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UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E
SOCIEDADE
DISSERTAÇÃO
Ambientalismo e carcinicultura: disputa de
“verdades” e conflito social no extremo sul da
Bahia
OMAR SOUZA NICOLAU
2006
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ii
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO,
AGRICULTURA E SOCIEDADE
AMBIENTALISMO E CARCINICULTURA: DISPUTAS DE
“VERDADES” E CONFLITO E NO EXTREMO SUL DA BAHIA
OMAR SOUZA NICOLAU
Sob a Orientação do Professor
Luiz Flávio de Carvalho Costa
Dissertação submetida como
requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre de Ciências
Sociais em Desenvolvimento
Agricultura e Sociedade,
no
Programa de Pós-
Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade
Rio de Janeiro, RJ
Setembro de 2006
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iii
333.715
N639a
T
Nicolau, Omar Souza
Ambientalismo e carnicultura : disputas
de “verdades” e conflito e no extremo sul
da Bahia / Omar Souza Nicolau. – 2006.
162 f.
Orientador: Luiz Flávio de Carvalho
Costa.
Dissertação (mestrado) Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto
de Ciências Humanas e Sociais.
Bibliografia: f. 117-119.
1. Meio ambiente - História Caravelas
[BA] - Teses. 2. Meio ambiente Disputa
política Teses. 3. Unidades de
conservação Caravelas [BA] Teses. 4.
Carnicultura Caravelas [BA] - Teses. I.
Costa, Luiz Flávio de Carvalho. II.
Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro. Instituto de Ciências Humanas e
Sociais. III. Título.
iv
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA
E SOCIEDADE
OMAR SOUZA NICOLAU
Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, no Curso de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade, área de Concentração em
Estudos de Cultura e Mundo Rural.
DISSERTAÇÃO APROVADA EM 20/09/2006
Luiz Flávio de Carvalho Costa. Dr.CPDA, UFRRJ
(Orientador)
José Augusto Pádua Dr.. IFCS, UFRJ
Hector Alimonda. Dr. CPDA, UFRRJ
v
Dedico este trabalho à Maria
Também a todo o Povo do Mar
aqui do Extremo Sul da Bahia e
em todo o globo
vi
Agradecimentos
Faz parte agradecer e disseram o quão é perigoso esquecer os que realmente
contribuíram para finalização do trabalho, que geralmente, são sempre muitos e muitos a
agradecer.
Primeiro devo agradecer à CAPES pela bolsa de pesquisa que me possibilitou concluir
este trabalho e, se já é difícil com a bolsa, as dificuldades sem este apoio seriam enormes.
Ao meu orientador e amigo em muitas horas Luiz Flávio, pela paciência, pela
compreensão, pela ajuda providencial, mesmo na distância.
Aos professores e colegas do CPDA/UFRRJ pela oportunidade de discutir e debater
temas tão diversos e ao mesmo tempo conexos no período em que estive em sua companhia. Em
relação aos professores, gostaria de agradecer especialmente à Eli, ao Hector, ao Roberto, ao
Johnny, à Regina e à Zezé. Sem eles eu o teria subsídio e segurança para concluir o trabalho.
Aos amigos que fiz no curso: Bia, Dudu, Fernando pilantra”, Naná, Karina, Rê, Bianca, Ruth,
Vânia, Arthur, Edson, Gil, Pri, Betty, Silvia, Andréa, Sandro, Flavinha, Lia, Marcão, Fábio,
Hélio, Cloviomar, Henrique, Socorro, Cleyton, Ricardo, Simone, Manel, Alcides, Mônica,
César... Ih, é tanta gente!!!
Ao Márcio Ranauro e Naninha pela interlocução sempre atenta.
À Cecília Mello pela amizade, pela ajuda na leitura dos textos, pela paixão que
compartilhamos pelo lugar, pelas pessoas e pelas idéias.
A Dodó e “Tico-liro” amigos que fiz e que aprendi a respeitar e admirar. Se alguns
trechos que merecem mérito na dissertação, devo à leitura lúcida dos eventos e à visão crítica de
mundo dessas duas pessoas.
Aos vizinhos e amigos Danilo, Magra, Grazy, Caio, Matheus, Juju, Leiloca, Dani, Mari,
Gui, Fer, Antônio, Érica, Zá e Ani;
Aos Abreu: Fabi, Vânia e Fêr.
Aos parceiros Kid e os patrulheiros, Dudu, Marcello, Kidinho, Xuxu, Pri, Leo, Paulo,
Tosato, Elaine, Marilene e os monitores do Parque, Pablo, Ulisses e Sandra.
A Selmo, Tatico, Lixinha e Zezinho.
Ao Programa Marinho da CI-Brasil por ter me disponibilizado toda a estrutura
necessária para terminar a dissertação.
Aos amigos no Rio de Janeiro, principalmente Janaína, Mosca, Bebel, Nelsin, André e
Érica que contribuíram efetivamente, cada um em um momento específico
A Xinxa pela paciência, amor e cumplicidade.
Á vovó, tios, tias, primos e primas.
Aos meus queridos pais, irmão e Natália.
Aos pescadores e marisqueiros de Caravelas e Nova Viçosa.
vii
Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
Eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém
Belchior
viii
RESUMO
NICOLAU, Omar Souza. Ambientalismo e carcinicultura: disputas de verdades” e
conflito e no extremo sul da Bahia, 2006 162p Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento Agricultura e Sociedade). Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, RJ, 2006.
Este trabalho pretende apresentar as questões ambientais que se revelaram em Caravelas
entre os anos de 2002 e 2006. duas propostas em disputa no município: a de uma
Unidade de Conservação de Uso Sustentado; e outra, um mega-projeto de
carcinicultura. A área de ambos os empreendimentos se sobrepõem inviabilizando a
realização concomitante dos dois projetos. Neste cenário, diferentes agentes locais
envidaram esforços para a mobilização da comunidade caravelense para adesão de uma
ou outra proposta. A dissertação narra o esforço dos agentes nesse processo, avaliando
as ações impetradas pelos mesmos na disputa pelas “verdades” que ora se encontram em
jogo. Estes diferentes agentes, que incluem desde o poder público municipal, ONGs de
cunho ambientalista, Ibama até comerciantes locais, se dispuseram a contribuir na
mobilização comunitária que se edificou e se compôs em oposição: a cada dispositivo
acionado por um grupo de agentes, impunha uma atuação em resposta do outro grupo
polarizado, constituindo uma dinâmica complexa de ações reativas. Esta disputa avança
e se amplia envolvendo outros agentes tais como o Senado Federal, O governo do
Estado da Bahia, do espírito Santo, o Ministério Público Estadual e Federal, a mídia
local e de outros estados. Ademais, a minha inserção como pesquisador e ao mesmo
tempo militante de um dos pólos da disputa também permeia todo o trabalho,
explicitando as dificuldades e oportunidades que o fazer do trabalho acadêmico e a ação
política influenciaram mutuamente na produção da dissertação.
Palavras-chave: Unidades de Conservação, Carcinicultura, Desenvolvimento
Sustentável.
ix
ABSTRACT
NICOLAU, Omar Souza. Environmentalism and shrimp farming: truth disputes”
and social conflicts in South Bahia, Brazil, 2006 162 p. Dissertation (Mestrado em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, 2006.
This work aims to present environmental issues that emerged in Caravelas between
2002 and 2006. Two proposals are being dispute in the city: the establishment of a
protected area of sustainable use versus a large shrimp farming project. These two
enterprises are proposed within the same area, thus unabling the realization of both.
Within this scenario, different local agents made efforts to mobilize the local
community in order to support one or another proposal. This dissertation is a narrative
on these agent’s efforts, also evaluating their actions on truth disputes in place. These
different agents, with include representatives from local municipal government,
environmental non-governmental organizations (NGOs), the environmental federal
agency (Ibama) and local traders, disposed themselves to mobilized the local
community, lead to a situation of opposition: each action from one group of agents led
to a reaction from the opposite group, forming a complex dynamics of reactive actions.
This dispute grows up to involving other agents, such as representatives of the Federal
Senate, State Government of Bahia, State Government of Espírito Santo, Public
Prosecutor Bureau and local and the local and regional media. Futhermore, my insertion
as a reasercher and, at the same time, activist from one of the two disputing permeate
this study, influencing the narrative presented herein.
Key words: Marine Protected Areas, Shrimp farming, Sustainable Development.
x
LISTA DE FIGURAS
13 Figura 1: O complexo estuarino de Nova Viçosa e Caravelas.
16 Figura 2: Área proposta para carcinicultura
18 Figura 3: Passeata na Rua Barão do Rio Branco
36 Figura 4: Casa de Farinha nas Perobas, estuário de Caravelas e Nova Viçosa
40 Figura 5: Reconstituição da Estação Ferroviária de Ponta de Areia
92 Figura 6: Sítio Duas Ilhas, casa de Adilson (Ié)
95 Figura 07: Moradores do Sítio Riacho Mangueira
97 Figura 8: Consulta Pública 1
99 Figura 9: Menino catando sururu no mangue do Rio da Barra Velha
100 Figura 10: Mobilização comunitária para Consulta pública 2
101 Figura 11: Consulta Pública 2, Sítio Rosedá, Barra Velha, Nova Viçosa
103 Figura 12: Faixa dos “empreendedores”
105 Figura 13: Carro de som
108 Figura 14: Área da Zona de amortecimento do Parque Marinho dos Abrolhos
xi
LISTA DE QUADROS
41 Quadro 1: Evolução do desmatamento da Mata Atlântica, 1945-1990.
51 Quadro 2: Distribuição Geográfica das Vendas – Aracel
51 Quadro 3: Vendas por Uso Final – Aracel
52 Quadro 4: Destinação dos recursos da Aracel em 2005
74 Quadro 5: Organograma “ambientalistas”
85 Quadro 6: Organograma “empreendedores”
xii
SUMARIO
Introdução 1
Características geográficas do estuário 12
A questão ambiental no município de Caravelas 14
Problemática 19
I) O exercício de uma história ambiental da região do Extremo Sul baiano:
diferentes versões do mesmo paradigma. 27
1) Uma pequena cidade. Uma breve história de apropriação da Natureza. 29
2) Caravelas e sua evolução político-administrativa 35
3) A versão café 36
4) A versão caça da baleia 37
5) A versão madeira 39
6) A versão eucalipto 43
7)Modelo de desenvolvimento como campo de disputas sócio ambientais 53
II) Ongs, Prefeitura e Coopex: a disputa pelas verdades. 52
Os diversos agentes e contribuições: 68
1) Os “ambientalistas” locais: 68
a) Instituto Baleia Jubarte (IBJ) 68
b) Patrulha Ecológica 69
c) Movimento Cultural Arte Manha 69
d) Projeto Manguezal/CEPENE/IBAMA 70
e) Parnam Abrolhos 71
f) Ampac (Associação de Marisqueiros de Ponta de Areia e Caravelas) 72
g) Lideranças do Conselho Deliberativo da Resex do Corumbau 73
h) Eco-Mar 73
i) Independentes 75
2)Os “opositores” á criação da Resex. 80
a) Prefeitura Municipal de Caravelas 80
b) Rotary Club de Caravelas. 82
c) Colônia de Pescadores Z-25 82
d) Associações classistas, de bairro e grupos formalizados. 83
e) CRA 84
III) O trabalho de campo da mobilização pró-Resex 87
1) Consulta Pública 1 91
2) Consulta Pública 2 98
3) A campanha de difamação do IBAMA. 102
(In)conclusões 107
1) Duas com/oposições: os “ambientalistas” e “empreendedores” 109
2) A publicação da Zona de Amortecimento do Parque Marinho dos
Abrolhos: a questão no âmbito regional e nacional 110
Referências Bibliográficas 113
xiii
Anexos 119
A – Abaixo assinado da Associação dos Moradores Ribeirinhos de Caravelas em favor
da criação da Resex do Cassurubá (16 de outubro de 2003) 119
B “Procura-se empreendedores” Convite para interessados em fazer parte da
Cooperativa de Carcinicultura em Caravelas, demonstrando as vantagens econômicas e
operacionais do empreendimento (30 de março de 2004) 121
C – Revista da ABCC, ano 7, no.3 – “Homens-Caranguejos: Os filhos da lama”
(setembro de 2005) 122
D Jornal “A Tarde”, pág 03, Salvador “Criação de camarão ocupará a restinga”
(08 de novembro de 2005) 124
E Tribuna Independente Teixeira de Freitas Ibama: Proteção ou Corrupção” (1ª.
Quinzena de fevereiro de 2006) 126
F Ministério Público Federal Procuradoria da República em Ilhéus/Bahia
“Recomendação no. 01/2006-FA – Recomenda Ibama assumir responsabilidade de
licenciamento da Coopex em Caravelas. (11 de abril de 2006) 128
G – Diário Oficial da União – Seção 1 – Portaria no.39, de 16 de maio de 2006 – define
a Zona de Amortecimento do Parnam do Abrolhos; (18 de maio de 2006) 136
H Cidade, o jornal do Extremo Sul, ano IX, no. 153 “Caravelas e Coopex recebem
conselheiros do Cepram”; (15 a 31 de maio de 2006) 137
I Governo da Bahia - Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos/SEMARH -
“Esclarecimentos sobre o licenciamento ambiental do Projeto Coopex
Carcinicultura/ Caravelas – BA”; (06 de junho de 2006) 138
J Revista Carta Capital, v. 12, 400, pp. 34 a 37 “Camarões à Moda Tucana:
Decreto que libera criação em Abrolhos favorece ao parlamentar do PSDB” (junho de
2006) 140
K – Folha de São Paulo – “Senador quer anular proteção a Abrolhos: sócio de empresa
com interesses na região é co-autor de decreto que susta zona de amortecimento do
parque marinho”;( 24 de junho de 2006) 142
L A Tarde Salvador - BA Ambiente e Vida “Governador rejeita limites da
proteção de Abrolhos” (25 de julho de 2006) 145
M Acorda Caravelaspanfleto que circulou por Caravelas a favor da criação de
camarão em cativeiro e contra atitude dos “ambientalistas” (s/d) 148
N Não durma Caravelas panfleto que circulou por Caravelas em resposta ao
panfleto “Acorda Caravelas”. (s/d) 149
1
INTRODUÇÃO
A particularidade do sociólogo é ter como
objeto campo de lutas: não apenas o campo de lutas
de classes, mas o próprio campo das lutas científicas
Pierre Bourdieu
- Você é biólogo? perguntou o Silas, jovem morador da Barra de Caravelas. Esta
pergunta se mostrou muito comum nos espaços que eu freqüentava. Desde a decretação do
Parque Nacional Marinho dos Abrolhos e seu reconhecimento como Patrimônio Natural da
Humanidade, levas e levas de pesquisadores, principalmente biólogos, aportaram aqui
levantando a flora e a fauna marinha da região. A cidade tem visto estes jovens forasteiros que
trazem uma bagagem de registros metropolitanos e tensionam sobremaneira as expectativas
dos caravelenses, principalmente dos jovens de oportunidades de trabalho reduzidas. Ainda
não concorrência significativa entre os locais e os forasteiros, contudo algumas
faculdades em municípios próximos e muitos jovens estão estudando nelas; pode ser que
daqui a alguns anos esta concorrência ocorra de fato. Foi com esta singularidade no ambiente
comunitário que desembarquei em Caravelas em meados de 2005. Vinha com várias
expectativas entre elas a de morar permanentemente no município pela relação afetiva que
construí com o lugar. Mas tinha uma missão a cumprir: a de terminar o mestrado e por em
prática um planejamento e um cronograma acadêmico que havia programado. A intenção de
voltar para este “mundo bucólico” revelou-se inteiramente distinto do que minhas
expectativas projetaram em minha mente. Esperava que pudesse, com o saber que carregava
da Universidade, ter uma trânsito razoável entre os diversos segmentos que conhecia na
cidade. Talvez acreditando em demasia na minha capacidade de dialogar com gente diferente
e com o fato de ter uma raiz familiar na cidade, iludi-me. Não obstante essa disposição, na
minha bagagem vinha também, além de livros e textos, uma posição clara de enfrentamento
contra injustiças provocadas pelas desigualdades sociais que percebia aqui.
tempos venho desenvolvendo uma prática particular de leitura do mundo e me
encontro no desafio de concatená-las, sistematizá-las e comunicá-las. Neófito da academia das
ciências sociais, estive desde a graduação induzido por diferentes escolas de pensamento,
posicionamentos políticos e teorias diversas. Ao largo das polêmicas tradicionais em torno do
positivismo, do materialismo histórico, da democracia liberal, do movimento libertário, eu
2
movia o pensamento nas direções impostas por estes marcos. De fato, a trajetória dos novos
cientistas sociais, pelo menos os da minha turma de faculdade, sempre se viu permeada pelo
que os autores nos começavam a dizer. Estando porém no “outro lado do livro”, o da redação
acadêmica, o processo se inverte e se torna mais penoso, embora muitas vezes gratificante.
Desde a infância visito Caravelas, uma pequena cidade no litoral sul do estado da
Bahia. Aqui conheci as coisas que se encontravam em (ou em processo de) extinção no Rio de
Janeiro, como o casario colonial, o caranguejo, a pescaria de puçá de camarão, a lama do
mangue. O enorme prazer proporcionado pela liberdade que uma criança metropolitana sentia
nas brincadeiras livres pelas ruas quase nada movimentadas, no carnaval vestido de “careta”,
continua sendo indescritível. Quando iniciei meu curso de pós-graduação no CPDA, a única
coisa que tinha em mente era voltar para este lugar, com o olhar de um cientista social, mas
que pudesse, ao mesmo tempo, brincar naquelas ruas, sentir o frescor do vento marítimo.
Percebi no campo que na verdade nem mais absorvia os fatos como cientista social, e nem
mais poderia retornar àquela infância perdida. Foi a experiência de campo, cujos textos
antropológicos, historiográficos me ensinaram a respeitar, impôs-me uma mudança radical de
objeto e de temática. Inicialmente meu projeto de pesquisa satisfaria uma curiosidade acerca
da população ribeirinha residente no complexo estuarino de Caravelas e Nova Viçosa. Tinha
por objeto a reprodução social desses ribeirinhos, pois a extinção dos modos de vida
tradicional daquela gente parecia estar inexoravelmente em curso. Movido por um sentimento
de justiça social, tendo como arma a “autoridade científica”, me dispus a campo com essa
“nobre” intenção. As leituras de um Diegues
1
, de um Leis
2
, e de tantos outros autores que me
introduziram os professores do CPDA/UFRRJ, influenciaram sobremaneira a busca por
aqueles ideais. O desafio era portanto aliar a produção acadêmica com a militância; ou na
“construção da viagem inversa”, segundo Tavares dos Santos:
O passo fundamental na produção crítica do conhecimento sociológico
consiste na distinção epistemológica entre o objeto real e o objeto científico, ou
a passagem de uma questão social a uma questão sociológica (Tavares dos
Santos, 1991, p.58)
Ensina-nos o autor que é preciso valorizar o erro para que possamos reconhecer e
superar os obstáculos epistemológicos mantendo a coerência e o rigor indispensáveis para a
produção científica. Advoga Tavares dos Santos que se faz necessária uma “vigilância
1
Diegues e Nogara.(1999) “O nosso lugar virou parque”. São Paulo, Nupaub-USP
2
Leis, Hector.(1999) A modernidade insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea.
Petrópolis, Vozes.
3
epistemológica” na investigação da realidade de tal modo que se possa chegar a uma
“reconstrução da realidade social”. Na minha inserção em campo, vi-me diante deste desafio-
dilema, pois a construção teórica do meu objeto de estudo pensado no projeto de pesquisa,
ainda passaria por transformações que estavam, naquele momento fora de minhas
expectativas iniciais. Precisava superar, i.e., transformar este problema social que me animava
em algo que pudesse ser descrito nos parâmetros científicos, ou elaborar a sua definição
provisória e chegar ao termo de sua eficácia como objeto de estudo acabado. Nas palavras do
autor, era preciso confrontar aquele objeto cientifico com os objetos reais pululantes do
campo e ao mesmo tempo conquistá-los; apropriá-lo de forma que me pertencesse em
definitivo para que enfim pudesse a partir dos objetos reais construir o objeto científico e
constata-lo.
Resolvi, findos os créditos exigidos como parte do programa de pós-graduação, que
me mudaria definitivamente para Caravelas, para que pudesse estar mais à vontade com a
problemática que pretendia abordar. Assim em meados do ano de 2005, volto à casa de meus
pais – residentes no município
3
, com a providencial ajuda mensal da bolsa da CAPES.
* * *
No final de Julho de 2005, já definitivamente morador de Caravelas, tive um encontro
com a coordenação do Projeto Manguezal, braço do Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos
Pesqueiros do Litoral Nordeste do Instituo Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos
Renováveis – Cepene/Ibama
4
, na tentativa de conseguir acesso aos sítios dos ribeirinhos
espalhados pelo complexo estuarino de Caravelas. Ficou estabelecida uma espécie de parceria
informal com o Projeto Manguezal. A instituição me proporcionaria a visita aos sítios em
troca do apoio à Associação de Marisqueiros de Ponta de Areia e Caravelas - Ampac. Havia
tido alguma experiência na formação de grupos e lideranças comunitárias em trabalhos com
ONGs e associações em geral no Rio de Janeiro, principalmente entre a população favelada, e
essa prática parecia ser de alguma valia para a coordenação do Projeto Manguezal. Ainda, por
ser meu parente, imaginei que a proximidade afetiva que mantinha com o coordenador da
instituição me colocaria numa posição um tanto privilegiada para o desenvolvimento de
3
Minha mãe é caravelense. Foi ao Rio de Janeiro procurar melhores condições de trabalho na década de 1960,
casou-se, teve dois filhos e retorna no final dos anos 1990 com meu pai de volta a Caravelas. Hoje ele é um
comerciante local; ela uma professora concursada do município.
4
O Projeto Manguezal Projeto Integrado de Manejo e Monitoramento para Uso Sustentável pela População
Ribeirinha no Manguezal de Caravelas BA, é uma iniciativa de alguns analistas ambientais do Ibama e inicia
suas atividades em setembro de 2002 pelo Cepene/Ibama, com o patrocínio da Aracruz Celulose.
4
minha pesquisa. Na verdade essa proximidade acabou atrapalhando o desenrolar da pesquisa,
expectativa não prevista no primeiro momento. Além disso, e de qualquer maneira, também
seria voluntário no apoio à Ampac, por identificar ali um interessante espaço para a
configuração de um tipo diferente de gestão, diferente da praticada na falida cooperativa de
pescadores local, na colônia de pescadores Z-25, nas associações de classe em geral,
comumente, como me contaram vários interlocutores, baseadas num modo de proceder das
lideranças que indicam uma forma específica de conduzir os negócios das entidades. A
participação, de modo geral, dos associados da Ampac, se restringe à cobrança das vantagens
que o “ser associado” pode lhes garantir. As promessas de seguridade social vinculada ao
defeso de determinadas espécies, por exemplo, foram incutidas no presidente da Ampac e
posteriormente por ele nos associados, mormente por uma relação de confiança do presidente
da Ampac no coordenador do Projeto Manguezal, do que por uma própria exigência da
entidade. Não se quer discutir nem a legitimidade do corpo gestor da Ampac, nem o modo
como valores externos interferem na avaliação do então presidente da associação, tampouco, e
mais importante, que o então presidente da Ampac seria apenas um títere do Projeto
Manguezal. Ao contrário, tendo com base a relação de amizade que construímos, percebi
diversas vezes que este indivíduo veemente e energicamente tentava impor seu modo de
perceber os eventos e fatos o ao presidente da Ampac, como também a todo grupo de
“ambientalistas”.
Uma aproximação sobre a identidade real ou virtual dos marisqueiros mereceria uma
atenção mais apropriada. No sentido que queremos conferir, “pertencimento” dos
marisqueiros representados pela Ampac não se expressa nas práticas concretas e nos
significados que a diversidade (aparente) das identidades se manifestam. Não é objetivo, nem
como discussão acessória, a noção de identidade social neste trabalho, apenas uma
constatação de que uma separação patente entre as falas dos marisqueiros e da Ampac,
muito tensionada pelos valores do coordenador do Projeto Manguezal e do movimento
ambientalista como um todo. É comum o discurso (externo) ser introjetado. O nós” que
impute o pertencimento de classe ou culturalmente instado se esvaece no mesmo instante que
aquele marisqueiro ou pescador artesanal assume a gestão da associação. Esta reflexão não é
generalizável. Falamos da Ampac, na gestão de Selmo Serafim, que em muitos momentos
remete-se a “eles” quando perguntado sobre os negócios da associação. O argumento parece
ser sempre o cnico com a recusa ao enquadramento dos marisqueiros como categoria social
ou como sujeitos históricos. A fala acaba sendo incorporada no vocabulário do presidente da
5
Ampac; a fala é do coordenador do Projeto Manguezal/Cepene. Traduz, portanto, a
incapacidade desse coordenador e talvez de alguns integrantes do movimento em reconhecer
que os marisqueiros estão aptos para gerar respostas próprias, ignorantes de sua condição e
apenas tendo-lhes reconhecido os saberes tradicionais em relação ás suas atividades seculares
de apropriação dos recursos naturais. Esse tratamento pode ter como base uma visão
homogeneizadora da realidade social dos marisqueiros, que indicam intervenções nas práticas
associativas desse grupo social. que se perceber que outras digressões a respeito do
modo como determinados agentes, citados neste trabalho, percebem os marisqueiros. É
evidente que este segmento está longe de se igualar em poder e acesso a outros grupos da
sociedade e a coexistência destes com outros grupos não se pode pensar harmônica.
Tampouco o fato da Ampac ter sido fomentada e instituída por um organismo de Estado e,
também, vale ressaltar, com patrocínio de uma empresa de celulose, o significa que sua
inserção nas esferas de poder terá que, necessariamente, se dar sob a ingerência e interferência
de outros agentes não identificados com o grupo social “marisqueiro”. Ao contrário, as novas
formas de associação e agregação social desconexas das práticas tradicionais de representação
(Colônias de Pescadores, Sindicatos indiferenciados do Estado um “corporativismo estatal”,
originado no Estado Novo), surgem como novos canais de representação e participação. O
fato de a Ampac ter sido induzida pelo Ibama, não a desqualifica frente a outras associações
que têm origem em iniciativas mais próximas de uma autoctonia relativa.
À época a sede da Ampac, contígua ao prédio do Projeto Manguezal em Ponta de
Areia
5
, iria ser inaugurada. Com o patrocínio da Aracruz Celulose, que disponibilizou
recursos para a construção da sede da Associação e para a compra de uma máquina de gelo, a
diretoria da entidade encontrava dificuldades no âmbito de sua gestão. O corpo gestor da
Ampac tinha pouco conhecimento do seu estatuto e das atribuições, direitos e obrigações de
cada um de seus membros. A Ampac tendo sido instituída pelo Projeto Manguezal, consoante
5
O distrito de Ponta de Areia abrigava a estação terminal da Estrada de Ferro Bahia-Minas que ligava os
municípios de Araçuaí ao Porto Marítimo de Caravelas. A cidade de Caravelas e o distrito de Ponta de Areia,
distante aproximadamente 4 km da sede do município, foram doadas em 18 de julho de 1881 à Estrada de Ferro
Bahia-Minas por Decreto Imperial de Pedro II. Hoje Ponta de Areia é uma espécie de vila de pescadores com os
casarios coloniais se desfazendo pelo tempo e pela negligência das gestões municipais quanto à manutenção do
patrimônio histórico do município. A estação de Ponta de Areia foi demolida e quase nada nos lembra aquele
período de intenso trânsito de Locomotivas. Sob o argumento da inviabilidade econômica do tráfego, a linha
férrea foi destruída em 1966. O que remonta àquele tempo é uma pequena comunidade de pombos que sobrevive
apenas em Ponta de Areia. Fora as ruínas do casario neoclássico daqueles tempos, os pombos o o indicador
biológico que ali havia uma dinâmica complexa de fluxo de mercadorias e pessoas.
6
o subprojeto “Associativismo”, partiu muito mais de uma demanda do próprio Projeto do que
de uma intenção coletiva dos próprios marisqueiros de Ponta de Areia, distrito de Caravelas.
A diretoria e o Conselho Fiscal foram escolhidos segundo critérios que contrastam
com os princípios seculares do associativismo
6
. Não quero defender que toda e qualquer
associação tem que necessariamente se pautar sob aqueles princípios. Na prática, porém, não
se percebe a autonomia da instituição, ao contrário ouvi muitas vezes que a Ampac era uma
espécie de “associação-joystick” do Projeto Manguezal. Por conta de uma série de
dificuldades que incidem desde uma caracterização sócio-cultural de uma população sempre
alijada dos processos decisórios ao cumprimento dos prazos estabelecidos entre o Projeto
Manguezal e seu patrocinador, a Ampac surge com uma gama de vícios que tanto o
coordenador do projeto Manguezal quanto o então presidente da Ampac, pretendiam superar.
A parceria pesquisador-Ibama então se estabeleceu com a preocupação por conta do Projeto
Manguezal em manter e fomentar a lisura na gestão da Ampac, principalmente a partir do
funcionamento da máquina de gelo que deveria gerar um ativo considerável para a entidade.
O receio do coordenador do Projeto Manguezal era que com a venda de gelo e a pouca
experiência do corpo gestor da Associação no que diz respeito à administração de recursos, o
não cumprimento de determinados princípios éticos daria brechas para a malversação das
finanças, pondo em risco os objetivos últimos do subprojeto “Associativismo” do projeto
Manguezal.
Minha atribuição nessa parceria seria justamente contornar este caminho, alterando o
estatuto da Ampac e construindo, com o corpo gestor, a distribuição dos recursos advindos da
venda do gelo para fundos específicos, de maneira a evitar práticas ilícitas. Esta suposição a
priori indica que necessariamente, pela visão do coordenador do Projeto Manguezal
“esperava” certamente a malversação dos recursos. A relação de desconfiança, portanto,
parece se estabelecer desde seu nascedouro. Esta parceria não foi formalizada e alguns
imbróglios no intermédio revelaram-se. Em primeiro lugar somente quatro integrantes da
Associação participavam dos encontros e um conflito latente ali se configurava. Havia uma
diferença de visão quanto à destinação dos recursos provenientes da venda do gelo: de um
lado o presidente da associação insistia em um fundo para ajuda assistencial aos associados;
de outro o vice-presidente acreditava no incremento estrutural da associação. o havia,
entretanto, nenhuma contradição entre as duas posições, mas as discussões provocaram um
6
Os princípios associativistas remontam os idos de 1844, da primeira cooperativa surgida: “Sociedade dos
Probos Pioneiros de Rochdale”, em Manchester, Inglaterra, que investiam em uma alternativa econômica às
crescentes e inexoráveis mudanças iniciadas com o advento das revoluções industriais européias.
7
mal-estar então não percebido por mim. Ainda, as idas a campo respeitavam muito mais a
uma agenda do Projeto Manguezal e quase nunca eu conseguia inserir minhas demandas de
pesquisador nas viagens da “voadeira” assim chamada a pequena embarcação de alumínio
com motor de popa do Ibama que tornava as viagens mais rápidas e sem o risco de encalhe
nos portos enlameados dos sítios dos ribeirinhos que, dependendo da lua, a amplitude da maré
variava acima dos dois metros. Saí muitas vezes com a equipe do Projeto Manguezal, sempre,
no entanto, a mercê da agenda da equipe do que de minha própria.
Assim fez-se necessária uma revisão da parceria que se acabou rompendo por estas e
por outras razões pessoais.
Ademais, uma situação prevista, mas um tanto negligenciada ocorria no campo: as
pessoas respondiam muito mais ao Ibama que ao pesquisador. Creio que tenha sido difícil a
diferenciação que muitos dos pesquisadores que freqüentam os ribeirinhos estão a serviço
do Ibama ou das ONGs ambientalistas que atuam na região. Os ribeirinhos não diferenciam
esses dois grupos de agentes, até porque uma certa rotatividade de pesquisadores entre as
instituições e são sempre os “de fora” que atuam, tendo alguns caravelenses nas funções de
marinharia ou apoio de campo. Estes pesquisadores e funcionários das ONGs são conhecidos
localmente como “ambientalistas” e assim serão chamados e grafados entre aspas nesse
trabalho sempre que me referir a esse grupo, apesar da heterogeneidade de posições e dos
conflitos entre essas instituições. Com efeito, aquilo que vim a perceber depois com o
desenvolvimento da pesquisa, os ribeirinhos identificavam. Não posso dizer que os
ribeirinhos têm dificuldades de perceber esta diferença, pois na verdade, do ponto de vista do
nativo, esta diferença realmente não existe de fato, não é um problema da percepção deles,
porém muito provavelmente, a confusão se inaugura certamente porque o mundo dos
ribeirinhos é um mundo diferente dos pesquisadores que têm um discurso parecido com o do
Ibama, que se traveste de uma aproximação que é diferente dos políticos locais, dos
missionários das igrejas. Nesse sentido não faz a menor diferença ser biólogo, oceanógrafo,
cientista social ou funcionário do Ibama. Tendemos a não levar a sério a percepção dos
ribeirinhos, mas refletindo sobre a questão posteriormente, na tensão que minha inserção no
campo exprimiu, qual seja a do pesquisador-militante, era como se os nativos dissessem nas
entrelinhas: “ei, moço você vem nos barcos deles, você pergunta tal como eles perguntam,
você fala igual a eles, você é amigo deles: você é um deles!” Realmente o que não era claro
para mim, desde o início ficou óbvio para eles: eu não estava como pesquisador, mas eu
seguia a equipe do Projeto Manguezal, era voluntário da instituição. Nessa época, ouvia de
8
vez em quando um ou outro dizer: “ah vocês do Ibama podiam...”, “gente, o pessoal do Ibama
tá chamando aqui!”.
Parti então para outra forma de visita aos ribeirinhos enquanto mantinha o contato com
os marisqueiros residentes na sede do município de Caravelas. Encontrava um número
bastante considerável de famílias que deixaram seus sítios na roça” e que vieram morar na
cidade. Essas famílias ainda trabalham na terra e no mangue, mas têm hoje outra referência
com a vida citadina. Muito frequentemente o contato dos ribeirinhos com a sede do município
se dava pelo comércio da feira livre que acontece semanalmente na Rua do Porto (Rua Aníbal
Benévolo). Com o número significativo de ribeirinhos morando no Bairro Novo região de
apicum
7
demarcada para o assentamento da população pobre, que à época gerou muita
animosidade entre o Ibama, a prefeitura municipal e aquela população – algo pode ter mudado
em relação à confiabilidade do Ibama entre aqueles novos moradores da sede
8
. O Bairro Novo
não conta com saneamento básico, principalmente com a estrutura de esgotamento sanitário,
apesar de ter um posto de saúde e uma escola no local.
Boa parte da população residente é proveniente dos sítios ou “ilhas” ao longo do
estuário e a fronteira campo-cidade deve ser aqui discutida. Esses moradores ainda lidam nos
seus locais de origem passando boa parte da semana na produção do pescado, na cata e
beneficiamento do marisco e nas atividades de lavoura, mas moram na cidade. A sua inserção
como residentes do centro urbano pode ter trazido diferenciações significativas quanto ao
modo como esses ex-ribeirinhos” se inserem nas questões comunitárias. ali uma praça
(Pirão Virado) onde as pessoas se encontram quase sempre pela manhã e no final de tarde
onde as conversas são colocadas em dia e onde se configura o espaço público no qual
questões importantes são discutidas.
