o que ele é. A segunda, é se a partir da definição aceita, podemos conhecer. A terceira, é
sobre a natureza do que pretendemos conhecer, como vimos no item relativo aos problemas
ontológicos da Psicologia, ou seja, sobre natureza do objeto, se ele é real ou ideal. Mas antes
de nos perguntarmos quanto à origem de nosso conhecimento sobre o objeto e o método que
dispomos para investigá-lo, temos que responder à questão ontológica sobre a regularidade do
objeto. O objeto em questão obedece a leis ou não?
Caso admitíssemos a possibilidade de fenômenos únicos, irrepetíveis no universo, e
quiséssemos, ao invés de descobrir as leis que os regem, os compreender em sua
individualidade, o que poderíamos fazer com os instrumentos da ciência moderna? Uma coisa
são as ocorrências de casos particulares de uma lei geral, da qual eles são somente a
expressão; outra, são singularidades, casos únicos, irrepetíveis e não submetidos a leis físicas.
Esta pergunta, que foi a pergunta básica de Wilhelm Dilthey (1833-1911), é que será
abordada agora nesta tese, e que levanta a questão da distinção entre a abordagem nomotética
e a abordagem idiográfica nas ciências humanas.
113
O principal foco da dispersão teórica na Psicologia é o problema da natureza do objeto
de estudo, o modelo antropológico a ser adotado pela Psicologia. Essa questão é a da relativa
autonomia ou não do ser humano face aos condicionamentos biológicos, psicológicos e
sociais a que ele está exposto. É, portanto, a já citada questão do velho conflito apontado por
Allport (1975), entre as tradições lockeana e leibniziana, o ainda por Rychlak (1988) entre as
tradições lockeana e kantiana no pensamento psicológico. A adoção de uma posição alinhada
a uma dessas tradições irá, evidentemente, condicionar o modelo de todas as pesquisas feitas
por quem a adote em Psicologia.
De modo geral, o tipo de pesquisa pode então ser concebido de dois modos básicos:
ela pode ser uma pesquisa de caráter nomotético ou de caráter idiográfico. A pesquisa psicoló-
gica nomotética visa à obtenção de teorias e hipóteses de aplicação geral. Esta pretensão se
sustenta na crença ontológica da regularidade do objeto, ou seja, que existam relações funcio-
nais estáveis entre variáveis antecedentes e variáveis conseqüentes. Já a pesquisa idiográfica
parte da posição ontológica que assume a relativa autonomia do objeto da Psicologia, o ser
humano, frente aos condicionamentos que lhe são impostos. Esta orientação de pesquisa pré-
tende que o objetivo da investigação psicológica seja a busca de compreensão do significado
da experiência humana, e não a busca de teorias e hipóteses de aplicação generalizada.
Em suma, a perspectiva nomotética busca explicar as causas do comportamento,
enquanto a perspectiva idiográfica busca compreender os motivos de sua expressão. Trata-se
de uma escolha entre explicar e compreender. Esta distinção de tipos de pesquisa psicológica
foi formulada pela primeira vez por Wilhelm Dilthey. Dilthey (1945) julga que as diferenças
entre o objeto de pesquisa das ciências humanas e o das ciências físicas pedem diferentes
métodos de investigação e orientação. Com essas diferenças ele não estava querendo dizer
unicamente que o ser humano é racional e livre e que entidades físicas não são. Ele estava
querendo antes de qualquer coisa expor o fato de que fenômenos físicos são externos à
experiência do investigador e independentes uns dos outros; enquanto os fenômenos
psicológicos são interiores à experiência do cientista e inextrincavelmente inter-relacionados
uns aos outros. É antes de tudo por causa dessa inextrincável inter-relação que Dilthey afirma
que o fenômeno humano precisa ser descrito e entendido em suas interconexões plenas de
sentido. Assim, ele parte dessa distinção entre os objetos de pesquisa das ciências físicas e das
ciências humanas para explicar a origem das duas orientações básicas de pesquisa na
Psicologia, as quais ele denomina explicativa e compreensiva.
114
3.2.4.1 Abordagem explicativa da Psicologia
Segundo Wertz (1998), Dilthey denomina explicativa ou construtiva, aquela aborda-
gem de pesquisa importada das ciências físicas, que visa à construção de um sistema de hipó-
teses com um número limitado de elementos determinados, exatos, sem ambigüidades, além
de leis ou princípios universais regendo suas conexões, combinações e organização última. As
predições que podem portanto ser feitas sobre as relações entre variáveis são submetidas a
testes de verificação cujas inferências possam suportar as hipóteses gerais. Os postulados do
sistema, suas combinações, os princípios e processos governando suas interconexões e
organização e as predições dessas relações funcionais, são todas construções hipotéticas.
Assim, explicativa é a abordagem do fenômeno humano pela ciência moderna, com
seus métodos nomotéticos de investigação. Dilthey (1945) considera que é um erro fundamen-
tal adotar essa abordagem primariamente, quando não exclusivamente, na Psicologia, uma vez
que as experiências vividas são dadas em sua unidade, como um todo significativo. Assim, os
métodos através dos quais estudamos a vida psicológica, a história e a sociedade devem ser
diferentes daqueles que usamos para estudar a natureza. A outra dificuldade que Dilthey
(1945) vê na abordagem explicativa em ciências humanas é que sempre se podem elaborar
diferentes hipóteses para explicar os dados empíricos colhidos. Além disso, tudo o que se
pode estabelecer com eles tem validade probabilística, e deduzir deles qualquer coisa em
relação a uma pessoa real é uma ação baseada numa indução que não tem sustentação lógica.
Assim, segundo Wertz (1998), o conhecimento explicativo em Psicologia tem os
seguintes limites: a "certeza" que ele estabelece é sempre probabilística, sempre se poderá
construir teorias e explicações alternativas para dar conta dos dados empíricos, e principal-
mente, as questões principais que são aquelas relativas à natureza do fenômeno humano não
podem ser resolvidas de uma maneira convincente nem significativa. O conhecimento adqui-
rido dessa forma, acreditam os humanistas, permanece estéril e incompleto.
Antes de retomar a questão do tipo de conhecimento psicológico adequado para
Dilthey, é necessário aqui fazer uma pausa para uma explicação mais adequada da explicação.
O que é explicar, para quem defende a explicação como a meta da ciência? Para Carl Hempel
(1970), a explicação tem duas características centrais. A primeira é ter relevância
explanatória, o que quer dizer que a informação apresentada fornece bom fundamento para
acreditar que o fenômeno a ser explicado de fato aconteceu ou acontecerá. É a condição
necessária a ser satisfeita para que estejamos autorizados a dizer que o fenômeno está
explicado, ou seja, que sob esta condição seu acontecimento era justamente o esperado.
115
Condição necessária, porém, não suficiente. Para Hempel (1970) uma explicação não
pode somente oferecer um fenômeno associado ao fenômeno que pretendemos explicar e
determinar que um garante a ocorrência do outro (para o Positivismo de Comte a explicação
se resumia a esta descrição de regularidades, de relações constantes entre fenômenos). Ela
deve também oferecer uma resposta ao por que do fenômeno que pretendemos explicar.
Porém, este porque deve ser uma explicação que se submeta à verificação empírica. Hempel
(1970) defende que o tipo de explicação que satisfaz as duas condições é a dedutivo-
nomológica. Nesta, o evento a ser explicado, denominado explanandum, é coberto por uma lei
geral da natureza, que em conjunto com as condições particulares (que antecederam o
explanandum), constituem o explanans. Vamos agora transcrever o exemplo dado por Hempel
(1970) de explicação dedutivo-nomológica, que será aproveitado no capítulo quatro para
demonstrar que algumas fragilidades explicativas das quais a Psicologia é acusada recaem
identicamente sobre a Física, a Biologia e a Astronomia. O evento a ser explicado
(explanandum) é o fato de que a altura da coluna de mercúrio em um barômetro de Torricelli
(tubo de vidro de 80 cm. completamente cheio de mercúrio, que é emborcado numa tina
também contendo mercúrio: parte do mercúrio passa do tubo para a tina, deixando uma
câmara de vácuo na parte superior) diminui quando a altitude aumenta:
“a) Em qualquer local, a pressão exercida na sua base pela coluna de mercúrio no tubo de
Torricelli é igual à pressão exercida na superfície livre do mercúrio existente na cuba pela
coluna de ar acima dela.
b) As pressões exercidas pelas colunas de mercúrio e de ar são proporcionais aos seus
pesos; e quanto menor a coluna menor o seu peso.
c) A coluna de ar acima da cuba aberta é certamente menor quando o aparelho está no
alto da montanha do que quando está em baixo.
d) (Portanto), a coluna de mercúrio no tubo é certamente menor quando o aparelho está
no alto da montanha do que quando está em baixo.” (1970, p.68)
No exemplo acima, o fenômeno a ser explicado (letra d) é justamente o que se espera-
va tendo em vista os fatos descritos por a, b e c. A afirmação expressa em d decorre dedutiva-
mente dos enunciados explanatórios (as sentenças explanans, cujo conjunto é o explanans).
Assim, a explicação dedutivo-nomológica pode ser resumida como um argumento dedutivo
no qual a conclusão é o fato a ser explicado (explanandum), e as premissas são um conjunto
de asserções (explanans) que definem leis gerais (L1, L2, ..., Ln) e condições necessárias
116
estabelecidas pela ocorrência de fatos particulares (C1, C2, ..., Cn). Podemos representar esta
forma de argumento, a explicação científica dedutivo-nomológica, pelo seguinte esquema:
L1, L2, ..., Ln
explanans
C1, C2, ..., Cn
E explanandum
No segundo tipo de explicação científica, a probabilística, o explanans implica o
explanandum, não com certeza dedutiva, mas somente com certeza aproximada ou alta proba-
bilidade. Hempel dá o exemplo para a explicação probabilística da explicação epidemiológica
de que pessoas expostas ao sarampo têm alta probabilidade de contrair a doença. No entanto,
como nem todos pegam a doença, só podemos dizer que a exposição a alguém doente traz alta
probabilidade de contrair sarampo ao exposto. Aqui, ao que parece, a explicação tende a ser
dedutivo-nomológica um dia, mas falta alguma ou algumas leis gerais ou conhecimento de
condições contingentes necessárias que tenham causado o explanandum.
Uma última observação necessária é a lembrança de que a estrutura de uma explicação
dedutivo-nomológica leva à predição. Se sabemos as leis da natureza e podemos controlar as
condições do experimento, podemos prever (deduzir) com certeza o seu resultado. Logo, se o
resultado não sai como o previsto, sabemos que necessariamente ou alguma das leis conside-
radas é falsa ou alguma das condições necessárias não foram controladas. É por isso que esta
forma de explicação é o ideal moderno de explicação científica. Uma vez que ficou mais bem
explicado o conceito de explicação, podemos voltar à argumentação de Dilthey.
3.2.4.2 Abordagem compreensiva da Psicologia
Algumas das características da vida mental encontradas por Dilthey (1945) em sua
análise foram sua unidade estrutural, seu desenvolvimento teleológico, a centralidade da moti-
vação e sentimentos e que membros dessa variedade de constituintes da vida mental (como
por exemplo representações e sentimentos) não podem ser reduzidos um ao outro ou deriva-
dos uns dos outros, embora estejam sempre envolvidos em interconexões intrínsecas. Assim, a
abordagem compreensiva considera o ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e
conseqüente, parte e todo, porque essa abordagem não dá conta do ser humano em seu
significado antropológico superior. Por mais que se tente explicar a causa do comportamento
117
humano, sempre ficará faltando a questão do sentido, ou seja, a questão fundamentalmente
humana. E sentido e significado não se explicam, podemos apenas tentar compreendê-los.
Assim o evento psicológico não poderia ser explicado, somente compreendido, pois
teria um caráter de singularidade e sentido que não é captado por qualquer tipo de tentativa
explicativa-experimental. Além seguir a linha de Brentano denunciando o caráter excessiva-
mente especulativo do associacionismo, que seria baseado em um conjunto muito extenso de
hipóteses especulativas sem qualquer suporte empírico ou experimental (Penna, 1991),
Dilthey enfatiza sua crítica do caráter mutilador da abordagem explicativa, que perde o que os
fenômenos humanos têm de específico, seu significado. Dilthey (1945) define significado
como sendo o modo peculiar de relação que, dentro da vida, guardam as partes com o todo.
Penna (1991) expõe a diferença entre a abordagem explicativa e a abordagem compreensiva
tal qual Dilthey a vê, através de uma metáfora sobre um quadro. Explicativamente, podemos
abordar o fenômeno de um quadro acumulando dados sobre o seu peso, dimensões, material
de que são feitas a tela e a moldura, tipo de tintas utilizadas, etc. Nada disso no entanto nos
revelará sua verdadeira razão de ser, seu sentido. Para termos essa revelação, precisamos
adotar uma atitude compreensiva. Todos os fenômenos psicológicos e humanos portanto se
caracterizariam por suas relações de sentido, e não físico-causais, portanto, teriam que ser
abordados por um método diferente.
Para Dilthey (1945) a hermenêutica deveria ser o método de investigação das ciências
humanas (ciências do espírito). Originalmente um método surgido para a interpretação de
textos canônicos (a Bíblia), a hermenêutica foi sendo adotada em Filologia, Direito, História
até chegar a sua forma contemporânea que surge da obra de Hans-Georg Gadamer (2003)
“Verdade e Método”. Ela consiste numa tentativa de transformar a hermenêutica, palavra que
designa qualquer técnica de interpretação, num método geral de interpretação. Para a herme-
nêutica o significado de qualquer produção cultural humana (inclusive suas ações) nunca pode
ser entendido sem considerar a rede de significações relacionadas no seu ambiente cultural.
Para esta, o ser humano aparece não como uma resultante de uma série de coisas, mas como o
iniciante de uma série de coisas. Assim, o que se procura é compreender o sentido do
momento presente e da conduta consciente que o ser humano executa, e não explicar as
causas que teriam determinado aquele comportamento. O enfoque explicativo se refere ao
homem como resultado, ao homem como passado. O enfoque compreensivo se refere ao
homem presente, ao homem desafiado por questões de sentido. Ele é próprio para o estudo de
um objeto que é auto-consciente, auto-orientado e criativo, em suma, possuidor de livre-
arbítrio. Se, como quer a Psicologia Humanista (Rychlak, 1988), a pessoa em seu pleno
118
funcionamento é um organismo único, com a habilidade para direcionar, escolher, e alterar os
motivos que guiam o projeto de seu curso de vida, só resta à Psicologia o estudo das causas
finais da ação, e não a busca de causas eficientes do comportamento. E é isso que traz esta
perspectiva: o estudo teleológico do comportamento, em contraste com o estudo causal.
Mas, para que a abordagem compreensiva possa ser considerada científica, teríamos que
reformular o significado de ciência, abandonando o conceito de cientificidade característico
da ciência moderna. Isso se dá porque, segundo este, a atividade científica se caracteriza pela
descoberta de funções na natureza. É essa reformulação no significado de ciência psicológica
que irá propor Husserl com a fenomenologia.
Em suma, a polaridade existente entre as perspectivas explicativa e compreensiva
(chamadas por Smith, 1978, de causal e interpretativa) se caracteriza pela distinção de
Dilthey entre ciências naturais e humanas (Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften), no
contraste metodológico de Max Weber entre explicação e compreensão, no contraste entre
causas e razões, entre causas eficientes e causas finais (teleológicas), entre comportamento e
ação no sentido que tem essas palavras para o senso comum (poderíamos classificar tamm
esse contraste com os termos comportamento e conduta, conforme definidos por Krüger
(1994)). É, como conclui Smith (1978), o contraste entre uma explicação causal, que
tradicionalmente nasce de um ponto de vista exterior à pessoa que é o sujeito do
comportamento, e a compreensão interpretativa, tradicionalmente oriunda de um ponto de
vista interno à perspectiva da pessoa, plena de sentimentos, significados e valores.
3.2.4.3 Ciência e Filosofia
A segunda tese defendida neste trabalho, é a de que a posição de Dilthey é reflexo do
equivoco básico das assim chamadas ciências sociais contemporâneas. O equívoco é que o
domínio da ciência é o campo das causas formais e eficientes. O campo das causas finais, da
teleologia, é domínio da Filosofia. A distinção de Wilhelm Dilthey entre ciências naturais e
humanas, entre causas e razões, separa não o campo entre dois tipos de ciência, mas sim o
campo onde a ciência pode atuar do campo que é domínio exclusivo da Filosofia.
Este é um tema extremamente importante na avaliação epistemológica das posições
pós-modernas dentro da Psicologia. Dilthey inclusive é apontado por muitos autores, como
por exemplo Arendt (1999), como o precursor na Psicologia dessas posições, o que é, por seu
turno, outro equívoco. Arendt aponta que a dicotomia cunhada por Dilthey entre a perspectiva
compreensiva e a perspectiva explicativa nas ciências se faz presente há mais de um século
nas formulações dos problemas na Psicologia. Ele distingue aspectos compatíveis com o
119
pensamento pós-moderno no posicionamento de Dilthey a respeito da necessidade de uma
pesquisa idiográfica em Psicologia, citando ainda autores como Mos (apud. Arendt, 1999) que
atribuem a Dilthey o papel de precursor do pensamento pós-moderno em Psicologia.
No entanto, a abordagem compreensiva aceita a realidade ontológica da mente e de
algumas características da vida mental, como sua unidade estrutural, seu desenvolvimento
teleológico e a centralidade da motivação e sentimentos. Além disso, esta abordagem busca a
compreensão do sentido último e único que um comportamento tem para um indivíduo,
razões pelas quais sua caracterização como precursora da Psicologia de influência pós-
moderna é equivocada. Direcionado para a questão do sentido, o método idiográfico defende
que sentido e significado não se explicam, podemos apenas tentar compreendê-los em seu
sentido último. No entanto, para o pensamento pós-moderno não existe tal coisa como um
sentido individual e último, não existe interpretação verdadeira sobre um evento.
Como afirma Kvale (1992, p.43), autor pós-moderno que também refuta essa afiliação
a Dilthey, a dicotomia moderna entre o universal e o individual encontrou na Psicologia seu
espelho ideal, com a oposição entre os métodos nomotéticos e idiográficos. Isso porque a
modernidade não se caracteriza somente pela busca de objetividade e universalidade, mas
também pela busca do individual e do particular. Dessa forma, Kvale (op.cit., p. 44) lembra
que o behaviorismo e o humanismo são os dois lados da mesma moeda moderna, assim como
respectivamente suas abordagens nomotéticas e idiográficas. Na verdade, a perspectiva
idiográfica se baseia totalmente na idéia de sujeito, um sujeito que aparece não como uma
resultante de uma série de coisas, mas como o iniciante de uma série de coisas. Assim, o
enfoque compreensivo é próprio para o estudo de um objeto que é autoconsciente, auto-
orientado e criativo, em suma, possuidor de livre-arbítrio. Esse sem dúvida é um objeto
rigorosamente oposto ao “objeto” da Psicologia de influência pós-modernista.
3.2.4 Problemas metodológicos especiais da Psicologia
O problema da origem e do método de obtenção do conhecimento já foi investigado
extensivamente no capítulo dois, razão pela qual apenas alguns comentários relativos à
Psicologia serão feitos aqui. Entre os métodos idiográficos de investigação, podemos destacar
o hermenêutico e o fenomenológico, e um ou outro é utilizado na disciplina pelas abordagens
psicanalíticas, humanistas e fenomenológicas. Mas como estamos aqui investigando a possibi-
lidade da Psicologia se constituir enquanto ciência moderna, temos somente que lembrar quais
são e quais os fundamentos dos métodos nomotéticos de investigação das duas principais
abordagens da Psicologia Moderna, o Behaviorismo e o Cognitivismo. É evidente que o modo
120
como respondemos à pergunta acerca da forma como obtemos o conhecimento é fundamental
na escolha dos métodos que adotaremos para o buscarmos. Como veremos nos itens adiante, o
Behaviorismo adota uma posição empirista, e o Cognitivismo adota uma posição construtivis-
ta e racionalista. Isto implica como veremos, uma adesão do Behaviorismo, que é positivista,
ao o método indutivo experimental. Já o Cognitivismo, por ser racionalista e construtivista
adere ao método hipotético-dedutivo de investigação.
Mas a escolha do método é só o menor de nossos problemas. Quando se resolve aderir à
crença de que o ser humano está submetido à leis e seu comportamento é determinado ou
condicionado por elas, e que portanto temos que aplicar o método científico para estudá-lo,
nos deparamos com graves obstáculos à investigação. Vamos expor estas questões
primeiramente aqui, sinteticamente, para depois as examinarmos no contexto das tentativas de
solução que as diferentes abordagens em psicologia ofereceram a eles. Se aceitamos a
definição da Psicologia como o estudo científico do comportamento e dos processos
cognitivos (mentais), veremos que esta definição de objeto coloca alguns graves problemas
específicos para a sua investigação científica, como a subjetividade, a limitação nos controles
que podemos impor à ele na investigação, a dificuldade de quantificá-lo, e ainda, sua extrema
complexidade. Vamos explicitar estas dificuldades uma a uma.
3.2.4.1 Subjetividade do objeto
A mais evidente das limitações da Psicologia, é o fato de que seu verdadeiro objeto,
não é observável através dos sentidos. Se partirmos do princípio que os sentidos são a fonte
do conhecimento, estamos diante de uma conclusão insofismável: processos mentais não são
objetos de investigação científica possível. Mas mesmo que não consideremos os sentidos
como a fonte do conhecimento, ainda resta seu papel como fonte das proposições
observacionais que julgarão nossas hipóteses sobre o mundo empírico. Como julgar então a
validade destas hipóteses se não temos observações públicas de processos mentais?
Um segundo problema que seria ligado à questão da subjetividade é o da aparente
maior dificuldade apontada por alguns psicólogos de se adotar atitudes científicas isentas de
preconceitos em relação ao um objeto de estudo que, em última análise, somos nós mesmos.
O objeto de estudo da Psicologia seria especialmente receptivo (Marx & Hillix, 1973) à
projeção de nossas próprias idéias. Como já vimos no capítulo dois, Popper (1999) demonstra
que esta é uma preocupação característica apenas da tradição empirista, já que os preconceitos
são partes constituintes e indissociáveis da atividade científica. Além disso, o objeto das
ciências naturais não seria mais privado de nossas projeções que o da Psicologia. De qualquer
121
forma, prevalece o fato de que, por estar tratando de nossa visão acerca de nós mesmos, a
Psicologia tem se manifestado a disciplina com reações mais extremadas e difíceis em relação
a evidências experimentais, terreno mais propício para o recolhimento de exemplos daquilo
que Bachelard (1975) denominou “obstáculo epistemológico”.
3.2.4.2 Limitação dos controles
Só através de formas de medição adequadas é que podemos estar certos de que as
relações que formulamos como existentes entre duas variáveis são válidas, portanto, a
possibilidade e os instrumentos para um controle rigoroso dos experimentos são fundamentais
para a atividade científica. Aqui o objeto da Psicologia apresenta um de seus problemas à
ciência: não se pode impor ao ser humano muitas vezes os controles necessários à
investigação científica. Nosso sistema de valores limita muito a manipulação e o controle das
variáveis que envolvem seu objeto de pesquisa, que em última análise, é o ser humano.
Assim, para estudar o efeito de certos eventos (de forma geral prejudiciais) sobre o ser
humano, é preciso que os esperemos ocorrerem ao acaso ou que reunamos evidências de casos
isolados que nos ofereçam algo do que pretendemos estudar. Isto obviamente é um entrave
muito forte ao avanço da Psicologia.
Existe ainda uma outra dificuldade no controle do objeto da Psicologia. Este é o fato de
que os efeitos do experimentador sobre o objeto de seu experimento são muito grandes. O ser
humano sabe quando está sendo submetido à pesquisa, e isso altera suas reações de forma
dificilmente ponderável. Da mesma forma, essa influência pode ser fruto de uma tentativa
consciente ou inconsciente do experimentador de levar o resultado do experimento em direção
à confirmação de suas crenças ou teorias pessoais.
É por esses dois motivos que muitos psicólogos se voltaram para o estudo de animais,
uma vez que há uma facilidade muito maior em sua manipulação para pesquisa, e uma
influência muito menor da distorção que uma situação de pesquisa leva ao comportamento.
No entanto, a validade das generalizações dessas pesquisas para o ser humano envolve a
crença de que certos animais são separados evolutivamente do ser humano apenas numa
questão quantitativa, e não, qualitativa. É sabido que o humanismo rejeita esta tese, assim
como o Cognitivismo. Tal tipo de pesquisa só encontra acolhida no Behaviorismo.
3.2.4.3 Dificuldade de Quantificação
É sabido que a ciência depende em larga medida da quantificação dos fenômenos que
estuda, e que o objeto da Psicologia (o comportamento e principalmente os processos mentais
122
humanos), é largamente refratário à quantificação. A Psicologia não tem sido bem sucedida
em suas tentativas de aplicar um tratamento matemático às suas pesquisas e problemas. Será
realmente possível que algum dia o objeto de estudo da Psicologia vá se prestar à medição da
matemática? Alguns acham que não é possível responder a tal pergunta no estágio atual de
nossa ciência. Outros, como os humanistas, respondem com um rotundo não a essa questão.
A tradição humanista em Psicologia questiona inclusive a conveniência da tentativa de
quantificação dos problemas psicológicos, por ela supostamente vir a restringir arbitraria-
mente e distorcer os verdadeiros eventos psicológicos, que tem sua compreensão possível
somente através de seu sentido. Para a Psicologia Humanista, a quantificação só tem êxito
quando um problema é tratado de tal forma limitada que já perdeu todo seu significado.
Apesar de sabermos que estes argumentos são compatíveis com a maioria das abordagens
experimentais de fenômenos psicológicos que conhecemos, temos que ao menos colocar em
dúvida o radicalismo da posição que, ao dispensar a necessidade de quantificação, parece
esquecer que ela é a base da objetividade e da precisão do método que deu às outras ciências
seu progresso notável. A quantificação não é o objetivo do psicólogo experimental, ela é uma
ferramenta de investigação da realidade, não um fim em si mesma. Não é concebível que a
Psicologia possa alcançar um estágio de desenvolvimento compatível com o das ciências
naturais se renunciar a esta poderosa ferramenta, essência mesma da síntese epistemológica
representada pela Revolução Científica.
3.2.4.4 Complexidade
De qualquer ângulo que se veja, o objeto de estudo da Psicologia é mais complexo que
os objetos de outras ciências. Se olharmos de um ponto de vista materialista, reducionista,
chegaríamos à conclusão que é preciso saber muito de Química para entender a ação dos
neurotransmissores, ação cuja compreensão por sua vez, é necessária para se compreender o
funcionamento neural, o que, por sua vez, é necessário para se entender o altamente complexo
funcionamento cerebral, que por último, seria a causa última do comportamento humano.
Ainda assim, se consideramos o ser humano do ponto de vista de suas relações sociais,
estamos diante um organismo que receberia a influência de inumeráveis variáveis culturais,
cuja influência sobre sua “organização cerebral”, seria altamente complexa.
Avaliamos a complexidade de uma ciência através do número de variáveis intervenien-
tes que atuam na determinação de alguma conseqüência sobre o objeto de seu estudo. Se ao
pensarmos de forma reducionista já podemos ter idéia do nível de complexidade do objeto da
Psicologia, que dirá se adotarmos um ponto de vista cognitivista, onde entram em questão os
123
aspectos cognitivos da determinação do comportamento, ou ainda se adotarmos um ponto de
vista humanista, para o qual o ser humano é livre e proativo. Isto acrescentaria uma escala de
complexidade virtualmente imensurável e imponderável.
Essas são, em suma, as principais questões epistemológicas que envolvem a Psicologia.
Estamos diante portanto, de um problema de grande complexidade, talvez o mais complexo
problema de epistemologia regional. Vimos portanto que se quisermos responder a questão da
possibilidade de a Psicologia se constituir enquanto ciência moderna, temos que responder se
as dificuldades ontológicas e metodológicas que o objeto de estudo da Psicologia apresenta
são superáveis ou ao menos contornáveis, se tornando assim, aceitáveis. Estas respostas,
como sabemos, não são unitárias. Cada abordagem da Psicologia oferece respostas diferentes
para cada um destes problemas. E são as respostas particulares do Behaviorismo e da
Psicologia Humanista que descreveremos nos próximos itens, antes de nos debruçarmos sobre
as posições da Psicologia Cognitiva.
3.3 A Psicologia à espera da Ciência
Este item se trata de um brevíssimo inventário dos diferentes vetos filosóficos que a
Psicologia sofreu quanto a sua pretensão de se tornar ciência empírica, e de suas primeiras
manifestações mal-sucedidas de empreendimento científico. Não nos debruçaremos sobre
temas históricos que merecem aqui citação, mas não investigação. A necessidade de
delimitação do esforço de pesquisa para o tema, que é o da possibilidade de estabelecimento
da Psicologia como ciência moderna, impõe que analisemos a forma de abordagem
psicológica que exprimiu a plena adesão a pressupostos modernos, e que tomemos como
aceita a tese de que o Estruturalismo de Wundt, o Funcionalismo norte-americano e a
Psicanálise fracassaram em alcançar essa adesão estrita. É o que será justificado aqui, além da
justificativa da exclusão da Psicanálise como parte relevante deste debate.
3.3.1 Os vetos filosóficos à Psicologia científica
Já abordamos nesta tese diversos vetos filosóficos às possibilidades da Psicologia
como ciência empírica experimental. A maioria destes vetos, de uma forma ou de outra, são
derivados das objeções da Imannuel Kant. O primeiro veto de Kant (1974) a possibilidade de
124
um conhecimento empírico da Psicologia é epistemológico, e vem de sua rejeição geral do
método indutivo, do qual não se podem deduzir princípios absolutamente certos. Ainda
identificando ciência e certeza, Kant não pode aceitar como científico qualquer tipo de
procedimento empírico de obtenção de conhecimento.
O segundo veto kantiano é de natureza ontológica, e se dirige à possibilidade de
quantificação dos fenômenos psicológicos. A psicologia como ciência empírica, nem procede
apriori, nem pode quantificar seus dados e empregar o cálculo matemático na descrição
precisa da realidade e das leis que a regem. E esse veto é definitivo: os fenômenos psíquicos
produzem-se só no tempo, e não no espaço, portanto, não são passíveis de quantificação.
O terceiro grupo de vetos kantianos são os metodológicos, se dirigindo
especificamente a possibilidade de aplicação do método experimental à Psicologia. Como os
expôs Penna (1991), eles são três: primeiro, fruto da impossibilidade de o sujeito que pensa
ser ao mesmo tempo sujeito e objeto do experimento; segundo, a impossibilidade de proceder
por análise e síntese, pois não se podem considerar os efeitos psíquicos em separado, como
elementos, uma vez que a vida psíquica na realidade forma uma totalidade cujas partes não
podem ser separadas nem combinadas; por último, o fato de que no caso do evento
psicológico, a situação de experimento altera o estado do objeto que essa situação pretende
revelar, assim como a observação interna o alteraria.
Os vetos kantianos ecoam até hoje na história do pensamento, influenciando a maioria
das oposições filosóficas às possibilidades da Psicologia como ciência. Duas dessas famílias
de oposições nos interessam particularmente aqui; uma delas estará em subitem adiante neste
capítulo, e outra já foi aventada nesta tese. As abordaremos resumidamente aqui a título de
organização do argumento. A primeira é a fenomenológica, que podemos remontar a
Brentano e Husserl; a segunda, a positivista, e podemos atribuí-la à Comte.
Brentano (Penna, 1991) segue a segunda linha de crítica metodológica de Kant,
enfatizando e explorando suas conseqüências ontológicas. Rompendo com as tentativas
psicológicas, feitas pelo Estruturalismo de Wundt e pela Psicologia Fisiológica, de
decomposição da vida mental em elementos básicos constituintes, Brentano declara a
unicidade da vida mental exatamente como sua característica distintiva, conferida pela
consciência. Ele advoga a necessidade do estudo sobre o ato mental e a intencionalidade da
consciência. Husserl (1952), como veremos, defende que uma Psicologia como ciência
rigorosa só pode ser uma filosofia, especificamente, uma fenomenologia. A Psicologia deve
ser uma ciência de essências dos atos mentais intencionais. A Psicologia experimental é
125
impossível para Husserl, pois não investiga a psique, constrói um objeto que nada tem a ver
com a consciência, e apresenta resultados que não dizem nada de importante para nossa vida.
Mais do que os desenvolvimentos fenomenológicos dos vetos kantianos, que surgiram
como uma reação a já nascente abordagem experimental da Psicologia, pesaram contra o
estabelecimento de uma Psicologia científica seus desenvolvimentos positivistas, anteriores
ao surgimento dos trabalhos de Fechner e Weber. O responsável pelo veto positivista à
Psicologia como ciência é Comte, que não relaciona a Psicologia na sua classificação das
ciências empíricas por ordem de complexidade: à biologia segue-se imediatamente a Sociolo-
gia. Para Penna (1991), o veto comtiano a Psicologia é fruto de uma confusão, pois, na época
de Comte, definida como ciência da alma, ela se baseava no método da introspecção. Isso, de
fato, era inadmissível para o Positivismo. No entanto ele estaria persuadido que algo como
uma “psicologia positiva” acabara de ser fundada em sua época, cujos métodos, ele aprovava.
De qualquer forma, a crítica de Comte contra a Psicologia é radical, e decorre dos
vetos metodológicos kantianos primeiro e terceiro. Comte critica de forma impiedosa a
observação interna, pois essa pretensa contemplação direta do espírito por ele mesmo não
passaria de ilusão metafísica. O espírito do homem não pode ser objeto de observação, porque
ninguém pode observá-lo em outrem e tão pouco em si mesmo: a observação dos fenômenos
psíquicos pelo espírito alteraria esses mesmos fenômenos. De mais a mais, se podemos
observar, mesmo distorcidos, os fenômenos com o espírito, com o que observaríamos o
espírito? Esse argumento é na verdade uma versão idiossincrática do eu transcedental
kantiano. De qualquer forma, o homem não poderia observar suas legítimas operações
intelectuais sem alterá-las, só o que poderia observar são os órgãos que as operam e os
produtos da atividade intelectual. No primeiro caso, entraríamos no domínio da fisiologia, no
segundo, da sociologia. Portanto, a Psicologia não existe como ciência positiva.
Como observa Japiassu (1975), essa proscrição de Comte à introspecção é a herança
positivista ao Behaviorismo, que para assegurar seu estatuto de cientificidade, assimilou o
princípio do veto positivista à introspecção, podendo a partir dele definir um campo de
aplicação legítimo para os métodos científicos aceitos. A ciência psicológica moderna, para
nascer, tinha que encontrar uma solução para os vetos filosóficos kantianos e comtianos,
assim como ela hoje, para continuar viva, deve ser capaz de encontrar uma solução para as
críticas de Brentano, Husserl, Dilthey e Popper, assim como para as críticas humanistas
(calcadas em grande parte nas fenomenológicas) e pós-modernas.
126
3.3.2 Antes do Behaviorismo: breve notícia de uma protociência
Torne-se claro aqui que quando assumimos que as primeiras escolas psicológicas fo-
ram fracassadas, por fracasso está se referindo especificamente a essa incapacidade de alcan-
çar o reconhecimento pela comunidade científica e de se adequar aos cânones epistemológi-
cos e metodológicos da ciência moderna de então, uma vez que sua aderência ontológica,
como veremos, era estrita. Tanto o Estruturalismo, como o Funcionalismo e por fim a Psica-
nálise freudiana, eram estritamente mecanicistas e fisicalistas, parecendo querer que, com sua
estrita aderência às teses metafísicas hegemônicas das ciências naturais de seu tempo, fossem-
lhe perdoadas suas inobservâncias dos mais básicos critérios epistêmicos e metodológicos.
Essas inobservâncias não existiam na psicofísica nascida das obras de Gustav Fechner
e Ernst Weber, verdadeiramente, as primeiras formulações de leis psicológicas completamen-
te fundadas no método experimental. Isso foi conseguido a partir do esforço de Fechner em
superar o veto ontológico kantiano, introduzindo a medida, de forma genial, na abordagem de
um evento plenamente psicológico como a sensação. No entanto, cabe registrar que isso foi
possível a Fechner porque ele trabalhava sobre pressupostos ontológicos absolutamente dis-
tintos do monismo materialista do positivismo, e tinha a intenção de mostrar uma unidade
psicofísica em direção oposta, panpsíquica. Fechner era um monista, acreditava que os assim
ditos fenômenos físicos e psíquicos eram aspectos diversos de uma mesma realidade, de
ordem espiritual ou psíquica. Este aspecto da obra de Fechner é usualmente suprimido, certa-
mente em função do preconceito metafísico materialista ainda reinante nas ciências cogniti-
vas, que quer fazer parecer a oposição entre dualismo e materialismo uma oposição absoluta-
mente natural. Ele defendia que quando encarávamos esses fenômenos em função de uma
perspectiva externa, eles pareciam físicos, quando a perspectiva era interna, eles pareciam psi-
quicos. Assim, buscava as relações funcionais que tinham que existir entre fenômenos de uma
mesma ordem, e acreditava que estas relações podiam ser expressas em termos matemáticos.
Partindo da lei proposta por Weber para os limiares diferenciais, Fechner propõe que a
sensação poderia ser considerada como sendo o resultado de uma constante específica pelo
logaritmo do estímulo. Em outras palavras, o que ele propõe, e demonstra experimentalmente,
é que enquanto a intensidade do estímulo varia aritmeticamente, a intensidade da sensação por
ele provocada varia geometricamente. O problema é que essa incursão do método
experimental no campo da Psicologia se deu fazendo uma concessão ao uso da introspecção,
pois tais experimentos eram baseados nos depoimentos verbais dos sujeitos que se submetiam
aos experimentos de limiares perceptivos.
127
No entanto os progressos da Psicofísica e da Fisiologia do sistema nervoso geraram
um clima de euforia positivista em relação às novas possibilidades de alcance das ciências
positivas, alcances insuspeitados mesmo para as pretensões (já bastante pretensiosas) de
Comte. Essa euforia parece ter abandonado o detalhe de que o critério de objetividade das
proposições empíricas, que deveriam ser públicas, estava sendo substituído pelos depoimentos
verbais (embora extremamente consistentes) dos objetos-sujeitos das pesquisas.
Foi esse primeiro padrão de experimentalismo que Wilhelm Wundt adotou ao
proclamar a fundação da Psicologia como disciplina experimental. A primeira escola
psicológica, o Estruturalismo, proclamava que os únicos fenômenos reais são os fenômenos
psíquicos, e que tanto as ciências físicas como as psicológicas apóiam-se tão somente em
representações e experiências internas. O objeto da Psicologia portanto, para o Estruturalismo,
era a experiência imediata consciente e seus elementos.
O Estruturalismo era uma abordagem elementarista e fisicalista, herança da formação
de fisiologista de seu fundador. Para ele, a utilização do método experimental em psicologia
se restringiria às sensações, pois em relação a elas se poderiam controlar as condições
fisiológicas de sua aparição. Já em relação aos processos psicológicos superiores, como o
raciocínio e pensamento, Wundt veta o uso do experimento, em função da crença de que eles
seriam de natureza ativa e produtiva, sintetizando as sensações elementares. Para Wundt, a
introspecção experimental não ultrapassava o papel de simples método de observação,
renegando as pretensões dos mestres de Popper (Kulpe e Bühler) de estenderem sua aplicação
ao estudo do pensamento. Mas o fato é que uma forma de introspecção também envolvia as
pesquisas em relação às sensações, e assim o Estruturalismo de Wundt e a “Psicologia dos
primeiros dias”, com a escola de Würzburg, os brilhantes trabalhos sobre memória de
Ebbinghaus, a revolta Funcionalista e todas as tentativas incipientes de experimentalismo em
Psicologia falharam (com exceção dos trabalhos de outro Fisiologista, Ivan Pavlov, abordado
à frente) em se adequar aos cânones de cientificidade impostos pelo Positivismo, até a
aparição do movimento Behaviorista. Para aceder ao estatuto de cientificidade estabelecido
pela necessidade positivista de observação pública do objeto, a psicologia precisava renunciar
a seu objeto de estudo, inobservável, e a seu método, irreproduzível.
3.3.3 O caso especial da Psicanálise
Nada se pode acrescentar de especial aqui aos cem anos de debate sobre a
cientificidade da Psicanálise. Cabe aqui somente justificar sua exclusão de uma posição
relevante no debate epistemológico que estamos tentando levantar aqui, sobre a sobrevivência
128
ou não do projeto da ciência moderna psicológica. A primeira justificativa é classificatória: a
Psicanálise, como defende a maioria dos psicanalistas contemporâneos, não é Psicologia, é
sim uma disciplina especial das ciências humanas, com seu próprio objeto e seus próprios
métodos e critérios de validação. Não caberia aqui portanto sua inclusão num debate do qual
se exclui, com razão, e do qual é excluída por psicólogos experimentais, com igual razão.
A segunda justificativa é pragmática, e reflete a necessidade de se limitar o campo de
investigação nesta tese, razão a qual, de resto, justifica a mera referência efetuada acima às
escolas psicológicas que antecederam o Behaviorismo na utopia científica da Psicologia.
A terceira justificativa é epistemológica, e se refere à completa inadequação da Psica-
nálise em relação a qualquer definição ou descrição que se faça da ciência moderna por seus
maiores interpretes filosóficos, o Positivismo Lógico e o Racionalismo Crítico, e também pela
diferença essencial de seus resultados para os resultados com poder preditivo da ciência
moderna. Em relação ao Positivismo Lógico, podemos afirmar a completa incompatibilidade
da Psicanálise baseados em uma série de características, conforme foram descritas por
Japiassu (1998). Se a Psicanálise é científica, então ela deveria consistir num conjunto de
proposições que sistematizam, explicam e prevêem certos fenômenos observáveis,
satisfazendo regras lógicas. Para tal, precisa que de suas teorias sejam extraíveis
conseqüências passíveis de verificação experimental, sem o que, como vimos, para o
Positivismo Lógico nenhuma teoria tem conteúdo definível. Ora, segundo os critérios
semânticos do Positivismo Lógico (fisicalismo), todos os conceitos da Psicanálise deveriam
ser reduzíveis a procedimentos observacionais determinados que liguem determinada noção a
um determinado conjunto de fatos observáveis. Ora, parece desnecessário prosseguir, tão logo
nos lembremos de conceitos como Id, superego, complexo de Édipo, libido, catexia, etc.
Isto poderia ser, mas não é tudo, nem o mais importante. Pois a validação empírica de
seus conceitos (para o Positivismo Lógico) é só o princípio do caminho, o fundamental é a
satisfação do critério de validação, a lógica da prova, que para o Positivismo Lógico é a
verificação. A Psicanálise foge dessa obrigação afirmando que seu método é interpretativo,
não verificativo. Mas em que condições poderíamos validar determinada interpretação de um
evento psíquico? Pela sua coerência? Pela aquiescência do paciente a ela? Pelo seu efeito
pragmático em função de uma possível melhora? Não, certamente nenhum desses motivos
pode validar determinada interpretação de uma série qualquer de fenômenos. Uma interpre-
tação deve poder ser um acesso à realidade objetiva, e todo acesso a essa realidade pode ser
obtida necessariamente por uma série de pesquisadores independentes que se disponham a
percorrer o mesmo caminho, cuidadosamente codificado, percorrido originalmente por aquele
129
que o revelou. Assim, se pode decidir entre interpretações rivais e predizer desenvolvimentos
ou aparições futuras do fenômeno. É claro que a Psicanálise não satisfaz qualquer uma dessas
exigências básicas de cientificidade.
Quanto ao seu material empírico, ele não é público ou reproduzível, sendo
exclusivamente baseado na relação entre analista e analisado. Não sendo comparáveis nem
submetíveis a tratamento estatístico, eles ficam exclusivamente sujeitos a uma interpretação
sem controle do psicanalista. Ainda, a possível validação pragmática não se dá, pois não
existem critérios de melhora ou cura pelos quais alguma medida de eficácia terapêutica
pudesse ser levada a cabo, de mais a mais, esse sucesso parece simplesmente não existir.
Se tomarmos em perspectiva as críticas desferidas pelo Racionalismo Crítico,
estaremos diante daquele que é talvez o mais famoso veto às pretensões de cientificidade da
Psicanálise, que é o argumento popperiano de que teorias como a freudiana e a adleriana não
são científicas porque podem explicar tudo e não podem prever nada, em suma, porque não
são falsificáveis. Isto não significa que elas são falsas, muito ao contrário, indica que nunca
poderíamos provar sua falsidade. São proposições portanto, que não apresentam conseqüên-
cias empíricas que possam ser colocadas à prova, portanto, a Psicanálise é metafísica.
Para Popper (1975) a Psicanálise carece daquela honestidade e coragem característica
das teorias legitimamente científicas, que assumem riscos quando prevêem de que forma
devem se desenrolar certos fenômenos. A Psicanálise não corre riscos, visto que se entrinchei-
ra com um arsenal de hipóteses ad hoc, aceitas sem nenhuma confirmação experimental real
ou possível, para assegurar a coerência de suas teorias. Não há evento empírico que não possa
ser interpretado e explicado à luz de suas categorias, nem críticas de cientistas e insatisfações
de pacientes que não possam ser enquadradas como resistências ou efeitos de recalques.
Muitas outras dificuldades epistemológicas poderiam ser apontadas na Psicanálise,
(como as alegações de um funcionamento não-lógico do inconsciente), mas parecem absoluta-
mente desnecessárias. Sob o ponto de vista defendido por esta tese ela é uma filosofia da men-
te, que não está diretamente envolvida nos termos do debate. Mas cabe ainda aqui o registro
do curioso conflito que o fisiologista Sigmund Freud, fugindo conscientemente de definições
epistemológicas, revelou ao jamais ter renunciando a pretensão de tornar a Psicanálise uma
disciplina científica, objetivo em função do qual ele tomou o caminho errado, o ontológico.
Em seu “Projeto para uma Psicologia Científica”, Freud (1975) tenta representar o
que viria a se tornar depois sua teoria do aparelho psíquico em termos neurofisiológicos, e
adere explicitamente a uma profissão de fé mecanicista e fisicalista. Freud nunca abandonou
suas pretensões – agora retomadas por uma corrente auto-denominada “neuropsicanálise” – de
130
caracterizar a Psicanálise como uma extensão da medicina, uma ciência da natureza. A
posição de Freud é, como já abordada aqui, fundada numa concepção monista materialista de
universo. Freud adere explicitamente ao reducionismo fisicalista e renuncia ao vitalismo, o
que, como já demonstramos, implica na sua estrita aderência ao fisicalismo, aderência esta
descrita por Japiassu (1998, p.36) da seguinte forma:
“São as seguintes as teses fisicalistas – teses afirmando que a língua da física deve ser a
língua universal e unitária de todas as ciências – adotadas por Freud:
a. só há forças (manifestções materiais) físico-químicas;
b. somente essas forças agem no organismo (não há vitalismo);
c. a tarefa da ciência é descobrir a forma de ação dessas forças;
d. todas as demais formas de ação devem ser reduzidas às forças físico-químicas (fica
excluído o emergentismo, postulando forças irredutíveis).”
Assim Freud, não conseguindo adequar o método psicanalítico aos critérios de
cientificidade, jamais desistiu de fazer a Psicanálise ser reconhecida como ciência, coisa que
jamais conseguiu. Ele pensou que a estrita aderência às posições metafísicas do mecanicismo
e do fisicalismo pudesse salvaguardar uma aura de respeitabilidade científica para a
Psicanálise, fato que está claramente presente na raiz de suas discordâncias com Jung e de
suas preocupações com a “reputação científica” do discípulo, que a estaria arruinando por se
afastar desses pressupostos ontológicos. Mas a aderência estrita da Psicanálise ao modelo de
universo mecanicista-newtoniano, como o demonstrou Capra (1990), nada implica em relação
a sua constituição como ciência, somente diminui o ímpeto das críticas (e de fato diminui)
desferidas pelo materialismo fisicalista e behaviorista.
Os psicanalistas contemporâneos, em sua maioria, reconhecem que Freud estabeleceu
um novo objeto de estudo, os processos inconscientes, e que este clama por novos métodos e
por uma nova “ciência”. A Psicanálise não se utiliza do método científico, e sim
hermenêutico, interpretativo, e não é estrito senso uma Psicologia. Mas a pretensão fracassada
de Freud precisava, explicitamente, ser abordada aqui para que fique devidamente
fundamentado o julgamento de que o Behaviorismo é a primeira manifestação consistente de
ciência psicológica moderna, manifestação esta que abordaremos no próximo item.
131
3.4 Behaviorismo: enfim a ciência moderna
Este item tem como objetivo apresentar a abordagem da Psicologia que primeiro
conseguiu preencher todos os requisitos de cientificidade exigidos pelo projeto de Ciência
moderna, o Behaviorismo. A explicitação de suas atitudes metafísicas e afiliações
epistemológicas é absolutamente fundamental para os objetivos desta tese, que buscará
caracterizar plenamente a vinculação do Behaviorismo à concepção mecanicista de universo e
neo-positivista de epistemologia. Posteriormente, nos debruçaremos sobre a atitude
behaviorista: seus principais teóricos, suas afiliações ontológicas e soluções epistemológicas
para o desafio de integrar a Psicologia aos padrões da ciência moderna. Deve-se lembrar no
entanto que a função deste capítulo é antes oferecer o pano de fundo sobre o qual surge o
Cognitivismo do que o estudo específico do Behaviorismo. Este não é o objeto desta tese.
3.4.1 Definição de Behaviorismo
Buhrrus Frederic Skinner, um dos mais influentes psicólogos de todos os tempos,
escreve no primeiro parágrafo da introdução de seu livro “Sobre o Behaviorismo” (1982):
“O Behaviorismo não é a ciência do comportamento humano, mas, sim, a filosofia desta
ciência. Algumas das questões que ele propõe são: é possível tal ciência? Pode ela
explicar cada aspecto do comportamento humano? Que métodos pode empregar? São
suas leis tão válidas quanto as da Física e da Biologia? Proporcionará ela uma tecnologia
e, em caso positivo, que papel desempenhará nos assuntos humanos?” (p. 07)
Essa definição inicial é muito lúcida e nos poupa muito do trabalho de ter que
justificar a apresentação do Behaviorismo exatamente como o que ele é: um programa de
pesquisa no sentido que conferiu Lakatos (1974) a esse termo, que mantém em seu núcleo
hipóteses e pressupostos ontológicos e epistemológicos – ressalte-se compatíveis com os da
ciência moderna – tornados protegidos de falsificação por uma decisão metodológica.
Avaliaremos aqui esses pressupostos, e também sua vinculação ao modelo fisicalista-
mecanicista de universo e as concepções epistemológicas do Neo-positivismo
(Particularmente o Positivismo Lógico e o Operacionalismo).
O Behaviorismo é aquela Filosofia da Psicologia que considera que o objeto desta
disciplina é o comportamento dos organismos, que a Psicologia deve se dedicar a descrever as
leis que regulam as relações entre as condições antecedentes e o comportamento conseqüente
132
dos organismos, e que o método a ser utilizado nesta investigação é o método experimental
indutivo e a análise experimental do comportamento de organismos únicos.
Como nos diz Robinson (1979), a despeito do aspecto monolítico que o Behaviorismo
apresenta aos observadores externos, trata-se de uma perspectiva altamente diversificada e
mutante. Na Psicologia ela é muito mais uma cultura que uma escola, mais um hábito de
raciocínio que um sistema. Podemos reconhecer três posições básicas a respeito da natureza
do Behaviorismo, porém todas as três concordariam com as definições apresentadas acima.
A primeira é o Behaviorismo metafísico, posição propagandística defendida por seu
fundador, John Watson, desenvolvida a partir de seus escritos de 1924. Esta posição nega a
existência dos eventos mentais ou dos estados privados de conhecimento enquanto distintos
dos processos fisiológicos e dos modos de comportamento público. Pode ser considerado
como uma reformulação do velho materialismo: não existe algo como a consciência, existe só
o comportamento ou a disposição para responder de modos específicos a determinados
estímulos e processos neuro-fisiológicos. Portanto, para Watson, o comportamento é real,
objetivo, ao passo que a consciência pertence ao reino da fantasia. E por comportamento
Watson designava simplesmente os movimentos dos músculos.
A segunda posição básica, e a mais influente e generalizada delas, é o Behaviorismo
metodológico, descrita por Skinner (1982) como a convenção metodológica de evitar os
supostos sentimentos ou estados mentais intermediários, recorrendo diretamente as suas
causas físicas anteriores e as relacionando com o comportamento subseqüente do organismo.
Skinner exemplifica essa postura de forma simples: sabendo-se que uma criança não come há
muito tempo, e que por isso sente fome, e que por isso comerá, a análise se torna mais simples
se afirmamos que se ela não come há muito tempo, então comerá. Em outras palavras, o
behaviorista metodológico é o legítimo positivista. Ele não se arvora a proposições
metafísicas explícitas sobre a natureza de seu objeto. Não se interessa pela questão de
estabelecer se existem eventos mentais no sentido de estados “internos” de um organismo.
Para ele, estes estados “internos” manifestam-se através de estados fisiológicos ou de
comportamentos públicos, sendo considerados como epifenômenos destes. Somente conexões
entre estímulos publicamente observáveis e respostas publicamente observáveis podem ser
cientificamente investigadas. Se entre estes intervêm ou não estados de consciência privada, é
uma questão que ultrapassa o campo da ciência empírica. A Psicologia ou é uma ciência
natural ou então não é ciência. Como nos disse Skinner (1982), o Behaviorismo metodológico
foi bem sucedido em relação a seus próprios objetivos: descartou-se dos embaraços que o
mentalismo provoca aos empiristas e materialistas, voltou sua atenção para os antecedentes
133
ambientais do comportamento estabelecendo leis específicas, livrou-se do que Skinner
considera uma “injustificada concentração na vida interior” que teria a Psicologia, libertou-
nos para o estudo do comportamento das espécies inferiores evolutivamente e para a
exploração de suas semelhanças e diferenças com a espécie humana.
Por último surge a posição de Skinner, desenhada no final de sua carreira, que ele
denomina Behaviorismo Radical. O Behaviorismo Radical é uma nova espécie de
Behaviorismo metafísico, pois se arvora a definições quanto ao estatuto ontológico da
consciência. Para Skinner (1982), o behaviorismo metodológico, plenamente aderido às
posições epistemológicas do Positivismo Lógico, excluía os “acontecimentos privados”
porque não era possível um acordo público acerca de sua validade. O Behaviorismo Radical
no entanto, adota postura diferente: não nega a possibilidade da auto-observação nem sua
utilidade para a compreensão do comportamento, mas questiona a natureza daquilo que é
sentido ou observado. Tal coisa não é “nenhum mundo imaterial da consciência, da mente ou
da vida mental, mas o próprio corpo do observador” (p. 19). Isso não significa que o que é
sentido seja a causa do comportamento, mas somente que é útil para a melhor compreensão
das leis que o regem. Aqui temos na verdade uma identificação de consciência como
percepção involuntária de eventos corporais, que acredita ter vontade da mesma maneira que
uma pedra que tivesse consciência acreditaria ser dela a vontade de se mover para frente,
quando na verdade foi atirada por alguém. Para Skinner, essa posição remedia o maior dano
provocado pelo mentalismo, que seria o cessar da atividade investigativa provocada pela falsa
atribuição a estados mentais e a sentimentos das causas dos comportamentos. Para Skinner
(1977), é fácil observar sentimentos e estados mentais e definir serem eles as causas dos
comportamentos, sem nos sentirmos inclinados a pesquisar no entanto o que no ambiente
causou esses processos mentais.
É verdade, é muito fácil chorar ao ver um filme e acreditarmos que a causa de termos
chorado é porque nos sentimos tristes ou comovidos com sua beleza, e talvez seja tão fácil
porque seja verdade. A pergunta então é: todos os nossos sentimentos e vontades são causados
por circunstâncias externas ou biológicas? Somos parte do grande mecanismo da natureza?
No mundo mecanicista de Skinner, esta era uma resposta óbvia. No mundo real, não é.
Robinson (1979, p. 78) define desta maneira o Behaviorismo de forma global:
“No conjunto, todavia, o que se apresenta como behaviorismo moderno – o behaviorismo
de B. F. Skinner e seus muitos seguidores – é uma psicologia associacionista e hedonista
que promete explicar toda a amplitude da conduta animal e humana, sem recorrer a
134
qualquer consideração além da “história de reforço” e a quaisquer pequenas variações
genéticas mais ou menos fixas que devam ser incluídas para explicar as exceções.”
Esta é uma abrangente e adequada definição da última forma que tomou esta
abordagem. Adiante, oferecerá este trabalho uma breve descrição de seus antecedentes
filosóficos e psicológicos, seu surgimento histórico, para depois se dedicar à definição de suas
posições ontológicas e epistemológicas, que evidenciarão sua completa integração ao projeto
da ciência moderna e vinculação ao neo-positivismo.
3.4.2 Contextualização histórica: antecedentes
Os antecedentes filosóficos óbvios do behaviorismo são a tradição britânica empirista,
particularmente as obras de John Locke e David Hume, e a tradição positivista,
particularmente as obras de John Stuart Mill e o Positivismo Lógico. O Behaviorismo foi o
filho obediente ao veto de seu pai espiritual, Comte, ao método da introspecção. Ao redefinir
o objeto da Psicologia para um objeto observável, o comportamento, e seu método para o
autêntico experimentalismo, o Behaviorismo adequou a Psicologia aos cânones positivistas de
cientificidade e alçou a Psicologia ao status de legítima disciplina científica.
Já na Psicologia, um movimento antecedente bastante importante para o surgimento do
Behaviorismo foi o Funcionalismo de alguns nomes como James Angell, já que apontava para
o vazio de investigações sobre a consciência e claramente indicava através de publicações, o
comportamento como sendo o interesse da Psicologia do futuro. Poderia se dizer
hegelianamente que, no início deste século, o espírito da época estava inclinado a uma busca
por maior objetividade, e que Watson teria sido um agente de seu zeitgeist.
O tipo de pesquisa que caracteriza o Behaviorismo já estava sendo produzido antes de
Watson, sem consciência programática mas com o devido rigor científico, por alguns grandes
nomes da ciência moderna, como Edward Thorndike e Ivan Pavlov. Thorndike (1874-1949)
foi na história da Psicologia pioneiro em diversos aspectos. Suas principais pesquisas são na-
teriores mesmo às de Pavlov, em quatro anos. Além de pioneiro em psicologia animal experi-
mental, foi aquele que, no interior de uma tradição funcionalista, introduziu na psicologia da
época aspectos do hedonismo psicológico. Tal posição afirma que a fonte de motivação para o
comportamento humano é a obtenção de prazer circunscrito à natureza fisiológica. De acordo
com um hedonista, todos nós fazemos tudo o que for possível para maximizar o nosso prazer
e evitar aquelas coisas que nos causam dor, minimizando assim nosso sofrimento.
135
Já o associacionismo, para Boring (1950), é aquela posição segundo a qual a mente é
composta de uma quantidade infinita de idéias distintas, tal como o cérebro é constituído por
uma infinidade de células. Mas essas idéias são combinadas em idéias mais complexas ou em
processos mentais superiores por um número gigantesco de associações, tal como as células
nervosas são interligadas por fibras. Tal posição tem sua origem na teoria da mente de John
Locke, tendo sido desenvolvida por Mill. Essas posições de Thorndike se encontram refletidas
claramente em sua lei fundamental da aprendizagem, a lei do efeito, que adianta em muitos
anos o princípio do condicionamento operante. A lei do efeito estipula que se a um estímulo
acompanhado de uma resposta seguir-se um fator de satisfação, a conexão estímulo-resposta
se fortalece. Se ao contrário, sobrevier um fator de irritação, essa conexão se enfraquece.
Com a formulação da lei do efeito, Thorndike se torna o fundador da tradição
conexionista ou do reforço do behaviorismo, que encontra posição concorrente na tradição da
contiguidade representada por Watson e Guthrie. As leis básicas de aprendizagem de Watson
e Guthrie afirmam, ambas, que as ligações estímulo-resposta fortalecem-se simplesmente pelo
fato de que a resposta ocorre em presença dos estímulos. Este princípio, que Thorndike
resumiu sob a forma da lei do exercício, foi utilizado por ele até 1930, quando então o
abandona e passa a trabalhar com a lei do efeito em sua nova versão, priorizando os efeitos
positivos de satisfação. Para ele, no entanto, não era esse o fator determinante na
aprendizagem, e sim, como já vimos, os efeitos que a resposta provoca na situação. Ou seja,
Thorndike foi um teórico do reforço, conceito que caracteriza o conexionismo.
Já Pavlov (1849-1936), foi eminente fisiologista russo que se tornou, ao lado de
Skinner, um dos maiores nomes da Psicologia experimental. Deu a contribuição fundamental
para a psicologia Behaviorista, através do princípio do condicionamento clássico onde são
incluídos os conceitos de reflexo condicionado e reflexo incondicionado. Pavlov chegou ao
conceito de reflexo através das observações que fez em seus experimentos sobre o funciona-
mento das glândulas digestivas dos cães, sendo ele a reação automática do organismo a um
estímulo específico. Sendo reações automáticas e determinadas do organismo, os reflexos
são, portanto, inatos, não aprendidos. E são os reflexos a única concessão inatista que faz a
tradição behaviorista. A este tipo de reflexo Pavlov deu o nome de reflexo incondicionado.
A principal propriedade funcional observada por Pavlov como regente dos estímulos
envolvidos no condicionamento clássico é a associação. Através dela, as respostas incondi-
cionadas podem ser eliciadas por estímulos que não os incondicionados. Tais estímulos, ori-
ginalmente neutros, ao serem pareados várias vezes aos estímulos incondicionados, adquirem
as propriedades desses últimos. Quando isso acontece deixam de ser neutros e passam a se
136
chamar estímulos condicionados, pois também passam a eliciar os reflexos incondicionados.
Os reflexos condicionados dependem da associação continuada entre pelo menos um
estímulo incondicionado e um estímulo neutro, e descrevem um processo de aprendizagem.
Pavlov não se furtou a assumir uma posição metafísica sobre a natureza dessa
associação, que ele acreditava, ser meramente neuronal. Perfeitamente aderido ao fisicalismo,
chamou de excitação o processo de formação do reflexo condicionado, pois acreditava que a
reação condicionada de um organismo era exclusivamente resultado de um estímulo que
provocava excitação de um foco cortical, ou seja, de uma região exata do cérebro humano
onde estaria armazenada a resposta incondicionada, e que a repetição da associação
provocava o desenvolvimento de uma ligação neuronal direta cada vez mais espessa entre a
região do cérebro responsável pela recepção daquele estímulo e a região do cérebro
responsável pela emissão do comportamento reflexo.
3.4.3 Contextualização histórica: fundação
John Watson (1878-1958), foi psicólogo norte-americano que no início do século
fundou o Behaviorismo. Watson era um grande comunicador e político, e sua ação política e
difusora estava destinada a revolucionar as práticas de pesquisa psicológicas. O Behaviorismo
tal como anunciado por Watson consiste em fazer da psicologia experimental o estudo do
comportamento objetivo ao invés da experiência consciente. Segundo o Behaviorismo, por
não ser objetiva, observável, a consciência não era cientificamente válida como objeto de
estudo; já o comportamento pode ser rigidamente definido em termos de estímulos e respostas
tais como movimento de músculos e secreções glandulares.
O método introspectivo é totalmente desconsiderado como meio de alcançar algum
tipo de conhecimento científico. Na verdade, esse movimento surge como uma forte reação às
abordagens mais subjetivas de estudo do homem, principalmente contra o estruturalismo de
Wundt e Titchener e contra a psicologia hórmica (que postulava a existência de instintos para
explicar as condutas) de McDougall.
É importante aqui estabelecermos claramente quais são os pressupostos de que parte
Watson na construção de suas teorias, para assim não perdermos de vista quais são seus
pressupostos ontológicos e conseqüências teóricas destes. Os quatro pressupostos de Watson
foram enunciados por ele clara e diretamente, em “Psicologia do ponto de vista de um
behaviorista” e são de uma forma ou de outra ainda pressupostos dominantes no movimento
behaviorista. O primeiro, é que o comportamento compõe-se de elementos de resposta e pode
ser cuidadosamente analisado por métodos científicos, naturais e objetivos. O segundo, que o
137
comportamento compõe-se inteiramente de secreções glandulares e movimentos musculares;
portanto, é redutível a processos físico-químicos (aqui sua tese metafísica e aderência ao
fisicalismo). Terceiro, que existe no comportamento um rigoroso determinismo de causa-e-
efeito. Ou seja, há sempre uma resposta imediata a todo e qualquer estímulo eficaz; toda e
qualquer resposta tem alguma espécie de estímulo que a provoca (mecanicismo). Quarto, que
os processos conscientes, se existem, não podem ser cientificamente estudados; todas as
alegações sobre a consciência representam tendências sobrenaturais e como remanescentes
das fases teológicas e pré-científicas da psicologia devem ser ignoradas.
Assim, com a emergência do Behaviorismo, o projeto do Positivismo Lógico se
estende para a Psicologia e as definições operacionais ganham grande força, pois os
comportamentos passaram a ser definidos em termos de operações ou ações concretas. Um
certo comportamento ou ação define conceitos “psicológicos”. O que aconteceu, na verdade,
foi um reducionismo de tipo fisicalista das condutas psicológicas.
As posições de Watson quanto à aprendizagem são versões empobrecidas de teorias
filosóficas da contigüidade e dos reflexos condicionados pavlovianos, que de fato, constituem
sua maior fonte de inspiração e sustentáculo científico de sua aventura programática. Watson
também extirpou radicalmente da Psicologia a teoria dos instintos, assim como tudo que se
aproximasse de conceitos ou constructos “mentalistas”. Dessa forma, não havia mais como
postular capacidades mentais inatas. Tudo o que herdaríamos seriam nosso corpo, alguns re-
flexos e três padrões de reação emocional; todas as diferenças de capacidade e personalidade
seriam simplesmente diferenças no comportamento apreendido de forma associativa.
No entanto, esses padrões de reação emocional (medo, raiva e amor) referem-se
somente a padrões de movimentos, a comportamentos observáveis, não a sentimentos
conscientes. Todo o nosso comportamento, diz ele, tende a envolver o corpo todo. Portanto,
realmente não podemos dizer que as emoções são respostas das vísceras ou que o pensamento
é fala subvocal. Não podemos porque eles não são só esses movimentos corporais, são outros
também. Assim a fala subvocal é somente a resposta dominante do comportamento de pensar
que envolve além disso... os movimentos dos meus dedos ao digitar este texto.
Não é difícil começar a enxergar as gravíssimas conseqüências derivadas da concep-
ção de homem que emerge inquestionavelmente da filosofia de Watson e do Behaviorismo
como um todo. Seu ser humano é um mero autômato respondente a estímulos ambientais, um
ser reduzido às reações físico-químicas e reflexas desencadeadas por estímulos específicos.
Mas se tudo o que somos é fruto de aprendizagem, até que ponto somos de fato responsáveis
pelas nossas condutas? Não seria portanto o meio o único responsável por tudo o que somos e
138
fazemos? É claro que essa é conseqüência necessária de todo pensamento não só de Watson
como do Behaviorismo e de todo e qualquer fisicalismo. Mas esta, não é nossa questão aqui,
embora seja uma questão, sem dúvida, capital.
3.3.4 Behaviorismo e Ontologia
Conforme já abordado nesta tese, a posição ontológica do Behaviorismo é, à exceção
do behaviorismo metodológico, a de que somente o comportamento existe como legítima
entidade psicológica. É o que já foi apresentado como reducionismo behaviorista. Para o
Behaviorismo, não existem comportamentos e estados mentais, somente comportamentos,
externos ou internos. Portanto, o que cabe à Psicologia é, como afirma Robinson (1979) sobre
o que ele denomina Behaviorismo ontológico, “transformar o discurso tradicional sobre
mentes, espíritos e fatos afins em descrições do comportamento” (p.105). O Behaviorismo
procura portanto reduzir qualquer discurso sobre fenômenos psicológicos a um discurso sobre
fenômenos de comportamento, como quer Ryle (1949), em tese já exposta neste trabalho.
Estamos portanto diante de um reducionismo de tipo fisicalista. É um equívoco no
entanto, acreditar que enquanto o Behaviorismo metafísico e radical são ontologicamente
comprometidos, o Behaviorismo metodológico está isento de pressupostos metafísicos,
equívoco que de resto decorre do mito filosófico positivista de que é não só possível como
necessário se livrar de pressupostos metafísicos na ciência. Quando o behaviorista metodo-
lógico afirma que não precisa pressupor a vida mental para determinar as leis que regulam o
comportamento, ele está se comprometendo com um modelo mecanicista de universo, no qual
o ser humano é determinado completamente pelas condições ambientais e orgânicas, todas
elas regidas por leis físico-químicas. A vida mental só se torna dispensável para a
determinação do comportamento se tomarmos por certo que a mente não é fonte de atividade
no universo, e que palavras tais como vontade, criatividade e sentido são desprovidas de
significado para além de comportamentos aos quais as atribuímos. Além disto, o behaviorista
metodológico também assume uma estranha espécie de “realismo comportamental”,
coisificando uma entidade abstrata e indivisível na prática (porque sua definição precisa levar
em conta o tempo, e não somente no espaço) que é o comportamento. Colocando em termos
simples o problema, qual deve ser a unidade de análise do comportamento? O que, estrito
senso, deve ser o objeto de estudo da Psicologia para o Behaviorismo?
Esta não é a questão simples que Watson queria fazer crer. Como o comportamento é
algo que depende de interpretação para ser observado, coloca-se a questão, qual é a sua unida-
de de análise, ou seja, as variáveis dependentes de pesquisa devem ser definidas em termos de
139
que unidades de comportamento? Houve um momento do Behaviorismo em que o debate
acerca do objeto da Psicologia se resumia a se posicionar sobre se o outrora estudo da psique
deveria definir suas variáveis dependentes de pesquisa em termos de grandes unidades mola-
res de comportamento (como um soco de um pugilista, por exemplo) ou como queria Guthrie,
em função de unidades elementares de comportamento (flexão do bíceps, por exemplo).
Todo o esforço do Behaviorismo é para se livrar do incômodo fantasma na máquina
que assombra os materialistas-mecanicistas, como Gilbert Ryle, criador da expressão. Ryle
(1949), o mais festejado do chamado Behaviorismo Lingüístico, considera desconcertante a
possibilidade de algo como a “vontade” habitar o interior de seus autômatos humanóides. Ele
acredita que a volição é um problema lógico, pois quem tem vontade, tem que antes ter uma
causa para essa vontade, e assim, precisaria antes ter vontade de ter vontade, e assim
indefinidamente numa regressão infinita. O que ele não percebe é que seu problema não é
lógico, e sim ontológico. Ele está preso a uma visão determinista laplaceana da realidade,
onde algo como a atividade pura não tem lugar. Skinner (1982) endossa essa tese. Diz ele que
“não há lugar, na posição científica, para um eu como verdadeiro originador ou iniciador da
ação” (p. 191). Aqui temos a raiz da questão positivista. Não é propriamente a consciência
que assombra as noites de Ryle, mas a vontade. O próprio Ryle é o fantasma da máquina. Ele
está terrorificamente preso dentro de uma máquina de mundo mecanicista, onde a própria
consciência através da qual ele toma conhecimento deste mundo não tem lugar. O problema
da regressão infinita versus vontade é correlato ao do “Big Bang”. Ou se pressupõe
criatividade, ou repetição. Ou se propõe um homem mecânico da tradição lockeana, ou um
homem do universo vivo leibniziano. Para o materialista que vive num universo mecanicista,
a vontade, o vitalismo, o Big Bang, o teorema de Gödel, a física quântica, são problemas
científicos, e não soluções científicas. Para um universo que identifica ser e atividade, nada
disso é problema. Voltaremos a esta questão na conclusão desta tese.
Já Skinner (1982) oferece uma posição mais pragmática para a exclusão da “causação
mental” do campo da Psicologia. Diz ele:
“As explicações mentalistas acalmam a curiosidade e paralisam a pesquisa. É tão fácil
observar sentimentos e estados mentais, num momento e num lugar, que fazem parecer
sejam elas as causas, que não nos sentimos inclinados a prosseguir na investigação. Uma
vez, porém, que se começa a estudar o ambiente, sua importância não pode mais ser
negada.” (p.17)
140
Mas logo à frente ele vem a dizer:
“Uma pequena parte do universo está contida dentro da pele de cada um de nós. Não há
razão de ela dever ter uma condição física especial por estar situada dentro desses limites,
e eventualmente haveremos de ter uma descrição completa dela, descrição que nos será
fornecida pela Anatomia e pela Fisiologia”. (p.23)
Por todo o exposto aqui, com essas várias profissões de fé fisicalistas, o Behaviorismo
é uma filosofia da Psicologia visceralmente comprometida e dependente de uma visão meca-
nicista-newtoniana de universo, que toma como pressuposto o modelo de física fornecido pela
mecânica newtoniana, o modelo de biologia do mecanicismo biológico e, como veremos ago-
ra, a epistemologia do Positivismo Lógico (e no caso de Skinner, de sua variante operaciona-
lista). Transportando o problema da redução mecanicista da Biologia para a Psicologia, esta-
mos diante da compatibilidade do behaviorismo com o projeto reducionista do materialismo
eliminativo e com a tese da IA forte. Não é de surpreender que nos últimos anos muitos cien-
tistas do comportamento tenham migrado para as neurociências, uma vez que, agora, compor-
tamentos internos do organismo podem ser observados através de instrumentos confiáveis.
3.4.5 Behaviorismo e Epistemologia
As escolhas ontológicas e metodológicas do Behaviorismo, particularmente do meto-
dológico, indicam indubitavelmente sua vinculação ao Positivismo Lógico, como enfatiza
Skinner (1982). A escolha do comportamento mensurável e observável como a única variável
dependente de uma Psicologia científica é a resposta behaviorista ao princípio positivista
lógico da redução dos termos da ciência a termos físicos definidos operacionalmente.
O Behaviorismo adere explicitamente à teoria do conhecimento lockeana com a
ressalva de que o conhecimento do mundo se deve a algo mais que o contato com determi-
nado cenário (para Watson e Guthrie não), mas com as contingências de reforço das quais
esse cenário faz parte (Skinner, 1982, p.121). A “experiência” portanto consiste das contin-
gências completas. Skinner responde ao Menon com a doutrina das variações aleatórias alia-
das as conseqüências de reforço do ambiente. É com isso que ele explica a suposta criativi-
dade humana. Em outras palavras, ele acha que o comportamento operante resolve o problema
do empirismo porque ele consiste na emissão de respostas aleatórias, as quais serão reforçadas
à medida que resolver o problema para o qual se precisa de uma solução “criativa”. Mas isto
consiste numa incompreensão do real problema colocado por Platão (2001) no Menon. A
141
questão é a do reconhecimento subjetivo de uma hipótese como verdadeira, e não a de sua
assimilação por ser reforçadora. Se aleatoriamente (supondo-se que tal coisa fosse possível)
seguimos os passos que solucionam o teorema de Pitágoras, o que nos faz reconhecer a
verdade quando chegamos a ela se em tese não a conhecemos? Não há nenhum reforço
ambiental aqui para este problema que é puramente ideal. Platão afirma que precisamos ter
uma hipótese sobre o que ela seja antes, e do sentimento de reconhecimento quando estamos
diante de uma solução. Isso não se dá da mesma forma que o reforçamento da água liberada
por pressionar uma barra sem sentido, essa sim reforçando um comportamento aleatório, pois
a situação em si mesma é desprovida de sentido. Que tipo de reforço hedonista ou utilitarista
nos é oferecido pela solução do teorema de Pitágoras ou pelo teorema de Gödel? Será que
sentado em seu mínimo apartamento cercado pelas fraldas de seus filhos Albert Einstein foi
imediatamente reforçado quando levantou as hipóteses que hoje conhecemos como teoria da
relatividade? Talvez tenha sido. Mas, que tipo de reforço teria sido esse? Certamente, não era
ambiental. O reforço que nós que compreendemos um teorema em matemática ou soluciona-
mos um problema geométrico sabemos que recebemos é uma espécie de contato, revelação,
sintonia, como Platão descreve, de satisfação por ter se lembrado de uma solução que, apesar
de não estarmos por algum tempo conscientes dela, estava sempre ali.
Além de aderir ao empirismo em matéria de origem do conhecimento e ao método
indutivo experimental como modelo de método científico, o Behaviorismo adere explicita-
mente a todas as proposições básicas do Positivismo Lógico, como a verificabilidade como
critério de demarcação e a necessidade de redução fisicalista operacional da linguagem cientí-
fica, como vimos acima. A aderência ao Positivismo Lógico é estrita também no que tange à
tentativa de fuga (fracassada, como vimos) da metafísica e a evitação de toda tentação causal.
Pelo menos o Behaviorismo metodológico, que é a atitude behaviorista que explicitamente
reivindica sua filiação ao Positivismo Lógico, enfatiza que ao Behaviorismo cabe a determi-
nação de funções que relacionem as condições ambientais antecedentes e os comportamentos
conseqüentes, nada mais. Esta caracterização já ficou bem estabelecida nesta tese e não parece
necessitar ir mais longe, portanto apenas a título de esclarecimento de algumas peculiaridades
do Behaviorismo, vamos abordar ainda mais um ponto, a questão da percepção.
Como Skinner (1982) afirma, a concepção behaviorista da percepção, e portanto da
origem do conhecimento, é oposta à tradicional que ele considera mentalista, e que pela sua
descrição parece a construtivista. Para o Behaviorismo, a ação inicial do perceber é do
ambiente, não do “percipiente” (p. 65). Ele afirma literalmente que para o Behaviorismo
142
metodológico “uma parte do meio ambiente penetrava o corpo, era ali transformada e talvez
armazenada e, eventualmente, emergia como resposta” (1982, p. 65).
Apesar de Skinner apresentar uma teoria da percepção que consiste numa variação da
anterior, o que nos interessa é o seu reconhecimento do comprometimento explícito do
Behaviorismo com a tese realista objetivista, com a única ressalva de eliminar qualquer
referência à representação interna, substituindo o termo por “comportamento em relação à
situação”. Assim, de forma mais radical que o empirismo, o Behaviorismo se compromete
com a crença de que nossas percepções do mundo empírico são provocadas unicamente pelos
objetos que delas são alvo, os estímulos ou “cenário”, nos termos de Skinner. Aqui nossas
percepções são consideradas unicamente frutos da relação do objeto com nosso sistema
nervoso, sem interferência de uma mente que, ou não existe ou não é considerada.
É claro portanto, que a ruína do empirismo e do Positivismo Lógico acarretou a ruína
epistemológica do Behaviorismo, assim como a ruína do mecanicismo acarretou a ruína
ontológica do mesmo. Porém, isso significa a ruína da Psicologia Moderna? São estas e
muitas outras considerações que serão abordadas nos próximos itens.
