Download PDF
ads:
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MARILÉIA GÄRTNER
Mulheres contando história de mulheres:
o romance histórico brasileiro contemporâneo
de autoria feminina
ASSIS
2006
ads:
MARILÉIA GÄRTNER
Mulheres contando história de mulheres:
o romance histórico brasileiro contemporâneo
de autoria feminina
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP para a obtenção do
título de Doutora em Letras.
(Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social)
Orientador: Prof. Dr. Antônio Roberto
Esteves
ASSIS
2006
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Gärtner, Mariléia
G244m Mulheres contando histórias de mulheres: o romance
histórico brasileiro contemporâneo de autoria feminina / Mariléia
Gärtner. Assis, 2006
215f.
Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Mulheres na literatura. 2. Escritoras brasileiras. 3. Literatura
brasileira – História e crítica. I. Título.
CDD 869.909
À Nicole, amor da minha vida.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Antônio Roberto Esteves, pela orientação dedicada e
competente.
Às professoras Dra Maria Lídia Lichtscheidl Maretti e Dra Cleide Antonia
Rapucci, pela leitura atenta do material da qualificação e pelas valiosas
orientações.
À UNICENTRO, pelo apoio a minha capacitação, concedendo afastamento
integral das atividades de ensino, no período em que estive inserida no
programa de pós-graduação (doutorado).
À Professora Soely Betes, pela cuidadosa revisão gramatical do texto.
À Marilu, pela amizade e pelos importantes trabalhos de tradução.
Ao Allan, pela viabilização da ficha catalográfica.
À minha mãe, meu pai e meus irmãos, pelo apoio e carinho.
À minha irmã Marelane, pelo carinho e cuidados que dedicou à minha filha.
À Joyce, à Luciana e à Soraia, pela compreensão e amizade.
Ao Vagner, pelo carinho que me encorajou na conclusão dessa pesquisa, pelas
discussões, empréstimo de materiais, formatação do texto, viagens realizadas
e, principalmente, pelo seu amor.
À minha filha, por tudo...
Tudo o que os homens escreveram sobre as
mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a
um tempo, juiz e parte.
Poulain de La Barre
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS.................................................................................................... 09
RESUMO............................................................................................................. 10
ABSTRACT..........................................................................................................11
PRIMEIRA PARTE
1 PALAVRAS INICIAIS ...................................................................................13
2 A FICÇÃO HISTÓRICA BRASILEIRA NO FINAL DO SÉCULO XX..... 20
2.1 Literatura e história........................................................................................21
2.2 O romance histórico: da sua fundação aos dias atuais...................................27
2.3 O Novo Romance Histórico...........................................................................31
2.4 A Metaficção Historiográfica........................................................................39
2.5 O romance histórico de resistência................................................................43
2.4 Outras considerações.....................................................................................44
3. MULHER, HISTÓRIA E LITERATURA................................................... 47
3.1 A política dos estudos sobre gênero...............................................................47
3.2 O papel da mulher na história do o Brasil......................................................54
3.3 A literatura feminina no Brasil......................................................................56
3.4 O romance histórico escrito por mulheres.....................................................63
SEGUNDA PARTE
4. UMA LEITURA DE DESMUNDO, DE ANA MIRANDA..........................74
4.1 Entre o histórico e o ficcional: a construção das personagens.......................75
4.2 O jogo intertextual.........................................................................................83
4.3 A linguagem..................................................................................................96
4.4
A superação do discurso religioso a serviço do patriarcado........................101
4.5 Mulher e sexualidade...................................................................................103
4.6 As vinhetas...................................................................................................105
4.7 Conclusão........................................................................................ ............108
5. UMA LEITURA DE OS RIOS TURVOS, DE LUZILÁ
GONÇALVES FERREIRA..............................................................................110
5.1 A construção das personagens.....................................................................111
5.2 Entre a história e a ficção: o jogo dialógico.................................................122
5.2.1 Gente da Nação.......................................................................................123
5.2.2 Diálogo das Grandezas do Brasil...........................................................128
5.2.3 O jogo intertextual com a literatura........................................................131
5.2.3.1 As epígrafes.......................................................................................131
5.2.3.2 O jogo intertextual compondo o diálogo das personagens................135
5.3 Alguns elementos da narrativa.....................................................................140
5.4 Conclusão.....................................................................................................143
6. UMA LEITURA DE ROSA MARIA EGIPCÍACA DA VERA CRUZ,
DE HELOÍSA MARANHÃO...........................................................................145
6.1 Uma História no Brasil Colonial: Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz......147
6.2 A construção das personagens.....................................................................152
6.3 A sexualidade e a religiosidade no Brasil Colonial.....................................156
6.4 Intertextualidades.........................................................................................161
6.5 Alguns elementos da literatura fantástica....................................................163
6.6 A linguagem Carnavalizada do romance.....................................................167
6.7 A metaficção historiográfica........................................................................169
6.8 Conclusão.....................................................................................................172
TERCEIRA PARTE
7. O ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO
ESCRITO POR MULHERES..........................................................................174
7.1 Erotismo e sensualidade na escrita feminina...............................................175
7.2 Oribela, Rosa Maria e Filipa: a maternidade na colônia..............................186
7.3 Memória/desmemória nos romances históricos escritos por mulheres........196
7.4 Conclusão.....................................................................................................201
8. PALAVRAS FINAIS.....................................................................................203
9. REFERÊNCIAS ............................................................................................205
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Diagrama de Ardener ..........................................................................53
Figura 2 - A chegada ..........................................................................................106
Figura 3 - A terra ................................................................................................106
Figura 4 - O casamento .......................................................................................106
Figura 5 - O fogo .................................................................................................106
Figura 6 - A fuga .................................................................................................106
Figura 7 - O Desmundo .......................................................................................106
Figura 8 - A guerra ............................................................................................. 106
Figura 9 - O mouro ............................................................................................ 106
Figura10-Ofilho .................................................................................................106
Figura11-O fim.................................................................................................. 108
Figura12–Estrutura narrativa de Os Rios Turvos ................................................140
GÄRTNER, Mariléia. Mulheres contando história de mulheres: o romance
histórico brasileiro contemporâneo de autoria feminina.Tese de doutorado,
Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2005.
215p.
RESUMO
O romance histórico publicado no Brasil, a partir de 1990, apresenta-se
predominantemente em duas tendências, denominadas pela crítica como Novo
Romance Histórico e Metaficção Historiográfica. Nesse contexto, para a
literatura feminina, é bastante promissora a ficção histórica contemporânea, que
representa um novo viés para a produção literária de mulheres. Assim, nesta
pesquisa, três romances de autoria feminina são estudados: Desmundo (1996),
de Ana Miranda; Os Rios Turvos (1993), de Luzilá Gonçalves Ferreira; Rosa
Maria Egipcíaca de Santa Cruz (1997), de Heloísa Maranhão. O contexto
histórico das obras é o Brasil colonial e a personagem principal de cada uma
das narrativas é uma mulher. São elas: a órfã Oribela, que veio de Portugal para
casar no Brasil; Filipa Raposa, a mulher assassinada do poeta Bento Teixeira; e
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, a primeira afro-brasileira a ter escrito um
livro. Nesses romances a condição feminina é mais do que simples fonte
temática: é o elemento que estrutura e organiza as narrativas.
Conseqüentemente, eles permitem olhar, de forma aparentemente
descompromissada, para a história das mulheres, extraindo da desmemória da
história oficial (para introduzir no interior do universo ficcional) temáticas que
ficaram à margem das versões históricas escritas pelo patriarcado, como a
sexualidade feminina.
Palavras Chave: Ana Miranda; Heloisa Maranhão; Luzilá Gonçalves Ferreira;
literatura feminina; romance histórico brasileiro contemporâneo; pós-
modernismo.
GÄRTNER, Mariléia. Women counting history of women: brazilian
contemporany historical novel of authorship female. These of Phd, College of
Sciences and Letters, São Paulo State University, Assis, 2005. 215 p.
ABSTRACT
The published historical novel, in Brazil, from 1990, is presented, predominantly,
in two trends, called, by critics, as: New Historical Novel and Historiographic
Metafiction. In this context, for women’s literature, the contemporary historical
fiction is sufficiently promising, being able, also, to represent the maturity of the
literary production of women. Thus, in this research, three novels, of female
authorship, are studied: Desmundo (1996), by Ana Miranda; Os Rios Turvos
(1993), by Luzilá Gonçalves Ferreira; and Rosa Maria Egipcíaca de Santa Cruz
(1997) by Heloísa Maranhão. The historical context of the works is colonial
Brazil, and the main character of each of the narratives is a woman. They are:
Oribela, the orphan who came from Portugal to marry in Brazil, Filipa Raposa,
the wife, assassinated, of the Bento Teixeira, and Rosa Maria da Vera Cruz, first
afro-Brazilian to have written a book. In these novels, the feminine condition is
more than a simple thematic source, it is the element that structures and
organizes the narratives. Consequently, they allow one to look at, in an
apparently uncompromised form, to the history of the women, extracting of the
forgetfulness of official history (to introduce in the interior of the fictional
universe) themes that had been at the margins of the historical versions written
by the patriarchy, as feminine sexuality.
Keywords: Ana Miranda; Heloisa Maranhão; Luzilá Gonçalves Ferreira; Brazilian
literature, historical contemporany novel, post-modernism.
PRIMEIRA PARTE
1. PALAVRAS INICIAIS
Nas últimas décadas do século XX, um interessante fenômeno literário
marca o universo ficcional brasileiro: romances históricos são publicados no
Brasil de forma bastante efervescente. Assim, passam a escrever e publicar
romances desse gênero, tanto autores consagrados pelo cânone e bem
conhecidos pelos leitores, como aqueles completamente desconhecidos.
Escritoras também publicaram romances históricos. Entre elas, Ana Miranda,
Luzilá Gonçalves Ferreira e Heloisa Maranhão, as quais serão particularmente
estudadas nesta pesquisa
O cenário sócio-político do Brasil, na segunda metade do culo XX, foi
marcado pela concretização da abertura política: o regresso dos políticos
cassados pelo regime militar (assim como à vida pública) e a movimentação em
defesa das eleições diretas para presidente da república, que elegeu, em 1985,
Tancredo Neves, que simbolizava a vitória da sociedade civil e a reconquista do
respeito à vontade popular (mesmo não sendo eleito por eleições diretas). Mas,
a morte de Tancredo, antes da posse oficial, golpeou as esperanças de
democratização nacional. Assim, o vice-presidente, José Sarney, assumiu a
presidência governando até 1990.
No entanto, o governo de Sarney não foi tranqüilo, pois a economia
brasileira vivia sucessivas crises, de modo que, em 1987, a inflação chegou a
atingir o índice de 365% ao ano. Conseqüentemente, baixos salários,
desemprego, saúde e educação pública em crise fomentavam a descrença
popular, mas a promulgação da nova constituição (em 1988) e a realização da
primeira eleição direta para presidência (em 1989), depois de quase 30 anos,
melhoram as perspectivas para o Brasil.
Fernando Collor de Mello venceu o processo eleitoral para presidente, em
1989. Mas em 1991, as dificuldades encontradas pelo plano de estabilização,
que não acabou com a inflação e aumentou a recessão, começaram a minar o
governo. Circulavam suspeitas de envolvimento de ministros e altos
funcionários em uma grande rede de corrupção. Assim, depois de um penoso
processo de apuração e confirmação das acusações e da mobilização de
amplos setores da sociedade, por todo o país, o Congresso Nacional,
pressionado pela população, votou o impeachment presidencial. O Parlamento,
então, decidiu afastar Collor do cargo de Presidente da República e seus
direitos políticos foram cassados por oito anos. Deste modo, Itamar Franco,
vice-presidente, assumiu a presidência interinamente entre outubro e
dezembro de 1992, e em caráter definitivo em 29 de dezembro de 1992,
cumprindo o restante do mandato, cuja duração vai até 31 de dezembro de
1994.
No campo econômico, o governo de Itamar Franco enfrentou sérias
dificuldades. A falta de resultados no combate à inflação agravou o
desequilíbrio do governo e abalou o prestígio do próprio Presidente da
República. Os ministros da Economia sucederam-se, até que o chanceler
Fernando Henrique Cardoso é nomeado para o cargo. No final de 1993, ele
anunciou seu plano de estabilização econômica, o Plano Real, que foi
implantado ao longo de 1994.
Ainda o governo de Itamar Franco sofreu as conseqüências das
investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito, do Congresso Nacional,
entre 1993 e 1994, em função de denúncias de irregularidades na elaboração
do Orçamento da União. Desse modo, a CPI do Orçamento provou o
envolvimento de ministros, de parlamentares e de altos funcionários, num amplo
esquema de manipulação do Orçamento. A autoridade do Presidente, contudo,
não foi abalada pelos resultados das investigações. No final de seu mandato,
Itamar Franco apoiou a candidatura do ministro da Fazenda, Fernando Henrique
Cardoso, à Presidência da República, que se elegeu, no primeiro turno do
processo eleitoral.
O governo de Fernando Henrique Cardoso foi marcado pela política
econômica neoliberal, pela privatização de empresas estatais e a estabilidade
da moeda, o que possibilitou sua reeleição, permanecendo no cargo por oito
anos.
Por outro lado, a presença de Luís Inácio Lula da Silva, nos anos 80 e 90,
no quadro político do país, é de fundamental importância para a compreensão
do contexto histórico brasileiro. Como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo do Campo, procurou reestruturar os sindicatos trabalhistas
solapados pelo regime militar, promovendo no ano de 1978 a primeira greve de
operários do ABC paulista, realizada após 1964. Ainda em conjunto com
intelectuais e sindicalistas, em 1979, trabalha para a formação de um novo
partido político, o Partido dos Trabalhadores.
No ano de 1989, Lula perdeu as eleições presidenciais para Fernando
Collor de Mello, mas anunciou a formação de um governo paralelo que seria
encarregado da vigilância pelo cumprimento dos interesses nacionais. De fato,
no período do impeachment de Fernando Collor, acusado de corrupção, Lula e
a bancada do PT, na Câmara, tiveram ampla participação no processo da
Comissão Parlamentar de Inquérito. Em 1994, candidatou-se novamente à
presidência, mas perdeu para Fernando Henrique Cardoso, o que se repetiu em
1998. Mas o governo de Fernando Henrique Cardoso não conseguiu controlar
a crise econômica e política que assolou toda a nação; conseqüentemente, Lula
vence as eleições de 2002, com uma votação recorde, sendo eleito Presidente
da República.
No primeiro dia do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva , em
2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, ligada à
Presidência da República, que objetiva o desenvolvimento de ações conjuntas
com todos os Ministérios e Secretarias Especiais para a incorporação das
especificidades das mulheres nas políticas públicas, e o estabelecimento das
condições necessárias para a plena cidadania feminina. O cargo, com status de
ministra, foi assumido por Nilcéa Freire, médica, professora e pesquisadora do
departamento de Patologia e Laboratórios da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro.
A aproximação das festividades do quinto centenário do descobrimento
da América é outro elemento que deve ser adicionado a esse contexto para
compreender essa efervescência em torno das ficções com temáticas históricas.
Considerando que o fenômeno não foi exclusivamente brasileiro, as
comemorações fomentaram questionamentos e reflexões sobre a situação
política e social da América Latina enquanto Terceiro Mundo, contribuindo para
a recuperação de outros discursos, dando voz aos oprimidos e colonizados,
numa espécie de reação contra os colonizadores.
Com propósitos didáticos, faz-se necessário situar a publicação de
Catatau (1975), de Paulo Leminski, como o marco inicial do romance histórico
contemporâneo no Brasil. Entretanto, obras como Galvez, o imperador do Acre
(1976), de Márcio Souza; Em Liberdade (1981), de Silviano Santiago; Viva o
povo Brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro; A Casca da Serpente (1989), de
José J. Veiga e Boca do Inferno (1989), de Ana Miranda, proclamaram o
romance histórico entre o público leitor e a crítica, no final do século XX.
Surgem, nessa esteira, Os Rios Turvos (1993), da pernambucana Luzilá
Gonçalves Ferreira, prêmio Jabuti de 1992. Ambientado no Brasil Colonial, o
romance recupera a biografia do poeta quinhentista Bento Teixeira, e de sua
esposa, Filipa Raposa. Desmundo (1996), de Ana Miranda, narra a vida de
Oribela, uma órfã portuguesa trazida para o Brasil, com outras seis, para se
casar com colonos, garantindo, assim, a pureza racial dos descendentes de
portugueses. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1997), de Heloísa
Maranhão, é uma narrativa que resgata a trajetória da primeira afro-brasileira
alfabetizada de que se tem registro histórico.
No Brasil, o romance histórico contribui para o amadurecimento da
literatura feminina. Dessa forma, o desvelamento desse fenômeno literário
impulsionou o desenvolvimento desta pesquisa, que pretende apontar alguns
elementos da formação do romance histórico contemporâneo brasileiro, de
autoria feminina, por meio da análise das três obras de autoria feminina acima
elencadas. Além de as protagonistas dos referidos romances serem mulheres, a
ação das três narrativas ocorre no Brasil Colonial.
Estruturalmente, a pesquisa será desenvolvida em três partes. A
primeira será constituída de dois capítulos: “Ficção histórica brasileira no final
do século XX”, que pretende resgatar alguns elementos possíveis da relação
entre literatura e história, situando o nascimento do romance histórico no século
XIX, com a obra de Scott e, deste modo, apontar as novas tendências que esse
gênero ficcional apresenta no final do século XX. O segundo, “Mulher, história e
literatura”, resgata algumas discussões acerca da política dos estudos sobre
gênero, bem como o papel da mulher na história do Brasil, para identificar e
compreender a formação das escritoras brasileiras, para, em seguida, traçar de
forma sintética a história da literatura feminina no Brasil, situando nesse
universo a produção de romances históricos.
Na segunda parte da pesquisa, serão analisados os três romances
selecionados. Considerando os modelos de romance históricos, optou-se em
estudar primeiro a obra de Ana Miranda. Assim, em “Uma leitura de
Desmundo, de Ana Miranda”, pretende identificar os mecanismos que Ana
Miranda utilizou para desconstruir o discurso patriarcal e apresentar uma
versão mais justa da história das mulheres, uma vez que a obra aparentemente
está estruturada no modelo de romance histórico do século XIX. Assim, em
“Uma leitura de Os Rios Turvos, de Luzilá Gonçalves Ferreira”, serão
analisados Os Rios Turvos com o objetivo de verificar como os elementos que
singularizam o Novo Romance Histórico aparecem na obra que tem como
propósito recontar a história das mulheres no Brasil, quando resgata, do silêncio
e do esquecimento histórico, a mulher assassinada de Bento Teixeira, Filipa
Raposa. De forma semelhante, em “Uma leitura de Rosa Maria Egipcíaca da
Vera Cruz, de Heloisa Maranhão”, pretende-se desvelar alguns elementos que
constituem a ficção histórica pós-moderna escrita por mulheres, uma vez que,
para a crítica, o romance histórico pós-moderno, denominado, também, de
metaficção historiográfica, possibilita uma releitura crítica da história, pois, o
romance de Heloisa Maranhão, por meio da ficcionalização da trajetória da afro-
brasileira Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, estruturado pela carnavalização
da linguagem ficcional, e, organizado por elementos narrativos do universo da
literatura fantástica, discute questões importantes sobre a história das mulheres
no Brasil.
Na terceira parte do trabalho, “O romance histórico contemporâneo
escrito por mulheres”, aproxima os três romances para, deste modo, verificar os
elementos que essas obras têm em comum e que possam singularizar o
romance histórico contemporâneo brasileiro escrito por mulheres, na busca de
uma possível escrita feminina, pois no Brasil o romance histórico vem acenando
para um possível amadurecimento da literatura feminina.
2. A FICÇÃO HISTÓRICA BRASILEIRA NO FINAL DO SÉCULO XX
As últimas décadas do século XX foram marcadas por um enorme
interesse por temas históricos, tanto na literatura como no cinema e na
televisão. Mini-séries como O Memorial de Maria Moura (1994), Canudos
(1997) e A muralha (2000), apresentadas pela Rede Globo, ilustram bem
esse contexto. A literatura brasileira também viveu uma experiência bem
significativa nesse período, uma vez que ocorreu uma verdadeira explosão
de ficções históricas publicadas no país. Assim como escritores
desconhecidos passaram a publicar romances históricos, também
escritores já conhecidos pela crítica o fizeram.
Para Antônio Roberto Esteves (1998), o sucesso dos romances
históricos, entre os leitores brasileiros não se simplesmente pelo intuito
de reconstruir as ilusões perdidas em razão da crise política, social, moral
e econômica que assola o Brasil. Assim, outra explicação para a
proliferação desse tipo de romances está na necessidade de buscar
“heróis, mitos e outras marcas características em que possamos enxergar
melhor nossa própria realidade” (ESTEVES, 1998, p. 139), uma vez que
esse reencontro de modelos e heróis permite “a superação da crise e a
continuidade da luta pela conquista da identidade” (ESTEVES, 1998, p.
139).
No entanto, para compreensão do fenômeno, é necessário
recuperar algumas questões sobre a relação entre a literatura e a história
da teoria do romance histórico, sem ignorar que o romance histórico vem
sofrendo algumas modificações com o passar do tempo, o que fez
aparecer tendências como o Novo Romance Histórico e a Metaficção
Historiográfica.
2.1 Literatura e história
O termo “romance histórico” remete a conceitos aparentemente
divergentes, pois a expressão “romance” se refere à ficção, enquanto
“histórico”, ao real. No entanto, para a professora Sandra Jatahy Pesavento
(2000), sempre que se cruzar literatura e história, as fronteiras dessas duas
áreas do conhecimento acabam se diluindo, tendo em vista a reconfiguração
temporal que se estabelece, e considerando que o distanciamento entre o que
aconteceu e o que poderia ter acontecido trabalha com o que se denomina de
“efeito de real”, ou seja, “se o texto histórico busca produzir uma versão do
passado convincente e próxima o mais possível do acontecido um dia, o texto
literário não deixa de levar em conta essa aproximação” (PESAVENTO, 2000,
p.57).
Roland Barthes explica o que é “efeito de real” lembrando que, na
pretendida história objetiva, o real nunca é mais do que um significado não
formulado, “abrigado atrás da onipotência aparente do referente”:
A eliminação do significado para fora do discurso objetivo, deixando
confrontar-se aparentemente o real e sua expressão, não deixa produzir
um novo sentido, tanto é verdade, uma vez mais, que, num sistema, toda
aparência de elemento é ela própria significante. Esse novo sentido
extensivo a todo discurso histórico e que finalmente define a sua
pertinência é o próprio real, transformado sub-repticiamente em
significado vergonhoso: o discurso histórico não acompanha o real, não
faz mais que significá-lo, repetindo continuadamente aconteceu, sem que
essa asserção possa ser jamais outra coisa que não o reverso significado
de toda a narração histórica (BARTHES, 1988, p. 156).
Entendendo a literatura como um reino de ambigüidades, suas verdades
passam a ser vistas como relativas. Assim, elas, com freqüência, configuram-se
como mentiras históricas, pois a literatura apresenta uma visão histórica que os
historiadores, em seus textos, não sabem e não podem contar. Nesse sentido,
Mario Vargas Llosa (1990) lembra que Balzac escreveu: “a ficção é a história
privada das nações”; assim, afirma que diante da subjetividade das verdades
configuram-se os textos literários, e estes garantem sua principal função:
resgatar uma parte da nossa memória. Para o teórico, a verdade histórica é
também indispensável e insubstituível para saber o que somos e o que acaso
poderíamos ser como indivíduos, mas que não seremos de verdade, uma vez
que somente no mundo da fantasia e invenção (a nossa história secreta),
poderemos ser, ou seja, só através da literatura.
Para Mário Miguel González (2005), em seu artigo “O romance queas
leituras da história”, a literatura e a história são discursos que inicialmente se
opõem radicalmente. O discurso ficcional, então, se alicerça na
verossimilhança, enquanto o discurso histórico, compromissado com a verdade,
deixa registrado o que o historiador julga ser verdadeiro, sua versão dos fatos,
pois busca a univocidade e evita versões diferentes para um mesmo fato.
Entretanto, com o advento da História Nova, associada à Escola dos
Annales, a história passa a ter uma nova concepção, a partir do século XX.
Diferentemente da história tradicional, preocupada com a história política, a
Nova História abre espaço para os temas antes silenciados, e ainda, para novos
documentos históricos. Considerando que os defensores da Nova História
concebiam que a realidade é social e culturalmente construída, a história
também passou a ser encarada como construção. Para Peter Burke (1992), a
Nova História passou a se interessar por toda atividade humana, pois tudo tem
um passado que pode ser reconstruído:
Nos últimos trinta anos nos deparamos com várias histórias notáveis de
tópicos que anteriormente não se havia pensado possuírem uma história,
como, por exemplo, a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a
sujeira e a limpeza, os gestos, o corpo, a feminilidade, a leitura, a fala e
até mesmo o silêncio. O que era previamente considerado imutável é
agora encarado como uma construção cultural, sujeita a variações, tanto
no tempo quanto no espaço (BURKE, 1992, p.11).
Burke (1992) destaca, ainda, que não é fácil definir a Nova história, pois o
movimento está unido apenas naquilo que se opõe, além de apresentar uma
variedade de novas abordagens.
Para esse trabalho, é importante ter claro que, a partir das novas
abordagens históricas, o diálogo entre literatura e história passou a ser
produtivo. De acordo com Weinhardt (1994), essa nova concepção científica
tomou consciência de que a literatura e a história são produzidas de material
discursivo, e todas as formas de resgate do passado são permeadas pela
consciência de que a construção verbal não é o fato e não é ingênua (1994,
p.49).
Sabendo que história e ficção são termos construídos historicamente,
sistemas culturais de signos, cujas definições e inter-relações variam ao longo
do tempo, faz-se necessário lembrar que uma distinção antiga entre ficção e
história, na qual a primeira é vista como representação do imaginável, enquanto
a outra, do verdadeiro. Mas, para entender como se construiu essa oposição, é
preciso considerar que, para Aristóteles, em sua obra Poética, a história trata
de verdades particulares e não universais, enquanto a poesia fala de verdades
possíveis ou desejáveis, uma vez que está embutida de um caráter mais
filosófico, além de ser universal. Para Antônio Celso Ferreira (1996), foi
Aristóteles que estabeleceu a gênese da antítese entre os dois paradigmas,
mas, com o avanço do racionalismo, nos tempos modernos, essa contraposição
se acentuou, resultando na inversão dos termos e, como o alicerce do divórcio
entre arte e ciência, inclusive solidificou a separação entre ficção e verdade, que
ocorreu bem mais tarde. Assim, desde o século XIX, a história e a literatura
(realismo e naturalismo) tiveram essa distinção como fundamento:
a teoria literária, que também se institucionalizou neste século ainda que
tenha abandonado os ideais românticos ao assumir o pendor científico,
também buscaria assegurar a singularidade do literário e do estético, diante
das ciências e das outras linguagens e discursos, como a história. (...) A
literatura, nesta perspectiva, exprimiria o verossímil (a impressão de
verdade, não necessariamente falsa, que se inclui no espaço ficcional),
enquanto a história pretenderia o verdadeiro (no sentido de mera
representação do acontecimento particular) (FERREIRA, 1996, p.36) .
No entanto, ao longo da história não houve uma verdadeira separação entre
esses dois campos. Conforme Mata Indurán (1995), foi com o positivismo, no
século XIX, que se deu o início das discussões que atentaram para a separação
entre literatura e história.
Essa separação entre literário e histórico, conforme Linda Hutcheon
(1991), tem se concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita têm em
comum do que nas diferenças, porque elas obtêm as suas forças a partir da
verossimilhança, mais do que se fosse a partir de qualquer verdade objetiva,
além de serem:
identificadas como construtos lingüísticos, altamente convencionalizadas
em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de
linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais,
desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade
complexa (HUTCHEON,1991, p.141).
Cristina Maria C. Vieira (2000), por sua vez, lembra que a historiografia e
o romance histórico propõem e pressupõem modos “dissimilares de cognição”,
pois um mesmo fato histórico, quando lido num texto literário, é entendido como
poético, e, num manual de história, como mimético. O fato em si não determina
se o texto é ficcional ou não, mas o pacto de leitura estabelecido. A professora
Sandra Jatahy Pesavento (2000, p. 39) ressalta que “a colocação em ficção da
experiência histórica é uma obra, uma construção”. E o esforço da imaginação
para recriar um fato histórico, dotá-lo de coerência e de sentidos, faz parte tanto
da própria produção quanto do leitor, considerando que “ambos estão fora do
acontecido ou do que se apresenta como acontecido e tentam penetrar
neste mundo” (PESAVENTO, 2000, p. 40).
Mário Miguel GonzáleZ (2005) lembra que o romance histórico,
provavelmente, é a prova de que a história e a literatura não precisam ser
confundidas e, cada uma delas, têm um discurso próprio, pois o romance
libertou a história de sua confusão com o ficcional; e alforriou a ficção da
necessidade de se acreditar nela. Assim, passam a existir dois tipos de leitor: o
da história e do romance. Para o teórico, o primeiro é aquele “que julgará com
relação à verdade a comunicação e a interpretação dos fatos pelo historiador”, e
o segundo tipo de leitor, aquele que julgará “criticamente a narrativa em si
mesma”, complementando a criação literária através da sua interpretação
pessoal.
Hayden White se ocupou, na década de 70, do estudo da influência do
texto ficcional nas narrativas históricas do século XIX, revelando que os textos
históricos são narrativas. Possibilitou uma série de conclusões e, entre elas, a
de que os historiadores constróem versões para o passado, ou seja, a história
é vista enquanto construção, aproximando historiadores e ficcionistas: ambos
constróem, em seus textos, versões possíveis para um determinado fato. Nessa
perspectiva, White (2001, p. 98) alerta que sempre relutou em considerar as
narrativas históricas como aquilo que realmente são: “ficções verbais cujos
conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais
em comum com seus equivalentes na literatura do que com seus
correspondentes nas ciências”. Ainda, para o teórico, as histórias conseguem
parte do seu efeito explicativo quando criam histórias de simples crônicas,
“através de uma operação que denomina de ‘urdidura de enredo’, que é
simplesmente a codificação dos fatos contidos nas crônicas em forma de
componentes de tipos específicos de estruturas de enredo” (WHITE, 2001,
p.100).
O romance histórico questiona tanto a narrativa da história quanto a da
ficção. Pois, além de ser um espaço aberto em que se contam histórias com a
memória da história, deixa o escritor tornar ficcional o que pode ser matéria de
ficção, ou ainda, relatar com fidelidade os fatos conhecidos ou canonizados
pelo discurso da história. O discurso do romance histórico, através de um
diálogo entre verdades, constrói um universo do possível, apontando para
novas alternativas.
Sandra Jatahy Pesavento (2000) lembra, ainda, que o texto histórico
comporta a ficção, se considerar sua acepção de escolha, seleção, recorte,
montagem, atividades que se articulam à capacidade da imaginação criadora de
construir o passado e representá-lo. Por outro lado, deve-se ter claro que esse
processo de criação não é absolutamente livre, pois, quando se define a
história como ficção, não se pode ignorar que ela sempre é controlada, pois “a
tarefa do historiador é controlada pelo arquivo, pelo documento, pelo caco e
pelos traços do passado que chegam até o presente” (PESAVENTO, 2000,
p.39).
A história e a literatura, ao longo da história, em alguns momentos
andaram de mãos dadas; em outros, por caminhos aparentemente opostos. O
romance histórico, neste contexto, pode ser visto como o lugar ideal para a
encenação do processo historiográfico, pois, como Antônio Roberto Esteves
(1998, p. 125) afirma, “a história e a literatura têm algo em comum: ambas o
construídas de material discursivo, permeada pela organização subjetiva da
realidade, feita por cada falante, o que produz uma infinita proliferação de
discursos”.
Valendo-se ainda das reflexões do professor Esteves, quando se
entende o texto narrativo ficcional e o histórico como construções discursivas,
pode-se pensar que através da literatura é possível chegar à verdade histórica,
uma vez que ela possibilita “uma aproximação poética em que todos os pontos
de vista, contraditórios mas convergentes, estejam presentes” (ESTEVES,
1998, p.125). No entanto, é preciso ter claro que o romance histórico é regido
pela lei da criação poética; por isso, ele não é história.
2.2O romance histórico: da sua fundação aos dias atuais
Para se entender a produção ficcional contemporânea, é preciso ter
ciência de que a concepção de romance histórico vem sofrendo mudanças com
o tempo, mas é possível classificar como tal o texto ficcional que, de acordo
com Márquez Rodríguez (1991),o abandonar duas condições básicas para a
sua existência: ser ficção (invenção) e se fundamentar em fatos históricos.
O romance histórico, desde as últimas décadas do século XX, vem se
manifestando de forma bastante singular. Para começar a refletir sobre esse
subgênero, passa a ser importante resgatar algumas questões sobre os
primeiros romances históricos. Deste modo, o trabalho de George Lukács
(datado de 1937) situa o nascimento do romance histórico no início do século
XIX, com a publicação de Ivanhoé de Walter Scott.
A obra de Scott é vista por Georg Lukács (1977) como uma continuação
do romance social realista do século XVIII, mas, quando submetida à
comparação diverge bastante, que a concepção de história nos romances do
escritor inglês aparece implicitamente por detrás da urdidura da fábula e da
maneira de construção do seu herói, que é um “gentleman” inglês de tipo médio.
Ou melhor, um herói prosaico com uma inteligência prática mediana, com um
caráter moral firme, disposto a se auto-sacrificar, mas incapaz de se entregar
totalmente a uma causa. Para Lukács, a grande renovação de Scott está no fato
de conseguir renunciar ao modelo de herói romântico, mesmo estando no
centro da produção do chamado romantismo. Os heróis scottianos, então,
nunca são indivíduos, são sempre representantes de correntes sociais e
poderes históricos que encarnam as lutas e as oposições da história .
Numa tentativa de apresentar os principais elementos definitórios do
modelo scottiano, Lukács (1977) afirma que o romance histórico parece possuir
um “grande telão de fundo” com rigoroso caráter histórico, cuja ação ocorre num
passado mais ou menos distante do romancista. Sob este grande telão de
fundo, tem-se um acontecimento fictício, que poderia ter acontecido realmente,
com personagens também fictícias. E, ainda, um episódio amoroso é diluído
nesses eventos fictícios. Mesmo com o primeiro plano da narrativa, ocupado
pelos acontecimentos e personagens fictícios, o fundo histórico assume
importância vital na narrativa, pois é neste último que se encontram os
elementos primordiais para a configuração da atmosfera moral da obra.
O professor Esteves (1998) apresenta uma síntese dessa caracterização
do romance histórico criado por Scott, afirmando que o esquema desse tipo de
romance obedece a dois princípios básicos:
1 - A ação do romance ocorre num passado anterior ao presente do
escritor, tendo como pano de fundo um ambiente histórico rigorosamente
reconstruído, onde figuras históricas reais ajudam a fixar a época, agindo
conforme a mentalidade de seu tempo.
2 Sobre esse pano de fundo histórico situa-se a trama fictícia, com
personagens e fatos criados pelo autor. Tais fatos e personagens não
existiram na realidade, mas poderiam ter existido, já que sua criação deve
obedecer à mais estrita regra de verossimilhança (ESTEVES, 1998, p.
129).
Ainda de acordo Lukács (1977), o modelo perfeito de romance histórico é
aquele em que o leitor vive o passado em toda a sua verdade, através de um
microcosmo que generaliza e concentra o processo histórico. A efetiva
expressão artística do romance deve ser buscada na organização da narrativa,
levando em conta o mundo representado e a forma de representação, ou seja, a
história e a ficção.
O romance histórico nasce no começo do século XIX, como
conseqüência de uma série de circunstâncias históricas e sociais. Waverley,
primeiro romance de Scott, de 1814, coincide, e o acidentalmente, com a
derrocada do império napoleônico. Mata Indurán (1995, p.21), lendo Lukács,
lembra que os romances com temas históricos que se faziam anteriormente,
conforme as chamadas antiquari novels inglesas da segunda metade do século
XVIII, são históricos somente em sua aparência externa, uma vez que os
elementos psicológicos que constituem as personagens, bem como os
costumes descritos, correspondem à época de seus autores. A revolução
francesa e as guerras napoleônicas criaram os primeiros exércitos populares: o
povo toma consciência de sua importância histórica. Com a conseqüente
glorificação do passado nacional, renasce o sentimento nacionalista e um
interesse crescente por temas históricos. Scott soube interpretar, e com
grandeza, os momentos decisivos dessa história, pois não altera simplesmente
os acontecimentos históricos, mas mostra a história como “destino popular”, ou
seja, vê a história através dos indivíduos.
um considerável distanciamento ideológico e crítico entre a produção
romanesca do século XVIII e XX. Nesta perspectiva, González (2005) diz que
o romance histórico deixou de ser a mera evocação romântica da história para
se transformar numa análise do processo histórico. No romance do século XX,
fundem-se os planos histórico e ficcional, evitando, assim, que se use a história
simplesmente como pano de fundo.
Segundo George Lukács (1977), figurar a grandeza humana na história
passada é uma das especificidades do romance histórico. Deste modo, figuras
históricas são apresentadas em momentos decisivos. Nos romances atuais, isso
continua acontecendo, mas com uma especificidade histórica muito mais
abrangente: questionamentos e reajustes conceituais como os de centralização,
verdade, originalidade, em vez da mera recuperação de um momento histórico.
O romance contemporâneo não é simplesmente a revificação do passado,
como algo imobilizado pela história, mas uma revisitação que usa trajes e idéias
do presente, pois, como diz Mário Miguel González (2005), o romance histórico
é o gênero mais próximo de fazer da literatura narrativa a história-não-oficial dos
povos, particularmente dos vencidos a quem a história habitualmente negou
voz”.
Em síntese, entende-se que os romances históricos contemporâneos
apresentam elementos textuais e extratextuais que os diferenciam dos
romances históricos mais tradicionais, e, como a definição de George Lukács
não conta dessas produções (sem ignorar sua importância fundadora), abre-
se espaço para outras propostas críticas.
2.3 O Novo Romance Histórico
Em 1993, Seymour Menton, depois de ter estudado 367 romances
históricos editados na América Latina entre 1949 e 1999, publica o livro La
Nueva Novela Histórica de la América Latina: 1979 1992, onde aponta o
surgimento de um novo subgênero do romance histórico, denominado Novo
Romance Histórico Latino-Americano, que não resultou de manifesto literário.
Para o autor, o termo “Novo Romance Histórico” teria sido usado pela
primeira vez em 1981, pelo uruguaio Ángel Rama, mas foi o também uruguaio,
Fernando Aínsa, que o resgatou e aprimorou. Deste modo, em 1988, Ainsa
publicou, em El nacional de Caracas, o artigo “De la historia y la parodia”, onde
observou que a ficção possui uma peculiar forma de tratar a história, bem como
alerta a crítica sobre as transformações por que a narrativa hispano-americana
vem passando, nos últimos anos, elencando deste modo as principais
características desses romances históricos. Assim, em 1991, ao publicar “La
Nueva Novela Histórica Latinoamericana”, lembra que, diferentemente do que
acontecia anteriormente, agora não se tem mais um modelo único de romance
histórico. Com essa ruptura, a polifonia dos sentidos e das modalidades
expressivas é que vão constituir as narrativas. Também, nesse artigo, Ainsa
apresenta dez características que podem ser observadas nos romances
históricos dos últimos anos.
Como uma espécie de releitura dessas dez características de Ainsa,
Menton (1993) propõe seis características como marcas que singularizam
essas produções ficcionais. No entanto, não é necessário que o romance
apresente todas essas elas, para ser classificado como Novo Romance
Histórico.
A primeira característica refere-se à subordinação (em graus distintos
para cada romance) da reprodução mimética de certo período histórico à
apresentação de algumas idéias filosóficas. Além disso, a impossibilidade de
conhecer a verdade histórica ou a realidade, como também o caráter cíclico da
história e (paradoxalmente) sua imprevisibilidade. A presença de distorção
consciente da história, mediante omissões, anacronismos e exageros, é a
segunda marca que singulariza o Novo Romance Histórico em relação aos mais
tradicionais.
A ficcionalização de personagens históricos bem conhecidos, ao contrário
da fórmula usada por Scott, refere-se à terceira característica do Novo
Romance Histórico. Isso não ocorre em romances históricos que seguem o
modelo do século XIX, no qual o primeiro plano da narração é ocupado por
personagens fictícias. No seu memorável estudo de 1937 sobre o romance
histórico tradicional, Lukács (1977) observa que não se trata de reviver pura e
simplesmente o passado pelo único fato de revivê-lo, mas de recriar o
comportamento dos seres humanos que atuaram nos fatos responsáveis pela
configuração do passado. Isso sem perder de vista o contínuo da história e a
possível relação que esses comportamentos têm com o presente.
A presença da metaficção ou de comentários do narrador é a quarta
característica do Novo Romance Histórico. Como demonstra Roman Jakobson
(1969), a metalinguagem é uma função crítica do discurso. E, sendo a
linguagem monitora desta função, aquilo de que o romance mais se vale é a
revelação do seu projeto de montagem. Em síntese, para o teórico, narrativas
metaficcionais são auto-temáticas, ou meta-referenciais e, por circunstâncias
formais, autocríticas.
O metafictício e o historiográfico também se encontram nos intertextos
do romance, pois, através deles, as informações sobre o contexto cultural e
histórico desse encontro fictício circulam na narrativa. Entende-se a presença,
na ficção histórica do final do século XX, da quinta característica apontada por
Menton: o uso da intertextualidade nos mais variados graus. Como o teórico
afirma que a sexta marca do Novo Romance Histórico é a presença dos
conceitos bakhtinianos de dialogia, carnavalização, paródia e heteroglossia ,
logo a questão se apresenta um pouco redundante.
Para compreender as proposições de Menton, faz-se necessário lembrar
que para Bakhtin as relações dialógicas “são um fenômeno quase universal,
que penetra toda linguagem humana e todas as relações e manifestações da
vida humana, em suma, tudo que tem sentido e importância” (BAKHTIN, 1997,
p. 42). Carlos A. Faraco (1988), relendo o teórico russo, ressalta que o
dialogismo é uma das categorias básicas do pensamento de Bakhtin. Através
dela ele estuda o discurso interior, o monólogo, a comunicação diária, os vários
gêneros do discurso, a literatura e outras manifestações culturais. Segundo
esse ponto de vista, todo discurso, toda palavra é sempre e necessariamente
dialógica. E o discurso é a forma de estabelecer relações entre os distintos
agentes históricos, mas discurso com a presença de sujeitos históricos.
Assim, para haver relações dialógicas, “é preciso que qualquer material
lingüístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na
esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a
posição de um sujeito social” (FARACO, 2003, p.64).
O conceito de carnavalização é oriundo da teoria do teórico russo Mikhail
Bakhtin que, após estudar a obra de Rabelais, postula que toda cultura popular
passa por ciclos de demolição das estruturas hierárquicas e dos valores
políticos, morais, ideológicos, estéticos, religiosos. Edward Lopes (1999),
relendo Bakhtin, o carnaval, que surgiu na Europa nos séculos XVI e XVII
como uma forma vitae, pessoas simples do povo vivendo duas vidas: uma
estruturada no medo e na submissão; outra, na carnavalização. Em outras
palavras, Bakhtin visualizou o carnaval do final da Idade Média como um
festival utópico onde o riso gozava de uma simbólica vitória sobre a morte, a
opressão e a paranóia, uma segunda vida, mas essa, regida pela liberdade.
Bakhtin usa o termo carnavalização para fazer referência à transposição
do carnaval para a linguagem da literatura, uma vez que “o carnaval criou toda
uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e
complexas ações de massas e gestos carnavalescos” (BAKHTIN, 1997, p. 122).
No entanto, para entender o conceito bakhtiniano nesta perspectiva, é preciso
conceber, também, o “carnaval” enquanto “forma sincrética de espetáculo de
caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral,
apresenta diversas matizes e variações dependendo da diferença de épocas,
povos e festejos particulares” (BAKHTIN, 1997, p. 122).
Deste modo, o carnaval, que pode ser visto como uma espécie de “vida
às avessas”, para Bakhtin o deve ser contemplado nem representado, uma
vez que vive-se nele, “conforme suas leis enquanto essas vigoram” (BAKHTIN,
1997, p. 122). Nesse sentido, Bakhtin também afirma:
As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem
da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o
carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as
formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc.,ou seja,
tudo que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por
qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive etária) entre homens.
(BAKHTIN, 1997, p. 123).
Faraco (2003) define heteroglossia como um conjunto indefinido de vozes
sociais, ou o próprio conceito de voz como a interação de múltiplas perspectivas
individuais e sociais, que representa uma estratificação e a aleatoriedade da
linguagem; e mostra que não somos os autores das palavras que proferimos.
Faraco afirma que, para Bakhtin, até mesmo a forma pela qual nos
expressamos vem imbuída de contextos, estilos e intenções distintas, marcadas
pelo meio e tempo em que vivemos, nossa profissão, nível social, idade e tudo o
mais que nos cerca. Assim, no interior do complexo caldo da heteroglossia e de
sua dialogização é que nasce e se constitui o sujeito que “mergulhado nas
múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, vai se constituindo
discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-
relações dialógicas” (FARACO, 2003, p. 80-81).