Com o fracasso da parceria com o Projeto Manguezal tentei contato com a Secretaria
Municipal de Educação para o desenvolvimento da pesquisa utilizando, de carona, os barcos
contratados pela prefeitura para fazer o transporte dos alunos nas três escolas rurais
ribeirinhas. Saía geralmente às 5:00 em trajetos que muitas vezes demoravam 2 horas!
Infelizmente também ficava ao sabor dos horários escolares perdendo a oportunidade de
contato de ribeirinhos dos sítios mais distantes da escola. Todavia a visita aos ribeirinhos se
7
O apicum ocorre na porção mais externa do manguezal, raramente em pleno interior do bosque e associa-se aos
manguezais formando na realidade um estádio sucessional natural do ecossistema [SCHAEFFER-NOVELLI, Y.,
1989. Perfil dos ecossistemas litorâneos brasileiros, com especial ênfase sobre ecossistema manguezal.
Publicação esp. Inst. Oceanogr., S. Paulo, (7) . pp 1-16.
8
Segundo o que me contaram no Bairro Novo, o Ibama defendia a ocupação de outros terrenos distantes do
acesso ao rio, mas que constavam no Plano Diretor da cidade como área de expansão urbana. Assim, o Ibama
ameaçou expulsar/multar os moradores, criando ou fortalecendo uma animosidade destes com o órgão federal.
9
deu mais proveitosa que com o Ibama, pois eu tinha todo o tempo do turno da manhã para
organizar minha observação e entrevistas. Ainda assim sentia dificuldades no entendimento
dos ribeirinhos em relação ao meu trabalho. Mas o fato de desembarcar no barco da escola me
dava certa vantagem em relação à outra forma escolhida por ser recebido de modo diferente.
Entretanto, no que diz respeito à isenção da minha pesquisa e do meu lugar no campo, ainda
estava sob a tensão do entendimento por parte dos ribeirinhos proveniente de um histórico de
pesquisas anteriores visitas aos sítios, questionários, entrevistas cujos resultados parecem
ser poucos divulgados entre a população de maneira geral e sendo, na maior parte das vezes,
realizados pelo ou por intermédio do Projeto Manguezal/Ibama.
Com o fim do ano letivo, a atividade de campo se interrompeu por algumas semanas,
retornando por conta de um esforço das instituições “ambientalistas” na mobilização
comunitária para a criação da Reserva Extrativista do Cassurubá e, no momento em particular,
da oposição daquelas entidades frente à proposta da instalação de uma grande fazenda de
produção de camarão em cativeiro na região, que conta ainda hoje com o apoio da prefeitura,
do governo do Estado da Bahia e de alguns segmentos e autoridades locais e regionais. Como
militante, participei ativamente deste esforço de mobilização comunitária, sendo, inclusive,
um dos responsáveis pela metodologia de campo. Passei, na companhia de Selmo Serafim,
marisqueiro e então presidente da Ampac, praticamente um mês entre os diversos sítios,
conversando com as pessoas na tentativa de envolvê-las em torno das questões ambientais em
voga (UC e carcinicultura) e pude perceber uma série de nuanças que as visitas anteriores não
me permitiram, pelas razões já aduzidas.
O alvo, o universo do projeto inicial era a população ribeirinha. Mas vi-me diante de
algo que a todo tempo reclamava minha atenção. No início, ia inteirando-me das instituições,
das lideranças, dos ditos formadores de opinião”, da vida quotidiana citadina. Ao mesmo
tempo percebia que havia um início de um debate que começava a tomar corpo, forma e calor.
Não ignorava que havia uma política do estado da Bahia de fomento à carcinicultura e que
Caravelas constava entre os municípios, por suas condições favoráveis à implementação de
maricultura, de maior potencial para o desenvolvimento da atividade. Porém foi no momento
em que tomei realmente parte desse debate, que o objeto da dissertação quis se libertar dos
grilhões que eu lhe havia ferrado. Antes que eu mesmo tivesse me convencido, o próprio
objeto de pesquisa se metamorfoseou: obrigou-me a observar as ações, os discursos, os
diferentes agentes, a dinâmica e o contexto das questões ambientais na cidade que se punham
em disputa. Assim, foi no processo de campo que o projeto de pesquisa se revelou e maturou,
10
soltando-se das letras impressas da peça que apresentei na qualificação de mestrado e
encarnou na minha observação, girando o foco para outros elementos que pareciam acessórios
no projeto inicial.
Os eventos narrados nessa dissertação estão circunscritos a uma visão particular. O
que pretendi foi juntar as peças desse quebra-cabeças que não tem forma definida, que outro
pesquisador poderia dar outra configuração; não é uma posição definitiva. Apenas pretendo
reconstituir o debate que se travou durante o tempo em que estive imerso como pesquisador e
como militante do movimento ambientalista de Caravelas. Este trabalho pretende organizar o
debate para que possa ser formatado num texto, que pode agora ser divulgado, para que se
amplie o debate aqui contido, para que esta sirva apenas como um ponto de referência para
outras discussões, para outras abordagens.
Em muitos momentos fui obrigado a consciente e deliberadamente omitir e suprimir
certos elementos que poderiam contribuir para o acirramento dos conflitos entre instituições e
apartá-los de forma definitiva. A tensão pesquisador/militante me impunha este expediente.
Em outros momentos os conflitos foram incisivamente descritos também pela mesma razão.
alguns fatos que, segundo minha interpretação, devem ser narrados mesmo que isso possa
trazer efeitos não desejados. Mas redigi o trabalho respeitando as diferenças dos agentes, as
idiossincrasias dos indivíduos que mantém as organizações e outros que apenas se
representam por si sós, para que se evite inviabilizar futuras parcerias e contribuir para o
acirramento dos conflitos.
Na verdade foram escolhas. Escolhi suprimir algumas informações que não deveriam
ser divulgadas ao público; escolhi dar maior ênfase a outros elementos mais pertinentes à
dissertação. Em outras palavras, houve as escolhas do pesquisador e houve as escolhas do
militante. Há, portanto, inúmeras lacunas, que não poderiam ser resolvidas com um
afastamento, tratando o objeto como objeto estrictu sensu, mas esse objeto fluido, amorfo,
que flutua num magma de perigos (o perigo do rigor acadêmico e o perigo da
responsabilidade política) resultou neste trabalho.
Em primeiro lugar a dissertação trata das mudanças a que o trabalho de campo
inaugurou. Todas as impressões foram sentidas no sobressalto. Houve, inicialmente, uma
dificuldade de definição que foi sendo superada na medida em que assumi que meu projeto
teria que mudar em função dos eventos que iam ocorrendo.
Portanto um universo inscrito no que o pesquisador teve de contato. Minha
observação contém uma infinidade de termos que estão dentro de um paralelo espaço-
11
temporal específico e posso apenas narrar impressões que os sentidos me conferiram.
Além disso, o militante não apenas age, mas observa e observando tensiona o
acadêmico. Da mesma forma o acadêmico também age e agindo choca-se com o militante. O
grande desafio do objeto a que me dispus observar, não foi separar estas duas instâncias da
minha percepção, mas conciliá-las. Uma balança imaginária pendia ora para um lado, ora para
o outro. E todo o trabalho está na interação das duas experiências que só podem ser separadas
como recurso didático, para que eu possa apresentar ao leitor que os furos constantes no
trabalho são, na maior parte das vezes, resultado do peso maior ou menor daquele que tem
duas faces, mas que perseguiu as indicações da academia para produzir o texto final.
Finalmente, dificuldades outras também produziram falhas que vão desde os
obstáculos naturais da inserção no campo, a aceitação dos agentes em relação ao militante e
ao pesquisador (muitas vezes confundido com um biólogo), os conflitos gerados a partir da
minha inclusão no campo de disputa, tanto entre os adversários da contenda, quanto entre os
próprios parceiros, até a mudança de objeto ocorrida no calor dos acontecimentos. Algumas
dessas lacunas eu mesmo pude perceber na elaboração da dissertação, outras ainda estão por
se desvelar.
De todo modo, prefiro acreditar que o trabalho apesar dessas lacunas, ao menos se
presta a ser uma tentativa de registro dos eventos que estão aqui narrados. Um registro que
permite uma revista, que é ao mesmo tempo uma construção e uma reconstituição dos fatos a
que a pesquisa foi submetida. É esta complexidade que inspirou todo o esforço de conclusão
da dissertação e é com ela que apresento os eventos que se materializam agora nesse trabalho.
* * *
Em 10 de novembro de 2005, o CRA/BA órgão ambiental do estado da Bahia,
realizou uma Audiência Pública como parte do processo de licenciamento do empreendimento
carcinicultor da Coopex Cooperativa de criadores de camarão do Extremo Sul da Bahia.
Antes porém um certo número de pessoas entre estudantes, professores, membros e
colaboradores das ONGs atuantes na área, grupos de jovens, movimento cultural e voluntários
se dispuseram a desconstruir o discurso dos “empreendedores” e seus prepostos que se
baseavam na oferta de empregos e na sustentabilidade ambiental do empreendimento.
Diversas estratégias foram delineadas para de um modo ou outro envolver a comunidade na
questão da carcinicultura e conseguir apoio para a oposição ao empreendimento.
12
Neste momento eu fiz parte neste cenário como voluntário deixando bem clara minha
posição contrária ao viveiro de camarão, oferecendo meus braços para a mobilização
comunitária em torno da questão. Estive, através do esforço dos agentes “contra” o
empreendimento em variadas reuniões comunitárias, quando se apresentava as experiências
da carcinicultura em outros estados do Brasil. Acabei sendo aceito pelos integrantes do
movimento ambientalista local e fui sendo envolvido nas questões políticas que se
apresentavam.
Características geográficas do estuário
Entre os municípios de Caravelas e Nova Viçosa, ocorre o principal complexo
estuarino do Banco dos Abrolhos, Área Prioritária para conservação da biodiversidade
marinha e costeira do Brasil, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Esse complexo
estuarino, com aproximadamente 11.000 ha de manguezais, restingas e ecossistemas
associados, encontra-se ainda hoje relativamente bem conservado e abriga uma população
residente nas ilhas e tios espalhados pelo estuário que, há gerações, se apropria dos recursos
naturais sem promover sua degradação.
O manejo sustentável dos recursos naturais por parte dessa população a caracteriza,
segundo Diegues
9
, como uma cultura tradicional que se relaciona com a natureza e entre si
segundo certas formas que alcançam uma dimensão histórica. A pesca e a mariscagem
praticadas nos moldes de uma pequena produção mercantil constitui a base da produção e da
organização social dessas famílias. Os ribeirinhos, de modo geral, praticam a pesca e a
pequena lavoura, cujos produtos eventualmente são comercializados nas feiras livres que
ocorrem semanalmente nos municípios de Nova Viçosa e Caravelas. Poucos são os que
dispõem de equipamentos mecanizados, sendo mais comum encontrarmos bateiras e canoas a
remo para a pesca e mariscagem; e os instrumentos rudimentares para a atividade agrícola.
Assim, as aproximadamente 350 famílias distribuídas de modo esparso pelas margens dos
rios, estão secularmente sob a influência de tensões de diferentes naturezas. O manguezal que
lhes impõe um ritmo de vida consoante às variações de maré, aos ciclos dos bichos; sua
produção em termos de seu valor de troca (produtos comercializados na feira livre) e valor de
9
DIEGUES (2000), A. C.O Mito moderno da natureza intocada. São Paulo:Hucitec.
13
uso (o esteio proveniente das árvores para a construção de casas pelos próprios ribeirinhos, a
manufatura dos remos, a lenha para o fogão); sua relação com o poder local e com as
instituições ambientalistas, e finalmente, a dinâmica das relações intra e interfamiliares. De
acordo com a perspectiva de alguns autores, esta gama de registros que relacionam os
ribeirinhos com o mundo ao seu redor os caracterizam como população tradicional, cujo
modo de vida defende-se que deve ser preservado pela sua importância cultural, social e
econômica.
Figura 1: O complexo estuarino de Nova Viçosa e Caravelas. Imagem
gentilmente cedida pelo Programa Marinho da Conservação Internacional do
Brasil
14
A questão ambiental no município de Caravelas
É necessário, antes de tudo que façamos uma contextualização da questão ambiental
no Município de Caravelas, nestes últimos tempos.
uma proposta de produção de camarão em cativeiro em processo de licenciamento
sob a competência do CRA/BA (Centro de Recursos Ambientais do Estado da Bahia). As
nuanças de um evento anterior, uma Audiência Pública como parte do processo de
licenciamento de carcinicultura, influenciaram sobremaneira as estratégias de mobilização
comunitária para a criação da UC.
A carcinicultura, atividade em franco crescimento principalmente no Nordeste do país,
vem sendo fomentada pelo Programa de Desenvolvimento da Aqüicultura e da Pesca, da
Bahia Pesca S/A, empresa ligada à Secretaria de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária do
Estado da Bahia. A carcinicultura no Nordeste é responsável por 96,5% da produção brasileira
de camarão em cativeiro e a Bahia é o terceiro produtor com 13,15%.
10
Esta atividade,
altamente poluidora, tem gerado polêmica entre os diversos setores da sociedade.
A produção de camarões em cativeiro foi responsável, desde meados da década de
1990, por um aumento de 83,5% na produção nacional de camarão, passando o Brasil para o
produtor mundial.
11
A carcinicultura vem sendo propalada por autoridades e instituições
diversas como uma atividade econômica que gera significativas divisas ao país. Não obstante,
os impactos sócio-ambientais do agronegócio do camarão em cativeiro estão sendo encobertos
nos discursos dos produtores e fomentadores da atividade. Diversos estudos vêm sendo
realizados no tocante aos impactos da carcinicultura no Brasil e no mundo. Segundo
Meirelles,
O Relatório do Deputado Federal João Alfredo (relator do GT-
Carcinicultura) para a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
da Câmara Federal, caracterizou danos sócio-ambientais de elevada magnitude no
ecossistema manguezal do nordeste brasileiro.
(...) Constatou-se que os viveiros de camarão promoveram: i) desmatamento
do manguezal, da mata ciliar e do carnaubal; ii) extinção de setores de apicum; iii)
soterramento de gamboas e canais de maré; iv) bloqueio do fluxo das marés; v)
contaminação da água por efluentes dos viveiros e das fazendas de larva e pós-larva;
vi) salinização do aqüífero; vii) impermeabilização do solo associado ao
10
Dados da ABCC (Associação Brasileira de Produtores de Camarão).
Disponível em : http://www.abccam.com.br/images/cent-08.jpg
Acesso: 15/12/2005
11
BATISTA e TUPINAMBÁ, A carcinicultura no Brasil e na América Latina: o agronegócio do camarão,.
Disponível em: http://www.rebrip.org.br/publique/media/A%20carcinicultura.doc
Acesso em 18/12/2005.
15
ecossistema manguezal, ao carnaubal e á mata ciliar; viii) erosão dos taludes, dos
diques e dos canais de abastecimento e de deságüe; ix) ausência de bacias de
sedimentação; x) fuga de camarão exótico para ambientes fluviais e fluviomarinhos;
xi) redução e extinção de habitates de numerosas espécies; xii) extinção de áreas de
mariscagem, pesca e captura de caranguejos; xiii) disseminação de doenças
(crustáceos); xiv) expulsão de marisqueiras, pescadores e catadores de caranguejo
de suas áreas de trabalho; xv) dificultou e/ou impediu acesso ao estuário e ao
manguezal; xvi) exclusão das comunidades tradicionais no planejamento
participativo; xvii) doenças respiratórias e óbitos com a utilização do metabissulfito;
xviii) pressão para compra de terras; xvii) desconhecimento do número exato de
fazendas de camarão; xix) inexistência de manejo; xx) não definição dos impactos
cumulativos e xxi) biodiversidade ameaçada.
12
Em Caravelas, uma proposta de implementação de empreendimento de carcinicultura
encontra-se em processo de licenciamento pelo CRA/BA. A Cooperativa dos Produtores de
Camarão do Extremo Sul da Bahia - Coopex, pretende instalar entre os canais estuarinos dos
rios Macaco e Massangano uma fazenda com 1.500 ha, que virá a ser a maior do país. Em 10
de novembro de 2005 houve, no Clube dos 40, em Caravelas, uma Audiência Pública, como
parte do referido processo de licenciamento. Na audiência foi apresentado o EIA-RIMA
(Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental) da empresa Plama –
Planejamento e Meio Ambiente Ltda. Tal documento foi duramente criticado durante toda a
audiência, quando diversas autoridades em seus saberes de referência encontraram um sem
número de inconsistências e contradições. Uma equipe técnica de diversos profissionais das
diferentes áreas do conhecimento produziu então um documento intitulado Parecer
Independente e questionamentos sobre o EIA-RIMA do projeto de Carcinicultura da
Cooperativa de Criadores de Camarão do Extremo Sul da Bahia – Coopex”. Segundo o
documento:
O que motivou a ampla mobilização para elaboração do presente parecer foi
a constatação de que o empreendimento, caso seja licenciado e efetivado, trará
vultuosos impactos sobre as comunidades tradicionais extrativistas de Caravelas e
Nova Viçosa, bem como sobre um dos maiores patrimônios naturais da costa
brasileira - o Complexo dos Abrolhos. As conclusões relatadas a seguir são
baseadas em dados científicos da mais alta confiabilidade, bem como numa análise
crítica da literatura científica e de documentos técnicos que demonstram o rastro de
degradação social e ambiental que a carcinicultura vem deixando na costa brasileira,
além da vasta experiência dos profissionais aqui reunidos, na análise das questões
relacionadas à conservação e uso sustentável dos recursos naturais marinhos e
costeiros.
13
12
MEIRELLES, Jeovah. Carcinicultura: desastre sócio-ambiental no ecossistema manguezal do nordeste
brasileiro. s/d, mimeo.
13
Parecer Independente e questionamentos sobre o EIA_RIMA do projeto de Carcinicultura da Cooperativa de
Criadores de Camarão do Extremo Sul da Bahia (COOPEX), Caravelas, 2005. mimeo.
16
Na figura abaixo, reconhece-se o recorte da área dos tanques a ser utilizada pela
carcinicultura, entre os Rios do Macaco e Massangano. Percebe-se a área em vermelho bem
próxima ao aeroporto de Caravelas. Além do enorme volume de água doce disponível e a
facilidade geográfica proporcionada pelo desenho hidrográfico do estuário, a fazenda da
Coopex também conta com acesso terrestre via BR-418 que se encontra em fase de
asfaltamento, além da citada proximidade com o aeroporto. Percebemos as dimensões do
empreendimento. As células em vermelho indicam onde seriam construídos os tanques de
camarão. O polígono da Resex se sobrepõe à área da carcinicultura, portanto o que impediria
definitivamente a instalação do empreendimento da Coopex seria a decretação da Unidade de
Conservação antes que todo o processo de licenciamento da carcinicultura haja sido
concluído.
Figura 2
: Área proposta para carcinicultura. Imagem Ikonos (Resolução Espacial 4m, Resolução
Radiométrica 8bits) Dezembro de 2004. Escala 1:10.000. Plama, 2005.
17
O que nos interessa para trabalho é que o debate e os discursos sobre o
empreendimento, na esfera local, vêm sendo conduzidos de maneira confusa, e por vezes
truculenta. Os impactos sócio-ambientais estão sendo camuflados pelo argumento que a
carcinicultura irá gerar no município cerca de 3000 vagas para os trabalhadores de um
município que, dentre as suas maiores carências, está a falta de acesso dos jovens ao mundo
do trabalho.
Desde que os empreendedores iniciaram a divulgação do projeto no
município, uma intensa e preocupante campanha publicitária está sendo realizada
com o apoio da Prefeitura Municipal de Caravelas (publicação de folhetos, painéis,
divulgação em rádio, dezenas de reuniões com associações locais na Câmara de
Vereadores e nas escolas). A referida campanha vem trazendo informações
manipuladas e distorcidas sobre a carcinicultura no Brasil que, na realidade, revela
um histórico de degeneração ambiental e social por onde passa.
14
A campanha em favor da carcinicultura transforma-se, na ordem dos acontecimentos,
numa campanha contra a criação da UC no município, pois o polígono proposto para a
Reserva Extrativista do Cassurubá se sobrepõe à área proposta para a fazenda de camarão.
O Ibama e as ONGs ambientalistas da região têm sofrido muitas acusações,
principalmente da prefeitura e seus prepostos, quanto á importância dessas instituições
questionando-se sua contribuição ao município. A reação conservadora da prefeitura e dos
empresários da carcinicultura nomeou o grupo de oposição à carcinicultura como
“ambientalistas”, indivíduos “de fora” que impedem o desenvolvimento da região. A
campanha deflagrada continua ainda em curso e seus resultados dificultaram sobremaneira a
discussão relativa à criação da UC.
Pela urgência revelada no contexto, expressa na antinomia carcinicultura versus
reserva, as duas propostas estão hoje extremamente imbricadas. O exíguo tempo em que tanto
a proposta de carcinicultura quanto a proposta de criação da UC vieram a público, confundiu
de modo patente os munícipes de modo geral. De fato, com a criação da UC, dificilmente um
empreendimento como a carcinicultura poderá ser instalado. No entanto, a construção da idéia
da UC vem de longa data, não obstante a articulação para a criação da UC tenha se feito de
modo urgente.
14
Id. Ibid., p.7.
18
Figura 3: Passeata na Rua Barão do Rio Branco, Caravelas, contra a
implantação da fazenda de camarão. Foto: Cecília Mello
Todas as considerações adiante aduzidas nesse trabalho deverão ser lidas com a tensão
proveniente desse conflito. Uma interpretação que perca de vista essa apreciação deixaria de
fora da análise matizes essenciais para o entendimento global de todo o processo.
À época de toda a movimentação por ocasião da Audiência Pública da Coopex,
diversos atores começam a interagir. O coordenador do Projeto Manguezal, vinha projetando
em diversos pontos da cidade, nas escolas e em reuniões com a população ribeirinha, uma
série de imagens e números sobre os impactos negativos da carcinicultura em outras
localidades. algum tempo que o nome “carcinicultura” estava sendo propagado como
atividade poluidora e que traria riscos para o município e sua população. Esse documento foi
disponibilizado para as outras instituições que dispunham do equipamento de projeção
(Instituto Baleia Jubarte, CI-Brasil, Parnam Abrolhos), para o reforço na campanha de
informação. Outros vínculos foram então estabelecidos ou fortalecidos entre os opositores à
carcinicultura. Participavam das reuniões promovidas pelos atores mais engajados, desde
professores, grupos de jovens, representantes das ONGs e de grupos locais, até os próprios
marisqueiros e pescadores. Iniciava-se então uma grande mobilização contra o projeto de
carcinicultura que, além de informativa, também tinha um caráter de politização da
população. O movimento manteve-se intenso aa sua dispersão por conta das festas de fim
de ano, à redução do esforço de mobilização dos empreendedores” nas comunidades e à
concentração de esforços das ONGs e do Ibama local no processo de criação da UC. Soma-se
19
a isso também uma dificuldade patente do “movimento ambientalista” local na questão da
comunicação. Uma das críticas mais contundentes feitas alhures por alguns parceiros e
independentes à equipe de mobilização para a criação da Resex foi a negligência em relação
ao diálogo com os outros agentes direta ou indiretamente envolvidos tais como: outras
associação de moradores, e de classe, grupos de jovens, militantes individuais. Isso se explica,
em parte, pelo ambiente dinâmico e urgente que o contexto se apresentou. Era preciso, de um
momento a outro, organizar a estratégia de campo e alguns dos agentes envolvidos na
oposição à carcinicultura viram-se alijados do processo. Tal entendimento pode ter levado a
uma certa antipatia para o apoio ao processo de mobilização.
Problemática
Eu pretendia estudar a reprodução social dos ribeirinhos dos manguezais de Caravelas
e Nova Viçosa, mas aterrissei em um momento ímpar de uma mobilização comunitária
intensa em torno das questões ambientais. Algo parecido acontece poucos anos atrás, quando
Cecília Mello, à época mestranda em antropologia do Museu Nacional/UFRJ, inicia em
Caravelas seu trabalho de campo. Esperava ela encontrar um local interessante para se estudar
as questões sócio ambientais. Todavia incomodou-se com o modo como algumas instituições
ambientalistas se comportaram perante a instalação do Terminal de barcaças da Aracruz
Celulose, que, segundo a hoje doutoranda daquela mesma instituição, pareciam estar mais
interessadas em aferir benefícios com as condicionantes ambientais, contrapartida para a
“sociedade” pelos impactos produzidos pela instalação daquele enorme porto.
15
Também a
pesquisadora migrou para outro universo e outro objeto de estudo, devido às impressões que o
trabalho de campo lhe proporcionou.
As dificuldades encontradas no campo bem como o que se apresentava nos momentos
em que estive imerso no mundo social da cidade, impuseram-me à uma radical revisão do
meu objeto de pesquisa. Não podia deixar de narrar esta experiência, valendo-me a pecha de
uma irresponsabilidade acadêmica, uma miopia frente aos acontecimentos e eventos
sociologicamente tão ricos. Provavelmente parece ter sido aqui que eu começava a acreditar
realmente que a separação sujeito-objeto o poderia se dar, mas penso que justamente o fato
15
Segundo a pesquisadora: “Eu encontrei uma situação de consenso e não de conflito, e o quero estudar a
perpetuação das relações de força e sim seus pontos de clivagem e rearticulação. Mudei de objeto principalmente
porque as ferramentas que eu dispunha então, isto é, entrevista e pouco período de campo, não me permitiriam
estudar as mudanças moleculares no devir dos agentes sociais ou “ambientais” em questão. Consegui isso
estudando o movimento cultural [Arte Manha]”.
20
de poder ter percebido este empate, eu tenha me convencido que era preciso mudar
radicalmente meu objeto de estudo, mesmo que isso me impusesse a prorrogação da entrega
do trabalho. Aliando estas preocupações com outra de natureza subjetiva, qual seja a da forma
com que vejo o mundo e do meu comprometimento com a utilidade e pertinência do trabalho
intelectual, mesmo que ainda esteja engatinhando na seara acadêmica, percebi então que
deveria questionar o que estava fazendo e redefinir meu projeto de pesquisa. O risco se
apresenta então na mudança dos pressupostos teóricos a que eu me debrucei naquele intuito
primevo e no que tive que torcer para tentar extrair dali algum caldo.
Esta dissertação pretende narrar esta série de eventos de ordem “ambiental” na qual
diversos agentes e segmentos sociais puseram-se à ação com o fito de transformar a realidade
do mundo em seu redor. Aparentemente estas questões se polarizaram: de um lado a
Prefeitura Municipal seu secretariado e funcionários, a Câmara dos Vereadores, Colônia de
Pescadores, instituições como o Rotary, a Loja Maçônica, comerciantes, associações de
moradores e de classe; de outro as ONGs ambientalistas, os dois Ibama – Projeto Manguezal e
Parnam Abrolhos, outras associações, um movimento cultural, alguns marisqueiros e
pescadores e outros cidadãos. Alguns segmentos, como o turismo não se dispuseram a se
manifestar. Outros foram mais incisivos na disputa das “verdades” que se estabeleceu desde a
preparação para a instalação da carcinicultura até o processo de mobilização para a criação de
uma Unidade de Conservação de Uso sustentado. Estas duas “verdades” acabaram por se
tornar excludentes, como pretendemos desenvolver nos capítulo II e III.
Ainda, por minha disposição para as questões políticas e comunitárias que remontam
os tempos do Movimento Estudantil na UERJ, vi-me optando por uma daquelas “verdades” e
participei ativamente na militância contra a carcinicultura e pró-Resex. As dificuldades que se
apresentaram então no campo foram enormes. Do mesmo modo que entendi que me
apresentando com a “bateira” do Ibama na comunidade ribeirinha teria problemas com a
espontaneidade e veracidade das respostas nas entrevistas, mais complicado foi ainda levantar
algumas informações com os “parceiros” de militância e com os “adversários”. Os primeiros
com o receio que as informações que eu acaso obtivesse pudesse jogar uns contra os outros;
os segundos porque eu poderia me utilizar delas em favor de meu grupo.
Estas dificuldades não são prerrogativas de meu trabalho em particular, mas foram
exaustivamente discutidas principalmente na antropologia e na etnografia, sobre a inserção do
21
pesquisador no campo e a questão da autoridade etnográfica como nos ilustra DaMatta
16
e
Velho
17
lá, e Clifford
18
e Geertz aqui.
19
Roberto DaMatta em “O ofício do etnólogo ou como ter anthropological blues
propõe que o pesquisador deve transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico.
Sugere também que se deve humanizar a experiência etnológica, incorporar a subjetividade, o
sentimento e a emoção no processo de conhecimento antropológico. Quer quebrar a
dissociação entre as atividades intelectuais e as emoções. “Em antropologia é preciso
recuperar o lado extraordinário das relações pesquisador/nativo.” (DAMATTA, 1978, p.35)
Em “Observando o familiar” Gilberto Velho afirma que o familiar tem a ver com
relações de poder que organizam, mapeiam as categorias sociais se tal familiariza o
pesquisador em relação ao outro, não quer dizer que se conheça as cosmovisões, o que subjaz
da interação de diferentes atores. “O grau de familiaridade varia, não é igual a conhecimento,
mas pode constituir-se em impedimento se não for relativizado e objeto de reflexão
sistemática”. (VELHO, 1978, p.41)
Para James Clifford a etnografia deve ater-se também a um debate político-
epistemológico sobre a escrita e a representação da alteridade. (CLIFFORD, 1998) Que
autoridade tenho eu para falar do outro, do marisqueiro, do ribeirinho? Como posso descrever
aquela comunidade e como posso falar dos agentes envolvidos nas questões ambientais,
mesmo sendo parte do processo? Insiro-me como pesquisador e como militante e esta dupla
identidade pode me impedir de separar o que é da observação minuciosa e rigorosa da
atividade cientifica e o que, de outro lado, pertence à subjetividade, ao modo como percebo e
atuo no mundo. Ainda encontro-me na dúvida do poder da caneta acadêmica. Se seguir as
orientações do autor, posso comunicar sob diferentes formas: a hetoroglossia, que me permite
Clifford, a apresentar com propriedade os diferentes agentes envolvidos. Uma língua é a do
militante, a outra do pesquisador. Se ainda conseguisse apartá-las, mesmo que idealmente,
não disporia de meios para comunicá-las em separado. Este trabalho estará todo o tempo
influenciado por estas duas linguagens e se não é possível divorciá-las o rito é ao menos
reconhecer sua existência. Não obstante, as considerações de autores pós-modernos como
Clifford repousam numa epistemologia que pode ser discutida na medida em que supõe uma
16
DAMATTA (1978) “O ofício do etnólogo ou como ter anthropological bluesIn: Nunes (org) A Aventura
Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar.
17
VELHO, G (1978) “Observando o familiar” In: Nunes (org) A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar.
18
CLIFFORD, J.(1998) “Sobre a autoridade etnográfica” In: A experiência etnográfica. Rio de Janeiro, Ed. da
UFRJ
19
GEERTZ, C. (1978) “A interpretação das Culturas” Rio de Janeiro: Zahar.
22
separação radical entre sujeito-objeto e cna existência de identidades. Então como separar
minha atividade científica da forma como eu percebo e atuo no mundo? O que percebi que
precisava fazer era não tomar partido a priori de um dos lados dessa contenda, tentar tratar
dos diferentes sujeitos como se estivessem num mesmo plano.
A complicação está, também, em compreender o que nos ensina Geertz sobre vácuo
epistemológico no entendimento da cultura dos nativos: como posso reconhecer e descrever a
cultura nativa, dando-lhe validade científica?
20
. Disse o autor que a atenção do etnógrafo para
a ação social permite captar os aspectos culturais, pois é do “ponto de vista dos nativos” que
ele parte. A análise cultural, ademais, não deve prescindir da coerência dos fatos, mas não é
na coerência que se encontra o fundamento principal, porquanto cultura trata de um contexto,
ou, nas palavras de Geertz, “sistemas entrelaçados de signos interpretáveis ”(GEERTZ, 1989,
p.24). O conceito-chave é interpretação, uma fictio, no sentido de uma construção, a partir da
descoberta do antropólogo em relação ao que os nativos pensam o que estão fazendo.
O etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo, ele o
transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento
de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado
novamente. (GEERTZ, 1989, p.29)
Talvez possamos problematizar a questão se entendermos que aquela produção
etnográfica, na medida em que se encontra cerrada em um momento específico, o da notação,
desata o nó da verdade. Segundo Prigogine
21
, “o conhecimento não pressupõe apenas o
vínculo entre o que se conhece e o que é conhecido, ele exige que esse vínculo crie uma
diferença entre passado e futuro.” (PRIGOGINE, 1996, p.157)
Prigogine defende que o futuro não é dado, pois vivemos o fim das certezas.
Quer superar o paradigma newtoniano e constrói seu argumento a partir das instabilidades e
teima que as leis da natureza “não tratam mais de certezas morais, mas sim de possibilidades”
(PRIGOGINE, 1996, p.159). Transladado para o exercício teórico a que submeto minha
pesquisa, este argumento me autoriza a negar os procedimentos positivistas e tentar encontrar
uma saída um tanto mais livre para as opções “incertas” que o decurso do trabalho de campo
tomou.
20
De fato, a cultura nativa não precisa da ciência pra ser válida. Aliás, ela não precisa de validação de ninguém.
Existe, é interessante e merece ser estudada. Agradeço a antropologia de Cecília Mello que me chamou atenção
para esta questão.
21
PRIGOGINE, I.(1996). O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: UNESP
23
Hector Leis
22
nos conta que estamos assistindo uma “borboletização” da sociologia. A
disciplina, segundo o autor, perdeu-se na excentricidade moderna e vive uma crise interna.
Esta crise se assemelha a borboleta que quer ser borboleta sem passar pelo estágio de lagarta;
uma “moralização do social” que perde sua conexão com a interdisciplinaridade. Quero crer
que posso contribuir para que a abordagem que pretendo na pesquisa, não se comporte com a
avaliação que este autor sustenta.
Edgar Morin
23
apresenta a concepção do homem como conceito trinitário, sem
redução nem subordinação de um termo a outro: o homem é, ao mesmo tempo, indivíduo,
espécie e social e por hora nos salva do paradigma positivista.
Ora, o observador que observa, o espírito que pensa e concebe, o eles
mesmos indissociáveis de uma cultura, e, portanto, de uma sociedade hic et nunc.