3.5 A Revolta Humanista na Modernidade
Neste item, começaremos abordando as severas críticas que o Positivismo e o projeto
Behaviorista receberam da Fenomenologia. Em seguida, abordaremos as críticas ao
Behaviorismo efetuadas pela Psicologia Humanista, ambas ainda inseridas dentro do projeto
da modernidade. O objetivo aqui é explicitar detalhadamente todas as críticas que a tradição
humanista levantou à possibilidade da constituição de uma Psicologia científica nos moldes
estabelecidos pelo Behaviorismo, desta forma concluindo o delineamento do ambiente
acadêmico que a Psicologia Cognitiva encontra em seu nascimento, e do grupo de problemas
que precisa enfrentar para atingir uma posição hegemônica na Psicologia.
3.5.1 A Fenomenologia como “Ciência de Rigor”
Neste subitem, será avaliado o primeiro ataque de vulto filosófico ao projeto de ciência
moderna apresentado pelo Positivismo na Psicologia, que abrange tanto o Estruturalismo
como posteriormente o nascente Behaviorismo, efetuados por um dos maiores filósofos do
143
século XX, Edmund Husserl. Cumpre o objetivo de ilustrar o começo da erosão do conceito
de cientificidade estabelecido pela tradição positivista, além de apresentar os argumentos
husserlianos contra a possibilidade de constituição da Psicologia como ciência moderna.
Talvez a mais influente escola filosófica do século XX, a Fenomenologia pode ter seu
nascimento associado ao primeiro ano do século, 1901, com a publicação das “Investigações
Lógicas” de Edmund Husserl (1859-1938). Desde então, somaram-se a Husserl muitos dos
maiores pensadores do século passado que, de uma forma ou de outra, tem suas obras
filosóficas devedoras do método fenomenológico: Max Scheler, Nicolai Hartmann e Rudolf
Otto, fenomenólogos; Martin Heidegger, Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre e Gabriel Marcel,
existencialistas; Karl Jaspers, Ludwig Binswanger e Viktor Frankl, psiquiatras fenomenoló-
gico-existenciais. Através da obra destes e de outros pensadores, o método fenomenológico
atravessou o século XX mantendo o vigor e a fertilidade de seus primeiros anos que, ao que
parece, estão longe de se esgotar. A Fenomenologia influenciou e tem continuado a
influenciar todos os campos da Filosofia, especialmente a Ética, a Filosofia do Direito, a
Filosofia da Religião, a Filosofia dos Valores e, particularmente, a Teoria do Conhecimento e
a Epistemologia, além de estender essa influência para todas as Ciências Humanas.
A expressão Fenomenologia significa antes de qualquer coisa um conceito de método. O
que Husserl apresentou ao mundo foi um método de pensamento que ele acreditava poder
livrar a filosofia de construções filosóficas inconsistentes e fantásticas que se desfaziam no ar,
conceitos mal formulados e falsos problemas. Seu objetivo era fundamentar a Fenomenologia
como “ciência de essências”, mas uma ciência rigorosa (Husserl, 1952), voltando a Filosofia
novamente para as coisas. Seu lema era “Zu den sachen selbst!”: Voltemos às coisas mesmas!
Mas que coisas exatamente seriam as da fenomenologia?
A intencionalidade da consciência é o conceito central da Fenomenologia, conceito este
que, depois de surgido no pensamento ocidental, se tornou de generalizada aceitação. No
entanto, este não surge com Husserl, e sim com o mais direto predecessor da Fenomenologia,
o filósofo Franz Brentano. Brentano (1838-1917), afirmava que a consciência se caracteriza
por sempre tender para algo fora de si. Aqui, o sentido de intencionalidade difere do sentido
usualmente concedido ao termo pelo senso comum. Ele vai ser buscado no termo intentio, da
filosofia escolástica, que significava o conceito enquanto tendia para algo diferente de si
mesmo. Assim, afirma Brentano, é a característica da intencionalidade que tipifica os fenôme-
nos psíquicos: eles sempre se referem a algo de outro. Esse algo pode variar, mas continuará
havendo algo para o qual tende qualquer atividade consciente. A tese da intencionalidade
como característica central da consciência tem implicações severas para a Psicologia e a
144
Filosofia da Mente, e como defende o filósofo contemporâneo John Searle (2000), deve se
tornar o centro de qualquer investigação filosófica da consciência. Abordaremos esta questão
detalhadamente no item dedicado às críticas humanistas ao Cognitivismo.
Husserl (1973) argumenta que quando alguém percebe, imagina, pensa ou recorda, sem-
pre percebe, imagina, pensa ou recorda alguma coisa. Por isso, apesar de formarem uma certa
unidade, a distinção entre sujeito e objeto é dada imediatamente: o sujeito é um eu capaz de
atos de consciência (perceber, imaginar, pensar ou recordar), já o objeto é o que se manifesta
nestes atos. Devemos ainda distinguir o aparecer de um objeto do objeto que aparece; assim,
a fenomenologia se propõe a ser uma ciência do aparecer dos objetos, uma ciência dos feno-
menos. Husserl denomina noese o ter consciência e noema aquilo de que se tem consciência.
Husserl distingue dois tipos de noemas: os fatos e as essências. A raiz desta distinção é
a distinção entre verdades de fato e verdades de razão, ou entre as proposições obtidas da
experiência e as proposições universais e necessárias. Na base desses dois tipos de
proposições está a intuição de um dado de fato e a intuição de uma essência. A intuição
eidética (eidos – essência) é a intuição das essências. Husserl acredita que o conhecimento
sobre o mundo começa com a experiência de fatos, aqueles mesmos fatos cotidianos dos quais
também se ocupa a ciência experimental. Um fato é algo contingente, ou seja, pode ser ou não
ser, não é algo necessário. Um exemplo são as marcas gráficas no papel que você está lendo
agora: elas poderiam por exemplo não existir, nada impediria isso: é perfeitamente concebível
um mundo onde estas marcas específicas não estivessem impressas neste papel. Mas, quando
um fato (estas marcas gráficas) se apresenta à nossa consciência, juntamente com o fato
captamos uma essência, a essência desse fato em particular: no caso de uma impressão visual
(marcas gráficas), a cor; no caso de uma impressão sonora (o ruído do automóvel, o timbre de
um instrumento), o som; e assim por diante.
No fato, sempre se capta uma essência. O individual contingente sempre se anuncia à
consciência através do universal. Quando a consciência capta um fato aqui e agora, ela capta
também a essência deste fato particular: a cor deste papel é um caso particular da essência
“cor”. Em outras e mais específicas palavras: as essências são o modo típico de aparecer dos
fenômenos. Husserl demonstra a vacuidade da concepção empirista de que nós abstraiamos as
essências da comparação entre coisas semelhantes, porque a semelhança já é a essência. É
pelo fato de dois fenômenos aparecerem do mesmo modo típico que os consideramos
semelhantes: a capacidade de perceber a essência do fenômeno é anterior a ele.
Por exemplo, nós não abstraímos a idéia ou essência de um triângulo da comparação
entre muitos triângulos, nós comparamos muitos triângulos porque já os percebemos a todos
145
como casos particulares de uma mesma essência, da idéia de triângulo. Para comparar muitos
triângulos é preciso já ter captado um aspecto em comum pelo qual todos esses fenômenos
são comparáveis. Essa “captação” é intuição. O conhecimento das essências é intuição. E é ela
que Husserl chama de intuição eidética, a intuição da essência.
Aqui temos um ponto importante e sutil. A Fenomenologia é ciência de experiência,
não, porém, de dados de fato. Ela é ciência da experiência que tem a consciência com os
dados de fato, ela é ciência dos fenômenos. O objeto de estudo da Fenomenologia são as
essências dos dados de fato, são os universais que a consciência intui quando a ela se apre-
sentam os fenômenos. E nisso consiste a redução eidética, mais uma vez, a intuição eidética.
3.5.1.1 O método fenomenológico como método da “verdadeira Psicologia”
Para Husserl, o “método da variação eidética” é aquele através do qual se pode chegar à
essência de um fenômeno. Reale (1991) descreve esse método da seguinte maneira:
“Toma-se determinado exemplo de um conceito que se quer explicar e depois, pouco a
pouco, se introduzem variações nas propriedades, as quais são submetidas a variações até
se chegar a um ponto em que não se pode mais variar, caso contrário já não se teria a ver
com o mesmo conceito.” (pág. 561)
Assim, a essência é o limite invariável dessa variação eidética. Um exemplo desse
método nos é dado muito antes de Husserl, porém de forma somente intuitiva, por Descartes.
Isso se dá quando em suas “Meditações” ele se pergunta qual é a essência das coisas corpó-
reas. Recorrendo a um pedaço de cera, que tem um certo cheiro, uma certa cor e uma forma
precisa, Descartes o faz variar. Levando-o perto do fogo, diz Descartes, veremos que seu
cheiro, cor e forma, ou seja, essas suas propriedades, irão variar. No entanto sabemos que sua
essência não variou, ou seja, ela continua sendo uma coisa corpórea. Qual é a propriedade que
a cera conservou? A extensão, diz Descartes, a propriedade pela qual ela ocupa dado espaço.
Baseado neste raciocínio é que Descartes afirmou que a extensão é a essência da matéria.
Essa é a pergunta que, submetendo imaginariamente um fenômeno à variação eidética,
deve se manter sempre em mente: qual é a modificação que, ao ser efetuada, faz com que
aquele tipo de fenômeno deixe de ser aquele tipo de fenômeno? No caso da coisa corpórea, se
eliminarmos seu sabor, ela continua sendo coisa corpórea? Sim, respondemos. E se
eliminarmos sua cor? Ora, acaso o cego não percebe coisas corpóreas? Acaso um vidro
perfeitamente limpo e sem reflexo deixa de ser coisa corpórea? Certamente que não. E assim
146
podemos seguir adiante até que modificaremos a extensão no espaço. Eliminando a extensão
de uma coisa corpórea ela permanece sendo coisa corpórea? Não; é a resposta que nos vem
indubitável. Estamos portanto diante da essência da coisa corpórea: a extensão. Assim como
aplicamos esse método para encontrar as essências de fenômenos perceptivos como esses
(coisas corpóreas), Husserl mostra que podemos aplicá-lo a todas as modalidades típicas de
fenômenos: fenômenos morais, fenômenos religiosos, fenômenos naturais, fenômenos sociais.
No conjunto do método fenomenológico, temos um movimento inicial fundamental, que
é o último conceito da Fenomenologia que apreciaremos aqui. Este é a epoché, ou redução
fenomenológica. A epoché é a operação pela qual a existência do mundo exterior é posta entre
parênteses, para que nossa investigação se ocupe apenas com as operações realizadas pela
consciência, sem entrar na questão de se as coisas visadas por ela existem ou não independen-
temente dela. Husserl afirma que essa redução tem por objetivo suspender a “tese natural do
mundo”, ou seja, a crença espontânea de que as coisas exteriores existem tais como se as vê.
A redução fenomenológica, que encontra paralelo claro com a dúvida cartesiana e com
a tese kantiana da incognoscibilidade da coisa-em-si, não quer absolutamente afirmar que o
mundo não existe. Quer, antes, suspender qualquer julgamento sobre esta questão, para antes
investigar como a consciência funciona. As crenças ordinárias sobre o mundo e mesmo sobre
a existência dele devem ser colocadas de lado no início do caminho filosófico porque não
possuem absoluta necessidade racional. Embora essas crenças possam ser úteis e razoáveis, e
o filósofo não duvide delas, ele não as pode utilizar como fundamento de sua filosofia, já que
a filosofia, para ser a “ciência rigorosa” que Husserl (1952) postula, só pode ter como funda-
mento o que é indubitavelmente necessário e evidente. Em outras palavras, eu posso efetiva-
mente acreditar que o mundo existe, porém desta crença eu não posso deduzir qualquer pro-
posição filosófica, porque nada pode provar que o mundo existe fora da minha consciência.
Assim, todas as doutrinas filosóficas, todos os resultados das ciências, todas as crenças
da atitude natural, são inúteis para constituir pontos de partida indubitáveis. Mas, o que pode
resistir à epoché? Ou seja, o que é aquilo que é indubitável e constitui portanto ponto de
partida para a reflexão filosófica? O que é que é tão indubitável e necessário que não se deixa
pôr entre parênteses? É a consciência. A consciência à qual se manifesta os fenômenos, à qual
se manifesta tudo o que aparece. A consciência é o resíduo fenomenológico que resiste a
epoché. Temos aqui, sem sombra de dúvida, apenas uma variação do cogito cartesiano.
147
3.5.1.2 A crise das ciências e da humanidade européia como crítica do Positivismo
A análise das críticas husserlianas à ciência de seu tempo deve ser fundamentada em sua
obra “A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental”, assim como em
sua conferência “A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia”. Ainda em relação
especificamente à Psicologia, é fundamental sua poderosa crítica ao psicologismo, forma
peculiar e mais severa da “patologia cientificista”, que encontramos nas “Investigações
Lógicas” e em sua obra “Filosofia como Ciência de Rigor”. Comecemos pelas Krisis.
Como expõe Dartigues (1973), a crise que ele aponta nas ciências da época, não é a
crise de sua cientificidade. É, antes, a crise sobre o papel e o significado que as ciências
podem efetivamente assumir para a vida humana. Acrescentaria que a “Crise das ciências
européias” portanto, é a crise da ideologia cientificista do Positivismo, que pretendia que a
ciência tivesse eliminado todas as outras formas de pensamento humano. Ele afirma que o
homem moderno se deixou impressionar pela prosperidade material propiciada pelas ciências
positivas e se afastou dos problemas decisivos da existência humana. Para Husserl, a concep-
ção positivista de ciência exilou todas aquelas questões que constituem os problemas últimos
e supremos, não desvelando em nenhum ponto o mistério da realidade em que vivemos.
A crise que ele aponta portanto seria mais bem definida como uma crise da razão: a
ideologia positivista reduziu a razão a nada mais do que a racionalidade científica. Assim,
Husserl adianta em alguns anos o tema da “Crítica da Razão Instrumental” de Adorno e Hork-
heimer, expoentes da Escola de Frankfurt. Como nos diz Dartigues (1973), um mundo em que
Auschwitz ia ser possível deu testemunho suficiente, pouco tempo após a morte de Husserl,
da impotência e dos limites da “racionalidade objetiva” como centro da cultura ocidental.
Essa é a formula em que Husserl reduz a causa desse mal: a objetividade das ciências se
perverteu em objetivismo. O objetivismo é uma “supertição” segundo a qual os esquemas e
fórmulas com o qual o cientista descreve a realidade sejam a própria essência e natureza da
realidade. Com a necessária exclusão que partindo desse pressuposto a ciência procede de
todos os predicados axiológicos, culturais, práticos com os quais os objetos aparecem para
nós, decorre que o mundo da ciência é um mundo sem vida para o ser humano.
Não se tratará no entanto de renunciar à objetividade científica, mas de reintegrar o
mundo da ciência ao mundo da vida. Husserl concebe a Fenomenologia (Dartigues, 1973)
como uma filosofia acompanhando e subentendendo o exercício da ciência, a fim de que
nunca se perca o projeto que a engendrou e que a mantém em ato, o seu verdadeiro sentido: o
de desvelar o sentido do mundo e da relação do homem com este mundo. Nenhuma ciência
148
pode, diz Husserl, escapar à reflexão fenomenológica, já que toda ciência nasceu num solo
dado de antemão. Na conferência “A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia” (2002),
Husserl resume seu ponto de vista sobre o tema que mobilizou seus últimos anos de reflexão
filosófica: o da ruptura entre o objetivismo fisicalista e o subjetivismo transcedental, e a con-
seqüente crise que ele entendia ter sido provocada por essa ruptura na humanidade européia.
Sua argumentação começa definindo a humanidade européia como uma unidade de
vida, uma unidade de estrutura espiritual, onde está presente uma “enteléquia” que domina
todas as mudanças de formas européias e lhe confere o sentido de “uma evolução em direção
a um pólo eterno”. Ou seja, para ele, o que confere o caráter europeu a uma determinada
“unidade de vida” humana, uma nação, não é algo que ela possua de forma acabada e madura,
é sim um fim para o qual tende o vir-a-ser daquela comunidade espiritual. Mais do que isso,
Husserl identifica a Europa como tendo tido um nascimento preciso, num “lugar espiritual”
que é a Grécia do século VII e VI antes de Cristo. A filosofia grega conduziu a ciência à
forma de teorias infinitas, e com ela, o novo homem grego, o “homem europeu”, a uma
existência voltada para o novo e para metas infinitas. Desse modo, aos poucos, nasce, em
algumas personalidades isoladas (cuja primeira é Tales de Mileto) uma nova humanidade, a
européia. Esse novo homem não está disposto a admitir, sem questionar e analisar criticamen-
te, nenhuma opinião aceita, nenhuma tradição. E a filosofia aqui tem uma função dirigente:
ela é a condutora da tarefa infinita que caracteriza a humanidade européia; a função de livre-
pensamento, de reflexão universal, de estabelecimento das metas espirituais da humanidade.
Então Husserl (2002) passa a esclarecer o contexto da crise espiritual em que essa
humanidade européia se encontra. Ele enfatiza que sua exposição não consiste numa tentativa
de reabilitar “a honra do racionalismo” ou do iluminismo, mas deixa claro que, apesar de con-
cordar com o diagnóstico de que a crise européia se arraiga numa aberração do racionalismo,
essa aberração é bem específica: o objetivismo naturalista que se traveste de racionalismo.
Apesar de reconhecer que a filosofia universal não é senão um aspecto parcial da cultura
européia, ele também afirma que no entanto ela é seu “cérebro”, e de seu funcionamento
normal depende a saúde espiritual da Europa. O caminho da filosofia já passa, em seu desen-
volvimento, pela ingenuidade. Assim foi com o irracionalismo e também com o racionalismo,
que pretendeu uma fundamentação universal da ciência. Agora a ingenuidade filosófica
tomou o caminho natural (pelo desenvolvimento das ciências empíricas) do objetivismo, que
se configura nos diferentes tipos de naturalismo, na naturalização do espírito.
A idéia de um conhecimento matemático do mundo foi acolhida pela humanidade com
um entusiasmo ardente, e os gigantescos progressos que a ciência moderna nos proporcionou
149
no conhecimento da natureza demonstraram a força da razão. Assim, desde a idade moderna
criou-se a crença que, se o método e a razão podem elucidar o domínio da natureza, também
podem penetrar os domínios do espírito. Assim, adota-se em todos os domínios do esforço
global de compreensão do mundo, um dualismo explícito, um dualismo psico-físico. No
entanto, esse dualismo conduz a um beco sem saída: se a explicação racional abrange um
único mundo, se pode portanto explicar o espírito e essa explicação deve ser única, possuindo
alcance filosófico universal, ela terá que conduzir ao plano físico.
Aqui está segundo Husserl (2002) o erro e a ingenuidade do objetivismo atual. Apesar
da aparente evidência da estrutura psico-física do mundo, essa posição é ingênua e unilateral.
Quando a ciência objetivista toma o mundo objetivo como sendo o universo de todo o
existente, sem considerar que a subjetividade criadora da ciência não pode ter seu lugar
legítimo em nenhuma ciência objetiva, ela não se dá conta que o fundamento permanente de
seu trabalho mental, subjetivo, é o mundo da vida (Lebensumwelt), sobre o qual suas
perguntas e seus métodos de pensar adquirem um sentido.
Neste ponto, Husserl (2002) faz um elogio sincero à ciência matemática da natureza,
“filha dileta da filosofia”, que permitiu (diz ele) efetuar induções de uma probabilidade e de
uma precisão jamais vistas e jamais suspeitadas. Como criação, diz Husserl, ela é um triunfo
do espírito humano. Mas no que concerne a sua racionalidade, acredita, é totalmente relativa.
Ela já predispõe uma disposição fundamental prévia que, em si mesma, carece por completo
de uma racionalidade efetiva. A confusão entre esses dois argumentos e ainda em relação à
questão do Lebensumwelt, leva Husserl a receber críticas injustas de seus críticos. A acusação
de uma guinada para o irracionalismo é tão injusta quanto absurda.
Como já ficou claro, Husserl se levanta não contra a ciência, nem mesmo contra a
racionalidade científica, mas contra o objetivismo ingênuo e a degeneração da razão que se
transformava em “razão instrumental” (para usar um termo frankfurtiano) operada pelo
Positivismo principalmente. Husserl foi uma das mais influentes vozes a se levantar contra o
Positivismo ainda reinante em sua época, e essa contestação se deu durante toda sua vida,
seguindo duas linhas básicas de argumentação: a crítica ao psicologismo (tema com o qual
iniciou sua produção filosófica) e o questionamento da aplicação do método científico experi-
mental à realidade humana (tema com o qual estava trabalhando na época de sua morte).
3.5.1.3 A crítica ao psicologismo e à Psicologia Experimental
Nesta última questão, ele afirma que temos uma Psicologia que quer ser, com suas
pretensões a uma exatidão científico-natural, ciência geral e fundamental do espírito. Só que
150
os psicólogos sequer perceberiam que em suas colocações, como homens criadores de ciência,
não tem acesso a si mesmos nem ao seu mundo circundante. Mesmo que a psicologia fosse
capaz de objetivar e tratar indutivamente a vivência (o que ele não acredita) ela seria capaz de
fazer o mesmo com os fins, os valores e as normas? Ou seja, o objetivismo, já pressupõe as
normas que ele aplica na investigação da vida psíquica que ele queria fundamentando as
ciências. É a crítica husserliana ao psicologismo.
Essa crítica pode ser melhor esclarecida com a seguinte exposição. A fundação da Psi-
cologia como ciência experimental “objetiva” derivada da fisiologia, havia gerado no fim do
século XIX um tipo de posicionamento que hoje conhecemos pelo nome de psicologismo.
Para o psicologismo, que é nada mais do que um caso particular de naturalismo, resolverí-
amos o problema da relação psico-física anulando essa dualidade, tomando como única
realidade a natureza. Por naturalismo Husserl (1952) entende a filosofia que busca a explica-
ção de todos os acontecimentos por leis de causa e efeito estritamente naturais ou físicas.
Assim, acreditavam os defensores dessa posição que tudo é objeto natural ou físico; que
consciência é uma expressão vaga e vazia de significado que se costuma a atribuir a eventos
físico-fisiológicos que ocorrem no cérebro e no sistema nervoso; que conhecimento é apenas
o efeito da ação causal sobre os mecanismos nervosos; que os conceitos de sujeito, objeto,
consciência, princípio, causa, etc., só tem sentido quando reduzidos a entidades empíricas
observáveis; e, o mais importante, que a teoria do conhecimento nada mais é do que uma
psicologia, ou seja, uma descrição do comportamento do sujeito na atividade de conhecer.
Como aponta Husserl (1952), o desenvolvimento de uma Psicologia Experimental no
último quarto do século XIX conferiu largo crédito à nova ciência, abrindo espaço para que os
fenômenos psíquicos fossem considerados como fatos (como os da ciência natural) e a Lógica
reduzida a uma simples psicologia do pensamento. Nisto consiste o psicologismo, expressão
psicológica do naturalismo. Ele é a ideologia da Psicologia, que chega a considerá-la funda-
mento de todas as disciplinas filosóficas, como a Teoria do Conhecimento, a Ética, a Estética
e a Lógica. Vamos então separar em duas as questões aqui. Primeiro a questão do psicologis-
mo, segundo, a questão do naturalismo contemporâneo e a confusão do objeto da Psicologia.
Essa tentativa de derivar a Teoria do Conhecimento, e portanto a Epistemologia, de uma
ciência particular, no caso a Psicologia, é aqui criticada por Husserl, que argumenta que a
conseqüência lógica dessas crenças seria que o conhecimento científico, enquanto conheci-
mento universal e necessário, era impossível. Ora, as leis lógicas que fundamentam o
conhecimento científico são universais e necessárias, portanto, elas não podem depender ou
serem derivadas de leis psicológicas que, sendo generalizações de eventos empíricos (isto é,
151
obtidas por indução), não são necessárias de forma alguma. Portanto uma ciência empírica,
“objetiva”, baseada em “fatos”, que em sua constituição já toma como premissa a lógica –
necessária para a formulação de suas próprias leis – não pode servir de fundamentação para
essa mesma lógica, esta última sim, ciência necessária e universal. Neste sentido afirma
Husserl por exemplo que a validade do princípio lógico da não-contradição é ilimitada,
necessária e universal, e que a evidência desse princípio não depende do sentimento de
certeza que acompanha sua formulação; antes, é a sua validade apodítica (necessidade e
universalidade) que gera esse sentimento de certeza.
No entanto Husserl (2002) é muito claro quando afirma não negar alguma validade às
conclusões da Psicologia (quando afirma por exemplo que ela tem elaborado numerosas
regras empíricas que possuem valor prático), o que ele negava era o alcance delas: para
Husserl, a originalidade da consciência fica fora do alcance do método das ciências naturais
justamente porque, como demonstra Husserl, ela é intencional. A objetificação da consciência
na verdade cria um outro objeto, que nada tem a ver com a consciência real. A característica
da intencionalidade distingue essencialmente a consciência dos fenômenos de ordem física. A
consciência não existe a não ser como consciência de algo, e nunca como objeto; ela por
natureza transcende a si própria envolvendo-se com o mundo. A atitude científica
experimental define uma relação objetificante em relação ao psíquico. No entanto, em
“Filosofia como Ciência de Rigor” Husserl (1952) traça uma fronteira precisa entre o que
deveria se constituir como Psicologia científica e o que deveria se constituir como Psicologia
filosófica, devendo ambas se realizar em interação mútua:
“...a Fenomenologia e a Psicologia devem estar próximas uma da outra, referindo-se
ambas à consciência, embora de modos diversos e em orientação diversa. Podendo-se
dizer que à Psicologia interessa a ‘consciência empírica’, a consciência na orientação
empírica como algo de existente na continuidade da Natureza, ao passo que à
Fenomenologia interessa a consciência ‘pura’, isto é, a consciência na orientação
fenomenológica.” (1952, p.19-20)
Como veremos no quinto capítulo, esta posição é muito próxima à tese de Searle (1992),
sobre como podemos considerar fenômenos psíquicos como fenômenos de “terceira-pessoa”
como faz a ciência empírica, ou como fenômenos de “primeira-pessoa”, como faz a Filosofia.
Em outra passagem esclarecedora da natureza do que ele julga que deve ser essa proximidade
152
e essa relação, Husserl afirma que a relação entre a Psicologia experimental e a Psicologia
originária é análoga à da estatística social e da ciência social originária:
“Semelhante estatística reúne fatos preciosos, e descobre neles regularidades preciosas,
mas muito indiretas. A sua compreensão interpretativa, a sua verdadeira explicação, pode
apenas ser realizada por uma ciência social originária, isto é, uma ciência social que
encara os fenômenos sociológicos como diretamente dados, e investiga o seu ser.
Analogamente, a Psicologia experimental é um método para se registrarem fatos precisos
e regulações psicofísicas, mas que carecem de toda a possibilidade da compreensão mais
profunda e da definitiva valorização científica, sem a ciência da consciência
imanentemente investigadora do psíquico.” (1952, p.21)
Apesar da pertinência de suas observações em relação à Psicologia Fisiológica e
Behaviorista, podemos legitimamente nos perguntar se elas se aplicam cem anos depois a seu
objeto de análise, ou seja, a Psicologia experimental. Há muito que esta disciplina deixou de
lado as pretensões psicofísicas (herdadas pelas neurociências) que tornavam aplicáveis essas
críticas de Husserl. Hoje a Psicologia Cognitiva aplica o método experimental para descobrir
os padrões de processamento humano de informações, afastando a Psicologia experimental do
naturalismo que confundia a instância psíquica com a física. Mas não podemos nos esquecer
que esta relativamente simplória confusão foi herdada pelo materialismo eliminativo.
Concluindo, esta é a questão central husserliana em relação à Psicologia positiva: sua
conhecida denúncia da “insuportável confusão” que afeta as relações de método e de conteúdo
entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. Essa confusão não se dissipará,
acredita, enquanto não houver a compreensão do absurdo da concepção dualista de mundo,
segundo a qual natureza e espírito devem ser considerados como realidades homogêneas mas
edificadas uma sobre a outra de maneira causal. Husserl (2002) afirma convictamente:
“Julgo, com toda seriedade, que nunca existiu nem existirá uma ciência objetiva acerca do
espírito, uma doutrina objetiva da alma, objetiva no sentido de atribuir às almas, às
comunidades pessoais, uma inexistência, submetendo-as às formas espacio-temporais.”
(2002, pág. 82)
Para ele, ao contrário do psicologismo, só o espírito é autônomo e pode ser tratado nesta
autonomia, e só nesta, em forma verdadeiramente racional. Ou seja, só pode haver uma ciên-
153
cia independente do espírito, pois a natureza tem só uma autonomia aparente, só aparente-
mente oferece um conhecimento objetivo de si. A verdadeira ciência da natureza é obra do
espírito que a explora, e portanto, se fundamenta na ciência do espírito, e não o inverso. A
importante conclusão de Husserl é que o erro das ciências do espírito é o de lutarem com as
ciências da natureza por uma igualdade de direitos. Quando as primeiras reconhecem às
últimas uma objetividade que se basta a si mesma, elas sucumbem ao objetivismo. Assim,
perdem o domínio de sua genuína racionalidade e levam o homem à crise espiritual em que
ele se encontra, por falta cada vez maior de acesso à razão como agente de uma cosmovisão
espiritual. As ciências do espírito já tem um método próprio, que transcende a ingenuidade de
um mundo objetivo e de uma razão ilusória e estéril, esse método é o método fenomenológico.
Assim, Husserl (2002) lança uma pesada acusação sobre a Psicologia, quando reduz a
causa do mal por que passa a sociedade européia à seguinte fórmula: a objetividade das
ciências se perverteu em objetivismo. O objetivismo no sentido que Husserl dá ao termo é
uma “superstição” segundo a qual os esquemas e fórmulas com o qual o cientista descreve a
realidade se tornam a própria essência e natureza da realidade. Com a necessária exclusão que
partindo desse pressuposto a ciência procede de todos os predicados axiológicos, culturais,
práticos com os quais os objetos aparecem para nós, decorre que o mundo da ciência é um
mundo sem vida para o ser humano. Era a Psicologia “psicologista”, em última análise,
condenada pelo seu objetivismo naturalista, a carecer da atividade criadora do espírito a causa
dessa crise espiritual por que passava a humanidade européia.
Apesar de atualmente exercer enorme influência nos métodos de pesquisa das Ciências
Humanas, a Fenomenologia se propunha a ser um método filosófico, e não científico: Ela é
uma Teoria do Conhecimento, não uma Filosofia da Ciência. O que Husserl procurou
demonstrar foi a absoluta impossibilidade de reduzir o fenômeno humano ao método
experimental das ciências naturais, construindo um método filosófico que fosse capaz de
analisá-lo. Portanto, o maior dos monstros fabricados pela “razão” positivista não poderia
deixar de ser, para Husserl, o psicologismo, a tentativa de objetificar o homem.
É preciso destacar ainda, que a Fenomenologia não é uma filosofia anti-científica. Não
se trata para Husserl de o fenomenólogo renunciar à objetividade científica e se divorciar da
ciência experimental, mas antes, de reconduzi-la para a casa de onde nunca deveria ter saído.
A Fenomenologia tem como uma de suas principais tarefas reintegrar o mundo da ciência ao
mundo da vida e dos valores, sem no entanto, confundi-la com este nem a seus objetivos.
Husserl concebe a fenomenologia, como nos diz Dartigues (1973), como uma filosofia
acompanhando e subentendendo o exercício da ciência. Devemos combater portanto o erro
154
muito difundido no Brasil em relação ao pensamento husserliano, de que a Fenomenologia é
uma filosofia inimiga e denunciadora da atividade científica em si. Ela é sim, a mais poderosa
crítica aos seus limites, não metodológicos, mas de significado.
3.5.2 A Revolta da Psicologia Humanista
Neste subitem, abordaremos as severas críticas que o projeto Behaviorista recebeu
dentro do projeto da modernidade, efetuadas pela Psicologia Humanista. Começará por uma
breve definição deste movimento, passará pelas suas críticas ao modelo moderno tradicional
de Psicologia, por sua definição de objeto da Psicologia, concluindo com uma avaliação de
sua aderência ao projeto científico representado pela Ciência moderna. Este item está baseado
em trabalho monográfico anterior a esta tese sobre esta abordagem (Castañon, 1998).
O movimento que desembocou no estabelecimento da Psicologia Humanista teve seu
início no ambiente acadêmico norte-americano do pós-guerra, amplamente dominado pelo
Behaviorismo e sua imagem de ser humano e de método da ciência psicológica. Os líderes do
movimento humanista levantaram suas vozes contra a imagem de homem e o método cientí-
fico do Behaviorismo - dominantes no campo da Psicologia experimental - e contra a imagem
de homem e o método terapêutico da Psicanálise - dominantes no campo da psicoterapia.
Como afirma DeCarvalho (1990), a oposição ao Behaviorismo foi a posição que, pelo
caminho da negação, mais contribuiu para o estabelecimento conceitual da Psicologia
Humanista. Os Humanistas caracterizam o Behaviorismo como uma teoria em que o homem é
visto como um ser inanimado, um organismo puramente reativo, "uma coisa passiva perdida,
sem responsabilidade por seu próprio comportamento" (p. 33). Assim, o Behaviorismo veria o
homem como um conjunto de respostas a estímulos, ou seja, uma coleção de hábitos
independentes. Frick (1973), em sua obra "Psicologia Humanística", ainda hoje referência
obrigatória para quem estuda o movimento, acusa o Behaviorismo de haver buscado criar uma
visão limitada do homem. Diz ele na obra supra-citada:
"Esta escola de Psicologia concebe o homem como uma máquina complexa, com seu
sistema fechado de funções parciais e regularidade estática. O Homem está construído
sobre uma organização hierárquica de estímulo-resposta, que leva a padrões previsíveis
de hábitos, e reforço é a palavra chave para o desenvolvimento da personalidade" (p. 17).
Os humanistas se rebelam contra o Behaviorismo se opondo a quatro pontos funda-
mentais. Primeiro, não concordam com a pesquisa com animais como acesso a uma compre-
155
ensão adequada do ser humano. Como disse Bugental (1963), o ser humano não é um rato
branco maior, assim uma Psicologia baseada em dados animais excluiria aquilo que deveria
ser o objeto primeiro da Psicologia: os processos e experiências distintamente humanos.
Segundo, os humanistas exigem que os temas de pesquisa da Psicologia não sejam escolhidos
por sua adequação ao método experimental, e sim por sua importância para o ser humano e
relevância para o conhecimento psicológico. Terceiro, opõem à concepção reativa e mecani-
cista behaviorista do ser humano uma concepção proativa da natureza humana: os humanistas
argumentam que a motivação humana é intencional e auto-motivada. Por último, estes afir-
mam que ainda que fosse possível ao Behaviorismo realizar um catálogo completo dos com-
portamentos humanos possíveis, isso não ofereceria uma descrição adequada da natureza hu-
mana pois, seguindo a sentença gestaltista, a pessoa é mais que a soma de cada comportamen-
to isolado. Para os humanistas, o homem é um todo único e indivisível, é uma gestalt.
Mas a Psicologia Humanista não se constituiu somente como uma reação ao Behavio-
rismo, mas também como uma reação à Psicanálise, que era considerada por esta determi-
nista, reducionista e dogmática. O foco das críticas dos psicólogos humanistas era de novo a
imagem de Homem, desta vez, a admitida pela Psicanálise. Segundo eles, a visão da natureza
humana em Freud era pessimista, fatalista e excessivamente centrada no "lado negro" do ser
humano. Como diz DeCarvalho (1990), os humanistas argumentavam que para Freud "nada
além de destruição, incesto e assassinato poderia se seguir se uma natureza básica humana
encontrasse expressão completa" (p. 34). Assim, ainda segundo DeCarvalho, para Freud, a
pessoa permaneceria para sempre fixada em emoções originadas de traumas da infância. O
homem não seria nada além de um produto de poderosas pulsões de fundo biológico, que se
manifestariam de acordo com a história do passado de cada um.
Outra acusação que o humanismo fazia de modo geral à Psicanálise foi formulada ori-
ginalmente por aquele que é o nome mais representativo do movimento, Abraham Maslow.
Ele a acusa de estudar somente indivíduos perturbados: neuróticos e psicóticos. Como disse
Maslow (1963), "o estudo de espécimes aleijados, enfezados, imaturos e patológicos só pode
produzir uma Psicologia mutilada e uma filosofia frustrada" (p. 234). A Psicologia deveria
portanto se voltar para o estudo das qualidades e características positivas do Homem, como a
alegria, o altruísmo, a fruição estética, a satisfação ou o êxtase. Enfim, psicólogos deveriam
estudar o homem sadio, não a psicopatologia. Apesar de reconhecer a obra freudiana como
dotada de valor por proporcionar uma revolucionária visão da motivação humana, os huma-
nistas como Frick (1973) consideram que a Psicanálise estabeleceu fundamentos teóricos res-
ponsáveis pela disseminação de uma visão pessimista do ser humano e de suas possibilidades.
156
Até uma conferência realizada em 1964, da qual participaram nomes como Maslow,
Gordon Allport, Bugental, Carl Rogers e Rollo May entre outros, a Psicologia Humanista era
pouco mais que um grupo de protesto. DeCarvalho (1990) nos diz, citando Bugental, que
havia nesta altura dois grupos distintos. Um queria definir a Psicologia Humanista somente
em termos do que ela não é. Outro reivindicava uma declaração de princípios com definições
programáticas propositivas. A primeira declaração da AAHP foi uma tentativa de conciliação
entre os dois grupos, adotando-se o artigo de Bugental (1963) "Humanistic Psychology: A
New Break-through" como declaração da própria associação. Nele encontramos, segundo
DeCarvalho, cinco postulados: (a) uma pessoa é mais que a soma de suas partes; (b) Nós
somos afetados por nossas relações com outras pessoas; (c) O ser humano é consciente; (d) O
ser humano possui livre-arbítrio; (e) O ser humano tem intencionalidade.
O grande problema da Psicologia Humanista ainda hoje permanece sendo sua aparente
vocação para a oposição à Psicologia científica experimental, além de sua confusão concei-
tual. Fazendo piada sobre este último aspecto, o behaviorista Michael Wertheimer (1978) nos
diz que se pedirmos a dois humanistas para definir o que é a Psicologia Humanista, obteremos
pelo menos três definições mutuamente excludentes. Joseph Rychlak é o maior pesquisador e
formulador da Psicologia Humanista contemporânea. Em “Psychology of Rigorous
Humanism” (1988), ele faz uma tentativa de trazer a Psicologia Humanista para os moldes da
Psicologia científica acadêmica, atacando a tradição lockeana dentro da Psicologia e
contrapondo-a a uma visão kantiana da mesma, onde se reivindica o uso da teleologia na
descrição do comportamento humano. Entretanto, o resgate da Psicologia Humanista para o
campo da Psicologia científica acadêmica, parece ser ainda uma grande tarefa por fazer. Serão
avaliadas algumas das posições de Rychlak no item dedicado às críticas ao Cognitivismo.
3.5.1.1 Crítica Humanista à abordagem mecanicista do objeto da Psicologia
A Psicologia Humanista propõe a realização de uma revolução copernicana na aborda-
gem do objeto de estudo da Psicologia. Como afirma Amatuzzi (1989), a consideração do ser
humano em termos de causa e efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, por mais
cabível, correta ou verdadeira que possa ser, não dá conta do ser humano como um todo em
movimento. Ele argumenta que por mais que se tente explicar a causa do comportamento
humano, sempre ficará faltando a questão do sentido que o se precisa dar à própria vida,
sentido que Amatuzzi consideram como o maior desafio que se coloca para nós.
Sob o enfoque humanista, o ser humano aparece não como uma resultante de uma série
de coisas, mas como, fundamentalmente, o iniciante de uma série de coisas. O Homem só
157
aparece para o humanismo na questão do sentido, não na questão da causa explicativa. O
enfoque explicativo se refere ao Homem como resultado, como passado. Não se refere ao
Homem presente, desafiado por questões de sentido. Aqui temos a nova formulação de um
velho conflito em Psicologia, e este é o conflito apontado por muitos autores, dentre eles
Gordon Allport (1975), entre as tradições lockeana e leibniziana no pensamento psicológico.
Para Rychlak (1977), o ‘leibniziana’ é somente substituído por ‘kantiana’. Segundo a tradição
lockeana, o Homem é considerado um ser passivo, um receptáculo de impressões sensoriais
que irá constituir seu intelecto. Esta é a teoria da tabula rasa de Locke, que faz seu o axioma
aristotélico nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu (nada há no intelecto que não
tenha passado antes pelos sentidos). Assim o Homem seria um ser passivo atuando e se
constituindo de acordo com os estímulos recebidos, sendo por eles portanto, governado.
Leibniz iria ironicamente, no combate aberto a essa visão de Homem, completar essa
sentença com o acréscimo nisi intellectus ipse (a não ser o próprio intelecto), ou seja, a
própria capacidade de assimilar e relacionar o material que é fornecido pelos sentidos,
capacidade essa que não pode ser dada pelos sentidos. Isso parece óbvio, mas até hoje não o é
para muitos psicólogos. Partindo de sua concepção de mônada, Leibniz qualifica o ser
humano como livre, ativo e orientado propositivamente. O ser humano é um foco de atividade
do universo, e não um mero objeto sofrendo a influência pura e simples das leis físicas.
Assim, o enfoque humanista rompe com a tradição mecanicista-newtoniana e cerra
fileiras ao lado da tradição leibniziana da Psicologia (e de universo) e considera o ser humano
como autoconsciente, auto-orientado e criativo, em suma, possuidor de livre-arbítrio. Como
afirma De Carvalho (1990), a respeito da visão da Psicologia Humanista sobre a natureza do
ser humano, ela se caracteriza pela visão da pessoa como "being-in-the-process-of-becoming",
ou seja, como "ser em processo de tornar-se". A pessoa em seu pleno funcionamento é
proativa, autônoma, orientada por escolhas, adaptável e mutável, em suma, é um ser num
processo de contínua transformação. O ser humano para os humanistas é um organismo único,
com a habilidade para direcionar, escolher, e alterar os motivos que guiam o projeto de seu
curso de vida. Temos aqui o problema central do posicionamento da Psicologia Humanista
como ciência, uma vez que o princípio da regularidade do objeto, de pelo menos algumas de
suas características, é pressuposto fundamental para a ciência moderna. Ou seja, a atividade
científica não pode prescindir daquilo que justamente a caracteriza: a descoberta de funções
na natureza, de relações estáveis de causa e efeito ou sistemas retro-alimentativos estáveis.
Uma vez que um ser humano livre e criativo não permitiria o estabelecimento de tais relações,
como fica a Psicologia em relação à ciência?
158
Tal é o estatuto ontológico do objeto da Psicologia segundo os humanistas. Partindo
disto, os humanistas propõe que em última análise o sentido da experiência humana deva ser
o verdadeiro objeto de estudo da Psicologia. Eles propõem que o objetivo final ideal da
Psicologia Humanista é uma completa descrição do que significa estar vivo como ser humano
e da variedade de experiências que lhe são possíveis. O problema é que tal tipo de objeto não
só é ilimitado, como pouco claro e também inquantificável. Mas o que os Humanistas
argumentam é que as alternativas de abordagens, tanto do Behaviorismo quanto da
Psicanálise, apresentam, como disse Maslow (1963), uma Psicologia mutilada, inumana e
estéril, cujos temas de pesquisa têm pouco ou nenhum significado para o ser humano.
Os humanistas exigem que os temas de pesquisa da Psicologia não sejam escolhidos por
sua adequação ao método experimental, e sim por sua relevância para o ser humano e o
conhecimento psicológico. Desta forma todos os aspectos da experiência singularmente hu-
mana se tornam temas de pesquisa para o psicólogo humanista. Entre eles podemos destacar o
amor, ódio, medo, angústia, esperança, felicidade, humor, amizade, altruísmo, o sentido da
vida, responsabilidade, o morrer, criatividade, sentimento estético, sonhos, empatia, metas,
meditação, experiências paranormais, experiências místicas, experiências culminantes, valores
e sentimento moral. Como afirma Schultz (1975, p.411), a maioria destes temas de pesquisa
não se encontra de forma alguma nos comndios tradicionais de Psicologia, porque "não são
passíveis de definição operacional, quantificação precisa e manipulação laboratorial".
Aqui voltamos às duas questões já abordadas neste capítulo. A primeira é a da
dificuldade de quantificação do objeto da Psicologia. O comportamento humano, objeto de
estudo do Behaviorismo, já apresenta muitas dificuldades de quantificação. O objeto de
estudo da Psicologia Humanista, sendo os processos e experiências distintamente humanos,
apresenta dificuldades maiores ainda. Como já foi exposto, a ciência depende em alguma
medida da quantificação dos fenômenos que estuda, e o objeto da Psicologia Humanista (o
significado da experiência humana), não é passível de quantificação. Ele somente possui
aspectos qualitativos, e aspectos qualitativos não são quantificáveis. Por isso, os humanistas
respondem não à pergunta de se será realmente possível que algum dia o objeto de estudo da
Psicologia vá se prestar à quantificação e matematização.
A segunda dessas questões é acerca da complexidade do objeto de estudo da
Psicologia Humanista. Como já exposto, de qualquer ângulo que se veja, o objeto de estudo
da Psicologia é mais complexo que os objetos de outras ciências. Mas se olharmos de uma
perspectiva humanista a coisa fica muito mais complexa ainda. Quando pensamos em nosso
objeto sob um ângulo reducionista, já podemos ter uma idéia do nível de complexidade do
159
objeto da Psicologia. Quando acrescentamos a toda essa complexidade a emergência de
processos criativos, decisões livres e questões de sentido, essa complexidade parece nos
conduzir à impossibilidade de estudo científico.
Em vista de todas essas características admitidas no objeto de estudo, podemos con-
cluir com Wertz (1998), que a Psicologia Humanista só pode denominar-se científica através
do surgimento da Fenomenologia de Husserl, que procurou reformular o significado do
conceito de ciência na disciplina da Psicologia. Porém, a apropriação da filosofia de Husserl
pela Psicologia Humanista é profundamente equivocada, superficial e confusa, e demonstra
inequivocamente que esta abordagem não compreende o sentido e o lugar da Fenomenologia
como teoria do conhecimento fundante, que antecede a própria Filosofia da Ciência e não tem
nada a oferecer diretamente a uma abordagem empírica do fenômeno psicológico.
No entanto, a declaração transcrita acima de Wertz (1998) sugere a reflexão sobre
aquela que é uma das principais questões que abordadas nesta tese, uma vez que a Psicologia
Social de influência pós-moderna também reivindica a reformulação do significado do
conceito de ciência. A questão é: devemos alterar o significado do termo ciência para
adequar a Psicologia a ele, ou limitar o escopo da Psicologia para adequá-la a ciência? Esta
questão será examinada novamente no quinto capítulo desta tese. Por ora, cabe lembrar a
crítica efetuada por Amadeo Giorgi (1978) à Psicologia Moderna representada então pelo
Behaviorismo, em obra na qual tenta (e não consegue) estabelecer o estatuto epistemológico
da “Psicologia como Ciência Humana” e que tem como subtítulo, “Uma Abordagem de Base
Fenomenológica”. Ele pergunta em sua obra, criticando o caráter dogmático que a Psicologia
com ciência positiva assumiu:
“Não seria possível que a psicologia tenha adotado uma concepção errada de Ciência para
imitar? Não será possível que a Psicologia não tenha ainda esclarecido os seus objetivos
segundo as suas próprias condições? De qualquer forma, não deveria a Psicologia pelo
menos levantar a questão abertamente, e então, ou responder negativamente ou admitir
que uma outra concepção de Psicologia é igualmente possível ou até mesmo preferível?”
(p.19)
Como veremos adiante, o Cognitivismo responde sim a estas perguntas, porém, o
conteúdo desta resposta é profundamente diferente daquilo que Giorgi tentava estabelecer.
160
3.6 O Projeto da Psicologia Moderna ainda está vivo?
Este item procura, antes que responder a questão título (objeto da tese), especificar as
condições de sua possível resposta. Ou seja, aqui, se explicitarão quais são as perguntas e
problemas para os quais terão que ser oferecidas soluções se quisermos falar em uma
Psicologia constituída nos moldes da Ciência moderna. Como já pudemos ver neste trabalho,
estes problemas não são poucos, e os classificaremos aqui em três tipos: os vetos filosóficos
específicos à Psicologia, os problemas dos pressupostos filosóficos gerais da Ciência, e por
fim os problemas metodológicos especiais da Psicologia.
Aqui se lançará mão de um recurso didático, reapresentando, resumindo e enumerando
as questões que esperam solução ou resposta de qualquer projeto de ciência psicológica
moderna. Estas questões orientarão nossa análise no capítulo quatro, onde se investigarão as
propostas e pressupostos nos quais se baseia a Psicologia Cognitiva. Assim a resposta à ques-
tão título do item é condicionada à suposta resposta a cada uma das questões levantadas aqui:
o projeto de Psicologia Moderna está vivo se existir um programa de pesquisa que enfrente
eficientemente todas estas questões, e a hipótese defendida aqui é que atualmente a Psicologia
Cognitiva é a única candidata ao posto. Mas em que bases se sustenta esta hipótese?
Não podemos, de antemão, considerar a possibilidade de fim de um projeto que tem
um representante legítimo, o Behaviorismo, ainda em atividade. No entanto não podemos
deixar de encarar o Behaviorismo como um programa de pesquisa degenerativo (Lakatos,
1974), depois dos resultados aos quais chegaram várias pesquisas cognitivistas, da falência do
fisicalismo e do modelo newtoniano-mecanicista de universo. Desde Skinner, grandes avan-
ços não se registram na produção de hipóteses explicativas na tradição behaviorista. Assim, o
modelo behaviorista se vê sob um grande número de importantes ataques: está sob ataque do
anti-representacionismo pós-moderno, que é filho bastardo do fisicalismo, e que nada mais
faz do que levar às últimas conseqüências seus pressupostos filosóficos; está sob ataque da
tradição humanista, que questiona a significação e importância, e mesmo a natureza psicoló-
gica dos resultados que o Behaviorismo apresenta; está sob ataque da neurofisiologia, que
partindo do mesmo molde fisicalista que o Behaviorismo parte, pretende agora, que já pode-
mos observar o comportamento do sistema nervoso central, substituir o próprio behaviorismo
como ciência adequada para a investigação do comportamento dos organismos; e por fim, está
sob ataque da Psicologia Cognitiva, que apresenta, em todas as áreas tradicionais de investi-
gação psicológica, resultados mais abrangentes que os oferecidos pelo Behaviorismo, inclusi-
161
ve com refutações conclusivas de teorias capitais para este último programa de pesquisa,
como a do comportamento verbal de Skinner (Chomsky, 1967, [1959]) e a do caráter mera-
mente associativo do condicionamento clássico e operante (Rescorla, 1967; Seligman, 1975).
Portanto, se a Psicologia moderna pode sobreviver, precisa de um programa de pesquisa que
dê conta dos problemas antigos e conduza à frente as pretensões de uma ciência psicológica.
Vamos então ao resumo deste capítulo, com o inventário de todas as principais ques-
tões e problemas que vimos se levantarem até aqui contra a possibilidade da constituição da
Psicologia como Ciência moderna.
3.6.1 Os vetos filosóficos à Psicologia Moderna
Qualquer programa de pesquisa que se proponha a levar a frente o projeto de
constituição de uma Psicologia constituída como Ciência moderna, deve estar sustentada por
uma Filosofia da Psicologia que ofereça solução aos seguintes vetos e questões filosóficas:
1) A natureza inquantificável do objeto da Psicologia – este é um veto de natureza
ontológica, e deve ser distinguido do problema metodológico representado pela dificuldade de
mensuração experimental, com o qual no entanto está intimamente ligado. Kant (1974) advo-
ga a impossibilidade ontológica, e não metodológica, de quantificação dos fenômenos psico-
lógicos. Ele acredita que, se a Psicologia quer ser ciência empírica, não pode proceder apriori.
Mas no entanto, tampouco pode quantificar seus dados e empregar o cálculo matemático na
descrição precisa da realidade e das leis que a regem, pois os fenômenos psíquicos produzem-
se só no tempo, e não no espaço, portanto, não são passíveis de quantificação.
2) A impossibilidade de o sujeito ser ao mesmo tempo objeto – Este veto kantiano foi
também desenvolvido por Comte. O sujeito que pensa não pode ser ao mesmo o objeto do ex-
perimento que realiza, pois estaria consciente das condições experimentais e de controle, além
de a observação interna interferir no resultado do andamento do próprio processo psíquico.
3) Indivisibilidade do fenômeno psíquico – Segundo Kant (1974), este veto se refere à
impossibilidade de proceder por análise e síntese na investigação do fenômeno psíquico, pois
não se podem considerar os efeitos psíquicos em separado, como elementos, uma vez que a
vida psíquica na realidade forma uma totalidade cujas partes não podem ser separadas nem
combinadas. Este veto foi desenvolvido por vários grandes filósofos, entre os quais se
destacam Brentano e Husserl (1973), e ajudou a gerar a tradição psicológica do gestaltismo.
4) Psicologia não pode ter o mesmo método das ciências naturais – Se o objeto da
Psicologia é de natureza diversa do objeto das ciências naturais, então requer um método
próprio de investigação. Esta é a tese de Husserl (1952), que propõe a fenomenologia como
162
método próprio de investigação psicológica. É também a tese de Dilthey (1945), que propõe a
classificação da Psicologia como ciência do espírito e o método de sua investigação como o
idiográfico.
5) O objeto da Psicologia deve ser o sentido da experiência consciente – É a tese da
Psicologia Humanista, que se distingue da tese acima somente em sua pretensão de continuar
a utilizar o método experimental para a investigação desse novo objeto, em conjunto com
outros, idiográficos.
6) A Psicologia não tem objeto próprio – Alegação final da tradição fisicalista, sua
formulação mais influente vem da tese do materialismo eliminativo. Todo programa de
pesquisa que se apresentar como candidato à Psicologia Moderna deve também justificar a
existência do objeto específico desta ciência, e se posicionar em relação ao reducionismo
ontológico que em última análise acaba com a Psicologia.
7) O objeto da Psicologia é alterado pela interação – Questão colocada por fontes tão
diferentes quanto a tradição kantiana, a Psicologia experimental, o Construcionismo Social e a
Psicologia Humanista. É uma questão correlata a alguns problemas suscitados pela física
quântica: o ser humano seria passível de modificação estrutural quando em processo de
interação social ou colocado em condições de pesquisa, o que poria em cheque o pressuposto
da regularidade do objeto.
8) O ser humano é dotado de livre-arbítrio – Problema central da Psicologia que
colocaria diretamente em cheque sua condição de cientificidade. O ser humano seria dotado
de auto-determinação, seria fonte de atividade do universo, e não um objeto meramente
reagente deste. Um objeto criativo e livre seria passível de investigação científica? Problema
correlato ao anterior, mais uma vez põe em cheque o pressuposto da regularidade do objeto.
3.6.2 Os problemas dos pressupostos filosóficos gerais da Ciência
O segundo grupo de problemas que se interpõe às pretensões científicas da Psicologia
são os oriundos do questionamento aos pressupostos filosóficos assumidos pela Ciência
moderna como um todo. Precisamos, para um legítimo projeto de Psicologia Moderna, de sua
aderência a uma Filosofia da Ciência e a uma metafísica que ofereçam soluções para os
seguintes problemas:
9) Anti-representacionismo: a linguagem não tem referência estável ou real – Tese
pós-moderna desconstrucionista que advoga a impossibilidade de representação da realidade
através das palavras, e a determinação do significado de palavras efetuada através dos “jogos
163
de linguagem”. Todo projeto coerente de Ciência moderna deve buscar aderir a uma solução
filosófica para a questão do representacionismo.
10) Anti-realismo ontológico – Versão mais radical do anti-representacionismo. A
Psicologia Moderna deve aderir a uma teoria do conhecimento e uma filosofia da ciência que
ofereçam uma solução para as conclusões anti-realistas que a falência do fisicalismo gerou
através do reducionismo lingüístico.
11) A falência da indução – Para manter uma condição de otimismo epistemológico a
Psicologia deve ser capaz de descartar o método indutivo, afirmando a possibilidade de
obtenção do conhecimento em contra do método indutivo e da identificação entre
conhecimento e certeza.
3.6.3 Os problemas metodológicos da Psicologia Moderna
Por último, existem problemas metodológicos, alguns deles derivados de problemas
aventados acima, para os quais precisam ser oferecidas soluções adequadas. São eles os já
abordados no item 3.2:
12) Limitações éticas da pesquisa psicológica – Como superar as limitações impostas
pelos imperativos éticos à utilização de seres humanos como objetos de pesquisa?
13) O objeto da Psicologia não é diretamente observável – Como encontrar uma
abordagem satisfatória para o problema da subjetividade do objeto da Psicologia?
14) O objeto da Psicologia não é mensurável – É preciso encontrar uma solução
satisfatória para o problema da quantificação dos dados relativos a experimentos em
Psicologia.
15) O objeto da Psicologia é extremamente complexo – Como enfrentar o problema da
complexidade do objeto da Psicologia? Como enfrentar a quantidade imensa de complexas
variáveis que interferem na determinação ou condicionamento do fenômeno psicológico?
Como se pode entrever, esta é a magnitude do desafio que se coloca à possibilidade de
constituição da Psicologia como Ciência moderna. Assim introduzimos apropriadamente o
problema que se procurará responder no capítulo cinco. A Psicologia Cognitiva consegue
apresentar soluções satisfatórias a toda essa ordem de problemas? E se não, a quais problemas
ela não oferece solução ou abordagem satisfatória? Estas respostas definirão o cenário da
Psicologia contemporânea em busca do graal da Ciência moderna.
164
4
COGNITIVISMO: O NOVO PROJETO DE
PSICOLOGIA MODERNA
Este capítulo tem como objetivo a apresentação dos fundamentos filosóficos do
Cognitivismo como movimento e da Psicologia Cognitiva como disciplina científica, e avaliar
se e como esta corrente consegue superar os obstáculos colocados pela tradição filosófica e
científica à constituição da Psicologia como ciência moderna. Ele começa por uma
contextualização histórica do surgimento desta abordagem, interpretada aqui como um
atropelamento sofrido pela Psicologia do meio do século por outras disciplinas que, sem
renunciar ao método científico, ultrapassaram suas fronteiras obrigando-a a uma reação. Nos
três itens seguintes estabeleceremos, com base em textos de alguns de seus autores mais
representativos do Cognitivismo, seus pressupostos e posições ontológicas, epistemológicas e
metodológicas. No item dedicado ao posicionamento ontológico desta abordagem, dá-se
destaque ao problema da definição de objeto, a imagem de homem defendida pelo movimento
e a posição em relação ao problema mente-corpo. No item epistemológico, dá-se ênfase na
compatibilidade com o Racionalismo Crítico e no problema da relação construtivismo-
inatismo. No item metodológico, dá-se ênfase em suas técnicas inovadoras, como o protocolo
verbal, os experimentos com PET e a simulação computadorizada.
4.1 Ciências Cognitivas: A Psicologia forçada a progredir
A Psicologia Cognitiva não surgiu de um movimento natural gerado no seio de uma
Psicologia Behaviorista que havia evoluído para algumas propostas mediacionais. De fato, tal
165
coisa seria impensável, porque o estudo dos processos cognitivos requeria uma revolução,
como será demonstrado adiante, nos pressupostos ontológicos, epistemológicos e critérios
metodológicos da Psicologia tal como era praticada pelo Behaviorismo. As forças que
tornaram possível o advento do Cognitivismo vieram de disciplinas externas à Psicologia, tal
como a Engenharia, a Matemática, a Lingüística, a Neurofisiologia e, principalmente, a
Filosofia da Ciência. Sobre esta última influência, não abordada em obras sobre a chamada
Revolução Cognitiva, se levantará tese de que foi fundamental, embora indireta. Porém, como
este não é um trabalho de história da ciência, os argumentos em defesa desta hipótese serão
meramente teóricos. Nunca é demais relembrar que esta tese é sobre a questão da
cientificidade da Psicologia Cognitiva, portanto esta contextualização histórica terá o objetivo
somente de introduzir a questão dos pressupostos e oferecer subsídios para a análise em foco.
Não me debruçarei, em absoluto, sobre as características específicas das contribuições
individuais dadas pelas diversas disciplinas citadas para o surgimento do campo, por sinal, um
trabalho já realizado com maestria por Howard Gardner (1996) em “The Mind’s New
Science”, original de 1985, ou ainda por obras de amplitude mais restrita mas igualmente bem
feitas como o autobiográfico “In Search of Mind” de Jerome Bruner (1983) ou o “The
Cognitive Revolution in Psychology”, de Bernard Baars (1986).
Antes no entanto de traçarmos o perfil desse novo modelo de ciência psicológica
moderna, cabe neste momento efetuarmos uma distinção entre dois termos que estou usando
até aqui praticamente como intercambiáveis: o termo Cognitivismo e o termo Psicologia
Cognitiva. De fato, como afirma Penna (1984) em sua pioneira “Introdução à Psicologia
Cognitiva”, a Psicologia Cognitiva se pode conceituar tanto como um movimento doutrinário
quanto como uma área específica de pesquisa. Baars (1986) observa que o termo Psicologia
Cognitiva é ambíguo (p.158), mas refere-se primariamente a uma “metateoria” que defende
que através de observações empíricas podemos inferir constructos teóricos inobserváveis. Ele
acredita que essa ambigüidade e confusão foi gerada porque a metateoria cognitiva surgiu no
seio de uma disciplina psicológica também denominada cognitiva (o campo de estudo da
memória, linguagem, percepção, pensamento), mas que no entanto poderia ter surgido em
qualquer outro campo da Psicologia.
Aqui, quando estivermos falando desta enquanto movimento (ou “metateoria”, Baars,
1986), usarei o termo Cognitivismo, quando enquanto área de pesquisa específica, usarei o
termo Psicologia Cognitiva, o qual no entanto também será usado nas poucas ocasiões em que
quiser referir ambos os sentidos. Não podemos esquecer que a Psicologia Cognitiva enquanto
área de pesquisa solidamente constituída foi um produto do Cognitivismo, mas também que o
166
sucesso da mesma foi o grande motor deste movimento, sendo portanto ambos, indissociáveis.
Como afirma Baars (1986), o estudo da cognição humana provê o domínio empírico no qual o
sucesso ou o fracasso da metateoria cognitiva (Cognitivismo) pode ser demonstrado.
Enquanto área de pesquisa, a Psicologia Cognitiva pode se definir como o estudo de
como seres humanos percebem, processam, codificam, estocam, recuperam e utilizam
informação. É o estudo do processamento humano de informações. Enquanto movimento
doutrinário na Psicologia, o Cognitivismo foi definido por Penna (1984) como sendo marcado
por cinco características principais. A primeira é a centralidade do conceito de regra para
explicar o processamento cognitivo e o comportamento. A segunda o comprometimento com
uma visão construtivista dos processos cognitivos. A terceira pela concepção do
comportamento humano como orientado a metas. A quarta a imagem de um sujeito ativo, e
não reativo como o da tradição positivista. Por fim, a quinta seria a recuperação do conceito
de consciência na Psicologia. Cabe dizer que concordo totalmente com esta caracterização, e
espero nos próximos itens apresentar muitos subsídios para sua justificação, além de explicitar
algumas outras características presentes no movimento.
Outra distinção importante a ser efetuada é entre Psicologia Cognitiva e Ciência
Cognitiva. Podemos definir a Ciência Cognitiva como um esforço multidisciplinar com
fundamentação empírica para responder questões acerca da aquisição, armazenamento e
utilização de conhecimento por parte do ser humano. A característica de esforço
multidisciplinar é fundamental nesta disciplina, que consiste numa conjugação de esforços
entre a Psicologia Cognitiva, a Inteligência Artificial, a Neurociência, a Lingüística e a
Filosofia da Mente para explicar o processo de cognição humana. Apesar de a Psicologia
Cognitiva ser a disciplina central de articulação destes esforços, ela não perde a especificidade
de seu domínio nem a independência de seus métodos.
4.1.1 Antecedentes psicológicos do Cognitivsmo
O Movimento Cognitivista, assim como a Psicologia Cognitiva enquanto campo de
pesquisa, teve obviamente precursores dentro da Psicologia, que prepararam o terreno para
seu surgimento. Cabe no entanto enfatizar que nenhum destes foi responsável por este último,
nem tinham em si os elementos que propiciariam esta revolução.
É necessário lembrar que durante a mal-sucedida tentativa de aplicação do método
experimental ao estudo da cognição representada pelo Estruturalismo, na Europa outros
melhores passos nesta direção estavam sendo dados. Não me refiro aqui à igualmente mal-
sucedida tentativa experimentalista da escola de Würzburg, mas sim a Hermann Ebbinghaus.
167
Ebbinghaus não se submeteu ao introspeccionismo wundtiano e promoveu aquele que talvez
tenha sido o primeiro estudo experimental válido de processos superiores de pensamento, no
caso a memória. Ao transformar a variável dependente, o fenômeno a ser medido e observado,
no resultado que sujeitos experimentais conseguiam na execução de tarefas (e não mais suas
descrições introspeccionistas), Ebbinghaus, com pouca consciência das enormes implicações
metodológicas e epistemológicas do que estava executando, trouxe finalmente a pesquisa de
processos mentais superiores para o primeiro mínimo patamar de objetividade requerido para
a investigação científica. Modificando suas variáveis independentes (tempo de apresentação
das sílabas, interferências para frente e para trás) Ebbinghaus provocava alterações nos
resultados de execução das tarefas dos sujeitos, os quais eram atribuídos, por inferência, a
forma como processos mentais superiores (no caso a memória) eram afetados pelas alterações
nas variáveis independentes. No entanto, não havia aqui o estabelecimento de hipóteses sobre
a estrutura destes processos nem a presença consciente de um método hipotético-dedutivo,
muito menos a consciência do conceito de variável interveniente, que muito poderia ter
auxiliado o nosso primeiro psicólogo experimental do pensamento. Estes instrumentos
(exceção do método hipotético-dedutivo) só se fariam presentes com Edward Tolman.
Outro importante passo estava sendo dado na Europa pela Psicologia da Gestalt, que
numa reação muito bem efetuada ao elementarismo e empirismo objetivista dominante na
cena psicológica do início do século, demonstrou que mesmo o processo psicológico
supostamente mais simples, a percepção, entidade deificada pelos empiristas, requer
conhecimento prévio e obedece a leis internas muito básicas, sendo, acima de tudo, uma
atividade ativa e interpretativa de captação de totalidades, as gestalts. Essa qualidade da forma
perceptiva envolvida da percepção de uma melodia ou do falso movimento cinemático requer
mais do que a soma de elementos individuais, pois a mesma transcende essa soma. Não
importa em quantas escalas diferentes você ouça as notas iniciais da quinta sinfonia de
Beethoven, as notas e instrumentos envolvidos na sua execução serão sempre diferentes, mas
o que você percebe será sempre a quinta, ou seja, o padrão da diferença de altura escalar entre
as diferentes notas que formam o que nós identificamos como uma melodia, para além das
notas e sons concretos individuais. Alguns brilhantes estudos da percepção e do pensamento
foram realizados por esta escola, como os estudos sobre movimento aparente de Wertheimer
ou os de pensamento criativo de Köhler, que trouxe à Psicologia a hoje popular teoria do
insight. O que está por trás do pensamento gestaltista é a crença kantiana de que a mente
humana é construída de forma tal que relações lógicas e matemáticas são impostas ao mundo
organizando ativamente o material fornecido pelos sentidos – que guarda uma relação de
168
isomorfismo com as estruturas da mente – ao invés de serem recebidas da experiência. A
percepção portanto, seria um fenômeno em grande medida projetivo.
Psicólogos cognitivos como Gardner (1996) ou Bruner (1983) consideram que o pro-
grama teórico da Gestalt não estava bem fundamentado, com a acusação principal de que seus
conceitos explicativos são vagos demais para serem operacionalizados. Embora seja possível
questionar a generalidade dessa avaliação, não cabe aqui uma análise pormenorizada de em
que medida a Psicologia da Gestalt adiantou o Cognitivismo, somente a constatação de que se
trata de um dos primeiros estudos sérios empiricamente fundamentados de Psicologia Cogniti-
va. No entanto, sua utilização do método experimental era rara e pouco explicativa. Não havia
clareza metodológica sobre como abordar experimentalmente processos de pensamento.
A crítica teórica no entanto mais importante ao gestaltismo foi a construtivista de Jean
Piaget, que veremos no item destinado às concepções ontológicas do Cognitivismo. A
portentosa obra científica de Piaget que geralmente é considerada por autores anglo-saxões
como uma influência antecedente européia à Psicologia Cognitiva, será no entanto
considerada aqui como a primeira obra científica legitimamente cognitivista. A classificação
de Jean Piaget como um precursor do cognitivismo se dá em virtude de seu surgimento
anterior à abordagem de processamento de informação e à metáfora computacional (e talvez
em virtude de sua origem européia...). Aqui Piaget é considerado como o primeiro psicólogo
experimental plenamente cognitivista, surgido antes das Ciências Cognitivas e do
Cognitivismo como movimento, e a justificativa para essa classificação é o fato de sua teoria
possuir plenamente as cinco características aventadas por Penna (1984) e citadas no início
deste item. Para Piaget, o processo cognitivo é regido pela aplicação de regras, que são
construídas durante o processo de desenvolvimento cognitivo através da ação no mundo de
um sujeito orientado para metas e dotado de consciência como um fenômeno biológico
básico. Portanto, detalhes das posições epistemológicas, ontológicas e metodológicas de
Piaget serão aventadas nos próximos itens deste capítulo como exemplos de uma tradição
cognitivista plena, e não somente como antecedentes da mesma.
Assim, resta a avaliação das influências antecedentes vindas da Psicologia norte-
americana dos anos 30, que era absolutamente imbuída da necessidade de adequação da
atividade de investigação psicológica aos cânones de cientificidade ditados pelo Positivismo
Lógico. Isso fazia do Behaviorismo a Psicologia científica oficial. Esse quadro tornava
interdita a pesquisa de processos “mentalistas” como os cognitivos, fechando a caixa preta
que para o behaviorismo era perfeitamente dispensável na explicação do comportamento.
169
A janela para o estudo experimental dos processos cognitivos na América começou a
ser aberta nos anos 30, com a aplicação à Psicologia do conceito de variável interveniente
desenvolvido pelo brilhante metodologista e “behaviorista intencional” (se é possível se usar
um termo como esse) Edward Tolman. Eysenck & Keane (1994) concordam com a avaliação
de que Edward Tolman é o mais importante precursor, dentro da tradição behaviorista, do
Cognitivismo. O conceito de variável interveniente propiciou a consideração de processos que
ocorriam dentro do organismo, não-observáveis diretamente, mas inferíveis pelas alterações
que provocavam nas medições das variáveis dependentes cuja relação com as variáveis
independentes era perfeitamente conhecida. Através deste princípio metodológico, podemos
perfeitamente mensurar o efeito de eventos não-observáveis no comportamento manifesto. As
conseqüências disto para o estudo da cognição são facilmente compreensíveis. Vamos supor
que estejamos estudando o comportamento de uma criança que somente aprendeu a tabuada.
Se perguntarmos para a criança sobre operações as quais ela nunca ouviu e portanto jamais foi
condicionada, caso ela seja capaz de oferecer respostas (variável dependente) corretas para os
problemas que propomos a ela, estamos perfeitamente suportados para realizar a inferência de
que existe um processo de aplicação de regras (variável interveniente) à informação que ela
recebe (estímulo – variável independente). Mas obviamente este tipo de abordagem de proces-
samento de informação não era adotada por Tolman. O que não o impediu de abordar cientifi-
camente, com o auxilio conceitual e metodológico da variável interveniente, o problema dos
processos cognitivos envolvidos em processos de aprendizagem, mesmo de ratos.
Usando este conceito, Tolman demonstrou que camundongos que haviam aprendido a
percorrer um labirinto estrela (de oito braços), eram capazes de percorrer o mesmo labirinto a
nado quando este era inundado, o que provava que sua habilidade de execução da tarefa não
era em virtude de terem condicionado reações motoras específicas. Em outra variação do
experimento, ele demonstrava que os ratos apesar de apresentarem uma seqüência aleatória de
escolhas nos braços que iam entrar para buscar comida (no fim dos oito braços era colocado
um pouco de ração), jamais entravam uma segunda vez num braço onde já haviam pegado a
comida, o que demonstrava um notável senso de orientação. A partir destes resultados,
podemos inferir a presença de uma variável interveniente intervindo no comportamento, um
“mapa cognitivo” (conforme denominou o próprio Tolman) do labirinto que tornava possível
a eles a execução destas tarefas. Conforme reconhecem Eysenck & Keane (1994), esse
reconhecimento por parte de um declarado behaviorista de que mesmo em ratos o aprendizado
só pode ser entendido ao se enfocar processos e estruturas internas ao invés de reações
motoras condicionadas foi um grande passo em direção à futura Psicologia Cognitiva.
170
4.1.2 Psicologia Cognitiva e o contexto de seu surgimento
Neste item, expor-se-á a tese usual (Gardner, 1996, [1985]; Mayer, 1981; Baars, 1986)
de que a Psicologia Cognitiva como campo de pesquisa e o Cognitivismo como movimento,
apesar de não terem sido criados fora da Psicologia (vide Ebbinghaus ou Piaget), só consegui-
ram revolucionar o mainstream psicológico em virtude de avanços científicos ocorridos além
das fronteiras da Psicologia. Estes avanços foram basicamente seis: o advento da computação,
a Teoria da Informação, a Cibernética, as novas teorias neurológicas, as novas descrições de
síndromes neuropsicológicas e a teoria lingüística de Noam Chomsky. No entanto, esta
exposição só será feita no subitem seguinte. Neste subitem, este trabalho buscará acrescentar a
esta interpretação tradicional das condições de surgimento da Ciência Cognitiva e do
Cognitivismo (o Cognitivismo surge como movimento doutrinário em virtude do surgimento
da Ciência Cognitiva como campo multidisciplinar integrado), com a qual concorda
plenamente, duas outras teses. A primeira, é que a recusa sistemática da Psicologia de antes
dos anos sessenta em utilizar o método científico para investigar os fenômenos legitimamente
psicológicos propiciou naturalmente essa “invasão”, e não somente os avanços científicos
considerados. A segunda, é que o surgimento do Racionalismo Crítico é tão fundamental para
se compreender o surgimento da Psicologia Cognitiva quanto estes avanços científicos.
4.1.2.1 A paralisia psicológica que propiciou a invasão
A recusa sistemática da Psicologia acadêmica de antes dos anos sessenta em aplicar o
método científico à investigação dos legítimos fenômenos psicológicos, acabou por propiciar
as condições para que estes fenômenos acabassem sendo assim abordados por outras
disciplinas. Este fato não é muito difícil de se entender. De um lado, temos aquele objeto que
é o alvo de maior interesse e curiosidade entre todos os existentes no universo, a mente
humana. De outro, temos aquele método de investigação que é o mais bem sucedido de toda a
história da humanidade em obter conhecimento válido sobre o universo, o método científico
experimental. Uma Psicologia que se recusava peremptoriamente a aplicar o segundo ao
primeiro, era uma Psicologia fadada ao desinteresse do público e ao fracasso como empresa.
Temos duas formas diferentes dessa recusa. Na primeira, a Psicologia que utilizava o
método científico mas se recusava a estudar temas especificamente psicológicos, o Behavio-
rismo. Na segunda, a Psicologia que estudava alguns temas psicológicos mas se recusava a
utilizar o método científico, a Psicanálise. Posteriormente, juntou-se à Psicanálise nesta forma
de recusa outra empresa anticientífica, a Psicologia Humanista. Não podia dar certo.
171
Enquanto o Behaviorismo considerava a mente, no mínimo, uma entidade dispensável
metodologicamente; e, no máximo, um mito protocientífico; o interesse de seres humanos
pelo estudo científico da mente obviamente não diminuiu. A atitude do Behaviorismo
provocou na Psicologia, como observam Eysenck & Keane (1994), um efeito paralisante,
advindo da sua dependência de estímulos e respostas observáveis, assim como de sua atitude
antiteórica. O resultado é completamente insatisfatório como disciplina capaz de oferecer
explicações mínimas de processos psicológicos. Mas uma vez que o Behaviorismo se
encontrava em sólida posição institucional, com amplo domínio do processo acadêmico, não
havia meio dessa paralisia na Psicologia científica ser superada a não ser através de
revoluções e mudanças vindas de fora da disciplina.
No outro pólo, abordagens da mente e do inconsciente como as da psicanálise, que não
recorriam ao método científico para o teste de suas alegações, geraram de fato múltiplas
escolas diferentes, todas mutuamente excludentes e com teorias que variavam de interessantes
insights sobre a psique até os mais puros nonsenses filosóficos. O agravante neste quadro, é
que a imensa fauna de teorias psicanalíticas não possuía um tribunal comum onde pudessem
ser confrontadas, gerando uma degradação da imagem da Psicologia “mentalista” no seio da
comunidade científica, e a disseminação da impressão de que o estudo objetivo da mente só
seria possível quando se aplicasse a ela o método científico, tarefa que deveria, pelos motivos
expostos acima, ser executada por outras disciplinas. Porém, como demonstrarei adiante, essa
aplicação do método científico ao estudo da mente só se tornaria possível se o próprio
conceito de ciência sofresse dramática alteração, o que começou a acontecer com o
surgimento da obra de Karl Popper.
4.1.2.2 O Surgimento do Racionalismo Crítico e sua influência na Revolução Cognitiva
As questões que eu vou levantar aqui oferecem indícios que nos levam a considerar a
emergência do Racionalismo Crítico (ou no mínimo, o do método hipotético-dedutivo) tão
importante para compreender o surgimento do cognitivismo – no contexto de uma Psicologia
dominada pelo Behaviorismo neo-positivista – quanto o impacto dos novos avanços
científicos acima citados à questão do estudo científico da mente humana.
Como vimos a Psicologia dos anos 30 era totalmente aderida aos cânones de
cientificidade ditados pelo Positivismo Lógico. Isso fazia do Behaviorismo a Psicologia
científica oficial. Uma vez que o critério de demarcação entre uma assertiva científica
(provida de significado) e uma assertiva metafísica (desprovida de significado) era sua
verificabilidade, ou seja, sua redução a termos fisicalistas, derivados da experiência direta, se
172
tornava absolutamente interdito a pesquisa de processos classificados de “mentalistas” e seria
completamente impossível a aquisição de respeitabilidade acadêmica por uma disciplina que
se definisse como o estudo científico dos “processos cognitivos”.