No entanto, houve muita banalização no uso de termos como
dialogismo, plurilinguismo e heteroglossia, retirados do vocabulário do Círculo
de Bakhtin, mas claramente despojados de sua complexidade conceitual. Para
Cristovão Tezza (2003), a dificuldade em compreender Bakhtin fez com que as
categorias que produziu, bem como seu vocabulário, fossem adaptados ao
quadro formal à disposição da teoria literária corrente, de forma que “as
noções de dialogismo, polifonia e plurilingüismo se encaixaram sem muito
conflito em tópicos popularizados e simplificados em torno do conceito de
‘intertextualidade’” (TEZZA, 2003, p. 22).
Desse modo, Ribeiro (2003) lembra da polêmica em torno da teoria da
intertextualidade de Julia Kristeva, afirmando que:
O problema reside no específico conceito que se faz da intertextualidade,
a partir de Kristeva. Tudo se passa como se os textos dialogassem entre
si, independentemente de quem os lê e de quem os haja escrito. Entende-
se que o livro de Bakhtin, traduzido e publicado no auge da onda
estruturalista francesa, tenha sofrido em sua leitura os influxos formalistas
de tal contexto. Era a leitura esperável, talvez. Entretanto, o que Kristeva
consegue, com sua leitura, é aumentar o fetiche do texto, tornando-o,
agora, de alguma forma e ironicamente, polifônico (RIBEIRO, 2003, p.10).
Para Júlia Kristeva (1975), no entanto, o processo de leitura realiza-se como
ato de colher, de tomar, de reconhecer traços. Ler passa a ser uma
participação agressiva, ativa, de apropriação. A escritura, então, torna-se a
produção, a indústria dessa leitura que se cumprirá. Um livro remete a outros
livros, aos quais, num procedimento de somatória, permite uma nova forma de
ser, ao elaborar sua própria significação:
A linguagem poética aparece como um diálogo de textos: toda seqüência
se faz em relação a uma outra proveniente de um outro corpus, de
maneira que toda seqüência está duplamente orientada: para o ato de
reminiscência (evocação de uma outra escrita) e para o ato de intimação
(a transformação dessa escritura) (KRISTEVA, 1975, p. 132).
De qualquer forma, entende-se que um texto é voz que dialoga com outros
textos, mas também funciona como eco das vozes de seu tempo, da história de
um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças.
Estas e outras proposições teóricas, que inclusive geraram muitas
discussões, impedem de pensar as duas últimas características de Menton
(quinta e sexta) como distintas. Mesmo diante da importância da proposta do
teórico, que inclusive relacionou obras de escritores brasileiros, é muito
simplificador apenas afirmar que uma das marcas do Novo Romance Histórico
se dá através do uso de conceitos bakhtinianos como carnavalização,
dialogismo, paródia e heteroglossia, sabendo da complexidade da teoria de
Bakhtin.
Além dessas seis características que o Novo Romance histórico pode
apresentar, é preciso ter claro que esse subgênero se distingue do romance
histórico tradicional, principalmente por sua variedade. Esteves (1998, p.135)
explica que, entre 1974 e 1992, foram publicados dezenas de novos romances
históricos de alto nível, e todos “com diferentes abordagens da história,
diferentes personagens e diferentes formas”.
Ainda, na tentativa de comprovar o predomínio desse subgênero de
romance histórico na América Latina desde 1979, Menton aceita a definição de
Anderson Imbert, que data de 1951, e denomina de romance histórico a obra
que narra uma ação ocorrida numa época anterior à do autor. E, deste modo,
algumas obras que foram tratadas como históricas por outros críticos foram
excluídas da relação, como por exemplo Agosto (1989), de Rubem Fonseca,
tendo em vista dois critérios que orientaram a seleção: essa obra narra um
período vivido pelo autor, e o narrador (ou as personagens) está posto no
presente ou num passado próximo. A questão da distância cronológica do
tempo do narrador em relação ao tempo do romancista merece ser considerada.
Assim, além de Menton (1993, p. 23), rquez Rodríguez (1991, p.22)
também cita Anderson Imbert, teórico que defende a idéia de que é necessário
existir uma distância considerável entre o ato de narrar e os fatos narrados, ao
mesmo tempo que nega o caráter histórico de narrativas do tipo testemunhal em
que o romancista narra fatos que presenciou diretamente ou dos quais
participou de alguma forma.
Para Benedito Nunes (1988), ''narrar é contar uma história, e contar uma
história é desenrolar a experiência humana do tempo''. Então, a narrativa
histórica, por força da mimese, liga o tempo natural ao cronológico pelo discurso
materializado no texto, de acordo com a dinâmica do enredo:
Nada constrange o tempo ficcional a não ser a própria estrutura da
narrativa que o articula; as anacronias interrompem e invertem o tempo
cronológico, deslocando presente, passado e futuro; e a sucessão pode
contrair-se num momento único, acrônico e intemporal. Essas
modalidades de experiência temporal estão vedadas à história, sobre a
qual pesa o constrangimento do tempo cronológico. À irrealidade sui
generis da Ficção com o seu quase-passado, opõe-se o passado real da
História (NUNES, 1988, p. 25).
Márquez Rodríguez (1991), no entanto, se coloca contrário a esse
posicionamento, pois, com o enorme desenvolvimento alcançado pelos meios
de comunicação, nas últimas décadas, os acontecimentos (mesmos os
memoráveis) são absorvidos imediatamente, de modo bem diferente do que
acontecia no passado, quando os fatos produziam significados e transcendiam
com muita lentidão. Para ele, o que dá caráter histórico a um acontecimento não
é a distância entre o narrador e o autor, mas a condição intrínseca do fato que,
por sua vez influencia os acontecimentos posteriores a ele, e com os quais tem
alguma relação.
Conforme Nunes, nos romances históricos, o irreal e o passado são
equivalentes, inclusive são esses elementos que regem o pacto ficcional entre o
autor e o leitor. Deste modo, “ler um conto, uma novela ou um romance, inclui a
crença de que os acontecimentos, reportados pela voz da narrativa, pertencem
ao passado dessa voz” (NUNES, 1988, p.24).
O grande número de romances históricos que m sendo publicados é
outro fator que merece ser avaliado. Para Menton (1993), as comemorações do
Quinto Centenário da Descoberta das Américas foram um dos elementos que
fomentou o interesse pela temática histórica. Esteves (1998) lembra que outros
estudiosos também demonstraram interesse em entender essa proliferação do
subgênero a partir das duas últimas décadas do século passado. Assim, o
desejo de fuga no passado e a busca de heróis, mitos e outras marcas
características possibilitam enxergar melhor a própria realidade e passam a ser
os principais argumentos que boa parte dos críticos arrolam como principais
causas.
2.4A Metaficção Historiográfica
Linda Hutcheon (1991), no livro Poética da pós-modernidade: história, teoria
e ficção, vale-se do modelo da arquitetura pós-moderna (a teoria formulada por
Charles Jenkes e Paolo Portoghese), para iniciar discussões teóricas acerca da
poética da pós-modernidade. Diante dessas proposições teóricas, caracteriza-
se o pós-moderno na ficção a partir do que denomina de metaficção
historiográfica. Ou seja, o termo refere-se aos romances que, ao mesmo tempo,
são auto-reflexivos e, paradoxalmente, apossam-se de acontecimentos e
personagens históricos.
No pós-modernismo, declara-se e, simultaneamente, promove-se o
rompimento das fronteiras entre história e ficção; por essa razão, é mais
adequado chamá-la de metaficção historiográfica do que de ficção histórica. Até
porque ela trabalha com uma intensa autoconsciência em relação à maneira de
narrar o passado, ou melhor, de como é realizada a narração do passado.
Deste modo, não lugar para o herói: os protagonistas desse nero que
adotam a ideologia pós-moderna de pluralidade e de reconhecimento da
diferença são os marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional e,
ainda, os personagens históricos que assumem uma posição particularizada;
ex-cêntrica, em última instância.
A diferença entre a metaficção historiográfica e o romance histórico
tradicional, estudado por Lukács, está no fato de que a primeira, "não
reconhece o paradoxo da realidade do passado, mas sua acessibilidade para
nós atualmente" (HUTCHEON, 1991, p.152). Pois, para Hutcheon, a paródia é
uma das formas de incorporar o passado, textualizado no texto do presente,
assim como a intertextualidade s-moderna seria a expressão de um duplo
desejo: encurtar a distância entre o passado e o presente do leitor e reescrever
o passado dentro de um novo contexto.
A paródia intertextual presente na metaficção historiográfica traz um
sentimento de presença do passado, mas de um passado que é possível
conhecer através dos textos, tanto históricos como literários. Para Hutcheon, os
escritores a utilizam não apenas para recuperar a história e a memória, diante
das distorções da “história do esquecimento”, mas também para questionar a
autoridade de qualquer ato de escrita por meio da localização dos discursos da
história e da ficção dentro de uma rede intertextual em contínua expansão que
ridiculariza qualquer noção de origem única ou de simples causalidade”
(HUTCHEON, 1991, p. 169) .
A autora entende também que a metaficção historiográfica “não é apenas
metaficcional; nem é apenas mais uma versão do romance histórico e não-
ficcional” (HUTCHEON, 1991, p.22), mas uma manifestação artística do pós-
modernismo que, por sua vez, “é um fenômeno contraditório, que usa e abusa,
instala e depois subverte, os próprios conceitos que desafia” (HUTCHEON,
1991, p.19).
Além disso, o que a teórica denomina de pós-modernismo não deve ser
utilizado como um simples sinônimo de contemporâneo, uma vez que considera
o pós-modernismo como uma atividade cultural que pode ser detectada na
maioria das formas de arte e em muitas correntes do pensamento atual. Foi a
experiência política, social e intelectual dos anos 60 que possibilitou o
florescimento do pós-moderno, marcando a formação ideológica de muitos dos
pensadores e artistas atuais. E, desse modo, o pós-modernismo passou a ser
“fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente
político” (HUTCHEON,1991, p.20).
Na metaficção historiográfica, a linha de separação entre ficção e história
é instalada e indefinida simultânea e declaradamente, e, para Hutcheon, isso é
fundamentalmente pós-moderno. Umberto Eco (1985), no seu Pós-escrito a O
Nome da Rosa, indica três modos de narrar o passado: a fábula, a história
heróica e o romance histórico. E, inclui o romance O Nome da Rosa nesse
terceiro modo de narrar; mas Hutcheon considera o romance um quarto modo
de narrar: a metaficção historiográfica que, por sua vez, não pode ser
confundida com a ficção histórica, por comportar uma aguda autoconsciência de
seu processo de constituição.
Helena Kaufman (1991, p.146), relendo Hutcheon, lembra que a
metaficção historiográfica apresenta quatro características básicas: 1) as
referências à situação discursiva; 2) a reflexividade de tipo historiográfico; 3) o
crescente grau de intertextualidade; 4) a mistura do fantástico e do real que
sugere a abolição de fronteiras entre o histórico e o fictício.
Rogério Lima (1998), por sua vez, aponta que Hutcheon, avaliando a
relação entre discurso literário e histórico, afirma que a metaficção
historiográfica levanta questões relacionadas com: a intertextualidade, as
funções da linguagem, a forma da narrativa, as estratégias de representações,
as relações do fato histórico com o acontecimento empírico e as conseqüências
epistemológicas e ontológicas do ato de tornar problemático aquilo que antes
era aceito pela historiografia e a literatura como uma certeza.
No entanto, na metaficção historiográfica tem-se o diálogo com o
passado da arte e da sociedade, que se manifesta através da autoconsciência
teórica sobre a história e a ficção, como criação humana. Além disso, os
conteúdos e as formas do passado são reelaborados a fim de revelarem os
limites e os poderes do conhecimento histórico, além de sustentar a contradição
entre o ficcional e a referência histórica, sem tentar apontar uma solução.
Em a Poética da pós-modernidade, a autora ressalta que grande parte
dos teóricos do pós-modernismo considera a “Metaficção Historiográfica” uma
tendência cultural dominante, além de acreditarem que sua caracterização está
fundada nas conseqüências da decomposição da supremacia burguesa, por
meio da atuação do capitalismo recente e pela evolução da cultura de massa.
Rogério Lima (1998) lembra que o pós-modernismo possibilita o desafio à
progressiva monotonia da cultura de massa, pois a diferença é sua principal
marca, jamais a identidade homogênea.
Por sua vez, Marelene Weinhardt (1994) lembra que abordar
determinados romances sob a perspectiva proposta por Hutcheon é, sem
dúvida, um modo de reconhecê-los na diferença. No caso da literatura
brasileira, têm-se várias obras que podem ser classificadas como metaficção
historiográfica, como por exemplo, Memorial do Fim: a morte de Machado de
Assis (1991), de Haroldo Maranhão; Em Liberdade (1981), de Silviano Santiago;
Cães da Província (1988), de Luiz Antônio de Assis Brasil; como também Rosa
Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a incrível história de uma escrava, prostituta e
santa (1997), de Heloisa Maranhão, entre muitos outros que poderiam ser
citados.
2.5Romance histórico de resistência
Refletindo sobre a trajetória do romance histórico no Brasil, Vera Follain de
Figueiredo (1998) aponta três modelos: a clássica narrativa histórica do século
XIX, que segue os paradigmas do romance scottiano; os romances de
descolonização do século XX, denominados também de “romances de
resistência”, obras que subvertem a ótica oficial da história, dando voz aos
vencidos; e, por último, romances históricos em que a tensão da “resistência”
desaparece, mas que operam com a descrença, por saberem que é impossível
recuperar com objetividade o passado.
Nessa tentativa de traçar as várias tendências do romance histórico, é
necessário destacar esse segundo tipo de romance de que trata Vera Follain
Figueiredo, o romance de resistência, mesmo sabendo que, no Brasil, ele o
teve muita expressividade. Neles, pode-se constar a manifestação da
consciência de que “somos o outro de uma modernidade que teve a Europa
como centro e, por isso, fomos negados e obrigados a seguir um processo de
modernização compulsória que nem sempre respeitou as necessidades internas
de cada país” (1998, p. 482). A denominação “romance de resistência” tem sua
origem nas concepções de Edward Said (1995), que propõe a existência de
uma literatura de resistência capaz de rever as certezas universalizantes do
colonizador.
No Brasil, entretanto, o romance de resistência não teve a força que
apresentou na América Hispânica, pois, como Vera Follain de Figueiredo
aponta, apesar de o modernismo brasileiro ter sido um pioneiro na crítica à
visão de história gestada pelo Ocidente moderno, a revisão do passado com
propósitos descolonizadores não fertilizou de maneira significativa os romances
publicados. Deste modo, poucas são as obras que apresentam elementos que
possibilitem classificá-las como romance de resistência. Por outro lado, um
grande mero de romances históricos foi publicado nas duas últimas décadas
do século, sem apresentar a tensão própria da resistência, seguindo, deste
modo, outra tendência.
O romance de resistência é regido pela vontade de reinterpretar o
passado livre dos conceitos criados pela modernidade européia no século XIX.
De acordo com Vera Follain de Figueiredo, “é a consciência do poder da
representação, da criação de imagens e, conseqüentemente, do poder de narrar
e de sua importância na constituição das identidades das nações modernas”
(FIGUEIREDO, 1998, p.482).
2.6Outras considerações
Na literatura brasileira, a partir das últimas duas décadas do século XX,
os romances históricos passaram a seguir uma perspectiva diferente do que
vinha acontecendo, uma vez que agora eles não m mais a pretensão de
contribuir para a fundação de símbolos nacionais ou para a construção de uma
identidade nacional, nem para o desenho de um perfil de cidadão. Seus
objetivos se distanciam do discurso histórico e literário do século XIX. Assim,
independentemente da classificação desse tipo de romance, é importante
assinalar seu caráter irônico ao revisitar o passado, pois, como obra aberta,
possibilita questionamentos atualizados sobre as imagens do passado, exigindo
um leitor experiente, que não busca simplesmente um mergulho no mundo
ficcional, mas que objetiva também o mundo da informação, numa tentativa de
reescrever o dito no romance, pois pretende questioná-lo, tanto quanto é
questionado por ele:
O passado torna-se, então, não uma fonte de inspiração para uma
agradável evasão, mas pelo contrário, um tempo hetorodoxamente
revisitado, com um certo caráter perturbador, uma vez que se duvida da
possibilidade de acesso à verdade, pois a história é concebida como um
conjunto de verdades ou versões que se degladiam, sendo a história
oficial a versão vencedora sobre múltiplas outras que poderiam ser
tomadas em consideração (VIEIRA, 2000, p. 127).
A ficção literária e a história são representações do real, uma vez que
ambas são formas diferentes de invenções de histórias. As duas se completam
porque são meios utilizados para pensar o homem. Então, da mesma forma que
o romance histórico do século XIX possuía a função de registro histórico,
caminhando com o ideal da narrativa histórica, os romances históricos
contemporâneos também se aproximam da História, numa tentativa de
representar o passado, recriando um acontecimento histórico.
Conforme Tatiane Batista Alves (2001), os romances históricos que estão
sendo publicados nos últimos anos vêm se mostrando capazes de dar conta de
desafios lançados pelas novas concepções da história. O crescente interesse
da ficção pela história responde, assim, a uma demanda inversamente
proporcional observada no campo histórico, e, como conseqüência, literatura e
história acabam fazendo parte do processo do conhecimento contemporâneo,
ampliando as possibilidades de construção da imagem do passado. Sendo
função da literatura, então, desmistificar a história para descobrir uma versão
mais justa, dando “voz aos esquecidos, aos excluídos, aos oprimidos, aos
vencidos” (ESTEVES,1998, p 126).
A variedade de romances históricos presentes no mercado brasileiro
atual não permite limitar sua classificação a uma única tendência. Como
exemplo, temos as obras selecionadas para esse estudo: Desmundo, de Ana
Miranda, Os Rios Turvos, de Luzilá Gonçalves Ferreira e Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz, de Heloísa Maranhão. Apesar de apresentarem verdades
históricas plurais e refutar posicionamentos que tentam reduzir o discurso
histórico a uma única versão, eles apresentam elementos bastante singulares.
Assim, a leitura inicial de Desmundo direciona inicialmente o leitor a classificá-lo
como romance histórico tradicional, mas observando a obra com atenção, esse
posicionamento teórico é facilmente questionado. Os Rios Turvos pode ser
entendido como o Novo Romance Histórico proposto por Seymour Menton com
uma certa tranqüilidade, enquanto Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz está
mais próximo do romance s-moderno, ou seja, da proposta de metaficção
historiográfica da canadense Linda Hutcheon (1991).
3. MULHER, HISTÓRIA E LITERATURA
O século XX pode ser visto como o século da emancipação da mulher e
da literatura feminina, uma vez que seus últimos trintas anos foram marcados
por uma revolução ideológica que, com certeza, mudou a face cultural do
mundo. O feminismo tem causado uma transformação profunda na sociedade
contemporânea, que as mulheres estão conseguindo que se revisem atitudes
vitais equivocadas, que se derrubem leis antiquadas a favor de novas
constituições, como também a reavaliação de valores sociais e culturais. Neste
contexto, é que emerge a literatura feminina, comprometida em subverter as
convenções lingüísticas, sintáticas e metafísicas da escritura patriarcal.
Para Luíza Lobo (2002), o período de industrialização integrou a mulher
em todas as esferas do mundo do trabalho mas são poucas as vozes femininas
que conseguem superar a luta pela sobrevivência e escrever (ou apreciar) uma
obra literária, pesando, aí, o influxo da mídia, que tem desviado os homens e as
mulheres de um exercício mais crítico sobre a sociedade, função que a literatura
exerce de forma primordial. Portanto, as escritoras atuais, libertadas do
ostracismo dos séculos passados, introduzem suas vozes em todos os registros
da vida intelectual. Da mesma forma, suas obras abordam, e com êxito, os mais
diversos gêneros, que são enriquecidos com múltiplas perspectivas.
3.1. A política dos estudos sobre gênero
Estudos que incorporaram a mulher e a abordagem de gênero resultaram
das recentes preocupações da historiografia com a descoberta de “outras
histórias”, movimento histórico ocorridos nos anos 70 e 80, período em que a
reação contra o paradigma tradicional tornou-se mundial, envolvendo
historiadores do Japão, da Índia, da América Latina e de vários outros lugares, e
considerando que a “crise dos paradigmas tradicionais da escrita da história é
que requeria uma completa revisão de seus instrumentos de pesquisa”
(MATOS, 1997, p.74).
Em 1949, com a publicação do célebre O segundo sexo, a filósofa
francesa Simone de Beauvoir fez uma observação fundamental para o
desenvolvimento dos estudos sobre a mulher: as mulheres não tinham história,
não podendo, conseqüentemente, orgulharem-se de si próprias. Disse, ainda,
que a mulher não nascia mulher, tornava-se mulher; mas para que isso pudesse
acontecer ela precisaria submeter-se a um processo complexo, no seio de uma
construção histórica que determinaria seu papel social e seu comportamento
diante do mundo.
O segundo sexo, publicação que alavancou muitas das idéias e ações
dos grupos feministas da segunda metade do século XX, apontou para o fato de
que o território do historiador durante muito tempo foi exclusivamente de um
sexo: o masculino. Para Mary Del Priori (2000, p.217), “nestes espaços os
homens exerciam seu poder e seus conflitos, empurrando para fora destes
limites os lugares femininos”.
Assim, na década de 70, a mulher entra definitivamente em cena,
emergindo social e academicamente; porém, a inclusão da história das
mulheres como um campo de estudo não pode ser entendida como uma
operação direta e linear, uma vez que “há uma incômoda ambigüidade inerente
ao projeto da história das mulheres, pois ela é ao mesmo tempo um suplemento
inócuo à história estabelecida e um deslocamento dessa história” (SCOTT,1992,
p.75).
Em 1975, a Organização das Nações Unidas - ONU - instaurou o ano
Internacional da Mulher, o que possibilitou a fomentação de temas como
violência sexual, dupla jornada de trabalho, cidadania, contracepção e aborto.
Não se pode ignorar que, nessa época, grande parte dos países da América
Latina era governada por ditaduras militares.
Além disso, é necessário registrar a proliferação dos movimentos
femininos por melhores condições de vida, a partir da segunda metade da
década de 70, pois enquanto “os espaços tradicionais de expressão política se
encontravam fechados, elas se organizavam em formas alternativas de atuação,
muitas vezes em torno de uma luta pelo imediato que as constituía enquanto
sujeitos coletivos e políticos” (MATOS, 1997, p.75).
Maria Izilda Santos de Matos (1997) assinala que a influência mais
marcante dessa abertura da história para os estudos sobre a mulher foi a
descoberta do político no âmbito do cotidiano. A expansão desses estudos
vinculou-se a uma redefinição do político, frente ao deslocamento do campo do
poder das instituições públicas e do Estado para a esfera do privado e do
cotidiano.
Para Joan Scott (1992), a relação história das mulheres com política é ao
mesmo tempo óbvia e complexa, permitindo, inclusive, o surgimento da
categoria “gênero”. Em síntese, é possível pensar o processo em três fases: a)
a origem nos anos 60, momento em que a política desencadeou as discussões,
ações e trabalhos desenvolvidos. Nessa fase, as feministas acadêmicas
responderam ao chamado de sua história e dirigiram sua erudição para uma
atividade política mais ampla; b) entre a metade e o final da década de 70,
quando a história das mulheres afastou-se da política e, deste modo, ampliou
seu campo de questionamentos, documentando aspectos da vida das mulheres
no passado, e abrindo uma energia própria; c) na cada de 80, com o desvio
para o gênero, rompeu-se com a política, garantindo a conquista do próprio
espaço.
“Gênero” é um termo aparentemente neutro, desprovido de propósito
ideológico imediato, sendo inclusive “a emergência da história das mulheres
como um campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do
feminismo para as mulheres e daí para o nero; ou seja, da política para a
história especializada e daí para a análise” (SCOTT, 1992, p.65). O termo foi
usado para teorizar a questão da diferença sexual. Utilizado, primeiramente, nos
Estados Unidos, tem origem gramatical, diante das convenções e regras
lingüísticas produzidas pelos homens. Sua origem também está ligada aos
estudos de sociologia, quando esses se referiam aos papéis sociais designados
às mulheres e aos homens. Joan Scott (1992, p.86) alerta que, “embora os usos
sociológicos de gênero possam incorporar tônicas funcionalistas ou
essencialistas, as feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de
gênero em contraste com as conotações físicas de sexo.”
Maria Consuelo Cunha Campos (1997) faz um interessante rastreamento
do termo “gênero”. A autora expõe que o recorte da categoria gênero foi feito
pela lingüística. Assim, tem-se o conceito inserido na noção de sexo biológico,
ligado à natureza; e um conceito no pólo da cultura (lingüístico), como um
constructo.
Por outro lado, valer-se do termo “gênero”, nas línguas latinas exige
alguns cuidados para que não ocorram distorções em relação aos seus
significados, pois, na língua inglesa, palavras distintas para expressar o que
traduzimos por gênero: gender, no sentido lingüístico, e genre, no literário,
enquanto a sua tradução para línguas latinas pode representar um problema.
No entanto, é necessário ter ciência da passagem da categoria “gênero”
do seu ponto de partida lingüístico para o antropológico, bem como desse para
as Ciências Sociais e Humanas, considerando que esta última passagem, por
estar ligada à interdisciplinaridade dos estudos da mulher, permite relações da
categoria com os estudos literários. Deste modo, é necessário retomar estas
passagens, pois as mesmas vão incorporando significados à categoria:
(...) no solo lingüístico onde a antropologia a tomaria de empréstimo, a
complexidade da categoria que o se teria limitado a oposições binárias
(masculino/feminino), atuando também, como tertius, o neutro. Na tríade,
sobretudo por sua associação a línguas indo-européias, os lingüistas veriam
a co-ocorrência da oposição animado/inanimado, gica que, já à altura do
latim clássico, teria se esvaído. Ter-se-ia, então, um significado extremamente
complexo para a categoria, uma vez que ela abrigaria, por exemplo, variáveis
da ordem da distinção sexual macho/fêmea mas, ainda, da ordem do puro
arbitrário da tradição idiomática (CAMPOS,1997, p.128).
A partir do momento em que o gênero foi visualizado como uma categoria
fundamental para os estudos literários, a tradição literária ocidental passou a
sofrer alguns abalos. O conceito de cânone, a então inquestionável, foi
“desnaturalizado” pela crítica feminista. A geração feminista dos anos 70 e 80
começou a se preocupar com a exclusão da mulher, enquanto gender e
gênero(s) literário(s), analisando a correlação estabelecida falocentricamente
entre a escrita da mulher e produções literárias menores (MATOS, 1997). Desse
modo, criaram-se condições de se entender a ligação existente entre as duas
formas de marginalização a que a mulher esteve historicamente sujeita: a social
e a literária.
Desse modo, é importante lembrar que o cânone é demarcado pelo
homem branco, de classe média, ocidental, e que a mulher é inserida, nessa
cena, a partir de uma ruptura e do anúncio de uma alteridade ou diferença para
com a visão falogocêntrica. Conforme Nelly Novaes Coelho (1999), o cânone se
refere ao que foi imposto pelo patriarcado. Sendo, conseqüentemente,
falogocêntrico, tem sua pedra fundamental lançada na Idade Média: “o interdito
do sexo”:
Para uma avaliação mais justa desse processo em curso (o desafio do
cânone que regulamenta as relações homem –mulher), é importante notar
que esse interdito (que transformou o sexo em tabu) foi consagrado pela
igreja (e pela sociedade), no século XIV,durante o Concílio de Trento
(COELHO, 1999, p.10).
No século XIX, com o positivismo, que propagava a idéia do evolucionismo da
matéria, passou-se a questionar a idéia de um Deus criador; assim, destruiu-se
a idéia de que o sexo é um pecado terrível, e de que seus praticantes seriam
castigados, e até no pós-vida.
No entanto, Elaine Showalter (1994, p.31) lembra que, para a crítica
feminista, “as teorias da escrita das mulheres atualmente fazem uso de quatro
modelos de diferença: biológico, lingüístico, psicanalítico e cultural”. Cada um
desses modelos representa uma escola da crítica feminista ginocêntrica, no
esforço para definir e diferenciar as qualidades do texto da mulher, bem como a
mulher como escritora.
Para Showalter, estudar os textos de autoria feminina valendo-se de uma
teoria com base no modelo de cultura da mulher, pode apresentar resultados
mais satisfatórios, considerando que “uma teoria da cultura incorpora idéias a
respeito do corpo, da linguagem e da psique da mulher, mas as interpreta em
relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem” (SHOWALTER, 1994, p.
44). Deste modo, a autora lembra que os antropólogos, Shirley e Edwim
Ardener partiram do pressuposto de que “as mulheres constituem um grupo
silenciado, as divisas cuja cultura e realidade sobrepõem-se ao, mas o são
totalmente contidas pelo grupo (masculino) dominante”. E desse modo,
esboçaram um modelo de cultura das mulheres que, historicamente, não é
limitado. Observe-se o diagrama de Ardener
Figura 1 – Diagrama de Ardener
Conforme Showalter (1994), para os Ardener os homens constituem o
grupo dominante X, e as mulheres, o silenciado Y. Assim, aquela parte de Y
que se encontra fora de X, os antropólogos denominam de “zona selvagem”,
que é um lugar só de mulheres, proibido para os homens.
Em relação ao diagrama de Ardener, outras considerações, são também
necessárias, como por exemplo: Showalter (1994) alerta que, avaliando a “zona
selvagem” metafisicamente, percebe-se um espaço exclusivamente, masculino,
pois se tudo o que constitui a consciência masculina está dentro do círculo da
estrutura dominante, logo tudo é acessível à linguagem e estruturado por ela.
Ou ainda, analisando a ‘zona selvagem’, pelo plano experimental, percebe-se
que o estilo de vida feminino está do lado de fora do círculo dominante.
X Y
ZONA SELVAGEM
A proposição teórica dos Ardener, se aplicada aos estudos do romance
histórico contemporâneo de autoria feminina, fomenta um questionamento que
gerou muita discussão: como seria a história se vista através dos olhos das
mulheres e ordenada pelos valores que elas definem? Desse modo, Showalter
(1994) lembra que, para Gerda Lerner (1981), a história deve incluir o
desenvolvimento da consciência feminista como aspecto essencial do passado
das mulheres, além de relatos da experiência feminina através do tempo.
3.2. O papel da mulher na história do Brasil
O silêncio e a ausência da mulher nos registros históricos e no cenário
público da vida cultural são as principais marcas da condição de subordinação
da mulher brasileira numa sociedade patriarcal colonizada por europeus. Desse
modo, para os historiadores, somente através da linguagem formal dos
documentos ou petições manejadas pelos homens é possível conhecer os
desejos, as vontades, as queixas ou as decisões das mulheres que viveram no
Brasil antes do século XIX. Para Maria Beatriz Nizza da Silva (1987, p.87), por
exemplo“a linguagem masculina dos procuradores e advogados sobrepõe-se,
deformando-a, a uma linguagem feminina original e inatingível”.
A historiadora Miriam Moreira Leite (1984, p.68) lembra: os depoimentos
dos viajantes que estiveram aqui, no Brasil, no século XIX, também são
importantes registros históricos sobre a mulher. O isolamento das brancas no
meio doméstico, os vários ofícios que exerciam as negras, e o baixo rendimento
cultural são marcas que caracterizam as mulheres nesses documentos.
A primeira legislação referente à educação feminina apareceu apenas em
1827, garantindo os estudos elementares. O processo de escolarização
normalmente tinha início aos sete ou oito anos e se estendia a os treze ou
catorze, quando eram retiradas da escola para casarem. Mas a qualidade da
educação, nessas escolas femininas, era questionável. Miriam Moreira Leite,
por meio do depoimento do viajante Agassiz (1865), exemplifica bem a situação:
A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de Francês e
Música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o
mundo dos livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras
portuguesas que lhes permitem ler, e menor ainda, o das obras a seu
alcance escritas em outras línguas. Pouca coisa sabem da história do seu
país, quase nada da de outras nações, e nem parecem suspeitar que possa
haver outro credo religioso além daquele que domina no Brasil(…) Em
suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe para
elas (LEITE, 1984, p.68).
Nádia Battella Gotlib (2004) lembra que no Brasil colônial apenas os
homens tinham acesso à educação formal, não fornecida em universidades,
mas em seminários de várias ordens religiosas; mesmo assim, nem todos
podiam freqüentá-las. O autodidatismo era uma outra possibilidade de
educação e, sendo não formal, acontecia em ambiente doméstico. Assim, o
conteúdo de ensino era distinto para cada sexo; ao homem era de praxe
ensinar a ler, a escrever e contar, e à mulher, a coser, lavar, a fazer rendas e
todos os misteres femininos, que incluíam a reza.
Muitas mulheres, sobretudo as que não possuíam dote, eram internadas
em conventos; enquanto outras (com mais sorte) mantinham escolas no próprio
espaço privado, onde ensinavam, para meninas e moças, leitura, sica, corte
e costura.
Deste modo, entende-se por que o ingresso de mulheres na Escola
Normal de São Paulo aconteceu só em 1876, enquanto essas escolas recebiam
alunos do sexo masculino desde os anos 40 daquele século.
Num contexto de cultura colonial em que o analfabetismo predominava
entre os homens e mulheres e em que as tipografias passaram a funcionar
livremente apenas depois de 1808, quando a Família Real chega ao Brasil, os
poucos textos escritos por mulheres (como poesias, contos e cantos populares)
devem ter circulado oralmente. Outros textos de autoria feminina (grande parte
desses documentos também desapareceram) faziam parte do espaço
doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas, simples anotações,
orações, pensamentos, lista de deveres e obrigações.
Considerando que nos tempos do colonialismo a escrita feminina quase
não aparecia, entre a maioria de textos escritos por homens, Nísia Floresta
Brasileira Augusta publica, em 1832, Direito das mulheres e injustiça dos
homens. A obra é uma interessante adaptação do livro Vindication of the rights
of woman, da inglesa Mary Wollstonecraft (ou Mistriss Godwin). É bom lembrar
que muitos críticos consideram esse trabalho da autora, o texto fundante do
feminismo brasileiro.
3.3. A literatura feminina no Brasil
Na segunda metade do século XIX, as mulheres escritoras, mesmo
acumulando à atividade da escrita um trabalho didático, mais ou menos
profissionalizado, e, na divulgação das propostas de teor feminista, um trabalho
jornalístico, também mais ou menos politicamente engajado, ganharam
progressivamente espaço cultural, ainda que de forma bastante tímida e sem
repercussão nacional. Maria Firmina dos Reis, autora do romance Úrsula
(1850), e Narcisa Amália de Oliveira Campos, que publicou seus poemas em
1872 em um volume intitulado Nebulosas, exemplificam bem esse momento. A
primeira, sendo professora e oriunda de família humilde, em 1880 escandalizou
uma pequena cidade do interior do Maranhão, propondo uma sala de aula
mista, formada por meninos e meninas. E a outra, também professora (neste
caso no Rio de Janeiro), recebeu críticas severas por defender idéias liberais
democráticas, abolicionistas e republicanas.
Para Zahidé Muzart, no século XIX, as mulheres que escreviam ou
simplesmente desejavam ser escritoras, eram feministas:
o desejo de sair do fechamento doméstico indicava uma cabeça
pensante e um desejo de subversão. E eram ligadas à literatura. Então,
na origem, a literatura feminina no Brasil esteve ligada sempre a um
feminismo incipiente (MUZART, 2003, p.267).
Assim, resgatar alguns elementos da história do feminismo no Brasil é
um fator importantíssimo para compreender como a mulher foi conquistando
espaço na literatura brasileira, e isso tanto como escritora como na construção
das personagens femininas.
Constância Lima Duarte faz um interessante resgate desse contexto
histórico em Feminismo e Literatura no Brasil (2003). Para a pesquisadora, o
feminismo brasileiro pode ser pensado em quatro momentos, que
longe de serem estanques, (...) conservam uma movimentação natural em
seu interior, de fluxo e refluxo, e costumam, por isso, ser comparados a
ondas, que começam difusas e imperceptíveis e, aos poucos (ou de
repente), se avolumam em direção ao clímax o instante de maior
envergadura, para então refluir numa fase de aparente calmaria, e
novamente recomeçar (DUARTE, 2003, p. 03).
O primeiro momento data do início do século XIX, quando as mulheres
estavam enclausuradas nos preconceitos do patriarcalismo e imersas numa
rígida indigência cultural. Assim, a primeira bandeira levantada era a do direito a
ler e escrever, reservado até então exclusivamente ao sexo masculino.
Escritoras como a nordestina Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), a
mineira Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1860), e as gaúchas Clarinda
da Costa Siqueira (1818-1867) e Delfina Benigna da Cunha (1791-1857) são
nomes de mulheres que se destacaram na história da literatura brasileira.
O segundo momento inicia por volta de 1870 e caracteriza-se
principalmente pelo espantoso número de jornais e revistas de feição
nitidamente feminista, editados no Rio de Janeiro e em outros pontos do país,
podendo-se, assim, considerá-lo mais jornalístico do que literário.
Ainda nesta segunda fase, tem-se o registro de mulheres chegando à
formação universitária, apesar de uma resistência rigorosa à profissionalização
feminina das classes média e alta, uma vez que apenas as moças pobres
estavam liberadas para trabalhar nas fábricas e na prestação de serviços
domésticos. E, por configurar-se como instrumento indispensável para a
conscientização feminina, essa imprensa feminista “terminou por criar
concretamente – uma legítima rede de apoio mútuo e de intercâmbio intelectual”
(DUARTE, 2003, p. 09).
Também aparecem as primeiras manifestações clamando pelo direito ao
voto da mulher: em 1878, Josefina Álvares encenou a peça, de sua autoria, O
Voto Feminino, no Teatro do Recreio, no Rio de Janeiro, o que fez dela a
primeira mulher a lutar pelo direito ao voto e à cidadania.
No início do século XX, tem-se o terceiro momento, que é marcado por
lutas acirradas pelo direito ao voto, ao curso superior e à ampliação do campo
de trabalho. Desse modo, no ano de 1927, o governador do Rio Grande do
Norte, Juvenal Lamartine, antecipou-se à União e aprovou uma lei em seu
Estado, dando o direito ao voto às mulheres. Mesmo diante de inúmeras
manifestações a favor da cidadania das mulheres brasileiras, apenas em 1932
Getúlio Vargas cede aos apelos e incorpora ao novo Código Eleitoral o direito
de voto à mulher nas mesmas condições dos homens, excluindo as analfabetas;
e o Brasil passa a ser o quarto país nas Américas, ao lado do Canadá, Estados
Unidos e Equador, a conceder o voto às mulheres.
Na literatura, nesse terceiro momento, tem-se Gilka Machado (1893-
1980), que publicou, em 1918, Meu glorioso pecado, livro de poemas eróticos
considerado um escândalo por afrontar a moral sexual patriarcal e cristã;
Rosalina Coelho Lisboa (1900-1975), que em 1921 conquistou o primeiro
prêmio no concurso literário da Academia Brasileira de Letras com o livro Rito
pagão; e Rachel de Queiroz (1910-2004), que estreou como ficcionista com o
romance O quinze (1930).
A literatura de autoria feminina, nos anos 20, não teve o mesmo vigor e
divulgação que as artes plásticas produzidas pelas mulheres. Pois, nesse
mesmo período, desponta os nomes de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral nas
artes plásticas. A primeira inaugurou o modernismo em 1917, com seus
desenhos a óleo de cunho expressionista/cubista, fazendo a primeira revolução
nas artes plásticas brasileiras. A segunda inventou um novo modo de olhar a
realidade brasileira, revolucionando as artes plásticas. Nenhuma mulher
participou da semana de 22 como escritora.
No entanto, no final da década de 20, surge uma escritora que funcionará
como uma espécie de ponte entre o grupo modernista dos anos 20,
esteticamente inovador, e o grupo dos escritores engajados politicamente que
atuarão, após a Revolução de 30, pondo fim à chamada República Velha:
Patrícia Galvão, chamada Pagu, que, em 1931, com o pseudônimo de Mara
Lobo, escreve Parque Industrial, romance publicado em 1933. Os textos de
Pagu permitem refletir sobre a condição social da mulher com aparelhamento
ideológico marxista, mediante experimentações modernistas
Cecília Meireles é outro grande nome da literatura feminina brasileira
que, com o livro Viagem, publicado em 1939, conquista espaço e
respeitabilidade entre a crítica brasileira. Com Romanceiro da Inconfidência, de
1953, sua poesia ganha nova dimensão com a construção do retrato nacional
do país em momento de crise e de luta, mediante defesa de reivindicações de
caráter político que alimentaram a Inconfidência Mineira. Por fim, o conjunto da
obra poética de Cecília Meireles caracteriza-se por uma dimensão individual: a
mulher buscando sua imagem e também uma experiência de dimensão coletiva,
no campo político
A década de 70 marca o início do quarto momento, e nesse período a
história das mulheres passa a ter marcas definitivas. Encontros, congressos,
fóruns são organizados em todo o país, com o intuito de discutir a questão. O
controle da natalidade por meio do anticoncepcional aponta novos caminhos
profissionais às mulheres. Ainda em 1975, a Organização das Nações Unidas -
ONU - institui o ano internacional da mulher, que diante do estado lamentável
da condição feminina para atingir as metas contra a discriminação estende-se
por um decênio (1975-1985). Constância Lima Duarte lembra, que se
compararado com o que vinha acontecendo em outros países, onde as
mulheres estavam unidas contra a discriminação do sexo e pela igualdade de
direitos, o movimento feminista no Brasil possuía características bem distintas:
“a conjuntura histórica impôs que elas se posicionassem também contra a
ditadura militar e a censura, pela redemocratização do país, pela anistia e por
melhores condições de vida” (DUARTE, 2003, p. 15)
Na literatura, inclusive, tem-se exemplos de escritoras que se
posicionavam contra o governo ditatorial, revelando suas posições políticas,
como Nélida Piñon, que participou da redação do Manifesto dos 1000 contra a
censura e a favor da democracia no Brasil.
O quarto momento foi ainda marcado pela institucionalização dos estudos
sobre a mulher, resultado de um movimento muito bem articulado entre as
feministas universitárias, alunas e professoras, tal como ocorria na Europa e
nos Estados Unidos. E, como afirma Constância Lima Duarte,
É desta época a criação do Grupo de Trabalho sobre Estudos da Mulher da
Anpocs, e do Grupo de Trabalho Mulher na Literatura, da Anpoll; assim
como a criação do NEM Núcleo de Estudos sobre a Mulher, da PUC-RJ;
do Neim Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, na UFBA;
do Nielm Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura, da
UFRJ: e do Nemge Núcleo de Estudos da Mulher e Relações de Gênero,
da USP; entre muitos outros que se multiplicaram nas diferentes instituições
de ensino superior (DUARTE, 2003, p. 17).
Mas a produção literária feminina obteve algumas rupturas
substanciais a partir dos anos 40, quando escritoras como Cecília Meireles e
Clarice Lispector passam a fazer parte do universo literário. Nádia Battella
Gotlib (1998) lembra que a constatação da perda de identidade e a sua
problematização pela prática de uma linguagem literária são o que a poesia de
Cecília Meireles e a prosa de Clarice Lispector, efetivamente, executam.
A literatura de Clarice Lispector, conforme Nadia Battella Gotlib, pode ser
considerada um corajoso processo de desconstrução que ocorre por via da
linguagem na fértil linhagem de literatura metalingüística do século XX. Assim, o
grau de questionamento que leva a mulher até o extremo limite de sua
capacidade desconstrutora, que constitui a obra de Lispector, representa a
grande ruptura da literatura de autoria feminina.
Para compreender essa ruptura que a obra de Lispector representa na
literatura feminina, é necessário lembrar as três fases, identificadas por
Showalter (1985): feminina, feminista e fêmea (mulher). Para Lúcia Osana Zolim
(2005, p. 278), a fase denominada feminina é caracterizada pela ”repetição dos
padrões culturais dominantes”, que seria a imitação dos valores patriarcais; a
fase feminista “é marcada pelo protesto e pela ruptura em relação a esse
modelo”, ou seja, nessa segunda fase, rompe-se com o modelo de literatura
que marca a fase feminina. Enquanto a terceira fase, a fêmea, caracteriza-se
pela “autodescoberta e pela busca da identidade”. Assim, Lispector inaugura
“uma nova fase na trajetória da literatura brasileira de autoria feminina no Brasil
feminista, na terminologia de Showalter marcada pelo protesto e pela
ruptura em relação aos modelos e valores dominantes” (ZOLIM, 2005, p. 278)
Elódia Xavier (1998) lembra que com essa ruptura proposta pela obra de
Lispector vão aparecer textos em que a mulher se descobre dona do próprio
destino, pondo em questão as relações de gênero. Escritoras como Patrícia
Bins, Lya Luft, Márcia Denser e Sônia Coutinho, entre outras, fazem parte dessa
nova fase, que se estendeu até os anos 90 aproximadamente, da literatura
escrita por mulheres no Brasil.
A partir dos anos noventa (na fase fêmea), as ficcionistas brasileiras
abordam as temáticas femininas, inserindo personagens femininas em espaços
historicizados, fazendo desabrochar com naturalidade as discussões sobre
gênero e, deste modo, o leitor acaba percebendo os absurdos das normas da
sociedade patriarcal. É nessa época, também, que surgem as autoras dos
romances históricos contemporâneos, ficcionistas que procuram a
harmonização dos contrários, ou seja, que inserem no texto uma visão pessoal,
intimista, confessional e imaginária, ao mesmo tempo que estendem as
dimensões do seu mundo para um universo exterior mais amplo, como é o caso
de Ana Miranda e Heloisa Maranhão.