Todo saber, mesmo o mais físico, submete-se a uma determinação
sociológica.(MORIN, 2003)
O que também se pretende é superar a perigosa dissociação indivíduo/sociedade. Foi
Elias
24
quem se dedicou a aliar os campos das abordagens, fundamentadas ora naquela escola
que permite olhar os acontecimentos e formações históricas com ênfase na sociedade como
organismo supra-individual, que existe desde sempre; ora nas ações individuais e seu sentido,
mudando o curso dos acontecimentos. De fato, sem que tomemos a questão ambiental de
Caravelas e os conflitos daí advindos com peso em uma ou outra dessas abordagens,
precisamos apreender a série de eventos, compreendendo sua dinâmica nos múltiplos vieses
da teoria. Corremos o risco de transformar uma questão aparentemente simples num
indefinido Frankstein. Contudo, vejo que uma experimentação fecunda nesse intento. Não
podemos desconectar a relação dos indivíduos/agentes envolvidos nessa trama do seu mundo
sócio-histórico nas dimensões das particulares de seu background, tampouco separarmos,
como adiante nos mostrou Morin, de sua essência biológica (talvez não nos seja possível
conhece-la por qualquer método científico disponível, mas é imprescindível reconhecer sua
existência) Essas esferas imbricadas e indissociáveis irá nos permitir, ao mesmo tempo,
conferir ao trabalho uma concepção holística dos fatos narrados. Este risco tenderá a ser
superado, sem prejuízo da forma, com o benefício da dúvida, da indução ao erro, que
22
Leis, H. Ricardo.(2000) “Atristeza de ser sociólogo no século XXI” Texto apresentado no GT de Teoria Social
no XXIV Encontro Anual da ANPOCS, 17 a 21 de outubro de 2000, Caxambu, MG.
23
MORIN, Edgar (2003) “Introdução geral: o espírito do vale”. In: O todo: a natureza da natureza. Porto
Alegre, ed. Sulina. pp 21-40
24
ELIAS, N (2002). A sociedade dos Indivíduos (1939) In: A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, pp. 11-60
24
certamente devemos incorrer. Prefiro acreditar que compomos uma tentativa mesmo que
frustrada em relatar os eventos sem a preocupação em nos fiarmos em tal ou tal escola de
pensamento. Disse ainda Leis que “as ciências sociais de modo geral continuam ainda
atribuindo legitimidade às instituições imaginadas por autores que, de acordo com a ciência
contemporânea, apresentam concepções quase mitológicas da natureza humana.” (LEIS,
2000, p.9)
Desta forma, todo o registro a o momento ganhou novas nuanças com a
possibilidade de viabilizar, de modo pragmático, a consecução desse objetivo prévio. Tenho
ainda o suporte de Alfred North Whitehead
25
para perceber que o decurso dos fatos são
“eventos” relacionando espaço e tempo, não dissociáveis da natureza física em circunstâncias
determinadas. Percebo, com o aporte do autor, uma série estruturada de eventos inter-
relacionados e como os diversos agentes tentaram explicitar o que pensavam daquela
realidade e como se deu a apreensão daqueles eventos. Estes eventos são, para o autor,
irreconhecíveis, mas foram percebidos como “objetos dos sentidos”. O que se apresenta para a
apreensão sensível é o evento, o fato fundamental e a “natureza nos é conhecida, em nossa
experiência como um complexo de eventos passageiros (WHITEHEAD, 1993, p.195)” Talvez
seja bastante difícil para mim o resgate da apreensão dos agentes em termos do que
manifestaram nas entrevistas e na observação de campo, nos fóruns e reuniões colegiados, nas
mensagens via Internet, no enfrentamento das idéias (e dos agentes de ambos os “lados”) nos
eventos. Todavia algo do que cada qual acredita e me comunicam por meio das entrevistas de
campo e da observação e avaliação de suas atitudes frente a novos eventos, está
irreversivelmente concretizado. Também eu sou parte da história, pesquisador-objeto. Jamais
poderei esquecê-lo e todo o texto estará sujeito às vicissitudes e benefícios dessa premissa. Os
fios acadêmico e militante estão enrolados de forma irreparável.
No primeiro capítulo pretendo apresentar um breve histórico do município de
Caravelas com apoio de literatura já produzida. A cidade já passou por diversos ciclos
econômicos e se arvora de existir 503 anos. Viveu a colônia, o Império e a República e
diversas transformações da paisagem se configuraram ao longo de sua história. A cidade já se
organizou para a pesca da baleia e para o plantio do café. Um enorme porto foi construído
para o escoamento do café (Caravelas foi o maior produtor da cultura da província da
Bahia). A pesca da baleia dinamizou a economia e cultura do município e até hoje a cidade
25
WHITEHEAD, A.N. (1994) O conceito de Natureza. São Paulo, Martins Fontes.
25
produz a “festa da baleia”, diferentemente da visão de outrora, hoje a baleia jubarte é o
símbolo de preservação e anima o turismo náutico associada à visita ao Parque Marinho dos
Abrolhos. A estada de ferro Bahia-Minas foi construída com o intuito de escoar a madeira que
vinha sendo explorada no norte de Minas Gerais. Simbolicamente, a estrada de ferro
representa hoje os tempos de bonança e ascensão social na cidade que se quer retornar. Ponta
de Areia ainda preserva o casario neo-clássico em lamentáveis condições de preservação. A
cidade também experimentou a vinda de engenheiros norte-americanos responsáveis pela
construção do aeroporto de Caravelas, base da Força Aérea Brasileira, na época da Segunda
Grande Guerra. Ultimamente a monocultura do eucalipto expande sua fronteira grassando
todo o extremo sul da Bahia em direção ao norte. Pretende-se então relacionar a história do
município com esses movimentos econômicos, tentando explicitar as mudanças na paisagem e
interpretando-os sob o prisma de uma percepção agroambiental da região.
No segundo capítulo e no terceiro capítulo, cerne do trabalho, procuro percorrer a
trajetória do confronto das idéias em torno da questão ambiental no município. O marco
inicial pode ser identificado no protocolo na Câmara Municipal de Caravelas de um abaixo-
assinado da Associação de Moradores ribeirinhos de Caravelas que se iniciasse as discussões
acerca da criação de uma Unidade de Conservação de Uso sustentado, em 2003. Algum
tempo depois, a contenda originada pela proposta de carcinicultura já se configurava. A
Resolução Normativa 12 do COMDEMA Conselho Municipal de Meio Ambiente, de
fevereiro de 2004 dispunha sobre a Área de Proteção Permanente que restringiria a instalação
da fazenda de camarão proposta pela Coopex Cooperativa de Produtores de Camarão do
Extremo Sul da Bahia. A partir desses marcos o conflito envolvendo o movimento
ambientalista local e a prefeitura municipal recrudesceu e iniciou-se um processo de
mobilização comunitária em torno das questões relativas ao apoio ou oposição à
carcinicultura. Neste momento procura-se identificar o perfil das instituições e grupos no jogo
político e o modo como tais grupos e instituições dispuseram-se, cada qual com sua estratégia
específica, a “convencer” a comunidade caravelense dos benefícios ou riscos da implantação
do empreendimento. Logo após a Audiência Pública, em 10 de outubro de 2005, uma outra
proposta é novamente aventada pelo grupo ambientalista local: a criação de uma Unidade de
Conservação. Este movimento havia iniciado tempos atrás, mas foi justamente nesse
momento que o “grupo ambientalista” avaliou ser o mais adequado para o esforço de criação
da UC. Da mesma forma que houve uma oposição ao empreendimento da carcinicultura,
também neste caso, a Prefeitura, a mara dos Vereadores, a Coopex e outras instituições
26
mobilizaram-se em torno da oposição ao projeto de criação da UC. Os diversos agentes que
participaram dessa contenda tiveram cada qual sua impressão. Nenhum dos dois processos
estão resolvidos formalmente no momento da redação deste texto.
Na última parte, faço algumas considerações finais sobre o processo, avaliando as
diversas atuações. Com a publicação da Zona de Amortecimento do Parque Marinho dos
Abrolhos
26
, o conflito se amplia. Diversas matérias vem sendo veiculadas que envolvem
desde a atenção do Senado, do Ministério Público e da mídia impressa e virtual. Também se
pretende discutir os mecanismos de controle social em ambos os lados” e como outras
questões evidenciaram-se paralelamente à contenda. O embate de idéias se configurou ora
como disputa do poder local, ora como medição de forças entre um órgão federal e a
prefeitura, ou ainda na concorrência em torno da credibilidade das instituições e outras
questões que se revelaram no decurso do processo contencioso.
26
Ver Anexo G.
27
CAPÍTULO I
O exercício de uma história ambiental da região do Extremo Sul
baiano: diferentes versões do mesmo paradigma.
Nunca foi mais violento nos seus começos o drama da monocultura que no Nordeste do
Brasil. Nem mais ostensiva a intrusão do homem no mecanismo da natureza.
(Gilberto Freyre, Nordeste)
Neste capítulo pretendemos apresentar os ciclos econômicos pelos quais passou a
cidade de Caravelas e seu entorno. Percebemos que há uma continuidade de um modo
particular de apropriação da natureza que responde a um modelo determinado. Tal
determinação pode ser apoiada em diversos autores de diferentes filiações teóricas, mas
selecionamos apenas uns poucos para que possamos dar conta de tal intento. Queremos
acreditar e concluir que ao longo dos anos, a história econômica do município, ora chamada
história agroambiental
27
ou agroecológica, se deu por força do enriquecimento de alguns, na
maior parte das vezes, fomentada e patrocinada pelo Estado, às expensas do trabalho das
populações e dos recursos naturais. Este modelo perpassa todos aqueles ciclos econômicos e
se encontra na ordem do dia do município no processo de implantação de um grande
empreendimento de carcinicultura.
Segundo James O’Connor
28
a historiografia ocidental moderna se relaciona com o
desenvolvimento do capitalismo. Ela acompanha os conflitos gerados nas diversas dimensões
a que se submeteram as sociedades modernas ocidentais. Primeiramente a história teve de ser
escrita sob os parâmetros político, jurídicos e constitucionais cujo marco foi a constituição da
propriedade privada. Os conflitos econômicos emanados das revoluções industriais e
tecnológicas do final do século XVIII e início do XIX, ambientaram uma história econômica
capitalista. Em terceiro lugar, a historiografia se ateve na descrição de uma sociedade e
cultura tipicamente capitalista ou burguesa, engendrando uma história social e cultural.
27
De muita valia para este capítulo foi a minha participação na disciplina “História agroambiental comparada”
ministrada pelo Prof. Dr. Hector Alimonda no primeiro semestre de 2005, no CPDA/UFRRJ.
28
O´CONNOR, J. (2001) ¿Que es historia ambiental? ¿Por qué história ambiental? In: “Causas Naturales:
ensayos de marxismo ecológico”. México, Siglo XXI editores. Pp 70-94.
28
Finalmente, a capitalização da natureza e as lutas daí oriundas forçaram os historiadores a
dissertar a partir dessa dimensão. Segundo o autor, sem querer perceber uma progressão
uniforme e linear da história e compreendendo-a de uma ótica singular de conflitos gerados a
partir do desenvolvimento do capitalismo, a dimensão ambiental é o último empreendimento
da histografia. Ainda, a história ambiental parece edificar-se na síntese de todas as histórias
que a precederam e se encontra no centro da historiografia atual.
Neste capítulo pretendemos viabilizar este pressuposto tratando de uma reflexão do
ponto de vista das diferentes versões ecológico-históricas. Entendemos, com apoio da
bibliografia adiante, que as modificações impetradas pela ação antrópica no ambiente estão de
algum modo relacionadas com configurações específicas que ora restringem, ora
implementam um tipo específico de apropriação dos recursos. É pensá-la de uma forma
totalizadora, generalizante, aqui com uma certa defesa do marxismo, tendo como ponto de
partida teórico as relações de produção e o desenvolvimento das forças produtivas, como
advoga O´Connor.
Em suma, usando a concepção do autor,
La historia ambiental es, em pocas palabras, la historia del planeta y de su
gente, de la vida de otras especies y de la materia inorgánica, em la medida em que
éstas han sido modificadas por las producciones materiales e los seres humanos y, a
su vez, las han hecho posibles o imposibles. Es ni más ni menos que el estudio de
las relaciones entre la especie humana y sus alderedores” (...). Como estas
relaciones resultan indescifrables sin uma investigación de las relaciones sociales
entre los seres humanos (“sociedad”, “economía”), por um lado, y las relaciones
propias de la naturaleza, biológicas, químicas y físicas (modificadas, reprimidas,
estimuladas) por el outro alcance de la historia ambiental es, para todo fin práctico,
limitado. (O´CONNOR, 2001, p.78, aspas do autor)
A história poderia ser escrita de outra forma, como copiosamente já o foi; esta história
não necessariamente atende ao objeto da dissertação; alguns pontos podem ser facilmente
interpelados; as reflexões podem parecer pouco fecundas e mesmo pueris em alguns
momentos. No entanto corremos racional e responsavelmente esse risco, somente pela paixão
de se introduzir um conteúdo que nos parece um pouco a tônica do que hoje se apresenta nas
questões ambientais em disputa no município.
Estaremos satisfeitos se de algum modo esta reflexão puder vir a contribuir para o
núcleo da dissertação, qual seja o esforço de mobilização comunitária para a instalação do
empreendimento em choque com outro, o da criação de uma Unidade de Conservação de Uso
Sustentado. Longe de afirmar que a UC possa vir a ser uma efetiva saída àquele modelo de
29
desenvolvimento, que conta a história do município, a proposta da Resex do Cassurubá,
poderia estancar o processo de licenciamento da carcinicultura, um desejo de alguns agentes
locais. Queremos neste capítulo indicar que a carcinicultura respeita a um padrão de
acumulação, resguardados os ambientes tecnológicos, sócio-históricos, de valores e
simbolismos, e uma miríade de outras determinações que permeiam e transversam a história
da cidade. Este é apenas um esforço teórico possível, nem o melhor, nem o que, em função
das limitações de tempo e particularidades do autor, pode ser satisfatoriamente conduzido de
um ponto de vista reflexivo. Na verdade podemos percebê-lo como um perigoso ensaio,
que possivelmente esta reflexão pode vir a ser facilmente refutada. Entretanto as condições
impostas pelas limitações espaço-temporais da pesquisa nos franqueia este objetivo. A
justificativa deste capítulo pode também ser questionada na medida em que ele margeia e
somente ambienta sem profundidade, o escopo do trabalho.
1) Uma pequena cidade. Uma breve história de apropriação da Natureza.
Gonçalo Coelho, comandante da segunda expedição às terras de Vera Cruz, saiu do
Tejo em 10 de junho de 1503, tendo como piloto o famoso Américo Vespucci. A expedição
aporta no arquipélago Fernando de Noronha onde perde a nau capitânea, mas continua sua
empresa navegando rumo ao sul, singrando a costa até adentrar uma barra a uma latitude
aproximada de 18º. Ali Américo Vespucci funda uma feitoria e a fortifica com 12 peças de
artilharia e 24 homens antes de retornar a Lisboa. Dentre os muitos escritos de Vespucci,
encontramos a Lettera a Piero Soderini, um dos principais donatários de Florença que poderia
confirmar a estada de Vespucci nessa localidade.
29
Quando da morte de Mem de em 1572, Antônio Dias Adorno adentra o Rio das
Caravelas em busca de ouro e esmeraldas e, apesar de ter havido antes dele outros
desbravadores por ali se aventuraram, foi Adorno quem batizou o Rio Santo Antônio,
apelidado Rio das Caravelas por ter ali fundeado as embarcações.
“Vários pesquisadores de nossa história afirmam e todos os caravelenses
têm a convicção de que foi Antônio Dias Adorno o descobridor de CARAVELAS.
Entretanto o roteiro da expedição nem de leve faz referência sôbre o RIO DAS
CARAVELAS (Ralile, Op. Cit., p.17)
29
RALILE. Benedito (1949) Monografia Histórica de Caravelas, Tip, São Miguel, Salvador. 109p.
30
A idealização coletiva dessa história muitas vezes reescrita e reelaborada permite um
sentimento de orgulho por parte da população local em afirmar os quinhentos anos da
“cidade”. A herança histórica reinventa uma tradição
30
que de fato é somente proclamada,
existindo pouco ou quase nada do substrato mnemônico coletivo. A iniciativa dos portugueses
tinha a finalidade tão somente de defender o território; não pretendiam eles em aqui
estabelecer nenhum povoamento. O extrativismo predatório do Pau-Brasil foi, naqueles idos,
como já se sabe, a atividade econômica principal. E o modo como este produto foi explorado
na empresa colonial parece ter sido a marca dos outros ciclos econômicos com base no que
Ernest Friedrich e John Brunhes chamaram de “economia de rapina”. Alimonda
31
resgata esta
terminologia que ora lançamos mão como uma comparação extemporânea, para que
entendamos o contexto dos ciclos econômicos que, nessa seção, analisamos com o suporte
daquela terminologia. Segundo o autor, os traumas oriundos da conquista européia no
continente americano produziram alguns efeitos drásticos nas sociedades latino-americanas. O
etnocídio colonial culminou na hecatombe de 20% da humanidade daqueles primeiros anos de
colonização cujas patologias transplantadas do continente europeu implicou no sacrifício
gratuito de universos simbólicos e tecnologias adaptadas a diferentes ecossistemas do
continente, baseadas em séculos de paciente observação dos processos naturais.”
32
Entre
outras seqüelas da colonização ibérica, a migração da flora, a emigração de vegetais e assim
como o advento da reterritorialização do espaço continental foram marcas patentes em todas
as colônias ibéricas. A economia de rapina” forjou um “gigantesco dispositivo de
reordenamento social e ambiental” que por sua vez criou o espaço para a criação de
sociedades centralizadoras de poder político, rígidas nas estruturas sociais e concentradoras de
renda.
La lógica de la “economía de rapiña”, cuyas ganancías dependían de la
vinculacíon com el mercado global, alimentó y fue retroalimentada por estos
mecanismos de exclusión. (ALIMONDA, 2003, p.24)
A mestiçagem que ajudou na recomposição demográfica dos povos latino americanos
e as crises de identidade geradas nos processos de independência dos países, segundo o autor,
sob aquelas bases da “economia de rapina”, fez com que houvesse um intercâmbio dos
antigos saberes sobre a natureza, sobrevivendo alguns e criando-se outros novos. Toda aquela
30
Para esse assunto cf. HOBSBAWN, E. & RANGER (1997), T. “A invenção das tradições”, Rio de janeiro,
Paz e Terra
31
ALIMONDA, H. (2003) “Uma Herencia em Comala (apuntes sobre ecologia política latinoamericana y la
tradición marxista”. Ilé -Anuário de Ecologia, Cultura y Sociedad. Año 3, Núm. 3.
32
Op. Cit (tradução minha)
31
herança histórica sobrevive ainda hoje e ainda se encontra no imaginário latino americano;
ainda permanecem os mesmos fundamentos da “apropriação oligopólica dos recursos naturais
e a depredação ambiental a serviço da economia de rapina.” (ALIMONDA, 2003, p.25)
Não é nenhum desafio reconstruir a história ambiental ou ecológica da região a que
este capítulo se refere com estes pressupostos. De fato é como se assistíssemos ao mesmo
filme com diferentes versões. A versão da baleia, do café, da madeira, do gado, do eucalipto e
recentemente, da proposta do camarão exemplificam e corroboram com a análise de
Alimonda. Cada atividade, com suas singularidades produtivas corresponde uma mais
claramente que a outra àquela “economia de rapina” que nos apresenta o autor a partir de
Ernest Friedrich e John Brunhes .
Polanyi
33
nos contou que terra e trabalho são inseparáveis e a mercadorização isolada
de cada um dos termos foi a obra mais grandiosa da sociedade ocidental nos últimos tempos.
Para este autor a função econômica na qual terra e trabalho foram reduzidos é apenas um dos
aspectos e funções de seus diversos caracteres. A utopia da regulação da vida via economia de
mercado, no momento da colonização e no seu desenvolvimento vindouro com as ávidas
exigências da industrialização européia, produziu uma transformação em escala mundial.
“A mobilização do produto da terra se estendeu do campo vizinho para as
regiões tropical e subtropical a divisão do trabalho industrial-agrícola foi aplicada
ao planeta. O resultado foi que os povos de zonas distantes foram engolfados pelo
turbilhão da mudança, cujas origens eram obscuras para eles, enquanto as nações
européias se tornaram dependentes de uma integração, ainda não garantida na vida
da humanidade, para as suas atividades cotidianas. Com o livre comércio, as novas e
tremendas casualidades da interdependência planetária ganharam corpo.”
(POLANYI, 2000, p.217)
Mais ainda, a subordinação da superfície do planeta às determinações do mercado
auto-regulável tal como defenderam os fisiocratas e liberais foi também incrementada pela
crescente e logarítmica aglomeração nas cidades industriais, forçando a uma extenuante
apropriação do solo e dos recursos naturais, indispensáveis para, no nimo, alimentar toda
aquela gente. Toda essa transformação, “verdadeiro significado para o livre comércio”, invade
os terrenos adjacentes grassando desde os terrenos menos férteis agora agricultáveis com
novas tecnologias que vinham sendo desenvolvidas desde o processo de crise do sistema
feudal, até as remotas colônias tropicais.
33
POLANYI. K. (2000) “ A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus.
32
John Bellamy Foster
34
, no capítulo 5 do seu interessante “A ecologia de Marx” nos
apresenta a teoria da falha metabólica marxiana. A relação entre o processo de trabalho e o ser
humano é que estabelece o controle e a regulação do metabolismo entre este e a natureza.
Todavia , uma “falha” se revela nas relações de produção capitalistas, engendrando o
antagonismo entre campo e cidade e entre os seres humanos e a terra. Esta crítica marxiana,
com o ambiente da chamada “segunda revolução agrícola”, vai fundamentar todo diálogo
crítico com Malthus e Ricardo que construíram seus argumentos recusando as formações
sócio-históricas e defenderam uma lei natural imutável no que diz respeito à escassez da
produção agrícola baseada unicamente no processo de superpopulação. Essa crítica da
degradação ambiental de Marx, segundo Foster, antecipa em parte, o pensamento ecológico
contemporâneo. Segundo Foster, havia um componente que não tinha sido abordado nas
análises precedentes das economias clássicas (refere-se a Malthus, Ricardo e um Anderson).
Foi Justus von Liebig que, com a principal preocupação ambiental da época, qual seja o
esgotamento da fertilidade do solo, produziu uma moderna ciência relacionando a química e
agricultura. Marx, no “Capital”, sintetizou a crise agrícola em dois momentos: o primeiro que
diz respeito à sensação de crise associada ao esgotamento da fertilidade do solo; e outra, à
“guinada no trabalho do próprio Liebig, em fins da década de 1850 e na década de 1860, em
direção a uma forte crise ecológica do desenvolvimento capitalista.” (FOSTER, 2000, p.213)
Para Marx então, a teoria da falha metabólica aponta para o caráter destrutivo da
agricultura moderna, que a burguesia não teria capacidade de superar.
Sob a influência de Liebig [...], Marx desenvolveria uma crítica sistemática
da “exploração” (no sentido de roubo, isto é, incapacidade de manter os meios de
produção) capitalista do solo. Daí as duas principais discussões de Marx sobre a
agricultura capitalista se encerrarem com explicações de como a indústria de larga
escala e a agricultura de larga escala se conjugaram para empobrecer o solo e o
trabalhador. (FOSTER, 2000, p.218)
No Marx de Bensaïd
35
, é-nos lembrado que aquele pensador alemão, nos seus
primeiros escritos, relaciona o ser humano e a natureza e entre seres humanos entre si, na
mediação pelo trabalho, a que chama relações de produção. Há uma continuidade, portanto do
Capital e da natureza como fontes da riqueza material, e no processo de trabalho, o ser
humano “natural” produz, por força do Capital, trabalho excedente, “bestializando” os seres
humanos na sua relação com a produção de riquezas.
34
FOSTER, J.B. (2005) “A ecologia de Marx: Materialismo e Natureza”. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
35
BENSAÏD, D.(1999) Os tormentos da matéria (contribuição crítica á ecologia política) In: “Marx, o
Intempestivo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp 433-495.
33
Em lugar de enriquecer a humanidade, as carências determinadas pelo
capital são unilaterais e compulsivas. São elas que possuem o homem e não o
inverso. Essa liberdade negada remete-o não mais a uma bestialidade original ou
natural, mas a uma bestialidade social, que pode muito bem revelar-se mais feroz
ainda. (Bensaïd, 1999, p.435)
A natureza, portanto, torna-se tão somente um objeto de utilidade, promovendo uma
separação traumática entre a natureza e o ser humano, que a submete às carência externas do
capital, que, por sua vez, busca de modo incessante novas urgências e necessidades, tornando
esta separação cada vez mais agudizada tanto quanto lhe permite explorá-la. Na “Crítica ao
programa de Gotha” de Marx
“O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é tanto fonte dos
valores de uso quanto o trabalho, que não é outra coisa senão a manifestação de
uma força da natureza, a força de trabalho humana (MARX apud BENSAÏD, 2000,
p.443. Op.cit, grifos de Bensaïd)
Nessa perspectiva, todas as versões dos ciclos econômicos da região correspondem à
demanda do capital, mesmo na empresa colonial. Ainda que o café, p.ex., tenha sido
ambientado no regime escravista, a forma com que a produção se estabeleceu, responde ao
caráter dissociativo da atividade humana com a terra natureza, agora objetivada,
desencantada, dessacralizada” –, na medida em que se concebe o terreno de plantio” como
meio de produção puramente econômico. As outras dimensões que a terra, a localidade, os
elementos simbólicos a ela associados são reduzidas à voracidade da produção de excedentes,
não se revelam. Ao que nos parece, resguardadas as particularidades históricas e evitando uma
transposição mecânica da teoria, a região do extremo sul baiano foi pautada, em seus ciclos
econômicos, sob aquela égide. É o padrão (ou opção, preferencialmente) de desenvolvimento
econômico que anima as diferentes atividades associadas aos diferentes produtos açúcar,
baleia, café, madeira, gado, eucalipto, turismo, camarão. Corremos o risco de reduzir a essa
lógica, uma miríade de nuanças não incorporadas nesse trabalho que poderiam confirmar,
enriquecer, questionar, ou mesmo refutar esta hipótese. Não obstante, é preciso que
assumamos uma posição paradigmática contida no modo como entendemos este processo.
Durante todos estes anos, a natureza “verdeou imaterial, “intocada” ou produzida, desfiada
ou ameaçadora foi de formas diferentes, mas com o mesmo conteúdo, destituída de outros
valores.
O alento, no entanto é que a coletivização do espaço (terras e águas) remanesceu em
34
modelos diversos do que aqueles praticados nas versões. Podemos falar do extrativismo, da
pesca “artesanal”, das atividades praticadas pelas ditas “populações tradicionais”. Este
trabalho persegue, apenas tangencialmente, a incomunicabilidade e a contradição desses dois
modelos em disputa que surge também agora nos primeiros anos do século XXI, com os
conflitos gerados nas questões ambientais em contenda no município caravelense, objeto
dessa dissertação. Não pretendemos de forma alguma, como foi dito, reduzir a questão a
este simplório embate; muitos outros vetores condicionantes e determinantes estão em jogo.
Seria impossível um trabalho que pretende relativizar, de modo implícito a tese positivista,
dar conta de todas essas intermediações; de trabalho acadêmico passaria a um tratado
ensaístico interminável. Pretendemos, outrossim, concentrar os esforços no objeto em tela,
mas é preciso refletir sobre este histórico apreciando as diferentes fases em que o município
passou a fim de reavaliar a visão nostálgica dos tempos de bonança, muito comum em
inúmeros depoimentos colhidos e observados nessa caminhada.
***
Warren Dean analisa o desembarque lusitano como a segunda invasão da Mata
Atlântica. Foi nesse momento que os portugueses encontraram a ibirapitanga, o pau-brasil, e
utilizaram o conhecimento dos nativos para encontrá-la. Edificavam feitorias para a troca de
mercadorias pela madeira. Com o tráfico convidado pelo monopólio português, Dean sustenta
que hajam retirado perto de 12 mil toneladas/ano das costas brasileiras das toras de pau-brasil.
Para tal volume, invariavelmente necessitou-se da providencial ajuda dos habitantes locais e
os desperdícios associados às queimadas da floresta para alcançar o produto. Assim, esta
operação talvez tenha afetado, “somente no primeiro século, 6 mil quilômetros quadrados de
Mata Atlântica” (DEAN, p.65)
Além disso, a forma com que os europeus lidavam com os bichos e as plantas do lugar
era sempre cautelosa: na dúvida, queimavam o que lhes parecia misterioso. A Mata foi então
sendo destruída não só pela ganância dos portugueses, mas também pelo assombro da pujança
da floresta. Ela, com a ajuda dos nativos, lhes servia da madeira-corante, mas lhes punha em
uma posição de inferioridade, inaceitável para a soberba européia, que se valia superior pela
chancela de Deus, por intermédio de bulas papais. O Novo Mundo era antes de belo, o
universo do desconhecido que deveria ser explorado e principalmente submetido à avidez da
racionalidade “capitalista”.
35
Passados esses idos, a destruição se processou em diversos outros ciclos e contribuiu
sobremaneira para a mudança da paisagem da região hoje chamada de Extremo Sul da Bahia.
Com efeito, a preocupação com a biodiversidade ameaçada tem sua origem nestas formas
catastróficas de apropriação dos recursos. Se se pergunta o porquê de haver tantas ONGs
ambientalistas na região, tantas unidades de conservação num território relativamente
pequeno, a resposta pode, em parte, estar nessa origem. Todavia não foi só por que se deu
esta incomensurável devastação, mas as descobertas recentes das formas diversas de vida com
o auxílio da pesquisa acadêmica, principalmente na taxonomia das espécies endêmicas,
representam uma preocupação cada vez mais intensa de se preservar o pouco que sobra da
biodiversidade dos tais segundos invasores, nos termos de Dean.
2) Caravelas e sua evolução político administrativa
Segundo a edição de 1958 da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros do IBGE, a
fortificação e o território adjacente incorporado ao de Porto Seguro, foi doado a Pero de
Campos Tourinho por Carta Régia, em 1534. O povoamento do Brasil engatinha nas
Capitanias Hereditárias com a agroindústria do açúcar e as vilas de Porto Seguro e Santa Cruz
(Santa Cruz de Cabrália) foram, em 1535 e 1536 respectivamente, fundadas. Sob as ordens de
Pero Campos Tourinho, ergueram casas, fortificações, capelas, armazéns, estaleiros, forjas e
engenhos de açúcar. Os Tupiniquins, Pataxós, a família Maxacalis, os botocudos, conhecidos
por Aimorés no período colonial, e outros grupos que viviam próximos à faixa costeira
obstavam o desenvolvimento da Capitania. As vilas originais foram destruídas e
reconstruídas. Também por desinteresse dos donatários e de seus sucessores a capitania foi
vendida á D. João de Lencastre em 10 de agosto de 1559. Logo depois em 1574, Antônio Dias
Adorno batiza o rio Caravelas por ter ali fundeado suas naus e em 1581 um missionário
francês funda a aldeia de Caravelas e constrói a Igreja de Santo Antônio do Campo dos
Coqueiros e em 1610 Caravelas é povoada definitivamente por ordem do Governador Geral
do Brasil, D. Diogo de Menezes. A Vila de Santo Antônio do Rio das Caravelas que abrangia
os atuais municípios de Mucuri e Conceição da Barra, foi criada em 1700. Em 1755 a
Freguesia Eclesiástica de Caravelas contava com aproximadamente 850 habitantes, e produzia
principalmente farinha de mandioca. Ainda hoje a fabricação da farinha entre os ribeirinhos
ainda é praticada e são poucas as casas de farinha que utilizam motor à combustão para a
produção. Preserva-se ainda a cnica e a estrutura que muito provavelmente remonta àquele
36
tempo.
Figura 4: Casa de Farinha nas Perobas, estuário de Caravelas e Nova Viçosa.
Foto: Projeto Manguezal
Finalmente, em 23 de abril de 1855, a Vila eleva-se à cidade por João Maurício
Wanderley, o Barão de Cotegipe. Com a construção da Estrada de Ferro Bahia-Minas
inaugurada em Novembro de 1882, a cidade se dinamiza por força da extração de madeira no
vale do Jequitinhonha e adjacências que é transportada pelas locomotivas da estrada de ferro e
escoada através do porto marítimo para os mercados europeus, norte americanos e para o
mercado consumidor interno.
3) A versão: Café
Na Monografia de Benedito Ralile, D. João VI chama quatro suíços com o objetivo
destes fundarem uma colônia agrícola em Caravelas, no ano de 1818. A então batizada
Colônia Leopoldina plantou, entre outras culturas, o café, responsabilizando a região pela
primazia da produção na província. Caravelas foi então em 1856 o maior produtor de café da
província da Bahia tendo em um dia daquele ano “446 homens livres e 188 escravos em
atividade com 226 embarcações atracadas no porto”, segundo Ralile. O café era transportado
pelo mar e, a exemplo do que ocorreu em outras lugares, o modo com que foi praticada a
agricultura arruinou boa parte da mata nativa da região. Warren Dean nos lembra que o
processo de independência da colônia foi maculado com a continuidade do modelo anterior. O
café salvou a aristocracia colonial, tendo o Rio de Janeiro como seu precursor, e, em
37
contrapartida, adotou-se um padrão técnico de cultivo devastador e pouco producente. Apesar
da perenidade da rubiácea etíope - atinge maturidade por volta dos quatro anos e se mantém
produtiva até os 30; o que se praticou foi o abandono das plantações antigas e a abertura de
novas, mata adentro, derrubando e queimando incontáveis hectares de florestas nativas. Os
fazendeiros de modo geral, instados a plantar em grandes quantidades, relegaram o café de
sombra (como aparece originalmente no seu habitat), e utilizavam extensas faixas de terra
para produzir sua riqueza, de modo insustentável nos termos de hoje: não se importavam com
a continuidade da produção. “Os fazendeiros o prezavam nem a produtividade, nem a
qualidade, apenas economia de trabalho e capital e, não por acaso, seu próprio esforço
administrativo.” (DEAN, Op. cit., p.196). O café brasileiro, de baixa qualidade, teve seu
maior comprador os Estados Unidos, pois a Europa era um tanto mais exigente, e o Império
do Brasil terminou por se tornar dependente desse mercado flutuante. A forma com que o café
“desalojou” a floresta nos termos de Dean, apesar de concentrar seus argumentos na região do
Vale do Paraíba, condiz com a reflexão que fizemos sobre o modelo com acompanhou os
diferentes ciclos econômicos na região do Extremo Sul baiano que ora denominamos versões.
Nesta versão,
A maioria dos recursos obtidos através da venda do café não foi
“acumulada” ou “formada” como capital para equipar a energia de uma geração
futura, gasta em bens na época apreciados como luxos, exclusivamente importados
para o consumo da famílias que possuíam propriedades e os trabalhadores. (...) As
receitas do café, arrecadas nas alfândegas do governo imperial, foram em grande
parte gastas na rede ferroviária que levava o café para o mercado; parte desse
investimento foi antieconômico uma vez que faliram as fazendas de café por ele
atendidas. (...) O café atraiu algum capital estrangeiro para a área, mas quase todo
ele chegou em apoio direto ou indireto do comércio em si, oferecendo apenas na
perspectiva de retornos especulativos e de curto prazo que fossem maiores que os
obtidos nos países de origem. (DEAN, Op. cit. p.204)
4) A versão: caça da baleia
A pesca da baleia apareceu como vocação natural da região no início do século XVII.