A terceira tese portanto defendida neste trabalho é que, sem o enfraquecimento da
posição antes hegemônica do Positivismo Lógico em Filosofia da Ciência, o estudo empírico
de processos cognitivos não poderia ter conquistado o respeito da comunidade científica. Foi
antes a mudança da visão sobre o que era uma pesquisa científica que propiciou a aceitação
do estudo dos processos cognitivos na Psicologia, e não o contrário.
De fato, é impossível estudar com o modelo experimental positivista, indutivamente,
um objeto não observável diretamente. A própria revolução behaviorista se fez contra as
primeiras e infrutíferas tentativas de se fazer isso. O Racionalismo Crítico, direta ou
indiretamente, propiciou a mudança na concepção de atividade científica que gerou as
condições necessárias (não suficientes) para o surgimento da revolução cognitiva.
Sobre o passo visto acima em direção a uma Psicologia Cognitiva dado através de
Edward Tolman, nada podemos atribuir à influência de Popper. Mas o mesmo já não se pode
dizer do passo seguinte. Esse foi a progressiva adoção do método hipotético-dedutivo nas
fileiras da Psicologia experimental. Essa adoção começou com o exemplo conhecido de nós
psicólogos de Clark Hull, que em 1940 publicou “A Study in Scientific Methodology”, seu
livro clássico onde defende a adoção do método hipotético-dedutivo em Psicologia integrando
em seu modelo o conceito de variável interveniente. Embora não possamos afirmar que Hull
teve contato direto com a obra popperiana de 1934, podemos afirmar que ao menos a
receptividade às idéias de Hull foram influenciadas pela crescente influência das idéias do
jovem Popper sobre teóricos do círculo de Viena, como Victor Kraft, Herbert Fiegl e Carl
Hempel, em direção à aceitação de que o método científico é hipotético-dedutivo e não
indutivo, tese essa que foi reintroduzida filosoficamente no século XX por Popper.
Um efeito direto mais imediato foi experimentado na obra de Bärbel Inhelder, a
psicóloga que foi a grande colaboradora de Piaget. Em pesquisa publicada em 1943, como
narra Ramozzi-Chiarottino (2002), ela procurou colocar as teorias piagetianas, já apresentadas
na forma hipotético-dedutiva, sob testes capazes de falsificá-las, substituindo a atitude e a
busca verificacionista por testes declaradamente falsificacionistas.
A progressiva adoção do método hipotético-dedutivo como modelo de investigação
científica teve profundo impacto na Psicologia. Fora das fileiras behavioristas, a adoção do
método propiciou o começo da investigação de hipotéticos processos cognitivos através de
suas conseqüências necessárias diretamente observáveis. A tese de que toda observação se faz
173
à luz de uma teoria, ou seja, necessariamente contra ou a favor de uma hipótese, embora
defendida em vários momentos na história da filosofia e da ciência (como por Auguste Comte
e Charles Darwin) foi reintroduzida filosoficamente por Karl Popper verdadeiramente não
como uma outra opção de inferência, mas sim como a única. Mais ainda, a noção de que o
verdadeiro critério de cientificidade de uma teoria não é o fato de ela poder ser diretamente
verificável, mas o fato de ela possuir conseqüências necessárias que sejam passíveis de
falsificação, é a idéia central trazida por Popper, e que mudou a face da ciência.
Psicólogos Cognitivos usualmente não estão conscientes desta influência, assim como
conhecem pouco a obra de Popper. Caso típico desta inconsciência se encontra na maior obra
histórica sobre o surgimento das Ciências Cognitivas, a de Howard Gardner (1996,[1985]),
onde podemos observar argumentos popperianos como a da não cientificidade da Psicanálise
por conta de sua irrefutabilidade atribuídas à tradição positivista (p. 30), ou o emprego
sistemático do conceito de falsificabilidade sem no entanto maiores referências à obra de
Popper, nem demonstração de qualquer consciência quanto à origem deste conceito. Em outro
trabalho histórico sobre o surgimento da Psicologia Cognitiva, o de Bernard Baars (1986),
encontramos muitas citações de Thomas Kuhn, principalmente para justificar sua tese de que
a Psicologia passou por uma “revolução científica” no sentido que Kuhn conferiu ao termo.
Porém não encontramos nenhuma citação de Popper, cuja filosofia foi a responsável pelo
surgimento de pensadores como Kuhn. Uma análise pormenorizada do texto revela que esta
opção parece ser devida a mais um caso patente de desconhecimento paroquial do filósofo
europeu e conhecimento paroquial do seu herdeiro rebelde americano. Percebemos no texto
que muitas vezes as referências a Kuhn ocorrem mais em virtude das características de sua
teoria que são herdadas de Popper (como a da falsificabilidade como critério de cientificidade
a ser preenchido por uma assertiva candidata à científica), do que das particularmente suas.
No mais, como observaram os behavioristas O’Donohue, Ferguson & Naugle (2003), a teoria
de Kuhn é utilizada geralmente por cognitivistas simplesmente para justificar o que os primei-
ros consideram um fenômeno meramente sócio-retórico: a suposta “Revolução Cognitiva”.
Voltando à questão da influência do Racionalismo Crítico para a emergência da
Revolução Cognitiva, temos que lembrar que nem todos os autores que se debruçaram sobre o
problema dos fundamentos do Cognitivismo em seus primeiros anos manifestaram incons-
ciência em relação à influência de Popper. Um exemplo disso é este trecho de Penna (1986):
“Especialmente no campo da Epistemologia a referência aponta para as idéias de Karl
Popper. Essa absorção registra-se claramente, quer no domínio da aprendizagem de
174
conceitos, (...), quer no da aprendizagem de resolução de problemas, (...). No que se
refere explicitamente à aprendizagem de conceitos destaca-se a observação de Neil
Bolton de que ela se cumpre através de processos hipotético-dedutivos, com emissão de
hipóteses logo submetidas a testes de validação ou invalidação.” (p.20)
A partir dos anos noventa, podemos perceber uma maior tomada de consciência desta
influência por parte de cognitivistas que abordam a questão dos fundamentos epistemológicos
e metodológicos da Psicologia Cognitiva. Eysenck & Keane (1994) em um dos principais
livros-texto atuais da área afirmam explicitamente que:
“A Psicologia Cognitiva surgiu deste contexto histórico [o behaviorismo] por causa de
dois grandes avanços. Primeiro, a um nível bastante geral, a visão tradicional de ciência
[Positivismo Lógico] foi solapada de tal forma que permitiu que a Psicologia Cognitiva
formasse sua própria identidade científica.” (pág. 08)
Mais à frente, eles declaram (pág. 09) que todos os princípios fundamentais da visão
tradicional de ciência que fundamentavam o Behaviorismo foram “devastados” pelos
filósofos da ciência do século XX, como Thomas Kuhn e Imre Lakatos, “capitaneados por
Karl Popper”. De fato, como defendemos aqui, uma vez que os princípios que levavam o
Behaviorismo ao veto radical a qualquer pretensão de estudo experimental da mente estavam
“devastados” pela nova Filosofia da Ciência, não havia mais razões para que os psicólogos
filosoficamente cultos, como é o caso daqueles presentes ao Simpósio Hixon de 1948 e ao
Simpósio do MIT de 1954, tivessem que ceder às pressões acadêmicas neo-positivistas.
Outros cognitivistas também começam a reconhecer a identidade das idéias de Popper
com o Cognitivismo, como é o caso das obras recentes dos psicoterapeutas cognitivos Aaron
Beck (2000) e Albert Ellis (1989), ou ainda a da outra versão da Filosofia da Ciência
popperiana representada pela obra do psicólogo Donald Campbell (1974), a “epistemologia
evolucionista”. Textos mais recentes sobre a história da Revolução Cognitiva, como o de
Roger Sperry (1993), também começam a reconhecer a influência fundamental do Raciona-
lismo Crítico para o surgimento da Psicologia Cognitiva, assim como novos livros-texto de
introdução à Filosofia da Psicologia como o de Bem & De Jong (1997), que declaram que:
“The resulting revolution in the philosophy of science [from 1930 till 1960] was of
importance to psychology because it made it possible for cognitive psychology to replace
behaviorism as the leading theory” (p.45)
175
Ou ainda novos livros-texto de Introdução à Ciência Cognitiva como o de James
Fetzer (2000), que além de reconhecer o Racionalismo Crítico como a teoria epistemológica
que define o status de teoria científica na atualidade, declara que:
“o método de conjecturas e refutações (tentadas) que Sir Karl Popper propôs como
essencial à ciência empírica, pode preencher um papel dentro da ciência cognitiva
semelhante àquele que desempenha em outros domínios científicos. Hipóteses
semelhantes a leis [cognitivas] podem ser testadas tentando-se refutá-las.” (p.29)
Este trabalho pretende colaborar, através dos argumentos apresentados acima e dos
que serão apresentados no terceiro item deste capítulo, para a compreensão desta influência
por parte daqueles que dele tomarem conhecimento.
4.1.3 Avanços teóricos que propiciaram a Psicologia Cognitiva: o anúncio da invasão
Como anteriormente colocado, a recusa sistemática da Psicologia acadêmica em
aplicar o método científico ao estudo da mente acabou gerando, com o inevitável e irrefreável
desenvolvimento científico e tecnológico que acompanha as disciplinas que seguem o método
científico, a invasão das fronteiras temáticas da Psicologia por disciplinas tão díspares como a
Matemática, a Neurologia, a Engenharia e a Lingüística. Neste subitem, apresentaremos estes
avanços e suas influências centrados na sua significação filosófica. Ou seja, estes avanços
serão abordados aqui individualmente, porém não com o objetivo de sua descrição técnica, o
que foge à competência, ao escopo e aos objetivos deste trabalho.
Sem perder nosso tempo com repetições de análises de domínio público já feitas de
maneira extensa e competente (Gardner, 1996, [1985]; Baars, 1986; Mayer, 1981; Eysenck &
Keane, 1994), priorizaremos neste subitem as conseqüências filosóficas e metodológicas
provocadas pelo surgimento dos avanços científicos responsáveis pelo advento da Revolução
Cognitiva, e não a mera descrição técnica destes avanços. O objetivo desta apresentação neste
momento é o de organização da exposição, pois o desenvolvimento da análise destas
influências será feito em todos os próximos itens deste capítulo.
4.1.3.1 O Advento do Computador
Sem dúvida a mais importante influência da revolução cognitiva foi o advento do
computador. Isto se deu menos pelas possibilidades futuras de simulação de processos cogni-
176
tivos em máquinas do que pela “metáfora computacional” (Neisser, 1967), a clareza concei-
tual que a distinção entre hardware e software permitiu à teorização sobre a mente e suas
relações com o cérebro. Desde o surgimento da teoria matemática da “Máquina de Turing” até
o desenvolvimento dos computadores de processamento paralelo, a chamada “metáfora
computacional” tem sido a mais preciosa fonte de idéias para a Psicologia Cognitiva.
A primeira dessas idéias foi o sugestivo “Teste de Turing”, proposto pelo próprio pai
da computação Alan Turing e que propunha que seria possível programar um computador de
tal forma que seria impossível discriminar as respostas dadas por este a um interlocutor
especialista (um psicólogo?) daquelas dadas por um ser humano. Tal teste logo se
transformou na primeira expressão do credo da tese forte da Inteligência Artificial. Segundo
este último, tal teste é plenamente apto a refutar qualquer um que duvide que um computador
pode pensar: quando alguém não pode decidir se as respostas estão sendo dadas por um ser
humano ou por um computador, afirma o credo, esse alguém está diante do mesmo tipo de
evidência da presença de pensamento de que quando está na presença de seu próprio filho,
uma vez que consciência e inteligência não são entidades diretamente observáveis.
Assim, o materialismo filosófico ganhava finalmente uma versão um pouco mais so-
fisticada: livrava-se de um reducionismo fisicalista radical sem aderir a um dualismo de subs-
tâncias. O nível de análise do cérebro era o nível do hardware, da máquina; o nível de análise
da mente, era o nível do software, do programa. Esta idéia seminal foi intro-duzida por Hilary
Putnam (1961), já citado nesta tese. Logo o materialismo pode se livrar dos limites behavio-
ristas e partir para um tipo de investigação dos fenômenos mentais, criando o programa da
Inteligência Artificial. Eles perceberam imediatamente que se conseguissem como psicólogos
cognitivos descrever com precisão os comportamentos e os processos de pensamento de um
organismo, poderiam ser capazes de projetar um computador e um programa que operasse de
forma idêntica (Simulação Computadorizada). Mas o inverso também era verdadeiro. Caso os
engenheiros de hardware e programação conseguissem projetar um computador e um progra-
ma que operasse de forma idêntica a um ser humano (Inteligência Artificial – IA), isto poderia
nos levar a compreender o processo cognitivo humano. Era o nascimento da tese da IA forte.
Mas é necessário deixar claro desde o início que a maioria dos cientistas cognitivos de
então – e essa tendência é quase unânime hoje – eram partidários da chamada tese fraca da In-
teligência Artificial, e acreditavam que a construção de modelos computacionais que buscas-
sem a simulação da inteligência humana serviria ao propósito mais modesto de revelar somen-
te alguns aspectos mais automáticos da cognição humana, assim como evidenciar em que
aspectos esta era qualitativamente diferente da “inteligência” computacional. E se isso já era
177
verdade para a maioria dos pioneiros cientistas cognitivos, que dirá para o Cognitivismo e a
Psicologia Cognitiva. É preciso aqui ajudar a desfazer o mito, e porque não dizer, a calúnia
disseminada por alguns eminentes psicanalistas e psicólogos humanistas de que para o Cogni-
tivismo o ser humano é um computador neuronal e nada mais. Esta versão encontra força de
propagação no fato de que, por decisão metodológica, a Psicologia Cognitiva simplifica artifi-
cialmente seus problemas colocando entre parênteses a influência nos processos cognitivos
causada pelas emoções. Mas ainda assim, sua origem é a falsa associação do Cognitivismo
com a tese da IA forte, que sempre teve seu local de acolhida dentro das Ciências Cognitivas
nas disciplinas da Neurociência e da Engenharia de Computação. De fato, não há qualquer
psicólogo cognitivo ou cognitivista eminente partidário de tal tese. Como podemos facilmente
constatar, nomes como Jean Piaget (1973, 1987), Noam Chomsky (1987, 1971), Jerry Fodor
(1987, 2001), Jerome Bruner (1983, 1997), Howard Gardner (1996, 1998, 2004), Ulric
Neisser (1967, 1975), Robert Sternberg (1992, 2000), Richard Mayer (1977, 1981), Aaron
Beck (2000), George Miller (1985), se declaram sucessivas e repetidas vezes contra a IA forte
e construíram teorias e carreiras que são a plena negação desta. Veremos em detalhes essas
posições nos próximos itens.. No entanto, devemos lembrar que a maioria destes teóricos
reconhece a importância da metáfora computacional e da pesquisa em inteligência artificial
como importante ferramenta da Ciência Cognitiva, aderindo à tese da IA fraca.
4.1.3.2 A Teoria da Informação e a Cibernética
A história da revolução cognitiva e da revolução da informática ganhou novo impulso
quando, logo depois da publicação do trabalho de Turing (em 1936), apareceram no MIT
(Massachusetts Institute of Technology) as idéias seminais de Claude Shannon. Conhecido
pela história da ciência como o pai da Teoria da Informação, não podemos esquecer que Clau-
de Shannon é também o pai da Eletrônica Digital. Como nos narra Gardner (1996), Shannon
foi o primeiro cientista a perceber que os princípios da lógica poderiam descrever os estágios
de ligado (sim, verdadeiro) e desligado (não, falso) de interruptores eletromecânicos. Ele
portanto é o primeiro a afirmar que circuitos elétricos poderiam reproduzir operações lógicas
de pensamento, sugestão que se materializaria menos de duas décadas depois com o trabalho
de Allen Newell e Herbert Simon, o “Logic Theory Machine”, apresentado pela primeira vez
no famoso Simpósio de Teoria da Informação do MIT, de 1956, evento consensualmente
(Gardner, 1996; Baars, 1986) considerado como marco fundador da Ciência Cognitiva.
Não são necessárias maiores considerações sobre a importância que esse insight teve
para o desenvolvimento das “máquinas lógicas”, os computadores digitais. Todo o sistema de
178
construção binária de árvores lógicas de circuitos realizado pela Eletrônica Digital é desenvol-
vido posteriormente como resultado da combinação entre esse insight original e a sua realiza-
ção universalmente famosa: a Teoria da Informação. Shannon define informação como aqui-
lo que acontece quando um sinal atinge um receptor, capacitando-o para fazer uma escolha
entre um conjunto de alternativas possíveis. Esta teoria move-se em torno da noção-chave de
que a informação pode ser concebida de maneira totalmente separada de conteúdos específi-
cos, simplesmente como uma decisão entre alternativas igualmente plausíveis e mutuamente
excludentes. Assim sendo, a menor unidade de uma informação concebível é aquilo que pás-
samos a chamar bit, porque a menor unidade de informação possível se dá sobre a rejeição ou
aceitação de uma unidade de mensagem. Essa matemática binária, pode ser representada num
circuito elétrico como o sinal (a corrente elétrica) passando por um componente (um), ou
nenhum sinal passando pelo componente (zero). Assim, a escolha de uma mensagem dentre
duas alternativas igualmente prováveis requer um bit de informação (zero e um). Entre quatro,
exige no mínimo dois bits: o primeiro divide entre zero e um e o segundo faz a divisão mais
uma vez, redundando em quatro alternativas diferentes (00, 01, 10, 11). Uma mensagem entre
oito, requer um mínimo de três bits (000, 001, 010, 011, 100, 101, 110, 111), e assim por
diante. Vamos trazer isto para termos mais interessantes para a Psicologia. O que está sendo
afirmado aqui é que a informação pode se dar através de símbolos apesar dos conteúdos que
os símbolos supostamente significariam. Se um policial corrupto combina no pátio do presídio
que transmitirá aos presos a informação de em que hora exata da noite entre 10:00hs e 5:00hs
haverá a troca de guarda, a menor quantidade de informação que ele precisa transmitir para
efetuar eficientemente seu crime são três bits, vamos supor, três batidas ou não-batidas com o
cassetete na barra da cela. Tendo combinado anteriormente com os presos que no momento de
sua ronda, às dez horas, ele irá parar diante de determinada cela e baterá ou não nas três
primeiras barras, a informação pode ser transmitida da seguinte forma. Batendo na primeira
barra da cela, ele informa que é nas quatro primeiras rondas (dez, onze, doze, uma); não
batendo, ele informa que é nas últimas (duas, três, quatro, cinco). Tendo batido na primeira,
uma batida na segunda informará que é em uma das duas primeiras (dez, onze); não batendo
informará que é nas duas últimas (doze, uma). Não tendo batido na segunda barra, basta agora
que ele bata na terceira para informar que a hora propícia para a fuga é à meia-noite. Note que
a informação é passada independente de conteúdo, porque o significado dos símbolos usados
na mensagem já havia sido codificado anteriormente.
Mas o que importa dizer ainda aqui é que a teoria da informação é uma teoria geral,
não meramente computacional. É possível concebê-la independentemente de qualquer
179
aparelho transmissor específico (até mesmo com um cassetete e uma cela). Mas este novo
insight devemos a outro genial matemático do século XX, Norbert Wiener. Como participante
do esforço de guerra desenvolvido durante a segunda guerra mundial, Wiener trabalhou no
desenvolvimento da Teoria da Informação, fundamental para a política de transmissão de
mensagens e quebra de códigos inimigos durante a guerra. Foi no começo de seu trabalho que
Wiener percebeu que a teoria de Shannon tornou a informação concebível independentemente
de qualquer aparelho: pode-se considerar a eficiência de qualquer comunicação de mensagens
sem levar em consideração o meio através do qual ela está sendo transmitida ou mesmo o
receptor que irá recebê-la. Em outras palavras, poderia se tratar a informação de forma lógica,
ignorando quaisquer questões de seu conteúdo, que é decidido prévia e convencionalmente.
Foi Wiener que declarou (apud. Gardner, 1996, p.36) que “Informão é informação, não
matéria ou energia. Nenhum materialismo que não admita isto pode sobreviver nos dias
atuais”. Mas esse insight básico de Wiener foi o início de uma reelaboração muito mais
sofisticada da incipiente Teoria da Informação, a qual ele deu o nome de Cibernética. Em
texto original de 1950, Wiener (1954) define assim esta nova disciplina:
“Além da teoria da transmissão de mensagens da engenharia elétrica, há um campo mais
vasto que inclui não somente o estudo da linguagem mas também o estudo das mensagens
como meios de dirigir a maquinaria e a sociedade, o desenvolvimento de máquinas
computadoras e outros autômatos que tais, certas reflexões acerca da psicologia e do
sistema nervoso, e uma nova teoria conjetural do método científico. (...) Até recentemente
não havia palavra específica para designar este complexo de idéias, e, para abarcar todo o
campo com um único termo, vi-me forçado a criar uma. Daí ‘Cibernética’, que derivei da
palavra grega kubernetes, ou ‘piloto’ (...).” (pág. 15)
Portanto Cibernética é a ciência da comunicação e do controle através da
comunicação. Mas o conceito fundamental trazido por esta nova disciplina, que mudou a
história da Psicologia e nos ajudou a resolver problemas, como já abordei nesta tese, até de
Filosofia da Ciência, é o conceito de Feedback. Wiener desenvolveu este conceito quando
participava do esforço de guerra desenvolvendo sistemas de servomecanismos, destinados a
corrigir e manter rotas de mísseis teleguiados, artilharia antiaérea e aviões em piloto
automático. O que todos esses sistemas tem em comum é que todos eles são sistemas
autocorretores, que através da informação que captam ou recebem sobre seu estado atual, são
programados para corrigirem seus comportamentos ou trajetórias de forma a se aproximarem
mais da meta original. Ou seja, feedback é o processo através do qual um sistema programado
180
para atingir determinado estado ou meta recebe, como parte do seu input, informação sobre o
resultado de sua própria ação ou estado, gerando com base na informação desse input, a
correção necessária na execução da tarefa de modo a atingir sua meta.
Não tardou para que Wiener aplicasse os conceitos que elaborou no desenvolvimento
de mísseis para uma tentativa de explicar o funcionamento do sistema nervoso humano. O ser
humano não seria um mero processador de informação, mas um processador biológico no
qual a própria informação sobre o curso de suas operações volta ao cérebro como novo input
vindo das sensações e sistemas proprioceptores, gerando correção de comportamento rumo à
realização de metas. O feedback é um processo circular e muitas realizações dos organismos
vivos só poderiam ser adequadamente explicadas com o auxílio deste conceito: Entre a
informação de que devo pegar o copo e a realização da tarefa, parte de meus outputs, como o
movimento do braço e a abertura dos dedos, volta para mim como input, informação sobre o
estado atual do sistema em relação à meta (a distancia da mão em relação ao copo, a altura do
braço atual em relação à bancada), o que me permite uma série de correções que por sua vez
também serão corrigidas por feedback até que a meta seja alcançada.
Não é difícil entender o que está por trás do argumento de Wiener. O que ele pretende
é substituir o conceito de pró-atividade (o intraduzível agency, em inglês), de comportamento
orientado a metas que caracteriza o ser humano, pelo conceito de feedback. Esta pretensão
será abordada novamente no item seguinte e no item dedicado aos limites da Psicologia. O
que se pode adiantar, é que apesar de o conceito de feedback ter oferecido um modelo mais
plausível de como processos inteligentes realizam algumas tarefas complexas e ser de grande
utilidade teórica para o Cognitivismo, não conseguiu substituir neste movimento o princípio
da atividade do ser humano, da mente humana como entidade ativa e construtiva.
Como afirmam Eysenck & Keane (1994), a junção da teoria da informação com o
surgimento do computador generalizou entre os psicólogos cognitivos a visão do ser humano
também como um processador de informação, assim como do cérebro humano como um
computador biológico, visão que foi auxiliada pelas novas teorias da neurociência que
veremos no próximo subitem. Assim, a Psicologia Cognitiva passou a ser definida, como de
resto já vimos aqui, como a ciência que estuda como o ser humano recebe, processa e
armazena informação. O modo, o padrão, a função através da qual determinado aparelho
transforma a informação que entra nele (input) na informação que sai dele (output) é
denominada programa. Com a teoria binária da informação, programas cada vez mais
sofisticados de transformação de informação começaram a ser desenvolvidos, até que se
alcançou o marco do trabalho já citado de Newell e Simon. Como nos testemunha Meyer
181
(1981), a partir deste trabalho, voltou-se a legitimar o interesse por processos e estruturas
dentro da “caixa-preta”, porque agora elas podiam ser especificadas precisamente em termos
de programas de computador. O modelo estímulo-resposta behaviorista, que já estava se
transformando no modelo mediacional de Osgood de estímulo-organismo-resposta,
transformou-se rapidamente na Psicologia com o advento da Teoria da Informação no modelo
computacional imput-programa-output. Um processo cognitivo era a função que podia
especificar precisamente a transformação da informação que entrava no organismo na
informação que saia dele.
4.1.3.3 As Novas Teorias da Neurociência e da Neuropsicologia
Dois diferentes campos de contribuição da Neurologia devemos considerar aqui como
influências iniciais da Revolução Cognitiva, e um deles como fundamental até hoje para o
desenvolvimento contemporâneo da Psicologia Cognitiva. Refiro-me às novas teorias
neuronais e às novas descrições de síndromes neuropsicológicas surgidas nos anos quarenta.
Esse novo modelo neuronal dizia respeito simplesmente a uma transposição das idéias
de Shannon para a Neurologia, e era na verdade muito simples. Como nos narra Gardner
(1996), em 1943 Warren McCulloch e Walter Pitts mostraram que as operações de uma célula
nervosa e suas conexões com outras (a rede neural) poderiam ser descritas e modeladas
logicamente. Os neurônios poderiam ser pensados em termos lógicos, e os implulsos nervosos
como enunciados tudo-ou-nada: era uma materialização de operações de cálculo
proposicional, onde uma proposição é julgada verdadeira ou falsa. Descreve Gardner:
“Este modelo permitia que se pensasse um neurônio como sendo ativado, e em seguida
impulsionando um outro neurônio, da mesma forma como um elemento ou uma
proposição em uma seqüência lógica podem implicar em alguma outra proposição: assim,
quando se está lidando seja com lógica ou com neurônios, a entidade A mais a entidade B
podem implicar na entidade C.” (1996, p.33)
Assim, estava feita explicitamente a analogia entre a organização neuronal, a lógica e
os circuitos elétricos. Em termos elétricos, as operações lógicas podem ser reproduzidas como
sinais elétricos que passam ou deixam de passar em um circuito. A ponte teórica necessária
entre a Neurologia e a Eletrônica para a passagem do comboio das teses da IA forte estava
construída. O novo materialismo ia começar a passar.
182
Mas esse não foi o único impulso dado às Ciências Cognitivas vindo das
Neurociências. A Neuropsicologia, disciplina nascida da descrição clínica de déficits
cognitivos advindos de lesões cerebrais, foi (e hoje cumpre papel ainda mais importante)
grande propulsora inicial da Ciência Cognitiva. Quando observamos os padrões dos déficits e
das capacidades de indivíduos que sofreram uma lesão cerebral específica, podemos
estabelecer conclusões sobre o processo cognitivo normal, sobre que capacidades específicas
são interdependentes, dependentes ou independentes, o que auxilia a Ciência Cognitiva na sua
tarefa de construção de uma arquitetura da mente.
E mais uma vez os dramáticos esforços de guerra propiciaram grandes avanços
científicos. As novas descrições exaustivas de síndromes neuropsicológicas provocadas pelos
ferimentos de guerra estavam trazendo novos e fundamentais subsídios para o conhecimento
da mente. Os déficits cognitivos apresentados por soldados lesionados revelavam que havia
muito mais regularidade e organização nas habilidades e processos cognitivos do que era
admitido pela neurologia associacionista tradicional. Além disso, como nos testemunha
Gardner (1996), os padrões de avaria que estavam sendo encontrados não podiam ser
explicados em termos de rompimentos de conexões estímulo-resposta. Por exemplo,
diferentes lesões geravam diferentes formas de afasia. Em algumas, a capacidade para gerar
uma estrutura adequada de sentença era preservada, mas se perdia a capacidade de uso correto
de certas palavras nesta estrutura. Em outras, a capacidade para estruturar sentenças
desaparecia, mas o uso particular de palavras com significado adequado permanecia
preservado. É relevante observar que esse tipo de problema acima descrito consiste numa
incrível e inesperada evidência em favor da teoria de Chomsky (como veremos adiante) sobre
como seres humanos usam a linguagem, e como este, muitos outros resultados da época
reforçaram a crença de que através das conseqüências geradas sobre as habilidades cognitivas
por uma lesão cerebral, nós teríamos outra porta de acesso objetivo a indícios de como a
mente humana se organiza em indivíduos normais.
4.1.3.4 A Gramática Transformacional de Noam Chomsky
Outra fonte fundamental de influência sobre a Psicologia Cognitiva e o Cognitivismo
foi a obra do grande lingüista e, como ele se define, psicólogo Noam Chomsky. Em 1956,
durante o famoso Simpósio do MIT, Chomsky apresentou a primeira versão de sua famosa
teoria que negava que o modelo da teoria da informação de Shannon ou o modelo behaviorista
pudessem ser aplicados para explicar eficientemente a linguagem humana natural. Em troca,
ele apresentou a primeira versão de sua teoria lingüística, destinada a mudar a face da
183
Psicologia e da Filosofia da Linguagem: a Gramática Transformacional. Naquele simpósio,
Chomsky apresentou a primeira teoria da linguagem que apresentava todas as precisões
formais da matemática, e construía uma visão da linguagem como um processo gerativo de
sentenças altamente estruturado, governado por regras (gramática) inconscientes de
transformação. Essa teoria ele apresentou completa em obra que se tornaria talvez a mais
influente da história da lingüística, Syntactic Structures, de 1957.
Sempre mantendo a determinação de apresentar, das teorias externas à Psicologia aqui
consideradas, somente os aspectos que sejam fundamentais para a compreensão do impacto
filosófico e psicológico das mesmas, é necessário se tecer uma consideração. Judith Greene
(1980), em obra dedicada a avaliar a extensão do impacto de Chomsky na Psicologia, divide
em dois grandes sistemas gerais sua obra, o de 1957 e o de 1965. Porém, aqui serão abordados
somente os princípios básicos das teorias de Chomsky que são o espírito de sua contribuição e
de sua grande influência nas Ciências Cognitivas e no próprio Cognitivismo.
Chomsky (1971) desenvolveu uma metodologia e um conjunto de modelos formais
para a análise da língua natural. Como resultado deste trabalho, foi possível desenvolver um
modelo formal para descrever padrões regulares universais no modo pelo qual nos
comunicamos lingüisticamente. Reconhecendo que abordar o estudo dos sistemas das línguas
naturais, por meio do estudo direto deste conjunto rico e complexo de expressões, seria uma
tarefa homérica e provavelmente inútil, Chomsky (1971) se voltou para o estudo das regras
para a formação destas expressões, a sintaxe. O fez com base na convicção de que estas regras
podem ser estudadas independentemente do conteúdo. Por exemplo, os falantes nativos de
uma determinada língua possuem intuições coerentes sobre o que é e o que não é uma frase
bem formada desta língua, embora não estejam conscientes de como podem realizar tal
julgamento. Assim, o propósito do modelo transformacional de Chomsky é representar
formalmente os padrões das intuições que temos sobre nosso sistema de linguagem.
Como afirma Greene (1980), em 1957 Chomsky propôs que a gramática de uma
linguagem é como uma teoria científica. Baseia-se numa quantidade finita de observações (as
obtidas por uma pessoa – no caso o lingüista – durante a sua vida) mas como qualquer outra
teoria generalizante, sua função é deduzir todas as expressões particulares que possam ser
produzidas por um falante nativo dessa língua. É notável a sintonia dessa idéia particular de
Chomsky com a visão do método científico hipotético-dedutivo, em oposição ao modelo
indutivista positivista. Mais a frente, veremos como estas idéias podem se integrar, com
adaptações (Chomsky é inatista), à epistemologia construtivista popperiana e piagetiana.
184
Como afirma Gardner (1996), Chomsky estava abordando a linguagem de uma forma
muito diversa tanto do Behaviorismo como do Estruturalismo filosófico de seu tempo. Ele
acreditava que o âmago da linguagem é a propriedade da sintaxe, a capacidade exclusiva à
espécie humana de combinar e recombinar símbolos verbais em certas ordens especificáveis,
a fim de criar um número potencialmente infinito de sentenças gramaticalmente válidas. Além
disso, a sintaxe era vista como um nível básico, como um programa de combinações de
palavras, independente de seu significado (semântica) e som (fonologia). Observe-se que
nessa análise, chega-se ao mesmo tipo de divisão tripartite que observaremos dos processos
psicológicos em vários níveis. Esta questão será novamente abordada no sexto item desta tese.
Mas voltando à exposição, o que se evidencia é que a abordagem de Chomsky (1971) para a
linguagem é abstrata, ele considera uma fútil perda de tempo inventariar como de fato as
pessoas falam, seus pequenos erros, pausas, lapsos de memória. Seu interesse não é
descritivo, é normativo: para Chomsky a lingüística deveria, como diz Gardner, se concentrar
“nesta forma idealizada, virtualmente platônica”, em “estudar a linguagem como uma forma
ideal” (1996, p. 206).
O impacto de Chomsky na Psicologia foi profundo e se deu em diversos campos,
como a psicologia do pensamento, do desenvolvimento e até mesmo na psicologia clínica,
com a original obra de Richard Bandler e John Grindler “A Estrutura da Magia” (1977). Esta
obra, fundadora do campo que hoje se conhece em psicoterapia como Neurolingüística, é uma
original, sugestiva e ainda pouco aproveitada integração da gramática transformacional com a
teoria da personalidade. Ela apresenta um modelo muito verossímil de acesso ao inconsciente
cognitivo lingüístico através da aplicação dos conceitos de estrutura superficial e estrutura
profunda de Chomsky ao processo de comunicação em psicoterapia. Mas, foi na fundação de
todo um novo campo de pesquisa em Psicologia Cognitiva, a Psicolingüística, que a força da
influência de Chomsky na Psicologia se mostrou mais evidente. Toda a extensão da aplicação
das idéias de Chomsky a este novo campo foi bem descrita por Judith Greene (1980).
Mas são outros tipos de influência que nos interessam diretamente aqui. Primeiro, que
a teoria de Chomsky era uma das primeiras evidências da fertilidade do conceito de que regras
regulavam alguns processos psicológicos, as estruturas cognitivas. Era uma das primeiras
tentativas bem sucedidas no sentido da descrição de processos psicológicos (no caso a
linguagem) em termos puramente formais para comparação posterior desse modelo com a
realidade. Essa interação foi feita por psicólogos cognitivos experimentais que passaram a
testar múltiplos aspectos e implicações psicológicas das teorias de Chomsky (Greene, 1980).
185
O segundo tipo de influência, é a vitória, poderia se dizer, total das teses de Chomsky
sobre as teses behavioristas acerca da aquisição da linguagem elaboradas pelo maior dos
psicólogos behavioristas, Skinner. Essa vitória teve uma força simbólica profunda na
Psicologia, e marcou talvez o ponto de inflexão na trajetória da Psicologia acadêmica norte-
americana. Parte dessa força simbólica, vem do fato de que Skinner consumiu quase uma
década de estudos para elaborar aquela que ele acreditava seria sua obra máxima, o
coroamento da Psicologia Behaviorista até então: o “Comportamento Verbal”, também de
1957. No entanto, o jovem Chomsky (1967, [1959]) só precisou de uma resenha, hoje célebre,
para refutar completamente as teses do Verbal Behavior. O cerne da questão é que Skinner
tenta explicar o comportamento verbal em termos de condicionamento operante, ou seja, dos
reforçamentos ou punições a sentenças emitidas pela criança, ou no máximo, ouvidas por ela,
ignorando completamente os aspectos estruturais e criativos da linguagem. A criação de novas
sentenças, para Skinner, era o resultado da emissão aleatória de comportamento verbal
operante que era recompensada. Chomsky demonstra que a noção que Skinner tem de
aquisição de comportamento verbal por imitação e reforço é extremamente pobre e
inverossímil, pois uma criança produz uma inumerável quantidade de sentenças as quais
nunca ouviu e para as quais jamais recebeu reforço, que no entanto são gramaticalmente
impecáveis. Até em seus erros, uma criança geralmente demonstra que o que está aprendendo
são regras de transformação, não sentenças inteiras. Quando uma criança conjuga o verbo ir
no passado da primeira pessoa como “eu iu”, ela de fato está aplicando corretamente uma
regra de transformação que inconscientemente acredita que deveria se aplicar a todos os
verbos da língua portuguesa que terminam em ir, e apesar de ser punida quando da emissão da
sentença, provavelmente voltará a emiti-la algumas vezes até aprender a expressão “correta”.
Esta segunda, pode até ser aprendida por condicionamento, mas somente e exatamente porque
é uma exceção irracional. Como lembra Gardner, o fato de Skinner nunca ter respondido
publicamente às críticas de Chomsky sinalizou para os envolvidos nos termos do debate “a
falência teórica da posição behaviorista” (1996, p.209). Portanto, este triunfo sobre o maior
dos behavioristas, assim como sua teoria que foi um dos primeiros modelos bem-sucedidos de
teoria cognitivista, foi um sinal consistente de que começava uma nova era na Psicologia.
O terceiro tipo de influência vem das origens cartesianas e kantianas das idéias básicas
de Chomsky (1971). O caráter extremamente abstrato do aprendizado e utilização de uma
língua, aliado ao tempo extremamente rápido com que uma criança a aprende, faz com que
Chomsky afirme que a única explicação plausível para esse fenômeno era a de que o ser hu-
mano nasce com uma forte inclinação para aprender uma língua, e que essas formas possíveis
186
de aprendê-la eram rigidamente delimitadas. Em outras palavras, Chomsky é inatista, e trouxe
esta posição de volta à arena psicológica. Mais do que isso, Chomsky é declaradamente um
mentalista, que acredita que os tipos de teorias abstratas necessárias para se explicar a língua-
gem seriam melhor compreendidas num contexto onde o conceito de mente estivesse plena-
mente resgatado. Por todo o exposto acima, não é difícil compreender porque Chomsky é um
dos mais influentes personagens da Revolução Cognitiva e um dos “heróis” do Cognitivismo.
4.1.4 Ciência Cognitiva hoje
Expomos acima algumas conseqüências filosóficas e psicológicas dos avanços da
ciência no século XX que tiveram influência direta sobre o surgimento do Cognitivismo e da
Psicologia Cognitiva. Nos itens que se seguirão, muitas destas influências terão suas
conseqüências desdobradas, na análise dos fundamentos ontológicos, epistemológicos e
metodológicos da Psicologia Cognitiva.
Por hora, a título de conclusão, é importante lembrar que não é objetivo desta tese a
análise de qualquer teoria específica sobre qualquer área da Psicologia Cognitiva, muito
menos da Ciência Cognitiva como um todo. Sempre que surgem, estas surgem de forma
sintética, a título de exemplos que ilustrem determinada argumentação ou explicitem alguma
afiliação filosófica. Portanto, não nos cabe apresentar um panorama do estado geral da
Psicologia Cognitiva contemporânea, muito menos da Ciência Cognitiva como um todo.
No entanto, ainda alguns comentários nesta contextualização histórica são pertinentes.
Depois da grande profusão de campos e teorias dos primeiros anos, com trabalhos vindos de
disciplinas tão díspares como a Matemática, a Engenharia Eletrônica, a Neurologia, a Psiquia-
tria, a Psicologia, a Lingüística, a Antropologia e a Filosofia da Mente, a Ciência Cognitiva se
cristalizou em três grandes campos de investigação (Eysenck & Keane, 1994): a Psicologia
Cognitiva experimental, a Neuropsicologia Cognitiva e a Inteligência Artificial. Nosso
problema de investigação aqui é somente o dos fundamentos filosóficos do primeiro deles: a
Psicologia Cognitiva. No entanto, sua relação metodológica com a Neuropsicologia Cognitiva
e com a Inteligência Artificial será apropriadamente abordada no item quatro deste capítulo.
Ainda para concluir, no campo da inteligência artificial, como nos demonstra Gardner
(1996) e Eysenck & Keane (1994), as teorias do processamento serial de informação foram
abandonadas, e substituídas por diferentes teorias de processamento paralelo. Três novos
modelos de processamento cognitivo já se erigiram: as redes semânticas, os sistemas de
produção e as redes conexionistas. Nos últimos anos, as redes conexionistas têm consumido
grande parte dos recursos disponíveis para pesquisa em Inteligência Artificial, sem no
187
entanto, conseguir apresentar resultados minimamente promissores na simulação de quaisquer
aptidões cognitivas humanas. Mesmo os resultados em percepção, carro chefe da teoria, são
altamente questionáveis. Há muitos motivos para acreditar que as redes conexionistas são um
enorme erro e desperdício de esforço e recursos. Para a compreensão dos motivos que levam a
esta avaliação, remeto às últimas obras de Jerry Fodor (1998, 2001) e Stephen Pinker (2004).
Do mesmo modo, torna-se cada vez mais evidente que não podemos representar todos
os tipos de processos cognitivos de uma forma global. Se tornou posição dominante na
Psicologia a abordagem modular dos processos cognitivos, defendida por nomes como Noam
Chomsky (1981) e Jerry Fodor (1983) e sua teoria da modularidade da mente e Howard
Gardner e sua teoria das inteligências múltiplas. O que essa abordagem defende, é que a
mente é formada por vários módulos de processamento de informação, e cada um desses
módulos opera de forma relativamente independente dos outros, processando somente um tipo
específico de informação (visual, corporal, musical, lingüística, etc.). O princípio que
organizaria o funcionamento de cada diferente módulo seria inato, não apreendido. Assim,
nos itens adiante desta tese, serão abordadas algumas características e conseqüências das
teorias da abordagem modular da mente.
4.2 Psicologia Cognitiva e Ontologia
Este item aborda a questão dos pressupostos ontológicos (e porque não dizer,
metafísicos) que estão no fundamento do Cognitivismo, assim como as questões fundamentais
da Psicologia Cognitiva que dependem diretamente de seus fundamentos ontológicos.
Portanto, aqui se analisam as crenças que o Cognitivismo assume, explícita ou
implicitamente, acerca da natureza de seu objeto de estudo, e que determinam seu
desenvolvimento como programa de pesquisa. Também aqui se farão mais claras as
implicações e relações com as posições ontológicas das demais abordagens em Psicologia.
Está o item dividido em quatro subitens. O primeiro é sobre a questão da avaliação das
posições ontológicas assumidas pelo cognitivismo em relação às assumidas pela ciência
moderna, particularmente em relação ao problema do determinismo. O segundo trata da
questão específica do objeto de estudo da Psicologia Cognitiva, conforme definido por seus
mais eminentes representantes. O terceiro trata da imagem de ser humano que está explícita e
188
implicitamente ligada ao Cognitivismo, também investigando se podemos falar de um
reducionismo cognitivo, mais especificamente, realiza um inquérito sobre a questão do papel
da emoção na Psicologia Cognitiva. O quarto subitem investiga as posições assumidas pelo
cognitivismo em relação ao problema mente-corpo e define de que maneira é legítima a
afirmação de que a Psicologia Cognitiva representa um novo dualismo.
4.2.1 Pressupostos Ontológicos da Psicologia Cognitiva
Aqui abordaremos o problema de como a Psicologia Cognitiva se coloca em relação
aos pressupostos que, como vimos no terceiro capítulo, são necessários à atividade científica.
O primeiro pressuposto é sobre a existência do objeto de estudo, o segundo, sobre a
regularidade do objeto.
4.2.1.1 Cognitivismo e Realismo
A Psicologia Cognitiva, uma vez que em algumas de suas abordagens metodológicas
lança mão de construções puramente formais dos processos de pensamento – as estruturas ou
programas – poderia deixar, numa análise superficial, alguém por alguns momentos em
dúvida quanto à sua afiliação ontológica. Porém, uma vez que ela pressupõe que os processos
para os quais ela está construindo modelos ideais ou as estruturas que ela está procurando
descrever tem existência real na mente de outros sujeitos, ela pressupõe o realismo. As
representações, os processos e as estruturas psicológicas – as cognições – existem na mente de
sujeitos que fazem parte de um mundo real e objetivo. E embora as teorias que temos delas, os
modelos, sejam somente construções nossas que se aproximam da realidade, elas são
construídas em interação com o real. Ou seja, estamos falando de um realismo crítico.
Não é difícil encontrar explicitações deste compromisso filosófico. Veja por exemplo
o que afirma Ulric Neisser na introdução do primeiro livro texto da Psicologia Cognitiva:
“The basic reason for studying cognitive processes has become as clear as the reason for
studying anything else: because they are there. Our knowledge of the world must be
somehow developed from the stimulus input; the theory of eidola is false. Cognitive
processes surely exist, so it can hardly be unscientific to study them.” (1967, p.05)
Na introdução de outra obra, Neisser (1975) afirma que a percepção, como a evolução,
é “certamente uma questão de descobrir o que o ambiente é realmente e se adaptar a ele”
(p.09). Outro importante cognitivista, Jerry Fodor, afirma em um clássico da filosofia do
189
século XX, “The Language of Thought” de 1975, que uma vez que alguns processos mentais
são computacionais, é preciso haver representações em algum lugar sobre as quais os
cômputos possam ser realizados de alguma maneira. Fodor (1975) resgata a assim chamada
folk psychology. Para ele crenças e desejos, como usados pela psicologia do senso comum,
são reais, existem como estados cognitivos que possuem eficácia causal. Outro dos conceitos
fundamentais da Psicologia que é resgatado para o terreno do realismo é o conceito de
consciência, visto como um fenômeno real, condicionado mas não redutível ao biológico
(Sperry, 1993; Bruner, 1997; Miller, 1985).
4.2.1.2 Cognitivismo e Determinismo
O compromisso do Cognitivismo com o determinismo não é tão claro como seu
compromisso com o realismo crítico. Isto se dá porque o Cognitivismo, de forma geral, aceita
tanto as causas quanto as razões como determinantes do comportamento. Muitas críticas
humanistas ao longo do tempo tem sido desferidas injustamente ao Cognitivismo,
confundindo suas posições com as posições majoritárias (não unânimes) de setores das
Ciências Cognitivas (Inteligência Artificial e Neurociências), onde somente o conceito de
causa merece relevância para explicar os comportamentos e processos mentais. Desde que a
obra clássica de Miller, Galanter e Pribram (1960) “Plans and the Structure of Behavior
recolocou o conceito de meta no cenário psicológico, a questão teleológica, finalista, começou
a voltar à cena. Neste contexto, fica mais fácil o entendimento da última afirmação do
parágrafo acima, sobre a realidade do conceito de Consciência para o Cognitivismo. Como
afirma Penna (1984), numa perspectiva positivista que somente opera com regularidades
causais, o conceito de consciência revela-se descartável, mas quando operamos com fins,
metas, valores, o conceito de consciência como fenômeno intencional e foco de atividade
capaz de produzir comportamento orientado por razões torna-se imperioso.
Porém é evidente que a Psicologia Cognitiva considera que os processos cognitivos se
desenvolvem de acordo com leis que podem ser aproximadamente descobertas e representa-
das, mas esta crença, como já nos advertia Neisser (1967), só existe em relação aos processos
mais automáticos da cognição, não em relação aos processos superiores, particularmente os
criativos e de atribuição de significado. Em “Cognition and Reality”, Neisser (1975) desen-
volve argumentação que acrescenta mais problemas sobre qual tipo de regularidade o cogniti-
vismo enxerga em seu objeto de estudo. Para ele, quanto mais conhecemos determinada situa-
ção, menos podemos ser controlados por ela. Em outras palavras, quanto mais sabemos, mais
190
livres somos, porque podemos agir e escolher mais livremente com base em razões, e não
reagirmos em virtude de causas. Conseqüentemente, quanto mais livres, menos previsíveis.
Podemos distinguir três tipos de posição diferentes advogadas por cognitivistas. Duas
delas foram definidas por Robinson (1985). A primeira, ele denominou “compatibilismo”. Em
suma, esta posição advoga a tese de que causas e razões não são ontologicamente distintas,
uma vez que as próprias razões são causadas por fontes físico-naturais. Acredita-se aqui que a
consideração de duas fontes para o comportamento humano é meramente para facilitar a
análise. Em outras palavras, o “compatibilismo” não é nada mais que “hard determinism.
A segunda posição é a mais disseminada entre cognitivistas e humanistas. Robinson
(1985) a classifica de voluntarismo, que advoga a tese da distinção ontológica entre causas e
razões e garante ao ser humano a condição de agente, o autêntico autor de cognições e ações
que, desta forma, não são caóticas ou não-causadas, mas determinadas pelo que ele denomina
causalidade do agente (agent-causality). Dito de outra forma, todos os eventos do universo
teriam uma causa, mas esta pode ser tanto eficiente como final, tanto ser uma contingência de
uma lei física como uma razão orientada teleologicamente a um valor ou uma meta.
Por fim, ganha força atualmente no Cognitivismo a tese de uma terceira forma de
determinismo, influenciada pelo Gestaltismo e a Teoria Geral dos Sistemas (Bertalanffy,
1977). Roger Sperry (1993), único psicólogo (neuropsicólogo) vencedor do prêmio Nobel
(por seus estudos sobre especialização hemisférica cerebral), nos apresenta esta tese que
poderíamos denominar “determinismo bi-direcional”. Partindo do pressuposto holista de que
“o todo é mais que a soma de suas partes”, ou seja, de que os todos apresentam propriedades
irredutíveis às propriedades das partes que o constituem, essa doutrina do determinismo con-
sidera que o caminho da causação entre os todos e as suas partes constituintes é bi-direcional.
Sperry acredita que esta nova concepção de determinismo estaria sendo exportada para vários
campos das ciências, inclusive para a própria física, ainda razoavelmente desnorteada com os
resultados não-deterministas da Física Quântica. Em suas próprias palavras:
“In my present analysis, both of these shifts — to mentalism and to wholism — are
interlinked, tied to, and dependent on the revised model for causal determinism. Both
depend on the causal reality of irreducible emergent phenomena that interact as wholes at
their own macro-level and in the process carry their embedded constituents along a
space–time course determined by emergent interaction at the higher level. Subjective
agency may thus be viewed as a special instance of downward control, a special case of
emergent causality in the reciprocal up–down paradigm for causal control.”(pág. 10)
191
Já avaliamos neste trabalho que qualquer atividade de busca de conhecimento se
baseia na crença de que, ao menos em algum de seus aspectos, o objeto seja estável, ou que
sua transformação se submeta a leis ou padrões estáveis. Apesar das discrepâncias no seio do
Cognitivismo, podemos sem dúvida afirmar algo unânime em relação à sua posição sobre o
problema ontológico da regularidade do objeto. Está claro que o Cognitivismo se compromete
com uma visão de ser humano, proativo, auto-orientado. No entanto, também defende que
grande parte do processamento cognitivo de informações obedece a rígidos padrões, e são
sobre estes que se podem formular leis e fazer pesquisa nomotética. Desta forma, resguarda
parte de nossos processos cognitivos como passíveis de investigação científica, respeitando,
nas três diferentes formas de posição frente ao determinismo consideradas aqui, o princípio da
regularidade causal (em ao menos alguns de seus aspectos) de seu objeto de estudo.
4.2.2 O Objeto da Psicologia Cognitiva
Quando abordada não como “metateoria” mas sim como área de pesquisa, podemos
oferecer uma definição bem geral e representativa acerca do objeto da Psicologia Cognitiva,
ligada à tradição do processamento de informação. Como define Penna (1984), este campo se
caracteriza como o “estudo da extração, estocagem, processamento, recuperação e utilização
de informações” (p.05). Em Cognitive Psychology, Neisser (1967) define a Psicologia Cogni-
tiva, parafraseando Freud e a doutrina estímulo-resposta do Behaviorismo, como o estudo das
“Informações do estímulo e suas vicissitudes” (p. 04). Seguindo, ele explica a brincadeira:
“As used here, the term “cognition” refers to al the processes by which the sensory input
is transformed, reduced, elaborated, stored, recovered, and used. It is concerned with
these processes even when they operate in the absence of relevant stimulation, as in
images and hallucinations. Such terms as sensation, perception, imagery, retention,
recall, problem-solving, and thinking, among many other, refer to hypothetical stages or
aspects of cognition.” (1967, p. 04)
Assim a meta da Psicologia Cognitiva é estabelecer as regras de transformação da
informação que entra no sujeito (input) na informação que sai do sujeito (output). Estas regras
podem ter a forma de procedimentos de manipulação de símbolos (Fodor, 1975), estratégias
para realização de metas e estruturas cognitivas. Dentro desta definição, é necessário lembrar
que os cognitivistas não consideram que a maioria destas regras, estratégias e estruturas sejam
192
formas que permaneçam inalteradas desde o nascimento. Portanto, podemos investigá-las
tanto em suas formas terminais, como fez Chomsky (1971), quanto através do processo de seu
desenvolvimento, como fez Piaget (1979). Voltaremos a isto no item relativo à explicação na
Psicologia Cognitiva.
4.2.2.1 O que é cognição? O problema da representação mental
Algumas pressuposições que merecem consideração acompanham a definição acima
dada de objeto da Psicologia Cognitiva. A primeira é a sobre as representações mentais.
Como afirma Gardner (1996), ao discutirmos atividades cognitivas humanas é necessário falar
de representações mentais e criar um nível de análise do fenômeno humano completamente
separado do neurológico por um lado e do sociológico do outro. Como vimos acima, as
representações mentais tem existência real, não são ficções úteis. Como afirma Gardner
(1996), a Ciência Cognitiva, e aí se inclui a Psicologia Cognitiva,
“...está fundada sobre a crença de que é legítimo – na verdade necessário – postular um
nível de análise separado, que pode ser chamado de ‘nível da representação’. Quando
trabalha neste nível, um cientista trafega por entidades representacionais tais como
símbolos, regras, imagens – o material da representação que é encontrado entre o input e
o output – e além disto investiga as formas nas quais estas entidades representacionais são
combinadas, transformadas ou contrastadas umas com as outras.” (p. 53)
Assim o psicólogo cognitivo não vê a utilidade das descrições de estados de células
nervosas, influências culturais ou experienciais para o estudo científico do pensamento. Para
tal, a “atividade cognitiva humana deve ser descrita em termos de símbolos, esquemas,
imagens, idéias e outras formas de representação mental” (Gardner, 1996, p. 54). No entanto,
apesar do inequívoco consenso quanto à necessidade da postulação deste nível diverso de
análise e da relativa irrelevância do estudo do cérebro para a compreensão das regras e
padrões de manipulação de representações (o inverso não é verdadeiro...), não existe acordo
entre os cognitivistas quanto ao que são representações mentais. No começo da revolução
cognitivista, era comum a postulação de que havia uma única forma de representação mental
(as proposições ou enunciados lógico-discursivos). Esta era a posição importada dos modelos
de Inteligência Artificial (Newell, Shaw & Simon, 1958). A partir dos estudos de Roger
Shepard e posteriormente de Stephen Kosslyn (op. cit. in Gardner, 1996, p.143 e 343) sobre
imagética, generalizou-se a opinião entre os psicólogos cognitivos que considerar as
193
representações proposicionais-lingüísticas a única forma de “língua” da cognição era um
grande erro. Ao menos uma segunda forma, a imagem, parecia ser absolutamente necessária
diante das evidências apresentadas.
James Fetzer (1988), ampliando o domínio do debate, propôs uma teoria semiótica da
representação mental. A semiótica, criada pelo filósofo americano Charles Peirce (1839-1914)
pretende ser a ciência geral do signo. Ela parte do conceito de signo como sendo alguma coisa
que representa outra coisa em algum aspecto ou outro para alguém. Para Fetzer (1988), uma
vez que a cognição é a manipulação de representações, ela não pode ser somente a
manipulação de um único tipo de signo, a linguagem, mas sim de todos os tipos de signos. Se
valendo da classificação de Peirce, ele identifica portanto três tipos de representação mental:
os ícones, que são signos que representam coisas em relação às quais se assemelham em
algum aspecto (a estátua de JK com o ex-presidente, sua foto da carteira de identidade com
você); os índices, que são os signos que representam outras coisas porque são causas ou
efeitos delas (“onde há fumaça, há fogo”, as pintas na pele em relação à catapora), e
finalmente os símbolos, que são aqueles signos que não tem nenhum tipo de relação ou
semelhança natural com as coisas que representam, sendo portanto arbitrários e os mais
abstratos de todos. A estes pertence a linguagem falada e escrita. Sem dúvida, os argumentos
de Fetzer também se tornaram de aceitação generalizada.
Atualmente, uma terceira posição se tornou hegemônica, tendo se desenvolvido a
partir dos trabalhos de Fodor (1983) e Chomsky (1981) sobre a modularidade da mente e de
Gardner (1995) sobre as inteligências múltiplas. Segundo esta, não existe uma nem duas nem
três formas de representação, mas múltiplas. Este ponto de vista, cada vez mais bem calcado
em dados empíricos, garante a especificidade do objeto psicológico em relação ao domínio da
Inteligência Artificial.
De qualquer maneira, o importante é que o Cognitivismo ganhou a batalha pelo objeto
da Psicologia. Como podemos observar em qualquer livro texto atual de introdução à
Psicologia (Weiten, 2002; Davidoff, 2000; Atkinson, 2002), embora o comportamento
continue a ser considerado objeto de investigação psicológica, o é na medida que a partir dele
podemos inferir os processos cognitivos que são por ele responsáveis. Este é outro ponto
importante. O Cognitivismo defende, como define Baars (1986), que psicólogos observam o
comportamento, mas simplesmente para fazer inferências sobre os fatores subjacentes que
podem realmente explicá-lo. Portanto, em consonância com o Racionalismo Crítico, eles
concordam que os dados da ciência devem ser públicos, mas não necessariamente o seu
objeto de estudo. Este último, somente necessita gerar conseqüências empiricamente
194
observáveis para em tese ser passível de investigação científica. Voltaremos a esta questão no
item sobre Epistemologia. Aqui é suficiente concluir que, apesar de haver ainda dissenso
quanto ao melhor ou os melhores modelos de representação, todos os psicólogos cognitivos
concordam com a necessidade de postulação de um nível de representação mental.
Fodor (1975) argumenta de maneira persuasiva sobre o porque da necessidade de
postulação de um nível de representação mental. Nós sabemos que eventos mentais são
intencionais, no sentido que Brentano deu ao termo, ou seja, sempre se referem a algo além de
si mesmo. Eu desejo algo, eu amo alguém, eu quero isso, eu creio naquilo. Sempre. Não há
desejar em si, amar em si, querer em si, crer em si. Todo ato de consciência se refere a algo.
Assim, intencionalidade requer símbolos, porque símbolos são os únicos portadores de
significado (que não é ele próprio) que existem. Assim, se a manipulação de símbolos é feita
de maneira sintática, lógica, então raciocinar pode ser resumido como se segue. Símbolos se
referem a coisas reais, no mundo ou a significados ideais. Uma vez que você admite que o
símbolo (4) se refere ao objeto ideal quatro, este símbolo, esta representação, corresponde a
uma representação em uma espécie de “linguagem de máquina cerebral”, o mentalês. Esta
representação em mentalês, sofrerá uma série de transformações que são as manipulações
lógicas do raciocínio, até que no fim das transformações lógicas, evoque outra representação
(que corresponde um a um à linguagem de máquina cerebral – a linguagem do pensamento)
como resultado daquele raciocínio, e que será transformada enfim na representação aceita em
nossa linguagem, (8) por exemplo. Explicando de forma mais simples: para Fodor (1975) a
semântica segue a sintática. Raciocinar é manipular lógico-sintaticamente símbolos, não
semanticamente. A semântica, logicamente falando, é a condição de verdade da
representação. Ela é dada pela adequação ao mundo. Se eu tenho a representação verbal
proposicional “Todos os cisnes são brancos”, a condição semântica (nesse sentido lógico bem
estrito de verdade ou falsidade) de verdade da representação é dada pela adequação ao mundo.
Mas uma vez admitida como verdade, o raciocínio não seria nada mais do que a manipulação
formal destes símbolos, através de uma linguagem de máquina universal cerebral (o
mentalês), onde eles estariam de alguma forma codificados (tanto as regras como as
representações), que levaria o imput a se transformar no output de que “Ah, então, como a
Mariazinha disse que tem um cisne, ele tem ser branco!”.
A primeira formulação da Filosofia da Mente de Fodor pode soar inverossímil para
uns, mágica para outros. Para os primeiros, é importante lembrar que, certamente, pensar é no
mínimo também manipular símbolos, e esta manipulação é feita seguindo regras lógicas uni-
versais. Portanto, é necessário postular que, no mínimo, grande parte dos processos de pensa-
195
mento são executados por algum tipo de linguagem do pensamento. E mais do que ninguém,
materialistas tem que acreditar nisto, porque não pode haver computação alguma sem uma
linguagem de máquina pré-instalada. Fodor (1987b, p.457) explica isso de forma
desconcertantemente simples: “a tese de Chomsky [a teoria lingüística geral é inata], implica
a minha sobre o princípio: nada de informação inata sem representação inata.”
Para os segundos, é simples lembrar que por mais fantástico que pareça, é exatamente
isto que uma calculadora das mais simples faz: você insere uma pergunta pressionando
símbolos (volta o nosso 4), como quanto é (4 x 5.032) / 37, e ela responde precisamente,
depois de computação lógica, em forma de representações que significam conceitos ideais
para nós: 544. Supondo que a condição de adequação semântica está preservada (4 significa
precisamente o conceito ideal de quatro e assim por diante), a verdade do resultado é
necessária: a lógica formal portanto, para Fodor (1975), explica o raciocínio, como obter
conclusões verdadeiras de premissas verdadeiras. Notem no entanto, que isto não resolve o
problema central da Epistemologia, que é: como obter premissas verdadeiras?
4.2.2.2 A Psicologia Cognitiva estuda indivíduos: o “solipsismo metodológico”
Outra questão especial importante relacionada à forma como a Psicologia Cognitiva
aborda seu objeto de estudo, é que ele é considerado monadicamente, e não como dissolvido
em uma rede de interações sociais. Em diversos aspectos, podemos dizer que o conceito de
indivíduo é central para a Psicologia Cognitiva.
Seguindo a exposição iniciada no subitem acima, é preciso chamar a atenção para o
fato que se pensar é manipular símbolos através de regras puramente formais e sintáticas,
então a semântica, o significado das representações, não tem lugar na explicação psicológica
(Bem & de Jong, 1997). Sobre o que quer que seja que as representações mentais sejam, não
determinam sua manipulação e portanto o funcionamento de um sistema formal. O tipo de
operação computacional que gera uma imagem da Mona Lisa num monitor, ou que faz
ficarem pretas as partes do visor de cristal de uma calculadora onde vemos um número
quatro, não tem nada a ver com o significado que estas imagens representam para um usuário.
Searle (1984) foi o filósofo que ilustrou de maneira mais evidente esta questão, com sua já
bastante conhecida metáfora do quarto chinês.
Em essência sua metáfora é a seguinte. Suponha que um matemático programador
americano fosse trancado num quarto na China com livros de regras de transformação de
ideogramas chineses em outros ideogramas chineses, e recebesse todo dia uma frase em
chinês pela manhã para passar o dia aplicando as regras nela, e conseguir enfim chegar à
196
indicação no fim do dia dos ideogramas que ele deveria entregar como resposta. Mas acontece
que os ideogramas que ele recebeu eram perguntas sobre uma história, e os ideogramas que
ele entregou eram respostas adequadas a estas perguntas, o que levou um avaliador chinês que
analisou as respostas a afirmar que ele tinha compreendido perfeitamente o texto (que ele nem
leu). A pergunta é simples, e também a resposta. Ele teria compreendido o significado das
frases? Obviamente não. Ele teria processado informação de acordo com regras lógicas?
Obviamente sim. Logo, uma coisa independe da outra; logo, o que um computador faz, não é
o que a mente humana faz. Um computador processa informação, para que nós evoquemos
significados, que atribuímos às informações que o computador nos transmite.
É importante aqui, neste momento, aproveitar para esclarecer uma das maiores
confusões (quando não se trata de má fé) em relação à Psicologia Cognitiva e ao
Cognitivismo. O argumento de Searle não é um argumento contra o cognitivismo como um
todo, nem sequer contra a teoria de Fodor, mas sim contra a tese da Inteligência Artificial
forte, defendida hoje por (poucos) setores das Ciências Cognitivas. É um argumento contra o
teste de Turing. Fodor não reduz o pensamento a operações lógicas, justamente porque exclui
dele o problema semântico, para o qual ainda procura solução (Fodor, 1998).
Assim, se temos um programa de computador onde nós colocamos uma série de
características anatômicas sobre um animal e ele nos dá o nome de um animal com estas
características, ele chegou a esta resposta através da aplicação de uma série de regras formais.
O computador não sabe o que é uma característica anatômica, o que é um animal, ou um
touro, ou um leão. Assim, saber a que estes símbolos se referem, qual é o significado do input
e do output, não ajuda na tarefa de explicar como o computador chega à suas respostas. O que
se precisa determinar, é que regras ele usa e que símbolos ele armazena. O nosso objeto de
estudo em Psicologia Cognitiva portanto, não é o significado da experiência como queriam os
humanistas, mas as regras do pensamento (como a gramática transformacional de Chomsky) e
as representações mentais de todos os tipos (como linguagem ou imagens).
Fodor (1991, [1980]) transforma estas questões num princípio conhecido como
solipsismo metodológico. O aspecto da mente que pode ser estudado é o puramente sintático.
Portanto, a referência das representações ao mundo exterior está além dos poderes
explicativos da Psicologia Cognitiva. Se uma paciente acredita em duendes que vivem em
Mauá, isto causa nela o desejo de vê-los, o que a leva a viajar à Mauá e procurá-los pelas
matas. Quer existam ou não duendes, suas representações deles causaram e explicam seu
comportamento. Não é necessário portanto nada externo ao sujeito psicológico para explicar o
comportamento: somente as informações que ele recebe, as representações que tem e as regras
197
que aplica para manipulá-las. É importante enfatizar que este é um princípio metodológico
somente, não ontológico, não se nega a existência nem a importância do ambiente, se nega
somente que ele seja termo de explicações psicológicas.
É impossível para o cognitivista fazer semântica, diz Fodor (1991), é impossível o
acesso objetivo aos significados das representações (que permanecem no âmbito do sujeito),
mas dizer isto é obviamente muito diferente do que afirmar o absurdo de que representações
mentais não tem propriedades semânticas. O problema é que estas não são acessíveis à
investigação científica. Aqui, mais do que em qualquer lugar da extensa obra de Fodor, se
torna evidente que ele não é um computacionalista radical, e que as críticas humanistas
relativas ao problema do significado e da qualia, não se aplicam a Fodor.
Fodor (1998, 2001) está perfeitamente consciente dos limites do Funcionalismo e de
sua tese da linguagem do pensamento. A principal limitação para ele é a que se refere ao
problema que Searle (1984) aponta, o problema do significado das representações. A
concepção estritamente funcionalista do significado é holista, focada exclusivamente nas
relações causais entre um símbolo e outro, permanecendo puramente interna ao sistema
simbólico. É claro que esta é uma posição insustentável. Se uma palavra define seu
significado pelas relações que mantém com outras, isto só pode funcionar se algumas delas
tiverem significado estabelecido. As representações metaforicamente se igualariam assim a
espelhos numa casa de espelhos sem visitantes, onde um espelho refletiria outro que refletiria
outro que refletiria o primeiro ad finitum. Proponho aqui um apelido para esta tese sintática
ou holística (funcionalista) do significado. É tese do dicionário de Roswell. Imagine um
dicionário alienígena encontrado no disco voador supostamente acidentado em Roswell, 1947.
Neste as palavras de uma língua, o aliegenês, são definidas por outras palavras desta mesma
língua. Em primeiro lugar, ninguém saberia se tratar de um dicionário. Poderia ser um manual
de instruções da nave. Segundo, como ninguém no mundo conhece o significado de nenhuma
palavra desta língua alienígena, só seria possível, no máximo, descobrir os símbolos lógicos
que representam [e, ou, ou ou, se então, todo, nenhum, algum, não, igual, mais, menos]. Além
disso, poderíamos descobrir relações entre símbolos, como por exemplo que he mais
d é igual a off, e assim por diante. Sobre os símbolos matemáticos, uma vez
descobertos os lógicos, não seria difícil para um computador estabelecer a inferência.
Rapidamente um super-computador descobriria o que é 4; 786,9 ou 3.000.000. Mas se a
operação acima estivesse afirmando que um homem com cabelo preto é moreno, passaríamos
a eternidade sem saber. Fora da linguagem lógico-matemática, não há holísmo possível, e é
198
por isso que Fodor (1998) defende uma concepção atomista do significado, em oposição à
frágil teoria conexionista do mesmo.
Esta concepção internalista é uma nova utopia materialista, que para salvar o projeto
de naturalização da mente desconsidera o mais relevante aspecto da linguagem, deixando-o
sem uma abordagem adequada. Recentemente, Fodor (1998) tem se dedicado a desenvolver
uma nova teoria do significado das representações primitivas do mentalês, que oferecem as
bases semânticas de todas as representações posteriores.
Voltando à questão da opção metodológica pelo individualismo da Psicologia
Cognitiva, torna-se mais fácil entender a naturalidade deste tipo de enfoque para o
Cognitivismo como um todo quando procuramos compreender a estratégia de pesquisa da
disciplina da Cognição Social (que não tem relação com a posição de Fodor), a Psicologia
Social Cognitivista. É costume no âmbito da Psicologia Social classificar esta abordagem
como a sua abordagem “individualista”. Ela é classificada desta maneira porque estuda como
o ser humano constrói suas representações sobre outras pessoas ou sobre ele mesmo. Dito em
outras palavras, é o estudo de como pessoas comuns pensam, sentem e constroem suas repre-
sentações a respeito de suas interações sociais. Neste sentido, são levadas em conta cons-
tructos lógicos e variáveis intervenientes. A unidade de análise é o indivíduo, apesar de ser o
indivíduo mergulhado em relações sociais. Porém, estas relações não estão em jogo direta-
mente, somente como são representadas na mente do sujeito, na forma de crenças e atitudes.
Como afirmam Fiske & Taylor (1995), o estudo da cognição social pode passar por
uma detalhada e minuciosa análise de como pessoas pensam sobre elas mesmas e sobre ou-
tras, baseada em teorias e métodos da Psicologia Cognitiva. Uma das principais características
das abordagens atuais em cognição social é a importação de modelos da Psicologia Cognitiva,
que descrevem mecanismos de pensamento e aprendizagem que se aplicam a uma grande
variedade de áreas, incluindo percepção social. Ainda segundo Fiske & Taylor (1995), como
esses modelos são gerais e como processos cognitivos presumivelmente influenciam forte-
mente o comportamento social, faz sentido adaptar a teoria cognitiva para questões sociais.
O que está por trás de todas estas posições no Cognitivismo é a crença de que o
ambiente só é relevante quando afeta causalmente o corpo através de seu sistema nervoso,
porque este evento se transformará em algum tipo de entrada de informação para a mente.
Assim, a Psicologia começa e acaba na mente (a fisiologia só é relevante como fonte de
alterações nas funções psicológicas), e só interessa para ela o estudo ao nível do indivíduo.
199
4.2.2.3 Outras características especiais do objeto de estudo da Psicologia Cognitiva
Vamos abordar outras questões importantes relacionadas à forma como a Psicologia
Cognitiva encara seu objeto de estudo. Comecemos com como ela lida com a dificuldade de
quantificação do fenômeno psicológico. O Cognitivismo trouxe para a Psicologia uma nova
forma de abordar o problema, trazendo uma linguagem tão precisa quanto a matemática,
porém não quantificada: a lógica. Baars (1986) chama esta linguagem “matemática não-
quantitativa”, que incluiria a lógica simbólica, a álgebra booleana, a topologia e a teoria da
função recursiva. Porém acredito que este termo é inadequado. Deveríamos simplesmente
reconhecer que a Psicologia Cognitiva resgatou um fato há muito negligenciado pelo
Positivismo em virtude de sua ênfase no caráter preditivo das leis científicas: leis
nomoteticamente orientadas precisam ser expressas em termos matemáticos e/ou lógicos. A
abordagem hipotético-dedutiva da Psicologia Cognitiva resgatou a linguagem puramente
lógica para a expressão de leis científicas, e com isso conferiu a leis psicológicas considerável
objetividade, univocidade e falsificabilidade em trabalhos como os de Chomsky e Piaget, sem
precisar recorrer a quantificações aritificiais.
Uma terceira questão importante acerca do objeto de estudo da Psicologia Cognitiva
como campo de investigação e do Cognitivismo como proposta para a Psicologia como um
todo, é o resgate do conceito de consciência. Mesmo os cognitivistas mais ligados à tradição
inicial da Teoria da Informação defendem esta posição. Veja esta passagem, que por sua
abrangência e significação merece ser transcrita, do psicólogo cognitivo George Miller
(1985), um dos ícones do movimento:
“Psychologists who adopt consciousness as the constitutive problem of their field need
reject little of what passes for psychology today. They can accept the unconscious, for it
defines the boundaries of consciousness. They can accept behavioral analysis, for it
provides the evidence for conscious processes. They can accept studies of children and
animals, for they reveal the development of consciousness. They can accept computer
simulation, for it ilustrates the logic of conscious process. They can accpept social
atribution, for it shapes our consciousness of others. The central faith is that
consciousness is a natural phenomenon and that the discipline – eventually the science –
responsible for understanding it should be called psychology.” (p. 42)
Assim o que vemos é que o Cognitivismo se caracteriza como uma Psicologia da
Consciência, como também defende Bruner. No entanto, temos que lembrar que no final de
sua carreira, Bruner (1997) passou a dar ênfase a aspectos que ele considerava esquecidos
200
pela Revolução Cognitiva, defendendo que originalmente era o significado, e não o
processamento de informações, o objeto central da Revolução Cognitiva. Esta posição é
bastante peculiar e isolada dentro do Cognitivismo.
Por fim deveríamos abordar o problema da relação da Psicologia Cognitiva com a
emoção e motivação. Estamos falando até aqui de um objeto anti-séptico, racional. O quanto
este objeto se assemelha a um ser humano? Autores como Neisser (1967) e Piaget (1973)
tornam claro o compromisso do Cognitivismo de colocar em suspenso a questão das
influências emocionais e motivacionais na construção das estruturas cognitivas, embora isso
não signifique em nenhuma hipótese a negação dessas influências. É somente uma decisão
metodológica, devida a não-logicidade e a não adequada quantificabilidade das emoções e
motivações. Isto não significa que elas não possam ser abordadas em uma análise cognitiva,
desde que através das representações cognitivas que elas geram, como metas, crenças ou
códigos restritivos de conduta. Fodor (1975) em seu modelo computacional da mente não
exclui a real existência e eficácia causal de crenças e desejos. Crença é aquilo que atribuí
falsidade ou veracidade a representações (“todos os cisnes são brancos” é verdadeiro, “todos
os cisnes são rosa” é falso), e desejo é aquilo que define metas (que podem ser representadas
mentalmente como “vou à praia amanhã”). No entanto, é certo que o cognitivismo considera
as emoções em uma relação de subordinação à cognição. Veremos melhor isto no subitem
seguinte, dedicada a imagem de homem defendida pelo Cognitivismo.
4.2.2.4 Áreas de estudo da Psicologia Cognitiva
O objeto da Psicologia assim definido é estudado atualmente pela disciplina da Psico-
logia Cognitiva nos tópicos assim organizados por Robert Sternberg (2000): Neuropsicologia,
Atenção e Consciência, Percepção, Representação do Conhecimento, Memória, Linguagem,
Resolução de Problemas, Criatividade, Tomada de Decisão e Raciocínio, Desenvolvimento
Cognitivo, Inteligência e Inteligência Artificial. É um conjunto extremamente grande de quês-
tões e problemas. A estes, acrescentaria ainda o estudo dos estados alterados de consciência,
como o sonho. Mas além do vasto campo da Psicologia Cognitiva, o Cognitivismo estende
sua hegemônica influência hoje para todos os campos da Psicologia. A Psicologia Social Cog-
nitiva, hoje, é a abordagem dominante da Psicologia Social (exceto na América Latina...). Na
Psicologia Clínica, a Terapia Cognitiva tem roubado o último campo de sobrevivência da Psi-
canálise eliminando progressivamente sua influência, alcançando uma síntese proveitosa com
a psicoterapia cientificamente fundamentada de origem behaviorista (a Terapia Cognitivo-
201
Comportamental). Hoje, mais do que há vinte anos atrás (Gardner, 1996 [1985]; Baars, 1986;
Penna, 1984, Mayer, 1981), podemos dizer que vivemos uma era cognitivista na Psicologia.
4.2.3 A Imagem de Ser Humano no Cognitivismo
Este terceiro subitem trata da imagem de ser humano que está explícita e
implicitamente ligada ao Cognitivismo. Ampliando a definição de Penna (1984), dividirei esta
exposição em treze tópicos que caracterizam o modelo antropológico adotado pelo
Cognitivismo, que considera que o Ser Humano: 1) é dotado de consciência; 2) é ativo; 3) é
movido por causas e razões; 4) é orientado à metas; 5) é um processador de informação; 6)
tem seus processos cognitivos governados por regras; 7) possui um inconsciente cognitivo; 8)
constrói as regras que coordenam sua cognição; 9) possui tendências inatas para desenvolver
certas estruturas; 10) reage a significados atribuídos; 11) tem emoções que atuam através da
cognição; 12) é epistemicamente motivado; 13) é constituído de mente e corpo, que interagem
e se influenciam mutuamente. Como os primeiros tópicos acima já foram consideravelmente
abordados, eles serão aqui simplesmente sintetizados. É a partir do sétimo tópico em diante
que será concentrado o esforço desta exposição, sendo que a décima terceira questão, a da
concepção cognitivista sobre a relação mente-corpo, será exposta no subitem 4.2.4.