Como Zolim (2005, p. 278) afirma, as três fases apontadas por
Showalter não podem ser vistas como categorias fixas, “de tal modo que é
possível encontrar todas elas presentes na obra de uma mesma escritora”. O
romance de Luzilá Gonçalves Ferreira, por defender o sexo feminino de forma
quase panfletária, ilustra essa afirmação de Zolim. No entanto, a publicação de
romances históricos resulta da necessidade de se criar uma tradição feminina,
que extrapole a linguagem, atingindo o histórico, o social e o universal.
3.4. O romance histórico escrito por mulheres
Como foi dito, o romance histórico surge, no Ocidente, no início do
século XIX, mas praticamente não exemplos de romances históricos bem
conhecidos que tenham sido escritos por mulheres. No entanto, a produção
feminina floresceu num momento em que se registrou o crescimento da troca
de informações e experiências entre as mulheres da burguesia européia.
Aspecto importante, uma vez que o romance histórico possibilitou que a mulher
escritora rompesse com narrativas que se prendiam apenas ao testemunho
pessoal, possibilitando aprofundar o olhar sobre a realidade em geral.
George Lukács ignora o romance de mulheres em A teoria do romance,
já que para ele “o romance é uma forma da virilidade madura”, ou seja, o teórico
alemão associa o romance à virilidade:
Toda forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela
afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si
mesma; o caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a
atmosfera envolvendo homens e acontecimentos é determinada pelo perigo
que, ameaçando a forma, brota da dissonância não absolutamente
resolvida. A dissonância da forma romanesca, a recusa da imanência do
sentido em penetrar na vida empírica, levanta um problema cujo caráter
formal é muito mais dissimulado que o das outras formas artísticas e que,
por ser na aparência questão de conteúdo, exige uma colaboração talvez
ainda mais explícita e decisiva entre forças éticas e estéticas do que no
caso de problemas formais evidentemente puros. O romance é a forma da
virilidade madura, em contraposição à puerilidade normativa da epopéia; a
forma do drama, à margem da vida, situa-se além das idades humanas
mesmo se compreendidas como categorias apriorísticas, como estágios
normativos (LUKÁCS, 2000, p. 71).
Quando Lukács tenta exemplificar o gênero, citando diferentes romances
da literatura universal, o cita textos de mulheres escritoras e deixa fora
nomes como George Eliot, Edith Warton ou Jane Austen.
Apesar de as mulheres européias do passado escreverem como
homens, encontram-se elementos históricos de singular importância nos
romances publicados. Por exemplo, em Jane Austen, recupera-se a Inglaterra
do século XVIII nas descrições das cidades, atitudes, idéias, e até mesmo de
eventos sociais como bailes.
Mas, o romance histórico contemporâneo escrito por mulheres, difere
muito dos publicados no passado, necessitando de reflexões cuidadosas, uma
vez que, nesses textos, a mulher é o sujeito da enunciação do discurso crítico, o
que possibilita perfazer o circuito do espaço textual à prática social tendo em
vista que, conforme Márcia Hopp Navarro (1991), é somente através de uma
visão destotalizadora que se pode chegar à dupla ou múltipla colonização do
sujeito mulher na América-Latina, desmascarando a universalidade do discurso
crítico tradicional da cultura dominante.
Para a crítica feminista, na América Latina, sempre que se falar em
literatura de mulher não se pode esquecer que a construção do feminino é mais
complexa do que o entendido como “gênero” pelos estudos norte-americanos
mais tradicionais, pois aqui se tem o entrecruzamento de outros discursos
como, por exemplo, o de classe social e étnico. Além disso, na América Latina o
patriarcado à mulher um papel e um acesso à representação, ainda que
limitado.
Na condição pós-moderna, principalmente depois de 1970, é que se
possibilitou às mulheres escritoras apresentar os fatos da história sobre a
perspectiva dos vencidos ou da alteridade, e, deste modo, reverter a história
tradicional fundando a história do romance histórico de mulheres. A grande
marca desses romances é a conquista do espaço pela expressão da voz
feminina.
No Brasil, a literatura feminina atinge sua maturidade a partir de 1990,
momento em que as ficcionistas passam a buscar um discurso novo,
expressivo, de nova colocação social. De acordo com Luiza Lobo (2002), dois
fatores são responsáveis por essa mudança. O primeiro é o desenvolvimento do
mercado de trabalho, dos estudos universitários e do mundo financeiro, onde a
mulher passa a ocupar espaço considerável. O segundo é uma certa rejeição
que o leitor ávido por best-sellers de livros policiais e de ação demonstra por
aquela literatura que insiste em se manter introvertida ou psicológica, o que, por
sua vez, é conseqüência do desenvolvimento do capitalismo pragmatista. Por
fim, o romance histórico de mulheres não deixa de ser uma forma de
amadurecimento dos livros de ação, gênero que tem Sônia Coutinho como a
grande representante.
Não se pode esquecer, no entanto, que esse interesse por romances
históricos, no século XX, não é um fenômeno literário exclusivo da literatura de
mulheres. ComoVera Follain de Figueiredo aponta, o romance histórico, bem
como o policial, é um subgênero que volta a dominar a cena literária, após
atingir seu ponto alto no século XIX, uma vez que o “romance pós-moderno tira
partido da descrença na possibilidade de conhecer, objetivamente, o passado,
para fazer dele um fornecedor de temas para a ficção” (FIGUEIREDO,1998,
p.484).
Antônio Roberto Esteves (1998), numa interessante síntese dos estudos
elaborados sobre o romance histórico, e entre eles, principalmente, os trabalhos
de Seymour Menton, Fernando Aínsa e Georg Lukács, apresenta uma
listagem de romances desse gênero que foram publicados no Brasil desde 1949
até 1997. Nessa relação, encontramos um número significativo de mulheres
escritoras como Dinah Silveira Queirós, Virgínia G. Tamanini, Maria Alice
Barroso, Masslowa Gomes Venturi, Nélida Piñon, Maria José de Queirós, Ana
Miranda, Maria C. Cavalcanti, Vera Teles, Ivanir Callado, Luzilá Gonçalves
Ferreira, Raquel de Queiroz, Ângela Abreu, Heloísa Maranhão e Vera de Vives.
Provavelmente, esse número de mulheres escrevendo romances históricos já
deve ter aumentado bastante, pois, nos anos 90, as publicações de romances
com temáticas históricas explodiram. Assim, listar os romances publicados por
mulheres após 1997 poderá render bons frutos.
O Brasil possui uma tradição literária extensa no que diz respeito ao
romance histórico escrito por mulheres, já que a sua participação na
reconstrução histórica é bastante expressiva. Cristina Sáenz de Tejada (2004)
apresenta a trajetória do romance histórico de mulheres no Brasi didaticamente
organizada em três momentos: o período da pós-independência, após 1930 e
de 1950 em diante.
O período da pós-independência marca o primeiro momento. Assim, para
Cristina Sáenz de Tejada (2004), o primeiro romance histórico escrito por uma
mulher é Dona Narcisa Vilar. Legenda do tempo Colonial (1859), de Ana Luiza
de Azevedo Castro (1823-1869) que, seguindo o modelo scottiano, apóia-se em
uma lenda para recriar o início da colonização brasileira. No entanto, a obra
pode ser vista como uma versão histórica ficcional de perspectiva feminina, uma
vez que apresenta a mulher de forma original se se considerar a época em que
foi escrita.
No segundo momento, iniciado em 1930, temos algumas ficcionistas
brasileiras que publicam várias obras no modelo tradicional, ou seja, os fatos
históricos passam a ser um “telão de fundo” para recriar a sociedade colonial. A
diferença maior dos romances dessa fase dá-se no fato de que a história passa
a ter mais importância no universo ficcional, a julgar pelas descrições dos
acontecimentos históricos e pela progressiva e abundante incorporação de
dados verídicos.
Nesse segundo momento, encontram-se romances como Um Reino sem
Mulheres (1932), de Ofélia Fontes, que mesmo sendo um texto de co-autoria
com o marido é possível considerá-lo como um romance histórico de autoria
feminina, até porque, em 1941, ela publicou outro romance, O gigante de botas.
O próprio tulo, Um reino sem mulheres, é metonímia do que está sendo
discutido nos romances históricos publicados a partir de 1990.
Diamantes Pernambucanos (1933), de Josefa Farias, é outro bom
exemplo de romance histórico escrito nessa fase, que faz uma interessante
releitura da Inconfidência Mineira por meio do personagem fictício, Michel
Jobard, que se relaciona com personagens históricos daquela época. Para
Cristina enz de Tejada (2004), apesar do romance não apresentar nenhum
elemento inovador em termos técnicos, a obra tem valor por completar alguns
vazios da história da Inconfidência Mineira. Por outro lado, A Infanta Carlota
Joaquina (1937), de Cecília Bandeira de Mello, seguindo também o modelo
tradicional na reconstrução ficcional da história colonial, é bastante inovador,
por apresentar a perspectiva feminina de uma personagem secundária: Carlota
Joaquina. Trata-se de um romance biografado em que se voz à personagem
Carlota Joaquina, citam-se fontes históricas da época e recria-se a sociedade
sufocante e alienada do rei Dom João IV, numa tentativa de re-avaliar e re-
escrever a controvertida figura da Infanta Carlota Joaquina, mostrando a
grandeza de seu caráter e destacando o papel que ela exerceu na história
brasileira.
Nos anos noventa, Carla Camurati, no cinema, apresenta uma nova
leitura da infanta Carlota Joaquina com o filme Carlota Joaquina, a Princesa do
Brazil (1994). Este filme recebeu críticas, nem sempre promissoras; no entanto,
a leitura do seu sistema simbólico revela que Camurati valeu-se de fatos
históricos como pretexto para discutir outra questão: “os sonhos frustrados das
cinderelas”, colaborando na construção da identidade da mulher do final do
século XX. Apesar das evidentes diferenças entre a narrativa ficcional e a
cinematográfica, pode-se aplicar, ao filme de Camurati, algumas daquelas
características que Menton apontou como marcas do “Novo Romance
Histórico”. Do mesmo modo, Linda Hutcheon, estudando as produções que
denomina de pós-modernas, afirma que as mesmas são sempre resultado de
“uma reelaboração crítica, nunca um retorno nostálgico” (1991, p.21).
Ainda tendo Carlota Joaquina como protagonista, Francisca L. Nogueira
de Azevedo, em 2003, publicou Carlota Joaquina na corte do Brasil. Nesse
romance, resgatou-se a trajetória de Carlota desde o momento inicial da crise
política e diplomática entre Portugal e Espanha, em que a princesa atua como
mediadora, a seus últimos anos na corte do Rio de Janeiro. Na obra, a
personagem Carlota Joaquina é uma espécie de “porta voz” da mulher Carlota
Joaquina, que foi silenciada e esquecida pela história.
Compõem também essa segunda fase obras e escritoras como: Luz e
sombra (1944), de Maria Jo Monteiro Dupré; Seara de Caim (1952), de
Rosalina Coelho Lisboa, que apresentam uma outra leitura de fatos como a
guerra do Paraguai, a abolição da escravatura, a independência do Brasil e a
Primeira República. Florinda, a mulher que definiu uma raça (1938), de Cacilda
de Resende Pulino, romance histórico de cunho romântico, também apresenta a
história numa perspectiva feminina. Assim, através de uma protagonista
marginalizada, a sensual mulata Florinda, e tendo o Maranhão como o espaço
historicizado, narra conflitos sociais do século XIX. Por fim, os romances
históricos, quase a maioria, publicados até 1950, seguindo o modelo scottiano,
buscam temáticas que foram marginalizadas pela história oficial.
O terceiro momento do romance histórico brasileiro escrito por mulheres,
conforme Cristina enz de Tejada (2004), é marcado pela progressiva
explosão de romances históricos que aconteceu a partir da década de
cinqüenta. Observando a temática, a pesquisadora agrupou-os em duas
tendências: na primeira, os romances que tratam da formação nacional; e na
segunda, as obras que revisam fatos históricos e parodiam temas universais,
recuperando personagens históricos femininos esquecidos pelo discurso oficial.
Considerando que o Brasil recebeu um grande número de imigrantes, é
bem expressiva a quantidade de romances e escritoras que fazem parte dessa
primeira tendência, ou seja, romances que tratam da formação da nação
brasileira. A primeira escritora que publica um romance histórico nessa temática
é Dinah Silveira de Queiroz com A Muralha (1954), onde, num tom bastante
épico, reconstrói o descobrimento de São Paulo através da história do
bandeirante Carlos Pedroso Silveira. Seguindo esta temática, Queiroz também
publica A princesa dos Escravos (1960) e Os invasores (1965). Dinah Silveira
de Queirós é um bom referencial quando se estuda o gênero e a escrita
feminina pois, de um certo modo, ela emprega o ponto de vista das mulheres
que acompanhavam os acontecimentos do interior de seus lares.
A Rede Globo, no ano 2000, gravou um seriado em que apresentou uma
versão do romance A Muralha, o que popularizou a obra da escritora e fulcreou
as “festividades” referentes aos quinhentos anos do descobrimento do Brasil.
No entanto, é importante lembrar que o texto de Queiroz segue as marcas dos
romances históricos mais tradicionais.
República dos Sonhos (1984), de Nélida Piñón, é considerado o grande
modelo de romance histórico que trata da formação nacional. Nessa obra, são
relatadas as histórias paralelas do Brasil, do período de Getúlio Vargas (1930-
1945) e da família Madruga (imigrantes galegos que chegaram ao Brasil no final
do século XIX). O romance é narrado na perspectiva da protagonista feminina
que se encontra no leito de morte e, nas suas reflexões, o Brasil como um
país de esperança para os imigrantes.
Os romances Desmundo (1996) e Amrik (1997), de Ana Miranda, são
obras que não podem ser esquecidas quando se fala dos romances históricos
de mulheres cuja temática é a formação da nação brasileira. O primeiro narra a
trajetória de Oribela, uma órfã portuguesa enviada ao Brasil por solicitação do
padre Manuel da Nóbrega, para casar com colonos que aqui residiam. E Amrik,
retrata a colonização libanesa em São Paulo no fim do século XIX, através da
história da bailarina Amina.
A outra tendência que esse terceiro momento apresenta é constituída por
romances que revisam fatos históricos numa perspectiva feminina, além de
parodiar temas universais, recuperando personagens históricos femininos,
esquecidos pelo discurso oficial. Essa tendência conta com o nome de Ana
Miranda, autora dos romances O retrato do rei (1991), A última quimera (1995),
Clarice (1999) e Dias & Dias (2002), além dos dois já mencionados
anteriormente.
Boca do Inferno (1989), de Ana Miranda, percorreu caminho invejável:
esteve na lista dos mais vendidos (50.000 exemplares até 1998); ganhou o
prêmio Jabuti de revelação; foi publicação em diversos países (França, Estados
Unidos, Argentina e Suécia, por exemplo). Isso fez da escritora, uma das
representantes mais conhecida, dessa vertente literária.
Nesse período, também escreveram, escritoras desconhecidas como
Helena Moura, com O ouro da liberdade: história de Chico Rei (1997); Isolina
Bresolim Viana, com Masmorras da Inquisição: memórias de Antônio José da
Silva, o Judeu (1997); Tânia Jamardo Faillace, com Adão e Eva (1995) e Helena
Whately, Os seios de Eva (1998).
Portanto, avaliando o romance histórico de mulheres publicado
atualmente no Brasil, percebe-se que esse subgênero parece permitir a
autonomia da narrativa feminina, sendo responsável por rupturas significativas
quando possibilita que o olhar da mulher passe do espaço privado ao público,
do seu limite familiar em direção ao acesso ao trabalho, aos estudos, à
informação. Ou seja, sustenta a liberação da representação feminina, valendo-
se de um discurso histórico universal mais aberto e, finalmente, mais dialógico.
Diante do romance histórico, não se pode ignorar que a mulher escritora
faz parte de uma tradição literária pré-existente na memória coletiva tradicional,
ao mesmo tempo em que está limitada por uma estrutura patriarcal rígida,
representada pelo pensamento europeu. Por outro lado, a inserção das
mulheres na história implica a construção da sua consciência política e a
aquisição de sua identidade em relação à existência coletiva, o que, em geral, é
típico na literatura feminina. E, como diz Luíza Lobo (2002, p.110), “na medida
em que a mulher se torna agente no mundo de ação, e não objeto passivo do
desejo do outro, é natural que ela deseje transmitir sua experiência na ficção”.
SEGUNDA PARTE
4. UMA LEITURA DE DESMUNDO, DE ANA MIRANDA
Ana Miranda nasceu em Fortaleza, em 1951, e aos quatro anos de idade
mudou-se para o Rio de Janeiro. Em 1959, foi para Brasília, ao encontro de seu
pai, engenheiro, que trabalhava na construção da cidade. Em 1969, voltou para
o Rio de Janeiro a fim de prosseguir seus estudos de artes. Atualmente vive em
São Paulo. Iniciou sua vida literária publicando os livros de poesia Anjos e
Demônios (editora José Olympio/INL, Rio de Janeiro, 1979) e Celebrações do
Outro (editora Antares, Rio de Janeiro, 1983).
Para a literatura escrita por mulheres, a publicação do romance Boca do
Inferno (1989) divulga a escritora entre o público leitor. Trata-se de uma
recriação literária do Brasil colonial cujos personagens centrais são o poeta
Gregório de Matos e o jesuíta Antonio Vieira. É importante destacar que a
autora publicou outros romances históricos: O Retrato do Rei (1991), A última
Quimera (1995), Desmundo (1996), Amrik (1997), Clarice (1998) e Dias & Dias
(2002).
Optou-se por estudar o romance Desmundo (1996), nesta pesquisa, uma
vez que o contexto histórico em que a obra se insere é o Brasil Colonial e,
também, pelo fato de a protagonista da narrativa ser uma mulher, a órfão
Oribela.
Desmundo conta a história de Oribela, uma órfã portuguesa que em
1570, veio para o Brasil, com outras seis moças, para se casar com colonos e,
assim, garantir a pureza racial dos descendentes de portugueses. Assim, a
jovem sensível e religiosa, contra sua vontade, casa-se com Francisco de
Albuquerque, que a leva para o engenho de açúcar para ser a senhora da casa
e a mãe de seus filhos brancos. Contudo, na fazenda, moram a mãe e uma
jovem irmã de Francisco, num estranho e incestuoso núcleo familiar. Oribela
sustenta, no seu íntimo, o sonho de retornar a Portugal, o que a leva a fugir da
casa do marido em várias ocasiões. Na primeira tentativa, é estuprada pelos
marinheiros que deveriam levá-la ao navio. Furioso, o marido acorrenta-a num
galpão. Sozinha, ferida e deprimida, passa os dias chorando. Temericô, a índia
que lhe leva a comida é quem a ajuda na sua recuperação. Na segunda
tentativa de fuga, perde a esquadra mas encontra a paixão pelo homem que
mais temia, o mouro Ximeno Dias. Mais uma vez seu projeto de fuga é
frustrado, retorna à casa de Francisco Albuquerque, e, desta vez, grávida. à
luz um menino de cabelos vermelhos, a quem o marido enciumado carrega
consigo após abandoná-la. Então, Oribela, enlouquecida, coloca fogo no
engenho. Mais tarde ela reencontra o seu filho nos braços do mouro Ximeno
Dias, após saber que o marido provavelmente morreu durante a viagem.
4.1 Entre o histórico e o ficcional: a construção das personagens
De certa forma, em Desmundo, o ficcional e o histórico se intercruzam,
seguindo o modelo de romance histórico do século XIX. Assim, a protagonista e
narradora é uma personagem ficcional construída a partir do diálogo intertextual
com a carta que Manuel da Nóbrega envia ao rei Dom João, solicitando o envio
de órfãs brancas para povoar a nova terra. Também à moda do romance
histórico clássico, a estrutura da narrativa é linear. No entanto, o leitor atento
logo percebe o forte caráter polifônico da obra. Assim, a história é narrada em
primeira pessoa, na forma de monólogo, mas a voz da protagonista digladia
com outras vozes, ao longo da narrativa. No aparente monólogo, os relatos de
Oribela são constituídos de diálogos com o discurso da história, da igreja, do
patriarcado, da ciência e da história das mulheres. O romance permite pensar o
que Oribela possui de comum com outros indivíduos que viveram no século XVI,
que, por sua vez, herdaram a forma de ver o mundo a partir de estruturas
mentais construídas culturalmente.
Povoam o romance 25 personagens: as femininas, numericamente,
predominam ao longo da narrativa:
a)Personagens femininas:
1- Oribela de Mendo Curvo (personagem principal);
2- Velha (religiosa que acompanha as órfãs até chegarem no Brasil);
3 – Temericô (índia de propriedade de Francisco Albuquerque);
4 - Branca de Albuquerque (Mãe de Francisco Albuquerque, em alguns
momentos denominada de Perra);
5 Viliganda (irmã e filha de Francisco de Albuquerque, que é fruto de uma
relação incestuosa com a mãe);
6 - Dona Pollonia (órfã);
7 - Dona Urraca (órfã);
8 -Dona Tareja (órfã);
9 -Dona Bernardinha (órfã);
10-Dona Isobel (órfã que morre durante a viagem para o Brasil);
11- Brites de Albuquerque (tia de Francisco de Albuquerque);
12- Parva (louca);
13-Giralda (irmã já morta de Dona Bernardinha);
14 - Madre Jacinta (religiosa que conviveu com Oribela no mosteiro em
Portugal);
15 -Sabina (irmã morta de Urraca);
b) Personagens masculinas:
1- Francisco de Albuquerque (marido de Oribela);
2- Ximeno Dias (mouro, homem pelo qual Oribela se apaixona);
3-Padre Antolim;
4- Dom Fernão, Dom Tuão Xerrafão, Dom Cristóvão Borralho, Dom
Fernandes Dabreu, Dom Tomé Lobo e Vaz Sermento (nobres que estavam no
mesmo navio que traz Oribela ao Brasil) ;
5 - Os dois marinheiros que violentaram Oribela;
6- O Marido de dona Bernardinha.
Oribela, a protagonista do romance, é uma das órfãs que a rainha de
Portugal enviou ao Brasil para casar-se com um dos colonizadores que viviam
aqui. A análise dessa personagem revela que a mesma sofre uma grande
metamorfose no transcorrer dos relatos. À medida que vai descobrindo sua
sexualidade, procura mecanismos para romper com os padrões socias,
religiosos e morais impostos pela sociedade patriarcal. No fragmento abaixo
Oribela apresenta a condição das órfãs, enquanto mulheres, na sociedade:
Órfã, o que restava, pudesse querer se mover a tão distante país,
como se diz desse tipo de mulher que ninguém quer, tesoura aberta,
martelo sem cabo, alfinete sem ponta, que como o cão sorrateiro morde o
cavalo e mata o cavaleiro. Filhas das pobres ervas e netas das águas
correntes. As enjeitadas, as fideputas, que nem se rapta nem se dota,
mulher de cafraria. Que teve a rainha de dotar e o rei de dar ofício. Mulher
de pele branca e fala um bom português (MIRANDA, 1996, p.52).
Percebe-se um tom de amargura, na voz da protagonista, uma vez que a
mulher do quinhentismo está inserida num contexto em que sua liberdade é
interditada, ela nada é e para nada serve. O casamento é o seu único projeto de
vida, uma vez que é “mulher de pele branca” e que “fala um bom português”.
Oribela tem consciência da sua condição, razão que a faz se rebelar
contra as imposições do patriarcado:
Então lhe dei conta de minha perdição, da minha mãe morta, de meu pai
que duas vezes me quisera matar, porque era tão mau perro que
continuamente andava bado, falando o que lhe vinha à vontade, como
cão que ladrava a quantos via passar pela rua, nunca fora eu mulher
pública e nunca fora provida à custa de mulheres públicas, minha casa
fora em mosteiro de irmãs, em que vivia grande soma de moças órfãs, as
quais umas se sustentavam pelas heranças de seus pais, ou pela
bondade da rainha, outras providas pelos cabedais que perderam aquelas
que seus maridos acusaram de adultério (MIRANDA, 1996, p.59).
Por isso, deseja tanto o retorno à sua terra natal, cuspe na cara do noivo,
tenta fugir do marido. Neste contexto, Dona Brites de Albuquerque alerta a
protagonista: “Não se pode subir e descer uma escada ao mesmo tempo, de
ser uma ou outra coisa, ah, Deus sabe que quem não tem nada, nada quer e
nada vem. Uh, queres viver na cozinha ou na taberna? “(MIRANDA, 1996,
p.59). A partir daí, começa o processo de metamorfose de Oribela, pois como
ela própria diz, “No lábio da mulher deve cintilar o silêncio, onde floresce seu
saber”. (MIRANDA, 1996, p.66)
Através da relação com a índia Temericô, a protagonista consegue dar
os primeiros passos para se libertar da ditadura do corpo:
eu pintava o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me
desnudava nos dias quentes, deixava os chicos chuparem meus peitos,
dançava, de modo que dona Branca veio baixar umas regras, antes que
virasse eu uma bárbara da selva e me metesse a comer de carne humana
(MIRANDA, 1996, p.127).
Trata-se de uma situação totalmente diferente da que tinha vivido, até
aquele momento. Por exemplo, em vários fragmentos da narrativa, ela insiste
em dizer o quanto o pai, a igreja e a sociedade tentavam oprimir e controlar seu
corpo, chegando a turvar a água do banho com leite, ou ainda, fazendo-a
banhar-se com roupas.
Esse processo de transformação da protagonista torna-se evidente ao
leitor quando Oribela relata uma das relações sexuais que mantém com seu
esposo, Francisco Albuquerque:
Francisco Albuquerque se veio banhar, me beijando em frente às
naturais, que riam. Até que me quis esconder, veio ele nos arbustos,
relva, me deitou em uma mantilha, cariciou com dedo desenhando os
traços do rosto e dos meus ombros, ele me queria feliz e prenha. Assim
trabalhou sobre mim em fervor para seu sonho (MIRANDA, 1996, p.137).
Mesmo percebendo-se uma relativa liberdade na relação do casal,
beijando-a na frente das naturais, nesse relato da protagonista o se tem a
entrega da mulher ao prazer, que pela frase “assim trabalhou sobre mim em
fervor para seu sonho” fica evidente que apenas os desejos e sonhos de
Francisco de Albuquerque é que estão sendo satisfeitos.
No entanto, na sua última fuga Oribela encontra o Mouro Ximeno Dias, e
com ele conhece o amor e o desejo. Vale recuperar o fragmento que descreve o
encontro sexual do casal:
Era tal, que atraiu em tudo que há em mim e lhe fui sentir a boca, ele
despertou e me tomou em seus braços num desatino e grandíssimo
ímpeto, correndo com as mãos pelo meu corpo, dizendo suas falas de
amante, a beijar meus beiços e outras obras bem desconcertadas,
famintos afagos, a soltar o meu gibanete de homem, arrancar colchetes,
desatar os cordões da camisa, a me querer deixar feito as naturais, a mim
dava um gosto bom, fino punhal frio arrastando em toda pele, a querer
sentir que ele se fazia em mim, um prazer perseverante, tragando minhas
tentações para vencer minhas malícias, inferno glorioso, tirado de meu
corpo, de minha natureza humana, minha perdição e minha alma indo à
luz, portas se abrindo, minha boca bem aventurada, ele um todo poderoso
a me desfalecer, demandar, huhá, hio hio, digo que sim, re-si, eia, sus,
lago dos cães, hua, hua, ala, ala, saca saca, hão, hão, mas ele disse que
não, e foi dizendo que não e não, que ia causar um grandíssimo mal,
talamavez, ieramá, muitieramá, se vos eu arrebatar, de maneira que
estando ele sobre mim vi entre seus cabelos os chifres, endureci a seus
suspiros e me desfiz do encantamento(MIRANDA, 1996, p.179).
Nos braços de Ximeno Dias, Oribela descobre sua sexualidade, muito diferente
daquela do relacionamento que mantinha com o marido, “um prazer
perseverante, tragando minhas tentações para vencer minhas malícias, inferno
glorioso, tirado de meu corpo, de minha natureza humana, minha perdição e
minha alma indo à luz”. O prazer e o desejo agora são também dela. Mesmo
assim, a protagonista não consegue se libertar da idéia do sexo como pecado,
reflexos da força religiosa do mito de Eva: “estando ele sobre mim vi entre seus
cabelos os chifres, endureci a seus suspiros e me desfiz do encantamento”.
No entanto, quando Oribela percebe que foi abandonada por Francisco
de Albuquerque, que ele foi embora levando até seu filho, enlouquecida ateia
fogo na casa e em todas as benfeitorias:
Quis eu ver o incêndio até a derradeira chama, custou pouco a se
desfazer a casa e todas as suas fortalezas viraram um monte de brasas,
coisas retorcidas, nada que se pudesse conhecer por nome, de cinza,
no que queria eu dizer para mim, devia esquecer tudo no meu passado,
ardendo o fogo na madeira ardia também na minha alma, onde se
agasalhavam as renembranças (MIRANDA, 1996, p. 209).
O relato representa o grande momento de libertação da protagonista, quando
ela rompe definitivamente com o passado e o patriarcado, através do fogo da
purificação.
Por outro lado, o diálogo com as informações extraídas da história oficial
revela que Francisco de Albuquerque não consegue retornar efetivamente para
o Reino, pois ele viaja na mesma nau que levava o bispo Sardinha. E se tem
registro de que esse navio não chegou ao destino, uma vez que, em 16 de
junho de 1556, os índios caeté, que viviam no litoral do Nordeste brasileiro, hoje
estado de Alagoas, devoraram o primeiro bispo do Brasil, Dom Pedro
Fernandes de Sardinha, além dos 90 tripulantes que naufragaram com ele.
O romance também é povoado por outras mulheres interessantes, como
Dona Branca, mãe de Francisco de Albuquerque:
Tinha ela muitos olhos, de mãe, de abadessa, de falcão, os olhos de
inquirir o mais fundo, em seu calado modo via por dentro das almas,
como fosse uma sibila e devia de saber ver nas panelas de água, nas
pedras de cristal(...) sabia ela fazer partos, rezas, sabia cuidar das
deleitações do corpo, sabia dizer quando era anjo que se tornou carne, ou
diabo com corpo de mulher, que a ouvisse eu, era de bom entendimento,
bom conhecimento do evangelho, sabia prosar com as cegonhas e com
as vacas tinha parte, tirar as quentura do estômago de mulher e tirar de
mulher a sensualidade (MIRANDA, 1996, p 99).
Por meio da mãe de Francisco, Ana Miranda resgata um outro perfil de mulher
que também faz a história das mulheres. Para sobreviver no Brasil quinhentista,
Dona Branca Albuquerque, ao mesmo tempo em que é vigilante do patriarcado,
pratica atos não aceitos pela igreja, uma espécie de feitiçaria: “devia de saber
ver nas panelas de água, nas pedras de cristal”. A isso soma-se a relação
incestuosa que manteve com o filho Francisco, da qual nasceu a menina
Viliganda:
Eram ela e sua mãe como feras de Francisco de Albuquerque feito uma
alimária do mato.Mas não era vaca uma alimária? Que depois de mortas,
pelo leite que nos dão, as vacas se convertem em outras vacas do mar.
Viliganda me fazia ainda mais espizinhada, sem saber nem mesmo quem
era eu e o que fazia ali naquele fim de tudo no meio de umas vacas, sem
capela onde deitar meus joelhos e sem olhos de santa de quem se sentir
mirada, um gado entre gados, uma raposa entre lobos, tresmontada nas
lágrimas a ser mesmo a besta de meu pai, que ele dizia, que besta és,
qué? (MIRANDA, 1996, 102).
Oribela descreve a mãe e a filha-irmã de Francisco Albuquerque como
“alimária” do seu esposo, compara-as às vacas. Percebe-se que os relatos da
protagonista são tomados por uma profunda angústia, “me fazia ainda mais
espizinhada, sem saber nem mesmo quem era eu e o que fazia ali naquele fim
de tudo no meio de umas vacas”. A mãe é o protótipo da mulher do século XVI
que, sem independência econômica, vive dos favores do filho. Condições sócio-
culturais precárias a vitimizaram com o incesto.
Viliganda, por sua vez, é duplamente marginaliza pela sociedade: como
deficiente mental por problemas de consangüinidade, é isolada do grupo,
ficando trancada num quarto afastado do resto da casa. Além de ser mulher,
leva a marca do pecado, fruto da relação entre mãe e filho.
A Velha é outra personagem tratada como tipo social: “só a Velha tinha
seu baú, que fora freira, com livro de missa, outro de relatos, saias bordadas,
colete de damasco, chapéus, anáguas de seda, toucas rendadas, umas coisas
de matar de amor” (MIRANDA, 1996, p.24). Sabendo que as personagens “tipo”
encarnam traços coletivos de um grupo, através da Velha é possível repensar
importantes elementos da história das mulheres. Ela representa as vozes
silenciadas ao longo da história, “amava e admirava eu a Velha, letrada e
parecia homem santo, em chama que o se apaga logo, com muita presteza
na palavra, digna de ser reverenciada em toda grandeza da terra” (MIRANDA,
1996, p.66). Como na literatura feminina, à mulher velha é concedido o direito
de falar o que é interditado às outras; e Miranda também se vale desse
mecanismo literário na construção da personagem “a Velha”.
Entre as órfãs que chegaram no Brasil com Oribela, Dona Bernardina
também é uma personagem interessante. Apresentando tendências
homossexuais, vivencia experiências cruéis: forçada a casar-se, é depois
brutalmente prostituída pelo marido e, por fim, condenada a morrer queimada
por tê-lo assassinado.
Para Seymor Menton (1993), a ficcionalização de personagens
historicamente conhecidos é uma das principais marcas do Novo Romance
Histórico. Em Desmundo, no entanto, a maior parte das personagens é pura
produção ficcional, inclusive a protagonista Oribela. Aparentemente, dois nomes
de personagens que figuram no romance podem ter registro em documentos
históricos, ou seja, nomes pertencentes à família de nobres portugueses da
Capitania de Pernambuco do século XVI, tais como Dona Brites, esposa de
Duarte Coelho, donatário da referida capitania, que no romance nomeia a tia de
Francisco de Albuquerque. Francisco de Albuquerque, que no romance é
marido de Oribela, na história colonial brasileira aparece ao lado de Afonso de
Albuquerque (? 1515), um dos maiores navegantes e conquistadores do
século XVI, governador da Índia portuguesa de 1509 a 1515, além de pensador,
escritor e poeta. Consta, também, nos documentos históricos, que em 1503
Francisco de Albuquerque foi à Índia com Afonso de Albuquerque. Então, logo
fica evidente para o leitor que o Francisco de Albuquerque da história não é o
mesmo do romance de Ana Miranda.
O Francisco de Albuquerque do romance, no transcorrer da narrativa, luta
do seu modo para conquistar Oribela, ”e se Francisco de Albuquerque me disse
uma palavra naquele tempo, foi de estar mandando construir uma igreja a uma
santa que parecesse comigo em minha qualidade, que me protegesse dos
males e a modo de promessa para havermos um varão, seria a mãe Virgem
Maria, que Virgem viera eu” (MIRANDA, 1996, p.146). Sentindo-se fracassado
diante de Oribela e do mundo, abandona tudo, numa tentativa de retorno ao
reino:“Francisco de Albuquerque partira levando meu filho e seu saco de coisas,
a santa do oratório, vacas, vaqueiros, armas, o mesmo que dizer, não iam
tornar tão cedo. Não iam tornar nunca mais” (MIRANDA, 1996, p. 209).
4.2O jogo intertextual
O romance Desmundo foi construído valendo-se de um episódio
histórico, objeto de estudo de vários historiadores. Trata-se do envio de órfãs
portuguesas para o Brasil em 1552, atendendo a uma solicitação do padre
Manoel da Nóbrega ao rei Dom João, que oficialmente visualizava o projeto
jesuítico para impedir a miscigenação nas novas terras descobertas e, assim,
poder formar uma sorte de elite colonial. Por outro lado, a vinda das órfãs
também tinha a função de auxiliar na redução do pecado, na colônia: casando
os colonos com moças cristãs portuguesas, os jesuítas acreditavam que seria
possível controlar parte da liberdade sexual que estava sendo cultivada entre os
colonizadores. As órfãs simbolizam a moralidade da sociedade patriarcal
européia.
Mesmo não havendo registro do nome dessas mulheres, sua origem ou
seu destino, extraiu-se desse fato histórico o cerne da história de Oribela, que
seria no romance uma das 14 órfãs enviadas ao Brasil para purificar o sangue
português, ameaçado pela miscigenação com as nativas, que eram as únicas
fêmeas com que ladrões, degredados e ambiciosos colonizadores contavam,
no Novo Mundo, para satisfazer seus desejos mais imperiosos. Ana Miranda
explicita essa relação usando um fragmento textual de Manuel da Nóbrega, em
forma de epígrafe. No romance, no entanto, essa epígrafe não está isolada: um
texto de Fernando Pessoa é colocado antes. Esse primeiro jogo intertextual
aponta para as relações entre o discurso literário e o discurso histórico,
presentes no romance.
O texto de Fernando pessoa aparece na página cinco do romance
(MIRANDA, 1996, p.5):
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente,
pelas noites misteriosas e fundas. Levado, como a poeira, pelos ventos,
pelos vendavais (Fernando Pessoa).
Enquanto o texto de Manoel da Nóbrega aparece logo na seqüência
(MIRANDA, 1996, p. 7):
A’ El – Rei D. João
(1552)
Jesus
escrevi a Vossa Alteza a falta que de mulheres, com quem os
homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos
pecados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não
houver muitas, venham de mistura delas e quaesquer, porque são tão
desejadas as mulheres brancas , que quaesquer farão muito bem à
terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do pecado”.
Manoel da Nóbrega
Quando a autora coloca o texto de Manoel da Nóbrega logo após o de
Fernando Pessoa, sugere o entrelaçamento do histórico e do literário. Os dois
textos se complementam e se opõem, uma vez que o fragmento de Pessoa
permite a duplicidade de leitura, ou seja, quando expressa o desejo de “ir para
longe”, no contexto do romance, esse “longe” pode ser o Brasil ou Portugal.
Além disso, os relatos da protagonista são marcados por duas forças
opositivas: a vontade de Oribela de retornar a Portugal e o desejo da viagem
que a leva para longe das terras portuguesas. O que pode ser percebido em
fragmentos como:
...mas cada dia me fizeram mais distante de onde fora eu arrancada com
muita pena por serem meus pés quais umas abóboras, nascidos no chão,
minhas mãos uns galhos que se vão a terra e a agarram por baixo das
pedras fundas. Aquele era meu destino, não poder demandar de minha
sorte, ser lançada por baías, golfos, ilhas até o fim do mundo, que para mim
parecia o começo de tudo, era a distância, a manhã, a noite, o tempo que
passava e não passava, a viagem infernal feita dos olhos das outras órfãs
que me viam e descobriam, de meus enjôos, das náuseas alheias, da cor
do mar e seu mistério maior que o mundo (MIRANDA, 1996, p.15).
E se Francisco de Albuquerque me disse uma palavra naquele tempo, foi
de estar mandando construir uma igreja a uma santa que parecesse comigo
em minha qualidade, que me protegesse dos males e a modo de promessa
para havermos um varão, seria a mãe Virgem Maria, que Virgem viera eu.
Riscou com o do sapato um risco grande que ia de um lado ao outro,
formou a nave, a capela, a sacristia, o altar, o confessionário, a torre do
sino. Ia mandar trazer padre de missa e capelão para viverem na fazenda.
Que me deu uma dor de me sentir ficando ali para sempre (MIRANDA,
1996, p. 146).
O desejo de retorno de Oribela é constituído de duas forças: uma que
impulsiona para frente e outra que segura em direção ao que ficou para trás.
Aponta, também, para a grande busca da personagem, ou seja, a busca da
autenticidade feminina, desvencilhada das leis que regem a sociedade
patriarcal. Neste sentido, o texto de Nóbrega é a voz que determina o destino
das órfãs, que cumprirão a tarefa de colonizadoras no Novo Mundo, procriando
os filhos dos colonizadores, e povoando as terras do Brasil com crianças
brancas e cristãs.
Então, o “desmundo”, espaço exclusivo do universo feminino, é o lugar
em que Oribela rompe com o silêncio que lhe foi imposto historicamente. Deste
modo, ela trava uma luta com sua consciência feminina, pois não pode deixar
as memórias do vivido caírem no esquecimento da história:
Havia ainda em meu coração o desejo de tornar, embora fosse a cada
anoitecer mais pálida a vista da Princesa, suas torres e muralhas dentro de
mim, mais apagada a vista do rio, mais borrada a face de minhas amizades,
de Sabina, de Giralda, de dona Isobel morta. Nem em sonhos vinha mais
minha mãe, vinha sim uma terra seca de cinzas e a mulher velha, a
lembrança dos marujos se servindo de mim, o mouro em fogo avoando
sobre minha cama a tentar com sua beleza má, seus olhos de pérolas
brancas, nos meus quilates de virtude em que devia exercitar minha vida,
afastada da igreja por maldade de um esposo que queria se adentrar
pelo mato a ter para consolação um de santa a beijar no oratório,
pequena como porcelana. De bom restava as flores do Mendo Curvo e o
mel de suas abelhas. E a tanto me agarrava eu, como se fosse um fio de
seda que levasse ao mundo, estando eu no desmundo (MIRANDA, 1996, p.
138).
Showalter (1994), tratando esse espaço feminino como a “Zona Selvagem” da
cultura da mulher, afirma que o território feminino pode ser concebido como
uma grande fronteira, a independência para as mulheres, pois ele pode
representar “um acesso aberto para o mar”.
Cristiane Costa em uma resenha crítica sobre o romance publicada no
Jornal do Brasil (1996), relata que Ana Miranda confessou que durante um ano
e meio se debruçou sobre os livros A peregrinação, de Fernão Mendes Pinto,
obra que permitiu o contato com as cartas de padre Manoel da Nóbrega; os
cinco volumes da História trágico-marítima, que apresenta os relatos dos
primeiros viajantes; os capítulos de A história das mulheres no Brasil,
organizado por Mary Del Priore , dedicados ao culo 16; Os desvalidos, de
Francisco Dantas; e ainda a obra de Gil Vicente, Guimarães Rosa e Manoel de
Barros. A autora afirma, no entanto, que não contou com documentação muito
detalhada e assim soltou as rédeas da imaginação: "as imagens foram tiradas
do meu próprio museu do inconsciente" (COSTA, 1996).
Desse modo, percebe-se, nos relatos de Oribela, as mesmas vozes que
surgem quando lemos sobre a história das mulheres no Brasil colonial, cuja
sociedade procurava, conforme Mary Del Priori (1997), domesticar a mulher no
seio da família, privando-a de qualquer poder ou saber ameaçador e regulando
seus corpos e suas almas:
Ora ouvi filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar
que o disse em um acesso de lera, nunca mais deixar os cabelos soltos,
mas atados,seja em turvante, seja trançado, não morder o beiço, nem
fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e
nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar
os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem
punho cerrado, que ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem
pá pá pá nem lari Lara (MIRANDA, 1996, p.67)
Pode-se dizer que o romance é uma releitura da história da colonização
brasileira, em que questões ignoradas pela história oficial, como a existência
feminina, a religiosidade, o amor e a sexualidade, são abordadas no interior da
narrativa. Para Claudia Espíndola Gomes (2000), o discurso ficcional permite a
desestabilização do discurso da história, e as histórias podem, então, ser
narradas a partir de um ponto de vista não focalizado pelo último.
Dessa forma, Desmundo possibilita uma reavaliação crítica da condição
feminina quando introduz Oribela em um espaço histórico e cultural que
possibilita a eclosão de discussões sobre relações de gênero, pois a ficção de
autoria feminina pode ser “lida como um discurso de duas vozes, contendo uma
estória dominante e uma silenciada” (SHOWALTER, 1994, p. 53).
No entanto, o acesso à história dos primeiros anos de colonização quase
sempre se deu através dos documentos deixados pelos cronistas e viajantes
portugueses que escreveram sobre o Brasil; entre esses documentos, História
trágico-marítima é um dos principais. Em Desmundo, o jogo intertextual com
essa obra é sutil, mas permite o leitor ingressar em formas de ação e do
pensamento do século XVI:
Despimos dos vestidos os corpos para banhar nossas roupas rotas e
encardidas que levaram às barrelas umas escravas naturais e quando
fomos para as abluções muito se espantaram que nos queriam desnudar e
nos meter na água cálida, qui, si, si, mela, mela, qui, hi, hi, hi, aça, açu, a
nos querer tirar as forças ou matar, jogando nossos corpos dentro de um
bacio grande e nos pedindo as camisas, paieu? Paieu? Meu pai mandava
turvar a água do banho com leite para não ver o meu corpo de criança, uma
vez alevantei da gameleira e ele me castigou com tantas vergastadas que
verti sangue pela boca. Água nas mãos e na fuça, fidalga. Água no mais,
puta (MIRANDA, 1996, p.43).
O fragmento anterior também remete a outra questão: o ritual do banho, que em
várias passagens do romance foi retomada:
quando chegamos vi que no rio se banhavam as naturais, desnudas de
suas vestes, no que me meti sem medo pelas admoestações de madre
Jacinta, no mosteiro, de que a água era maléfica, que se umedeciam os
pêlos e se abriam furos na pele por onde se metiam maus humores e
miamas e os espíritos danados (MIRANDA, 1996, p.137).