Precedida da pesca da garoupa em 1829, e inicialmente introduzida no Recôncavo Baiano, em
Itaparica, entrada da Baía de Todos os Santos. A caça da baleia foi uma importante atividade
econômica na região que dinamizou significativamente a economia da cidade. As “armações”,
estabelecimentos para o processamento do óleo de baleia para iluminação e construção civil,
se espalharam por toda a costa brasileira até o litoral de Santa Catarina. Caravelas hospedou o
mais antigo e um dos principais portos baleeiros da Bahia. A proximidade com o arquipélago
38
de Abrolhos, distante aproximadamente 70 km da costa, local privilegiado de cria e
reprodução da baleia jubarte (Megaptera novaeaengliae), facilitou a edificação de seis
armações, cinco delas localizadas na praia da Barra de Caravelas. Não sobram hoje nem
ruínas dessas armações, somente uns poucos tachos utilizados na carnagem. Mas alguns
antigos moradores contam as complexas peripécias da atividade. Segundo Liliane Lodi
36
Cada marcante (denominação dada ao dono da armação) possuia uma
embarcação a vela ou lancha e dois botes a remo. Apenas um deles ia rebocado para
o mar ficando o outro em terra como reserva. Durante a época de caça julho a
novembro – eram formadas duas equipes de trabalho. Uma se deslocava em direção
ao arquipélago de Abrolhos (...) para capturar baleias. A outra, responsável pelo
processamento do óleo ficava em terra. (LODI, s/d, p.2)
Tanto a caça como o processamento do óleo de baleia, apesar de rudimentar,
constituíam-se num complexo de atividades em que cada um era responsável por uma função
específica. Os caçadores eram bastante respeitados e considerados heróis, revelando uma
atividade nobre e rica em simbolismos. Muitos trabalhadores vinham de distantes localidades
para a “carnagem” das baleias capturadas. Quase tudo da baleia era aproveitado, apesar de sua
carne não ser consumida pela população local. Na temporada a praia ficava empestada de
moscas, urubus e outros carniceiros, que todo o processamento da gordura era feito por ali.
Retirava-se a lenha do mangue para o cozimento dos talhões de gordura separados em um
tanque raso para apodrecer: quanto mais avançado o estado de decomposição, melhor era a
qualidade do óleo extraído. O odor do processamento do óleo era insuportável. Durante
muitos anos, por ocasião das minhas visitas à Caravelas no período de rias escolares,
encontrava ossos de baleia espalhados pela praia às dezenas, mesmo depois de mais de 70
anos da extinção da pesca da baleia.
37
Apesar da intensa atividade e da multivalência do óleo da baleia (iluminação,
lubrificação e fabricação de argamassa) e de ter provido com abundância o Rio de Janeiro,
São Paulo e Salvador, os caçadores eram muito mal remunerados. Segundo Lodi,
O marcante fornecia o rancho para um período de dez a doze dias. Se, por
acaso, neste prazo, nenhuma baleia fosse arpoada, a equipe arcaria com as despesas
do próximo rancho. Caso ficassem devendo, teriam que retornar na próxima
temporada de caça para trabalhar de graça até quitar a dívida com o marcante.
(Lodi, Liliane. Op. cit., p.6)
36
LODI, L. “Uma história da Caça à Baleia”. Revista Ciência Hoje,Vol.14 / nº 81
37
“A última baleia pescada transpoz a barra do RIO CARAVELAS no ano de 1924” (Ralile, Op. cit, p.45)
39
A atividade foi extinta em Caravelas principalmente pela incapacidade dos
proprietários das armações marcantes em implementar as técnicas modernas da indústria
baleeira. O surgimento dos navios-fábrica na década de 1920 deu o tiro de misericórdia aos
caçadores de Caravelas.
Os navios-fábrica eram maiores, mecanizados, com capacidade de processar
uma baleia inteira em 25 minutos, sobrando os ossos. Até então as viagens eram
curtas, pois havia necessidade de processar as baleias em terra. Com o navio-
fábrica, os caçadores podiam ficar por meses no mar, sem retornar ao continente.
Em 1925 partiu da Noruega o primeiro navio-fábrica, o Lancing. No caminho a
Antártica caçaram aproximadamente 300 jubartes na sua área de reprodução no
Congo. (Instituto Baleia Jubarte. Disponível em: http://www.baleiajubarte.com.br/.
Acesso: 23 de janeiro de 2006)
Quase trezentos anos de atividade influenciaram gerações de pescadores, criando uma
longa tradição hoje desaparecida. Os registros menos sombrios indicam que eram abatidas por
ano de 40 a 50 exemplares de jubarte em Caravelas.
A caça à baleia, feita de forma artesanal, e talvez não imediatamente direcionada ao
mercado externo, impôs à população local uma relação de trabalho que se apresenta com
características bastante próximas das outras versões. A especialização e a exploração do
trabalho e dos recursos naturais respondem ao padrão de racionalidade, que ignora a
sustentabilidade da atividade. Assim, a versão caça à baleia chegou ao fim por sua
incapacidade de modernizar-se, o que poderia, certamente, mantendo aqueles padrões de
racionalidade, na explotação dos recursos de pesca, culminar, neste caso, à extinção das
baleias-jubarte na região, hoje mbolo da cidade e importante elemento de mobilização do
turismo.
5) A versão: madeira
Em fins do século XIX, deu-se início ao processo de estudos para a construção de uma
via férrea ligando o norte de Minas e o litoral Sul da Bahia. Em 1875 o telégrafo nacional
chega na cidade, promovendo a sua integração com Minas Gerais. O então presidente da
província da Bahia prevê um papel importante para a economia da região conforme descrito
num relatório datado de de maio de 1879, intitulado Estrada de Leopoldina a Santa Clara,
que nos conta a importância da integração da cidade com o interior:
(...) Levada pelo estudo e pela verificação dos immensos resultados que
40
offerece esa via de communicação para ella, esta Assembléa iniciou um projecto
autorizando o governo a construir uma estrada de rodagem que ligasse Caravellas a
Santa Clara; e mais tarde deferindo um requerimento de douz emprezarios,
concedeu-lhes privilegio para construir na mesma zona uma estrada de ferro, sem
garantia de juros.
(...) Se alguma parte da provincia que mereça toda a attenção é o sul,
que, a não ser a navegação, não tem recebido outros melhoramentos.
(...) Dotado de muita fertilidade, e sendo onde existem nossas mais
soberbas e virentes mattas, que abastecem os nossos arsenaes e vão servir de
matéria prima à industria estrangeira; possuindo optimos terrenos banhados por
caudalosos rios, merece que lanceis sobre elles as vossas vistas.
(...) O Norte de Minas, há muito reclama uma sahida para seus produtos.
Satisfeitas taes reclamações, torna-se-há a comarca de Caravellas um grande
emporio commercial, que trará prospero futuro a ambas as provincias. (RALILE,
1949, p.60, os grifos são nossos)
Figura 5: Reconstituição da Estação Ferroviária de Ponta de Areia pela mãe do
autor.Óleo sobre tela, Ceres Scofield. 2004
Em 1881 dá-se iniício então à construção da EFBM. A estrada de ferro parece ter sido
construída não apenas para escoar a produção agrícola do Norte de Minas, mas para,
principalmente, cortar a imensa área de florestas e matas, aproveitando ao máximo a extração
de madeira para exportação. Um outro autor
38
, aduz que a estrada de ferro “atravessou matas
virgens, infestadas de índios bravios, feras, o que se tornou necessário requerer do Exército
Nacional, soldados para defender o pessoal da Empresa.” (ELEUTÉRIO, s/d, p.21).
38
ELEUTÉRI0, Arysbure Batista. “Estrada de Ferro Bahia e Minas: a ferrovia do adeus 1879 1966”. Teófilo
Otoni, Edição própria, s/d.
41
O funcionamento da Estrada de Ferro Bahia e Minas, eternizada na música de Milton
Nascimento e Fernando Brandt, Ponta de Areia
39
, se manteve, coincidentemente, justamente
na época em que houve a mais intensa devastação da Mata Atlântica na região. A imagem
abaixo mostra a evolução desde 1945 do desmatamento da Mata Atlântica na localidade.
Quadro 1: A floresta pode ter sido desmatada para o escoamento da madeira para o litoral,
para o plantio do cacau e para a criação do gado. Fonte: MENDONÇA et al. Apud
PRIMACK, R. e RODRIGUES. E. ,(2002) Biologia da Conservação”. Londrina, Editora
Vida, Cap.2, p.98
A história da Bahia-Minas é repleta de singularidades, ás vezes pitorescas. Foi durante
seu funcionamento que uma entidade de trabalhadores nasceu, nos primeiros anos da década
de 1910: o Sindicato dos Operários Estivadores, que foi reconhecido pelo Ministério do
Trabalho em 1933. A EFBM negou por 11 meses o pagamento dos salários dos operários o
que os obrigou a declararem-se em greve., permanecendo apenas 5 dias paralisados, quando o
então Juiz de direito da Comarca os adverte a retomar o trabalho, garantindo, em nome dos
arrendatários da ferrovia, o pagamento devido.
Um outro evento interessante diz respeito aos desdobramentos da doação das margens
da ferrovia à Cia. EFBM. As terras devolutas marginais da ferrovia, 6 metros de cada lado,
foram doadas pelo Imperador à Companhia, que as hipotecou no Banco de Crédito Real do
Brasil em 1887. Com a inadimplência da EFBM a dívida foi executada. Tal dívida foi então
adquirida pelo Estado de Minas Gerais, adquirindo este estado direitos pelas terras situadas
em território baiano!
Segundo Ralile, na época, a atividade agrícola em Caravelas encontrava-se “em
completa decadência, lhe restava como principal fonte de renda e trabalho o magnífico
39
“Ponta de Areia, ponto final/da Bahia-Minas, estrada natural/ Que ligava Minas ao porto, ao mar/Caminho de
ferro mandaram arrancar/ Velho maquinista com seu boné/ lembra o povo alegre que vinha cortejar/Maria
fumaça não canta mais/para moças, flores, janelas e quintais/ Na praça vazia um grito, um ai/ casas esquecidas,
viúvas nos portais”.
42
porto de que é dotada, por onde escoavam todos os produtos do Nordeste de Minas.”
(RALILE, Op. cit, p.73)
O autor não discrimina quais eram os produtos transportados por ali, mas alguns ex-
funcionários da Bahia-Minas em época mais recente, garantem que o principal produto
transportado era a madeira. A ferrovia se prestou então a ser o canal de escoamento da
madeira retirada da floresta. Segundo um estudo da CEPEMAR
40
a extração de madeira se
intensifica com a construção da ferrovia e contribuiu para ação dos pecuaristas que já
encontravam os terrenos desmatados. Os criadores de boi, oriundos principalmente do
Nordeste de Minas Gerais, desenvolveram suas atividades do interior para a costa, ao
contrário do cacau.
É ilustrativo citar mais uma vez Warren Dean quando este defende que a abertura de
ferrovias acelerou o processo de desmatamento da floresta, dadas as características itinerante
e extensiva da agricultura praticada.
A verdadeira revolução dos transportes e, consequentemente, no
relacionamento do homem com o que continuava intocado da Mata Atlântica foi a
locomotiva.(...) A derrubada de floresta (...) se aceleraria, agora que esse
instrumento de penetração da fronteira se tornara acesssível. As plantações de uma
certa idade perdiam seu valor mais depressa, na medida em que os custos mais
baixos de transporte elevavam o valor especulativo das melhores terras de café,
situadas além do horizonte. As ferrovias fariam suas próprias demandas à floresta,
porque exigiam grandes quantidades de dormentes, para os quais se preferiram as
madeiras de lei da floresta primária. (DEAN, Op.cit, p.226)
O porto de Caravelas foi bastante movimentado com vapores que vinham das capitais
para abastecê-los de madeira. A INCEX, uma serraria estrangeira foi instalada em Caravelas
e, com escritório no Rio de Janeiro, exportava madeira principalmente para os Estados Unidos
e Europa. A serraria só se manteve enquanto a ferrovia existiu.
As rodovias na segunda metade do século XX começam a ser construídas, tornando os
trilhos cada vez mais obsoletos, muito mais por uma indisposição do Estado em mantê-los e
provavelmente pela quase extinção da Mata Atlântica na região, a EFBM é extinta restando
apenas os edifícios das estações e um museu em Teófilo Otoni. A partir de então a cidade de
Nanuque, em Minas Gerais começa a ganhar importância na região, dividindo seu status com
a cidade de Teixeira de Freitas, desmembrada de Caravelas e Alcobaça em 1985.
40
CEPEMAR, 2001. EIA do Terminal de Barcaças para embarque e desembarque de toras de eucalipto da
Aracruz Celulose S.A. COM RT 033/01 Vol II, p.353.
43
“As facilidades de transportes rodoviários e a existência de terras de baixo
valor, associadas a fatores como os incentivos dos governos estaduais e as altas
potencialidades naturais da região, foram atraindo para elas diversos agentes
econômicos, tais como: madeireiros, pecuaristas, agricultores e industriais do setor
de celulose e papel. Um novo quadro de atividades produtivas se esboçou com a
presença desses grupos e de capital externo, trazendo redefinições nas formas de
relações e organizações sociais preexistentes.” (CEPEMAR, 2001, p.353)
6) A versão: eucalipto
O plantio do eucalipto se inicia na região entre os anos 1960 e 1970. As empresas de
celulose dividem uma enorme área que abrange vários municípios no Sul da Bahia, Norte do
Espírito Santo e Nordeste de Minas. A atividade monocultora do eucalipto
41
modificou de
maneira permanente a paisagem natural da região e as relações sociais das comunidades rurais
da região. Diversas cidades dinamizaram sua economia como foi o caso de Teixeira de
Freitas, uma cidade que tem pouco mais de 20 anos
42
que hoje, em uma área de 1154 Km
2
,
vivem mais de 120 mil pessoas
43
. Uma cidade que experimenta um crescimento constante
principalmente em termos de comércio e serviços. O que ocorreu em Teixeira de Freitas foi
um deslocamento do eixo econômico promovendo a sua interiorização, com ajuda da BR-101
que permitiu o afluxo de mercadorias, quinas e pessoas aos subcentros da região e também
com acesso mais fácil às capitais como Vitória, Rio de Janeiro e Salvador. Este deslocamento
também ocorre em outras cidades da região, acompanhando a expansão territorial do
eucalipto.
Um livro bastante interessante nos conta a história celulose na região. “Além do
Eucalipto” de Pe. José Koopmans, numa edição revisitada e atualizada de 2005
44
, analisa de
forma crítica o desenvolvimento da atividade.
Analisando a estrutura fundiária, Pe. José nos apresenta o desenvolvimento das
diferentes culturas na lavoura que vinha sendo praticada na região, a partir da segunda metade
do século XX.
A criação de gado, segundo o autor, se liga diretamente com o desmatamento da
região. Conta-nos que de 1960 até 1980 o número absoluto de bovinos mais que quadruplicou
e, ainda, a área com pastagens no intervalo de 1950 até 1985, cresceu de 169 mil ha. para
1.408.675 ha. A chegada dos criadores está relacionada com os desmatamentos induzidos por
41
As empresas de modo geral se referem a madeira de reflorestamento. Preferimos, por razões óbvias, o termo
monocultura.
42
A cidade foi criada em 1985, com o desmembramento de Caravelas e Alcobaça.
43
Dados do IBGE, Censo 2000.
44
KOOPMANS, Pe. José(2005). “Além do Eucalipto: o papel do Extremo Sul. DDH, Centro de Defesa dos
Direitos Humanos.. Teixeira de Freitas, BA
44
grandes madeireiros do Norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, proporcionando um
aumento significativo da atividade pecuarista entre aqueles anos. Por outro lado, a atividade
de lavoura diminuiu. Plantava-se cacau, intercalada com a mandioca e banana, como
sombreamento provisório para a exigência ecológica do cacau, que segundo o autor, o plantio
desta cultura foi feito a partir da “limpeza da mata”. Além do cacau e da mandioca, havia
fazendas de co no litoral, também um tanto de milho e feijão e uma certa variedade de
frutas como o mamão, abacaxi, maracujá, laranja, melancia, melão etc. Entre os anos de 1985
e 1993, a área ocupada pela lavoura diminui pela metade. Estas modificações incidem
diretamente no número de empregos permanentes no campo.
Com a construção da BR-101, nos anos 1970, o que foi deixado de madeira pela
ferrovia, foi quase que definitivamente extraída. Os madeireiros encontravam um excelente
ambiente para sua atividade, que atentos apenas á cobertura vegetal, seus interesses não se
contradiziam com os dos pecuaristas, ao contrário, os interesses se coadunavam.
A BR-101 ajudou sobremaneira a interiorizar a região, modificando sua ordem
econômica e social. Cidades como Eunápolis, Itabela, Itamaraju, além de Teixeira de Freitas,
como foi dito, experimentaram uma transformação significativa na ocupação de novos
espaços: ao longo de toda a rodovia, surgiram novas conurbações e novos afluxos.
Foi por esses idos e com este ambiente favorável à logistica de transporte que o capital
agroindustrial das florestas de eucalipto se estabeleceu na região. Além disso, observa Pe.
José,
(...) o interesse do governo federal em programar o desenvolvimento da
industria da celulose e papel no Brasil, fortalecido pelo Plano Nacional de Papel e
Celulose aprovado em 1974, motivou grandes e pequenos empresários do setor a
buscar novos espaços.
A ausência de uma política agrário-agrícola estadual para a região, a
omissão do governo estadual em elaborar um projeto de desenvolvimento
sustentável para a nossa região, o fato de ainda existirem aqui grandes áreas de
florestas e terras valorizadas, fizeram com que a região se tornasse propícia para o
“reflorestamento” (KOOPMANS, 2005, p.71)
Para o autor, as conseqüências concretas da introdução da agroindústria do papel se
manifestou de três formas: a) concentração de terra; b) êxodo rural; c) desemprego rural; e
também suas conseqüências ditas “ambientais”, tais como a influência na queda da qualidade
do solo, e no processo de esgotamento das micro-bacias hidrográficas.
Pe. José Koopmans nos apresenta uma argumentação bem fundamentada em dados
oficiais, em relatórios e estudos de impacto ambiental das empresas de celulose e em outras
45
fontes. A problemática ambiental apontada pelo autor muitas vezes concorda com muitas falas
entre os moradores de Caravelas e região quanto aos impactos do eucalipto. Os argumentos
usados pelas empresas muitas vezes se chocam com o que foi descrito pelo autor acima.
Walter de Paula Lima, numa análise da cultura do eucalipto e seus impactos
ambientais
45
, defende que todo o debate produzido no mundo sobre a cultura do eucalipto
parece ter-se revelado a partir de um elemento-chave que se exprime no termo “exótico”.
A não ser na Austrália, em todos os outros países onde é plantado, o
eucalipto é uma espécie exótica ou introduzida, o que constitui razão suficiente para
exacerbar os sentimentos xenófobos, pois trata-se de elemento estranho à paisagem
e que não é do gosto da fauna local e, como tal, deve ser combatido, a cujo
propósito vêm aliados diversos outros possíveis efeitos negativos. (LIMA, 1996,
p.21)
Segundo este autor, muitas das críticas feitas à monocultura do eucalipto são de
origem “emotivas” e não se amparam em fundamentos científicos. Os exemplos “mal
sucedidos” da agroindústria de eucalipto, podendo variar desde a amplitude de espécies do
gênero Eucalyptus, que dispõe de mais de 600 espécies descritas, umas mais adaptáveis que
outras às condições ambientais, são pertinentes quando se fala da introdução de espécies que
produziram “efeitos ecológicos inaceitáveis”, pelo insucesso gerado pela “má adaptação”.
Para o autor, o problema está então na falta de informação a respeito da diversidade das
espécies e da falta de adequação de algumas delas em condições ecossistêmicas particulares.
O autor enumera vários argumentos em relação às preocupações com os efeitos
ecológicos colateriais das plantações de eucalipto, na sua relação com a hidrologia, solo, flora
e fauna e “à adequação do eucalipto como componente florestal em sistemas agroflorestais.
(LIMA, 1996, p.209)
Responde às alegações feitas em diversos trabalhos e simpósios em relação aos efeitos
nocivos dos eucaliptais introduzidos. O autor se assenta em rios argumentos comparando
com outras espécies florestais, tentando derrubar as críticas mais contundentes. Também
como segundo propósito, procura fornecer subsídios para a formulação de planos de manejo
ambientalmente favoráveis para sistemas agroflorestais.
(...) a maior parte das críticas generalizadas sobre o eucalipto, tais como o
consumo exagerado de água, a esterilização do solo e outras semelhantes, não tem
fundamento, algumas chegam mesmo a ser tolas. Existe, por outro lado, muita
sensatez quando a preocupação identifica a base biológica da formação de extensas
45
LIMA, Walter, P.(1996) “Impacto Ambiental do Eucalipto”, São Paulo, Edusp, 301pp.
46
áreas de monocultura de eucalipto (ou de qualquer outra monocultura, nesse
sentido). Semelhantemente, é urgente a necessidade de se adaptar a silvicultura
intensiva, de tal maneira que ela cause um mínimo de efeito ao funcionamento e ás
propriedades sicas, químicas, biológicas e hidrológicas do ecossistema. (LIMA,
1996, p.212)
O autor, auxiliado financeiramente por várias empresas de celulose e com a
colaboração da Associação Nacional dos Fabricantes de Papel e Celulose, não observou com
propriedade alguns pontos como a questão da mudança, permanência ou crescimento de uma
estrutura fundiária excludente com a atividade da agroindústria do eucalipto, tampouco das
questões relativas ao trabalho no campo. De fato, este não era o escopo de seu trabalho, apesar
de entendermos que as relações de natureza socioeconômicas também fazem parte do todo
complexo do “meio ambiente”.
No trabalho de Koopmans, diversas denúncias desta natureza, observando impactos
que o desde problemas nos relacionamentos com comunidades indígenas, agudização da
concentração de terras, expulsão direta e indireta de centenas de agricultores, os poucos e
qualificados empregos criados e a generalização do desemprego gerado, até os problemas
“ambientais” por Lima refutados, passando pelos impactos da política local e a falta de
alternativas “sustentáveis” para a região. Segundo este autor a insustentabilidade do projeto de
celulose no Extremo Sul da Bahia, se manifesta em dez pontos principais:
1) A falta de articulação por parte dos poder público nos veis municipal e
estadual para pensar um projeto integrado e sustentável para a região, abrindo
espaço para empreendimentos como o do eucalipto;
2) A questão do financiamento público que privilegia o grande capital, como o
caso da Bahia Sul Celulose (hoje Suzano Celulose e Papel, financiada pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.
3) A estrutura fundiária, como adiante foi tratada, modificou-se em relação à
concentração de terras. Na microregião Extremo Sul, que vai de Porto Seguro
até a divisa do Espirito Santo, há três proprietários – empresas de celulose, que
juntos somam 345 mil ha.
46
.
4) Saldo negativo dos empregos criados e desemprego gerado, que tem se
intensificado com a introdução de técnicas automatizadas de corte,
desgalhamento e empilhagem de toras.
5) Influência na política local e estadual das empresas de celulose que,
pressionando os poderes, garantem a viabilidade de seu empreendimento.
46
Cf KOOPMANS, Op cit, p.47.
47
6) Terceirização de empreiteiras e subempreiteiras levando a uma precarização
das condições de trabalho.
Das 4 mil questões trabalhistas que entraram em 1994 na Delegacia
Regional do Trabalho em Teixeira de Freitas, mais ou menos 80% são ligadas às
empresas florestais, suas empreiteiras ou subempreiteiras. (KOOPMANS, 2005,
p.112)
7) Isenção de Impostos. As empresas de celulose são isentas de Imposto de
Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços - ICMS em relação ao
montante exportado. O incentivo fiscal deve-se à possibilidade de se tornarem
mais competitivas no mercado internacional para que se mantenha a balança
comercial favorável. No entanto, a cultura do eucalipto encontra condições
ideais nos trópicos para se desenvolver. Enquanto que em alguns países do
hemisfério Norte a planta leva de 25 a 45 anos para maturar, aqui na região a
mesma espécie está pronta para o processo industrial em apenas 7 anos. Além
disso o custo de mão-de-obra é um dos mais baixos do mundo pela diferença
significativa dos salários praticados aqui se comparados a países como o
Canadá e mesmo Portugal.
8) Danos Ambientais. O eucalipto é um grande consumidor de água e já foi usado
muitas vezes para drenar terrenos alagadiços.
47
. Koopmans também alerta para
a perda acentuada de nutrientes do solo com a continuidade do cultivo do
eucalipto.
9) Os efluentes do passivo das indústrias de celulose não são devidamente
monitorados. Corre-se o risco de não se verificar a presença de compostos
clorados como o TCDD (tetrachlorodibenzo-para-dioxine), usado como
alvejante no processamento da celulose, contribuindo para a poluição dos rios.
10) O monitoramento ambiental, segundo o autor, de responsabilidade da
sociedade civil e dos órgãos de Estado, não é feito de modo eficiente, com
argumentos que vão desde o despreparo do estado em termos de equipamentos
e recursos humanos disponíveis até a indisponibilidade das empresas para
franquear a entrada de ambientalistas e entidades civis na áreas de plantio.
47
Não obstante Walter de Paula Lima não ter encontrado nenhum indício com fundamento científico para tal
afirmação. Entretanto diversos outros trabalhos citados em seu livro, demonstram essa particularidade na
fisiologia de algumas espécies do gênero.
48
O livro de Pe. José Koopmans é uma espécie de panfleto contra o modo com que
foram facilitadas as “entradas” para a monocultura de eucalipto na região. Segundo o autor,
as conseqüências funestas, apesar do otimismo das empresas e de muitos de seus empregados,
colaboradores e incentivadores, como alguns políticos locais
48
, são marca patente da
agroindústria da celulose que continua expandindo suas fronteiras em direção ao Norte do
Estado.
O Relatório Anual de Sustentabilidade de 2005 da empresa Aracruz Celulose
apresenta dados otimistas sobre suas atividades e o monitoramento ambiental
49
e a resolução
de conflitos sociais originados de sua atuação. O caso da questão indígena
50
e de um incidente
ocorrido no município de Caravelas, ilustram essa preocupação. Segundo a empresa
Em virtude da atual falta de madeira no país, motivada pelo maior controle
do desmatamento ilegal pelas autoridades e pela insuficiente expansão dos plantios
florestais para suprir a demanda, os preços da madeira e de seus derivados, como o
carvão vegetal, aumentaram substancialmente. Por conta disso, as empresas
florestais, entre as quais a Aracruz, vêm sofrendo pressões, por parte de alguns
grupos no extremo sul da Bahia, para a obtenção das partes das árvores não
aproveitadas para a produção de celulose, como pontas e galhos. Essas partes, que
se deixadas no solo têm a importante função de manter sua fertilidade, são usadas
por esses grupos na produção de carvão, conforme reportado em nosso Relatório de
Sustentabilidade de 2004, muitas vezes misturadas a madeiras nativas extraídas
ilegalmente.
O governo estadual iniciou em setembro de 2005 uma operação, coordenada
pelo Centro de Recursos Ambientais (CRA), contra o uso de madeiras obtidas
ilegalmente, que resultou na desativação dos fornos de carvão em algumas áreas do
sul da Bahia. Em represália a essas ações, alguns desses grupos desencadearam atos
que resultaram em saques a ônibus e caminhões de prestadoras de serviços das
empresas de produção de celulose, e incêndios em florestas de eucalipto.
(ARACRUZ CELULOSE, 2006, Relatório de Sustentabilidade – 2005 p.67)
Uma outra versão se apresenta. Segundo depoimentos de moradores de Juerana e
Taquari, o eucalipto plantado em quase todo o lugar onde a “vista alcança” modificou o modo
como as pessoas da localidade se apropriavam da terra. Uma agricultura de subsistência era
48
Jurandi de Souza Boa Morte, Ex-prefeito de Caravelas e sogro do atual, é o maior fomentador de eucalipto do
Brasil, segundo um funcionário da empresa.
49
“A Aracruz é uma das três empresas brasileiras que integram o Índice Dow Jones de Sustentabilidade (DJSI
World) 2006, que destaca as melhores práticas em sustentabilidade corporativa no mundo.” (Aracruz, Relatório
de Sustentabilidade, 2006)
50
Em um artigo intitulado “Haja Cruz” de José Arbex Jr., na revista Caros Amigos, o autor conta o que
aconteceu:
“20 de janeiro, 2006: pelo menos 120 agentes da Polícia Federal, incluindo um destacamento do Comando de
Operações Táticas, de Brasília, todos armados, disparam bombas de efeito moral e balas de borracha contra os
habitantes das aldeias Córrego D’Ouro e Olho D’àgua dos povos tupiniquim e guarani, e finalmente tocam fogo
em suas casas. O ataque, fulminante, aterroriza e destrói as duas aldeias; oito de seus líderes são presos, dezenas
de seres humanos saem feridos. (...) Detalhe: na operação, os policiais usam um helicóptero e maquinário da
empresa, conta o jornalista Cristiano Navarro, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), no jornal Brasil de
Fato” (Caros Amigos, Ano X, nº 109, Abril de 2006., p.10).
49
praticada entre o gado (em outros tempos, o mamão), e a floresta. Essas atividades, apesar de
ainda manterem aquela população numa situação pouco confortável, significava a subsistência
daquelas pessoas. Com a introdução da monocultura do eucalipto o acesso por entre os
eucaliptais foi proibido e as atividades antes praticadas sofreram uma considerável
transformação. Os agricultores que permaneceram, pois muitos desterraram em direção ao
centros urbanos emergentes como Teixeira de Freitas, não tinham mais condições de “plantar
suas roças”. Ademais, os produtos alimentícios oriundos daquela pequena produção agrícola
são agora comprados de centros de produção, com uma distribuição razoavelmente eficiente
de Vitória e outros lugares no interior. O trabalho na roça foi praticamente abandonado.
As mudanças sociais vinculadas a uma promoção da alteração da ocupação do espaço
gerada pelo desmatamento e pela introdução de sistemas agroflorestais em ambientes
anteriormente utilizados na produção rural e agrícola, são comuns em diversos outros lugares
como o Norte do Espírito Santo e em Minas Gerais.
Os autores Gonçalves e Paiva
51
, discutindo as representações no que tange aos
aspectos sociais e políticos sobre o passado e presente feitas por produtores familiares e rurais
na região do Vale do Rio Doce e Vale do Aço em Minas Gerais, nos esclarecem sobre aquelas
mudanças provocadas também aqui no Sul da Bahia. Segundo os autores,
Espaços sociais historicamente formados por populações inicialmente
vinculadas à produção para auto-consumo e para mercados locais, essas regiões e
seus habitantes foram pouco a pouco vendo suas estratégias de vida e de reprodução
sociais, econômicas e culturais sendo modificadas pela penetração da monocultura
comercial de madeira. (GONÇALVES E PAIVA, Op.cit, p.2)
Os autores sugerem que os argumentos para a opção de desenvolvimento baseada na
indústria e na alta produtividade desqualifica social e economicamente a pequena produção
rural que se apresenta atrasada, improdutiva e incapaz de se auto sustentar. Tal discurso
advoga que as famílias devem o mais atender as demandas relativas à sua própria
reprodução social, mas se inserirem em atividades que gerem riquezas para o mercado.
O jeito que os habitantes de Taquari e Juerana (distritos de Caravelas e Alcobaça e
Caravelas, respectivamente) lançaram mão para esta inserção no “mercado” foi a produção
carvoeira. Atividade potencialmente poluidora, que muitas vezes utiliza mão-de-obra infantil,
51
GONÇALVES, M.T e PAIVA,N (2004). “Espaço Rural em transformação: um lugar de (qual) memória.
Mneme – Revista Virtual de Humanidades, n. 10, v. 5, abr./jun.2004
Disponível em http://www.seol.com.br/mneme
Acesso em: Fevereiro de 2006
50
a carvoaria aproveita as galhadas e pedaços de madeira deixados pelas empresas de celulose
quando da época de colheita do eucalipto. As empresas de celulose afirmavam que os
carvoeiras estariam roubando as árvores de suas plantações pelos moradores daquelas
localidades para a obtenção de carvão. Numa ação conjunta do CRA e CAEMA (Grupo da
Polícia Militar do Estado, especializada em florestas) em 2005, vários fornos usados na
fabricação do carvão foram destruídos e a comunidade reage com violência, queimando
ônibus e carretas das terceirizadas das empresas de celulose. A história foi pouco noticiada na
imprensa local e ainda o caso parece não ter tido muita importância para o município de
Caravelas, já que nenhuma ação concreta de tentativa de resolução do conflito foi tomada até
então.
Os diversos conflitos sociais gerados a partir da exploração da agroindústria de
celulose tem povoado páginas de jornais ultimamente. Também em 2006, no Dia
Internacional da Mulher, centenas de mulheres da Via Campesina irromperam, em Barra do
Ribeiro, Rio Grande do Sul, nos laboratórios e viveiros da Aracruz Celulose. As mulheres
danificaram mudas e os conhecimentos acumulados relativos ao plantio do eucalipto, uma
forma de tornar pública a indignação da entidade frente ás conseqüências da atividade
agroindustrial da celulose.
Entretanto, o relatório de sustentabilidade de 2005 se mostra bastante otimista em
relação à resolução dos conflitos. Também nos mostra o documento, alguns aspectos
relevantes da empresa Aracruz Celulose, responsável por 30% do mercado mundial de
celulose e que teve um lucro líquido naquele ano de mais de 1 bilhão de reais. (ARACRUZ
CELULOSE, 2006, Op.Cit.)
É interessante notar a destinação da celulose para o mercado mundial. No gráfico 2 a
empresa nos apresenta a distribuição geográfica das vendas. A América do Norte e Europa
somam aproximadamente 80% da destinação final da celulose, produzida aqui. O controle
acionário da Aracruz Celulose é exercido pelo Grupo Safra de capital internacional com sede
em Mônaco, Grupo Votorantin e pelo grupo Lorentz, cujo maior acionista é o cunhado do rei
da Noruega, todos com 28% cada um e ainda 12,5% de propriedade do BNDES, que aprovou
um empréstimo para a Aracruz de 297.209.mil reais em 2005.
51
Quadro 2 – Distribuição Geográfica das Vendas – Aracel
52
America Latina 2%
Asia 20%
América do Norte 35%
Europa 43%
A produção é voltada para o mercado externo, com o Brasil dividindo com os outros
32 países da América Latina, 2% da destinação final da celulose.
Mais interessante ainda é a utilização da celulose na destinação final de produtos de
papel. A maior parte da produção é para fabricar papéis sanitários!
53
Quadro 3 - Vendas por Uso Final – Aracel
54
Papéis de imprimir e escrever 21%
Papeis especiais 22%
Papeis sanitários 57%
O Gráfico a seguir, extraído do próprio Relatório de Sustentabilidade da empresa em
questão, apresenta a destinação dos recursos gerados em 2005. Nota-se que apenas 7% de
todo o montante é destinado a pagamento de salários e encargos trabalhistas.
52
Adaptado pelo autor.
53
Agradeço a ajuda de Rodrigo Leão de Moura que chamou a atenção para estes dados.
54
Adaptado pelo autor.
52
Quadro 4: Destinação dos recursos da Aracel em 2005. Fonte: Relatório de Sustentabilidade, 2005
7) Modelo de desenvolvimento como campo de disputas sócio ambientais
O que nos interessa aqui foi o modelo de desenvolvimento adotado que privilegia o
grande capital e mantém a questão da transformação da natureza e do trabalho em mercadoria,
não obstante as denúncias de diversos grupos de defesa do meio ambiente e de direitos
humanos. Este modelo parece ter passado pelas diversas versões que ora foram apresentadas,
mas é especificamente na segunda metade do século XX que tal modelo se estabelece de
forma definitiva.