4.2.3.1. O Ser Humano é dotado de consciência
Como já abordado (Miller, 1985; Penna, 1984), o resgate do conceito de consciência é
uma das características centrais da imagem de homem promovida pelo Cognitivismo. Cabe
aqui acrescentar no entanto, que por consciência não se entende um epifenômeno descartável,
que uma vez excluído em nada alteraria as seqüências de comportamento a serem efetuadas
por um organismo, conforme concebiam filósofos behavioristas e positivistas que ousavam
abordar esta questão. No Cognitivismo, a consciência não é o fantasma na máquina de Ryle
(1949), ela é a dona da máquina. Nomes como Neisser (1967) e Sperry (1993) consideram a
consciência uma propriedade emergente da atividade cerebral, que no entanto (Sperry, 1993),
possui propriedades que não se reduzem às propriedades desta atividade. Isto leva ao
interacionismo característico da posição mente-corpo do Cognitivismo, que veremos no sub-
item 4.2.4. De resto, cabe aqui por último lembrar o argumento de Penna (1984, p. 45) em
favor da relevância da consciência como fenômeno biológico, em contra dos pouco
verossímeis argumentos de Ryle e dos behavioristas. Neste, lembra ele que a tese behaviorista
da irrelevância da consciência não se compatibiliza com o fato de sua preservação ao longo do
processo evolutivo, já que segundo a teoria da evolução a vida tende a descartar as formações
202
emergentes inúteis e desnecessárias. Se a consciência fosse um simples epifenômeno, seu
destino já teria sido o desaparecimento. Neste ponto, é preciso escolher: ou o Behaviorismo
ou o Evolucionismo.
4.2.3.2. O Ser Humano é ativo
A proatividade, o agency (poderíamos talvez dizer, um certo montante de livre-arbí-
trio), é característica distintiva da imagem de homem oferecida pelo Cognitivismo. O ser hu-
mano não é uma bola de bilhar reativa num universo mesa-de-bilhar newtoniano-mecanicista.
Ele é um foco de atividade do universo. Busca ativamente metas, constrói ativamente suas
estruturas cognitivas, atribui ativamente significado. Portanto, sem nenhuma dúvida, podemos
alinhar o Cognitivismo do lado da tradição leibniziana da Psicologia ou ainda kantiana contra
a tradição lockeana. Como podemos observar, este é mais um ponto de convergência do Cog-
nitivismo com a Psicologia Humanista. Piaget (1973) é representante paradigmático desta po-
sição Cognitivista, com sua Psicologia do desenvolvimento calcada nos conceitos de organis-
mo ativo e atividade do sujeito sobre o mundo como responsável pelas construções de suas
estruturas cognitivas. Para Piaget o sujeito psicológico é um objeto que difere fundamental-
mente dos corpos e das forças cegas que constituem os objetos das ciências físicas.
4.2.3.3. O Ser Humano é movido por causas e razões
O cognitivismo reconhece duas ordens de causalidade para o comportamento humano:
as causas eficientes e as causas finais. A primeira se dá em virtude da natureza físico-química
constitutiva do Ser Humano que é movida por leis estritas de causalidade, governada pelo
mundo natural. A segunda se daria (Sperry, 1993) em virtude das propriedades emergentes da
organização e atividade cerebral, a consciência e a atividade dela resultante. Penna (1984)
expõe como este tipo de compromisso representa mais um afastamento radical da tradição
positivista, uma vez que explicações centradas em razões são derivadas do conceito de
escolha, e este, é indissociável do conceito de liberdade, que por usa vez, é inconciliável com
o determinismo laplaceano que caracteriza a visão de mundo positivista.
4.2.3.4. O Ser Humano é orientado à metas
Esse caráter agente do ser humano, pode ser representado cognitivamente através do
conceito de metas, e dessa maneira abordado conceitualmente através da linguagem da
cibernética e do conceito de feedback. É idéia central do Cognitivismo que o comportamento
humano não pode ser adequadamente descrito, previsto ou compreendido em termos de
203
estímulo-resposta e portanto, pressões ambientais. Todo o comportamento humano é
prospectivo e visa atingir metas através de planos e estratégias de ação consciente. Como
estabeleceram Miller, Galanter e Pribram (1960) podemos definir um plano de maneira
rigorosa como um processo hierárquico de seqüências de operações a serem executadas por
um organismo, da mesma forma como um programa para um computador. Se a isto
acrescentarmos um modelo TOTE (test-operate-test-exit) estamos diante de um modelo
cibernético de auto-regulação orientada a metas, ou feedback. Num modelo de feedback
negativo, que é o tipo que estamos avaliando, parte do output volta como input de forma
permitir a uma máquina cibernética (como um míssil) calcular a margem de erro entre a meta
estabelecida (um alvo) e a atual posição da máquina (no caso posição no espaço), o que
permite ao sistema ajustar seu comportamento (output) em relação à meta.
4.2.3.5. O Ser Humano é um processador de informação
É a metáfora computacional, a visão do ser humano como um organismo ativo que
processa informação, primeiro recebendo-a, depois decodificando-a, transformando-a,
armazenando-a, recuperando-a e por fim utilizando-a. É importante enfatizar novamente que o
Cognitivismo (não as Ciências Cognitivas) sempre considerou a metáfora computacional
somente uma metáfora, útil por oferecer linguagem e aparatos conceituais novos para a
abordagem eficiente dos fenômenos cognitivos. O Ser Humano, é mais do que um
processador de informações (Neisser, 1967; Gardner, 1996; Sperry, 1993), mas é certo que ele
também é um processador de informações, e o é, quase todo o tempo.
4.2.3.6. O Ser Humano tem seus processos cognitivos governados por regras;
Este processamento não é aleatório, ele obedece a etapas processuais e a estruturas, ou
seja, a regras estavelmente definidas. É certo que algumas destas regras podem mudar (o
“programa”, a estratégia), mas outras são muito básicas, são por assim dizer o “sistema
operacional” de nossa mente, e ao que tudo indica são inatas ou ao menos inata é a tendência
à desenvolvê-las. Os maiores expoentes desta posição no Cognitivismo, posição
compartilhada em uma medida ou outra por todos os teóricos desta abordagem, são Noam
Chomsky (1971) e Jerry Fodor (1975).
4.2.3.7. O Ser Humano possui um inconsciente cognitivo
Portanto vimos que o Ser Humano processa informação e possui regras e estruturas
para esse processamento. O que não dissemos é de que forma isso acontece. E majoritaria-
204
mente, o processamento de informação se dá de maneira inconsciente, assim como são in-
conscientes a maior parte das regras e estruturas que governam este processamento. Penna
(1984) caracteriza o inconsciente cognitivo como um conjunto de estruturas e processos ina-
cessíveis ou só muito dificilmente acessíveis à nossa consciência, e lembra que este conceito é
derivado da filosofia de Leibniz. Chomsky e Piaget estão entre os teóricos que abordaram ex-
plicitamente o problema, que hoje ganhou renovado interesse no Cognitivismo. Exemplos de
processos e estruturas inconscientes são: a estrutura profunda da gramática transformacional
de Chomsky, a linguagem do pensamento de Fodor, os estágios de desenvolvimento cognitivo
de Piaget, as habilidades presentes na memória implícita, as atribuições perceptivas, e assim
por diante. A grande questão em aberto sobre o inconsciente cognitivo é em relação a sua
acessibilidade ou inacessibilidade absoluta. No começo da revolução cognitiva a balança pen-
dia para os que defendiam, como Chomsky (1981,1987), a tese da inacessibilidade. Mas atual-
mente a tendência predominante é a de considerá-los, ora sub-conscientes, ora regras e estru-
turas que podem ser representadas conscientemente. Aaron Beck (2000), representante máxi-
mo da abordagem Cognitivista da psicoterapia, é defensor desta segunda tese. Ele declara
sobre a relação entre seu conceito de pensamento automático e o inconsciente cognitivo:
“Os conceitos ‘pensamentos automáticos’ e ‘inconsciente cognitivo’ possuem muitos
aspectos comuns. Embora a observação clínica tenha revelado que os pensamentos
automáticos são com freqüência muito facilmente admitidos à percepção consciente, a
situação teórica da noção de ‘automatismo’ sugere que esse processamento cognitivo
talvez seja melhor denominado de ‘pré-consciente’.” (p.27)
Portanto, existe atualmente a tendência no cognitivismo da divisão entre inconsciente
cognitivo, que seriam as regras e estruturas não apercebidas de processamento, organização e
armazenamento de informações, e sub-consciente cognitivo, que seriam os processos
automáticos de processamento de informação e atribuição de significado, não executados ou
controlados pelo foco de atenção da consciência (como um sentimento desagradável
provocado por um lugar ou o comportamento de dirigir um carro).
4.2.3.8. O Ser Humano constrói as regras que coordenam sua cognição
No mínimo, o Cognitivismo acredita que a maior parte das regras, processos ou
estruturas, que coordenam o processamento de informação humano – a cognição – são
construídas pelo sujeito em um processo de contínua interação com o mundo. Esta posição
205
nós conhecemos hoje com o nome de construtivismo, e tem se tornado extremamente
influente na Psicologia contemporânea. Tem sua origem na Psicologia experimental com a
obra revolucionária de Jean Piaget, que demonstrou como as formas de raciocínio humanas
aparentemente mais naturais são na verdade construídas ao longo do desenvolvimento nas
suas interações com o mundo. No entanto, o construtivismo característico da tradição
cognitivista se faz acompanhar igualmente de uma tradição inatista, exigindo uma síntese
superior entre estas duas posições que, no entanto, não parece mais problemática. Desde que
Chomsky e Piaget promoveram o histórico encontro de Royaumont, em 1975 – envolvendo
além deles nomes como Bärbel Inhelder, Hilary Putnam, Jerry Fodor, Gregory Baetson e
Seymour Papert, entre outros (Piatelli-Palmarini, 1987) – vários esforços de síntese entre as
duas posições antiempiristas foram articuladas. Com o tempo, a boa e velha ciência moderna
têm oferecido suas próprias soluções, demonstrando que algumas estruturas e habilidades
muito básicas precisam ser consideradas inatas, evidentemente, sem a eliminação da
necessidade de se postular processos de construção de estruturas (para um extenso inventário
das evidências atuais em suporte do inatismo, ver Pinker, 2004).
4.2.3.9. O Ser Humano possui tendências inatas para desenvolver certas estruturas
Conforme abordado, é igualmente representativa da tradição cognitivista a crença de
que certas estruturas muito básicas da cognição, assim como certos processos também muito
básicos, são inatos, ou no mínimo, que a tendência a desenvolvê-los é inata. Típico
representante desta tradição é Noam Chomsky (1971). As pesquisas contemporâneas em
Psicologia do Desenvolvimento sobre as aptidões de recém-nascidos dão sustentação ao
inatismo, em capacidades muito básicas. A natureza também parece dar extensa sustentação
ao inatismo, quando a imensa maioria dos animais na natureza apresenta ao nascer grande
repertório instintivo de comportamentos altamente complexos adquiridos em longo processo
de evolução de sua espécie. Não é surpresa constatar que o Ser Humano tenha no mínimo
algumas estruturas e regras de processamento “pré-programadas”, como o bios de um
computador. Surpresa seria o contrário. No entanto ambas as posições não são contraditórias.
Primeiro, podemos considerar que existam estruturas e regras cuja potencialidade para se
desenvolver é inata, mas cujo ato de seu desenvolvimento é construtivo. Também, poderíamos
considerar que poucas e básicas regras e estruturas são inatas, a partir das quais muitas e
complexas estruturas e regras são construídas. Mais uma vez, a filosofia de Karl Popper já
havia compatibilizado filosoficamente construtivismo e inatismo antes de os problemas
surgirem na Psicologia Cognitiva. Veremos esta solução no item 4.3 deste capítulo.
206
4.2.3.10. O Ser Humano reage a significados atribuídos
Como observou Penna (1984), esta característica do movimento cognitivista é herdada
do trabalho de George Mead. Este defendia a tese de que Seres Humanos não reagem a
estímulos físicos, mas sim aos significados atribuídos a estes estímulos. Em última análise,
poderia se encontrar a raiz deste pensamento na filosofia estóica. É famosa a máxima de
Epicteto, segundo a qual o que comove o homem não são as coisas mesmas, mas sim suas
opiniões sobre elas. Na Psicologia, entra pelas mãos de influente artigo de Roger Sperry
(1977). Diga-se de passagem, Bruner (1997) em suas últimas obras reclama que o significado
atribuído, e não o processamento de informação, deveria ser o verdadeiro objeto de estudo de
uma Psicologia Cognitivista. Nos últimos anos, a questão do significado atribuído como o
verdadeiro determinante do comportamento ganhou destaque renovado no Cognitivismo com
a emergência da extremamente bem sucedida Terapia Cognitiva, capitaneada por Aaron Beck
e que faz dessa idéia uma pedra angular de sua teoria psicoterapêutica. Beck (2000) faz das
duas declarações a seguir os dois primeiros axiomas de sua teoria cognitiva da personalidade:
“1. O principal caminho do funcionamento ou da adaptação psicológica consiste de
estruturas de cognição com significado, denominadas esquemas. ‘Significado’ refere-se à
interpretação da pessoa sobre um determinado contexto e da relação daquele contexto
com o Self.
2. A função de atribuição de significado (tanto a nível automático como deliberativo) é
controlar os vários sistemas psicológicos (p.ex., comportamental, emocional, atenção, e
memória). Portanto, o significado ativa estratégias para adaptação.” (p.24)
Um conhecido exemplo terapêutico atribuido a Phillip Kendall ilustra bem a questão
de como o significado atribuído é mais importante que a informação para determinar o com-
portamento. Suponhamos que temos acesso a uma informação objetiva: ao sairmos de casa,
pisamos em fezes. O significado que atribuirmos a esta informação determinará nossa reação
emocional e nosso comportamento. Um deprimido poderia atribuir à informação o significado
de que seu dia será terrível, e de que ele é terrivelmente azarado, que coisas que acontecem
com ele não acontecem com mais ninguém. Como resultado, ficará mais deprimido. O
supersticioso, pode se lembrar da crendice de que pisar inadvertidamente em fezes no começo
do dia é sinal de que algo maravilhoso irá acontecer, acreditar, e com isso se tornar confiante.
O ansioso, vai lembrar-se de que terá que trocar o sapato, o que o atrasará no mínimo dez
207
minutos para sair, o que o fará pegar mais tráfego, o que o fará chegar vinte minutos atrasado
no trabalho, o que fará com que seu chefe perca finalmente a paciência com ele, o que fará
com que seja despedido, o que fará com que fique sem dinheiro para as necessidades do mês,
o que fará com que a mulher o despreze, o que fará com que ela o abandone e leve com ela
seus filhos, o que fará com que sua vida se destrua, o que o deixará ansioso, ou provavelmente
em pânico. A informação de que pisamos em fezes pode ser uma bosta. Ou, uma maravilha.
Para o Cognitivismo, o que determina isso é o significado atribuído pelo sujeito à informação.
4.2.3.11. O Ser Humano tem emoções que atuam através de cognições
O estudo cognitivo sistemático da motivação e emoção ainda é um capítulo em aberto
do Cognitivismo e talvez o grande ponto fraco da abordagem, em virtude do não estabeleci-
mento de um adequado sistema de referência para abordar a questão. A abordagem do proces-
samento de informação tende a ser inadequada porque o sistema cognitivo, por uma conveni-
ência metodológica, é considerado isoladamente das influências emocionais e motivacionais.
No entanto, o problema da motivação e emoção não deixou de receber contribuições originais
desta abordagem, que inclusive tem se mostrado extremamente férteis no principal campo
aplicado da Psicologia: a Psicoterapia (Beck, 1982). A posição canônica desta abordagem em
relação ao problema das emoções é a de Jerry Fodor (1975), que transforma o conceito vago
de desejo (ou os correlatos de vontade, impulso, instinto, pulsão, etc.) numa representação
deste (“quero comida”) que interagindo com representações de outras crenças (tem comida na
geladeira) causa uma meta (apanhar comida na geladeira). A representação de uma meta,
como toda representação, é computável e determina funcionalmente o comportamento do sis-
tema. Caracteristicamente, as melhores contribuições neste campo vem sendo dadas à imagem
geral cognitivista de Ser Humano por dois campos da Psicologia que foram recentemente
invadidos pela abordagem Cognitivista: A Psicologia Clínica e a Psicologia Social. No campo
da Psicologia Clínica, a teoria cognitiva da personalidade (Beck, 2000) postula que as emo-
ções são mais conseqüências do que causas das cognições, logo, crenças disfuncionais geram
emoções disfuncionais, mas o inverso também é verdadeiro. Ainda, não são os fatos (ou infor-
mações) que nos provocam emoções, mas nossas interpretações sobre eles. Da mesma forma,
o Cognitivismo não vê nas motivações de origem fisiológica (fome, sede, sexo, sono) poder
para determinar diretamente o comportamento dos sujeitos: como quaisquer outros estímulos,
eles são informações sobre as quais atribuiremos significados, e é a estes que reagiremos, não
aos estímulos. Esta não é uma idéia difícil de compreender: apesar da fome, o preso político
continua sua greve de fome que já faz dez dias, pois ele vê nela uma arma política; apesar do
208
desejo, o monge se comporta de maneira celibatária, pois interpreta o desejo sexual como uma
tentação que o afastará do crescimento espiritual, não como um prazeroso processo biológico;
já o devasso, come, bebe, dorme e faz sexo não porque não consiga controlar seus instintos,
mas porque acredita que não consegue ou que não quer. Portanto, vemos aqui que ambas as
formulações partem do pressuposto que a emoção e o desejo são subordinadas à razão.
4.2.3.12) O Ser Humano é também epistemicamente motivado
Estas idéias sobre as relações entre motivação e cognição, afirmam que parte de nossa
motivação é meramente cognitiva, ou seja, voltada para a obtenção de conhecimento mais
apurado do universo. E isto não se daria mediatamente, em virtude de um instinto de
sobrevivência e portanto de vontade de poder, mas diretamente, como uma vontade de
sentido. Apesar das inspirações fenomenológicas, gestaltistas e existencialistas desta idéia,
pode-se dizer que ela vem desde o thaumátzein grego, ou seja, a tese de que o
maravilhamento diante do real era a motivação básica da atividade filosófica. Como aponta
Krüger (1986), foi a Psicologia Social Cognitiva que forneceu modelos testáveis destas teses,
com a Teoria da Atribuição de Fritz Heider e a Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon
Festinger. Poderíamos dizer que estas teorias apresentam visões do Ser Humano
sucessivamente como cientista ingênuo e como caçador de consistência.
A visão do Ser Humano como caçador de consistência focaliza a questão de como as
pessoas explicam seus comportamentos e os das outras pessoas, ou seja, quais as relações
causais que elas atribuem ao mundo social. É baseada na Teoria da Atribuição, que focaliza a
tendência do homem comum de procurar encontrar explicações para o comportamento
humano em geral, na tentativa de torná-lo prognosticável. Segundo essa teoria, o Ser Humano
teria como motivação básica a escolha dos dados que considerasse mais relevantes acerca de
comportamentos sociais em geral para com base neles chegar à conclusão mais lógica sobre
suas causas. Aqui, a motivação para o comportamento seria puramente epistêmica.
Já segundo a teoria da dissonância cognitiva (Festinger, 1975) o Ser Humano se vê
motivado quando percebe discrepâncias entre suas cognições. Quando ocorrem implicações
contraditórias entre duas crenças importantes para uma pessoa, gera-se uma ansiedade que
desemboca em pressões no sentido da redução dessa dissonância. Essa redução se daria
necessariamente através do abandono de uma das crenças, de ambas, ou pela introdução de
uma nova. Isto pode se dar através de uma hipótese superior que englobe as duas crenças
reordenando-as de forma a eliminar a contradição entre elas, através de uma mudança de
comportamento, da renúncia a um desejo particular, exposição seletiva a novas informações, e
209
assim por diante. A experiência da dissonância principia, como coloca Krüger (1986), quando
enfrentamos a necessidade de escolher entre duas alternativas conflitantes. Estabelece-se, a
partir do momento em que a alternativa escolhida se configure insatisfatória. A dissonância
portanto, surge de decisões que precisam ser tomadas, sendo uma experiência pós-decisional.
Assim, examinamos dois exemplos de teorias cognitivistas (a primeira é de inspiração
gestaltista) que ilustram a idéia básica do Cognitivismo de que a obtenção de conhecimento é
ela própria uma motivação básica do ser humano. Tendo abordado estas doze características
da imagem de homem oferecida pelo Cognitivismo, só nos resta abordar uma outra.
4.2.4 A Psicologia Cognitiva e o Problema Mente-corpo
Está claro que o cognitivista promove uma distinção clara entre dois domínios de
análise do Ser Humano, o físico e o mental. Foi Neisser (1967) o primeiro psicólogo cognitivo
que assumiu plenamente as conseqüências da conquista filosófica de Putnam e percebeu a
natureza da utilidade da metáfora computacional para a Psicologia Cognitiva. Muito embora
ele já a considerasse inadequada “de muitos modos” (p.06), ele já havia percebido que o
grande serviço prestado por ela era demonstrar que, mesmo numa máquina lógica não-
biológica como o computador, existem dois níveis de análise bem diversos: o do hardware e o
do software. Isso legitimava a divisão entre um domínio de análise físico-cerebral e outro
psicológico-mental no Ser Humano. O Psicólogo não está interessado em como os dados são
registrados no HD (na época eram ainda as fitas magnéticas), e sim em entender como
funcionam os programas, as cognições. É por isso que para Neisser a preocupação dos
neurocientistas em como e onde a memória está armazenada é inútil para o Psicólogo: “Ele
quer entender sua utilização, não sua encarnação” (p. 06). Isso seria o mesmo para ele que
querer que o Economista que procura entender o fluxo monetário de capitais na economia se
dedique ao estudo de se as moedas físicas efetivamente utilizadas em certa transação foram de
ouro, prata, cobre, ferro, papel ou ainda cheques.
Esta posição de Neisser, é fruto do decisivo ataque de Hilary Putnam (1961),
desenvolvido anos depois por Jerry Fodor (1968), ao reducionismo do behaviorismo
lingüístico e do materialismo eliminativo (e a tese da identidade estado mental – estado
cerebral). Este ataque e os novos argumentos propositivos destes filósofos fundaram uma
corrente da Filosofia contemporânea decisiva para a Revolução Cognitiva: o Funcionalismo.
A idéia central do Funcionalismo é que os estados mentais são estados funcionais de uma
máquina ou de um cérebro, não estados cerebrais como queria a teoria da identidade, que
como afirma Putnam, não passa de materialismo ingênuo e simplório. Estes estados
210
funcionais são realizados por estados cerebrais, mas poderiam sê-lo por outro hardware (outro
cérebro no caso) de maneira correlata ao que acontece quando você instala o mesmo
programa em duas máquinas diferentes com o mesmo sistema operacional e o coloca para
rodar. Pode-se estar falando de um 486 de um lado e um Pentium 4 do outro, mas se ambas as
máquinas estão rodando num Windows 98 e ambos estão executando um programa Word 97
para abrir o mesmo arquivo, ambos os hardwares, que são diferentes, estão no mesmo estado
funcional. Este é o conceito de Putnam (1961) de realizabilidade múltipla (de realizável).
Conseqüentemente, a forma física de uma máquina ou de um cérebro é irrelevante
para a determinação do papel funcional que ele realiza. O que Putnam propõe é que nossos
estados mentais estão para os estados neurofisiológicos da mesma forma que os estados
lógicos de uma máquina estão para os estados físicos dessa máquina. Assim, podemos reduzir
esta idéia à célebre fórmula: A mente está para o cérebro como o software para o hardware.
Em suma, o mesmo programa pode estar instalado de infinitas maneiras diferentes
num disco rígido, ser executado fisicamente por arquiteturas das mais diversas (de um
Macintosh a um IBM, de um 386 a um Pentium 4) e ainda assim ter a mesma função, executar
a mesma tarefa com uma seqüência logicamente idêntica de procedimentos. Tornando um
pouco mais específica esta definição, o que Putnam (1961) estabelece como Funcionalismo
parte do princípio que o propósito dos computadores é a execução de funções. As funções,
sucessivamente, costumam a serem consideradas como algoritmos, que são seqüências
específicas de operações lógico-matemáticas a serem aplicadas à informação que entra
(input), para transformá-la numa informação diferente na saída (output). Assim, num sentido
colegial, o que um computador faz é resolver um problema, exatamente como nós diante de
uma função de segundo grau (programa) ao receber o valor do x (input), aplicamos as regras
de transformação da variável exigida pela função (“rodamos” o programa) e chegamos à
resposta (output). O Funcionalismo portanto, defende a teoria de que mentes são sistemas
causais que executam funções na forma de programas de instruções (Putnam, 1961) A
analogia básica é: computador-input-programa-output, mente-estímulos-processo-resposta.
Fodor, num dos livros mais importantes do Cognitivismo, “Psychological Explanation:
An Introduction to the Philosophy of Psychology”, de 1968, desenvolve argumentos
virtualmente avassaladores contra o reducionismo do Behaviorismo Lingüístico e a tese da
identidade materialista. O argumento de Fodor começa com a constatação de que filósofos
analíticos (como Ryle) confundem mentalismo com dualismo de maneira proposital, e
defendem a insustentabilidade do dualismo não atacando sua verdadeira fragilidade, a
doutrina das duas substâncias, mas atacando o mentalismo. Assim lembra Fodor de uma
211
verdade banal, que seria nada mais que um truísmo em outros momentos da história da
Filosofia: “we are not required to be behaviorists simply in order to avoid being dualists.”
(p.59). Ou seja, mentalismo, não implica em dualismo de substâncias. Esta questão, central
para as conclusões desta tese, será retomada no fim do capítulo cinco.
Fodor (1968) sugere, entre as muitas fragilidades que aponta no Behaviorismo, uma
que seria definitiva: este tenta proibir a priori, o emprego de explicações psicológicas que
podem, de fato, ser verdadeiras (como as baseadas e crenças e desejos). Para Fodor, o
Behaviorismo Lingüístico obviamente não é uma teoria sobre processos mentais, não tem
nada a dizer sobre processos mentais internos que causam o comportamento. Ele não explica
nada sobre os mecanismos de produção de comportamentos, somente sobre o processo de
“etiquetagem” de palavras para comportamentos, que nada mais é do que senso comum banal,
ou seja, como as palavras são atribuídas a padrões de comportamentos manifestos. Já a teoria
da identidade (defendida pelo materialismo eliminativo) abandona a cognição como campo de
estudo, reduzindo-a a fisiologia. Ela se resume à identificação de estados mentais com estados
cerebrais, não reconhecendo a ordem distinta entre estes, conforme demonstrada por Putnam
(1961). Os detalhes das críticas cognitivistas a estas posições, serão abordados no sub-item
desta tese que trata das diversas críticas ao programa cognitivista e suas respostas possíveis.
O que cabe especialmente aqui é a filosofia da mente de Jerry Fodor (1975) que se
constitui numa das principais realizações filosóficas do século XX e determina o rumo da
posição cognitivista sobre o problema mente-corpo. Seguindo os passos de Putnam (1961) e
mesmo de Neisser (1967), Fodor vai, em “The Language of Thought”, bem mais além. Para
ele, processos mentais consistem em manipulação de símbolos, que são as representações
mentais. O pensamento é a manipulação lógica de representações mentais que tem uma forma
correlata (de identidade um a um) com a linguagem proposicional comum. Esta é a tese da
Linguagem do Pensamento, apelidada de mentalês. As representações que são manipuladas
nos processos de pensamento seriam cadeias de símbolos, formuladas não em linguagem
comum, mas no mentalês. Pensar, seria manipular e transformar estas cadeias de símbolos em
outras através da execução de regras puramente sintáticas e formais, o programa do mentalês,
que também é inato. Muitas idéias radicais estão implícitas nas formulações de Fodor, mas
talvez a mais radical e controversa é a que a mente humana, em alguma forma de linguagem
de máquina não conhecida, precisa ter instalado no cérebro não somente as regras de
manipulação simbólica (como queria Chomsky, professor e mentor de Fodor), mas também
todas as representações do mentalês. Para um ataque e defesa desta posição de Fodor, dois
livros são referência obrigatória. O primeiro é o do encontro de Royaumont, ocorrido na
212
época em que Fodor estava começando a defender sua doutrina (Piatelli-Palmarini, 1987), o
segundo, que sintetiza as oposições a Fodor e suas respostas ao longo das duas décadas
posteriores ao encontro, “Concepts: Where Cognitive Science Went Wrong”, de 1998.
De qualquer maneira, a posição de que o pensamento precisa ser muito parecido com a
linguagem é sempre muito persuasiva, uma vez que ele pode ser expresso aproximadamente
em palavras e tem uma estrutura lógica comparável à da linguagem. Não se pode aqui no
entanto confundir a tese da linguagem do pensamento, o mentalês, com a tese do relativismo
lingüístico de Whorf (1956), pois nós não estamos falando que o pensamento é executado
numa língua particular, e sim que ele tem sua própria linguagem, inata, universal,
incondicionada, que pode ser traduzida em linguagem verbal ordinária. Da mesma maneira, o
pensamento para Fodor (1975) é manipulação de representações, e nem todas as
representações precisam ser necessariamente lingüísticas para ser computadas pelo
pensamento, exemplo simples disto são as imagens mentais.
A idéia central do cognitivismo para o problema mente-corpo é a visão da mente como
um processador simbólico, um manipulador de símbolos, como um computador. Esta visão
torna a identificação empírica de eventos mentais a cerebrais uma opção sem muita utilidade
(embora como veremos adiante, a assunção de alguma correspondência, não identidade,
continue de muita utilidade metodológica) para o estudo da cognição. Nenhuma lei geral deve
ser esperada, diz Fodor (1975), de generalização redutora entre eventos neuronais e o
pensamento, pois processos mentais são irredutíveis à neurofisiologia da mesma maneira
como softwares são irredutíveis a hardwares e sua configuração física. No entanto, os
processos mentais são executados por processos materiais, não se implica aqui a necessidade
de um dualismo de substâncias. A idéia é de fato irresistivelmente simples, uma vez que
conheçamos mesmo que superficialmente o funcionamento de um computador. Nós podemos
com rigor determinar como funciona o Word for Windows, sem ter qualquer idéia de como
isto está instalado e “rodando” em nosso hardware. De fato, em quase todos os sentidos, isto
não tem nenhuma importância para nós (a não ser quando há um defeito no hardware,
exatamente como no caso da neurofisiologia em relação à Psicologia Cognitiva).
Entendido isto cabe inserir nossa pergunta: até que ponto é legítima a afirmação de
que a posição da Psicologia Cognitiva para o problema mente-corpo representa um novo
dualismo? Estamos aqui, sem duvida, diante de um dualismo metodológico: mas será que isso
equivale a um dualismo ontológico, onde voltamos à posição cartesiana de duas substâncias
diversas e independentes, a res extensa e a res cogitans? Segundo a maioria dos Cognitivistas
não. Eles continuam aderidos a um monismo geral, que considera só haver uma realidade
213
física natural, e que o universo é feito de uma única substância. Esta é a posição do próprio
Neisser: “For my part, I do not doubt that human behavior and consciousness depend entirely
on the activity of the brain, in interaction with other physical systems.” (1967, p.05).
Porém, como vimos também de Neisser e do Funcionalismo, o Cognitivismo não é de
forma alguma reducionista: não há como reduzir o nível abstrato de análise das regras e
estruturas cognitivas ao nível concreto da organização e atividade cerebral. Obviamente as
operações lógicas de um programa podem ser descritas independentemente do hardware
específico onde elas estão ou serão instaladas. Assim, “estados mentais” podem e devem ser
descritos de forma completamente distinta dos “estados físicos” do cérebro.
No entanto, como lembram Eysenck & Keane (1994), é crença generalizada também
representativa da Psicologia Cognitiva aquela que advoga o princípio do isomorfismo entre
mente e cérebro, ou seja, que ambos tem uma organização semelhante em suas estruturas. Isto
faz com que a investigação do cérebro e de seu funcionamento normal e alterado (drogas,
lesões) seja significativo para a investigação psicológica, pois a primeira produz pistas
importantes para a segunda (no entanto o inverso tem sido muito mais verdadeiro nos últimos
cinqüenta anos). Mas também é significativo, que quando alguém postula que a atividade
cerebral é semelhante à atividade mental, está assumindo paralelamente que ambas não são a
mesma coisa. Portanto, todo isomorfismo é um dualismo, porém, não necessariamente
ontológico.
Bruner (1997) lembra que, infelizmente, a metáfora computacional não significa a
reabilitação científica dos estados intencionais da consciência e de suas qualidades subjetivas.
Acreditar, desejar, compreender um significado passaram a ser as entidades que não deveriam
ser aceitas na nova ciência cognitiva. Isto no entanto vingou na Neurociência e na Inteligência
Artificial, porém, não no Cognitivismo. Portanto, mais uma vez, parece que realmente temos
um dualismo envergonhado aqui.
Bernard Baars (1986) explicou bem o problema em que está envolvida a Psicologia
Cognitiva. Por trezentos anos desde Descartes o problema mente-corpo vem sendo discutido
em termos da “substância fundamental da realidade”: a realidade é material, mental ou
dividida em ambas as substâncias? Depois do dualismo de substâncias cartesiano, duas outras
posições básicas foram estabelecidas na Filosofia, ambas monistas: o monismo pan-psíquico e
o monismo materialista. Para o primeiro, a única substância do universo é o Espírito, e tudo é
mental. Para a segunda, a única substância do universo é a matéria, e só existe o mundo físico.
A Folk Psychology, o senso-comum, é dualista. Acredita-se em geral que possuímos duas
espécies de realidade, a consciência ou a mente e o corpo ou o cérebro. Para o Behaviorismo
214
Linguístico, não há dubiedade possível na atitude científica: a mente é uma ilusão, só o
mundo físico é real. A consciência como iniciadora de ações, ou seja, como entidade que tem
eficácia causal, é um incômodo fantasma na máquina que não tem explicação, portanto, não
pode existir!. Esta doutrina não considera, é claro, que tal posição é tão metafísica quanto a
cartesiana ou a monadologia leibniziana, e como tal, não é em absoluto científica, além de ser
muito inverossímil. Com a Psicologia Cognitiva no entanto, o problema se agrava.
Geralmente, como afirma Baars (1986), psicólogos cognitivos tendem a defender que a
realidade é em última análise física (monismo materialista), e que a experiência subjetiva é
simplesmente uma diferente perspectiva do mundo físico. O dualismo aqui poderia se dizer
simplesmente metodológico, mas o que se demonstra é a completa independência entre dois
diferentes níveis de análise, pois como vimos, a informação não é, em nenhuma hipótese, algo
físico. Isso faz desta primeira posição cognitivista acerca do problema mente-corpo, uma
posição muito frágil teoricamente e pouco sustentável metafisicamente.
Mas nem todos os cognitivistas se sentem na necessidade de descartar de saída o
dualismo cartesiano. Noam Chomsky (1971) defende explicitamente que a tese cartesiana do
dualismo é perfeitamente racional e não pode ser descartada por princípio. Ele traça um
interessante paralelo entre a tese cartesiana da substância mental e a tese newtoniana da
gravidade. Lembra que os mesmos motivos que levavam os materialistas mecanicistas a
atacar a teoria da gravidade os levavam a atacar a substância mental. Era inobservável direta-
mente, e muito pior, agia sobre os corpos de forma inobservável e à distância, algo incon-
cebível para os moldes da mecânica newtoniana. A força de ação à distância, a idéia de um
princípio de atração como propriedade inata dos corpúsculos últimos da matéria, simplesmen-
te não se encaixava no arcabouço geral da ciência, porém, ao contrário das teses cartesianas
sobre a consciência, tinha esmagador poder preditivo, e portanto, acabou sendo aceita.
Se o físico e o mental são heterogêneos, ou eles são independentes ou interdependen-
tes. Isto tem que nos levar a um posicionamento de tipo paralelista ou interacionista. O gestal-
tismo defendia a primeira tese, conhecida como paralelismo psicofísico, que nunca alcançou
posição de destaque na Neurociência e na Psicologia por possuir muitos pontos fracos e ser
muito vaga, pouco explicativa e nada materialista (requisito de respeitabilidade científica para
o Positivismo). Mas o Cognitivismo, passada a posição desarticulada inicial, evoluiu para a
tese dualista envergonhada do interacionismo. O principal motivo para isso é que um
funcionalismo do tipo advogado por Putnam (1961) (não por Fodor), apesar de ter
demonstrado a irredutibilidade do mental ao físico, ainda não é um modelo adequado para as
propriedades intencionais da consciência (Searle, 2000), sem o qual, qualquer filosofia da
215
mente é insuficiente. Entre as teorias interacionistas mais influentes, temos, mais uma vez,
uma tese de Karl Popper, elaborada em conjunto com o neurologista John Eccles (1977).
Afirma Popper (1975b), em passagem esclarecedora de sua verdadeira posição:
“Podemos conjecturar que a Consciência, por sua vez, é produzida por estados físicos;
contudo, ela os controla em considerável extensão. Assim como um sistema legal ou
social é produzido por nós e, todavia, nos controla, não sendo em qualquer sentido
razoável ‘idêntico’ ou ‘paralelo’ a nós, mas interage conosco, assim também os estados
de consciência (a ‘mente’) controlam o corpo e interagem com ele.” (p. 230)
O problema principal com o interacionismo tem sido a recusa em afirmar o que a
mente é (Bunge, 1980), o que de fato é desconcertantemente reconhecido pelo próprio Popper
(1975b, p. 230), que no entanto acredita que o interacionismo é uma resposta “quase trivial”
ao problema de Descartes, e lida bem com nossa crença comum e aparentemente óbvia de que
há um certo dar e tomar entre o corpo, que modifica a mente, e a mente, que modifica o corpo.
Existe, defende Popper, retroalimentação, interação entre a atividade mental e outras funções
do organismo. Esta outra passagem é perfeitamente esclarecedora de que, no entanto, seu
dualismo não é (diga-se de passagem incoerentemente) um dualismo ontológico, e que
portanto, é plenamente representativo do tipo de posição defendida pelo Cognitivismo:
“Assim, como Descartes, proponho a adoção de um ponto de vista dualista, embora, sem
dúvida, não recomende falar de dois tipos de substâncias interatuantes. Mas penso ser útil
e legítimo distinguir dois tipos de estados (ou eventos) interatuantes, os físico-químicos e
os mentais.” (1975b, p.231)
Roger Sperry (1993), seguindo explicitamente a posição de Popper, procurou levar o
interacionismo característico do Cognitivismo um passo a frente, procurando dizer o que a
mente é, e porque poderíamos falar de dualismo sem falar de dualismo ontológico (ou de
substâncias). Partindo do pressuposto holista de que “o todo é mais que a soma de suas
partes”, ou seja, de que os todos apresentam propriedades irredutíveis às propriedades das
partes que o constituem, Sperry apresenta a consciência humana como uma propriedade
emergente da atividade cerebral, que portanto adquire propriedades distintas daquela. Neste
sistema interacionista, o caminho da causação entre o todo (a mente) e as suas partes
constituintes (os neurônios) é bi-direcional. No entanto ele é claro em afirmar que acredita
que este “novo mentalismo” não é um novo tipo de dualismo ontológico:
216
“Fourth, in view of salient misconceptions (…), it is worth repeating that the type of
mentalism upheld here is not dualistic in the classic philosophic sense of two different,
independent realms of existence. In our new macromental or holomental synthesis,
mental states as dynamic emergent properties of brain states cause behavior but are not
dualistic, because they are inextricably interfused with their generating brain processes.
Mental states in this form cannot exist apart from the active brain. At the same time,
mental states are not the same as brain states. The two differ in the way a dynamic
emergent property differs from its component infrastructure. It is characteristic of
emergent properties that they are notably novel and often amazingly and inexplicably
different from the components of which they are built.” (1993, p. 06)
É muito difícil concluir até que ponto teorias interacionistas como as de Popper &
Eccles e Sperry representam uma posição clara do Cognitivismo sobre o problema mente-
corpo, como a doutrina behaviorista monista certamente era (embora inverossímil). John
Searle (1992, 2000), é o filósofo da mente que com mais clareza restabeleceu o conceito de
consciência na filosofia contemporânea. Em sua obra “The Rediscovery of Mind”, ele elabora
a agenda de questões a serem investigadas e resolvidas pela Ciência Cognitiva e Filosofia da
Mente sobre o problema da consciência, oferecendo inclusive soluções para vários deles.
Voltaremos à obra deste filósofo nos subitens relativos às críticas ao Cognitivismo e aos
limites da ciência psicológica. Por hora, podemos concluir que, pela dificuldade da questão,
observa-se que dois mil e quinhentos anos de Filosofia, cento e vinte cinco de Psicologia, e
cinqüenta de Ciência Cognitiva, não fizeram muito pelo esclarecimento deste que é um dos
maiores problemas da Filosofia e mistérios para todo ser humano.
4.3 Psicologia Cognitiva e Epistemologia
Abordaremos neste item os problemas especiais da relação entre Epistemologia e
Psicologia Cognitiva. No primeiro subitem, examinaremos como a Psicologia Cognitiva se
coloca em relação aos pressupostos epistemológicos básicos da ciência moderna, particular-
mente sua posição particular acerca da origem do conhecimento, declaradamente inatista e
construtivista. No segundo, retomaremos a questão da identidade das posições teóricas de
217
autores cognitivistas com o Racionalismo Crítico, evidenciando seu afastamento radical das
teses do Positivismo Lógico. No terceiro item, serão analisadas as dificuldades da Psicologia
Cognitiva em oferecer uma explicação científica do comportamento humano, propondo um
modelo geral de explicação dedutivo-nomológica cognitiva. Por fim, no quarto subitem,
abordaremos um problema exclusivo da Psicologia Cognitiva dentro do espectro das ciências:
a questão de sua circularidade, pois estuda o processo de obtenção de conhecimento mas tem
que partir de pressupostos sobre ele. Neste item também, investigamos o risco que a
Psicologia Cognitiva sofre recorrentemente de manifestações de psicologismo.
4.3.1 Pressupostos Epistemológicos da Psicologia Cognitiva
Neste subitem faremos uma recapitulação do posicionamento do Cognitivismo frente
aos pressupostos epistemológicos da ciência moderna, nos debruçando principalmente sobre
aquela que tem sido sua maior contribuição ao milenar debate filosófico sobre a origem do
conhecimento humano: o desenvolvimento de um Construtivismo consistente e corroborado.
Sobre o primeiro dos pressupostos, o da natureza do conhecimento, podemos dizer que
até por seu caráter construtivista, o Cognitivismo assume a tese platônica modificada de
Popper: todo conhecimento é conjectural. Poderíamos reenunciar a sentença do Teeteto como
“crença mais aproximadamente verdadeira justificada”. No entanto, é claro que o Cognitivis-
mo não é pragmatista ou idealista, sua busca é a verdade, não a eficiência, seus modelos
lógicos da mente devem ser testados empiricamente, não se justificam dedutivamente.
Estamos aqui reconhecendo a tese tradicional da verdade como correspondência, mas na visão
popperiana, onde a verdade é algo do qual podemos nos aproximar, um ideal normativo,
sempre perseguido, sempre mais próximo, nunca alcançável. Veja como esta passagem com a
qual Ulric Neisser conclui uma de suas obras mais importantes, que tem sugestivamente o
título de “Cognition and Reality”, é ilustrativa do comprometimento cognitivista com a
verdade como meta da Ciência e do Ser Humano: “The outcome of any single encounter
between cognition and reality is unpredictable, but in the long run such encounters must move
us closer to the truth.” (1975, p.194). Portanto, como podemos depreender dos argumentos
acima, também é óbvio que o Cognitivismo adere, ao contrário do pós-modernismo, a uma
espécie de otimismo epistemológico, no caso, de natureza criticista.
Na encruzilhada entre a abordagem nomotética e a idiográfica, o Cognitivismo cerra
fileiras com o Behaviorismo e defende que só uma abordagem nomotética merece o título de
Psicologia Científica. A pesquisa cognitiva busca estabelecer leis de funcionamento da mente,
descobrir os padrões de regularidade das regras e estruturas que regem a vida mental. Embora
218
reconheça propriedades da mente que fogem desta possibilidade de descrição, considera que
estas se encontram fora do âmbito da investigação científica. Investigações idiográficas,
definitivamente, não são científicas para o Cognitivismo, que é profundamente influenciado
pela concepção de Carl Hempel (1970) de explicação científica, a dedutivo-nomológica, que
postula que um evento pode ser considerado como cientificamente explicado quando ele
demonstra ser uma instância de uma lei universal não violada (falsificada...) por nenhuma
observação ou fato conhecido. É claro que a posição de Hempel é uma variação do método
hipotético-dedutivo popperiano, que veremos ser a matriz das influências epistemológicas
sobre o Cognitivismo.
Assim restam duas questões sobre os pressupostos epistemológicos de qualquer
“metateoria”, “abordagem”, “paradigma”, ou julgo mais adequado, programa de pesquisa: se
o conhecimento é crença verdadeira justificada, de que forma o Cognitivismo julga que obte-
mos essa crença verdadeira acerca de uma realidade exterior a nós? E uma vez obtida, como a
justificamos como verdadeira? Estas são as questões da origem do conhecimento e de seu
método de validação. A primeira veremos agora neste subitem, a segunda, no item adiante.
4.3.1.1 O Construtivismo como nova posição acerca da origem do conhecimento
Não cabem mais dúvidas de que o Cognitivismo seja uma posição construtivista.
Vimos que tradicionalmente as respostas à questão sobre a origem do conhecimento se
dividiam entre o ambientalismo empirista e o inatismo racionalista. O Construtivismo se
apresenta como uma terceira alternativa de resposta a este problema milenar, sendo no
entanto, um caso especial de racionalismo. Mas o que é Construtivismo? Precisamos agora
delimitar bem esta questão, rastreando inclusive algumas de suas origens filosóficas, para que
a forma inescrupulosa de utilização do termo que assistimos hoje na Psicologia não obscureça
nosso entendimento sobre a posição Cognitivista.
O termo construtivismo surge na Psicologia com a obra de Jean Piaget, no contexto de
sua Epistemologia Genética, para indicar o papel ativo do sujeito na construção de suas
estruturas cognitivas. Desde então, observamos muitas abordagens teóricas em Psicologia
(Construcionismo Social, Construtivismo Radical, Construtivismo Crítico) e Sociologia
(Construtivismo Social) se abrigando sob este rótulo. Estas outras abordagens entretanto não
são (à exceção do Construtivismo Crítico), em absoluto, construtivistas (Castañon, 2005). O
que tem tornado o sentido do termo construtivismo cada vez mais obscurecido e confuso.
Para o psicólogo Michael Mahoney (2003), presidente e fundador da Society for
Constructivism in the Human Sciences, a diversidade de teorias que se apresentam como
219
construtivistas apresentam ênfase nos temas da proatividade humana; ordenamento ativo de
informações; consciência e self; redes sociais simbólicas e desenvolvimento durante a vida. É
no entanto uma definição relativamente vaga, na qual como vimos, o Cognitivismo não teria
problemas de se considerar inserido. No entanto, esta definição vaga e inconclusiva não
parece ser compartilhada nem pelos membros fundadores desta sociedade. Ao conhecer o
corpo de honored contributors da mesma, podemos nos sentir consideravelmente perplexos,
ao encontrarmos juntos muitos psicólogos célebres e de concepções muitas vezes
diametralmente opostas, como o neo-behaviorista Albert Bandura, o cognitivista Jerome
Bruner, o humanista Joseph Rychlak, o fenomenólogo-existencial Viktor Frankl, o relativista
pós-moderno Kenneth Gergen e o construtivista radical Ernst von Glasersfeld. Como o
próprio Mahoney (1998) reconhece em outro texto, o termo construtivismo tem conhecido um
aumento exponencial de sua utilização nos últimos vinte anos, sendo utilizado por abordagens
das mais diferentes, o que dificulta o estabelecimento de definições básicas.
Um dos honored contributors mais célebres da Society, Joseph Rychlak, afirma (1999)
que, desafortunadamente, o termo construtivismo é usualmente empregado em dois sentidos
básicos, o que provoca uma grande confusão em discussões teóricas (p.383). O primeiro é o
que considera construção o processo de associação de partes separadas para a formação de
algo. Esse processo dispensa a presença de um sujeito que constrói, e para Rychlak é o
sentido na qual Kenneth Gergen e o Construcionismo Social usam o termo. Ele no entanto
defende um outro significado no qual o termo é usado. Para ele, construção indica o processo
de formação mental de algo, incluindo conceitos, interpretações, deduções e análises. Esta
acepção do termo pressupõe a existência de um sujeito ativo e construtor de suas cognições.
Nesta segunda definição certamente poderíamos inserir o Cognitivismo.
Analisando etimologicamente o termo Construtivismo, estabelecemos a origem do
verbo construir no verbo latino struere, que significa organizar, dar estrutura.
Necessariamente, é uma inteligência que organiza e dá estrutura a algo. Se é verdade que
muitas vezes encontramos referências ao suposto caráter precursor do construtivismo presente
na filosofia de Sócrates, Epicteto ou ainda Vico, para uma correta compreensão do
construtivismo contemporâneo, devemos recorrer à obra de Imannuel Kant. É a inversão do
sentido da relação entre sujeito e objeto que é a raiz do construtivismo. Tradicionalmente, a
filosofia ocidental pensava o conhecimento como uma determinação do sujeito cognoscente
pelo objeto conhecido. Kant apresenta o processo do conhecimento como a organização ativa
por parte do sujeito – através das estruturas da mente – do material que nos é fornecido pelos
sentidos. Ou seja, para o construtivismo, o sujeito constrói suas representações de mundo, e
220
não recebe passivamente impressões causadas pelos objetos. Isso implica uma opção
racionalista, em dois sentidos: primeiro porque existem formas e categorias a priori, inatas.
Segundo porque pressupõe uma função ativa e criativa da razão. O sujeito para o
construtivismo é proativo, é foco de atividade do universo, e não um aglomerado de células
que recebe passivamente estímulos do ambiente, sendo movidas por estes.
A “revolução copernicana” de Kant na Filosofia teve vários desdobramentos, gerando
interpretações construtivistas idealistas (como as de Schopenhauer ou ainda de Hegel e
Fichte), pragmatistas (como a de Hans Vaihinger) e realistas (como as de Karl Popper e Jean
Piaget). Schopenhauer (1950, [1818]) afirma na primeira frase de sua obra prima O Mundo
como Vontade e Representação: “O mundo é uma representação minha.”. Hans Vaihinger
(1924), em A Filosofia do “como-se”, argumentou que nossas teorias seriam ficções
conscientes cujo objetivo não é alcançar a verdade sobre o mundo, e sim, orientar nossas
ações eficientemente, pragmaticamente. Karl Popper, que dá o nome à escola filosófica
fundada por ele de “Racionalismo Crítico” em homenagem ao criticismo kantiano, acredita
(Popper, 1977) que sua filosofia é uma interpretação realista da filosofia kantiana. É esta
última forma de interpretação do construtivismo, realista, que influenciou o Cognitivismo,
predominantemente pelas mãos de Jean Piaget.
O conceito de construção é fundamental na obra de Jean Piaget. Seu problema
principal é a questão do conhecimento, o que ele é, como se dá, como o obtemos. Aceitando a
distinção de Leibniz entre verdades de razão e verdades de fato, Piaget (1973) distingue
conhecimento formal (lógica e matemática) de conhecimento empírico (física, química,
biologia, psicologia, sociologia). As afirmações das ciências formais (todos os pontos da
circunferência de um círculo são eqüidistantes do centro, dois mais dois é igual a quatro) não
obtêm seu valor de verdade através de observações empíricas; são verdades necessárias e
universais. Já as afirmações das ciências empíricas (corpos com densidade maior que a da
água afundam, dois aviões atingiram as torres do WTC em 11 de setembro de 2001) adquirem
seu valor de verdade em função da possibilidade da verificação dos fatos que enunciam.
Esses dois tipos de conhecimento são irredutíveis. Assim sendo, as verdades de fato
não podem ser alcançadas por algum tipo de dedução lógica a priori, pois elas são
contingentes, nem as verdades formais podem ser alcançadas a partir da experiência empírica,
pois elas são necessárias. No entanto, apesar dessa irredutibilidade, os fenômenos físicos
podem ser representados e inclusive antecipados por modelos matemáticos. Para Piaget,
podemos explicar esse acordo entre matemática e realidade através da pressuposição de que a
221
natureza é regular e se organiza de maneira racional, e que nossas mentes, ao se construírem
de acordo com a realidade, se tornam capazes de representá-la.
Mas de onde vêm esses dois tipos de conhecimento? As respostas tradicionais a esta
pergunta são as estritamente empiristas e as estritamente racionalistas. Piaget (1973) nega as
duas. Para o empirismo, que defende aquilo a que o construtivismo se refere geralmente como
objetivismo, a origem do conhecimento estaria na realidade externa que o imporia ao espírito.
Para o racionalismo, o conhecimento é inato e sua evolução seria apenas atualização de
estruturas pré-formadas. Piaget postula uma terceira resposta possível, a construtivista. Para
ele, a construção do conhecimento exige uma colaboração necessária entre o sujeito que
conhece e o objeto conhecido. É o sujeito que, ativo e a partir da ação, constrói suas
representações de mundo interagindo com o objeto do conhecimento.
Piaget (1979) desenvolveu um modelo de desenvolvimento cognitivo construtivista,
ricamente sustentado por dados empíricos, que apresentava o sujeito como artífice principal,
através da sua ação no mundo, de suas próprias estruturas cognitivas. Dois dos conceitos
principais de Piaget, que esclarecem a forma como ele explicava o processo de construção do
conhecimento por parte do sujeito, são os de assimilação e acomodação. Quando uma criança
ou qualquer pessoa tem uma experiência que não se coaduna com seus esquemas e teorias, ela
primeiramente tenta assimilar essa experiência em seus esquemas existentes. No entanto, se a
pessoa ver que suas explicações e predições são repetidamente desmentidas, prevalece a
tendência no sentido de o esquema se modificar de modo a acomodar-se a esta nova
informação. Ou seja, somos ativos quando interpretamos a experiência para assimilá-la aos
nossos esquemas e teorias, e somos ativos quando mudamos nossos esquemas e teorias de
forma a acomodarem-se à realidade. Piaget, claramente, é um realista. De forma semelhante a
Popper, ele acredita que o mundo vai moldando nossos esquemas quando os desmente
seguidamente, exigindo uma nova acomodação.
Este arcabouço geral do pensamento piagetiano impressionou profundamente o
movimento cognitivista, que começava a chegar a conclusões construtivistas em todas as
áreas da cognição humana. Já em 1967 Neisser advogava o caráter essencialmente
construtivista do Cognitivismo, como podemos confirmar neste parágrafo:
“The central assertion is that seeing, hearing, and remembering are all acts of
construction, which may make more or less use of stimulus information depending on
circumstances. The constructive processes are assumed to have two stages, of which the
222
first is fast, crude, wholistic, and parallel while the second is deliberate, attentive,
detailed, and sequential.” (1967, p. 10)
Para ele, toda cognição, do primeiro momento de percepção em diante, envolve
processos analíticos e sintetizadores. Como ele argumenta claramente, a grande diferença
entre o processamento de informações seqüencial bottom-up (de cima para baixo, dos sentidos
para a mente) e a cognição humana é que os seres humanos são seletivos na sua atenção,
enquanto processos seqüenciais unidirecionais não podem ser.
A partir destes argumentos começaram a ser desenvolvidos outros modelos de
processamento para a simulação destes aspectos construtivos da cognição humana. Um dos
mais tradicionais hoje é aquele que, conforme Eysenck & Keane (1994), versa sobre o modelo
bottom-up e top-down de processamento de informação. Segundo este, todo processamento de
informação é executado bi-direcionalmente: o botton-up refere-se ao processamento
diretamente afetado pelo input do estímulo, o top-down ao processamento feito em função
daquilo que o indivíduo traz à situação de estímulo (experiência passada, expectativas que
orientam o que na informação recebida é relevante para a tarefa em execução). Não é difícil
compreender a força do processamento top-down na nossa cognição ordinária. Parafraseando
exemplo fornecido por Eysenck, suponhamos que você tenha encontrado uma folha desta tese
rasgada: “Esta ____ está organizada em cinco capítulos”. Naturalmente você acreditaria se
tratar da palavra tese. Numa carta com letra ilegível, que comece por “C___ Amigo,”
naturalmente você processará o estímulo como se tratasse da palavra Caro. Segundo Eysenck
& Keane (1994), a tese predominante na Psicologia Cognitiva contemporânea, seguindo mais
uma vez Neisser (1975), é a de que toda atividade cognitiva envolve ambos os tipos de
processamento, que nada mais são do que um modelo computacional da crença construtivista
(de origem popperiana) que nossas hipóteses e expectativas condicionam a seleção das
informações que consideraremos relevantes em cada contexto.
Gardner (1996), também indica que a Ciência Cognitiva como um todo adere a uma
posição construtivista. Segundo ele, a partir das últimas obras de Karl Lashley, ficou claro
para todos que mesmo a atividade cerebral não podia ser concebida em termos de arco-
reflexo, passiva, e que as pesquisas já na época indicavam o cérebro como um sistema
dinâmico e constantemente ativo e interativo. Hoje, os cerca de cinqüenta anos a mais de
pesquisa neurofisiológica corroboram a crença de que o cérebro é um órgão que está
constantemente ativo, tentando se adiantar aos processos sensoriais em curso, como nos
223
mostraram Maturana & Varela (1987), dois expoentes da chamada escola chilena que
estabeleceram a abordagem construtivista nas Neurociências.
4.3.1.2 Racionalismo, Construtivismo e Inatismo
Porém, como não se pode deixar de abordar novamente, a posição do Cognitivismo é
tanto construtivista quanto inatista, e a posição de Piaget negligencia em grande medida essa
segunda dimensão na posição construtivista. Em suas palavras:
“Cinqüenta anos de experiências fizeram-nos saber que não existem conhecimentos
resultantes de um registro simples de observações, sem uma estruturação devida às
atividades do sujeito. Mas também não existem (no homem) estruturas cognitivas a priori
ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e só engendra estruturas por
uma organização de ações sucessivas exercidas sobre objetos. Daqui resulta que uma
epistemologia conforme os dados da psicogênese não poderia ser empirista nem pré-
formista, mas consiste apenas num construtivismo, com a elaboração contínua de
operações e de estruturas novas. O problema central é, então, compreender como se
efetuam estas criações e porque, visto resultarem de construções não pré-determinadas, se
podem tornar logicamente necessárias, durante o desenvolvimento.” (p.51)
Observe-se que Piaget evita a palavra inato, e usa em seu lugar hereditário e pré-
formista, uma defendendo a existência de algo inato e outra atacando. Esta falta de clareza de
Piaget neste ponto é conhecida. Mas é evidente com esta passagem a necessidade de ao menos
se postular algo como “o funcionamento da inteligência” geral como inato. O problema, como
o enfatizam no mesmo debate Fodor (1987) e Chomsky (1987), é que nenhum construtivista
define claramente (menos ainda de forma a se tornar falsificável) o que seria tal “mecanismo
geral de inteligência”. No campo da inteligência artificial, as tentativas de se construir
sistemas capazes de construir estruturas com a experiência (o conexionismo) redundavam em
grande fracasso, e continuam fracassando assim até hoje (Pinker, 2004; Fodor 1998, 2001).
Em um dos mais conhecidos argumentos de Piaget contra o empirismo (Penna, 1984),
ele diz que o objetivismo assenta-se sobre a idéia de cópia. Porém, se para conhecer precisa-
mos copiar, para copiar antes precisamos conhecer o que se copia, o que seria uma contra-
dição. Esta crítica poderia ser falsa em relação ao empirismo, pois o que este último defende é
uma espécie de impressão passiva fixada no cérebro do sujeito pelo objeto, como se dá por
exemplo com um filme numa fotografia ou com uma fita magnética cassete numa gravação.
Mas provavelmente esta crítica não é falsa em relação ao próprio construtivismo piagetiano.
224
Como argumentou Fodor (1987), é surpreendente ver Piaget afirmar que alguém pode
aprender um novo conceito através da ação motora. Como ele bem lembra ao resgatar um
antigo argumento platônico, não podemos aprender um conceito novo a não ser que tenhamos
antes capacidade de aprendê-lo, seja porque o esquecemos e ao aprender lembramos (e neste
caso já o tínhamos), seja porque o hipotetizamos (e neste caso de alguma forma já o tínhamos,
ao menos em potência). Fodor (1998) continua hoje a defender enfaticamente que existe uma
linguagem natural do pensamento e que essa linguagem é inata, assim como os conceitos
subjacentes a ela. A primeira destas duas posições (a da linguagem) ele compartilha com seu
colega Noam Chomsky e comrios cientistas cognitivos contemporâneos. É consenso hoje
que o Cognitivismo como movimento é tanto inatista, em relação à existência de algumas
potencialidades inatas que só aguardam maturação biológica e oportunidade contextual para
emergir (ou seja, o ambiente somente fornece a oportunidade para a emergência da estrutura),
quanto construtivista, visto que considera que é a partir dessa estruturação mental prévia que
organizamos o material dos sentidos e criamos estruturas mais elaboradas toda vez que a
anterior não é suficiente para integrar coerentemente os dados. Fora isso, e excluindo a
posição de Fodor (1975, 1998) que é radicalmente inatista, a divergência, até entre Chomsky
(1987) e Piaget (1987), é predominantemente de grau: ambos reconhecem os processos de
construção e ambos a existência de instâncias inatas. O problema se torna então determinar
qual é o nível de elaboração das estruturas e capacidades com as quais os bebês vêm ao
mundo, e o quanto das habilidades desenvolvidas é fruto de maturação biológica: estaríamos
determinando então o que e o quanto é fruto de construção. Este problema é conhecido em
Psicologia do Desenvolvimento como o problema do estado inicial, de fato, o tema central
das discussões do encontro de Royaumont. Como afirmou o organizador deste encontro,
Piatelli-Palmarini (1987), o núcleo duro do programa de pesquisa racionalista ou
“chomskyano”, consiste em não atribuir qualquer estrutura intrínseca ao ambiente:
“Só existem leis de ordem provindo do interior; quer dizer, toda a estrutura ligada à
percepção, quer seja de fonte biológica, cognitiva ou outra, é imposta ao ambiente pelo
organismo e não extraída deste. As leis desta ordem são concebidas como relativas à
espécie, invariáveis através das épocas, dos indivíduos e das culturas.” (1987, p. 32)
Mas como podemos intuitivamente perceber, o texto acima poderia ser atribuída tanto
ao construtivismo como ao inatismo, porque o que distingue os dois é uma questão de ênfase,
não de natureza. É possível haver inatismo sem construtivismo, sem que isto se revele
225
incoerente logicamente (embora inverossímil). Mas é impossível haver construtivismo
coerente sem algum tipo de inatismo, em relação a um estágio inicial a partir do qual ou
contra o qual construímos nosso conhecimento, ou ainda sem pressupor um inatismo
potencial, condicional, em relação às capacidades de um determinado organismo em obter
estruturas e conteúdos. Nosso conhecimento pode ser em parte, ou na maior parte, construído,
mas isto implica potencial genético para tal, afinal de contas outras espécies não conseguem
estruturas nem próximas da sofisticação humana.
Poderíamos também caracterizar a diferença entre inatistas contemporâneos herdeiros
de Chomsky e os construtivistas herdeiros de Piaget, com o debate em relação à
especificidade das estruturas inatas. Os inatistas defendem que existem estruturas inatas muito
específicas, altamente especializadas, enquanto os construtivistas sempre defenderam uma
estrutura inata muito geral de inteligência, que construiria os módulos específicos de
processamento de informação. Atualmente, a Ciência Moderna mais uma vez tem decidido
em favor da posição inatista, indicando a presença de capacidades inatas muito específicas e
sofisticadas em recém-nascidos (Pinker, 2004).
Mas não podemos esquecer um poderoso argumento construtivista, que parte dos
pressupostos evolucionistas do inatismo para justificar a existência de capacidade de
construção de novas estruturas cognitivas. Em resumo, poderíamos apresentá-lo como se
segue. Supondo-se que todas as estruturas cognitivas humanas são inatas, em última instância
inscritas no programa genético de um indivíduo, como foi possível tal coisa? O inatismo tem
que responder sobre os mecanismos gerais que permitiram a um programa genético de tal
ordem ter se reunido. Para Piaget (1987b) o processo de mutação aleatória defendido pelos
neo-darwinistas além de ineficiente, ainda não possui explicação e condenaria as estruturas
inatas da razão à uma condição contingente, quando seu caráter distintivo é a necessidade.
Putnam (1987) trabalhando sobre este ponto, afirma que Chomsky deliberadamente afasta a
questão posta por Piaget sobre o que poderia ser a evolução de um modelo inato de
linguagem. Como ele chegou evolutivamente a ser o que é? Defendendo a posição de Piaget,
ele afirma que uma resposta possível é: a linguagem primitiva foi fruto de uma invenção,
efetuada por um membro da espécie fora do comum, como ela trazia vantagens evolutivas
óbvias foi utilizadas por todos aqueles membros da espécie que foram capazes de seus
rudimentos, isto fez com que aqueles de lóbulos esquerdos maiores fossem progressivamente
selecionados, procriavam, e assim por diante (mas nunca é demais lembrar que pessoas que
tem uma grande lesão muito cedo no lóbulo esquerdo podem desenvolver linguagem... e isto
escapa aos argumentos inatistas modulares genéticos, como este). Qualquer coisa que não
226
existe no programa, lembra Piaget (1987), tornou-se tal por auto-organização e auto-
regulação. Traduzindo: para Piaget (1987) tem de haver no processo de evolução da vida
reunião de características ou auto-organização sem a ajuda de programas genéticos, senão
teríamos que ser forçados a admitir que tudo o que existe no código genético do homem
estava presente nos primeiros vírus e protozoários:
“Se estas [as bases da lógica e da matemática] fossem pré-formadas, isto significaria,
pois, que o bebê, ao nascer, já possuiria virtualmente tudo o que Galois, Cantor, Hilbert,
Bourbaki ou MacLane puderam atualizar depois. E como o homenzinho é ele próprio
uma resultante, seria preciso remontar aos protozoários e aos vírus para localizar o foco
do “conjunto dos possíveis” ” (p.53-54)
São argumentos poderosos contra o tipo de inatismo que Fodor (1975) sustenta, com
base no código genético. Mas não podemos esquecer que existem outras teses metafísicas, e
os argumentos de Piaget e de Putnam em nenhum ponto atingem a tese metafísica inatista de
Leibniz, por exemplo. Arrisco-me a dizer que este tipo de argumento enterra o inatismo
radical com base no código genético. Agora temos que sintetizar, o que há de comum entre a
posição de Piaget e de Chomsky? Poderíamos reformular a pergunta da seguinte maneira: o
que há de comum entre a tendência mais inatista e a tendência mais construtivista do
Cognitivismo? Deixemos a resposta com Piaget (1987b):
“Em primeiro lugar, estou de acordo com ele, no que me parece ser a principal contribui-
ção de Chomsky à Psicologia, quando diz que a linguagem é um produto da inteligência
ou da razão e não de uma aprendizagem, no sentido behaviorista do termo. Depois, estou
de acordo com ele quanto ao fato de esta origem racional da linguagem supor a existência
de um núcleo fixo necessário para a elaboração de todas as línguas e supondo, por exem-
plo, a relação de sujeito a predicado ou então a capacidade de construir relações. Em ter-
ceiro lugar, estou naturalmente de acordo com ele no que diz respeito ao construtivismo
parcial dos seus trabalhos, quer dizer, as gramáticas transformacionais.” (p. 93)
Como sintetiza Cellérier (1987), Chomsky e Piaget admitem ambos a existência de um
estado inicial, geneticamente determinado, não vazio, seguido de uma seqüência de estados
intermediários e de um estado final estacionário, universal.
227
“Tanto um como o outro admitem igualmente que uma parte do conteúdo destes estágios
não é inata, mas adquirida, isto é “aprendida” num ambiente externo caracterizado por
“problemas”. A questão clássica é saber que parte deste conteúdo é inata e que parte é
adquirida”. (p. 114)
Assim, podemos concluir que todo Racionalismo implica alguma espécie de inatismo,
ao menos de estruturas potenciais, e que o construtivismo, como forma particular de
racionalismo, também o implica. Não há incompatibilidade, muito pelo contrário, entre estes
três conceitos. Inatismo e construtivismo são as duas faces da mesma moeda racionalista.
Gardner (1996) resume muito bem tudo o que nos interessa sobre a questão abordada
neste subitem, quando afirma que o consenso, apesar das diferentes ênfases, é quanto à
inadequação do empirismo como explicação para a origem do conhecimento. Afirma ele:
“A primazia do sujeito conhecedor – aquele que só adquire conhecimento em função de
estruturação cognitiva prévia (senão de idéias inatas!) – é agora amplamente aceita. Neste
sentido pelo menos, a filosofia tende para uma posição racionalista, sustentada por
trabalho empírico em várias disciplinas.” (1996, p. 99)
4.3.2 Cognitivismo e Racionalismo Crítico
Por tudo o que, exaustivamente, vimos até aqui, podemos concluir que a teoria em
Filosofia da Ciência que melhor oferece suporte ao Cognitivismo e a Psicologia Cognitiva é o
Racionalismo Crítico. Este argumento, já difusamente sustentado nesta tese, será no entanto
aqui, sumarizado, através de duas linhas de argumentação. A primeira, versa sobre a
adequação da posição popperiana tanto ao inatismo quanto ao construtivismo característicos
do Cognitivismo. A segunda, versa sobre a adequação metodológica do Racionalismo Crítico
ao objeto que o Cognitivismo pretende estudar.
4.3.2.1 Racionalismo Crítico e a questão Inatismo-Construtivismo
A disputa entre a ênfase inatista e a construtivista no seio do Cognitivismo, embora
tenha em grande parte se dissolvido nos últimos anos em virtude dos próprios resultados a que
chegou a Psicologia Cognitiva, poderia ter encontrado síntese satisfatória como pressuposto
de base se houvesse uma maior familiaridade por parte de seus principais atores com as teses
epistemológicas de Karl Popper. Para este, uma certa forma de inatismo não só é compatível
228
com o construtivismo, como é, na verdade, necessária para que possamos falar de processos
de construção de conhecimento. Veja essa passagem de sua obra Conhecimento Objetivo:
“A meta da ciência é o aumento da similitude. Como tenho argumentado a teoria da tabu-
la rasa é absurda: em cada etapa da evolução da vida e do desenvolvimento de um orga-
nismo temos que admitir a existência de algum conhecimento na forma de disposições e
expectativas. Concordantemente o crescimento de todo conhecimento consiste na modifi-
cação de conhecimento prévio – ou sua alteração, ou sua rejeição em ampla escala. O
conhecimento nunca começa do nada, mas sempre de algum conhecimento de base –
conhecimento que no momento é tido como certo – juntamente com algumas dificulda-
des, alguns problemas. Estes, via de regra, surgem do choque entre, de um lado, expecta-
tivas inerentes a nosso conhecimento de base e, por outro lado, algumas novas descober-
tas, tais como nossas obsevações ou alguma hipótese sugeridas por elas.” (1975b, p.75)
A citação é auto-explicativa. Esta posição tem o mérito de integrar as teses básicas de
Chomsky e Piaget sobre a questão, superando inclusive algumas críticas sobre ambas,
particularmente a de Fodor (1987) a Piaget. O processo de construção do conhecimento deve
partir de uma base inata, mas ela não está construída na forma de idéias ou estruturas prontas,
mas sim de expectativas inconscientes do organismo. Se não partimos de qualquer disposição
inata, não há nada para assimilar ou acomodar. Popper chega a expor essa posição na forma
de um teorema:
“Todo conhecimento adquirido, todo aprendizado, consiste de modificação
(possivelmente de rejeição) de alguma forma de conhecimento, ou disposição, que existia
previamente, e em última instância de disposições inatas.” (1975b, p. 76)
Como já afirmado nesta tese, pode se encarar, segundo afirmou o próprio Popper
(1977), o Racionalismo Crítico como uma interpretação realista da filosofia kantiana. Aqui
talvez tenha sido dada a última peça neste quebra cabeça particular, relembrando o papel do
inatismo na filosofia popperiana. Seu papel é o de tendências, disposições, expectativas muito
básicas de organismos, que serão o pano de fundo original contra o qual se destacarão figuras,
os esquemas originais, provavelmente inconscientes, que, ao não conseguirem assimilar os
primeiros estímulos vindos do mundo a eles, levarão o sujeito a promover seu primeiro
processo de acomodação.
229
4.3.2.2 O Racionalismo Crítico implícito do Cognitivismo
Apesar de toda a identidade entre as teses filosóficas trazidas por Popper sobre o
construtivismo realista (Piaget), o caráter antecipatório da percepção (Bruner), a observação
que se faz contra ou a favor de uma teoria (Neisser), a rejeição da tabula rasa (Chomsky), o
interacionismo (Sperry), o caráter de imprevisibilidade que a cognição trás ao sujeito
(Neisser) entre outras, a mais surpreendente das inconsciências do Cognitivismo com o
caráter de precursor que Popper assume em relação a este movimento é seu silêncio em
relação a seu modelo de método geral científico. É evidente que as idéias de Popper chegaram
por ecos de seus discípulos e ex-discípulos, como vemos através de citações destes últimos ou
da exposição de suas idéias. Isso no entanto não aconteceu só no Cognitivismo. Um dos
filósofos mais importantes do século XX, Popper tamm disputa o posto (para o qual Leibniz
e Schopenhauer são dois fortes concorrentes) de grande filósofo cujas idéias originais menos
lhe são atribuídas. Ele tinha consciência dessa negligência, como se lê na primeira página do
primeiro capítulo de Conhecimento Objetivo:
“Poucos filósofos têm-se dado o incômodo de estudar – ou ao menos de criticar – minhas
concepções de tal problema [a indução], ou de tomar conhecimento do fato de haver eu
feito algum trabalho a esse respeito. Muitos livros publicados bem recentemente não
fazem a menor referência a minha obra, embora muitos deles dêem mostras de terem sido
influenciados por alguns ecos bem indiretos de minhas idéias. E as obras que tomam
conhecimento de minhas idéias costumam atribuir-me opiniões que nunca sustentei, ou
criticar-me com base em evidentes incompreensões ou interpretações errôneas, ou com
argumentos inválidos” (1975b p. 13)
Com algumas passagens, quero aqui ilustrar como essa influência chegou ainda que
indiretamente, apesar de que, como já apresentei aqui, nos últimos anos ela estar começando a
se tornar explícita e reconhecida (Sperry, 1993; Eysenck & Keane, 1994; Beck, 2000, Fetzer,
2000). Afirmava Gardner (1996, [1985]) em sua “Nova Ciência da Mente”:
“Mas outros fatores também haviam impedido a fundação propriamente dita de uma
ciência da cognição. Algumas escolas filosóficas – o positivismo, o fisicalismo e o
verificacionismo – que evitavam entidades (como conceitos ou idéias) que não podiam
ser observadas prontamente ou medidas com segurança, ajustavam-se muito bem ao
Behaviorismo. Havia também a intoxicação com a psicanálise. (....) muitos estudiosos (...)
230
ressentiam-se profundamente da pretensão de um campo que não se mostrava suscetível
de refutação.” (p. 30)
Além da evidente falta de familiaridade com a história da Filosofia Contemporânea
manifestada nesta passagem, nota-se a presença de Popper duas vezes em um pequeno
parágrafo. Na primeira pela alusão (completada depois) à decadência da influência do
Positivismo Lógico e suas teses fisicalistas e verificacionistas na Filosofia da Ciência, que ele
não sabe, se deve ao impulso crítico original da obra de Popper. Na segunda, através da
expressão da tese da irrefutabilidade da Psicanálise como a característica que lhe nega o
estatuto de Ciência. Podemos ver também em outro historiador do Cognitivismo, Bernard
Baars, a mesma inconsciência, quando afirma que a metateoria cognitivista poderia ser
resumida a um encorajamento a psicólogos experimentais para começar suas pesquisas por
“fazer teorias, relativamente livres de restrições filosóficas prévias” (1986, p.144). Ele se
refere às restrições anti-teóricas e indutivistas do Positivismo Lógico que haviam perdido o
debate filosófico com Popper, que defende que o princípio da investigação científica é a
elaboração criativa de uma teoria que tem conseqüências empiricamente falsificáveis. Um
pouco adiante, o mesmo Baars (1986) declara:
“Facts alone do not make a science; indeed, thoughtless fact-gathering can interfere with
the work of science. It has now become commonplace in philosophy of science to say the
“the facts” cannot even be perceived as facts without some theoretical framework,
explicit or not (e.g., Kuhn, 1962, 1970; Lakatos & Musgrave, 1970)” (p. 146)
É lugar comum porque assim as idéias de Popper, sobre as quais os três autores citados
basearam grande parte de suas obras, o fizeram. Veja como Piatelli-Palmarini (1987) descreve
o que torna o programa cognitivo e suas teorias, científicas:
“Os modelos abstratos aos quais chegamos terão, para cada uma destas estruturas
[cognitivas], valor científico na medida em que serão suficientemente gerais para
apreenderem verdadeiramente as características universais do sujeito e suficientemente
precisos para serem operacionais, logo, falsificáveis pela experiência.” (p.34)
É o que também afirma Chomsky (1987) ao justificar porque suas teses inatistas são
científicas e não metafísicas. Elas são científicas porque são refutáveis, qualquer língua en-
contrada que não possuísse a estrutura profunda por ele predita, falsificaria a tese de que ela é
231
inata. Ao responder ingênua objeção de Guy Cellérier que afirmava que ele não poderia
demonstrar apesar disso que o caráter universal de uma propriedade lingüística era inata,
Chomsky responde ironicamente: “Não pode provar-se por demonstração que uma proprieda-
de é inata, porque fazemos ciência e não matemática.” (p. 128). Mais à frente ele indica que a
universalidade de uma propriedade é condição necessária para o inatismo, porém, não sufici-
ente. Mas, se encontramos um ser humano que não possui a propriedade, isto é suficiente para
refutar a hipótese de que ela é inata. (p. 129) Os trechos acima passariam perfeitamente por
trechos de autoria de Popper, mas não há referência direta por parte dos autores citados. É
inútil fazer deste trabalho um amontoado de “fatos irrefletidos” (Baars, 1986), citações, idéias
contrabandeadas ou influenciadas, que ademais já foram pontuadas até aqui. Muitas outras
citações poderiam aqui ser evocadas, mas o que importa agora, uma vez que está suficiente-
mente justificada uma das três principais teses deste trabalho, é concluir este argumento e
explicitar de que forma o método hipotético-dedutivo propiciou a Psicologia Cognitiva.