Segundo o historiador francês, Georges Vigarello (1985), em O limpo e o sujo:
uma história da higiene corporal, o culo XVI assiste a uma crescente
desconfiança em relação ao banho. Originalmente causado pelas grandes
pestes, esse medo de contaminação estende-se à própria fraqueza dos corpos:
os portugueses chegam aos trópicos acreditando que o calor e a água
produziam fissuras por onde a peste entraria.
A descrição do primeiro banho de Oribela e das outras órfãs revela a
opressão feminina, resultante de uma sociedade estruturada no patriarcado,
que assentava a identidade feminina no “corpo”, que definia as ações,
sentimentos e pensamentos das mulheres. Mas Oribela percebe que o ritual
entre as mulheres nativas era diferente, ou seja, a protagonista começa a se
conscientizar de que as mulheres podem ser donas do seu corpo. Situação
muito significativa, considerando que o corpo é a base para a imposição de
padrões e normas de comportamento, como a beleza, a pureza, a sujeição, a
passividade e a dependência. Assim, o comportamento de Oribela em relação
ao banho vai se modificando, da mesma forma que ela também se
metamorfoseia: “aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que havia um
frescor sobre a pele e se entranhando nela, uma luva de vento, um véu de seda
fria, que a roupagem abafava e incendiava” (MIRANDA, 1996, p.126). Nesta
perspectiva, o banho simboliza o reinício de uma nova vida, ou seja, o
nascimento de uma nova mulher, uma vez que ele pode ser concebido como
uma espécie de batismo. Sabendo que o corpo feminino era disciplinado para
satisfazer o modelo de honestidade e beleza da família patriarcal, Oribela rompe
com esse estatuto. Neste sentido Marelena Chauí (1984) lembra que o corpo da
mulher é colocado no limite entre a natureza e a cultura, seguindo os interesses
e o imaginário social, ele vai sendo interpretado ideologicamente; dialética que
exige que ora ele seja escondido, ora mostrado.
Dos documentos produzidos pelos primeiros cronistas e viajantes
tematizando a terra brasileira, a Carta de Pero Vaz de Caminha, considerando
que as fronteiras entre ficção e história, real e imaginação narrativa desse
documento são bastante frágeis, é responsável pelos principais estereótipos
sobre esse novo mundo. E, em Desmundo, o mais produtivo jogo intertextual se
dá com a referida carta:
Por meus brios e horrores não despreguei os olhares das naturais, se
defeito de natureza que lhes pudessem pôr e os cabelos da cabeça como
se forrados de martas, não pude deixar de levar o olhar as suas vergonhas
em cima, como embaixo, sabendo ser assim também eu, era como fora eu
a desnudada, a ver em um espelho. Nunca fora dito haver mulheres assim,
nem pudera inventar em minhas ignorâncias. Que nunca houvera mulher
nenhuma nesta terra. Quem então de parir naquelas terras? Os machos
por ordem de Deus. E por onde? (MIRANDA, 1996, p.39).
O fragmento acima corresponde à primeira descrição do indígena feita por
Oribela, o qual dialoga com a abordagem de Caminha:
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.
Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em
direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os
arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem
entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava
na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um
sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas
vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande
de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais
peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza (CAMINHA, 2005, p.3)
Tanto na Carta quanto no romance, surge o espanto diante do outro. No texto
de Caminha, este estranhamento revela-se na abundância de detalhes
utilizados na caracterização do nativo. Mas, em Desmundo, a descrição das
nativas nuas leva Oribela a questionar o fato de ter sido ignorada pela história
oficial a presença da mulher na colonização brasileira: “nunca fora me dito haver
mulher assim”. Não se pode esquecer que em Desmundo o ponto de vista é o
da jovem mulher e a comparação, em espelho, é inevitável: são observados os
cabelos e as “vergonhas” de cima e de baixo. Sendo a própria personagem a
cronista-mor do enredo, é possível conceber a voz de Oribela, também, como a
voz que está reconstruindo a história das mulheres.
Considerando que “a intertextualidade não condiciona o uso do
código, como também está explicitamente presente em nível do conteúdo formal
da obra” (JENNY, 1979, p. 6), em Desmundo, as relações intertextuais, que
compõe o romance, às vezes, são diretas, em outros momentos, apenas
referências muito sutis. Desse modo, o leitor atento reconhece a presença dos
degredados no Brasil-colônia: “muitos em torno des eram degredadas, o que
se sabia por não terem suas orelhas, cortadas a modo de castigo no reino e
para que os conhecêssemos sempre e sempre soubéssemos que não eram
como pêssego” (MIRANDA, 1996, p.26), assim como os nomes de Dona Brites
e Francisco de Albuquerque, na história oficial, passam a se situar no tempo e
no espaço da narrativa: o Pernambuco do século XVI.
Nesse mesmo universo ficcional, é possível encontrar também resquícios
de uma concepção medieval do Velho Mundo:
Depois acabava a Terra e do oceano se podia cair numa negra voragem,
porque se trocaram grandes falas opostas entre oficiais, uns dizendo ser
redonda a Terra, coisa já provada, do que dava mostras a redondeza da lua
e do sol, Referir a pequenez do sol com a grandeza da terra? Tudo era
diferente, como a água e o vinho. Que se via do alto de um monte o fim da
terra e era liso e reto. E acabava no mar oceano. Mas sendo redonda ou
quadrada, do mesmo modo se podia cair no abismo, em se passando ao
lado de baixo. Mas que havia de ter uma cerca feita pela misericórdia, para
que não caíssem as naus, disso comprovara a verdade uma frota saída de
San Lúcar que fora por um lado e tornara por outro, no que disseram ter a
esquadra despencada no abismo ao dobrar o mundo, sobre o que houve
muitos desentendimentos (MIRANDA, 1996, p. 19).
Além da falta de confiabilidade de navegar no mar, o fragmento aponta para
uma determinada resistência às novas concepções que colocaram em dúvida a
forma da terra. Considerando que o romance se estrutura numa releitura
histórica de perspectiva feminina, a autora vale-se da intertextualidade com a
figura de Cristóvão Colombo, o descobridor das Américas, para questionar essa
resistência ao novo: “e um oficial que viajara o oceano disse, o mundo era feito
uma pêra que numa parte dela houvera Deus ali posto uma teta de mulher.
Teta?Vai-te d’hi, arama, vas” (MIRANDA, 1996, p.19). A expressão “terra com
teta”, remete à idéia de feminino; então, a resistência diante das novas
concepções científicas pode ser comparada ao temor que homem tem do
feminino, ou seja, o medo do corpo da mulher e de tudo que ele representa.
Oribela propõe superação dos limites que a sociedade patriarcal impôs ao corpo
feminino, do mesmo modo que Cristóvão Colombo fez com os mitos sobre a
terra, ”mas o piloto da nau disse poder provar que a terra era redonda, sabia
ele medir seu âmbito e circunferência” (MIRANDA, 1996, p.19).
O jogo intertextual, em Desmundo, busca também textos de autores
consagrados no universo literário como Guimarães Rosa e Gil Vicente. Assim,
com Guimarães Rosa o diálogo ocorre através da linguagem empregada na
obra. No ano de 2000, na Universidade Federal de Santa Catarina, Claudia
Espíndola Gomes fez um interessante trabalho de análise dessa linguagem na
sua dissertação de mestrado que intitulou Oribela: o uno que se desdobra.
A obra de Gil Vicente também transita por toda a narrativa de Miranda.
Pode-se dizer que o Auto da Barca do Inferno funciona como uma espécie de
“pilar” na construção de Desmundo. que na obra gilvicentina a cena
representa a margem de um rio, o rio do outro mundo, com duas barcas prestes
a partir: uma delas, conduzida por um anjo, leva ao paraíso; a outra, conduzida
por um diabo, leva ao Inferno. rios personagens vão chegando à praia (são
os mortos que acabaram de deixar o mundo): um fidalgo acompanhado pelo
seu moço, que traz uma cadeira; um agiota com uma grande bolsa; um parvo;
um sapateiro carregado de formas; um frade trazendo uma rapariga pelao e
armado com uma espada; uma alcoviteira carregada com “seiscentos virgos
postiços e três arcas de feitiços”; um judeu com um bode às costas; um
corregedor com processo, logo seguido por um procurador com livros; e, para
terminar, um homem que caba de morrer enforcado e que vem ainda com a
corda ao pescoço. Todas estas personagens vão para o Inferno, com exceção
do parvo, que é salvo pela sua simplicidade de espírito e que fica na margem,
no purgatório, esperando a vez de ser admitido no paraíso. Após este desfile de
pecadores, chegam quatro cavaleiros de Cristo, os quais morreram em poder
dos mouros. Estes também são, imediatamente, acolhidos na barca da
salvação.
Oribela veio para o Brasil trazida por uma barca, nau denominada de
Senhora Inês, juntamente com outras personagens, e entre elas as demais
órfãs, fidalgos, padre e a Velha:
...e se disse ter a nau mais de quatrocentas pessoas, sem contar escravos,
uns tantos que ficavam na terra do Brasil, outros que seguiam às Índias,
para onde iam uns viciosos, que antes se metiam os fidalgos para fazer
suas mercas e ficar muito ricos, mas agora eram ladrões, chatins cobiçosos
que lá iam fazer coisas feias (MIRANDA, 1996, p.22).
Diziam que era aquela gente tanoeiros, carvoeiros, caldereiros,
cavaqueiros, soldados, sangradores, pedreiros, ferreiros, calheiros,
pescadores, lavradores, eiros, eiros, ores, ores, e tudo o mais necessário
para se fazer do mato uma cidade (MIRANDA, 1996, p.25).
Conforme os relatos da protagonista, esta terra era seu “desmundo”; dialogando
com o texto vicentino, o diabo estava encaminhando para a “barca do inferno”
quase todas as almas que aqui chegavam, assim, poucas conseguiam se
manter puras, garantindo a salvação: “agradeci por não ter recebido o mais ruim
de todos os males, que fora ser escolhida para casar com o mouro para ter
minha alma direta ao fim de todos os infernos” (MIRANDA, 1996, p.61).
A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, tem como personagem principal
Inês Pereira, moça bonita, solteira, pequeno-burguesa. Seu cotidiano é
enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se,
vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Mas despreza o
casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento
refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar.
Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se
com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser
boa ao lado de um humilde camponês. Inês se deixa levar pelas aparências e
ridiculariza Pero Marques. Casa-se com Brás da Mata, mas sua vida torna-se
uma prisão: ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês
sofre e chega a desejar a morte do marido. Ele morre covardemente na guerra,
e Inês casa-se com Pero Marques. que satisfaz todos os seus desejos e chega
até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante, sem saber,
porém, que era para isso.
No jogo intertextual com a Farsa de Inês Pereira, Ana Miranda discute a
condição sócio-histórica da mulher do Brasil colonial, que tinha o casamento
como único caminho para a ascensão social, situação vivida pelas órfãs, entre
elas Oribela. A protagonista despreza o primeiro pretendente, “o homem me
veio mirar e no rosto lhe cuspi” (MIRANDA, 1996, p.56), e comete adultério,
envolvendo-se num romance com o mouro Ximeno. Eis os fatos resultantes
dessa intertextualidade com a Farsa de Inês Pereira:
Muito provou o Ximeno sua fala, tendo a mim naquela alcova sem
nenhum destrato ou requerimento, uma tão boa apuração que me fazia
um vazio no peito quando não estava ele perto. Tanto que atinei poder
estar sendo encantada por feiticeiro(MIRANDA, 1996, p. 175).
Dialogando com o Auto de Mofina Mendes, de Gil Vicente, o romance
garante produções de sentido fundamentais para a história das mulheres do
Brasil colonial. "Mofina" significa "desgraça" e "mendes", por medes, met ipsen,
significa "pessoa"; d "a desgraça em pessoa". Oribela se assim, “a
desgraça em pessoa”, como pode ser visto no fragmento:
... o homem sempre perdoa, haveria de me perdoar a alma de Ximeno ser
eu causa de suas desgraças, como sempre fora eu assim nascida, que há
dois tipos de mulheres, as que vêm para servir e as que vêm para a
discórdia, assim como mares mansos e bravios, assim como
lagartos com rabo e sem rabo eu das piores serventias, mesmo às outras
mulheres”(MIRANDA, 1996, p.213).
Para o patriarcado, Oribela é símbolo da desgraça e perdição dos homens, a
mulher que importuna a todos, como instrumento do demônio: “mulheres são
mau agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e
pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas, nausear as
tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear por causa alguma, pelo
prazer, feito os demos” (MIRANDA, 1996, p.14). Mas, quando a autora resgata
Mofina Mendes, rompe definitivamente com essa situação, uma vez que o jogo
intertextual da narrativa permite a inversão dos valores.
Outro importante elemento da obra vicentina presente no romance é a presença
do Parvo. No teatro vicentino os parvos têm função cômica, causada pelos
disparates que dizem. No entanto, muito que refletir e analisar nesta figura,
que se converte numa espécie de comentador independente da ação, pondo à
mostra, com os seus disparates, o ridículo das personagens. Ele jamais se
apresenta a si próprio, assim como não é observado pelo interesse que em si
mesmo possa oferecer. A sua função constante é a de obter efeitos cômicos, a
partir de situações alheias a ele. A novidade, em Desmundo, é aparecer uma
Parva, figura feminina que, sendo louca, pode desnudar as relações patriarcais
sem ser silenciada. Quando valores e ações que tolhem os direitos das
mulheres são anunciados pela Parva, também mulher, produz-se um efeito de
denúncia:
De noite escutei a voz da Parva na rua. Estúpida, hediputa can, que te
mandem arrancar as arnelas, rota e triste, uma serpe por mulher, puta
nascida de mosca encharcada no mais imundo monturo que se pode
encontrar em pântanos e em masmorras, quem te deu atrevimento para
cuspir nas coisas de noivado e de Deus? E vens com afrontas (MIRANDA,
1996, p.62).
Com a Parva ocorre a carnavalização bakhtiniana, pois o narrador se vale do
cômico para destacar situações absurdas ou patéticas, vividas pelos
personagens. À Parva é permitido levar, ao espaço público, o que para outras
mulheres é interditado, no espaço privado. É fácil compreender a questão,
resgatando o drama vivido pela Velha, com uma mordaça, pois entendiam que o
conhecimento numa mulher era coisa do demônio:
Andara dizendo umas coisas da terra, do bispo vil, do governador, que os
erros das gentias eram menores que os dos cristãos, as putas eram ovelhas
de Jesus assim como as casadas, cujas eram putas de um homem só,
ficavam as pessoas atônitas daquilo que ela falava e de querer fazer sua
própria justiça, enquanto a Parva podia gritar nas ruas todas as verdades
(MIRANDA, 1996, p.132).
Como foi dito, a louca e a velha sempre desempenham papel importante na
literatura feminina, pois, diante das interdições impostas pelo patriarcado, por
meio da voz da louca e da velha é permitido denunciar alguns dos absurdos
cometidos em relação à mulher nessa sociedade, o que pode ser visto no
fragmento anterior.
4.3A Linguagem
Com Oribela: o uno que se desdobra, de Claudia Espíndola Gomes
(2000), tem-se reflexões produtivas acerca da linguagem utilizada na obra. A
necessidade de romper a barreira que separa uma escritora da atualidade de
uma personagem nascida quatro séculos exigiu uma pesquisa histórico-
lingüística. Conforme Cristiane Costa (1996), a autora revelou que escrever
Desmundo "foi como aprender uma nova língua”, e, ainda, “há muito tempo,
tinha a idéia de escrever um livro com frases e expressões dessa época".
Então explica: "queria usar coisas autênticas, mas descobri que, dessa
forma, a tarefa seria impossível, pois para dizer o que pretendia, precisava me
impregnar dessa linguagem e usá-la como se fosse minha. Não poderia traduzir
minhas idéias para um português arcaico, tinha que pensar de forma arcaica".
Surge, então, um pastiche da linguagem quinhentista.
É importante lembrar que, quando Fernando Ainsa (1991) apresenta as
características do Novo Romance Histórico, a tentativa de arcaizar a linguagem
foi apontada como um dos elementos que caracterizam esse subgênero.
Desmundo é um romance polifônico; assim, os relatos de Oribela são
constituídos por múltiplas vozes. A narrativa não apresenta discurso direto, mas
há diálogos e toda a ação é apresentada através da voz que Oribela organiza, e
que descreve com minúcias o Brasil colonial, o que pode ser visto como uma
certa ruptura da narrativa tradicional:
As órfãs faziam sinal-da-cruz, iam arrumar marido bom e principal, ou então
uns fideputas desdentados, trolucotores surdos, furtamelões, bêbados,
cornos, condes das barlengas, bem-me-queres mal-me-queres, lobo nas
ovelhas, caminho de espinhos, azemel de estrebaria, mulo namorado, fosse
o que fosse, desde que dissesse: Senhora, quereis companhia? Mas
ordenara a rainha, que seriam uns gentilhomens (MIRANDA, 1996, p.21).
Como o romance é uma narrativa feminina, a força elocutória masculina é
destituída, e, conseqüentemente, determinadas verdades históricas passam a
ser contestadas também, uma vez que ocorre a re-apropriação dos primeiros
relatos epistolares das terras brasílicas, agora, pela voz de uma mulher. Essa
reinvenção da história, introduzindo uma narradora em primeira pessoa, permite
contar os fatos históricos de sua própria perspectiva, como se ela tivesse vivido
os acontecimentos relatados:
...uma escrava saiu da porta e assombrada vi que suas vestes rangiam,
os pendentes nas orelhas muito bem esmaltados, fosse uma fidalga num
coche ao paço ou às Endoenças, alma a caminho do inferno, seu colo
supunha jóias de ouro, margaridas, que são Jesus no colo de boas
mulheres e pérolas no das putas e das regateiras (MIRANDA, 1996,
p.35).
Retomando o fato de que a linguagem da narrativa é um pastiche do
quinhentismo brasileiro, Claudia Espíndola Gomes (2000) analisa o título do
romance como uma palavra não-dicionarizada, mas que expressa com
naturalidade a modo como a protagonista vê o seu novo mundo, o que fica mais
claro considerando o seguinte fragmento da obra: “de bom restava as flores do
Mendo Curvo e o mel de suas abelhas, e a tanto me agarrava eu, como se
fosse um fio de seda que levasse ao mundo, estando eu no desmundo”
(MIRANDA, 1996, p. 138). Sendo a obra uma releitura da história da
colonização brasileira que apresenta a mulher também como sujeito dessa
história, desmundo passa a ser uma espécie de um anti- mundo feminino.
Sempre que Oribela se refere à nova terra, utiliza palavras que são
iniciadas pelo prefixo de negação “des”, e entre elas algumas palavras o
dicionarizadas e outras não: “despejado lugar” (MIRANDA, 1996, p. 16), “terras
desabafadas” (MIRANDA, 1996, p. 26), “desventura” (MIRANDA, 1996, p. 1),
“desrumo” (MIRANDA, 1996, p. 138) , “desmundo” (MIRANDA, 1996, p. 138) e
“desmoveu” (MIRANDA, 1996, p. 151). Esse recurso confere à linguagem um
matiz arcaico e ao mesmo tempo popular, resultado da contínua evolução
histórica de uma língua viva. Mas, o uso do prefixo de negação também remete
à negação e à desconstrução dos valores patriarcais possíveis nesse mundo
anti-feminino.
O romance de Ana Miranda tem pontos convergentes com a obra de
Guimarães Rosa, do mesmo modo que o imortal mineiro não adota a fala
local, mas recria a linguagem do sertão de forma depurada e eclética, reunindo
à língua corrente neologismos, arcaísmos, estrangeirismos, termos eruditos,
populares e indígenas, bem como provoca uma íntima dependência entre som e
sentido, produzindo um efeito sonoro bastante poético.
A autora de Desmundo inovz na linguagem de sua obra, uma vez que a
entende como sensível e o mundo como sentido: “acabada a água do armário
do camarote e chuva para tomar, atinava eu que ia beber água fresca, água
fresca, água fresca água fresca águafrescáguafresca larari lara, molhar as
mãos, as ventas, derramar o que fosse, se contar gota por gota, não ouvir mais
gente bradar por água, molhar meus cabelos em um chafariz” (MIRANDA, 1996,
p.11), ou ainda, “esquecidas ali, guardadas, esperando esperandesperando, de
doer os pés, uxte, os joelhos de reza” (MIRANDA, 1996, p. 46).
Por meio das antíteses, o retorno a outros textos torna-se inevitável,como
por exemplo, o trecho “que são Jesus no colo de boas mulheres e pérolas no
das putas e das regateiras” (MIRANDA, 1996, p. 35), que remete o leitor à
história das mentalidades e aos protótipos de mulher forjados pela sociedade
colonial: a santa mãezinha e a mulher sem qualidades. Mas, valendo-se das
antíteses como recurso literário, além de inserir a obra no barroco brasileiro,
essa figura de linguagem possibilita representar as contradições interiores da
protagonista que busca o mundo, mas se encontra no desmundo. A
protagonista é movida pelo desejo de retorno ao velho continente e,
conseqüentemente, pelo saudosismo:
...havia ainda em meu coração o desejo de tornar, embora fosse a cada
anoitecer mais pálida a vista da Princesa, suas torres e muralhas dentro de
mim, mais apagada a vista do rio, mais borrada a face de minhas amizades,
de Sabina, de Giralda, de dona Isobel morta (MIRANDA, 1996, p.138).
Interessante é que o sentimento de saudosismo da protagonista não se
sustenta naquilo que ficou para trás, mas na fixidez que esse passado
representa e que ela acredita querer: “por medo da fome, da orfandade, do
abandono, quis que tornasse Francisco de Albuquerque” (MIRANDA, 1996,
p.212). Provavelmente, isso acontece porque a protagonista não entende,
enquanto mulher, as transformações vividas.
Lembrando que, para Mikhail Bakhtin (1997), uma das características do
gênero romanesco é a diversidade social de línguas presentes no romance, a
obra de Ana Miranda representa a ngua do colonizador, formada pelas
diversidades lingüísticas presentes no século XVI em terras brasileiras. Desse
plurilinguismo surgem expressões em latim, mescladas à fala/oração de
Francisco de Albuquerque, e expressões em língua indígena, na fala de
Temericô, “Faz frio, faz calor, faz lua, chove, e um dia ela disse, pe-î-é tenhé pe-
îabap-a, que era, Fugiste à toa, sem necessidade” (MIRANDA, 1996, p.127).
O teórico russo afirma que “o plurilingüismo introduzido no romance
(quaisquer que sejam as formas de sua introdução), é o discurso de outrem na
linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do
autor” (BAKHTIN, 1997, p.127). Em Desmundo, o confronto de línguas pode
significar também a mestiçagem no processo de colonização. Por exemplo,
quando Temericô conta a Oribela sua história anterior à chegada dos
portugueses, este conflito começa a se anunciar. Veja-se o fragmento:
Era de um povo gentio muito antigo que fora lançado fora de sua terra das
vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do sertão
pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós perderam as terras
que tinham senhoreado muitos anos e lhes destruíram as aldeias, roças,
matando o que lhes fazia rosto, sem perdoar a ninguém, em frontaria com
os contrários numa crua guerra, onde se comiam uns aos outros, os que
cativavam ficavam escravos dos vencedores, numas batalhas navais,
ciladas por entre as ilhas, grande mortandade e se comiam e se faziam
escravos, até chegar o tempo dos portugueses. O-io-akypûer-i, um trás
outro, trás de um o outro, mokõi, mokõî. Tinga (MIRANDA, 1996, p. 119).
No entanto, o leitor percebe o clímax desse conflito no fragmento em que
Oribela descreve o ataque a uma aldeia, realizado por Francisco de
Albuquerque e seus homens:
Cercaram os Cristãos a aldeia, com suas armas apontadas, postos em suas
ordens e em suas capitanias, com muita soma de guiões e bandeiras, os
selvagens dispararam flechas que tombaram um dos animais e se fez uma
tal grita que pensei estar na batalha do fim do mundo, por fora dos naturais
andava uma grande cópia de homens correndo de uma parte a outra com
suas lanças nas mãos a meterem os naturais em cerco, mais uma fileira de
gente, avançaram, entraram na aldeia, davam com as espadas nas cabeças
dos velhos e das mulheres ou metiam uns disparos para todo o lado, de
modo que o terreiro deles se foi cobrindo de mortos, uns nus e vermelhos,
outros de suas capas e cabelos negros e vermelho de sangue, de miolos e
uns pedaços de gente, até o fim. A pobre da Temericô enxergava tudo,
parada na mata feito uma pedra, depois de algumas gritas se curvou sobre
a barriga e gemeu feito cantasse, uma coisa estranha de se ver. Mandei
assentar no meu lado, o que ela fez. Não sabia que Brasil sente dor
(MIRANDA, 1996, p.144).
São vários os documentos históricos que falam sobre a exploração de nativos
pelos portugueses, no quinhentismo brasileiro, mas, narrado por Oribela, o fato
é levado ao leitor desnudado, possibilitando uma visão mais crítica do
processo de colonização.
4.4 A superação do discurso religioso a serviço do patriarcado
O discurso religioso se manifesta, no interior da narrativa, de duas formas
em especial: a) reforçando os conceitos e ações que definiriam o papel feminino
na sociedade; b) quando referências a Deus, quase sempre estão
relacionadas à idéia de castigo.
Sendo um romance polifônico, ecos do discurso religioso podem ser
ouvidos na voz da própria personagem narradora, quando deixa emergir as
vozes de seu pai, de Francisco de Albuquerque, de membros da Igreja ou da
Velha:
Quanto mais se chega à casa de Deus, mais se há tentações. Pouco faltava
para o fim de nossos sofrimentos. Tínhamos em uma parte o corpo e noutra
o coração, saído de nós, uxte, por onde? Disse a Velha. Ide, meninas,
lavar essas carinhas de ladrilho feitas e os olhos de betume, que a
juventude lhes faz muita vantagem, davante, antes que venham as unhas
de um ladrão, que laranjeiras são para se colher laranjas assim como órfãs
são para casar, guardai vossa virtude entre muralhas de pedra, meninas,
antes que venham as unhas de um ladrão a vossas pérolas (MIRANDA,
1996, p.24).
Na voz da Velha, encontram-se resquícios de uma sociedade estruturada no
padrão ideológico do patriarcado do colonialismo brasileiro, que, por sua vez,
seguia o modelo europeu. Assim, o destino das órfãs não era nada
esperançoso: para a mulher o casamento era imposto como único projeto de
vida abençoado por Deus e, nessa perspectiva, a beleza da juventude e a
virgindade eram os dotes sagrados. O fragmento em que Oribela narra sua
primeira relação sexual com Francisco de Albuquerque ilustra bem essa
condição: “ele me abriu, explorou e olhando no lume a cor do molhado, de
sangue, abanando a cabeça disse. Verdades dissestes e agora és minha (...) te
pagarei com espírito o estares ao cabo do mundo, para me esposar. E te darei
tudo”( MIRANDA, 1996, p.77).
As condições em que o homem vive no Novo Mundo levam à inversão
dos valores religiosos, sendo que o poder do homem e o de Deus se
confundem:
Trabalharia para nos ver a salvo porque a terra, o ar, os ventos, as águas,
os gados, os peixes, as aves, as plantas e tudo o mais que hoje é criado
nos haveria de morder tanto sem piedade que aquele que vivia no céu
nos poderia valer. Um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do
céu em que se afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca
brava e a terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao nosso país
e quem aqui fosse o mais forte e seria o rei do mundo (MIRANDA, 1996,
p.85).
Na voz de Francisco de Albuquerque, conforme o fragmento anterior, percebe-
se que o discurso se vale do conflito entre o antropocentrismo e o teocentrismo
quinhentista.
Além disso, o que se refere a Deus, principalmente no que diz respeito ao
castigo divino, é sempre visto de maneira hiperbólica pela personagem
narradora: ”agradeci não ter recebido o mais ruim de todos os males, que fora
ser escolhida para casar com o mouro para ter minha alma direta ao fim de
todos os infernos” (MIRANDA, 1996, p.61). O uso da hipérbole também se faz
presente na construção das imagens visionárias que povoam os delírios da
personagem central: ”...fiquei um grande tempo pensativa com o sangue gelado
de medo do que podia ter o mouro, chifres debaixo do chapéu e patas nas botas
de cordovão” ( MIRANDA, 1996, p.61).
4.5Mulher e sexualidade
Em Desmundo, a sexualidade feminina é enfocada numa perspectiva
histórica bastante interessante: a protagonista procura romper com concepções
que tentam manter o corpo da mulher a serviço da sociedade patriarcal e do
projeto de colonização do quinhentismo brasileiro. No entanto, Oribela percebe
que a falta de controle da sexualidade feminina coloca em perigo o projeto da
Igreja e do Estado. Ou seja, como mulher, ela descobre a sexualidade e quer
livrar-se do jogo masculino.
Deste modo, a autora resgata a figura da “santa mãezinha”, inspirada na
devoção européia à Virgem Maria, cujo modelo de feminilidade correspondia à
castidade e ao sacrifício pela sociedade:
E se Francisco de Albuquerque me disse uma palavra naquele tempo, foi
de estar mandando construir uma igreja a uma santa que parecesse
comigo em minha qualidade, que me protegesse dos males e a modo de
promessa para havermos um varão, seria a mãe Virgem Maria, que
Virgem viera eu (MIRANDA, 1996, p.146).
Era necessária a purificação da mulher, numa terra como a do Brasil, onde o
Diabo reinava, era mais urgente.
A mulher sem qualidade, a mulher pública, aquela que não se
enquadrava no papel que lhe era destinado, passava a ser demonizada e
excluída. Mas a personagem Parva desmascara essa situação:
Fizemos tudo trigosas, fomos avante, tornamos atrás, fugindo de Santanás,
correndo da língua da Parva que sempre nos avistava e gritava. Almas
enganadas, mancebas de danados apetites, putinhas contritas, vai a
mancha, vai a velha parida, vai a freira fodida, vai a virgem
destapada, vão açoitar com vosso amor os cornos desse país e mais coisas
de tal tormento, aquele entre os lobos. Blasfema das mulheres, dos padres,
da virgem Maria e de Deus (MIRANDA, 1996, p.14).
A grande antítese da narrativa é “Santa mãezinha” X mulher pública, e, por meio
dela, a autora questiona o papel da mulher na sociedade patriarcal:
...pensara ele que eu ia ter tais bodas? Me dizia ter feição de puta, por meu
nariz afilado e a minha rebeldia na língua e o estar sempre sonhando, coisa
de mulher pública. Que morrera minha mãe de desgosto por adivinhar a
filha. Que meus chifres da cabeça rasgaram o ventre de minha mãe
(MIRANDA, 1996, p.74).
Heloneida Studart (1993) lembra que os homens vêm exercendo o comando
sobre o corpo da mulher milênios, pois, quando perceberam que possuíam
força física superior, passaram a utilizar o corpo da mulher, como e quando lhes
desse vontade: arrastando-as pelos cabelos, como nos tempos das cavernas,
ou subjugando-as com uma autoridade que os códigos lhes conferiam ou, mais
recentemente, acenando para ela “com suas obrigações de mulher”. Em
Desmundo, o leitor pode questionar a relação de poder que envolve o corpo
feminino. Assim, é possível destacar dois momentos em que o corpo feminino é
violado de forma agressiva: o primeiro se refere à consumação do casamento
de Oribela e Francisco:
Logo se tornou num cachorro que vi sobre uma cadela de rua, um ganso
numa gansa, no Mendo Curvo, ou um padre na freira, no mosteiro, arfando,
me pegar pelo cabelo, se prestar a mais nada, uma muito estranha coisa
para ser criação de Deus, quem seria que inventou fêmea e macho e fazer
uns mais fortes e umas mais débeis que nem meus braços davam conta
dos dele nem as pernas dele se apiedavam das minhas, que eu estava a
temer de me quebrar os ossos e rasgar pela metade, de forma que
demorou mais que um torneio, embora fosse demorado de menos, tal era a
impressão, a uivar e amiúde, um barco em ondas altas e desmoronou sobre
mim (MIRANDA, 1996, p.77).
O segundo momento corresponde à narração do fato em que Dona Bernadinha
é violentada por um grupo de homens, autorizados pelo seu marido, o que pode
ser observado nos fragmentos que seguem:
Quis eu saber de que vinha uma grita de machos na porta da casa de dona
Bernardinha. O perro do esposo dela fazia servir sua mulher por dinheiro,
que se fez uma espera na frente da vivenda e dela se ouviam os gritos,
deles os risos, uns davam por isso uma moeda, outros um pedaço de uma
qualquer coisa, não havendo ali um padre que se pusesse fim a tal
desmando e chegando Francisco de Albuquerque lhe pedi que encerrasse o
tal assunto mas seu coração se desmoveu sem piedade (MIRANDA, 1996,
p.151).
Os relatos de Oribela registram uma visão da sexualidade feminina alicerçada
na ditadura do corpo, nada pertencendo totalmente à mulher, nem sua alma,
nem seu corpo: “meu pai mandava turvar a água do banho com leite para não
ver o meu corpo de criança, uma vez alevantei da gameleira e ele me castigou
com tantas vergastadas que verti sangue pela boca” (MIRANDA, 1996, p.43),
relata a protagonista, tanto que “tirar de mulher a sensualidade” era uma das
nobres tarefas da Dona Branca.
4.6 As vinhetas
As gravuras que ilustram a obra são partes integrantes do romance, elas
estando intimamente ligadas ao processo de construção de sentido da narrativa.
Assim, as dez vinhetas que introduzem as diferentes partes do livro fazem parte
da linguagem que compõe a narrativa.
Assemelhando-se aos antigos bestiários medievais, foram desenhadas pela
autora, o sendo meras ilustrações, mas uma ntese imagística da narrativa
que transita entre dois códigos distintos e suplementares: o verbal e o visual.
Isso introduz novamente a questão de que, em Desmundo, é preciso
compreender que os signos são elementos sensíveis e operam sobre os
sentidos.
Colocando as nove primeiras vinhetas lado a lado, sem alterar a ordem em
que as mesmas aparecem na obra, é possível perceber com mais tranqüilidade
que elas estão sugerindo significados:
Figura 2 - A chegada Figura 3 - A terra Figura 4 - O casamento
Figura 5 - O fogo Figura 6 - A fuga Figura 7 - O Desmundo
Figura 8 - A guerra Figura 9 - O mouro Figura 10 - O filho
As vinhetas apresentam a forma de uma sereia que vai se transformando,
conforme a temática da parte da narrativa que ela representa. Como pode ser
observado na gravura 2, que se refere à parte do romance intitulada “A
Chegada” (parte 1), a sereia se apresenta mais sedutora. Enquanto na gravura
7, “O Desmundo”, em que Oribela, mesmo diante do estranhamento cultural do
outro, do Novo Mundo, incorpora alguns desses elementos: “eu pintava o rosto
de urucum, comia do prato das naturais e me desnudava nos dias quentes,
deixava os chicos chuparem os meus peitos, dançava...” (MIRANDA, 1996,
p.127), e toma consciência de que retornar ao Velho Mundo e a tudo o que ele
simbolicamente representa, está cada vez mais distante: “Havia, ainda, em meu
coração o desejo de tornar, embora fosse a cada anoitecer mais pálida a vista
da Princesa (...) nem em sonhos vinha mais minha mãe, vinha sim uma terra
seca de cinzas e a mulher velha, a lembrança dos marujos se servindo de
mim...” (MIRANDA, 1999, p.138). A vinheta apresenta uma sereia dentro de um
barco, com um grande ventre, e mãos saindo pela boca.
Elas compõem um catálogo de seres fabulosos e oníricos que reiteram a
desconcertante alteridade do Novo Mundo, descortinado pela visão de Oribela,
ou seja, a história do colonialismo, além de incluir a mulher, passa a ser contada
na perspectiva de uma mulher. Assim, do mesmo modo que Oribela vai se
metamorfoseando, na narrativa, a sereia também vai modificando suas formas.
Desmundo condensa-se na vinheta final, onde a sereia se transforma
numa árvore, cujas folhas são grandes olhos abertos:
Figura 11 - O fim
Aqui Oribela supera os limites do desterro e da orfandade e se torna a árvore
da vida. Fincada no chão, ela se desvencilha da opressão patriarcal,
compreendendo o seu sentido na história. Então, os seus olhos-folhas,
começam a olhar sob outra óptica a condição da mulher na sociedade.
4.7 Conclusão
A leitura inicial de Desmundo faz o leitor perceber que a obra comporta
muitos elementos do modelo de romance histórico do século XIX. No entanto, a
forma como a mulher é apresentada, rompe com a concepção tradicional de
ficção histórica. Pois Desmundo é mais que uma simples releitura do passado,
uma vez que se aproxima da ficção mais do que do discurso oficial
documentário. Assim, o leitor, através de um processo de construção mimética,
crê que os acontecimentos contados são realmente passados no século XVI,
inclusive porque a autora tenta reproduzir a linguagem utilizada na época.
Narrado em primeira pessoa, numa espécie de fluxo de consciência
feminino da personagem órfã Oribela, o romance apresenta a mulher como
ousada, superando os estereótipos de passividade do passado, mas sem ferir o
estatuto da verossimilhança literária e do possível histórico. Ainda, se se levar
em consideração que, para se libertar das “algemas” do patriarcado e poder se
lançar livremente às “aventuras” da vida, Oribela corta os cabelos e se veste de
homem, pode-se dizer que a protagonista é uma mulher-guerreira. Então,
apresentando a mulher como heroína do romance, Desmundo propõe a
renovação do épico.
5. UMA LEITURA DE OS RIOS TURVOS, DE LUZILÁ GONÇALVES
FERREIRA
O romance Os Rios Turvos, publicado pela editora Rocco em 1993, da
pernambucana Luzilá Gonçalves Ferreira, em 1992 recebeu o prêmio Joaquim
Nabuco de biografias da Academia Brasileira de Letras. A autora também
publicou outros romances históricos: A Garça Mal ferida: a história de Anna
Paes D’Altro no Brasil holandês (1995), pela Editora ; No Tempo Frágil das
Horas (2004), pela Editora Rocco.
Os romances históricos da escritora abordam a temática feminina. Em
No Tempo Frágil das Horas, é narrada a trajetória da baronesa Antonia Carneiro
da Cunha, pernambucana que viveu no século XIX. nos dois primeiros, as
protagonistas são mulheres que viveram no Brasil Colônia. Conforme
depoimento da autora, a Editora solicitou um romance que tratasse da
invasão holandesa no Brasil, o que a remeteu à necessidade de pesquisar o
período histórico em que as obras estão inseridas. Mas foi procurando conhecer
Anna Paes D’Altro, figura histórica que iria protagonizar o romance que lhe foi
solicitado, que se deparou com a mulher de Bento Teixeira, Filipa Raposa. O
interesse por essa personagem fez com que escrevesse primeiro Os Rios
Turvos e mais tarde voltasse à história de Anna Paes D’Altro, em A Garça
Mal ferida.
Em Os Rios Turvos, tem-se um romance histórico sobre Bento Teixeira, o
primeiro poeta brasileiro, autor da Prosopopéia, e de sua mulher Filipa Raposa,
que teria sido a grande paixão da vida do poeta e a responsável por seu destino
trágico: a própria mulher o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício, acusando-o de
judeu e mau cristão, além de instigar outras pessoas a fazerem o mesmo. Filipa
trai o marido por várias vezes, obrigando-o a viver em lugares diferentes de
Pernambuco no início da colonização brasileira. Bento mata a esposa, mas,
antes de morrer, ela lhe entregou um maço de cartas que havia escrito para ele
durante os anos que viveram juntos. Na viagem em que fugia, Bento perde
essas cartas antes de lê-las . Refugia-se no mosteiro de São Bento, em Olinda.
Em 12 de agosto de 1595, recebe ordem de prisão. Começam os julgamentos e
Bento prepara documentos para sua defesa. Em 22 de outubro de 1595, é
mandado a Lisboa, acusado pelo Santo Ofício de praticar heresias, ter o sangue
daqueles que mataram a Cristo. Sempre que interrogado pelos inquisidores, diz
ser inocente, mas acaba cedendo às imposições do tribunal: reconhece sua
culpa. Renega e abjura de suas ações e crenças visando à liberdade que não
vem, e Lisboa torna-se seu grande cárcere. Em julho de 1600, morre e, um ano
depois, a Santa Inquisição concede licença para que se publique, em Lisboa, a
primeira edição de Prosopopéia.
5.1 A construção das personagens
O romance Os Rios Turvos (1993) trata de uma questão genuinamente
barroca, e isso desde o título, nucleado pela idéia do turvo. Nessa perspectiva,
o conflito entre Bento e Filipa tem fulcro duplo: o histórico (cristão velho X
cristão novo) e o literário (poesia épica X poesia lírica). Filipa é o discurso da
subjetividade e do lirismo, num contexto em que as grandes epopéias,
,representadas por Bento, se asseguravam na preferência do cânone da época.
Diante desse forte caráter metaficcional, e por tratar de fatos e personagens
históricos bem conhecidos, a obra pode ser classificada como Novo Romance
Histórico. Logo, o distanciamento entre o tempo da publicação do romance e da
história narrada século XX e culo XVI, respectivamente é fator
fundamental para o desencadeamento das significações subjacentes ao texto, o
que possibilita a construção de personagens femininas complexas, permitindo
uma nova leitura do espaço da mulher na história brasileira.
O universo ficcional tem como protagonistas Bento Teixeira e Filipa
Raposa, personalidades históricas do Brasil Colonial, além de outras 69
personagens masculinas e 17 personagens femininas. Em sua maioria o
personagens históricas, que Luzilá Gonçalves Ferreira ficcionalizou no processo
de construção da narrativa.
Ficcionalizando e humanizando personagens históricas como Bento e
Filipa, desfaz-se o plano monológico da narrativa, como se as duas
personagens não fossem objetos das palavras do autor, mas veículos das
próprias palavras, dotadas de valor e poder plenos. A passagem em que Filipa e
o marido, a caminho de Igarassu, percebem a metamorfose da cor das águas
do riacho ilustra bem esse jogo polifônico:
Aquele mesmo riacho penetrava na vila, encontrava o manguezal ao
da colina, beirava as casas, despontava adiante negro de lama,
continuando o seu percurso através das matas, agora irremediavelmente
sujo.(...) Aquilo lhe parecera de mau augúrio: como um curso de água
transparente podia se tornar, em tão pouco espaço, aquele caldo preto e
malcheiroso?(...) Ele olhara o mangue escuro onde o curso de água
penetrara, os caranguejos se mostrando e se ocultando nos buracos, o
filete de água negra em meio à lama: o riacho no qual se haviam lavado
pouco. (...) Ela se clou, os olhos fixos num ponto distante. Bento
diminuiu a marcha do cavalo, olhou-a longamente.
Em que estás a cuidar, Filipa?
Penso no que aconteceu à água. No que foi preciso para que se
transformasse.
Fez uma pausa, baixou a voz:
No sofrimento que lhe causou esta metamorfose (FERREIRA, 1993,
p.46-47).
As vozes que constituem o discurso de Filipa Raposa denunciam a exclusão da
mulher na história do colonialismo brasileiro, por meio da negação da sua
sexualidade, criatividade e sensibilidade, pois “não importa o que sua
personagem é no mundo, mas acima de tudo, o que o mundo é para a
personagem e o que ela é para si mesmo” (BAKHTIN,1997, p. 46).
Diante de um universo ficcional povoado por um número de personagens
bastante significativo, num minucioso trabalho de pesquisa, procurou-se fazer o
levantamento das personagens do romance para, deste modo, identificar quais
são extraídas dos documentos históricos. E, conseqüentemente, identificar as
de construção puramente ficcional.
O referido levantamento foi realizado nas obras de José Antônio
Gonsalves de Mello, Luis Roberto Alves e Galante de Sousa. Didaticamente nos
valemos das legendas: EP (Estudos Pernambucanos: crítica e problemas de
algumas fontes da história de Pernambuco, de José Antônio Gonsalves de
Mello), GN (Gente da Nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, de José
Antônio Gonsalves de Mello), C (Confissões, poesia e inquisição, de Luis
Roberto Alves), BT (Em torno do poeta Bento Teixeira, de Galante de Sousa) e
RT (Os Rios Turvos, de Luzilá Gonsalves Ferreira). Os resultados foram os
seguintes:
A) Personagens femininas/históricas:
1- Ana Lins (mulher de Bartolomeu Ledo): EP (p.16), C (p.37) GN (p. 85, 100 e
p.105);
2- Dona Brites: GN (p.84);
3- Dona Francisca (pensão): GN (p.106);
4- Filipa Raposa: GN (p. 93, 96, 97, 110);
5- Inês Fernandes (filha de Maria Paiva): GN (p.110);
6- Isabel Raposa (amante do Frei Damião): GN (p.100);
7-Maria Lopes (viúva de mestre Afonso): C (p.41), GN (p.104);
8- Leonor Rodrigues (mãe de Bento): GN (p.86), C (p.40);
9- Maria Maciel (viúva): EP (p.28), GN (p.105);
10-Maria Peralta (mulher de Thomaz): GN (p.103 e 110).
b)Personagens femininas/não históricas:
1-Violante Fernandes (tia de Filipa);
2-Avó de Bento;
3- Brázia;
4-Isabel (escrava);
5-Madre Mariana;
6-Maria Gonçalves;
7-Andressa Fernandes (mãe de Filipa).