Os autores tratados neste capítulo sustentam teoricamente a problemática e a
confirmação que o desenvolvimento, muitas vezes é então chamado de sustentável, se assenta
sob os mesmos parâmetros, mesmo antes das preocupações ambientais virem à tona em todo
mundo, e antes também de a classe trabalhadora, por intermédio de sua luta e organização,
conquistar alguns direitos, que vêm sendo sistematicamente vilipendiados.
O eucalipto, por exemplo, praticado na monocultura e latifúndio, se afasta
sobremaneira da noção de sustentabilidade, apesar de algumas empresas terem aferido o
certificado ISO de qualidade e ecologicamente sustentável. Não podemos afirmar que os
termos sustentáveis da atividade do eucalipto garantirão realmente sua continuidade e
53
permanência. É isso que quer dizer sustentabilidade? Se as empresas de celulose modificaram
de modo patente a paisagem natural, as relações das populações rurais com o meio natural e
com o trabalho, rearranjaram a dinâmica geopolítica das regiões em que atuam; se
contribuíram na reformulação políticas públicas, se desterritorializaram e reterritorializaram
comunidades e setores da sociedade em termos de seu processo produtivo, talvez possamos
afirmar que, para o capital oligopolista “internacional” e somente para ele,
sustentabilidade.
Todavia a noção de sustentabilidade tem origens e indicações diferentes e muitas
vezes divergentes, contraditórias. Entendemos que, apesar do otimismo constante na maior
parte da mídia, na defesa de alguns segmentos da sociedade e nas próprias publicações das
empresas de celulose, a atividade da agroindústria do eucalipto o é sustentável. Ela o
garante a perpetuação dos recursos ambientais para as gerações futuras; ela contribui para o
acirramento e recrudescimento dos conflitos das comunidades ditas tradicionais e indígenas;
ela mantém e amplia a concentração de renda e a concentração de terras; ela também contribui
para a dependência política e econômica dos países de economia periférica aos países de
economia central; ela, enfim, pratica o que Ernest Friedrich e John Brunhes chamaram de
“economía de rapina” que forjou sociedades concentradoras de renda, centralizadoras do
poder político e rígidas nas suas estruturas sociais.
Trata-se, portanto, de um campo de disputas dos chamados impactos sócio ambientais
que se polarizam em análises antagônicas. Se essa disputa invade a academia, ela indica que o
“desenvolvimento sustentável” pode ser visto de diferentes pontos de vista e é necessário uma
reflexão muito mais profunda que nos permite este trabalho, pelas naturais limitações
expostas.
Henrique Leff
55
discute a dificuldade de se valorizar os custos ambientais nos termos
de uma equação matemática que se arvore em produzir um resultado que concretize o valor
real da natureza. Os custos ambientais não podem ser contabilizados, racional, objetiva nem
quantitativamente por não haver disponível uma teoria do valor capaz de calculá-los. Para o
autor o movimento ambientalista imprime uma resistência à capitalização da natureza e sua
luta social implica num processo de reapropriação social da natureza. Propõe, portanto, não só
a descentralização do desenvolvimento, mas um deslocamento
56
das bases do processo
produtivo. Assim, “desenvolvimento sustentável” não pode ser entendido como uma
55
LEFF, Henrique (1998). La reapropriação social de la naturaleza. In: Sustentabilidad, racionalidad,
complejidad, poder. México, Siglo XXI. pp.1-12
56
O autor usa a palavra “descentramiento”.
54
compatibilização da conservação com o desenvolvimento econômico, mas trata-se de pensar
as questões ambientais como um potencial para um desenvolvimento alternativo”, na
construção de um outro paradigma que integre a natureza e a cultura como forças produtivas.
A natureza esvaziada do caráter de mercadoria que o capitalismo lhe impôs, se apresenta
como um “meio de produção, objeto de uma apropriação social, atravessado por relações de
poder”. (LEFF, 1998)
A negação da ecologia dentro da racionalidade econômica burguesa
57
inaugura o que o
autor chama de “conflitos de distribuição ecológica” e significa que tal economia se assenta
sob uma racionalidade destrutiva antinatura”. Leff mostra que os movimentos ambientalistas
podem, a partir de uma concepção de “distribuição ecológica” (diferente do conceito de
distribuição, de matiz puramente econômico), inaugurar uma outra forma de apropriação da
natureza, ou reapropriação ambiental. Advoga uma outra racionalidade produtiva na qual o
próprio conflito ambiental gerado pela insatisfação das necessidades ecológicas em
detrimento das necessidades puramente econômicas, no que diz respeito à distribuição e à
apropriação da natureza, pode gerar paradigmas alternativos de desenvolvimento.
O sentido da incomensurabilidade entre ecologia e economia, segundo Leff
(...) lleva a pensar la producción sustentable como um sistema complejo,
integrado por processos ecológicos, tecnológicos y culturales de distintos órdenes de
materialidad, com diferentes espacialidades, temporalidades y significaciones, que
imprimen diferentes formas de valorización del ambiente. (LEFF, 1998, p.6)
Desta forma que se repensar as estratégias políticas dos movimentos na região,
levando em conta alguns desses pressupostos. A justiça ambiental se dará no embate dos
diferentes agentes, a partir dos conflitos deflagrados e latentes, em relação ao modo de
exploração dos recursos naturais que foi praticado ao longo do tempo, na região em tela.
As demandas e direitos dos recursos das populações extrativistas, pescadoras e
lavradoras da região jamais estiveram em pauta. Ainda hoje a proposta de carcincultura para a
região entende que o manguezal é o lugar fétido, do atraso, dos homens em seu estágio
primitivo.
58
Urge finalmente que se reavalie os paradigmas econômico-ecológicos presentes em
todas as versões e que se faça uma tentativa de aliar este binômio, com o fito de superar sua
contradição, não em termos paliativos para o bem do setor produtivo, mas sim com outros
57
A raiz grega oikos está na morfologia dos dois vocábulos: economia e ecologia. No entanto a proximidade é
apenas gramatical.
58
Cf Anexo C.
55
fundamentos, que privilegiem as vozes que jamais foram ouvidas nos 503 anos de ocupação
da região.
Uma contenda se apresentou em Caravelas a partir do projeto de implantação de
carcinicultura. Sob os mesmos paradigmas desenvolvimentistas, a proposta da Coopex se
assenta na principal carência da região: emprego. Emprego é a submissão da força de
trabalho, potencial humano e do ecossistema manguezal, no caso, aos ditames do capital.
Este capítulo se fez necessário na medida em que apresenta o paradigma constante na
noção de desenvolvimento que defendem os “empreendedores” dos viveiros de camarão em
contraste com um outro, defendido por outros agentes, que se opõe àquela idéia. Queremos
crer que a proposta dos viveiros de camarão pode ser vista como uma reedição do paradigma
de desenvolvimento, constante nas outras versões a que nos referimos neste capítulo.
Não obstante, a proposta de Unidade de Conservação também deve ser discutida. Uma
Reserva Extrativista poderia estancar aquele processo? É interessante realmente interrompê-
lo, se não definitivamente muita clareza, ao menos por parte dos agentes locais, em relação
ás bases de desenvolvimento, dessa vez sustentável, que as Unidades de Conservação de
assentam? Dos doze tipos diferentes de Unidades de Conservação constantes no Sistema
Nacional de Unidades de Conservação SNUC, a Reserva Extrativista é uma das poucas que
inclui as populações ditas tradicionais. A Resex é, por fim, um instrumento eficaz de
manutenção do equilíbrio entre a produção e a perenidade dos recursos naturais?
Com efeito, é improvável que respondamos a esses questionamentos nesse trabalho.
Porém é necessário que a própria população de marisqueiros, pescadores e ribeirinhos
participe ativamente das discussões acerca de seu próprio futuro, para que não precisem ser
representados nem pelo grupo de “ambientalistas”, nem pelos empreendedores da
carcinocultura. algo que vem sendo sistematicamente negligenciado pelos agentes
“ambientalistas”: conciliar os diversos saberes, a academia, a política local, com o objetivo de
incluir o saber, a cultura e a cosmologia dos ribeirinhos, pescadores e marisqueiros de
Caravelas e Nova Viçosa.
56
CAPÍTULO II
Ongs, Prefeitura e Coopex: a disputa pelas verdades
... dizer que uma sociedade funciona é um truísmo;
mas dizer que tudo numa sociedade funciona é um absurdo.
Claude Lévi-Strauss
O presente capítulo e o próximo m por objetivo apresentar os conflitos gerados a
partir das implicações das questões ambientais surgidas no município de Caravelas entre os
anos de 2002 - 2006. O marco inicial é inaugurado no pedido do então chefe substituto do
Parnam Abrolhos sobre esclarecimento em relação a um projeto de carcinicultura que havia
sido noticiado no Jornal Correio da Bahia de Salvador, em junho de 2002.
As questões ainda o estão resolvidas e ainda uma confusão gerada a partir de
informações não confirmadas e mesmo falseadas. O processo de licenciamento da
carcinicutura da competência do CRA se adianta com a Licença de Localização, concedida
pelo órgão em 19 de maio de 2006 na 297ª Reunião Ordinária do Cepram - Conselho Estadual
de Meio Ambiente. Entretanto, no D.O.U de 16 de maio de 2006, apenas um dia antes da
concessão da referida licença, foi publicada a Portaria nº39 do Ibama a Zona de
Amortecimento do Parnam Abrolhos, que obriga a Coopex a submeter seu projeto àquela
instituição. A federalização da competência do licenciamento foi diversas vezes aventada e
perseguida pelo movimento ambientalista local, bem como pela OAB e pelo Ministério
Público em sua Ação Civil Pública, impetrada em 06 de março de 2006. Entretanto, segundo
alguns agentes, a ZA é um instrumento frágil, sujeito a pressões políticas e per se não garante
estancar o processo de implantação da carcinicultura. De fato, diversas matérias e
pronunciamentos foram emitidos questionando as conseqüências dessa Portaria no campo
produtivo, principalmente no tocante à prospecção de petróleo e gás natural, que a Zona de
Amortecimento impede.
A questão, portanto, ainda não se resolveu no campo institucional, mas em relação aos
caravelenses de modo geral ainda muitas dúvidas em relação às “verdades” que estão
sendo disputadas pelos grupos ora polarizados. Na cidade, ainda correm boatos tais como: o
57
MMA (Ministério Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal) recusou o
pedido de criação da Reserva!”, “A Zona de Amortecimento não tem validade jurídica porque
foi decretada pelo terceiro escalão do Executivo, rompendo o Pacto Federativo. Devia passar
pelo legislativo e tinha que ter a aquiescência da prefeitura e dos vereadores. É lei que o
pega” disse um comerciante local. “Se a Reserva não saiu agora, não sai mais nunca, por
causa que é ano de eleição e eles não vão brigar entre eles”. O autor da frase refere-se ao
governo Federal na sua relação com o governo do Estado da Bahia.
59
Como já foi dito, ainda o uma decisão definitiva em relação à contenda.
haverá um “ponto final” na questão, “quando a Resex for finalmente decretada”, disse um dos
militantes do movimento ambientalista local.
***
Como ficou exposto na Introdução desse trabalho, tive uma dificuldade muito grande,
a partir da mudança de foco e objeto desse estudo, em alcançar o “outro lado”. Voluntário do
“movimento ambientalista”, minha atuação foi vista com uma certa reserva por parte dos
apoiadores da proposta da carcinicultura, além da citada dificuldade por parte de algumas
pessoas em entender qual a diferença do biólogo para o sociólogo. Principalmente alguns
interlocutores da comunidade local não conseguiam entender os objetivos do meu trabalho.
No entanto, a aproximação antropológica se revelou deveras importante para a conquista da
credibilidade entre essas pessoas. O fato de não estar ali tão somente “coletando dados” me
introduziu numa esfera de códigos que os biólogos geralmente o alcançam. Por outro lado,
se pudéssemos dividir o grupo de “ambientalistas” os que intervêm de forma direta na
comunidade local, com propostas positivas de ação; também os que pesquisam a fauna e
flora da região, que chegam exclusivamente para esta coleta de dados; os que participam
da vida política do município; os que, inseridos em uma ou outra categoria, participam dos
eventos sociais. Enfim uma miríade de inserções dos “ambientalistas” se apresenta. As
combinações dessas categorias revelam mais ou menos sua credibilidade frente à comunidade.
Não nos coube categorizar de forma rígida todas as formas possíveis, mas tão somente a
dificuldade em me perceber e ser percebido como um pesquisador que utiliza outras
abordagens que aquelas geralmente, mas nem sempre, praticadas pelos biólogos. De todo
modo, a dificuldade maior se deu por conta da ambivalente identidade pesquisador-militante.
59
um conflito ás vezes implícito, mas nesse caso em clara disputa do órgão ambiental do estado (CRA)
versus o federal (Ibama)
58
Se de um lado esse movimento dialético revela uma dificuldade na coleta de dados, de outro
me insere num contexto de credibilidade que em outra circunstância, qual seja a da coleta de
dados num contexto de relativa neutralidade científica, como advogam os paradigmas
positivistas e como entendem alguns weberianos, não me seria possível.
Tal inserção revelou uma dificuldade em alcançar alguns importantes militantes do
movimento pró-Coopex que poderiam ter sido interlocutores determinantes para que se
pudesse alcançar uma visão mais ampliada e mais completa dos interesses em jogo. Mesmo
assim, alguns desses dignitários, generosamente, se dispuseram a colaborar com a pesquisa e
seus depoimentos foram significativos e imprescindíveis para a reflexão do problema.
***
A partir de algumas implicações da Teoria da Relatividade einsteiniana para a
observação dos fatos materias pela ciência, Alfred North Whitehead apresenta uma reflexão
sobre os acontecimentos da realidade a que prefere chamar de evento.
O autor entende evento em três dimensões: local – a que podemos chamar de espaço; o
momento “lugar” que ocupa do tempo; e o seu caráter, isto é, sua significação. A natureza
nos fatos tratados neste trabalho refere-se a um complexo de eventos passageiros” lidos a
partir de minha própria experiência no espaço e no tempo. Assim esses eventos portam um
significado e estão necessariamente circunscritos num espaço-tempo específico. As diversas
situações em que o observador capta os significados dos eventos e os define, ao mesmo tempo
este movimento sensorial e intelectivo amarra a realidade observada num conceito abstrato.
(...) os fatos concretos da natureza são eventos que revelam uma
determinada estrutura em suas relações mútuas e determinados caracteres próprios.
A finalidade da ciência é expressar as relações mútuas entre esses caracteres em
termos das relações estruturais mútuas. (WHITEHEAD, 1994, p. 199)
O autor salienta que aquelas circunstâncias singulares dos eventos, por estarem
dimensionadas no tempo, indicam que espaço e tempo não podem ser dissociados da natureza
física. Portanto o que se vê, se sente, o que se percebe só é verdade apenas naquelas
circunstâncias.
Os fatos da contenda Resex-Carcinicultura, portanto, estão sob a minha observação
desses eventos
60
e da forma com que eu interpretei as interpretações dos meus interlocutores
60
Para Whitehead é impossível reconhecer o evento em si, mas sim reconhecer seu caráter.
59
na série de eventos em tela. Esta minha interpretação está circunscrita num espaço e num
tempo indissociáveis; trata-se, portanto de um entendimento particular sobre o caráter dos
eventos que ora são narrados. Isto o quer dizer que se trate apenas de uma elocubração
subjetiva acerca da minha experiência pessoal, mas que observadores diferentes em
circunstâncias diferentes, ainda que observem os mesmos eventos, concluirão verdades
61
diferentes.
O que importa, com o apoio da reflexão de Whitehead, é que entendo todos os
acontecimentos narrados como uma estrutura de eventos num intervalo espaço-temporal
específico, sob circunstâncias determinadas. que se reter então que a narrativa encontra-se
fundamentada nestes pressupostos teóricos. Estou fazendo uma seleção a que pude abstrair da
dinâmica dos eventos e as comunico aqui no texto como uma aproximação válida.
Assim procuro entender o que ocorreu na minha inserção neste complexo de eventos
dessa forma:
O mundo que conhecemos é um fluxo contínuo de ocorrências, que
podemos distinguir em eventos finitos a formar, por meio de suas mútuas
sobreposições, inclusões e separações, uma estrutura espaço-temporal.
(WHITEHEAD, 1994, p.203)
Não é Whitehead que relativiza essa experiência do observador a que me refiro. Mas é
a partir do que o autor apresenta é que me permito agregar ainda mais este elemento na
observação dos eventos ocorridos desde que cheguei em Caravelas.
O que está se transformando em texto neste momento de minha “aventura científica”
se refere a todos aqueles eventos presos lá naquele limite espaço-temporal.
Cornelius Castoriadis
62
aponta as impossibilidades de se pensar a sociedade e a
história dissociadamente. Para o autor, as tradições que procuraram entender a sociedade e a
história como disciplinas estanques, equivocam-se por inúmeras razões. Concentra sua crítica
principalmente no funcionalismo que pertence, segundo o autor, a um grupo de abordagem
do tipo fisicalista; e no estruturalismo, que se agrega nas correntes do tipo logicista. Para o
autor, o social-histórico deve ser questionado a partir dele mesmo e assim ele não pode ser
inserido nas categorias tradicionais. Não pretendo apresentar todos os argumentos do autor
acerca desta questão, mas utilizamos este esquema para pensarmos os eventos narrados.
61
Reconhecimento nos termos do autor.
62
CASTORIADIS, C. (2000) “Imaginário Social e a Instituição” In: A instituição Imaginária da Sociedade.São
Paulo, Paz e Terra pp.201-257
60
Para Castoriadis os elementos constantes no universo social-histórico, mesmo que
muitas vezes materiais e concretos carregam uma significação simbólica que não pode ser
verificada sem esse entrelaçamento. As instituições se constituem e constroem redes entre si a
partir do simbólico apesar de não se poderem reduzir a ele. O símbolo não tem fronteiras
como queria a tese funcionalista, que queria lhe atribuir um “revestimento neutro, como
instrumento perfeitamente adequado à expressão de um conteúdo preexistente, da ‘verdadeira
substância” (CASTORIADIS, 2000 p.142-143) Assim o autor a rede de significados e
símbolos num sentido mais amplo para que possamos compreender o processo de alienação
das sociedades em relação ás suas instituições.
63
A vida social é material e concreta, contudo
são os efeitos do imaginário social e sua gama de símbolos que se encontram contidos nas
instituições que apresentam o que fundamentalmente constituem as sociedades. O autor
bastante importância a estes aspectos simbólicos e assim procura combater a visão
funcionalista do simbólico reduzido a um mero aspecto funcional, uma série articulada de
elementos que visam tão somente às satisfações das necessidades de uma sociedade. uma
miríade de outros elementos que acompanham a rede simbólica que jamais podem ser
isolados ou separados.
A instituição é uma rede simbólica, sociamente sancionada, onde se
combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um
componente imaginário. A alienação é a autonomização e a dominância do
momento imaginário na instituição que propicia a autonomização e a dominância da
instituição relativamente à sociedade. (CASTORIADIS, 2000, p.159)
Reconhecer a importância desse simbólico viabiliza uma interpretação mais próxima
da veracidade dos eventos a que me refiro nesse trabalho. Todavia, o “discurso é tomado pelo
simbolismo”. O meu discurso, o discurso dos agentes em conflito e as demais significações
desse universo simbólico que vai desde a própria linguagem que comunico; os elementos
dispostos ao alcance dos agentes; a imagem que a comunidade caravelense faz e refaz de si
mesma; as oposições, a origem, o funcionamento das organizações, enfim, tudo o que por
ventura possa aqui estar descrito, apesar de constituir uma materialidade concreta, percebida,
é uma combinação de significados, ou, nos termos do autor, significações imaginárias sociais.
Não se confundem porém com representações, pois tratam-se de outra coisa, têm outra
natureza e substancia.
63
Aí se encontra uma das críticas ao marxismo que o autor elabora. Para Castoriadis a alienação não se
unicamente em sociedades que apresentam uma estrutura de classes marcada: “[numa sociedade de alienação]
suas instituições o têm com ela a relação de pura exterioridade e de instrumentalidade que lhe atribuem às
vezes marxistas ingênuos; ela não pode mistificar o restante da sociedade com sua ideologia sem mistificar-se a
si mesma ao mesmo tempo.” (Castoriadis, 2000, p.139)
61
As significações imaginárias sociais (...) não denotam nada, e conotam mais
ou menos tudo; e é por isso que elas são tão frequentemente confundidas com seus
símbolos, não somente pelos povos que as utilizam, mas pelos cientistas que as
analisam e que chegam, por isso, a considerar que seus significantes se significam
por si mesmos, (uma vez que não remetem a nenhum real, nenhum racional que
pudéssemos designar), e a atribuir a esses significantes como tais, ao simbolismo
tomado em si mesmo, um papel e uma eficácia infinitamente superiores ás que
certamente possuem. (CASTORIADIS, 2000, p.173)
Quero escapar dessas armadilhas a que a teoria se refere no que diz respeito ás
interpretações de estigma funcionalista ou estruturalista, no modo com que nos apresenta o
autor
64
. Quero crer que todas as inferências e injunções que trago nesse capítulo respeitam
mais ou menos ás indicações teóricas desses dois atores. A estrutura de eventos,
contextualizada no espaço e no tempo, compreendendo um universo sócio histórico,
carregado de símbolos, é o cenário que se me apresentou na inserção no campo.
Para que possamos entender esse processo sócio histórico que se apresenta, faremos
uma breve descrição das organizações que se integraram no movimento ambientalista. Os
diferentes agentes se dispuseram, a partir da verificação que a proposta de carcinicultura no
município era real, a se unir em torno da questão, com o conhecimento acumulado e opondo-
se à proposta, ao mesmo tempo em que revitalizaram uma outra: a da Unidade de
Conservação de Uso Sustentado.
Não como negar que esta revitalização foi alimentada pela possibilidade real do
licenciamento da fazenda de camarão. As forças se multiplicaram a partir dessa constatação e
tanto um quanto outro lado se utilizaram do mesmo argumento. O grupo dos
“empreendedores” perguntou o porquê de os “ambientalistas” terem somente agora com a
carcinicultura em pauta, iniciarem um processo encorpado de mobilização pró-Resex, se
havia bastante tempo outubro de 2003, que a Associação dos Moradores Ribeirinhos de
Caravelas havia entrado com um pedido junto à Câmara Municipal para que esta estudasse a
viabilidade da criação de uma UC para a área de mangue. Por outro lado, os ambientalistas”
utilizaram do mesmo argumento para intensificar o esforço para a aquiescência da
comunidade, principalmente ribeirinha para a criação da UC.
Numa transcrição feita a partir de uma manifestação do então presidente da Colônia de
Pescadores Z-25, questiona-se o interesse pela Resex.
64
Não obstante, no primeiro capítulo percorro toda a história da região numa abordagem de inspiração marxista,
por considerar a mais adequada para concluir as reflexões que fazia.
62
uns anos atrás, quando se pensou criar uma reserva extrativista eu era
Vereador. Passou-se, comentou, e não criou. Porquê? Não pra mim entender.
Porque que hoje, agora, no momento em que as empresas estão querendo
investir em Caravelas, varias empresas que vêm pra gerar emprego e renda, - e é
isso que os filhos de Caravelas estão precisando. Porque estas ONGs agora se
manifestaram a favor de criar uma reserva extrativista, gente? Sepossível! Vocês
não tão observando que a idéia da reserva extrativista é simplesmente para impedir
os empreendimentos que estão chegando para Caravelas? Este pessoal não gosta de
Caravelas, gente.
Fica patente neste depoimento que o mote utilizado pelo grupo dos “empreendedores”
para contradizer os argumentos dos “ambientalistas” é justamente o impedimento do
progresso da cidade. As razões não são comunicadas; as verdades” estão em disputa mas
nunca se afrontam realmente. Em todo o processo de mobilização, nunca ocorreu um debate
entre as idéias que se opunham. Mesmo na mídia local, os argumentos de um lado e outro não
se enfrentavam
65
A relação Resex/Coopex, apesar de o primeiro termo ser mais velho que o segundo,
invocou o conflito. De fato, estando eu no campo para a mobilização comunitária os
argumentos mais utilizados para o envolvimento dos ribeirinhos foram: (a) os perigos da
implantação de uma fazenda de camarão para o manguezal e para a população ribeirinha e
pescadora; e (b) a “invasão” de marisqueiros de fora, que ocorre anos e ninguém melhor
que os próprios ribeirinhos para conhecê-la –, contribuiu para a diminuição da população de
caranguejos
66
Relação existe a gente não tem como negar. A turma que mobilizou em prol
da criação da Resex agora foi forçada à mobilização em prol da Resex por conta da
instalação da criação de camarão. Instalação não, do projeto. Isso não tem como
negar. A gente não quer ficar batendo nesta tecla pra não fazer confusão com a
opinião publica, mas foi dada pouca importância pra Resex. Isso já está num
processo desde quando a comunidade cobrava, porque eles alegam isso. Quando a
comunidade cobrava uma posição do Ibama, porque o Ibama não fiscalizava? E de
65
Ver Anexo H. O repórter do jornal “Cidade” escreve : “A reportagem do Cidade ouviu alguns dos
ambientalistas de Caravelas, que se declaram não estar nem um pouco preocupados com o emprego nem com o
progresso de Caravelas. Na prática eles são contra o projeto e ponto final”
66
Ainda não um estudo definitivo que justifique a hecatombe de caranguejos ocorrida nos últimos três anos.
Os ribeirinhos disseram que foram os venenos utilizados por estes marisqueiros de fora que “derrotou” os
caranguejos; e ainda o volume na retirada dos bichos também comprometeu a reposição das gerações
subseqüentes. Como nos informa um depoente:
Como eu falei, antes a pressão era muito grande: “cara, vai lá que os caras estão
acabando com nosso caranguejo!”. Foi quando veio pra cá, isso foi em [19]96, uma turma de
Canavieiras. Veio João do Caranguejo, e já passou por Nova Viçosa. Rapaz, esses caras
retiravam 2 mil e poucos caranguejos toda semana! Tinha só 2 famílias na época, aqui na
Avenida, tinha um pessoal de Nova Viçosa ,tinham alguns que moravam no mato, que vinham
só ajudar esses caras aqui que ficaram articulando e tal. O pessoal acampava no meio do mato,
da restinga. Acampamento de pouco tempo: ficavam uma semana, usavam redinha. Esta foi a
estratégia: quando o caranguejo subiu mesmo no verão, foi esta galera que trouxe a redinha,
antes num tinha redinha, foi a turma de Canavieiras. E nisso está desde [19]96 a pressão da
comunidade.
63
fato não tem como punir [a extração de caranguejos pelos marisqueiros de fora],
porque a lei permite... E aí foi levantada essa conversa: “só para impedir se criar
uma Resex”. Mas a resposta era essa, não se mobilizava com tanta força como
agora está se mobilizando. Isso a comunidade tem uma certa razão quando cobra.
Parece que tem que acontecer algo de ruim pra vir coisa melhor depois.
As diferentes instituições tinham uma experiência de comunicação entre elas, mas
em nenhum momento de sua história, se agregaram do modo como fizeram e ao que parece, a
carcinicultura foi o elemento que animou esta agregação. Talvez se não houvesse a UC como
expediente eficaz contra o empreendimento, provavelmente estas organizações não teriam se
vinculado de forma tão decisiva. A resposta do outro lado também se deve a esta articulação.
Talvez se o esforço de mobilização não fosse tão intenso, a resposta dos “carcinicultores” não
teria sido tão imediata. De todo modo, a operação anti-carcinicultura e pró-Resex pode ter
sido percebida pela comunidade como uma continuidade de um modelo de envolvimento
muito parecido com o que se pratica nos períodos eleitorais. Não foram raras as perguntas e
reclamações do tipo: “e você? O que você ganha com isso?”; vocês vêm aqui estudar os
caranguejos, os peixes e nada sai pra gente!” Devemos levar em conta o que nos falam os
moradores, principalmente os ribeirinhos. Seriam os principais beneficiários tanto na criação
da Resex pela priorização de políticas públicas para as comunidades, pela atenção que
teriam por habitar uma zona protegida pelo Estado; quanto na criação de camarão, que,
segundo os “carcinicultores”, eram aquelas mesmas pessoas que seriam arregimentadas para
trabalhar na fazenda, pois a atividade não exige especialização da mão-de-obra. Nesse
sentido, as “verdades” se chocam, se contradizem: vale qual o melhor entendimento e a
melhor forma de comunicar, que, obviamente, não me cabe aqui julgar. Porém, a confusão
gerada a partir da disputa das “verdades” contribui para a crença que interesses envolvidos
de ambos os lados que a comunidade desconhece.
Os “ambientalistas” acabaram por se endividar com a comunidade. Apesar de não se
ter feito promessas, o movimento teve que dar uma resposta mesmo que tácita a seguinte
questão: Se vocês não querem o camarão, o que é que vocês vão trazer pra comunidade?”
Essa contrapartida não pode se realizar. Nenhuma das instituições pode oferecer “empregos” à
comunidade. No entanto, o fato de se estabelecerem em parcerias mais consistentes, ofereceu
uma possibilidade de se pensar com mais cuidado estas questões. Assim, a aglutinação das
instituições se deu o apenas em oposição à carcinicultura, mas com o desafio de dar uma
resposta eficaz para superar as condições de vida da comunidade pesqueira e marisqueira, tal
como se verifica nos discursos dos ambientalistas. Todavia isto não é atribuição, nem natureza
64
daquelas instituições, mas o desafio está posto. O deslocamento nessa questão prescreve uma
nova aproximação das instituições ambientalistas na comunidade.
É muito comum nos depoimentos que se levante a singularidade do momento
interinstitucional que viveram as organizações. Apesar de se terem construído relações de
parcerias perenes umas vezes, pontuais em outras, o modo como as diferentes instituições se
articularam contra carcinicultura e pró-Resex e vice-versa parece ter sido único. No caso dos
“ambientalistas”, os diferentes depoimentos corroboram com esta visão que este momento
especial inaugura uma nova forma de articulação entre as instituições. Segundo a fala de um
dos representantes,
Eu acho que temos uns fatores, ponto negativos mas acho que tudo se traduz
no fator confiança. Infelizmente, nós não conhecemos a fundo as ações um do outro
grupo, e isso acaba também ferindo algumas questões, ou e no mais pessoalmente
sendo uma guerra de egos. Eu particularmente não gosto muito disso, acho que a
gente teve algumas falhas sim, e todavia também avançou muito. O tamanho que
nos tínhamos, a perna que nós temos, nós mobilizamos e formamos opinião junto de
uma galera bem significativa. Eu acho que nós fomos inocentes em trabalharmos em
uma questão que é muito ria de forma primária, e nós trabalhamos realmente
confiando no bom senso das pessoas, e trabalhamos também sabendo que em
momento algum fomos anti-éticos, a gente não apelou, a gente não fez nada disso
(...) Fomos inocentes sim, porque em alguns momentos deixamos
transparecer que a gente não estava exatamente bem, que não havia uma
sintonia muito fina entre a gente. A gente ia pra campo ou a gente falava na
comunidade às vezes um assunto que eu falava de uma forma e outro falava
de outra, e talvez esta falta de um diálogo próximo onde as pessoas
pudessem naturalmente sentir que o Kid, o Mainho, o Dó, o Rodrigo, o Gui
falavam a mesma linguagem seria um fator importante. O que eles
[“empreendedores”] fizeram muito bem. Eles bateram: a questão é esta, esta,
esta e com isso eles acabaram conquistando ou tendo alguns adeptos.
Nesse momento diversos outros interlocutores entraram em cena, não apenas as
instituições ditas “ambientalistas”. Um Movimento Cultural, um grupo de jovens, militantes
do movimento de bairro, grupo de jovens da Igreja Católica, professores, estudantes,
pescadores, marisqueiros. Não obstante esta configuração ter se desarticulado, em parte pela
dificuldade de comunicação do grupo, ficando a maior parte das decisões na esfera das
instituições “ambientalistas”; em parte por uma concepção de alguns agentes, de que o
movimento deveria planejar seus passos em uma esfera menor, apenas com as lideranças mais
importantes, numa direção de “cúpula”; em parte pela burocratização e ampliação da questão
que alcançou as esferas estadual e federal, possibilitando uma desarticulação da mobilização
comunitária local. De outro lado a “contra-informação” da Prefeitura obteve um certo êxito,
65
controlando as “vontades” locais com a influência que exerce sobre seus funcionários e com
as parcerias locais. Ademais, tanto o Ibama quanto as ONGs sofrem muita resistência na
comunidade de modo geral, como foi descrito. Assim, muitos dos caravelenses, crendo ou
não na oferta de empregos da Coopex, se indispõem ao movimento ambientalista muito mais
por uma reação cética ás ONGs e ao Ibama, do que realmente por um apoio refletido à
proposta de carcinicultura. Conforme Cecília Mello
67
, o que diz que um ou outro é
“forasteiro” depende de uma série de comportamentos e valores e outras imputações, que
boa parte dos “dignitários” de Caravelas (políticos, comerciantes, proprietários das operadores
de turismo, funcionários e colaboradores das ONGs) são de fora.
(...) a oposição “nativos x de fora” não é unívoca; o que une e separa
os "nativos" dos "de fora" depende da situação e da forma como se ordenam,
no contexto dado, os diferentes níveis de pertencimento em jogo. (MELLO,
2006, p.7)
Significa que esta oposição é bastante fluída e é provocada e proferida quando
algum interesse em jogo. O prefeito é de fora, a maior parte dos comerciantes é de fora, no
entanto, aqui nesta série de eventos, são os “ambientalistas” que instigam a terminologia. Os
“de fora” são os intrusos; a pecha é negativa. Perceber este desencontro é introjetar às vezes
um sentimento de ódio, ás vezes uma posição reativa de qualquer ação por parte dos ditos
“ambientalistas”. Alguns caravelenses se sentem inferiorizados perante a vida diferente que
levam aquelas pessoas.
Em um depoimento de um dos chamados “ambientalistas”, a questão “nativosversus
“de fora” novamente se revela.
Na verdade não tem um critério do que é “de fora”, o critério é o interesse. Se
a gente pegar o exemplo esta história da Coopex, as pessoas que estão propondo o
empreendimento são todas de fora. Todavia são chamados “de fora” hoje as pessoas
que são contra o empreendimento, que neste caso somos nós. (...) De fora é todo
aquele, ou naturalmente seriam todos aqueles que o vão gerar para mim
nenhum recurso imediato. Se por acaso eu trabalho com você, você é dos
Estados Unidos, e que você vai com certeza abrir uma empresa na minha
cidade você pode ser de fora, mas você é muito bem vindo porque eu vou
trabalhar contigo. Se você é daqui, mais de 30 anos, mas infelizmente seu
registro não está como nascido em Caravelas, e se você se posicionar contra
o interesse de alguém que vai fazer um empreendimento aqui, com certeza
67
MELLO, Cecília. 2006. Educar, Controlar, Circunscrever: notas etnográficas sobre biopolítica no extremo sul
baiano. In Pedro Jacobi e Lúcia Ferreira (org.) Diálogos em Ambiente e Sociedade no Brasil. Coleção ANPPAS.
Annablume, São Paulo
66
você vai ser chamado novamente de “de fora”. Então não existe na verdade
um critério pra dizer quem que é de fora. Existe sim, uma relação de
interesse onde, se você ferir meu interesse a melhor forma de dizer que você
não está me agradando é te chamar de “de fora”.
Há, portanto, vários “de fora” – aqueles vistos pelo depoimento acima; a pecha baseia-
se nos oportunismos, nos jogos de interesse. O indivíduo é “de fora” na medida em que nada
contribui para a satisfação dos interesses de outros. Mello entende o “de fora” com outra
lógica. Com um olhar etnográfico autora assume a visão do “nativo”:
(...) a tensão “nós e eles” reaparece em determinadas situações. Como
boa parte da elite branca da cidade, eles pouco freqüentam a Avenida, área
periférica onde mora grande parte da população afro-indígena da cidade.
Embora certamente mais "bem vista" que há uma década atrás, a região ainda
carrega marcas de um estigma de região perigosa. Numa festa promovida
pelos moradores da Avenida, ao constatar a ausência dos biólogos” mais de
um morador da cidade reclamou do povo do sul, que não carona, não se
acasala com a comunidade, não se integra”. (MELLO, 2005, Op. Cit, p.7)
O que vimos é que esse povo da Avenida
68
na verdade interage com estes
forasteiros. Nos eventos promovidos ali, a presença dos estagiários, dos pesquisadores é
sempre marcante. Certa vez, uma aula de dança promovida por um grupo da comunidade
local não ocorreu, pois não havia nenhuma “bióloga” presente. Esta interação ocorre, todavia
algumas diferenças nas relações de intimidade dos diferentes grupos: os biólogos são uns;
o povo da Avenida é outro. As tentativas de interação acontecem, provavelmente porque
uma afinidade estética compartilhada. O reggae, p. ex., é um ritmo que é apreciado por estes
dois grupos e tal preferência musical pode vir a agregá-los. Por ocasião das festas de
Carnaval, um grupo que contava com nativos da Avenida e os “biólogos”, montaram um
bloco de carnaval chamado “Reggaeiros da Liberdade” e juntos confraternizaram ao menos na
“concentração” do bloco e no show da banda Tribo de Jah. Portanto aquela percepção da
autora pode não se aplicar nos dias hoje, ou talvez não com a mesma intensidade constatada.
Quiçá esta observação tenha mudado de lugar. O Bairro Novo é hoje o espaço da periferia, a
região perigosa. A ocupação do Bairro Novo já se inicia conflituosa quando a demanda por
moradia instala um grande número de famílias às margens do Rio do Macaco. Ali casos de
prostituição infantil e tráfico de drogas ocorreram com muito mais freqüência que na Avenida.
Parece que houve uma reterritorialização do estigma negativo que migra da Avenida de duas
68
Cf os trabalhos de MELLO, Op. Cit, 2005 e 2006
67
décadas atrás para o Bairro Novo, onde a maior parte dos pescadores da sede do município
moram, pela proximidade dos pequenos portos erigidos nos últimos anos. Ali sim a entrada do
bairro nem sempre é franqueada para os “ambientalistas”. Participei de uma das projeções de
imagens e dados referentes a carcinicultura no bairro e concluí que foi o lugar onde mais
houve rejeição aos argumentos dos “ambientalistas”. Houve também uma reação contra um
esforço de informação logo após a realização das Consultas Públicas para a criação da
RESEX, como se verá adiante.
Assim, o Bairro Novo, muito mais que a Avenida é o lugar onde mais se observa
rejeição à idéia da Resex, apesar de ser um bairro onde se encontra uma população numerosa
de famílias marisqueiras e pescadoras. Explicar o fato é muito mais difícil que percebê-lo. Até
o momento da redação deste trabalho o nos foi possível apreender esta rejeição.
Acreditamos que o fato se dê pela proximidade que muitas lideranças locais têm com a
prefeitura e com os vereadores e também porque o Bairro Novo não foi um local de
prioridade para o esforço de mobilização.
À época de toda a movimentação por ocasião da Audiência Pública da Coopex,
diversos atores começam a interagir. O coordenador do Projeto Manguezal vinha projetando
em diversos pontos da cidade, nas escolas e em reuniões com a população ribeirinha, uma
série de imagens e números sobre os impactos negativos da carcinicultura em outras
localidades. algum tempo que o termo “carcinicultura” estava sendo propagado como
atividade poluidora e que traria riscos para o município e sua população, principalmente a
extrativista. Esse documento foi disponibilizado para as outras instituições que dispunham do
equipamento de projeção (IBJ, CI-Brasil, Parnam Abrolhos), para o reforço na campanha de
informação. Outros vínculos foram então estabelecidos ou fortalecidos entre os opositores à
carcinicultura. Participavam das reuniões promovidas pelos atores mais engajados, desde
professores, grupos de jovens, representantes das ONGs e de grupos locais, até os próprios
marisqueiros e pescadores. Iniciava-se então uma grande mobilização contra o projeto de
carcinicultura que, além de informativa, também tinha um caráter de politização da
população. O movimento manteve-se intenso aa sua dispersão por conta das festas de fim
de ano, à redução do esforço de mobilização dos carcinicultores nas comunidades e à
concentração de esforços das ONGs e do Ibama local no processo de criação da UC. Soma-se
a isso também uma dificuldade patente do “movimento ambientalista” local na questão da
comunicação. Uma das críticas mais contundentes feitas alhures por alguns parceiros e
68
“independentes” à equipe de mobilização para a criação da Resex foi a negligência em relação
ao diálogo com os outros agentes direta ou indiretamente envolvidos tais como: outras
associação de moradores, e de classe, grupos de jovens, militantes individuais. Isso se explica,
em parte, pelo ambiente dinâmico e urgente que o contexto se apresentou. Era preciso, de um
momento a outro, organizar a estratégia de campo e alguns dos agentes envolvidos na
oposição à carcinicultura viram-se alijados do processo. Tal entendimento pode ter levado a
uma certa antipatia para o apoio ao processo de mobilização. Ainda assim, muitas foram as
contribuições dos agentes não diretamente engajados na preparação das Consultas Públicas
(CPs) para a criação da UC.
Os diversos agentes e contribuições
1) Os ambientalistas locais:
a) Instituto Baleia Jubarte (IBJ)
O IBJ foi criado em 1996 a partir do Projeto Baleia Jubarte, com o intuito de
contribuir para a conservação e o desenvolvimento de pesquisas sobre a baleia-jubarte,
importante espécie-bandeira para a conservação marinha. O IBJ também contribui para a
formação ambiental de mestres e marinheiros, e das empresas que operam turismo no
Arquipélago de Abrolhos. Além disso, O IBJ realiza um trabalho periódico de Educação
Ambiental nas escolas, tendo como público-alvo professores, alunos e comunidade em geral.
Segundo um de nossos interlocutores o IBJ nasceu de uma necessidade operacional de
viabilizar o estudo das baleias-jubarte.
Instituto, que é uma ONG e eu acho que foi muito motivada pelas
dificuldades burocráticas ligadas ao Ibama... que é mesma situação do Tamar O
Tamar, a história é praticamente a mesma: o projeto Tamar é dentro do Ibama eles
criaram a fundação Pró-Tamar e eles têm uma parte dos funcionários do Ibama e
outra parte de funcionários da Fundação. E a Fundação capta recursos e aplica nos
projetos. O que aconteceu é que o Projeto Baleia Jubarte não foi pra frente, porque
não teve nenhum funcionário do Ibama designado para o projeto como era o Tamar.
No Projeto Baleia Jubarte não existia uma coisa desse nível. Em 96 veio o primeiro
patrocínio Petrobrás junto com a criação [do IBJ] então acho que a criação foi meio
motivada, que aí você começa os contatos. Quando veio a possibilidade do recurso,
fundaram o IBJ. De pra houve uma separação: o Ibama não tem nenhuma
ingerência mais no IBJ, que é totalmente autônomo, apesar de a história de parceria
mesmo, de ação, vem sendo cada vez mais... O IBJ tramita em todos o âmbitos do
Ibama, desde a DLIC [diretoria de Licitações e Contratos], ELPN [Escritório de
69
Licenciamento das Atividades de Petróleo e Nuclear] no Parque Nacional, na Direc
[Diretoria de Ecossistemas], nas gerências... Nós vemos no instituto que a parceria é
fundamental importantíssima. Acho que é um auxílio mútuo. O Ibama tem muito a
ajudar o Instituto e o Instituto tem bastante a ajudar o Ibama e acho que é... sabe das
limitações do Ibama, só quem vive lá dentro conhece, apesar de ser diferente...
O IBJ foi criado portanto por uma dificuldade que alguns pesquisadores tiveram para a
manutenção de suas atividades dentro do Ibama. Hoje o IBJ, além do monitoramento das
baleias-jubarte, ainda tem um programa de Educação Ambiental permanente e apóia
institucionalmente o Patrulha Ecológica, cuja principal liderança, também foi um dos
fundadores do IBJ.
O depoimento conta, por outro lado, a relação bastante próxima do IBJ e do Projeto
Tamar com o órgão federal. Tal proximidade tende a fortalecer a idéia da indissociação
Ibama-ONGs, que a comunidade caravelense critica.
b) Patrulha Ecológica
Patrulha Ecológica é uma ONG que reúne jovens e adolescentes moradores do
município com o objetivo de capacitá-los para transmitir informações de cunho ambiental aos
visitantes das praias de Caravelas durante o verão. O Patrulha Ecológica participa da gestão
da Resex Corumbau e a contribuição de sua principal liderança é sempre propositiva nos
debates de estratégia de mobilização comunitária. A participação foi fundamental, tanto na
saída a campo na véspera da primeira Consulta Pública (Rio do Macaco), visitando
residências na sede do município de Caravelas, quanto no apoio logístico e participação nas
duas consultas públicas. Segundo sua principal liderança, o Patrulha e o Artemanha se
diferenciam das outras instituições, pois a maior parte de seus integrantes são indivíduos
nascidos na cidade.
c) Movimento Cultural Arte Manha
O Movimento Cultural Arte Manha surge no final da década de 70, da junção de
manifestações artísticas denominadas Umbadaum, Astúcia, Pigmeu e Afrodam.
70
“O Umbandaum se define como um grupo afro-indígena de antropologia
cultural. O conceito de afro-indígena é um conceito polissêmico que denomina uma
origem mítica, um modo de descendência e uma forma de expressão artística”
69
Segundo suas principais lideranças, o Movimento com certa implicância o termo
“ambientalista” ser atribuído aos jovens graduados brancos “de fora” (geralmente
pesquisadores e estagiários das instituições ambientalistas locais). Segundo esses membros, a
questão ambiental sempre foi um elemento norteador das atividades do Movimento, tendo a
arte como meio para a educação popular.
O Movimento Arte Manha, com seus 23 anos de experiência política, indicou
inúmeras sugestões na estratégia de mobilização, como também se fez presente na preparação
e articulação para das duas Consultas Públicas.
Ultimamente, sua principal liderança participa do retorno aos sítios ribeirinhos e foi
nomeado interlocutor da comunidade pela Diretoria de Desenvolvimento Sócioambiental
DISAN, órgão fundado recentemente a partir do Centro Nacional de Desenvolvimento
Sustentado das Populações Tradicionais CNPT/Ibama. O retorno à comunidade ribeirinha
fez parte da estratégia de mobilização, no entanto, por falta de recursos disponíveis para o
deslocamento e por conta de disputas internas dentro do próprio movimento, o retorno se
deu mais de dois meses depois das Consultas terem sido realizadas.
d) Projeto Manguezal/CEPENE/IBAMA
O Projeto Manguezal Projeto Integrado de Manejo e Monitoramento para o Uso
Sustentável pela População Ribeirinha no Manguezal de Caravelas BA) foi implantado em
setembro de 2002 pelo Cepene/Ibama, com recursos de compensação ambiental e,
posteriormente, um patrocínio da Aracruz Celulose. Segundo Nicolau:
A idéia de realização de um projeto ambiental que protegesse o Manguezal
de Caravelas e Nova viçosa começou a ser amadurecida em 1999, por analistas
ambientais do Ibama de Caravelas. Deste modo, realizaram-se várias reuniões com
os marisqueiros locais, visando conhecer as necessidades mais prementes dessa
comunidade que manifestou, através de uma participação direta e significativa, o
anseio pelo manejo e monitoramento dos recursos do manguezal para garantir seus
estoques naturais para as futuras gerações; por melhores condições em todo o
69
MELLO, Cecília, 2003. Obras de arte e conceitos: cultura e antropologia do ponto de vista de um grupo afro-
indígena do sul da Bahia Dissertação de Mestrado apresentada no PPGAS, Museu Nacional/UFRRJ.Rio de
Janeiro, p.37. mimeo (grifos da autora)
71
processo de produção e comercialização, como também pela agregação de valores
econômicos aos produtos.
70
Já José Augusto Soares da Silva
71
, que estudou governança do Projeto Manguezal
define a instituição com intermédio de outros agentes. Segundo o autor:
A realização do Projeto Manguezal se deu através do encontro entre
instituições do setor público, o Ibama e a Prefeitura Municipal de Caravelas, do
terceiro setor, o Instituto de Apoio e Preservação Ambiental (Iapa) e do setor
privado, a Aracruz Celulose S.A. (SILVA, 2005 p.10)
O Projeto Manguezal foi pioneiro na divulgação da idéia da criação da UC, com
reconhecidos esforços para o envolvimento da comunidade marisqueira e pescadora nas
questões ambientais. No entanto, o despreparo da comunidade tradicional no momento
imediatamente anterior às Consultas Públicas demonstra claramente que os esforços de
mobilização e informação utilizados têm logrado pouco êxito. É fácil perceber que existia, e
ainda persiste, uma grande passividade e carência de informações essenciais entre os
ribeirinhos, que não têm sido protagonistas dos processos sócio ambientais em jogo.
e) Parnam Abrolhos
Em 06 de abril de 1983, através do decreto 88.218, foi criado o Parque Nacional
Marinho dos Abrolhos e, segundo seu art. 1º, “com a finalidade de resguardar atributos
excepcionais da natureza, conciliando a proteção integral da flora, da fauna e das belezas
naturais com a utilização para objetivos educacionais, recreativos e científicos.” Uma vez que
os ecossistemas de recifes coralíneos dependem intimamente dos estuários adjacentes, o
Parque pleiteia, junto ao Ministério do Meio Ambiente, a criação de uma Zona de
Amortecimento, que se estenderá aos manguezais de Caravelas e Nova Viçosa. Essa Zona
de Amortecimento aumentaria consideravelmente a responsabilidade e jurisdição do Parque,
inclusive nas questões relativas à carcinicultura e outras atividades e projetos de
desenvolvimento no complexo estuarino. O Parque possui um Núcleo de Educação Ambiental
70
NICOLAU, Rosângela. (2005) Manguezal de Caravelas e Nova Viçosa/BA: discussão acerca da proposta de
criação de Unidade de Conservação Federal. Momografia apresentada ao Depto de Ciências Florestais da
Universidade Federal de Lavras do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Gestão e Manejo Ambiental em
Sistemas Florestais. Lavras, MG,. p.125.
71
SILVA, José Augusto Soares (2005) “Projeto Manguezal: uma questão política. Uma discussão sobre agentes
públicos e privados em torno de uma ação coletiva”. Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em
Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre.
Área de concentração: Ação Coletiva
72
(NEA), que tem por objetivo a promoção e a mudança de comportamentos para a conservação
e a interação sustentável entre o ser humano e o meio ambiente.
Entre seu público-alvo estão os “alunos de todas as faixas etárias, inclusive ensino
Superior, Professores, Comunidades tradicionais (colônias de pecadores e agricultores,
associação de mulheres e demais organizações comunitárias), empresas relacionadas com o
Parque, funcionários da Unidade, turistas, entre outros.”
72
f) Ampac (Associação de Marisqueiros de Ponta de Areia e
Caravelas)
A Associação de Marisqueiros de Ponta de Areia e Caravelas foi criada, em 2004, sob
a justificativa de que “os marisqueiros de Caravelas e Nova Viçosa não tinham qualquer
organização formal associativa, tendo como único meio de participação social uma associação
de moradores desarticulada e sem muita força política”
73
A Ampac foi criada sob os auspícios do subprojeto “Associativismo” do Projeto
Manguezal. Nela pretende-se fomentar os valores associativistas mas na prática o processo
pedagógico parece ser conduzido de outra forma. A Ampac Associação de Marisqueiros de
Ponta de Areia e Caravelas, foi instituída muito mais por uma demanda de cumprimento de
prazos e metas do Projeto Manguezal, do que de uma reivindicação real dos marisqueiros. O
corpo gestor da Ampac foi escolhido “a dedo” pelo Projeto Manguezal, contribuindo para sua
falta de organicidade. Á época do processo de mobilização, apenas o então presidente da
entidade, militava no movimento. Acumulando todas as funções da Ampac, o presidente
sentia-se sobrecarregado, principalmente por não dar conta de produzir os meios de sua
subsistência, que a agenda da associação lhe impedia de ir pescar. Esse tensionamento
redundou na ameaça de abono do cargo e hoje a Ampac encontra-se decapitada.
Em setembro de 2005, a sede da Ampac, contígua ao prédio do Projeto Manguezal, foi
inaugurada com o patrocínio da Aracruz Celulose, que disponibilizou recursos para a
construção e para a compra de uma máquina de gelo. A diretoria da entidade encontra
dificuldades no âmbito de sua gestão. O corpo gestor da Ampac tem pouco conhecimento do
estatuto, atribuições, direitos e obrigações de cada um de seus membros. O então presidente
72
BRASIL, MMA, Ibama, Parnam Abrolhos.
Disponível em : http://www.ibama.gov.br/parna_abrolhos/index.php?id_menu=101 Acesso em: 20/02/2006
73
NICOLAU, R. Op. cit.p.137.
73
da Ampac no período abrangido pelo trabalho aqui reportado, abandonou o cargo em março
de 2006, pela forte pressão sofrida no processo (seja por parte do Poder Público municipal,
pelos carcinicultores, ou pelo próprio Projeto Manguezal que por várias vezes interveio na
gestão da Ampac, e pela dificuldade em prover os meios de subsistência de sua família, por
conta do volume de responsabilidades assumidas pela entidade).
g) Lideranças do Conselho Deliberativo da Resex do Corumbau
Alguns membros do Conselho da Resex Corumbau, voluntariamente, se dispuseram a
participar das Oficinas de Capacitação e das Consultas Públicas, compartilhando sua
experiência de quase seis anos de Reserva Extrativista. Esses militantes foram muito
importantes nas manifestações das duas consultas, pois m uma origem bem parecida com a
média dos ribeirinhos e seus valores, fora diferenças territoriais particulares, são também bem
próximos. Sua contribuição foi de vital importância para a crença que a Resex pode vir a ser
um bom instrumento de luta dos interesses dos ribeirinhos, embora tenha havido uma certa
desconfiança pelo fato de terem sido trazidos” pelo pessoal das ONGs e representantes do
Ibama, quase sempre confundidos entre si.
h) Eco-Mar
Segundo um histórico produzido pela instituiução: No final de 2004 um grupo de
profissionais da área de oceanografia fundou a Associação de Estudos Costeiros e Marinhos
dos Abrolhos – ECOMAR”. Sua fundação foi motivada por conta de algumas perspectivas de
atuação no Complexo dos Abrolhos, e também pela necessidade de aglutinar esforços ao
terceiro setor com vistas à continuidade das ações de conservação e uso sustentável da
biodiversidade local. A missão institucional da Eco-Mar é:
“Promover a harmonização da relação entre as pessoas e o ambiente,
por meio de ações de informação, educação ambiental, implementação de
tecnologias alternativas, pesquisa aplicada, gestão participativa, extensão e
fomento, objetivando a conservação e uso sustentável da biodiversidade,
considerando aspectos sociais, econômicos, culturais e ambientais”.
A instituição foi criada bem pouco tempo, mas já executa alguns projetos de
pesquisa no banco dos Abrolhos.
74
i) Independentes
Além das instituições envolvidas, muitas pessoas e grupos não formalizados
participaram da mobilização pró-Resex. Muitas dessas avaliaram posteriormente o processo
reivindicando a socialização das informações. Realmente seu apelo procede porquanto muitos
encaminhamentos foram tomados com a participação de poucos atores. Todavia, o ambiente
vivenciado pelo movimento era de muita inquietação e muitos encontros se davam a partir de
novos tensionamentos dos “opositores”
Quadro 5: Organograma “ambientalistas”
O gráfico apresenta os agentes e como se estabelecem as relações de parceria e
conflitos entre os mesmos. As relações indicadas pelas setas mostram os termos na série de
eventos que foram atravessadas, não havendo, portanto uma perenidade das relações de
conflito e parceria. Certamente os conflitos são gerados pela própria dinâmica em que são
75
tecidas as malhas relacionais e vemos a resultante do contato das forças indicando sempre as
relações de parceria. Neste movimento em tela o grupo se apresenta dessa forma para fins
inteiramente ilustrativos. No entanto é claro que esta é uma percepção particular também
sujeita à correções e a outras aproximações que as minhas “certezas” e o distanciamento
necessário não permitiram.
A relação do Projeto Manguezal com os outros agentes é a mais conflituosa. Nos
depoimentos colhidos e uma impressão minha, essa relação acontece muito mais pela
dificuldade de seu coordenador em trabalhar em equipe, do que uma dissonância oriunda da
natureza das atividades propostas pelo Projeto Manguezal. De fato, pelo modo com que se
apresenta na comunidade, tal coordenador é visto com uma certa desconfiança na cidade,
apesar de lá ter nascido, i.e., um “nativo”. Ademais, o modus procedendi dentro da instituição
parece muito mais uma extensão da casa do coordenador em que sua autoridade é praticada
como se fosse a de um “pai” que, ao mesmo tempo que dá provimento material às realizações,
também “castiga” seus colaboradores, estagiários e parceiros. Um exemplo dessa reflexão
ocorre quando os estagiários se viram postos em uma situação de perigo no Bairro Novo,
como se verá adiante. O coordenador do projeto Manguezal afirmou em reunião que esta
situação, na verdade, fazia parte do processo de aprendizado dos estagiários, demonstrando
que é necessário para os estagiários passarem por esta circunstância, como um meio de serem
iniciados no processo de aprendizagem. É como o pai que envolve os filhos numa situação
nova para que possam aprender a andar por si mesmos.
A proposta da Resex é entendida por este servidor
74
como “filha” deste e deve partir
somente dele, com a “ajuda” dos outros agentes, a palavra final no que diz respeito aos
trâmites relativos à sua criação. É também dele a autoridade sobre os ribeirinhos. A Ampac
parece ser também “filha” do coordenador e o tratamento dispensado ao seu representante
também é parecida. Um exemplo disso foi a reação que teve o coordenador com o então
presidente da Ampac por ocasião da avaria em uma das peças da máquina de gelo da
associação (que foi negociada pelo coordenador junto à Aracel). O então presidente da Ampac
informando que a máquina não funcionava, ouviu uma reclamação do coordenador, inclusive
desqualificando o entendimento do presidente: “o problema é técnico, você não vai entender!”
foi dito repetidas vezes. No entanto, a relação Projeto Manguezal/Ampac parece se
desenvolver aparentemente sem conflito, muito embora diversos depoimentos admitam que a
Ampac nada mais é que uma extensão do Projeto Manguezal, com uma “cara mais
74
Segundo um agente do grupo dos “ambientalistas”.
76
comunitária”. Há diversos outros exemplos do modo com que as inserções dos servidores,
contratados e estagiários dependem exclusivamente da vontade do coordenador. Todos esses
integrantes foram proibidos em certo momento de participar das reuniões de mobilização da
criação da Resex, no auge do conflito.
A Conservação Internacional apóia alguns grupos na sua rubrica de fortalecimento de
instituições de caráter ambiental. Segundo um depoimento, a Eco-Mar foi fomentada por
aquela instituição que iria mudar seu escritório para Salvador. Na época, a CI-Brasil
necessitava de uma instituição que desse continuidade ao seu trabalho e a Eco-Mar foi então
criada. Acontece que a CI-Brasil permanece e alguns projetos desenvolvidos pela Eco-Mar
parecem se sobrepor aos projetos desenvolvidos pela CI-Brasil, criando uma relação de
conflito que culminou com o interrupção dos recursos advindos da CI-Brasil para a
manutenção da Eco-Mar. No entanto, esse conflito é subsumido pelas questões que os dois
agentes avaliaram como sendo mais importantes que o conflito interno: o da oposição à
carcinicultura e a criação da Resex. O que acontece são acomodações de todas as instituições
no que diz respeito à confiança institucional que aos poucos vem sendo conquistada pelos
diferentes agentes.
Também houve uma questão pessoal que se transformou num imbróglio institucional
por conta da relação entre CI-Brasil e Projeto Manguezal. O coordenador do Projeto
Manguezal não acatou as decisões do coletivo no tocante à divisão das tarefas relativas à
mobilização comunitária. Esta divisão de tarefas também pode ser entendida como uma
divisão de poder e uma disputa individualizada da credencial junto ás populações ribeirinhas.
Por outro lado também ouvimos que a CI-Brasil
75
queria tomar o lugar do Projeto Manguezal,
tentando fazer com que os outros agentes se indispusessem contra esta instituição. Num
depoimento, um agente nos conta sua visão da contenda:
O que eu senti, olhando assim, que rolou uma guerra de vaidades. Por um
lado o Projeto Manguezal , ele se intitulou o dono e pai do negócio, da UC. E por
outro lado, eu vi a CI tentando tomar esse lugar que o Projeto Manguezal achava
que tinha. E que na verdade a gente sabe que não é assim. Tanto que quando eu não
estava presente e teve aquela reunião que o Alexandre estava e falou que o CNPT ia
tomar a frente, a primeira notícia que eu ouvi foi a seguinte: tiraram o Cepene!.
que eu não pensava assim. Eu percebia que tinha esse jogo de poder e pensava: mas
porque o CNPT? O CNPT é o responsável. A gente está aqui pra cooperar.
75
A CI-Brasil, o Patrulha e o IBJ mantém uma relação de parceria com o Conselho Deliberativo da Resex
Marinha do Corumbau, que faz seis anos de experiência de gestão.
77
No nosso entender, todavia, o que houve parece ter sido uma indisposição dos
diferentes agentes em perceber as idiossincrasias e as particularidades das instituições e de
seus gerentes, mas, o que havia de fundo no conflito parecia ser que havia concepções
diferentes acerca da futura gestão da Resex. De um lado a Ong, advogando uma gerência
participativa e de outro lado o Ibama, que defende a participação desde que tuteladas pelo
órgão. Esta diferença, apesar de salientar propostas bem diferentes, na prática ela se revelou
bastante sutil. Houve uma carência de informações que levassem a um entendimento seguro
das questões acerca da UC. Parecia que nenhum dos agentes envolvidos tinha realmente uma
idéia comum sobre a Resex e ás vésperas da primeira CP, numa reunião com as diferentes
organizações, ficou acordado que não se falaria no tipo de Unidade de Conservação, se
Reserva Extrativista ou Reserva de Desenvolvimento Sustentável, mas apenas em “Reserva
do Cassurubá”. O então representante do CNPT resolveu, na sua falação na referida Consulta,
optar pelo termo Resex. Poucos foram os agentes que deram importância para o fato, talvez
porque realmente era uma questão sem importância naquele momento, mas muito
provavelmente porque, de maneira geral, se conhecia pouco das diferenças entre Resex e
RDS.
Essa percepção, que se deu tardiamente, obrigou uma intervenção do CNPT no
processo, que hoje se encontra sob a “batuta” desse órgão do Ibama, e sem a participação do
Projeto Manguezal na segunda etapa do esforço de mobilização, o que gera um desconforto
do grupo “ambientalista”
Uma outra ONG, não aparece no organograma acima e é pouco citada neste trabalho:
trata-se do Iapa – Instituto de Apoio e Preservação Ambiental. Esta instituição foi criada pelos
donos de embarcação que faziam a operação de turismo para o arquipélago de Abrolhos. O
Parnam “andava mal das pernas” e não havia recursos para a sua própria manutenção. Assim
o Iapa passou a vender ingressos do Parque, cobrando 12, 15 reais, dos quais 10 eram
repassados ao Ibama e o restante era utilizado para pagamento de marinheiros, guardas-parque
etc. Segundo um interlocutor
E o que aconteceu foi que com a vinda da Aracruz, a compensação
ambiental deu um alívio no parque. Então o Iapa zerou essa parte, acabou e
coincidentemente pintou o Projeto Manguezal. Com essa dificuldade de
administração de recurso, o Iapa entrou na jogada para administrar os recursos do
Projeto manguezal, mas era uma administração de recursos mesmo, o Iapa não tinha
gerência nenhuma sobre as atividades, até hoje não tem, isso foi feito pra acontecer
assim.
78
O Patrulha Ecológica, utiliza a estrutura física do IBJ que também o auxilia na
administração dos seus recursos. Recentemente o Patrulha recebe financiamento da
companhia aérea TAM, para execução de suas atividades. O Movimento Cultural Arte Manha
e o Patrulha Ecológica, são, do grupo de “ambientalistas” as organizações que têm maior
inserção na comunidade caravelense, pois trabalham diretamente com jovens oriundos dali.
Uma das lideranças do Patrulha se orgulha em dizer que a organização foi uma das primeiras
a encaminhar esses jovens para a universidade. De fato, a percepção de alguns membros,
principalmente os mais jovens que é preciso um esforço pessoal para de inserir neste campo
de trabalho oportunizado pelas instituições ambientalistas, começa a se desenhar a partir da
inserção destes jovens como colaboradores das ONGs. Por enquanto, a crítica feita às ONGs
que não aproveitam mão-de-obra local ainda não procede, pois a qualificação média dos
jovens caravelenses ainda não é suficiente para os trabalhos de pesquisa, que incorporam
graduados, especialistas, mestres e doutores. Há, por outro lado e apenas ultimamente, uma
preocupação por parte dessas instituições excetuando Patrulha Ecológica e Arte Manha,
pelas razões aduzidas , em incorporar a força de trabalho local. A mobilização pró-
Resex/anti-Coopex demonstrou para estas instituições a necessidade de trazer a comunidade
para os seus quadros de colaboradores; não apenas por uma relação de troca e de interesses,
mas pela própria sobrevivência das atividades realizadas pelas instituições. Alimenta esta
preocupação e esta mudança de comportamento, a dicotomia “nativos” versus “de fora” que
por sua vez também é tensionada pela dificuldade em se perceber os “ambientalistas” como
pertencentes a instituições particulares, com objetivos e missões próprias que nem a
comunidade de modo geral os conhece, nem os agentes das outras instituições do grupo.
Ainda sobre essa relação, os depoimentos percorrem uma interface. Um depoente nos
conta desta relação: o nós “ambientalista” é posto no mesmo concreto e é difícil perceber se
faz parte de uma estratégia de diferenciação, ou se é a visão da comunidade que fala pela
língua ambientalista. Mais uma vez o Ibama latissimo sensu é o amálgama desta concepção:
Porque o que nós temos é um monte de organizações, que as pessoas não
sabem o que elas fazem, nem como fazem e gera cada vez mais problema, ou seja,
em todo caso todos nós somos Ibama e isso é um fator que pesa. As pessoas não
querem saber se você trabalha pra organização A ou organização B, se vo é
ambientalista, está ligado à questão, você acaba sendo Ibama, e isso tem pesado não
negativamente, porque o Ibama é um órgão sério, mas isso tem que ser pesado
enquanto identidade de cada organização e a comunidade não tem este papel ainda
de chegar em uma organização e dizer: eu quero saber o que você faz e como você
faz. Nós estamos sempre esperando que as organizações venham até nós e
esclareçam da melhor forma possível, da forma mais didática possível. E
infelizmente as organizações poderiam estar fazendo, poderiam abrir um canal
79
direto pra poder ouvir a comunidade e a partir desse ponto deixar bem claro pra
comunidade qual é o seu papel, o que faz e que tem ações que podem ou não
beneficiar esta comunidade. O que nós temos é: as pessoas acreditam ou acham que
as organizações Baleia Jubarte, CI e o próprio Ibama deveriam ter uma linha
mais social que beneficiasse a comunidade. Uma vez que elas não vêem, não
enxergam isso, e que acabam vendo depois que por uma razão ou outra estas
organizações acabaram trabalhando com recursos condicionantes, a comunidade
naturalmente cai em cima. Então isso pesa. E s temos um fator que é muito sério
quanto a isso: as pessoas que vem, que se juntam a estas organizações nem sempre
tem uma boa comunicação ou uma boa relação com as pessoas locais e aí elas vêem
como “os de fora” e vêem as pessoas das organizações, que trabalham como “os de
fora”. E se você é local como “os metidos”, então você acaba de certa forma ficando
sempre à margem das vontades que não seriam vontades mas das necessidades
da comunidade.
Segundo Fernanda Abreu Marcacci
76
um problema de comunicação entre os
agentes e a comunidade e estas falhas de comunicação podem causar a ineficiência dos
projetos desenvolvidos. Estudando as instituições ambientalistas e o modo como a
comunidade caravelense percebe as ações daquelas, a autora nos esclarece que
Em Caravelas uma concentração grande de instituições ambientalistas,
por este motivo, é comum que sejam realizadas ações e eventos no que tange à
questão ambiental nesta região. O excesso deste tipo de atividade pode ter levado à
uma certa banalização do tema na visão da população local. Tem sido comum ouvir
dos moradores, frases como “De novo palestra sobre baleia!” ou “Debate sobre
meio ambiente, não agüento mais!” (MARCACCI, 2006, p.15)
A autora nos aponta que a forma com que as ações são desenvolvidas e comunicadas à
comunidade não garantem a eficácia da relação emissor-receptor-mensagem. Segundo a
análise de Marcacci boa parte das pessoas ignoram o caráter destas instituições ambientalistas,
se são públicas ou privadas.
77
Esta confusão percebida pela autora autentica a reflexão que ora
fazemos.
A significação “forasteiro” atravessa também o modo como as instituições se
percebem no contexto comunitário. Há uma preocupação constante destas com a maneira com
que se inserem entre os caravelenses. Percebe-se no gráfico que as instituições procuram
parcerias, apoio e acontribuem na formação de outros organismos com “base comunitária”.
O Projeto Manguezal cria a Ampac para que tenha um braço entre os marisqueiros e
pescadores; a CI-Brasil tenta uma aproximação com o Movimento Cultural Arte Manha; O
76
MARCACCI, F. A. (2006) “Instituições Ambientalistas: um olhar nativo”. Monografia apresentada ao
Programa de Pós-Graduação do NUPPE, Faculdade Sul da Bahia. 65 pp. Mimeo.
77
A autora inclui no seu universo de pesquisa o Parnam Abrolhos, a CI-Brasil, o CRA, o Cepene/Projeto
Manguezal, o Iapa, a Secretaria Municipal de Turismo e Meio Ambiente, o IBJ e a Cepemar esta última uma
empresa de consultoria que produziu o EIA-RIMA do terminal de barcaças da Aracel.
80
IBJ também é parceiro do Movimento Cultural, além de ceder não só espaço físico, mas apoio
operacional e na gestão dos projetos desenvolvidos pelo Patrulha Ecológica (os patrulheiros
são todos adolescentes e meninos da comunidade caravelense). O IBJ, o Projeto Manguezal e
o Núcleo de Educação Ambiental do Parnam Abrolhos executam projetos de Educação
Ambiental, uma forma de envolver a comunidade não somente nas questões ambientais
propriamente ditas, mas também, não sem importância, no apoio institucional. Um caso
curioso acontece no ínterim das questões ambientais em jogo.
Um funcionário contratado do Parnam Abrolhos foi dispensado recentemente e outrora
apoiando a criação da Resex e contra a carcinicultura, “muda de lado” assim que se sabe
demitido.
Há uma relação um tanto inusitada no que diz respeito à manutenção dos funcionários
não estatutários do Parnam Abrolhos. uma coordenadora, um técnico administrativo, 2
guardas-parque e 2 monitores cujos salários são pagos por uma terceirizada da Aracel em
Caravelas, a Transect. Esta empresa, que contrata trabalhadores pouco qualificados para o
Terminal, como limpeza, operação de máquinas etc, também é responsável pela contratação
de pessoal para o Centro de Visitantes
78
do Parnam Abrolhos. A Aracel disponibiliza o
recurso para a Transect que o administra e paga os contratados do Ibama, no entanto a seleção
do pessoal é do encargo do Ibama, o havendo ingerência da Transect, nem da Aracel na
escolha dos contratados.
2) Os “opositores” á criação da RESEX
a) Prefeitura Municipal de Caravelas
O Prefeito Municipal de Caravelas, genro do ex-prefeito Jurandir Boa Morte, conduz a
administração municipal com alguns traços clientelistas. Há diversas pessoas e instituições
cujos membros estão de alguma forma ligados ao poder local. O modo como a administração
opera no município muito se assemelha á teorização de Max Weber como o tipo de
dominação tradicional.
79
Neste caso as regras do jogo nem sempre se apresentam de forma
clara, mas vinculam-se, no âmbito subjetivo, a quem detém o poder político. A Weber
importa, na verdade o sentido e a aceitação que os diferentes atores conferem à legitimidade
78
O Centro de Visitantes foi inaugurado em 2004, com recursos oriundos da compensação ambiental por
ocasião da construção do Terminal de barcaças Luciano Villas-Boas com valor da obra girando em torno dos 900
mil reais.
79
Cf. WEBER, Max (1994). Economia e Sociedade. Vol.1, Cap.III (pp 139-198) Brasília, Editora UnB
81
do poder – dominação, em termos weberianos. A advertência do autor consoante às impurezas
do tipo nos alerta para o estatuto responsável pelo “recrutamento extrapatrimonial” de seus
subalternos. A legitimidade do poder -se, no caso em tela, pela representatividade que o
poder público municipal crê que lhe é conferida. Extrapola os poderes constituídos para um
poder de mando fundamentado em relações pessoais que o socialmente aceitas e creditadas
pelos munícipes como normais. O fato de a prefeitura de Caravelas ter usado a embarcação do
Programa de Saúde da Família – PSF para transporte de funcionários para a primeira Consulta
Pública concorda com as indicações de Weber. Não como dissociar, portanto, a
administração municipal e a dominação, apesar de o exercício teórico poder estar sujeito à
críticas. Não pretendemos transportar de modo mecânico e indistinto, o tipo puro de
dominação tradicional e seu subtipo, patrimonialismo, ao esforço para ambientar uma leitura
particular de como o poder instituído formalmente se exerce em Caravelas, no curso dos
acontecimentos. Raymundo Faoro é quem faz a associação do capitalismo e o Estado
brasileiros sob a égide da teoria weberiana.
O patrimonialismo, ao contrário do tipo racional-burocrático, no qual a
igualdade jurídica e a defesa contra o arbítrio o as bases da racionalidade formal,
o patrimonialismo voltamos a observar rege-se por uma racionalidade de tipo
material. Enquanto na dominação racional prevalece a ão social orientada por
meios e fins, no patrimonialismo a racionalidade obedece em lugar de fins, a valores
éticos, valores religiosos e principalmente valores políticos.
80
Alguns acreditam que este modus procedendi da administração municipal, põe em
desvantagem os “ambientalistas” no que tange ao debate de idéias. Proceder um diálogo
amplo com a comunidade se mostra para as ONGs e Ibama um esforço muitas vezes
desperdiçado. Tendo como opositores interlocutores remunerados e pressionados, em face de
sua condição material de existência, pelo clientelismo praticado pela gestão da prefeitura, as
iniciativas de envolvimento comunitário nas ações daquelas instituições alcançam pouco
sucesso entre os moradores. Conforme esta opção de liderança naturalizada pela prefeitura
municipal, muitas das questões relativas à criação da UC ainda não estão suficientemente
resolvidas no entendimento da comunidade. Talvez também não esteja para os ditos
“empreendedores”. Como procuramos demonstrar no Capítulo I, o conflito se inaugura por
incompatibilidade de concepções, porquanto partem de pressupostos distintos. Tanto entre
“empreendedores” e “ambientalistas”; tanto entre “ambientalistas” e ambientalistas”; quanto,
acreditamos, entre “empreendedores” e empreendedores”.
80
FAORO, Raymundo. (1993), “A Aventura Liberal numa Ordem Patrimonialista”. Revista
USP, nº 17, pp. 14-29.
82
b) Rotary Club de Caravelas.
Muitos são os que defendem a oferta de empregos por parte do empreendimento da
Coopex. Entre estes, o Rotary Club, por intermédio de seu representante, é um dos mentores
da reação contra a criação da UC. Vale notar que o representante da instituição ora se
encontra funcionário da prefeitura, em cargo de confiança. Além da simbiótica relação com a
prefeitura, outros aspectos também devem ser levados em conta para justificar a adesão de
determinadas pessoas a esta ou àquela idéia, como a citada aversão ás instituições
ambientalistas e ao Ibama, que pode inferir numa reserva a priori na rejeição de alguns
membros da comunidade, a qualquer iniciativa que desses agentes parta.
c) Colônia de Pescadores Z-25
A Colônia de Pescadores Z-25 de Caravelas passa por um processo de investigação
por parte do Ministério Público. Em fevereiro de 2006 alguns pescadores sentindo-se
prejudicados no que diz respeito à divulgação do processo eletivo da entidade. Segundo um
depoimento, nem na própria Colônia havia exposto o edital de inscrição de chapas. O tempo
exíguo acabou sendo insuficiente para a formação de uma outra chapa, apesar dos pedidos de
prorrogação de prazos para tal fim, junto à gestão da Colônia. Ainda, houve uma desconfiança
por parte de alguns pescadores quanto à lisura no processo de distribuição da assistência ao
defeso
81
. Alguns pescadores reclamaram que muitos “pés enxutos” estavam recebendo o
direito; alguns que haviam abandonado a atividade de pesca, outros que têm outra
profissão, outros que nem no município moram. Ainda nos revelaram que o presidente da
Colônia foi “comprado” pela prefeitura na assunção do cargo de secretário de pesca.
Os pescadores que pretendem concorrer a gestão da colônia declararam-se insatisfeitos
com a representação da Colônia. A entidade expede documentos que apóiam o
empreendimento de carcinicultura, sem, no entanto, uma prévia consulta aos pescadores.
Segundo eles a maior parte dos pescadores o apóia o empreendimento e uma outra parte
ainda não se decidiu por não ter tido informações suficientes. A reclamação junto ao MP es
sendo investigada e os fatos merecem uma atenção acurada.
81
Trata-se de proibição da captura de algumas espécies de camarão durante o período de recrutamento da
espécie. Por recrutamento entende-se o deslocamento da população jovem para reprodução. Durante o período
de defeso, o Estado dispõe para esses trabalhadores uma assistência especial para os pescadores ociosos, cuja
responsabilidade de repasse do seguro é das Colônias de Pescadores.
83
Segundo Brito
82
, as Colônias de Pescadores foram criadas sob a inspiração da
legislação marítima francesa e suscitou a imposição da tutela dos pescadores pelo Estado.
Ainda se consideram as Colônias como a entidade representativa por excelência desses
trabalhadores e o que ocorre no município de Caravelas não está distante do que a autora
revela:
A visão homegeneizadora e a prática tutelar que marca a origem e a atuação
das Colônias são reveladas em sua estrutura organizacional padronizada através do
ato legal genérico e único que as criou. (...) Estão sujeitas, institucionalmente, ao
poder intervencionista da Confederação Nacional de Pescadores, órgão vinculado ao
Mininstério da Agricultura, bem como à definição arbitrária de sua jurisdição
territorial (BRITO, 1999. op.cit, p.47)
Falta-nos também um diagnóstico mais aprofundado da atuação da Colônia Z-25 no
município de Caravelas. Todavia, a relação interativa da gestão da Colônia com a prefeitura
de Caravelas, se contrapõe aos princípios de autonomia e independência que, cremos, toda
entidade de classe deve ter em relação ao Estado e aos diversos outros segmentos sociais.
A atual gestão da Colônia conserva uma relação bastante próxima com a prefeitura.
Seu presidente é o atual Secretário de Aqüicultura e Pesca do Município de Caravelas. Não
obstante muitos pescadores e marisqueiros apoiarem a criação da Resex do Cassurubá, o
corpo gestor da Colônia defende o empreendimento da carcinicultura e é avesso à criação da
Unidade. Nesse contexto de conflito de interesses, vale lembrar que diversos pescadores têm
procurado seus direitos junto à Promotoria de Justiça, por julgarem não ser bem representados
e ter sido cerceados do seu direito de inscrever uma chapa que concorreria à próxima gestão
da Colônia.
É no mínimo curioso que o carro de som que fez a divulgação da eleição da Colônia é
o mesmo que presta serviço de divulgação das ões da prefeitura, inclusive com a própria
“voz” da locutora.
d) Associações classistas, de bairro e grupos formalizados.
Na segunda Consulta Pública, o prefeito Davi de Oliveira arrolou diversas associações
e grupos formalizados que se opõem á criação da UC. Os “ambientalistas” questionam a
representatividade e legitimidade dessas associações e grupos. Muitos representantes desse rol
estão de alguma forma relacionados com a prefeitura: ora com contratos de locação de
82
BRITO, Rosyan C de C. Modernidade e Tradição: Construção da identidade social de pescadores de Arraial
do Cabo-RJ. Niterói, Eduff, 1999.
84
automóveis ou embarcações, ora com familiares prestadores de serviço e, também, não pouco
comum, com os próprios representantes dessas entidades assumindo cargos de confiança da
prefeitura, como é o caso do presidente da Colônia Z-25 que também acumula o cargo de
Secretário de Pesca Municipal e o representante do Rotary Club, ambos já citados.
Falta-nos um levantamento mais detalhado sobre a atuação dessas entidades no
município. Todavia se configura uma relação de interdependência entre a gestão do
município e as associações arroladas, conforme descrito acima.
e) CRA
O CRA o possui uma sede em Caravelas, mas uma Unidade de Conservação
estadual chamada APA (Área de Proteção Ambiental) Ponta da Baleia. O prédio onde
funciona o escritório da APA também foi aferido como compensação ambiental do Terminal
de Barcaças da Aracruz Celulose.
A APA Ponta da Baleia foi criada pelo então governador da Bahia, Antonio Carlos
Magalhães
83
através do decreto n 2.218, de 14 de junho de 1993. Apesar de existir
formalmente 13 anos, somente agora foi designado um servidor do CRA para a
implementação da UC, i. e., para a sua gestão, para a formação do Conselho Gestor, para a
elaboração do seu Plano de Manejo.
Curiosamente, justo no momento em que o CRA se dispõem a favor da Coopex
84
, é
que se iniciam os trabalhos para a efetivação da APA Ponta da Baleia.
uma questão interessante em relação a este órgão. Ultimamente o CRA vem se
esforçando para criar o Conselho Gestor desta UC e convidou os diversos agentes locais que
vão desde as ONGs ambientalistas, mas envolve outros agentes como o Rotary, a Aracel e até
mesmo a própria Coopex, cuja participação foi inviabilizada, pois o empreendimento ainda
não havia sido implantado. Por conta de uma manifestação do gestor da APA em uma dessas
reuniões, o representante do Rotary Club assina um documento junto com outros agentes, e o
83
O então secretário da Indústria, Comércio e Turismo, Paulo Souto, signatário do Decreto, é hoje o atual
governador do estado e candidato à reeleição. Ambos, ACM e Paulo Souto, hoje são contrários à criação da
Resex e apóiam a carcinicultura.
84
Cecília Mello descreve uma passagem importante que confirma a associação CRA-carcinicultura:
Estranhamente (...) um representante do CRA dirigiu-se pessoalmente à sede do
Movimento Cultural, para indagar sobre as razões do pedido de adiamento da Audiência
[Pública da Coopex]. Sobre o capô do carro do órgão estadual o técnico do CRA desdobrou
um grande mapa da área de mangue onde deseja se instalar o empreendimento, buscando
docilmente persuadir os integrantes do movimento de que a carcinicultura não traria
impactos ambientais (MELLO, 2006b, p.9)
85
envia para a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do estado da Bahia
SEMARH, informando que o servidor do CRA, ao contrário da posição do órgão, se opõe ao
empreendimento de carcinicultura.
Quadro 6: Organograma “empreendedores”
No gráfico acima estão representados os principais interlocutores dos
“empreendedores”. Diferentemente da figura apresentada nas relações entre os
“ambientalistas”, os apoiadores e articuladores da Coopex parecem gravitar em torno da
prefeitura. Isso se explica em parte pela relação poder público-comunidade descrita em que
a prefeitura é um dos agentes que mais incorpora as pessoas no seu quadro de funcionários.
Parece que isso é o suficiente para que tais funcionários encampem o posicionamento da
prefeitura mesmo não concordando ideologicamente com tal direção.
85
A prefeitura, portanto,
é um dos agentes que mais oferece empregos na cidade e isto acaba se transformando em um
modo de cooptação das pessoas no que diz respeito ao embate de idéias.
85
Um funcionário contratado da prefeitura nos confidenciou que não acreditava na geração de empregos
prometida pela Coopex, mas que muitas vezes tinha que se manifestar favoravelmente ao empreendimento com
receio de receber retaliações e sofrer perseguição. O próprio Secretário de Meio Ambiente se mostrara avesso à
carcinicultura, mas acabou sendo envolvido pela questão e ultimamente tem uma relação íntima com os
empreendedores, sendo muitas vezes visto almoçando em lugar público com alguns cooperados e representantes
da Coopex.
Loja
Maçônica
Câmara
Municipal
Colônia de
Pescadores
Z-25
Associações
de classe,
grupos
formalizados
Rotary
Club
CRA
COOPEX
Prefe
itura
Municipal
86
Um presidente de uma associação de moradores assinou um documento que foi
apresentado pelo prefeito na segunda Consulta Pública para a criação da Resex. Este senhor
esteve um dia do mês de maio no escritório da CI-Brasil afirmando ter sido envenenado.
Segundo afirmou quem o acompanhava, a prefeitura lhe havia prometido um emprego caso o
presidente da associação fosse signatário do documento cujo teor era de oposição à criação da
Resex. O caso é que a promessa o foi cumprida a aquele momento. Conforme nos foi
confidenciado, este senhor entra em um processo de surto e é atendido num posto de saúde
onde lhe é administrada uma medicação injetável. O presidente da associação, medicado e
mais calmo, começa a acreditar que tenha sido envenenado no Posto de Saúde, pedindo
socorro no escritório da CI-Brasil. Felizmente o “envenenamento” não se verificou e não foi
nada além de uma paranóia eventual. No entanto, o fato nos mostra como algumas pessoas
temem retaliações provenientes do poder público municipal, muitas das vezes, infundado
temor.
É interessante notar a forma com que algumas pessoas interpretam as relações com o
poder público municipal: ou são agraciados com alguma benesse e têm que necessariamente
“comprar” o discurso da prefeitura, não importando o cargo que ocupam; ou são perseguidos
por o fazê-lo. Esta tônica parece estar presente em outros momentos da vida na cidade. No
esforço de mobilização pró-Resex, muitos dos que se opunham à carcinicultura, tentavam
aferir algum lucro por estarem aberta e intencionalmente “do lado” dos “ambientalistas”,
como se fosse uma espécie de obrigação que tal apoio fosse remunerado.
Também aqui nos falta um tanto mais de exemplos e casos para que esta apreciação
seja indubitavelmente confirmada.
87
CAPÍTULO III.
O trabalho de campo da mobilização pró-Resex
A maioria dos seres humanos atua como os historiadores: só em retrospecto reconhece a
natureza de sua experiência.
Eric Hobsbawn
Desde a criação do Parque Marinho dos Abrolhos, a cidade vem recebendo muitos
“forasteiros”, estudantes, pesquisadores, prestadores de serviço. Estes, por sua vez, trazem
novos valores (geralmente das grandes cidades), que revelam um padrão de consumo mais
elevado, seus gostos, gestos, modos de vida e registros sociais diferentes. Muitos caravelenses
sentem-se invadidos e diminuídos frente a estes indivíduos, muito mais por uma dificuldade
de acesso ao mundo do trabalho, do que efetivamente uma discordância essencial do que
produzem em termos sociais, econômicos e culturais, estes “forasteiros”. De fato, o tímido
contato destes com a vida comunitária do município, os aproxima do preconceito centrado no
termo “de fora”.
Corolário desta premissa, os ditos “ambientalistas” normalmente têm seus empregos
garantidos (como no caso dos servidores estatutários do Ibama) e sua militância, muitas vezes,
afugenta empreendimentos potencialmente poluidores, mas que, em tese, ofereceriam
oportunidades de trabalho para a ociosa juventude local. Assim, muitas das ações e
conseqüências daqueles agentes, são vistas pelos munícipes como irresponsáveis frente às
carências da comunidade local. O contexto torna-se ainda mais grave a partir das
contrapartidas de compensação ambiental e patrocínios das empresas criticadas e cerceadas
pelos “ambientalistas”, principalmente durante as etapas de licenciamento para implantação.
Dessa forma, uma aversão, de certo modo compreensível, às pessoas em particular e às
atividades dos “ambientalistas”.
Por fim, uma dificuldade aparente por parte dos cidadãos em entender a missão das
instituições ambientalistas locais. Algo tem mudado a este respeito desde a introdução das
metodologias de Educação Ambiental proposta por algumas destas instituições. Mesmo
assim, a comunidade ribeirinha e a caravelense, de forma geral, confunde analistas ambientais
88
do Estado com agentes ambientais, funcionários, colaboradores e pesquisadores das ONGs.
Por compartilhar os mesmos registros sociais citados anteriormente (background ocupacional,
formação acadêmica, valores metropolitanos etc) é compreensível que a comunidade
caravelense se arvore a prejulgar negativamente estas pessoas e instituições de cunho e
militância ambientalista.
86
O movimento ambientalista de Caravelas vinha se reunindo há alguns meses por conta
da articulação contra o empreendimento da carcinicultura. Percebia-se que se vivia um
momento favorável para a articulação da comunidade em favor da UC, que as experiências
negatoivas dessa atividade alhures, tempos vinha sendo debatida. A questão carcinicultura,
somada com a recente “invasão” de marisqueiros de fora, punha o movimento ambientalista,
acreditava-se, em uma posição privilegiada para as Consultas Públicas nos dias 22/01/2006
(Rio do Macaco), 05/02/2006 (Barra Velha), e 19/02/2006 (Tapera).
A capacidade de articulação da prefeitura e carcinicultores foi subestimada, apostando
que eles não seriam capazes de mobilizar a comunidade a seu favor. Essa estratégia se
mostrou ineficaz com o resultado da CP 1, como se verá adiante.
Apenas como recurso expositivo, distribuímos neste capítulo o trabalho de campo da
mobilização pró-Resex respeitando a uma ordem cronológica. Porém, em alguns momentos
seremos forçados a saltos reflexivos remetendo a eventos que possam estar no futuro ou no
pretérito do capítulo espaço-temporal que por ventura estivermos narrando.
Além disso a tensão pesquisador-militante pressiona uma análise individualizada e
sujeita à um “afastamento” necessário para a reflexão dos eventos narrados.
Pretendemos observar os caminhos percorridos, dentro e fora do mangue, do processo
de mobilização comunitária a partir uma visão construída com o auxílio do debate nos
diversos fóruns de discussão que foram travados com os diferentes agentes envolvidos. Tendo
como norte os conhecimentos e afetos adquiridos ao longo do processo de militância em favor
da UC, fizemos um exame sui generis. Apresentaremos apenas uma interpretação possível da
86
O termo ambientalista é entendido por muitos cidadãos caravelenses pejorativamente e relacionado a agentes e
instituições que, segundo uma visão generalizada afirmada por alguns munícipes, justificam essa noção negativa
a partir dos benefícios arrendados por algumas destas instituições. A compensação ambiental do Terminal de
Barcaças da Aracruz Celulose, distribuída em recursos para algumas instituições, corroboram com esta
nominação, o que nos parece razoável, tendo em vista as drásticos impactos sócio-ambientais que a monocultura
do eucalipto produz na região.
89
série de eventos em tela, já que acreditamos que uma infinidade de outras aproximações
analíticas seja possível.
Este preâmbulo se faz necessário, pois diferentes visões parecem ter sido produzidas a
partir do que chamamos agora de série de eventos” do processo de mobilização para a
criação da Resex Cassurubá. Conflitos emergiram da diversidade de concepções acerca do
modo como foi posto em prática o mote proferido por diferentes agentes nos debates sobre o
que se esperava dessa comunidade ribeirinha:
Necessário ainda que a comunidade extrativista se imponha como
protagonista do processo, influenciando nas decisões relativas ao manejo dos recursos
junto aos órgão ambientais do Estado e com o apoio e suporte das instituições
ambientalistas.
87
O método ao qual nos referimos se materializou em um documento que apresentava a
metodologia que nortearia o trabalho de campo. Este documento
88
, junto com o Plano de
Trabalho, foi aprovado em uma reunião na base do Projeto Manguezal, com representantes do
Ibama, da CI-Brasil e da Eco-Mar, nos primeiros dias de janeiro de 2006. Nele, propunha-se a
divisão do trabalho de campo em duas equipes: uma sob a responsabilidade da CI-Brasil e
Ampac, e outra sob a do Projeto Manguezal. E, ainda, sugeria o documento que a forma de
abordagem seguisse determinadas indicações. Além disso, deveria se trabalhar com cuidado
para que a reação da prefeitura e dos prepostos dos carcinicultores não se manifestasse e
disputasse a confiança da comunidade. Essa estratégia teve, imprevisivelmente, resultados não
desejados, como se verá adiante.
Dividiu-se então entre as equipes os locais que seriam visitados, dessa forma:
Equipe CI-Brasil/Ampac
89
Para CP1: Rio Massangano, Rio do Largo, Caribê, Barra de Caravelas e
Caravelas.
Para CP2: Rio da Barra Velha
Equipe Projeto Manguezal
87
CI-Brasil. (2006) Metodologia para a mobilização comunitária e identificação de lideranças para a constituição
da reserva de desenvolvimento sustentável do Cassurubá.
88
Id.ibid.
89
Participei deste esforço como representante da CI-Brasil nas interlocuções com os ribeirinhos. Por conta disso,
os fatos narrados a partir daí remontam à minha inserção formal como militante do movimento ambientalista,
não obstante o observador, com os olhos na dissertação, tivesse ido junto a campo.
90
Para CP1: Rio do Macaco, Rio Jaburuna, Rio do Poço, Ilha do Cassurubá,
Ponta de Areia e Caravelas.
Para CP2: Perobas e Nova Viçosa.
Não obstante a “Metodologia...” ter sido corroborada pelos agentes, na prática a
equipe do Projeto Manguezal seguiu a campo com outros norteadores. O resultado do trabalho
pôde ser sentido na ausência de informação sobre a Resex Cassurubá que a comunidade
ribeirinha trazia nos dias de Consulta Pública. De fato, em reunião de avaliação do processo
com os agentes envolvidos, um servidor do Ibama, lotado no Projeto Manguezal, concluiu que
a equipe CI/Ampac perseguiu uma abordagem de cunho “qualitativo”, enquanto a equipe do
Projeto Manguezal uma aproximação “quantitativa”. Segundo o servidor, o Projeto
Manguezal procurou atingir o máximo de ribeirinhos e marisqueiros possível, para que o
quorum nas CPs fosse satisfatório, mas se absteve de, em campo, detalhar e aprofundar as
questões relativas à Resex, restrigindo-se tão somente a fazer o convite para as Consultas
Públicas.
O nosso objetivo era atingir o máximo possível de famílias pra convidar para
a consulta pública porque ali teria como (quem) explicar. A gente falava: a gente
tem que avisar muitas famílias, a gente não tem tempo de explicar tudo e nem sabe
explicar tudo, mas vai vir uma pessoa do Ibama, de Brasília, do Ministério e vai
poder explicar tudo direitinho pra vocês. Esse era nosso discurso: a gente fazia o
convite, dava uma pincelada no assunto do que era, do que ia acontecer lá, do
benefício que isso poderia trazer e jogava a deixa de que o Alexandre [CNPT] ia
explicar melhor.
Esta pequena diferença alimentou uma rusga entre a CI-Brasil e o Projeto Manguezal,
que primeiramente de cunho pessoal que se transformou num conflito interinstitucional. Este
conflito foi percebido por outras pessoas, inclusive pelos “empreendedores”. Uma pescador
me confidenciou que um vereador sabia da questão entre as duas instituições e se animava
com o conflito que poderia resultar no desmantelamento da parceria. Com efeito, o Projeto
Manguezal, a partir da intervenção do CNPT no conflito, afastou a instituição da mobilização
pró-Resex. Numa reunião de avaliação do grupo, o então chefe do Parnam Abrolhos disse que
o coordenador do Projeto Manguezal lhe confidenciou que não iria participar daquele
encontro e desde nenhum dos integrantes da instituição tem participado das reuniões e
encontros do movimento ambientalista pró-Resex.
91
1) Consulta Pública 1
A equipe CI-Brasil/Ampac saiu a campo no dia 09 de janeiro, com destino ao Sítio
Duas Ilhas, no Rio do Massangano. Este sítio no qual reside a família Monteiro (Sr. Adilson
Ié, e Sr Jessi), era o que figurava entre as prioridades, por se tratar do local vizinho onde se
pretende implantar a fazenda de camarão. tempos que essa família vinha sendo visitava
pelos carcinocultores e muitas das conversas que travamos com os moradores do tio nos
mostravam a hesitação frente ás duas idéias em disputa, por assim dizer. Ao mesmo tempo em
que algo da sensibilidade dessa família lhes dizia que a fazenda de camarão poderia lhes
tensionar seu modo de vida tradicional
90
, também estes ribeirinhos duvidavam das benesses
prometidas pelos “empreendedores”
91
. Apesar de nossa constante presença, não nos foi
possível encontrar o Sr. Jessi, um dos patriarcas da família. Intuímos que o funcionamento da
família ribeirinha de modo geral respeita ao tipo patriarcal, e os homens mais velhos têm uma
ascensão real sobre os mais jovens e as mulheres. Muito comum em muitos sítios que
visitamos, alguns dos jovens da segunda geração apoiavam o empreendimento da
carcinicultura (pela propalada promessa de empregos). No entanto, os mais velhos preferem a
garantia da sua permanência na terra possibilitada pela criação da Resex e, nesses casos,
prevalecia a opinião dos anciãos. No caso da família Monteiro, o Sr. Adilson esteve sempre
muito cético tanto a uma ou outra idéia, mas, por fim, tende a apoiar o empreendimento
carcinocultor.
90
Muitos trabalhos acadêmicos têm se referido assim às comunidades que estabelecem uma relação entre si e
com a natureza pouco mais distante da cultura de massa engendrada pelo estádio atual do capitalismo
globalizado. A noção razoavelmente bem aceita consta, entre outros trabalhos, no de DIEGUES, 2000, Op. Cit..
91
Devemos entender por “carcinicultores” não os empreendedores em si, mas todos aqueles que apóiam
gratuita ou remuneradamente, de ânimo ideológico ou interessado, o empreendimento da Coopex. Esta
compreensão também foi elaborada por Cecília Mello em MELLO,2006. Op. Cit
92
Figura 6: Sítio Duas Ilhas, casa de Adilson (Ié). Foto: Guilherme Dutra
Entre a comunidade ribeirinha de modo geral, constatamos a fragilidade da
documentação relativa à terra e a própria documentação pessoal dos sitiantes. As dúvidas
provenientes da questão fundiária foram uma marca em praticamente todos os lugares em que
estivemos. Os ribeirinhos assustam-se com a constatação de que não são proprietários, e sim
posseiros, da terra em que seus avós moraram e que eles agora habitam. Com efeito, os
ribeirinhos constroem suas casas em áreas de restinga, bem próximo aos apicuns
92
, terrenos
da União. A confusão gerada a partir da questão da terra ainda é presente entre a comunidade
caravelense de forma geral, fruto de um bem-sucedido slogan da reação da prefeitura: “se a
Reserva for criada, o Ibama irá tomar as suas terras!”.
Termo que o movimento ainda não conseguiu por fim, a questão fundiária é a que
mais afugenta os ribeirinhos no que tange ao apoio á UC. Esta questão foi tratada
diferentemente pelas duas equipes: para alguns ribeirinhos ficou a impressão que o governo
iria “comprar as terras”. Durante os dias que se seguiram, a equipe CI/Ampac visitou
inúmeros sítios ou “ilhas” (para usar a categoria nativa) apresentando um mapa do estuário e o
92
É importante, para o processo de planejamento da reserva, que se conheça o histórico de ocupação daquela
gente. É comum ouvirmos de estudiosos e de alguns historiadores locais que, provavelmente, aquela população
tenha ocupado aqueles terrenos a partir da decadência do café na região. Benedito Ralile, na sua Monografia
histórica de Caravelas nos conta que os suíços Bushm Peike e Freyreys fundaram em 1818 a Colônia
Leopoldina, ás margens do Rio Peruípe, “época em que este município gozou a classificação de um dos
primeiros exportadores da saborosa rubiácea”RALILE, 1949, Op. Cit. O produtor de café da Província da
Bahia utilizou intensa mão-de-obra escrava, como foi comum em outros lugares no Brasil Colônia. Com o
declínio do café e o fim da escravidão, aquela população pode ter ocupado os sítios cujos prováveis descendentes
visitamos hoje. Urge, portanto, um estudo minucioso e uma análise decisiva da gênese étnico-cultural do povo
ribeirinho.
93
possível polígono da UC. Procurava-se lembrar os ribeirinhos da mortandade de caranguejos
que ocorreu em 2002, e da vultuosa extração do crustáceo por marisqueiros de fora”, que
ocorreu nestes idos. Muitos indagavam o porquê de o Ibama não ter agido para coibir a
“invasão” desses marisqueiros. Era-lhes dito que, com a criação da UC, haveria a
possibilidade de um controle efetivo para a coleta de mariscos pelos catadores de fora, mas
apenas se a própria comunidade dispusesse dos meios para não outorgar uma norma de
conduta, como também no auxílio da fiscalização. Reiteradamente, este debate foi utilizado
para se referir ao “empoderamento” que a comunidade ribeirinha poderia sofrer com a criação
da Resex e, nos sítios que visitamos uma esmagadora maioria aderia à criação da UC, o
obstante a informação, por vezes mal recebida, da questão da terra.
Aqui cabe uma outra reflexão. As famílias são geralmente bastante numerosas e o
são poucos os relatos de mortalidade infantil. Muitos dos filhos dos chefes de família
desterram em direção a centros urbanos em busca de um trabalho diferente do da lida na roça
e na mariscagem. Também aqui, vemos o traço da valorização dos empregos citadinos em
oposição às lides do campo. A roça é o lugar do “fraco”, daquele que se encontra “ilhado” e
em muitos momentos os trabalhos de Márcio Ranauro e Rosângela Nicolau
93
atentam para
esta percepção dos nativos. Esses “filhos da roça” terminam por se estabelecer nos centros
urbanos de Caravelas, Nova Viçosa e municípios vizinhos, não lhes importando mais o valor
de uso da terra, mas seu valor de troca. Para eles, então, a criação da UC lhes traria a
impossibilidade de alienar a terra quando da morte de seus pais. Seu vínculo simbólico com o
manguezal se perdeu neste tênue liame do mundo rural e urbano. Com o estímulo
inconseqüente à ocupação do Bairro Novo (região de manguezais e apicuns), em Caravelas,
alguns anos, muitas famílias construíram sua casa na cidade, neste bairro sem esgotamento
sanitário e carente de outros serviços e equipamentos urbanos.
O Bairro Novo parece um gueto dos degredados da roça, que mantém ainda um forte
vínculo com seus sítios de origem, e os moradores passam muitos dias da semana na cata dos
mariscos ou no roçado. Essa relação, que carece de uma análise mais profunda, foi
negligenciada pelo movimento. Ela é fundamental para entendermos como a reação dos
opositores da Resex teve relativo sucesso entre os moradores deste bairro, refletindo-se na
área rural em disputa. Com o foco nos sítios ribeirinhos, o movimento ambientalista perdeu
uma importante oportunidade em envidar maior esforço na mobilização do Bairro Novo, que
certamente proporcionaria resultados mais profícuos na aceitação da idéia de criação da UC.
93
NICOLAU,Op.cit.
94
Apesar de se ter levantado um número considerável de sitiantes manifestadamente em apoio à
UC, a hesitação por parte destes ainda permanece. A envergadura e os resultados esperados
no trabalho de campo demandam um tempo muito maior do que se dispunha, face ao contexto
geral, principalmente com a possibilidade concreta da implantação dos viveiros de camarão da
Coopex.
Os agentes de ambos os lados concordam que os dois processos (UC e carcinicultura)
se sobrepunham. Contudo, os “ambientalistas” crêem que a proposta de Unidade de
Conservação é anterior e havia sido discutida em vários momentos com a comunidade
ribeirinha. Foi principalmente o Projeto Manguezal que inicia este debate, mas somente com a
revelação do “perigo” concreto de instalação dos viveiros de camarão é que houve uma
articulação efetiva dos órgãos ambientalistas locais e regionais para a mobilização
comunitária. De fato, assim como as ações da política local podem ser vistas pela comunidade
apenas quando os interesses daquela se manifestam, isto é, somente na época da política”
(campanha eleitoral) é que os “políticos aparecem”, assim também uma parte da comunidade
interpreta as ações dos “ambientalistas”. O exemplo que tem se tornado clássico nos
depoimentos é o do processo de licenciamento do Terminal de Barcaças “Luciano Villas
Boas” da Aracruz Celulose em Ponta de Areia. Na época, alguns dos agentes do movimento
ambientalista tentavam envolver a comunidade alertando para os perigos ambientais que a
construção do porto poderia produzir no município. Alguns membros da comunidade apóiam
então os “ambientalistas”. Pouco tempo depois o Centro de Visitantes do Parnam Abrolhos é
construído, o Projeto Manguezal é inaugurado e o IBJ garante o monitoramento das jubartes
com recursos oriundos da compensação ambiental. Um comerciante local chamou de
“corrupção formal” a distribuição de recursos da empresa para as instituições. Muitos dos
munícipes duvidam da credibilidade das instituições ambientalistas, são céticos em relação à
oposição a carcinicultura porque esta oposição é capitaneada pelas instituições ambientalistas
locais. Estas pessoas temem ser envolvidas como “massa de manobra” para que as instituições
captem recursos de compensação. A lógica, segundo estas pessoas é: quanto mais a
comunidade se opuser, maior é o valor das compensações ambientais a serem distribuídas
para as instituições, por isso o esforço de mobilização daquela monta; por isso o momento
específico.