4.3.2.3 Racionalismo Crítico e o método geral de investigação cognitiva
Como afirmou Baars (1986), enquanto o modelo de ciência dominante da Psicologia
impedia a geração de teorias prévias à observação direta de seu objeto de estudo, qualquer
investigação científica da cognição era considerado impossível. Mas uma vez que Popper
reintroduziu na Filosofia a tese de que a ciência parte de hipóteses formuladas previamente a
observações, e mesmo que é impossível fazer uma observação que não seja contra ou a favor
de uma teoria, a “liberdade de restrições filosóficas” para teorizar foi alcançada. Para Popper,
o método científico tem quatro estágios básicos. O primeiro é a percepção de um problema
científico, através de uma observação que frustrou alguma expectativa que tínhamos acerca do
funcionamento de algo do mundo. A partir daí, podemos criar conjecturas ousadas, hipóteses,
que tenham conseqüências empíricas observáveis, o que constitui a segunda fase do método
científico. Aqui, formulamos hipóteses, e portanto é aqui que a Psicologia Cognitiva está
liberada para começar seu trabalho, hipotetizando teorias sobre o comportamento de proces-
sos não observáveis diretamente, mas observáveis através de suas conseqüências empíricas
previsíveis. Na terceira etapa, nossos modelos e hipóteses sobre o real devem ser formulados
em termos de uma hipótese experimental, a qual, sob condições controladas, será submetida
ao teste do experimento. O experimento é o tribunal empírico-matemático da ciência moder-
na, e é quem julgará, na quarta etapa, se as predições observáveis que nosso modelo ou hipó-
tese efetuou serão observadas ou não. No primeiro caso, nosso modelo ou hipótese sobre a
vida mental estará provisoriamente corroborada, tendo atingido o status de lei científica (até
232
ser falsificada por observações confiáveis); no segundo caso, nosso modelo ou hipótese estará
falsificado, e também fará parte do conhecimento científico, como erro laboriosamente
eliminado. Os métodos específicos que a Psicologia Cognitiva usa para refinar cada uma
destas etapas da investigação científica se encontram descritos no item 4.4 deste capítulo.
4.3.3 A explicação psicológica no Cognitivismo
Podemos concluir portanto, que ao aderir ao método hipotético dedutivo, a Psicologia
Cognitiva tenha como meta o estabelecimento de leis e teorias gerais sobre o processamento
humano de informações. Ou seja, o Cognitivismo aspira à obtenção de leis da cognição, sob a
forma de explicações dedutivo-nomológicas. Para cada comportamento humano (a emissão de
um output), o explanandum, devem haver leis gerais de funcionamento da cognição (as
estruturas cognitivas, os programas), que em conjunto com as contingências das condições
particulares (o input, a informação de entrada, as condições ambientais que antecederam o
comportamento), constituem o explanans.
Uma acusação comum à possibilidade e a validade de tais leis, acusação que paralisou
a Psicologia durante a primeira metade do século, é a de que a cognição, o que quer que ela
fosse, não era diretamente observável, portanto, não se poderia chegar a estas leis, e mesmo
que alguma fosse proposta, não havia meios para provar que eram verdadeiras. Recapitulando
o que foi visto até agora, sabemos que podemos afirmar que, no mínimo em algum de seus
aspectos, a cognição é manipulação formal de representações. Com o advento da teoria da
informação, sabemos que podemos, se soubermos quais são as representações que entram e as
representações que saem, deduzir o sistema de regras que as manipula. Quanto as duas outras
partes da acusação, é preciso enfatizar aqui que tal limitação é comum a todas as ciências.
Como lembra Chomsky (1971), os mecanicistas cartesianos resistiram fortemente à idéia de
gravidade simplesmente porque uma força de atração à distância, inobservável a não ser
através de seus efeitos, era inconcebível nos parâmetros da física cartesiana. O próprio
Newton resistiu muito à idéia (Chomsky, 1971) e procurou uma solução compatível com a
mecânica cartesiana antes de resolver publicar os Principia.
Chomsky (1981), desenvolvendo seus argumentos, demonstra que a questão da
“realidade psicológica” dos fenômenos psicológicos descritos pela Psicologia Cognitiva é um
contra-senso. Quando astrofísicos tentam determinar a natureza das reações termonucleares
presentes nas camadas mais internas do sol, a técnica disponível de observação permite aos
astrofísicos estudar somente a luz emitida nas camadas externas do sol. Com base nesta
informação, eles constroem uma teoria das reações termonucleares desconhecidas, e esta
233
teoria oferece uma interpretação coerente dos dados colhidos e prevê adequadamente o
comportamento das coletas de dados futuras. Mas mesmo diante disso, sempre haverá alguém
que ainda não compreendeu o espírito hipotético-dedutivo da ciência moderna e que
perguntará algo do tipo: “Esta teoria é explicativa dos fenômenos, mas como você pode
provar que as construções de sua teoria possuem realidade física?” (ou seja, se são
verdadeiras em sentido metafísico). A resposta é simples: não pode. A Ciência Moderna é um
processo popperiano de conjecturas e refutações. A conjectura sobrevivente da vez sempre
será o que é, uma conjectura. Porém, com maior poder explicativo do que as outras que já
foram abandonadas. Popper (1994) e Miller (1994) diriam: com maior verossimilhança que as
abandonadas. Vaihinger (1924) e Laudan (1990) diriam: ficções úteis com maior poder
pragmático. Mas todos eles concordariam em linhas gerais com Chomsky (1981) que:
“Não faz sentido procurarmos outro tipo de justificação para atribuir realidade física aos
constructos da teoria; é suficiente perguntarmos se eles são adequados para explicar os
dados e se estão de acordo com a essência da ciência natural, tal como é atualmente
compreendida. Não pode haver nenhum outro fundamento para atribuirmos realidade
física às construções do cientista.” (p.144)
O problema que está colocado na argumentação acima atinge indiscriminadamente a
Astrofísica, a Física, a Química, a Biologia e a Psicologia. Para exemplificar isto, voltemos
agora ao exemplo dado por Hempel (1970) de explicação dedutivo-nomológica citado no
capítulo três (subitem 3.2.4.1), que é modelar do tipo de explicação que encontramos na
Física, a disciplina universal dos Positivistas e matriz da Ciência Moderna. O evento a ser
explicado (explanandum) é o fato de que a altura da coluna de mercúrio em um barômetro de
Torricelli diminui quando a altitude aumenta:
“a) Em qualquer local, a pressão exercida na sua base pela coluna de mercúrio no tubo de
Torricelli é igual à pressão exercida na superfície livre do mercúrio existente na cuba pela
coluna de ar acima dela.
b) As pressões exercidas pelas colunas de mercúrio e de ar são proporcionais aos seus
pesos; e quanto menor a coluna menor o seu peso.
c) A coluna de ar acima da cuba aberta é certamente menor quando o aparelho está no
alto da montanha do que quando está em baixo.
d) (Portanto), a coluna de mercúrio no tubo é certamente menor quando o aparelho está
no alto da montanha do que quando está em baixo.” (1970, p.68)
234
No exemplo acima, a afirmação expressa em d decorre dedutivamente dos enunciados
explanatórios. Assim, o argumento dedutivo depende da validade das premissas, as leis
universais enunciadas em a e b. Na lei b, a pressão é definida em função do peso, e como
sabemos, peso é definido em função da gravidade, que como sabemos, é um conceito
inobservável e que postula ação à distância. Não é demais lembrar que, além disso, na própria
Física não existem ainda teorias-ponte que reduzam as propriedades dos fenômenos do nível
clássico às propriedades dos fenômenos quânticos, embora a maioria dos físicos acredite que
um dia isto será possível. Qual é a razão, além da capacidade preditiva, para aceitar como
dignas do status de científicas explicações cujo conceito irredutível é a gravidade e rejeitar
explicações que utilizam o conceito irredutível de consciência?
A ciência contemporânea trabalha predominantemente com construções hipotéticas
que são tomadas como reais simplesmente por seu poder explicativo. Big Bang, gravidade,
quarqs, fótons, léptons, energia, massa, órbita elétrica, moléculas, vida, teoria da evolução,
finalismo biológico, e, porque não? Cognição.
Pelo argumento exposto acima defendo que não é aceitável, não é concebível, que o
fenômeno do universo a partir do qual é possível falar de dados, manipular representações,
construir sistemas delas (teorias), e inferir seu significado, seja proibido de obter seu lugar de
construção hipotética irredutível legítima na Ciência Moderna. Estou falando aqui da
Consciência, a partir da qual a milhares de anos seres humanos, que são o próprio objeto de
estudo da Psicologia, fazem inferências válidas (em termos de desejos e crenças) acerca do
comportamento de outros seres humanos. Esta atitude dogmática é de uma arrogância sem
paralelos ao desconsiderar o conhecimento ordinário que todos nós temos dos mais básicos
processos psicológicos, é motivada religiosamente (a religião materialista), é baseada numa
concepção errônea do conhecimento científico (o Positivismo Lógico), é incompatível com o
espírito de liberdade que caracteriza o desenvolvimento científico desde a Revolução
Científica e, finalmente, de uma ingenuidade metafísica e filosófica inacreditável.
Noam Chomsky (1981) no clássico “Regras e Representações”, propôs a teoria geral
da explicação cognitiva mais influente do Cognitivismo. Para Chomsky, a explicação
completa de um órgão mental, de uma aptidão cognitiva específica (raciocínio espacial,
linguagem, etc.), deveria se dar com as mesmas categorias que envolvem a explicação de um
órgão físico. Diz ele:
235
“Venho propondo que estudemos a mente – isto é, os princípios subjacentes dos nossos
pensamentos e crenças, nossa percepção e imaginação, à organização de nossas ações,
etc. – de forma análoga à maneira como estudamos o corpo. Podemos conceber a mente
como um sistema de órgãos mentais, um dos quais é a faculdade lingüística. Cada um
desses órgãos tem sua estrutura e função específicas, determinadas em linhas gerais por
nossa base genética, interagindo de formas que também são, em grande parte,
biologicamente determinadas, vindo à constituir a base de nossa vida mental. A interação
com o meio ambiente físico e social refina e articula esses sistemas à medida que a mente
amadurece na infância e – sob aspectos menos fundamentais – no decorrer de toda a
existência.” (1981, p.180)
Assim, existem cinco tipos de perguntas que nos fazemos a respeito de um órgão
biológico, que também deveríamos fazer a respeito dos órgãos mentais, já que a mente é um
fenômeno biológico:
A) Qual é a sua finalidade? (para não confundirmos os dois significados da palavra
função, a que finalidade biológica serve aquele órgão mental)
B) Como é a sua estrutura? (como é organizado e funciona, no sentido de operação
lógica)
C) Qual a sua base física? (qual é e como funciona a base cerebral que executa as
funções)
D) Como é o seu desenvolvimento no indivíduo? (como é o processo de
desenvolvimento dos órgãos mentais e dos órgãos físicos que os executam)
E) Como é o seu desenvolvimento evolutivo na espécie? (como o ser humano
desenvolveu evolutivamente estas que hoje são aptidões inatas)
Como exemplifica Chomsky (1981), podemos perguntar (a) o que o aparelho visual
faz, qual o seu propósito; (b) como o aparelho visual faz, como é organizado e funciona; (c) do
que o aparelho visual é feito, quais os mecanismos físicos que realizam b; (d) como o aparelho
visual se desenvolve no indivíduo, como predisposição inata e ambiente interagem para a
maturação do órgão (questão a ser levantada no nível b e no nível c – nível abstrato ou
cerebral); e (e) como a espécie adquiriu o aparelho visual durante a evolução.
Assim, transportando a questão para um processo cognitivo, por exemplo (preferido de
Chomsky) a linguagem, podemos estudá-la nestes níveis: (a) Qual o propósito da linguagem?
(esta é uma pergunta de significado questionável, como observa aqui Chomsky. Veremos
236
adiante porquê); (b) Como a linguagem é organizada e funciona no sujeito maturado?; (c)
Qual é a estrutura cerebral que suporta os processos lingüísticos e como ela funciona?; (d)
Como se desenvolve a linguagem no indivíduo, como predisposição inata e ambiente
interagem para o desenvolvimento da linguagem (questão a ser levantada no nível b e no nível
c – nível abstrato ou cerebral); e (e) como a espécie adquiriu a linguagem durante a evolução.
Veja este exemplo de Pinker (2004), que adota declaradamente esta posição de Chomsky:
“Por exemplo, a linguagem baseia-se em uma gramática combinatória estruturada para
comunicar um número ilimitado de pensamentos. É utilizada pelas pessoas em tempo real
por meio de uma interação entre pesquisa na memória e aplicação de regras. É
implementada em uma rede de regiões no centro do hemisfério cerebral esquerdo que tem
que coordenar memória, planejamento, significado das palavras e gramática. Desenvolve-
se nos três primeiros anos de vida em uma seqüência que vai de balbuciar a pronunciar
palavras e depois combinações de palavras, incluindo erros aos quais podem ter sido
aplicadas regras em excesso. Evoluiu por modificações do trato vocal e de circuitos
cerebrais que tinham outros usos em primatas primitivos, pois as modificações
permitiram a nossos ancestrais prosperar em um estilo de vida marcado pela interconexão
social e pela riqueza de conhecimentos. Nenhum desses níveis pode ser substituído por
qualquer um dos outros, mas nenhum deles pode ser plenamente compreendido
isoladamente dos demais.” (2004, p.106-107)
O nível de explicação (a), o da finalidade, é o mais obscuro de todos. O que significa
dizer que x é a finalidade de y? É importante destacar que o primeiro problema com relação a
este tipo de questão já foi eliminado aqui quando a palavra função foi substituída por
finalidade. Geralmente a palavra função é usada em três sentidos distintos, e como se não
bastasse o caos que isto provoca na linguagem ordinária, também o provoca em linguagem
científica, que usa a palavra indiscriminadamente nos sentidos de finalidade, operação, e
relação matemática. Como aponta Fodor (1968), o modo como o conceito de função
(finalidade) é usado na Biologia, é muito problemática. Estados e estruturas biológicas geram
conseqüências que tem muito pouco a ver com aquilo que os biólogos (particularmente os que
tentam explicar a evolução) desejam identificar como sendo suas funções biológicas. A
clorofila é uma condição necessária para a ocorrência da fotossíntese em plantas, mas não
podemos afirmar que a função (finalidade) da clorofila é realizar a fotossíntese, pois ela
também é condição necessária para tornar a planta verde (e com certo gosto, certo cheiro,
etc.). Como definir portanto que a função da clorofila é realizar a fotossíntese e não tornar a
237
planta verde? Qual a vantagem evolutiva que determinou tal fixação, a capacidade de realizar
fotossíntese ou a cor que protegia de algum tipo de radiação primitiva? Pode ser que
substâncias capazes de realizar fotossíntese e que deixassem com coloração azul ou vermelha
tenham existido, e perdido o processo evolutivo por conta da radiação.
Fodor (1968) amplia esta análise para realizar uma rejeição completa de todo
programa da IA forte. Ao tentar explicar o comportamento de um organismo por meio de
simulação, teríamos que construir um computador onde seus componentes fizessem o papel
funcional dos neurônios. Mas para isso os componentes precisariam ser neurônios, caso
contrário, nunca poderíamos afirmar que todo efeito de um neurônio é efeito do componente.
Não teríamos nunca como dizer definitivamente de um computador que ele é funcionalmente
equivalente a um organismo, pois nem todo efeito de um organismo tem equivalente
funcional num computador. A simulação computadorizada portanto, só pode ter um papel
metodológico a cumprir, como veremos no próximo item.
Assim, retornando ao nosso problema, como afirma Chomsky (1981), a questão da
finalidade só se reveste de importância, apesar de problemática, se considerada em relação ao
tipo de questão (e). Ou seja, a finalidade de um órgão mental pensada não em termos de um
indivíduo, mas de adaptação da espécie. Proponho aqui que, como podemos assistir hoje, o
campo das hipóteses (a) e explicações (e), forma o campo da abordagem evolucionista da
Psicologia Cognitiva. Na verdade é um campo de questões de pouco interesse prático, e de
pouca influência na configuração atual dos problemas, a não ser para apresentar explicações
plausíveis (ainda assim hipotéticas) de porque a herança genética é como é.
O campo de problemas de tipo (b), é o campo da Psicologia Cognitiva tradicional. É a
explicação da estrutura e funcionamento dos processos cognitivos tais como eles se
apresentam agora, em indivíduos em estágios específicos. É um tipo de investigação
puramente formal, se refere à compreensão do programa, das estratégias que utilizamos para
resolver problemas, e o quanto delas é universal, e dentre estas, o quanto é inato, e o quanto é
contingente e podemos aprender. Neste campo inclui-se o campo da Cognição Social, pois
uma vez que esta é concebida em termos individuais, não requer um nível diferente de análise.
O campo de problemas de tipo (c), é o campo da Neuropsicologia Cognitiva, que
estuda as relações entre as estruturas cerebrais e as estruturas mentais, tentando estabelecer
relações de condicionalidade ou causalidade entre as duas.
Por fim, temos o campo de problemas de tipo (d), o da Psicologia do Desenvolvimen-
to, que envolve tanto o desenvolvimento neuropsicológico quanto o desenvolvimento pura-
mente cognitivo. Uma Psicologia Cognitiva completa, é o conjunto destas quatro disciplinas.
238
Propõe-se portanto nesta tese que, de acordo com tudo o que vimos até aqui, uma
explicação dedutivo-nomológica completa do comportamento humano para o Cognitivismo
deveria em tese ser uma explicação da reação R (explanandum) em função do estado mental
completo M e da ocorrência do estímulo E (explanans). Assim, o modelo de explicação
cognitiva implicitamente proposto pelo Cognitivismo seria:
Dadas as leis universais L:
L1) o conjunto das leis sobre a motivação humana,
L2) o conjunto das leis sobre a aquisição de crenças,
L3) o conjunto das leis sobre as estruturas cognitivas universais,
L4) o conjunto das leis sobre as funções mentais do cérebro,
L5) o conjunto das leis sobre o desenvolvimento cerebral,
L6) o conjunto das leis sobre o desenvolvimento cognitivo,
e os fatos contingentes:
C1) o conjunto das metas deste indivíduo,
C2) o conjunto das crenças deste indivíduo,
C3) o conjunto estruturas cognitivas efetivas deste indivíduo,
C4) o conjunto das funções mentais do cérebro deste indivíduo,
C) as condições ambientais de estímulo E,
(F1 F2 F3 F4 F5 F6 C1 C2 C3 C4 C, constituem o explanans)
__________________________________________________________________
causou-se o comportamento R (explanandum).
Desde já, impõem-se várias questões. Primeira: é possível um empreendimento cientí-
fico desta magnitude e desta complexidade? Segunda: todo o conjunto de fatores que afetam a
determinação do comportamento humano estão abrangidos por este modelo de explicação?
Terceira: a explicação dedutivo-nomológica é adequada à verdadeira cognição humana?
Uma avaliação sobre todas estas perguntas será oferecida no fim do quinto capítulo,
não antes de examinarmos os recursos metodológicos desenvolvidos pela Psicologia Cogniti-
va para atacar esta gama de questões, no próximo item. Mas antes de passarmos para o último
subitem, cabe lembrar que uma resposta tradicional possível à terceira pergunta é a de que a
explicação adequada à Psicologia é a probabilística, não a dedutivo-nomológica, uma vez que
neste segundo tipo de explicação científica, o explanans implica o explanandum, não com cer-
239
teza dedutiva, mas somente com certeza aproximada ou alta probabilidade. No entanto, adian-
ta-se que será defendida no fim do capítulo cinco a tese de que ambas as espécies de explica-
ções oferecidas são inadequadas, não por questões epistemológicas, mas por questões ontoló-
gicas., sendo necessária para a Psicologia a postulação de um terceiro tipo de explicação.
4.3.4 A circularidade da investigação científica cognitiva
Concluindo este item, abordaremos um problema que é exclusivo da Psicologia
Cognitiva dentro do espectro das ciências: a questão de sua circularidade, pois estuda o
processo de obtenção de conhecimento mas tem que partir de pressupostos sobre ele. Estaria,
em virtude disto, a Psicologia Cognitiva sob uma espécie de paradoxo pós-moderno? Ou
ainda sob o risco positivista de um novo psicologismo? A resposta a ambas as questões é não.
Vamos substanciá-la.
A questão central da obra de Jean Piaget, assim como de toda a pesquisa em
Psicologia Cognitiva, é o problema do conhecimento. O filósofo da Psicologia Sigmund Koch
(1985) chegou a propor uma subdisciplina de intersecção entre a Psicologia Cognitiva, a
Epistemologia e a Psicologia Clínica, que ele denominou “epistemopatologia”, ou seja, o
estudo das condições psicológicas que interferem no processo de obtenção do conhecimento.
O trabalho de Piaget, muito menos peculiar e de muito maior alcance, é a primeira expressão
cognitivista de um projeto ambicioso e arriscado (a cair no psicologismo): investigar
cientificamente as principais alegações das epistemologias de origem filosófica:
“Em resumo, todas as epistemologias, mesmo anti-empiristas, suscitam questões de fato e
adotam assim posições psicológicas implícitas, mas sem verificação efetiva, enquanto
esta se impõe com método certo.” (Piaget, 1973b, p. 12)
Como questões de validade do conhecimento devem estar implícitas nos procedimen-
tos supostamente objetivos que nós usamos para julgar as hipóteses experimentais, ou falando
claramente, como antes de dizer que a nossa teoria é científica ou não temos que ter assumido
uma tese particular sobre o que é conhecimento científico, a posição de Piaget e das Ciências
Cognitivas como um todo pode parecer um grande paradoxo. De fato, muitos lançaram sobre
Piaget a acusação de que a Epistemologia Genética era uma nova forma de psicologismo.
Neste caso, o psicologismo não estaria comprometido com uma ontologia materialista,
mas se resumiria a pretensão de fundar uma “epistemologia científica”, cujas teorias seriam
fruto de investigações usando o método científico. Este termo inclusive (epistemologia
240
científica), além de muito infeliz, é usado por Piaget em toda a extensão de sua longa obra
psicológica e parece denotar um esquecimento do fato de que qualquer “científica”, pressupõe
uma epistemologia que a define. Como então essa epistemologia poderia ser julgada pela
ciência que retira sua validade dela? Em outro texto Piaget procura esclarecer este problema:
“Quanto à epistemologia ou teoria do conhecimento científico, ela nos parece, no mo-
mento, em vias de dissociação em relação à metafísica, e isso pelo mesmo motivo que a
psicologia, da qual acabamos de tratar. Os sintomas desta dissociação são numerosos e in-
dicam todos, mais ou menos claramente, o desejo experimentado pelos homens de ciência
de encarregar a si mesmos do estudo sistemático dos processos de investigação e de co-
nhecimento, inerentes ao pensamento científico, sem renunciar à tarefa essencial, deixan-
do-a confundir-se com a da teoria filosófica do conhecimento em geral.” (1973b, p.102)
Como já vimos nesta tese, a tentativa de derivar a Epistemologia de uma ciência
particular, no caso a Psicologia, já havia sido refutada por Husserl, que diga-se de passagem
jamais conheceu Piaget ou muito menos a Ciência Cognitiva. Ele argumenta que as leis
lógicas que fundamentam o conhecimento científico são universais e necessárias, portanto,
não podem depender ou serem derivadas de leis psicológicas que, sendo generalizações de
eventos empíricos, não são necessárias de forma alguma. Portanto uma ciência empírica
baseada em “fatos”, que em sua constituição já toma como premissa a lógica – necessária para
a formulação de suas próprias leis – não pode servir de fundamentação para essa mesma
lógica, pois esta última sim, é ciência necessária e universal. Mas será que o que Piaget queria
era o mesmo que os antigos psicologistas fisiologistas? Ele garante que não. Piaget (1973b),
oferece uma resposta precisa a estas críticas, que ajuda a fundamentar a resposta ao problema
que, de fato, também se coloca à Psicologia Cognitiva como um todo:
“Epistemologia é a teoria do conhecimento válida e, mesmo que esse conhecimento não
seja jamais um estado e constitua sempre um processo, esse processo é essencialmente a
passagem de uma validade menor para uma validade superior. Resultado disso é que a
epistemologia é necessariamente de natureza interdisciplinar, uma vez que tal processo
suscita, ao mesmo tempo, questões de fato e de validade. Se se tratasse apenas de
validade, a epistemologia se confundiria com a lógica: o problema, entretanto, não é
puramente formal, mas chega a determinar como o conhecimento atinge o real, portanto
quais as relações entre o sujeito e o objeto. Se se tratasse apenas de fatos, a epistemologia
241
se reduziria a uma psicologia das funções cognitivas e esta não é competente para
resolver as questões de validade.” (p. 14)
Piaget formula nesta passagem um argumento que é fundamental (embora não
conclusivo do problema da circularidade como veremos adiante) para a Epistemologia
Genética e para toda a Ciência Cognitiva, que na época em que este texto foi escrito, já estava
em pleno desenvolvimento. A Epistemologia, como disciplina filosófica, não somente suscita
questões de validade lógica, mas, também, suscita questões de natureza empiricamente
testável. Piaget não quer fundamentar a Lógica ou a Matemática com a Epistemologia
Genética, somente testar afirmações sobre o processo de obtenção de conhecimento humano
que suscitam questões de fato. No entanto, Piaget em outros momentos parece ratear em sua
formulação, quando levanta a tese da circularidade das ciências (Piaget, 1973), onde ao invés
da linearidade pensada na hierarquia das ciências por Comte, ele propõe um círculo de
derivações que seria matemática – física – biologia – psicologia – matemática. Porém,
continua a rejeitar a acusação de psicologismo, afirmando que “existe um paralelismo” entre o
estudo psicológico da formação dos conceitos lógico-matemáticos e a Lógica e Matemática, e
não uma relação de subordinação entre uma disciplina e outra. De resto, voltando ao projeto
de uma “Epistemologia Científica”, podemos afirmar que, fora o termo infeliz, o projeto de
submeter a testes empíricos antigas questões filosóficas é o projeto da Ciência Cognitiva
como um todo, que reconhece no entanto, domínio autônomo para questões de Lógica e
Matemática. Vejamos esta passagem de Gardner (1996):
“Esta ‘nova ciência’, portanto, remonta aos gregos no compromisso de seus membros de
explicar a natureza do conhecimento humano. Ao mesmo tempo, porém, ela é radical-
mente nova. Indo muito além da especulação de gabinete, os cientistas cognitivos estão
totalmente ligados ao uso de métodos empíricos para testar suas teorias e suas hipóteses,
para torná-las passíveis de refutação. Suas questões principais não são apenas uma reci-
clagem da agenda grega: novas disciplinas, como a inteligência artificial, surgiram; e no-
vas questões, como a possibilidade de máquinas construídas pelo homem pensarem, esti-
mulam a pesquisa. Além disso, os cientistas cognitivos adotam os mais recentes avanços
científicos e tecnológicos de várias disciplinas. De extrema importância para o seu empre-
endimento é o computador – aquela invenção de meados do século XX que promete um-
dar nossa concepção do mundo em que vivemos e a nossa visão da mente humana” (p.19)
242
Como vemos, o projeto das Ciências Cognitivas é fazer uso dos mais recentes e
sofisticados avanços tecnológicos disponíveis (hoje assistimos os imensos avanços em
neuropsicologia propiciados pela tomografia por emissão de posítrons) para tornar passíveis
de refutação através de testes empíricos antigas e novas teorias epistemológicas. Gardner
(1996) no entanto repreende os cognitivistas que acreditam que o surgimento da investigação
de orientação empírica torna a filosofia desnecessária. Ele acredita que o processo
estabelecido pelas Ciências Cognitivas para o ataque desta questão é dialético,
“...no qual os filósofos propõe certas questões, as disciplinas empíricas surgem para tentar
respondê-las, e então os filósofos cooperam com os cientistas empíricos na interpretação
dos resultados e na proposta de novas linhas de trabalho.” (p. 67)
Porém, temo que nenhuma destas posições resolva o grave problema que se coloca
quando queremos submeter assertivas epistemológicas a testes científicos. Mais uma vez,
repito: o problema é que pressupostos epistemológicos – e não somente lógico-matemáticos
mas também metafísicos – já estão assumidos sem teste quando vamos submeter assertivas
epistemológicas à teste. Vamos supor que alguém com certos pressupostos epistemológicos
resolva testar “cientificamente” assertivas epistemológicas diversas. Com base em seus
pressupostos, e em evidências empíricas que satisfazem seus pressupostos, ele declara
cientificamente eliminadas assertivas dos outros. Os outros não aceitarão essa “epistemologia
científica”, porque para eles ela está construída em cima de uma noção equivocada de ciência.
Assim, o problema é análogo ao da crítica externa e da crítica interna em Filosofia. O
único tipo de “epistemologia científica” válida seria aquela que sobrevivesse a uma tentativa
de refutação à la crítica interna. Ou seja, só seria válida aquela “epistemologia científica” que
colocasse em teste nos seus experimentos as teorias que usa como pressupostos em sua
própria Filosofia da Ciência. Caso elas passassem no teste, estariam provisoriamente
corroboradas por terem resistido às tentativas de falsificação. Mas e se fossem refutadas?
A hipotética refutação experimental de uma teoria epistemológica que fundamentou a
própria concepção de validade do método de investigação que a testou, geraria uma aporia
aparente. Se os pressupostos eram falsos, então o processo todo é incorreto, e este último não
pode fundamentar o resultado do teste que indica que os pressupostos são falsos. Mas quando
pensamos na possibilidade contrária, vemos que só há uma opção possível. Pois se os
pressupostos epistemológicos que foram testados fossem verdadeiros, então o processo de
investigação teria sido válido e não poderia ter gerado um resultado que afirma que os
243
pressupostos são falsos. Assim, esta última opção é impossível. Uma vez que partamos de
pressupostos epistemológicos falsos, para criar um método de pesquisa neles baseado que
tenha como objetivo testar estes mesmos pressupostos, nós não podemos com base no
resultado desta pesquisa concluir pela falsidade deles. Esta conclusão seria contraditória. Mas
podemos concluir pela não-validade do método, pois gera um resultado que é necessariamente
contraditório. Assim, só estaríamos refutando aqui métodos de investigação e validação, e
não os pressupostos epistemológicos que os fundamentaram.
Vou tentar dar um exemplo concreto deste problema tão espinhoso. Se partindo do
pressuposto de que todo conhecimento vem da experiência, eu aplico um método de investi-
gação baseado neste pressuposto que chegue a conclusão de que todo conhecimento é inato,
então: este método não é válido para afirmar que todo conhecimento é inato, teoria que per-
maneceria não validada, porém, a contradição gerada é suficiente, supondo que a aplicação do
método foi correta, para que o próprio método seja inválido, e portanto, descartado. Não seri-
am possíveis refutações conclusivas em relação aos pressupostos, só aos métodos de pesquisa.
Com este argumento, tento demonstrar que pressupostos epistemológicos de base,
como os da origem do conhecimento, regularidade do objeto, pressupostos lógicos, realismo e
representacionismo, estão acima da possibilidade de falsificação empírica de qualquer ordem.
Como uma comunicação lingüística de um resultado de pesquisa científica poderia comunicar
que as palavras não representam nada além de si mesmas? Como uma pesquisa baseada no
pressuposto de que o objeto que ela investiga é real poderia chegar à conclusão com base em
características observadas na pesquisa que ele não existe? Como uma pesquisa empírica
baseada em princípios lógicos poderia concluir que o princípio da não-contradição é
contingente? Estes princípios básicos ontológicos e epistemológicos, continuam pressupostos
infalsificáveis pela Ciência Cognitiva, que tem que partir deles para investigar aspectos bem
mais secundários, psicológicos, de como é possível para organismos como o nosso obter
conhecimento. Não pode atingir o nível das condições de possibilidade do conhecimento, que
são hipóteses superiores platônicas. Acredito que esta é uma solução adequada para o
problema da circularidade na Ciência Cognitiva, e faz parte das contribuições que este
trabalho tem esperança de estar dando ao desenvolvimento da Epistemologia da Psicologia.
De toda maneira, apesar do desenvolvimento original do argumento, acredito que era
isto que Popper (1975b) queria dizer nesta passagem onde avalia as pretensões do tipo de
empreendimento intelectual representado pela Epistemologia Genética:
244
“Nós, epistemologistas, podemos reivindicar precedência sobre os geneticistas:
investigações lógicas de questões de validez e de aproximação da verdade podem ser da
maior importância para investigações genéticas e históricas, ou mesmo psicológicas. São,
em qualquer caso, logicamente anteriores a este último tipo de questão, ainda que
investigações na história do conhecimento possam propor muitos problemas importantes
ao lógico da descoberta científica. Assim falo aqui de epistemologia evolucionária,
embora sustente que as idéias condutoras da Epistemologia são lógicas em vez de
factuais; apesar disto, todos os seus exemplos, e muitos de seus problemas, podem ser
sugeridos por estudos da gênese do conhecimento” (1975b, p. 73)
4.4 Psicologia Cognitiva e Metodologia
Neste item detalharemos as estratégias metodológicas especiais que a Psicologia
Cognitiva usa para investigar seu objeto, que são boa parte das inovações originais que deram
o grande impulso ao estudo científico da mente. No primeiro item abordaremos a natureza
integrativa do processo de pesquisa da Psicologia Cognitiva, que interage constantemente
com outras áreas da Ciência Cognitiva, em especial a Inteligência Artificial e a Neurociência.
No segundo, será apresentada uma nova forma de pensar a organização geral da sofisticada
rede de recursos técnicos e metodológicos de investigação da Psicologia Cognitiva, para além
da simples divisão tradicional entre métodos descritivos e métodos experimentais. A partir daí
serão apresentados, em seqüência lógica determinada pela nova interpretação do processo de-
fendida, os métodos específicos de pesquisa – assim como suas respectivas técnicas especí-
ficas – de acordo com os seus objetivos particulares na Psicologia Cognitiva. Serão, primeira-
mente os métodos descritivos: o auto-relato, a observação naturalista e o estudo de casos. Em
seguida, os que têm como objetivo final a elaboração de uma hipótese ou modelo: o estudo de
correlação e a simulação computadorizada. Por fim, os métodos experimentais: o experimento
laboratorial incluindo as pesquisas neuropsicológicas e ainda o quase-experimento.
4.4.1 A Natureza Integrativa da Pesquisa em Psicologia Cognitiva
Gardner (1996, [1985]) acredita que a Psicologia só tem chance de sobreviver como
parte de uma equipe de pesquisa. Métodos psicológicos deveriam ser aplicados à análise de
245
campos específicos (como a linguagem), em colaboração com um especialista daquele campo
(no caso um lingüista). Posteriormente, os modelos desenvolvidos deveriam ser submetidos a
um programador de inteligência artificial para aferir sua viabilidade. Conclui ele que a fusão
da Psicologia Cognitiva com a Inteligência Artificial ocuparia no futuro a região central de
uma Ciência Cognitiva unificada.
Vinte anos depois de feita esta profecia, já temos suficiente conhecimento acumulado
para considerá-la equivocada. A grande região central de colaboração entre as ciências
cognitivas tem se sedimentado nos últimos anos entre a Psicologia Cognitiva e a
Neuropsicologia. O entusiasmo inicial com a Inteligência Artificial, que o próprio Gardner na
época já reconhecia declinante, esmaeceu-se de vez nos últimos vinte anos. Este processo de
decepção se acentuou com a compreensão generalizada de que havia uma distância muito
maior do que a inicialmente imaginada entre processos cognitivos humanos e processamentos
computacionais. De mais a mais, a Psicologia Cognitiva, com todas as suas dificuldades
dentro do campo da Psicologia, tornou-se o centro gravitacional de todas as iniciativas da
Ciência Cognitiva. Tanto a Inteligência Artificial quanto a Neuropsicologia, que se esperava
serem fonte de idéias e modelos para a Psicologia Cognitiva, tem se revelado disciplinas
devedoras da Psicologia, na grande maioria das vezes desenvolvendo suas pesquisas
específicas a reboque dos novos modelos e hipóteses que surgem na Psicologia Cognitiva
sobre o processo e estrutura da cognição.
Dentro deste contexto, a Psicologia Cognitiva afirmou nos últimos vinte anos sua in-
dependência acumulando uma série de extraordinários sucessos, que parecem sustentar a via-
bilidade do estudo científico de fenômenos legitimamente psicológicos. Aqui, estes sucessos
são considerados frutos de uma nova forma de integração de uma série de técnicas em um
processo geral de investigação científica, que, apesar de não completamente consciente para
todos, está firmemente presente na disciplina. Este trabalho espera estar colaborando para a
explicitação de tal processo geral, que começa por uma nova forma de encarar o método
científico, hipotético-dedutiva, passa pelos novos métodos de interação com outras disciplinas
e ainda pelas novas técnicas desenvolvidas no âmbito dos métodos de pesquisa tradicionais.
4.4.2 O Processo Geral de Pesquisa Científica da Psicologia Cognitiva
Popper (1975) descreveu o método científico como constituído de quatro etapas
básicas. A primeira, é a da percepção de um problema, a constatação de uma observação que
contradiga teoria ou expectativa prévia que tínhamos acerca da realidade. A segunda, a da
formulação de uma hipótese falsificável que possa explicar a observação problemática. Na
246
terceira, a hipótese é submetida a testes emricos controlados que tenham potencial para
falsificá-la. Na quarta, o teste e seus resultados são submetidos à severa crítica para que se
julgue a hipótese provisoriamente falsificada ou corroborada. No primeiro caso, temos uma
nova lei científica. No segundo caso, temos conhecimento de mais uma hipótese descartada.
Como demonstramos, o método hipotético-dedutivo sintetizado acima é a estrutura
geral do processo de investigação científica adotado pela Psicologia Cognitiva. Sabemos no
entanto, que esta disciplina conta com vários tipos de métodos de investigação, e alguns deles,
notadamente a simulação computadorizada, resistem à classificação dentro das categorias
tradicionais de métodos, a descritiva e a experimental. Este trabalho defende aqui duas inter-
pretações. A primeira é que o grande diferencial da metodologia de investigação da Psicologia
Cognitiva é o surgimento de várias diferentes técnicas (notadamente as neuropsicológicas)
nos métodos de auto-relato, estudos de caso e experimental. A segunda é que os diferentes
métodos utilizados na pesquisa em Psicologia Cognitiva têm sua validade restrita a uma única
etapa do processo geral de investigação científica, em virtude dos objetivos particulares que
eles se propõem a cumprir. Os objetivos das pesquisas em Psicologia Cognitiva são de quatro
ordens. A primeira é a do Problema, cujo objetivo é a descrição do problema investigado da
melhor e mais precisa maneira possível; aqui, entram em cena os métodos descritivos, como
os estudos de casos (incluindo os psicobiológicos), os auto-relatos, as observações
naturalistas e os levantamentos de dados. A segunda ordem é a da Hipótese; aqui o objetivo é
a construção de um modelo ou elaboração de uma hipótese causal. Defende-se aqui a
adequação de uma nova categoria na classificação geral dos métodos, em virtude da natureza
exclusivamente lógico-matemática dos procedimentos adotados e da exclusividade dos
objetivos. Dois são estes métodos que entram como auxiliares da criatividade do psicólogo
cognitivo no momento de formulação de uma hipótese: o estudo de correlação e a simulação
computadorizada. A terceira ordem de objetivos é a do Teste. Na etapa da investigação
científica em que o objetivo da pesquisa é o teste de uma hipótese ou modelo, a Psicologia
Cognitiva conta com dois métodos de validade diferenciada: o provisório estudo quase-
experimental e o método experimental, supremo tribunal da investigação científica. A última
ordem de objetivos dos métodos de pesquisa é a Crítica; nesta etapa final da investigação,
busca-se a análise do alcance, validade e significância dos resultados obtidos no teste. Os
procedimentos aqui podem ser de dois tipos. Um são os instrumentos de análise estatística,
notadamente o teste de hipótese, que possibilitam o estabelecimento da significância
estatística dos resultados do experimento. O outro tipo, é a análise do metodologista quanto à
adequação do desenho e execução do experimento. Estes últimos procedimentos utilizados no
247
processo de investigação científica geral não serão avaliados nesta tese, por não apresentarem
qualquer característica distintiva quando utilizados no âmbito da Psicologia Cognitiva.
Nos próximos passos deste item, separaremos os métodos de pesquisa da Psicologia
Cognitiva em função da etapa do processo científico geral à qual eles têm circunscrita sua
validade. Sempre lembrando que o objetivo aqui não é uma estéril reapresentação das
características gerais destes tradicionais e conhecidos métodos de pesquisa, e sim a
apresentação das diferentes técnicas que foram desenvolvidas na Psicologia Cognitiva para a
adequada aplicação destes ao fenômeno psicológico.
4.4.3 Métodos Descritivos e Psicologia Cognitiva
Os métodos de pesquisa cujo objetivo é nos ajudar a propiciar uma adequada
descrição do problema a ser investigado podem ser classificados como métodos descritivos.
Entre os utilizados pelo Cognitivismo estão os tradicionais Estudos de Casos e a Observação
Naturalista. Além destes, uma das características da Psicologia Cognitiva a ser considerada
aqui é o ressurgimento da Introspecção, que no entanto, não adquire o formato nem o objetivo
que possuía quando utilizada pela Psicologia do século dezenove. Por este motivo, será
admitida aqui a terminologia adotada por Sternberg (2000), de estudos de Auto-relato.
Este subitem que aborda a questão dos métodos no âmbito do Cognitivismo e particu-
larmente da Psicologia Cognitiva não tem o objetivo de repetir descrições de métodos que são
facilmente encontradas em centenas de livros publicados de metodologia científica. Seu
objetivo é sim, o de descrever as formas peculiares pelas quais estes métodos foram utilizados
na investigação cognitiva, assim como as novas técnicas que foram agregadas a eles pelas
Ciências Cognitivas ou pela própria Psicologia Cognitiva. Por essa razão, aqui somente
enfatizaremos os dois métodos descritivos que foram transformados pela Psicologia Cogniti-
va. O primeiro é o Estudo de Casos, que ganhou um formato clínico na psicologia do desen-
volvimento e interdisciplinar na pesquisa neuropsicológica. O segundo é a ressurreta intros-
pecção, que ao perder pretensões de método de teste, se tornou um estudo descritivo, e que
enriquecida com técnicas surgidas no Cognitivismo, passou a ser denominada Auto-relato.
Cabem ainda no entanto alguns comentários sobre o papel da Observação Naturalista
no âmbito da Psicologia Cognitiva, que é meramente complementar a experimentos laborato-
riais que se suspeita terem baixa validade ecológica, ou seja, experimentos sobre processos
cognitivos que se acredita que podem ser diferentes em situações controladas e naturais, assim
como entre pessoas de culturas diversas. É ainda assim um método descritivo, pois busca
descrever detalhadamente o desempenho cognitivo manifesto de indivíduos em situações
248
cotidianas e em contextos não-laboratoriais, sem no entanto, testar nenhuma hipótese sobre as
causas da suposta diferença de desempenho entre situações “artificiais” e “naturais”.
4.4.3.1 Estudo de Casos e Psicologia Cognitiva
O Estudo de caso é geralmente confundido com o método clínico e às vezes tomado
mesmo por seu sinônimo. Duas características marcantes no entanto podem distinguir estes
dois procedimentos de pesquisa. O primeiro é o objetivo de cada um. O segundo a quantidade
de técnicas e procedimentos que cada método está autorizado a lançar mão. O método clínico
é um estudo idiográfico. Seu objetivo é a busca da compreensão do estado psicológico ou
físico (medicina) de um único sujeito, com vistas à elaboração de um correto diagnóstico de
um caso particular. Já o estudo de caso, que geralmente é baseado em vários estudos clínicos
(mas não só e não necessariamente) tem como objetivo a identificação de padrões presentes
em vários casos particulares de um determinado fenômeno psicológico (ou biológico). Ele se
insere portanto dentro de um processo mais amplo de investigação que tem como objetivo
final o estabelecimento de leis científicas que sejam válidas universalmente; um processo
nomotético de investigação (embora isoladamente não seja capaz de fornecer leis gerais).
Outra diferença básica é que enquanto o método clínico estrito censo se restringe a um
set clínico – com os procedimentos da entrevista, anamnese, observação e aplicação de testes
e exames – o Estudo de casos pode lançar mão de uma série de outros procedimentos, como
documentação, pesquisa histórica, observação naturalista, entrevista com familiares e assim
por diante. Portanto, podemos perceber que qualquer estudo clínico, uma vez que utilizado
com o objetivo de ajudar na elaboração de hipóteses gerais de investigação, pode ser conside-
rado um estudo de caso, mas o inverso não necessariamente é verdadeiro, pois os estudos de
casos são sempre feitos com objetivos gerais. Apesar da evidente fragilidade das conclusões
que podemos alcançar com tais pesquisas, não podemos esquecer que estas possuem elevada
validade ecológica (relativa ao contexto real onde de fato se dão os fenômenos investigados) e
são fonte riquíssima de idéias e informações para elaborarmos hipóteses de pesquisa.
O cognitivista que usou com maior maestria o estudo de casos para o desenvolvimento
de hipóteses gerais psicológicas foi, mais uma vez, Jean Piaget. É importante ressaltar que
Piaget denominava seus procedimentos de investigação exploratória como método clínico.
Piaget (1987) acreditava que somente através da observação cuidadosa e ampla do comporta-
mento espontâneo de crianças se pode chegar a uma descrição realista de suas estruturas cog-
nitivas. Apesar de reconhecer os riscos e dificuldades desta abordagem de pesquisa, ele advo-
ga a necessidade de permitir que a criança atue intelectualmente por si mesma e manifeste a
249
orientação cognitiva que lhe é natural. Isso não significa que Piaget abra mão do método
experimental para testar seus modelos das estruturas cognitivas infantis. Como afirma o mais
respeitado interprete da obra de Jean Piaget, John Flavell (1988), no processo piagetiano de
investigação os experimentos são usados somente para testar as conjecturas e intuições que
surgem a partir destas observações sistemáticas. Grande parte do trabalho de Piaget se resume
a estas observações e suas conclusões, sem intervenções experimentais. No entanto, como
afirma Gardner (1996), é talvez por estas relativamente poucas mas “brilhantes” intervenções
experimentais que Piaget ficará para sempre na história da Psicologia.
São três os tipos básicos de estudos de observação desenvolvidos por Piaget (1979,
1987) e utilizados em suas obras. O primeiro é o de perguntas e respostas verbais em relação a
um evento imediato que está acontecendo com a criança. O segundo envolve além das
respostas verbais respostas motoras, onde a criança tem que fazer algo para resolver o
problema proposto e também dizer algo sobre o que fez. O terceiro são seus estudos de
desenvolvimento do bebê onde não cabem intercâmbios verbais. Em comum a todos eles, está
a característica tipicamente piagetiana de proposição de tarefas à qual a criança apresenta
algum tipo de resposta, o que os diferencia da observação naturalista. A seqüência de
perguntas e respostas geradas pela situação de teste propiciam ao investigador a inferência das
estruturas cognitivas que estão implicitamente manifestas ou ausentes nas respostas das
crianças. Este método guarda semelhança com os procedimentos psiquiátricos, e como lembra
Flavell (1988), é por este motivo que foi denominado clínico por Piaget. No entanto, uma vez
que seu objetivo não é diagnóstico individual e sim a pesquisa exploratória de padrões
universais, é mais adequadamente classificado para nossos objetivos como Estudo de Casos.
Howard Gardner é o cognitivista que atualmente mais tem se celebrizado pela
utilização de amplos estudos de casos em suas investigações sobre mudança (2005), liderança
(1996b), criatividade (1996c) e extraordinariedade (1999). Veja em suas próprias palavras
como ele (Gardner, 1996b) vê o Estudo de Casos e seu alcance no processo científico:
“Permitam-me comentar os métodos que usei para estudar os indivíduos destacados neste
livro e os tipos de conclusão que podem ser tirados. De modo geral, eu me baseei muito
nas biografias publicadas destes indivíduos, assim como nas histórias gerais do período.
Especialmente valiosos foram os relatos autobiográficos, que estavam disponíveis em
quase todos os casos. Também consultei, conforme necessário, documentos originais –
especialmente discursos, textos populares, audiotapes e videotapes – em que os protago-
nistas contavam suas estórias com as suas próprias palavras. (...) Em muitos trabalhos
250
acadêmicos, os relatos são escritos como se um estudo fosse principalmente indutivo
(lemos muitas biografias de líderes e esperamos – inocentemente – que emerjam as
generalizações adequadas) ou como se fosse um exercício de testagem de hipóteses (um
modelo de líder é proposto, e depois, testado sistematicamente através do exame de ‘da-
dos’). Seria enganador colocar o presente estudo em qualquer um dos campos.” (p.19-20)
Neste caso, Gardner segue o trecho transcrito acima explicitando as “idéias gerais” que
tinha sobre liderança e que nortearam seu estudo, manifestando indiretamente sua descrença
na existência da indução pura e enfatizando o caráter hipotético de suas conclusões.
Mas os Estudos de Casos mais importantes para o desenvolvimento da Psicologia
Cognitiva foram os desenvolvidos no âmbito da pesquisa psicobiológica. Nestes, neuropsicó-
logos demonstram que a investigação dos padrões de déficits cognitivos manifestados por pa-
cientes com lesão cerebral fornece informações preciosas acerca da cognição humana normal.
Estes estudos se preocupam em descrever minuciosamente a extensão e localização de lesões
cerebrais em indivíduos e identificar que processos cognitivos estão intactos ou prejudicados
nestes, com vista a dois objetivos. O primeiro é descrever: os padrões de déficits e faculdades
preservadas são fonte inestimável de hipóteses sobre como se desenvolvem processos cogniti-
vos normais (o que encaixa os Estudos de Casos neuropsicológicos na categoria de métodos
descritivos voltados para descrição de problemas). O segundo é testar: as teorias sobre a rela-
ção de dependência entre processos e sobre estruturas cognitivas podem ser testadas através
dos déficits cognitivos manifestados por pacientes com lesão cerebral. Este segundo objetivo
é problemático, como veremos adiante, pois não há controle das variáveis envolvidas.
Antes de analisar e exemplificar estes objetivos é necessário explicitar as crenças
ontológicas que os sustentam. A principal é a crença de que existe uma correspondência
significativa entre a organização do cérebro físico e a organização da mente, essa é a tese do
isomorfismo. Uma outra crença é a de que há um padrão comum de relação entre lesões espe-
cíficas e déficits cognitivos específicos em seres humanos, as síndromes. Uma terceira crença
fundamental é a da modularidade cognitiva, da qual os principais representantes são Chomsky
(1981) e Fodor (1983), que postulam que a mente é constituída de vários módulos ou proces-
sadores cognitivos de relativa independência. Sem estas crenças a pesquisa neuropsicológica
seria impossível, pois a associação entre uma lesão mental específica e um déficit específico
seria sem sentido, assim como a busca de padrões de déficit em diferentes seres humanos.
A curta história da Psicologia Cognitiva já acumula fartos exemplos da utilidade dos
estudos de casos neuropsicológicos para o desenvolvimento do conhecimento sobre a mente.
251
O já citado cognitivista Roger Sperry, começou seus famosos estudos sobre lateralização cere-
bral (Sperry, 1964) a partir do estudo de casos de pacientes epilépticos que sofreram a inter-
venção cirúrgica de secção do corpo caloso. Posteriormente realizou experimentos com gatos
e macacos para testar as hipóteses levantadas em tais estudos. Estes comprovaram a indepen-
dência entre o pensamento lingüístico e o espacial, constituindo um marco basilar de corrobo-
ração da teoria modular da mente. Outro conhecido estudo de caso foi o realizado por Shallice
& Warrington (1970) com o paciente KF, que depois de uma lesão na região especializada na
percepção e produção da fala começou a apresentar severo déficit na memória de curto prazo,
apesar de manter a memória de longo prazo praticamente intacta. Este estudo forneceu
importante indício de que a teoria da memória então prevalente, que pregava a dependência da
memória de longo prazo em relação à memória de curto prazo, era razoavelmente inadequada.
No entanto, neste ponto devemos relembrar que um estudo de caso neuropsicológico
não pode ser considerado um teste apto a corroborar ou falsificar uma teoria cognitiva. Suas
limitações são várias. A primeira é relativa à limitação da teoria do isomorfismo. Todos sabe-
mos hoje que o cérebro é um órgão dotado de impressionante plasticidade. Lesões ocorridas
em tenra idade que inutilizam vastas regiões cerebrais tendem a ter impacto reduzido ou mes-
mo nulo no desenvolvimento cognitivo. Ao que parece a mente acaba desenvolvendo as ap-
tidões que naturalmente seriam desenvolvidas com o auxílio das áreas lesionadas com outras
regiões cerebrais. Da mesma forma, lesões limitadas provocamficits passageiros, que
acabam sendo plenamente superados algum tempo depois, ou ainda mascarados pela
execução das tarefas prejudicadas através de novas estratégias e processos compensatórios
desenvolvidos pelo indivíduo. Esta última característica limita seriamente a possibilidade de
generalizar as conclusões obtidas sobre o funcionamento cognitivo dos pacientes com lesão
cerebral para todos os seres humanos, uma vez que provavelmente seus processos cognitivos
não estão somente com um ou outro módulo danificado, mas estão também, modificados de
uma forma geral. Dito de outra forma, se estamos tentando estabelecer o funcionamento
normal de um módulo cognitivo, o estudo de caso neuropsicológico pode se tornar
razoavelmente inútil se estes módulos não estão funcionando normalmente em pacientes com
lesão cerebral. Gostaria de propor aqui que uma estratégia adequada para dirimir esta
limitação é a realização dos estudos relativos a um paciente no mais curto espaço de tempo
possível após a lesão, enquanto o funcionamento alternativo de módulos não tiver ainda sido
desenvolvida. No entanto, sabemos que nem sempre essa rapidez é possível.
A segunda limitação é que não há manipulação direta das variáveis envolvidas no
problema. Não podemos controlar a extensão ou o local exato das lesões cujas conseqüências
252
estamos investigando, de forma que não podemos estrito senso repetir observações ou reunir
casos exatamente iguais. Isto torna estudos quase-experimentais baseados no conceito de
síndromes extremamente artificiais, razão pela qual a pesquisa neuropsicológica permanece
limitada aos estudos de casos e experimentos (baseados na tomografia cerebral com TEP, que
veremos adiante). Como toda limitação de caráter metodológico, esta também pode
desaparecer com o tempo. Supondo que consigamos futuramente técnicas e instrumentos que
permitam a suspensão temporária de atividade em região cerebral específica ou ainda sua
estimulação artificial, poderíamos elaborar estudos de caso e desenhos experimentais muito
mais proveitosos. Isto de fato, como descreve Sternberg (2000), já acontece em parte hoje
com microeletrodos usados na estimulação de regiões muito restritas e específicas do cérebro.
Não é fantasioso esperar que em breve algum tipo de tecnologia para supressão temporária de
atividade cerebral específica também seja desenvolvida.
Por fim, uma terceira e importante limitação do estudo de caso neuropsicológico é o
fato de que apesar das evidências de que a mente e seus diferentes processos cognitivos são
razoavelmente modularizados, também sabemos que o cérebro é um órgão que funciona de
maneira holística. Assim, uma lesão cerebral geralmente provoca um efeito generalizado de
redução da habilidade para executar tarefas complexas de todos os tipos. A implicação disto é
que alguém com lesão cerebral pode ter um desempenho mais pobre numa tarefa do que em
outra, simplesmente pelo fato de a primeira ser mais complexa que a segunda. Como afirmam
Eysenck & Keane (1994), a solução para lidar com este tipo de limitação é a procura de casos
casados que ilustrem uma dissociação dupla. A dissociação dupla entre dois processos
cognitivos ocorre quando um paciente desempenha normalmente um processo e deficitária-
mente o outro, e um segundo paciente desempenha normalmente o segundo e deficitariamente
o primeiro. Se por exemplo temos duas tarefas ligadas a dois processos diferentes, como
memória de curto e longo prazo, e um paciente apresenta déficit na tarefa de memória de
curto prazo e eficiência na de longo prazo, devemos procurar por um paciente que apresente
desempenhos inversos nas duas tarefas, pois assim estaremos realmente caracterizando a
distinção entre elas. Como lembram Eysenck & Keane (1994), foi isso que aconteceu no caso
KF (que tinha déficit na memória de curto prazo e memória de longo prazo intacta), pois já
acumulávamos uma enorme quantidade de estudos de pacientes amnésicos que apresentavam
memória de curto prazo intacta com a memória de longo prazo severamente prejudicada.
253
4.4.3.2 Auto-relatos e Psicologia Cognitiva
Existem vários tipos de auto-relatos utilizados pela Psicologia Cognitiva, mas a
maioria deles é muito raramente utilizada. Os auto-relatos mais comuns na Psicologia
tradicional são os Levantamentos de Dados sob a forma de questionários e entrevistas, porém,
na Psicologia Cognitiva, eles pouco são utilizados. Podemos vê-los empregados somente em
pesquisas exploratórias no campo da Cognição Social, notadamente no estudo de crenças e
atitudes. O que une todos os tipos de Auto-relatos (incluindo aqui também os diários, relatos
retrospectivos e a forma tipicamente cognitivista deste método, o protocolo verbal) é a
extrema fragilidade das conclusões e a também extrema dependência da honestidade daqueles
que fornecem os relatos. Diante disto, a pergunta que se impõe é porque se valer de um
instrumento tão falho e limitado de pesquisa, cujas fragilidades já foram largamente expostas
no terceiro capítulo desta tese.
A resposta é que não estamos mais falando da introspecção como método de
julgamento e teste de teorias, mas sim de auto-relatos como método auxiliar na descrição de
processos cognitivos, e portanto inestimável fonte de idéias para formulação de hipóteses de
investigação, essas sim, passíveis de teste em situação experimental. Um longo caminho foi
percorrido pela filosofia da ciência desde que Kant aplicou seu veto à introspecção como
método científico empírico. Este caminho permitiu reintegrar a introspecção no âmbito dos
métodos descritivos, no início (e não no final) do processo de investigação cognitiva, cônscia
de suas limitações e livre de suas pretensões experimentais.
Podemos resumir em que termos o auto-relato pode ser usado na pesquisa cognitiva da
seguinte maneira: em primeiro lugar, ele deve estar baseado em relatórios verbais emitidos
pelo sujeito durante o desempenho da tarefa solicitada, e não em relatórios retrospectivos. Em
segundo lugar, o auto-relato só deve ser utilizado para descrever processos que envolvem a
atenção consciente, e nunca para processos automáticos. Estes termos nos levam a definição
da técnica de protocolo verbal. Para Sternberg (2000), protocolo verbal é o procedimento de
auto-relato no qual o sujeito da pesquisa descreve em voz alta todos os seus pensamentos e
passos mentais utilizados para a resolução de uma tarefa cognitiva dada. Estas vocalizações
são gravadas e posteriormente transcritas, para serem analisadas na busca de padrões
encontrados nestes processos.
Explicando as condições impostas pela Psicologia Cognitiva contemporânea para a
utilização do auto-relato, Eysenck & Keane (1994) lembram que relatórios retrospectivos são
inúteis pois a memória humana é falível, e portanto aqueles podem ser incompletos devido a
erros que ocorrem na obtenção de dados da memória de longo prazo. Acrescentaria ainda a
254
este veto, a observação do caráter construtivo da memória humana, o que impediria a
objetividade de qualquer descrição retrospectiva, mesmo em relação a alguns segundos. A
técnica do protocolo verbal supera uma das muitas críticas feitas à introspecção wundtiana, a
de que não haveria nunca introspecção, e sim, sempre, retrospecção. Agora, estaríamos diante
da tarefa de “pensar em voz alta”.
A outra condição se refere ao fato de o sujeito só tem condições de descrever em voz
alta aqueles processos sobre os quais está voltada sua atenção consciente. Isto exclui os pro-
cessos cognitivos automáticos do campo do auto-relato. O estudo de Ericsson e Simon (1980)
sobre os critérios de utilização do auto-relato (introspecção para eles) na pesquisa cognitiva e
o âmbito de sua validade é uma importante referência para a análise deste problema. Neste, os
autores citados argumentam que apenas a informação sobre uma atenção focal pode ser
verbalizada. Como sabemos, a prática e a experiência na realização de uma dada tarefa faz
com que este processo específico deixe progressivamente de ser controlado pela consciência e
adquira o caráter de automático. Assim, eles lembram que um processo cognitivo que pode
estar disponível para verbalização por um novato não deverá estar mais para um perito.
Com as limitações estabelecidas sobre sua invalidade como teste de hipóteses, sua
necessidade de descrição simultânea e sua restrição a processos atencionais, a velha
introspecção se transforma em protocolo verbal e livra-se de algumas de suas mais poderosas
críticas. Mas certamente não de todas. Resta ainda um grave problema, lembrado por Eysenck
& Keane (1994): pedir a pessoas que forneçam relatórios simultâneos do que se passa pela sua
atenção consciente enquanto desempenham uma tarefa pode mudar a natureza dos processos
cognitivos em foco. Embora isto seja mais verdadeiro em relação a processos automáticos,
que como vimos estão fora do âmbito do protocolo verbal, não podemos desprezar a
importância desta crítica. No entanto, como os mesmos reconhecem (1994, p.39), existem
muitos processos em que o “pensar alto” não apresentou nenhum efeito sistemático sobre a
estrutura e o curso dos processos envolvidos no desempenho de uma tarefa.
Para concluir este subitem gostaria de resumir a posição do cognitivismo sobre o auto-
relato com comentários sobre uma das primeiras obras destinadas a apresentar o conjunto das
novas áreas de investigação e métodos de pesquisa da Psicologia Cognitiva, “The Promise of
Cognitive Psychology”, de Richard Mayer (1981). Nesta, Mayer deixa claro o caráter
exploratório do auto-relato e sua circunscrição ao estudo de processos cognitivos conscientes
e estratégias cognitivas (fora portanto do estudo de estruturas cognitivas e processos
automáticos). Um exemplo extremamente simples que ele dá de sua utilidade e papel é
particularmente ilustrativo aqui. Neste, estamos procurando explicar qual é o processo
255
cognitivo que Kenny, um inteligente menino de cinco anos, utiliza para realizar operações de
subtração. Primeiro fazemo-lo dizer em voz alta cada passo mental que utiliza no processo de
resolução, ou seja, orientamo-lo a “pensar em voz alta”. Depois, construímos um diagrama de
fluxo ou um programa que corresponda ao procedimento utilizado. Por fim, checamos se o
modelo construído é capaz de prever os passos que Kenny dá para resolver qualquer problema
semelhante. Este terceiro passo consiste em comparar nossa representação construída com o
procedimento real de Kenny. O modelo será capaz de fazer predições empiricamente
falsificáveis como a que determinadas contas levarão mais tempo para serem executadas do
que outras. Imaginando que o modelo construído subtrai um por um os termos da diferença
(por exemplo abaixando um a um os dedos até que se chegue ao resultado desejado), podemos
prever que a operação 9 – 2 levará mais tempo para ser executada que a 8 – 7. Isso torna
nosso modelo falsificável.
Concluindo, podemos afirmar que a Psicologia Cognitiva foi capaz de criar técnicas
para os antigos métodos descritivos que aumentaram muito sua utilidade para o estudo da
mente. Mas o mais importante, é que somente com o Cognitivismo a Psicologia se tornou
consciente dos diferentes níveis de validade e utilidade dos métodos tradicionais. Esta
consciência pode resgatar até métodos completamente desacreditados como a velha
introspecção para um lugar de restrito mas devido valor no longo processo de investigação
científica da cognição humana.
4.4.4 Métodos Construtivos e Psicologia Cognitiva
Nesta tese se postula a pertinência da criação de uma terceira categoria geral de
classificação metodológica – a de Métodos Construtivos – pois temos na simulação
computadorizada e na análise correlacional dois métodos de pesquisa que não tem como
objetivo a descrição pura e simples do problema (como nos métodos descritivos) nem o teste
de um hipótese (como no caso do método experimental). No caso destes dois métodos, o
primeiro exclusivo da Psicologia Cognitiva, temos como objetivo final a construção de um
modelo ou hipótese causal. São mais bem compreendidos portanto como fazendo parte do
esforço de criação de hipóteses que ocorre na segunda etapa do processo científico, através
das forças racionais lógico-matemáticas.
A análise estatística correlacional de dados levantados em estudos de casos e
levantamentos de dados é método tradicional da Psicologia, surgido do trabalho pioneiro de
Francis Galton. Em Psicologia Cognitiva é utilizado para encontrar co-relações, ou seja,
variações conjuntas, entre uma determinada variável e um determinado desempenho cognitivo
256
em situações naturais, não apresentando aqui qualquer tipo de inovação técnica. Portanto, não
se torna necessário debruçarmo-nos sobre este método, somente justificar a postulação de seu
enquadramento em uma nova categoria metodológica geral. Uma vez que o tratamento
correlacional dos dados obtidos em estudos descritivos não é necessário para a realização dos
objetivos dos mesmos, defende-se aqui que este tratamento pode ser considerado um outro
método, cujo objetivo é sugerir possibilidades de hipóteses causais sobre os fenômenos
estudados. Estas possibilidades são sempre quatro. Na primeira, a primeira das variáveis
correlacionadas causaria a segunda. Na segunda, a segunda causaria a primeira. Na terceira,
ambas as variáveis seriam relacionadas num sistema retroalimentativo, onde a variação em
uma delas provoca a variação na outra que de novo provoca na primeira e assim até se
aproximar do limite do novo estado de equilíbrio. Por último, ainda podemos considerar que
uma terceira variável causa a alteração das duas correlacionadas. Estas hipóteses no entanto,
precisam ser testadas por um delineamento de pesquisa experimental, o que, caso não seja
possível por limitações éticas ou metodológicas, deixa ao menos as hipóteses surgidas desta
maneira em melhores condições que as surgidas da pura especulação sobre resultados de
estudos descritivos.
4.4.4.1 Simulação Computadorizada e Psicologia Cognitiva
Baars (1986) faz algumas considerações gerais sobre a importância da Simulação
Computadorizada para a Psicologia que são fundamentais para esta tese. Primeiro, ele lembra
que computadores podem fazer coisas que são consideradas sinais de inteligência quando
feitas por seres humanos. Desta forma, o próprio programa responsável pela operação se torna
um modelo ou uma teoria de como seres humanos fazem o que o computador está fazendo.
Chamamos este processo computador-humano Inteligência Artificial. Em sentido inverso,
lembra que qualquer teoria que tivermos sobre processos cognitivos saída da Psicologia, se
estiver suficientemente explícita, pode ser transformada num programa de computador. Este
caminho inverso humano-computador denominamos Simulação Computadorizada. Assim,
mesmo que a Simulação Computadorizada tivesse se mostrado inútil para o desenvolvimento
de hipóteses psicológicas, um único fato serviria para justificar sua importância seminal para
a Psicologia contemporânea: ela forneceu a linguagem adequada para construirmos modelos e
hipóteses cognitivas. Além disso ela fornece também um critério para a construção de
modelos e hipóteses: caso nossa teoria não esteja suficientemente explícita para ser expressa
inequivocamente num programa ou num diagrama de fluxo, é sinal que ela ainda não está apta
para teste. Este tipo de linguagem permitiu a libertação da Psicologia de outra de suas falsas
257
prisões: a necessidade contrabandeada da física de quantificação dos fenômenos. Com a
linguagem importada da Inteligência Artificial, acordamos como disciplina para o fato de que
a lógica simbólica oferece o mesmo rigor e falsificabilidade à expressão de hipóteses que a
álgebra, sem que precisemos nos preocupar com a atribuição artificial de grandezas numéricas
a processos de pensamento.
Mas a simulação em Psicologia levanta a questão central da Inteligência Artificial e
Simulação Computadorizada. Se tivéssemos uma máquina que simula adequadamente o com-
portamento de um ser humano seria adequado dizer que ela pensa? Para Jerry Fodor (1968),
um dos primeiros filósofos cognitivistas a tentar estabelecer o papel da simulação computado-
rizada na pesquisa psicológica, a resposta é não. Como vimos no item anterior, Fodor demon-
stra que ao tentar explicar (em sentido estrito) o comportamento de um organismo por meio
de simulação, teríamos que construir um computador no qual seus componentes fizessem o
papel funcional dos neurônios. Mas para isso os componentes precisariam ser neurônios, caso
contrário, nunca poderíamos afirmar que todo efeito de um neurônio é efeito do componente.
Não temos nunca como demonstrar que um computador é funcionalmente equivalente a um
organismo, portanto, toda teoria (programa) construída desta maneira permaneceria no terreno
da hipótese psicológica, um programa é “simply a way of realizing a psychological theory
(1968, p.146) e para adquirir alguma validade teria que ser submetida a experimentos com
seres humanos. Diz Jerry Fodor (1968) no capítulo The Logic of Simulation:
“Would it ever make sense to say that machines – that is, machines of the right kind,
machines that simulate intelligent behavior in the strong sense of simulation, that is
tantamount to explanation – don’t think?
And to this question the answer is “of course.” We can make any distinctions we choose
to make, and a perfectly good reason for refusing to apply mental predicates or behavioral
predicates to machines is that they are machines.” (p.147)
Feitas estas considerações, podemos passar a importância metodológica direta, muito
mais modesta, da Simulação Computadorizada para a Psicologia Cognitiva. Entre suas
vantagens como método construtivo, temos que lembrar que esta permite a exploração de
várias possibilidades de modelos para os processos cognitivos antes que os coloquemos em
teste através de experimentos. O sentido de tal adiantamento é averiguar se as hipóteses
prognosticam corretamente os resultados, ajustando conseqüentemente aspectos inadequados
do modelo de maneira muito mais imediata.
258
O problema é que possibilidades lógicas nem sempre se tornam realidades práticas.
Psicólogos permanecem profundamente ignorantes acerca de rudimentos da informática, que
dirá acerca de linguagem de programação. O desenho de arquiteturas de hardware mais
assemelhadas ao cérebro humano permanece um sonho caro, difícil e distante. O desempenho
das mais sofisticadas simulações computadorizadas em relação à cognição humana tem se
mostrado ao longo dos últimos quarenta anos bastante imperfeita (Neisser, 1967; Gardner,
1996 [1985]; Sternberg, 2000), o que parece demonstrar que simulações representam de
forma bastante imperfeita como a mente humana pensa.
Diante de todas estas limitações, é inevitável que nos perguntemos qual a importância
metodológica efetiva da simulação computadorizada para a prática da Psicologia Cognitiva, já
que sua importância para o arcabouço conceitual do Cognitivismo é evidente. A resposta é
que sua importância é somente a de ser uma útil ferramenta disponível para a construção de
modelos cognitivos. Ela não pode descrever processos cognitivos humanos, já que pretende
reproduzi-los, nem testar teorias acerca daquele como querem alguns matemáticos radicais da
Inteligência Artificial. Esta segunda pretensão é um contra-senso considerável. Este engano
está baseado na crença cada vez menos sustentável de que mentes humanas nada mais são que
computadores biológicos, e manifesta um nível de alienação ideológica poucas vezes visto na
história da ciência moderna: propõe simplesmente que se avaliem teorias sobre um objeto de
estudo testando outro objeto de estudo. Descartadas estas pretensões despropositadas, torna-se
evidente que o método da simulação computadorizada tem como objetivo a efetivação do
segundo passo do processo científico hipotético dedutivo: a construção de um modelo ou
hipótese. Modelos, como lembram Eysenck & Keane (1994), servem para testar diversas
hipóteses sobre o que poderia acontecer ao objeto modelado sob várias condições. Assim,
estas hipóteses e seus resultados nos modelos dão origem a várias predições falsificáveis
sobre o comportamento do objeto modelado em diversas situações. O modelo computacional
portanto, fornece predições precisas sobre o processamento humano de informações que são
em tese falsificáveis. Como modelos são aproximações da realidade, não precisamos exagerar
as expectativas sobre eles, somente pedir que descrevam e prevejam o comportamento do
objeto com um nível razoável de adequação, o que de fato, é bem melhor que nada.
A construção de grandes modelos computacionais que buscam a explicitação de
detalhes dos processos cognitivos, é realizada através de fluxogramas. O fluxograma é uma
representação gráfica geométrica-lingüística do fluxo de um input e sua transformação em
uma cadeia de processos e decisões até a emissão da resposta final. Geralmente, como
afirmam Eysenck & Keane (1994), um fluxograma e sua conseqüente implementação em um
259
programa, é um “ótimo método para confirmar se ela [teoria] realmente faz sentido, se não
contém nenhuma premissa escondida ou termos vagos” (p. 18).
Assim, por ora, é suficiente o reconhecimento de qual é o lugar da Simulação
Computadorizada no processo de investigação científica da Psicologia Cognitiva e do nível
legítimo de suas pretensões que, diga-se de passagem, mesmo em uma análise superficial,
necessariamente se revelam bem aquém do nível das pretensões dos Cientistas Cognitivos
partidários da IA forte.
4.4.5 Métodos Experimentais e Psicologia Cognitiva
O delineamento experimental de pesquisa é, como todos sabemos, dependente de três
fatores fundamentais: o controle das variáveis relevantes para o problema investigado, a livre
manipulação da variável independente e o uso de amostras representativas e aleatoriamente
distribuídas. Quando uma destas condições não pode estar presente mas mantemos o desenho
geral de pré e pós teste, grupo experimental e grupo controle, variável dependente e
independente; dizemos que estamos diante de um delineamento quase-experimental.
A Psicologia Cognitiva faz muito uso de investigações quase-experimentais, pois sofre
de severas limitações metodológicas – de ordem ontológica, ética e mesmo prática – para a
realização de pesquisas. Não podemos por exemplo isolar a interferência de outras variáveis
para avaliar somente o efeito da idade sobre determinados processos cognitivos, ou isolar
outros fatores ambientais para medirmos somente o efeito de uma terapia num quadro
psicopatológico. Da mesma forma, muitas vezes dispomos de um grupo pequeno de
indivíduos que já contraiu uma determinada doença e queremos testar uma hipótese sobre a
influência desta, digamos, sobre a memória. Assim precisaríamos compará-lo com o
desempenho de um grupo aleatório de indivíduos, que no entanto, pode não corresponder em
muitos fatores ao grupo de pessoas doentes. Não podemos nestes exemplos hipotéticos lançar
mão de um desenho rigorosamente experimental, pois não podemos controlar a VI nem
separar aleatoriamente dois grupos de indivíduos: não podemos por exemplo provocar a
doença para ver qual é seu efeito mnemônico. Desta maneira, desenhos quase-experimentais
são testes muito importantes para a Psicologia Cognitiva, embora sejam de validade
provisória. Podemos dizer que embora não sejam conclusivos, possuem alta validade interna e
são melhores do que teste nenhum.
Mas nem tudo são impossibilidades para a aplicação do verdadeiro método científico
ao fenômeno psicológico. O experimento psicológico é sim possível e ganhou da Psicologia
Cognitiva e da Neurociência duas novas técnicas extremamente inventivas e eficientes. São
260
elas a técnica da subtração e da utilização da tomografia cerebral com emissão de pósitrons, a
famosa varredura por TEP. Vamos para a explicação destas duas técnicas, começando pela
tipicamente psicológica subtração.
Existe controvérsia quanto à origem da técnica da subtração, mas não quanto à aborda-
gem que de fato popularizou o seu uso e lhe deu a importância que possui hoje. Mas tal
controvérsia não nos importa aqui. O que realmente importa é sua lógica básica, que de fato, é
muito simples. Ela afirma que é possível medir a duração de um estágio de processamento
comparando o tempo necessário para solucionar uma versão da tarefa que inclua este estágio
com uma segunda versão que difere da primeira versão apenas pela omissão deste. A
diferença no tempo que se leva para solucionar as duas versões da tarefa representa o tempo
gasto processando o estágio de processamento em questão. Eysenck & Keane (1994) em uma
analogia simples, afirmam que esta técnica se assemelha ao cálculo que fazemos do tempo
gasto com uma refeição feita na estrada, quando subtraímos do tempo necessário para ir de A
até B incluindo uma parada no caminho, o tempo gasto para percorrer a distância sem parada.
Assim, quando utilizada no método experimental, esta técnica é uma poderosa fonte de
testes de inferências sobre como se desenvolvem processos cognitivos e a sucessão de seus
estágios. Podemos ao separar os dois grupos do experimento fornecer a cada um deles uma
tarefa com ou sem o estágio, predizendo que o segundo grupo levará menos tempo. Mais do
que isso, podemos comparar o desempenho cognitivo de sujeitos individualmente executando
a tarefa com ou sem o estágio correspondente para descobrir o tempo médio gasto no
processamento deste. Na maioria das vezes, o delineamento experimental de pesquisas que
utilizam a técnica da subtração é o de pré-teste e pós-teste sem grupo controle (Campos,
2004), onde não temos dois grupos de sujeitos diferentes formando um grupo experimental e
um controle, e sim, temos condição controle e condição experimental. Assim, na condição
controle oferecemos uma tarefa sem a VI (estágio de processamento) medimos a VD (o tempo
de execução dessa tarefa), depois, na condição experimental, administramos a VI e novamente
medimos a VD. Assim, ao afirmar que para executar determinada tarefa a pessoa precisa
lançar mão de determinado estágio de processamento e para outra ela não precisa, nossa
predição será a que ao executar a tarefa um (condição experimental) os sujeitos levarão mais
tempo que para executar a tarefa dois (condição controle).
Uma das utilizações mais famosas da técnica da subtração em experimentos
psicológicos foram os brilhantes experimentos sobre imagética conduzidos por Roger Shepard
(op. cit. Gardner, 1996, p. 343). Neste, solicitava-se a um indivíduo que respondesse o mais
rápido possível se as figuras geométricas que lhes eram indicadas eram representações do
261
mesmo objeto tridimensional observado de ângulos diferentes ou representações de objetos
distintos. O resultado importante deste experimento é que a dificuldade da tarefa, medida em
virtude do tempo levado para emissão da resposta, variava direta e positivamente em função
do número de graus em que a segunda figura havia sido girada. Ou seja, a hipótese que foi
testada aqui é banal, mas apesar disso encontrava forte oposição dentro da Ciência Cognitiva:
ela dizia simplesmente que nossas representações mentais não são somente proposicionais,
incluem no mínimo também imagens. Ou seja, o pensamento não se reduz a linguagem, no
mínimo, temos que postular um nível de representações de imagens onde o raciocínio é
puramente geométrico. Nesta teoria não há nada de novo. O que há de incrivelmente novo
aqui é que conseguimos a primeira teoria imagética que ofereceu uma predição falsificável
empiricamente, e isso graças à técnica da subtração. A predição era a seguinte: se as pessoas
avaliam a identidade entre duas figuras vistas de ângulos diferentes girando uma delas
mentalmente sobre o seu eixo (como as pessoas alegavam através de auto-relatos), então
figuras giradas em menos graus angulares serão reconhecidas como idênticas mais
rapidamente do que figuras giradas por um ângulo maior. Como podemos deduzir, foi
exatamente isso que se deu. Ou seja, o tempo usado para girar mentalmente a figura mais
angulosa é igual ao tempo total gasto para execução desta tarefa menos o tempo gasto para
identificar a igualdade entre duas figuras idênticas e não giradas. É claro que o que está em
questão aqui não é o estabelecimento de uma lei sobre o tempo de reconhecimento de figuras
idênticas vistas sob ângulos diferentes (embora isto tenha ocorrido!). O que está em questão é
que conseguimos a primeira predição empiricamente falsificável de um processo puramente
mental não-proposicional. Isso graças ao conceito de que se processos cognitivos se dão numa
certa extensão de tempo, podemos fazer algumas predições sobre eles com base no tempo
total de processamento de uma determinada informação.