C) Personagens masculinas/ históricas:
1-Agostinho: GN (p.110)
2-Ambrósio Fernandes Brandão: EP (p.31), GN (p. 92);
3-André Gavião: EP (p.24);
4-Antônio Barbalho: C (p.37), GN (p.105),
5-Antônio Lopes Sampaio EP (p.35), GN (p.97, 101);
6-Antônio Teixeira: C (p.32);
7-Antônio Valadares: GN (p.105).
8-Bartolomeu Ledo: GN (p.105)
9-Bento Teixeira: (em todos os textos);
10-Bispo Antônio Barreiras: BT (p.11);
11-Bispo Dom Antônio Barreira: EP (p.24, 29), GN (p.90);
12-Braz Mata: EP (p.16), C (p.34,37), GN (p.85);
13-Diogo de Barbuda: GN (p.105);
14-Diogo de Couto: EP (p.26,29), BT (p.11), GN (p.90, 104);
15-Diogo de Freitas: GN (p. 104, 106);
16-Domingos Fernandes: EP (p.48), C(p.35, 37), GN (p.85, 114);
17-Duarte Dias: GN (p.95, 100), C (p.41);
18-Fernão: EP (p.18), GN (p.101);
19-Francisco L. Correa: GN (p.97);
20-Francisco Pardo (rabino): EP (p.44), GN (p.109,110);
21-Francisco Souza Almeida: EP (p.35), GN (p.101,104,107);
22-Frei Damião da Fonseca: EP (p.17, 35), GN (p.86, 95, 98, 100,104);
23-Frei Duarte Pereira: GN (p.98);
24-Gaspar Rodrigues: C (p.38), GN (p.86);
25-Gaspar Rodrigues Cartagena: EP (p.17), C(p.38), GN (p.86);
26-Gonçalo Dias: GN (p.104);
27-Heitor F. de Mendonça: GN (p.86);
28-Henrique Rodrigues Barcelos: EP (p.30), GN (p.91);
29-Gerônimo Pardo: GN (p.105);
30-João Álvares Pinheiro (médico): EP (p.49), GN (p.115);
31-João Batista: EP (p.27), GN (p.111,112);
32- João Luiz (cirurgião): EP (p.25), GN (p.100);
33-João Pinto: C(p.33), GN (p.108);
34-Jorge Camelo: EP (p.35), GN (p.97);
35- Jorge Thomaz: EP (p.17), C (p.35), GN (p.105);
36-Juiz Gaspar Francisco: EP (p.35);
37-Luis de França: EP (p.43), GN (p.104,106);
38-Manoel Álvares Tavares (inquisidor): EP (p.45,48), GN (p.101,110);
39-Manoel Cabral (advogado de Bento): GN (p.102);
40-Manoel de Barros (Pe da Cia de Jesus): EP (p.30 e 39), GN (p.91);
41-Manoel Esteves (médico judeu): GN (p.110);
42-Manuel Álvares de Barros (pai de Bento): GN (p.100)
43-Martim Leitão: EP (p.25,31), GN (p.92,97);
44-Miguel Fernandes: EP (p.30), GN (p.91);
45-Miguel Nuno: GN (p.102);
46-Paulo de Valcaçova: EP (p.35), GN (p.97,101,104);
47- Paulo Serrão: GN (p.91), C (p.42);
48- Pe. Amaro Gonçalves: EP (p.29);
49- Pe Antonio Ferreira: EP (p.28);
50- Pe. José Moranela: EP (p. 28);
51- Pero Lopes: RT (p.123, 145), C (p. 33, 42), GN (p.93, 94);
52- Pero Lopes Galego RT (p.164), GN (p. 98,100,104);
53- Thomaz Babitão: EP (p.45), GN (p.103,110);
54- Thomaz Pinel: GN (p.97);
55- Tristão Barosa Carvalho: C (p.36, 39), GN (p.85,88,103).
d) Personagens masculinas/ não históricas:
1- André (filho mais velho de Bento);
2- Antônio Ribeiro (livreiro);
3- Boa Ventura do Sagrado Coração;
4- Cosme Neto;
5- Jerônimo Martim;
6- Pe. Antônio Andrade;
7- Pe. Domingos Gonçalves;
8- Pe. Gaspar Neto;
9- Pe. Inácio do Amor de Deus;
10-Pe. Manuel da Consolação;
11- Pedro Rafael ;
12-Rapaz que dança com Filipa;
13-Simão Vaz;
14-Velho João Paz.
O universo ficcional do romance é povoado por 69 personagens
masculinas e 17 femininas. Apesar de as personagens femininas serem minoria,
a narrativa, que tem como fio condutor o processo de inquisição de Bento
Teixeira, busca resgatar a história das mulheres no período colonial brasileiro.
A grande protagonista da história é Filipa Raposa, apresentada como
uma mulher que detém um considerável grau de erudição: leitora de Gil Vicente,
Camões e Ovídio, professora, além de escritora de poemas de amor. Possui,
ainda, uma aparência física bastante singular: olhos verdes e cabelos
vermelhos.
que nada consta nos documentos históricos sobre sua aparência
física, ao conceder a Filipa olhos verdes e cabelos vermelhos, o romance
remete o leitor a algumas relações semânticas bastante interessantes, como a
falsidade, que os olhos verdes simbolizam, e a paixão, ou o fogo da inquisição,
do vermelho dos cabelos da protagonista.
O romance histórico contemporâneo, enquanto ficção, faz uma releitura
da história do período colonial brasileiro, dando voz a grupos que foram
silenciados e oprimidos na história oficial. Os Rios Turvos, então, recuperam
alguns elementos da história das mulheres e dos judeus através do
relacionamento de Filipa e Bento. Relatando os conflitos, angústias e desejos
sexuais de Filipa, a história oficial vai sendo desconstruída na medida em que
se constrói a narrativa . Desse modo, a narrativa ficcional permite uma visão
histórica mais crítica e menos opressora. Tome-se, por exemplo, o momento em
que Filipa, ainda adolescente, se confessa com o padre Manuel da Consolação,
relatando ao religioso as cenas amorosas, as trocas de carícias que imaginava
ter com seu namorado, por perceber que o padre Manuel da Consolação não
conseguia conter o desejo que a situação despertava nele: “logo entendera o
fascínio que exercia sobre ele, um homem de quem dependiam tantas almas”
(FERREIRA, 1993, p.86).
A opressão religiosa à sexualidade marca as personagens da obra. O
romance narra a busca da mulher pelo prazer sexual e Filipa quer compartilhar
com as outras mulheres casadas o segredo que as faziam “rainhas de um país
onde penetravam aquelas que um homem haviam conhecido” (FERREIRA,
1993, p.111), ou entender o que Brázia lhe propõe na noite do seu casamento
com Bento “E te mostrarei coisas que teu marido não te deu, por não querer,
por não saber, que importa” (FERREIRA, 1993, p.117-118), uma vez que,
somente três anos após o casamento, ela e Bento conseguem ter uma relação
sexual livre das opressões religiosas e dos preconceitos sociais Bento,
agora me sinto uma mulher casada. agora me sinto tua mulher. E sou tão
feliz” (FERREIRA, 1993, p. 109).
Mas Bento, sem compreender a busca da esposa, que a religião
oprime a sua sexualidade, sente-se culpado por não ter conseguido conter seus
desejos sexuais e acredita não ser correto o próprio marido levar a mulher ao
“mundo da perdição”:
Muitas vezes tivera que interromper as leituras, cumprir seus deveres de
esposo, rápida e distraidamente, sem que olhasse a mulher no rosto, nem a
beijasse, nem suas mãos lhe fizesse o menor carinho, para voltar à leitura,
enfim tranqüilo no seu papel de marido exemplar (FERREIRA, 1993, p.36).
Por isso, tenta viver como um bom católico: “Vivi católica e fielmente. Não fora
difícil fazê-lo. A ausência de Filipa o ajudava, embora o martirizasse um pouco”
(FERREIRA, 1993, p.35). Emanuel Araújo (2000, p. 46) lembra que o
fundamento escolhido para justificar a repressão é simples: ”o homem era
superior, e, portanto, cabia a ele exercer a autoridade”.
Filipa é assassinada por Bento por este acreditar que é traído por ela.
Nas regras do patriarcado não é crime o marido matar a mulher, se essa é
adúltera. Tanto que Bento o foi preso pelo crime que cometeu, em nenhum
momento das confissões ele é cobrado pelo assassinato. Mas esse fato não é
exclusivo de Bento e Filipa: no passado, era comum o marido matar a mulher
quando acreditava estar sendo traído, pois a sociedade patriarcal admitia que “o
homem lavasse sua honra com sangue”. Como afirma Emanuel Araújo (2000,
p.59), “o adultério, com efeito, assombrava os homens como um fantasma que
podia aparecer nos lugares e momentos mais inesperados, aterrando suas
mentes sempre apavoradas com o estigma de marido que não satisfaz
sexualmente sua mulher”. Com Bento a situação não é diferente: ele sabia que
não satisfazia sexualmente Filipa e se atormentava com isso, “até que ela se
cansasse e fosse buscar em outra parte o que poderia encontrar tão perto de si”
(FERREIRA, 1993, p 36).
É interessante notar que Filipa não é a única acusada de trair o marido;
outras personagens do romance também aparecem envolvidas em casos de
traição matrimonial, como Ana Lins, mulher do oleiro Bartolomeu Ledo,
considerada “mulher leviana, de costumes fáceis, segundo se contava”
(FERREIRA, 1993, p. 126); Isabel Raposa: “Frei Damião havia sido visto
dirigindo-se à casa de umas mulheres casadas, e entre elas uma certa Isabel
Raposa” (Ferreira, 1993, p. 184); e Maria Maciel: “viúva recente, de onde
haviam visto sair, nas caladas da noite, o vulto de um homem encapuzado”
(FERREIRA, 1993, p. 126).
Como o romance é constituído por um rico jogo intertextual, a construção
dessas personagens resulta do diálogo com o texto de Gonçalves de Mello,
Gente da Nação, que também faz referência ao fato de que Ana Lins, Isabel
Raposa e Maria Maciel traíam seus maridos: “publicamente se dizia que o dito
frade tinha acesso com uma Isabel Raposa e Ana Lins, mulheres casadas”
(MELLO, 1996, p. 100). Como a traição é apresentada como corriqueira na vida
colonial, as relações matrimonias são desmascaradas e, deste modo, a obra de
Ferreira passa a ser uma releitura crítica do período colonial.
A personagem Brázia leva o leitor a refletir sobre a presença do
homossexualismo entre as mulheres da colônia. O controle da sexualidade
feminina se dava de várias formas e diversos níveis, pois algumas mulheres se
submetiam aos padrões sexuais que a sociedade impunha, mas outras reagiam
valendo-se da sedução ou da transgressão. O amor entre mulheres era uma
das maneiras que elas encontraram para se defender, agredir ou violar a
opressão sexual. Na noite de núpcias, Filipa e Bento discutem e o noivo,
bêbado, cai desmaiado na cama. Frustrada, Filipa sai do quarto nupcial,
momento em que encontra Brázia:
Pôs a mão sobre a fronte de Filipa. Então os dedos lhe percorreram o nariz,
brincaram sobre os lábios, acariciaram o pescoço. Filipa a olhava com
pregada ao solo.
Vem comigo disse a chamada Brázia - deves estar acesa, e eu sou
quente como meu nome.E te mostrarei coisas que o teu marido não te deu,
por não querer, por não saber, que importa. O que te darei, minha bela,
homem algum te dará. Porque nós mulheres, somos mais doces do que
eles quando nos amamos (FERREIRA, 1993, p.117-118).
Filipa resiste à sedutora proposta de Brázia e retorna ao quarto de Bento. O
episódio, além de colocar em evidência a situação de falência em que se
encontra o relacionamento do casal, desvela os bastidores da vida das
mulheres no Brasil dos primeiros anos. Emanuel Araújo (2000, p. 65) lembra
que, por ocasião da primeira visita do Santo Ofício da inquisição no Brasil, na
primeira metade da década de 1590, “são assinaladas 29 mulheres que
praticavam atos homossexuais esporádicos, ou assumiam a transgressão, de
modo permanente e sem escondê-la”.
No entanto, nem sempre as relações entre mulheres eram
homossexuais, conforme Emanuel Araújo (2000). Diante da severidade da
repressão à sexualidade, era natural aumentar o contato entre mulheres que,
deste modo, passam a se visitar com mais freqüência, trocar confidências e
experiências e sentir maior afetividade e compreensão no sofrimento comum.
Em Os Rios Turvos, a personagem Madre Mariana representa bem essa
situação:
A garrafa de licor se achava vazia. Filipa se levantou do banquinho onde se
assentara e foi se instalar na estreita cama, ao lado da amiga, que tinha
olhos vagos, perdidos no pedaço de céu escurecido da janelinha.
Ficaram as duas um longo tempo em silêncio. Duas mulheres. A madre
levantou-se, retirou da gaveta da mesinha um pequeno véu preto, cobriu
com ele o Cristo da parede.
Então Filipa lhe contou (FERREIRA, 1993, p. 98).
Madre Mariana é uma religiosa quase da mesma idade de Filipa, que entrou no
convento depois de uma grande decepção amorosa. Ambas são amigas e
confidentes. Essa personagem rompe, definitivamente, com aquela idéia
ingênua de que nas celas do convento não manifestações da sexualidade
feminina. Maria Jo Rosado Nunes (2000, p. 489) lembra que os conventos
são “instrumentos privilegiados de controle da população feminina e, em
especial, de sua sexualidade e capacidade reprodutiva”.
5.2Entre a história e a ficção: o jogo dialógico
Os Rios Turvos traçam o processo inquisitorial de Bento Teixeira,
primeiro poeta do barroco brasileiro, re-avaliando importantes elementos
históricos da presença do Santo Ofício no Brasil Colônia, ao mesmo tempo em
que discute a presença feminina nesse período da história do Brasil, uma vez
que a autora busca a personagem Filipa Raposa, cuja presença nos textos da
história sempre foi muito tímida. Sobre Bento Teixeira, pouca informação:
nos manuais de literatura ele é apenas lembrado como autor da Prosopopéia e
primeiro intelectual leigo do Brasil. nos livros de história, ocupa um espaço
maior por ter sido uma das vítimas da Santa Inquisição. Ainda sobre a vida de
Bento Teixeira, existem outras duas obras ficcionais: Olinda, Olinda! (1999), de
Zelmo Denari, e O Primeiro Brasileiro (1995), de Gilberto Vilar.
O romance, a partir de uma ótica feminina, acrescenta maior
complexidade psicológica à personagem, discute dogmas da igreja, a vida
social e moral do Brasil Colônia, valendo-se da trajetória de Bento Teixeira e de
sua esposa. Deste modo, um interessante fragmento da história do
quinhentismo brasileiro é recontada pela ficção. A autora se vale de relações
intertextuais variadas para construir a narrativa. na nota de abertura do
romance, é anunciada a presença da intertextualidade:
O leitor atento reconhecerá no intertexto o Diálogo das grandezas do
Brasil, o Valeroso Lucideno, Gil Vicente, Camões, antigas canções da
Península Ibérica. E, sobretudo, o admirável livro Gente da Nação, do
historiador José Antônio Gonsalves de Mello, que me fez conhecer Filipa
Raposa (FERREIRA, 1993).
A abertura da obra se com a “nota”, que chama a atenção para o
entrelaçamento intertextual que ocorrerá na narrativa e, por sua vez, também
faz parte do jogo intertextual.
Com o dialogismo, em Os Rios Turvos, são desvelados alguns elementos
da história do Brasil colonial. O leitor é lançado num espaço geográfico-histórico
que o instrumentaliza para conhecer a Olinda do século XVI, suas paisagens,
costumes e população.
5.2.1 Gente da Nação
Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Gilberto Freire estudaram a
biografia de Bento Teixeira, mas Gonsalves de Mello, em Gente da Nação,
apresenta o trabalho mais completo sobre a vida do poeta. Nesse livro, tem-se a
transcrição da confissão de Bento, bem como o andamento do seu processo,
desde a prisão em Olinda até o momento de sua libertação em Lisboa.
Pelo depoimento de Bento, tem-se conhecimento da existência de Filipa
Raposa. Mas não se pode esquecer de que, por ocasião da primeira confissão
do poeta, ela estava morta. Tudo o que é atribuído a Filipa, portanto, é
mediado pela voz de Bento. Em Denunciações e Confissões, também de José
Antônio Gonsalves de Mello, são relatadas as denúncias de Bento. Nesse
documento, o nome de Bento Teixeira é citado mais de vinte e seis vezes,
contra três menções a Filipa Raposa, sendo dito apenas: “Filipa Raposa,
casada com Bento Teixeira”. Não referências a seu comportamento e nem
queixas contra ela.
Como historicamente Filipa o tem voz, na ficção, criou-se um espaço
para ela. Nesta perspectiva, Bakhtin (1997, p.03) afirma que “o herói tem
competência ideológica e independência, é interpretado como autor de sua
concepção filosófica própria e plena e não como objeto da visão artística final do
autor”. Nesse sentido, vale lembras que espaços vazios deixados pelos
documentos históricos permitiram a construção ficcional da personagem Filipa
Raposa:
A Filipa não perdoavam a beleza, a liberdade com que discorria sobre as
mais diversas matérias, das quais as fêmeas nunca deveriam falar.
Invejava-lhe a facilidade com que podia fazer amigos, tanto entre
mulheres quanto entre os homens, conversando com estes com se fora
um varão. Comentavam os passeios que fazia sozinha, sem os filhos,
sem o marido, pelas matas, a colher frutos, pitangas e mangabas que
cresciam, selvagens, ao lado dos araçás, a apanhar flores ou mudas de
plantas que fazia crescer no jardim, logo tornado o mais belo de Igarassu
(FERREIRA, 1993, p. 119).
Como foi mencionado, na “nota de abertura” do romance, Luzilá
Ferreira conta que através do livro Gente da Nação, do historiador José Antônio
Gonsalves de Mello, ela conheceu Filipa Raposa, pois esse livro faz um dos
mais completos levantamentos da vida de Bento Teixeira. Não restam dúvidas,
portanto, que é através das confissões registradas no referido processo que se
encontram os principais elementos sobre a participação de Filipa Raposa na
história de Bento.
No entanto, a leitura de Gente da Nação revela que, mesmo este
sendo o principal documento histórico que trata de Filipa Raposa, não são
muitas as informações que se encontram no mesmo. Por exemplo, quanto ao
início do relacionamento deles, a obra de Mello registra apenas:
(...) fui eu ter à Capitania de Ilhéus, e preso do lascivo amor duma Filipa
Raposa, filha de André Gavião, me casei com ela, sendo a dita tão nobre na
geração como em seus próprios vícios; a qual segundo tenho entendido, foi
a fonte donde se originaram meus trabalhos e a prisão que de presente
padeço como Vossas Mercês verão mais distintamente adiante (MELLO,
1996, p.96).
É bastante diferente da obra ficcional de Ferreira, que descreve as minúcias do
primeiro encontro, o desenvolvimento do namoro, o casamento e o
relacionamento depois de casados, chegando ao momento em que Bento
assassina Filipa. A ficção preenche, portanto, os vazios deixados pela história
oficial, valendo-se da imaginação do autor. Desse modo, observe-se como, na
obra ficcional, o primeiro encontro do casal é narrado:
Os olhos de Filipa encontram os do rapaz. O trote da égua se amiudou, a
agulha parou no ar. Ela tirou o chapéu numa saudação desajeitada, ela
sorriu, espantada de que aquilo fosse possível: um desconhecido a saudava
e uma tão grande desordem interior se instalava nela (FERREIRA, 1993, p.
17).
No entanto, a autora organiza a narrativa valendo-se também de informações
históricas, resultantes de uma rigorosa pesquisa. Neste sentido, no romance,
Filipa percebe, logo no início do namoro, que Bento tem uma cicatriz na testa:
“Filipa havia notado uma cicatriz na testa, acima das sobrancelhas, que dava ao
rapaz um ar preocupado, como se o pensamento estivesse além” (FERREIRA,
1993, p.18). Trata-se de uma informação extraída de Gente da Nação, mas que
foi transformada quando se compôs o novo texto, pois, como Laurent Jenny
(1979, p. 22) diz, basta uma alusão para introduzir, no texto centralizador, “um
sentido, uma representação, uma história, um conjunto ideológico, sem ser
preciso falar sobre eles”, o que pode ser facilmente percebido, quando
comparado ao texto de Mello:
(...) continuou a confessar a crença que lhe ensinara sua mãe, do que não
participava seu pai, que vindo a saber do fato, tratou sua e muito mal,
dando-lhe muitas pancadas e chamou a ele confidente e o açoitou
asperamente e com um cabo de enxada lhe fez a ferida que tem sobre a
fronte e lhe repreendeu por ser judeu e lhe deu razão muito eficaz para que
fosse Cristão (MELLO, 1996, p 109).
Esse mesmo fato volta a ser mencionado no capítulo VI do romance,quando se
explica ao leitor, que desconhece Gente da Nação, a origem da cicatriz. Desta
vez, no entanto, o diálogo entre os dois textos é bem mais direto:
Deu pancadas na mãe, no filho, com as mãos, com os pés, com os
cotovelos, gritando como endemoniado. E como Bento saltasse e corresse
para escapar à fúria com que batia, apanhou uma enxada que se achava ao
da parede e bateu-lhe com o cabo. E fez-lhe na fronte uma grande
fenda, e o teria morto se o menino não houvesse corrido para a rua, o
sangue a lhe molhar as vestes (FERREIRA, 1993, p.75).
Além de as informações que Gente da Nação traz sobre Filipa estarem
diretamente ligadas a Bento Teixeira, percebe-se nelasmuita superficialidade,
ou seja, quase sempre são comentários indiretos e evasivos como: “E andando
o tempo, de lanço em lanço, se veio a danar a dita sua mulher Filipa Raposa,
adulterando com muitos homens” (FERREIRA, 1993, p.93). O fato de Filipa ter
sido umas das denunciantes do poeta ao Santo Ofício, entretanto, produz
controvérsias nos documentos históricos, como Gente da Nação, situação muito
bem aproveitada na obra de ficção.
O primeiro capítulo de Os Rios Turvos narra que Filipa denunciou Bento
ao Santo Ofício, “Ela falou pouco, contou fatos e frases, assinou com letra firme
a denúncia” (FERREIRA, 1993, p.14) e, no capítulo doze, após ser esfaqueada
por Bento, ela confessa que houve a denúncia Perdoa-me Bento, se te fiz
sofrer esses anos todos. E perdoa também porque te denunciei ao Santo Ofício,
como judeu e homem mau cristão” (FERREIRA, 1993, p.166). Este fato entra
em contradição com o que vem registrado em Gente da Nação, pois em sua
exposição de defesa em Lisboa, Bento diz que a mulher apenas havia
prometido que o denunciaria ao Santo Ofício e solicitaria aos cúmplices que o
fizessem também:
(...) aos quais dizia que seus pecados a ajuntaram comigo, porque era um
homem mal acondicionado e que era um cristão-novo fedorento e ela cristã-
velha e de nobre geração, prometendo que o denunciaria ao Santo Ofício e
solicitando aos cúmplices que o fizessem também (MELLO, 1996, p. 97).
Mas, no capítulo XVI do romance, numa conversa de Bento com o castelhano
João Batista, Filipa aparece novamente como denunciadora do marido,
Que vuestra mujer os tenía enclavado en la Inquisición (FERREIRA, 1993, p
185). Este fato coincide com o relatado em Gente da Nação: “vim eu, ter à casa
do dito João Batista, o qual me disse o seguinte in terminis: Hermano de mis
entranas, hezistes mui bien de matar vuestra mujer, porque no solamente os lo
merecia por adultera, sino porque os tenia enclavado en la inquisición (MELLO,
1996, p.111).
Em outra obra organizada por José Antônio Gonsalves de Mello,
Denunciações e Confissões de Pernambuco (1593-1595): primeira visitação do
Santo ofício às partes do Brasil, tem-se a lista das pessoas que denunciaram
Bento Teixeira ao Santo Ofício e seus respectivos depoimentos, e não consta o
nome de Filipa Raposa como uma das denunciantes.
Ainda, por meio de Gente da Nação, percebe-se que fragmentos do
processo de Bento Teixeira são citados no romance. Ocorrem algumas
alterações na forma, mas o conteúdo é conservado, como pode ser visto nos
fragmentos abaixo:
...estando um dia ele dito Antônio Teixeira lendo pela Bíblia leu essas
palavras non facias calvitium super mortuum e não entendeu o que queria
dizer, e perguntou a ele declarante e ele confessante lhe ensinou o que
queria dizer, segundo lhe parecia, não arrancareis os cabelos da cabeça
quando pranteares os defuntos (MELLO, 1996, p. 87)
Uma tarde estava o sobrinho a ler e Bento passava ao lado, quando aquele
o interpelou:
Bento, traduze-me cá uma sentença em latim (...)
Que cousa é?- perguntou.
Non facias calvitium super mortuum.
Onde estás a ler isto?
No livro do Deuteronômio.
Bento tomou a Bíblia, leu a frase:
Não arrancareis os cabelos da cabeça, quando pranteardes os
defuntos.(FERREIRA, 1993, p.29).
Em Gente da Nação tem-se o relato do fato pelo denunciante. No romance, o
texto vai constituir o diálogo das personagens. Para Laurent Jenny,
enquadramentos textuais como esse, no jogo intertextual, alertam para o
principal problema da intertextualidade, que é “fazer caber vários textos num só,
sem que se destruam mutuamente, e sem que o intertexto se estilhace como
totalidade estruturada” (JENNY, 1979, p.23).
5.2.2 Diálogos das Grandezas do Brasil
A presença dos Diálogos das Grandezas do Brasil também é assinalada
na “Nota de abertura” do romance. A obra, que é de 1618, faz parte da
denominada literatura de informação. Durante muito tempo, a autoria da obra foi
duvidosa, até Bento Teixeira foi apontado como possível autor, hipótese
descartada por Capistrano de Abreu que, por sua vez, sugeriu Ambrósio
Fernandes Brandão como verdadeiro autor. Mas foi Antônio Gonsalves de Mello
que, em 1954, confirmou ser realmente Brandão o autor.
Diálogos das Grandezas do Brasil se constitui de diálogos entre dois
personagens: Brandônio, um português que aparenta estar bem adaptado à
vida da colônia, e Alvino, um português recém-chegado ao Brasil. O primeiro
diálogo trata das questões políticas e econômicas; o segundo, do clima e das
enfermidades mais comuns no Brasil e dos medicamentos que curam; o
terceiro, do comércio de açúcar, algodão e madeira; o quarto, dos mantimentos,
tintas, hortaliças, frutas, lãs e legumes; o quinto, das aves, peixes e animais
terrestres, e o sexto, dos costumes naturais.
Em Os Rios Turvos o jogo intertextual com Diálogos das Grandezas do
Brasil é bastante sutil, pois o texto é incorporado às vozes das personagens em
meio às conversações, sendo alterado por elas. Conforme Nathalie Piégay-Gros
(1996),neste caso, a autora optou pela alusão e o pela citação, supondo que
o leitor compreenda, com palavras encobertas, aquilo exatamente que se
projetou para ele ouvir, mas sem lhe o ter dito diretamente:
Então Pero Lopes contou sobre um pássaro brasileiro, tão
extraordinário, que seria melhor deixar em silêncio suas qualidades.
Melhor seria que nos contásseis, e vos creremos disse alguém.
Pero Lopes não esperava outra coisa.
Este pássaro se chama Guaratinguetá. Eles têm grande amor aos
filhos. E por não lhos furtarem, lavra seu ninho, de ordinário, perto de
alguma toca onde as abelhas lavram mel. Assim ficam estas lhes servindo
de guarda aos filhotes, porque todos se arreceiam de se avizinhar a elas,
temendo seu aguilhão. E estes pássaros se lançam por entre alguns bichos
que se lhes apegam nas carnes, sem arrecearem que lhas comam. E
quando se encontram feridos , volvem aos mesmos filhos, e se lhes dão a
comer as próprias carnes.
Como todos se espantassem da diligência de uma tal ave, Bento se
pôs a contar sobre uma ave que vira na Bahia, e que certamente existiria
naquelas paragens.
Chama-se garatauarana que, como o rei, lhe criou a natureza
uma coroa na cabeça, quase a modo de crista de galo. Pois um homem
assaz nobre, capitão-mor por sua majestade, de uma das capitanias do
estado, tinha um pássaro desses doméstico, que criava na casa, o qual
escapara da alcândora, e se foi pôr sobre um monte de pedras que estavam
juntas perto. Houve vista dele um gato, alevantou uma perna, ficando
sobre a outra. E ambos estiveram assim por um pequeno espaço.
Como enamorados a se olharem falou um homem.
Todos riram.
Imaginavam, um de se cevar o outro. Até que, alevantando a cabeça
o gato, se lhe lançou em cima a garatauarana. E desta sorte engarrafou
nele com as unhas. E, logo, abrindo o gato, as mãos e pernas, ficou morto
(FERREIRA, 1993, p.131).
Pelo diálogo entre as personagens do romance, o leitor vai construindo a
imagem da fauna brasileira da época. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar
que no texto de Ferreira a palavra de Bento é posta em dúvida, ao contrário do
que acontece com Alviano em Diálogos das Grandezas do Brasil.
Nessa troca de informações sobre passarinhos que povoam o céu do
Brasil, principalmente a falta de credibilidade em Bento faz com que o poeta
diga no romance: Pois vos peço que me creais. O que vos digo é como o
Evangelho de São João” (FERREIRA, 1993, p.132), alimentando suspeitas de
que ele mantenha práticas judaizantes. Esse incidente vem diretamente de uma
confissão de Bento, transcrita em Gente da Nação, no depoimento de 21 de
janeiro de 1594:
Confessou mais que muitas vezes, e uma vez se afirma na ilha de
Itamaracá(...) estando à porta do Capitão Pero Lopes praticando com
grande concurso de gente da mesma ilha, disse uma cousa da qual não é
lembrado e alguns dos circunstantes duvidaram de ela ser verdadeira,
então ele confessante lhes disse que cresse porque o que ele lhes dizia era
Evangelho de São João e sendo repreendido por eles respondeu que são
João escreveu verdade e ele naquilo lhes falava verdade (MELLO, 1996,
p.88).
Perceber que Ferreira buscou, em Diálogos das Grandezas do Brasil,
informações sobre a fauna e a flora do Brasil Colônia, e, em Gente da Nação, o
conflito que acabou fazendo parte das denúncias que acusavam ser Bento um
mau cristão-novo, faz parte do processo de leitura do jogo intertextual do
romance, uma vez que a autora constrói sua narrativa cruzando os textos.
Neste sentido, cabe lembrar Laurent Jenny (1979) quando afirma que a
intertextualidade é o trabalho de transformação e assimilação de vários textos,
operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido.
Em síntese, as informações sobre a fauna e a flora, elaboradas por
Brandônio em Diálogos das Grandezas do Brasil, que constitui o quinto diálogo,
representam as maiores contribuições intertextuais desse documento histórico,
na construção do romance e, mesmo assim, aparecem com muita sutileza na
obra. O exotismo, os bons ares e o colorido da Colônia são descrições que
predominam ao longo da narrativa:
As matas da colina que rodeava a vila se achavam, àquela época do
ano, coberta de flores: ipês de um amarelo arrogante, jacarandás lilases e
flores-da-paixão roxas. E havia japarandubas, céus! As japarandubas!
Nunca vira tantas juntas e tão floridas, com as enormes flores carnívoras
que atraíam as abelhas, um desparrame de branco, rosa e roxo. À beira
da estrada vira maracujás selvagens ostentando as flores, alguns, outros
já os frutos. E o riacho, em cuja água se haviam lavado antes de entrarem
na vila: em algum lugar deveria ser profundo, vira bambuzais fazendo
caminho em meio à mata. Bordejavam o curso do riacho, certamente. E
em algum lugar, suas raízes aprofundariam o leito do riacho, fariam um
poço onde poderia pescar camarões, mergulhar, e depois se estender
para secar sobre o capim perfumado, longe dos olhares alheios
(FERREIRA, 1993, p.58).
Geralmente, as descrições que fazem referência à exuberância da natureza,
como na citação anterior, estão relacionadas a Filipa e sugerem a integração de
ambas. Sintoniza-se a caracterização da personagem Filipa com a descrição da
natureza, eliminando-se a hipótese meramente decorativa desse processo, pois,
como afirma Bakhtin (1997, p.33), “todas as vozes que desempenham papel
realmente essencial no romance são ‘convicções’ ou ‘pontos de vista’ acerca do
mundo”.
5.2.3 O jogo intertextual com a literatura
A intertextualidade do romance com as obras de Gil Vicente, Camões,
Ovídio e com antigas canções da Península Ibérica, estão assinaladas na
nota de abertura do romance, ou indicadas pelas personagens ao longo da
narrativa.
5.2.3.1 As epígrafes
Esses intertextos aparecem de diferentes formas na narrativa. O uso de
epígrafe é uma delas, uma vez que esse recurso intertextual, conforme Nathalie
Piégay-Gros (1996), provoca uma leitura retrospectiva e ao mesmo tempo faz
com que o leitor participe ativamente da elaboração do sentido da obra.
Não são todos os capítulos introduzidos por epígrafes. O romance
possui vinte e três capítulos e destes apenas onze apresentam esse recurso
intertextual. Nos capítulos I, II, III, V, XI e XII são fragmentos identificados, como
Os Amores, de Ovídio; nos capítulos IV, XXI e XXIII são trechos da
Prosopopéia, de Bento Teixeira e no XIX e XXII, a autoria não é identificada.
Como o uso da epígrafe não é meramente ornamental, além de sempre estar
em consonância com o conteúdo do capítulo que introduz, ela também orienta o
olhar do leitor.
Deste modo, a epígrafe do primeiro capítulo: Quid facies hosti, qui sic
excludes amantem? (Que farás contra um inimigo, tu que assim excluis um
amante?)”, fragmento textual de Os Amores, de Ovídio, está em sintonia
semântica com o fato narrado no referido capítulo: Filipa Raposa denuncia ao
visitador do tribunal da Santa Inquisição, Heitor Furtado de Mendonça, seu
esposo Bento Teixeira. Lendo a epígrafe, o leitor inicia a leitura do romance
esperando desvelar-se a traição anunciada e, conseqüentemente, o perfil da
personagem começa a se construir: “Que fonte limpa fizera brotar aquela água
turva, aquele desejo de destruir o homem com quem vivia” (FERREIRA,1993,
p.15).
Do mesmo modo, no segundo capítulo, em que é narrado o primeiro
encontro de Bento Teixeira e Filipa Raposa, a forma como eles se apaixonam e
como a poesia vai fazendo parte de suas vidas também são introduzidas por
uma epígrafe constituída por um fragmento de Os Amores, de Ovídio: “Nec
mora venit amor (Sem tardar o amor chegou)”. A epígrafe mais uma vez adianta
a temática do capítulo, que, desta vez, já havia sido anunciada no final do
capítulo anterior: “então lhe vieram à memória os primeiros tempos deles, da
vida deles (...)” (FERREIRA, 1993, p. 15).
A epígrafe Quod mea querebam Musa moveret opus. (E buscava com
que obra ocupar minha Musa.)”, também de Os Amores, abre o capítulo III, que
narra os tempos que Bento viveu com a família, em Salvador, e os primeiros
indícios da educação judaica que recebeu da sua mãe, Dona Leonor: ”Feito
todas as contas Bento havia sido mais infeliz que ditoso , naquela cidade de
Salvador da Bahia (...)Foi então que dona Leonor faleceu. Bento a fez
amortalhar e enterrar segundo o modo judaico” (FERREIRA, 1993, p.33). A
figura da mãe é importante para a formação do perfil do personagem Bento
Teixeira
Já no quarto capítulo do romance, a escritora não se vale mais de Ovídio:
versos da própria Prosopopéia de Bento Teixeira passam a compor a epígrafe:
Mas enquanto te dão a sepultura
Contemplo a tua Olinda celebrada,
Coberta de fúnebre vestidura
Inculta, sem feição, descabelada.
Bento Teixeira, Prosopopéia, XCI (FERREIRA, 1993, p.34).
Com os versos da Prosopopéia, o leitor relembra essa obra histórica da
literatura brasileira, pois o capítulo vem marcar o momento em que o poeta
passa a ter a idéia de escrever a epopéia que poderia imortalizá-lo:
Fora numa hora daquelas, com a pluma à mão, os dedos desenhando com
aplicação as letras negras e caprichadas, que a idéia lhe viera: precisava se
fixar definitivamente em Pernambuco. E para isso precisava da simpatia e
proteção dos grandes da terra. Pensou então que deveria escrever um
longo poema em louvor do donatário da capitania, Jorge de Albuquerque
Coelho (FERREIRA, 1993, p. 37).
Importantes elementos para a formação da personagem Filipa Raposa
são apresentados no capítulo cinco, conseqüentemente, a autora se vale
novamente de Os Amores para a constituição da epígrafe:
Qui tibi formosam, se non nisi
Placebat? Non possunt ullis is-
ta ceira modis.
(Por que a tomar bela, se tu a
querias virtuosa? Estas duas cois-
sas não podem vir juntas).
Ovídio, Os Amores, Livro III (FERREIRA, 1993, p 45).
Com os versos de Ovídio, o leitor, alertado que ser bela e virtuosa é conflituoso,
é remetido à personagem Filipa Raposa. O capítulo narra a chegada do casal à
Vila de Igarassu, momento em que Filipa reflete sobre a metamorfose que sua
vida vem sofrendo: “o riacho que tinha sido límpido e perfumado e fresco, se
tornara aquela coisa negra (...) como a beleza pode desaparecer num instante,
e o que era puro se tornar imundo”(FERREIRA, 1993, p. 47).
Nos capítulos XI e XII, fragmentos de Os Amores, de Ovídio, são
utilizados mais uma vez como epígrafe. Como é de conhecimento prévio do
leitor que Filipa Raposa foi assassinada pelo esposo, que suspeitava ter sido
traído, o diálogo entre a obra de Ovídio e o romance vai lhe anunciando a
aproximação do fato que vai culminar no fim trágico da personagem:
Vota mori, meã sunt, cum te
Peccasse recordor. Et mihi per-
Petuum nata puella malum.
(Porque desejo morrer quando
me lembro dos teus erros, mu-
lher nascida, ai, pobre de mim,
para minha infelicidade eterna.)
Ovídio, Os Amores, Livro II. (FERREIRA, 1993, p.154)
Et nunquam casu pulchrior ila
Fuit. Spectabat terram; terram
Spectare decebat. Maesta erat in
Vultu; maesta center erat.
(E talvez jamais ela esteve mais
bela.Ela olhava a terra e olhar
a terra lhe ia bem. Seu rosto es-
tava triste e esta tristeza lhe as-
sentava.)
Ovídio, Os Amores, Livro II. (FERREIRA, 1993, p.161)
Em primeiro lugar vem o relato das supostas traições da esposa (capítulo XI),
“ali tivera mais provas da leviandade de Filipa Raposa” (FERREIRA, 1993,
p.158). Depois, o assassinato (capítulo XII), “ela o gritou quando o facão lhe
penetrou no lado” (FERREIRA, 1993, p.166).
A busca pela imortalidade, possível com a Prosopopéia, é o tema do
capítulo XXI, que, por sua vez, é introduzido com versos do poema:
“Olhai o grande gozo e doce glória
que tereis quando, postos em descanso
Contardes esta longa triste história,
Junto do pátrio lar, seguro e manso.”
Prosopopéia, Canto LX.(FERREIRA, 1993, p.209).
Bento Teixeira buscou, em toda sua vida, escrever uma poesia épica: ”a
Prosopopéia, ela lhe daria, talvez, o reconhecimento que o tornaria considerado
em vida e louvado e lembrado após a morte” (FERREIRA, 1993, p.209). Mas
somente depois de sua morte, sua obra é publicada. O romance também traz
essa informação ao leitor:
Mas, ah! Ínvida sorte, quão incertos
São teus bens e quão certas as mudanças;
Quão brevemente cantas os enxertos
A umas mal nascidas esperanças.
Nos mais riscosos trances, nos apertos,
Antre mortais pelouros, antre lanças.
Prometes triunfal palma e vitória,
Para tirar no fim a fama, a glória.
Bento Teixeira, Prosopopéia, Canto LXXI (FERREIRA, 1993, p.212)
O último capítulo apresenta apenas a epígrafe, constituída de versos da
epopéia de Bento, e um enunciado informando a publicação de Prosopopéia.
Da história vivida por Bento e Filipa, sobrevive a Prosopopéia: a epopéia triunfa,
imortaliza-se.
5.2.3.2 O jogo Intertextual compondo os diálogos das personagens
Em várias passagens da narrativa, o diálogo entre Bento e Filipa é
construído através da inserção de pequenos trechos poéticos de Camões.
Diante do caráter metaficcional do romance, a intertextualidade com textos
camonianos reorganiza reflexões sobre o barroco, no contexto histórico-cultural
em que a narrativa se desenvolve. Por exemplo, no quinto capítulo da obra, o
casal discute sobre o fazer poético, momento em que Filipa propõe a produção
de poesias líricas, mas Bento se mantém irredutível diante da busca da grande
epopéia:
Nunca escrevereis coisas sensíveis, como o dizes.
Ele mudou o tom de voz, ergueu um braço, falou como se falasse a
um público numeroso:
Dá-me agora um som alto e sublimado
Um estilo grandíloquo e corrente.
Ela sorrira:
Não penses que a épica de Camões lhe tenha exigido menos
sofrimento do que sua lírica. Dinamene é tão importante para o nosso vate
quanto as terras ociosas da África e Ásia e a obra valerosa dos heróis. Vale
tanto libertar-se da lei da morte pelos grandes feitos, quanto pelo canto
amoroso. E mesmo quando a inspiração vai buscar nos clássicos, nos
Salmos, pensas que o coração não se põe inteiro em cada
palavra?(FERREIRA, 1993, p.52).
Como a intertextualidade é um trabalho de transformação e assimilação de
vários textos, operado por um texto centralizador que detém o comando do
sentido, percebe-se que as reflexões metaficcionais que o diálogo das
personagens possibilita, são efetivadas através de um jogo intertextual bastante
simples, pois como pode ser visto na citação anterior, a autoria do texto é
indicada na própria narrativa, o que facilita o trabalho do leitor.
Do mesmo modo, o narrador identifica outros textos para o leitor. Como
exemplos, citamos um fragmento de A Comédia do Viúvo, de Gil Vicente, que
Pero Lopes leu para Bento: “e lhe mostrara, numa encadernação de couro
vermelho, alguns textos de Gil Vicente, e entre eles A Comédia do Viúvo
(Ferreira, 1993, p.129); ou referências ao Auto da Alma, cuja autoria e cujo
túitulo o próprio Bento, numa conversa com a esposa, anuncia: ”Vês por
exemplo esse verso de Gil Vicente no Auto da Alma. Assim fala o anjo: ‘Alma
humana, formada / de nenhuma cousa feita“ (FERREIRA, 1993, 23).
Da mesma forma, tem-se a identificação de pequenos trechos da obra de
Ovídio, sendo que a autora recuperou, no corpo do romance, um fragmento que
já havia sido utilizado como epígrafe, no capítulo cinco do romance:
Como escondê-la dos olhares codiciosos de todos os homens do mundo?
Então recordou Ovídio:
Qui tibi formosam, se non nisi casta Placebat?
Non possunt ullis ista ceira modis.
Por quê tomá-la bela, se a querias virtuosa? Estas duas coisas não
podem vir juntas. Teria razão, o sulmonês? (FERREIRA, 1993, p.130)
Assim, a intertextualidade não pode ser vista apenas como a identificação da
fonte, uma vez que possibilita a construção de novos sentidos ao texto. É
preciso assinalar que, na citação anterior, parte do texto de Ovídio foi
incorporado à fala de Bento, marcando a falta de estabilidade afetiva na relação
com a esposa. Além disso, o intertexto com a obra de Ovídio, integrado ao
discurso do poeta, apresenta, no universo ficcional, o ciúme que Bento tem da
mulher.
No entanto, em relação a Ovídio, têm-se outros jogos intertextuais na
narrativa, pois a autora se vale consideravelmente de textos do referido autor,
ao longo do romance. Por exemplo, no início do capítulo três, faz referência à
Metamorfose (FERREIRA, 1993, p. 27) e, no capítulo oito, a Cantares de
Salomão (FERREIRA, 1993, p. 110). Em síntese, com os fragmentos textuais
da obra de Ovídio, reflexões metaficcionais sobre a essência do barroco
passam a compor a narrativa de Ferreira.
As antigas canções da Península Ibérica que, na nota de abertura, a
autora anuncia fazer parte do jogo intertextual do romance, aparecem na voz de
Filipa. Por exemplo, no capítulo dez, Bento ouve a esposa cantarolar uma
canção de amor que lhe desperta ciúmes e provoca uma séria discussão entre
o casal:
Ainda na rua, Bento, que se detivera um pouco, ouviu-lhe a voz; e
ouvindo-a, suave, cristalina, Bento se perguntou como poderia advir dali
tanta perfídia.
Un sueño soñaba anoche
Sueñito del alma mía
Soñaba con mis amores
Que en mis brazos los tenía.
Ele irrompeu na sala como um vento mau:
Que estás a cantar aí, ó arca de Noé? (FERREIRA, 1993, p.151)
Como não se têm registros históricos sobre a vida privada de Bento e a esposa,
a escritora se vale da ficção para preencher esses espaços vazios. Pela história
oficial, sabe-se apenas que o poeta assassinou Filipa, por acreditar que era
traído por ela. Mas Os Rios Turvos apresenta um Bento Teixeira ciumento
“..seus acessos de ira, de indignação, a propósito de coisas íntimas, de ciúmes
por causa de Filipa Raposa” (FERREIRA, 1993, p.60), diferentemente da versão
contada pela história oficial.