95
Figura 07: Sr. Antônio e Sr. João, moradores do Sítio Riacho Mangueira, Caribe de Cima.
No sítio funciona a escola Odete Maria, onde as crianças desembarcam sob os caprichos da
maré, pois não há um deck, ou “ponte” edificada para recebê-las. Foto: Omar Nicolau.
Em meados de dezembro de 2005, o movimento ambientalista de Caravelas havia
concluído que realizaria três Consultas Públicas. Apesar de ser atribuição do Ibama, para que
se respeitassem as particularidades locais, o Ibama divide com os parceiros a combinação para
a realização das consultas. Assim, foi sugestão do próprio movimento que fossem realizados
os três encontros, porém a decisão final foi do órgão federal
Como foi relatado, houve uma certa imposição por parte do Ibama na escolha da
categoria de UC. alguns anos se vinha falando de RDS Reserva de Desenvolvimento
Sustentável. As diferenças entre Resex e RDS não foram muito bem entendidas pelos
diferentes agentes.
No dia 18 de janeiro estivemos com Sr. Adilson (Ié) e ele nos garantiu que não iria
“combinar de fazer a reserva”. Sua família está confusa e mal informada sobre a questão da
terra. Disse-nos ele que o “governo” irá tomar suas terras” e que se é para tomá-las que as
tome, sem a necessidade de sua aquiescência para a criação da Reserva.
A preparação das CPs de modo geral contou com todos os agentes envolvidos, desde o
planejamento do evento, passando pela segurança, coleta de assinaturas, abastecimento de
96
óleo para os proprietários de embarcações que levariam famílias e vizinhos, disponibilidade
de duas grandes embarcações (Benedito do Ibama e Tomara do IBJ). O planejamento, a
organização, enfim toda a produção para o evento das CPs, contou com a participação de
todos os parceiros. O recurso para a realização das CPs viria do próprio Ibama, por intermédio
do CNPT.
Informaram-nos que a prefeitura ficou ciente da CP na quarta-feira anterior ao evento
(domingo) e pôs-se a mobilizar a comunidade. Ao que parece, segundo nos contaram, um
prefeito de outro município no interior do Extremo Sul, do grupo político do prefeito de
Caravelas, informou-lhe da Consulta. O prefeito de Caravelas, até aquele momento, sequer
sabia do processo de criação da UC, nem da realização da CP. A divulgação do evento foi
feita, como manda a lei, em nota em um jornal de grande circulação. Não há nenhum jornal de
grande circulação no Extremo Sul da Bahia, ou pelo menos assim avaliaram os servidores do
Ibama e o movimento ambientalista. De tal sorte, a notícia foi divulgada no jornal “A Tarde”,
de Salvador. Um dos “empreendedores” reivindicou esta divulgação dizendo que a CP estava
eivada de vícios”, por não ter sido divulgada com o alcance devido e, ademais, o endereço
constante na nota suscitava dúvidas, pois informava que haveria uma Consulta Pública para a
criação de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentado, no Rio do Macaco, sem
especificar, com precisão o local exato onde ocorreria o tal evento.
Às sombras das jaqueiras e ás margens do rio do Macaco, no Sítio Olho D’água, a CP1
teve um resultado inesperado. Os ribeirinhos, com exceção de uns poucos que se dispuseram a
falar ao microfone, não se manifestaram publicamente durante a CP. Por outro lado muitos
políticos locais e lideranças ligadas à prefeitura fizeram uso do microfone, não para esclarecer
dúvidas, mas para criticar a forma com que a CP fora divulgada. Além disso, levaram cartazes
e faixas com dizeres como: “Você confia no Ibama local?ou “Na Resex você não poderá
criar bois”, entre outras frases de impacto. Apesar de terem sido cumpridos os procedimentos
para a realização do evento, os ribeirinhos não se mostraram muito satisfeitos com o
comportamento de seus representantes políticos e, ao final, alguns estavam tão desinformados
como quando chegaram para a CP.
Ainda assim, o movimento ambientalista avaliou como positiva a experiência da CP,
pois muitos ribeirinhos vieram de lugares distantes e houve uma grande concentração da
comunidade para debater as questões relativas à UC, por mais que este debate tenha se dado
de forma tímida.
97
Um fato inesperado ocorre logo após a consulta, envolvendo um indivíduo contratado
para filmar a CP1. Dizendo sentir-se pressionado pelos servidores do Ibama e, num rompante
irrefletido, esse indivíduo destruiu as fitas gravadas, levando-as em pedaços à casa de dois
servidores do Ibama. Segundo consta, por ser amigo íntimo do Secretario de Turismo e Meio
Ambiente, preposto da Coopex e opositor da Resex
94
. O indivíduo contratado para filmar a
CP foi convidado à casa do referido secretário para tentar fazer uma cópia da fitas, mas algo
ocorreu nesse ínterim que o fez destruir as fitas gravadas. A prefeitura utiliza este fato para,
mais uma vez, difamar o Ibama. O fato é grave, mal explicado e es sendo avaliado por
autoridade policial federal
95
.
Figura 8: Consulta Pública 1, Sítio Olho D'Água. 22/01/2006 Foto: Guilherme Dutra
94
Tal secretário, biólogo de formação, havia trabalhado como Guarda-parque no Parnam Abrolhos e foi indicado
por um servidor do Ibama com o apoio de algumas instituições ambientalistas para assumir o cargo de secretário
de turismo e meio ambiente. Este indivíduo, inicialmente opositor ao empreendimento da carcinicultura,
sofrendo pressão do prefeito, passa a apoiar a COOPEX e opor-se à criação da UC. Vem atuando de forma
efetiva desacreditando o movimento e atacando individualmente alguns militantes. Uma carta dirigida á
presidência de uma ONG local pedindo a destituição de um funcionário, membro do Comdema, ilustra a atuação
do secretário municipal.
95
Esta é apensa uma versão dos fatos, que pareceu ser a mais próxima da realidade pela fidedignidade da fonte.
98
2) Consulta Pública 2
Barra Velha, município de Nova Viçosa, onde uma considerável concentração de
casas, fica um tanto distante de Caravelas, aproximadamente 2 horas e meia de barco.
Optamos então por acampar no sítio Sapateiro, do Sr. Tático, cuja família nos recebeu com
uma hospitalidade surpreendente. Permanecemos praticamente duas semanas na companhia
do povo da Barra Velha e pudemos viver mais intensamente o cotidiano dos ribeirinhos
daquele lugar. Ao contrário do esperado, não percebemos nenhuma movimentação dos
“opositores” e o resultado do trabalho foi inteiramente diferente do que testemunhamos em
Caravelas. Ali, onde há uma forte pressão da especulação imobiliária impulsionada pela
proximidade da sede do município de Nova Viçosa e pela beleza cênica do lugar, a questão da
terra foi tratada com muito mais cuidado que em Caravelas. Ainda assim, a adesão à idéia da
UC foi quase que unânime, pelo fato de os ribeirinhos terem entendido que os seus interesses
estariam na pauta da futura gestão da Resex, e não sofreram nenhuma contra-informação por
parte da prefeitura (de Caravelas) e carcinicultores. Também, diferentemente de Caravelas,
onde os sítios encontram-se esparsos, distribuídos alhures nas margens dos rios, a relativa
proximidade das casas em Barra Velha, nos fez visitar as pessoas quase que exclusivamente a
pé.
O fato de estarmos in loco, permanentemente vivendo o dia-a-dia dos moradores, nos
conferiu certa credibilidade, principalmente por estarmos acampados na casa do Sr. Tatico,
pessoa bastante respeitada entre os moradores.
Nas duas semanas em que tivemos este intenso contato com os ribeirinhos de Barra
Velha, pudemos perceber o quanto esta comunidade difere dos ribeirinhos de Caravelas. Pela
proximidade com o mar, sua atividade mais comum é a pesca. A mariscagem é um
complemento à economia doméstica e é realizada mais freqüentemente pelas mulheres e
crianças. Por conta disso, houve uma reivindicação por parte dos pescadores em ampliar o
polígono da reserva para algumas milhas mar adentro, com o objetivo de inibir a presença de
embarcações de outros lugares.
99
Figura 9: Menino catando sururu no mangue do Rio da Barra Velha
Foto: Guilherme Dutra
A comunidade pescadora, de modo geral, não possui barcos a motor e a pesca é
realizada bem perto da praia, com bateiras a remo. Embarcações a motor, principalmente de
Alcobaça (município vizinho), empregam enormes redes na área costeira, muitas vezes
rebocando as tainheiras e as pequenas redes que os pescadores artesanais dispõem. Muitos
perderam seu equipamento e, numa comunidade tradicional, onde o dinheiro pouco circula,
perder a rede (equipamento caro) significa condenar uma família inteira à uma situação de
penúria.
Uma questão diferente em relação ao processo em Caravelas é que em Nova Viçosa
existe o apoio da Colônia de Pescadores Z-29 à Resex e, de certa maneira, da prefeitura local,
provando que a oposição da prefeitura de Caravelas é muito menos ideológica” no tocante
aos impactos da Resex do que relacionada à defesa dos interesses do setor produtivo,
despreocupada em mediar os conflitos provenientes da antinomia comunidade-
empreendimentos sócio-ambientais potencialmente degradantes.
100
Figura 10: Selmo Serafim (a dir.), então presidente da Ampac com um pescador
local, Barra Velha, N.V. Foto: Omar Nicolau
A CP2 transcorreu de forma diferente do que presenciamos na CP1. Nela, a
comunidade de Nova Viçosa pôde manifestar-se sem o melindre que a comunidade
caravelense sofreu por conta da presença dos políticos locais, na perversa prática de
perseguição àqueles que se opõe a seus interesses particulares. Apesar da tentativa de
desestabilizar esse clima de debate, por parte da Prefeitura Municipal de Caravelas, as
questões levantadas na CP2 diziam respeito à matéria da criação e gestão da UC, e não se
ativeram a ataques ao Ibama e ao movimento ambientalista, como ocorreu na CP1.
Apesar do calor, a comunidade permaneceu até o final da reunião. Foi lido pelo
presidente da Colônia Z-29 um manifesto assinado por um considerável número de
pescadores de Nova Viçosa, reivindicando a criação da Resex e pedindo a inclusão de uma
faixa de 2 milhas náuticas, da Boca do Tomba até a o paralelo marítimo da fronteira do
município Mucuri, área onde os pescadores costumam trabalhar.
A prefeitura de Caravelas disponibilizou embarcações para levar seus apoiadores e
tentou, em vão, proceder da mesma forma que na CP1. Sua reação, todavia, o alcançou a
comunidade de Nova Viçosa.
101
Figura 11: Consulta Pública 2, Sítio Rosedá, Barra Velha, Nova Viçosa.
Foto: Rodrigo L. Moura
O trabalho de mobilização não pode ser tido por concluído, mas somente seus
primeiros passos foram dados. O movimento retoma o processo de mobilização, pois muitas
questões permanecem sem definição, e a desinformação das comunidades beneficiárias da
futura Resex Cassurubá ainda é muito grande. Ademais, se se pretende um salto qualitativo
nos âmbitos social, ambiental, econômico e político, deve-se planejar ações de curto, médio e
longo prazo, como vimos em alguns depoimentos.
Houve uma ausência no esforço de mobilização e esta se deveu em parte pelo não
cumprimento de uma agenda comum por parte do Projeto Manguezal que, disponibilizou seus
estagiários, por exemplo, para uma desastrosa estratégia de trabalho de campo no Bairro
Novo, que teve uma recepção violenta da população. Acreditamos que o movimento deve
pactuar e compartilhar seus métodos e saberes para que possa se estabelecer aqui uma
credibilidade maior da que vem sendo entendida por parte de muitos cidadãos. Ainda, o
trabalho de mobilização continuou sendo feito pela equipe do Projeto Manguezal. Isso gerou
uma série de complicações para o grupo, pois as iniciativas daquela instituição o foram
informadas ou debatidas com os parceiros. Uma reunião de avaliação do processo, em meados
de março de 2006, foi deliberadamente boicotada pela equipe do Projeto Manguezal, pois este
alegou que não participaria de uma reunião que não fosse na base do Projeto, já que os
esforços para a criação da Resex partiram daquela instituição e entendia que todas as
deliberações teriam que ser feitas naquela casa.
102
Também houve um procedimento para produção e distribuição de panfletos que
versavam sobre as inverdades que a prefeitura vinha divulgando por intermédio de seus
prepostos. A CI-Brasil preparou um boneco de panfleto para ser distribuído nas comunidades
e mandou por e-mail para discussão (recebendo fortes criticas pela Internet sobre o mesmo), o
Projeto Manguezal produziu e distribuiu panfletos sem consultar os demais agentes. Este
estratagema inclusive fracassou. A equipe de estagiários do Projeto Manguezal visitou o
Bairro Novo (local onde um número grande de opositores á idéia da Resex) e foi recebida
com bastante reserva, tendo inclusive alguns estagiários sido ameaçados. Em uma reunião
posterior, o coordenador do Projeto Manguezal disse que o fato era esperado e que havia
posto os estagiários em risco, pois tal procedimento faz parte do processo de aprendizado
daqueles.
3) A campanha de difamação contra o Ibama.
Desde o início da administração do atual prefeito de Caravelas, o movimento
ambientalista e o Ibama, em particular, vêm sofrendo com a forma autoritária com que a
prefeitura de Caravelas trata o trabalho realizado dos organismos ambientais entre a
comunidade.
Em julho de 2005 se inicia uma polêmica em torno do Projeto de Ordenamento da
Orla Marítima no item iluminação da praia da Barra de Caravelas. O Ibama e a prefeitura
pareciam medir forças, tentando cada um a seu modo impor sua vontade. A comunidade de
pescadores da Barra, sofrendo com o roubo de redes em suas embarcações apoiava a
iluminação na orla, proposta pela prefeitura. No entanto, a administração municipal utilizou a
contenda como instrumento para responsabilizar o Ibama por impedir uma obra tão cara à
comunidade barrense. Na verdade, o Ibama, com a justificativa de “cumprir a lei”, obstou a
obra, obrigando a prefeitura a dar conta das exigências legais. De outro lado, a prefeitura se
utilizou da desinformação do povo para arrecadar capital político contra os “ambientalistas”.
À revelia das imposições legais, a prefeitura instalou os postes e ela mesma
96
ligou a energia,
de certa forma roubando” o produto da Coelba. Assim, se o Ibama interviesse na questão,
iria se colocar contra a comunidade. A prefeitura foi notificada e multada, mas ainda hoje não
96
Esta questão ainda pende de algumas certezas. A empresa subsidiária da Coelba (empresa de energia do
Estado) nega que tenha ligado; também a prefeitura o nega alegando que foram os próprios moradores que
ligaram a energia. Alguns moradores garantem que foi um técnico da prefeitura que o fez.Preferimos esta última
versão, pois o contexto que se insere tal conflito, nos faz acreditar, por bom senso, que a própria prefeitura tenha
acionado a energia com a intenção de medir forças com o Ibama..
103
tomou atitude alguma, esperando que o Ibama “desligue a luz” para que então ela possa
responsabilizar o órgão federal e catalizar a opinião da comunidade contra ele.
Outro fato importante que ilustra os métodos da administração diz respeito à
intervenção da prefeitura de Caravelas no COMDEMA (Conselho Municipal de Meio
Ambiente). Em 14 de setembro de 2005, a Resolução Normativa COMDEMA a n°12/2004
regulamentava as atividades de carcinicultura no município de Caravelas, dispondo sobre os
limites de Áreas de Preservação Permanente, que traria restrições ao empreendimento.
“Sr. Prefeito de Caravelas, comparecendo pela primeira vez em uma reunião do
Comdema, presidiu a reunião ordinária do dia 11 de outubro de 2005 que acabou
alterando a Resolução Normativa COMDEMA n°12/2004, dando viabilidade legal ao
empreendimento da Coopex. No entanto, antes de colocar a votação da alteração da
resolução em pauta, o Sr. Prefeito municipal destituiu duas instituições locais da
composição do Conselho e instituiu uma associação exonerada em 2003”.
97
Uma campanha de difamação é inaugurada nesse período diretamente contra o Ibama,
na pessoa de um analista ambiental, e indiretamente contra todo o movimento ambientalista.
A coalizão prefeitura-Coopex intenta, inclusive divulgando informações por vezes distorcidas,
atravancar o processo de criação da UC.
Figura 12: Faixa trazida pelos prepostos da prefeitura na CP2.
Foto: Rodrigo L. Moura
A fotografia acima mostra um dos principais argumentos que foram usados ao longo
do processo de “convencimento”. uma confusão gerada por uma hermenêutica particular
da coalizão Coopex-prefeitura no que tange ao SNUC, acerca das Unidades de Conservação
de Uso Sustentado. Com a decretação da UC, as terras do polígono da Unidade o
imediatamente expropriadas em prol da gestão da Unidade que se pretende democrática. No
97
Parte de documentação ainda em processo de finalização.
104
caso do complexo estuarino de Nova Viçosa e Caravelas, as terras onde a maior parte dos
sitiantes vivem, são terrenos de marinha, isto é, já são de jurisdição e responsabilidade da
União. Contudo, utilizando-se do argumento no qual aquelas famílias vivem ali há gerações e
portanto, não de direito, mas de fato, são “donas das terras”, os “empreendedores” confundem
as pessoas. Não é difícil que o discurso alcance uma explosão de espetáculo. É como se os
“empreendedores” estivessem ali para proteger aquelas famílias das imposições da legislação,
dos mecanismos e dos organismos ambientais de Estado, capazes de expropriar aquela
comunidade já impotente e desprovida.
Por outro lado, o Ibama acredita que na verdade a constituição de uma Unidade de
Conservação de Uso Sustentado, é um mecanismo e um instrumento de proteção daquelas
comunidades. Em ambos os casos a aceitação do termo fraco”, uma categoria nativa tão
copiosamente auto-referida por e entre os ribeirinhos, conforma uma crença que aquela
comunidade, desprovida dos meios políticos, econômicos e culturais para se impor ao
conjunto da sociedade, necessita de tutela. De fato as categorias de Unidade de Conservação
de Uso Sustentado têm sido praticadas por todo o Brasil tendo como beneficiários as
comunidades de pescadores artesanais, remanescentes de quilombos, comunidades
extrativistas de florestas e indígenas.
Foi organizado também um Ato de repúdio” contra o Ibama. Logo após a CP1, a
prefeitura colocou um carro de som nas ruas do município, chamando a comunidade para
participar de um Ato a se realizar no sábado seguinte à data da CP1, estrategicamente no dia
de feira, quando muitos ribeirinhos vêm para a cidade comercializar seus produtos. No spot
veiculado, “a comunidade ribeirinha” conclamava os cidadãos a participar. No entanto,
somente cerca de 20 pessoas assistiram o evento, que dispunha de um trio elétrico, conforme
documentação fotográfica do referido “Ato.
105
Figura 13: Carro de som Foto: Parnam Abrolhos, 27 de Janeiro, 2006
A campanha contra o Ibama e que atinge os “ambientalistas” de forma geral, tenta
desacreditar as ações destes frente à população. Em setembro de 2005 participei
98
de uma
reunião na Câmara Municipal de Caravelas cuja pauta seria justamente a apresentação do
projeto da Coopex para alguns cidadãos. A reunião, apesar de fechada para o público, foi
divulgada apenas para alguns “formadores de opinião” que o grupo de “empreendedores”
acreditava que poderia simpatizar com a fazenda de camarão. De fato, muitos dos que ali se
encontravam, ao invés de questionar a atividade em si, faziam uso do microfone para criticar
as ONGs e principalmente o Ibama. O representante da Loja Maçônica, na ocasião fez um dos
discursos mais eloqüentes apoiando de antemão a carcinicultura e censurando de forma
agressiva as atividades das ONGs e Ibama. Foi bastante aplaudido pela plenária. Na reunião
havia principalmente comerciantes e representantes das instituições que os “empreendedores”
viram como aliados, como é o caso do Rotary Club, Loja Maçônica, entre comerciantes e
vereadores.
Outras reuniões com a mesma pauta e para o mesmo fim foram realizadas em diversos
locais, principalmente nas escolas. Em uma dessas, no Polivalente
99
, uma professora nos
confidenciou que os professores foram impedidos de fazer qualquer questionamento sobre o
emprendimento e a carcinicultura de modo geral, no momento da apresentação, sob o risco de
perderem seus empregos (para os contratados) e outras penalidades para os estatutários. As
ameaças que os professores sofreram na ocasião não foram as únicas perpetradas pelos
98
Meu pai, um dos apoiadores do empreendimento, havia sido convidado e eu fui com ele. Viram-me também
como aliado naquela ocasião, o que mudou a partir das informações que ia recebendo e a partir do estudo do Eia-
Rima do empreendimento.
99
Principal escola de ensino Médio, com cerca de 1400 alunos. Apesar de ser uma instituição do Estado da
Bahia, a prefeitura tem uma ingerência curiosa na escola. Como exemplo é o caso de uma diretora que foi
transferida por ter sido contra o candidato vencedor, na ocasião da campanha eleitoral do município.
106
“empreendedores”, um sem número de “avisos” foram dados alhures para vários cidadãos que
se interpunham à proposta da Coopex.
Os agentes de ambos os lados polarizados em torno das questões ambientais em
Caravelas começam a se construir na oposição. Arrecadar apoio da comunidade nos seus
diferentes segmentos e vincular mais efetivamente aqueles que se agregavam, tornou-se
uma tarefa diária para ambos os grupos. Cada qual escolhia sua estratégia a partir do que o
outro “lado” apresentava. Este dinâmica desafio-resposta ainda é a marca da contenda.
Ultimamente, os “empreendedores” já se acreditam vencedores e sua intervenção entre a
comunidade parece ter arrefecido.
Ainda assim, os “ambientalistas” ainda visitam os ribeirinhos e tentam uma articulação
das lideranças locais com a Resex do Corumbau. Alguns caravelenses participaram do
Conselho Deliberativo da Resex do Corumbau, pois segundo alguns agentes, é mais fácil para
que as pessoas entendam o que é uma Resex a partir de seu próprio testemunho.
Por força de questões pessoais e por causa de uma avaliação do movimento que era
preciso que o trabalho de mobilização fosse feito por “nativos”, não pude retornar à região
ribeirinha nesta segunda etapa do esforço de mobilização. Participo cada vez com menos
freqüência também das reuniões do grupo de mobilização pró-Resex, por outro lado,
acompanho pela Internet os desdobramentos e estratégias do grupo e, na medida do possível,
contribuo para a continuidade do processo.
Nos últimos meses o pesquisador tem estado mais presente que o militante e todas os
encaminhamentos que os ambientalistas” e os “empreendedores” dão, cada um a seu lado,
são, agora, mas não indefinidamente, objeto de reflexão acadêmica.
107
(IN)CONCLUSÕES
Até o momento, a contenda ainda não foi conclda. Toda a documentação referente à
criação da Resex foi enviada para apreciação. Alguns agentes acreditam que, por vivermos
um ano eleitoral, o processo pode emperrar em função dos desdobramentos políticos da
questão. Outros acreditam que, ao contrário, por ser o estado da Bahia uma forte oposição ao
governo federal, a Resex sai antes que as eleições se realizem. Em um ou outro caso, parece
que tanto a criação da Resex, quanto o empreendimento da Coopex estão sujeitos a injunções
que os agentes locais não têm mais controle.
Com a decretação da Zona de Amortecimento do Parnam Abrolhos, a questão
ambiental de Caravelas extrapola a esfera local e tanto um grupo quanto o outro podem
esperar e confiar nos seus representantes nos âmbitos estadual e federal para que se resolva
finalmente o conflito. Diversas matérias na mídia impressa têm sido divulgadas
100
. A
visibilidade à questão que tais reportagens têm conferido, forçou uma articulação mais
abrangente em torno da questão. Criou-se, nesses idos, o “SOS Abrolhos” uma rede
interinstitucional de comunicação e articulação em torno dos efeitos gerados pela decretação
da ZA.
101
100
Ver Anexo L
101
Com a decretação da ZA, cujos estudos modelaram principalmente a atividade de extração de óleo e gás, o
empreendimento da carcinicultura teria que, necessariamente, ser submetido ao Ibama que, acredita-se, negaria a
licença.
108
Na figura acima, em laranja, vemos a área da Zona de Amortecimento que gerou tanta
polêmica. A área de aproximadamente 94 mil m
2
foi desenhada a partir de estudos que
simulavam derramamento de óleo próximo ao banco dos Abrolhos, levando em conta
movimento de marés, direção de vento e outras variáveis. No mapa também estão desenhadas
as outras UCs do entorno, inclusive a proposta da Resex do Cassurubá.
Figura 14
: Área da Zona de amortecimento do Parque
M
arinho dos Abrolhos. Imagem
gentilmente cedida pela CI-Brasil
109
1) Duas com/oposições: os “ambientalistas” e “empreendedores
Na situação dada, qual seja o conflito finalmente deflagrado, aparece uma
configuração especial. Dois grupos surgem de um magma; surge uma com/oposição. Um
crescendo que se revela a partir dos lances de cada um dos lados, que, ao mesmo tempo que
se opõem em conflito, estabelecem uma composição com outros agentes antes não
identificados. Edificam-se nesta com/oposição reconstruindo seu mundo e valores e
concepções, significações, numa situação dada (eventual) de contradição. A partir dos lances
nesse tabuleiro imaginado, os jogadores, corpos personificados e individualizados em cada
um dos pólos na contenda, se agigantam conforme decorre o tempo do jogo. Neste jogo, as
regras o estão acordadas, nem por tradição, nem por explicitação, nem por violência do
dominador em face do dominado. A medição das forças é o método; o alvo é a “verdade”; o
intermédio é o convencimento do “povo” que, na maior parte das vezes, apenas assiste. Esse
“povo” é alvo e, ao mesmo tempo, campo de batalha. É o locus por excelência, não “pelo
povo”, nem “para o povo”, nem “com o povo”. O “povo” pode ser dividido em: aqueles cuja
UC afeta diretamente, aqueles a quem tanto um quanto outro lado percebem como
prioritários; o povo que, com alguma iniciativa se incorpora em um lado ou outro, defendendo
os argumentos, proporcionando a possibilidade de “representação comunitária” a cada um dos
pólos. Também os que assistem, torcendo por algum lado ou indiferentes e, finalmente,
aqueles que acreditam num benefício futuro, que a sua inserção num ou noutro grupo pode
lhes conferir. De toda sorte, o caldo borbulhante do conflito deixa marcas indeléveis das
queimaduras que produz. Meu pai, por exemplo, começa a se manifestar a favor do
empreendimento de modo público, divulgando algumas cartas que são fotocopiadas e
distribuídas na cidade. Esses documentos, além de serem elogiados pelo grupo de
“empreendedores”
102
, provocaram um certo mal-estar no grupo “ambientalista” por tratar-se
de meu pai. Outros agentes que também têm familiares e amigos na cidade começam a sentir
os problemas advindos do engajamento de um lado e outro. O próprio secretário de turismo e
meio ambiente sofreu também com o afastamento dos amigos “ambientalistas” assim que se
filiou aos “empreendedores”.
O conflito ainda não está no fim e alguns agentes tanto de um grupo quanto de outro
acreditam que uma saída conjunta pode ser possível. Por motivos óbvios, são os
102
O Oficial de Gabinete do Senador Motta, um dos cooperados da Coopex e signatário do Projeto de Decreto
Legislativo de seis senadores capixabas e baianos entre eles Antônio Carlos Magalhães, comunica-se com meu
pai elogiando e agradecendo o apoio à carcinicultura.
110
“empreendedores” que crêem com mais veemência que pode haver uma conciliação entre a
conservação dos ecossistemas locais e os empreendimentos econômicos, pois o modelo de
conservação a que se referem é aquele que inclui o modo de produção capitalista, que
inúmeros autores já concluíram não haver conciliação.
O desafio, que parece ser o norte de todos os agentes envolvidos na região e em
qualquer lugar, diz respeito a já tão propalada sentença, que estabelece a adequação do setor
produtivo com a utilização racional e não-predatória dos recursos naturais e das populações
que deles dependem. No estádio do desenvolvimento do capitalismo hoje, essa verdade o
copiosamente manifestada e debatida tem ocupado um lugar secundário. Com a busca cega e
desenfreada pelo lucro, mola mestra da economia contemporânea ocidental, os trabalhadores e
a natureza vão permanecem em segundo plano. Como vimos no capítulo anterior, Henrique
Leff já demonstrou a impossibilidade dessa adequação, por não se ter a mão elementos
técnicos suficientes para valorar os custos ambientais.
103
No caso da Resex Cassurubá, este paradoxo se manifesta no que foi relatado, e nos
parece que as organizações “ambientalistas” devem não somente envolver a comunidade nas
questões relativas à UC, mas procurar ampliar o movimento nos níveis, locais, regionais e
globais, inserindo questões de fundo, do próprio funcionamento do sistema de produção de
riquezas em vigor, e de sua superação. No entanto, esta é uma visão particular, que talvez não
seja compartilhada com todos os agentes.
2) A publicação da Zona de Amortecimento do Parque Marinho dos
Abrolhos: a questão no âmbito regional e nacional
Além da campanha de difamação contra o Ibama e os “ambientalistas” de modo geral,
feita localmente, a questão toma uma ambiência regional e nacional. Diversas matérias o
veiculadas em jornais de circulação do Extremo Sul baiano e nos portais eletrônicos de
comunicação do governo da Bahia e os de tendência ambientalista. Além disso, reportagens
sobre a questão são divulgadas na revista Carta Capital e uma outra na Folha de São Paulo
104
Esta última versa sobre a relação de interesses do Senador João Baptista Motta (PSDB-ES)
em relação ao Projeto de Decreto Legislativo do qual é signatário com mais outros 5
103
Há que se discutir antes de qualquer coisa de qual Natureza, culturalmente falando, estamos nos referindo e
de qual economia nos propomos.
104
Ver Anexos J e K respectivamente.
111
senadores capixabas e baianos. A matéria também denuncia que familiares de Motta também
são sócios de cotas da Coopex.
A política do estado da Bahia está sob a batuta do PFL, pelo menos três mandatos.
O partido também tem feito senadores nos últimos anos e podemos intuir que uma espécie de
coronelismo
105
ainda se mantém no Estado. O prefeito de Caravelas, apesar de filiado ao PL
que é coligado na esfera federal ao Governo Lula, tem uma interface muito maior com o
governo da Bahia do que com o governo do PT. Este dado põe em certa desvantagem os
ambientalistas, já que o mandonismo baiano persevera a despeito das coalizações locais,
regionais e nacionais e, apesar de haver uma política pública de criação de UCs federais do
MMA, o processo se retrai com as intervenções do grupo político carlista.
Portanto o que atravanca o processo de criação da Resex não é sua oposição aos
insteresses de empresários da carcinicultura, mas também se configura um ponto de oposição
do grupo político de ACM ao governo federal. Talvez este efeito de a campanha em prol da
Resex ter se ampliado com a envergadura que descrevemos, não tivesse sido previsto pelos
“ambientalistas”, que confiaram na simpatia da ministra Marina Silva em relação á questão.
106
No início do processo, os “ambientalistas” lutavam pela federalização” do
licenciamento da carcinicultura, i.e., passar a competência para o órgão federal, retirando a
responsabilidade do CRA, que como diversos agentes expuseram, está de acordo ou até
mesmo fomenta a carcinicultura. Curiosamente o setor de licenciamento do Ibama negou-se a
atender a reivindicação, confirmando a responsabilidade do licenciamento para o órgão
ambiental do estado na questão. O próprio Ministério Público entendeu que a licença deveria
migrar para a esfera federal
107
. Um dos argumentos usados pelos agentes era que, se o
empreendimento afeta necessariamente o manguezal que por sua vez se encontra numa
relação ecológica com o banco coralíneo do Parque Nacional de Abrolhos, nada mais
indicativo que o próprio órgão federal dispusesse de elementos técnicos para avaliar o quanto
tal empreendimento afeta o Parnam Abrolhos. Ainda mais curioso é que o instrumento que
por ora “impede” a carcinicultura foi decretado pelo próprio órgão que negou a
responsabilidade pelo licenciamento da atividade. Obviamente que uma coisa não tem a ver
com a outra; somente para os agentes locais, principalmente para os “empreendedores” a tal
105
Para este assunto, ver o clássico Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no
Brasil de Victor Nunes Leal.
106
Em maio de 2006 num fórum realizado pela Rede Mata Atlântica - RMA, três lideranças locais tiveram em
Ilhéus uma audiência com a Ministra do Meio Ambiente, salientando a importância da criação da Resex para a
comunidade extrativista do litoral do Extremo Sul da Bahia.
107
Ver Anexo F
112
Zona de Amortecimento é tão somente um impeditivo para a carcinicultura e para outros
empreendimentos ambientalmente degradantes.
De fato pode-se chegar à conclusão que não se trata apenas da criação de uma Reserva
Extrativista. Pode-se pensar que este grupo que quer uma UC de Uso Sustentado, apenas a
quer na medida em que esta se interponha às fazendas de camarão. Uma Resex parece ser
muito mais do que simplesmente interromper processos degradantes, conforme a história
deste tipo especial de UC que tem sua origem na luta dos seringueiros do Acre. O grupo de
“ambientalistas” não lutou apenas para criá-la, mas com a decretação da ZA, parece que o
movimento lançou mão de todos os expedientes à mão para negar o empreendimento
carcinicultor e não para oferecer uma alternativa de desenvolvimento para a comunidade
extrativista de Caravelas e Nova Viçosa. Por outro lado se a ZA não tivesse sido publicada,
certamente o empreendimento da Coopex teria todas as licenças legais para o seu
funcionamento.
A dissertação tratou desse conflito. Como foi exposto, esta é apenas uma versão, um
modo de se olhar para as questões ambientais que se apresentaram na cidade de Caravelas nos
últimos anos. Não uma definição da contenda e não se pode dizer o que o futuro reserva a
vitória tanto para um grupo quanto para o outro, todavia o que está no centro da questão é o
modelo de desenvolvimento defendido por ambas as partes. Os dois grupos em disputa detêm,
cada um, uma verdade” acerca do que é mais vantajoso para o povo caravelense,
principalmente para os marisqueiros e pescadores. Contudo os beneficiários tanto de um
quanto de outro projeto ainda têm dificuldade de exprimir o que eles realmente querem de
suas vidas, de seu futuro. Sem contar que também seria impossível uma visão unívoca e
homogênea dos ribeirinhos e pescadores. De fato, parece ser assim que os “ambientalistas” e
os “empreendedores” enxergam essa população de modo geral. Os discursos tanto de um
como de outro lado parecem pretender que esta população se interponha como sujeito de sua
própria história, mas também ambos os lados estão em uma disputa e uma oposição que,
talvez, não necessariamente, persigam aquele objetivo na prática.
Para se pensar uma forma realmente participativa de inclusão daquela população,
que se revisar os métodos, os conceitos e as bases. Não cabe a nenhum dos agentes em
disputa, que essa dissertação pretendeu apresentar, a pensar pelos extrativistas, mas tão
somente eles próprios terem à o os instrumentos necessários para reivindicar sua própria
verdade.
113
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