A última grande inovação técnica, e neste caso também tecnológica, utilizada pela
Psicologia Cognitiva a ser abordada nesta tese vem das Neurociências. Ela é fruto de uma das
novas maravilhas tecnológicas geradas pelo conhecimento humano: a tomografia computado-
rizada. Mas aqui, não se trata de conseguir um mapa preciso da estrutura cerebral, como nos
primeiros tipos de tomografia. Trata-se de obter uma representação visual da atividade interna
cerebral durante o curso de processos cognitivos. O nome desta técnica é Tomografia com
Emissão de Positrons (TEP). A varredura por TEP baseia-se na teoria de que atividade
biológica requer consumo de energia e que a glicose é a fonte de energia cerebral. Portanto, se
quiséssemos saber quais são as áreas do cérebro que estão mais ativas durante a execução de
determinada tarefa, bastaria que pudéssemos saber que regiões cerebrais estão consumindo a
262
maior quantidade de glicose. Assim, a idéia que os neurocientistas tiveram foi a de produzir
uma glicose levemente radioativa, a ser ingerida pelos sujeitos da pesquisa sem risco para a
saúde. Depois, é só seguir o curso da glicose pelo cérebro durante a execução de tarefas
cognitivas, através de varreduras executadas por um tomógrafo e decodificadas por um
computador que produz imagens de um cérebro em atividade identificando o nível de glicose
consumida por cada região através de cores.
Esta técnica propiciou verdadeiras revoluções na Ciência Cognitiva. Estávamos diante
das primeiras observações do que acontecia dentro da “caixa-preta”. Podemos agora observar
que partes do cérebro estão mais ativas quando se ouve uma música ou quando se ouve um
discurso, quando se responde a um estímulo visual ou a um auditivo. Michel Posner (1988) é
um dos principais nomes da Neuropsicologia Cognitiva. Suas pesquisas pioneiras ajudaram a
estabelecer padrões de associação entre abordagens neurológicas e cognitivas para o estudo
das funções mentais superiores. A partir do trabalho pioneiro realizado por ele e seus colabo-
radores nos últimos anos da década de oitenta, ficou claro para os cientistas cognitivos que a
atividade registrada em determinadas regiões cerebrais durante a execução de determinada
tarefa podia servir como evidência empírica para refutar ou corroborar teses sobre tipos de
processamento que estariam envolvidos nesta execução. Assim, baseados nos mesmos pressu-
postos admitidos nos estudos de caso neuropsicológicos, particularmente no do isomorfismo,
podemos obter evidências empíricas da distinção entre vários processos mentais, que necessa-
riamente terão que se refletir em diferenças registradas nas áreas cerebrais ativadas quando os
sujeitos procuram realizar tais diferentes tarefas cognitivas. Se por exemplo levantamos uma
tese psicopatológica de que a causa do comportamento anti-social de psicopatas é uma ausên-
cia de reações emocionais a situações que naturalmente despertariam este tipo de reações,
podemos desenhar um quase-experimento onde um grupo de psicopatas, assim diagnosticados
pelos padrões clínicos atuais, se submeta a sessões de escaneamento cerebral ao mesmo tem-
po em que estão assistindo a cenas particularmente comoventes (definidas operacionalmente
como cenas que provocam em indivíduos escolhidos aleatoriamente ativação das regiões que
se ativam em processos emocionais). Ao mesmo tempo, um grupo controle de pessoas sem
psicopatia diagnosticada passaria pelo mesmo processo. A ausência de ativação das áreas
emocionais nos psicopatas contrastada com a ativação nos não psicopatas seria uma evidência
empírica corroboratória da hipótese de que situações emotivas não provocam reações
emotivas em psicopatas, no mínimo, não tão significativas como em pessoas comuns.
É importante ressaltar que o que estamos observando são fenômenos neurológicos, não
psicológicos, e que obviamente não se trata da aderência às teses radicais do materialismo
263
eliminativo. Mas se partimos do pressuposto de que há um certo nível de especialização
cerebral e também de que há um certo nível de isomorfismo entre a estrutura do cérebro e a
estrutura da mente, não é arbitrário aceitar as evidências empíricas fornecidas pela TEP como
fontes de corroboração ou falsificação – provisória – de teorias cognitivas, levando as possibi-
lidades de experimentação psicológica a patamares antes inimagináveis. Em outras palavras,
agora não temos somente o comportamento manifesto motor ou verbal como fonte de
inferências sobre os processos cognitivos. Temos também, o comportamento manifesto do
próprio cérebro.
De todo o exposto neste item, podemos concluir que a Psicologia Cognitiva resolveu
alguns problemas sutis em metodologia da investigação científica psicológica, assim como foi
auxiliada pelo surgimento de grandes avanços tecnológicos como o computador. No primeiro
caso, estas soluções só foram possíveis porque se modificou a visão geral do método
científico, abandonando-se as pretensões absolutistas do Positivismo e adotando um modelo
aproximativo e falsificacionista da atividade científica, baseado em conjecturas e refutações.
No segundo caso, estou me referindo a incrível gama de aplicações do computador na
pesquisa cognitiva psicológica, a auxiliando inestimavelmente em todas as etapas da
investigação: no estudo de casos com a informatização dos testes psicológicos e tabulação dos
dados dos outros métodos descritivos; na construção de modelos de teorias; na experimenta-
ção com as tomografias e os experimentos de subtração (quase todos realizados pelos sujeitos
em computadores para aferir o tempo de reação); e, por último, na fase de crítica dos dados,
com a facilidade que proporcionou a todos os pesquisadores psicólogos não-matemáticos para
a aplicação dos mais rigorosos tratamentos estatísticos a seus dados. No entanto, velhos
problemas metodológicos continuaram intocados pelas inovações cognitivas, e se apresentam
como limites permanentes às possibilidades da investigação científica psicológica. No
próximo capítulo, voltaremos a eles.
264
5
AVALIAÇÃO CRÍTICA DO COGNITIVISMO
Este capítulo tem o objetivo de sistematizar as críticas que as diferentes tradições
filosóficas e psicológicas fizeram ao Cognitivismo, avaliando-as e efetuando então uma
síntese sobre a posição em que se encontra hoje este programa de pesquisa. No seu primeiro
item, o quinto capítulo fará a apresentação das críticas efetuadas por autores behavioristas,
materialistas, pós-modernos, humanistas e mesmo cognitivistas ao cognitivismo. No segundo,
buscará uma síntese de todas as soluções e inovações trazidas pelo Cognitivismo para o
problema da cientificidade da Psicologia, para enfim concluir se os problemas levantados no
terceiro capítulo foram devidamente superados por esta nova concepção de ciência
psicológica. Finalmente, serão apresentadas as principais conclusões e propostas deste
trabalho. A primeira é a da adoção da explicação condicional em Psicologia. A segunda é a
tese da necessária relação de complementaridade entre a Psicologia e a Filosofia da Mente,
fazendo da Psicologia uma disciplina constitutivamente dividida entre um campo científico e
um campo filosófico. Por fim, defenderá esta tese a necessidade de uma nova metáfora
computacional que possa oferecer uma compreensão adequada da tripartição de domínios de
investigação do fenômeno psicológico.
5.1 Críticas ao modelo cognitivista de Psicologia
Muitas críticas foram apresentadas às pretensões da Psicologia Cognitiva e ao Cogniti-
vismo como movimento nos últimos anos. Neste item, serão avaliadas aquelas críticas que fo-
ram julgadas mais significativas para o objetivo desta tese: a tentativa cognitivista de refunda-
265
ção da Psicologia como ciência moderna. Esta avaliação não pretende simular uma refutação
de todas as críticas possíveis ao cognitivismo, só inventariar as mais importantes destas e
apresentar argumentos que possam (quando possam) contestá-las. Começa pela exposição da
crítica central do Behaviorismo ao Cognitivismo, assim como sua contestação. Posteriormen-
te, avaliam-se as críticas da nova tradição materialista da Ciência Cognitiva à possibilidade de
existência da Psicologia. Em seguida, avaliaremos algumas críticas específicas dos teóricos
pós-modernos ao Cognitivismo e à Psicologia Cognitiva, assim como as respostas a estas. Lo-
go após, será a vez de avaliarmos as críticas advindas da tradição humanista, tanto da fenome-
nológica quanto da filosófica e da empírica americana de Joseph Rychlak. Por fim, no quinto
subitem, avaliaremos algumas críticas efetuadas por alguns dos maiores cognitivistas aos
rumos de seu próprio movimento, com destaque para as de Jerome Bruner e Howard Gardner.
5.1.1 As críticas behavioristas
Várias críticas têm sido pontualmente efetuadas pela tradição behaviorista ao Cogniti-
vismo. Aqui veremos a mais importante delas, mas daremos exemplos de outras. Em linhas
gerais, a relação entre o Behaviorismo e o Cognitivismo tem sido de progressiva integração,
que no entanto toma o caminho da incorporação das conquistas científicas behavioristas ao
arcabouço mais amplo da Psicologia Cognitiva, em cam-pos como o da psicologia da aprendi-
zagem (Rescorla, 1967, Seligman, 1975) ou psicoterapia (Beck, 2000). Mas este movimento
não determinou o fim do programa de pesquisa behaviorista, que segue como uma tradição de
pesquisa solidamente instituída na Psicologia, embora, minoritária, como reconhece
desalentadamente Skinner (1990) no artigo que escreveu na noite de sua morte.
O’Donohue, Ferguson & Naugle (2003) recentemente publicaram interessante artigo
no qual defendem de forma muito curiosa a tese de que a assim chamada “Revolução
Cognitiva” não passa de um fenômeno sócio-retórico. O curioso na estratégia argumentativa
dos referidos autores é que eles montaram um pequeno questionário que enviaram para
aqueles que julgaram os vinte nomes mais importantes do Cognitivismo contemporâneo, com
perguntas sobre que tipo de evidência empírica teria falsificado alguma tese behaviorista até
hoje, ou ainda que tipo de evidência empírica sustentava teses cognitivistas. Apesar de dois
terços dos autores não terem respondido, nomes como Robert Sternberg ou Johnson-Laird
atenderam o pedido dos autores. O resultado é um artigo interessante, no qual os autores
publicam desde uma grande lista de declarações de nomes importantes da Psicologia
defendendo a existência de uma revolução cognitiva até uma deselegante resposta anônima a
suas perguntas. Porém, o artigo é também pouco rigoroso, uma vez que as questões colocadas
266
por aqueles que fizeram a gentileza de responder o questionário não são por eles respondidas.
Entretanto, sua crítica sobre a existência de uma revolução cognitiva nos moldes definidos por
Kuhn procede, uma vez que a Psicologia jamais esteve num estágio paradigmático, e continua
num estágio pré-paradigmático hoje. O Cognitivismo não se constitui no paradigma da
Psicologia contemporânea no sentido estrito que Kuhn dá ao termo. No entanto, é necessário
neste momento enfatizar que existem motivos mais do que suficientes para endossar aqui a
tese de autores como Aaron Beck (2000), Antônio Gomes Penna (1984, 1986), Bernard Baars
(1986), Howard Gardner (1996,1998), Jerome Bruner (1983,1997), Richard Mayer (1981),
Robert Sternberg (2000), Roger Sperry (1993), Ulric Neisser (1967, 1975), entre tantos outros
e admitir que, se não na forma estrita como Kuhn define Revolução Científica, de fato houve
uma enorme e bem sucedida Revolução Cognitiva na Psicologia contemporânea, que mudou a
face da disciplina em todas as suas áreas de estudo e fez do Cognitivismo a posição
largamente hegemônica na mesma, como de resto admitiram (este último aspecto)
laconicamente grandes nomes do behaviorismo como Skinner (1990) e Staats (2004), além
dos próprios O’Donohue, Ferguson & Naugle (2003).
Outra crítica pertinente é a de Arthur Staats (2004). Ele acusa a Psicologia Cognitiva
de descuidar do rigor das definições conceituais e operacionais, e de não ter leis derivadas de
uma teoria comum. Para Staats, psicólogos cognitivos sociais, do desenvolvimento, clínicos,
experimentais e educacionais não compartilham um set comum de conceitos e não
interrelacionam seus trabalhos. Apesar de esta ser uma crítica pertinente sobre o que tem sido
o campo da Psicologia Cognitiva até aqui, não temos motivos para acreditar que isto
continuará assim indefinidamente, ainda mais porque grande parte dos esforços atuais na
abordagem está voltado para a integração conceitual.
Mas como não é objetivo desta tese este tipo de digressão, temos que ir ao ponto chave
da crítica behaviorista, que se dirige à própria possibilidade e pertinência de uma ciência da
cognição. É a esta que precisamos responder para chegarmos à conclusão deste estudo.
Para Skinner, o maior dano provocado pelo mentalismo ressurreto do Cognitivismo
seria o cessar da atividade investigativa provocada pela falsa consideração de estados mentais
e sentimentos como causas dos comportamentos. Em artigo de 1977, intitulado “Why I am not
a Cognitive Psychologist”, Skinner responde a razão de sua rejeição ao Cognitivismo
criticando a tendência a atribuir papel explicativo a entidades mentais como conceitos,
intenção ou vontade. Para Skinner (1977), o maior dano provocado por esta nova espécie de
mentalismo seria o cessar da atividade investigativa provocada pela falsa atribuição das
causas dos comportamentos a estados mentais e a sentimentos: é fácil observar estes últimos e
267
definir serem eles as causas dos comportamentos, sem nos sentirmos inclinados a pesquisar
no entanto o que no ambiente causou estes processos mentais. Afirmando que o
comportamento humano é uma função direta e exclusiva de variáveis do ambiente e que o
cognitivismo ofereceria uma visão enganadora do que aconteceria “dentro do ser humano”,
Skinner alerta que esta crença dirigiria a Psicologia para a modificação de “corações e
mentes” desviando-lhe da tarefa de modificar o mundo onde estes vivem.
No último artigo escrito antes de sua morte, intitulado “Can Psychology be a Science
of Mind?”, de 1990, percebemos um Skinner radicalizado, que deixa mais explícitas algumas
de suas profundas razões e motivações para a rejeição do Cognitivismo. Inconformado com o
que acredita ser uma negligência atual em relação à análise do comportamento, ele deixa clara
a matriz fundamental do divórcio ontológico entre o behaviorismo e o cognitivismo: a noção
de “self iniciador”, ou como já havia sido diagnosticado anteriormente nesta tese em relação a
Gilbert Ryle, o conceito de vontade, de consciência como tendo eficácia causal. A concepção
behaviorista implícita de consciência se assemelha à do dito taoísta de que uma pedra, se
tivesse consciência, acreditaria estar querendo ir para frente, quando na verdade foi atirada. A
consciência seria um epifenômeno sem eficácia causal. Skinner (1990) afirma com escárnio
que a busca introspeccionista é o equivalente na Psicologia à busca pelo Criador na teoria da
evolução. Para ele, a ciência cognitiva é a ciência da criação na Psicologia, na medida em que
luta para manter a idéia de uma mente com eficácia causal, de self iniciador de ações.
Fetzer (2000) sintetiza assim a questão behaviorista. Em linhas gerais, o que Skinner
reiteradamente alega é que a referência a estados mentais internos de um organismo nunca é
indispensável, porque o comportamento de determinado organismo causado por aqueles
estados internos pode ser inferido diretamente das histórias de reforço que ocasionaram estes
últimos. Assim, podemos reduzir isto à forma lógica A causa B, B causa C, logo, a inferência
preditiva A causa C é plenamente justificável (ainda mais por se tratar dos únicos termos que
podemos observar diretamente). É importante notar que estamos diante de um argumento
sério. Sua dependência de uma concepção mecanicista estrita no entanto é óbvia, e revela por-
que não é o fato de eventos mentais serem inobserváveis que os torna prescritos pelo Behavio-
rismo, mas sim o conceito de “propriedades emergentes”, da consciência como possuidora de
eficácia causal. Se tal coisa fosse possível, o esquema behaviorista estaria condenado.
Assim, uma vez que as credenciais científicas do Behaviorismo são incontestáveis (as
credenciais de teoria condicional, falsificável empiricamente e aproximativa, não as
credenciais do Positivismo Lógico), caso a argumentação de Skinner esteja correta, não é a
268
viabilidade do Cognitivismo que estaria agora sendo posta em questão, mas a sua própria
pertinência como disciplina.
Em linhas gerais, o Cognitivismo respondeu desta maneira a estas objeções históricas.
Primeiro, não necessariamente precisamos postular manifestações causais da consciência para
postular a importância dos estados cognitivos na predição do comportamento, como o
Funcionalismo demonstrou.
Segundo, a crítica behaviorista ignora o fato de que é muito mais fácil obter
conhecimento, mesmo que indireto, dos estados cognitivos internos atuais, do que
conhecimento sobre a história de reforçamento que os teria produzido. Saber que alguém
acredita em algo por inferência efetuada em virtude de seus comportamentos numa situação
controlada, é bem mais fácil que saber como a pessoa chegou a desenvolver esta crença (ou
este padrão de comportamento sob certas circunstâncias ambientais).
Terceiro, como Fetzer (2000) argumenta, o Behaviorismo esquece que para obter uma
explicação adequada cientificamente é necessário levar em conta cada fator cuja presença ou
ausência faz diferença para o comportamento a ser explicado. E o que é importante destacar
aqui, é que uma vez que uma probabilidade de reação (no sentido behaviorista) já tenha sido
adquirida, sua história de aquisição já não importa. O que realmente importa para a
explicação do comportamento neste caso são os padrões que determinam esta probabilidade,
ou seja, a cognição que a história de reforçamentos teria engendrado.
Quarto, é evidente que o que torna o raciocínio de Skinner válido é a postulação do
termo intermediário, é ele que conecta causalmente a causa A ao efeito C, e seu nome é
cognição (ou qualquer tipo de estado interno que Skinner queira postular). Para Skinner
portanto, se torna inescapável a postulação de estados mentais que conectem A e C. Portanto,
sem conhecer as premissas que conectam A a B e B a C é impossível obter a inferência
preditiva de A para C. Precisamos conhecer a função que conecta causas A a efeitos C, se
não, não teremos com base em preceitos behavioristas predições confiáveis nem para o efeito
que será obtido pela emissão verbal “Quanto é três vezes quatro?”.
Por fim, gostaria de propor ainda uma outra última crítica ao argumento de Skinner.
Mesmo que hipoteticamente pudéssemos explicar o comportamento de organismo com base
em sua história ambiental, os estados mentais, as cognições, os eventos conscientes não
deixariam de ser objetos de interesse científico em si mesmos. Talvez seja útil pensar na
Psicologia como ciência do comportamento, mas apesar do interesse natural por este objeto (o
comportamento objetivo de nossos semelhantes), existe um outro objeto ainda mais interes-
sante para todo e qualquer ser humano: seus próprios estados mentais, suas cognições. Se é
269
possível, e a Psicologia Cognitiva já demonstrou que é, para qualquer abordagem objetiva
revelar aspectos mesmo que mínimos deste objeto de estudo, isto seria suficiente para justifi-
car sua existência como disciplina. Nem sempre queremos entender o comportamento dos
outros, às vezes, queremos também entender um pouco de nós mesmos. Observe-se, não de
nossos comportamentos, mas do que nos confere identidade própria, essa “ilusão provocada
pelo cérebro” que torna possível a alguém ser iludido, que chamamos consciência.
Por fim, vamos aos argumentos da forma filosófica do Behaviorismo, o Behaviorismo
Lingüístico, contra o Cognitivismo. Recapitulando, a essência da argumentação de Ryle
(1949), é o ataque ao que ele chama de “dogma do fantasma na máquina”, sugestiva piada
filosófica que ilustra o absurdo do dualismo de substâncias cartesiano. Como poderia algo
imaterial habitar no interior de uma máquina física e ter relações causais com a mesma, sendo
a fonte de comportamentos? Ryle extrai daí uma série de imagens filosóficas também
famosas, mas consideravelmente menos inteligentes, como por exemplo a do teatro mental
(mental theater), onde os assombrados pelo dogma acreditariam que se passam coisas como
os eventos mentais (Ryle usa a expressão “mental ghostly event”). Para ele, a crença em uma
coisa tão bizarra quanto aquela em que os pobres sete bilhões de mortais que vivem hoje
sobre a terra acreditam – como por exemplo, que a causa de levantarmos da cadeira é um
evento mental (intenção de levantar da cadeira) – é uma doença filosófica cartesiana que pode
ser curada com a evidência das explanações do Behaviorismo Lingüístico. Este livraria o
infeliz e ignorante ser humano da necessidade de ter que explicar uma cadeia interminável de
causas e efeitos fantasmagóricos culminando no salto impossível para a realidade física.
O Behaviorismo Lingüístico propõe que os conceitos mentais nada mais são do que
referências a comportamentos ou disposições comportamentais. Uma disposição é a tendência
a se comportar de certa maneira sob certas circunstâncias. Assim, se eu falo que alguém é in-
teligente, isto quer dizer (isto significa) que esta pessoa vai se comportar de certa maneira so-
bre certas circunstâncias (como tirar nota alta num teste de QI). Assim, o conceito de inteli-
gência como nós usamos no dia a dia não se refere a um mecanismo abstrato interior de códi-
gos, regras e representações, mas serve para descrever e prever o comportamento. Dito desta
forma, não seria necessária nenhuma referência cartesiana a uma vida interior fantasmagórica.
Bem, as respostas às criticas do behaviorismo lingüístico (responsável direto pelo rela-
tivismo lingüístico pós-moderno) ao cognitivismo são várias, e algumas objeções a esta escola
podem ser derivadas das idéias do Funcionalismo, já expostas nesta tese. Assim, vamos apre-
270
sentar aqui algumas outras, que sustentam meu julgamento de que o Behaviorismo Lingüís-
tico é baseado em dois saltos falaciosos, equivalentes ao salto do fantasma para a máquina.
A primeira falácia é a do “monomonismo”. O argumento do fantasma na máquina é
válido somente para a clarificação do problema central da ontologia cartesiana, a tese das duas
substâncias, mental e material. Porém, uma vez que esteja claro que o monismo é uma
alternativa filosoficamente mais plausível, daí não decorre que o monismo materialista é a
única opção filosófica a ser feita, muito menos científica, pois qualquer opção desta ordem
trata-se de opção ontológica infalsificável. A opção racional no caso se referiria à necessidade
de postulação de uma única substância, não da matéria como única substância.
Podemos resolver o problema cartesiano adotando duas soluções: ou a única substân-
cia é a matéria, ou a única substância é mental. A primeira tese é o materialismo, e implica a
visão do universo como máquina, a segunda tese é o panpsiquismo, e implica a visão do uni-
verso como atividade. Panpsiquismo não pode ser confundido com o idealismo (geralmente a
segunda falácia que costuma seguir a primeira, quando sequer abordada), aqui não se afirma
que não há nada além da mente, ou de nossa própria mente (solipsismo), mas sim que tudo o
que existe é da mesma natureza que a consciência. Muitos ficariam surpreendidos, mas esta
foi uma posição que, com todas as suas variações possíveis (realistas, vitalistas, idealistas,
solipsistas), foi hegemônica na metafísica moderna depois de Descartes (estamos aqui falando
de Leibniz, Malembranche, Spinoza, Hegel, Fichte, Schopenhauer), e era adotada pelo funda-
dor da psicofísica, Gustav Fechner, o verdadeiro pai da Psicologia Experimental. A falácia do
monomonismo, é a aceitação acrítica do materialismo como tese científica, e não metafísica.
Vemos a presença de tal falácia em autores tão dispares como Churchland (1991), Pinker
(2004), Damásio (1996), Fetzer (2000), Araújo (2003) ou Bem & De Jong (1997). Como
vimos no primeiro capítulo, o materialismo mecanicista não é mais compatível com a Física
contemporânea, o que embora não nos obrigue a aderir à “Nova Era”, sem dúvida nos obriga
a abandonar essa imagem falsa de matéria e de universo, e mais ainda a considerar a adesão a
esta tese metafísica totalmente dispensável como credencial científica.
A segunda falácia do Behaviorismo Lingüístico é buscar dissolver a questão ontológi-
ca na questão pragmática, como se a segunda fosse o objetivo da primeira. Definir quando é
adequado o uso de uma palavra, não equivale a determinar o significado subjetivo daquela
palavra, nem determinar a que aquela palavra verdadeiramente se refere. Como afirmam Bem
& De Jong (1997), ao almejar descrever a “geografia lógica” de nossos conceitos, ele tenta
reduzir genuínos problemas metafísicos sobre o que são eventos mentais e todas as outras
coisas a falácias conceituais, a serem dissolvidas por análise lingüística. Como nos demonstra
271
Fodor (1968), o Behaviorismo Lingüístico não explica nada sobre os mecanismos de produ-
ção de comportamentos, somente sobre o processo de “etiquetagem” de palavras para estes, o
que nada mais é do que senso comum banal, ou seja, como as palavras são atribuídas a
padrões de comportamentos manifestos. Fodor (1968) afirma que isto não tem nada a ver com
os problemas centrais da Filosofia da Mente: não podemos reduzir esta disciplina à preocupa-
ção lingüística sobre se é correto lingüisticamente atribuir palavras referentes a estados men-
tais a computadores, uma vez que estas sejam descrições adequadas de seus comportamentos:
“I suspect, however that the question to which this remarks have been addressed is not
really the question that people worry about. For what one wants to know is not whether
some machine processes might be functional equivalents of some organic psychological
processes. Nor is it whether it could ever be rational or linguistically correct to say that a
machine feels pains or thinks, or has gotten confused, or whatever. Rather, it is whether,
is very fact the machine hurts or cogitates, or finds itself bewildered. Failure to
distinguish between linguistic correctness and truth has often been the beginning of bad
Philosophy, and perhaps, this question is, after all, left over when the linguistic
proprieties have been attended to. If it is, it’s to hard for me.” (p.152)
5.1.2 As críticas materialistas
A teoria da identidade mente-cérebro, já exposta sumariamente aqui, pode ser resumida
à identificação de estados mentais com estados cerebrais. Esta posição, como também já foi
visto, sofreu um ataque devastador vindo de dentro do próprio materialismo, por parte do
Funcionalismo. Putnam (1961) demonstra que a teoria da identidade está baseada no não
reconhecimento das ordens distintas da mente (funcional) e do cérebro (material). Sobre a
incoerência desta posição, remeto novamente ao subitem 3.1.4, e reproduzo abaixo ilustrativo
trecho de Fodor (1968) onde aborda ironicamente a teoria da identidade:
“Even on the view that mind states and brain states are in fact identical, the propositions
that assert such identities are surely only contingent. Hence, on the assumption that
materialism is correct, it would still be the case that there are some true contingent
propositions that cannot be formulated, unless mental language is employed: namely, all
the propositions that assert of specified mental states that they are identical with specified
psychological states.” (p.60)
272
Assim que a teoria da identidade perdeu seu ar de respeitabilidade acadêmica, as
motivações metafísicas que a engendram naturalmente tiveram que encontrar expressão sob
uma nova denominação, que é o que hoje conhecemos como materialismo eliminativo. Paul
Churchland (1991, [1981]) sintetiza seu ataque à filosofia da mente de Jerry Fodor com a
afirmação de que o pensamento não tem estrutura proposicional como quer Fodor, mas sim
associacionista. Ele pretende ter apresentado um modelo integrado de Epistemologia,
Filosofia da Mente e Psicologia naturalistas, três em um. Ao mesmo tempo em que defende
estas teses altamente controversas, sempre condenadas a circularidade, ele manifesta
aderência às posições epistemológicas radicais de Richard Rorty e Paul Feyerabend,
transformando o materialismo eliminativo num estranho caso de materialismo associacionista
pós-moderno. Mas antes que este trabalho possa dar margem à impressão de excesso de
parcialidade, é preciso lembrar que não se trata aqui da avaliação da Filosofia da Mente ou da
suposta “Epistemologia” do materialismo eliminativo, mas somente de sua acusação de que a
Psicologia Cognitiva não tem objeto legítimo de estudo.
Vamos então expor esta crítica, que caso verdadeira, tornaria impossível não somente
a existência da Psicologia Cognitiva, mas a de toda e qualquer Psicologia. Se as teses do
materialismo eliminativo fossem viáveis, a Psicologia poderia ser uma disciplina tão provi-
sória quanto foi a alquimia antes da Química, e seu papel seria somente conseguir alguns efei-
tos pragmáticos até a chegada da era de ouro, o futuro milênio messiânico das neurociências.
Para Churchland (1991), a folk psychology é não apenas um modo de falar sobre even-
tos mentais na forma de desejos, crenças e intenções, ela é de fato uma teoria sobre esses
eventos mentais, e como tal, deveria ser julgada como qualquer outra teoria. Isto quer dizer
que deveria apresentar predições falsificáveis, demonstrar ser um programa de pesquisa
progressivo, apresentar novas direções de pesquisa e ser coerente com o resto da ciência.
Churchland (1991) afirma que uma teoria não é um edifício de proposições, axiomas e
sentenças, ou seja, a tese Positivista Lógica e Racionalista Crítica assumida na “Linguagem
do Pensamento” (Fodor, 1975). Ela é, simplesmente, uma capacidade adquirida pelo cérebro
de discriminar estímulos em altíssimo grau de especialização. Isto quer dizer para ele que a
idéia de que temos desejos, crenças, pensamentos, sentimentos e um eu (a folk psychology), é
nada mais que uma teoria entre outras, e uma teoria falsa. Esta adesão incondicional das
pessoas a esta teoria, para Churchland (1991), está baseada na “crença errônea” de que temos
conhecimento direto e infalível do que acontece em nossa consciência, ao passo que só temos
conhecimento indireto e falível do que ocorre no mundo externo. Como toda teoria, nossa
crença de que sentimos dor num tratamento de canal, não é diretamente dada, esta experiência
273
é também theory-laden, ou seja, “carregada” de teoria. Para Churchland, a tese popperiana (ou
Duhen-Quine) também se aplica às próprias “experiências” conscientes. Contrapondo-se a
tese tradicional originária de Brentano e adotada pelo Cognitivismo (Fodor, 1975) e pela
moderna filosofia da linguagem (Searle, 2000) de que a intencionalidade é a marca distintiva
da consciência, Churchland (1991), mostrando muito pouca familiaridade com a origem do
conceito, afirma que a intencionalidade é simplesmente um fato sobre a linguagem que
restringe nossa visão do mundo e dos processos cerebrais. Como mais uma teoria, pode ser
falsificável, e portanto, substituível.
Enfim, este é o projeto do materialismo eliminativo: eliminar da Psicologia os termos
da folk psychology, uma vez que estes seriam comprometidos com uma tradição dualista,
mostrando-se portanto inadequados a uma redução a estados e processos cerebrais. Para
incorporar a Psicologia ao corpo da ciência, o materialismo eliminativo prega a substituição
destes termos por conceitos baseados em termos fisiológicos. Como citado neste trabalho,
Robinson (1985) define o materialismo eliminativo como o projeto de remover
progressivamente os termos mentais do vocabulário científico à medida que as descobertas
científicas das neurociências forem mostrando como, para cada um destes termos, existe um
único evento neural ou físico que exaustivamente o descreve.
Não é necessário recorrer ao apoio de nenhum tipo de citação para afirmar que,
evidentemente, não ocorreu, nem houve até hoje qualquer esperança remota de ocorrer, a
redução de um único evento mental a estados neuronais, assim como nenhuma refutação de
tese alguma da folk psychology. É claro que, mais do que pela sua inverossimilhança, o
materialismo eliminativo rapidamente conheceu o mesmo destino da tese da identidade, uma
vez que às incoerências desta, acrescentou todas as do pós-modernismo. Porque então ele é
abordado nesta tese? Porque a despeito de sua inverossimilhança, é uma teoria suficientemen-
te corajosa e explícita de um dos mais persistentes adversários históricos à pretensão da
Psicologia em se constituir como uma disciplina autônoma: o materialismo fisiologista. Como
tal, dá dignamente a oportunidade de crítica a todos aqueles que dela discordam.
A tese de que a Psicologia é na verdade uma Fisiologia primitiva, tem longa tradição
filosófica, passando por Helmholtz, Freud, o psicologismo positivista e a tese da identidade. É
este “erro de Damásio” que devemos investigar, e definir como o Cognitivismo respondeu a
esta oposição secular. Não repitiremos aqui a refutação de Husserl (1973) a todo e qualquer
psicologismo, nos concentrando somente na longa série de novos e inacreditáveis erros e
contradições trazidos pelo materialismo eliminativo à longa história de persistente erro deste
274
tipo de posição. Deixando de lado todo o conjunto de teses peculiares do casal Churchland,
vamos nos concentrar em seu ataque à Psicologia e à folk psychology.
Primeiro, vamos apresentar a crítica efetuada por Daniel Robinson (1995), o mais
respeitado filósofo da Psicologia na atualidade, em artigo que, apesar de recente, já se tornou
clássico: o “The Logic of Reducionistic Models”, de 1995. Para Robinson (1995), existe uma
diferença intransponível entre a redução nomológica, explicativa, e a redução ontológica. A
redução da explicação de um fenômeno empírico a um pequeno número de relações funcio-
nais, que chamamos de leis, não tem nada a ver com o plano ontológico. Quando afirmo que a
intensidade de uma sensação visual é determinada pela intensidade da luz, não estou reduzin-
do a sensação à luz. Dizer que uma experiência sensorial é um evento cerebral, é dizer que a
experiência de ver as luzes da Torre Eifel é a ativação neuronal de um conjunto C de fibras: é
passar do plano explicativo para o ontológico. E o que temos até agora, nada mais é do que
descrições de funções, de regularidades muito precárias e diluídas entre um evento e outro.
A segunda crítica deve partir das reivindicações supostamente empíricas dos Church-
land, para perguntar como é que eles pretendem tornar exeqüível empiricamente o projeto de
mapear dez bilhões de neurônios e alguma potenciação de ordem incomensurável referente a
todas as sinapses existentes, e é claro, uma para cada cérebro, já que cada um tem configura-
ção sináptica e neuronal diversa (à exceção das macro-estruturas, que é claro, teriam que ser
reduzidas aos neurônios e suas sinapses, que, de fato, são também ilusórias e precisariam ser
reduzidos, se tal redução fosse de fato conseqüente, às moléculas, estas aos átomos e estes ao
nível quântico que, até agora, ninguém sabe o que é). Além disso, supondo que continuaremos
sem acesso direto à atividade do cérebro, teremos que a simular um num hiper-computador a
ser ainda construído talvez daqui a um século, ou mapeá-la numa hiper-ressonância magnéti-
ca, e teremos então um novo problema com a linguagem: agora estaríamos obrigados a tradu-
zir o que de fato é a linguagem do cérebro para uma linguagem de programa, para rodar numa
linguagem de máquina, mas aí teríamos também todos os problemas já vistos com a simula-
ção, que está pressupondo aqui um conhecimento prévio sobre um cérebro que ainda pretende
mapear. Como demonstra Araújo (2003), os problemas ainda podem ser maiores que isso para
quem quer simular um cérebro. Para construir uma simulação é preciso que as conexões cere-
brais obedeçam algum tipo de regra, mas nós não a conhecemos, se é que existe uma. E caso
não exista regra, não pode existir software. Enfim, como está óbvio que ninguém que tenha o
menor nível de conhecimento destes problemas pode achar que algo desse tipo é exeqüível,
resta saber porque os Churchland defendem o caráter empírico da teoria eliminativista. É o
materialismo eliminativo, seriamente, um programa empírico, ou pura propaganda metafísica?
275
Araújo (2003) aponta ainda um terceiro contra-senso mais severo ao projeto eliminati-
vo, já que, à medida que a pesquisa empírica avança com o mapeamento da atividade cerebral
através da PET, mais se depende de relatos introspectivos de sujeitos experimentais. Como só
existe a folk psychology para descrever estes estados, isto leva ao que Araújo denomina
“paradoxo da eliminação”: para eliminar a folk psychology, precisamos nos servir dela.
Em quarto lugar, sabemos que hoje, explicações por meio de estados mentais tem
muito mais poder sistemático do que explicações em termos de estados cerebrais. Qual é a
utilidade a médio prazo de um programa como este para a compreensão do comportamento e
da cognição humana? Nosso conhecimento inferencial de estados mentais, como observa
Fetzer (2000), é muito mais confiável e accessível do que as informações que poderíamos
possuir sobre o estado cerebral de alguém. Porque portanto trocaríamos sua terminologia?
Fetzer nos lembra que até num simples caso de embebedamento a inferência de que algo
físico está errado envolve raciocínio indireto.
Em quinto lugar, estados mentais podem ser executados de várias maneiras diferentes
no cérebro. Até num mísero HD um programa pode ser registrado de infinitas maneiras
diferentes e fragmentadas, e quando é executado, cada estado físico do hardware na memória
RAM é diferente, mas o estado funcional é idêntico, como já vimos. Assim, o poder
explanatório dos estados cerebrais em relação ao comportamento e às cognições se perdem,
mas o dos estados mentais permanecem independentemente de sua realização física. O que é
então que os Churchland estão nos pedindo afinal de contas? Seria para trocar ferramentas
conceituais úteis e que podem funcionar perfeitamente um dia, por uma ferramenta que é
logicamente inválida como princípio explicativo, somente para satisfazer seus estranhos e
poderosos compromissos afetivos metafísicos?
Em sexto lugar, do que serviria para o cidadão comum, para o clínico psiquiátrico, pa-
ra o psicoterapeuta, para o psicólogo organizacional, uma terminologia neurológica? Alguém
esta realmente interessado em que conjunto de neurônios está sendo ativado quando temos
uma dor de dente? Como instrumentalizar, fazer uso da imaculada terminologia neurológica
para realizar uma intervenção psicoterapêutica em um destes sete bilhões de seres ingênuos
que acreditam que são conscientes e tem desejos e crenças? Falar na ativação e rede de
relações entre três bilhões de neurônios que adequadamente descreve um acesso de ciúmes?
Parece que no fim das contas, para fazer uso deste instrumental imaculado, precisaríamos,
mais uma vez, recorrer a folk psychology, como afirma Fodor (1968) no início deste subitem.
Por fim, agora que o absurdo da tese eliminativista está demonstrado, cabe uma última
crítica, de caráter totalmente externo. A grande fragilidade do materialismo eliminativo é que
276
ninguém dá a mínima para o que ele quer. Estados mentais são o objeto de interesse das
pessoas comuns, não estados cerebrais. Qualquer redução na ciência deveria ser acompanhada
de tradução como colocado acima, o que implicaria numa não-eliminação da folk psychology.
Ninguém sensato está interessado no seu estado cerebral quando afirma que “o gosto desta
cereja está ligeiramente azedo”, está interessado no gosto. Imaginar que esta qualidade única
de experiência seja provocada por algum estado quantitativo e discreto de ativação de bilhões
de neurônios é uma coisa. Mas imaginar que esta qualidade de experiência única seja idêntica
a algum estado quantitativo e discreto de ativação de bilhões de neurônios, é outra totalmente
diferente, e, de fato, é uma tolice ontológica na qual é muito difícil acreditar que alguém,
efetivamente, acredite.
5.1.3 As críticas pós-modernas
Neste subitem exporemos alguns argumentos da autodenominada Psicologia pós-mo-
derna contra a concepção moderna de ciência psicológica e o Cognitivismo. Ao contrário das
críticas avaliadas anteriormente e das que serão abordadas adiante, estas são críticas externas,
pois não partem dos mesmos pressupostos admitidos pela ciência moderna. Assim, as preten-
sões do Construcionismo Social, analisadas pormenorizadamente em dissertação de mestrado
intitulada “Pós-modernidade e Psicologia Social: Uma Crítica Epistemológica” (Castañon,
2001) e em dois artigos publicados em 2004 (Castañon 2004, 2004b), não cabem ser retoma-
das aqui. O Construcionismo Social rejeita todos os pressupostos necessários à atividade
científica: rejeita o realismo ontológico e adota um anti-realismo ontológico; rejeita o princí-
pio da regularidade do objeto e adota o princípio de irregularidade do objeto; rejeita o otimis-
mo epistemológico adotando um pessimismo epistemológico; rejeita a capacidade representa-
tiva da linguagem adotando um anti-representacionismo; rejeita a teoria da correspondência
como critério de verdade; rejeita os pressupostos lógicos fundamentais com a aceitação de
incoerências e contradições teóricas como elementos naturais de seu corpo teórico; rejeita o
pressuposto axiológico do conhecimento como algo de valor intrínseco com a afirmação que
as reivindicações de conhecimento objetivo são reivindicações politicamente opressoras em
virtude de seu próprio código. Assim, uma vez que parte do princípio que a Psicologia
Moderna não é possível, não devemos perder de vista que não se trata de um programa de
pesquisa concorrente para a Psicologia, se trata de alguma outra coisa. Todas as críticas às
teses pós-modernas que foram feitas no capítulo dois (item 2.6) igualmente se aplicam às pré-
tensões do Construcionismo Social. Assim, aqui, depois de uma breve apresentação de suas
alegações centrais, abordaremos somente dois aspectos deste movimento que representam
277
críticas diretas ao Cognitivismo: a primeira é o seu peculiar “distúrbio ontológico”, o ataque
ao conceito de sujeito como sendo uma construção ideológica burguesa. A segunda, é o seu
peculiar “distúrbio epistemológico”, a proposta de uma “epistemologia social” não-opressora.
Construcionismo Social é o nome que passou a designar o movimento de crítica à
Psicologia Social “modernista” que tem sua principal referência teórica em Kenneth Gergen.
Em dois artigos hoje célebres, “Social Psychology as History” de 1973, e “The Social
Constructionist Movement in Modern Psychology”, de 1985, Gergen traçou os fundamentos
críticos e o panorama dessa abordagem da Psicologia Social, que se baseia em três grandes
pressupostos: O primeiro é que a realidade é dinâmica, não possuindo qualquer tipo de
essência ou leis imutáveis. A segunda é que o conhecimento é somente uma construção social,
baseado em comunidades lingüísticas. A terceira é que o conhecimento tem conseqüências
sociais, e que são estas que devem determinar se ele é válido ou não.
Gergen (1973,1985,1992), em alguns artigos em que faz uma análise panorâmica do
quadro da Psicologia Social contemporânea, estabelece o movimento do Construcionismo So-
cial como uma oposição aos princípios básicos que norteiam a ciência psicológica “modernis-
ta”. Tal classificação se dá em virtude da adesão da Psicologia Social “padrão” (Gergen,1992)
aos princípios básicos do otimismo epistemológico, do realismo ontológico, do método empí-
rico de investigação da realidade, da regularidade do objeto e do progresso científico. Para os
autores que se inserem no que classificam como a “virada pós-moderna” da Psicologia Social,
o movimento construcionista social, esses princípios básicos não só são negados como substi-
tuídos por seus opostos. Kendall & Michael (1997) avaliam que esse movimento pós-moderno
na Psicologia Social possui quatro características teóricas e metodológicas básicas. A
primeira, é a tentativa de dissolver o tradicional objeto da Psicologia, substituindo a realidade
da mente e do comportamento pelas convenções e recursos lingüísticos que “constroem
socialmente” o mundo. A segunda, é o abandono da busca por propriedades universais na
pesquisa psicológica e a adoção da reflexão histórica e contextual como centro da atividade
em Psicologia. A terceira, é a marginalização do método e sua classificação, em versões mais
radicais desse movimento, como um truque retórico. A quarta, seria o abandono da narrativa
do progresso da ciência rumo a uma verdade objetiva para a adoção de uma concepção de
conhecimento fragmentário e contingente histórica e socialmente. Como afirma Zuriff (1998),
a essência da posição ontológica do Construcionismo Social é a proposição de que não há
realidade objetiva a ser descoberta; seres humanos constróem o conhecimento. Barbara Held
(1998) acrescenta a isso o termo “socialmente”. Para o Construcionismo Social nós
construímos teorias a respeito do funcionamento do mundo através da interação social.
278
Kenneth Gergen (1985, 1992, 1994) reiteradamente reafirmou seus compromissos
anti-representacionistas. Por representacionismo Gergen (1994) define a doutrina que defende
existir ou poder existir uma relação estável entre as palavras e o mundo que elas representa-
riam. Seguindo Wittgenstein (1975) e Rorty (1989), Gergen (1985, 1994) defende que a
linguagem é um convencionalismo. O significado não se baseia nos objetos, no processo
mental ou em entes ideais. Adquire-se através do contato social com outros habitantes da
cultura em questão. Fora da linguagem não há ponto de apoio objetivo nem independente para
o pensamento, portanto, a linguagem não representa nada fora dela mesma, é auto-referente e
dependente de jogos de linguagem particulares. Assim, para o Construtivismo Social (Shotter,
1992) nossas teorias socialmente construídas não nos aproximam de uma descrição mais
acurada do “mundo como ele é”, de uma realidade objetiva, independente do sujeito do
conhecimento. Isso acarreta de qualquer maneira alguma forma de anti-realismo.
Bem, uma vez oferecido o panorama da abordagem, vamos à primeira das críticas
diretas ao Cognitivismo, a questão da dissolução do conceito de sujeito. Rom Harré (1989) é
um dos construcionistas sociais mais representativos e mais preocupados com a questão
ontológica, questão em cima da qual, segundo ele, a ciência psicológica precisa estar assen-
tada. Ele procurou desenvolver uma ontologia que pudesse escapar do dilema anti-realista
exposto acima. Harré (1989, p.440) assume o pressuposto de que existem duas realidades
humanas distintas, passíveis de serem estudadas cientificamente. Uma delas é fisiológica, a
natureza biológica do ser humano e seus sistemas de interação molecular. A outra é nossa
“natureza social” como elementos de uma rede de interações simbólicas mediadas. Ele afirma
que no desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa, os processos fisiológicos e as
interações sociais precisam ser tratadas como ocorrentes em realidades independentes,
reconhecendo que sua posição consiste num novo dualismo.
Assim, para a natureza biológica do homem, crê Harré (op. cit.), o tratamento das
pessoas como indivíduos seria adequado. Mas para sua natureza social o tratamento seria
inadequado, pois as pessoas não seriam mais do que “nós numa rede, nódulos numa estrutura,
elementos num coletivo” (p.440). Seu argumento é que, tomados de um ponto de vista
biológico, indivíduos podem ter propriedades únicas, mas tomados coletivamente, os atributos
de uma pessoa somente podem existir em virtude de suas relações com outras.
Deste modo, Harré quer dirigir a atenção da Psicologia para as atividades lingüísticas
do ser humano, concentrando a atividade teórica e experimental desta no mapeamento do ca-
minho pelo qual fenômenos psicológicos como memória, emoção, percepção, dependem do
lugar que a pessoa ocupa na rede de “trocas comunicacionais” (toda série de comunicações
279
verbais e não-verbais onde o significado das trocas de sinais é convencional) da sociedade.
Harré (1989) sabe que esta é uma ontologia radical. Ele pretende, ao adotá-la, enfatizar a
estrutura às custas de outras possibilidades ontológicas, principalmente daquela que ele chama
de “ontologia cartesiana”, que seria a das Ciências Cognitivas. Enquanto a ontologia do
Construcionismo Social de Harré define como objeto da Psicologia as interações sociais, a
“ontologia cartesiana” proporia a existência de uma substância mental, onde se dão os proces-
sos psicológicos. Poderíamos concluir disso que a ontologia proposta por Harré (1984) nega a
exis-tência da mente como entidade real, no que estaria em sintonia com seu primo filosófico,
o materialismo eliminativo. Ele chega a fazer esta incrível declaração: “We should begin with
the assumption that the primary location (in both attemporal and logical sense) of
psychological processes is collective rather than individual” (1984, pág. 4 e 5).
A coisa pode ficar pior, e virar acusação de cunho moral e político. Este é o caso da
corrente “crítica” do Construcionismo Social. Para esta (Parker, 1989), as teorias tradicionais
da Psicologia constituem um mecanismo cultural que perpetua a ideologia da classe dominan-
te e ajuda a manter o status quo. Procura-se portanto predominantemente identificar as formas
pelas quais a ideologia mantém o status quo e defende as relações de poder, baseadas no do-
mínio. Para essa abordagem, é tarefa da Psicologia ajudar a transformar as condições atuais e
promover uma sociedade melhor. Ela denuncia o individualismo do Cognitivismo como
sendo um desses mecanismos perpetuadores da ideologia dominante, acusando a centralidade
do conceito de indivíduo na Psicologia Social Cognitiva, onde este é tomado como a realidade
primária, a partir da qual se desenvolve a interação social e a sociedade. Para o Construcionis-
mo Social “Crítico”, o conceito de indivíduo auto-suficiente é uma ficção: não se pode desco-
nectar o indivíduo de seu contexto individual e histórico. Essa separação do indivíduo da
sociedade alimentaria a crença de controle pessoal ilimitado e debilitaria a ação coletiva que
promoveria mudanças sociais. Sampson (1983), é um dos integrantes dessa abordagem que
acusa o individualismo filosófico de servir aos interesses da classe dominante dentro da
sociedade capitalista, chegando à incrível conclusão que a adoção do indivíduo como objeto
primário de investigação da Psicologia contribui para a manutenção da ordem social vigente.
Antes de passarmos a oferecer as respostas de autores cognitivistas a estas peculiares
críticas, cumpre concluir sua exposição com a apresentação da tese da “epistemologia social”.
Gergen (1989) defende que o Construcionismo Social é uma outra revolução em curso na Psi-
cologia, contrapondo-se ao Cognitivismo e sua ontologia e epistemologia para ele comprome-
tidas com os princípios de uma metafísica dualista cartesiana, onde “a mente deve funcionar
como espelho do mundo”. Para ele, a revolução cognitiva é uma “revolução equivocada”, e só
280
serve para “cegar a disciplina para a muito mais penetrante revolução” (1989, p.471) do que
ele denomina epistemologia social. Gergen (1989) formula sua versão para uma “revolução
epistemológica” na Psicologia partindo do prinpio de que o local do conhecimento não é
mais visto como sendo a mente individual, mas os padrões das narrativas sociais (!). Ele
explica isto argumentando que ao abandonarmos o foco de nossa concentração da mente e do
mundo e o dirigirmos para o problema da relação entre as palavras e o mundo, nós
mudaríamos também a atenção antes dirigida às “proposições em nossa cabeça” (p.471) para
as proposições em nossa linguagem escrita e falada. Uma vez que a linguagem não é privada,
mas por definição deve permitir a comunicação e portanto ser social, Gergen conclui que as
proposições de conhecimento não são conquistas da mente individual, mas conquistas sociais.
O segundo argumento de Gergen (1989) é só uma repetição de Rorty e da crítica ao
que ele denomina epistemologia dualista cartesiana, crítica que defende não haver resposta à
questão de como a mente pode vir a refletir com segurança a natureza do mundo real. Assim,
segundo Gergen (1989), não há meios de determinar como um indivíduo poderia adquirir
conhecimento acurado, ou mesmo como ele poderia escolher entre duas teorias diferentes qual
delas é a melhor aproximação da verdade. Mas, uma vez que se deve mudar o foco da mente
para a linguagem, Gergen acredita que não precisamos mais nos perguntar como a linguagem
poderia se tornar uma representação mais adequada do mundo.
Daqui decorre o terceiro argumento de Gergen (1989) em defesa da mudança do local
do conhecimento da mente individual para os padrões das narrativas sociais. Este é que com a
adoção de uma “epistemologia social”, as questões concernentes à verdade e à objetividade
mergulham em obscuridade, uma vez que objetividade nada mais seria do que a qualidade de
descrever de forma válida, clara e acurada o mundo real, conseguida através de experiências
de qualidade. Agora, conceitos de verdade e objetividade nada mais são do que “truques
retóricos”, “úteis para render louvores ou provocar culpa” (p.473).
Essa posição de Gergen (1989) significa na prática a rejeição do princípio da corres-
pondência como critério de verdade, com a adoção da posição de que o que importa numa
sentença não é se ela corresponde em sua estrutura sintática e conteúdo semântico ao real, e
sim se ela uma vez adotada conduz com sucesso as ações humanas para seus propósitos pra-
gmáticos. Ou seja, Gergen adota aqui no que chama de Epistemologia Social uma espécie de
pragmatismo epistemológico, derivado da obra de Richard Rorty (1979). Ele considera essa
posição emancipatória, argumentando em favor de uma suposta função essencialmente retóri-
ca da pesquisa empírica, que forneceria um caminho para dirigir a força literária às várias
explicações da realidade, para então ser usada no sentido de abrir o caminho para a mudança.
281
Tendo seguido por esse caminho, Gergen (1989) chega à conclusão de que o novo
domínio de questões para o “epistemólogo social” é o domínio dos valores humanos, tradicio-
nalmente domínio da Axiologia. Acusa a “epistemologia dualista” de tornar secundárias as
preocupações éticas e ideológicas. Observa que para a epistemologia tradicional, os valores
que dão sentido ao que a pessoa gostaria que fosse o mundo, atrapalham sua objetividade no
julgamento de como o mundo realmente é. Gergen argumenta que as explicações apresentadas
de como o mundo é estão mergulhadas em certas práticas sociais; e por afirmar certas proprie-
dades como realidade irão atuar no sentido de sustentar certas práticas sociais e promover a
extinção de outras. Assim, Gergen (1989, p.473) afirma que a questão crítica em relação às
várias explicações e narrativas de mundo, é determinar que tipo de práticas elas suportam. O
“epistemólogo social” não deve perguntar se seu conhecimento é objetivamente válido, antes
ele deve perguntar-se de que maneiras a vida das pessoas poderia ser melhorada se ele
adotasse o arcabouço teórico e explicativo de mundo que pretende adotar para uma certa
situação. Em suma, para Gergen, a questão epistemológica fundamental não deve ser a
respeito de como o mundo é, e sim a respeito de como o mundo deve ser; não é
epistemológica, é axiológica. É assim que a preocupação básica característica da Psicologia
Social em se justificar enquanto ciência, se transforma no Construcionismo Social numa
obsessão por garantir-se enquanto prática transformadora da sociedade.
Vamos então à resposta a estes tipos de críticas. A maioria dos estudiosos que foram
levados por algum motivo a estudar o Construcionismo Social chega a conclusão que esta
abordagem é confusa, mutante e inconsistente. Já vimos no subitem 2.6.4 que o anti-
representacionismo é contraditório e inútil. Quem o assume está virtualmente incapacitado
para afirmar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa. Como afirma Maze (2001), embora
aceite que toda teoria epistemológica coerente deva valer para si mesma, o Construcionismo
Social nega que qualquer assertiva possa ser verdadeira, assim como nega existirem
realidades independentes a serem referidas por essas assertivas. No entanto, trata dos
discursos como tendo existência objetiva e assume que sua própria assertiva sobre o discurso
é verdadeira. Assim, o Construcionismo Social se contradiz em suas premissas básicas. Mas
não iremos, como já colocado, nos perder em considerações sobre as contradições e
inconsistências do pós-modernismo como um todo, criticaremos somente estas duas críticas.
Quanto à primeira, é muito difícil entender o que este “distúrbio ontológico” do
Contrucionismo Social quer dizer. O que alguém pode realmente estar querendo dizer quando
afirma que o local primário dos processos psicológicos é social e não individual? Que o corpo
282
não tem papel nenhum a cumprir em relação à Psicologia, ou que a mente humana é uma
construção social, ou que não existe consciência, e é claro, também não existe criatividade
extracultura? Como aponta Joseph Rychlak (1999), essa teoria coletivista requereria para ser
explicativa o funcionamento de alguma espécie de “mente grupal”. Ele se pergunta se Harré e
Gergen acreditam que exista algum Leviatã supra-individual determinando padrões de com-
portamento, e mostra que eles não apresentam qualquer teoria de como isto poderia se dar,
exceto uma sugestão vaga de que a linguagem tem alguma coisa a ver com isso. Para Rychlak
(1999), esta abordagem está muito distante de qualquer semelhança com o Construtivismo, e
se esquece que a linguagem e a cultura, tudo aquilo que construiria os sujeitos são, em última
análise, construções de mentes individuais. Embora os padrões lingüísticos e culturais
condicionem em larga medida nossas cognições, qualquer elemento novo que surge na cultura
é necessariamente fruto da atividade criativa de um indivíduo. Estamos aqui diante de um
reducionismo bizzaro, e se é que isso é possível, “para cima”. Como já abordamos aqui, trata-
se de reduzir o fenômeno psicológico a fenômenos sociológicos. Esta posição é uma espécie
de idealismo sem sujeito, e, obviamente, relativismo radical.
Por fim, a tese da “epistemologia social” é, além de contraditória, uma grande mistifi-
cação política. Como afirmam com propriedade Stroebe & Kruglansky (1989, p. 486): “Por
abandonar a evidência empírica como critério de escolha entre teorias, a Epistemologia Social
abre a porta para jogos de poder e intimidação política como parte da ciência”. É o que as-
sinalam Collier et al. (1996) ao afirmarem que ao desafiar a concepção tradicional de realida-
de, a Psicologia Social pós-moderna se converte em política. Na verdade, a crítica de Gergen
(1989) à posição epistemológica da Psicologia Cognitiva, inaugura um espaço de definição
sobre qual teoria é “boa” e qual não, muito mais “autoritário” que aqueles que denunciava
(positivismo lógico, racionalismo crítico). Para a “epistemologia social” uma teoria não preci-
sa ser sequer internamente coerente, precisa somente ser inteligível para uma comunidade
científica. Assim, uma comunidade científica que sirva a certos interesses políticos pode atri-
buir o status de leis ou teorias científicas a proposições sem nenhum compromisso com a lógi-
ca ou com a validade empírica. O Construcionismo Social comete, entre dezenas de outros, o
erro filosófico banal de confundir a esfera moral com a epistemológica. É um dos equívocos
mais característicos do pensamento pós-moderno: a confusão entre o objetivo epistemológico
de conhecer a verdade, e as metas políticas de poder e transformação social. O objetivo da
ciência é a obtenção de conhecimento sobre a realidade, não a transformação desta, que é o
objetivo da ação social e política. Ao procurar incluir na Psicologia Social afãs transforma-
283
dores, os pós-modernistas a transformam em propaganda moral e política, e é isso o que pré-
tendem: uma Psicologia moral e política, o que segundo eles a faria autenticamente “social”.
Ao defender o princípio de não-neutralidade da pesquisa científica, Gergen (1989),
assim como a Psicologia Social Crítica, assume uma posição que se enxerga como menos in-
gênua, mais cética e sábia. No entanto, o nível onde nós podemos avaliar versões psicológicas
em competição nos é tirado pelos mesmos argumentos pós-modernos. Como então Gergen
pode defender na prática (como o faz) a superioridade intelectual do Construcionismo Social e
de sua “epistemologia social”? É evidente que quando adotamos uma teoria o fazemos porque
a julgamos preferível à outra. Que padrão os pós-modernos utilizam para fazer essa escolha?
Como afirmam Michael & Kendall (1997), é muito clara a percepção que os
construcionistas sociais tem de que seu empreendimento intelectual é política e moralmente
superior aos empreendimentos qualificados como ‘modernistas’. Apesar disso, como demons-
trei acima, não existem meios coerentes para os pós-modernos defenderem essa suposta
superioridade moral de sua abordagem. Todas estas observações levam à desagradável
conclusão de que a “Psicologia pós-moderna”, segundo seus próprios pressupostos, não é
nada mais do que um outro sistema normatizador de condutas. Não resta dúvida que seu
objetivo pragmático, e às vezes também programático, é substituir as “verdades anacrônicas”
do modernismo pelas novas e melhores “verdades” do pós-modernismo, com a única
diferença que, ao fazer isso, ao contrário do modernismo, ele nega-se a si mesmo.
Quando os psicólogos pós-modernos declaram que todo conhecimento é uma constru-
ção social, e que não existe um contexto de justificação com qualquer nível de independência
que possa validar uma teoria, eles afirmam conseqüentemente que a definição de que um
determinado corpo teórico é conhecimento depende somente de sua aceitação social enquanto
tal. Ou seja, a afirmação de determinada teoria como conhecimento seria uma questão
político-ideológica. Para quem admite a tese da inexistência de um domínio observacional
que possua algum nível de autonomia em relação ao domínio teórico, a luta entre teorias deixa
de ser um debate teórico, racional, ou uma disputa de evidências empíricas e experimentais, e
passa a ser uma disputa política. Sua admissão como crença básica leva necessariamente ao
abandono da pesquisa científica baseada em pressupostos modernistas. Quando a ciência
deixa de ser entendida como um método privilegiado de obtenção de conhecimento sobre
fenômenos da realidade objetiva que transcendam as idiossincrasias culturais, passa a ser
interpretada como uma atividade sem privilégios epistemológicos que se afirma socialmente
através de recursos políticos e econômicos. Aqui, abandonam-se os laboratórios e as pesqui-
sas e busca-se a propaganda, a organização política e o domínio institucional como meio de
284
afirmação acadêmica de posições teóricas: os grupos acadêmicos na Psicologia que assumem
a crença de que o poder social é em última análise a fonte de validação de teorias científicas,
são levados inevitavelmente a ações de política acadêmica cujo foco é a ocupação e o controle
das entidades reguladoras e promotoras das atividades profissionais e científicas, como os
meios de divulgação de trabalhos científicos, os conselhos nacionais de pesquisa, os processos
de concurso público ou de contratação e a distribuição de recursos para pesquisa na área.
Enquanto os psicólogos que ainda se encontram comprometidos com o projeto de
conhecimento representado pela ciência moderna estão predominantemente dedicados à
pesquisa, à atividade profissional, aos seus respectivos laboratórios e/ou campos de
investigação, os psicólogos pós-modernos estão dedicados à organização política acadêmica.
Além disso, e esse é o segundo aspecto grave que deriva das crenças pós-modernistas, os
construcionistas sociais, na ausência de um critério de relevância objetivo para julgar a
relevância de sua produção teórica, entregam-se à produção interminável de textos de caráter
histórico, uma vez que o volume da produção acadêmica parece ter se tornado, nos últimos
anos, o único critério para a avaliação da vida científica de um pesquisador. Este aspecto é o
que defini como “Complexo de Sherazade”, em artigo (Castañon, 2004b) no qual ofereço uma
descrição do quadro que atingiu os psicólogos pós-modernos e que arrisca destruir a reputação
de nossa disciplina, construída em virtude de sua adesão ao projeto da ciência moderna.
Muitos valores obscuros que movem o Construcionismo Social. Entre estes, como
observa Rychlak (1999), se incluem a necessidade de se livrar do sentimento de responsabili-
dade pessoal, como observa Searle (2000) a revolta contra a realidade, e como observa Pinker
(2004) a busca de legitimação filosófica para teorias políticas coletivistas e anti-democráticas.
Em meu julgamento, precisamos estabelecer e defender em nossas instituições a diferença
radical entre estes dois tipos de atividades acadêmicas, a ciência moderna e a teoria pós-
moderna. Não podemos mais permitir o avanço do domínio político destes grupos institucio-
nais, sob pena de ver arruinado o ambiente acadêmico, particularmente no Brasil. Uma vez
demarcado esse campo a convivência é possível, e a falta de conseqüência pragmática, com-
ceitual ou empírica, o gosto pelo absurdo e o contra-senso filosófico desse tipo de produção,
se encarregará de seu progressivo esvaziamento no campo restrito da Psicologia Social.
5.1.4 As críticas humanistas
Neste subitem apresentaremos o conjunto de críticas mais influentes contra o
Cognitivismo. Estas são as vindas da tradição humanista, na qual podemos englobar a
fenomenológica, a filosófica e a humanista experimental americana. Por identidade de
285
perspectivas – e adesão às teses básicas humanistas de realidade irredutível do fenômeno da
consciência, defesa da existência de um nível real de liberdade subjetiva e da especificidade
da inteligência humana em relação a todas as outras formas de inteligência conhecidas –
incluiremos neste item as críticas dos filósofos Thomas Nagel, Frank Jackson e
principalmente John Searle. Este último e o filósofo de influência fenomenológica Hubert
Dreyfus, são os responsáveis diretos pela virtual superação do programa da IA forte. Em
relação à tradição da Psicologia Humanista americana, analisaremos as críticas de seu maior
expoente contemporâneo, o psicólogo Joseph Rychlak. Apesar da pertinência das críticas
humanistas, veremos que uma generalização injusta é padrão em todas elas: tomar a
Psicologia Cognitiva como uma sub-disciplina da Ciências Cognitivas, como se só cumprisse
um papel auxiliar em relação à Inteligência Aritificial.
O filósofo Hubert Dreyfus é uma figura ímpar no panorama do pensamento
contemporâneo. Ele é, ao mesmo tempo, americano, fenomenólogo, e um dos mais
importantes nomes do campo da inteligência artificial. Mais precisamente, é o mais famoso
adversário da tese da IA forte. Em 1972, depois de alguns artigos que semearam a polêmica
no âmbito da Inteligência Artificial, ele reuniu suas observações em um livro que se tornou
um marco da Filosofia da Mente: “What Computers Can’t Do”. Neste ele apresenta algumas
teses básicas que a longo prazo se revelariam insuperáveis pela IA, e que ainda hoje pautam a
maioria das tentativas de expansão do campo.
A crítica de Dreyfus (1972) que mais atinge as pretensões do Cognitivismo é a que
advoga a impossibilidade de que seres humanos produzam inteligência usando somente fatos
e regras. Para Dreyfus, as dificuldades inerentes ao modelo de mente do processamento de
informação são que este não possui senso de relevância em relação à informação a ser usada
ou coletada, uma vez que representações simbólicas são atomistas e nosso senso de relevância
é holista, no estilo gestáltico da palavra. Assim, Dreyfus (1972) predisse que o sonho de
Turing estava condenado: um computador não seria capaz de responder com adequação
(simulando entendimento) sequer como uma criança de quatro anos pode responder ao ouvir
uma história infantil. Isto se daria em virtude de um velho sonho racionalista, que ele muito
erroneamente atribui a Leibniz, de que todo pensamento não passaria de computação lógica.
Leibniz previu que o pensamento lógico, mais precisamente o raciocínio silogístico, poderia
ser formalizado e reproduzido em máquinas que ele denominou “máquinas de julgar”, mas a
visão de racionalidade leibniziana vai muito além do cálculo proposicional, ela é virtualmente
infinita, como é o conteúdo de idéias contidas na mônada.
286
Dreyfus (1972) alega que o tipo de processo de resolução de problemas possuído por
um expert de alguma área é diferente do tipo de procedimento seqüencial executado por um
computador digital. A utopia da IA está baseada na crença de que todo nosso conhecimento
sobre o mundo pode ser representado na forma proposicional, como um sistema de crenças
implícitas. Assim, a tarefa hercúlea da IA seria a de derivar o senso comum de uma criança de
quatro anos de uma gigantesca base de dados proposicionais (de crenças expressas na forma
de sentenças lingüísticas comuns, porém, formalizadas) e criar as regras para computar este
enorme volume de dados. O problema é que o conhecimento necessário para responder de
forma a simular o entendimento da mais banal passagem de uma história infantil em inglês,
requer um conjunto de conhecimentos formalizados do contexto, do falante e do mundo que
está muito além da capacidade dos programas de computador (e dos computadores)
conhecidos. E isto vale ainda hoje.
Para exemplificar o problema envolvido, vamos avaliar a seguinte seqüência de frases:
“João viu uma bola na janela. Ele a quer.” Nada poderia ser mais banal e simples, e uma
criança de três anos está perfeitamente apta a compreender a seqüência. Mas um computador
tem extrema dificuldade em efetuar respostas que simulem entendimento desta frase. Pois a
que se referiria o “a”? À bola ou à janela? E se mudássemos a segunda frase para “Ele a
chutou”, ou “Ele a quebrou”, melhoraria a situação do computador? Não. Para Dreyfus isto se
dá porque nossas habilidades de contexto são fruto da nossa capacidade de nos colocarmos no
lugar dos outros e imaginar a nós mesmos na situação em questão. Não se trata de uma busca
de fatos expressos proposicionalmente, tais como “crianças querem bolas e não janelas” ou
“bolas, exceto se forem de natal, não quebram” e “janelas quebram”. No último caso, faltaria
contexto para saber se o período é de natal e, sendo, se a bola era de natal, e assim por diante.
Assim, sentencia Dreyfus (1972), nós precisamos ser capazes do nos imaginar sentindo e
fazendo coisas para organizar o conhecimento que precisamos para compreender as sentenças
típicas da nossa linguagem cotidiana.
Dreyfus (1993), aprofundando o argumento, avalia a tentativa da Inteligência Artificial
de simular de outra maneira o entendimento de sentenças ordinárias. Supondo que tivéssemos
um computador com milhões de fatos organizados sem propósito particular nenhum, como
este poderia ser capaz de compreender uma sentença proferida numa situação específica? Isto
é bem pior do que considerar o problema de compreender uma história infantil completa em si
mesma. Nas palavras de Dreyfus:
287
“In order to retrieve relevant facts in a specific situation, a computer would have to
categorize the situation, than search through all its facts following rules for finding those
that could possibly be relevant in this type of situation, and finally deduce which of these
facts are actually relevant in this particular situation. This sort of search would clearly
become more difficult as one added more facts and more rules to guide it.” (1993, p.21)
De fato, hoje se tornou explícita no campo da IA esta evidente diferença entre o
processamento computacional e o humano. Porque quanto mais proposições são acumuladas
num sistema sobre um particular estado de coisas, situação ou tarefa, mais tempo demora para
o sistema processar o que seria a informação relevante. Como sabemos, com a inteligência
humana se dá o oposto: um expert vê instantaneamente não só a informação relevante, como
também o problema e a solução, enquanto o iniciante que aplica o livro de regras e truques
“faça você mesmo” demora um tempo considerável para identificar a mais básica informação
relevante. O que é ainda pior, como nos revelam os estudos cognitivos da memória, quanto
mais sabemos mais fácil e rapidamente adquirimos novas informações, e as recuperamos
também com mais facilidade. O contrário ocorre com a memória computacional: quanto mais
informação, mais tempo de processamento. Algo portanto, por mais rápido que se torne um
dia o processamento num supercomputador, está fundamentalmente errado com a concepção
digital de inteligência humana. Nós construímos nossa memória de forma fundamentalmente
diferente da simbólica representacional que os computacionalistas advogam.
Outras questões cruciais foram levantadas por Dreyfus (1972). Uma é a incapacidade
de computadores apresentarem comportamento simulando a compreensão de analogias e me-
nos ainda as utilizando. Imagine um computador tentando vencer o teste de Turing responden-
do a seguinte pergunta: “Como é possível que Maria não tenha destruído completamente as
pretensões da empresa onde foi explorada a vida toda, quando esta lhe propôs um acordo no
meio daquela batalha judicial?” Esta frase comum, envolve uma série de analogias comuns:
destruído, explorada, vida toda, batalha. Estas não são palavras que estão sendo usadas no seu
contexto ou com seu significado ordinário. Um computador digital tem profunda incapacidade
de responder adequadamente a estes problemas. Como aponta Searle (2000), isto se dá porque
analogias são formas de pensamento totalmente não representacionais.
Outro grupo de problemas abordados por Dreyfus (1972) é o das dificuldades que
computadores apresentam para reconhecer padrões. Isto se dá para ele em virtude da forma
elementarista como computadores digitais tratam seus dados. Esta consiste em mais uma
distância intransponível, pois ontológica: a mente humana é holística, e a percepção funciona
288
de maneira gestáltica, reconhecendo padrões e estruturas, não combinando elementos. Esta
diferença básica entre a mente holística e analógica humana e a “mente” digital
computacional é responsável por fracassos da IA em jogar xadrez (Dreyfus escreve antes do
Deep Blue...), resolver problemas, reconhecer similaridades, reconhecer objetos em
movimento, reconhecer faces e assim por diante.
Assim, por estes e outros problemas, Dreyfus (1972) conclui que se considerarmos a
evidência descritiva fenomenológica sem preconceitos filosóficos, somos obrigados a concluir
que existem capacidades humanas não programáveis em todas as formas de comportamento
inteligente. Assim prevê que, uma vez que a Inteligência Artificial se trata de um problema
empírico, não haveria grandes progressos nas áreas em questão. Vinte anos depois de feita
esta profecia, Dreyfus relançou sua obra já clássica acrescida de uma revisão do trabalho em
Inteligência Artificial nos anos que se seguiram, como o conexionismo e a continuação do
programa de pesquisa da abordagem computacional da mente. Na apresentação de seu livro
What Computers Still Can’t Do” ele afirma que a nova edição de sua obra não marcava
somente a mudança de título ou de editor (a editora da versão revista agora era a do MIT,
berço da Inteligência Artificial), mas sim uma mudança de status: há vinte anos, ela
representava uma posição controversa, agora, ela representava a nova posição padrão. De
fato, as coisas se passaram como ele havia previsto. Das quatro categorias de atividades
inteligentes, ele previu que duas seriam plenamente computáveis, uma insatisfatoriamente
computável e a quarta de forma alguma computável.
Essas “categorias de atividade inteligente” eram a associacionista, a formal-simples, a
formal-complexa e a não-formal. A atividade associacionista seria a caracterizada pela
irrelevância do sentido e da situação. Seria inata ou aprendida por repetição (ex: jogo da
memória, tradução palavra-a-palavra, condicionamento clássico). O tipo de programa que
poderia reproduzir este comportamento seria o de árvore de decisão ou de busca em lista. A
atividade formal-simples é aquela onde os significados já estão completamente explícitos e
são independentes da situação, sendo aprendida por regras (ex: prova de teoremas usando
procedimentos de lógica clássica, jogos computáveis, problemas de combinatória). Esta
espécie de inteligência Dreyfus identifica com o esprit de géométrie de Pascal (1973), e o tipo
de programa que pode simular a atividade inteligente nestes âmbitos é o algorítmico. A
atividade formal-complexa é segundo Dreyfus semelhante ao segundo tipo de programa, mas
na prática é dependente de estados internos em situações específicas, só sendo adquirida pela
prática na aplicação das regras (ex: jogos complexos como xadrez, problemas complexos de
combinatória que envolvam decisões de planejamento, teoremas lógicos que envolvam
289
intuições em passos da demonstração, reconhecimentos de regularidades em situações
normais). Aqui o tipo de programa teria que ser de busca heurística, ou seja, capaz de
discriminar alguma relevância na enorme massa de dados a computar. Dreyfus prevê em 1972
que programas deste tipo eram possíveis mas seriam formas de executar as tarefas muito
ineficientes e abaixo da expertise humana.
Em grande parte pela influência dos argumentos de Dreyfus é que tamanha expectativa
se criou em torno do segundo desafio em 1997 entre o supercomputador Deep Blue e Gary
Kasparov, o maior mestre de xadrez de todos os tempos. Depois de uma vitória dramática que
decidiu a série para o Deep Blue na última partida, Kasparov declarou que aquele era o fim da
espécie humana. Não era. Apesar do avanço dos programas heurísticos e da capacidade
computacional dos supercomputadores, hoje é aceito generalizadamente que o tipo de
processo realizado pelos programas heurísticos é muito diverso daquele realizado por
supercomputadores ao simular a expertise humana nessas atividades. E de fato, a previsão de
Dreyfus quanto à impenetrabilidade do computador no quarto campo de atividade inteligente,
a não-formal, se revelou até aqui totalmente acertada.
Atividade inteligente não-formal é para Dreyfus (1972) aquela dependente de
significados não-explícitos e de contextos, e quando aprendida, só o é de maneira intuitiva
através de metáforas ou exemplos perspicazes de comportamento (jogo de imagem e ação,
insigths sobre problemas de estrutura aberta, tradução da linguagem natural em contexto de
uso – com o caso extremo da poesia – e reconhecimento de padrões distorcidos). Este tipo de
inteligência Dreyfus identifica com o esprit de finesse de Pascal (1973), e decreta que não há,
nem nunca haverá, ao menos com a atual tecnologia de computação digital, qualquer tipo de
programa que a possa simular.
Concluindo esta longa, mas ainda assim resumida exposição das críticas deste impor-
tante autor, é necessária a exposição daquele que é para Dreyfus (1993) o mais intransponível
obstáculo para a IA: a criatividade. Como imaginar ser possível a criação de um programa
que, sendo em última análise uma complexa função lógico-matemática, seja capaz de adquirir
regras novas? Como afirma Dreyfus, na verdade já foi dada uma prova matemática (e portanto
a priori) das limitações inerentes a todos os sistemas formais, da qual falamos no segundo
capítulo desta tese, o Teorema de Gödel. Mas esta prova parece irrelevante para alguns pés-
quisadores da AI. De fato, o Teorema de Gödel implica logicamente que modificações no sis-
tema no sentido de ampliar seus domínios necessariamente implicarão alterações nos axio-
mas, não dedutíveis do sistema anterior. Em outras palavras, não há programas logarítmica-
mente estruturados que possam provocar nada parecido com uma mudança conceitual, uma
290
introdução de teorema perfeitamente consistente com os outros do sistema mas não dedutível
de seus axiomas. Não há função logarítmica (ou qualquer outra) que possa alterar a si mesma,
portanto, não há programa que possa alterar a si mesmo. Aqui temos, como também assinalou
Penrose (1991), a mais fundamental distinção entre o processo mental humano e o
processamento computacional. Por conta desta cegueira teórica, Dreyfus (1993) compara os
atuais pesquisadores da IA forte a alquimistas procurando transformar lata em ouro:
“If the alchemists had stopped poring over his retorts and pentagrams and had spent his
time looking for the deeper structure of the problem, as primitive man took his eyes off
the moon came out of the trees, and discovered fire and the wheel, things would have
been set moving in a more promising direction. After all, three hundred years after
alchemists we did get gold from led (and we have landed on the moon), but only after we
abandoned work on the alchemic level, and worked to understand the chemical level and
the even deeper nuclear level instead.” (p.305)
Aqui Dreyfus está sendo injusto com a Simulação Computadorizada e a IA. Como ele
próprio reconhece, os alquimistas não conseguiram a pedra filosofal ou transmutar metais em
ouro, mas nos legaram uma série de subprodutos e conhecimentos empíricos desorganizados.
A IA tem nos proporcionado muito mais do que isso que Dreyfus admite. Ela tem nos propor-
cionado um corpo formalmente rigoroso e organizado de hipóteses e construído muitas vezes
computadores desenhados somente para colocá-las em prática. Sem o esforço organizado de
muitas das maiores mentes matemáticas e científicas de nosso tempo, não seria evidente para
todos hoje que a mente humana tem atributos que vão muito além da possibilidade de formali-
zação lógica. Somente hipóteses científicas levadas ao último nível de suas possibilidades são
capazes de nos fornecer refutações espetaculares quanto as que têm se constatado no campo
da IA forte, sobre algumas de suas pretensões. Só a ciência moderna pode nos revelar seu
próprio limite, só ela pode nos conduzir com segurança às fronteiras da razão, e talvez, um dia
nos revelar os limites da compreensão formal sobre a mente humana. Se é verdade que nossa
mente não funciona como um computador boa parte do tempo, também é evidente que os
tipos de inteligência simulados num computador são também apresentados pelo ser humano, o
que indica que os processos subjacentes podem ser em grande medida semelhantes.