Na mesma perspectiva, o terceiro capítulo faz referência a Diana, de
Jorge de Montemayor, quando Bento é surpreendido por Gaspar Rodrigues,
lendo a referida obra que, na época, foi condenada pelos inquisidores. Mas,
nesse caso, o romance não se vale de trechos da obra, somente faz referência
ao texto, o suficiente para gerar discussões em torno das proposições teóricas
do contexto em que Os Rios Turvos se insere: um Brasil Colônia que estava
vivendo as contradições do barroco: Disse-me o Daniel que é uma obra
artificiosa, de estilo amanerado. Aleja o leitor das cousas reais, passando este a
viver, enquanto lê, num mundo de fantasias” (FERREIRA, 1993, p.30).
Com a Odisséia, de Homero, o jogo intertextual colabora para apresentar
os conflitos pessoais de Bento em relação aos ciúmes que nutria por Filipa
Raposa:
“Nenhum dano Ulisses te prepara.
No teu caso faria o que proponho
Férrea e iníqua não sou, mas compassiva”.
Homero lhe mandava uma mensagem, através dos séculos. E tinha
razão. No fundo Filipa era mesmo aquela Calipso compassiva, era ainda
aquela menina buliçosa, inquieta, mas tinha bom coração (FERREIRA,
1993, p.135).
Na Odisséia, Calipso, apaixonada por Ulisses, prometeu-lhe a imortalidade,
para que esse ficasse com ela. Mesmo assim, ele partiu e a bela ninfa morreu
de tristeza. Na comparação dessa história de amor com a de Filipa Raposa e
Bento Teixeira pontos comuns: a busca da imortalidade através do amor,
proposto por Filipa, e o fim trágico da personagem, pois, da mesma forma que
Ulisses foi responsável pela morte da Ninfa, Bento o é pela de Filipa.
É bastante tímida a presença de textos bíblicos no romance. Mesmo
assim, tem-se referência a alguns Salmos. Como a autora busca Camões para
a construção do intertexto, e este também se vale dos Salmos, o diálogo com
textos da Bíblia não é direto: “E mesmo quando a inspiração vai buscar nos
clássicos, nos Salmos, pensas que o coração não se põe inteiro em cada
palavra?” (FERREIRA, 1993, p. 52). Observe-se ainda o fragmento abaixo:
Sôbolos rios que vão
por Babilônia me achei,
onde sentado, chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ele a interrompeu:
Mas Camões imita David.
Claro. Mas não crês que as dores de David, esta melancolia intensa, esta
contenção de uma tão grande tristeza, Bento, crês que é apenas e
imitação, que é tão somente literatura? (FERREIRA, 1993, p.52-53).
Na citação acima, Filipa e Bento conversam sobre o “fazer literário”, valendo-se
de um fragmento poético de Camões inspirado nos Salmos. No entanto, o
diálogo com os textos bíblicos ocorre de forma indireta e sutil, ou seja, a
repressão à sexualidade, que permeia a narrativa, sustenta-se no livro bíblico
de Paulo, na Epístola aos Efésios (5:22-25): ”As mulheres estejam sujeitas aos
seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como
Cristo é a cabeça da igreja”. Essa concepção de mulher se baseia no mito de
Eva, pois esta sendo a primeira mulher, teria sido culpada de levar Adão a
cometer o pecado, impedindo que a humanidade gozasse da inocência
paradisíaca. Como as mulheres partilham dessa essência de Eva, necessitam
ser controladas permanentemente, ou seja, estão eternamente condenadas a
pagar pelo erro de Eva.
Alguns elementos da narrativa
Os documentos históricos praticamente não fazem referência ao período
anterior ao processo inquisitorial de Bento Teixeira. Assim, muito pouco se sabe
sobre o namoro e o casamento do poeta com Filipa Raposa. O romance, então,
tenta preencher essa lacuna deixada pela história. A análise da estrutura da
obra revela que um número pequeno de páginas é dispensado para a narração
do processo inquisitório de Bento Teixeira, ou seja, o capítulo I, um fragmento
do capítulo II e os capítulos XVII, XVIII, XIX, XX, XXI e XXII. Enquanto isso, os
outros quinze capítulos registram fatos ocorridos antes do processo inquisitório
do Santo Ofício, que no universo ficcional, são produtos da memória de Filipa.
Deste modo, os episódios não são lineares e não apresentam datas, o que pode
ser observado no gráfico que segue:
Figura 12 – Estrutura narrativa de Os Rios Turvos
Depoimento de Felipa
ao “Santo Ofício”
Cap. I
1591: Heitor Furtado recebe denúncia
de que Bento vem exercendo práticas
Judaizantes.
“... então lhe vieram na
memória os primeiros tempos
deles ...”
pag. 15
Capítulos: II, III,
IV, V, VI, VII, VIII,
IX, X, XI, XII, XIII,
XIV, XV e XVI.
Desencadeia os fatos destes
capítulos de forma não linear
e sem preocupar-se com
datas, como a MEMÓRIA.
Cap. XVII: 21 de janeiro de 1594 procura o Santo Ofício.
19 de agosto de 1595 ordem de prisão.
Cap. XIII: 22 de outubro de 1595 Bento é enviado para Lisboa.
28 de fevereiro de 1596 1ª sessão de interrogatório
09 de setembro de 1996 5ª sessão de interrogatório
13 de setembro de 1596 Manuel Cabral defende Bento
Cap. XIX: depois de 3 de outubro de 1596 período de intermédio
espiritual.
Cap. XX: 31 de janeiro de 1599 leitura pública da condenação.
21 de outubro de 1599 prova de que Bento estava “confessado e sacramentado”.
Cap. XXII: 09 de abril de 1600 / morte de Bento
deBento.
Desencadeia a narrativa que vai ter continuidade no
cap. XVII.
Para compreender o gráfico, faz-se necessário recuperar os conceitos de
“analepse” e “prolepse”. Gérard Genette (s.d.), quando se refere aos modos de
narrar nomeia de “anacronias” as diferenças entre a ordem do discurso e a da
história. Entre os tipos de anacronias, classifica como prolepse os
deslocamentos destinados a relatar fatos que acontecerão ulteriormente, e de
analepse os que evocam acontecimentos ocorridos anteriormente. Salvatore
D’Onófrio (1999, p. 100) lembra, ainda, que a prolepse ocorre quando uma
”antecipação, no plano do discurso, de um fato que, em obediência à cronologia
diegética, deveria ser narrado mais tarde”, e quando o início da trama não
coincide com o início da fábula, tem-se a analepse, “na qual a narração começa
pelo meio ou pelo fim e mais tarde, mediante o recurso técnico-estilístico da
retrospecção, o narrador informa o leitor do início dos acontecimentos”.
A autora vale-se das anacronias para estruturar a narrativa. No primeiro
capítulo, Filipa Raposa, em Olinda, denuncia Bento Teixeira ao inquisidor do
Santo Ofício. Ao retornar para casa, Filipa recorda de como foi a vida dos dois,
“...então vieram à memória os primeiros tempos do encontro deles, enquanto
descia a rua de São Bento, e o vulto do mosteiro, com sua torre recortando o
céu de Olinda, lhe tirara, por um tempo, a visão do mar” (FERREIRA, 1993,
p.15). Os capítulos II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV e XVI
resultam dessas memórias da protagonista. Prolopses e analepses marcam a
estrutura interna desses capítulos.
A escrita feminina possui singularidades: assim, quando se pretende
resgatar o vivido, a memória é um elemento importante, não pelo que ela tem a
dizer, “mas pelo modo como ela diz o que tem a dizer” (BRANCO,1991, p.31).
No entanto, em Os Rios Turvos não são as memórias de Filipa que organizam o
relato, uma vez que este último está estruturado a partir de fragmentos das
memórias de Bento, as confissões, ou seja, apesar de a personagem principal e
a narradora serem mulheres, as memórias que estruturam o romance são
masculinas.
Em Os Rios Turvos, a narradora apenas se apropria das memórias para
organizar a voz masculina e dar espaço à mulher, negada e/ou silenciada pela
história oficial. A memória, nesta perspectiva, “tende mais para o futuro que
para o passado, mais para o esquecimento que para a lembrança, mais para a
inversão, a criação, que para o resgate da vivência original” (BRANCO,1991,
p.31).
Aqui, faz-se necessário retomar alguns elementos referentes à narradora
do romance, que conta os fatos em terceira pessoa, mas com variação na
focalização desses fatos. Em alguns momentos o leitor é informado sobre tudo
o que se passa no interior das personagens, o que Vitor Manuel de Aguiar e
Silva (1990) denomina de focalização interna circunscrita; em outros, o leitor
tem acesso àquilo que as personagens sabem, denominada de focalização
interna generalizada. Observe-se como o teórico português aborda a questão:
Em romances de narrador heterodiegético, pode existir uma focalização
interna circunscrita a uma personagem ou a poucas personagens o
narrador desposa, nestes casos, o ponto de vista da personagem ou das
personagens ou pode-se verificar-se uma focalização interna
generalizada, surgindo então o narrador como detendo a faculdade de
analisar, quando lhe apraz, a interioridade de qualquer personagem
(AGUIAR E SILVA, 1990, p. 773-774).
Em Os Rios Turvos, a narradora propõe uma leitura permeada pelas
memórias da personagem Filipa, que, por sua vez, se sustentam nas confissões
do personagem histórico Bento Teixeira, documento escrito com objetivos bem
claros: fugir da morte, com obtenção do perdão, o que exigiu, inclusive, muito
cuidado de Bento na sua elaboração, uma vez que devia garantir que se
aproximasse daquilo que a inquisição queria ouvir sobre sua vida. Então, das
recordações de Filipa, a narradora reorganiza o discurso, invertendo a autoria
das memórias, e, deste modo, as brechas deixadas pela história são
preenchidas com conteúdo ficcional, numa tentativa de recontar a história,
edesta vez incluindo a mulher.
5.4 Conclusão
Seguindo o modelo do Novo Romance Histórico proposto por Menton, Os
Rios Turvos apresentam uma nova leitura do passado histórico. Então, diante
do desejo de negar a historiografia oficial, reinventá-la e modificá-la, busca uma
visão diferente daquela que foi apresentada pela história oficial, revendo a
participação da mulher na história da formação do Brasil. Segundo Navarro
(1991), é somente por meio de uma visão destotalizadora que permita ver a
dupla ou múltipla colonização do sujeito mulher na América-Latina, que se
poderá desmascarar a universalidade do discurso crítico tradicional da cultura
dominante.
Portanto, em Os Rios Turvos, as memórias da protagonista constituem
um recurso ficcional importante, por meio do qual o romance tenta mostrar o
quanto de vazio e de esquecimento nesse passado que se procura resgatar,
o quanto de invenção, de ficção, nessa rememoração e o quanto de
construção, de futuro, nesse projeto de retorno ao antes, pois o projeto
ficcional da escritora é resultado da “desmemória” em relação à história de
Filipa Raposa. Por meio dessa “desmemória”, o discurso feminino passa a ser
repensado, produzindo possibilidades de leitura que desarticulam as estruturas
de poder características do discurso crítico patriarcal.
6. UMA LEITURA DE ROSA MARIA EGIPCÍACA DA VERA CRUZ, DE
HELOÍSA MARANHÃO
O romance Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a incrível trajetória de
uma princesa negra entre a prostituição e a santidade (1997), de Heloisa
Maranhão, como o próprio título indica, narra a história da escrava Xirico,
batizada com o nome de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, dado em
homenagem à padroeira das prostitutas, que viveu no Brasil colonial. Na obra, a
escrava Rosa Maria era uma princesa, filha do príncipe Ginuawa e da bela
Oyeomosan, do reino de Benim e, deste modo, tinha poderes especiais, que
aprendeu com Derumo, sua avô.
No entanto, no primeiro capítulo, a autora também passa a ser
personagem da obra, que, por meio de uma estranha conversa com Rosa
Maria Egipcíaca, Padre Xota e o escravo Ismael, é convencida a iniciar
imediatamente a redação do romance que contará a história de Rosa Maria
Egipcíaca. Assim, ela começa a redigir o romance, que é narrado em primeira
pessoa: a própria Rosa Maria Egipcíaca conta como foram seus primeiros anos
no Brasil.
Conforme os relatos da narradora, Dom Diogo Velho Calvacante,
proprietário da capitania de Pernambuco, a comprou no mercado de negros.
Sendo a preferida de Dom Diogo, passa a ser bem tratada, por ele, que
demonstra muita delicadeza quando a leva para cama a primeira vez. No
engenho onde mora, é respeitada por todos, da casa grande à senzala.
Dom Diogo morre lutando contra a invasão dos holandeses no Nordeste,
e faz de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz herdeira de uma próspera mina,
em Minas Gerais, além de lhe dar a alforria. Assim, acompanhada pelo Padre
Xota, seu amigo, ela viaja para Vila Rica com o objetivo de tomar posse de seus
bens. Chegando lá, reencontra o irmão do seu pai, o Príncipe Kacoumba, que
ela nomeia capataz de sua mina. Na ocasião, Rosa Maria liberta todos os seus
escravos, provocando muita polêmica na sociedade de Vila Rica.
É importante lembrar que Rosa Maria, como descendente do príncipe
Ginuawa, tinha poderes: invocando Xipoco-Xipocoé, curou um menino negro
que se encontrava aleijado; concedeu juventude ao velho Mbende, além de ter
visões sobre o presente e o futuro.
No entanto, a narrativa tem um desfecho bastante inusitado: Rosa Maria,
juntamente com outros personagens amigos seus, desaparece como uma
nuvem branca: “Estou só. Tudo Branco. Será que eu também? Vou
desaparecer. Invoco o Deus cristão. Não! Oh! vou eu, para onde?”
(MARANHÃO, 1997, p. 234). Depois disso, no último capítulo, a autora volta a
fazer parte do jogo ficcional, apresentando o romance que acabou de escrever.
Em Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, os fatos evocados, assim como
as personalidades históricas que deles participam, surgem numa perfeita
interação com o tempo presente, sendo ambos trazidos para uma zona de
contato familiar livre, numa tentativa, também livre, de atualizar a história oficial.
Rompe-se, então, com o estatuto de organização da escrita romanesca
tradicional e o romance é construído sob uma emergente carnavalização.
Os romances de Heloisa Maranhão sempre apresentam títulos com
nomes femininos ou a eles remetem: Lucrécia (1979), Florinda (1981), Dona
Leonor Teles (1985), A Rainha de Navarra (1986), Adriana (1990) e Rosa Maria
Egipcíaca da Vera Cruz (1997), evidenciando a opção da autora em trabalhar
diretamente com o universo feminino.
Em Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, narrando a trajetória de uma
escrava que viveu no Brasil do período colonial, a autora vem se consolidar na
produção de romances históricos. Mas não é seu primeiro romance neste
gênero, pois, quando insere Lucrécia (1979) na Roma dos tempos dos rgia,
passando pela Espanha de Teresa d’ Ávila, ou ainda, a França de Margarida
Valois-Angoulême, com A Rainha de Navarra (1986), e Portugal do rei Dom
Fernando, com o romance Dona Leonor Teles (1985), Heloisa Maranhão,
extrapola os muros do continente Europeu e universaliza a realidade brasileira
com a ficção histórica.
Entendendo o termo “excêntrico”, como aquilo que se encontra
“marginalizado”, pode-se dizer que as personagens históricas dos romances de
Heloísa Maranhão foram inspiradas em figuras excêntricas da história: mulheres
que se encontravam à margem da história oficial. Por outro lado, as
protagonistas de Maranhão são mulheres contestadoras, ou seja, ousadas em
relação ao seu tempo, fator que também as deixava à margem da sociedade,
estruturada conforme os valores do patriarcado.
6.1 História do Brasil Colonial: Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz
Considerando que o romance de Heloisa Maranhão resgata a história de
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, é necessário verificar o que a história
oficial apresenta sobre essa personagem, pois o romance histórico
contemporâneo dialoga com a história oficial para apresentar, através do jogo
ficcional, uma nova versão dos fatos, resgatando vozes silenciadas pela história
tradicional.
Em 1993, o antropólogo Luiz Mott publica o livro Rosa Egipcíaca: uma
santa africana no Brasil, contando a história de Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz, uma negra africana que viveu no Brasil no século XVIII. Nessa obra, Mott
conseguiu recuperar a história de Rosa Maria, uma vez que, em 1763, ela tinha
sido enviada presa para os Cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e
o pesquisador, em 1983, encontrou na Torre do Tombo, em Lisboa, os três
processos que contam essa história.
Em 1725, Rosa Maria, oriunda da Costa de Mina, da nação Courana,
também conhecida como Courá, com apenas 6 anos desembarcou de um navio
negreiro no porto do Rio de Janeiro. Na ocasião, foi comprada pelo senhor Jo
de Souza Azevedo, que a mandou batizar na Igreja da Candelária.
Mott lembra que não é difícil reconstruir a vida da menina escrava
urbana, residente na freguesia da Candelária, onde provavelmente realizava
serviços domésticos compatíveis com sua idade: cuidava de crianças,
carregava objetos, dava recados, ajudava na limpeza da casa ou na cozinha.
Provavelmente foi nesta época que seus conterrâneos negros contaram-lhe que
era nativa do Porto de Judá, identificação que guardou para toda a vida.
Conforme os relatos do seu processo inquisitorial, aos 14 anos foi
desvirginada pelo proprietário de forma bastante violenta sendo, posteriormente,
vendida. Rosa Maria, então, foi comprada pela e do Frei José de Santa Rita
Durão e, deste modo, foi morar na capitania das Minas Gerais, na freguesia do
Inficcionado, próximo a Mariana, atual Santa Rita Durão.
Como acontecia com muitas escravas, Rosa Maria foi encaminhada para
a prostituição, vivendo então 15 anos como meretriz. Não é difícil imaginar
todos os constrangimentos, violências e doenças que essa jovem africana deve
ter sofrido na condição de prostituta, escrava e negra, numa região repleta de
homens aventureiros e carentes de mulheres.
Por volta de 1748, Rosa Maria, doente, decide deixar a prostituição.
Vende os bens que possui, as jóias e as roupas adquiridas com a venda de seu
corpo e distribui tudo aos pobres. Adota uma vida beata, ocasião em que
conhece o Padre Francisco Gonçalves Lopes, um sacerdote português, vigário
da freguesia de São Caetano, no mesmo distrito. Muito eficaz em “tirar o
demônio do corpo” de brancos e pretos, ele recebeu o apelido Xota-Diabos.
Impressionada com a cerimônia do exorcismo, Rosa revelou ao padre
Francisco Gonçalves Lopes que estava possuída por sete demônios. No
entanto, não deixa de ser curiosa a coincidência de que seu primeiro transe
religioso aconteceu ao de um santo negro, ex-escravo franciscano da Sicília.
Um segundo exorcismo, realizado nessa mesma freguesia, confirma ao
sacerdote que Rosa Maria era uma possessa especial, pois, quando vexada,
fazia sermões edificantes, sempre preocupada com que todos mantivessem
perfeita compostura nos templos, retirando à força para a rua quem
conversasse ou desrespeitasse o Santíssimo Sacramento. Quando possuída
por Satanás, falava grosso, caía desacordada e dizia ter visões celestiais. Após
os exorcismos, Rosa dizia ser arrebatada por um misterioso vento.
A fama visionária de Rosa espalha-se por Mariana, Ouro Preto e São
João Del Rei, sempre acompanhada do padre Xota-Diabos e de seus
exorcismos. Em São João Del Rei, Rosa Maria interrompe a pregação de um
missionário capuchinho, gritando que ela era o próprio Satanás, ali presente: é
presa e enviada para Mariana, sede do Bispado. Na prisão, é torturada. Tempos
depois é inocentada e, devido aos rituais de tortura a que foi submetida, fica
com o lado direito do corpo semiparalisado.
Mais tarde, Rosa muda-se para o Rio de Janeiro, onde revela sua vida
atribulada e seus dons espirituais ao Provincial dos Franciscanos, Frei
Agostinho de São José, que passa a ser seu diretor espiritual. A vida mística de
Rosa impressiona vivamente os franciscanos que inclusive lhe concedem o
título de “Flor do Rio de Janeiro”.
Conforme os registros do Santo Ofício, Rosa Maria afirma que, por meio
de uma visão celestial, recebeu ordem de Nossa Senhora para aprender a ler e
escrever. Sabe-se que ela foi a primeira africana alfabetizada de que se tem
notícia em nossa história; a esse respeito, Mott (1993) afirma que ela escreveu
um livro, do qual restaram algumas páginas manuscritas. Deste modo, Rosa
Maria passou a registrar suas visões. Às vezes, ela mesma escrevia e, em
outros momentos, ditava tudo para que suas escribas anotassem.
Também por “inspiração sobrenatural”, Rosa Maria funda, em 1754, um
Recolhimento para "mulheres do mundo" que pretendiam, como ela, trocar o
amor dos homens pelo do Divino esposo. Chegou a abrigar mais de vinte
moças-donzelas e ex-mulheres da vida, sendo metade delas negras ou mulatas.
Em seu misticismo, como católica fervorosa assistida por diversos
diretores espirituais, Rosa incorporou em sua espiritualidade o que de mais
moderno existia em termos de devoção na época, tal qual era praticada por
outras santas em Roma, Lisboa e demais metrópoles da Cristandade: a ex-
escrava, agora, a Madre do Recolhimento do Parto, foi a principal vidente e
divulgadora, em terras brasileiras, do culto aos Sagrados Corações.
Rosa Maria foi denunciada e, conseqüentemente, presa e enviada a
Lisboa para responder o processo inquisitorial do Santo Ofício, depois de ter se
indisposto com o clero carioca, tendo discutido com alguns sacerdotes, que
para ela o davam bom exemplo, pois conversavam, na igreja, durante as
cerimônias sacras. Também retirou à força, da igreja de Santo Antônio, uma
senhora da sociedade, que Rosa Maria julgou não ter se comportado
corretamente. Mas o que realmente complicou o desenvolvimento do processo
de Rosa Maria foi o fato de que, depois de presa, dezenas de testemunhas
passaram a denunciar as suas excentricidades.
O Padre Xota-Diabos foi preso juntamente com Rosa Maria e ambos
foram ouvidos pelo Santo Ofício, em 1763. O padre, no entanto, declarou ter
sido enganado pela falsidade da negra, alegando ser pouco letrado em teologia
e ter confiado na boa opinião que o Provincial dos Franciscanos dela fazia. E,
deste modo, tem como pena, apenas, o degredo de cinco anos para o extremo
sul do Algarve, além de perder o direito de confessar e exorcizar.
Rosa, por sua vez,um heróico espetáculo de autenticidade, insistindo,
em muitas sessões, que nunca mentiu nem inventou coisa alguma, e
confirmando que todas as suas visões, revelações e êxtases foram reais.
Enquanto os inquisidores esperavam que ela confessasse que eram
fingimento, os mecanismos que utilizou para chamar a atenção sobre sua pobre
figura, Rosa diz o contrário: "Tudo vi e ouvi" .
Em junho de 1765, ocorreu a última sessão de perguntas à vidente afro-
brasileira, ocasião em que narra uma de suas visões: que, estando para
comungar ouviu, uma voz sobrenatural que lhe dizia: "Tu serás a abelha-mestra
recolhida no cortiço do amor. Fabricareis o doce favo de mel para pores na
mesa dos celestiais banqueteados, para o sustento e alimento dos seus amigos
convidados." A partir daí, inexplicavelmente, interrompe-se o processo de Rosa.
Luiz Mott estranha o fato, pois entre mais de mil processos de feiticeiras,
sodomitas, bígamos, falsas santas e blasfemas que pesquisou, não encontrou
outro sem conclusão, como o de Rosa Maria. No entanto, o processo tinha
como última página o seguinte registro dos inquisidores: "Por ser avançada a
hora lhe não foram feitas mais perguntas, e sendo lidas estas anotações e por
ela ouvidas e entendidas, disse estar escrita na verdade, e assinou com o
Senhor Inquisidor, depois do que foi mandada para o seu cárcere".
6.2 A construção das personagens
Como se vê, o romance de Heloisa Maranhão não apresenta
preocupação em se manter fiel à história oficial na construção da trajetória de
vida da protagonista. Sendo uma narrativa carnavalizada, é preciso ter claro que
a história também passa a ser mascarada; assim, as personagens ficcionais
passam para o contato familiar livre do passado e de suas figuras históricas.
Lenice de Almeida Borges (1997, p. 47) lembra que as personagens ficcionais,
em contextos como esse, “falam e atuam sofrendo uma deliberada ’atualização’,
uma atualização para a qual contribui a narrativa feita no tempo presente”.
Deste modo, Xipoco-Xipocoé, espírito africano evocado por Xirico, aos gritos,
fala sobre a escravidão:
Tua contribuição é definitiva para a crônica de manifestação sádica contra
a pessoa humana. Para a história das perversidades nesta terra. Aqui se
tortura, explora, mata. Conheces a situação do povo. Mas sempre é bom
refrescar a memória. criancinhas mortas no ventre das mães, ou
esborrachadas ao nascer, pisoteadas no chão. Para alguns senhores do
engenho, vizinhos deste, a natalidade representa um aspecto
antieconômico para o regime escravista (MARANHÃO, 1997, p. 95).
Essa fala de Xipoco-Xipocoé, no entanto, o condiz com a visão de mundo do
período histórico em que a personagem se insere, ou seja, a fala se alicerça no
discurso histórico da atualidade.
Por meio da intertextualidade, com textos da história oficial, a autora
insere na narrativa nomes de personalidades históricas, além de situar o leitor,
no tempo e espaço em que os fatos se desenvolvem. Deste modo, os conflitos
relacionados à invasão holandesa no Brasil passam a fazer parte do universo
ficcional. Nomes conhecidos na história, como Dom Antônio Felipe Camarão, o
índio Poti; Matias de Albuquerque; Francisco Rebelo; Henrique Dias; Pedro
Albuquerque; André Vidal; Martins Soares Moreno; Ana Paes e o holandês
Jacó Rabi passam à categoria de personagem e garantem o diálogo com esse
episódio da história colonial brasileira. Do mesmo modo, os nomes de Brás
Cubas, Luís rtires e Fernão Dias Paes Lemes nos remetem ao papel dos
bandeirantes para a expansão territorial do Brasil. Esse recurso produz um
sentimento de credibilidade histórica.
Da mesma forma, em relação ao contexto histórico da Inconfidência
Mineira, ficcionalizam-se personagens como Tiradentes e o Dr. Alvarenga, mas
quando os nomes de Marília e Dirceu também são tomados como inconfidentes
esse pacto de credibilidade histórica se rompe. Fica apenas a orientação
espacial e temporal: “as Minas Gerais dos poetas árcades”.
No entanto, com o diálogo entre as personagens negras e escravas, a
autora resgata a história da escravidão no Brasil. Os nomes das personagens
negras, que são produtos da imaginação da autora, mas, através deles se
recupera uma história que foi apagada da consciência brasileira. Assim, com o
príncipe Ginuwa (pai de Xirico), Oyeomosan (mãe de Xirico), Nowa (vó de
Xirico), Velho Mbende, Xipoco-Xipocoé (espírito africano), Teodoro ou a grande
Hiena, Bárbara ou a escrava Sange (mãe de uma criança aleijada), as escravas
Quitéria e Zeferina com suas filhas, Manuel dos Santos (ou escravo Kush),
Opoku Waré, Kafuxi, Mtumba, Rasoherina, as escravas Matilde e Engrácia,
João Benguela e Caetano (escravos do Padre Xota) e a Negra (ama de leite
do Padre Xota), Heloísa Maranhão devolve ao negro um espaço histórico e
cultural que lhe foi negado ao longo da história brasileira. As lembranças do
velho Mbende, ou escravo Anastácio, narrando à Rosa Maria fragmentos de
suas vidas nos tempos em que viviam na África, exemplificam essa questão:
Nowa oba de Benim, teu avô, não gostava das idéias do seu filho, o
príncipe Ginuwa. Não gostava porque tendo oitenta esposas, jamais
consiguira o prazer com nenhuma delas. Contudo a gentil Derumo, tua
avó, e mãe do príncipe Ginuwa, era a favorita porque detinha o
conhecimento médico e descobrira a planta mandioca, ensinando todos a
cultivá-la e dela fazer farinha (MARANHÃO, 1997, 31).
A autora, valendo-se da voz da protagonista, questiona essa falta de memória
sobre a história dos negros. Rosa Maria, no entanto, tenta interromper o velho
Mbende: “Não quero me lembrar desse passado que ainda há pouco
desafiaste”(MARANHÃO, 1997, p.34), e diz mais: “não sou mais Mamana. Sou
escrava. Somos escravos, eu e tu, velho Mbende. Tu és o escravo Anastácio, e
eu, a escrava Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz” (Maranhão, 1997, p.34).
Essa resistência que Rosa Maria mantém em relação às memórias do seu
passado denuncia o processo de “desmemória” cultural que envolve o
desenvolvimento da narrativa de Heloisa Maranhão, uma vez que a história de
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz foi extraída da desmemória da história
oficial, e reorganizada no texto ficcional. Contudo, o é possível ignorar que a
protagonista do romance, além de ser mulher, é escrava e negra. E a história
que o romance de Maranhão tenta recuperar é a do regime escravista brasileiro,
já que, de acordo com Zilá Bernd,
Na verdade, é possível afirmar que a literatura negra surge como uma
tentativa de preencher vazios criados pela perda gradativa de identidade
determinada pelo longo período em que a ‘cultura negra’ foi considerada
fora da lei, durante o qual a tentativa de assimilar a cultura dominante foi
o ideal da grande maioria dos negros (BERND, 1988, p. 22).
O romance tenta resgatar a memória da escravidão, dos negros africanos, no
Brasil, valendo-se de um ponto de vista bastante singular: de uma mulher negra
e escrava. Deste modo, mesmo o romance sendo narrado por Rosa Maria na
primeira pessoa do singular, o discurso da protagonista narradora é constituído
de múltiplas vozes, pois Heloisa Maranhão o se prende aos dados
documentários quando constrói a protagonista, de modo que a personagem
Rosa Maria é resultado da fusão da vida de muitas outras escravas africanas,
que viveram no Brasil colonial.
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz também traz para o centro das
discussões alguns elementos da denominada “literatura negra”, considerando
que, para Zilá Bernd (1988), o conceito de literatura negra não pode ser atrelado
à cor da pele da autora, nem à temática desenvolvida no texto, uma vez que
“emerge da própria evidência textual cuja consistência é dada pelo surgimento
de um eu enunciador que se quer ser negro” (BERND, 1988, p. 22). Em outras
palavras, a condição negra deve estruturar e organizar o texto literário; deste
modo, “assumir a condição negra e enunciar o discurso em primeira pessoa
parecem ser o aporte maior trazido por essa literatura, constituindo-se em um
de seus marcadores estilísticos mais expressivos” (BERND, 1988, p. 22).
Assim, no romance de Heloisa Maranhão, com o diálogo entre as
personagens escravas, discute-se o regime escravocrata:
__ Ah, Dona Rosa Maria, a senhora sabe perfeitamente que nasci em
Benim. A senhora lembra de mim na praça principal seguindo o príncipe
Ginuwa, seu pai? Ou vindo o príncipe Ginuwa! “A expressão direitos
humanos aqui não existe. As vítimas não têm voz ativa para denunciar. Já
foi uma grande cidade. Hoje, moralmente é uma ruína. A
administração de vários obás se refletiu em várias lutas sangrentas pelo
poder. Obás tirânicos incentivam a tal ponto o tráfico de escravos, que um
dia essa região pode ficar despovoada. Estão vendendo a população.
fora justifica-se o comércio de cativos porque se sucedem os sacrifícios
humanos. Mata-se e come-se a carne do próprio irmão. A minha
preocupação é com os direitos humanos, os direitos inalienáveis de cada
um de vocês. A vida, a liberdade, a busca da felicidade.O respeito à
dignidade humana” (MARANHÃO, 1997, p. 145) .
O discurso que constitui a fala do escravo Kush também não condiz com a visão
de mundo da época. Essa situação sócio-econômica de Benim , na África, em
conseqüência do tráfico de negros, bem como a referência ao desrespeito aos
direitos humanos, são discussões contemporâneas. No entanto, esse recurso
literário garante a revisão crítica da participação do negro afro-brasileiro na
história da colonização brasileira.
A ficção permite a inversão histórica: quando ficcionaliza Dom Diogo
Velho de Cavalcante, ela reconstrói seu engenho, apresentando sua esposa, a
Sinhá, seu filho, André Leopoldo Afonso Fernando e o seu relacionamento com
a escrava Rosa Maria Egipcíaca, sua amante e herdeira. Ao mesmo tempo,
abre espaço para discutir outras questões atuais, como a sexualidade feminina
e a religião no Brasil colonial.
6.3 A sexualidade e a religiosidade no Brasil colonial
A sensualidade e o desejo sexual, durante muito tempo, foram temas
que ficaram fora da maior parte das discussões históricas e literárias. E, como a
protagonista se movimenta entre o profano e o sagrado, é necessário verificar
como essas duas categorias são abordadas no interior da obra.
Durante muito tempo o desejo sexual esteve relacionado à figura do
diabo. Na cultura ocidental, como diz Todorov (1975, p. 137), “o diabo não é
senão uma palavra para designar o libido”. Para o patriarcado, então, a relação
com a mulher, para não ser diabólica, devia ser vigiada e censurada
maternalmente. Desta forma, sexualidade e maternidade são temas que se
inter-relacionam no interior da narrativa.
No entanto, no romance de Heloisa Maranhão, o desejo, como parte da
sexualidade feminina, é um dos grandes temas discutidos, ”O amor, fruto do
prazer e da alegria, é um forte sentimento que não deixa ninguém indiferente,
sobretudo quando se vive neste país tropical” (MARANHÃO, 1997, p. 21).
Como o próprio subtítulo propõe, a protagonista vive entre a prostituição e a
santidade.
A obra se estrutura em torno de uma grande antítese, representada pela
dualidade da protagonista: Xirico, que representa a sensualidade, o profano, e
Rosa Maia Egipcíaca da Vera Cruz, representando o sagrado:
Ah, o sexo, fonte de vida, e de tudo quanto existe, intermédio da
natureza nos seus propósitos mais alto e de maneira geral nem
sempre bem apreendidos. É bom lembrar a regra dos cristãos, lei que
determina que o homem cresça e se multiplique. A esse respeito é
necessário acrescentar a firme determinação de gozar plenamente a
vida, mesmo quando as condições são adversas, como é o meu caso.
Eu Xirico, meu nome africano; Eu Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz, meu nome cristão (MARANHÃO, 1997, p. 21-22).
Sabe-se que a afirmação da sensualidade leva à negação da religião; então, a
conciliação desses dois elementos na narrativa possibilita uma reavaliação
crítica da condição da mulher, principalmente no que diz respeito à sua
sexualidade.Tanto que nos relatos da protagonista encontram-se idéias como:
“creio que o gozo pleno do sexo proporciona às criaturas inestimáveis
vantagens, como, por exemplo, libertá-las de medos e complexos que tanto
entristecem tantas vidas” (MARANHÃO, 1997, p. 22-23).
A dupla moral, característica da sexualidade brasileira a os dias de
hoje, manifesta-se no romance pelo fato de que, entre outras coisas, Dom Diogo
Velho Cavalcante Albuquerque, por pudores e preceitos religiosos, reprime-se
sexualmente com a esposa branca, figura exclusiva para a reprodução:
Sinhá é rude:
Em toda minha vida dormi com meu marido, Dom Diogo Velho
Cavalcante de Albuquerque, três vezes, na noite de nosso casamento. A
segunda vez para fazer o nosso segundo filho. A terceira vez para
igualmente fazer mais um filho:o terceiro. Depois, então, Sinhô desistiu de
fazer mais filhos (MARANHÃO, 1997, p. 57).
Por outro lado, Dom Diogo não tem freios no relacionamento sexual com Rosa
Maria Egipcíaca:
Ele chama todas as noites o seu Amigo Principal 1 e o seu Amigo
Principal 2 que também são limpinhos e promovem pequenas festas
em sua suíte e nelas evidentemente, ele e seus dois amigos, que não têm
nenhuma doença, me cobrem várias vezes, e no final dormimos todos
juntos, na linda cama de Dom Diogo, que tem esta rica colcha bordada
com fio de ouro (MARANHÃO, 1997, p 63).
O relacionamento de Sinhá e Dom Diogo representa o sagrado, pois eles são
autorizados a procriar, conforme as regras da igreja cristã. os prazeres
sexuais, que a escrava Rosa Maria Egipcíaca (ou Xirico) proporciona a Dom
Diogo e a seus dois amigos em rituais de orgia, estão relacionados ao profano.
Tornar-se amante de um branco, ou mesmo prostituir-se, eram as únicas
alternativas que as negras ou mulatas tinham para amenizar a escravidão, ou,
em casos mais raros, de se tornarem livres. Documentos históricos do período
mostram que muitas negras conseguiam, através do mercado do sexo, juntar
dinheiro com o qual compravam sua alforria. Mas, depois de livres, continuavam
a vender o sexo, pois nada sabiam fazer e não possuíam patrimônio. Por outro
lado, algumas ex-escravas se tornaram respeitáveis donas, es de família e
senhoras de outros escravos.
Dialogando com essas informações históricas na narrativa, a
protagonista, além de ser alforriada, herda de Dom Diogo uma mina bastante
próspera, nas Minas Gerais. Como uma respeitável moradora de Vila Rica,
Rosa Maria passa a viver uma nova fase de sua vida. Assim, uma aparente
trégua é estabelecida com o profano. Conseqüentemente, Rosa Maria
Egipcíaca quer ser uma boa cristã. Com a visão da aparição da Santa Rosa de
Lima, que a questiona: ”Você é cristã, princesa Xirico de Benim?” (MARANHÃO,
1997, 125), Rosa Maria decide virar santa: “estimaria muito virar santa, já, e não
somente depois de morrer” (MARANHÃO, 1997, p. 210). O Padre Xota, então,
lhe informa que ser um bom cristão “é expulsar o pecador do templo”
(MARANHÃO, 1997, p 126). Diante dessas orientações do Padre Xota, a
protagonista, com um chicote nas mãos, expulsa alguns pecadores do templo
em que seu confessor pregava. Não compreendida, o Padre Xota e o Frei
Alberto exorcizam Rosa Maria, sob a alegação de que ela estava possuída pelo
demônio :
Por favor, Padre Xota, em nome de Cristo, estou muito bem.
Não vou mordê-lo, não estou agressiva, não vou vomitar verde. O senhor
me disse que ser um bom cristão, o que eu tinha que fazer era do
templo expulsar o pecador.
Padre Xota guarda silêncio. Depois me adverte:
Então, de joelhos, assista a missa pensando nos sofrimentos
de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz.(MARANHÃO, 1997, p 233)
Com a comicidade desse fato, a autora faz uma crítica severa à igreja do Brasil
dos tempos da colonização, que, seguindo os preceitos estabelecidos pelo
Santo Ofício, censurava, oprimia e vigiava as mulheres.
Essa repressão à mulher chega a absurdos de considerá-la bruxa ou
feiticeira; no entanto, não resta dúvida de que na história das mulheres as
feiticeiras fazem parte das páginas mais cruéis escritas pelo patriarcado, uma
vez que foram muitas as mulheres queimadas pela inquisição, pois o tabu
sexual que imperava na Idade Média fundava-se na maldição bíblica de Eva.
Assim, o corpo feminino era visto como fonte de malefícios, capaz de enfeitiçar
o homem e conduzi-lo à queda, como o que se abateu sobre Adão. A mulher
era acusada de cometer rituais satânicos em que copulava com o demônio,
recebendo dele o seu poder. Ou seja, é pelo sexo que a mulher se faz bruxa, o
que justifica a abominação do seu sexo pela igreja. Mesmo que o romance não
faça referência direta ao fato de que, na história oficial, Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz foi presa e julgada pela Santa Inquisição, por ter cometido atos
de bruxaria e feitiçaria, além de ter se desentendido com o clero, percebe-se o
diálogo com esses elementos da história ao longo de toda a narrativa.
No romance, Rosa Maria Egipcíaca é feiticeira, pois invoca Xipoco-
Xipocoé e cura o filho de Sanja: “com punhos fechados, dou socos no ar,
expulsando os Xicuembos (espíritos malignos) que arrodeiam o menino”
(MARANHÃO, 1997, p.48); alfabetiza-se em apenas três dias: “foi com a grande
arte que aprendi com a rainha Desrumo que consegui falar, ler e escrever a
língua do Brasil em três dias” (MARANHÃO, 1997, p.37) e devolve a juventude
ao velho Mbende: “volta a ser o jovem ágil, considerado o melhor caçador de
leões de todo o reino de Benim” (MARANHÃO, 1997, p.81) . Assim, valorizando
a figura mítica da feiticeira, Heloísa Maranhão devolve à bruxa o espaço que lhe
foi tirado, principalmente, se se considerar que a figura da bruxa está
relacionada à sexualidade, cujo medo faz o patriarcado ver a opressão como
uma forma efetiva de controlar a mulher.
6.4 Intertextualidades
O jogo intertextual, no romance de Heloisa Maranhão, vale-se de
diversos textos literários. Há, por exemplo, a referência aos personagens da
poesia árcade brasileira Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga: ”A
senhora Marília tocando piano. O senhor Dirceu fazendo-lhe versos. Todo
mundo sabe os nomes dos inconfidentes” (MARANHÃO, 1997, p.225). Com o
intuito de inserir a narrativa no contexto sócio-histórico- cultural mineiro, a
autora se vale de fragmentos poéticos de escritores como Camões, Basílio da
Gama, Silva Alvarenga e Almeida Garret.
Objetivando a construção do espaço historicizado da obra, Heloisa
Maranhão ficcionaliza Silva Alvarenga e sua esposa Bárbara Heliodora: “o
doutor Alvarenga é fazendeiro abastado, dono de engenho de cana (...) é
esposo de uma grande mulher: Dona rbara Heliodora, que além de bela é
muito dedicada a seu esposo, à sua prole e por que não dizer, à sua terra”
(MARANHÃO, 1997, p.194). Vale destacar que, neste caso, Heliodora é
lembrada por ter participação política no movimento, apontando para páginas da
história que foram esquecidas por muitos historiadores.
Outros intertextos apresentam uma relação mais direta com o texto
literário, ou seja, o senhor Leôncio, conversando com Rosa Maria, quando se
refere ao Dr Alvarenga, recita um fragmento poético:
Suave fonte pura,
Que desce murmurando sobre a areia,
Eu sei que linda Glaura se recreia
Vendo em ti de seus olhos a ternura;
Ela já te procura;(MARANHÃO, 1997, p.193).
O fragmento foi extraído de “Madrigal”, uma das poesias do livro Glaura,
poemas eróticos, publicado em 1799, por Silva Alvarenga.
Rosa Maria, falando sobre seu relacionamento sexual com Dom Diogo e
seus dois amigos, revela que o Amigo Principal 2 recitava poesia durante as
“festinhas” sexuais: ”em lugar de me cobrir, ele prefere recitar poesias e lembrar
um amor distante que, sem mais nem menos, resolveu morrer” (MARANHÃO,
1997, p. 63). A narradora não indica a autoria do texto:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente.
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Algũa cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou (MARANHÃO, 1997, p. 63).
Mas, por se tratar de um soneto conhecido de Camões, o Soneto 48, obra
inspirada numa moça oriental que naufragou e morreu, com o poeta, na foz do
Mécon, o leitor não tem dificuldade de identificar a autoria.
Os escravos, que acompanhavam Rosa Maria e o Padre Xota na viagem
até Minas Gerais cantavam umacara portuguesa que narra as peripécias de
uma longa travessia marítima: as calmarias que esgotaram os mantimentos, a
sorte para sacrificar um dos tripulantes, a presença da tentação diabólica e a
intervenção divina, levando a nau a bom porto. Trata-se de um poema publicado
em 1843, por Almeida Garrett, no seu Romanceiro e Cancioneiro Geral. Como
essa xácara se popularizou bastante, é difícil identificar todas as versões, mas
Heloisa Maranhão resgatou a seguinte:
A nau Catrinete chegou
chegou do mar escuro
Tem muito o que contar
Histórias?
Uma de pasmar.
Muito tempo era passado
Que iam na volta do mar
Já não tinham o que comer
Já não tinham o que manjar
Deitaram sola de molho
Pra o dia jantar
Mas a sola era tão dura
Que não podiam rilhar
Escolheram quem haviam de matar
Deitaram sorte, e a sorte vai cair?
Cair no capitão general!
A Nau Catrinete chegou
Chegou... (MARANHÃO, 1997, p. 143)
O jogo intertextual que constitui a narrativa apresenta vários outros
fragmentos poéticos, como também pequenos trechos de canções africanas.
Avaliando, de forma mais generalizada, as construções intertextuais do
romance, percebe-se que elas revelam ao leitor, à revelia do autor, muito de
seus valores e dos valores de seu tempo, uma vez que a intertextualidade
eterniza e nova feição aos mitos e às emoções humanas e comprova que os
textos se completam e se inter-relacionam.