Outra injustiça contida nos argumentos de Dreyfus (1972) é a indistinção entre
Simulação Computadorizada e Psicologia Cognitiva. Ao se referir a Neisser (p.287) ele
parece não lembrar que sua utilização do computacionalismo é metafórica: o Cognitivismo
291
o ser humano como um processador de informação, mas não necessariamente como um
processador computacional de informação, acusação que só se aplica à primeira fase da obra
de Fodor. O que Neisser (1967) vê como ouro para a Psicologia no surgimento do Compu-
tador, é a metáfora computacional (termo cunhado por ele), a possibilidade de se pensar pro-
cessos mentais como os processos intermediários de processamento de informação. Mas estes
processos para o Cognitivismo não precisam ser estritamente computacionais, como de fato o
próprio Neisser (1967) advoga desde sua obra máxima, marca do surgimento da Psicologia
Cognitiva como campo de estudo. Muitos dos argumentos que hoje podem concorrer em
direção aos argumentos de Dreyfus contra a possibilidade de redução da inteligência humana
a processos formais foram obtidos pela Psicologia Cognitiva contemporânea, como o estudo
da memória de longo prazo ou os estudos sobre o desenvolvimento da inteligência na criança.
De fato o próprio Dreyfus (1993, p.290) reconhece isso, porém sem classificar Piaget como
Cognitivista. Ele lembra que foi Piaget quem persuasivamente demonstrou que a inteligência
humana se desenvolve através de “revoluções conceituais”, que caem no problema que se
levantou sobre a impossibilidade de autotransformação de um sistema formal. Assim, mais
uma vez temos somente que lembrar que o Cognitivismo não se resume à “The Language of
Thought” de Fodor (nem o prórpio Fodor se resume a esta obra), muito menos à Simulação
Computadorizada, com a qual inclusive sempre estabeleceu relação de colaboração com
rivalidade. No entanto, parece ter ficado claro nos últimos anos que a redução da atividade
cognitiva a somente operações proposicionais é simplista e despropositada.
Outro filósofo que fez críticas que lembraram limites óbvios e intransponíveis para a
Ciência Cognitiva, foi Thomas Nagel. Em seu antológico artigo “What is it Like to be a Bat?”,
Nagel (1980) nos lembra de forma bastante ilustrativa a verdade banal da irredutibilidade da
experiência subjetiva, ou experiência em primeira-pessoa (first-person experience). Em
essência, seu argumento é que nenhuma quantidade de conhecimento descritivo em terceira-
pessoa (ou seja, na forma de um investigador descrevendo a experiência de um outro sujeito),
pode nos ajudar a experienciar como experimenta o mundo um morcego. Hipotetizamos que
um morcego não tem visão, e que ele se orienta espacialmente emitindo sons e sentindo o
tempo de resposta do obstáculo mais próximo. Ou seja, acreditamos que um morcego se
orienta por uma espécie de sonar orgânico. Mas nós nunca seremos capazes de saber como é
ser um morcego, como é perceber como um morcego e decidir como um morcego. Ele
reconstrói um mapa cognitivo espacial da mesma natureza que o nosso? Ele se orienta por
uma espécie de representação completamente distinta da espacial tridimensional? Ou com
nenhum tipo de representação? Nenhum exercício de imaginação pode nos ajudar de fato. Nós
292
nunca saberemos como outras pessoas sentem, e nunca teremos linguagem capaz de descrever
adequadamente experiências subjetivas. Isso não significa que experiências conscientes não
são reais, significativas, complexas, ricas e altamente específicas, únicas.
Esta questão é conhecida no debate filosófico como a questão da qualia (qualidade,
singularidade), as qualidades fenomenológicas da consciência, como sentir dor, ver uma cor,
sentir um sabor ou ouvir uma música. Esta qualidade da experiência subjetiva é irredutível a
explicações neurológicas ou processamento de informação. O melhor exemplo para ilustrar
esta questão é o argumento desconcertantemente simples de Frank Jackson (1990). Se
hipotetizarmos o surgimento de alguém em um futuro, onde o conhecimento neurofisiológico
e físico estivesse completo, que comprovasse fazer discriminações de cores além do espectro
visível, os neurocientistas seriam capazes de fazer uma descrição detalhada do funcionamento
e estrutura de seu sistema nervoso, assim como do processamento da informação visual. No
entanto, como ninguém possui aquele cérebro, como ninguém é aquele homem, ninguém
jamais saberá como é ver, realmente experimentar, estas cores que nunca ninguém viu.
Portanto, a Física será sempre incompleta: a consciência é um domínio irredutível.
Os argumentos de Thomas Nagel e Frank Jackson, são irrefutáveis. Eles nos lembram
de uma fronteira intransponível para qualquer Psicologia filosófica ou científica futura: o
domínio da qualia.
Por fim chegamos a John Searle, cuja obra filosófica sobre a consciência mudou a
Filosofia da Mente contemporânea. Em “The Rediscovery of the Mind”, de 1992, Searle
apresenta sua rejeição tanto do materialismo quanto do dualismo. Ao dualismo, rejeita por
considerar que a consciência é produzida pelo cérebro. Ao materialismo, rejeita por
considerar evidente que apesar disto a consciência não é redutível a um fenômeno físico. Em
suma, o problema do materialismo é a negação da consciência: embora os materialistas não
tenham coragem de assumir diretamente que estão afirmando que a consciência não existe,
eles a redefinem de forma a que ela não mais se refira a estados mentais internos, qualitativos
e subjetivos, mas sim a algum fenômeno de terceira pessoa.
Searle (1992) demonstra que respostas tais como que a consciência é comportamento
do corpo, ou estados computáveis do cérebro, ou processamento de informações ou estados
funcionais de um sistema físico simplesmente não funcionam. A consciência é um fenômeno
interno, qualitativo, subjetivo e de primeira-pessoa: qualquer explicação da consciência que
deixe de lado estas características, pode ser explicação de qualquer coisa, menos da consciên-
cia. O argumento que nos dá Searle (1992) para ilustrar porque a consciência é um fenômeno
293
que não se submete a uma explicação de caráter redutor, ou seja, uma explicação que reduz o
fenômeno explicado como aparência de um fenômeno real que o constitui, é persuasiva:
“Part of the point of the reduction in the case of heat was to distinguish between the
subjective appearance on the one hand and the underlying physical reality on the other.
Indeed, it is a general feature of such reductions that the phenomenon is defined in terms
of the ‘reality’ and not in terms of the ‘appearance’. But we can’t make that sort of
appearance-reality distinction for consciousness because consciousness consists in the
appearances themselves. Where appearance is concerned we cannot make the
appearance-reality distinction because the appearance is the reality.” (p.121-122)
Em outras palavras, o padrão das reduções eliminatórias é mostrar que o fenômeno
reduzido é apenas uma ilusão. No entanto, no caso da consciência, esta “ilusão” é a realidade
a ser explicada. Como afirma Searle (1992), quando me parece que estou consciente, então
estou. Se estou iludido que estou consciente, então estou consciente. Quando um materialista
diz que a consciência é uma ilusão que o cérebro se esforça arduamente em manter, ele parece
se esquecer que essa “ilusão”, a partir da qual conhecemos tudo o que existe, é o fenômeno a
ser explicado, e não processos materiais subjacentes. Como coloca Searle (2000):
“... a consciência é diferente dos poentes porque eu posso ter a ilusão que o sol está se
pondo por trás das montanhas quando na verdade ele não está fazendo isso. Mas não
posso, da mesma maneira, ter a ilusão da consciência sem estar consciente. A ‘ilusão’ da
consciência é idêntica à consciência.” (p.59)
Não resta dúvida que este argumento é uma variação do cogito cartesiano. Searle
(1992) lembra que a consciência é um objeto que apresenta problemas únicos à investigação,
pois não podemos observá-la como observamos outros objetos, nem podemos fazer a
distinção entre a observação e o objeto observado. No entanto, a consciência também
apresenta facilidades únicas para a investigação, porque nós não experimentamos tão
diretamente nenhum outro objeto no universo. Filosoficamente podemos estabelecer com
segurança algumas de suas características, que para Searle, são doze. A primeira é a de que
ela se manifesta em um número estrito de modalidades. Estas envolvem o ver, o cheirar, o
ouvir, o tocar, o sentir o gosto, o senso de equilíbrio, o sentir a temperatura, a propriocepção,
o pensar em palavras imagens e outras formas não verbais ou espaciais, o sentir prazer e
desprazer físico e o sentir prazer e desprazer sem conexão com sensações corporais.
294
A segunda é a unidade, a consciência chega a nós como fenômeno unitário, unificado,
não importa a quantidade de estímulos e pensamentos que estejamos tendo neste momento. A
terceira é a intencionalidade no sentido de Brentano e Husserl, a consciência nos dá acesso a
um mundo diferente dela mesma. A consciência é sempre consciência de algo, de duas formas
estruturalmente distintas: ou representamos as coisas como acreditamos que elas são, e essas
são nossas crenças, ou as representamos como gostaríamos ou temeríamos que elas fossem, e
esses são nossos desejos (que usualmente chamamos de intenções, mas obviamente não são
nossos únicos estados intencionais) e medos. Searle (1992) chama o primeiro modo
intencional o modo cognitivo, e o segundo o modo volitivo.
A quarta característica da consciência para Searle (1992) é a já abordada subjetividade
ontológica, a qualia irredutível, a intransferibilidade de um estado consciente. A quinta é a da
interdependência entre consciência e intencionalidade, tese postulada por Searle de que só
um ser que pode ter estados intencionais conscientes pode ter estados intencionais de fato, e
que cada estado intencional inconsciente é ao menos potencialmente consciente (1992, p.132).
A sexta característica é que estados conscientes são sempre estruturados, no sentido gestáltico
da palavra. Estruturamos nossas experiências conscientes de forma instantânea em todos
coerentes contextualmente, como vimos acima com Dreyfus (1993). Um sétimo aspecto das
experiências conscientes é que elas vêm sempre com vários graus de familiaridade, do muito
familiar de nosso quarto ao muito alheio de um quarto onde você nunca entrou.
A oitava característica da consciência é o que Searle (1992) denomina overflow . O
“transbordamento” a característica que tem os estados conscientes de cada experiência só
ganhar sentido com experiências que estão além delas mas a ela conectadas por contigüidade.
Um pensamento sempre liga a outros circundantes e assim indefinidamente. Uma nona carac-
terística é a que Searle caracteriza como semelhante à distinção entre o centro e a periferia.
Aqui a metáfora da lanterna se torna necessária. A consciência é sempre um processo focado
em alguns conteúdos enquanto uma grande gama de experiências também conscientes estão
sendo mantidas fora do centro do foco, como uma lanterna a iluminar parte do quarto
enquanto o resto está parcialmente visível mas fora da atenção. Os exemplos clássicos são a
sensação da sola de seu pé agora, ou talvez uma ligeira sede que, apesar de estar fazendo parte
de sua consciência global, não ocupavam até este momento o foco de sua atenção.
A décima característica da consciência para Searle (1992) são suas condições
fronteiriças, que ele descreve como um sentido de nossa própria situação relativa a tempo e
espaço. A décima-primeira é o mood, que poderíamos traduzir como humor. Searle acredita
que de maneira global podemos nos sentir felizes ou deprimidos, sem que esta condição esteja
295
intencionalmente ligada a nenhum objeto (nenhum objeto ou situação específica nos deixa
triste ou alegre). Anos depois Searle (2000) reviu sua posição excluindo o humor da lista de
características estruturais da consciência. De fato, podemos pensar o humor como sendo
ligado diretamente a crenças ou desejos inconscientes. Por fim, chegamos à última
característica elencada por Searle, a dimensão prazer-desprazer de todos os estados
conscientes, que são sempre prazerosos ou desprazerosos em algum nível.
O que fica depois da descrição de Searle da estrutura da consciência, é um sentido de
certa impotência. Estamos diante do mais essencial e ainda assim complexo dos fenômenos. A
consciência tem em si as características mais únicas de todo o universo conhecido, e ainda
assim, as mais familiares. O que pode a ciência de terceira-pessoa, a ciência dos objetos nos
dizer sobre a consciência? A resposta de Searle é simples, e é a mesma de Husserl: Nada.
Partindo da realidade, irredutibilidade e centralidade da consciência para explicar os
fenômenos mentais, Searle (1992) elabora críticas ao “Cognitivismo” no sentido que ele dá ao
termo, que é o de Computacionalismo. Ou seja, mais uma vez aqui vemos a confusão entre
Cognitivismo como movimento psicológico, Ciências Cognitivas e Inteligência Artificial. O
Computacionalismo é a teoria computacional da mente que estrito senso não podemos sequer
atribuir a Jerry Fodor, somente a IA. Feitas estas considerações, pode-se afirmar que os
ataques de Searle (1992) à Inteligência Artificial e à tradicional teoria computacional da
mente são virtualmente devastadores. Ouso prever aqui que sua obra “The Rediscovery of
Mind” marcará o fim da Ciência Cognitiva como a conhecemos hoje. Seu ataque ao
Computacionalismo se divide em três frentes, uma para cada uma das três alegações centrais
desta abordagem da mente. A primeira destas alegações seria para Searle (1992) a de que “o
cérebro é um computador digital”. A segunda, que “a mente é um programa computacional”.
A terceira, que “as operações do cérebro podem ser simuladas em um computador digital”.
A segunda das alegações foi destruída por Searle (1984) em sua obra clássica “Minds,
Brains and Science”. Com a famosa metáfora do quarto chinês já exposta nesta tese, Searle
evidencia que a dimensão sintática não é suficiente para explicar o que faz a mente. A terceira
das alegações, Searle (1992) também elimina de forma desconcertantemente simples. Sua
resposta é: sim, as operações do cérebro podem ser simuladas em um computador digital. As
do cérebro, as das moléculas de um composto químico, das condições meteorológicas, do
crescimento de uma planta e de tudo o que obedecer a padrões em todo o universo. Mas assim
como ao simular o comportamento de um furacão nós não produzimos um furacão nem todas
as suas propriedades, ao simular o comportamento de um cérebro nós não produzimos a
consciência e suas propriedades emergentes.
296
Assim sobra a primeira alegação, a única que poderia trazer algum alento a IA. Mas
Searle (1992) aqui oferece a mais desconcertante de suas teses. Analogamente à questão três,
ele responde sim. Um cérebro é um computador digital porque, em última análise, seguindo
as definições dadas por Turing, tudo é um computador digital. Em suas palavras:
On the standard textbook definition of computation, it is hard to see how to avoid the
following results:
1. For any object there is some description of that object such that under that description
the object is digital computer.
2. For any program and for any sufficiently complex object, there is some description of
the object under which it is implementing the program. Thus for example the wall behind
my back is right now implementing the Wordstar program, because there is some pattern
of molecule movements that is is isomorphic with the formal structure os Wordstar. But if
the wall is implementing Wordstar, then is it is a big enough wall it is implementing any
program including any program implemented in the brain.
(1992, p.208)
O que Searle está afirmando, é que o princípio de realizabilidade universal (um
programa pode ser executado por qualquer coisa organizada para reagir digitalmente: de
máquinas hidráulicas a um grupo de pessoas no painel do ursinho Misha da olimpíada de
Moscow, etc) é válido porque a “sintaxe” não é algo físico como gravidade ou massa, e se
encontra somente “nos olhos do observador”:
The multiple realizability of computationally equivalent processes in different physical
media is not just a sign that the processes are abstract, but that they are not intrinsic to the
system at all. They depend on an interpretation form outside.
”.(1992, p.209)
Assim, com esta inversão explicativa e complementação implacável do argumento do
quarto chinês, Searle demonstra que, não só as crenças básicas do Computacionalismo são
falsas, como possivelmente carecem de um sentido preciso. Qualquer coisa pode ser
interpretada como um estado computacional, você pode considerar as moléculas da parede de
sua casa como um programa implementado (de fato, depois da trilogia Matrix, se fundaram
seitas religiosas predominantemente adolescentes que acreditam que estamos vivendo numa
realidade virtual completa...). Mas a consciência não. A consciência é real, mas o programa
computacional está nos olhos de quem vê (só existe para a consciência). Assim, a
297
intencionalidade (a capacidade de algo se referir, direcionar ou significar algo além dele) não
pode se explicada muito menos identificada com computação.
Searle (1992) acusa o computacionismo de ser uma versão disfarçada da falácia do
homúnculo, que seria endêmica em todo o campo do Cognitivismo (e aqui isto certamente
inclui a Psicologia Cognitiva). Ele sempre trataria o cérebro como se houvesse algum agente
dentro dele usando-o para computar junto com ele. Quando compramos um computador numa
loja, instalamos programas nele e o utilizamos para certas finalidades, não precisamos nos
preocupar como o problema do homúnculo, porque o homúnculo aqui somos nós. A
“intencionalidade” do computador é a nossa, porque ela é somente derivada. Mas o que
significa dizer então que um computador processa informação? Nenhum computador processa
completamente informação, diz Searle (1992), e assim nenhum cérebro tamm o faz.
Computadores nos ajudam a transmitir informação e a processá-la, eles não fazem a pior parte
do serviço. Um agente externo (programador) codifica alguma informação cujo significado já
está previamente acordado e estabelecido, de uma forma que possa ser processada pelo
hardware. Então o computador, através de uma série de estágios elétricos, transforma
novamente os sinais elétricos em signos (na tela, numa folha impressa) nos quais a
informação está codificada, para que um agente externo (que pode ser o próprio original –
quando você registra informações para se lembrar posteriormente – ou outra pessoa para a
qual a informação tem um significado previamente estabelecido) possa interpretá-la tanto
sintática quanto semanticamente, uma vez que o hardware não tem nenhuma sintática ou
semântica intrínsceca: “It’s all in the eye of the beholder” (p.223).
As críticas de Searle (1984, 1992) contra o Cognitivismo tem seu foco na Inteligência
Artificial. Ele não parece reconhecer a existência autônoma de uma Psicologia Cognitiva.
Aqui temos um padrão comum com as críticas humanistas (Rychlak, 1999, 1988; Dreyfus,
1993), identificar Cognitivismo com Ciência Cognitiva, e esta última com Inteligência
Artificial servida por experimentos paralelos em Neuropsicologia e Psicologia Cognitiva para
colocar em teste com seres humanos os modelos construídos por ela. Como sabemos, esta
parte da crítica é totalmente falsa. Mais ainda nos últimos anos, em que temos assistido a
emergência da Psicologia Cognitiva como pólo de integração e carro chefe das Ciências
Cognitivas (Eysenck & Keane, 1994; Sternberg, 1992), fonte principal de idéias e teorias para
a Simulação Computadorizada e Neuropsicologia. Searle parece não conferir a menor
importância ou significado à Psicologia Cognitiva, pois caso conferisse, provavelmente
saberia que suas posições sobre a realidade, irredutibilidade e centralidade da consciência para
a explicação dos fenômenos mentais é compartilhada pela maioria dos principais nomes do
298
Cognitivismo contemporâneo, para os quais sua obra se tornou uma referência central (Miller,
1985; Bruner, 1997; Sternberg, 2000; Gardner, 1992; Beck, 2000) num rápido alinhamento
teórico a uma posição filosófica raras vezes visto na história de qualquer movimento.
Dito isto, podemos agora aqui, mais uma vez, constatar que o computacionalismo
tradicional, a IA forte e talvez mesmo a IA fraca, estejam condenados ao desaparecimento.
Porém, esta tese defende a teoria de que, ao contrário de um enfraquecimento, as críticas de
Searle (1992) ao computacionalismo tem como resultado um realinhamento do Cognitivismo
ao seu projeto original de se constituir em uma autêntica Psicologia da Consciência. A
centralidade da consciência para a compreensão do comportamento e processos cognitivos é
marca distintiva do Cognitivismo como abordagem da Psicologia.
Vamos encerrar esta longa exposição das críticas de caráter humanista ao
Cognitivismo como um todo, expondo as efetuadas por Amadeo Giorgi – psicólogo
humanista de influência fenomenológica que trabalhou em cima da questão dos fundamentos
do que seria uma legítima Psicologia “humana” – e pelo maior herdeiro da tradição empírica
da Psicologia Humanista americana, Joseph Rychlak.
Seguindo a tradição fenomenológica, Giorgi (1985) considera que o psicológico é
irredutível ao objetivo. A pesquisa objetiva (fundamentos fisiológicos, lógicos e sociais do
psicológico) é necessária mas não suficiente para compreender o psicológico. Este é “para-
objetivo” (p.55), no entanto, legitima a investigação objetiva de suas relações com o físico, o
lógico e o social. Para Giorgi o psicológico deve ser entendido em sua relação com o
objetivo, não com especificações objetivas, pois é irredutível. Não é surpresa no entanto que
Giorgi não dê indicações epistemológicas e metodológicas claras de como isto poderia ser
feito (de fato, não especifica sequer sua posição ontológica).
Mais conseqüente é o autor norte-americano Joseph Rychlak, um dos maiores nomes
do Construtivismo e da Filosofia da Psicologia contemporânea. Entre as principais crenças
expostas em sua definição das assunções epistemológicas e ontológicas da Psicologia
Humanista estão (1988, p.501-505):
1) A natureza da Teoria é diferente da natureza do Método. Obter a primeira do
segundo é impossível em princípio. Este princípio se refere à idéia popperiana de que nenhum
método nos proporciona uma teoria, ele apenas a coloca em teste.
2) Todas as assunções ontológicas, epistemológicas e metodológicas em Psicologia
devem valer tanto para o objeto do experimento quanto para o experimentador. Ou seja, uma
vez que a investigação em Psicologia sempre envolve algum nível de circularidade, não
299
podem ser toleradas contradições teóricas na aplicação dos mesmos pressupostos utilizados
para o sujeito do experimento ao experimentador.
3) Existem N explicações possíveis para cada padrão de fatos observados,
experimentalmente ou de qualquer outra forma. Ou seja, mais uma crença popperiana de que
as teorias explicativas possíveis para qualquer lei científica são sempre infinitas.
4) No campo da teoria explicativa, as causas formais e finais devem ser readmitidas
em seu pleno direito. Ou seja, para a Psicologia Humanista o conceito de agency, ou do
sujeito proativo e orientado a metas, é central e sem ele nenhuma Psicologia digna do nome
pode ser construída.
Assim, como afirma Rychlak (1975) em seu conhecido artigo “Psychological Science
As a Humanist Views It”, o humanismo é uma descrição teórica do comportamento em termos
de causas formais e causas finais, mais do que em termos de causas materiais e causas
eficientes, como no Behaviorismo e na Psicologia Fisiológica. Para Rychlak, o grande mérito
do Cognitivismo foi ter reintroduzido o campo das causas formais na explicação psicológica
científica, mas ele falha como humanismo (Rychlak, 1988) porque não aceita, da mesma
forma como toda a Psicologia de matriz lockeana, as causas finais como legítimas fontes de
explicação científica. Rychlak (1988) não aceita a caracterização do Cognitivismo como uma
Psicologia de matriz kantiana. Para ele, as categorias do entendimento organizam a
experiência de maneira ativa, o organismo é ativo em direção à vida e não responde à vida; dá
sentido aos estímulos e não responde a eles. Portanto, Rychlak acredita que o que está no
centro da psicologia kantiana é a crença de que causas formais e finais determinam o
comportamento, e não causas materiais e eficientes.
Uma vez que Rychlak (1988) identifica o Cognitivismo com a teoria mediacional que
o antecedeu e com algumas teses da inteligência artificial, sua conclusão é que esta
abordagem adere à mesma matriz conceitual lockeana do Behaviorismo. As teorias
mediacionais falham em oferecer um genuíno resgate da causa final no domínio da explicação
psicológica por três motivos. Primeiro, porque os mediadores (sinais, codificadores, regras,
modelos) são inputs e portanto foram causados eficientemente no organismo; sendo assim
(segundo) uma meta genuinamente produzida pelo próprio organismo de forma independente
da causação ambiental e genética não tem lugar (a liberdade é um mito); então (terceiro), isto
resulta num meio exclusivamente demonstrativo de descrever o curso dos comportamentos.
Para Rychlak portanto, o Cognitivismo é um Behaviorismo mediacional.
Rychlak rejeita a tese de que a solução inatista do Cognitivismo representa um
compromisso com uma visão kantiana da Psicologia. Para ele, as categorias kantianas não tem
300
nada a ver com os receptáculos inertes de organização de idéias que ele identifica com a
tradição lockeana. As categorias kantianas para Rychlak (1988) são “causas formais” da
experiência, em virtude das quais a realidade percebida pelo sujeito é ativamente organizada.
Assim, a nossa estrutura teórica formal irá condicionar o input que receberemos, ativamente,
atribuindo sentido à experiência.
Aqui Rychlak (1988) faz críticas pertinentes à abordagem computacional da mente,
que pretende ter resolvido o problema do comportamento humano orientado a metas, ou seja,
pró-ativo, e com isso solucionado a questão teleológica em Psicologia. Voltamos aqui à
famosa obra de Miller, Galanter e Pribram (1960), um dos marcos fundadores do
Cognitivismo: “Plans and the Structure of Behavior”. Para estes autores, podemos definir um
plano de maneira rigorosa como um processo hierárquico de seqüências de operações a serem
executadas por um organismo, da mesma forma como um programa para um computador.
Este nós conhecemos hoje como TOTE (test-operate-test-exit), um modelo cibernético de
auto-regulação orientada a metas, ou feedback. A diferença aqui para Rychlak é que temos
um modelo formal para “dar conta” do fenômeno da intencionalidade do comportamento, não
uma legítima aceitação da causa final. Temos causas formais e eficientes “dando conta” de
uma formulação aceitável de parte dos aspectos pró-ativos do comportamento. Para os autores
cognitivistas citados, intenção é uma parte incompleta de um plano cuja execução já tenha
começado. Rychlak questiona esta visão da atividade finalista humana, pois em sua visão esta
deveria dar conta não da hierarquia de um plano de ação, mas da própria definição dessa
hierarquia e desse plano. Caso remetêssemos a questão a planos e hierarquias maiores,
estaríamos sempre somente transferindo o problema da legítima causalidade final para mais
atrás, até termos que nos deparar com as metas e finalidades irredutíveis (por exemplo, o
plano de ir à faculdade, faz parte de uma meta mais elevada de terminar o doutorado, que faz
parte de um plano mais extenso de formação profissional, que faz parte de uma meta mais
básica de investigar profundamente certos problemas, que por sua vez precisa ser explicada
sempre por uma hierarquia superior de metas).
Se um organismo está somente executando planos, então em qual sentido podemos
falar de explicação teleológica? Só podemos falar de teleologia quando formulamos estes
planos, comparamos planos diferentes e os escolhemos. A execução, assim como a execução
de um programa, pode ser pensada em termos de feedback e causação eficiente, mas esta não
é a questão para Rychlak (1988). Não temos aqui qualquer revolução em relação à imagem
mecanicista de homem herdada do Behaviorismo diz Rychlak. O comportamento continua a
ser visto como explicado em termos de causa eficiente (impulsos neuronais) guiada pela causa
301
formal do padrão do plano do “programa” (meta cognitiva). Mas onde está a verdadeira
questão da pró-atividade, que é a escolha de planos e a decisão de executar o plano? Na
imagem de homem do Cognitivismo como a vê Rychlak, em nenhum lugar. Já nos
computadores é fácil: no usuário. É o programador que escolhe os planos e que toma a
decisão de rodá-los a maioria das vezes, e algumas poucas outras vezes nós, comuns usuários.
Em outro texto Rychlak (1986) ilustra bem esta questão da ausência de um verdadeiro
comportamento teleológico em computadores. Ele sintetiza sua tese com a sentença:
Computers do not predicate” (p.757). O comportamento orientado a metas, “intencional” do
computador é de uma intencionalidade derivada, e derivada do programador. A diferença
entre a suposta intencionalidade do computador e a verdadeira intencionalidade que é a do
programador, como observa sarcasticamente Rychlak, não é problema para o sistema jurídico
americano: as penalidades sobre mal-funcionamento, danos e delitos cometidos por um
software em execução recaem sempre sobre o programador, conforme legislação já em vigor
nos Estados Unidos. Isto acontece porque o sistema legal presume que o verdadeiro agente do
comportamento do sistema é a pessoa que o programou. Só a Psicologia, observa
ironicamente Rychlak (1986), nega essa condição de predicador universal ao ser humano.
Para não continuar nesta lastimável situação, Rychlak (1994) propõe para a Psicologia
sua própria teoria. Em “Logical Learning Theory”, a mais importante obra da Psicologia Hu-
manista contemporânea, Rychlak apresenta a forma final de sua LLT e o resultado acumulado
de décadas de pesquisa em seu suporte. Uma das alegações centrais da LLT é que o ser
humano raciocina de duas formas básicas: a demonstrativa, sem questionamento das premis-
sas assumidas, e a dialética, quando a indefinição entre premissas opostas e comparação entre
elas. Para Rychlak (1994), é o pensamento dialético, que lida com as premissas que escolhere-
mos para interpretar a realidade e as informações que receberemos, que é a raiz da liberdade
subjetiva humana. É ao raciocinar dialeticamente que fazemos escolhas primevas sobre
planos, metas e pressupostos. Essa é a interpretação de Rychlak da Psicologia kantiana:
“We cannot pass through our mental glasses – Kant referred to these as the categories of the
understanding – to experience the noumenal realm directly. We may infer that the noumenal realm
of things in themselves exists independently to our conceptualizing capacity, but we can never
know noumenal reality except as we experience it through our glasses (categories), for they pattern
(predicate) our sensory inputs, making them meaningful and hence knowable. The Kantian model
is pro forma rather than tabula rasa. Because the assumption that the spectacles lend meaning to
life from its inception. Thus, a meaning always begins and proceeds from the highest levels of
abstraction to the targeted levels below. The ultimate given in meaning (where explanation is
302
grounded) resides in the unique formal-cause organization of the conceptual spectacles, which
from the outset provide a context framing the point of view.” (p.29)
Portanto, lembrando o conceito kantiano de dialética transcendental, Rychlak (1994)
advoga que idéias podem ser formuladas numa esfera transcendente, assim literalmente sendo
capazes de rearranjar a realidade, ainda que em detrimento do sujeito por causa das distorções
resultantes. Uma vez que o noumeno é incognoscível, o que recebemos dos sentidos é
informação. Este “input” que nos vem através das sensações não é somente ordenado pela
formas cognitivas, mas pode potencialmente ter seu significado alterado por ele.
Em grande medida, as críticas de Rychlak ao Cognitivismo são injustas. Podem se
aplicar de fato à posição inatista radical de Fodor, mas não ao conjunto da tradição construti-
vista do Cognitivismo. Foi Piaget (1973) quem demonstrou ao mundo científico que o
desenvolvimento cognitivo se dava através de revoluções conceituais do tipo preconizada por
Rychlak (1994). Sua Psicologia do desenvolvimento é calcada nos conceitos de organismo
ativo e atividade do sujeito sobre o mundo, que é o responsável pelas construções de suas
próprias estruturas cognitivas. Para Piaget o sujeito psicológico é um objeto que difere
fundamentalmente dos corpos e das forças cegas que constituem os objetos das ciências
físicas. O próprio Rychlak foi formado na primeira tradição cognitivista da psicoterapia, a dos
constructos pessoais de George Kelly e se considera seu herdeiro. Não é legítima a
conceituação do Cognitivismo como uma mera teoria mediacional. Quando o Cognitivismo
trata metas e propósitos como causas formais, em sua forma de crenças sobre a ordem
hierárquica de ações a serem efetuadas para a consecução de uma meta, o faz não negando a
ordem de causalidade final, mas negando que tal tipo de causalidade possa ser abordada de
uma forma científica com conseqüências preditivas. De fato, é nisso que fracassa a LLT. Se é
verdade que raciocinamos dialeticamente e criativamente, também é verdade que neste
campo, nenhuma predição comportamental pode ser feita, e sem previsão, não há ciência.
Assim a crítica de Rychlak (1988, 1994, 1999), mas uma vez, é pertinente para as
Ciências Cognitivas, mas não para a Psicologia Cognitiva. De fato, a substituição na IA forte
do conceito de causa final (de razões como determinantes do comportamento tanto quanto
causas) por sua versão lógica é total. Mas não podemos esquecer que a simulação computa-
dorizada não é o mesmo que IA forte: podemos tentar simular razões ou causas finais como
programa hierárquico de metas, sem reduzi-los à causa formal. Não há causalidade final que
não se dirija a realização da meta sem uma forma pré-estabelecida. Podemos colocar em teste
303
estes planos uma vez construídos, mas não seu momento de criação e escolha. Assim,
podemos investigar a causalidade final do comportamento humano somente depois que está
constituída enquanto causa formal, enquanto meta e hierarquia de metas. Isto não significa a
negação da existência de uma fonte legítima de causalidade final. Significa a constatação de
que tal tipo de explicação não é científica por não ter caráter preditivo. A solução para este
problema não é nem agregar a causalidade finalista à explicação psicológica nem negá-la
como hoje se faz em Psicologia. A solução é mudar a natureza da explicação em Psicologia.
Como foi exposto nesta tese, a proatividade, o agency, é característica distintiva da
imagem de homem oferecida pelo Cognitivismo, que rompe com o mecanicismo, ao contrário
da Neuropsicologia e da Inteligência Artificial, e ao contrário do que acusa Rychlak. O ser
humano é um foco de atividade do universo, busca ativamente metas, constrói ativamente
suas estruturas cognitivas, atribui ativamente significado. Portanto, sem nenhuma dúvida,
podemos alinhar o Cognitivismo do lado da tradição kantiana da Psicologia conforme a
entende Rychlak (1988) e contra a tradição lockeana. O Cognitivismo reconhece duas ordens
de causalidade para o comportamento humano: as causas eficientes e as causas finais. Como
nos afirma o grande neuropsicólogo ganhador do prêmio Nobel Roger Sperry (1993), a
primeira se dá em virtude da natureza físico-química constitutiva do ser humano que é movida
por leis estritas de causalidade, governada pelo mundo natural. A segunda se daria em virtude
das propriedades emergentes da organização e atividade cerebral, a consciência e a atividade
dela resultante. Penna (1984) expõe como este tipo de compromisso representa mais um
afastamento radical da tradição positivista, e portanto, da lockeana, uma vez que explicações
centradas em razões são derivadas do conceito de escolha, e este, é indissociável do conceito
de liberdade, que por usa vez, é inconciliável com o determinismo laplaceano que caracteriza
a visão de mundo positivista.
Apesar de Rychlak (1994) ter tornado explícita na tese computacional da Ciência
Cognitiva mais um domínio irredutível da Consciência, a criatividade, sabemos que o
Cognitivismo não adere à tese computacional mas somente a usa como metáfora. Por estas e
por outras, o Cognitivismo é um dos grandes responsáveis pelo esvaziamento do movimento
humanista, uma vez que ao compartilhar de suas posições críticas básicas em relação ao
Behaviorismo e a Psicanálise, apresenta no entanto uma proposta epistemológica e
metodológica rigorosamente aderida aos padrões da ciência moderna. Atualmente, mesmo
muitos campos da temática que foi durante décadas exclusivamente humanista, como a
felicidade, tem encontrado programas de pesquisa ligados à tradição cognitivista muito mais
bem estruturados, como a Psicologia Positiva de Martin Seligman (Seligman &
304
Csikszentmihalyi, 2000). Por tudo o que vimos extensivamente no capítulo três, sobre a
fundação da Psicologia Humanista, no quatro sobre a imagem de homem assumida pelo
Cognitivismo, e aqui sobre as posições de Rychlak, podemos, conclusivamente, afirmar que o
Cognitivismo é um Humanismo.
5.1.5 As críticas cognitivistas
Assim, chegamos afinal a algumas críticas efetuadas por alguns dos maiores
cognitivistas aos rumos de seu próprio movimento, como as de Howard Gardner, Jerome
Bruner, Urlic Neisser e Jerry Fodor.
Gardner (1992) acredita que a Psicologia contemporânea corre o risco de extinção
como disciplina da mesma forma que corria quando surgiu a Revolução Cognitiva, apesar de
podermos fechar os olhos para este risco e permanecer realizando o mesmo tipo de pesquisa
que tem caracterizado o campo até hoje. Também podemos fechar os olhos para este risco –
causado pela fragmentação extrema do campo e pela negligência em relação a aspectos
centrais da psique – e esperar uma teoria messias, que venha unificar o campo. Podemos ainda
dizer que essa acusação de fragmentação e falta de conceitos unificadores é injusta, e está
baseada numa romantização da Física e da Biologia, que de fato não são completamente
unificadas. Mas Gardner prefere uma quinta postura. Para ele, a Psicologia está sendo
progressivamente absorvida por uma série de outras disciplinas mais fundamentais, umas
científicas, outras nem tanto. Portanto, para ele o que cabe é encontrar o lugar que cabe à
Psicologia na topografia da ciência contemporânea.
Para ele, o único lugar cabível ao psicólogo cognitivo é o de membro de uma equipe
multidisciplinar de investigação. Ele considera que parte das “lower regions” da Psicologia,
como por exemplo a percepção visual, se tornarão progressivamente campos mais
neurofisiológicos do que psicológicos. Apesar disto, Gardner (1992) rejeita completamente a
redução do psicológico ao neurológico, ele considera somente a Neurociência que se define
como independente das Ciências Cognitivas como aderida a um reducionismo fisiológico.
Assumindo explicitamente a posição de Dreyfus (1972), Gardner defende também a
Psicologia das reduções computacionais, assumindo a intuição como aspecto característico da
razão humana. Esta posição já se encontrava expressa em sua obra mais conhecida (Gardner,
1996, [1985]) onde afirma que a aplicação dos métodos e modelos rigorosos extraídos do
domínio computacional proporcionou aos cientistas o entendimento rigoroso das maneiras
pelas quais os seres humanos não são muito parecidos com computadores. Sternberg (1992)
rejeita completamente as observações de Gardner. Em resposta direta ao artigo em que
305
Gardner expressa estas opiniões, Sternberg acredita que a Psicologia é muito jovem para
morrer, e que a fragmentação nesta altura de sua existência e o constante teste de seus limites,
é antes um sinal de saúde do que de doença. Para ele, foi a saúde da Psicologia, assim como
sua imaturidade natural, que propiciou a rica interação com disciplinas vizinhas, que no
entanto tendem a desaparecer assim que forem plenamente integradas à Psicologia. Para
Sternberg (2004), é a Psicologia que irá com o tempo incorporar e integrar as disciplinas da
hoje assim chamada Ciência Cognitiva, e não o contrário.
Críticas muito mais severas que as de Gardner encontramos em Jerome Bruner. Em
“Atos de Significação”, Bruner (1997) externa toda sua decepção com a revolução da qual foi
um dos maiores protagonistas. Para Bruner, não há porque continuarmos a sustentar a
obsessão reducionista da ciência contemporânea. Reduzir o significado de uma cultura a uma
base material, ou dizer que eles dependem “digamos, do hemisfério esquerdo do cérebro” (p.
xi) é uma afirmação trivial e estupidamente concreta. Não devemos, crê Bruner (1997),
insistir na explicação em termos de causas eficientes, porque estas simplesmente nos
impedem de entender como os seres humanos interpretam seu mundo e como interpretamos
os atos de interpretação deles. Pergunta Bruner:
“E se considerarmos que o objeto da Psicologia (como o de qualquer empreendimento
intelectual) é a obtenção de uma maior compreensão, por que seria necessário, em
qualquer caso, que entendamos antecipadamente os fenômenos a serem observados,
sendo que a isto se resume à previsão? Interpretações plausíveis não são preferíveis às
explicações causais, particularmente quando a obtenção de uma explicação causal nos
força a artificializar o que estamos estudando a tal ponto que quase impedimos o seu
reconhecimento como algo representativo da vida humana?” (1997, p.xi-xii)
Bruner acredita que a Revolução Cognitiva se desviou de seus objetivos para tópicos
marginais. Para ele, seu objetivo central era o resgate da mente para as ciências, após “um
longo e frio inverno de objetivismo” (1997, p.15). Segundo seu relato, o grupo de cientistas
que se articulou em torno dele em Harvard no Centro de Estudos da Cognição, pioneiro na
Revolução Cognitiva, acreditava que esta revolução era um esforço concentrado para
estabelecer o significado como conceito central da Psicologia e não estímulos e respostas,
impulsos biológicos ou comportamento manifesto. Não se tratava de uma reforma do
Behaviorismo acrescentando-lhe uma “pitada de mentalismo” com um modelo mediacional.
Tratava-se de uma tentativa de “descrever formalmente os significados que os seres humanos
306
criavam a partir de seus encontros com o mundo” (1997, p.16) e então levantar hipóteses
sobre estes processos. É difícil no entanto, saber exatamente o que Bruner quer dizer com
isso, ou como tal coisa se operacionalizaria metodologicamente.
Mas o aspecto crítico de sua análise da Revolução Cognitiva é muito evidente. Para
ele, muito cedo o Cognitivismo mudou a ênfase do “significado” para a “informação”. A meta
deixou de ser a “construção do significado” para se tornar o “processamento de informações”.
O problema é que, como já foi abordado neste trabalho, a informação é indiferente ao
significado. Como afirma Bruner:
“Em termos computacionais, a informação abrange uma mensagem já pré-codificada no
sistema. O significado é previamente atribuído às mensagens. Não é um resultado da
computação, nem é relevante para a computação (...). O sistema que faz todas estas coisas
é cego em relação a se o que está armazenado são palavras dos sonetos de Sheakspeare ou
algarismos de uma tabela de números aleatórios. De acordo com a teoria da Informação
clássica, uma mensagem é informativa quando reduz as alternativas de escolha. Isso
implica um código de escolhas possíveis previamente estabelecidas.” (1997, p.17).
Vemos aqui que as críticas apresentadas por Bruner são semelhantes às do
humanismo. Portanto, incorrem na mesma limitação. Não nos demonstra como poderíamos
abordar cientificamente a questão do significado. Esta limitação se torna óbvia na parte
propositiva da argumentação de Bruner, que se encaminha para uma estranha e confusa
proposta de Psicologia que deveria ser uma mistura de dados subjetivos e introspectivos com
estudos culturais de aspecto pós-moderno. Parece que apesar da pertinência e agudeza de suas
críticas, o último Bruner (1997), renunciou ao projeto de uma Psicologia científica moderna.
Por fim, é relevante citarmos algumas críticas oriundas de outro dos “pais fundadores”
da Psicologia Cognitiva, Urlic Neisser. A partir de “Cognition and Reality” (1975), Neisser
começa a demandar por estudos de maior validade ecológica na Psicologia Cognitiva. Ele
afirmava nesta obra que o Cognitivismo não era comprometido com uma concepção de
natureza humana que pudesse ser aplicada no mundo real, além dos confins de um
laboratório. Assim, Neisser acredita que comportamentos estudados em laboratório deveriam
passar pelo crivo de uma validação ecológica. Neisser propõe por exemplo que se estude a
percepção à medida que ela se desenrola quando um organismo está seguindo seu caminho no
mundo, estudos que investiguem o reconhecimento de objetos complexos do mundo real, e
307
não objetos inventados encontrados em situações de laboratório, assim como estudos de
memória passada real de um indivíduo.
Uma outra observação interessante de Neisser (1975) é que além de ser impossível
hoje para a Psicologia apresentar uma explicação dedutivo-nomológica estrita de qualquer
comportamento particular, ainda temos que considerar o aparente paradoxo de que o aumento
do conhecimento provoca o aumento da impreditibilidade do comportamento humano, e que
quanto mais soubermos sobre o ambiente e nossos próprios processos cognitivos, menos
nosso comportamento será predizível.
Não podemos por exemplo prever o comportamento de uma pessoa em um ambiente
natural, a menos que saibamos tanto sobre este ambiente quanto a pessoa. Esta idéia de Neis-
ser indica que um psicólogo não é a pessoa mais indicada para prever o comportamento de um
mestre do xadrez numa partida, pois ele não sabe tanto quando o mestre sabe. Neste caso, um
outro mestre é mais capaz de predições acertadas que um psicólogo. Pelos mesmos motivos,
um psicólogo não é o mais indicado para prever o comportamento de um bombeiro numa
situação de incêndio, pois um outro bombeiro tem muito mais conhecimento sobre aquele tipo
de situação que um Psicólogo. Isto porque se o comportamento é uma função da informação
presente no ambiente, quanto mais você entender seu ambiente, mais informações irá recolher
dele, e portanto, mais difícil será prever seu comportamento. De forma geral, diz com proprie-
dade Neisser (1975), quanto mais a pessoa sabe, menos fica passível de controle. “Truth does
make us free”, diz Neisser (p.185). Como observou Penna (1984), temos aqui mais uma com-
vergência entre o pensamento popperiano e a Psicologia Cognitiva, uma vez que argumentos
semelhantes são desenvolvidos por Popper (1961) em “A Miséria do Historicismo”.
Neisser (1975) no entanto não é tão duro assim consigo mesmo, e este trabalho será
menos ainda. Quanto a primeira observação crítica, a acusação de falta de validade ecológica
acompanha a Psicologia há séculos, e sempre a acompanhará. O que é surpreendente é que
algumas vezes psicólogos da estirpe de Neisser e Bruner (1997), caiam nessa velha queixa
sociológica. Não é compreensível se acusar a Psicologia de falta de validade ecológica e não a
Física, por exemplo. Um acelerador de partículas é um ambiente muito mais “artificial” e
distorcido em relação a seu objeto de estudo que um laboratório de Psicologia Cognitiva. A
falácia sociológica que acompanha este tipo de preocupação é a falácia do laboratório como
ambiente “artificial”, seja lá o que esta palavra signifique. Ora, não é o laboratório parte do
mundo real? Não se dão no ambiente de laboratório interações sociais? Não é fato que todo o
ambiente físico ordinário está preservado num laboratório cognitivo (o que não acontece num
acelerador de partículas)? Então, qual é o problema?
308
Obviamente o problema é que situações reais são muito mais ricas e complexas. Mas
se não compreendermos o funcionamento básico da percepção ou da memória de longo prazo
em ambientes controlados e simplificados, podemos perder qualquer esperança de compreen-
dermos o funcionamento complexo destes aspectos da cognição humana em ambientes “reais”
incrivelmente mais complexos, “válidos ecologicamente”. Eysenck & Keane (1994), obser-
vam que nos últimos anos esta crítica tem perdido força, pois uma vez que o conhecimento
sobre alguns processos básicos já alcançaram um bomvel de desenvolvimento, muitas
pesquisas em Psicologia Cognitiva tem progressivamente se voltado para o estudo de
fenômenos mais complexos e “reais”, como a percepção de faces, a compreensão de textos e a
resolução de problemas. Esta tendência, naturalmente se reforçará com o tempo.
Sobre a segunda observação crítica de Neisser (1975), só é importante lembrar que não
levanta qualquer obstáculo à possibilidade de predição do comportamento de caráter
ontológico, mas somente metodológico, aumentando a gravidade da condição da explicação
psicológica no Cognitivismo. Será oferecida nesta tese, no entanto, uma proposta de solução
para este problema.
Por fim, é necessária a consideração das críticas daquele filósofo que tem sido uma das
grandes referências do Cognitivismo, Jerry Fodor. Ao longo de toda a tese, temos pontuado
que Fodor considera o computacionalismo (ou CTM – Teoria Computacional da Mente)
somente uma aproximação válida, com limitações, do problema da mente. Apesar da clareza
de sua posição, ela sistematicamente continua a ser ignorada por alguns de seus críticos, como
Searle (1992) e Dreyfus (1993). Logo no começo de sua obra prima, “The Language of
Thought” ele cita com sua ironia usual uma declaração de Lyndon Johnson para ilustrar com
humildade o papel que acha que cabe a CTM e a sua tese de uma linguagem inata do
pensamento: “I’m the only President you’ve got.” (p.27). Ou seja, pode ser uma teoria falha,
mas é tudo o que temos por enquanto. Veja esta passagem onde ele resume alguns dos
argumentos principais desta obra:
“1. The only psychological models of cognitive process that seem even remotely
plausible represent such processes as computational.
2. Computation presupposes a medium of computation: a representational system.
3. Remotely plausible theories are better than no theories at all.” (1975, p. 27)
Não poderia estar mais de acordo com a terceira conclusão. Uma teoria plausível e
possivelmente falha, é muito melhor que nenhuma. Basta observar as conseqüências das duas
309
teorias mais importantes da Ciência Cognitiva no século XX: A linguagem do pensamento e a
teoria modular da mente. Por conta das formulações exatas e das hipóteses de trabalho que
derivaram destas duas teses, as duas de Jerry Fodor, pudemos promover uma quantidade
enorme de pesquisas e levantar uma série de dados relevantes até chegar à conclusão que
temos hoje, a de que a tese da linguagem do pensamento é limitada semanticamente e que os
processos superiores cognitivos não podem ser modulares, o que pressupõe a existência de
alguma espécie de processamento central.
Estas opiniões são também as de Fodor (2001), que recentemente publicou a obra “The
Mind doesn’t Work that Way”, em resposta ao que ele considera a pretensiosa e irrealista obra
de seu “irmão em armas” inatistas e computacionalistas Stephen Pinker (1997): “How the
Mind Works”. Ele explica que a motivação central de sua obra não é a polêmica, mas lembrar
a todos que obras como a te Pinker (1997) devem ser evitadas não só por serem imprecisas,
mas por serem também ingênuas, impertinentes e obscuramente motivadas. Fodor acredita
que apesar do trabalho feito nos últimos cinqüenta anos, a Ciência Cognitiva “ainda es
gelada” (lembrando a brincadeira infantil), e tudo o que nos legou foi conhecimento negativo,
de como várias teorias não funcionam ou não funcionam bem, e porque. No entanto Fodor
lembra que isto é muito mais do que o que tínhamos conseguido até aqui:
“In fact, what our cognitive science has done so far is mostly to throw some light on how
much dark there is. So far, what our cognitive science has found out about the mind is
mostly that we don’t know how it works.” (2001, p.100)
Assim, Fodor acredita que é um equívoco a visão de Pinker de que os processos
mentais são todos computacionais, que a arquitetura da mente é totalmente modular e que a
nossa estrutura mental inata tenha explicação darwinista. No entanto, apesar de somente os
processos mentais periféricos apresentarem evidência de modularidade, nós não temos
nenhuma idéia de como uma cognição não-modular poderia funcionar. Portanto, conclui
Fodor (2001) seguindo Chomsky, devemos recuperar o bom senso e a humildade, pois o
funcionamento da mente não nos apresenta somente problemas, mas sim verdadeiros
mistérios, como o fato de a mente ser funcional, abdutiva e computacional ao mesmo tempo
(p.99). A aventura da Ciência Cognitiva, diz Fodor, apenas começou.
A importância de apresentar estas conclusões daquele que é considerado o filósofo do
Cognitivismo, é mostrar que mesmo no seu núcleo duro, a Psicologia Cognitiva está
completamente cônscia dos seus limites científicos e dos limites de seus modelos atuais. No
310
entanto, só conhecemos estes limites hoje porque fizemos ciência, e boa ciência. Hoje, tal
como o escravo do Menon, estamos menos ignorantes do que quando começamos.
5.2 O Cognitivismo e os Limites da Psicologia Científica
Neste item, são reapresentadas de maneira sintética as respostas que o Cognitivismo
ofereceu aos obstáculos ontológicos, epistemológicos e metodológicos que as tradições filosó-
fica e científica colocaram diante da pretensão da Psicologia de se tornar uma disciplina
plenamente científica. Desta forma, busca-se sintetizar a resposta deste estudo sobre seu pro-
blema principal. Logo após, concluindo esta obra, apresentaremos as três principais propostas
desta tese para enfrentar alguns problemas de Epistemologia da Psicologia: a adoção da
Explicação Condicional em Psicologia, a adoção do princípio de complementaridade entre
Psicologia científica e filosófica, e uma nova metáfora computacional.
5.2.1 O Cognitivismo e os vetos filosóficos à Psicologia Moderna
1) A natureza inquantificável do objeto da Psicologia – Como estabelecido no
capítulo três, este veto kantiano se refere à impossibilidade de quantificação dos fenômenos
psíquicos, pois não se podem quantificar seus dados e empregar o cálculo matemático na
descrição das leis que os regem, pois estes fenômenos produzem-se só no tempo, e não no
espaço. A solução Cognitivista para esta questão, que muitas vezes não está explícita ou
consciente na estratégia de investigação do campo, é a substituição na explicação psicológica
da descrição matemática das leis pelas descrições lógicas. O Cognitivismo trouxe para a
Psicologia uma forma de abordar o problema do rigor descritivo com uma linguagem lógica
que é tão precisa quanto a matemática, porém não quantificada. Baars (1986) chama esta
linguagem “matemática não-quantitativa”, que incluiria a lógica simbólica, a álgebra
booleana, a topologia e a teoria da função recursiva. A Psicologia Cognitiva resgatou um fato
há muito negligenciado pelo Positivismo em virtude de sua ênfase na matematização das leis
científicas: leis nomoteticamente orientadas precisam ser expressas em termos matemáticos
e/ou lógicos. A abordagem hipotético-dedutiva da Psicologia Cognitiva resgatou a linguagem
puramente lógica para a expressão de leis psicológicas, e com isso conferiu a esta
considerável objetividade, univocidade e falsificabilidade em trabalhos como os de Chomsky
311
e Piaget, sem precisar recorrer a quantificações artificiais de processos psicológicos. A
Simulação Computadorizada mostrou-se nesta questão sumamente importante para a história
da Psicologia, pois forneceu um modelo de linguagem adequada, suficientemente explícita e
cientificamente aceita para construirmos modelos e hipóteses cognitivas. Assim, conclui-se
que este veto kantiano foi plenamente superado pelo Cognitivismo, que legou à Psicologia
uma linguagem adaptada da Inteligência Artificial que permitiu a ela se libertar de outra de
suas falsas prisões: a necessidade contrabandeada da Física de quantificação dos fenômenos.
2) A impossibilidade de o sujeito ser ao mesmo tempo objeto – Veto kantiano e
positivista que se refere à impossibilidade de que o sujeito que pensa possa ser ao mesmo
tempo sujeito e objeto do experimento que realiza, pois estaria consciente das condições
experimentais e de controle, além de a observação interna interferir no resultado do
andamento do próprio processo psíquico. Este veto kantiano-positivista foi, não superado,
mas plenamente contornado de duas formas diferentes.
A primeira foi através da herança de Edward Tolman, a variável interveniente. Este
constructo permitiu que processos cognitivos e internos fossem estudados na forma de
fenômenos de “terceira-pessoa” (no sentido de Searle, 1992), como processos mediacionais.
A variável independente poderia ser inferida como a função que transforma a informação
ambiental que entra no organismo na informação comportamental que sai.
A segunda forma de contornar este veto foi a mudança de status da introspecção
dentro do processo geral de investigação científica cognitivista. No Cognitivismo, não
falamos mais da introspecção como método de julgamento e teste de teorias, mas sim de auto-
relatos como método auxiliar na descrição de processos cognitivos, e portanto inestimável
fonte de idéias para formulação de hipóteses de investigação, essas sim, passíveis de teste em
situação experimental. Assim a introspecção foi reintegrada no âmbito dos métodos descriti-
vos e perdeu sua falsa condição de método para testar hipóteses. A forma que esta ganha na
Psicologia, de protocolos verbais, como colocado no capítulo quatro, não suprime totalmente
mas também ajuda a dirimir o problema levantado por Kant. Estes se baseiam em relatórios
verbais emitidos pelo sujeito durante o desempenho da tarefa solicitada, e não em relatórios
retrospectivos, e só é utilizado para descrever processos que envolvem a atenção consciente, e
nunca para processos automáticos. Estas vocalizações são gravadas e posteriormente
transcritas, para serem analisadas na busca de padrões existentes nestes processos. O estudo
clássico de Ericsson e Simon (1980) estabelece para a Psicologia Cognitiva os critérios de
utilização do protocolo verbal.
312
3) Indivisibilidade do fenômeno psíquico – Segundo Kant (1974), este veto se refere à
impossibilidade de proceder por análise e síntese na investigação do fenômeno psíquico, pois
não se podem considerar os efeitos psíquicos em separado, como elementos, uma vez que a
vida psíquica na realidade forma uma totalidade cujas partes não podem ser separadas nem
combinadas. Como vimos este obstáculo permanece não superado (Dreyfus, 1993), e por seu
caráter ontológico, não parece ser passível de eliminação. Porém sua importância é superesti-
mada por pensadores e psicólogos ligados à tradição fenomenológica. Não podemos analisar
estrito senso a consciência, mas podemos abordá-la em seu caráter funcional. É isto o que a
Psicologia Cognitiva faz, descrever as funções cognitivas, os processos de transformação da
informação e os planos de ação. Apesar disto ela não reduz, como vimos, os fenômenos psi-
quicos a seus aspectos funcionais: somente assume que eles possam ser definidos de maneira
aproximada, mesmo que com certa distorção por estarem sendo considerados isoladamente.
Mas uma vez tendo assumido a visão popperiana de conhecimento científico como conheci-
mento aproximativo, o Cognitivismo abandona desde seu início a ilusão de conhecimento
absoluto, o que faz com que este veto se transforme em somente uma limitação.
De fato, o que se aplica à Psicologia se aplica igualmente, em escala progressivamente
menor, à Biologia e à Física. O organismo também deve ser visto como um todo holístico,
indivisível, e a consideração de problemas orgânicos em partes, embora artificial, é condição
de possibilidade de estudo do fenômeno. Ninguém duvida no entanto que a Biologia seja uma
ciência bem constituída, e portanto que seu objeto seja passível de investigação. Da mesma
maneira, o Universo físico é um todo orgânico e inter-relacionado, e no entanto podemos por
decisão metodológica considerá-lo em partes ínfimas artificialmente isoladas. É claro que
aqui o problema é menor que na Biologia, e nesta, menor que na Psicologia, mas a questão é
de grau. A vida psicológica é unitária, mas podemos distinguir funções e representações que
podem, com um grau de artificialidade que em maior ou menor medida é comum a todas as
ciências, serem investigadas.
4) Psicologia não pode ter o mesmo método das ciências naturais – Se refere ao
problema de o objeto da Psicologia ser de natureza diversa do objeto das ciências naturais,
requerendo um método próprio de investigação. De fato, de certa maneira, se trata de um veto
insuperável, pois como argumenta Searle (1992) a consciência é um fenômeno de primeira-
pessoa, e todos os outros objetos do universo são fenômenos de terceira-pessoa.
313
Isto não impede no entanto que se investigue a consciência como fenômeno de
terceira-pessoa, não diretamente, mas a partir de seus efeitos no comportamento e no
processamento da informação. De fato, a solução de mudança de método é uma não-solução.
Quando Dilthey (1945) propõe como método de investigação nas ciências do espírito o
método idiográfico, ele está jogando a criança fora junto com a água suja da bacia. O proble-
ma nunca foi interpretar retrospectivamente o comportamento, e sim explicá-lo. O ser humano
interpreta subjetivamente as causas e sentidos dos comportamentos alheios há milhares de
anos, e de fato, é bastante eficiente ao fazê-lo. Mas uma vez que temos apenas há trezentos
anos acesso ao mais bem sucedido método de investigação da natureza, e uma vez que faze-
mos parte desta natureza, a questão da Psicologia sempre foi a de como tornar este método
aplicável ao fenômeno psicológico, para determinar até que ponto nosso comportamento pode
ser explicado cientificamente. Assim, uma vez que fenômenos cognitivos (conscientes ou
não) têm efeitos mensuráveis no mundo físico, podemos sim estudá-los como fenômenos de
terceira-pessoa, e ao estudá-los desta forma, devemos estudá-los com o método científico, que
é aplicável a qualquer fenômeno que tenha efeitos sobre o mundo físico.
Porém, uma vez que a abordagem da consciência e do inconsciente cognitivo como
fenômenos de terceira-pessoa não esgota a dimensão psicológica, não podemos restringir o
estudo psicológico ao método científico. O limite para a aplicação do método cientifico à
Psicologia é dado pelos fenômenos psicológicos que obedecem a padrões. Os fenômenos da
autêntica criatividade, pró-atividade e sentido da experiência são impenetráveis ao método
científico e portanto só se submetem a uma investigação de cunho filosófico. Já a qualia da
experiência consciente é inabordável por qualquer método e indescritível por qualquer
linguagem (Dreyfus, 1993; Searle, 1992; Nagel, 1980; Jackson, 1990). Portanto, apesar de ter
demonstrado que é possível e preferível a investigação de vastos domínios da vida psicológica
pelo método científico, o Cognitivismo parece ter também possibilitado a clara compreensão
de que a vida psicológica tem domínios impenetráveis ao mesmo.
5) O objeto da Psicologia deve ser o sentido da experiência consciente – É a tese da
Psicologia Humanista e Fenomenológica. Trata-se evidentemente de um grande equívoco,
explicado acima. Nós podemos abordar o fenômeno psicológico como um fenômeno de
primeira-pessoa ou como um fenômeno de terceira-pessoa. A primeira forma tem a
conveniência do acesso direto aos processos conscientes e de significado. É no entanto
impenetrável à investigação objetiva. A segunda forma tem a conveniência da abordagem
através do método científico e de uma forma objetiva, através de dados indiretos. É no entanto
314
cega para questões de sentido e de qualia (que não pode ser confundida com sentido nem com
significado). Portanto esta tese defende que questões de sentido são domínio exclusivo da
Psicologia Filosófica e da Filosofia da Mente, embora estas possam ser também instruídas
com dados oriundos da prática científica. Já o domínio da qualia, por se tratar de fenômenos
únicos e irrepetíveis, puramente qualitativos, é um domínio impenetrável ao conhecimento
científico e filosófico (Dreyfus, 1993; Searle, 1992; Nagel, 1980; Jackson, 1990). À Filosofia
cabe somente definir sua existência, por que a partir deste momento ela não tem mais nada a
dizer sobre “como é ser um morcego”. No entanto, como afirma Husserl (1973), o individual
se anuncia para a consciência através do universal, e podemos através do método
fenomenológico definir a essência dos fenômenos. Em meu julgamento, é na intuição eidética
que se revela o significado de um fenômeno ou experiência consciente. Já o objeto da
Psicologia Científica é o comportamento observável e as funções psicológicas e suas
condicionantes. Ao extrapolar estes limites de investigação a Psicologia ou assume um
método e uma condição filosófica, ou se converte em pseudociência.
6) A Psicologia não tem objeto próprio – Esta alegação encontra seus dois principais
defensores ligados ao pensamento pós-moderno, um obscuramente e o outro explicitamente.
Refiro-me ao materialismo eliminativo, que advoga a tese de que o objeto da Psicologia na
verdade é o objeto da Fisiologia (os eventos fisiológicos cerebrais); e ao Construcionismo
Social, que advoga a tese de que uma vez que o sujeito é uma construção social e uma
mistificação burguesa, o verdadeiro objeto da Psicologia é o objeto da Sociologia, ou melhor
dizendo, o dos estudos culturais (história, cultura, linguagem, etc.). Como extensivamente
avaliado neste trabalho, estas duas teses são profundamente inconsistentes e revelam tantas
fragilidades e contradições que só podem ser explicadas em virtude de aderências de caráter
afetivo e emocional (Searle, 2000). Husserl (1952, 1973, 2002) já demonstrou de forma
extensa a inviabilidade de qualquer forma estrita de fisicalismo, do qual o materialismo
eliminativo é somente uma forma peculiar. Na filosofia contemporânea, o surgimento do
Funcionalismo (Putnam, 1961) trouxe novos elementos (como a distinção entre aspectos
funcionais e materiais e propriedades emergentes de níveis de organização) que, sem
renunciar necessariamente a um materialismo ontológico, tornaram o fisicalismo tradicional
mais insustentável ainda. Já as alegações do Construcionismo Social são de um niilismo
ontológico e pessimismo epistemológico de tal ordem que se auto-anulam, e não merecem
portanto maiores considerações teóricas por parte daqueles que têm compromisso com a
busca do conhecimento. Merecem no entanto, considerações políticas (Castañon, 2004b).
315
7) O objeto da Psicologia é alterado pela interação – Como já exposto no segundo
capítulo, esta é uma questão correlata a alguns problemas suscitados pela Física Quântica, e
tem as mesmas soluções teóricas. O que este veto afirma é que o comportamento e processos
cognitivos seriam alteráveis quando o ser humano é colocado em situação de pesquisa, o que
poria em cheque o pressuposto da regularidade do objeto. Entretanto, a interpretação de que
este aspecto do objeto de estudo da Psicologia é um impedimento de caráter ontológico é
falsa, temos aqui somente um complicador metodológico. Como foi visto no segundo
capítulo, o pressuposto da regularidade do objeto não está em questão desde que a alteração
que acompanha o objeto de estudo durante a interação seja ela própria também regida por uma
função. Se existe um padrão na alteração de determinadas características de um objeto em
situações específicas ou diante de objetos específicos, não temos aqui uma evidência
indeterminista, ao contrário, temos a evidência da atuação de alguma lei sobre a interação do
objeto em questão com outros. Esta lei necessariamente terá a forma de uma afirmação de que
interagindo com certos objetos ou estando em certas situações o objeto em questão se altera,
ou ainda se altera em determinado aspecto e de determinada maneira. Podemos inclusive
mensurar quantitativamente a natureza desta alteração nas ciências naturais, ou determinar
logicamente o tipo dessa alteração, no caso da Psicologia. Mas é claro que a solução
metodológica mais simples para este problema é evitar que os sujeitos de uma pesquisa
saibam que estão sendo pesquisados.
Um conceito oriundo da cibernética que nos ajuda a compreender esta questão é o
conceito de feedback. Um modelo cibernético de auto-regulação orientado a metas tem o
poder de alterar permanentemente seu comportamento, mas esta alteração segue padrões.
Num modelo de feedback negativo, que é o tipo que estamos avaliando, parte do output volta
como input de forma a permitir a uma máquina cibernética calcular a margem de erro entre a
meta estabelecida e a atual posição da máquina, o que permite ao sistema ajustar seu
comportamento em relação à meta. Como exemplificado no capítulo dois, se um míssil guiado
por calor estiver perseguindo outro míssil guiado por calor, a proximidade de um alterará a
trajetória do outro respectivamente, mas como bem sabemos, a mudança provocada no
comportamento de cada míssil segue leis físicas e determinações de programação rigorosas,
em nada se assemelhando a um fenômeno indeterminado.
Concluindo, é uma das teses defendidas por este trabalho a de que o conceito de
feedback oferece entre outras coisas uma forma rigorosa de se compreender de maneira
determinista o comportamento de alguns objetos que sofrem alterações de suas características
316
em determinadas situações de interação. Este aspecto não é em absoluto incompatível com os
pressupostos básicos da ciência moderna, que só necessita da condição de independência
parcial entre o objeto e o sujeito para que se dêem as condições de investigação deste objeto.
Assim, se ao investigarmos seres humanos seu comportamento e processos cognitivos se
alteram em virtude da própria investigação, temos aqui um complicador metodológico, que é
descobrir os padrões (se existem) dessa alteração, sempre que for possível, evidentemente,
estudar os mesmos aspectos sem que o sujeito do experimento saiba que está sob investigação
(podemos em Psicologia Social avaliar a diferença que ocorre em comportamentos de ajuda a
estranhos quando sujeitos sabem e quando não sabem que estão sob observação). No entanto,
a questão das leis de interação, na maior parte das vezes não passa de curiosidade teórica sem
muita significação, pois para evitar este obstáculo metodológico basta que executemos
criativos desenhos experimentais onde os sujeitos não saibam que estão numa pesquisa, ou ao
menos não saibam sobre o que é a pesquisa da qual estão participando.
8) O ser humano é dotado de livre-arbítrio – Problema central da Psicologia que
coloca diretamente em cheque sua condição de cientificidade. Se o ser humano é dotado de
autodeterminação, se a atividade consciente é fonte de causalidade finalista, ele se trata de
uma fonte de atividade do universo, e não de um objeto meramente reagente deste.
Existem duas respostas a esta questão. A primeira é que simplesmente esta é uma
questão ontológica (ou sem sentido, como diriam os positivistas; ou um enigma lingüístico,
como diriam alguns analíticos), e como tal, não científica. Como pressuposto acerca do
objeto, você pode partir dele ou não. Se não parte dele, você não tem problema nenhum. A
investigação científica psicológica não reconhece, neste ponto, nenhum obstáculo para
Behavioristas, Fisiologistas ou mesmo boa parte dos Cognitivistas (os ligados à Neurociência
e à Inteligência Artificial). Portanto, no mínimo, a Psicologia tem as condições de se tornar
uma disciplina científica para aqueles que não aceitam este pressuposto e permanecem
aferrados a uma concepção mecanicista de ser humano e de universo. Se esta disciplina terá
sucesso como empresa preditiva ou não, aí é outra questão. Mas a priori, a condição de
aplicação do método científico ao comportamento humano estaria plenamente garantida.
A segunda resposta é mais complicada, e consiste numa das três teses importantes que
este trabalho defende. Deve começar com uma reformulação da questão. Porque como
estamos falando de um pressuposto infalsificável, um pressuposto metafísico, ele só se torna
obstáculo se aceito. Neste caso temos que nos perguntar: Um objeto criativo e livre seria
passível de investigação científica? Este é um problema correlato ao anteriormente avaliado,
317
mas põe em cheque a cientificidade da Psicologia de forma muito mais profunda e
insofismável. Aqui, de fato o objeto em questão poderia modificar seu comportamento (e suas
propriedades cognitivas) de maneira criativa, e portanto, não submetida a regras.
Se o objeto em questão possui um montante de liberdade, a pergunta se torna então
sobre a natureza e volume desse montante. É livre em que? E principalmente, é livre sob que
condições? Se o ser humano é livre, certamente não é livre para se tornar um unicórnio rosa,
ou o planeta Plutão. É necessário que existam limites para sua liberdade, e estes limites
podem ser estabelecidos cientificamente. Se o ser humano é livre, certamente só é livre sob
algumas condições. Alguém sob tortura chinesa não poderia compor a nova sinfonia, alguém
que ainda não aprendeu o conceito de conservação não poderia criar uma teoria que
revolucionasse a Física. Um tetraplégico não é livre para mover sua perna, pacientes com
determinadas lesões cerebrais não são livres para usar a linguagem. Há de haver condições
para a liberdade do ser humano em vários aspectos, e estas condições podem ser
cientificamente estabelecidas, porque obedecem a padrões, e portanto redundam em leis.
Podemos não ter o poder de prever para onde vai se dirigir uma jovem num campo
aberto repleto das mais diferentes flores por todos os lados. Mas somos capazes de prever que
se ela tiver a medula espinhal seccionada completamente na altura da quinta vértebra, então
ela não poderá ir a lugar nenhum. Podemos não ter o poder de prever em que momento uma
criança vai começar a apresentar domínio de operações cognitivas próprias do estágio
operacional formal. Mas somos capazes de prever que se uma criança não apresenta domínio
das operações cognitivas próprias do estágio operacional concreto então jamais será capaz de
executar sozinha uma tarefa que exija estruturas próprias do estágio operacional formal.
Podemos ainda não ter o poder de prever como se comportará um paciente diante de
determinada circunstância, mas podemos ser capazes de prever que caso ele não mude seu
sistema de crenças então continuará reagindo a determinadas situações da mesma maneira.
O que estou afirmando aqui tem implicações profundas. Implica por exemplo que a
Psicologia Humanista que não pretende renunciar ao método científico tem andado para o
lado errado ao renunciar ao rigoroso caráter preditivo que devem ter as leis científicas. Não
precisamos renunciar na Psicologia ao método científico nem à forma preditiva que devem
possuir as leis científicas para construirmos uma disciplina compatível com a imagem de ser
humano livre, responsável e criativo. Voltaremos a esta questão no item dedicado a minha
proposta de explicação condicional para a Psicologia.
318
5.2.2 O Cognitivismo e o problema dos pressupostos filosóficos gerais da Ciência
9) Anti-representacionismo: a linguagem não tem referência estável ou real – Tese
pós-moderna desconstrucionista que advoga a impossibilidade de representação da realidade
através das palavras, e a determinação do significado de palavras através dos “jogos de
linguagem”. Fora o truísmo propagado por Rorty (1979, 1989) de que as palavras não podem
referir o mundo de maneira estável, temos que admitir no entanto que elas possam se referir
aos significados de nossas teorias sobre o mundo de maneira estável, apesar de convencional.
Como já defendido nesta tese, de fato, por redução ao absurdo, podemos facilmente
eliminar a tese anti-representacionista. Caso ela fosse verdadeira, não poderia ser expressa em
palavras (Searle, 2000). Mas eliminando esta tese contraditória e niilista, resta a questão
propositiva. Como resolvemos o problema de como palavras podem representar os
fenômenos, ou seja, a forma típica de aparecer das coisas para nossa consciência? É claro que
esta questão é colocada em outros termos pela tradição analítica (Wittgenstein, 1975; Quine,
1975; Ryle, 1949), mas como vimos, sua filosofia da linguagem e teoria do significado
implicam numa variante de Behaviorismo, o Behaviorismo Lingüístico, e se revelam portanto
incompatíveis com os pressupostos ontológicos e epistemológicos do Cognitivismo.
Tendo ficado isto evidente, muitos dos principais nomes do Cognitivismo passaram a
trabalhar numa nova teoria geral da linguagem. A teoria lingüística de Noam Chomsky (1957,
1971, 1981) é um dos maiores sucessos teóricos e empíricos do século XX, mas nos resolve
somente o aspecto sintático da teoria da linguagem, estabelecendo a necessidade de
pensarmos esta capacidade humana como sendo de natureza ao menos potencialmente inata.
Jerry Fodor (1975) tentou levar o domínio de teoria de Chomsky ao campo das
representações, criando a teoria da linguagem do pensamento, que postulava a natureza inata
de todas as representações possíveis numa espécie de linguagem de máquina cerebral pré-
instalada. Mas como ficou rapidamente evidente, isto não resolvia o problema semântico. Fica
inalterado o problema de como representações de qualquer ordem podem significar conceitos,
tipos de atos de consciência (Searle, 1992) e fenômenos.
Em meu julgamento, apesar de podermos (e o Cognitivismo o faz) invocar o
representacionismo como um pressuposto necessário da possibilidade da própria atividade
filosófica, uma adequada fundamentação do próprio representacionismo ainda está por ser
realizada, e constitui-se na maior tarefa filosófica do começo deste milênio. Defendo que uma
nova teoria representacionista teria que cumprir dois requisitos. O primeiro, é que ela não
poderia ser fruto de investigação empírica – embora tivesse que ser compatível com seus
resultados – uma vez que deverá ser condição de possibilidade da atividade científica.
319
O segundo requisito, é que ela deverá resgatar a tradição platônica do significado. Em
meu julgamento o erro que inviabilizou o projeto de Fodor (1987c) foi sua rejeição da teoria
do significado de Gottlob Frege. Para Fodor, os atos intencionais são relações entre indivíduos
e representações internas. Para Frege, as atos intencionais são relações entre indivíduos e
proposições abstratas e objetivas. Em outras palavras, Frege retoma o platonismo e
demonstra que a linguagem não pode ser compreendida a não ser que tenhamos acesso a um
mundo completamente independente das codificações, sejam elas mentais ou da linguagem
natural. Frege nos lembra que, obviamente, não podemos confundir o pensamento que
constitui o sentido (“Sinn”) de uma sentença com a própria sentença, ou o sentido de uma
representação com a própria representação mental. Por definição, uma representação é
intencional, ou seja, representa algo além dela mesma, que não pode ser confundido com
objetos concretos no mundo (porque são particulares) ou outras representações (neste último
caso só estaríamos transferindo o problema da intencionalidade). Frege nos lembra o fato
evidente de que uma representação não tem o mesmo sentido para todas as pessoas, porque
ela se distingue essencialmente do significado que representa. Portanto, uma vez que a língua-
gem prova, por sua capacidade de comunicar pensamentos, que é uma realidade, temos que
postular a existência de um patrimônio de significados comum a toda humanidade, para que
estes últimos possam ser associados por sua vez às mais variadas formas de representação.
Caso contrário, a linguagem é inconcebível. É evidente que para Frege, a Matemática e a
Lógica são os campos do conhecimento humano onde ficam mais evidentes as necessidades
de se postular um mundo abstrato universal. Como vimos no capítulo dois, esta é também a
posição de Penrose (1991) e de Popper (1975b). Ele também postula, como Frege, a neces-
sidade da existência de um “Terceiro Mundo” para compreender a linguagem e a ciência:
“Para explicar esta expressão, indicarei que (...) podemos distinguir os três mundos ou
universos seguintes: primeiro, o mundo de objetos físicos ou de estados materiais;
segundo, um mundo de estados de consciência ou de estados mentais, ou talvez de
disposições comportamentais para agir; e, terceiro, um mundo de contúdos objetivos de
pensamento, especialmente de pensamentos científicos e poéticos e de obras de arte.
Assim, o que chamo ‘Terceiro Mundo’ tem, admitidamente, muito em comum com a
teoria de Formas ou Idéias de Platão e, portanto, também com o Espírito Objetivo de
Hegel, embora (...) se assemelhe mais de perto ao universo de conteúdos objetivos de
pensamento de Frege.” (p.108)
320
Às posições de Frege e Popper poderíamos somar a Fenomenologia de Husserl (1973)
e sua teoria da intuição eidética. Para Husserl, é através da intuição que chegamos à essência
pura dos fenômenos, o aspecto universal através do qual o particular se apresenta à
consciência. É a essência de um fenômeno o seu significado, defende a Fenomenologia, que
independe portanto completamente de interações sociais, lingüísticas ou representacionais.
Assim, concluo este item com a avaliação de que o Cognitivismo não conseguiu
estabelecer uma defesa consistente do representacionismo, o que é plenamente consistente
com os limites ontológicos intransponíveis da investigação científica, que não é capaz de
abordar diretamente a questão do significado. Julgo que o método adequado de abordagem do
significado de todo e qualquer fenômeno consciente é o fenomenológico. Julgo que uma
relação de complementaridade entre a Psicologia Cognitiva o método fenomenológico de
estabelecimento do significado de fenômenos conscientes não só é possível como desejável, e
marcaria uma fronteira nítida entre a Psicologia Científica e Filosófica. Julgo ainda que
precisamos, neste começo de terceiro milênio, de uma correção dos excessos e limitações da
Filosofia Analítica; precisamos de Frege, Husserl e Popper para sair da casa de espelhos em
que a Filosofia Analítica nos atirou, precisamos voltar a alguma forma de teoria objetiva do
significado, precisamos voltar a Platão.
10) Anti-realismo ontológico – É a versão mais radical do anti-representacionismo,
que decorre da soma da contradição e auto-anulação do primeiro com a absurda tese de Whorf
(1956) de que o pensamento se resume à linguagem. Uma vez refutado por absurdo o anti-
representacionismo, o tipo de anti-realismo que assola o pensamento pós-moderno já se
encontra refutado. Mas aqui cabem observações sintéticas sobre porque é tamm tão absurda
a tese de que o pensamento se resume à linguagem. A primeira razão é que, por definição, a
linguagem expressa pensamentos, e portanto não pode ser idêntica a estes. A segunda, é
porque uma palavra expressa um significado, e tanto a representação lingüística quanto seu
significado fazem parte do pensamento, obviamente não se confundindo entre si. A terceira, é
porque sabemos que o ser humano tem múltiplas formas de inteligência (Gardner, 1995,
1998), e a maioria delas não se vale de representações lingüísticas. Realmente alguém acredita
que Pelé não pensava quando uma bola sobrava subitamente no meio de quatro adversários e
ele transformava a oportunidade em gol? Alguém realmente acredita que a inteligência
corporal-cinestésica não se realiza através de um tipo de pensamento? Ou será que acredita
que o que Pelé fazia em meio segundo era um rapidíssimo processamento mental de ordem
lingüística da seqüência de procedimentos que ele executaria? Alguém realmente acredita que
321
Beethoven ao compor uma sinfonia a imaginava como notação musical ao invés de estrutura
musical em si? Não, não é possível que alguém acredite nisso. Quarto, sabemos hoje que
existem múltiplas formas de representação mental (palavras, símbolos de outras ordens como
ideogramas, ícones, índices, representações espaciais, etc.), e que a representação lingüística é
somente uma delas (Gardner, 1996; Sternberg, 2000; Fetzer, 1988). Quinto, devemos
definitivamente considerar superados os equívocos de Whorf (1956), que são não só muito
frágeis teoricamente, como também extensamente refutados empiricamente (Greene, 1976;
Gardner, 1996). Vamos recorrer às famosas observações de Whorf sobre os índios Hopi para
ilustrar seus equívocos. Como ele alegava, supostamente os índios Hopi tinham somente uma
palavra para designar inseto, aeroplano e aviador, enquanto os esquimós têm as tão famosas (e
não-existentes, fraudulentas, Sternberg, 2000, p.282) dezenas de palavras para designar os
diferentes tipos de neve. A conclusão que Whorf tira disso é incrível: para ele, os esquimós
são capazes de perceber tantas variações de neves porque sua linguagem torna possível a
percepção dessas variações, e portanto pensar sobre elas. Whorf (1956) pensa sinceramente
que o fato de índios Zuni não terem palavras diferentes para amarelo e laranja faz com que
eles não percebam a diferença entre estas cores. Isto equivale naturalmente a acreditar que o
fato de não termos nomes para distinguir os diferentes tons de magenta não nos permita
pensar sobre eles. Isto equivale também a acreditar que um índio Hopi não seja capaz de
perceber a diferença entre uma abelha e um piloto de avião. Vários experimentos já foram
feitos em Psicologia Cognitiva para refutar esta tese de Whorf e corroborar o óbvio: apesar de
rótulos verbais ajudarem, qualquer ser humano pode aprender a discriminar o mesmo espectro
de cores, sem sofrer de restrições perceptivas em virtude de suas categorias lingüísticas
(Gardner, 1996, p.364; Greene, 1976, p.88; Sternberg, 2000, p.282).
Whorf (1956) cai neste tipo primário de relativismo lingüístico por causa de suas cren-
ças radicalmente materialistas e nominalistas. Ele se esquece de uma característica fantástica
das línguas naturais, que é a do uso de palavras com sentido metafórico para designar concei-
tos que são recentes na cultura e que portanto não tem palavra relativa estabelecida. Quando
criamos um conceito novo, só podemos expressá-lo metaforicamente, até que criemos pala-
vras que sejam convencionadas para expressá-lo. Mas como Whorf não acredita nem em pen-
samento criativo nem em conceitos abstratos, acabou gerando sua frágil tese de relatividade
lingüística, que apesar de contraditória e extensamente refutada, continua, para variar, sendo
adotada por pós-modernos por questões afetivas, estando na base inclusive de movimentos
fascistas contemporâneos como o movimento de correção política (o politicamente correto,
que evidentemente não considerará estas observações politicamente corretas).
322
11) A falência da indução – O Cognitivismo mantém a condição de otimismo
epistemológico necessária à Psicologia rejeitando o modelo indutivista de ciência derivado da
tradição positivista e a identificação entre conhecimento e certeza, aderindo portanto ao
método hipotético-dedutivo conforme preconizado pelo Racionalismo Crítico e exposto
extensamente ao longo desta tese.
5.2.3 O Cognitivismo e os problemas metodológicos da Psicologia Moderna
12) Limitações éticas da pesquisa psicológica – Não há superações aceitáveis aos
limites éticos impostos à utilização de seres humanos como objetos de pesquisa. Podemos
somente aprender a conviver com estes e sermos criativos na formulação de modelos experi-
mentais e quase-experimentais, como de resto precisa ser também a Medicina. A desidentifi-
cação entre conhecimento e certeza ajuda a dirimir este problema, pois torna evidente que a
impossibilidade de efetuar experimentos em certos casos não implica um uma mudança de
natureza da teoria (de certa para incerta), mas somente uma mudança de grau (de pouco
incerta para mais incerta). No entanto, é importante lembrar que este não é um impedimento
ontológico, devido à natureza do objeto sobre observação, mas um impedimento auto-imposto
por nós. Este dificulta, mas não impede em absoluto a existência de uma Psicologia científica.
13) O objeto da Psicologia não é diretamente observável – O problema de como
encontrar uma abordagem satisfatória para a subjetividade do objeto da Psicologia, não é tão
simples. Como já exposto nesta tese, a dimensão qualitativa e singular da experiência psíquica
é inacessível a abordagens de terceira-pessoa e inabordável filosófica e cientificamente
(Dreyfus, 1993; Searle, 1992; Nagel, 1980; Jackson, 1990). Mas outras dimensões da vida
psíquica são abordáveis tanto filosoficamente (Searle, 1992; Dreyfus, 1993) quanto
cientificamente, como estabeleceu o Cognitivismo. Portanto, apesar de não diretamente
observáveis, o Cognitivismo comprovou que as funções cognitivas são plenamente inferíveis
da relação entre a informação ambiental e o comportamento manifesto. Desta forma, este
movimento se livrou, aderindo às teses de Popper e ao constructo de variável interveniente,
das amarras epistemológicas e metodológicas para investigar os processos cognitivos, como
de resto, já foi extensamente defendido nesta tese.
14) O objeto da Psicologia não é mensurável – Apesar de não ser matematicamente
mensurável, o objeto da Psicologia é logicamente definível em vários aspectos. Dito isto, po-
323
demos dizer que este problema evidente de Epistemologia da Psicologia também foi extrema-
mente atenuado com a desidentificação entre conhecimento e certeza, assim como com o fim
do mito de que a observação mensurada direta do objeto de estudo é a origem das verdadeiras
teorias científicas. Uma vez aceito que toda observação se faz à luz de uma teoria, podemos
partir de teorias para observações, e assim criar instrumentos de medidas de aspectos da
cognição que nossa teoria julgue válidos. Obviamente, uma escala de depressão Beck não
mede a depressão diretamente, mas mede algumas manifestações comportamentais verbais
que julgamos serem sintomas de depressão. Não só o conceito de variável interveniente
propiciou este tipo de inferência, como também o conceito de conhecimento aproximativo.
Embora não possamos medir depressão diretamente, podemos construir instrumentos de
medidas que, apesar de não medir diretamente o fenômeno em questão, oferecem medidas
indiretas (de acordo com determinada teoria) e imperfeitas de determinados aspectos do
fenômeno que são aceitáveis (mas não determinantes) para os padrões aproximativos da ciên-
cia moderna. Evidentemente, isto não precisa acontecer para todas as formas de experimen-
tação. Quando renunciamos a ambição artificial de quantificar fenômenos de forma gradativa,
podemos adotar uma forma puramente lógica de descrição e falsificação que dispensa a
quantificação, como vimos no capítulo quatro no item dedicado à metodologia cognitivista.
15) O objeto da Psicologia é extremamente complexo – No subitem 4.3.3 avaliamos a
complexidade extrema da explicação Psicológica, em virtude na imensa quantidade de
variáveis conhecidas que podem interferir neste fenômeno. De qualquer ângulo que se veja, o
objeto de estudo da Psicologia é mais complexo que os objetos de outras ciências. Se
olharmos de um ponto de vista funcionalista materialista, chegamos à conclusão de que é
necessário postular pelo menos três tipos diferentes de leis psicológicas. O primeiro é a da
relação entre eventos mentais e eventos cerebrais, as leis neuropsicológicas. O segundo é o da
relação entre crenças e estruturas cognitivas com o comportamento manifesto, as leis
cognitivas. O terceiro é o da relação entre os diferentes estágios pelos quais passam as
estruturas cognitivas, são as leis do desenvolvimento psicológico. Assim, qualquer explicação
psicológica envolve: a) o conhecimento das leis gerais da cognição; b) o conhecimento das
leis gerais neuropsicológicas (que envolvem o conhecimento de Biologia celular, Química e
Física quântica); c) o conhecimento das leis gerais do desenvolvimento cognitivo (envolvendo
o neuropsicológico); d) o conhecimento do estado atual de desejos e crenças do sujeito em
questão (que envolve o estágio de desenvolvimento das estruturas cognitivas gerais); e) o
conhecimento do estado atual do cérebro do indivíduo em questão; f) o conjunto de
324
informação a qual o indivíduo está submetido em determinada situação. Com base nestes
conhecimentos, acredita um cognitivista determinista, podemos prever e explicar um
comportamento. Fica evidente no entanto, que não estamos diante de uma situação como uma
reação química, onde meia dúzia de informações conduzem a uma predição precisa. Este é o
tipo de explicação mais complexa entre as concebíveis no universo. Portanto, o problema da
complexidade da explicação psicológica que depende do número de variáveis envolvidas na
determinação do fenômeno, piora consideravelmente no Cognitivismo (em relação ao
Behaviorismo e à Psicologia Fisiológica), transformando a explicação dedutivo-nomológica
em Psicologia em nada além de que uma ficção impraticável. Desta forma, não só fracassando
em solucionar, mas piorando a condição da Psicologia em relação a este problema, o
Cognitivismo encontra nesta questão sua condição de maior fragilidade em relação às suas
pretensões de viabilizar a ciência psicológica. Como proposta de solução para este problema,
apresento adiante uma das três principais teses deste trabalho.
5.2.4 A Explicação Condicional em Psicologia
Uma vez que não temos muitas leis gerais da cognição e que não temos praticamente
nenhuma lei geral neuropsicológica (não sabemos praticamente nada sobre o funcionamento
do cérebro e sua relação com a mente); e uma vez que são tão difíceis, indiretas e imprecisas
as inferências sobre o estado atual de metas, crenças, estruturas cognitivas e cerebrais de um
indivíduo; e ainda uma vez que é impossível determinar precisamente o montante de
informação ao qual um indivíduo está submetido em uma situação de estímulo, temos que nos
perguntar: é legítimo falar de explicação dedutivo-nomológica na Psicologia? Contrariamente
à alegação do Cognitivismo, este estudo conclui que não.
Uma explicação dedutivo-nomológica, como já visto, tem um formato determinista no
sentido laplaceano (ou “Hard Determinism”; Robinson, 1985). Ela determina de maneira
necessária e suficiente que tendo em vista as leis A, B e C e os fatos a, b e c, a sentença
explanandum d decorre dedutivamente dos enunciados explanatórios (explanans). Porém, a
multiplicidade interrelacionada de níveis explicativos e a infinita complexidade do fenômeno
psicológico torna este tipo de explicação uma quimera para o conhecimento científico.
Como se não bastasse o fato de ser impossível hoje para a Psicologia apresentar uma
explicação dedutivo-nomológica estrita de qualquer evento particular, ainda temos que
considerar as alegações de Neisser (1975) de que o aumento do conhecimento provoca o
aumento da impreditibilidade do comportamento humano, e que quanto mais soubermos sobre
o ambiente e nossos processos cognitivos, menos nosso comportamento será predizível.
325
Mas isso não é tudo, pois se aceitarmos ainda as alegações humanistas, temos que
enfrentar um nível de complexidade virtualmente infinito, que é o da criação de novas estrutu-
ras formais (crenças e estruturas cognitivas), e da causalidade finalista legítima. Ou seja,
estamos falando aqui na necessidade de termos que enfrentar a evidência (baseada no singelo
fato de termos saído das cavernas à Lua) de que o ser humano seja dotado de criatividade e
liberdade legítima (o que a existência necessária da criatividade torna possível). Se o ser
humano é livre, se o ser humano é criativo, então ele é ontologicamente incapaz de se tornar
objeto de explicação dedutivo-nomológica, estritamente baseada em causalidade eficiente.
Que outra opção factível de explicação nós teríamos? No segundo tipo de explicação
aceita nas ciências naturais, a probabilística, o explanans implica o explanandum, não com
certeza dedutiva, mas somente com certeza aproximada ou alta probabilidade. Como vimos, a
explicação probabilística ocorre quando não conhecemos ainda alguma ou algumas leis gerais
ou algumas condições contingentes necessárias que tenham causado o explanandum (como as
leis probabilísticas vistas no item relativo à Física quântica). A tese dominante na Psicologia
contemporânea é a de que a explicação psicológica deva ter caráter probabilista, uma vez que
não conhecemos todas as leis e todas as condições envolvidas em fenômenos particulares que
precisamos explicar. Meu julgamento é que esta tese é equivocada por três motivos.
Primeiro, a quantidade de leis e condições particulares que estariam em atuação na
determinação de um comportamento é virtualmente infinita (imagine a quantidade infinita de
informação presente numa situação de estímulo, a quantidade virtualmente infinita de relações
entre sinapses nervosas e estados mentais, a gigantesca quantidade de informações presentes
no estado atual de crenças de um indivíduo, e assim por diante), e portanto, mesmo que
tivéssemos uma visão absolutamente determinista de ser humano, a predição de seu comporta-
mento em termos probabilísticos seria ingenuidade matemática na melhor das hipóteses, e
fraude deliberada na pior das hipóteses. Segundo, quando aplicadas ao indivíduo e ao caso
particular, generalizações indutivas probabilísticas não tem serventia nenhuma, não podem
prever nada (só o podem em amostras populacionais) e não podem ajudar nem na clínica, nem
na criação dos filhos, nem em nenhum caso individual. Essa é a crítica de Dilthey (1945) a
este tipo de explicação: deduzir deles qualquer coisa em relação a uma pessoa real é uma ação
baseada numa indução que não tem sustentação lógica. Terceiro e principal, a adesão em
Psicologia a uma explicação dedutivo-nomológica implica na adesão a uma tese ontológica
absolutamente dispensável como pressuposto da ciência: a tese de que nosso comportamento
seria totalmente determinado no sentido laplaceano do termo. Como vimos, o pressuposto
326
metafísico necessário para a investigação científica do objeto é que ele apresente aspectos
regulares, não necessariamente que ele apresente regularidades em todos os seus aspectos.
Defendo aqui que tal compromisso metafísico é absolutamente legítimo como
motivação de pesquisa, mas absolutamente inaceitável como pressuposto metodológico a ser
imposto a todos os pesquisadores, pois, como demonstrado, não é necessário para a
falsificabilidade das leis psicológicas e portanto implica numa petição de princípio. Devemos
assumir para a Psicologia uma forma de explicação científica que não exclua a priori
possibilidades teóricas legítimas. A explicação probabilística para a Psicologia pode e deve
ser evitada simplesmente porque as variações nos resultados das previsões podem não se
dever a leis ocultas, e sim a questões de atribuição de significado, criatividade e finalidade.
Resumindo, explicações probabilistas são impraticáveis em Psicologia porque são falsas
matematicamente, inúteis pragmaticamente e tão unilateralmente comprometidas metafísica-
mente quanto as dedutivo-nomológicas.
Assim, a conclusão deste estudo é que o Cognitivismo ainda fracassa no campo da
explicação psicológica, dando uma solução que, no caso do materialismo determinista é
somente uma ficção impraticável mas teoricamente possível, e no caso do humanismo ao qual
implicitamente está aderida toda a tradição Cognitivista, é um erro filosófico, uma solução
ontologicamente impossível.
Por outro lado, a alternativa oferecida por Rychlak (1994) é uma não-alternativa. Ele
está indo pelo caminho errado ao querer reintroduzir o domínio da legítima causalidade final
na explicação científica. A explicação científica só suporta causas materiais, eficientes e
formais, e isto por uma razão muito simples: só suposições a respeito destes tipos de causas
são falsificáveis. Caso fosse reintroduzida a causa final no domínio da explicação psicológica
científica, estaríamos renunciando ao critério central da ciência moderna, a falsificabilidade.
Todos os comportamentos humanos seriam explicáveis em termos finalistas, quaisquer que
fossem, e como disse Popper, aquilo que explica qualquer coisa, não prevê coisa nenhuma.
Aquilo que não prevê nada, não serve para nada pragmaticamente, não é falsificável, e
portanto não é científico. Os exemplos melhores do caos resultante da introdução de
explicações finalistas são os derivados da Psicanálise freudiana e adleriana. Como
argumentou Popper (1975) todos os comportamentos humanos podem ser retrospectivamente
explicados em termos de vontade de prazer ou vontade de poder. Portanto, se qualquer
comportamento possível e imaginável pode ser explicado com base nestes tipos de finalidade,
eles não tem finalidade nenhuma: não prevêem nada e não informam nada sobre o mundo.
Outro exemplo do caos provocado por explicações finalistas (não importa que mascaradas por
327
conceitos aceitáveis para materialistas) são os atuais abusos da Psicologia Evolucionista, que
pretende explicar a presença de toda e qualquer característica e comportamento do ser
humano em função de uma finalidade adaptativa magicamente transformada em causa formal
(informação) e eficiente nos genes. Hoje, o código genético é o flogisto universal da
Psicologia: qualquer característica ou aptidão humana é atribuída a um gene. A teoria da
Evolução, uma forma peculiar de teoria finalista, leva em última análise à afirmação de que
toda ação humana é motivada por uma finalidade adaptativa. Como afirma Robinson (1985b),
você pode até explicar a criação das geometrias não-euclidianas e das fugas de Bach com base
em “pressões seletivas”, o problema é que isso não é muito convincente. O também biólogo
Jean Piaget (1987) compartilha desta opinião, para ele, devemos ter
“... reserva de explicar a adaptação dos conhecimentos apenas pela seleção e pelas
vantagens que um conhecimento mais ou menos adequado fornece à espécie; penso que,
se isso for verdade quanto aos conhecimentos práticos elementares (quer dizer, procura de
alimentação, procura de um lugar favorável para o ninho de um pássaro, etc.), não vejo de
forma alguma, desde que se trate de conhecimentos humanos, como é que a seleção pode
explicar-nos a vantagem que a espécie humana teve, por exemplo, ao inventar os números
imaginários com a raiz quadrada de um número negativo.” (p. 342)
A atração mágica que explicações finalistas provocam em algumas pessoas é
facilmente compreensível. Todos os comportamentos possíveis estão abarcados dentro de seu
poder explicativo, o que faz com que a adesão das pessoas a estas teorias tenha a força de
compromissos religiosos (já que as religiões também oferecem explicações de caráter finalista
para todos os eventos do mundo). É importante enfatizar que não estou aqui defendendo que
não há legítima causação finalista para o comportamento humano, e sim que uma explicação
que envolva o conceito estrito de causa final não é científica, porque não é falsificável.
Minha tese é que, para tornarmos a explicação científica uma empresa precisa e
respeitável, ou ainda para incorporarmos ao empreendimento científico as teorias que
assumam o pressuposto da liberdade relativa do ser humano em relação aos condicionantes
biológicos, psicológicos, físicos e sociais, é preciso promover uma mudança na natureza da
explicação em Psicologia. Em virtude da extrema complexidade que uma suposta explicação
dedutivo-nomológica em Psicologia teria, e da evidência da existência da capacidade humana
de raciocínio dialético e construção de hipóteses originais, advogo a tese da impossibilidade
de explicação dedutivo-nomológica ou probabilística do fenômeno psicológico, e a
328
necessidade de adotar uma forma de explicação condicional para a Psicologia. Em outras
palavras, julgo que a exigência de explicação de um evento psicológico ocorrido está
suficientemente satisfeita se demonstrarmos que o ocorrido foi possível, não havendo
possibilidade de demonstrar, além disso, que era necessário.
As explicações condicionais se limitam a indicar uma série de leis e condições particu-
lares (explanans) que tornaram possível a ocorrência do explanandum. É uma explicação das
condições necessárias, porém, não suficientes. Elas têm a forma geral de “dadas as leis gerais
X, Y e Z, e as condições particulares x, y e z, então o comportamento C foi possível”. Ou seja,
certas condições tornam possíveis certos comportamentos, porém, não os determinam.
Isto implica no fato de que todas as leis psicológicas deveriam apresentar uma
estrutura condicional, trocando a forma necessária e suficientese x estiver presente então o
comportamento y acontecerá” pela forma somente necessáriase x não estiver presente então
o comportamento y não pode acontecer”. Esta segunda forma de lei equivale a “se e somente
se x estiver presente então o comportamento y pode acontecer”. Em outras palavras, um
evento x, em Psicologia, não é nunca suficiente para causar y, mas pode ser necessário para
que o comportamento y possa acontecer.
Uma lei de forma somente necessária mantém a mesma condição falsificável da lei
necessária e suficiente, embora perca conteúdo falsificável. Se fôssemos físicos, estaríamos
fazendo um péssimo negócio ao trocar o segundo tipo de lei pela primeira. No entanto, não
podemos nos esquecer que, como no caso da Psicologia não temos qualquer lei de condições
necessárias e suficientes para causar qualquer tipo de comportamento, não podemos perder o
que não temos. Ao assumirmos leis cuja ambição é só a de estabelecer a proibição da ocor-
rência de certos fenômenos caso certas condições necessárias não estejam satisfeitas, estaría-
mos de fato conquistando real preditibilidade e respeitabilidade para as leis psicológicas, e
não perdendo uma capacidade de previsão específica que nunca tivemos e não poderemos ter.
Não podemos esquecer que a utópica forma dedutivo-nomológica de nossa explicação, se
existisse, não teria o formato “como x esteve presente então o comportamento y foi neces-
sário”. Seu formato seria “como x, y, w, z, q, r, t, u, k, v, (...) estiveram presentes então o com-
portamento y foi necessário”, porque a quantidade de variáveis a “determinar” um comporta-
mento psicológico é virtualmente infinita. De outra forma, nossa explicação condicional teria
um formato simples e preciso, pois bastaria a determinação de uma variável para explicar
nosso explanandum: “como x esteve presente então o comportamento y foi possível
Daniel Robinson (1985) dá um exemplo sumamente adequado para ilustrar o que estou
defendendo. Supondo o explanandum “Adam Smith escreveu ‘A Riqueza das Nações’”
329
existem no mínimo nove esquemas explicativos para o que o levou a executar esta ação. Ele
foi levado a ela por causa de ou da: 1) condição física de seu cérebro; 2) motivos
inconscientes; 3) sua história de reforçamento; 4) distúrbios neuróticos; 5) possuir
determinada personalidade; 6) não estar distraído com outras coisas; 7) sua motivação
legítima; 8) possuir inteligência suficiente; 9) ter participado de discussões sobre economia na
infância. Como afirma Robinson (1985) todas as nove explicações falham individualmente e
coletivamente para explicar a “Riqueza das Nações”, mas todas deveriam figurar em uma
completa explicação do fenômeno. Em suas palavras:
“Properly framed, they constitute the overall psychological and social context within
which Adam Smith’s authentic intentions to write just what he wrote must be realized.
We may go so far as to say that the action-consequence sequence culminating in Wealth
of Nations could nor have been realized had such conditions as those embraced by 1-9 not
prevailed. Understood in this way, such conditions may be taken to be permissive rather
than determinative.” (p. 61)
Portanto, cada uma das condições elencadas, na sua ausência, determinaria a não
ocorrência do fenômeno. Vamos a outro exemplo. Se sabemos que uma criança não apresenta
comportamento que revele maturação de uma certa estrutura cognitiva própria do estágio
operacional concreto (condição particular), e sabemos que para a mudança para o estágio
operacional formal é necessário que todas as estruturas cognitivas próprias do estágio
operacional concreto estejam desenvolvidas (lei geral), então podemos prever que esta criança
não apresentará comportamentos que exijam desenvolvimento de estruturas próprias do
estágio operacional formal antes de apresentar o comportamento próprio do estágio
operacional concreto em questão. O que esta explicação demonstra portanto é a razão de
alguns comportamentos não poderem ocorrer, e quais são as condições necessárias (mas não
suficientes) para que o comportamento em questão possa ocorrer.
Imaginemos o oposto. Como a teoria piagetiana poderia explicar dedutivo-
nomologicamente um comportamento que manifeste compreensão do princípio de
conservação? Isto é, de fato, impossível. O máximo que as leis de desenvolvimento de Piaget
podem prever é que dada a presença de certa estrutura cognitiva, tal comportamento é
possível, não necessário. A criança pode errar, se recusar a fazer, enganar o pesquisador, e
tantas outras possibilidades que é impossível sob qualquer circunstância prever o que
necessariamente ela fará. Por maior que sejam as restrições, é possível (é muito provável) que
330
nunca possamos falar de determinação em relação ao comportamento humano. Mas podemos
prever uma série de coisas que sob certas circunstâncias a criança não é capaz de fazer,
submeter estas predições a testes e, portanto, corroborá-las.
Vamos analisar outro exemplo. Oferecer uma explicação dedutivo-nomológica do
seguinte explanandum: Joãozinho falou que “Todos os discos voadores azuis pousam à noite
na fazenda de meu avô”. Qual o conjunto inumerável de leis gerais e condições particulares
que, caso não haja liberdade e criatividade, teriam determinado a emissão daquele
comportamento verbal? Alguém, sinceramente, pode acreditar que algum dia tal explicação
seja possível? Ou que, conseqüentemente, seja possível prever que no momento seguinte ele
falará “mas as Walkírias aladas os expulsam todo dia antes que amanheça”? No entanto,
podemos explicar que, as leis gerais X, Y e Z e os fatos contingentes x, y e z tornaram
possível que Joãozinho emitisse a sentença. Por exemplo, dadas as leis gerais de localização e
modularidade cerebral, poderíamos afirmar que uma condição necessária para que Joãozinho
emita esta sentença é possuir hemisfério esquerdo, é já ter atingido certo estágio de
desenvolvimento lingüístico, é ter um aparelho fonador funcional, etc, etc. Nenhuma destas
condições contingentes determina que Joãozinho emita tal sentença, mas todas elas são
condição de sua possibilidade, o fato de estarem realizadas garantiu a possibilidade de
Joãozinho emiti-la.
É verdade que se tratam de pretensões muito mais modestas de explicação científica.
Mas no caso da Psicologia, se tratam também de pretensões muito mais honestas. A
explicação dedutivo-nomológica de um comportamento é impossível praticamente e
comprometida metafisicamente. Ao contrário, a explicação condicional de um comportamento
é possível e precisa praticamente, resolve o problema da multicausalidade psicológica (nível
cognitivo, neuropsicológico, genético e ambiental) e só é comprometida metafisicamente com
a tese de que o objeto da Psicologia é regular em ao menos (por estrutura não impede que
sejam todos) alguns de seus aspectos. Adotada este tipo de explicação de forma geral para o
fenômeno psicológico, não só a Psicologia ganharia em credibilidade, como daria um grande
passo rumo à sua unidade, pois daria a oportunidade de reintegração de teóricos humanistas
ao empreendimento científico Psicológico.
A tese defendida aqui de que a explicação psicológica pode ser somente condicional e
nunca dedutivo-nomológica, também ajuda a explicar um fato muito conhecido de nós
psicólogos na clínica e na pesquisa: comportamentos patológicos são mais previsíveis do que
comportamentos não-patológicos. Isto se dá porque, um transtorno psicológico ou doença
neurológica pode ser definido como uma condição particular de uma lei geral que, quando
331
presente, impede a possibilidade de emissão de certos tipos de comportamento. Assim, por
suspender temporariamente (uma crença obsessiva) ou permanentemente (uma lesão no
hipocampo) uma condição necessária para a emissão de certos tipos de comportamento,
podemos prever que estes comportamentos não serão emitidos (beijar uma pessoa no rosto –
lembrar-se de um evento acontecido ontem).
Para concluir este item, quero propor ainda uma última linha de defesa de minha tese
da necessidade de adoção da explicação condicional em Psicologia. Ao empregarmos este tipo
de explicação, ela poderia ser complementada por uma explicação finalista. A diferença é que
estaria evidentemente claro que o caráter condicional da explicação era científico
(falsificável), e o caráter suficiente era especulativo (infalsificável). No caso de Joãozinho,
científica é a explicação de que possuir hemisfério esquerdo, ter atingido certo estágio de
desenvolvimento lingüístico e ter um aparelho fonador funcional são condições necessárias
para que ele possa emitir a sentença em questão. Especulativa é a afirmação de que ele falou
isso porque tinha a finalidade de impressionar os colegas, ou ainda de simular loucura, ou
ainda de superar seu sentimento básico de inferioridade. Ninguém precisa renunciar às
explicações finalistas. Precisa renunciar às pretensões de torná-las científicas.
De outro lado, não se pode impor à imagem de ser humano conseqüências tão desas-
trosas como impõe o determinismo laplaceano, sem a menor evidência de adequação deste
princípio ao objeto em questão. Como um pressuposto que nunca se mostrou compatível com
o comportamento humano, e que hoje se encontra condenado mesmo na Física, pode conti-
nuar ditando o que pode estar dentro e o que deve estar fora do campo da Psicologia cientí-
fica? Em sua conferência “De Nuvens e Relógios”, Karl Popper (1975b) afirma que considera
o determinismo físico o maior pesadelo de nossa época, e isto porque este assevera que o
mundo inteiro e tudo o que há nele é um vasto autômato e que nada mais somos que pequenas
engrenagens dentro dele. Desta forma, o determinismo laplaceano destrói a idéia de criativi-
dade e a idéia de liberdade. Popper observa, há trinta e cinco anos atrás, que curiosamente,
“apesar da vitória da nova teoria do quantum e da conversão de tantos físicos ao
indeterminismo, a doutrina de Lamettrie de que o homem é uma máquina tem hoje talvez
mais defensores do que nunca antes entre físicos, biólogos e filósofos; especialmente na
forma da tese de que o homem é um computador.” (1975b, p. 208-207)
O problema com isso é que a crença na criatividade e na liberdade do ser humano é
algo que está no fundamento da responsabilidade pessoal e das sociedades democráticas.
332
Como nos lembra Bruner (1997), a ânsia da suposta postura científica em eliminar conceitos
da “folk psychology”, é fruto de um “ateísmo de aldeia” (p.35) disfarçado de zelo anti-
metafísico, para em última análise banir conceitos como liberdade e dignidade à esfera da
ilusão. Mas isso tem conseqüências muito danosas. Como diz Bruner lembrando famosa
conferência de Köhler, o problema com este tipo de “Psicologia do nada mais que” (nada
mais que reflexos, associações e impulsos animais transformados) não é que psicólogos
acreditem nela, mas que um dia todos, do carteiro ao primeiro-ministro, passem a acreditar
nela. É como Rychlak (1994) afirma:
If we psychologists fail to advance our thinking concerning human behavior, we will
fall ever more out of step with the basic assumptions of our very civilization, which
include agency, the importance of intention in action, and the capacity to influence
circumstances as a unique person seeking valued outcomes. These beliefs are not “folk”
psychologies, quaintly out of step with the empirical evidence proving that the human
organism is a machine. There is no such convincing body of empirical evidence to cite.
Indeed, the evidence has been steadily falsifying a mechanistic image of humanity.”
(p.308)
Assim, concluo minha defesa da explicação condicional em Psicologia com a
observação de que ela resgata o espaço possível da liberdade e da criatividade humanas na
explicação psicológica, sem que tenhamos que nos decidir por uma ou outra postura
metafísica. Por outro lado, uma posição que insista em manter a explicação dedutivo-
nomológica ou probabilística, mesmo a despeito da evidência de sua impossibilidade prática e
possivelmente ontológica (e na forma probabilística irrealizabilidade matemática e inutilidade
pragmática), deve ser colocada sob suspeita de motivação metafísica. E esta motivação, seria
a de excluir previamente da “Psicologia Científica” uma posição metafísica concorrente que é
compartilhada pela esmagadora maioria da humanidade. Se esta for de fato a mão por detrás
do fantoche do zelo conservador, estamos falando de uma postura autoritária e anticientífica,
que deve ser combatida não somente em nome da liberdade do homem, mas também da
liberdade da ciência.
5.2.5 Complementares e insubstituíveis: Psicologia Científica e Psicologia Filosófica
Os últimos anos assistiram um renascimento da integração entre a Filosofia e a
Psicologia. Com o fim da utopia fisicalista do Positivismo Lógico e a derrocada do Operacio-
333
nalismo como filosofia da ciência, ficou cada vez mais evidente para todos os Psicólogos que
suas pesquisas estavam mergulhadas em pressupostos ontológicos e epistemológicos. Foi a
filosofia de Karl Popper que tornou isto muito evidente, muito embora psicólogos de língua
inglesa muito tardiamente tenham entrado em contato com sua obra, e costumem a atribuir a
Kuhn (1990) e a Quine (1975) muitas das idéias de Popper, que haviam influenciado ambos.
O maior exemplo é a idéia de que toda observação se faz no arcabouço de uma teoria (Comte,
Darwin e Pierre Duhem já tinham manifestado esta posição antes de Popper inclusive).
Mas o fato é que, de uma forma ou de outra, hoje a Psicologia parece ter restabelecido
as relações com seus pais. Temos na fronteira de baixo da Psicologia, a disciplina da
Neuropsicologia, e na fronteira de cima, a disciplina da Filosofia da Mente. Sustentando
todas, temos a Epistemologia e a Ontologia. Ainda não é uma família completamente feliz e
integrada. Mas todos já se comunicam bem. Baars (1986) oferece uma interessante metáfora
sobre as relações da Psicologia com a Filosofia, indicando que elas se assemelham a uma
crise de adolescência. Poderíamos reconstruir esta metáfora da seguinte maneira. Na sua
infância, a Psicologia procurava se moldar à imagem de seus pais, seguindo os métodos
herdados da Fisiologia e os objetos herdados da Filosofia. Com o Behaviorismo, como todo
adolescente, a Psicologia, insegura de si mesmo, de seu lugar no mundo, procurava enfatizar
suas diferenças com a Fisiologia e a Filosofia e buscar novos modelos, como a Física.
Começando a sair de sua adolescência com a Revolução Cognitiva, um pouco mais confiante
de seu lugar no mundo, de sua identidade, a Psicologia começa a reatar suas relações com os
pais, e voltar a ser influenciada por eles (assim como passa a influenciá-los).
Não há mais espaço hoje para a estranha utopia Positivista tradicional de rejeição da
reflexão filosófica em Psicologia. Recentemente, o behaviorista William O’Dohonue (1996),
em colaboração com Richard Kitchener, lançou uma coletânea de trabalhos em Filosofia da
Psicologia em que lista os pontos hoje generalizadamente aceitos na Psicologia como
atribuições de uma Filosofia da disciplina. Primeiro, cabe à Filosofia a análise dos méritos das
metodologias de pesquisa usadas pelos psicólogos. Segundo, cabe a Filosofia explicar e
compreender as interconexões entre os vários campos do conhecimento científico. Terceiro,
identificar movimentos ilegítimos nos programas de pesquisa (Lakatos, 1984), como
hipóteses ad hoc, para salvar teorias favoritas. Quarto, identificar e resolver problemas
conceituais nos programas de pesquisa. Quinto, identificar ou estabelecer a ontologia
pressuposta em afirmações e objetos de pesquisa selecionados por psicólogos. Sexto,
identificar ou formular as influências filosóficas que determinam a escolha do objeto de
estudo por parte do Psicólogo.
334
Todos estes aspectos levantados acima, valem não somente para a Psicologia, mas
para todas as ciências. Mas uma vez que a Psicologia é a mais fragmentada e multi-fronteiriça
destas ciências, é na Psicologia que a Filosofia tem o mais importante papel a cumprir. Staats
(2004) pontuou com pertinência que um dos aspectos centrais de uma possível unificação
futura da Psicologia é o trabalho de clarificação conceitual e uniformização terminológica, e
esta também é uma tarefa mais urgente para a Psicologia do que para as outras ciências.
Esta tese defendeu que o Cognitivismo não só tem trabalhado em conjunto com a
Filosofia, como também que reconheceu plenamente esta interdependência. Na verdade,
muitos pontos chaves do Cognitivismo e da Psicologia Cognitiva não são mais do que
questões filosóficas: Construtivismo, Racionalismo, Intencionalidade, Consciência, Represen-
tação, Inatismo, Significado. Não é surpresa que a Filosofia da Psicologia tenha conhecido
uma expansão sem paralelo nos últimos anos, enquanto na Filosofia a Filosofia da Mente cada
vez mais é reconhecida como a filosofia primeira. O’Dohonue & Kitchener (1996) citam que
nos últimos anos surgiram nada menos que sete periódicos dedicados à Filosofia da
Psicologia. Além do tradicional Journal of Theoretical and Philosophical Psychology, da
APA, hoje temos o Behaviorism, Journal of Mind and Behavior, Journal for the Theory of
Social Behavior, New Ideas in Psychology, Philosophical Psychology, Psychological Inquiry
e Theory and Psychology.
Porém este trabalho quer defender um aspecto ainda mais profundo da interdependên-
cia mútua entre Psicologia e Filosofia. Pretendo sustentar a tese de que a Psicologia é consti-
tutivamente uma disciplina dividida, pois seu objeto de estudo apresenta aspectos abordáveis,
aspectos inabordáveis, e aspectos somente parcialmente abordáveis pelo método científico.
O primeiro deles é a pura atividade da consciência. Tal coisa, como tem como
característica central a intencionalidade, sendo sempre a relação com algo diferente dela
própria, não pode ser objeto de investigação empírica ou objetiva (como fenômeno de terceira
pessoa), uma vez que é a própria condição de possibilidade da experiência (um fenômeno de
primeira-pessoa). A investigação da estrutura da consciência é uma tarefa filosófica, e tem
hoje no filósofo John Searle (1992) sua maior expressão. Quando investigada como fenômeno
de terceira-pessoa, só podemos inferir da atividade da consciência seus aspetos funcionais e
estruturais, mas nunca sua dimensão qualitativa e subjetiva.
Em segundo lugar temos a criatividade. Não podemos pensar em nada como uma lei
explicativa do ato criativo, nem em uma predição de um ato de criação. Tão pouco a
criatividade está circunscrita a atos de grandes descobertas. De fato a criação é uma condição
permanente da vida psicológica: desde elaborar a estratégia que seguiremos para realizar uma
335
meta a decidir como interpretar um estímulo ambíguo. Talvez pudéssemos pensar em algo
como a descoberta de condições necessárias para a emergência de atos criativos, mas até o
momento não existem razões para acreditarmos que tal coisa seria possível.
O terceiro domínio é o domínio da qualia. Esta palavra significa algo como qualidade
singular. Refere-se às qualidades fenomenológicas da consciência, mas não à essência destes
fenômenos: se refere a sua experiência singular, não aos aspectos universais (essência) através
dos quais você os reconhece como pertencentes a uma determinada categoria de fenômenos.
Não estamos falando portanto do sentir dor, mas da experiência única de sentir uma
determinada, singular e irrepetível dor. Ninguém jamais saberá como é realmente
experimentar, os fenômenos como uma outra pessoa. Não podemos descrever sequer aspectos
efetivamente singulares da experiência ou do mundo através de palavras, porque estas sempre
se referem a universais, como estabeleceu Hegel em sua Fenomenologia do Espírito.
Portanto, o estudo da qualia é impossível científica e filosoficamente.
O quarto é a questão do significado. O significado que as pessoas dão aos fenômenos e
às informações só são abordáveis pela Psicologia indiretamente, por inferências a partir de
reações comportamentais que as pessoas apresentam a determinadas informações. O domínio
semântico da experiência, o significado vivido, no entanto, é absolutamente impenetrável à
ciência. Fodor (1991) ilustrou este limite com seu princípio de solipsismo metodológico,
afirmando que só o aspecto sintático da mente é abordável cientificamente. Podemos estudar
regras e representações, não o significado delas. Como visto neste trabalho, temos muito a
dizer sobre como se dá o processamento de informação pelo ser humano, mas a informação é
cega para questões semânticas: é naquele que codifica a informação e naquele que a
decodifica que se encontra seu significado, não no meio que a transmite nem em seu padrão
específico. Não temos muito a dizer sobre como representações podem significar algo distinto
delas próprias, e pelo menos até o momento, esta é uma questão inabordável cientificamente.
Assim, o significado das ações e experiências só é investigado por derivação de terceira
ordem: um comportamento, que indica uma representação, que se refere a um significado. Em
virtude disso, esta tese defende que a Fenomenologia é o método adequado para a
investigação do significado, e portanto, este é um domínio filosófico da Psicologia.
Podemos ainda distinguir questões de significado de questões de sentido, que se
revelariam um quinto domínio somente parcialmente abordável pelo método científico.
Voltando ao exemplo dado no capítulo quatro, a palavra significado geralmente é utilizada em
dois sentidos diferentes. O primeiro é o que significa a informação, ou seja, o que significa
aquela massa pastosa e marrom na qual você acaba de pisar. Você pode atribuir àqueles
336
estímulos o significado: fezes. O segundo é qual o sentido da informação, ou seja, como ela se
relaciona com o conjunto de sua vida: o ódio do seu vizinho por você, o azar que você tem na
vida, um sinal de sorte, uma oportunidade para você trocar os sapatos, um aviso para você não
sair de casa, etc, etc, etc. De fato, aqui também, só podemos ter acesso ao sentido atribuído
por uma pessoa a uma informação de maneira indireta: ou pelo comportamento verbal da
pessoa ou pela reação comportamental a determinado estímulo. Mas o processo de atribuição
de sentido é um ato criativo impenetrável ao conhecimento científico. Novamente aqui, temos
um domínio da Psicologia que já foi abordado com maestria por psicólogos fenomenólogos
como Viktor Frankl (1973), no que também constitui um domínio da Psicologia Filosófica.
O sexto domínio psicológico apenas parcialmente acessível à investigação científica é
o valor, intimamente ligado à questão do sentido. Os valores são fins em si mesmos, inúteis
para provocar ou conseguir qualquer coisa necessária aos processos biológicos, mas ainda
assim perseguidos por nós. A Verdade, a Beleza, o Sagrado, o Amor, a Justiça são todos
exemplos deste tipo de motivação que difere profundamente daquelas que podem ser
provocadas ou manipuladas (e portanto estudáveis de modo indireto em laboratório), como
dor, fome, sede, frio, calor, medo e prazer sexual. A Fenomenologia, particularmente com a
obra de Max Scheler, e mais uma vez com a de Viktor Frankl, parece o método filosófico
mais adequado para a abordagem deste tipo de aspecto da vida psicológica.
Por fim, temos um sétimo domínio apenas parcialmente acessível à investigação
científica, que é o da causação final, ou vontade, ou agency. Só podemos investigar motivos e
razões do comportamento indiretamente, depois que estes se transformaram em metas, que
podem ser inferidas do padrão geral do comportamento. Mas não podemos sequer estabelecer
cientificamente o que seriam motivos e razões: se ações diretas livres da consciência ou se as
razões são causadas eficientemente, como alegou o filósofo da Psicologia Donald Davidson
(1963). De toda maneira, pensar em causas finais como causas últimas do comportamento tem
o inconveniente de sempre resultar em teorias infalsificáveis. O caso da teoria do raciocínio
dialético conforme definida por Rychlak (1994) (como o processo de decisão entre duas ou
mais interpretações possíveis das informações do ambiente ou duas alternativas igualmente
plausíveis de curso de ação), é exemplo da natureza irrefutável destas alegações. Uma vez
alegada que a causa de um comportamento foi a vontade, ou a decisão entre duas alternativas
igualmente plausíveis de interpretação da informação, ou ainda a criação de uma nova estra-
tégia de ação como resultado de um processo dialético de raciocínio, a investigação finda e a
alegação é infalsificável. A afirmação de que um ser humano possui determinada meta em de-
terminada situação é indiretamente falsificável por seu curso de ação, mas a de que ele “um-
337
dou” sua meta como resultado de um ato de criatividade e vontade é absolutamente infalsifi-
cável. Isso não significa que não é verdadeiro, somente significa que tal afirmação pertence ao
campo da especulação filosófica, não ao campo do conhecimento de base empírica.
Por tudo o quanto ficou evidente por toda esta argumentação, defendo aqui que mais
do que as relações com a Filosofia comuns a todas as ciências, a Psicologia é ela própria uma
disciplina que para oferecer uma abordagem completa a seu objeto de estudo precisa se
dividir entre uma abordagem científica e uma abordagem filosófica. Não podemos nos
submeter à falsa opção oferecida pelo Positivismo nos últimos cento e vinte anos, entre
destruir a imagem de ser humano para adaptá-la a ciência ou destruir a imagem da ciência
para adaptá-la ao ser humano. No primeiro caso ficamos com uma imagem degradada da
condição humana, e um objeto que não se assemelha em nada ao ser humano. No segundo
caso, como afirma o humanista Joseph Rychlak (2004), temos outra catástrofe: a Psicologia
rejeita o método científico e assim rejeita seu status científico, como também tudo o que o
método científico tem a oferecer para legislar sobre teorias rivais.
Não se trata aqui também da outra falsa opção oferecida por alguns psicólogos
humanistas, em dividir a Psicologia em uma ciência nomotética e uma ciência idiográfica.
Como afirma Robinson (1985b) a própria idéia de uma ciência do singular é um contra-senso.
Toda ciência só se estabelece com o estabelecimento de leis universais. Toda ciência é
nomotética. A investigação do individual pode se valer de técnicas surgidas das ciências
nomotéticas, mas ainda sim é sempre interpretativa e filosófica. Diz Robinson sobre como a
Psicologia deve lidar com seus aspectos idiográficos:
“What is proposed here is not the means by which some new ‘science’ can be brought to
bear upon ideographic topics, but the application of tried and true nonscientific methods
of analysis to those psychological problems that are nomothetically inexplicable”
(1985b, p.73)
Muitos outros psicólogos contemporâneos compartilham desta posição, no Brasil e no
exterior. Entre nós recentemente Ued Maluf defendeu sua Teoria das Estranhezas (2002), a
partir da qual interpreta a Psicologia como um mosaico de teorias fragmentadas e
ontologicamente irredutíveis. Antônio Gomes Penna (1997) expressou também recentemente
sua convicção de que a dispersão do pensamento psicológico é um fenômeno irremediável,
assim como sua interdependência visceral e inextrincável do pensamento filosófico, tema
aliás várias vezes defendido ao longo de sua obra.
338
Sigmund Koch (1985, 1993) defendeu sua famosa tese de que a Psicologia não era um
campo passível de unificação nem teórica nem metodológica, em virtude do que ele acredita-
va que se deveria mudar sua denominação de Psicologia para Psychological Studies, os quais
eram alguns científicos, outros não. Howard Gardner (1992) adere à tese de Koch e defende
que grande parte dos tópicos de investigação psicológica não é passível de adequada aborda-
gem científica, sendo de natureza filosófica. Ele acredita que psicólogos não só devem invés-
tigar em colaboração com filósofos, como também com lingüistas, neurocientistas, engenhei-
ros de computação e outros profissionais. Como já abordado nesta tese, Gardner (1996)
acredita em alguma forma dialética de investigação científico-filosófica na Ciência Cognitiva.
Joseph Rychlak (1993) é outro expressivo psicólogo contemporâneo que não vê mais
como se pensar uma disciplina psicológica científica isolada da Filosofia. Ele propõe para o
campo a importação do princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Para ele, uma vez
que o fenômeno psicológico é multicausado, não existe possibilidade de reduzi-lo a uma única
esfera de causalidade , a um único nível de explicação (físico, biológico, lógico ou social):
Explain also devolves from the Latin word planare, which means to flatten or make
things level. A psychological principle of complementarity will therefore make it clear
that a theoretical explanation must be brought down (leveled) to any one of four clear
(flat) grounds, each of which has equal status. We are not speaking of four levels of
explanation here. The groundings are not to be rank ordered. To complement is not to
subsume one ground by another. Zukav observed that the impact of complementarity on
physics was, in effect, “that
it does not matter what quantum mechanics is about! The
important thing is that it works in all possible experimental situations”. I would like to
paraphrase this statement by saying that if we accept the four grounds that I have
recommended, it will not matter which of these bases we select to build our theory on. So
long as what we say is instructive and consistent with the empirical findings relevant to
the theoretical grounding per se, we will be practicing psychology.” (1993, p.939)
Partindo do conceito de complementaridade de Rychlak e de minha proposta de que a
verdadeira explicação científica psicológica é condicional, quero propor um novo critério de
demarcação entre Psicologia Científica e Filosófica. É cientifica na Psicologia, toda assertiva
universal condicional falsificável e empiricamente corroborada. É filosófica na Psicologia,
toda assertiva universal ou idiográfica, não falsificável, que atribua causalidade
determinante de um determinado comportamento a algum dos níveis irredutíveis da
339
explicação psicológica. Assim, toda assertiva que aspirar a uma condição de determinação
causal última em Psicologia será considerada metafísica, porque é infalsificável.
Se há alguma esperança de unidade futura para a Psicologia, ela não está em
explicações causais necessárias e suficientes, mas somente em explicações necessárias, ou
seja, condicionais. Em um fenômeno multicausado como o psicológico, sempre haverá
disputas de interpretações quanto ao nível determinante. Deixemos que continue a haver: estas
disputas são metafísicas. A unidade da Psicologia nunca poderá acontecer nas interpretações
metafísicas de seus resultados empíricos. A Psicologia pode um dia ser uma disciplina
unificada, não em teoria, mas em método. Esta é uma utopia distante. Mas estas sempre valem
a pena, pois sem utopias, não há estradas a seguir.
5.2.6 Por uma nova metáfora computacional
A última proposta deste trabalho é a de uma nova metáfora computacional para a
Psicologia, não como um novo modelo para a Filosofia da Mente, mas com o objetivo muito
mais modesto de ajudar a ilustrar a divisão de fronteiras e tarefas desta Psicologia
multifacetada e multicausal que surge no início do milênio. Para esta tarefa, devo convocar de
novo uma personagem ridicularizada na Filosofia e na Psicologia: o homúnculo.
O homúnculo, cuja origem remonta a Aristóteles, é mais um argumento reinterpretado
de forma anedótica por Gilbert Ryle (1949). Trata-se de uma reductio ad absurdum. Supondo
que alguém realmente, como diz a Psicologia Cognitiva, representa um objeto internamente
(como uma cadeira), como pode o cérebro lidar com esta representação? Certamente, esta
representação está se dando em algum lugar do cérebro, e outro lugar do cérebro
necessariamente tem que estar agindo sobre ela e a inspecionando. Esta outra parte é o
homúnculo. Porque homúnculo? Porque o problema idêntico agora se transfere para ele. Se
ele é a instância interna para a qual uma representação (de cadeira) deve se dar, para ele lidar
com a informação trazida pela representação ele precisa representar a representação (de
cadeira) de alguma forma. Mas esta representação a seu turno precisa de um homúnculo
menor dentro do homúnculo para a qual ela está representada, e assim ad finitum. A metáfora
é interessante, o problema é a conclusão de Ryle: ela é a de que algo como a representação
mental não existe, pois leva a um regresso infinito na cadeia de causalidade.
É interessante ver como os pressupostos metafísicos assumidos podem levar as
interpretações para onde se quiser. Como alguém pode chegar a pressupor que a representação
mental não possa existir porque não encontra a resposta de como isso seja possível? Alguém
realmente pode acreditar que não representa objetos físicos na mente, ou que ao ler estas
340
páginas não está representando mentalmente conceitos e os próprios signos lingüísticos?
Como afirma Baars (1986), ninguém mais pode atualmente fazer tais afirmações. A Ciência
Cognitiva é uma realidade, embora as representações mentais sempre tenham sido realidade
desde o aparecimento do primeiro humanóide, e provavelmente antes dele. Estes tipos de
declarações ilustram o absurdo da atitude de tentar expulsar o fenômeno da consciência do
mundo real, somente porque não há lugar para ele no mundo material mecanicista (que não
existe nem na Física). Como nos lembra Searle (2000):
“Qualquer tentativa de descrever a consciência, qualquer tentativa de mostrar como a
consciência se encaixa no mundo em geral, sempre me parece inadequada. O que estamos
deixando de lado é que a consciência não é apenas um aspecto importante da realidade.
Em certo sentido ela é o aspecto mais importante da realidade, porque todas as outras
coisas só tem valor, importância ou mérito em relação à consciência. Se valorizamos a
vida, a justiça, a beleza, a sobrevivência, a reprodução, só as valorizamos como seres
conscientes. Em discussões públicas, freqüentemente me pedem para dizer porque penso
que a consciência é importante; qualquer resposta que se possa dar é sempre
lamentavelmente inadequada, porque tudo que é importante é importante em relação à
consciência.” (p. 82)
Creio que a interpretação adequada para o paradoxo do homúnculo é a mesma que a
do paradoxo da regressão infinita da vontade (Ryle, 1949) e da intencionalidade dos sistemas
computacionais. Vimos que a intencionalidade de um programa é derivada (Searle, 1992,
Dreyfus, 1993). Um computador não atribui significado à informação. Seu usuário atribui. O
homúnculo é uma prova de que não podemos reduzir a mente ao cérebro, não uma prova que
a mente não existe. Para resolver seu paradoxo, temos que postular das duas uma alternativa:
ou a consciência é um fenômeno provocado pelo cérebro mas de ordem superior e portanto
irredutível a este (Searle, 1992; Sperry, 1993), ou a consciência é um fenômeno totalmente
distinto do cérebro, que é a solução tanto de Descartes e Brentano (dualismo de substâncias)
quanto do panpsiquismo (monismo de substância). De uma forma ou de outra, parece que não
há alternativa para a Psicologia: temos que considerar o fenômeno central da vida psicológica
e do universo conhecido: a consciência. E em virtude de suas categorias de intencionalidade
primária, atribuição de significado, criatividade e escolha (agency), temos também que
postular três níveis de análise irredutíveis do fenômeno psicológico.
Isto já fazem até alguns materialistas como o filósofo Daniel Dennett (1978), que
distingue três instâncias da explicação cognitiva: a intencional, que é o tipo de explicação e
341
predição do comportamento que leva em conta desejos e crenças, mais exatamente metas e
informação; a design stance, que poderíamos chamar de formal, que especifica os algoritimos
(programas) que produzem o comportamento intencional; e por fim a física, que é o hardware,
só relevante para explicar as superiores quando alguma coisa elétrica vai mal. É uma boa
tripartição, mas insuficiente. O interessante é como o materialista Dennett acha que pode
resolver o problema do homúnculo implícito na primeira instância: movendo a determinação
da intencionalidade da primeira instância para a segunda, você se livraria de um único
homúnculo inteligente para obter um exército de idiotas (army of idiots), cuja única
intencionalidade é ficar ativo ou inativo (0 e 1). É um dos poucos casos da filosofia em que
um filósofo acredita ter resolvido um problema multiplicando-o por dez bilhões. Isso nos
mostra o quanto o materialismo também pode ser irracional.
David Marr (1982) ofereceu uma proposta de arcabouço muito semelhante para
organizar os processos mentais. Ela consiste em três níveis de teorias. O nível mais alto é o
computacional (que é preferível chamar de funcional, para evitar confusões), e contém a
especificação do que precisa ser computado para que uma tarefa específica possa ser
desempenhada. O nível intermediário é o algoritmo, que é o da linguagem de programação, é
como os programas podem ser implementados, a representação para o input e o algoritmo de
transformação. Por fim temos o nível do hardware, que é o da base física onde a
representação e o algoritmo podem ser realizados de fato. O problema com o tipo de metáfora
ou modelo de Marr, é que tal como o de Dennett, ele cai na falácia do homúnculo. Como
observa Searle (1992), o que Marr está propondo trata o cérebro como se houvesse um agente
dentro dele o usando para computar com ele: a tarefa da visão é descrita como um
procedimento para transformar o input da imagem bi-dimensional que chega na retina numa
descrição tridimensional do mundo externo como output. A dificuldade, diz Searle (1992), é:
quem está vendo e atribuindo significado à descrição (ao output)? Assim, Searle acredita que
todas as metáforas deste gênero invocam implícita e secretamente o homúnculo para tornar
estas operações genuinamente computacionais.
Newell (1982) é outro que invoca três níveis de explicação: o hardware, o programa e
a intencionalidade. Este modelo é mais semelhante ao que este trabalho defende que deva ser
proposto. E isto por um motivo simples: como observa Searle (1992), para computadores que
você compra numa loja não há o paradoxo do homúnculo, porque o homúnculo é você. Mas,
afirma Searle (1992), se nós vamos supor que o cérebro é um computador digital, então sere-
mos mais cedo ou mais tarde confrontados com a pergunta: “And Who is the user?” (p.214)
342
Não existe informação, a não ser para uma consciência. Tudo o que é codificado, pode
ser recodificado e decodificado milhares de vezes, mas só ganhará significado para uma cons-
ciência. Desde a primeira vez em que tomei contato com as teses da IA forte, lembro-me de
um filme da minha infância que era uma das poucas fitas de vídeo que tínhamos em casa
quando surgiu este aparelho no início da década de oitenta. Seu nome era Tron, uma fábula
infantil da Walt Disney onde os programas dentro do computador ganhavam vida e em mo-
mentos críticos perguntavam-se uns aos outros: “Você acredita no usuário?” Os homúnculos
de Dennett (1978) me fazem lembrar este péssimo filme. Talvez tenham mesmo o inspirado.
Nós, seres humanos, não temos alternativa. Nós temos que acreditar no usuário porque
nós somos o usuário. A consciência é o fenômeno primário psicológico. Não se podem
ignorar os fenômenos mentais de primeira-pessoa e tratá-los como fenômenos de terceira-
pessoa como a computação. Os sistemas só possuem uma intencionalidade derivada (Searle,
1992), eles dependem de um sistema intencional original, primário, que possa interpretá-los.
Assim proponho uma nova metáfora computacional, não como modelo para uma
teoria da mente, mas somente como modelo de uma nova divisão de fronteiras da investigação
psicológica. Nesta, o ser humano deve ser considerado como sendo um homem que cresceu
sozinho na floresta, e que subitamente é colocado num quarto fechado, sem janelas, no qual
seu único contato com o mundo é um computador plugado vinte e quatro horas por dia na
internet. Ele só recebe informações do mundo externo de forma codificada pela rede, e só se
comunica com o mundo lá fora da mesma maneira. Ele precisa ter em seu computador um
sistema operacional básico, capaz de permiti-lo fazer o primeiro acesso à Internet. A partir
daí, ele precisa aprender a usar a máquina e o programa original. Pessoas há mais tempo na
rede que ele, vão conseguir enviar mensagens visuais e auditivas para o seu computador o
estimulando a mexer nele. Todo mundo, é visto através da tela do computador e ouvido
através das caixas de som do computador. Progressivamente o incauto informata vai aprender
uma linguagem e os rudimentos de utilização de sua máquina. As pessoas com quem ele
estabeleceu ligações de afeto vão sugerir que ele instale novos programas em sua máquina,
para lhe permitir fazer mais coisas. Ele vai decidir quais instalar, mas no começo, eles serão
instalados com base na confiança. Logo ele vai ver que tão logo instale um programa, há
tarefas na rede que pode fazer muito mais rápido, sem a necessidade de sua intervenção
permanente: uma vez instalado, é só colocar um programa para impedir invasões ou entradas
em sites desagradáveis, ou para encontrar um caminho na rede enquanto ele conversa com
uma amiga e assim por diante. Com o tempo, sua habilidade vai ficar tão ampliada, que ele
343
vai passar a criar alguns programas, e alguns deles vai inclusive disponibilizar na rede,
eventualmente, fazendo sucesso.
Enquanto for tendo experiências e aventuras virtuais, ele vai armazenar lembranças
delas, fotos, imagens, textos, sons, músicas. Quando quiser lembrar do passado, ele vai
resgatar estes traços. Ele não poderá armazenar tudo, mas tem mais coisa gravada em seu HD
do que ele pensa: cookies, registros do sistema, traços de sua atividade na rede que perma-
necerão, fazendo que ele acesse mais rapidamente uma página por onde já passou, mesmo que
conscientemente não se lembre mais dela. Mas nem tudo serão flores, como sabemos. Progra-
mas que entrem em conflito, podem fazer o computador entrar em pane total. Um super
aquecimento na máquina pode prejudicar a execução dos programas. E aí ele vai ter dificul-
dade de ver, ouvir, rodar processos automáticos. Se houver uma invasão de vírus, a máquina
vai parar para removê-lo, ou pode mesmo ter parte de seu conteúdo apagado. Em todos estes
casos, o hardware vai mandar uma comunicação para o sistema operacional, que vai invadir a
tela com sinais visuais e as caixas com auditivos cada vez mais altos até que ele não consiga
mais continuar suas atividades ordinárias, e pare tudo para resolver o problema. A maioria das
vezes ele vai conseguir, e vai seguir em frente. Mas algumas vezes isso não será possível: o
hardware poderá ficar irremediavelmente danificado e não funcionar mais corretamente. O
sistema pode ficar tão corrompido que não conseguirá executar processos automáticos, ou os
ficará executando sem parar sem que o usuário consiga fazê-lo parar. Por fim, quer tudo tenha
saído bem quer não tenha, a memória começará a falhar, o monitor a tremer ou queimar, até
que a vida útil do processador acabe e ele queime. Fim da história. O usuário não tem mais
como se comunicar de nenhuma forma com aquele mundo virtual: não tem seus códigos, suas
coordenadas, nem mais acesso aos traços mnemônicos.
Não é uma metáfora perfeita, mas é ilustrativa. Já sabemos que não podemos mais
lidar com uma metáfora hardware-software, ela não funciona plenamente. Precisamos de uma
metáfora hardware-software-usuário. Precisamos do homúnculo, mas do homúnculo fora da
máquina. Da mesma substância que a máquina para poder interagir com ela, mas de ordem
distinta, tão distinta do software quanto este é do hardware. Um quadro de Monet, quando
vira um programa, não é um quadro de Monet. Ele só se torna um quadro de Monet
novamente, quando decodificado de uma forma que nós possamos em seguida decodificar de
forma significativa. Na tela, só existem pontos coloridos. No programa, uma série de
instruções matemáticas ponto a ponto. Na nossa consciência, há um jardim, diferente e belo.
A consciência pode ser gerada pela atividade neuronal, mas também pode não ser. Isto
pouco importa para a Psicologia científica, é metafísica. O que importa é que a consciência
344
existe. Ela precisa do cérebro para receber e decodificar as informações físicas, e para
codificar fisicamente suas vontades transformando-as em ação corporal. Ela se serve do
cérebro para executar ações automáticas, mas ainda assim precisa colocá-las em ação, como
quando decidimos dirigir o carro até em casa, e só nos lembramos de novo da tarefa quando
temos que abrir o portão. Os programas dependem da intencionalidade da consciência, porque
senão as informações que eles manipulam não tem significado. Além disso, eles dependem da
decisão de serem instalados ou apagados, embora algumas crenças e programas invasores
sejam difíceis de apagar deixando rastros de auto-reinstalação. Programas novos, também são
fruto da criação de um usuário, assim como nossas novas idéias e hipóteses. Nem todas os
programas nós baixamos da rede, nem todas as nossas crenças são produtos unicamente da
cultura. Nossa memória também é construtiva, não temos memórias perfeitas de tudo, só
traços, a partir dos quais nós reconstruímos com a imaginação o acontecido. É claro que
alguns eventos de importância, com a memória instantânea, podem ser gravados “completos”
(som, imagem, dados) mas não teríamos memória suficiente para gravar desta forma tantas
informações, por isso, assim como o computador, só gravamos algumas. O computador é
como disse Gardner (1996), uma metáfora adequada para explicar a execução de tarefas
elementares e impenetráveis, como a percepção visual ou a análise sintática. Mas uma vez que
rumamos para processos mais complexos e centrais “como a classificação de domínios
ontológicos e julgamentos referentes a cursos de ação rivais o modelo computacional se torna
menos adequado” (p.405). A metáfora hardware-software-usuário, também é útil para
diferenciarmos dois tipos de motivação, a que surge na ausência de demandas dos softwares e
do hardware, e a que surge para eliminá-las. A primeira é a do campo dos valores, a segunda,
do campo respectivamente do desejo e da necessidade. Estas demandas invadem nossa
consciência e só desaparecem quando eliminadas ou dirimidas. Serve igualmente para ilustrar
metaforicamente várias psicopatologias, como fobias, obsessão-compulsão, esquizofrenia,
assim como lesões neurológicas e seus efeitos cognitivos.
A verdadeira utilidade desta metáfora no entanto, é ilustrar a nova divisão que se faz
cada dia mais clara no campo da Psicologia. Em sua condição multicausal, a Psicologia
encontra um campo explicativo na Neuropsicologia, que é a dimensão da relação hardware-
software. Como vimos com a natureza da explicação condicional, danos ou upgrades no
hardware não causam diretamente nenhum comportamento final, mas são condições de
possibilidade dele: sem hardware, sem software, sem hardware, sem informação externa. Mas
um hardware sem programa ou quem o instale e coloque para rodar não pode causar
comportamento inteligente. O segundo campo explicativo é o da Psicologia Cognitiva, que é
345
o campo do software e das suas relações com o usuário. Novamente aqui se coloca a condição
de possibilidade, não de causa: ter um programa Word instalado não causa a aparição de um
soneto de Sheakspeare, mas é condição de sua possibilidade. Ter um Corel Draw instalado
não causa uma figura da Mona Lisa, mas é condição de sua possibilidade. Por fim, o nível do
usuário é o nível da consciência e das suas relações com os programas: é o campo explicativo
da Filosofia da Mente, e guarda com a Psicologia Cognitiva um campo de intersecção.
Nesta nova configuração, a dimensão do usuário nos faz lembrar que qualquer
metáfora computacional será sempre incompleta em relação ao ser humano, e sempre
precisamos recorrer ao humano (mesmo que a um homúnculo) quando percebemos que não
há nada no universo que possua ou possa representar algumas de nossas maravilhosas e
inacreditáveis características, como a criatividade, a intencionalidade, a atribuição de sentido
e significado, a qualidade subjetiva, a vivência de valores e a liberdade.
346
6
CONCLUSÃO
A proposta central desta tese foi investigar o que era o projeto cognitivista de
Psicologia Moderna, quais seus pressupostos, teses centrais e possibilidades de realizar a
grande utopia da Psicologia, que continua sendo hoje a investigação de fenômenos
plenamente psicológicos através do método científico.
No capítulo dois, concluí que a ciência moderna continua em suas perfeitas condições,
e que a mudança na imagem de universo que estamos experimentando nestes últimos setenta
anos é uma de suas conquistas, não um de seus problemas. Foi estabelecido também que a
tradição racionalista crítica é a abordagem de filosofia da ciência que define o que é ciência
moderna em nossos dias.
No capítulo três foram inventariados os grandes problemas que antes e durante o
desenvolvimento da Psicologia moderna se colocaram como obstáculos à constituição de uma
legítima Psicologia científica. Primeiro, o grupo dos vetos filosóficos diretos à Psicologia, que
são os problemas da natureza inquantificável de seu objeto, da simultaneidade da condição de
sujeito e objeto, da indivisibilidade do fenômeno psíquico, da inexistência de objeto próprio
na disciplina, da alteração do ser humano pela interação, do significado como verdadeiro
objeto psicológico, do livre-arbítrio e da necessidade de adoção de um método distinto do das
ciências naturais. O segundo grupo de problemas, gerais, abrange as teses do anti-
representacionismo, anti-realismo ontológico e da falência da indução. Por fim, temos ainda
um terceiro grupo de problemas a serem superados, os metodológicos, que incluem as
alegações de impossibilidade de observação direta do fenômeno psicológico, da dificuldade
metodológica de quantificação do fenômeno psicológico, das limitações éticas para a pesquisa
psicológica e da enorme quantidade de variáveis envolvidas na explicação psicológica.
No quarto capítulo foi apresentada uma extensiva análise dos fundamentos ontológi-
cos, epistemológicos e metodológicos do Cognitivismo e da Psicologia Cognitiva, e apresen-
347
tadas as soluções que esta abordagem ofereceu a estes problemas endêmicos na disciplina.
Defendeu-se a tese de que o Cognitivismo é plenamente compatível com o Racionalismo
Crítico, além da minha conclusão de que sem o enfraquecimento da posição antes hegemônica
do Positivismo Lógico em Filosofia da Ciência, causada em última análise por Popper, o estu-
do empírico de processos cognitivos não poderia ter conquistado o respeito da comunidade
científica. Foi antes a mudança da visão sobre o que era a pesquisa científica que propiciou a
aceitação do estudo dos processos cognitivos na Psicologia, e não o contrário. Também
justifiquei minha tese de que apesar de toda a identidade entre as teses filosóficas de Popper e
do Cognitivismo sobre o construtivismo realista (Piaget), o caráter antecipatório da percepção
(Bruner), a observação que se faz contra ou a favor de uma teoria (Neisser), a rejeição da
tabula rasa (Chomsky), o interacionismo (Sperry), o caráter de imprevisibilidade que o
conhecimento traz ao sujeito (Neisser) entre outras, o Cognitivismo apresentava até vinte anos
atrás uma surpreendente inconsciência em relação ao caráter precursor da filosofia de Popper
em relação a este movimento. Esta inconsciência se revela particularmente surpreendente no
silêncio do Cognitivismo em relação à origem de seu modelo de método geral científico.
No quarto capítulo apresentei ainda duas outras conclusões originais deste estudo.
Uma delas é a de que não existe problema de circularidade inerente à investigação cognitiva
uma vez que o aparente paradoxo da refutação não recai sobre os pressupostos assumidos,
mas sobre o método de investigação derivado destes. Na investigação sobre a metodologia da
Psicologia Cognitiva, tornei explícita a característica que julgo ser o grande diferencial do
processo de investigação científica do Cognitivismo, a utilização dos vários métodos de
pesquisa com validade restrita a uma única etapa do processo geral de investigação científica
conforme definido por Popper. É nesta nova perspectiva que os estudos de caso conquistaram
seu legítimo lugar na investigação psicológica, assim como o próprio método introspectivo,
que retornou como valioso método descritivo, perdendo definitivamente suas pretensões de
teste de hipóteses.
No quinto capítulo, foi apresentada a conclusão geral deste estudo, que é a de que o
Cognitivismo superou plenamente a maioria dos obstáculos colocados pela tradição à cons-
tituição da Psicologia como ciência moderna. Porém, alguns obstáculos foram somente
parcialmente superados, outros deixados intocados, e ainda um último deixado em condição
pior do que a encontrada.
Entre os obstáculos tradicionais à Psicologia superados, se encontram as alegações da
natureza inquantificável de seu objeto, da simultaneidade da condição de sujeito e objeto, da
indivisibilidade do fenômeno psíquico, da inexistência de objeto próprio, da alteração do ser
348
humano pela interação, da falência da indução, da impossibilidade de observação direta do
fenômeno psicológico e do anti-realismo ontológico.
Entre os obstáculos parcialmente superados, se encontram as alegações da necessidade
de mudança do método, do significado como verdadeiro objeto psicológico, do anti-
representacionismo e da dificuldade metodológica de quantificação do fenômeno psicológico.
Entre os obstáculos que ficaram intocados ou ignorados estão o das limitações éticas
para a pesquisa psicológica e aquele pressuposto que, caso aceito, implica em impossibilidade
de explicação dedutivo-nomológica, a questão da liberdade e criatividade humana.
Por fim, chegamos a uma questão que o Cognitivismo não só não superou, como
deixou em condição pior do que a que herdou do Behaviorismo. Estamos falando da
complexidade da explicação dedutivo-nomológica psicológica, que na forma e níveis
irredutíveis que o Cognitivismo apresenta, se torna nada além de uma ficção impraticável, no
mínimo, ou de um erro de natureza ontológica, no máximo.
Assim, diante da conclusão que o Cognitivismo, apesar de sua revolucionária
abordagem do problema psicológico, não conseguiu até agora oferecer resposta a todas as
questões que se colocam como obstáculo à Psicologia científica, este trabalho ofereceu novas
propostas de abordagem a estes antigos problemas. A primeira é a da adoção da explicação
condicional em Psicologia, em oposição à explicação dedutivo-nomológica. Esta se faz
necessária porque: não temos ainda leis gerais da cognição; também não temos praticamente
nenhuma lei geral neuropsicológica; são tão difíceis, indiretas e imprecisas as inferências
sobre o estado atual de metas, crenças, estruturas cognitivas e cerebrais de um indivíduo; e
ainda também porque é impossível determinar precisamente o montante de informação ao
qual um indivíduo está submetido em uma situação de estímulo.
A explicação condicional inverte a situação de fragilidade das explicações psicológi-
cas, uma vez que precisa somente estabelecer condições necessárias para a emergência dos
fenômenos considerados. Este tipo de explicação elimina dois inconvenientes que estão na
origem da dispersão do conhecimento psicológico. Primeiro confere precisão de fato às leis
(obviamente falsificáveis) psicológicas. Ao mesmo tempo, por não se arvorar a determinar as
condições suficientes do comportamento, mas somente as necessárias, a explicação
condicional elimina da Psicologia o compromisso ontológico prévio com o determinismo
psicológico contido no ideal dedutivo-nomológico de investigação. Explicações condicionais
são válidas para humanistas porque não implicam numa visão determinista de homem, e são
válidas para deterministas porque continuam a estabelecer leis rigorosas para o comportamen-
349
to e a cognição humanas, justificando a ausência da determinação suficiente do comporta-
mento em razão da quantidade de níveis explicativos que compõe o fenômeno psicológico.
É absolutamente imprescindível que no momento em que admitamos pressupostos
metafísicos na pesquisa científica, os separemos em duas espécies. A primeira é aquela
composta pelos pressupostos absolutamente necessários ao empreendimento científico, que
são o realismo e o princípio da regularidade parcial do objeto. O determinismo laplaciano, o
materialismo e o mecanicismo não são pressupostos metafísicos indispensáveis à investigação
científica, e portanto não podem ser impostos aos pesquisadores como condição de
cientificidade de sua produção.
Este “Erro de Damásio” é nada mais que fraude acadêmica. Ele é a verdadeira raiz do
Positivismo, o último de seus traços que permanece dominante no mundo científico apesar da
derrocada de todas as outras teses desta tradição. Este erro permanece vivo exatamente porque
se constitui no núcleo motivacional do Positivismo. Este último é a interpretação da ciência
como uma atividade para materialistas, um seminário ateu onde não cabem idéias que
pareçam se compatibilizar em algum aspecto com a tradição religiosa ou humanista. Temos
urgentemente que seguir o caminho da Física e da Astrofísica e livrar a Psicologia de sua
condição atual de religião onde só pessoas que se submetam a ultrapassados dogmas
mecanicistas podem ser aceitas como dignas de respeito científico.
Não há lugar no empreendimento científico para o dogmatismo metafísico, embora
haja para dogmáticos metafísicos. O dogma metafísico não faz parte do corpo do
conhecimento científico porque é infalsificável, o dogmático metafísico pode fazer parte do
empreendimento científico se submeter suas teorias a tentativas de falsificação. O que não
pode é professar que não são cientistas todos aqueles que não se submetem a seus dogmas. Se
a religião de um cientista é o criacionismo de fundamentalistas cristãos ou o mecanicismo de
fundamentalistas ateus do século dezenove, isto pouco importa. O que importa é que método
eles usam para testar suas teorias. Unificar a Psicologia e obter respeitabilidade para nossa
disciplina passa pela necessidade de eliminar do modelo de explicação psicológica premissas
metafísicas que não são mais assumidas nem sequer na Física.
Da mesma forma, assim como assumimos na ciência entidades irredutíveis e
diretamente inobserváveis como gravidade, energia e fótons, não há motivo nenhum para
continuarmos a rejeitar a entidade mais evidente de todo o universo: a consciência. Não existe
nenhum motivo (uma vez que teorias-ponte não foram e provavelmente não serão nunca
construídas) formal ou metodológico para que não se aceitem conjecturalmente juízos de
existência irredutíveis na Psicologia. O problema mente-corpo deve partir necessariamente da
350
realidade irredutível da consciência, quer esta seja propriedade emergente de processos
neuronais quer não seja, e qualquer pessoa que negue que possua estados conscientes
legítimos deve voltar a ser tratada como um caso especial de patologia, não de filosofia.
Assim, qualquer alegação de causalidade suficiente, seja ela final ou eficiente, deve ser
abordada no caso da Psicologia como o que realmente é: uma interpretação, retrospectiva, de
um fenômeno incrivelmente complexo. Desta maneira, a Psicologia poderá se tornar um
empreendimento único, onde deterministas e condicionalistas poderão compartilhar o mesmo
conjunto de leis condicionais, enquanto se dividem em interpretações acerca do nível
determinante do comportamento.
A segunda proposta desta tese é que o limite apontado acima deveria marcar a linha
divisória entre duas abordagens complementares em Psicologia, a científica e a filosófica. O
fenômeno humano deveria ser explicado de forma condicional pela ciência, e de forma sufici-
ente e/ou idiográfica pela Filosofia. Existem domínios psicológicos que são impenetráveis à
investigação científica, e a Psicologia deve assumir sua condição de limitação instrumental e
metodológica. A intencionalidade original, a criatividade, a atribuição de sentido e significa-
do, os valores e o raciocínio dialético não são adequadamente abordáveis pelo método cientí-
fico, e exigem uma investigação complementar de ordem filosófica. Esta deve ser aplicada
para uma adequada compreensão de regularidade crua a ser exposta pela lei condicional.
Temos que completar o resgate da Psicologia para o ser humano. Temos que parar de
aceitar que a Psicologia seja um reduto de teorias que, sem ter qualquer respaldo empírico,
promovem a degradação da imagem do ser humano e ameaçam princípios que são os próprios
pilares da civilização ocidental. Apesar de nossa história conturbada, estou tomado por um
grande otimismo quanto ao nosso futuro como disciplina científica. Acredito mesmo que nos
restam poucos passos para superarmos nossa longa crise de adolescência e atingirmos
finalmente o começo de nossa maturidade. O Cognitivismo, este monumental
empreendimento intelectual e científico que mudou a face da Psicologia e re-humanizou seu
objeto, percorreu a maior parte deste caminho para nós.
Acredito porém que, exatamente como acontece com adolescentes em
amadurecimento, o próximo passo que precisamos dar é um passo atrás. É um passo ao
mesmo tempo de extrema humildade e de extremo orgulho. Humildade para reconhecer que
nossa mente é limitada para a explicação e compreensão completa do objeto de estudo da
Psicologia. Orgulho em reconhecer que este objeto, o mais complexo, magnífico e misterioso
de todo o universo conhecido, somos nós mesmos.
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