6.5 Alguns elementos da literatura fantástica
Sem pretender classificar o romance de Heloísa Maranhão como
“fantástico”, que se pretende apenas verificar como a autora aproveita alguns
elementos da literatura fantástica na construção do universo ficcional de Rosa
Maria Egipcíaca da Vera Cruz, é interessante relembrar as concepções sobre o
fantástico de Tzvetan Todorov (1975). Para o teórico, o fantástico dura somente
o tempo de uma hesitação comum, tanto para o leitor como para a personagem,
que por sua vez precisam decidir se o que percebem depende ou não da
realidade, da mesma forma que existe na opinião comum. Nesse sentido, o
teórico afirma que o fantástico está entre o limite do gênero “maravilhoso” e do
“estranho”:
No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma
decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico.
Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem
explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro
gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas
leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no
gênero do maravilhoso (TODOROV, 1975, p. 48).
Para Todorov, é bastante natural encontrar, no interior do romance escrito por
escritores ou escritoras negras, duas tendências: a do sobrenatural explicado, o
estranho e a do sobrenatural aceito, o maravilhoso, uma vez que, é nesse tipo
de romance, que se vai ter o grande período da literatura fantástica.
Etimologicamente, o termo “fantástico” vem do latim, phantasticu, que por
sua vez originou-se do grego, phantastikó, ambos ligados a phatasia, ou seja,
aquilo que é produto exclusivo da livre imaginação, do irreal, do fabuloso. Então,
alguns fatos narrados em Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, como a cura
milagrosa do filho da índia Sange, o retorno à juventude concedido ao velho
Mbende, o aprender a falar, ler e escrever a língua falada no Brasil em apenas
três dias, entre vários outros, podem ser entendidos como realismo mágico,
uma vez que tudo aquilo que escapa da esfera dos sentidos é considerado
mágico.
Mas, não é exclusivamente no aproveitamento de descrições
inverossímeis, do mundo mágico, que o romance de Heloisa Maranhão
apresenta elementos da literatura fantástica. A temática do desejo sexual é um
desses elementos, tanto que a narradora introduz seus relatos convidando o
leitor a acompanhá-la nessa aventura pela estrada da sensualidade, do desejo
e do prazer sexual: “É claro que não estou interessada na exaltação dos
instintos. Ou estaria? Porque não estou convidando quem quer que seja ao
escândalo. O que eu quero é dar prazer, alegria, conforto aos outros”
(MARANHÃO, 1997, p. 21).
A partir daí, iniciam-se os relatos das variações sexuais. A primeira delas
é o relacionamento estranho que mantinha com Dom Diogo e seus dois amigos
(Amigo Principal 1 e Amigo Principal 2). Está o desejo sexual relacionado
à figura do diabo, o “amor a quatro” (Rosa Maria, Dom Diogo, Amigo Principal
1 e o Amigo Principal 2), que, para Todorov (1976), também pertence ao
universo do fantástico: “me cobrem várias vezes, e no final dormimos todos
juntinhos” (MARANHÃO, 1997, p. 63).
No romance de Heloisa Maranhão, elementos da literatura fantástica
conferem um caráter profundamente irônico a determinados fatos da narrativa.
Assim, André Leopoldo Afonso Fernando, filho de Dom Diogo, tem um
relacionamento sexual com uma cabra. Na narrativa, a cabra é personificada,
revelando suas angústias e humilhações em ser amante de um homem; por
isso, ela foge, pedindo proteção num quilombo de escravos. O rapaz
enlouquece e se recupera quando Rosa Maria traz a cabra de volta para ele:
Ah Fujona, bem que tu merecias que eu te fizesse uns ciúmes, pondo-me a
beijar os beiços de um cavalo qualquer de nossas cavalariças” (MARANHÃO,
1997, p. 84).
Os relatos da morte, ou desaparecimento, do escravo Diop apresentam
os fatos mais inesperados e inexplicáveis da narrativa. E é nesse espaço que
aparece outra variação dos relacionamentos sexuais, o homossexualismo:
Observo com estupor dois velhos sodomitas, acoplados sem pudor
entre as formosas árvores que bordam as margens do rio e formando
um horrível animal de quatro patas e duas cabeças, divertindo-se
com as mais variadas acrobacias retais. Um par de macacos se
masturbava diante deles (MARANHÃO, 1997, p. 165).
Para Todorov, o homossexualismo é uma “variedade de amor que a literatura
fantástica retoma freqüentemente” (1975, p. 140).
A presença de uma serpente enrolada na muringue de água do quarto é
outro elemento fantástico presente na narrativa: “Há uma cobra enrolada no
muringue. Quando me aproximo, a cobra com toda cortesia se desenrola do
muringue. (...)Termino de beber. Olho a cobra. Ela se enrola no muringue. Volto
para a cama. Deito. Durmo” (MARANHÃO, 1997, p. 61). A imagem mitológica
da serpente assume um papel fundamental, pois ela está associada à essência
primordial da natureza, à fonte original de vida e ao princípio organizador do
caos. Ela é constituída por um grande paradoxo: por um lado, exprime uma
ameaça, que de seu veneno pode sobrevir a morte; por outro, sintetiza o
mistério da vida, através do processo de renovação de sua pele, que se
atualiza em movimento rejuvenescente. Ainda em relação à serpente, é
necessário lembrar que esse ser remete ao mito de Adão e Eva, uma vez que
foi ela que induziu Eva a seduzir Adão. Então, para o mito cristão a
serpente/mulher ameaça a ordem patriarcal, de forma que Rosa Maria, depois
de se deparar com a serpente na muringue e retornar a dormir, sonha, ou se
encontra, com a sua padroeira cristã, que lhe sugere tentar ser “uma santa
cristã”. A autora, desta forma, denuncia a religiosidade como um dos
mecanismos de interdição da sexualidade da mulher.
O vento é um elemento do fantástico que aparece na narrativa nos
momentos que vão anteceder algum fato sobrenatural: “sopra um vento forte”
(MARANHÃO, 1997, p. 16). A presença do vento realça também a força do
sincretismo afro-judaico-cristão no imaginário da protagonista, pois, na tradição
do Velho Testamento, Javé é referido como vento, sopro, ar, hálito; no Novo
Testamento, o Espírito Santo aparece em forma de vento, além de estar
presente em inúmeros episódios ticos afro-brasileiros. Mott (1993) relata que
no processo inquisitorial, Rosa Maria faz referência à presença do vento
“misterioso” assolando episódios de sua vida.
Por fim, para Todorov, o fantástico tem duas modalidades: fantástico-
estranho, quando os “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de
toda a história, no fim, recebem uma explicação racional“ (1975, p. 51), e o
fantástico-maravilhoso, que ocorre quando as narrativas, que se apresentam
como fantásticas, aceitam o sobrenatural. O romance de Heloisa Maranhão está
mais próximo dessa segunda proposição.
6.6 A linguagem carnavalizada do romance
Pode-se dizer que Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é uma releitura
crítica da história da mulher no regime escravocrata brasileiro, graças ao seu
caráter carnavalesco. Como foi dito anteriormente, a narrativa enquanto texto
ficcional carnavalizado rompe com as regras naturais, tanto no conteúdo como
na forma e o aparente “caos” apresentado nesse texto (re) organiza a releitura
da história. Cristóvão Tezza (2003, p. 22), discutindo o conceito de
carnavalização, acrescenta: “A toda cultura - e toda linguagem oficial e
centralizadora contrapõe-se a força de estratificações e linguagens não oficiais
descentralizadoras, que incluem a categoria do riso popular e do realismo
grotesco”.
No romance, encontram-se muitas formas de carnavalização. O Padre
Xota aparece exorcizando Rosa Maria, por acreditar que ela se encontrava
possuída pelo demônio, mas a escrava declara que expulsou a chicotadas
aquelas pessoas da igreja por seguir orientação dada por ele: Ser um bom
cristão é expulsar do templo o pecador!” (MARANHÃO, 1997, p. 232). Eis um
exemplo em que a carnavalização possibilita o enfrentamento do poder
instituído, subvertendo o formal e o sério. Ou, de forma mais extrema, o relato
carnavalizado do demônio que se apossa de vários corpos em Vila Rica:
Mal saímos, deu um ar, digo, chegou o demônio e ali se instala na
coitada. Passou a quebrar tudo (...) ao mesmo tempo berrava:
...olha o sapo dentro do saco
o saco com o sapo dentro
Eu sou um sapo
O sapo batendo papo
E o papo soltando vento.
“Socorro! Olha o sapo! Verde, fedorento! É noite...estou no mato. Bluffr!
Neblina grossa. Precisa ter cuidado. Mulher que passa perto de sapo?
Buchada. Arruma filho de sapo. Vai nascer. Meu filho é meio gente e meio
sapo. Dou à luz a um monstrengo. Eu o mato. Não quero filho meio gente
meio sapo. Eu me abaixei no mato. O sapo entrou por baixo!” (Maranhão,
1997, p. 201).
Valendo-se de intertextos do folclore brasileiro, Heloisa Maranhão reinventa de
forma carnavalizada a linguagem da narrativa e, desta forma, com o humor que
se instaura no texto, questiona os rituais de exorcismo do Brasil quinhentista.
Também é através da carnavalização que a autora personifica a cabra,
concede-lhe sentimentos, transformando-a em amante do filho de Dom Diogo :
Grande Zambi, sou uma humilhada e uma ofendida. Os jovens senhores
são dados a monstruosos desvios. Tens o compromisso com os
injustiçados. Jamais conceberei uma cria. O mufana (moço) André
Leopoldo Afonso Fernando, em vez de copular com as belas escravas de
seu pai, se atira sobre mim, e sou eu o pasto insuportável de sua
indecente lascívia. Nenhum bode se aproxima de mim. Todos os animais
riem de mim. Consideram-me uma desclassificada (MARANHÃO, 1997,
p.41).
Observa-se, aqui, a inversão de valores. A cabra é humanizada, o homem é
“animalizado”. Esse é um ato carnavalizado, que rompe com o estático e o
oficial, correspondendo, como no carnaval, ao “destronamento” dos códigos
oficiais e suas estruturas opressoras.
No romance, Heloisa Maranhão parodia a história. Assim, o mais
importante passa a ser a aventura da idéia sobre a história e não o aspecto
verídico em si. Então, a autora traça a trajetória da protagonista, com suas
angústias e desejos, transgredindo a história oficial, uma vez que numa
narrativa carnavalizada a própria história passa a ser “mascarada”.
6.7 A metaficção historiográfica
Como nos romances históricos pós-modernos, em Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz, percebe-se uma aparente indiferença em relação ao estatuto do
texto. Rogério Lima (1998) afirma que pouco importa saber como e onde se
inicia, como se encadeia ou onde termina um romance pós-moderno. Do
mesmo modo, Heloisa Maranhão rompe com o estatuto textual tradicional, como
reclama a personagem Rosa Maria à escritora: “Todo romance tem começo,
meio, fim. Você escritora, pluft! Mandou tudo pelos ares. Onde estão os
personagens? eu consegui voltar. Por quê? Sou neta de Derumo. Também
conheço arte mágica” (MARANHÃO, 1997, p. 237).
Assim, nos primeiros capítulos da obra, a autora, a protagonista (Rosa
Maria Egipcíaca da Vera Cruz), o padre Xota e o escravo Ismael se encontram
inusitadamente. Como resultado do encontro, algumas das concepções que
vêm constituir o romance pós-moderno são apresentadas para o leitor. Pela voz
do Padre Xota, o leitor é alertado do caminho que vai percorrer lendo o texto:
Acalme a sua ansiedade, Desative. Amanse seu sangue. Cuidado
com a adrenalina. Compreendo bem os poetas. Você, poeta, não é
bem vista pela manada. Você é dentro de você totalmente subversiva.
Contudo, você sabe muito bem que o ódio e o ressentimento do
medíocre servem para fortalecer, temperar a virtude dos poetas. O
mergulho no abstrato pode levar a perigoso abismo. Não se preocupe
com a moral, refúgio de velhos e enfermos (MARANHÃO, 1997,
p.12).
Diante do caráter metaficcional do romance de Maranhão, o Padre Xota lembra
a escritora que ela trabalha com ficção, ou seja, com invenção. Diante disso, ela
não precisa se preocupar com a moral vigente, pode subvertê-la pois essa é a
função do romance pós-moderno. Então, subverte-se o conteúdo e a forma na
busca em busca da verdade. O leitor, confuso, se pergunta: o que Xirico, o
Padre Xota e Ismael estão fazendo no quarto da escritora? O que a escritora
está fazendo no início do livro?
No romance histórico é natural o escritor pesquisar os fatos que pretende
narrar. E esse trabalho de levantamento dos fatos históricos, por parte do autor,
é percebido em todo o desenvolvimento do texto. Mas, na obra de Heloisa
Maranhão, um elemento diferenciador interfere, mesmo que indiretamente,
nesse processo de levantamento dos dados históricos, ou seja, o processo de
criação vale-se da ficcionalização da autora também. A autora se ficcionaliza,
passa à categoria de personagem, ficcionalizando, também, as fontes da
história: ela vê, ouve e conversa com o espírito dos seus personagens, e, mais
especificamente, com Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. Do mesmo modo
que Rosa Maria vê, ouve e fala com Xipoco-Xipocoé e com as santas da cultura
cristã: ”que é o que você, escritora, que é, quero dizer, o que eu, que sou você,
sempre me desejei das pessoas” (MARANHÃO, 1997, p. 13). Essa situação
liberdade de criação à escritora, que não precisa mais se preocupar com o que
dizem os documentos históricos ao contar a trajetória de Rosa Maria.
Isso explica por que, no segundo capítulo, “Ainda bem no começo”, a
narrativa, situada no presente, refere-se a uma menina, que parece ser a
autora, mas que se chama Xirico: “o amigo Edwino Friedrichs chega a qualquer
momento. Ele sabe das coisas. Resolveu com absoluta segurança o caso no sul
do país” (MARANHÃO, 1997, p.18). Edwino Fridrichs, então, é o exorcizador do
presente. Xirico se apoderava do corpo da futura escritora, a menina, que tem a
função de escrever a história de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz. É
interessante lembrar que os documentos oficiais apontam Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz como a primeira escrava africana que escreve um livro. Então,
Rosa Maria também é escritora.
Deste modo, através do espírito de Rosa Maria, o discutidos no
romance alguns conceitos dos estudos de gênero na literatura. Quanto ao papel
da escritora, se diz: ”Acredito que seja bom para esta escritora escrever. Sendo
ela uma mulher compulsiva, verbalizar os seus sentimentos é sem vida a
forma esplêndida de exercitar o seu erotismo” (MARANHÃO, 1997, p.13). Com
relação à função da literatura, temos: ”o reino da fantasia, o fascínio da mente,
são um caminho seguro para qualquer um exorcizar a luxúria de sua carne”
(MARANHÃO, 1997, p.13).
Ao longo da narrativa, Rosa Maria ouve uma voz que não identifica,
apesar de lhe parecer familiar. Mas, no último capítulo, ela percebe que era a
voz da escritora: ”você chamou-me algumas vezes e eu não reconheci sua voz”
(MARANHÃO, 1997, p.237). Para Bakhtin (1997), a multiplicidade de vozes e
consciências, independentes e imiscíveis, bem como a autêntica polifonia de
vozes plenivalentes, constituem a peculiaridade fundamental dos romances
polifônicos. Deste modo, o romance de Heloisa Maranhão, enquanto romance
histórico pós-moderno escrito por uma mulher, vale-se do jogo polifônico para
dar voz às mulheres silenciadas e oprimidas pelo patriarcado. Pois, como autora
diz a Rosa Maria, o romance possibilita ”resolver o que não foi resolvido,
inventar para desabafar, consertar o desconsertado” (MARANHÃO, 1997, p.
237).
6.8Conclusão
Desta forma, pode-se dizer que Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz
reconstrói a trajetória de uma mulher negra, e escrava, no Brasil Colonial,
buscando, na desmemória da história contada por homens brancos, os dados
históricos. Assim, por meio da paródia, o romance se apropria da cultura
dominante branca masculina para subvertê-la, o que ocorre através da
carnavalização e do maravilhoso.
O romance é narrado em primeira pessoa, mas a fala da protagonista é
povoada de vozes, pois na reconstrução da vida de Rosa Maria, a autora não é
fiel aos dados documentados. Assim, a protagonista é construída a partir da
fusão da vida de várias escravas. Esse caráter polifônico, no entanto, extrai a
mulher negra da marginalização histórica e literária.
Então, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz pode ser classificado como
metaficção historiográfica, tendo em vista as rupturas estruturais que apresenta
e a forte presença da metaficção. E também pelo fato de o romance, quando
tenta narrar a história de vida da afro-brasileira Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz, revelar que essa história apresenta múltiplas versões de uma verdade
que não é possível captar.
TERCEIRA PARTE
7. O ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO ESCRITO POR
MULHERES
A partir de 1990, um considerável número de romances históricos de
autoria feminina é publicado no Brasil. Esses romances são bem diferentes dos
textos literários que vinham sendo editados pelas escritoras brasileiras da
geração de 70, pois, na ficção histórica, segundo Luiza Lobo (2002), as
escritoras não direcionam mais seu olhar exclusivamente para seu mundo
particular: elas enfocam o contexto exterior.
Essa mudança de enfoque é uma conseqüência do que está sendo vivido
no contexto histórico-social, pois “na medida em que a mulher se torna agente
no mundo de ação, e não objeto passivo do desejo do outro, é natural que ela
deseje transmitir sua experiência na ficção” (LOBO, 2002, p. 110). Em outras
palavras, a participação da mulher no mercado de trabalho e na produção
intelectual, somada ao desenvolvimento do capitalismo, fez a sociedade ser
mais pragmática, mudou as exigências e as necessidades das escritoras e
leitoras.
Como a literatura feminina das décadas de 1970 até 1990 de modo geral
foi influenciada por Clarice Lispector, a visão de mundo adotada era mais
pessoal, voltada para um “eu interior”:
Isolada do trabalho e da vida exterior, a escritora voltava seu olhar para o
particular, movimento exatamente antagônico ao da história, que é a
capacidade de contextualizar atos, unir fatos externos e gerais e tirar
conclusões sobre eles, discorrer e emitir opiniões que alcançam o
cotidiano de um conjunto de pessoas, sob o ponto de vista exterior e
político e mostrar conhecimento de elementos estranhos à vida pessoal
da autora (LOBO, 2002, p. 111).
A partir da década de 1990, o romance histórico de autoria feminina abre um
novo viés nos estudos literários, uma vez que, por meio deste subgênero, a
ficção feminina conquista um espaço singular. Desse modo, a leitura de
romances como Desmundo, Os Rios Turvos e Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz aponta para outra tendência na ficção, abordada por Luiza Lobo (2002,
p. 114), como “a união da visão do real com a ênfase na linguagem pessoal
subjetiva”, resultando em novo amadurecimento da literatura feminina. Esses
textos, então, conseguem harmonizar na linguagem ficcional o mundo exterior
com suas implicações sociais, históricas e culturais, e o mundo particular, de
caráter confidencial, memorialístico e intimista.
Deste modo, é possível falar de um novo viés na escrita feminina, pois,
como no romance histórico contemporâneo, tem-se a busca do sentido da
mulher na história, e outros temas antes ignorados pela ficção e pela história. A
sexualidade e a maternidade, por exemplo, voltam a serem enfocados, mas,
desta vez, resultam de construções discursivas de mulheres. Lúcia Castello
Branco (1989) acredita que essa opção temática pode constituir o eixo de uma
possível escrita feminina, pois “entre tantas atitudes divergentes e
contraditórias, permanece uma tênue e difícil trajetória comum: a busca de
identidade” (BRANCO, 1989, p. 109).
7.1 Erotismo e sensualidade na escrita feminina
Vale lembrar, que na mitologia grega, Eros é uma das energias
primordiais, geradora da união do céu e da terra, juntamente com o aparente e
inofensivo Cupido, o filho maroto de Afrodite, a deusa do amor em todas as
suas formas. O mito de Eros une o universal e o singular, encarna o sublime
amor e o fogo da paixão, resolvendo o problema da gênese do mundo. É, ainda,
a energia de ligação do Cosmos com cada ser vivo. Em suas flechas, esconde o
poder sobre o desejo, a fantasia e o impulso erótico.
No entanto, a repressão à sexualidade feminina fez com que a
sensualidade da mulher fosse estigmatizada, ignorando que o erotismo faz
parte do tempo, dos homens e da vida.
Ana Miranda, em Desmundo, valendo-se dos relatos da protagonista,
descreve o primeiro encontro sexual de Oribela e Francisco, momento especial
em que se “desnuda” o ritual erótico e, deste modo, as fantasias sexuais
desaparecem, prevalecendo um instinto sexual “quase primitivo”:
Logo se tornou num cachorro que vi sobre uma cadela de rua, um ganso
numa gansa, no Mendo Curvo, ou um padre na freira, no mosteiro,
arfando, me pegar pelo cabelo, se prestar a mais nada, uma muito
estranha coisa para ser criação de Deus, quem seria que inventou fêmea
e macho e fazer uns mais fortes e umas mais débeis que nem meus
braços davam conta dos dele nem as pernas dele se apiedavam das
minhas, que eu estava a temer de me quebrar os ossos e rasgar pela
metade, de forma que demorou mais que um torneio, embora fosse
demorado de menos, tal era a impressão, a uivar e amiúde, um barco em
ondas altas e desmoronou sobre mim (MIRANDA 1996, p.77).
A comparação do ritual sexual com animais, “cadela de rua” e “ganso numa
gansa”, e com as relações ilícitas praticadas pelos religiosos: “um padre na
freira”, faz com que o sexo passe a ser concebido como um ato grotesco.
Assim, denuncia-se a repressão à sexualidade da mulher, rompendo com a
visão da Igreja enquanto instituição repressora, bem como a concepção sexual
do patriarcado, que visualiza a mulher como uma simples “fêmea” que serve
seu macho e reproduz.
Em Os Rios Turvos, a relação do sexo como um ato animalesco também
aparece, mas nesse caso a crítica está apenas exposta, diferentemente do que
ocorre em Desmundo, onde a voz da protagonista, narradora feminina, se
entrecruza com vozes da história e da cultura, produzindo a crítica que é
percebida nas entrelinhas do texto:
Que me perguntas?
Pergunto-te o que cantas, ó puta aleivosa.
Bento enlouqueceste? Que palavras são essas, e por que me
chamas de arca de Noé?
Chamo-te tal porque não fica animal que em ti não entre.
De que estás a falar, Bento?
Não me venhas a dizer que não é verdade. Disse-me alguém
digno de fé que tivesse comércio carnal com o tal Antonio Lopes Sampaio
(FERREIRA, 1993, p. 152).
O texto de Luzilá Ferreira realiza a crítica como se estivesse levantando uma
das bandeiras do feminismo, ou seja, os fatos e idéias são abordados pelos
personagens, ou pela narradora, de forma direta no texto. Situação que também
pode ser exemplificada com o fragmento em que Bento declara a Filipa ser o
juiz Gaspar Francisco quem lhe revelou que ela o estava traindo com o senhor
Antonio Lopes Sampaio:
Não modos de conversar contigo. Não me crês nunca e acreditas
em tudo o que qualquer um conta sobre mim.
Não foi qualquer um, foi o juiz.
Pois juiz que seja, não falou a verdade.
Queres insinuar que o senhor juiz Gaspar Francisco imaginou essa
cena? (FERREIRA, 1993, p.152).
A justiça masculina, representada pelo juiz, é questionada sem nenhuma sutiliza
pela voz feminina. Mesmo sabendo que essa informação resulta do diálogo com
textos históricos, ela é colocada no texto de forma direta e acabada. E muito
diferente da técnica usada por Ana Miranda, que questiona a postura da Igreja,
mostrando ao leitor (“um padre na freira”) as aberrações cometidas, sem
precisar denunciar declaradamente.
No romance Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, a questão aparece
carnavalizada. Assim, o “sexo animal”, passa a ser “sexo com animal”: “o jovem
André Leopoldo Afonso Fernando, filho de Sinhá e de Dom Diogo Velho
Cavalcanti de Albuquerque, copulando com uma cabra” (MARANHÃO, 1997,
p.27). O encontro do jovem rapaz e da cabra é flagrado pela escrava Rosa
Maria:
Ele afaga o animal. Beija a cabra em suas partes mais íntimas. Bate na
cabra com o dorso na mão, com dedos reunidos, a palma da mão aberta
e o punho fechado. A cabra geme. Sinhozinho morde a cabra ferozmente.
Agora ele se põe a imitar o zumbido das abelhas, o arrulho das pombas,
os gritos dos papagaios e o grasnar dos patos. Chupa as tetas da cabra
(MARANHÃO, 1997, p. 27).
As descrições das pulas entre Sinhozinho André e a cabra, bem como, entre
Oribela e Francisco Albuquerque apresentam elementos comuns: Oribela (“que
eu estava a temer de me quebrar os ossos e rasgar pela metade”) e a cabra
são postas como meros objetos de prazer: “Sinhozinho torna a copular
alegremente com a cabra. No rosto do animal o terror se estampa”
(MARANHÃO, 1997, p. 27-28). Em situações como essas, ignora-se que Eros é
a atração, que cria dentro de cada indivíduo o desejo de se completar com o
outro e com o mundo, num eterno anseio pela fusão com o objeto do desejo e,
conseqüentemente, Oribela é posta na condição de animal, enquanto a cabra é
humanizada.
Em várias passagens do romance de Ana Miranda, a protagonista-
narradora faz a comparação mulheres /vacas. Observe-se uma delas:
As fêmeas vacas davam bezerros todos os anos, desde novilhas e
mesmo as velhas seguiam parindo até a morte, umas pretas e lisas que
pareciam vidradas no resplendor e brandura e outras de muita virtude,
que eram leves e duras, vacas como que umas órfãs da rainha, oh que
trabalhos tinham aqui por nossos pecados (MIRANDA, 1996, p. 101).
Essa concepção de mulher tem sua origem no mito de Adão e Eva, segundo o
qual, além de a mulher ter vindo depois, da costela de Adão, foi ela quem o
seduziu, resultando na expulsão do paraíso. Por esse pecado, então, se
punida por toda a existência. Conseqüentemente, a sociedade foi se
organizando a partir das ideologias patriarcais, de forma que passou a
considerar o sexo apenas pelo prisma da reprodução da espécie, ou como
função biológica reprodutora.
Como em Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz a relação de Sinhozinho
André Leopoldo e a cabra é carnavalizada: a “amante cabra”, sentindo-se
humilhada, foge das garras do seu “amante homem”:
Grande Zambi, sou uma humilhada e uma ofendida. Os jovens senhores
são dados a monstruosos desvios. Tens o compromisso com os
injustiçados. Jamais conceberei uma cria. O mufana (moço) André
Leopoldo Afonso Fernando, em vez de copular com as belas escravas de
seu pai, se atira sobre mim, e sou eu o pasto insuportável de sua
indecente lascívia. Nenhum bode se aproxima de mim. Todos os animais
se riem de mim. Consideram-me uma desclassificada (MARANHÃO,
1997, p.41).
Além disso, humanizando a cabra, a autora desvela uma faceta bastante
obscura das relações sexuais humanas: o sexo com animais. Ao mesmo tempo,
coloca a mulher (“as belas escravas do seu pai”) num patamar de igualdade
com o animal. Aponta, ainda, para o fato de que as modalidades de sexo que
não servem para a reprodução da espécie (“jamais conceberei cria”) são
reprimidas: “Nenhum bode se aproxima de mim. Todos os animais se riem de
mim. Consideram-me uma desclassificada” (MARANHÃO, 1997, p.41).
Coincidentemente, Oribela também foge do marido e, como a pobre
cabra da obra de Heloisa Maranhão, é capturada, obrigada a retornar para
casa e para os braços de Francisco Albuquerque:
Mas numa noite veio e se serviu de mim, sem falar mais que ufas. Veio na
outra noite e na outra dando por a peleja acabada, a falar algumas coisas,
a contar que me desejara a morte como a um inimigo, que se tinha visto
consumido e recolhera ao campo para se aquietar das fêmeas, que bem
conhece o deslugar das cabeças e idéias (MIRANDA, 1996, p. 129).
Oribela é acorrentada e presa num galpão. Após rios dias, o marido decide
perdoá-la. Como pode ser observado no fragmento anterior, Francisco procura
sexualmente a esposa, selando o fim da desavença, mas o desejo sexual
continua unilateral: “veio e se serviu de mim”.
No mais antigo texto sobre o erotismo, o Banquete, de Platão, o narrador
Aristófanes conta que, na origem, a humanidade se compunha de homens e
mulheres e de um terceiro ser denominado Andrógino que era um ser mais
completo, possuidor de grande poder, que incorporava o masculino e o
feminino, detendo, deste modo, o melhor destas duas dimensões. Andrógino
possuía a forma esférica perfeita, além de quatro mãos, quatro pernas, quatro
orelhas, duas cabeças, dois órgãos sexuais, mas, num dado momento, desafiou
os deuses. E Zeus, o símbolo máximo da consciência, como castigo, dividiu
Andrógino com seus raios, fazendo surgir o sentimento de incompletude,
fraqueza e infelicidade. A partir desse momento, os novos seres mutilados
passam a procurar, em toda parte, sua outra metade. Quando se encontram, a
atração é forte pois desejam restaurar a antiga perfeição. Apesar da intensa
predisposição de ambos, a fusão é sempre momentânea e está condenada a
desaparecer para que a identidade sobreviva e cada indivíduo possa continuar
como um ser distinto.
Pode-se dizer que essa concepção de Platão em relação ao sexo, ao
desejo e ao erotismo, também está presente nos três romances, ainda que após
séculos de sublimação dos prazeres: “a sensualidade feminina seja
estigmatizada, até os nossos dias, e ainda mais que a masculina, pela marca da
repressão” (BRANCO, 1989, p. 101).
Assim, em Desmundo, o encontro sexual de Oribela e o mouro Ximeno
dialoga com essa concepção de sexo de Platão:
Era tal, que atraiu em tudo que há em mim e lhe fui sentir a boca, ele
despertou e me tomou em seus braços num desatino e grandíssimo
ímpeto, correndo com as mãos pelo meu corpo, dizendo suas falas de
amante, a beijar meus beiços e outras obras bem desconcertadas,
famintos afagos, a soltar o meu gibanete de homem, arrancar colchetes,
desatar os cordões da camisa, a me querer deixar feito as naturais, a mim
dava um gosto bom, fino punhal frio arrastando em toda pele, a querer
sentir que ele se fazia em mim, um prazer perseverante, tragando minhas
tentações para vencer minhas malícias, inferno glorioso, tirado de meu
corpo, de minha natureza humana, minha perdição e minha alma indo à
luz, portas se abrindo, minha boca bem aventurada, ele um todo poderoso
a me desfalecer, demandar, huhá, hio hio, digo que sim, re-si, eia, sus,
lago dos cães, hua, hua, ala, ala, saca saca, hão, hão, mas ele disse que
não, e foi dizendo que não e não, que ia causar um grandíssimo mal,
talamavez, ieramá, muitieramá, se vos eu arrebatar, de maneira que
estando ele sobre mim vi entre seus cabelos os chifres, endureci a seus
suspiros e me desfiz do encantamento.(MIRANDA, 1996, p.179).
Percebe-se nesse fragmento uma sensualidade carregada de culpas e censuras
(“estando ele sobre mim vi entre seus cabelos os chifres, endureci a seus
suspiros e me desfiz do encantamento”), equivalente àquilo que Castelo Branco
(1989) denomina de “sensualidade torturada”.
Em Os Rios Turvos, Filipa e Bento, só depois de estarem casados há três
anos, têm uma relação sexual plena e prazerosa:
Ao Diabo o Levítico, que tanta asneira escreveu __ disse
Bento. __ Ao Diabo os cristãos-novos, Filipa, sou cristão-velho e quero te
amar sem proibições nem leis. Vem que eu beberei teu sangue, e farei de
ti aquela mulher completa de que fala o Novo Testamento.
Então Filipa desvendou os mistérios daquela alegria intensa, pela
qual ansiara naqueles três anos. E de um golpe, perdoava a Bento seus
ciúmes e desconfianças, sua avareza, e a cicatriz de seu rosto, que a
tempestade clareava e escondia, em meio ao barulho dos trovões que
lhes cobria os gemidos (FERREIRA, 1993, p.108).
Como pode ser observado, para Luzilá Ferreira, o medo da sensualidade é
exclusivamente masculino, diferentemente do que ocorre no texto de Ana
Miranda, onde a repressão sexual marca diretamente o comportamento sexual
da mulher, através dos conflitos interiores da protagonista. A autora
pernambucana, inclusive, intensifica essa idéia: “__ Bento, agora me sinto
uma mulher casada. agora me sinto tua mulher. E sou feliz“ (FERREIRA,
1993, p.108). Diferentemente de Oribela, Filipa responsabiliza Bento pelas
interdições sexuais que sofre, mostrando-se livre para amar.
Buscando a crítica à repressão sexual sofrida pela mulher, a autora de
Os Rios Turvos questiona o comportamento masculino moldado pelas regras do
patriarcado; no entanto, a essência da sexualidade feminina é, de certa forma,
ignorada. Mesmo com a personagem Brázia, essa “essência” não é atingida:
vem comigo disse a chamada Brázia. Deves estar
acesa, e eu sou quente como o meu nome. E te mostrarei coisas que teu
marido não te deu, por não querer, por não saber, que importa. O que te
darei minha bela, homem algum te dará. Porque nós, mulheres, somos
mais doces do que eles quando nos amamos (FERREIRA, 1993, p. 117-
118).
Mais uma vez a crítica é expressa de forma direta, sem muita sutileza, ou seja,
Luzilá Ferreira, de modo quase planfetário “fala sobre” os problemas que
envolvem a sexualidade da mulher: “E te mostrarei coisas que teu marido não te
deu, por não querer, por não saber, que importa”. Denuncia a repressão sexual
sofrida ao longo da história mas sem se preocupar efetivamente com os desejos
e fantasias dessa mulher. Deste modo, a narrativa busca no lirismo, sua
tecitura, ou melhor, a paixão entre Bento e Filipa conduz o desenvolvimento do
texto, de forma que a protagonista se livra da sedução de Brázia ao se lembrar
do amor que sentia pelo marido : “Então sentiu que todo seu corpo clamava por
Bento, pelo homem que amava” (FERREIRA, 1993, p. 118). Mesmo assim, a
presença da personagem Brázia é importante pois introduz na narrativa a idéia
de que o sexo não é apenas para procriar, além de propor uma versão da
história das mulheres que rompa com as interdições da vida privada feminina,
que grande parte das versões oficiais legitimaram.
A sexualidade feminina apresentada em Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz, por sua vez, aparece libertada dos mecanismos que reprimiram as
mulheres no transcorrer dos séculos:
Creio que o gozo pleno do sexo proporciona às criaturas inestimáveis
vantagens, como, por exemplo, libertá-las de medos e complexos que
tanto entristecem e anuviam muitas vidas, nesta terra de claro sol,
prateada de lua, estrelas e outros corpos celestes que parecem trabalhar
com interesse pelo nosso bem. Sia Vuma, ou seja, Amém (MARANHÃO,
1997, p. 22).
Mesmo assim, a narradora alerta a leitora (ou leitor) de que a repressão existe e
a mulher necessita encontrar “artifícios” para enfrentá-la. A protagonista Rosa
Maria, então, alerta que é prudente não externar concepções sobre a
sexualidade:
O amor, perfume dos deuses, dádiva dos eleitos, o mais apetecível
mistério da existência. Prazer, irmão gêmeo do amor. Sim, o prazer, óleo
mais fino que o óleo da palmeira. O prazer que às escondidas é
perseguido por Dom Minézio, capelão - mor do Engenho de Dom Diogo
Velho Cavalcanti de Albuquerque. O prazer, que publicamente é
desdenhado por Dom Minézio por considerá-lo um atentado às coisas
sagradas. Eu penso o contrário. Sempre pensei. Por medida de
prudência, me abstenho de externar as minhas idéias (MARANHÃO,
1997, p. 22).
Como o romance é conduzido por um jogo metaficcional em que a personagem
narradora Rosa Maria está contando os fatos a uma escritora, também fictícia,
logo se percebe que algumas das suas concepções sobre sexo, amor e desejo
estão sendo “externadas”, contrariando o que ela diz. Esse caráter público que
a fala de Rosa Maria quer atingir aparece em outras passagens do romance,
como: “É claro que não estou interessada na exaltação dos instintos. Ou
estaria? Por certo não estou convidando quem quer que seja ao escândalo. O
que eu quero é dar prazer, alegria, conforto aos outros, e se possível, sempre
gentilmente e é claro com toda a cortesia” (MARANHÃO, 1997, p. 21).
O romance de Heloisa Maranhão, por meio da paródia e da
carnavalização, (re) avalia, e de modo bem mais explícito, a trajetória da mulher
na história brasileira, denunciando a violência, o abuso e a opressão sexual
sofrida ao longo da história. Deste modo, o caso de Sinhá, esposa de Dom
Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, que teve apenas três encontros
sexuais com o marido ao longo de toda sua vida, quando fecundou seus três
filhos, merece ser lido com cuidado especial. Assim, mesmo sabendo que Rosa
Maria é a amante de Dom Diogo, Sinhá solicita que a escrava a ajude. Por essa
razão, Rosa faz com que Ismael, o escravo reprodutor e garanhão do engenho,
seduza a dona do engenho. Conseqüentemente, Ismael revela a Rosa Maria o
segredo de Sinhá:
Pelas janelas abertas surgiu a lua e inundou o quarto de luz.
Eu vi...Sinhá ostenta um opulento bigode em volta do sexo. A vagina é tão
grande, tão larga que parece uma rua. Há bolas de gordura nas coxas. Os
lábios vaginais são orelhas de elefante. Tão compridos, imensos, flácidos,
de um branco desmaiado...horrível. Essas orelhas de elefante desabam
coxas abaixo. O monte de nus? De monte não tem nada. Trata-se de
uma desastrada planície que num determinado ponto se retrai sobre si
mesma. A barriga de sinhá tem estrias ásperas, rugosas, que caem em
dobras. Um espetáculo deprimente (MARANHÃO, 1997, p. 76-77).
O grotesco presente na descrição do corpo da infeliz mulher, desnudando a sua
intimidade, expõe o corpo como horrendo, desconstruindo, deste modo, os
valores sexuais impostos pelo patriarcado. Assim, a autora denuncia a
castração e a amputação dos desejos femininos, pois, enquanto Sinhá se
enclausura em seus aposentos, anulando seus desejos e fantasias sexuais,
Dom Diogo promove, na suíte ao lado, “festas” com Rosa Maria e seus dois
amigos:
Apenas, ele chama todas as noites o seu Amigo Principal 1 e o seu
Amigo Principal 2 que também são bem limpinhos e promovem
pequenas festas em sua suíte e nelas evidentemente, ele e seus dois
amigos, que não tem nenhuma doença, me cobrem várias vezes, e no
final dormimos todos juntos, na linda cama de Dom Diogo, que tem esta
rica cama bordada com fio de ouro (MARANHÃO, 1997, p. 63).
Sinhá representa o que Castelo Branco (1989) define como “sensualidade
torturada”: sempre que a sensualidade o é sublimada, é torturada pelo
sentimento de culpa e repulsa. Nessa perspectiva, Dom Diogo, enquanto
macho, tem a permissão da sociedade para extravasar seus desejos por meio
de uma relação extra-conjugal, como a própria narradora do romance lembra: “É
bom lembrar a regra dos cristãos, leis que determina que o homem cresça e se
multiplique. A esse respeito, é necessário acrescentar a firme determinação de
gozar plenamente a vida” (MARANHÃO, 1997, p. 21). Ou seja, as ações de
Dom Diogo são avalizadas pela sociedade, que reduz o sexo, em seu lado
feminino, a um ato meramente reprodutivo e/ou biológico.
Em conseqüência da visão biológica do sexo, a narradora afirma, em
vários momentos, que ela, Dom Diogo e seus dois amigos, não estavam
contaminados com doenças sexuais:
Fui escolhida pelo Sinhô para ser sua favorita. Ele me deflorou tão
gentilmente com delicadezas de enamorado, proclamando que eu era
muito limpinha, sem nenhuma doença, dessas que envergonham as
pessoas e que se instalam nas criaturas até nas mais qualificadas
(MARANHÃO, 1997, p. 62-63).
Prometeu-me que jamais me colocaria na cidade de Recife como “negra
de ganho” porque isso era um perigo para minha saúde (MARANHÃO,
1997, p. 63).
Apenas, ele chama todas as noites o seu Amigo Principal 1 e o seu
Amigo Principal 2 que também são bem limpinhos e promovem
pequenas festas em sua suíte e nelas evidentemente, ele e seus dois
amigos, que não tem nenhuma doença, me cobrem várias vezes, e no
final dormimos todos juntos, na linda cama de Dom Diogo, que tem esta
rica cama bordada com fio de ouro (MARANHÃO, 1997, p. 63).
Essa preocupação com as doenças sexualmente transmitidas, além de marcar
o tempo do romance, estabelece uma ponte entre o tempo da ação e o tempo
da narração, que em ambos o sexo não seguro pode ser fatal (a sífilis no
período colonial, a AIDS no século XX). Da mesma forma, aponta o caráter
depreciativo da mulher, principalmente Rosa Maria, uma escrava negra.
Ironicamente, Rosa Maria passa a ser a “favorita de Dom Diogo” e por ser
“limpinha”, foi deflorada com delicadeza, do mesmo modo que não precisava
ser “negra de ganho” (prostituta), em razão dos riscos que isso representaria a
sua saúde. Percebe-se que, em nenhum momento, a narradora fala desses
relacionamentos enquanto paixão, desejo e amor.
O erotismo e a sensualidade cruzam as três narrativas (Desmundo, Os
Rios Turvos e Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz) e, deste modo, uma nova
visão da história da sexualidade da mulher do Brasil Colonial é proposta.
Oribela, Filipa e Rosa Maria, por meio da ficção, rompem com o silêncio
histórico e buscam romper com os mecanismos de repressão à sexualidade.
Assim, “suas vozes”, que também romperam com o silêncio imposto pelo
patriarcado, cruzam com “outras vozes”, sempre em direção da identidade
feminina.
7.2 Oribela, Rosa Maria e Filipa: a maternidade na Colônia
Nos três romances estudados, a maternidade enquanto tema, está
presente, inclusive porque as três protagonistas, Oribela, Rosa Maria e Filipa,
passam pela experiência da maternidade de modos diferentes. Filipa tem dois
filhos: “Bento ouvia os risos, os gritos, os cantos, mesclados dos filhos aos da
mãe, como se fossem três crianças” (FERREIRA, 1993, p.164). O filho de Rosa
Maria nasce morto: “Fecho os meus olhos. Tranqüila e docemente a criança
nasce. A aparadeira de meninos até se espanta. Bate de leve nas costinhas de
meu filhinho...é um menino...e...está morto” (MARANHÃO, 1997, p.94). Oribela
também à luz um menino: “era meu filho nascido no canto onde anoitece o
mundo, cujo se deu nome de um pau” (MIRANDA, 1996, p. 203).
Em Os Rios Turvos, o tema da maternidade também é abordado, mas
por meio da relação de Bento com a mãe, pois é com ela que ele aprende o
que é ser judeu.
Ela se sentara na cama, acariciara os cabelos grossos e
encaracolados:
Somos filhos de David. Da linhagem de um rei.
Ele olhara as vestes da mãe, humildes, gastas, olhara a pobreza
do quarto: filha de um rei.
Ela continuava, a voz mansa traindo, entretanto, uma certeza
persistente, ancestral (FERREIRA, 1993, p. 72).
O judaísmo interferiu significativamente no modo de ser de Bento, sendo a mãe
de cultura judaica. Como, na sociedade patriarcal, o filho é de responsabilidade
quase exclusiva da mãe, uma vez que a mulher quase sempre permanece no
território doméstico, é fácil compreender que o filho quase sempre segue a
concepção de mundo materna: “E Bento teria tanto desejado falar para os
amigos como era linda aquela festa quando a mãe armava casinhas feitas de
árvores e se fingia habitar dentro delas por uns dias” (FERREIRA, 1993, p. 71).
A mãe de Bento é descrita como uma mulher forte, que sobrevive às
perseguições do Santo Ofício. Ela representa a memória de uma cultura que
estava sendo dizimada.
Para a sociedade que concebe o sexo como procriação, a relação
mãe/filho é reduzida a uma ação instintiva. Em conseqüência, a maternidade,
“alegria maior da condição feminina” (STUDART, 1993, p.30), acaba tornando-
se uma armadilha para a mulher, que não percebe a “guerra de posições”
(expressão usada por Heloneida Studart, 1993, p. 32), que a mantém prisioneira
do seu próprio “lar”.
Por outro lado, a relação de Filipa com os filhos é apresentada de forma
diferente, apesar de eles não ocuparem um grande espaço na narrativa. Assim,
as crianças são mencionadas de forma mais genérica, e sempre para ilustrar o
comportamento de Filipa: “Muitas vezes os meninos saíam do riacho, e Filipa se
deixava ficar ali, sozinha, a nadar na água clara, a boiar, mesmo quando a noite
descia, e então nenhum risco de presença estranha se apresentava, naquele
ermo” (FERREIRA, 1993, p. 164). Apenas o filho mais velho possui um nome
(André); conseqüentemente, as referências aos filhos se dão através de
expressões como: “os meninos”, “as crianças” ou “filho mais velho e filho mais
novo”.
Ainda, as ações que envolvem Filipa e seus filhos na narrativa
desenvolvem-se em ambientes abertos, de modo que a idéia da mãe/mulher
prisioneira na casa/lar é rompida:
Os dois meninos chegaram primeiro. Vinham, como sempre, pulando
sobre as pedras, correndo pelo capim, parando aqui e ali para apanhar
algo no chão. Aproximaram-se do pai, desconfiados, como sempre o
faziam, temerosos: Bento sempre tinha a impressão de que lhes metia
medo, enquanto que, com Filipa, eles formavam um trio harmonioso, rindo
e conversando quando estavam longe, calando-se quando dele se
aproximavam (FERREIRA, 1993, p 162).
O fragmento apresenta a maternidade como parte de um território
exclusivamente feminino, totalmente desconhecido do sexo masculino.
Conforme Studart (1993, p.28), “ainda não se descobriu o mistério do
relacionamento entre mãe e filho, mas se sabe que é o relacionamento mais
profundo que existe”. Para Showalter (1994), essa parte do universo feminino
que não é compreendido pelos homens, refere-se à “Zona Selvagem” da
Culturafeminina, pois “as mulheres sabem como é a parte crescente masculina,
mesmo se nunca a viram, pois ela se torna o assunto da lenda (como território
selvagem). Mas os homens não sabem o que no selvagem” (SHOWALTER,
1994, p.48).
A forma como a autora apresenta a mãe Filipa propõe a superação da
visão de maternidade, difundida pelo patriarcado, em que a “boa mãe”, deve
necessariamente se anular em prol dos filhos, negando-se a si mesma. Assim, a
aparente “pouca importância” dada aos filhos, enquanto personagens, é o
mecanismo textual que garante a “liberdade” da personagem Filipa, ou seja, os
valores sociais e ideológicos da sociedade colonial brasileira não conseguem
reprimir a sua sexualidade.
O tema da maternidade aparece também no romance de Heloisa
Maranhão, que a escrava Rosa Maria pariu uma criança morta, que é
transformada em uma estrela do céu:
Compreendo logo aonde é que esses bons amigos querem
chegar.
Vocês estão me dizendo que o meu filhinho virou estrela?
Toda noite, vou admirá-lo, brilhando no céu.
Sinto-me confortada. Moussa funga e com a palma da mão
enxuga sua lágrima. Padre Xota me abençoa.
Seu filhinho, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, foi enterrado,
como membro da família de Dom Diogo Velho Cavalcante de
Albuquerque, como é de costume, na capela do engenho, toda iluminada
com grandes gastos de cera, choro das senhoras e gritos de dor de
muitos escravos. A ele foi dado o nome de Henrique Velho Cavalcanti de
Albuquerque, em honra do guerrilheiro, agora fidalgo do Reino por mando
de El Rei, Dom Henrique Dias. Breve nos veremos, Rosa Maria Egipcíaca
da Vera Cruz (MARANHÃO, 1997, p. 104).
A narrativa de Heloisa Maranhão se desenvolve, quase sempre, através de
elementosgicos; assim, o filho morto se transforma em estrela que brilha no
céu (dialogando diretamente com o romance Macunaíma, de Mário de
Andrade), dando conforto à mãe. Por outro lado, o funeral do menino segue
todas as regras da sociedade cristã e colonial. Em outras palavras, essa
oposição entre o universo cultural africano (estrela) e o universo cultural cristão
está presente em toda a narrativa. Tem início com a protagonista que, na
África, era uma princesa, a Xirico, mas, no Brasil, transforma-se na escrava
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, nome cristão.
A maternidade também é uma fase importante da condição feminina,
deste modo, o nascimento/morte do filho de Rosa Maria transgride a ordem
natural: nascimento/vida, questionando, então, a condição de vida de uma mãe
escrava no Brasil Colônia, bem como da criança gerada. Xipoco-xipocué
simboliza a consciência africana de Rosa Maria, que a alerta dos perigos dessa
maternidade:
Fecho os meus olhos. Tranqüila e docemente a criança nasce. A
aparadeira de meninos até se espanta. Bate de leve nas costinhas de
meu filhinho...é um menino...e...está morto.
A aparadeira de meninos, desolada, foge. Ouço uma voz bem conhecida.
É Xipoco-Xipocué. Seus olhos duros e opacos dispensam qualquer brilho
humano.
Pressinto tempestade...
Xipoco-Xipocué ameaça:
Você! Idiota, filha da puta! Se fosses um homem eu te mandava fritar
os colhões ! que andas metida com os cristãos passo a citar uma
passagem do Apocalipse secreto de Paulo, o Apóstolo: Foi guiado pelas
vias do poente para um lugar onde só trevas, dor e tristeza (MARANHÃO,
1997, p.94)
A voz de Xipoco-Xipocué, furiosa, adverte a Rosa Maria que gerar um filho
escravo produziria dor e tristeza: “tua contribuição é definitiva para a crônica
de manifestação sádica contra a pessoa humana” (MARANHÃO, 1997, p.95).
Através da figura da mãe que perdeu o filho no parto, denuncia o regime
escravista colonial, como todo o sistema sócio-político e religioso que aceitava e
legitimava a escravidão no Brasil.
Em Desmundo, Oribela clama pela mãe: “Oh minha mãe onde está?
Minha mãe onde vou, por que não me buscas, mãe sem ventura de ter tido filha
assim, desacordada do mundo e a dar suspiros por um nada?” (MIRANDA,
1996, p.57). Como foi dito, para Oribela a mãe é posta na condição de santa;
inclusive, encontra-se, na narrativa, a expressão “santa mãezinha”. No entanto,
“santa mãezinha” aparece como antítese de “mulher pública”, o que rompe com
a imagem da mulher idealizada (santificada). Oribela, então, é apresentada sem
o véu da idealização; por isso ela ama, sonha, deseja, odeia ou tem medo: “Me
dizia ter feição de puta, por meu nariz afilado e a minha rebeldia na língua e o
estar sempre sonhando, coisa de mulher pública. Que morrera minha mãe de
desgosto por adivinhar a filha. Que meus chifres da cabeça rasgaram o ventre
de minha mãe“ (MIRANDA, 1996, p.74).
Da mesma forma, a relação de Francisco de Albuquerque com a mãe,
desmistifica a “imagem de mãe” que a sociedade patriarcal construiu, o que a
Velha lembra, com muita eficácia, a Oribela: “Num ímpeto falei de minhas
desventuras, do que disse a Velha não ser eu tão infeliz assim, de boa índole
era meu esposo, que eu me conformasse e parisse crias” (MIRANDA, 1996, p.
133). Diante disso, aparece a relação incestuosa de Francisco de Albuquerque
e sua mãe, Dona Branca, que teve como conseqüência o nascimento de
Viliganda, uma menina com problemas mentais. Por meio da voz da
personagem Velha, a autora expõe a concepção de mulher e maternidade que
alicerça essa situação:
Da mãe, tivesse eu por ela respeito, sendo mãe de meu esposo lhe devia
eu reverência por ser de mais posto e que a filha frutificada do filho com
a mãe, se assim fosse, eu a tomasse por minha menina e a amasse como
fruto meu. E tantos mais menininhos de sangue misturado, tudo aquilo
queria dizer filho e mais filho, que Francisco de Albuquerque era de
apetite bravo de touro nas mulheres. E disse ela. Mais melhor para ti. Que
te deleitarás se souberes (MIRANDA, 1996, p. 133).
A Velha lembra a Oribela que a moral da sociedade segue os preceitos e
valores dos homens, ou seja, a moral vigente é a masculina.
Oribela retorna grávida à casa de Francisco Albuquerque, e a
possibilidade de o filho não ser do marido provoca desavenças com Dona
Branca, o que faz, inclusive, com que a órfã desconfie de que a sogra está
envenenando o alimento que lhe é oferecido, e isto provoca, o fim trágico de
Dona Branca:
“(...) fomos ao quarto, estava Viliganda contra a parede e no meio do
quarto, com uma faca de cintura, de punhal, o filho acutilava a mãe no
peito e tantas vezes o fez até que ela se aquedasse sem mover no chão
com a morte na face e ele, com todo o sangue da mãe em suas roupas
correu porta a fora e na chuva à luz dos raios e dos trovões, em joelhos,
gritou. Piedade, piedade. E era tal a visão daquele sofrimento que me
certifiquei para sempre de estarmos no inferno (MIRANDA, 1996, p. 198)
Fatos como a relação incestuosa entre mãe e filho, a esposa grávida sem ter
certeza da paternidade, a sogra envenenando a nora grávida, o filho que mata
a mãe, rompem definitivamente com a imagem da “santa mãezinha”.
No entanto, o assassinato de Dona Branca possibilita um outro olhar para
a relação mãe/filho: a maternidade pertencendo a um território exclusivamente
feminino, onde o homem não consegue entrar, o que pode ser entendido como
a “Zona Selvagem” da cultura das mulheres que, para Showalter (1994, p. 49), é
o lugar cujo projeto comum seja “trazer o peso simbólico da consciência
feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o silêncio falar”. O relato
angustiado da narradora ilustra a questão:
O mundo x’era, mundo x’era, mundo x’ he, ai como partiu tão sentida a
mãe, por mexeriqueira, ru ru, menina, ru ru, mouram as velhas e fiques tu
c’o a tranca no cu, pessoa alguma me ninava com essa cantiga,
sopazinhas da panela e leite fresco coado, dera ela e do filho acutilado,
pobre mãe, ru ru ru, mal me queres bem me queres, que meu filho fosse,
diabos, por meu amor, um senhor que me amasse e respeitasse, bé,
como estão pasmados todos os cordeirinhos, bé, que filho malcriado. E
ela se foi pelos abismos dos mistérios ao horto cerrado, à janela radiosa
do fogo, descansar ao lado de seu esposo (MIRANDA, 1996, p.199).
Dona Branca morreu por não ter sido compreendida pelo “mundo masculino”,
uma vez que o mundo s’he não é um significante vazio de significado.
Conseqüentemente, Francisco rompeu com o pacto entre mãe e filho: toda a
dedicação da mulher/mãe, “sopinhas de panela e leite fresco coado”, para que o
filho se tornasse um homem que a amasse e respeitasse. Ainda no fragmento
acima, percebe-se a fusão de outras vozes nos relatos da narradora, ”que meu
filho fosse, diabos, por meu amor, um senhor que me amasse e me
respeitasse”. ouve-se a voz decepcionada da mãe, Dona Branca. Neste
sentido, Showalter (1994, p. 50) lembra que “a escrita das mulheres é um
‘discurso de duas vozes’ que personifica sempre as heranças social, literária e
cultural tanto do silenciado quanto do dominante”.
A história de vida de Dona Branca, ao longo da narrativa, dialoga com a
história não contada, esquecida muitas vezes, das mulheres que se anularam
em nome da “criação” dos filhos e dos cuidados com o esposo:
Entende e respeita a minha mãe, mas tu és a senhora da casa, que ela
teve a sua e está aqui de caridade, pois a arrasto comigo de cristão que
sou, sabe Deus quanto contra minha vontade porque sempre lhe fui muito
bom filho, para minha mãe não ficar como ficam outras muito viúvas,
pobres e desamparadas” (MIRANDA, 1996, p. 98).
Como Dona Branca é apresentada como um “fardo” a ser carregado, não se
percebe cumplicidade afetiva na fala do filho. Então, com a morte da e,
Francisco se transforma: “feito de luzes, a falar e a ouvir, a me visitar no catre e
acariciar minha barriga prenha e dar ordem na casa, ao trabalho e seus olhos
enxutos, sem mais segredos escuros,(...) a se assentar à mesa e me fazer dar
água a suas mãos feito dona de casa como fizera antes sua mãe” (MIRANDA,
1996, p. 201), o que aponta para o papel repressor, que é ela uma das
principais transmissoras das ideologias do patriarcado, ao mesmo tempo que é
uma memória que incomoda. Ou seja, apesar de o pacto mãe/filho ter se
rompido, a consciência de Francisco não ignora o vivido entre eles. A narradora,
então, acrescenta: “houvera se livrado de grilhões muito pesados e enterrado
nas pedras da capela dentro do coração de sua mãe” (MIRANDA, 1996, p. 201).
Da mesma forma, com o incesto (Dona Branca/Francisco) que resultou
no nascimento de Viliganda, violou-se o momento mais importante da condição
feminina: a maternidade. Conseqüentemente, Viliganda é presa no armazém,
pois é a lembrança do passado que Francisco quer esquecer: “tampouco podia
ele suportar aqueles malditos olhos” (MIRANDA, 1996, p. 201).
Com a fala das índias, Ana Miranda apresenta uma visão da maternidade
que aponta para a essência do relacionamento mãe/filho de uma forma
diferente, mais próxima à mãe-natureza, menos contaminada pela cultura
patriarcal cristã e sem, no entanto, podar a construção da identidade feminina:
Salve, mulher abençoada, flor e fruto de germe erupit, flor suavíssima
emictens odores, fruto saborosíssimo e doce, flor cuja bonitas expellit
mesticiam, fruto cuja saciedade plena leite, bendita flor que de ti
ascende, bendita árvore, bendita árvore e fruto, tua flor alegra, teu fruto
da miséria retira, para sempre bendita, amém. Estás com a graça da vida
em teu ventre (MIRANDA, 1996, p. 187).
O menino, então, nasce: “no que olhava eu os olhos dele, em alvíssaras e o
mais do rosto, tudo feito à perfeita sombra dos us, de mãe que era“
(MIRANDA, 1996, p. 203). Com esse ato de contemplação da mãe em relação
ao filho, a autora toca na essência do feminino. Mas Oribela também denuncia a
imagem estereotipada da maternidade, pois se tornae sem abandonar seus
desejos de mulher, ou seja, nem estando grávida e mesmo depois da chegada
do filho, as vozes que acompanhavam a protagonista, na sua trajetória, são
silenciadas. No início dos relatos, a própria Oribela confidencia: ”Um temor me
deu, havia umas vozes dentro de mim, que eu não queria ouvir” (MIRANDA,
1996, p.51) e, mais tarde, volta a dizer: “E que mais que ele, devia saber eu, por
modo de minha fuça muito curiosa, como de um gato. Se era Ximeno um
feiticeiro, se mal fizesse, havia de fazer menos que meu mesmo coração
alojado de vozes” (MIRANDA, 1996, p.173).
Acreditando que Francisco de Albuquerque havia retornado a Portugal
levando seu filho, (“Ai, dá-me Deus meu tamanino, não tenho outro menino, que
não o possam ferrar para vender” (MIRANDA, 1996, p.209) ), a protagonista é
tomada por um ímpeto de loucura, e ateia fogo em tudo, “às palhas, aos paus
do fortim, aos currais que se faziam, ao armazém”. Esse fogo purificador
consome o engenho de Francisco e as lembranças do passado da protagonista,
um passado que a esqueceu, silenciou e oprimiu enquanto mulher.
Como a metáfora do fogo acompanha os relatos de Oribela na narrativa,
o fogo que queima o engenho é o mesmo que vinha consumindo sua alma:
Era assim mesmo que parecia, semelhava eu estivesse vendo agora, sem
mesmo fechar os olhos, como vivesse ela nos interiores de mim e eu nos
arrabaldes dela, ateando ela fogo à minha alma por me querer dar vida, o
ímpeto e uma embarcação para avoar no céu como uma ave sem asas.
Quisera eu ter. (MIRANDA, 1996, p.63).
No relato acima, Oribela, relembrando de sua mãe, afirma que é a mãe que
ateia fogo na sua alma, por querer lhe dar vida. Deste modo, por meio do fogo
e Ximeno, o mouro, possui cabelos cor de fogo, Oribela reconquista sua
sexualidade e reencontra o filho, um menino também de cabelos cor de fogo:
Uxtix, uxte, xulo, cá! Por que me mandou Deus para tal fim? Todo o meu
mundo esvaneceu, estava eu endoidando, dormindo, sonhando? Ouvi o
choro do meu filho, virei e na porta, atravessado pelos raios derradeiros
do sol, os cabelos em fogo puro, estava o Ximeno com uma trouxa de
criança no colo. Hou ha (MIRANDA, 1996, p.213).
Como foi dito, Oribela destrói o lar (ou o desmundo) de Francisco
Albuquerque, mas com o filho (e o mouro) constrói um novo lar, ou um mundo.
Por fim, a autora se vale da metáfora do fogo para traçar o percurso que Oribela
fez até conquistar sua identidade de mulher.
Pode-se dizer que a mulher escritora busca, em seus textos, a identidade
feminina. Deste modo, temas como a maternidade e a sexualidade passam a
invadir a sua escrita. A literatura de mulheres, nessa perspectiva, abandona
aquele ponto de vista meramente intimista. Assim, em romances históricos
como Os Rios Turvos, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz e Desmundo, o
mundo exterior também é focalizado. Nesse sentido, Luiza Lobo (2002) lembra
que o olhar voltado para o particular é um movimento totalmente contrário ao da
ficção histórica, que se vale da “capacidade de contextualizar atos, unir fatos
externos e gerais e tirar conclusões sobre eles, discorrer e emitir opiniões que
alcançam o cotidiano de um conjunto de pessoas, sob o ponto de vista exterior
e político e mostrar conhecimento de elementos estranhos à vida pessoal da
autora” (LOBO, 2002, p. 111).
7.3 Memória/desmemória nos romances históricos escritos por mulheres
Como foi dito, o romance histórico vai se modificando no espaço e no
tempo em que se insere, o que faz essas obras se apresentarem atualmente de
forma bem diferente do modelo do culo XIX. O “Novo Romance Histórico”
(proposto por Menton) e a ‘Metaficção Historiográfica’ (proposição teórica de
Hutcheon) são as tendências que predominam na ficção histórica
contemporânea no Brasil, tanto na literatura de escritores homens como de
mulheres.
Pode-se dizer, então, que a literatura feminina brasileira encontra um
espaço próprio a partir de 1990: as escritoras passam a publicar romances
históricos como uma espécie de “redescoberta” desse subgênero, onde é
enfocado o mundo exterior, mas em harmonia com o mundo interior e intimista.
Deste modo, romances como Os Rios Turvos, Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz e Desmundo, reconstruindo os caminhos que Filipa e Maria Rosa e Oribela
percorreram, recontam a história do período colonial e, ao mesmo tempo,
buscam o sentido da mulher na história.
Valendo-se das proposições teóricas sobre o romance histórico, Os Rios
Turvos pode ser classificado como Novo Romance Histórico, tanto diante do
seu alto grau de intertextualidade, pela presença da metaficção (no caso
metaliteratura) e da heteroglossia, como pela ficcionalização de personagens
historicamente conhecidos. o romance Desmundo, mesmo apresentando
alguns dos elementos que constituem o Novo Romance Histórico, de acordo
com as seis características propostas por Menton (1993), ainda apresenta
elementos do modelo de romance histórico do século XIX, ou seja, a vinda das
órfãs portuguesas para o Brasil por solicitação do Padre Manuel da Nóbrega é
utilizado como pretexto histórico para a construção do universo ficcional, e
Oribela, a Velha, Ximeno, Dona Branca, Viliganda e as demais órfãs, bem como
as demais personagens do romance, são personagens puramente ficcionais,
que somente o nome de Francisco de Albuquerque tem registro nos
documentos históricos. No entanto, o romance Rosa Maria Egipcíaca da Vera
Cruz caberia mais diretamente na classificação de metaficção historiográfica
(HUTCHEON, 1991), por seu caráter paródico e carnavalizado.
Luzilá Gonçalves Ferreira, Ana Miranda e Heloisa Maranhão são
mulheres que contam histórias de mulheres e deste modo recontam a história
do período colonial brasileiro. Assim, a ficção de autoria feminina passa a ser
um espaço em que se reescreve a história partindo dos vazios e silêncios que
constituem os documentos históricos oficiais, ou escritos pelos homens.
Em Desmundo, Os Rios Turvos e Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz,
os vazios e silêncios históricos (isso no que diz respeito à história das mulheres)
podem ser chamados de “desmemória”. Em outras palavras, os romances
históricos de mulheres apontam para uma nova versão da história, e, para tanto,
buscam, na desmemória da história contada pelos homens, pistas que permitem
construir a história das mulheres.
Em Os Rios Turvos, faz parte do universo ficcional esse jogo entre
memória e desmemória, pois, como os documentos praticamente não falam
sobre Filipa, é naquilo que não foi dito sobre ela, ou seja, nas desmemórias de
Bento e da história oficial que a trajetória da protagonista é reconstruída. Ou
como diz o próprio romance, “Filipa Raposa buscava na memória esse instante,
onde sobre a superfície lisa e clara do amor a rachadura se fizera, acolhendo a
semente” (FERREIRA, 1993, p. 15). No fragmento, percebe-se que a narradora
se apropria da memória e organiza a voz masculina para reconstruir a história
de Filipa Raposa, que se encontrava na desmemória da história oficial.
Para Hutcheon (1991, p.50), “a memória é o essencial para esse vínculo
entre o passado e o vivido”, mas a desmemória da história oficial ignora o vivido
pelas mulheres. Em Desmundo a narrativa é aparentemente organizada pelos
relatos da protagonista, assim, através da confluência de vozes que constituem
o discurso da protagonista, recupera-se a memória do passado e, deste modo,
o vivido pelas mulheres, e, no caso as primeiras colonizadoras do Brasil, é
recuperado. Rompe-se, desta forma, com a desmemória de uma história
contada pelo prisma do patriarcado:
Quis eu ver o incêndio até a derradeira chama, custou pouco a se
desfazer a casa e todas as suas fortalezas viraram um monte de brasas,
coisas retorcidas, nada que pudesse conhecer por nome, de cinza, no
que queria eu dizer para mim, devia esquecer tudo no meu passado,
ardendo o fogo na madeira ardia também em minha alma, onde se
agasalhavam as renembranças (MIRANDA,1996, p. 209).
A passagem da narrativa em que Oribela ateia fogo no engenho de Francisco
Albuquerque ilustra esse conflito entre a desmemória/memória. Assim como o
fogo destruía tudo, “todas as suas fortalezas viraram um monte de brasas,
coisas retorcidas”, Oribela desejava que tudo o que viveu também fosse
esquecido. Mas, como o nculo entre o passado e o vivido se através da
memória, a órfã não consegue apagar as lembranças de tudo que tinha
vivido, “ardendo o fogo na madeira, ardia também em minha alma, onde se
agasalhavam as renembranças”. Enfim, a desmemória prende o sujeito ao
passado, pois “é a perda da memória, não o culto à memória que nos fará
prisioneiros do passado” (HUTCHEON,1991, p.53).
O conflito memória/desmemória vai apagando o desejo de retorno de
Oribela a Portugal, e ela acaba ficando no Brasil: “havia ainda em meu coração
o desejo de tornar, embora fosse em cada anoitecer mais pálida a vista da
Princesa, suas torres e muralhas dentro de mim” (MIRANDA, 1996, p. 138). Na
busca do sentido da mulher na história, a portuguesa Oribela é fixada na nova
terra, o Brasil, propondo que, junto com seu filho, símbolo da mistura das raças,
e o mouro, ela possa reconstruir um novo lar. Diferentemente da lenda
alencariana, em que o português parte levando o filho, no caso o filho de um
português com uma índia, no relato de Ana Miranda, também cearense, mãe e
filho ficam na nova terra.
Como foi dito, a perda da memória aprisiona a mulher e o homem ao
passado; por isso, o romance histórico, por meio da paródia, tenta recuperar
esse passado, apresentando uma leitura crítica do que foi vivido, uma vez
que a paródia “parece oferecer, em relação ao presente e ao passado, uma
perspectiva que permite ao artista falar para um discurso a partir de dentro
desse discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele” (HUTCHEON,
1991, p. 53). Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é um romance de caráter
paródico; deste modo, a narradora se apossa das memórias do Brasil
escravista, mas não se preocupa em ser fiel a elas. Como se passasse por um
processo de desmemória, a figura da protagonista é recriada. Assim a
personagem Rosa Maria resulta da fusão das vozes/memórias de várias outras
escravas que viveram aqui no Brasil.
Nesta perspectiva, o romance de Heloisa Maranhão discute, com a voz
da narradora, as conseqüências da desmemória na formação da identidade dos
negros:
Não sou mais mamana. Sou escrava. Somos escravos, eu e
tu, a escrava Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz.
Não quero me lembrar desse passado que ainda pouco
desafiaste. Se Kulucumba, a Venerável Entidade Superior, achasse
necessário aos humanos recordar a toda hora o que aconteceu e viver
com isso agarrado ao coração, teria plantado dois olhos em nossas
costas, para sempre olharmos para trás. Só dois olhos no rosto, na frente,
para olhar, até longe, para o que está diante de nós. Esquece Anastácio
(MARANHÃO, 1997, p. 34).
O regime escravista, no Brasil, como parte do processo de alienação do negro,
tentou apagar da memória dos afro-brasileiros o passado vivido na África. Deste
modo, o negro acabou sendo oprimido e silenciado. Mas, no romance, Rosa
Maria alerta Anastácio para o fato de que ficar preso ao passado reflete a
memória cultural do seu povo, que foi apagada.
A imposição da cultura do homem branco aos afro-brasileiros, fez com
que esse grupo étnico perdesse sua identidade. Assim, no romance, a princesa
Xirico é batizada, no Brasil, pela Igreja Católica e passa a ser Rosa Maria
Egipcíaca da Vera Cruz. Apesar dessa desmemória histórico-cultural, Rosa
Maria é detentora de poderes sobrenaturais que aprendeu com sua a
africana, o que lhe permite, entre outras magias, curar o filho aleijado da
escrava Sange, devolver a juventude a Anastácio e aprender a ler e escrever
em três dias.
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é um romance que pode ser
denominado de metaficção historiográfica devido a seu caráter crítico na revisão
e recuperação da história e pelas rupturas que a linguagem da obra apresenta.
Hutcheon (1991), discutindo o papel que a paródia desempenha em romances
metaficcionais historiográficos, lembra que para as feministas e os autores
negros, a paródia “é uma das principais maneiras pelas quais as mulheres e
outros ex-cêntricos usam e abusam, estabelecem e depois desafiam as
tradições masculinas na arte” (1991, p.174).
Desta forma, o romance de Maranhão desafia as tradições masculinas
quando extrai, da desmemória da história e da ficção, as vozes de mulheres
que foram silenciadas pelo patriarcado. Diante do medo de sua feminilidade e,
conseqüentemente, de sua sexualidade, a mulher é condenada a viver à
margem da sociedade, da mesma forma que a serpente foi condenada a
rastejar por toda sua existência: Tenho aborrecimentos. A cobra enrolou no
muringue, era a venenosa, a mamba. Se pego o muringue, a cobra morde; se
mato a cobra, o muringue se parte. Não, eu não posso esquecer” (MARANHÃO,
1997, p.34). Como foi dito, a concepção de mulher do patriarcado tem origem
no mito de Adão e Eva, onde Eva seduz Adão, persuadida por uma serpente;
por isso, Deus castiga a serpente fazendo-a rastejar por toda sua existência.
Em relação a essa simbologia da cultura cristã, Joseph Campbell afirma que “a
identificação da mulher com o pecado, da serpente com o pecado e, portanto,
da vida com o pecado, é um desvio imposto à história da criação (...) não temos
conhecimento da imagem da mulher como pecadora em outras mitologias, além
da cristã; nem mesmo na cultura africana” (CAMPBELL,1990, p.49). Então,
como o romance de Heloisa Maranhão está estruturado em torno de dois pólos,
o cristão e o pagão, a reconstrução da história da mulher através da
reconstrução da história de Rosa Maria Egipcíaca, metonímia da África que
ajudou a constituir o Brasil, ele desvela a desmemória do patriarcado e
denuncia a sociedade cristã como excludente da mulher.
7.4Conclusão
O romance histórico vem se apresentando como uma tendência bastante
promissora também para a literatura de autoria feminina, podendo-se, inclusive,
afirmar que ele é resultado do amadurecimento da produção literária de
mulheres. No entanto, não se pode perder de vista que a ficção histórica
contemporânea de autoria feminina segue as tendências do gênero, ou seja,
assim como os romances escritos por homens, aqueles escritos por mulheres
também objetivam fazer uma releitura do passado, dando voz aos grupos
sociais esquecidos, oprimidos e silenciados na história oficial.
Assim, Ana Miranda, Luzilá Ferreira Gonçalves e Heloisa Maranhão,
através do romance histórico, contam histórias de mulheres e propõem uma
nova versão para essa história, rompendo as interdições da vida privada
feminina que quase sempre as versões oficiais legitimaram como verdadeiras.
Em Desmundo, Os Rios Turvos e Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, a
condição feminina é mais do que simples fonte temática: é o elemento que
estrutura e organiza a narrativa. Conseqüentemente, as narrativas, por serem
ficção, possibilitam olhar de forma aparentemente descompromissada para a
história das mulheres e, com isso, extrair da desmemória da história oficial,
para introduzir no interior do universo ficcional, temáticas que ficaram à
margem das versões históricas, escritas pelo patriarcado.
8. PALAVRAS FINAIS
O romance histórico contemporâneo é um gênero que, ao mesmo tempo,
é velho e novo, pois, apesar de tornar o romance histórico do século XIX como
modelo, atualmente apresenta traços específicos do contexto em que se insere.
Então, independentemente do nome que se atribua a essas obras, seja
Metaficção historiográfica ou Novo Romance Histórico, ele primeiramente é
romance. E, como todo gênero, renova-se em cada etapa do desenvolvimento
da literatura e em cada obra individual, revitalizando-se no tempo e no espaço
específico de sua produção e recepção.
A leitura de romances históricos produzidos nas últimas décadas no
Brasil vem comprovar que estas produções ficcionais são bem mais compatíveis
com a realidade latino-american que aquelas apresentadas nos romances
históricos mais tradicionais, pois surgem do diálogo entre, pelo menos, uma voz
contemporânea e a voz da história oficial, que entrecruza o passado com o
olhar do presente. Assim, como obra aberta, possibilita questionamentos
renovados sobre as imagens do passado, exigindo, então, um leitor experiente,
que não busque um simples mergulho no mundo ficcional, uma vez que quer
ser também o mundo da informação, numa tentativa de reescrever o dito,
pretendendo questioná-lo tanto quanto é questionado por ele.
Considerando que um volume expressivo de romances históricos vem
sendo publicado a partir das últimas décadas do século XX tanto por escritores
e escritoras bem conhecidas pela crítica e pelo público leitor, como por
estreantes no universo literário, eles não podem ser ignorados.
Nesse contexto, o romance histórico está acenando também para o
amadurecimento da literatura escrita por mulheres, pois, nessas obras, percebe-
se o abandono daquele ponto de vista meramente intimista, que mantinha o
olhar totalmente voltado para o particular, pois a ficção histórica produzida por
mulheres aponta um novo viés literário, que direciona o olhar para o mundo
exterior e político.
Por isso, nessas obras, a condição feminina extrapola o estatuto de
mera fonte temática e passa a organizar e estruturar a narrativa. É possível,
então, falar de uma escrita feminina onde uma temática como a
sexualidade/sensualidade é exposta e discutida, extrapolando o simples resgate
da história da mulher, em prol do sentindo dessa mulher na história. Isso se
concretiza, por exemplo, nos romances objetos deste trabalho, Desmundo, Os
Rios Turvos e Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, nos quais mulheres contam
história de mulheres. Daí por que se pode afirmar que o romance histórico
contemporâneo brasileiro escrito por mulheres é um espaço aberto em que a
história é contada por meio do desvelamento da desmemória da história das
mulheres.
9. REFERÊNCIAS
AGUIAR e SILVA, V. M. Teoria da literatura. 8ª ed., Coimbra, 1990.
AÍNSA, F. La nueva novela histórica latinoamericana. México: Plural, 1991.
AÍNSA, F. El proceso de la nueva narrativa latinoamericana. De la historia y la
parodia. El Nacional, 17/12/1988, p. C 7-8.
ALVES, L. R. Confissões, poesia e inquisição. São Paulo: Ática, 1983.
ALVES,T. B. Literatura e História como reinvenção do passado.
In:http//planeta.terra.com.br/arte/dubitoergosun/orientando06.htm/> Acesso em:
05/05/2003.
ANAIS DO XI ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL. João Pessoa: ANPOLL,
1996.
ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL
PRIORE, Mary (org). História das mulheres no Brasil. ed., São Paulo:
Contexto, 2000, p. 45-77.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural,
1973, T. IV, Os pensadores, p. 443-471.
AZEVEDO, F .L. N. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. A teoria do romance. Trad.
Aurora Bernardini, José Pereira Jr, Augusto Góes Jr., Helena Nazário Homero
Freitas de Andrade. 4. ed. São Paulo: UNESP/HUCITEc, 1988.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G.
Pereira. 3. ed. , São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. (orgs.). Dialogismo, polifonia e
intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1999.
BARTHES, R. Da história ao real. In: O Rumor da língua. Trad. Mário
Laranjeiras. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.143-171.
BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed., Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BÍBLIA SAGRADA. 5ª ed., Deerfield, Flórida: Editora Vida, 1996.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 39.ed., o Paulo: Cultrix,
1994.
BORGES, L. de A. A tríplice transgressão: da história, do discurso e do feminino
no romance de Heloísa Maranhão.Dissertação de Mestrado. Rio de
Janeiro:UFRJ, 1997.
BRANCO, L. C. & BRANDÃO, R. S. A Mulher escrita. 39 ed., Rio de janeiro:
LCT, 1989.
BRANCO, L. C. O que é a escrita feminina. São Paulo:Brasiliense,1991.
BRASIL, L.A. A. Cães da Província. 7. ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.
BURKE, P. (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes.
3 ed., São Paulo: UNESP, 1992.
BURKE, P. A escola dos Annales: a revolução francesa da historiografia. São
Paulo: UNESP, 1992.
CAMINHA, P. V. A Carta. http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html.
Acesso em: 21/08/2005.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 1990.
CAMPOS, H. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CAMPOS, M. C. C. Gênero. In: JOBIM, J. Luis (org.). Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1997, p. 111-126.
CASTRO, A. L. A. Dona Narcisa de Vilar. Legenda do tempo colonial.
Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.
CHAUÍ, M. de S. Repressão sexual essa nossa desconhecida. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
COELHO, N. N. O desafio do cânone:consciência histórica versus discurso em
crise. In: CUNHA, H. P. (org.). Desafiando o none: aspectos da literatura de
autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80). Rio de Janeiro:Tempos
Brasileira, 1999.
COSTA, C. Jornal do Brasil. Idéias Livros. In:
http://www.anamirandaliteratura.hpg.com.br/ > Acesso em:15/06/1996.
DEL PRIORE, M. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS,
Marcos C.(org.). Historiografia brasileira em perspectiva. edição, São Paulo:
Contexto, 2000.
DENARI, Z. Olinda! Olinda! Recife: Fundação da Cultura da cidade de Recife,
1999.
D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 1. Prolegômenos e teoria narrativa. São Paulo:
Ática, 1999.
DUARTE, C. L. Feminismo e literatura no Brasil. Estudos Avançados. Vol.17,
nº 49, São Paulo , Sept./Dec. 2003
ECO, U. Pós-escrito a O Nome da Rosa.Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro
Lorencine. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ESTEVES, A. R.. O novo romance histórico brasileiro. In: ANTUNES, L. Z. (org.)
Estudos de literatura e lingüística. São Paulo: Arte & Ciência; Assis, SP: Curso
de Pós-Graduação em Letras da FCL/UNESP,1998, p. 122-158.
FARACO, C. A. et. al. Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Hatier, 1988.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas de Bakhtin. Curitiba:
Criar Edições, 2003.
FERREIRA, A. C. História e Literatura: fronteiras móveis e desafios
disciplinares. Pós-história. V.4, Assis:UNESP, 1996, p. 23-44.
FERREIRA, L. G. Os rios turvos. Rio de Janeiro: Ro FERREIRA, L. G. cco,
1993.
FERREIRA, L. G. A garça mal ferida: a história de Anna Paes D’Altro no Brasil
holandês. Belo Horizonte: Lê, 1995.
FERREIRA, L. G. Tempo frágil das horas. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
FIGUEIREDO, V. F. Da alegria e da angústia de diluir fronteiras: o romance
histórico hoje na América Latina. Cânones e contextos: Anais do Congresso
ABRALIC, Rio de Janeiro, ABRALIC, 1998. v.1.
GENETTE, G. O discurso da narrativa. Lisboa: veja, s/d.
GOMES, C. E. Oribela: o uno que se desdobra. Dissertação de Mestrado.
Florianópolis: UFSC, 2000.
GONZÁLEZ,M.M. O romance que as leituras da história.
In.http://www.hispanista.com.br/revista/artigo13esp.htm/>Acessoem:11/06/2005.
GOTLIB, N. B. A literatura feita por mulheres no Brasil.
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm/> Acesso em:
12/03/2004.
HAHNER, J. E. A mulher no Brasil. Trad. Eduardo F. Alves. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1978.
HARMUCH, R. A. Última Quimera: entre a ficção e a história. Dissertação de
mestrado. UFPR: Curitiba, 1997.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo:história, teoria e ficção. Trad.
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
JENNY, L.. A estratégia da forma. In: Intertextualidades. Coimbra: Livraria
Almedina, p.5-49.
KAUFMAN, H. I. Ficção histórica portuguesa do Pós-Revolução. U.M.I.,
University of Wisconsin-Madson, dact., 1991.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São
Paulo: Perspectiva, 1975.
LEITE, M. M. A condição feminina no Rio de Janeiro. Século XIX. São Paulo.
Hucitec/INL, 1984.
LE GOF, J. História e memória. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp,
1990.
LERNER, G. The challenge of women’s history.The majority finds its past. Nova
York, 1981.
LIMA, L. C. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989.
LIMA, R. O dado e o óbvio: o sentido do romance na s-modernidade.
Brasília: EDU/UNIVERSA, 1998.
LOBO, L. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
LOBO, L. A literatura de autoria feminina na América latina. In: Revista Brasil de
Literatura (Rio de Janeiro), ano I, 1997, Internet . Julho-setembro 1997.
LOBO, L. Literatura e história: uma intertextualidade importante. In: DUARTE ,
Constância lima; DUARTE, E. de A.; BEZERRA, K. da C.. Gênero e
representação: teoria, história e critica. Coleção mulher e Literatura.Belo
Horizonte: UFMG, 2002, v. 1.
LOPES, E. Discurso literário e dialogismo em Bakhtin. In: BARROS, D.L.P.;
FIORIN, J.L. (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidades. São Paulo:
EDUSP, 1999.
LUKÁCS, G. La novela histórica. Trad. Jasmin Reuter. México: Era, 1977.
LUKÁCS, G. A teoria do romance.Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas
da grande epopéia. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2000.
MALARD, L. Romance e história. Revista Brasileira de Literatura Comparada,
1996. p. 143-150.
MARANHÃO, H. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a incrível história de uma
escrava, prostituta e santa. Rio de janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
MARQUEZ RODRIGUEZ, A.. Evolucion Y alcances Del concepto de novela
histórica. In: Historia y ficción en la novela venezolana. Caracas: Monte Ávila,
1991p. 15-54.
MARTÍNEZ, T. E. Ficção e história: apostas contra o futuro. O Estado de São
Paulo, 05 de out., 1996, p. D 10-11.
MARTÍNEZ, A. Feminismo y literatura em latinoamerica. In:
http//www.correiodelsul.com/arte/literatura, 02/07/2002.
MATA INDURIÁN, C. Retrospectiva sobre la evolución de la novela histórica. In:
SPANG, K. et al. La novela histórica. Teoria Y comentarios. Baranain: Un.
Navarra, 1995, p. 13-63.
MATOS, M. I. S. de. Gênero e história: percurso e possibilidades. In: SCHPUN,
M. R. (org). Gênero sem fronteiras: oito olhares sobre mulheres e relações de
gênero, Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.
MELLO, J. A. G. de (org.). Diálogos das grandezas do Brasil. ed., Recife:
IMPRENSA UNIVERSITÁRIA, 1966.
MELLO, J. A. G. de. Denunciações e confissões de Pernambuco (1593-1595)
Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Recife: Fundarpe, 1984.
MELLO, J. A. G. de. Estudos Pernambucanos: crítica e problemas de algumas
fontes da história de Pernambuco. 2º ed, Recife: Fundarpe, 1986.
MELLO, J. A. G. de. Gente da Nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco
(1542-1654). Recife: Massangana,1996.
MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina(1949-1992).
México: FCE, 1993.
MIRANDA, A. Boca do inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MIRANDA, A. O Retrato do Rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
MIRANDA, A. Última Quimera. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MIRANDA, A. Desmundo: romance. 6. ed., São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
MIRANDA, A. Amrik. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MIRANDA, A. Clarice. São Paulo: Companhia das Letras, 1900.
MIRANDA, A. Dias & Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MORAIS, E. Ficção e história no romance Boca do Inferno. Dissertação de
mestrado. UFPR: Curitiba, 2003.
MOTA, F.0. Naufrágio, de Afonso Luiz Piloto & Prosopopéia, de Bento
Teyxeyra. Recife: UFPE, 1969.
MOTT, L. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro, Editora
Bertrand do Brasil, 1993.
MUZART, Z. L. Feminismo e literatura ou quando a mulher começou a falar. Em
MOREIRA, M. E. (org.). História da Literatura, teorias, temas e autores. Porto
Alegre, Mercado Aberto, 2003.
NAVARRO, M. H. O discurso crítico feminista na América-hispânica. In:
SCHIMIDT, R. T. (org.). Mulher e Literatura: (trans) formando identidades.Porto
Alegre:Palloti, 1991.
NUNES, B. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In; RIEDEL, D. C. (org.).
Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: imago, 1988, p. 9-35.
NUNES, M.J.R. Freiras no Brasil. In: DEL PRIORE, M. História das mulheres no
Brasil, 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2000.
PESAVENTO, S.J. Fronteiras da ficção: diálogos das história com a literatura.
Revista de História das Idéias, 21 (33-57) Coimbra, 2000.
PESAVENTO, S.J. Contribuições da história e da literatura para a construção do
cidadão: a abordagem da identidade nacional. In: LENHARDT,J.; &
PESAVENTO,S.J.(Orgs.) Discurso histórico e narrativa literária. Campinas,
UNICAMP, 1998, p.41-50.
PIÉGAY-GROS, N. Introduction à Intertextualité. Paris:Dunod, 1996.
PIÑON, N. A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.
PLATÃO. O Banquete. In: Diálogos. tradução de Jaime Bruna, São Paulo,
Cultrix, 1976.
RIBEIRO,L.F.Literatura,discurso,sociedade.www.odialetico.hpg.ig.com.br//critica
.ht / > Acesso em: 18/07/2003.
SÁENZ DE TEJADA, C. Brasil. In: CUNHA, Glória da (org). La narrativa
histórica de escritoras latinoamericanas. Buenos Aires: Corregidor, 2001. p. 69-
98.
SAID,E. Orientalismo, o oriente como invenção do ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
SCOTT, J. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história:
novas perspectivas. Trad. : Magda Lopes, 3º ed., São Paulo: Ed. UNESP, 1992.
SCOTT, W. Ivanhhoé. Trad. Roberto N. Whitaker. o Paulo: Nova Cultural,
2003.
SHOWALTER, E. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, H.
B. (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura.Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
SILVA, M. B. N. da. Características da história da mulher no Brasil. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, 17:75-91, 1987, p. 87.
SIQUEIRA, A. C. F. Filipa Raposa: do silêncio histórico ao discurso ficcional (um
estudo sobre a construção da personagem). Dissertação de mestrado. UFPE:
Recife, 2002.
SOUZA, J. G. de. Em torno do Poeta Bento Teixeira. São Paulo: Instituto de
Estudos Brasileiros, 1972.
SOUZA, M. Galvez, Imperador do Acre. Rio de Janeiro: Marco Zero Ltda, 1979.
STUDART, H. Mulher a quem pertence o teu corpo? Uma reflexão sobre a
sexualidade feminina. Petrópolis:Vozes, 1993.
TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo Russo. Rio de
Janeiro, Rocco, 2003.
TODOROV , T.. Introdução à literatura fantástica. Coleção debates. São Paulo:
perspectiva, 1975.
VARGAS LLOSA, M. La verdad de las mentiras. Barcelona: Seix Barral, 1990.
VICENTE, G. Auto de Mofina Mendes. In: Obras Primas do Teatro Vicentino.
Introdução, organização e comentários de Segismundo Spina. São Paulo:
Difusão Européia do Livro/Editora da Universidade de São Paulo, 1970.
VIEIRA, C. M. da C. Um novo tipo de discurso literário: a metaficção
historiográfica. In: ABREU, L. M.; MIRANDA, A.J.R..O discurso em análise.
Aveiro: Universidade, 2000.
VIGARELO, G. O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade Média.
Lisboa: Editorial Fragmentos, 1985.
VILAR, G. O primeiro brasileiro (onde se conta a história de Bento Teixeira,
cristão-novo, istruído, desbocado e livre, primeiro poeta do Brasil, perseguido e
preso pela inquisição). São Paulo: Marco Zero, 1995.
WHITE, H. Trópicos do discurso:ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio
Correia de franca Neto. 2ed., São Paulo: USP,2001.
WEINHARDT, M. Considerações sobre o romance histórico. Revista de Letras.
Curitiba/PR: Ed. UFPR, nº 43, 1994, p. 49-59.
XAVIER, E. Narrativa de autoria feminina na literatura brasileira: as marca da
trajetória.In:http://www.letras.ufrj.br/litcult/revista_mulheres/volume3/ler.php?id=
5/> Acesso em: 3/12/1999.
ZOLIN, L.O. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L.O. Teoria
literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. ed., Maringá:
Ed. UEM, 2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo