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PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO
GEDEON JOSÉ DE OLIVEIRA
A RESISTÊNCIA DE ÉBANO:
UMA ABORDAGEM DA FRENTE NEGRA BRASILEIRA A PARTIR DO
SIMBÓLICO (1930)
Apresentação da dissertação como
exigência para obtenção do título de
mestre em Teologia Pastoral com
concentração em Teologia Prática à
banca examinadora da Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora
da Assunção sob a orientação do Pe.
Dr. Pedro Wiaschita.
São Paulo 2006
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2
SÍNTESE
O objetivo desta dissertação é propor como chave de leitura da
realidade o simbólico. Nesta perspectiva a pesquisa se
desdobra em desconstruir o enfoque demasiado do aspecto
racional como chave de leitura da realidade, principalmente na
versão do materialismo histórico e dialético provindo do
marxismo. Na dinâmica razão e símbolo, o desafio ao qual a
pesquisa traz para o debate, é evidenciar a dimensão simbólica
do movimento negro, tendo como referência a Frente Negra
Brasileira de 1930. Isto se tornou possível, justamente por
ser um grupo que conseguiu implementar ideais libertários,
veiculados pela conjugação da religiosidade e da política,
como estratégia de superação do racismo na década de 30.
Espanhol
El objetivo de esta tesis es proponer como llave de lectura de la realidad, lo simbólico. En esta
perspectiva la investigación se desdobla para desconstruir el enfoque en demasía racionalista
como llave de lectura de la realidad, principalmente en su versión del materialismo histórico y
dialéctico proveniente del marxismo. En la dinámica razón y símbolo, el desafío que la
investigación trae para el debate, es tornar evidente la dimensión simbólica del movimiento
negro, teniendo como referencia la Frente Negra Brasileña de 1930. Esto fue posible,
precisamente por ser un grupo que consiguió implementar ideales libertarios, transmitidos a
través de la conjugación de la religiosidad y la política, como
estrategia de superación del racismo en la década de 30.
Inglês
ABSTRACT:
The objective of this dissertation is to propose as the reading key of
reality the symbolic. In this perspective, the research was developed to
unfold the greater focus given to the rational aspect as the reading key of
reality, mainly in the dialectical and historical materialism coming from
Marxism. In the dynamic reason and symbol, the challenge, which the
research brings to debate, is to make the symbolic dimension of the black
movement evident, having as reference the Black Brazilian Front of 1930.
This became possible due to the group’s implementation of libertarian
ideas, linked by the political and religious conjunction as a strategy to
overcome racism in the 30s.
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SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO...............................................................................................................................04
CAPÍTULO I:
1. ELEMENTOS HISTÓRICOS E TRANSFORMADORES QUE GESTARAM
A FNB..........................................................................................................................14
1.1. Negro antes da década de 30 .............................................................................17
1.2. As associações negras no pós-abolição. ...........................................................22
1.3. O Centro Cívico Palmares....................... .........................................................23
1.4. A expressão do pensamento negro ..................................................................24
1.5. A revolução de 1930........................ ...................................................................26
1.6. O pensamento racial............................................................................................34
1.7. A fundação da F.N.B...........................................................................................38
1.8 A religiosidade da FNB........................................................................................53
CAPÍTULO II:
2.A PROBLEMATIZAÇÃO DA SIMBOLOGIA DA FRENTE NEGRA
BRASILEIRA.............................................................................................................55
2.1. A razão como paradigma hermenêutico...........................................................57
2.2. O símbolo como pressuposto hermenêutico.....................................................62
2.3. Símbolo e cultura .. ............................................................................................65
4
2.4. Religião e mito: o simbólico atuante.................................................................67
2.5. Algumas pesquisas feitas em torno da FNB.....................................................70
2.6. A significação da FNB........................................................................................73
2.7. A democracia racial............................................................................................76
2.8. A desigualdade racial.........................................................................................79
2.9. O imaginário da FNB.........................................................................................83
2.10. A fé da F.N.B.....................................................................................................89
CAPÍTULOIII:
3. O PODER SIMBÓLICO E TRANSFORMADOR DA RESISTÊNCIA
NEGRA.......................................................................................................................93
3.1. Concílio Vaticano II...........................................................................................94
3.2. Fé e Razão ..........................................................................................................97
3.3.
Resistência negra e o poder do imaginário................................................................104
3.4. Evangelização e resistência. ............................................................................112
3.5. Personagens simbólicos: O caminho da utopia..............................................116
3.6. Desafios pastorais.............................................................................................129
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................143
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................148
5
INTRODUÇÃO:
No dia vinte e um de agosto de dois mil e cinco, aconteceu um curso de Bíblia e
Negritude, promovido pela Escola Superior de Teologia (EST), cujo palestrante, Pe Antonio
Aparecido da Silva, fez uma a declaração mais ou menos assim: “nós negros, saímos
vitoriosos da escravidão. Mesmo diante de tanta discriminação, ainda hoje perpetuada pela
sociedade, mesmo diante de tantos sofrimentos, somos vitoriosos, pois assim como Cristo
saiu vitorioso da cruz e perdoou os homens, assim nós negros, também nos organizamos para
reivindicar nossos direitos, sem, contudo, usar da violência para obter nossos objetivos”.
Esta frase ficou gravada na memória de muitos. De fato a escravidão poderia legitimar
uma revolta sem precedentes na população de negra do Brasil, contudo ocorreu de forma
diferente. Pe. Toninho é um dos pensadores, assim como um dos primeiros a organizar a
comunidade negra no Brasil, de modo que, ao refletir tais palavras, cheguei a conclusão que
estava diante de um homem, cuja maturidade de fé e de esperança se tornaram os óculos com
os quais ele via e vivia a realidade. Este testemunho se tornou a bússola pela qual se conduziu
a pesquisa.
Neste período, a pesquisa sobre a Frente Negra Brasileira estava se iniciando, e no
Jornal Voz da Raça do dia 29/04/1983, em um artigo escrito por Arlindo Veiga dos Santos,
presidente da Frente Negra Brasileira, afirmava-se o seguinte “o ideal da FNB era de defender
a integração absoluta, completa do negro, em toda a vida brasileira - política, social, religiosa,
econômica, operária, militar, diplomática, etc”
1
. Ele começou o artigo fazendo um chamado:
“frente negrinos! Negros em geral! A postos contra a onda estrangeira, que além de vir tomar
o nosso trabalho, ainda quer dominar por um regime iníquo e bandalho, o Brasil de nossos
1
A voz da raça. São Paulo, 09/12/1933, p. 1.
6
avós”. Veiga dos Santos afirmava que a Frente Negra Brasileira ergueu-se no Brasil, neste
grande centro – a cidade de São Paulo, para a defesa e valorização da gente negra nacional.
Em função disso, não se poderia, pois “compactuar com a canalha
2
que, sob a capa de
“comitê antiguerreiro” ou qualquer outra tapeação, faz um trabalho infame, no sentido de
propagar, nos meios operários incultos e ingênuos, as ideologias beócias de luta de classes”.
Enquanto isso os negros estariam “ficando completamente a margem da vida do trabalho,
visto que, em quase toda parte, não se aceitam empregados de cor”. Segundo Arlindo Veiga, a
“camorra que vem de fora era “paga pelo ouro Judeu-russo para aniquilar a nossa
nacionalidade”. Tratava-se pois, de “piratas que além de comerem o nosso feijão, deixa-nos
sem emprego (porque tudo no Brasil, e especialmente em São Paulo, é mais para eles
imigrantes que para nós negros)”.
3
Nestes escritos, pode-se constatar que tom do discurso de Arlindo Veiga dos Santos
era autoritário e agressivo. Deixa transparecer uma apatia ao comunismo, assim como uma
espécie de anti-semitismo, ou xenofobia exarcebado. Com estes parâmetros a FNB fora
interpretada como um grupo integralista, e, por integralismo, entende-se como movimento
político de extrema direita, baseado nos moldes fascistas. Isso deve também ao fato de que na
década de trinta este tipo de discurso era típico das organizações fascistas que floresceram no
Brasil e no mundo.
Fazendo um paralelo com a visão do Padre Toninho, constata-se que se trata de visões
diferentes da mesma realidade, enquanto um tem uma visão de fé, tendo como modelo um
símbolo da fé cristã, Jesus Cristo, o outro tem como modelo a razão científica que de muitos
modos especula a história dentro de modelos puramente empíricos, sem levar em
consideração que existem outros modos de interpretar a realidade, sem, contudo, prescindir da
razão.
2
Canalha, era um boletim, do movimento anarquista-comunista-socialista. A Voz da Raça. São Paulo, 09/12/1933, p. 1
3
Ibidem. p. 1.
7
Para Clovis Moura, os estudos sobre o negro brasileiro, nos seus diversos aspectos,
têm sido mediados por preconceitos acadêmicos, de um lado comprometidos com uma
pretensa imparcialidade científica, e, de outro, por uma ideologia racista racionalizada, que
representa os resíduos da superestrutura escravista, e, ao mesmo tempo, sua continuação, na
dinâmica ideológica da sociedade competitiva que sucedeu.
4
O devido autor fundamenta sua
tese ao afirmar que os trabalhos procuravam ver, estudar e interpretar o negro não com um ser
socialmente situado numa determinada estrutura, isto é, como escravo e /ou ex-escravo, e aqui
se acrescenta outra realidade como a herança da formação africana, mas como simples
componente de uma cultura diferente do ethos nacional. Neste sentido esta pesquisa tem o
objetivo de apresentar o simbólico como modelo interpretativo, por ter um valor explicativo
profundo e uma coerência interna.
O desafio que se desdobrar e muito grande, pois a linguagem contemporânea revela
uma freqüente oposição entre o que é considerado como real, racional, e o que é qualificado
símbolo que se julga ilusório e fictício.
5
A linguagem simbólica, antes de tudo, pergunta pelo
sentido da ação, pelos motivos, e não só pelo fato acontecido. É nesta perspectiva que se
coloca o simbólico como metodologia desta pesquisa, ao passo que se esclarece à
complementação interpretativa diferenciada de quem tem fé, ao arcabouço epistemológico
científico, na tentava de dar um sentido diferente a classificação dada a FNB.
Seguindo o preceito metodológico, dentro da pesquisa bibliográfica, cabe formular as
principais perguntas a serem respondidas nesta pesquisa: Será que a frente Negra Brasileira
era realmente fascista? Qual foi o verdadeiro sentido da Frente Negra Brasileira, uma entidade
que existiu de 1931 a 1937 e mobilizou milhares de negros e negras para lutarem pelos seus
direitos? Quais foram seus principais ideais de sociedade deste grupo? O que ou quem
motivou tais ações? Para melhor compreensão dessa problemática, pretende-se saber uma
4
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro no Brasil. São Paulo: Ática. 1988.p.17.
5
LAURET, Bernard e REFOULÉ François. (orgs). Iniciação à Prática da Teologia. São Paulo: Loyola. 1992.p. 49.
8
outra questão, ainda que secundária: havia algum tipo de semelhança entre a Frente Negra
Brasileira e as organizações negras, como os quilombos? Existiu alguma semelhança com
outros que surgiram depois? Como explicar o surgimento da FNB no Brasil? Quais foram as
condições sociais e históricas que possibilitaram a construção da FNB?
JUSTIFICATIVAS:
No tópico, será feita uma breve retrospecção da história da Frente Negra Brasileira,
pela qual se justifica a realização desta pesquisa. Uma outra justificativa foi a virada
epistemológica proporcionada pelas mudanças do mundo moderno, como a industrialização, a
urbanização, a secularização, as revoluções, as ciências humanas etc., que proporcionou um
impacto considerável no que se refere ao papel da Igreja no mundo. Com isso, pretende-se
trazer ao debate, a presença da Igreja no mundo plural e complexo, e, sobretudo seu impacto
com a cultura negra em seu universo lúdico, tendo como referência a Frente Negra Brasileira,
que é o principal foco desta pesquisa, por se encontrar como movimento divisor de águas, ou
seja, o eixo integrador entre a razão cientificista e o simbólico. Neste sentido, quer-se tentar
trazer para o diálogo, algumas práticas que de alguma forma edifique, ilumine a Igreja na
conjuntura atual.
A teologia feita pelos negros, geralmente traz na memória a herança histórica marcada
pelo racismo, pela dor, pela escravidão, ou a ela destina-se como resistência e apelo para que
se elimine as inconcebíveis posturas racistas, presentes ainda em enorme número de pessoas
que dizem brancas. Este texto ilustra o que se pretende afirmar:
9
“O pensamento teológico afro-americano toma referência básica às
experiências de Deus vividas pelas comunidades negras no continente.
(...). Trata-se da experiência da fé numa sociedade marcada pelo racismo
e pela opressão sobre tantos e de maneira particular sobre os negros e
negras”
6
.
Não existe nada de ilegítimo nesse ponto de partida, como não existe nada de mais
urgente, essa de fato é a teologia de base. O que se quer refletir trata-se do ponto de partida
oposto, mas que não dispensa o que se acenou acima, antes o pressupõe. Tomar como ponto
de partida a pessoa do negro. Isso significa dizer que se trata de ouvir o próprio negro dizer o
que significa para ele a experiência da escravidão a partir de sua cultura e universo simbólico.
Porque o simbólico? Porque ao confrontar o simbólico com a dimensão histórica no que diz
respeito às pesquisas, pode-se conduzir a uma visão mais ampla do ser humano, tendo em
vista que todo conhecimento sempre foi interpretação, mas nem sempre se teve clara
consciência da subjetividade da interpretação.
7
A maioria dos historiadores interpreta os fatos
que de muitas formas denegriu a imagem negra, estes não levam em conta as atitudes de
resistência que muitas vezes, mesmo que isoladas, se tornaram símbolo de força e de rejeição
ao sistema escravocrata. Neste sentido uma memória simbólica dos fatos passados, pode
contribuir para combater uma imagem negativa da pessoa afro-descendente.
Alguns espaços conquistados pelo afro-descendentes em nossos dias, são resultado de
um processo adquirido através de muito sangue derramado, e que manifestam um jeito
diferente de viver. O modo de celebrar, por exemplo, não apenas no sentido religioso, mas de
6
ANTONIO, Aparecido. Existe um pensar teológico negro? São Paulo: paulinas, 1998, p.9-10.
7
LIBANIO, João Batista. As lógicas da cidade, o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé, São Paulo: Loyola, 2001, p.17.
10
modo geral no que se refere à vida, a importância que dá ao corpo, a música, a dança, são
componentes ônticos da cultura afro, mesmo com a assimilação das culturas indígenas e
européias, essa inculturação foi incorporada em um jeito próprio e singular de viver a vida.
Nesta realidade que o afro-descendente situa-se, em uma posição capaz de viver a fé e sobre
ela elaborar suas reflexões, em comparação com os sistemas europeus construídos a partir da
racionalidade greco-romana de quem são tributários.
Um outro elemento importante é o modo carismático de ver o mundo: para os afro-
descendentes os elementos da natureza são dons de Deus, onde as realidades naturais devem
ser integradas com os seres humanos, a visão de mundo é mais baseada na vida, é mais
consuetudinária em paralelo aos sistemas europeus que são mais racionais, decodificadores e
dedutivos. Neste aspecto, a racionalidade, com a qual é especulada a cultura afro-descendente,
torna-se excludente, sendo que a exclusão se manifesta quando se denomina o culto afro de
diabólico, na verdade quase sempre o negro está relacionado a tudo de negativo. Os padres
afro-descendentes recém ordenados são os primeiros a perderem suas raízes africanas, e isso
se estende aos evangélicos e a um número considerável da população. Trata-se, portanto, de
uma estrutura, que ainda privilegia o modelo branco europeu, em detrimento da miscigenação
do qual somos herdeiros. Enquanto o simbólico evidencia uma visão da cultura negra, que
abre espaço para um diálogo, não de igual para igual, mas de visões deferentes da mesma
realidade, permitindo assim, rever tais posturas racistas e ao mesmo tempo proporcionar ações
de inclusões sociais e religiosas. Portanto, a cultura afro-brasileira tem bases antropológicas
diferentes na forma de manifestar e viver a fé.
A pesquisa será desenvolvida nos seguintes aspectos: o primeiro capítulo dirá respeito
ao levantamento histórico da Frente Negra Brasileira, para que o leitor tenha, ou forme uma
idéia dos elementos centrais do referido grupo. O segundo caminhará dentro dos fundamentos
racionais, para explanar os limites das ciências e suas conseqüências atuais.
11
Em seguida aparecerão os fundamentos simbólicos para confrontar com o
racionalismo. Estes instrumentais permitirão uma confrontação da história do Brasil, na
conjuntura da década de 30, com a Frente Negra Brasileira, e nela ressaltarão os elementos
simbólicos, seu impacto de luta e resistência para o resgate da memória dos movimentos
negros e das pessoas que não cederam à invasão ideológica do ‘poder sobre’. O terceiro se
direcionará para o aspecto teológico, ao qual será incluído o Concilio Vaticano II, de modo
especial a Gaudium Et Spes, a fim de lançar luzes sobre a relação com as estruturas sociais e
religiosas contemporâneas, para compreender a real situação de exclusão e participação de
tantas pessoas afro-descendentes no momento atual.
Por fim, neste terceiro momento, apresentar-se-ão os desafios pastorais como
pressupostos de uma nova ordem social e religiosa, tendo, como substrato, a justiça aos
excluídos, o que conduzirá a algumas considerações abertas e conclusivas.
Porque considerações abertas? A história trabalha com fatos e deste modo determina a
existência da Frente Negra Brasileira no espaço e no tempo, ou seja, em 1930. Como isso é
possível? A primeira hipótese que se constatou nesta pesquisa, é que não houve um
congresso, uma assembléia para explicar seu surgimento no espaço e no tempo. Constatou-se
que as literaturas mais influentes que abordaram as questões da formação do Brasil, como
grandes escritores de expressão: Darci Ribeiro, Gilberto Freire, e tantos outros que são
famosos no Brasil, não trataram, ou, melhor, não registraram o evento da Frente Negra
Brasileira de forma fecunda. Esta falta de referência bibliográfica, proporcionou um grande
desafio, pois a maioria das pesquisas encontra-se engavetadas na biblioteca da Universidade
de São Paulo, ou em alguns poucos publicados. Assim, a pesquisa estendeu-se a jornais
publicados na década de trinta. Um outro desafio foi encontrar autores que trabalhassem a
dimensão da representação simbólica, dentro da perspectiva dos movimentos sociais e
religiosos, que melhor se enquadrasse no que se quer refletir nestas pesquisas, o que limitou a
12
mesma em apenas um autor, ou seja, a dificuldade de pesquisar a FNB, foi muito árdua, pois
esta não faz parte do conhecimento popular, alguns intelectuais das ciências de historia são os
que sabem da existência de tal movimento. Entretanto, estas dificuldades se abrem a novos
horizontes e questionamentos.
Estes questionamentos deixam em aberto o que poderia ser uma conclusão, devido às
informações serem insatisfatórias. O que proporcionou a seguinte hipótese de pesquisa: a
FNB foi uma construção coletiva que não tem data de nascimento porque foi um processo, e,
como tal, deve ser compreendido e estudado. Esta perspectiva origina-se no fato de se rejeitar
pressupostos teóricos de uma evolução linear e causal da história como explicação da
realidade. Existe no fazer histórico outra possibilidade que permite uma visão mais inclusiva
da realidade, e essa se encontra no aspecto simbólico e suas representações. Neste sentido,
determina-se a década de trinta como início do corte temporal para ser estudado, mesmo
diante da complexidade e dificuldade de estudo.
No processo de surgimento da FNB são necessários alguns elementos contextuais que
de muitas formas influenciaram em tal processo. Dessa forma, a pesquisa alarga-se dentro da
realidade da década de trinta no que diz respeito ao mito da democracia racial, ao declínio da
colonização, à burguesia agrária, à educação pública, assim como, aos movimentos políticos
nacionais e internacionais. Estes elementos possibilitaram iniciativas e experiências que
influenciaram a FNB. A conquista de espaço do afro-descendente dentro da sociedade e na
Igreja, foi um elemento decisivo nas organizações negras futuras, assim como nas
comunidades eclesiais de base. O desenvolvimento desses espaços vai sendo construído
dentro da rede de relação com outros movimentos populares para perceber as representações
que de muitas maneiras se assemelham, inclusive com os documentos da Igreja Católica, que,
na perspectiva de dialogar com a razão científica dá uma resposta qualitativa, outrora vivida
pela FNB.
13
Um outro aspecto a se destacar para a compreensão deste movimento social e religioso
é seu imaginário. Os participantes da FNB são, na sua maioria, salvo algumas lideranças,
pessoas das classes populares, ex-escravos, cujo imaginário religioso e social foi construído a
partir da religiosidade popular, pois levaram os afro-descendentes a assumirem compromissos
e atitudes de compromisso social e político contra formas de exploração e opressão em seu
tempo. Parte-se, então, da premissa teórica de que a simbologia do imaginário religioso pode
ser construída com múltiplas significações, dependendo das diversas influências sociais,
econômicas e institucionais, que junto com a vontade criativa, sobretudo a dimensão lúdica,
constrói e assume de forma dinâmica a vida. Aqui se encontra a hipótese central desta
dissertação: que existe uma força transformadora do simbólico, na qual a revelação de Deus
se faz presente no físico e além do físico, e que pressupõe a racionalidade científica na
dimensão hermenêutica da realidade.
14
CAPÍTULO I:
1. ELEMENTOS HISTÓRICOS E TRANSFORMADORES QUE GESTARAM A FNB
Este primeiro capítulo possibilita o entendimento da importância e algumas
divergências históricas presentes na FNB que inserem a questão negra e afro-descendente
diante do fim oficial da escravatura, em 1888, e no início do processo de industrialização
brasileira, no século XX, tendo como desafio constante desconstruir o discurso oficial da
burguesia brasileira de que há uma justaposição democrática diante das diferenças físicas e
étnicas presentes na constituição populacional.
Por isso, é um requisito compreender o contexto mais amplo antes de 1930, para
abarcar o impacto da FNB nesta década, com suas singulares formas de resistência e
organização. Organização referente a suas idéias e sobrevivência diante de uma sociedade
apoiada num discurso anti-racista, mas com práticas e concepções que justificavam a
desigualdade racial e étnica. Resistência exprimindo o desejo de não deixar morrer, na
memória histórica e simbólica, a importância da inquietação questionadora, que faz com que
os afros-descendentes excluídos estejam presentes como sujeitos da história e das expressões
religiosas.
Resistência é uma palavra polissêmica. Ela pode designar algum tipo de reivindicação
dos grupos populares ante as decisões de dominação. E, pode ser entendida como uma reação
a algo novo, ou uma negação de capitalistas as reivindicações dos trabalhadores.
15
A palavra resistência se caracteriza como força que se opõe a outra, ou que defende
um organismo do desgaste de doenças, cansaço, etc. É o ato ou efeito de não ceder, não
sucumbir, de relutar e fazer frente (ataque, acusação, etc) a algo. É uma luta ou reação em
defesa de alguma coisa, inclusive de autodefesa
8
.
Destas definições surgem diversas perguntas: defender-se de quem? Não ceder ao
quê? Relutar ou lutar mais uma vez por quê? Que forças se confrontam para defender-se ou
defender um organismo diante da doença, da fome, do cansaço, ou seja, do que não promove
mais vida?
Estas palavras evocam uma percepção de mundo e de relações sociais, políticas,
econômicas e culturais expressadas através de valores, nas ações de contraposição ou
oposição, que possibilitam enriquecer a análise. Ao aprofundar a reflexão, compreende-se
uma oposição conflitante designada pelos termos: oprimido e opressor. As relações entre
oprimido e opressor, dependendo do poder, ou dos instrumentos disponíveis para veicular o
poder, de algum dos lados, estabelecem-se nos binômios fraco-forte. O lado considerado mais
"fraco", devido à construção ideológica em torno do mais forte, resiste a algo que possa lhe
tirar a vida, ou seja, destituir do complexo de elementos necessários para crescer, apreender,
desenvolver e relacionar-se. Assim, o conceito resistência engloba as dimensões culturais,
econômicas, políticas e religiosas de conflitos permanentes entre oprimidos e opressores.
Contudo o conceito resistência não existe como um objeto, como uma coisa a ser
tocada
9
, ela é abstraída da vivência de dominação. A resistência faz parte da prática humana,
está inserida nas relações e se articula de forma defensiva contra a opressão, contra a
escravidão e a discriminação, e ao mesmo tempo indica um outro modelo de sociedade,
8
Novo Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI; versão 3.0. Editora Nova Fronteira.
9
RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. A força transformadora social e simbólica das CEBs. Petrópolis: Vozes, 1997, p.37.
16
respaldado pela forma de organização conscientizadora, que não só resiste, mas se torna
elemento de referência.
O conceito de resistência é simbólico, ou seja, está aberta a uma série de significações
e re-significações, que pode adquirir um conjunto de outros sentidos. É um símbolo por que
não se consegue exaurir todo seu conteúdo. Não se consegue exauri-lo em sua totalidade, pois
ao explicá-lo, implica na explicação daquilo que é a própria prática-teoria dos movimentos
sociais negros, e dos indivíduos em geral. Isso pode ser explicado?
Portanto, o que se apresenta como referencial simbólico quer ser uma somatória de
diversos estudos e pesquisas para compreender o contexto histórico e simbólico no qual a
FNB esteve inserida, devido a um sistema de símbolos utilizado pelo grupo que foge a uma
especulação puramente racional da realidade. O real que se traz para compreender a FNB se
compõe de interpretações por meio de sistemas simbólicos de uma dada cultura, que se
manifesta especialmente na linguagem. E, tal entendimento, livra a dissertação de um
realismo ingênuo. Pois, na produção de conhecimentos não se atinge o real em sua nudez,
mas, ele aparece dentro do contexto cultural humano interpretado por tantas outras pessoas.
17
1.1 O NEGRO ANTES DA DÉCADA DE 30.
No século XIX existiu, tanto no plano mundial quanto no Brasil, um momento de
mudança no modo de produção colonial e escravista, no qual se acentuou o aumento da
burguesia agrária e industrial capitalista. Neste momento, o tráfico africano não dava mais
lucro, o que fez gerar novas formas de organização do trabalho que mantiveram a geração de
riquezas para os proprietários dos meios de produção.
O capital agrário brasileiro introduziu o trabalho assalariado, com novas técnicas de
cultivo, beneficiando os produtos de exportação. Com o aumento da demanda, os donos de
engenhos passaram, em sua maioria, a utilizarem maquinário que proporcionou o aumento da
produção e a dispensa de milhares de trabalhadores braçais. Diante deste processo de
modernização, que culminou no século XX, houve maior acúmulo de capital, com menor
custo, e um vazio imenso no que concerne às leis reguladoras da atividade laboral, com uma
profunda desatenção às políticas e direitos trabalhistas.
Neste contexto as pessoas negras foram, ou melhor, continuavam sendo, excluídas dos
benefícios que tais mudanças trouxeram para tantas outras pessoas. Um bom exemplo são as
limitações impostas pela Constituição de 1891, onde um dos requisitos para o alistamento
eleitoral era a alfabetização, e era enorme o numero de homens negros, e até maior de
mulheres negras, que não tinham acesso à escola pública, conseqüentemente não podendo
votar. “O projeto das elites era transplantar a sociedade européia para os trópicos,
transformando o Brasil (uma colônia atrasada) em uma “belle époque tropical” (uma
18
república civilizada)”
10
. Houve, portanto, o investimento numa população mais européia e
branca, trazendo imigrantes europeus para trabalhar no Brasil.
Com a ampliação da rede de indústria, comércio e serviços, a situação do negro, na
década de 1920, era ainda pior do que vinte ou trinta anos antes. Pois eles foram quase
totalmente designados ao trabalho nas fábricas ou passaram a encontrar oportunidades de
trabalho somente nos serviços domésticos e nos setores da economia que não ofereciam
nenhum vínculo empregatício, não usufruindo os poucos direitos trabalhistas da época,
ficando praticamente restritos ao mercado informal.
Frente a estas profundas mudanças pelas quais passou o mundo, e com ele o Brasil, as
relações religiosas da Igreja Católica não puderam ficar indiferentes a tal situação. Tendo
perdido a influência direta nos Estados monárquicos, devido ao avanço do poder político e
econômico da burguesia européia, que encontrou alento doutrinário nas teses de Lutero e de
Calvino, ela iniciou um processo conhecido como romanização, no qual se distanciou do
Estado e, retomou a direção da organização eclesiástica, enfraquecida pelos desmandos do
padroado. É o período da criação de novos bispados, da clericalização do catolicismo
brasileiro e da expansão de várias congregações religiosas encarregadas da formação do clero
e dos fiéis que chegaram ao Brasil.
A separação Igreja-Estado aconteceu oficialmente em 1890, tornando-se uma
expressão de afirmação da igreja católica diante do Estado, com fortes reivindicações da
identidade católica de brasileiros.
Os rumos das novas práticas católicas foram dados pela carta pastoral coletiva dos
bispos do sul do país em 1915, a que se seguiu o concílio plenário brasileiro, em 1939. Na
10
DOMINGUES, Petrônio. A insurgência de ébano. A Historia da Frente Negra Brasileira. Tese de doutorado apresentada á
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2005, p.51.
19
verdade, foi a habilidade de Dom Leme que conseguira determinar as formas de reconciliação
entre a Igreja e Estado
11
.
Esta necessidade de afirmação da identidade católica dificultou um comportamento
religioso na manifestação do imaginário das pessoas afro-descendentes, através de
reminiscências de quilombos e das casas de culto da religião africana. Houve um sincretismo
entre o catolicismo e o candomblé, que não foi uma troca de deuses, mas um modo de
sobrevivência dos cultos, de vestes e de nomes. Os afro-descendentes também não
confundiram seus deuses e suas crenças com os santos e santas do culto cristão católico,
procurando, portanto, não se desvencilhar de suas crenças mesmo exprimindo formas
sincréticas de ritos.
Sem um espaço digno na sociedade brasileira, com uma liberdade falseada e punitiva,
os afro-descendentes conservaram seus deuses e ritos, lutando para se manterem unidos e
vivos diante de tantas exclusões. Os quilombos, reduções, candomblés e catimbós libertos e
fugitivos criaram e recriaram um imaginário concretizado em formas de resistência e luta
contra os diversos tipos de opressão.
O Candomblé se tornou uma forma de resistência e de luta, como se mantém até hoje.
A religião africana foi, no Brasil, uma realidade fundamental na reelaboração da auto-estima,
da autoconfiança, atrofiada pelos quatrocentos anos de escravidão, mas de difícil aceitação no
século XIX e início do século XX.
12
O imaginário social construído pela religiosidade africana, independente da hierarquia
católica, é elemento fundamental para compreender profundamente o enraizamento da
religião dos afro-descendentes na formação social e cultural do Brasil, especialmente no que
diz respeito ao valor da coletividade, uma vez que gerou diversas associações e organizações
11
BEOZO. José Oscar. A igreja e o exercício do poder do Vaticano I ao Vaticano II, in revista de cultura vozes 1991, p. 84 a
116.
12
FRISOTTI, Heitor. O Cristo dos poderosos e o Jesus dos pobres. Biblioteca Camboniana Afro-brasileira. Serviço de
Documentação, Salvador-BA. 1992.p.14.
20
que aglutinaram as pessoas discriminadas por uma sociedade que valorizava os imigrantes
brancos em detrimento ao desamparo de milhares de afro-descendentes.
Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem
nenhuma identificação possível com ninguém. Sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia
a sua rotina. Esta era sofrer todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar
atento e tenso. Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através dos
séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós brasileiros somos, somos,
por igual à mão possessa que os suplicou. Somos descendentes de escravos e de senhores de
escravos.
13
É significativo pensar sobre o protagonismo da FNB, tomando como pano de fundo
esta rápida explanação de alguns pontos importantes que antecederam os anos 30. Importante,
também, é ressaltar a influência européia na formação da identidade social e religiosa
brasileira; entretanto, a religiosidade africana apresenta-se como uma forma autônoma de
expressão simbólica e celebrativa após a década de 30, portanto, pouco enfocada pela FNB.
13
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.p. 120.
21
1.2. AS ASSOCIAÇÕES NEGRAS NO PÓS-ABOLIÇÃO.
A característica de um sentido de coletividade na população afro-descendente fez
surgir, desde a escravidão, diversas formas de organização coletiva. Até a Abolição, foram
criados grupos ou associações de caráter religioso, cultural e socioeconômico, representados
por quilombos, confrarias, irmandades religiosas, caixas de empréstimos, e tantos outros.
Algumas associações publicavam jornais e organizavam eventos, como comemorações
de datas históricas do negro (13 de Maio, dia da Abolição; dia 28 de Setembro, dia do Ventre
Livre), homenagens aos heróis negros (como Henrique Dias, José do Patrocínio, André
Rebouças e Luís Gama) e romarias cívicas, como a procissão ao túmulo dos abolicionistas no
cemitério da Consolação
14
. Promoviam-se bailes dançantes e momentos de lazer para que as
pessoas pudessem se encontrar. Juntamente com estas atividades, realizavam-se palestras,
cuja intenção era de exaltar os principais símbolos da população afro-descendente, reforçando
sua necessidade de elevação cultural e social.
Existiram associações que tinham na diretoria a presença de mulheres, como era o
caso do “O Kosmos” e da “Sociedade 15 de Novembro”. Outras, ainda, eram formadas
exclusivamente por mulheres.
De 1897 a 1930 pode-se apontar a existência de 85 associações negras funcionando na
cidade de São Paulo, sendo 25 dançantes, 9 beneficentes, 4 cívicas, 14 esportivas, 21 grêmios
recreativos, dramáticos e literários, além de 12 cordões carnavalescos
15
.
14
DOMINGUES, 2005, p. 41.
15
DOMINGUES, 2005, p. 329.
22
1.3. O CENTRO CÍVICO PALMARES.
Com um nome dado em homenagem ao quilombo de Palmares foi fundado no dia 29
de outubro de 1926, e, articulado por um grupo de ativistas que estavam dispostos a combater
o preconceito racial a partir de uma perspectiva mais política, sem recorrer às atividades
recreativas, como os bailes dançantes. Para tal, mantinha um curso de alfabetização, uma
biblioteca, um departamento feminino, um grupo teatral e promovia palestras semanais de
conscientização racial
16
.
No anseio de realizar o trabalho de ascensão política, educacional e social de afro-
descendentes, o centro contava com muitas lideranças negras, e assumiu um papel essencial
por ter a ousadia de não somente unificar a luta dos descendentes de africanos, mas também
transformá-la em força política. Expressou um amadurecimento do rudimentar movimento
negro em São Paulo, tendo sido o espaço de gestação da Frente Negra Brasileira.
1.4. A EXPRESSÃO DO PENSAMENTO NEGRO.
O primeiro jornal escrito por afro-descendentes de que se tem notícia é A Pátria, que
trazia o seguinte subtítulo: “Órgão dos homens de cor”. Ele foi fundado pelo líder negro
16
DOMINGUES, 2005, p. 42.
23
Ignácio Araújo Lima, em São Paulo, no ano de 1889, um ano após a Abolição
17
. Este jornal
estabeleceu-se como um importante instrumento de conscientização e mobilização da
população afro-descendente e, também, de denúncia contra o “preconceito de cor”.
Estes jornais eram reinvidicativos e combativos no sentido de promover a defesa da
classe negra, como também o soerguimento desta classe, a partir da expressão dos interesses e
necessidades que possuíam. Para atenderem ao repúdio dos negros contra o preconceito da
época, vários outros jornais foram impressos.
O Clarim da Alvorada, fundado em 1924, ampliou as denúncias de discriminação
racial. Em março de 1929, o jornal promoveu uma reunião com os presidentes de 16
associações negras de São Paulo, a fim de definir as bases para o “Primeiro Congresso da
Mocidade Negra do Brasil”. A proposta era a de reunir os intelectuais da “raça” para
discutirem os problemas que afetavam a população afro-descendente, e encontrarem suas
possíveis soluções. Em junho daquele ano, um manifesto foi lançado. Nele, convocavam-se os
negros do Brasil para se reunirem em São Paulo. Ademais, denunciava-se a “situação vil”, o
estado de “degradação e humilhação” a que os descendentes de escravos estavam expostos,
em benefício das “ondas estrangeiras e estrangeirizantes”. Segundo o Manifesto à Mocidade
Negra, o negro foi um destacado agente construtor da riqueza material e cultural do país,
e,entretanto, era marginalizado na sociedade.
O manifesto também lamentava que a constituição republicana jamais conseguiu
transformar os negros em cidadãos de fato:
Gozamos, teoricamente, de todos os direitos que, juridicamente, nos garante a Constituição
fundamental. Mas, como o direito, para o ser, implica uma expressão de vida real e não abstração, as
forças da sociedade que estão, inapelavelmente, acima da lei ou contra ela, evitam-nos e até nos
expulsam das suas instituições burocráticas, [...] de ensino, e de formação intelectual, moral e religiosa
17
DOMINGUES, 2005, p. 44.
24
também; abominam-nos nos orfanatos, hospitais e [de] mais casas de assistências sociais, e até nas
casas de expressão econômica [...].
Não há, para nós, o mais das vezes justiça social. [...] Relegam-nos, pois, a nós, a uma posição
horrível de inferioridade e desprestígio perante o nacional branco e, o que mais revolta, perante o
estrangeiro.
18
No final da década de 1920, a suposição de que a participação política era algo
exclusivo dos “brancos” era questionada. No meio negro, medrava a compreensão de que as
conquistas só seriam obtidas na arena política. Por isso, o grupo de O Clarim da Alvorada
conclamava: “O negro deve ser político, compreendendo os deveres do bom e do útil, não
político pelo mero prazer em ser agradável a este ou aquele, sem vontade própria; deve ser
político, porém debaixo de uma organização, com programa definido, organização esta que
possa produzir interesse à raça negra”.
19
1.5. A REVOLUÇÃO DE 1930.
Foi neste cenário que ocorreu a ascensão das idéias de extrema esquerda (comunistas)
e de extrema direita (autoritárias, nacionalistas, antiliberais e anticomunistas). O movimento
comunista iniciou uma fase de crescente expansão no continente europeu. Impulsionadas pelo
triunfo da Revolução de Outubro de 1917, na União Soviética, outras tentativas de tomada de
poder pelos comunistas naquele continente ocorreram. O projeto da revolução mundial estava
18
O Clarim da Alvorada. São Paulo, 09/06/1929, p.1.
19
O Clarim da Alvorada. São Paulo, 27/10/1929, p 3.
25
na ordem do dia. Para toda uma geração, a revolução foi o acontecimento de suas vidas; os
dias do capitalismo estavam inevitavelmente contados
20
.
No vértice oposto, houve um crescimento da extrema direita em escala internacional.
Os regimes democrático-liberais entraram cada vez mais em crise. Os fascistas chegaram ao
poder na Itália, sob a liderança de Benedito Mussolini, em 1922; os nazistas chegaram ao
poder na Alemanha, sob a liderança de Adolf Hitler, em 1933. A insurgência da ultradireita
foi essencialmente uma reação à esquerda revolucionária. “A ascensão da direita radical após
a Primeira Guerra Mundial”.
Na década de 1930, já se difundia a idéia de que o progresso realizado na África, nos
domínios econômico, tecnológico, político e cultural - ou sua transformação em “civilização”
em seu sentido amplo -, devia-se à colonização européia. Todavia, escamoteava-se que surtos
de desenvolvimento urbano, comercial e educacional não eram desconhecidos na África pré-
colonial.
21
Nos anos 30, ainda prevalecia a idéia de que a África era habitada por povos sem
cultura. Os europeus condenavam tudo quanto fosse autóctone, desde a música, a arte, a
dança, os nomes, a religião, o casamento, o regime sucessório, até a história do continente,
que foi negada e menosprezada abertamente. Dizia-se que a África praticamente não tinha
história antes da chegada dos brancos europeus.
O Brasil possuía 41.560.147 habitantes em 1935, dos quais 93% se concentravam na
faixa litorânea.
22
O mundo rural, dominado por uma estrutura social cada vez mais
anacrônica, contrastava com o progresso do mundo urbano. Em 1940, dois terços da
população ainda moravam nas áreas rurais. Apenas São Paulo e Rio de Janeiro tinham mais
de um milhão de habitantes.
20
DOMINGUES, 2005, p.64.
21
DOMINGUES, 2005, p. 65.
22
CARONE, Edagard. A republica nova (1930-1937). 2. ed. São Paulo: Difel,1976, p. 09.
26
A educação pública permanecia defasada frente às crescentes necessidades do país.
Em 1920, 65% dos brasileiros adultos não liam nem escreviam. Uma década depois, o saber
formal ainda era um bem restrito às elites. Em matéria de estruturação da rede educacional, o
antigo ensino primário dividia-se, em linhas gerais, entre as escolas privadas da Igreja e as
escolas públicas, das quais 90% localizavam-se nas áreas rurais.
23
A moderna estrutura universitária só foi implantada no Brasil em 1934-35, quando
foram unificadas as faculdades de filosofia, letras e artes em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Mesmo nas grandes cidades, algumas tradições sociais que remontavam à escravidão
não desapareceram. As famílias das elites tinham três a quatro empregados domésticos,
importavam governantas européias e contratavam professores particulares para seus filhos.
A imigração italiana foi predominante entre o final do século XIX e a década de 1930,
seguida da portuguesa, espanhola, polonesa, japonesa e árabe. A maior parte dos imigrantes se
radicou em São Paulo. Poloneses, alemães e, em menor número, italianos, mantinham escolas
cujo ensino era ministrado em suas línguas maternas, o que dificultava a assimilação cultural
à nova pátria.
Os meios de comunicação de massa imprimiam um novo estilo urbano de vida. Os
cinemas começavam a se popularizar, oferecendo em sua programação vários filmes
estrangeiros. As revistas femininas ganhavam cada vez mais espaço no mercado editorial,
com histórias de estrelas de cinema e romances glamourosos. As agências de publicidade,
uma novidade no Brasil, ofereciam uma série de produtos “modernos”. As candidatas
escolhidas para os concursos internacionais de beleza eram sempre brancas. A hierarquia
racial era patente. Os executivos das empresas, professores universitários, diplomatas, figuras
23
Ibidem, p.12.
27
de alto escalão da Igreja, do governo e oficiais superiores das Forças Armadas, também eram
invariavelmente brancos.
No que concerne ao aspecto religioso, a população brasileira era notadamente católica.
Apesar de campear um catolicismo popular, a cúpula da Igreja Católica era conservadora e
defendia um sistema tradicional, culpando os abusos da democracia liberal pelos desmandos
da vida moderna. Pessoa próxima a Getúlio Vargas, o Cardeal Leme, do Rio de Janeiro, era
um dos porta-vozes da ala conservadora, que criou uma organização leiga militante, a Liga
Eleitoral Católica. Tal organização interveio nos debates da Assembléia Constituinte e
conseguiu a aprovação da obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas.
“Os três elementos que formavam até então o tripé sobre o qual se
apoiava o sistema político da Primeira República (a grande propriedade
cafeeira e de criação; a economia primário-exportadora e o controle do
poder político pela oligarquia rural), com as transformações que
ocorreram a partir de 1920, alteram suas bases no plano estrutural e
ideológico”.
24
No final da década de 1920, as dissensões entre as oligarquias de vários Estados e a
oligarquia paulista se acumulavam, acentuando-se no processo político sucessório de 1929. O
presidente Washington Luiz (1927-1930) não concedeu apoio ao indicado pela oligarquia
mineira, preferindo apoiar o nome de Júlio Prestes, de São Paulo. Com tal atitude,
Washington Luiz decretou o fim da política do “café-com-leite”, pacto através do qual as
oligarquias paulista e mineira se revezavam no comando do país. Como forma de reação, as
24
Trindade, Hélgio, integralismo: O fascismo Brasileiro na década de 30. 2 ed.São Paulo, R. de Janeiro: Difel,1979, p. 7-8
28
oligarquias de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba formaram a Aliança Liberal e
organizaram uma chapa de oposição, lançando o gaúcho Getúlio Vargas como candidato a
presidente e o paraibano João Pessoa como vice.
A Aliança Liberal centralizou inicialmente a campanha na questão da moralização da
política no país. Caso vencesse, prometia garantir o alistamento eleitoral, o voto secreto e
brigatório, o fim da fraude eleitoral e o fortalecimento dos partidos políticos fora da estrutura
governamental. O programa, contudo, apresentava vagas propostas para a proteção dos
direitos dos trabalhadores e nenhuma específica a favor da população negra.
Em 1
o
de março de 1930, um eleitorado “predominantemente masculino, branco e
adulto, que totalizava 5,7% da população, pôde votar”
25
. Convém lembrar que nem as
mulheres nem os analfabetos tinham direito ao voto. Apesar da intensa campanha dos
oposicionistas, o candidato do governo, Júlio Prestes, obteve a maioria dos votos.
Descontentes com o resultado das eleições, as oligarquias dissidentes, aliadas a um setor dos
militares e aos jovens oficiais rebeldes (os “tenentes”), conspiravam a derrubada do governo.
Em 26 de julho de 1930, João Pessoa foi assassinado por João Dantas, um de seus
adversários políticos, em uma confeitaria no centro de Recife. Esse fato, que provocou grande
comoção nacional, foi ostensivamente explorado pelos oposicionistas do governo e serviu de
estopim do movimento golpista. No dia 3 de outubro de 1930, tropas gaúchas, sob a chefia do
então tenente-coronel Góes Monteiro, iniciaram uma marcha para a capital do país. Três
semanas depois, o presidente Washington Luiz foi deposto, sendo este o fim da “República
Velha”, que fora controlada pelas oligarquias das unidades mais poderosas da Federação e
25
ROSE, R. S., Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e controle social no Brasil (1930-1954). São Paulo: Companhia
das Letras 2001, p. 30.
29
suas máquinas políticas. A expressão “República Velha” foi cunhada pelos golpistas que
tomaram o poder.
26
Em novembro de 1930, Getúlio Dorneles Vargas, líder civil do movimento armado de
oposição, tornou-se presidente do Brasil em caráter provisório. Este episódio na vida política
do país ficou conhecido como “Revolução de 30”. No plano do discurso, o novo governo
decretou o combate às oligarquias e prometia uma nova era na história do país, com melhorias
na vida do povo brasileiro. Os lemas principais eram “regeneração nacional” e a
“modernização”.
Para promover o desenvolvimento econômico, Vargas melhorou o sistema de
comunicações e incentivou a diversificação da produção agrícola, assim como realizou uma
exploração mais sistemática de outros recursos naturais, especialmente, o carvão e o ferro,
minérios importantes para garantir a segurança nacional, por serem indispensáveis para uma
industrialização em larga escala.
Para agradar aos trabalhadores, Vargas criou o Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, em dezembro de 1930. O novo ministério foi inaugurado com grande fanfarra, e,
apesar dos limites da ação desse ministério, deve-se reconhecer que sua criação representou
um avanço. Foi ele que elaborou a legislação trabalhista. A questão social deixou de ser
tratada como caso de polícia e passou a ser tratada como caso de política. O governo
implementou uma série de medidas que proporcionou benefícios concretos aos trabalhadores
urbanos: carteira profissional, diminuição da jornada de trabalho (fixada em 8 horas por dia),
aposentadoria e pensões à velhice, regulamentação do trabalho feminino e do menor, férias,
previdência com garantia de assistência à saúde, etc. Também foram instituídos o sindicato
único por categoria profissional e as Juntas de Conciliação e Julgamento. Foi nesse contexto,
26
LEVINE, Robert M. O regime de Vargas: os anos críticos (1934-1938).RJ; Nova Fronteira. 1980, p. 43. In. DOMINGUES,
2005, p. 48.
30
marcado por esperanças de mudanças estruturais na sociedade brasileira, que nasceu a Frente
Negra Brasileira.
Se for verdade que os negros começaram a superar a barreira de ingresso no mercado
de trabalho industrial na década de 1930, é também verdade que esse ingresso se deu de forma
controlada: os negros ocupavam, via de regra, os cargos subalternos, mesmo tendo o mesmo
nível de qualificação técnica dos brancos. Esse método de controle racial impedia a ascensão
social da população negra. Como afirma Adrews.
27
, sua “mobilidade ascendente tinha uma
limitação cruel: a barreira entre os cargos de trabalho braçal e de colarinho branco, uma
barreira aplicada vigorosamente aos trabalhadores brancos, mas aplicada de maneira irrestrita,
e virtualmte sem exceção, aos negros”.
A Constituição de 1934 garantia formalmente a democracia liberal, mas a quantidade
de brasileiros que participava da vida política institucionalizada ainda era pouca. As mulheres
não votavam até 1932. O Código Eleitoral de 1932 promoveu uma reforma eleitoral no país,
mas a maior parte das eleições posteriores foi por via indireta, e não havia partidos nacionais.
No interior, os políticos tradicionais permaneciam controlando o voto e toda a atividade
política dos municípios.
28
A oposição ao governo de Vargas era impetrada por duas frações da esquerda: a
“moderada” e a “radical”. A “moderada” era composta por vozes isoladas dos partidos
burgueses, como Café Filho e Pedro Ernesto, interventor da capital federal. Já a fração da
esquerda “radical” era composta fundamentalmente pelo Partido Comunista do Brasil (PCB),
pelo Bloco Operário e Camponês e por uma parte das organizações sindicais. Fundado em
1922, o PCB era formado por uma vanguarda que não passava de algumas centenas de
militantes na década de 1930. Estima que o PCB tinha “mais ou menos 1 000 militantes em
27
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo. (1888-1988). Trad. Magda
Lopes. Bauru. São Paulo: EDUSC, 1991.p.139.
28
CARONE, Edgard. A republica nova (1930-1937). 2. ed. São Paulo: Difel,1976, p. 234
31
todo o Brasil” em meados de 1930. De qualquer forma, sua oposição ao governo era limitada.
Ele só adquiriu maior inserção popular durante o breve período da Aliança Nacional
Libertadora, em 1935. Do ponto de vista externo, o partido era membro da Internacional
Comunista, sediada em Moscou.
29
1.6. O PENSAMENTO RACIAL.
As teorias do racismo científico (darwinismo social e evolucionismo, por exemplo) na
Europa, que remontam à segunda metade do século XIX, ganharam força no Brasil depois da
abolição da escravatura e, na medida em que essas teorias estabeleciam distinções biológicas
e hereditários entre negros e brancos, naturalizaram as diferenças entre as raças.
30
A elite
intelectual brasileira se baseou nessas teorias para explicar a situação racial do país e apontar
caminhos para a construção da nacionalidade. O dilema colocado era: como construir uma
nação civilizada e desenvolvida num país com uma massa de ex-escravos e afro-
descendentes? Como expõe Kabengele Munanga, a preocupação da elite, “apoiada nas teorias
racistas da época, diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança inferior do
negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira”. Para essa elite, a
pluralidade racial representava uma ameaça e “um grande obstáculo no caminho da
29
CARONE, Edgard. A republica nova (1930-1937). 2. ed. São Paulo: Difel,1976, p.10.
30
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870- 1930).São
Paulo: companhia das letras, 1995. p. 22.
32
construção de uma nação que se pensava branca, daí porque a raça tornou-se o eixo do grande
debate nacional” no final do século XIX e nas primeiras décadas do XX.
31
De acordo com esse ideário, a miscigenação produzia naturalmente uma população
mais clara, em função de dois fatores: primeiro, o branco era biologicamente superior ao
negro; segundo, as pessoas tendiam a procurar parceiros mais claros para se casar. A união de
casais mistos desencadearia o surgimento de uma população mestiça, sempre disposta a
tornar-se mais branca, tanto física como culturalmente. Esse processo seria acelerado com a
chegada em massa de imigrantes europeus.
32
Naquela época, ocorreu um debate “científico”
entre intelectuais e políticos concernente ao tempo necessário para a extinção do negro em
terra brasilis. As previsões oscilavam de um a quatro séculos.
Depois de muita discussão (no parlamento e na sociedade civil), foi aprovado o art.
121, §§ 6
o
, da Constituição de 1934, regulamentando a imigração. Eram impostas restrições à
entrada de imigrantes no território nacional a fim de garantir a “integração étnica”.
Esses ideários postulavam a superioridade inata do branco nos planos biológico,
cultural e intelectual. O negro era visto como inferior ou - como informava o jornal O Clarim
da Alvorada - muitos “ainda pensam que negro não é gente”.
33
Além disso, a F.N.B apareceu
num quadro em que ainda circulavam teorias que condenavam a mestiçagem. Na perspectiva
da matriz de pensamento europeu, a mestiçagem era a causa da degenerescência de um povo,
um entrave para a evolução civilizatória de um país.
No que tange à conjuntura internacional do protesto negro, a FNB nasceu sob o
espectro do pan-africanismo. Foi esse movimento que lançou a idéia de uma ancestralidade
31
MUNANGA, Kambengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986. p. 51.
32
SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976.p. 45.
33
O Clarim da Alvorada. São Paulo, 08/11/1931, p.1.
33
comum entre os negros de todo mundo, daí sua proposta político-ideológica de solidariedade
racial e reabilitação do descendente de africano em escala internacional. Muitos pensadores
negros da época apontavam a questão da raça como elemento fundamental para explicação da
história no plano mundial.
Du Bois foi um dos principais líderes negros nos EUA na primeira metade do século
XX. Ele avaliava que a questão racial era a chave explicativa da história. Suas palavras, nesse
sentido, eram incisivas: “A história do mundo é a história, não de indivíduos, mas de grupos,
não de nações, mas de raça, e quem ignora ou procura anular a idéia de raça na história
humana ignora e anula a idéia central de toda a história”. Em outro momento do mesmo texto,
ele escreveu: “o problema do século XX é o problema da barreira racial – a relação das raças
mais escuras com as raças mais claras na Ásia e na África, na América e nas ilhas
oceânicas”.
34
A partir deste pensamento, surgiram varias reações, entre elas, até igrejas foram
erguidas para particularizar e valorizar a raça negra.
Garvey fundou sua própria igreja, a African Orthodox Church, onde os anjos eram
negros e o diabo era branco. Esse simbolismo, segundo ele, evitava que negros passassem
pela humilhação de cultuar as imagens de homens brancos. Chegou mesmo a declarar que
Deus e Cristo eram "pretos". Aconselhava os negros a cultuarem os heróis negros e apenas
comprarem dos próprios negros.
35
Organizou empresas cooperativas: mercearias, lavanderias,
restaurantes, hotéis e tipografias.
36
Para contestar a existência da Casa Branca (símbolo
máximo do poder nos EUA), propôs a criação da Casa Negra, local onde um negro eleito
presidiria, durante quatro anos, aos destinos dos seus "irmãos de cor". Organizou o Corpo dos
Enfermeiros da Cruz Negra e proclamou-se presidente dos Estados Unidos da África. Criou
34
DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Trad. Heloisa Toller Gomes. São Paulo: Lacerda, 1999, p. 64.
35
RALSRON, Richard Davi. A África e o Novo Mundo. Estória Geral da África. São Paulo: Ática; Unesco, 1991. p.775.
36
ROSE, R. S. Uma das coisas esquecidas: Getúlio Vargas e controle social no Brasil (1930-1954). São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, p.297.
34
uma Legião Africana Universal, cujos membros ostentavam um uniforme cintilante e dirigiam
paradas de massas.
Na concepção de Elizabeth Nascimento, havia três necessidades básicas para o negro:
a afirmação de sua dignidade e amor próprio; a conquista de uma África independente e
unida; e a criação de instituições autônomas, para impulsionar a vida das comunidades
negras.
37
Ressaltaram, assim enfatizadas, a importância de reabilitação da história da África
como o continente que teria sido o berço da humanidade, e a indispensável união dos negros
do mundo, independente da política, religião e fronteira geográfica ou cultural. Em outras
palavras, ele propugnava a unidade de todos os negros, da África e da diáspora.
Com a exceção da Etiópia e da Libéria, toda a África estava submetida à dominação de
potências européias e dividida em colônias de dimensões diversas no início da década de
1930. A África não foi atacada apenas em sua soberania, mas também em seus valores
culturais como religião e modo de vida tradicional.
O objetivo essencial das autoridades coloniais era a exploração dos recursos africanos,
fossem animais, vegetais ou minerais, em benefício exclusivo das potências metropolitanas,
sobretudo de suas empresas comerciais, mineiras e financeiras. O apogeu do colonialismo
transcorreu da Primeira Guerra Mundial a 1935, sendo marcado pela instalação de uma infra-
estrutura rodoviária, ferroviária e telegráfica, assim como “pelo engodo de uma certa
evolução social, por causa da abertura de escolas primárias e secundárias”
38
.
Para justificar a dominação da África, os europeus lançaram mão de diversas teorias.
A principal delas foi a do darwinismo social, que assegurava caução científico aos partidários
da supremacia da “raça” branca. Invocando o processo inelutável de “seleção natural”, em que
o forte domina o fraco na luta pela sobrevivência, dizia-se que a “raça” não evoluída (negra)
37
NASCIMENTO, Elizabeth Larkin. Pan Africanismo na América do Sul: emergência de uma rebelião negra. Petrópolis
vozes, 1999, p. 86.
38
BOAHEN, Alberto Adu. A África diante do desafio colonial. Historia Geral da África. São Paulo: ed. Ática: Unesco, 1991,
p. 36.
35
estava sendo conquistada pela “raça” superior (branca) (cf. Uzoigwe, 1991: 46). Igualmente,
propalava-se que os europeus estavam levando o progresso e a civilização para uma África
atrasada e primitiva.
1.7. A FUNDAÇÃO DA F.N.B.
No início do ano de 1931, Francisco Costa Santos, o “Chico”, iniciou um trabalho
político de agitação em prol da fundação de uma nova entidade negra em São Paulo. Ele
procurou Isaltino Veiga dos Santos para colaborar nessa empreitada. Este em princípio não se
animou, pois ainda se encontrava desapontado com o fim do Centro Cívico Palmares, em
1929. Porém, ante a insistência, aceitou o desafio e se entregou de “corpo e alma à obra”
39
de
mobilizar os negros pela criação de uma entidade com os mesmos fins “elevados” do Centro
Cívico Palmares. Chegou-se ao consenso de que se fazia necessário lutar pela “Segunda
Abolição”. Acreditava-se que o momento era oportuno para uma virada de mesa na correlação
de forças raciais. As primeiras reuniões, ainda informais, aconteciam na Praça da Sé, onde os
negros se encontravam todas as tardes para conversar
40
.
As primeiras reuniões tiveram um saldo positivo e criaram as condições para que os
ativistas e grupos independentes se unissem, numa demonstração de que não deveriam
continuar atuando isoladamente. Depois de amadurecida a idéia, em várias reuniões formais,
um núcleo de ativistas fundou oficialmente a Frente Negra Brasileira – União Político-Social
39
A Voz da Raça. São Paulo, 01/04/1933, p.1.
40
MAUÉS, Maria Angélica Motta. Da “branca senhora” ao “negro herói”: a trajetória de um discurso racial. Estudos Afro-
asiáticos, Rio de Janeiro: n 21 p.98.
36
da Raça, em 16 de setembro de 1931, após quarenta e três anos da abolição jurídica da
escravatura.
Seis meses depois, o jornal A Pátria, do Rio de Janeiro, publicou na primeira página:
“Com a vitória do movimento revolucionário, surgiram problemas de interesse social que se
relacionam diretamente com os direitos da cidadania brasileira. Em S. Paulo organizou-se um
movimento considerado triunfante – a fundação da Frente Negra Brasileira”.
41
Além da Revolução de 1930, outros fatores estimularam o surgimento daquela
entidade. O espírito de união e solidariedade da população negra foi um desses fatores. A
solidariedade é o principal elo de coesão dos militantes do movimento social. Ela é assentada
num referencial comum de valores e ideologias construídos na trajetória do grupo, ou é
originária dos usos e tradições comungadas previamente pelo grupo. Isto não significa que,
internamente, os movimentos sociais sejam espaços harmoniosos ou homogêneos. A
solidariedade não anula as diferenças e os conflitos internos entre os militantes dos
movimentos sociais.
Gohn aponta que as carências têm que se traduzir em demandas, que por sua vez,
poderão se transformar em reivindicações, por meio de uma ação coletiva. O que converte as
carências em reivindicações são as ações concretas dos homens, “ações que só projetam
aqueles homens em algum tipo de cenário após fundirem a legitimidade e a justeza das
demandas, o poder político da base social demandatária junto ao núcleo alvo de suas
reivindicações e [...] a cultura política do grupo reivindicante em termos de trajetória que
tenha construído ao logo da história”.
42
41
A Pátria. Rio de Janeiro, 01/03/1932, p.1.
42
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 3.ed. São Paulo: Loyola
2002. p. 251.
37
Seu surgimento é fruto da combinação dos fatores: carências e reconhecimento das
mesmas, legitimidade da demanda, ação proposital das lideranças, poder político das bases,
cenário conjuntural e “cultura política” aprendizagem adquirida a partir das experiências do
grupo. São todos esses fatores que possibilitam a organização e mobilização do movimento
social.
Ao justificar a origem do nome da entidade no jornal A Voz da Raça, Marcos
Rodrigues dos Santos endossava essa explicação: “Do advento revolucionário de 1930,
nasceram várias instituições tomando a denominação de frentes: dentre as quais a Frente
Negra Brasileira”.
43
A proposta era de formar uma frente (ou coalizão) política que unificasse
todos os negros do país em uma única organização.
Frentenegrino era o “título” dado a todos que pertenciam a F.N.B. Às vezes, o jornal
da entidade também os designava de “descendentes de Zumbi” ou “novos Zumbis”, que
teriam a missão de “tremular” a bandeira frentenegrina em todas as cidades do país.
44
Com pouco mais de um mês de existência, o secretário-geral da F.N.B, Isaltino Veiga
dos Santos, declarava para o jornal Folha da Noite que a entidade “já recrutou, em S. Paulo, 3
000 homens de cor”.
45
Dois meses depois, o mesmo Isaltino dos Santos redigiu um manifesto
em que afirmava que a FNB já havia alistado “perto de 22. 000 (vinte e dois mil) homens
negros, sendo que 6 500 na Capital, 2 500 em Santos, e o restante nas Delegações
[‘filiais’]”.
46
Já o ofício que foi encaminhado para o então interventor federal no Estado de
São Paulo, Pedro de Toledo, em 27 de maio de 1932, informava que a entidade possuía “um
quadro efetivo, na capital, de quinze mil associados”.
47
Em novembro de 1932, Arlindo Veiga
43
A Voz da Raça. São Paulo, 02/1937, p.1.
44
A Voz da Raça. São Paulo, 01/1937, p.4.
45
Folha da Noite. São Paulo, 22/10/1931, p.3.
46
Amparo Jornal. Amparo, 20/12/1931.
47
Ofício ao Interventor Federal no Estado de São Paulo, Dr. Pedro de Toledo, em 27 de maio de 1932. Prontuário n
o
. 1538.
Frente Negra Brasileira. Delegacia de Ordem Política e Social (DEOPS)/SP, Arquivo do Estado de São Paulo (AESP).
38
dos Santos anunciava, no periódico A Platéa, a existência de 50000 “correligionários”.
48
No
seu auge, a F.N.B contava com milhares de associados.
A F.N.B não era qualquer entidade, mas sim a “maior entidade racial na América do
Sul”.
49
Do ponto de vista espacial, a FNB foi expressão de um movimento social urbano, com
inserção interestadual. No que tange à origem social, a maior parte dos afiliados de base da
FNB tinha uma origem humilde, sendo funcionários públicos, (guarda-livros-policiais),
trabalhadores de cargos subalternos (“chofer”, “funcionários das Estradas de Ferro”) e de
serviços braçais (“auxiliares de oficinas”). Muitos eram subempregados ou simplesmente
desempregados.
No entanto, os cargos de direção da F.N.B eram ocupados geralmente por afro-
descendentes inseridos nos estratos intermediários do sistema ocupacional da cidade e em
mobilidade social. Além de socialmente emergente, a maior parte das lideranças da F.N.B era
letrada. Elas também demonstravam familiaridade com a literatura especializada nas relações
raciais e na história do negro do Brasil, sendo que tal literatura era freqüentemente invocada.
Maria de Lourdes Rosário lembrava que Etíope Resgatado [1758], de Manoel Ribeiro Rocha,
foi um dos primeiros livros a defender idéias abolicionistas no país.
50
O interessante é saber
que, em 1937, quatro anos após o lançamento de Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre já
era lido e tido, por um setor do movimento negro, como uma das maiores autoridades
intelectuais da questão racial no país. Gilberto Freyre ainda tem sua obra citada em outra
edição do jornal da entidade.
51
48
A Platéia. São Paulo. São Paulo, 07/11/1932, p.1.
49
A Voz da Raça. São Paulo, 01/1937, p. 4.
50
A Voz da Raça. São Paulo, 15/07/1933, p. 1.
51
A Voz da Raça. São Paulo, 06/1937, p. 6.
39
A F.N.B. pretendia “lançar a primeira semente de uma campanha de reabilitação dos
homens de cor no país”.
52
, cujo principal ideal era o da integração do negro na sociedade
brasileira. Esse ideal era propalado de maneira recorrente pelos dirigentes da organização.
Arlindo Veiga dos Santos era um deles: “Defender a integralização absoluta, completa, do
negro, em toda a vida brasileira – política, social, religiosa, econômica, operária, militar,
diplomática, etc.”.
53
Já que o objetivo supremo da F.N.B. era o da integração, rejeitava-se a
via da segregação racial. Havia unanimidade em condenar o ódio entre as “raças” e a solução
segregacionista estadunidense. A intenção da FNB não era criar separatismos ou instituições
paralelas (igrejas, bancos e instituições de ensino só para negros) como existiam nos EUA, e
sim garantir aos negros, que em comunhão com os “patrícios” brancos, fizessem parte de
todas as instituições do Estado nacional. Para tanto, as lideranças frentenegrinas remetiam-se
ao discurso de união nacional. Arlindo Veiga dos Santos enfatizava: “Queremos um Brasil
fraternal, despojado dos preconceitos mesquinhos, afirmando braço-a-braço o irmão Negro e
o irmão Branco”.
54
O maior e mais importante departamento da F.N.B. era o de Instrução, também
chamado de Departamento de Cultura ou Intelectual, que era o responsável pela área
educacional da F.N.B. O conceito de educação, articulado pela entidade, era amplo,
compreendendo tanto o ensino pedagógico formal, quanto a formação cultural e moral do
indivíduo. A palavra educação era usada freqüentemente com esses dois sentidos. Já a palavra
instrução tinha um sentido mais específico: de alfabetização ou escolarização.
A educação, muitas vezes, era vista como a principal arma na “cruzada” contra o
“preconceito de cor”. Os negros deviam estudar, afirmava José Bueno Feliciano, “a fim de
52
Diário de São Paulo. São Paulo, 17/09/1931, p. 5.
53
A Voz da Raça. São Paulo, 29/04/1983, p. 1.
54
A Voz da Raça. São Paulo, 29/04/1933, p. 1.
40
não serem insultados a cada momento. Instruídos e educados seremos respeitados; far-nos-
emos respeitar”.
55
Acreditava-se que os negros, na medida em que progredissem no campo
educacional, seriam respeitados, reconhecidos e valorizados pela sociedade mais abrangente.
A educação teria o poder de anular o preconceito racial e, em última instância, de erradicá-lo.
A instrução também seria o principal meio pelo qual o negro adquiriria cultura que, naquela
época, era entendida como sinônimo de civilidade.
A primeira iniciativa, entre tantas outras, do departamento foi a criação, em 1932, de
um curso de alfabetização de adultos, e, em 1933, anunciou-se o projeto de fundação de uma
“instituição escolar”, com o nome de “Liceu Palmares”, a fim de “ministrar ensino primário,
secundário, comercial e ginasial”. Notificou-se, também, que esta “instituição escolar”
aceitaria alunos, independente de serem ou não sócios da F.N.B; “assim como brancos,
brasileiros ou não”.
56
O Departamento Jurídico-Social era o encarregado de prestar assistência jurídica aos
frentenegrinos. Mas a assistência jurídica só era prestada aos associados da entidade. Este
departamento resolvia os problemas relacionados à violação dos direitos trabalhistas, e,
igualmente, atuava nos problemas relacionados à violação dos direitos civis, sobretudo, nos
casos de discriminação racial envolvendo seus associados. Primeiramente, os problemas eram
comunicados ao Grande Conselho, que tentava resolvê-los amigavelmente, caso não
conseguisse, encaminhava-os a uma assessoria jurídica, daí, os advogados entravam em ação.
O departamento médico ou de saúde, era incumbido de assegurar o atendimento
médico e odontológico para os associados. A F.N.B. ventilou a hipótese de construir um
55
A Voz da Raça. São Paulo, 24/06/1933, p. 4.
56
A Voz da Raça. São Paulo, 25/03/1933, p. 4.
41
hospital próprio, para “minorar as infelicidades” que afligiam os “patrícios negros” na
época.
57
O Departamento de Imprensa era o responsável pela publicação do jornal denominado
A Voz da Raça, que trazia embaixo das letras garrafais do título a mensagem: “O preconceito
de cor no Brasil só nós os negros podemos sentir”. O jornal informava ser um “semanário
independente”. No transcurso do tempo, além de não conseguir manter a regularidade, ele
mudou a periodicidade de publicação. Se a princípio era semanal, depois, tornou-se quinzenal
e, por último, mensal. Foi publicado de 18 de março de 1933 a novembro de 1937, somando
um total de 70 edições. Como era típico da imprensa de diversos grupos étnicos que viviam
em São Paulo na época (como, por exemplo, italiano, espanhol, francês, lituano e nipônico), A
Voz da Raça foi um jornal que voltou sua atenção, quase que exclusivamente, para um
público específico: a população negra, noticiando as questões peculiares da vida dessa
população em suas páginas.
O Departamento Dramático (ou Artístico) era o responsável por organizar o Corpo
Cênico Frentenegrino. Tratava-se do grupo de teatro amador da entidade, que sob a
coordenação do professor Benedito Glicério de Andrade, oferecia aulas de artes cênicas e
freqüentemente preparava a apresentação de peças em determinados eventos, como nos
“festivais litero-dramáticos e dançantes”, nas festas comemorativas de 13 de Maio e de
aniversário de fundação da entidade. Às vezes, o grupo também se apresentava nas delegações
da FNB do interior. Havia, ainda, o departamento musical, o esportivo entre outros.
A F.N.B. criou uma série de símbolos identitários, como bandeira, hino, carteira de
associado contendo foto e dados pessoais (nome, filiação, profissão, data de nascimento,
naturalidade, etc). A simbologia da F.N.B. servia, outrossim, para aprofundar os laços
internos, para propaganda da entidade e para arregimentar novos militantes.
57
A Voz da Raça. São Paulo, 28/10/1933, p. 4.
42
A bandeira da FNB tinha quatro cores: branco, vermelho, preto e verde, com cada uma
delas simbolizando algo. O branco representava o português, “primeiro colonizador desta
parte do globo”; o vermelho, os índios, “os primeiros habitantes desta região”; o preto, o
negro, que “transportado para estas plagas, aqui se aclimatou perfeitamente bem”; o verde, em
forma de Palmeira, representava “aquela formidável concentração de negros na Serra da
Barriga, como protesto contra a escravidão em que viviam, proclamando a república de
‘Palmares’”.
58
A F.N.B. promovia diversos eventos em sua sede em São Paulo, dos quais adquiriram
destaque especial as chamadas domingueiras. Tratava-se de reuniões semanais organizadas
pela direção da entidade, tendo em vista desenvolver os “bons dotes”
59
no negro, elevar seu
nível cultural e, principalmente, despertar-lhe uma consciência crítica para o exercício da
cidadania.
No carnaval, a F.N.B chegou a promover bailes e um concurso entre as agremiações
recreativas negras da cidade. Outra data celebrada era o 13 de Maio, dia da abolição da
escravatura. Tratava-se de um evento solene que a grande imprensa costumava divulgar: “A
‘Frente Negra Brasileira’ vai promover, no próximo dia 13, data da libertação dos escravos,
brilhantes comemorações, tendo sido organizado um atraente programa, do qual constam
vários festejos. As comemorações prolongar-se-ão até o dia 14”.
60
No dia de São João, 24 de junho, a F.N.B organizava em sua sede uma festa junina:
“realizou-se sábado próximo passado a tradicional festinha de São João, no quintal da sede da
Frente Negra Brasileira; com batatas assadas, churrasco e outras cositas mais”.
61
No natal, a
entidade também organizava uma festa de confraternização entre as famílias dos associados.
58
A Voz da Raça. São Paulo, 08/1936, p. 1.
59
Diário de São Paulo. São Paulo, 12/11/1934, p. 2.
60
Diário de São Paulo. São Paulo, 10/05/1933, p. 4.
61
A Voz da Raça. São Paulo, 01/07/1933, p. 2.
43
Na ocasião, eram distribuídos brinquedos para as crianças frentenegrinas pelas mãos
do negro “Pai João” em lugar do branco Papai Noel.
Em algumas cidades do interior de São Paulo, havia o costume de se vetar o passeio
dos negros na parte interna das praças públicas. Tal área era reservada apenas para os brancos.
Mas quando a F.N.B. tomava conhecimento desse costume, não era raro haver protestos. Um
grupo de frentenegrinos se dirigia a essas cidades e chegando lá, supõe-se que eles desafiavam
a linha de cor e por vezes ocupavam a parte interna das praças. Paralelamente negociavam
com as autoridades locais o fim daquele costume discriminatório.
Recebendo uma educação sadia na família, o negro estaria preparado para os desafios
da vida moderna, acreditava-se. O aprendizado adquirido no seio familiar também sustentaria
a comunidade negra, tomada, muitas vezes, como uma “grande família”.
Como a família organizada era concebida como a “célula mater” da unidade da “gente
negra”, a F.N.B. propiciava não só o espírito familiar entre seus associados, mas também
ambiente para que eles contraíssem laços de uniões amorosas. A família ideal era aquela
formada por um casal de negros e por sua conseqüente prole. De preferência, tal família
deveria ter consciência racial, ser militante da causa anti-racista e prezar pelos laços de
sociabilidade no meio negro. Comumente, o termo “família negra” também era utilizado com
o sentido de comunidade ou população negra: “É de lastimar-se o que se vem de notar
ultimamente no seio da família negra de São Paulo. De um lado, é o negro que combate o
próprio negro; de outro lado, uma desorganização completa em toda a linha. [...] A F.N.B. é a
única advogada da causa negra, única entidade cívica capaz de resolver tudo que diz respeito
ao nível moral e intelectual da família negra brasileira”.
62
62
A Voz da Raça. São Paulo, 03/06/1933, p. 2. Ver também A Voz da Raça. São Paulo, 07/1936, p. 3.
44
Para as lideranças da F.N.B, a “civilização” brasileira tinha uma vocação “cristã”, em
sua vertente católica, e cumpria ao negro assumir essa vocação. O catolicismo era concebido
“não apenas como um ‘elemento civilizatório’ valioso, mas também como um fator unificador
importante para a criação de um espírito nacional”.
63
Neste sentido o termo “comunidade”
pode ter sua origem na tradição católica para uma abordagem mais religiosa do que política.
Dependendo dos traços fenotípicos (cor da pele, tipo de cabelo, espessura dos lábios e
nariz), da condição de classe ou do nível cultural, o indivíduo podia se passar por negro,
mestiço de negro ou de índio, e, em casos extremos, queria se passar por branco. Em outras
palavras, o indivíduo podia negociar sua identidade racial. Na década de 1930, porém, a
questão da identidade racial ainda não estava em voga no movimento negro.
Um outro aspecto da identidade do negro enfocado pela F.N.B. foi a “ideologia do
branqueamento”. Segundo uma das lideranças da FNB, Horário da Cunha, era comum os
negros, de “confiança” dos brancos, escutarem o seguinte comentário expressando elogio:
“Este preto sim; é preto na cor, mas branco nas ações”.
64
Também era habitual que os negros
ouvissem, em tom elogioso, que eles tinham a “alma branca”. A “ideologia do
branqueamento” pode ser definida como uma associação do epíteto “branco” ao que existe de
positivo (virtudes) e, no vértice oposto, o epíteto “negro” ou “preto” ao que existe de negativo
(defeitos). Essa ideologia foi tão eficaz que eivou a consciência dos negros: ter a “alma
branca” passou a ser uma meta para alguns deles. Entretanto, uma liderança frentenegrina
condenava esse mecanismo de “branqueamento”.
As lideranças frentenegrinas abordaram o caso dos negros que haviam incorporado os
valores do que foi por elas denominado “branqueamento social”. Trata-se de uma alusão aos
63
HOFBAUER, Andréas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo, 1999. Tese de (doutorado)-
Universidade São Paulo-Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1999, p. 298.
64
A Voz da Raça. São Paulo, 01/1937, p. 4.
45
negros que, devido à ascensão social, teriam se afastado de sua comunidade de origem
(família, bairro e ciclo de amizade). Aqueles negros que não queriam assumir sua identidade
racial eram criticados pela F.N.B. e recebiam uma alcunha específica: “negróides”. Conforme
escreveu Sebastião José Soter, os “negróides” eram “aqueles que, movidos por uma
ignorância ilimitada, fingem não conhecerem a sua descendência racial”.
65
Mais de uma década depois, o frentenegrino Sebastião José Soter apresentava a
seguinte definição: chama-se raça “o conjunto de indivíduos semelhantes, pertencente a uma
mesma espécie pela sua forma orgânica”.
66
As lideranças frentenegrinas continuavam a
defender os pressupostos evolucionistas, mas já naquele momento, de maneira reelaborada. O
conceito de raça predominantemente ventilado pela FNB não tinha um cunho biológico e sim
cultural. Raça era categoria utilizada, na maior parte das vezes, como sinônimo de cultura ou
civilização.
Como o conceito de raça não tinha um caráter biológico, havia o consenso de que a
inferioridade do negro não era inata: ele não nascia, mas se tornava “inferior” em relação ao
branco, no decorrer do tempo, como produto direto do seu deficiente aprendizado cultural ou
civilizatório. Assim, para sair desse estado de inferioridade, o negro teria que tomar um banho
de cultura e civilização. E um dos locais ideais para tal feito era a “escola” F.N.B.
Se, por um vértice, a liderança frentenegrina negava a hierarquia biológica entre as
raças, por outro, ratificava a hierarquia cultural. Por esse prisma, não tinha dúvida que os
negros se encontravam num estágio de desenvolvimento cultural inferior ao dos brancos.
65
A Voz da Raça. São Paulo, 17/03/1934, p. 2.
66
A Voz da Raça. São Paulo, 17/03/1934, p. 2.
46
A “macumba” e a “capoeira”, por exemplo, quase não foram tematizadas no A Voz da
Raça. Encontrou-se apenas uma menção à capoeira
67
e menções esparsas aos termos
“macumbaria” e “macumbeiros”.
68
E tais menções, exceto em um único caso, tinham uma
conotação pejorativa.
A reprovação de tais manifestações culturais (o samba e o batuque) também residia no
fato de elas causarem um efeito desabonador à imagem pública da população negra, de um
modo geral, e dos frentenegrinos, em particular.
O samba, na maior parte das vezes, era visto como uma manifestação cultural
“inferior”, em descompasso com os mores de uma sociedade civilizada. Por isso, em
determinado editorial (“Pela liberdade da raça”), o jornal da F.N.B exclamava que os
“homens de cor, quase na sua maioria, ainda continuam indiferentes ao desenvolvimento
moral e intelectual da nossa raça, entretida talvez com coisas fúteis, como as danças exóticas
– congo, samba, fox, etc.”.
69
A F.N.B. celebrava vários negros de “sucesso”, nos campos cultural, artístico,
desportivo, político e histórico com a intenção de construir ícones (símbolos positivos), nos
quais os negros pudessem se espelhar. No terreno artístico, alguns dos negros celebrados
foram Martins Fontes e Pixinguinha, que seriam “os verdadeiros representantes da nossa raça
nessa modalidade artística”.
70
Na área da literatura, Benedito Otávio, “o extraordinário poeta
negro”, foi adjetivado de o “expoente máximo das letras pátrias dos nossos dias”.
71
Um outro
poeta negro saudado foi Lino Guedes.
67
A Voz da Raça. São Paulo, 08/1937, p. 4.
68
A Voz da Raça. São Paulo, 01/04/1933, p. 1.
69
A Voz da Raça. São Paulo, 29/06/1935, p. 1.
70
A Voz da Raça. São Paulo, 16/09/1933, p. 3.
71
A Voz da Raça. São Paulo, 17/06/1933, p. 4.
47
A F.N.B. deu continuidade ao empreendimento iniciado pelo movimento abolicionista,
daí a necessidade de rememorizar os líderes deste movimento. De todos os abolicionistas, o
mais exultado foi Luís Gama, que recebeu o epíteto de “patrono da raça negra”.
72
Em relação aos “heróis” da história do negro no Brasil, os nomes mais apreciados
eram os de “Zambi” (termo como na maior parte das vezes se referiam a Zumbi) e Henrique
Dias. Os frentenegrinos credenciavam-se como “dignos sucessores” deles. Quanto à
concepção da história do Brasil, a F.N.B. elegeu o Quilombo de Palmares como o maior
símbolo da luta e da resistência negra. O jornal da entidade, A Voz da Raça, foi o primeiro
órgão da imprensa negra brasileira que realizou um trabalho de reabilitação da experiência
daquele quilombo. Os “Palmarinos” eram lembrados e relembrados afirmativamente com
certa freqüência.
Em certas delegações do interior e de outros Estados existia o “núcleo de senhoras”
73
ou “Diretoria Feminina”.
74
No entanto, ao se fazer uma avaliação mais rigorosa da FNB central, verifica-se que as
mulheres eram subalternizadas na entidade e excluídas dos cargos das instâncias decisórias, os
quais eram monopolizados pelos homens. Nenhuma das frentenegrinas, por exemplo, compôs
o “Grande Conselho”. Isso acontecia, provavelmente, porque prevalecia a concepção de que o
papel social reservado “às meninas e moças” era o de “futuras esposas e mães”.
75
De toda
sorte, é plausível afirmar que as mulheres negras se dedicavam ativamente a F.N.B. “A
reunião de ontem [da FNB]”, noticiou o Diário de São Paulo, “caracterizou-se pelo
extraordinário comparecimento do elemento feminino. Cerca de 200 sócias estiveram
presentes, tendo algumas delas tomado parte ativa nos debates travados”.
76
As frentenegrinas
72
A Voz da Raça. São Paulo, 05/08/1933, p. 1.
73
A Voz da Raça. São Paulo, 03/02/1934, p. 2. Ver também A Voz da Raça. São Paulo, 29/12/1934, p. 2.
74
A Voz da Raça. São Paulo, 10/06/1933, p. 2.
75
Folha da Noite. São Paulo, 22/12/1931, p. 3.
76
Diário de São Paulo. São Paulo, 19/01/1932, p. 6.
48
até conquistaram a “Sala Feminina”,
77
um espaço na sede para tratar de suas questões. Dois
eram os organismos internos que tinham um recorte de gênero: as Rosas Negras tratava-se da
comissão (ou departamento) de mulheres que se vestiam de branco, usavam luvas e
ostentavam uma rosa preta no peito, e a cruzada feminina, que contribuía nos preparativos do
natal das crianças frentenegrinas, organizando a festa e distribuindo os presentes. Não
obstante, o objetivo central daquela comissão era fortalecer o campo educacional e cultural da
FNB.
1.8. A RELIGIOSIDADE DA F.N.B.
Fazer referencia à religiosidade da Frente Negra Brasileira, enquanto dado histórico, é
de suma importância. Aqui, trataremos dos registros históricos, e mais na frente voltaremos
com mais profundidade simbólica.
Em 1935, o deputado integralista João Fairbanks, em determinada sessão da
assembléia Legislativa de São Paulo, afirmou que Jesus Cristo era integralista, o que causou
polvorosa no recinto. Como resultado, a sessão teve que ser suspensa.
78
Embora a frase
reduza Jesus a um aspecto ideológico, ao mesmo tempo manifesta um certo grau de
identidade religiosa, ao confessar em publico a denominação religiosa que pertence. Quase a
77
A Voz da Raça. São Paulo, 23/11/1935, p. 1.
78
LEVINE, Robert M. O regime de Vargas: os anos escritos (1934-1938). Trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro, nova
fronteira, 1980. p. 164.
49
totalidade dos integralistas se proclamava cristã, sendo que o grupo majoritário era de
confissão católica.
79
A situação da F.N.B. não era diferente, havia aula de catecismo na própria sede da
entidade.
80
Algumas lideranças eram carolas, vinculados aos organismos religiosos católicos.
Arlindo Veiga dos Santos, primeiro presidente da F.N.B. e José Bueno Feliciano eram
dirigentes da congregação Mariana da Imaculada Conceição de Santa Ifigênia. Justiniano
Costa, segundo presidente da FNB, Horácio da Cunha, Raul Joviano Amaral e Cesário
Antonio dos Santos, pertenciam à direção da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, no largo do Paissandu. Essa foi de fato uma das características importantes do grupo.
Fazia-se com freqüência uso de textos bíblicos em reuniões.
Na comemoração do 13 de maio, Pedro P. Barbosa pedia que nesta hora Deus
abençoasse a Raça Negra, na trajetória de sua vida
81
. Em determinadas notas exultava-se
glória, glória a Deus nas alturas e paz na terra aos negros de boa vontade.
82
Na primeira
edição de A Voz da Raça, um artigo de primeira página de Arlindo Veiga dos Santos
recomendava que “os patrícios” que desfraldavam a jornada anti-racista fossem confiantes em
Deus e que eles deviam cultivar aquela profunda religiosidade de seus avós, cujo espírito não
os haveria de trair. “Confiantes na nossa obra e esforço, nós caminharemos firmes entre mil
dificuldades advindas da situação precária dos negros”.
83
Esporadicamente, o jornal da entidade publicava uma coluna “vida religiosa” em que
se fazia apologia cristã. Na edição de final de ano de 1933, a imagem do menino Jesus era
79
TRINDADE, Hélio. Intregalismo: O fascismo brasileiro na década de 30. 2. ed. São Paulo,Rio de Janeiro: paz e terra,
1977.p. 146.
80
FERRARA, Mirian Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo, ed. FFLCH-USP, 1986. Coleção
antropologia, n 13. p.67.
81
A Voz da Raça. São Paulo, 16/09/1933, p.2.
82
A Voz da Raça. 02/09/1933, p. 2
83
A Voz da Raça. São Paulo, 18/03/1933, p.1.
50
exibida na primeira página dentro de uma coluna e embaixo lia-se: se há gente humilde,
nenhuma como o negro; por isso no ano santo, de joelhos em terra imploramos ao menino
Jesus que nesta hora dê vida nova à família negra brasileira.
84
Nos espaços do grupo havia
missas e divulgação das atividades católicas, principalmente para os filiados da irmandade
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e da Congregação Mariana. Certos artigos da
doutrinação religiosa foram extraídos da revista católica “A Sagrada Correia”.
Muito antes que a F.N.B. surgisse como grupo organizado influenciado pela
religiosidade, vale lembrar que no século XVI, o Padre Anchieta afirmara que o jesuíta
Baltazar Fernandes tinha traduzido em língua africana a doutrina Cristã para catequese dos
escravos.
85
Com estas afirmações históricas, várias leituras podem ser feitas do uso das imagens
de santos e de invocação a Deus, sejam elas ideológicas ou de cunho político, enfim, os fatos
estão à disposição para serem interpretados. E, neste sentido, algumas perguntas perpassam
qualquer atitude ideológica: Como um Deus que outrora fora usado para dominar, matar e
escravizar tantos negros, agora é usado para dar coesão a grupos afins? Estas imagens
simbólicas tiveram papel decisivo na identidade do grupo? Quais foram os horizontes
simbólicos dos negros que permitiu o uso de tais imagens? O que significou para os negros da
FNB defenderem os cultos católicos e a participação nas congregações? São perguntas que
mais evocam do que sugerem, por isso são simbólicas.
84
A Voz da Raça. São Paulo, 23/12/1993, p.14.
85
EVENGELISTA, João M. Terra. Catequese de Índios e Negros no Brasil Colônia. São Paulo: Santuário. 1999.p.146.
51
II˚. CAPÍTULO
2. A PROBLEMATIZAÇÃO DA SIMBOLOGIA DA FRENTE NEGRA BRASILEIRA
(FNB).
O capítulo anterior trouxe para dentro da pesquisa a dimensão religiosa da Frente
Negra Brasileira através de questionamentos e afirmações. O desafio que se desdobra é
esclarecer os instrumentais teóricos para demonstrar que a F.N.B, por ser um movimento
promotor de releitura da dominação e opressão, favorece a descontrução do estereótipo que
exalta o embranquecimento provindo de uma cultura eurocêntrica e norte-americanizada e,
expressa a desmedida exclusão a partir do critério de pigmentação epidérmica e dos valores
culturais, sociais, econômicos, religiosos, entre outros, provindos da população africana
trazida ao Brasil para serem escravizadas. Esta leitura de desconstrução direciona-se a uma
transformação e libertação frente à dominação e exclusão fruto da racionalidade cientificista.
52
2.1. A RAZÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTIC0.
Os métodos e produções atuais de pesquisa referentes a F.N.B. estão baseados na
teoria dos movimentos sociais, por ser uma organização de luta reinvidicativa, mas seu foco
de ação possuiu como eixo norteador a questão racial.
A produção intelectual brasileira sobre os movimentos sociais, durante algum tempo,
estreitou o conceito de movimentos sociais, apenas com os grupos populares reivindicativos e
sindicais que tinham um recorte de classe
86
. Conseqüentemente, não se deu tanta atenção às
outras mobilizações que procuravam implantar na América Latina, especialmente no Brasil,
as lutas relacionadas a questões feministas, ecológicas, anti-racistas, juvenis, de crianças em
situação de risco ou de defesa do patrimônio urbano e rural. As questões que tinham um
cunho poli-classista foram secundarizadas. Mas, afinal, o que é movimento social?
Movimentos sociais são: ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos
pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários de
conjuntura socioeconômica e política do país, criando um campo político de força social na
sociedade civil.
As ações estruturam-se através de repertórios criados sobre temas e problemas em
conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um
processo social e político cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir
dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do principio de
86
CARDOSO, Ruth Correa Leite. Movimentos sociais urbanos: balanço critico. In: BERNARDO, Almeida, Maria Hermínia
Tavares de.(orgs) sociedade e política no Brasil pós 64. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.30.
53
solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos
partilhados pelo grupo, em espaços coletivos não institucionalizados. Os movimentos geram
uma série de ações na esfera publica (estatal e não estatal) e privada; participam direta ou
indiretamente da luta política de um país, e contribuem para o desenvolvimento e a
transformação da sociedade civil e política.
87
Neste sentido, pode-se afirmar que movimento social é a expressão das ações das
pessoas na história. E tais ações são compostas de duas dimensões: a do fazer (por meio de
diversas táticas e estratégicas) e do pensar (por meio das idéias que impulsionam ou
fundamentam a ação). Portanto, o movimento social é uma práxis. Este é um referencial
teórico bastante utilizado nas pesquisas históricas.
Isto foi acentuado, nestas últimas décadas, pelo enfoque demasiado no aspecto
econômico como leitura fundamental da realidade, principalmente, na versão do materialismo
histórico e dialético provindo do marxismo
88
.
A teoria proposta por Marx preocupava-se em entender o processo de formação
histórica a partir da divisão do trabalho provindo do modo de produção capitalista, no qual a
própria pessoa humana configurava como ser produzindo-se a si mesma, pela sua própria
atividade, pela sua maneira de viver, isto é, pelo modo de produção da sua vida material. Mas
essa produção de si mesma era usurpada pelo capital que colocava o valor do trabalho
humano dentro da lógica do lucro e da ‘mais valia’. A condição para que a pessoa humana se
torne pessoa, é pelo trabalho, mas quando o capital se apropria deste trabalho não leva em
conta a pessoa, apenas sua produção. A força de trabalho não entra no valor que o salário
deveria representar. O que se leva em conta é apenas o produto deste trabalho. E nesta lógica
perversa estaria a fonte de qualquer opressão e dominação. Portanto, a mediação entre a
87
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 3. ed. São Paulo:
Loyola, 2002, p. 251.
88
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da práxis. São Paulo: ed. Cortez, 1995 p. 99.
54
pessoa e o mundo é a atividade material, entretanto, a própria mediação é alienada por uma
lógica que não leva em conta a força que a pessoa empreende nesta atividade, gerando, assim,
um mundo no qual o capitalista se enriquece a custo da miserabilidade e empobrecimento da
pessoa que trabalha
89
.
A questão é que uma pesquisa das relações sociais e dos movimentos sociais frente à
dominação e opressão, não se esgota nesta análise de leitura marxista a partir do método
materialista histórico, tampouco nos interesses de classes, devido à complexidade presente nas
estruturas de poder que povoam as relações políticas, culturais e econômicas dentro e fora dos
movimentos sociais. A leitura marxista e sociológica é extremamente valiosa, mas não
responde as complexas e profundas vivências humanas que podem produzir opressão e,
trazem significativas questões para uma análise mais elástica e dinâmica da dominação.
A pessoa humana e os diversos movimentos sociais, principalmente aqueles que
debatem as questões raciais e étnicas, podem ser analisados, apenas, no aspecto da produção
de trabalho e da lógica do capital para compreender a dominação, exclusão e o processo de
libertação? Como classificar o ser humano, por exemplo, na dimensão dos sentimentos, da
afetividade, dos sonhos, das crenças e tantas outras que não estão diretamente imbricadas com
a produção do trabalho manufaturado ou industrial? A dimensão do lúdico e do simbólico,
que é parte integrante do ser humano, pode ser deixada de lado ao se refletir sobre questões
raciais e étnicas? Merleau-Ponty lembra como advertência os frutos da razão: Nós,
civilizações, sabemos agora que somos mortais, tanto horror não teria sido possível sem tanta
virtude. Sem duvida, foi preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens,
aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo. Saber e dever, sois, portanto, suspeitos?
90
89
Ibidem, p. 100.
90
NOVAIS, Adauto. A Crise da Razão. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.p.9.
55
Contudo, a memória da caminhada de diversos movimentos raciais e étnicas, não se
esgota no materialismo histórico, mas precisam ser incluídas outras linhas de pesquisa,
especialmente, as simbólicas. É evidente a dificuldade em relacionar a dimensão simbólica,
assim como a religiosa, com a luta dos movimentos sociais, especialmente, os raciais e
étnicos, devido a uma leitura parcial da vivência religiosa e simbólica, pois, por vários
séculos, o religioso com sua simbologia, oficialmente aceito no país, serviu para alienar e
escravizar ainda mais as pessoas, deixando-as submissas ao poder do senhor que representava
o Senhor que estava no céu. Mas, o desafio ao qual se propõe esta dissertação, é verificar e
evidenciar a dimensão simbólica do movimento negro tendo como foco de pesquisa a F.N.B.
A leitura simbólica, com a contribuição da análise do materialismo histórico, favorece
uma compreensão de que negros enfrentam experiências comuns impostas pela discriminação.
Porém, eles só se agrupam contra as injustiças de que são vítimas quando tomam consciência
delas. Quando os interesses de um grupo racial e étnico são rechaçados pela estrutura de
poder vigente, afloram as contradições e conflitos que motivam a existência de movimento
negro e de suas organizações. Assim o movimento negro surge a partir de motivações
externas e internas, percebidas e detectadas internamente, havendo uma posição política e
religiosa dentro de sua gênese. Ele é produto de conjugação de esforços deliberados dos
ativistas e da iniciativa da vanguarda, desde os tempos degradantes da escravidão.
A F.N.B por se caracterizar como um movimento de luta anti-racista não pôde ignorar
as condições objetivas da injustiça racial do país na década de 30, contudo o seu horizonte
apontava, enquanto grupo organizado, para uma compreensão que não exauriu seu conteúdo.
Ela encontrava-se situada no espaço e no tempo, mas seu significado, para o movimento
negro, não se resumiu a tal situação. As terminologias e as finalidades usadas para dar
unidade ao grupo transcenderam ao próprio grupo, no sentido de que apresentava um conceito
simbólico, que permitia uma ressignificação de tais finalidades. É a busca para encontrar na
56
parcialidade da FNB seus aspectos universais proveniente do conceito simbólico de
resistência. Por símbolo, entende-se um tipo de linguagem que mais sugere, e que transcende
a si mesmo. É uma narrativa montada para poder transmitir um sentido, um significado que
ultrapassa e que é sugerido pelas imagens e ações humanas.
91
A linguagem simbólica, em tal
sentido, torna-se mais apropriada do que a linguagem científica como expressão do
conhecimento da realidade. O conhecimento cientifico utiliza conceitos instrumentais, do tipo
matemático, e o conhecimento simbólico precisam interpretar uma experiência que não cabe
em conceitos instrumentais, mensuráveis e com o poder de controle. O símbolo faz pensar o
porquê das coisas serem assim e como podemos tomar decisões e agir bem, em vista de um
futuro mais adequado e melhor. O símbolo é prático e tem uma finalidade prática que incide
sobre o comportamento e até sobre o planejamento. O símbolo faz sentir diante dos
acontecimentos que nos envolvem, pois há sentimentos que são maiores do que nossa ação
prática. A linguagem simbólica ajuda a expressar e integrar grandes sentimentos, tanto
trágicos como místicos. O símbolo faz esperar: ao narrar a aventura da existência, mesmo em
situações trágicas, o símbolo normalmente expressa um fio dourado de esperança que
atravessa do início ao fim.
92
Não se quer questionar a contribuição das pesquisas e análises já realizadas, mas
trata-se de incluir, nas pesquisas feitas sobre a FNB, o ponto de vista do simbólico, pelo
caráter existencial com o qual aborda o ser humano.
91
SUSIN, Luiz Carlos. A criação de Deus. Teologia Sistemática. São Paulo: Paulinas. 2003, p. 27.
92
Ibidem, p.28.
57
2.2. 0 SÍMBOLO COMO PRESSUPOSTO HERMENÊUTICO
Foram feitas constatações de que os métodos de pesquisas hodiernos excluem a
desmedida, as dimensões lúdicas, existentes nas práticas do existir humano, e ao mesmo
tempo enquadra-o dentro de conceitos lógicos racionais, enquanto que o simbólico propõe
uma visão elástica da mesma realidade. Esta demonstração torna-se possível a partir da
explicitação do conceito de resistência como memória capaz de transpor o tempo cronológico
tornando-se um referencial simbólico para fortalecer a releitura com força transformadora,
inclusiva e libertadora.
Os estudos na área dos símbolos nas ciências humanas consistem em um desafio
apesar dos avanços,
93
daí, não existir uma teoria que explique todos os fatos acumulados,
nenhum quadro teórico se impõe como verdadeiro, e isso se manifesta na discrepância que
existe entre uma ciência e outra, e os vários caminhos tomados pelas mesmas, contudo a
pesquisa pretende singularizar a simbologia da F.N.B. pelo viés da analogia, pois esta permite
um paralelo com a história, ao passo em que a mesma transcende a própria história, mas
sempre na dinâmica: história e símbolo, porque em nível de realidade não há como distinguir
entre as duas dimensões. Embora a teologia transcenda as formas em que se expressa, ela só
pode se encontrar na forma histórica ou sociológica, não além ou acima dela.
94
Isso quer dizer
que a história e seus instrumentos de pesquisa científica tornam-se espaços onde a pessoa de
93
MARC, Girard. Os Símbolos na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 10.
94
SCHILLEBEECKX, Edward. Por uma Igreja mais Humana. São Paulo: Paulinas, 1989.p. 12.
58
fé especula a presença de Deus, esta presença ascende e transcende a qualquer ciência,
inclusive a teológica.
Na tentativa de uma releitura simbólica da F.N.B, é necessário o elemento teórico que
sustente e dê validade ao que se quer trazer para o debate, neste sentido a linguagem
simbólica para exercer sua função de articulação, expressão e comunicação, não precisa se
transformar em linguagem especulativa, ou seja, em linguagem levada até o conceito, pois há
na F.N.B, elementos de dimensão lúdica, como corpo, a dança, a religião e a própria
organização que foge ao conceitual. É num viés pré-conceitual desses gêneros literários que
se organiza a simbologia frentenegrina, pelo fato de serem herdeiros das tradições religiosas
africanas. Para penetrar neste universo complexo, o conceito de símbolo, ajuda a estreitar a
compreensão. O primeiro sentido que se impõe é do tipo terminológico, está opção se
enquadra melhor ao objetivo hemenêutico da pesquisa.
Símbolo provém do grego symbolon, derivado do verbo sym-ballein, que em seu
sentido primário, significa “lançar com, pôr junto com, juntar”.
95
Desta terminologia
decorrem alguns sentidos que interessam a este trabalho, de modo particular: comparar,
trocar, encontrar-se, explicar. Para começar a etimologia nos ensina que o símbolo implica,
primeiramente, uma dualidade; depois uma unificação: juntas duas coisas, formando umas só,
estas junções se fazem por ajustamento, e não por reducionismos.
96
Os traços distintivos que
a etimologia aborda, é, que neste sentido, o simbolizante é concreto. E é justamente esse
aspecto inapreensível que torna necessário e desencadeia o processo de simbolização; em
outras palavras, existem algumas zonas do real concreto que o ser humano não consegue
95
MARC, Girard. Os Símbolos na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1997. p. 26.
96
Ibidem. p. 26.
59
exprimir, a não ser por meio do símbolo. Por este sentido, a releitura tem como real concreto a
historia da F.N.B, descrita pelas ciências, e nestas ciências que se pretende interpretar
elementos simbólicos de releitura.
Com esta opção metodológica, quer-se primeiramente perceber as leituras simbólicas,
de cunho antropológico, que envolvem a F.N.B, e nesta perspectiva encontrar indícios de
releituras simbólicas como processo que esclareça sua gênese.
2.3. SÍMBOLO E CULTURA
O termo “simbólico” foi tomado em sentido restrito, em cuja pesquisa tem-se a
tentativa de enquadrá-lo como elemento de coesão e significação caracterizadas pela conduta,
que, em primeira dimensão de abordagem, encontra-se dentro da cultura. Portanto, para
refletir a etimologia do símbolo, a base será entre os dois níveis de significação: o da norma
cultural e o do semantismo da analogia. Contudo não se trata de elaborar sistematicamente
uma reflexão que abarque a totalidade do sub tema, mas apenas alguns elementos que ajude a
perceber a transcendência do simbolismo.
As ações deliberadas da Frente Negra Brasileira demonstram traços de significância
que caracterizam o simbolismo, pois não se pode falar de ação combinada e refletida sem
manter uma relação categorial em que todos os termos são dotados de intersignificação:
assim, podemos nos indagar a respeito da intenção de uma ação, quer para inquirir o que se
planejava antes de agir, quer para caracterizar o modo, livre ou forçado, como se age ou se
60
agiu (ele fez isso de propósito), quer para indicar a série ordenada de coisas que devem ser
feitas para atingir um objetivo almejado.
97
Mas, caso falarmos em ação em termos de
intenção, deveremos continuar falando dela em termos de motivos, e não de causas,
entendendo por motivo uma razão para agir, e por causa um antecedente constante. Nossos
desejos e nossas crenças são, em tal acepção, motivos, isto é, razões para fazer isso e não
aquilo, ou de preferência aquilo. E se falarmos de motivos e intenções, estaremos falando
também daquele que age. Há, portanto, um jogo de linguagem que regulamenta a semântica
da ação.
98
É justamente neste jogo de perguntas e respostas que se constitui a significação da
ação. Pode-se concluir que o simbólico é imanente à comunidade, ou a um grupo. Não é a
sociedade quem produz o simbolismo, mas o simbolismo que produz a sociedade.
99
Essas
palavras confirmam o caráter institucional das mediações simbólicas que garantem a
significância da ação. Então as ações não podem simplesmente ser detectadas ou conceituadas
pela lógica racionalista.
Compreender a Frente Negra Brasileira, quer dizer inseri-la num contexto social e
religioso, que formou a trama deste grupo com o propósito de poder avaliar o papel da sua
religiosidade e sua influência sobre outros grupos. Neste sentido, o critério mais importante
para decifrar um sistema simbólico fechado não é coerência, mas a sua eficácia social.
100
Portanto, os sistemas simbólicos forneceram um contexto de descrição para a ação individual
e coletiva da F.N.B. e, neste aspecto, possibilitaram atribuir a forma como a Frente Negra
Brasileira deu significação nova às imagens de santos, assim como fez referência a Deus.
Estes postulados religiosos foram redirecionados para dar razão de ser a existência política do
grupo. E isto se confirma pelo fato da religião ser essencialmente carregada de símbolos.
97
LAURET, Bernard e REFOULÉ, François. Iniciação à Prática da Teologia. Loyola, São Paulo: 1992.p. 32.
98
Idem.p.33.
99
Idem. p. 34.
100
Ibidem.p. 35.
61
2.4. RELIGIÃO E MITO: O SIMBÓLICO ATUANTE
A F.N.B. detinha várias imagens religiosas, assim como muitos de seus membros eram
ativos nas procissões populares católicas, tinham cursos de catequese dentro e fora da
entidade. Estes usos de imagens somado a expressão da fé, estão inseridas em um leque de
expressões simbólicas. Independente das objeções que se possam fazer a descrição do sagrado
como poder, ou como eficácia, para legitimar tais usos, ela previne contra qualquer redução
lingüística da mitologia e por extensão a racionalidade cientificista. Ultrapassamos aqui o
limiar de uma experiência que não se deixa inscrever totalmente nas categorias das ciências,
nem das transmissões ou da interpretação de uma mensagem.
101
O símbolo está relacionado
com o cosmos e se articula com a fertilidade da terra, a exuberância da vegetação, a
fecundidade do seio materno; o movimento dos astros e a alternância da vida e da morte; a
estrutura do corpo humano, ao nascimento do mundo. O caráter sagrado da natureza revela-se
quando a lemos simbolicamente.
102
Assim se torna evidente a existência da Frente Negra
Brasileira como baliza, para realçar o simbólico como chave hermenêutica em detrimento da
razão cientificista, justamente por fazer uso do religioso como sentido de vida comprometida
com a causa dos afro-descendentes na década de 30.
101
Ibidem.p. 41.
102
Ibidem.p.42.
62
Quando se afirma que o simbólico está relacionado, de modo mais especifico, a
criação do mundo entra-se em uma dimensão das cosmogonias, dos mitos fundantes. O
racionalismo afirma que o mito pertence ao mundo da aparência, da ilusão, da fabula, baseia-
se na idéia pressuposta de um desenvolvimento humano. O mundo ocidental herdou do
pensamento grego uma atitude bastante crítica em relação ao discurso mítico. O racionalismo
das luzes divisou nos mitos apenas infantilidades, absurdos, verdadeiras enfermidades do
espírito humano.
103
Neste sentido, o racionalismo aponta o raciocínio lógico para descobrir os
verdadeiros inícios. É preciso descobrir que o pensamento mítico é realmente constitutivo da
humanidade, em pé de igualdade com a razão, mas de maneira diferente.
O conhecimento mítico pode ser diferente da visão apresentada pela análise racional
de uma mesma realidade, mas não pode ser, com relação a ela, menos verdadeiramente uma
modalidade de verdade na qual se manifesta uma adesão do ser ao mundo e uma sabedoria de
vida. Ora, se o mito tem um poder tão grande de significação, se ele é uma linguagem tão
densa, não será porque sua função consiste em expressar um conteúdo de valores religiosos e
sociais?
O mito transmite um saber técnico, social, moral e, as vezes, espiritual, a partir de uma
verdadeira osmose entre a experiência cotidiana e as palavras antigas. Diferentemente da
sociedade mecanizada fruto da mentalidade contemporânea ocidental onde os conceitos é que
exprimem a realidade.
O mito é verdadeiro porque mostra ao ser humano os meios de experimentar em si as
profundas significações dos seres e das coisas. Os mitos vividos nas sociedades tradicionais
da Oceania, da África negra, das Américas, não vistos como fruto descontrolado de uma
imaginação coletiva, mas como transposições conscientes num mundo socializado, do que é a
103
Ibidem. p. 50 a 53.
63
vida afetiva do homem. O pensamento mítico revela-se, portanto, com uma sistematização
significante e se expressa mediante uma linguagem social específica, uma totalidade
organizada, formada com valores fundamentais e com o tesouro fundamental de uma
experiência acumulada ao longo das gerações, ao qual uma sociedade se reconhece e de onde
haure suas razões de viver.
104
O mito como se constatou, está relacionado às praticas, aos valores e se estende a
representação organizada do mundo, de um ideal. O mito por ter a capacidade de reesignificar
as ações humanas dentro de um contexto social, através de símbolos religiosos e de um ideal
de vida, sublinha uma experiência religiosamente ativa.
Desta forma, o mito constitui uma resposta do homem a esta realidade última que os
relatos tradicionais trazem ao seu conhecimento.
105
Portanto, a Frente Negra Brasileira não pôde ser submetida, ou melhor, reduzida a um
conceito racional de movimento social, justamente pelo fato da mesma ser portadora de um
ideal de vida, assim como herdeira dos mitos africanos, que se considerou como motor de
suas atividades.
104
Ibidem. p. 54 e 55.
105
Ibidem.p.59.
64
2.5. ALGUMAS PESQUISAS FEITAS EM TORNO DA F.N.B.
Depois da demonstração do simbólico como raiz motivadora do agir da Frente Negra
Brasileira resta explanar sobre os limites dos registros feitos a cerca do movimento na
perspectiva de garantir uma suficiente demonstração dos instrumentais teóricos. Este se torna
significativo para realizar o resgate de pesquisas e os métodos utilizados sobre a F.N.B, cuja
contribuição se direciona na compreensão objetiva da devida organização. Esta é a base
epistemológica na qual está inserida a reflexão simbólica da FNB para uma releitura
libertadora da presença africana no Brasil.
Por isso, faz-se necessário expor aspectos relevantes do histórico da F.N.B, a partir do
paradigma indiciário, ou seja, expondo os indícios desta Frente nos registros do passado para
tornar o presente fecundo de um futuro mais inclusivo. Este histórico justifica o referencial
teórico e metodológico da abordagem apresentada nesta dissertação, ou seja, a leitura
simbólica da F.N.B a partir do conceito de resistência.
A primeira investigação, que se debruçou sobre a história da F.N.B, com um perfil
analítico, foi o estudo das atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, que consistiu na
65
tese de Virginia Leone Bicudo, no ano de 1945
106
. A proposta de sua pesquisa circundou na
busca de conhecer quais atitudes os pretos e mulatos tinham frente às questões raciais em São
Paulo. Na sua avaliação, o propósito da F.N.B era de reunir os negros com a finalidade de
prepará-los para resistir aos obstáculos à ascensão social em conseqüência da sua "cor".
A pesquisadora apontou algumas formas de cumprir tal finalidade, resumida em três
tópicos: 1º.) – desenvolver a consciência de grupo ligada a atitudes de antagonismo ao branco;
2º.) – desenvolver a consciência do grupo, e pela divulgação da instrução, combater o negro
decaído e antagonista do próprio negro; 3º.) conseguir a aceitação do grupo dominante pelos
valores profissionais, educacionais e pela força política
107
.
Ao analisar o jornal A Voz da Raça, produzido pela F.N.B, Bicudo aponta que os
artigos de "negros e mulatos" se destinavam a: 1) promover a solidariedade dos negros,
despertando-lhes à consciência de grupo, a fim de reunidos se constituírem em força para uma
luta competitiva com outros grupos; 2) enaltecer o negro com o fim de eliminar seu
sentimento de inferioridade; 3) difundir a instrução e a educação moral para colocar o negro
em melhores condições culturais na competição com grupos não-negros
108
.
A autora salienta que os líderes da F.N.B, em primeiro lugar, conduziam o negro a
lutar contra o branco e, depois, contra o negro antagonista do próprio negro. Uma vez que os
líderes entendiam que a fonte geradora de inferioridade era a ignorância, passaram a
empenhar-se em enaltecer a raça, promover educação e desenvolver a instrução, com a
107
BICUDO,Virginia Leone. Estudos de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo, 1945. Tese (mestrado)
– Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, 1945.p. 254.
108
Ibidem, p.48.
66
elevação do nível intelectual e moral. Os líderes tinham a finalidade de estabelecerem uma
entidade política opositora aos brancos.
O que se tornou evidente no surgimento da F.N.B. foi a resposta encontrada por
lideranças afro-descendentes, em 1930, a uma estrutura excludente e preconceituosa tendo
como base de exclusão social o critério da pigmentação epidérmica. Os principais recortes
para mobilizar negros e afro-descendentes se direcionaram para o enaltecimento da negritude
frente ao embranquecimento da sociedade e a promoção da elevação do nível intelectual para
uma acessão social de afro-descendentes. A mobilização tinha o objetivo de superar o
preconceito que impedia o acesso a diversas esferas sociais. Este preconceito foi identificado
tanto por parte de pessoas que se denominavam ‘brancas’ e determinavam o lugar ocupacional
das outras através da pigmentação epidérmica, quanto por parte de pessoas negras e afro-
descendentes que interiorizavam um conformismo de determinação social, cultural,
econômico, religioso e etc resultante de modelos impostos de opressão.
2.6. A SIGNIFICAÇÃO DA F.N.B.
As demais leituras feitas por diversos pesquisadores
109
apontam para a F.N.B. como
expoente no surgimento da consciência negra e afro-descendente. Descrita à luz dos
movimentos sociais no meio negro, a FNB empreendeu uma luta contra o preconceito de cor e
109
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas Clássicos e contemporâneos. 3 ed. São Paulo:
Loyola, 2002.p. 247-248.
67
em defesa dos direitos sociais de pessoas que possuíam valores relacionados à influência
africana no Brasil.
A F.N.B. representou o nascimento de uma nova consciência na defesa das pessoas
negras e afro-descendentes, tendo enorme êxito não só na capital e no interior de São Paulo,
como em quase todo o Brasil. Pode-se dizer que foi a principal responsável pelo despertar de
uma consciência racial e étnica no território brasileiro.
A F.N.B. introduziu no seio da sociedade um espaço de discussão acerca dos direitos
dos negros e afro-descendentes, e a busca para garantir um tratamento igualitário, digno e
respeitável a partir da conquista de espaços sócio-econômicos de alargamento da ordem social
vigente. Na ânsia de viabilizar tais espaços, desenvolveram técnicas sociais que
credenciassem a população negra e afro-descendente como uma minoria racial integrada na
ordem vigente.
Para realizar esse projeto, a F.N.B. agiu de maneira combinada em três frentes de
atuação: 1) combatendo o tradicional modelo de dominação racial, por meio do repúdio
público às manifestações do preconceito de cor; 2) interferindo na reeducação do negro, para
desenvolver seu espírito competitivo; 3) incentivando-o a concorrer com o branco, em todas
as esferas da vida. Na combinação destas três frentes, ela operou na criação de mobilizações
que aumentaram os laços de solidariedade racial no seio da população negra.
Segundo Fernandes
110
, a F.N.B. captou as tendências de mudanças acumuladas entre
as pessoas negras quanto ao seu comportamento, personalidade e estilo de vida. Porém o
mesmo autor avalia que tais mudanças só foram possíveis em função da entidade ter levado a
110
FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. 2 ed. São Paulo: nacional, 1959.p. 54
68
cabo uma ação política reivindicatória e educativa. Sua ação possuía o método de luta
privilegiada, na qual fomentava-se a ação como etapa inicial, deixando que, ao longo dela ou
depois dela, os aderentes entendessem, como pudessem, o verdadeiro sentido dos objetivos
centrais.
Uma questão que posteriormente precisa ser enfrentada é se a F.N.B. teria priorizado a
luta para obter benefícios concretos imediatos a favor da população negra, em detrimento ao
projeto de transformação estrutural da sociedade brasileira. Mas, tomando a cabo essa
questão, pode-se afirmar, com grande convicção, em comum acordo com Fernandes, que a
F.N.B. foi um marco na luta contra o preconceito contra a negritude, implementando um
programa de proselitismo que jamais alcançou paralelo em tentativas ulteriores. Ela teria
colocado em crise o padrão tradicionalista e assimétrico de dominação racial sustentado por
um discurso tendencioso de democracia racial.
No período de 1990, depois de quase três décadas de lacuna, a F.N.B, voltou a ser
tematizada, através da dissertação de mestrado "Os sub urbanos e a outra face da cidade:
Negros em São Paulo (1900-1930): cotidiano lazer e cidadania", de José Gomes da Silva, que
procurou compreender as formas específicas por meio dos quais o negro paulistano
experimentou a condição de ser humano público no início do século XX
111
.
O pesquisador Silva reconstruiu a história da F.N.B. apontando que ela foi considerada
a expressão dos interesses da elite negra paulistana, que teria assumido a posição autêntica de
liderança no processo de auto-organização do negro. O termo elite negra justifica-se muito
mais em função do papel intelectual que esta exerceu, que propriamente pela condição
econômica que ostentava.
111
SILVA, José Gomes da. Os sub urbanos e a outra face da cidade: cotidiano, lazer e cidadania ( 1900-1930). Campinas,
1990. Dissertação de (mestrado) - Universidade de Campinas, 1990.p.103
69
A F.N.B. é vista por Silva como organização que tinha como objetivo a valorização e
ajuda mútua aos negros, com o propósito de intervenção nas estruturas de poder. Esse
objetivo permite que se divida a história da F.N.B. em duas fases. Por estar fundamentada na
solidariedade racial e étnica, a primeira fase, de 1930-1933, foi marcada pelo caráter
assistencialista, ao desenvolver um trabalho de arregimentação do negro paulistano, no
combate ao analfabetismo e ao alcoolismo, na assistência médica e na resolução do problema
habitacional da população negra.
O que marca a segunda fase foi a percepção de ir além das ações assistencialistas,
produzindo incursões no campo político, através de questionamento das estruturas e
organizações do poder na sociedade da década de 30. Essa ampliação deu origem ao
aparecimento do jornal “A Voz da Raça”, em 1933. Com o jornal, instrumento de denúncia e
debate, as discussões, que antes eram direcionadas apenas à população negra, tomaram um
patamar público e impactante para toda sociedade, especialmente na questão da democracia
racial.
2.7. A DEMOCRACIA RACIAL
O contexto político no qual nasceu a F.N.B. estava diretamente vinculado com o
debate sobre a democracia racial. As elites brasileiras, somadas aos meios de comunicação,
noticiavam, a título de vanglória, que existia uma vivência pacífica entre as várias culturas, e,
70
por extensão, não havia preconceito racial no país. Uma amostra deste debate encontra-se no
artigo publicado por Austragésilo de Ataíde, no diário de São Paulo, em 26 de fevereiro de
1932
112
.
O autor do artigo afirmava não haver questões de raça no Brasil, pois negros, judeus e
amarelos se confundiram, misturaram seus sangues com os outros sangues e, amalgamaram
numa persistente elaboração do tipo racial a que se denominou brasilidade. O referido autor
defendeu que as leis não deviam escolher as pessoas pela cor, nem distinguir brasileiras entre
brasileiras e nem ‘costumes suaves e tolerantes’ como sendo sinal de desigualdade, mas
deveriam tratar sem diferença os seres humanos, sem indagar os caracteres físicos e as suas
origens etnológicas.
Na maioria da população brasileira com traços físicos, biológicos e étnicos decorrentes
da presença de pessoas africanas escravizadas nestas terras, sobretudo a presença das
mulheres que transmitiram aos filhos não só a melanina, mas a maneira de viver e os valores
trazidos de diversos povos africanos, havia ocorrência de fechamento e não-participação
social, não era pela cor, mas pela falta de educação e pelos maus hábitos de certos indivíduos
descendentes de Cam
113
. Com essas argumentações se justificava a visão da negritude como
maldição, com a qual esperava-se que as pessoas negras podiam se resignar se estivessem
dentro dos padrões de embranquecimento estabelecido por uma elite burguesa e capitalista.
Logo, o discurso da democracia racial possuía subterfúgios maquiados pelo discurso da
igualdade perante a lei e a falta de educação.
O discurso da democracia racial mascarou as questões estruturais de poder e distorceu
o preconceito étnico e racial que perpassava a década de 30, e perdura no século XXI. Pois
112
Diário de São Paulo, 26 de fevereiro de 1932, in. Petrônio Domingues.p.20
113
CAM é o um dos filhos de Noé que segundo a lenda foi amaldiçoado e gerou a raça negra. Cam tem a mesma raiz de
Caim, possivelmente deve ter sido o mesmo. Mas isso é apenas para ilustrar a argumentação do autor, sobre a democracia
racial, que se fundamenta em falsos argumentos. in Domingues, p. 21
71
aos negros limpos, honestos e decentes, o ‘Brasil’ tinha dado as posições mais elevadas, os
cargos públicos mais elevados, as dignidades científicas mais cobiçadas. Jamais se afirmou
que alguém tivesse fracassado pela exclusiva razão de ter a pele com mais pigmentação e por
traços físicos tipicamente africanos.
Diante destes argumentos que sustentavam uma falsa democracia racial não haveria
razões aparentes para articular e fundar organizações e associações que desmascarassem tais
idéias, como foi a proposta da Frente Negra Brasileira. Infere-se daí o quanto essa Frente foi
perseguida e negada como algo que faria mal a sociedade pacífica e igualitária da década de
30.
Uma grande parte da literatura especializada sobre relações interétnicas no Brasil, da
década de 30 e que até hoje subsistem, consolidaram a justificativa, por referências
ideológicas, de que o Brasil é a maior democracia racial do mundo, fato que se evidencia na
grande diferenciação cromática dos seus habitantes
114
. Atesta-se que o português, por razões
culturais ou mesmo biológicas, tem predisposição pelo relacionamento sexual com etnias
exóticas, motivo pelo qual consegue “democratizar” as relações sociais que estabelece
naquelas áreas nas quais atuou como colonizador.
Em outras palavras estabeleceu-se uma relação direta e ideológica entre a
miscigenação (que é um fato biológico) e a democratização (que é um fato político) tentando-
se com isto, identificar como semelhantes dois processos inteiramente independentes. O meio
de não desestruturar as organizações excludentes foi escamotear a violência existente na
miscigenação e, apoiar-se nela para articular um discurso democrático que esvaziasse
qualquer reação contrária a imagem de um país pacato e cordial que estava vivendo em pleno
desenvolvimento industrial sustentado pelos financiadores estrangeiros.
114
Folha da noite. São Paulo, 10/10/1935.p.2.
72
Com o mito da democracia racial, tentou-se a todo custo mascarar, e até mesmo
anular, os conflitos étnicos e raciais, de modo que se fizesse acreditar que na sociedade
brasileira da década de 30 não existia conflito social, econômico, político ou educacional
relacionado com a questão étnica.
2.8. DESIGUALDADE RACIAL
Os argumentos apresentados que apontam para uma vivência pacífica racial e étnica
no Brasil são profundamente contraditórios e equivocados. Não havia, absolutamente, um
sistema de tratamento igualitário, fato que é facilmente verificado por vários indicadores que
apontam para uma discriminação exacerbada no estado de São Paulo em 1930.
No que toca às relações trabalhistas, os negros enfrentavam muitas dificuldades no
momento da contratação, e eram os primeiros a serem demitidos. No setor dos serviços
domésticos as empregadas negras ganhavam menos que as outras empregadas. Na educação
pública, o quadro desfavorável ao negro se repetia. Após apurar a distribuição das crianças
dos grupos escolares segundo sua cor na cidade de São Paulo em 1938, constatou-se que num
universo de 84.447 crianças, 77.587 (92%) eram brancas, 3.349 (4%) mulatas, 3.030 (3%)
negras e 454 (1%) amarelas
115
. Observe-se que a própria palavra mulato anterior a palavra
negra já designa a discriminação racial, pois o que é ser mulato? Por mulato, entende-se o
pardo, filho de mãe negra e pai branco, ou vice-versa, refere-se, também, a cor de mulo ou
115
DOMINGUES, Petrônio, p. 126-127.
73
mula, cruzamento de cavalo ou égua com jumento, e no sentido figurado, a pessoa
estúpida
116
. É, pois, uma pigmentação epidérmica que se aproxima mais da pigmentação
mais clara, considerada branca, para uma sociedade baseada nos estereótipos do
embranquecimento. Então é mais conveniente denominar-se por mulato do que por negro,
mas mesmo assim, somando a percentagem de crianças ditas mulatas e negras, estas
representavam cerca de 7% de crianças na escola formal, contra 92% daquelas consideradas
brancas.
No que tange à saúde pública a situação era de calamidade, pois o índice de
mortalidade infantil era bem superior entre população negra. Segundo estatísticas, entre 1920
e 1928, a taxa de natalidade era inferior na população negra do que na branca, por sua vez a
taxa de mortalidade era inferior nesta população do que naquela. Segundo as estatísticas, 2886
é a diferença entre o número de mulatos e negros nascidos e falecidos na cidade de São Paulo,
no período considerado (1920-1928).
117
O número de óbitos ultrapassa de um quarto o total
de nascimento desses dois elementos.
O preconceito e a discriminação raciais atingiam praticamente todas as esferas da vida
pública de São Paulo na década de 1930. A cor da pele determinava o tipo de tratamento a ser
dispensado.
Entre as instituições, pode-se citar o caso da guarda civil,
118
que não aceitava negros
em seus quadros, e instituições religiosas que incorriam na prática discriminatória. Por isso,
determinados seminários e ordem religiosas rejeitavam o ingresso de negros. Como exemplo
116
Novo Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI, versão 3.0. Editora Nova Fronteira.
117
DOMINGUES, Petrônio.p.22.
118
Ibidem, p. 23.
74
destas últimas, podemos citar a ordem dos franciscanos
119
. Existiam instituições de caridade,
como orfanatos, que não aceitavam crianças negras. Algumas escolas não aceitavam
matrículas de alunos negros, e em outras, os alunos negros recebiam tratamento diferenciado
em relação aos considerados brancos.
Em praças públicas, como no Jardim da Luz, havia separação entre negros e brancos.
Estes passeavam pelo centro, ao passo que aqueles passeavam pela margem. Determinados
restaurantes, bares e barbearias não atendiam negros. Estes também não eram aceitos como
sócios de certos clubes, e eram impedidos de entrarem em hotéis e casas de lazer, como em
cinemas, teatros e salões de baile. No esporte, os grandes times de futebol não permitiam que
jogadores negros participassem de seus elencos.
Estes dados apresentam um recorte que desmascara o discurso da democracia racial
criado justamente para encobrir a discriminação racial institucionalizada pelo estado de São
Paulo, e são uma amostra da situação das pessoas negras e afro-descendentes no Brasil na
década de 30. Esta discriminação estendia-se desde os recém-nascidos, com a mortalidade
infantil e rejeição nos orfanatos, até a exclusão no mercado de trabalho, assim como em vários
espaços sociais, políticos e culturais mais abrangentes.
Neste contexto encontra-se uma demonstração de base histórica na qual se fundamenta
a importância da F.N.B, como um esforço grandioso para reverter o quadro discriminatório
vivido por negros e afro-descendentes. Tal contexto esvazia a afirmação de Austragésilo de
Ataíde, na qual "a idéia de formar uma Frente Negra Brasileira é ridícula e terá de morrer por
falta de ambiente"
120
. Ela era infundada por dois motivos: a - essa organização buscava lutar
pelos direitos negados aos negros e afro-descendentes, logo, a idéia de sua criação estava
longe se ser desnecessária, ou, como pretendeu o articulista, ridícula, e b – com a comprovada
119
Ibidem, p. 24.
120
Diário de São Paulo, 26/02/1932.
75
discriminação racial, a F.N.B. encontrou "ambiente" favorável para se desenvolver não só em
São Paulo, mas também em alguns outros Estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e
Espírito Santo.
Portanto, é através do questionamento frente ao ‘mito’ da democracia racial que surge
a FNB, como movimento social negro, que explicitava a discriminação racial, pois para o
movimento negro, e, conseqüentemente, para a F.N.B, a "raça" e, por conseguinte, a
identidade racial, era pensada não só como elemento de mobilização, mas também de
mediação das reivindicações políticas, ou seja, a "raça" era o fator determinante de
organização dos negros em torno de um projeto comum de ação.
Dentro deste projeto a questão étnica foi focalizada como o que caracterizava os
indivíduos de um determinado grupo, no que diz respeito aos elementos culturais e
lingüísticos que deveriam ser afirmados no processo de libertação. O foco de ação, mormente
das ações afirmativas da F.N.B, foi a questão racial, pela urgência diante da tamanha
discriminação disfarçada no discurso da democracia racial.
2. 9. O IMAGINÁRIO DA F.N.B.
Ao analisar os movimentos sociais no Brasil, Ruiz afirma que eles representam uma
força viva e original na construção de imaginários, organizações e lutas sociais na história do
76
Brasil.
121
Uma vez que essas organizações tinham como participantes ex-escravos, tal
elemento foi de suma importância para uma maior aproximação do imaginário. Até mesmo
porque a realidade que precedia a F.N.B. era do período escravocrata, e na formação dessa
organização a religiosidade teve uma influência sem precedentes, ou seja, a mentalidade dos
líderes da FNB estava impregnada de ideários cristãos libertadores.
Isto fomentou a não-resignação contra a discriminação e preconceito, assim como a
desmitificação da democracia racial no país, que tinha como conseqüência a exclusão
econômica e social de negros.
Tratava-se de uma mudança radical no imaginário do negro, que outrora sendo
escravo, submetido a todo tipo de tratamento desumano, na organização política da F.N.B.
assumia uma postura significativa, do ponto de vista organizacional e religioso, que apontava
para um modelo de postura libertadora e integrada.
Ora, como é possível um grupo de ex-escravos, na sua maioria iletrados, assumirem
um compromisso na dimensão política e econômica, contra o preconceito racial? Como
entender um Deus que outrora fora usado como justificativa de escravidão, mas que passa a
ser uma presença libertadora e de coesão entre negros? O que influenciou tal organização?
Como entender essa mudança de mentalidade? Afinal qual é o imaginário da F.N.B?
Ruiz aponta, em suas pesquisas, a importância do imaginário para uma maior
compreensão da realidade, porém o autor alerta para o cuidado diante do preconceito
exacerbado ao tratar da dimensão religiosa do ser humano no horizonte do imaginário
122
. A
vinculação histórica do imaginário religioso a instituições hegemônicas a serviço dos
121
RUIZ, Castor M. Bartolomé. A força transformadora social e simbólica das CEBs. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.p.141.
122
Ibidem.p. 137.
77
interesses das classes dominantes, especificamente a Igreja Católica no Brasil, fez com que,
muitas vezes, não se diferenciasse suficientemente o fenômeno religioso da sua
institucionalização sociológica
123
. Eis por que, com freqüência, parte-se da premissa teórica
de que todo imaginário religioso é simples emanação dos interesses das classes dominantes
que tentam alienar as classes dominadas através da simbologia.
O simbólico, por ser polissêmico, é construído por qualquer grupo social, com
conteúdo de significados influenciados pelos contextos nos quais estão inseridos, somando-se
a criatividade e a dinâmica do grupo. Mas tal conteúdo não está destinado a ser objeto de
manipulação de determinada instituição. Por isso, acredita-se na potencialidade
transformadora e simbólica do imaginário da F.N.B.
O imaginário não se resume em ideologias, fantasias e crenças, embora, estas dele
façam parte; neste caso, o todo é mais que a mera soma das partes. Ele é constituído pelas
representações que as pessoas ou grupos sociais fazem da realidade. As representações não
são a realidade; porém, ela é alcançada através das representações construídas. Desta forma a
representação se torna, para a pessoa e o grupo, tão real quanto a própria realidade. Na
verdade, a representação, para a pessoa e o grupo, é mais real que a própria realidade, pois é
através da representação que se tem acesso à realidade. A representação constrói no
imaginário a realidade, e, por isso, permite que aconteçam modificações e transformações na
vida cotidiana.
A realidade não deve ser compreendida de forma isolada, e tampouco é essa a
representação dos movimentos sociais negros. Isolamento é reflexo de um modo de pensar
123
Ibidem.p. 138.
78
esbranquiçado, masculino, ocidental, cristão conservador, e, por extensão, decodificador e
racionalista. Na realidade habitual de suas relações com o mundo ou com as pessoas, o sujeito
humano funda sua crença na existência das realidades com que lida numa convicção nascida
da experiência sensível dessas realidades (ver, tocar, ouvir, palatar).
Uma representação do objeto da relação coexiste já simultaneamente à percepção
sensível e pode-se dizer que a relação não se poderia estabelecer sem essa representação.
124
A realidade se faz presente nos movimentos sociais negros, como representação da pessoa
com os componentes subjetivos e objetivos da percepção, como os sentimentos, os afetos, a
inteligência, as idéias, as construções mentais do conhecimento, as crenças e tantos outros
aspectos. O conjunto das representações construídas a partir da práxis é o que constitui o
imaginário.
A representação é a reprodução daquilo que se pensa, mediado pelo discurso na sua
concretude, para não correr o perigo de manipular a vida cotidiana de milhares de pessoas.
Portanto, ela é simbólica. A linguagem e a expressão do imaginário formam um conjunto de
representações simbólicas, definidas pelo movimento ou grupo que viabiliza a sua expressão e
comunicação. Por isso, a expressão da realidade está indissoluvelmente ligada ao simbólico.
A formação social e histórica do real é, primeiramente, uma construção simbólica no
imaginário das pessoas. As instituições sociais não se reduzem ao simbólico, mas só são
compreensíveis em contraponto com a construção simbólica.
No trabalho minucioso relacionado ao símbolo é preciso distinguir entre o significante
e o significado. O significante pode ser objeto próprio do meio no qual o grupo está situado, o
qual condiciona, em parte, a significação. O objeto se torna, como na maioria das estruturas
simbólicas, um símbolo convencional, porém as significações podem ser ou não
124
PAIVA, Geraldo José. ZANGARI, Wellington. (Orgs). A Representação na religião: perspectivas psicológicas. São Paulo:
Loyola. 2004.p. 53.
79
convencionais. E o sentido dos símbolos só pode ser compreendido dentro da rede de
significações e re-significações construídas no imaginário social do grupo
125
.
O conhecimento simbólico interpreta experiências que não são mensuráveis, que não
se pode controlar, até mesmo por que a linguagem simbólica transcende aos conceitos
instrumentais. Ela está ligada ao amor, à fé e às crenças, de maneira que abarquem todas as
potencialidades da pessoa humana. A imaginação simbólica tem uma série de funções sociais
que fundamentam a vida das pessoas e estruturam os grupos sociais. Ela é reestabelecedora do
equilíbrio vital, comprometido pela noção de vida-morte.
Ao esclarecer a concepção de imaginário presente nesta dissertação fica mais
confortável trazer a gênese, a identidade, as finalidades e outros aspectos que compõem a
F.N.B. Um primeiro elemento do seu imaginário é a compreensão de que não houve um
momento de sua fundação, mas, que ele estava relacionado com os quatrocentos anos de
escravidão e de organização negra frente a tal escravização. Por isso, não se pode falar em um
congresso, assembléia ou concílio para tal surgimento.
Um segundo elemento foi a presença da simbologia negra e afro-descendente que se
desdobrava sobre a presença do divino através da música, da dança, do corpo, ou seja, de
elementos lúdicos e afetivos que compunham o horizonte imaginativo no qual se manifestava
o divino. Enquanto a fé católica é compreendida como centrada na palavra escrita e no
racionalismo, que decodifica a revelação para explicá-la através de hipóteses e teses, a
experiência africana do transcendente permite uma racionalidade includente da história em
sua dimensão lúdica, afetiva e simbólica do ser humano. O que se está afirmando é a
compreensão do ser humano, do mundo e de Deus num viés simbólico, aberto a outras tantas
compreensões, uma vez que a ação humana no mundo tem como pressuposto a elaboração de
125
Ibidem.p. 139.
80
sentidos, valores e sonhos, que de alguma forma ficam limitados na sua praticidade, assim
como condicionados pelo contexto cultural.
Ao pesquisar a F.N.B, constata-se uma complexidade de contexto histórico ao qual a
organização estava inserida e que foi extremamente importante para compreender a
construção imaginária deste movimento. Assim, faz-se necessário buscar elementos que
contribuíram para a percepção de tempo histórico no qual ela estava situada. Um caminho que
aponta para a gênese da F.N.B. é a religiosidade africana, que com muita probabilidade,
contribuiu profundamente para a formação do imaginário do grupo
126
.
Nesta pesquisa constata-se a interação entre o imaginário social construído e a práxis
da F.N.B, justamente a organização do grupo, assim como o quilombo de Palmares. Estes
elementos formaram uma rede uma de luta social dos grupos negros e quilombolas, que hoje
se realiza na ocupação da terra pelos remanescentes. Portanto, a F.N.B. constituiu uma forma
de agir, a partir dos ex-escravos, de excluídos, de pobres com o objetivo de conseguir a
libertação. O imaginário popular da F.N.B. levou, na práxis, à criação de vários movimentos
sociais e, sobretudo, do movimento negro atual.
127
Pode-se analisar o imaginário da FNB, a partir da categoria de comunidade em sua
experiência concreta, dentro do discurso sociológico e teológico. O termo comunidade tem
múltiplos sentidos. Na sociologia comunidade, seria a associação construída com base nos
laços interpessoais de relacionamento, afetividade, amizade, confiança e partilha. É uma
associação de tipo vital e orgânico.
128
Os vínculos entre os membros de comunidade são de
caráter interpessoal e pertencem ao racional. O modelo de comunidade seria o grupo
tipicamente pessoal, sem referencia de objetivos externos condicionados pela
126
Ibidem, p. 140.
127
Ibidem,p. 142.
128
TÕNNIES, F. Comunnautés e société. Paris, s.n., 1974. in RUIZ, 1997.p. 60.
81
racionalidade.
129
Além das influências do discurso sociológico sobre o conceito de
comunidade, existe uma outra influência direta do discurso teológico na construção da
identidade comunitária. Este discurso baseia-se no modelo ideal simbólico construído pelas
primeiras comunidades cristãs, conforme são descritas na bíblia. O referencial simbólico das
primeiras comunidades cristãs encontra-se em dois pequenos textos do livro dos Atos dos
Apóstolos (2,42-47 e 4, 32-37).
Este referencial simbólico adquire força maior de significação, dado que ele é lido e
projetado como palavra de Deus, a qual dá ao símbolo uma significação além dos simples
discursos humanos, sejam eruditos, alternativos ou oficiais.
130
O simbolismo destas primeiras comunidades cristãs constituirá, na prática, no
referencial principal de identidade, no imaginário das CEBs.
A partir do simbolismo, será construído um discurso teológico que fundamentará o
significado da FNB. O discurso teológico integrara elementos do discurso sociológico para
construir uma fundamentação erudita das comunidades. “Porém, na maioria dos participantes
das comunidades, provenientes da escravidão e das camadas populares, terá muito mais pode
de significação, na construção da sua identidade, o simbolismo das primeiras comunidades,
que surge do texto bíblico do que dos diversos discursos eruditos elaborados a posteriori ou
paralelamente”.
131
129
RUIZ, 1997. p. 60.
130
RUIZ, 1997. p. 64.
131
Ibidem. p. 65.
82
2.10. A FÉ DA F.N.B.
Nestes cenários encontram-se os fundamentos, pelo qual a F.N.B, reivindicava
catequese para seus filhos, assim como pediam para confiar em Deus. Estas manifestações de
fé concretizavam-se nas procissões do rosário dos pretos. A F.N.B. assumiu o símbolo das
procissões que aos poucos foram se transformando em outros símbolos, como as romarias.
Foram organizadas romarias novas para símbolos novos: romaria de canudos, romaria de
Zumbi, romaria da terra, romaria do trabalhador. Todas estas romarias são construídas com a
significação de unir a fé com o compromisso social e político, sempre a luz da palavra de
Deus.
Esta experiência aponta para uma vida mística e espiritual, a vida litúrgica, o
compromisso, a exigência ética, a pesquisa, o testemunho. Estes constituem os verdadeiros
lugares da experiência do mundo de Deus nos quais se forma o autêntico conhecimento de fé.
De fato, esta consiste em conhecer o mundo do homem como mundo de Deus.
132
A palavra de Deus encarnada se tornou referencial de análise da realidade, ela não é
conceitual, no sentido teológico, ela se realiza por analogia simbólica. É simbólico porque
permite que o imaginário social dos grupos use as palavras-chave como ferramentas de
construção da consciência social e de grupo, independentemente do grau de cultura letrada ou
erudita que se tenha.
133
O conhecimento da realidade não deve ser reduzido a um nível racional, devido à força
do símbolo que permite abranger o conhecimento, pois o constitui a realidade e a capacidade
do ser humano de se relacionar com o mundo e com as pessoas, e esta experiência, produz um
132
LAURET, Bernard e REFOULÉ, François. Iniciação à Prática da Teologia. Loyola, São Paulo: 1992.p. 79.
133
Ibidem, p. 134.
83
outro plano de conhecimento, não paralelo ao racional, mas complementar. A palavra mundo
é traduzida como toda colocação da realidade em perspectiva a partir de um centro de
atividade e de compreensão que é o próprio ser humano.
134
É justamente através de sua
presença no meio do mundo que o ser lhes dá uma significação ao organizá-las no campo
simbólico. Ela cria o mundo. Nesta definição, o mundo é ao mesmo tempo uma sociedade,
pois o relacionamento do ser humano com seu mundo é sempre o de uma existência com a
realidade em totalidade.
O estar-no-mundo já é sempre um estar-com-os-outros.
135
Esta perspectiva do ser
humano de existir para os outros, de estar sempre além de si mesmo é que estrutura e
fundamenta o simbólico. Este existir do ser humano, torna-se visível pela sua capacidade de
interagir com e em seu meio social. De fato existir é agir.
A ação é a tensão dinâmica que conduz o ser humano, tal como ele é de fato, para o
que ele quer ser. A ação é a existência enquanto projeto. Quer dizer que a ação é a relação do
ser com a realidade. É a ação que, na presença do ser humano no mundo, é verdadeiramente
cosmogônica, que organiza o mundo de uma existência, que põe as coisas no seu lugar, do
ponto de vista de uma existência.
136
Deste modo, a realidade caminha para uma existência,
um sentido. Aqui se entende a ação como representação, ou seja, é na ação que o ser humano
manifesta sua relação com si mesmo e com o mundo. Portanto, a ação é sempre interpretação
em última análise. Interpretar é agir e agir é interpretar.
A interpretação é um terreno multidimensional, e temos o direito de indagar, de um
ponto de vista epistemológico, em que a interpretação da realidade feita por quem crê, que é o
conhecimento de fé do mundo, distingue-se de outras interpretações da realidade, em que
134
LAURET, Bernard e REFOULÉ, François. Iniciação à Prática da Teologia. Loyola, São Paulo: 1992.p. 68.
135
LAURET, Bernard e REFOULÉ, François. Iniciação à Prática da Teologia. Loyola, São Paulo: 1992.p. 69.
136
Ibidem. p. 69.
84
consiste exatamente o mundo do crente.
137
Pois é esta abertura a fé, que é o alimento
fundante de interpretação da realidade que é proposta como principio hemenêutico, não como
negação da razão, mas que pressupõe e aperfeiçoa a racionalidade em direção ao ser humano,
justamente por carregar um poder simbólico de sentido.
A palavra apreende e expressa simbolicamente a realidade: comunidade, pobre,
escravos, justiça etc. a fé encarnada constrói no imaginário das pessoas e do grupo a realidade
que é veiculada nas significações da palavra: a consciência de comunidade, a opção pelos
pobres, a luta pela justiça, por isso é símbolo que além de construir o imaginário, é objetivo a
ser conquistado. A palavra-símbolo é, ao mesmo tempo, motivação e utopia. Portanto a
F.N.B. encontrou na fé a essência do agir em prol dos negros de seu tempo, e que não pode
simplesmente ser reduzida a especulação cientifica que privilegia a luta de classe, ou
enquadrado dentro dos moldes dos movimentos sociais, e sim um conjunto de fatores, no qual
deve ser destacado o enraizamento do referido grupo e, sobretudo, em sua religiosidade.
Desse modo, a Frente Negra Brasileira construiu sua identidade segundo três elementos que a
definem: fé, comunidade e realidade social.
Deus agiu na realidade para libertar os escravizados, e continua agindo através da
comunidade organizada que luta contra o preconceito racial. Por isso, trazer a luz este grande
empreendimento significa responder as pessoas de hoje, cujo sonho de consumo as tornam
debilitadas, que ter grandes projetos, ter grandes sonhos, continua sendo o sentido da vida.
137
Ibidem.p. 74.
85
III˚ CAPÍTULO
3. O PODER TRANSFORMADOR DA RESISTÊNCIA NEGRA.
Um passo significativo, nesta dissertação, frente ao desafio da contextualização
histórica na busca da construção do imaginário religioso da F.N.B. é compreendê-la como
uma elaboração simbólica de sua força transformadora, que se situa historicamente na década
de 30, mas se torna uma ponte entre os primeiros navios negreiros que chegaram nestas terras;
como produto ideológico de um sistema de escravização e exploração do trabalho humano até
a luta por uma sociedade mais digna, na qual as pessoas se unem em movimentos sociais para
garantir seus direitos fundamentais.
86
Esta construção do imaginário da F.N.B. se fundamenta numa tentativa de conexão
com o simbólico, com seus aspectos lúdicos e corpóreos, e a racionalidade cientificista
fundada em dados empíricos ou na razão instrumental. Ela tem como intuito vislumbrar a
fluidez e dimanicidade da construção de quaisquer tipos de conhecimento, em especial
daqueles que alimentam a luta humana num processo de resistência frente à opressão e
discriminação.
Considerada como grupo histórico, a F.N.B. apresenta diversos limites e dificuldades
de afirmativa plena da identidade africana em terras brasileiras, especialmente no que diz
respeito à religiosidade negra proveniente dos cultos aos orixás. Entretanto, se torna um
símbolo de transformação inserido no processo de libertação frente ao sistema escravocrata e
liberal que coisifica as pessoas. O sistema escravocrata torna o ser humano objeto de
produção de riquezas de modo direto e totalitário, e o segundo, através do discurso mascarado
da liberdade, vai gerindo uma mentalidade que satisfaz a mobilidade do mercado e do lucro,
na qual as pessoas “com sorte e ricas em recursos materiais” são abençoadas por Deus,
conseguindo a felicidade plena.
Neste capítulo serão delineados os diversos aspectos do imaginário religioso e
simbólico que estão presentes na F.N.B, mas se assemelham à grande experiência de fé,
dentro da igreja católica, com um cunho libertador, que se concretizou nas Comunidades
Eclesiais de Base - CEBs, sendo assim, a provocação tem o sentido de encontrar as ligações
entre estas duas experiências comunitárias, no sentido da evangelização e dos desafios
pastorais apresentadas por tais buscas.
87
3.1. CONCILIO VATICANO II E A F.N.B.
Dentro desta relação entre fé e razão, resistência e libertação, é que se torna possível
uma inter-relação da história com a teologia. Neste sentido a F.N.B. se torna a expressão
simbólica, herdeira de uma luta que se inicia em 1570, quando o primeiro navio negreiro
aportou nestas terras, dando direito a cada senhor de engenho a ter 120 escravos por ano. Este
mesmo navio também traz a força de lutar contra a opressão e coisificação do ser humano,
pois aproximadamente 60 anos depois, em 1630, surge a grande forma de organização
coletiva e contraposição ao sistema escravocrata que foi o Quilombo de Palmares
138
.
Sendo assim, é pela F.N.B. que o movimento e a teologia negra fazem a ponte entre o
passado e o presente, de modo simbólico; animam as gerações futuras para seguirem
acreditando na força individual retratada no poder da coletividade, que mesmo com
limitações, se torna sinal da vontade de um Deus que se coloca ao lado das pessoas menos
favorecidas e excluídas, desde a aliança feita com o povo de Israel e, através deste, com toda a
humanidade. “Eu caminharei com vocês. Serei o Deus de vocês, e vocês serão o meu povo.
Eu sou Javé, o Deus de vocês, que (...) quebrei as cangas da opressão, e fiz vocês andarem de
cabeça erguida” (Lv 26,12).
A partir deste pressuposto simbólico da aliança é realizada a inter-relação entre
resistência e libertação dentro da experiência das CEBs e da F.N.B. Estas experiências
conseguem dialogar por encontrarem na pessoa de Jesus Cristo o alargamento do mistério
humano e, ao mesmo tempo, a resposta diante de um racionalismo fechado nas grades das
estatísticas e do cientificismo, que tudo transforma em relativo, inclusive o religioso, a ponto
138
PILETTI, Nelson. História da Educação no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ática, 1996.
1996, p. 80.
88
de torná-lo uma chave eficaz na lógica do mercado. Mas, o que significa o alargamento do
mistério humano através da experiência de fé em Jesus Cristo? É a presença do lúdico
expresso como esperança, alegrias, tristezas. É o ser humano que não pode ser reduzido à
razão instrumental. Isto implica dizer que é missão da Igreja ser propagadora destas outras
presenças. Nesta visão, Jesus é o modelo perfeito de pessoa que transcende a própria vida, e
se coloca com a finalidade de presença simbólica e transcendental, isso para dizer que
independente de fatos, o que importa são os horizontes elaborados a partir da fé, que alimenta
as ações no tempo presente.
Por meio de Jesus, promove-se um processo contínuo de libertação, no qual as pessoas
excluídas e exploradas, principalmente os afro-descendentes, encontram a esperança, o
sentido de organização e de luta por uma sociedade justa. E, diante destes motivos, elas são
impulsionadas a viverem em comunidades construindo, desconstruindo e reconstruindo o
imaginário religioso.
Portanto, é significativo entender que libertação só tem referência ao somá-la com o
aspecto de resistência frente à opressão. A leitura de libertação que está sendo realizada nesta
pesquisa é a que se constituiu com o processo proveniente da Teologia da Libertação. Ela é
mundialmente divulgada como uma leitura de simbólica construída a partir da experiência de
fé comunitária das pessoas empobrecidas. Esta teologia se fortaleceu após o Concílio
Vaticano II (1962-64), provocando, no interior da Igreja Católica, um clima de abertura para
as maiores questões vivenciadas historicamente pela humanidade. Uma das constituições de
maior expressão provinda do Vaticano II que a alimentou, pastoralmente, foi a Gaudium et Spes.
89
3.2. FÉ E RAZÃO
Saindo do Ocidente como limite geopolítico e cultural, o desafio da inculturação plural do
Evangelho, na África, Índia, China, Japão, constituiu um desafio para o Concílio Vaticano II.
Aprofundar o diálogo com as grandes religiões mundiais e as grandes tradições espirituais como o Islã,
Budismo, Hinduísmo, Confucionismo
, sobretudo o quadro filosófico europeu, que pretendia
substituir Deus pela razão, continua desafiando os parâmetros de interpretação da realidade. O
sonho de uma emancipação total impele o homem moderno a querer uma realidade totalmente
iluminada pelo conceito, em que se possa exprimir sem resíduos o poder da razão. Essa tem a
pretensão de impor à luz da razão a realidade inteira, até o ponto de estabelecer a equação
entre o ideal e real. O sol da razão produz liberdade e igualdade, e justamente assim, também,
fraternidade, igualitarismo baseado sobre a unicidade da luz do Pensamento, que governa o
mundo e a vida: liberté, égalité, fraternité, que são frutos resplandecentes do triunfo da
razão.
139
Entretanto, este sonho produziu limpezas étnicas, guerras, e todo tipo de genocídios
no século XX.
Neste contexto, da pretensão absoluta da razão, o Concilio Vaticano II, em seu
documento Gaudium et Spes, desestrutura a pretensão da razão cientificista, assim como
introduz um novo tipo de leitura da realidade capaz de englobar a existência do ser humano, e
de modo especial às vítimas que a própria razão produziu. Embora este documento tenha
surgido anos depois da F.N.B., pode-se constatar que o mesmo grupo obteve elementos de fé,
como resposta à racionalidade econômica que provocara a colonização e empobrecimento de
tantas pessoas, que vão estar presentes no documento da Igreja.
139
FORTE, Bruno. Itaici, 11 a 14 de agosto, 2003. p.5.
90
O documento parte do pressuposto de que as várias interpretações da realidade podem
trazer a paz tão desejada por todos, pois, é a ação do ser humano sobre a terra que satisfará
todas as aspirações do seu coração. Contudo, mesmo diante de aspirações tão nobres, os
problemas fundamentais que assolam a vida sempre estarão presentes: Qual o sentido da vida?
Da dor, do mal e da morte?
140
O que há além desta vida? São questões que a razão não
conseguiu responder, tampouco resolver. O papa João Paulo II em sua Encíclica Fides et
Ratio, ilumina os devaneios provocados pelo racionalismo:
“Por um lado, a razão filosófica conseguiu avançar pela estrada que a
torna cada vez mais atenta à existência humana e às suas formas de
expressão, por outro tende a desenvolver considerações existenciais,
hermenêuticas ou lingüísticas, que prescindem da questão radical
relativa à verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como
conseqüência, despontaram, não só em alguns filósofos, mas no
homem contemporâneo em geral, atitudes de desconfiança
generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser
humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e
provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o
sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em
suma, esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia
respostas definitivas a tais questões.
140
DOCUMENTOS DA IGREJA. Concilio Vaticano II, São Paulo, vozes, 1997.p. 550.
91
Credenciada pelo fato de ser depositária da revelação de Jesus
Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a
verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados
Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão de anunciar «
abertamente a verdade » (2 Cor 4, 2), e dirigir-me também aos
teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os diversos
aspectos da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma
resposta, para comunicar algumas reflexões sobre o caminho que
conduz à verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no
coração o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcançar, e
nela encontrar repouso para a sua fadiga e também satisfação
espiritual”
141
.
Nesta realidade a Igreja apresenta Jesus Cristo que ilumina o mistério do ser
humano, ou seja, o ser humano não é apenas um componente da história, mas relaciona-se
também com o transcendente.
Este fundamento teológico impede que o ser humano seja reduzido à racionalidade, a
medida em que a igreja atua nas estruturas políticas e econômicas, não só ponto de vista
técnico, mas, sobretudo ético. Assim como desponta uma outra chave hermenêutica mais
dinâmica em relação a vida e seus componentes lúdicos, pois o mesmo Deus que se fez
homem, o Cristo Histórico, é o mesmo que ressuscitou, ou seja, é o único Deus. Este oferece
a vocação fundamental para responder as questões fundamentais do ser humano, Pelo fato de
141
Carta Encíclica Fides et Ratio, n. 5 e 6.
92
ter administrado de forma exemplar todas as dimensões que impedem o ser humano de se
realizar como pessoa e como comunidade, A exemplo da dor, do sofrimento, e por último a
morte. Assim, fica estabelecido o diálogo fé e razão, sendo que a fé transcende a qualquer
especulação racional, apesar de ambas se encontrarem no mesmo terreno epistemológico que
é a história, e nela o ser humano. Sendo assim, a Igreja coloca a história como lugar teológico,
em que razão e fé podem e devem andar juntas para responder ao ser humano qual deve ser o
seu papel como construtor da vida e da sociedade de forma inclusiva e igualitária. A força da
resistência da F.N.B não teve como raiz aspirações igualitárias e de justiça social, que só a fé
pode alimentar?
Um dos grandes pensadores da teologia da libertação, Gustavo Gutierrez, com outros
pensadores como Leonardo Boff, afirmou que libertação exprime, em primeiro lugar, as
aspirações das classes sociais e dos povos oprimidos, destacando o aspecto conflituoso do
processo econômico, social e político
142
. Esta teologia contempla um conteúdo de libertação
que concebe a história como processo de transformação do homem e da mulher, que assumem
conscientemente seus próprios destinos, mediante isso adota um contexto dinâmico em suas
várias dimensões, alargando o horizonte das mudanças sociais.
Portanto, a Teologia da Libertação busca, sobretudo, na vivência do povo oprimido
dominado e empobrecido, a tomada de consciência da sua situação de miséria, organizando-se
para realizar o Projeto de Deus para a humanidade: viver em fraternidade, justiça e dignidade.
Ela quer ser uma reflexão crítica da própria prática teológica, das práticas pastorais das
comunidades cristãs e das práticas político-sociais dos cristãos e do ser humano como tal.
142
BOFF, Leonardo. Igreja, Carisma e Poder, Petrópolis: Vozes, 1982.p.25.
93
Pelas trilhas da Teologia da Libertação, juntamente com outras leituras mundiais que
percebem a experiência de Deus de modo comunitário, e, partindo da experiência negra de
resistência e libertação, é que se constitui a Teologia Negra.
Ressalta-se na experiência da F.N.B. um aspecto que tem suma importância para a
Teologia, o aspecto comunitário, que perpassa as diversas expressões de resistência do povo
negro e afro-descendente. A expressão ‘comunidade’ caracteriza um grupo no qual as fortes
relações interpessoais prevalecem, por serem laços efetivos e afetivos que perpassam os
papéis sociais que cada pessoa ocupa na sociedade. Não se põe em evidência o ‘status quo’,
mas a postura de anseio pela libertação coletiva. Na sociologia, a categoria ‘comunidade’ foi
introduzida durante o século XIX, tendo sido somente em 1887 que Tonnies, professor da
Universidade de Kiel, apresentou a distinção entre comunidade e sociedade.
143
Para ele, a
comunidade é valorizada por ser uma forma de sociabilidade que leva questionamento para a
sociedade e, em especial, para a forma como a Igreja Católica institucionalizou tal vivência.
Quando a F.N.B. se propôs a combater a ideologia da democracia racial, dando a
categoria de “raça” um cunho denunciador e de mobilização do afro-descendentes para uma
educação voltada para ações políticas que favoreciam a valorização de cada um como pessoa
por si mesma, acabou tornando-se uma expressão da rica individualidade negra, como
também quebrou as barreiras de um discurso que reforçava as pessoas como número ou
elementos dispostos a funcionarem de acordo com a lei imposta. Entender a comunidade afro-
143
RUIZ, 1997, p. 60.
94
descendente é percebê-la com base “no modelo de identidade oferecido pelo ideal simbólico
construído pelas primeiras comunidades cristãs (Atos 2, 42-47 e 4, 32-37)”.
144
Nesta perspectiva, a F.N.B. teve uma expressão religiosa dentro do catolicismo, mas
não se prendeu a um clericalismo que perpetuava um discurso de passividade, serviçal às
estruturas dominantes. Ela surgiu de uma luta de emancipação das pessoas negras e afro-
descendentes no processo cultural e econômico do país. As pessoas que compunham suas
organizações eram cristãs, mas não significava que estavam atreladas ou eram defensoras de
uma religião que justificasse a dominação. Para tanto, a pessoa de Jesus Cristo se torna um
referencial simbólico
145
que se identifica com a luta dos indivíduos afro-descendentes que
foram considerados, durante vários séculos, como ‘não-pessoas’.
Tais afirmações deflagram um conflito pertinente a todo movimento de resistência
frente à opressão que não nega o seu aspecto religioso, retratando-se na relação entre fé e
política. Portanto, na experiência da F.N.B. houve uma releitura do catolicismo que nos
permitiu perceber uma evidente opção pela base social das pessoas oprimidas, empobrecidas,
dominadas, marginalizadas, discriminadas, desmascarando “as contradições da instituição
Igreja no seu pretenso interclassismo e na sua real e histórica aliança com as classes
dominantes da sociedade”.
146
Com isso, a pessoa afro-descendente que se rebela e se organiza para corroborar a
inclusão e a justiça social, torna-se um sujeito em interação plena com a realidade que o
constitui, torna-se “sujeito de uma realidade sobre a qual se constitui, atua sobre ele,
reconstruindo sua própria imagem de sujeito”.
147
E esta é a direção mestra que faz a F.N.B se
tornar uma força simbólica, pois dentro dela os afro-descendentes perceberam-se construtores
144
RUIZ, 1997, p. 63
145
RUIZ, 1997, p. 70.
146
RUIZ, 1997, p. 76.
147
RUIZ, 1997, p. 108.
95
de uma outra realidade, que forçou a sociedade e a Igreja Católica a reconhecê-los como
pessoas e cidadãos de pleno direito.
Mediante isso, sendo uma comunidade protagonista de uma outra história, as pessoas
experimentaram uma autonomia na reconstrução de sua própria identidade, na elaboração de
projetos coletivos, nas ressignificações e ações coletivas. Esta autonomia do sujeito é
interação entre sujeitos, que leva a um processo de opção, crítica e rejeição, no qual as ações
vão se fazendo, de modo direto e condicionado, pela própria realidade. As pessoas não
ficaram ausentes de sua vida e da educação que receberam, desde a familiar até a escolar
formal. Ao contrário, é na relação dialética com a vida que a pessoa autônoma foi elaborando
e reelaborando sua atuação e significações.
Ela constrói e reconstrói o imaginário que vai dar um significado ao que faz, pensa e
sonha, alimentada por uma experiência de fé, fruto de uma relação direta do processo de
libertação com a presença de Deus neste.
3.3. RESISTÊNCIA NEGRA E O PODER DO IMAGINÁRIO.
A fim de perceber este processo de elaboração do imaginário social de um movimento
de libertação, fundado nos princípios de uma leitura bíblica embasada na experiência de fé das
primeiras comunidades, é importante destacar os conflitos dentro desta elaboração. Não
apenas aquele entre fé e política, mas um outro bem expressivo entre fé e produção científica.
96
Através do paradigma científico que tem a pretensão de desvendar a realidade em seu
sentido oculto, desmistificando-a, elaboram-se diversas teorias contrárias ao imaginário como
produtor de conhecimento e de acumulação humana. Para o empirismo as imagens são
“reflexos mentais das percepções ou das impressões, cujos traços foram gravados no cérebro.
Deste ponto de vista, imagem e a lembrança só diferem porque a primeira é atual enquanto a
segunda passada”.
148
Uma outra teoria, o racionalismo, “considera a imaginação uma forma enfraquecida da
percepção. Sendo a percepção, para os racionalistas, a principal causa de nossos erros,
também a imaginação é fonte de enganos e erros, que são as ilusões e deformações da
realidade”
149
O positivismo, e até o próprio idealismo hegeliano, continuam esta tendência de
desconfiar das imagens e símbolos, não levando em conta a produção de conhecimento que
provém da potencialidade imaginativa do ser humano, por isso são herdeiros e continuadores
desta tendência da modernidade.
O marxismo segue esta mesma tendência, pois “o conceito de alienação de Marx
baseia-se na dissociação que existe entre o imaginário da pessoa e as relações de produção nas
quais ela está inserida. O processo de conscientização seria uma identificação da consciência
com a realidade”
150
, sem a mediação dos sentidos ou da imaginação.
Portanto, resgatar e validar o imaginário nesta relação entre fé e razão é no mínimo um
grande risco, contudo um desafio válido para os movimentos de contra-imaginário, em que se
constituem alguns movimentos sociais. Esta tradição não apenas moderna, mas que se inicia
desde a filosofia grega, com nuanças diferenciadas, perpassa também a teologia, mas esta não
148
RUIZ, 1997, p. 92.
149
RUIZ, 1997, p. 92.
150
RUIZ, 1997, p. 93.
97
pode se ausentar completamente das imagens, devido seu objeto de diálogo ser a experiência
pessoal e comunitária de Deus a partir da pessoa de Jesus Cristo.
Para um posicionamento viável, frente à rejeição das imagens e da imaginação como
produção de conhecimento, é preciso distinguir as diversas percepções e definições de
imaginação. Pode-se afirmar que há uma imaginação reprodutora das percepções dos sentidos
e da memória. Há uma evocadora que “atualiza o ausente com uma forte influencia dos
sentimentos e da afetividade”.
151
Outra é a criadora que está presente nas diversas produções
de qualquer conhecimento como força que impulsiona poetas, pensadores e outras pessoas.
Há ainda uma outra, que se pode denominar de simbólica, com a qual se cunha os mitos, as
lendas, o que se considera bem e mal, certo e errado. Ela tem “um caráter eminentemente
social e é criada e veiculada pelos diversos grupos sociais, segundo símbolos e significações
próprias de cada grupo”.
152
A representação, na verdade é de natureza simbólica no sentido
original do termo, ou seja, é constituída de elementos que provem do sujeito e de elementos
que provem do objeto. Em sua representação do objeto, o sujeito compreende, sem duvida,
toda a informação que seus sentidos lhe forneceram do objeto, informação alias também,
largamente “arranjada” (corrigida, educada, padronizada, climatizada, normatizada,
autentificada, ou desencorajada...) pelo ambiente humano, familiar, cultural (a língua, as
palavras, as historias, as significações,) ou cientifico (medidas, cálculos, verificações,
experimentos...)
153
Estas diversas compreensões permitem que haja um parâmetro para suspender as
desconfianças quanto à imaginação, como também apontam que ao falar de imaginação se
está reportando àquela simbólica que elabora os valores alicerces da humanidade, sob a qual
151
RUIZ, 1997, p. 95-96.
152
RUIZ, 1997, p. 96.
153
PAIVA, Geraldo José e Zangari, Wellington (orgs) A Representação na Religião: perspectivas psicológicas. São Paulo:
Loyola. 2004.p. 54.
98
se apóiam as ações de desconstrução de um discurso fundado numa falsa democracia racial, e
reorganiza, a partir da diversidade e das condições históricas da F.N.B, os diversos símbolos
fortalecedores da resistência frente a coisificação e discriminação de negros e afros-
descendentes.
É pela resistência que ao festejar datas importantes e pessoas que se tornaram
referência na luta pela libertação e por uma práxis libertadora
154
, que a força do imaginário
vai se constituindo enquanto experiência de desconstrução de uma imagem preconceituosa e
limitada construída em torno da pessoa negra e afro-descendente, e conseqüentemente, de sua
religiosidade e das outras tantas dimensões da vida. Representar equivale a imaginar
simbolicamente o feixe de sensações e percepções fornecidas pelos sentidos, as informações
recebidas pelos sentidos deixam de ser meros dados naturais da espécie ou individuo e passam
a ser imaginada de forma significativa. Para o ser humano, as coisas, as circunstancias, o
mundo, são percebidos como algo diferente de si mesmo. Essa é experiência que diferencia o
sujeito do mundo é singularmente humana; ela exige uma representação que não está mais no
plano da naturalidade das espécies, mas na dimensão da sobre-naturalidade do sentido.
155
A
representação simbólica é uma espécie de compromisso estabilizador da relação que permite
ao sujeito investir o objeto com seu desejo sem o assimilar ou o alienar a esse desejo.
156
Esta
demonstração, de natureza ao mesmo tempo fenomenológica e psicológica, visa evidenciar a
existência de uma ordem especifica da realidade, a ordem simbólica. Todavia a representação
viabilizada pela mensagem religiosa, não pode, portanto, situar-se apenas no nível
psicológico, individual ou interior, mas passa, igualmente por um processo de transformação
154
Houaiss. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Práxis, do grego pra/ssw, significa fazer, agir, praticar ou exercitar
uma arte, uma ciência ou uma habilidade. Na teologia da libertação, o termo é usado para o engajamento sócio-político da
igreja em favor dos pobres e oprimidos.
155
RUIZ, C.M. Bartolomé. As Encruzilhadas do Humanismo. Rio de Janeiro: Vozes. 2006.p. 36 e 37.
156
PAIVA, Geraldo José e Zangari, Wellington (orgs) A Representação na Religião: perspectivas psicológicas. São Paulo:
Loyola. 2004.p.57.
99
das relações humanas, inseridas na vida comunitária e na historia humana.
157
Neste sentido o
ser humano é portador de uma experiência reflexiva que se desloca sobre si e sobre o mundo,
mas na dimensão dos sentidos, ou seja, ao si optar por agir deste modo, e não daquele, é
possível devido o sentido que o mesmo atribui na relação e na inter-relação, e este sentido está
alem da esfera da racionalidade. A representação instaura a consciência da finitude e a
exigência de infinitude. O mundo representado sempre com um sentido novo e transformador
é um mundo no qual se vivencia a contingência.
158
Aqui se encontra o grande dilema do ser
humano, trazer para dentro da história, da contingência, uma experiência absoluta que motiva
o agir, à medida que este absoluto se encontra além e aquém da história. Desta forma, o
imaginário da FNB constituiu uma forma de poder que se contrapôs ao dominante, sendo que
qualquer representação do imaginário se instituiu um espaço de poder sócio-político-cultural-
religioso, diante dos interesses de diferentes grupos que se inter-relacionam no interior da
sociedade historicamente localizada. Assim sendo, ter o controle de tais representações é
dominar sobre uma enorme quantidade de pessoas, que em sua maioria estão empobrecidas e
com seus direitos fundamentais negados e espoliados.
Neste sentido, mister se faz perceber que o poder religioso do imaginário social
dialoga com o poder político. Perfeitamente possível é a superação do conflito entre fé e
política através do imaginário, pois este faz a ponte entre os alicerces empíricos do ser
humano com o transcendente e aponta para um direcionamento no modo de organizar a vida
na cidade, e conseqüentemente, os diversos discursos dos diferentes grupos que a compõem.
Isso ocorre porque todos os grupos sociais sejam para a dominação ou libertação,
constituem-se a partir de suas representações de imaginário simbólico, definindo o que é bem
157
Ibidem. 247.
158
RUIZ, C. M. p. 38.
100
e mal, certo e errado, felicidade e infelicidade, entre outros aspectos. Destarte, “sem o
imaginário social comum, simplesmente, não existe grupo social e muito menos movimento
social organizado”.
159
A doutrina social da Igreja manifesta estas representações, justamente pela capacidade
de discernimento experimentada na bondade de Deus, e sobretudo na consciência diaconal
que a mesma tem na sua inserção no mundo. As parábolas permitem, ao mesmo tempo, uma
aproximação tanto imaginaria quanto simbólica da dimensão transcendente do Reino, pois
evocam diferentes imagens de Deus, e se exprimem, numa linguagem simbólica mais
profunda do que o discurso racional.
160
São vários os documentos da igreja que trata das
questões sociais como espaços onde a igreja exerce os seus ministérios. Estes ministérios,
quando a serviço da pessoa, é transformado em testemunho, ou seja, em imaginário simbólico.
Testemunho da gratuidade divina para com o humano. Os documentos da pastoral
internacional da saúde indicam algumas pistas importantes.
A partir da proposta sugerida pelo Motu Proprio “Dolentium Hominum”, na prática
dos diversos países e na exigência nascida, sobretudo de duas grandes Encíclicas de João
Paulo II, a Evangelium Vitæ e a Veritatis Splendor, foram-se perfilando uns tantos objectivos
para a acção que a Pastoral Social desenvolve. São eles: A defesa intransigente da vida:
A vida é um dom que nunca pode estar em causa ou ser sacrificado. “O valor sagrado da vida
humana tem de ser respeitado e promovido desde o seu início até ao seu termo. Todo o ser
humano tem de saber plenamente reconhecido este seu bem primário. Sobre o reconhecimento
de tal direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política” (32). A
159
RUIZ, 1997, p. 97.
160
PAIVA, Geraldo José e Zangari, Wellington (orgs) A Representação na Religião: perspectivas psicológicas. São Paulo:
Loyola. 2004.p.248.
101
Pastoral da Saúde actua sempre na defesa da vida e da sua promoção. É o primeiro de todos o
seu objetivo.
161
Estas organizações sociais da igreja compõem o imaginário religioso na ação da Igreja
no mundo. Dentro desta discussão entre fé e política na construção do imaginário simbólico
de resistência e libertação, que devemos posicionar a elaboração do imaginário religioso que
compõe a F.N.B, destacando a diferenciação e coesão deste grupo frente a outros grupos que
coexistiram na década de 30. Desse modo, ressaltamos a importância da leitura de símbolos e
referenciais empíricos que o próprio grupo estabeleceu, já que a identidade “é fruto da
construção social e individual e está submetida à evolução e circunstâncias que condicionam a
existência do grupo”.
162
Ao trazer elementos como o hino, a bandeira, as reuniões, as festas e
as organizações internas e externas, alcançou-se uma constituição de identidade que reforçou
a importância da cooperação e da coletividade para o indivíduo se afirmar como pessoa ativa
e construtora de sua própria história.
Ao se cantar no hino que Tupis, africanos e portugueses participaram da construção
desta terra, que se aprendeu a chamar de pátria, dando destaque aos dois primeiros que são
herdeiros de glórias, da produção científica e da constituição religiosa de um só povo,
percebe-se uma construção do imaginário proveniente da compreensão de resistência e
libertação. Essa concepção de Deus, foi significantemente absorvida pela F.N.B, pois dentro
do cristianismo existem varias maneiras de interpretar e de compreender o conceito de Deus.
Existe uma compreensão mística e profunda do conceito de Deus, e esta compreensão mística
cristã não pode ser desvinculada de seus fundamentos e crenças a respeito de Deus. O
161
www.pastoraldasaude.pt/
162
RUIZ, 1997, p. 58.
102
objetivo central de todo ensino espiritual é para Ele mostrar a humanidade um caminho de
transformação do ser humano, afim de que se possa viver não centrado em si mesmo, como se
faz, mas em Deus.
163
De outra maneira se pode dizer que, as mudanças pressupõem um
caminho que produza pessoas plenamente realizadas espiritualmente maduras,boas e
generosas.
Por isso, o imaginário social diferentemente da concepção simbólica, é um dispositivo
essencial para o controle da vida coletiva. Todas as formas de poder e dominação criam
representações coletivas que justificam socialmente o exercício de poder pela elite
dominante.
164
É pela desconstrução do imaginário dominante de que afro-descendentes em
coisa alguma contribuíram para o conceito de nação, que trabalhou a FNB. Pois, o
questionamento das formas de dominação política, discriminação social ou exploração
econômica se realiza com a construção de um contra-imaginário que se opõe ao imaginário
legitimador.
165
Este ‘contra-imaginário’ se estabeleceu ao se cantar: “seja o toque da alvorada que
diga a todos: ‘Reunir’, e a Nação, alvoroçada, corra à voz de ressurgir”. Era como um grito de
concentração das vidas com uma finalidade que apontava para a inclusão e superação das
diversas mensagens dominantes de exploração e discriminação.
Os símbolos da F.N.B. foram surgindo de modo gradual, partindo das necessidades
que as pessoas associadas iam tendo. Logo, é da própria demanda da existência humana que o
grupo vai elaborando seus símbolos, como a carteira de associado, as domingueiras, as
escolas, e tantos outros sinais, que eram eficazes para alicerçar as diversas releituras que se
163
PAIVA, Geraldo José e Zangari, Wellington (orgs) A Representação na Religião: perspectivas psicológicas. São Paulo:
Loyola. 2004.p.255.
164
RUIZ, 1997, p. 119.
165
RUIZ, 1997, p. 120.
103
poderia fazer a partir deste contra-imaginário. Por esta experiência, através do imaginário
religioso libertador, é que se entabulava o titulo de Frente Negra Brasileira.
3.4. EVANGELIZAÇÃO E RESISTÊNCIA.
Estes símbolos, que iam sendo elaborados tanto na F.N.B. de modo mais social,
quanto nas CEBS, com cunho mais eclesial, figuravam uma linguagem necessária para
expressar o imaginário individual e social. Esta linguagem se constituiu através de cantos,
gestos, dramatizações, ritos, celebrações e tantas outras formas para atualizar uma fé com o
respectivo compromisso político de anunciar um tempo de graça, no qual o ser humano será
respeitado pelo que é, e não pela posição social ou cor de pele. Pois, se a linguagem se
encontrar fechada dentro das grades de uma
razão produtora de segregação e escravidão,
principalmente, em seu aspecto econômico, ela implicará numa evangelização que também se
tornará, em demasia, racionalizada e excludente. Com isso, surge a seguinte questão: é
aceitável uma evangelização que se propunha universal, mas que de fato repercutiu como
alicerce de uma estrutura fundada em estereótipos segregadores e discriminatórios, como
aconteceu no período escravista?
Uma linguagem evangelizadora transmitida enquanto anúncio de fé e compromisso
com uma práxis de libertação foi à palavra anunciada em momentos celebrativos, que
tenderam a superar a oposição entre a fé e sua expressão cotidiana e racional. A igreja quando
se refere aos doentes, entende que não existe dicotomia entre fé e política.
104
A Pastoral da Saúde bate-se pela específica responsabilidade dos profissionais de
saúde na área da sua competência específica, sejam médicos, enfermeiros, farmacêuticos ou
outros. Se a missão dos leigos é a de “tratar da ordem temporal e orientá-la segundo Deus
para que progrida e assim glorifique o Criador e Redentor (34), a qualidade profissional dos
agentes de saúde cristãos é parte integrante da sua vocação de leigos na Igreja. Por isso, a
Pastoral da Saúde multiplica iniciativas que, sobretudo nas áreas mais sensíveis, dê uma outra
formação e qualificação aos profissionais de saúde, sobretudo àqueles que se dizem
cristãos”
166
.
Uma expressão muito forte desta linguagem inclusiva e simbólica que promoveu um
anúncio evangelizador, enquanto ato de comunicar a Boa Notícia, foi a Missa da Terra Sem
Males, uma forte expressão, na década de 90, deste imaginário simbólico anunciado como
ponte de todo um movimento de libertação, proveniente da experiência de diversas
comunidades eclesiais de base – CEBs, elaborada a partir da luta das pessoas excluídas e
marginalizadas. Um dos belos cantos desta missa era: “Por isso, comungamos toda a Luta. Por
isso comungamos todo o sangue. Por isso comungamos toda a busca, de uma Terra-sem-
Males”. Esta comunhão acontece como sinal de eternidade no sangue e corpo de Cristo que se
recebe como força para unir o sangue derramado de Jesus aos de tantas pessoas que
acreditaram nesta terra justa e digna, enquanto convivência e construção de uma cidade sem
tamanhas exclusões. Ou, como bem sonha Rubem Alves
167
, de um jardim no qual não haja
vigias nem detentores de um poder que submete as outras pessoas, mas diversas pessoas com
seus modos diferentes de viver que possam se comunicar e cuidar do jardim-mundo-comum
enquanto um grande presente de Deus. Não obstante o livro dos números, no capitulo 11,
166
www.pastoraldasaude.pt/
167
www.casaderubemalves.com.br. Pesquisado no dia 05/09/2006.
105
“Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e o Senhor lhe concedesse seu espírito”
(v. 29).
Pela força da palavra fundamental que está por trás do canto de comunhão da Missa da
Terra-Sem-Males é possível voltar para o passado e encontrar na tradição da FNB esta mesma
força da reunião e comunhão em torno de um fim coletivo. Na década de 30, não se chamava
de Terra sem males, mas com a carteira de identidade e a formação de diversas associações e
clubes em vários territórios, dentro da dinâmica da cidade, as pessoas negras e afro-
descendentes encontravam seu poder de organização e de respeito que se deferia como
construção coletiva de uma nação, e com isso, anunciava a Boa Nova de Jesus Cristo.
Com isto constata-se que a construção e transmissão do imaginário constituem uma
relação intrínseca entre realidade, palavra e significada. Na palavra transmitida, através do ato
de anunciá-la e pronunciá-la, esta se torna signo permanente e inalterado da realidade e do
significado que são modificados
168
pelo contexto no qual o grupo se instituiu.
Destarte, a linguagem simbólica analisada como meio para a socialização do
imaginário social e religioso, procedendo da inter-relação entre a palavra, a realidade e a
significação, seja feita por metáforas e analogias, interpretando e anunciando os sentidos
diferentes que tem uma única palavra. Ela é “fortemente emotiva e afetiva; oferece sínteses
imediatas, mediante imagens; usa palavras polissêmicas; e leva-nos para dentro dela pela
força do seu sentido das evocações, da beleza”.
169
Advém daí seu poder de tornar fixa a
palavra e, em cada contexto percebê-la em suas ressignificações. Veja-se a palavra
‘resistência’. Para muitas pessoas ela é sinal de não-disposição para fazer algo, ou não
168
RUIZ, 1997, p. 133.
169
RUIZ, 1997, p. 134.
106
colaboração com uma tarefa, tendo assim uma conotação pessimista. Do mesmo modo,
‘liberdade’ pode ser entendido como o querer individualista de cada pessoa. Mas, em outro
contexto, elas vão adquirir outro significado. Por exemplo, nesta pesquisa são elementos
fundamentais para uma releitura da presença de negros e afro-descendentes na constituição
religiosa e política da cultura brasileira. Logo, adquirem conotação afirmativa. E é esta fluidez
da linguagem simbólica que permite a expansão do imaginário social e religioso.
Diante do poder desta linguagem, compreende-se que há experiências religiosas que
reelaboram as palavras fundantes que devem ser anunciadas como Boa Nova. Pode-se, pela
flexibilidade das palavras-base ‘resistência e ‘libertação’, fazer-se uma inter-relação entre a
experiência da FNB, na década de 30, e as comunidades eclesiais de base – CEBs. Nelas
havia diálogo entre as diversas expressões religiosas, especialmente com o candomblé. Os
rostos que elas possuíam eram os rostos de uma negritude consciente
170
de sua força e
organização, com abertura ao diálogo, como era a prática da FNB, com os diversos grupos
étnicos que estavam presentes nestas comunidades.
3.5. PERSONAGENS SIMBÓLICOS: O CAMINHO DA UTOPIA.
170
Ao se tratar da palavra ‘consciente’, é significativo afirma que se compreende conscientização como o elemento
propulsor do processo de participação, que envolve a ultrapassagem da consciência individual para a consciência social dos
problemas coletivos. Ela impulsiona para a afirma do que é ‘verdadeiramente humano’ enquanto ampliação do conjunto das
autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana (NEGRINI, 2005, p.
9).
107
As conseqüências dessa consciência de negritude são os personagens simbólicos
construídos desde então. Zumbi, por exemplo, é construído como modelo de identidade da
negritude, daí se realizava a construção do imaginário com objetivo de resgatar os valores
positivos da negritude. Zumbi foi um grande líder que serviu como referencial para formar
uma nova consciência da identidade negra, o que permitiu combater os símbolos de
discriminação racial, e se arrastou ao personagem de Antonio Conselheiro, que reuniu
milhões de nordestinos pelo ideal comum, alimentados pelo referencial libertador. Foram as
CEBs os espaços oficiais dentro da Igreja Católica, que passaram a fortalecer a luta de negros
e afros-descendentes cristãos e católicos. Elas foram os espaços de formação e
conscientização para uma práxis libertadora, que impulsionou diversas lideranças religiosas e
políticas para estarem presentes nos Movimentos Sociais, e conseqüentemente no Movimento
Negro. Com isso, não negavam a importância das religiões africanas, muito pelo contrário, o
candomblé, entre outras expressões, são visibilizadas como um grande quilombo no qual as
diversas religiosidades do povo brasileiro conseguiam dialogar e conviver num respeito e
busca de objetivos comuns para se vislumbrar a Terra-Sem-Males. Elas anunciavam a Boa
Nova como sinal de transformação de qualquer expressão autoritária e discriminatória seja
dentro ou fora das estruturas da Igreja Católica.
Portanto, estas comunidades se tornaram fonte de inspiração para a Teologia da
Libertação, que, por sua vez, apoiava-as no processo de fortalecimento das reformulações e
ressignificações possibilitadas por tais comunidades. Elas foram espaço concreto para a
formulação de experiência e de diversos discursos e fluxos teológicos, como a Teologia
Negra. Constituíram-se herdeiras, dentro da experiência cristã e católica, da luta das pessoas
negras e afro-descendentes pela conscientização contra os estereótipos que fecundaram o
108
preconceito e a discriminação. É em comunidade que se aprende a lidar com as condições
mais corriqueiras da vida, no sentido de experimentar uma igualdade dialogada e fecunda.
As CEBs, mediante tal constituição, conseguiram de modo mais sistemático, compilar
um processo de ressignificação conceitual que reconstruiu a realidade, e com isso o
imaginário religioso e pessoal, a partir das mesmas palavras utilizadas pela Igreja Católica
Institucional.
A referência ao formalismo e clericalismo da Igreja Católica ocorre dentro do sistema
teológico da cristandade, ou seja, por aqueles elementos dogmáticos que afirmam a Igreja
Católica como caminho de salvação, de modo individual e sacramental, no qual não se deve
ter relação alguma dos fiéis com o mundo político, mas apenas com as orações formais e
contribuições financeiras através de donativos e dízimos. Esta relação com o mundo político
partidário é permitida enquanto for aliança do alto clero com os governos instituídos. Para a
neocristandade, que é uma leitura mais espiritualista e moderna que perdura após o Vaticano
II, ainda se reforça uma relação apenas horizontal com Deus, no qual a fé não tem nenhuma
expressão para as transformações das estruturas de dominação. As ações da neocristandade
estão voltadas para o bem particular e caridade reforçando uma estrutura de dominação sobre
as outras pessoas, e por isso, seu imaginário religioso é marcado por esta posição religiosa e
política.
Tanto para as CEBs quanto para a neocristandade há palavras-símbolos-fundantes e
universais que expressam motivação e utopia, por isso são criadoras “de sentidos e
significações dentro da rede simbólica. São símbolos principais, matrizes”.
171
. Esta linguagem
simbólica, cheia de sentido de vida, pode funcionar justificando a dominação, como também
pode impulsionar a libertação. Por isso, o conflito presente no imaginário simbólico, posto
171
RUIZ, 1997, p. 103.
109
como algo marcante numa teologia que se elabora a partir das experiências de escravidão e
libertação, presente no sangue negro.
Estas palavras serão aprofundadas na seguinte seqüência: Deus, Jesus Cristo, Maria,
Bíblia, Cruz e pessoas-símbolos.
Nestes personagens simbólicos se destaca a pessoa de Jesus Cristo: tudo foi feito por
Ele (Jo 1,2). Na origem de tudo só poderia mesmo estar um Deus infinitamente sábio e todo
poderoso para criar o que criou, todos trazem as marcas de um Deus muitas vezes vivificadas,
tendo os seres humanos recebido o “sopro divino” criados a imagem e semelhança de Deus,
para serem parceiros na obra de Deus. Os planos de Deus atinentes as suas criaturas tornam-se
mais claros ainda quando apreendemos que esta obra maravilhosa é presidida pelo próprio
Filho de Deus. Nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as
invisíveis.
172
Esta mesma fé nos assegura ainda que o filho de Deus uniu a divindade a
humanidade, e a humanidade a divindade, dando-nos a certeza de que não existe verdadeira
oposição entre razão e fé. Pelo contrario, como acentua o Papa João Paulo II: a fé e a razão
constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para contemplação
da verdade.
173
O anúncio, proveniente de um caminho de evangelização, dentro da Igreja, faz
com que a experiência de fé em Deus seja algo intrinsecamente humano e, portanto, este
anúncio esteja contextualizado dentro da realidade que os diversos grupos religiosos estão
constituídos. Ao mesmo tempo em que se contrapõe a neocristandade, pois esta possui uma
experiência de Deus dentro dos parâmetros do clericalismo e espiritualismo.
Pela universalidade, o símbolo ‘Deus’ tem características fundantes e confere “sentido
e significados a outro conjunto de símbolos entro da rede de sentidos e significações do
172
CNBB. 80.p.112
173
Fides et Ratio, n.1.
110
imaginário”.
174
A partir dele se destaca uma primeira oposição entre a neocristandade e as
CEBs.
Na primeira, Deus carrega o peso da autoridade que deve ser obedecida, por
assemelhar-se a figura de um pai, patrão ou senhor. Ele é ahistórico, que está num céu que
não tem nenhuma relação com a vida terrestre, por isso, Ele é o juiz das ações humanas, e
como tal, condena ou absolve as pessoas enviando-as para o céu ou para o inferno. Seu
julgamento, no entanto, dá-se através de atos moralistas, ou seja, se a pessoa é obediente às
ordens impostas pela igreja, que é representante direta de Deus, ela é boa cidadã que merece
estar ao seu lado, após sua morte. Isto reforçou um modelo de sociedade no qual as pessoas
que reivindicam ou se colocam contrárias a tais ordens pré-estabelecidas são consideradas
hereges e revoltadas contra o próprio Deus. Logo, a pessoa está condicionada a viver num
imaginário que a coloca como culpada e dependente da Igreja para ser perdoada por suas
culpas. Para tal, deveria realizar as normas e penitências estabelecidas.
Nas comunidades eclesiais de base, como também nas comunidades negras em suas
diversas experiências de espiritualidade, desconstrói-se este significado da neocristandade e se
reconstrói um outro sentido partindo do pressuposto da imagem do Deus Libertador. Ao
contrário da neocristandade, “Deus se faz presente na história e o faz como o Deus libertador
(...) Deus é um Deus que fez opção pelos pobres e oprimidos, pelos injustiçados e excluídos
da história”.
175
. Ele é libertador das pessoas que historicamente foram oprimidas. Por isso, ele
tem um Projeto que se constitui na figura do Reino de Deus. É neste Reino que as pessoas
excluídas se sentiram capazes de erguer-se por suas próprias pernas. Deus não é ‘muleta’ para
a pessoa excluída se sustentar, mas é pessoa que a impulsiona a reconhecer seus próprios
174
RUIZ, 1997, p. 103.
175
RUIZ, 1997, p. 105.
111
valores e qualidades, construindo, no presente, lugares nos quais se experimenta a justiça e a
paz. Seu projeto “é suficientemente amplo para respeitar a liberdade e o protagonismo das
pessoas e das sociedades, e até para assumir as conseqüências dessa liberdade”.
176
A imagem de Deus como Pai
177
, a partir da experiência das comunidades, implica num
modelo de sociedade no qual as pessoas se percebem construtoras e co-responsáveis com os
caminhos e as escolhas políticas e econômicas que conduzem a vida da coletividade. É uma
sociedade possível de ser transformada, pois ela não é eterna nem imutável. E, as situações de
injustiças são enfrentadas pela força que o próprio Deus depositou na pessoa humana. Nesta
perspectiva o ser humano é capaz, mesmo estando numa posição de profunda exclusão e
desumanidade, de rever tal condição e de lançar outros fundamentos que lhes impulsione para
uma vida mais digna. E esta força, que é pessoal, concretiza-se na experiência comunitária, na
qual se apreende as diferenças e limites para elaborar tais vivências. E, com a percepção de
que as formas de transformação não estão pré-definidas, mas são construídas no agora da
vida.
Do mesmo modo, funciona a experiência de fé relacionada com Jesus Cristo, no
imaginário religioso. Na neocristandade a sua “transcendência anula a dimensão histórico-
social de suas atitudes, mensagem, posicionamentos pessoais etc”.
178
Neste sentido, sua vida e
morte são entendidas como remissão e expiação dos pecados da humanidade. Em sua
obediência incondicional a humanidade deveria se espelhar, para receber a clemência do Pai,
devido ao pecado de desobediência de Adão e Eva. Sua mensagem é a salvação de nossas
almas, com ações piedosas.
176
RUIZ, 1997, p. 107.
177
Um canto que retrata esta imagem de Deus Pai é o “Pai-Nosso dos Mártires”, no qual se canta “teu nome é santificado
naqueles que morrem defendendo a vida, teu nome é glorificado quando a justiça é nossa medida (...). Perdoa-nos quando por
medo ficamos calados diante da morte; perdoa e destrói o reino em que a corrupção é a lei mais forte. (...) Pedimos-te o pão
da vida, o pão da esperança, o pão das multidões, o pão que traz a humanidade que constrói a pessoa em vez de canhões”
(Cancioneiro Popular)
178
RUIZ, 1997, p. 107.
112
Numa outra significação a partir do símbolo de fé do Jesus Libertador, que está
veiculada por meio de cantos, desenhos e dramatizações, que permitem motivar e reforçar o
agir grupal e o compromisso social
179
, se tem uma reformulação do Jesus ahistórico
180
. O
Reino de Deus
181
que Jesus nos apresenta, dentro da experiência do Deus está Conosco (Mt
1,23) que é Ele mesmo, está dentro dos conflitos e descobertas concretas da vida das pessoas
empobrecidas e num processo profundo de conversão. Este chamado à conversão é o
emblema maior da comunidade na qual Marcos estava presente, ou era liderança, pois logo
após o Batismo essas são as primeiras palavras de Jesus: “O tempo já se cumpriu, o Reino de
Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Noticia” (Mc 1, 15). A Igreja assume a
historização do cristo: O Espírito de Deus estava com sobre Ele e o conduziu em toda sua -
existência, ungindo-o para anunciar a Boa Nova aos pobres, para proclamar a libertação aos
presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um
ano de graça da parte do Senhor (Lc 4, 16-22)
182
Este anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo provoca na comunidade negra, protagonista
do processo de libertação, o anúncio de uma vida com dignidade e direitos vitais garantidos.
Na certeza de estarem no centro da vida do Reino, provocam um outro imaginário religioso
que promove na comunidade as ações voltadas para uma finalidade de humanização e
resistência frente aos estereótipos que perpetuam o preconceito e a discriminação.
Jesus Cristo, a partir da experiência de fé destas comunidades, compromete-se a
colocar no centro da atenção de toda sociedade seus maiores pecados e omissões, que a
exclusão de homens, mulheres, crianças empobrecidas, pois delas é o Reino de Deus (Lc 6,
179
RUIZ, 1997, p. 108.
180
Em várias romarias e missas campais se ouvia ecoar um canto de compromisso do Jesus Libertador com seu povo. Um
dos cantos mais aclamados nas romarias nordestinas era: “Sou, sou teu Senhor, sou povo novo, retirante e lutador. Deus dos
peregrinos, dos pequeninos. Jesus Cristo Lutador” (Cancioneiro Popular).
181
Esta expressão REINO DE DEUS é evidenciada como projeto de Deus na passagem de Lucas 4, 18 ss, no qual Jesus
afirma que “o Espírito do Senhor está sobre mim (...) para anunciar a Boa Notícia aos pobres, enviou-me para proclamar a
libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do
Senhor”.
182
CNBB. 80.p.24.
113
20). Por isso, não é possível dizer onde está o Reino de Deus, pois é o próprio Jesus que se
revela (Lc 17, 21), a partir de suas ações e palavras. Neste Reino que é como semente ou
fermento (Lc 13, 18-20), há coisas simples que não se percebem até que seja o tempo de
serem vistas, mas que constituem a vida simples de homens e mulheres que acreditam na
desconstrução de uma pesada estrutura de mais de 500 anos de cristalização da opressão e
violência que geram desigualdade e estruturas discriminatórias.
A pessoa de Maria também é outro símbolo fundante. No imaginário da
neocristandade ela significa “a mulher cuja maior virtude era a resignação de aceitar com
paciência as dificuldades e sofrimentos da vida”.
183
Deste modo, tornou-se modelo de uma
obediência servil que legitimou a submissão de diversas mulheres ao pai, marido, aos
governantes, padres e tantos outros que representam esta lei de Deus. Com isso, houve o
reforço do modelo de mãe como o único caminho para a realização das mulheres, e em
especial das mulheres negras. Seus filhos lhes conferiam posição social e eclesial, e por eles
deveriam calar caso sofressem alguma humilhação ou violência dos maridos.
Há uma forte contraposição, neste imaginário, entre os dois modelos de mulheres que
obtêm uma forte influência na vida de mulheres, e principalmente das mulheres negras. De
um lado, a Eva pecadora e desobediente que leva Adão ao pecado, e que por isso é a grande
culpada da saída do paraíso. De outro lado, Maria, aquela adolescente, que diante da
sabedoria de Deus soube dizer ‘sim’, e que se manteve casta e pura até a morte. Por isso, a
grande ênfase na virgindade da Maria, como sinal de cumprimento da vontade de Deus. Maria
aquela mulher de pele branca, angelical e coberta com um manto azul, enquanto proibição de
acesso a corporalidade. Neste sentido, se tem um reforço na estruturação de dominação para
mulheres e homens.
183
RUIZ, 1997, p. 109.
114
Fundado nesta oposição entre Maria e Eva que, no período colonial
184
, cria-se o mito
da mulher pura e devota, que era representada pela senhora da Casa Grande, ou a senhora e
esposa de algum político, fazendeiro ou profissional liberal, como médicos e advogados, que
merecia respeito e devoção. Em contraposição, nas senzalas e nos matos se caçava as
mulheres de tribos indígenas, e se violentava as que estavam no regime de escravatura. Cria-
se o mito das mulheres negras como aquelas prontas para o sexo livre. E as de cor mais clara,
filhas de famílias respeitadas, eram criadas e educadas para o casamento e reprodução de
filhos legítimos.
Numa releitura simbólica a partir da experiência comunitária de fé num Cristo
Libertador que impulsiona mulheres e homens para uma relação de equidade e diálogo, Maria
é mulher forte, que não se cala diante das situações difíceis. Ela é protagonista de sua história,
percebe que no seu tempo ter um filho sem pai era uma profunda humilhação, mas mesmo
assim é alguém capaz de romper com as estruturas sociais, por perceber a grandeza do projeto
de Deus. É mulher que canta as dores do seu povo, que é solidária com as outras mulheres, e
percebe a ação de Deus na história (Lc 1, 29; 34; 46ss; 2, 19; Jo, 19, 25). É “mulher crítica,
conscientizadora da situação social e política que vive, com uma clara opção pela libertação
dos oprimidos (...). É um incentivo a lutar para transformar a realidade excludente”.
185
Neste
sentido, Maria Libertadora, que livra seus filhos das situações opressoras, é modelo de luta e
resistência “para as mulheres pobres e oprimidas assumirem atitudes de protagonismo e
autonomia na conquista de seus direitos e dignidade”.
186
A verdadeira devoção a Maria não
consiste em sentimentos estéril e passageiro, ou em vã credulidade, ma procede da fé
184
FRISOTTI, Heitor. O Cristo dos poderosos e o Jesus dos pobres. Biblioteca Camboniana Afro-brasileira. Serviço de
Documentação, Salvador-BA. 1992.p. 16.
185
RUIZ, 1997, p. 110.
186
Ibidem.
115
verdadeira que nos leva a reconhecer a excelência da Mãe de Deus e nos incita ao amor filial
para com a nossa Mãe, e a imitação das suas virtudes.
187
Um outro símbolo fundante na evangelização libertadora é a Bíblia. Ela foi vista pela
neocristandade como um instrumento que deveria estar nas mãos de especialistas do clero da
Igreja Católica. Só depois do Vaticano II, em 1963, “houve uma revisão desse imaginário
censurado. (...) No novo imaginário a Bíblia é construída com a significação e o sentido de ser
a fonte de todas os significados e sentidos dos demais símbolos”.
188
A Bíblia enquanto
símbolo re-significado se traduz com a revelação de Deus na história através das pessoas
excluídas e marginalizadas. Nela o rosto de negras e negros se encontra como sinal da própria
revelação de Deus
189
, em comunhão com diversos outros rostos que se encontram na
marginalidade da expressão de fé na história brasileira oficial.
Na leitura da Palavra de Deus, que se encontra na Bíblia, o imaginário de fé das
comunidades eclesiais negras e afro-descendentes se fundamenta a partir da realidade sócio-
econômica-cultural-política vivenciada pelas pessoas que nela se encontram. Por isso, a
“palavra de Deus, assumida e lida com autonomia pelas pessoas (...), constitui-se num
símbolo gerador de representações e de imaginário com potencialidade de motivação para o
agir”.
190
Destarte, são as próprias pessoas da comunidade que criam o “imaginário a partir
dos significados que descobrem na relação entre sua experiência de vida e a Palavra de
Deus”.
191
A cruz é outro símbolo fundante, que pode ser significado a partir das perspectivas
teológicas as quais podem justificar o imaginário opressor e discriminatório que comunga
187
Concilio Ecumênico Vaticano II. IV. p. 190.
188
RUIZ, 1997, p. 111.
189
RUIZ, 1997, p. 112.
190
RUIZ, 1997, p. 73.
191
RUIZ, 1997, p. 112.
116
com os poderes instituídos que não promovem vida digna para grande parte da população.
Como também, elabora um contra-imaginário questionador e que vai se constituindo numa
proposta libertadora.
Para a teologia oficial da Igreja Católica, que foi se constituindo numa neocristandade,
que se popularizou nas missões penitenciais nordestinas, o símbolo da Cruz passou a ser visto
como sinal de aceitação passiva da própria condição de miserabilidade. Foi-se alimentando
uma mentalidade do sofrimento dos empobrecidos identificado com o sofrimento do próprio
Cristo. Pensava-se “como Jesus carregou sua própria cruz, eu devo carregar a minha”. Logo,
muitas pessoas empobrecidas passaram a acreditar que estavam pagando por suas culpas, de
modo individual, e por isso, não tinham a sorte de ter uma vida melhor. “Jesus crucificado
seria o modelo de aceitação resignada do próprio sofrimento. (...) O verdadeiro cristão é
aquele que sabe aceitar resignadamente, sem criticas nem revoltas, seu próprio sofrimento, ou
sua cruz, por ter sido dada por Deus”.
192
Destarte, o sofrimento provindo das estruturas violentas e desiguais eram
desculpabilizadas, e a pessoa que mais sofria as conseqüências de tais estruturas eram
culpabilizadas por tal situação. A imagem da Cruz justificava a imagem de um Deus que
“envia esse sofrimento segundo os méritos de cada um”.
193
Na experiência de fé provinda das comunidades eclesiais de base, das negras e afro-
descendentes, a cruz é ressignificada e se torna “sinal da solidariedade de Deus com os pobre
e oprimidos da terra”.
194
Mais ainda, é compreendida como o sinal da própria condição
humana, que não nega as dificuldades e os limites que se encontra na realidade, mas
assumindo-os, é capaz de se colocar no seguimento a Jesus (Mt 10,38; Mc 8,34; Lc 9, 23; 14,
27). Seguimento que se assemelha ao anúncio da Boa Noticia: aqueles que estiveram na
192
RUIZ, 1997, p. 118.
193
Ibidem.
194
RUIZ, 1997, p. 119.
117
periferia da história se colocam no centro das decisões, por eles próprios perceberam que
fazem parte desta história, e através de suas organizações conseguem ter força de intervenção
e voz de transformação. A cruz é reconstruída como resistência, luta e vitória contra a
opressão. É sinal das injustiças, opressão, maldade que diminuem a força da justiça, da
libertação e da bondade, mas não as anula nem as destrói, pois no terceiro dia Jesus cumpre a
promessa da ressurreição (Mt 28, 1ss; Mc 16, 1ss; Lc 24, 1ss; Jo 20, 1ss). Por meio da
experiência de ressurreição, a cruz se torna “símbolo de vitória de todos que lutam contra a
injustiça do mundo”.
195
Por fim, o último elemento elencado nesta dissertação para compor o corpo do anúncio
de Jesus Cristo Libertador, é o que se pode determinar como escolha das pessoas que se
tornam testemunhas dessa caminhada. Para a neocristandade estas pessoas se resumem nos
santos e santas que foram obedientes e penitentes, mas no movimento contra-imaginário as
pessoas são escolhidas pela capacidade de reforçarem o imaginário de fé re-significado pelas
CEBs e comunidades negras e afro-descendentes.
Com isso, fica evidente que para aqueles que pensam o imaginário institucional e
oficial dentro dos padrões da neocristandade, estas pessoas que as comunidades recuperam
como testemunhas da fé em Jesus Cristo, foram considerados os opositores de tal imaginário
através de diversos “mecanismos: anátemas, excomunhão, heresia, fogueira etc.”.
196
Portanto, é através da comunidade de fé que estas pessoas são resgatadas, pois muitas dessas
personagens são malvistas e malfeitoras na história oficial, e pelo poder da re-significação são
transformadas em pessoas-símbolo e se tornam referência para o imaginário libertador
197
.
195
Ibidem.
196
RUIZ, 1997, p. 123.
197
ibidem
118
Nas comunidades eclesiais com o rosto negro as pessoas-símbolo mais referendadas
são Zumbi, símbolo do poder da organização e da união comunitária, Anastácia, santa e
mártir, que denuncia as mulheres negras violentadas física e sexualmente; Manoel Congo,
líder e mártir do povo negro injustamente enforcado em 6 de setembro de 1839; João
Cândido, almirante negro, líder da Revolta da Chibata, falecido aos 6 de dezembro de 1969
198
e tantas outras pessoas que não se calaram frente à opressão e injustiças estruturais e pessoais.
São homens e mulheres “venerados como modelo de identidade na luta por uma
sociedade mais justa e igualitária, segundo a vontade de Deus”.
199
3.6. DESAFIOS PASTORAIS
Esta força que provém da experiência de fé comunitária e libertadora, num processo
constante de evangelização, coloca Deus do lado daqueles que lidam com o peso da opressão
e vivenciam, durante séculos, a força da injustiça e da dominação. E tal experiência e
processo se expressam através da práxis, guiada por Jesus Cristo, como diálogo e abertura de
acolhida para as diversas expressões religiosas presentes na cultura brasileira, principalmente
no que se refere aos cultos de origem africana.
Com Jesus, a partir de uma leitura comunitária e de libertação, apreende-se o poder de
resistência e libertação que há na identidade e na força religiosa para um país negado em suas
origens mais profundas. Isto é uma maneira de não colocar os cultos afro-brasileiros como
algo que se deve negar e rejeitar, ou expressão do Mal na figura do demônio, mas como uma
comunhão e um compromisso para a re-construção da identidade religiosa de um povo
pluricultural como é o Brasil, e em especial o Nordeste.
198
RUIZ, 1997, p. 124.
199
RUIZ, 1997, p. 126.
119
Nesta comunhão não há fronteiras e limites que empeçam de que haja uma soma de
ações e reconstrução de significação do imaginário simbólico das comunidades eclesiais
negras e afro-descendentes. Esta significação de linguagem que impulsiona para uma
evangelização libertadora é alimentada por pequenos gestos e grandes ações que podem
parecer, em primeira instância, como algo sem significado. Mas, as poesias, cantos, reuniões,
elaborações de textos e bandeiras de luta animam este caminho árduo e prazeroso de
resistência e libertação.
Veja-se o que nos ajuda a refletir o poema de Alice Walter, mulher negra, norte-
americana e grande romancista, que retrata a luta de um povo que fora excluído e renegado ao
submundo do sistema neoliberal e pela cristandade branca, masculina e burguesa:
120
Lembra-se
“Lembra-se de mim?
Eu sou a menina de
Cor escura
Cujos sapatos são gastos
Eu sou a menina
Com os dentes estragados
Eu sou a menina escura
Com os dentes estragados
Com o olho ferido
E o ouvido rasgado
Eu sou a menina
segurando seus bebês
cozinhando suas refeições
varrendo seus quintais
lavando suas roupas
Escura e fedida
E ferida, ferida.
Eu daria para a
raça humana somente
ESPERANÇA.
Eu sou a mulher
Com a pele escura abençoada
Eu sou a mulher
Com os dentes arrumados
Eu sou a mulher com a visão que cura
E o ouvido que escuta.
Eu sou a mulher escura, curada
Escutando você.
Eu daria para a raça humana
Somente esperança.
Eu sou a mulher oferecendo duas flores
Cujas raízes são gêmeas:
JUSTIÇA e ESPERANÇA.
Vamos começar!”
121
Este é o sentimento que alimenta a práxis pastoral de comunidades que percebem
plurais e com uma convicção de que não pode devolver violência com mais violência. Essa
é a perspectiva da FNB quando abre suas portas, em plena década de 30, para que todas as
pessoas empobrecidas, que não tinham acesso à educação formal, à conscientização política
e ao lazer digno, pudessem entrar e se alegrar com um espaço que lhes ensinava a lutar por
direitos vitais.
O principal desafio pastoral está justamente na simbologia evocada pela Frente Negra
Brasileira, enquanto processo de elaboração e prática que viabiliza uma nova ordem social.
A menina da poesia de Alice Walter retrata a experiência de vida de tantas outras meninas e
meninos que vivenciaram, desde sua infância, a negação de seus direitos, devido à
exploração do trabalho escravizado. A importância dos grupos e das comunidades é
fundamental para que estas crianças não devolvam à humanidade mais ódio e, desde a
infância até a vida adulta possam encontrar pistas e caminhos de cura. Por isso, a partir de
uma perspectiva de pastoral libertadora, um dos grandes objetivos das ações pessoais e
coletivas, é promover Cura e Boa Nova, para que negros e afro-descendentes possam
ultrapassar o individualismo imposto por uma cultura centrada em interesses particulares e,
reconhecendo-se como protagonistas de sua própria história, e encontrem de modo pessoal
e coletivo, outros recomeços e experimentem outras relações humanas.
Portanto, é de modo pessoal e coletivo que se experimenta os desafios pastorais nas
comunidades eclesiais e de negros e afro-descendentes. Estes desafios convidam a perceber
que no caminho da resistência e da libertação há diferentes modos de conceber e exercitar a
122
imaginação. E que estes modos compõem o imaginário religioso e social do movimento
social e, conseqüentemente, do negro e da F.N.B.
Há uma imaginação reprodutora que capta as imagens que se percebe através dos
sentidos ou da memória. E, uma outra, evocadora “que atualiza o ausente com uma forte
influencia dos sentimentos e da afetividade”
200
. Na criadora tem-se o poder de produção
do conhecimento humano. É através dela que se elaboram as diversas ciências, como a
filosófica, humana, física e todas as outras. Como também, ela torna possível a poesia, ou
qualquer outra expressão artística, como força de expressão do pensamento humano.
Com a imaginação simbólica é possível elaborar mitos, lendas, imagens de valores
fundantes como Bem e Mal, Justiça e Injustiça, Verdade e Mentira, entre outros. Por isso,
ela é caracterizada por ser notavelmente social, vinculada ao grupo que a produziu
201
,
segundo o entendimento consensual que estes grupos desenvolvem com suas divergências e
convergências. Por isso, “o símbolo é uma epifania (= aparição do indizível pelo e no
significante). Esta epifania faz aparecer um sentido secreto. O símbolo (sumbolon, do grego
e sinnbild, do alemão) constitui-se na reunião de duas metades: um significante e um
significado”.
202
Destarte, uma prática que deseja inspirar a cura e a Boa Nova de Jesus Cristo,
conduzindo as pessoas para um caminho de resistência a opressão e discriminação numa
luta constante para a libertação do ser humano em suas diversas dimensões, não pode estar
200
RUIZ, 1997, p. 96.
201
Ibidem.
202
Ibidem, p. 101.
123
aprisionada a uma prática que só leva em consideração a racionalidade e o discurso
provindo da leitura oral e verbal da Palavra de Deus, que se encontra na Bíblia e na Vida.
Precisa levar em conta, igualmente, o lúdico e a imaginação próprios do ser humano ao
construir suas razões de sua fé e de seu aprendizado pastoral.
Estas diferentes maneiras de expressar o poder da imaginação, presentes no ser
humano, se refletem num campo de luta de poderes dentro das formulações e estruturações
que delas provém, em especial daquelas que diz respeito ao simbólico. É ele que irá definir
os valores e os parâmetros pelos quais se expressa a fé de um povo. Este é um grande
desafio para uma prática que almeja ser libertadora, pois com o poder se referencia o jogo
de interesses que se estabelece em qualquer dimensão da vida humana, e é pouco refletida
na construção da evangelização no Brasil.
É preciso compreender que a construção do imaginário simbólico é um processo
representativo dos interesses de diversos grupos que dialogam e entram em conflito dentro
da sociedade.
203
Necessário se faz levar este aspecto em conta, quando se planeja uma
prática pastoral junto às comunidades eclesiais de base, e dentro destas as comunidades
quilombolas, enquanto espaços de resistência e memória viva da fé simbólica e libertadora
de um povo escravizado e banido para as periferias e submundos.
204
Por todo este desafio pastoral é imprescindível incluir nas ações de evangelização o
entendimento de que estar nas periferias e submundo não é algo aleatório, ou efeito de uma
má sorte ou vontade de Deus, mas compreender que este submundo é criado em referência
203
Ibidem.
204
Para título de aprofundamento da resistência das comunidades quilombolas têm-se o livro de Aldemir Fiabini, com o
título “Mato, Palhoça e Pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004)”.
124
a um símbolo que se chamou ‘mundo’. O que se delineia ao falar mundo? Com a
modernidade, aliada ao processo de industrialização e globalização tecnológica, não há um
mundo, mas mundos que convivem entre si. Só que há uma concepção predominante
definida pelo mercado e pelos donos do poder financeiro, no qual o meio ambiente e os
seres humanos são apenas uma peça no jogo de interesses do lucro desmedido. “Quanto
mais, melhor” este é o lema do que se aprendeu a chamar de felicidade. Ser feliz, numa
modernidade industrializada com as divergências e multiplicidades alargadas pelos meios
tecnológicos significa o ‘eu’ em primeiro plano, que contrapõe tradição e progresso
205
como sinal de liberdade e consumo. O que não se encontra neste plano é considerado
periférico e se encontra deslocado do ‘mundo’.
Na CEBs e comunidades quilombolas, a atuação dentro deste ‘mundo’, criado pela
modernidade, é um processo contínuo de vivenciar outros mundos, retirando-os da
qualidade de submundo e recolocando-os na contramão da história e experiência de fé.
Com o significado de uma modernidade que recortou as relações de felicidade,
norteadas apenas pelo racionalismo e consumismo exacerbado, estas comunidades
propõem, em sua prática pastoral, uma outra lógica que desencadeia uma “reavaliação da
rejeição que os grupos progressistas da Igreja, influenciados pelo imaginário da
modernidade oriundo da Europa, tinham à religiosidade popular e sua simbologia”.
206
Portanto, são estas comunidades que, em sua práxis, realizam uma contínua
inversão de paradigmas e re-significações, como se percebe em todo processo de
evangelização. Este processo é marcado pela “opção pelos pobres e oprimidos, dando
importância não somente a dimensão de luta econômica, mas à construção e valorização do
205
RUIZ, 1997, p. 98.
206
RUIZ, 1997, p. 99.
125
imaginário social popular como forma de resistência e luta política”.
207
Elas percebem a
riqueza de identidade e da simbologia do imaginário popular e re-significam tal imaginário,
a partir dos seus valores fundantes e da percepção que o ser humano é construtor constante
de sua própria vida, alimentado e animado, pela força do ‘Deus Conosco’. E ao acolher tais
símbolos retrabalham seus significados, no sentido de impulsionar suas ações.
Este movimento entre o significado e o significante, no qual se estabelece a relação
entre sujeito e objeto, faz com que o objeto se torne sujeito de sua condição, e com que o
sujeito se perceba em relação de poder com o objeto e, não sobre o objeto, para que haja
uma construção de re-significados, que possibilite esta via direta entre aquilo que se
estabelece como imaginário e sua práxis, garantindo uma autonomia e ao mesmo tempo,
uma interdependência com relação às condições geridas pelos diversos grupos. Por isso, há
uma interrelação entre a condição social e econômica com a construção significativa da
simbologia religiosa. E isto, também, é algo que precisa ser levado em conta ao se
estabelecer metas pastorais de trabalho com comunidades de base, e com as quilombolas.
Mister se faz perceber, no entanto, que esta construção entre sujeito e objeto, foi
marcada por duas correntes, em oposição, ao longo da história humana que perpassam toda
construção do conhecimento e da práxis, na qual a teologia pastoral não pode ser isentar de
influências. Há uma idealista, outra materialista. Na tradição idealista o sujeito é entendido
“como o único criador do imaginário (...). O imaginário é uma construção do sujeito,
independente do contexto externo, seja social, econômico, político ou do fazer humano
etc.”.
208
Neste sentido, o sujeito é promotor do imaginário sem relação com a sua realidade,
e esta em coisa alguma influência sua constituição. De certo modo, é à base de
207
Ibidem, p. 100.
208
Ibidem, p.136.
126
fundamentação da neocristandade, na qual a fé e as ações cristãs possuem uma relação
direta e horizontal com Deus, na qual há uma relação de aproximação de Deus com o povo
no aspecto da culpa, cobrança e da penalização.
A compreensão presente na tradição materialista seja no funcionalismo ou no
marxismo ortodoxo, que entende o imaginário como uma superestrutura, nesta
interdependência entre sujeito e objeto, é determinado tanto “pelas realidades materiais das
pessoas e do grupo social, quanto, especificamente, pelas condições do modo de produção,
das relações de produção e da ação das pessoas”.
209
Mas, o limite é que, mesmo levando
em conta os aspectos de materialidade do sujeito há uma perda em sua subjetividade. O
sujeito praticamente perde sua identidade frente à situação em que se encontra, envolvendo-
se, demasiadamente, na coletividade. É como se ele não tivesse autonomia em determinar
sua própria decisão e posicionamento diante das decisões do grupo, especialmente se está
dentro de uma lógica de dominação.
Portanto, um outro desafio pastoral é encontrar um possível diálogo entre a
percepção do sujeito como criador do imaginário, mas que se encontra numa
interdependência em sua condição histórica. Este é mais um grande desafio ao tratar do
imaginário simbólico a partir de grupos que foram historicamente marginalizados e
excluídos do processo de construção social. Grupos como a FNB foram entendidos como
objeto dentro do processo de construção no qual o sujeito era a pessoa da elite com poder
aquisitivo para determinar o que se deveria estabelecer como oficial.
Preciso se faz levar em conta que a presença da realidade na construção do
imaginário é de fundamental importância, seja pela “influência direta das condições
209
Ibidem, p. 137.
127
objetivas, seja pelo agir, ou pela prática acumulada ao longo dos tempos e que se transmite
socialmente”.
210
Entretanto, a subjetividade deste indivíduo que constrói a realidade deve
ser considerada dentro das práticas pastorais que tendem a dialogar o significado e o
significante na desconstrução dos elementos simbólicos que compõe o imaginário religioso.
Destarte, o imaginário religioso se torna o movimento da “vontade, do agir, da
práxis individual ou social”.
211
Por isso, é na junção do coletivo e do subjetivo que se
encontra a força de transformação das práticas das comunidades num movimento de
alimentar a auto-estima das pessoas, como também seu poder em exercer um protagonismo
interventivo e eficaz nas decisões mais coletivas em todos os níveis da vida, mas
especialmente no religioso.
Com isso, essas comunidades poderão reagir (como já o estão fazendo) contra o
imaginário dominador e opressor das classes de elite, desconstruindo tal imaginário, e re-
construindo, de modo criativo e político, um imaginário coerente com as transformações
sociais e religiosas que venham promover libertação. Mas é preciso compreender que este
imaginário dominador sempre estará influenciando nos símbolos presentes nestas
comunidades. Por isso, há a necessidade de um trabalho constante e vigilante referente à
linguagem, aos rituais, a própria informação e formação que se encontra dentro das
comunidades.
O que se propõe para uma prática pastoral dentro das comunidades negras é um
trabalho incansável de conscientização continuada e sistemática, para que as pessoas
percebam as nuanças entre os símbolos fundantes que tanto estão presentes num discurso
210
Ibidem, p. 138.
211
Ibidem, p. 139.
128
forjado para a dominação, quanto naquele que se constrói através de uma prática de
libertação de todas as pessoas, principalmente das negras e afro-descendentes.
Uma outra proposta pastoral se encontra no sentido de integrar o imaginário
religioso com o social, que resulta numa organização das ações que se realizam de modo
articulado e com maior intervenção no campo político, dentro e fora da Igreja Católica,
invertendo o discurso de que as CEBs e outras comunidades atuam de modo isolado e sem
expressão de reconstrução dentro dos pressupostos da dominação por parte da cristandade e
do neo-liberalismo. A práxis precisa ser realizada na forma de “articular organizadamente a
ação social e política do grupo”.
212
Estes diversos desafios que apontam para um possível diálogo com a subjetividade e
a coletividade como também entre a religiosidade e a política, entre outros, impulsionaram
para a necessidade imprescindível de uma reformulação do conceito de pastoral.
Na Igreja Católica, o conceito de pastoral faz referência à disposição de conduzir os
fiéis pelo melhor caminho, nos passos de Jesus Cristo, guiando sua vida a fim de alcançar o
Reino de Deus. Durante vários séculos o imaginário que foi sendo construído em torno do
conceito de pastoral se remetia à tutela da hierarquia sobre o povo, entendido como
rebanho. A compreensão de pastoral estava imbricada com a imagem da salvação da
própria alma, na qual não se tinha à preocupação com a condição humana, política, social e
econômica de vida das pessoas, como também abertura para outros referenciais de credo e
crença. “No máximo o imaginário da cristandade, preocupava-se com aspectos da
moralidade individual, especialmente da moral sexual”.
213
212
Ibidem, p. 140.
213
Ibidem.p. 141.
129
Numa releitura libertadora, o conceito de pastoral, a partir da prática das
comunidades, é mantido, mas encontra um outro significado. Ela incorpora as dimensões
social, econômica e política da pessoa. “A salvação não é mais concebida de forma
individualista, mas comunitária. Não é a alma que se salva, mas a pessoa como um todo. A
realidade social, o mundo e a história também fazem parte do plano libertador de Deus”.
214
A práxis destas comunidades é constituída das ações de cristãos que tenham como
inspiração e meta a pessoa de Jesus Cristo Libertador, que se compromete e se encontra no
meio das pessoas pobres, oprimidas e marginalizadas com o intuito da libertação plena, a
partir de uma resistência cotidiana frente ao imaginário dominante.
Com isso, a pastoral possui uma metodologia planejada e participativa, no sentido
de atingir sua meta e seu fim, num diálogo favorável ao respeito e abertura as diversidades
de expressão de fé e religiosidade popular.
Portanto, o imaginário religioso das comunidades, especialmente aquelas que
trazem no seu seio a vivência da negritude como um valor de resistência, auto-estima e luta
política a fim de uma libertação plena, tem o fim de integrar “o compromisso social e
político como inerente à fé. Não existe fé autêntica sem compromisso social”.
215
Conclui-se que esta práxis pastoral, que agrega a fé e o compromisso social
dialogando as subjetividades e as diversas expressões religiosas provindas de nossos pais e
mães africanos, a partir de uma fé cristã madura e aberta para os diversos significados que
214
Ibidem, p. 141.
215
Ibidem, p. 142.
130
esta fé vai delineando aos símbolos fundantes da evangelização, encontra múltiplos
desafios, e alguns deles foram pontuados neste texto.
A partir da leitura da F.N.B, como espaço social da presença da Boa Nova de Jesus
Cristo Libertador e das CEBs, se mantém acesa a chama da esperança diante de estruturas
opressoras e autoritárias. A práxis destes grupos e comunidades, como também de outros
que comungam da mesma espiritualidade libertadora e encarnada, ultrapassa os credos
particulares e afirma a luta pelos direitos fundamentais das pessoas excluídas como algo
essencialmente comum para aqueles que alimentam sua fé na humanidade ressuscitada na
pessoa de Jesus Cristo que transforma o imaginário radicalmente, seja em sua construção
simbólica, seja na expressão desta construção através dos diferentes discursos.
No entanto, esta práxis só é realizável, pastoralmente, dentro da compreensão de um
processo pedagógico e metodológico. Este processo dentro da Igreja e em outras
comunidades se constitui no “método ação-reflexão, como a melhor forma de transformar
e construir o imaginário”
216
religioso e social da F.N.B, como também de todos os grupos
negros e afro- descendentes que discutem a questão da negritude no parâmetro da fé e da
política entre outros elementos.
216
Ibidem, p. 143.
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O caminho pelo qual esta pesquisa percorreu, realizaram-se conclusões concretas
dentro de muitas hipóteses que foram refletidas no início, e ao final deste processo pode-se
retomar algumas das afirmações dentro de uma visão mais global.
O relativismo somado à globalização da economia e ao desenvolvimento da
robótica, oriundos da razão instrumental, desemboca em uma realidade que Bruno Forte
chama de “falta de paixão pelas verdades”
217
. Esta falta de paixão manifesta-se quando
tudo conspira para levar os seres humanos a não mais pensar, para se entregarem ao
imediatamente desfrutável, calculável, somente no interesse do consumo imediato.
Dentro desta realidade encontram-se os afros-descendentes, com seus ritos,
costumes e tradições, que pelo fato de sobreviverem a longos anos, constituem um campo
epistemológico capaz de dialogar com desafios da modernidade. Se as tradições dos afros-
descendentes sobreviveram até hoje, é porque as mesmas forjaram uma identidade capaz de
atravessar o espaço e o tempo. Daí decorre que mesmo com a influência de outras
manifestações religiosas, e, sobretudo da Igreja Católica os afros-descendentes
proporcionam uma experiência singular de Deus. O lúdico está intimamente inserido em
uma cosmovisão cuja natureza se torna manifestação do divino.
217
FORTE, Bruno. Curso de Aprofundamento teológico-pastoral do clero da arquidiocese de São Paulo: Itaici 11 a 14 de
agosto de 2003, p.7.
132
A primeira hipótese demonstrada nesta pesquisa foi que o imaginário social
construído pela cultura afro-descendente contém elementos profundos para
compreendermos o enraizamento da religiosidade popular dentro do contexto social e
cultural do Brasil após a década de 30, e que os símbolos afros-descendentes formaram um
imaginário social próprio que motivou o agir dos diversos grupos sociais.
Uma outra hipótese é que a promoção dos avanços e as contribuições dos afros-
descendentes na formação do povo brasileiro podem desencadear formas de superar o
preconceito baseado na pigmentação epidérmica, uma vez que a Frente Negra Brasileira,
encarnou valores éticos, provindos da mesma fonte de outras religiões, e de modo especial
a Igreja Católica. Porém, ela se destaca por promover uma luta contra o preconceito no
terreno histórico, mas que se destina para o fim, ou seja, para o escatológico, que motivou o
agir do grupo.
Extrairam-se, nestas pesquisas, elementos simbólicos que conjugaram com os
princípios cristãos de evangelização, que apontaram para ações integradoras, trazendo
benefícios para as pessoas que ao longo da historia foram excluídas, exterminadas e
desprovidas do saber.
A razão reduziu o ser humano a um mero espectador da realidade no mundo
moderno, e as formas de interações podem ser classificadas pelas superficialidades com que
as pessoas tratam o divino, os outros, e a si mesmas. A lei do mercado tornou-se o grande
empreendimento que conduz as relações pessoais e interpessoais, e, por extensão,
determina as formas de comportamentos, muitas vezes traduzidas pelas novas formas de
exploração, de preconceitos e assassinatos em prol do lucro. A razão produziu uma
133
sociedade sem Deus. Enquanto a sociedade vive de consumo, o fundamentalismo religioso
vive do moralismo, da dicotomia entre a oração e a realidade exploradora.
O evento da Frente Negra Brasileira abre-se a uma experiência mais unitária do
existir humano. Ao encabeçar uma luta contra o preconceito racial, tal movimento encontra
sua motivação primaria na fé, cujo simbolismo do Jesus libertador, fez-se presente no
imaginário dos seus membros. Desde o Brasil colônia, o sincretismo dos diversos grupos
sociais e étnicos possibilitou uma distância da religiosidade européia e das formas
institucionais da igreja que de várias maneiras racionalizou a fé.
As formas religiosas oriundas do sincretismo perfazem o espaço de resistência a
dominação e o lugar da elaboração de um sentido de vida e de liberdade negada
sistematicamente, pela sociedade outrora escravocrata e hoje, capitalista. Elas contêm, por
isso, uma dimensão simbólica, uma dignidade teológica que se impõe a si mesma. É
justamente nesta realidade que Deus os encontra, e eles encontram Deus como aquele que
alimenta as ações de transformações na síntese entre a razão e a fé. Isso se constata pelas
festas, danças, comidas. Esta dimensão lúdica, que caracteriza as religiões afro-brasileiras,
abre-se a oportunidade histórico-salvífica de um paradigma original para a fé cristã, no
Brasil e na América Latina. Como afirma Leonardo Boff: “ seja-nos permitido esperar que
Cristo fale nossas línguas, se revista de nossa cor, seja celebrado nas nossas danças e
louvado em nosso corpo, realidades com as quais os negros e mulatos enriqueceram nossa
nação brasileira”.
218
218
BOFF. Leonardo. O caminhar da Igreja com os oprimidos. Vozes, São Paulo. 1988. p. 32.
134
Lutar e relutar com alegria, com festa e dança, sem preceder os critérios
organizativos e dos planejamentos. Estes foram os elementos presentes na Frente Negra
Brasileira e nos grupos sociais de hoje. Chama-se de simbólico esta capacidade de unificar
o projeto de Deus, ou seja, uma sociedade mais igualitária, mais justa, sem, contudo, perder
de vista a alegria de combater. Isso se deve ao fato do mesmo Deus legitimar a luta. A luta
é de Deus por optar pelas classes oprimidas, pelos discriminados.
A razão, pelo contrário, produziu símbolos ideológicos, com fins de dominação.
Dominação política, religiosa, para justificar a exploração econômica. Nesta pesquisa sobre
o imaginário da Frente Negra Brasileira, revelou-se o contrário. O simbólico tem, também,
um poder transformador das pessoas e da realidade social. Demonstrou-se que os símbolos
podem transformar-se em motivadores e criadores de condutas críticas e em
transformadores do real. Neste sentido, constata-se que é pela força do simbólico que as
pessoas continuam tendo a possibilidade de pensar a sociedade nova e diferente, onde a
utopia sempre será possível porque nunca é plenamente realizável. Desta forma, pode-se
abrir a novos horizontes no que diz respeito à formação nos seminários, na catequese dos
agentes de pastoral e grupos afins. Não seria oportuno introduzir uma formação, não a
partir das ciências como elemento introdutório, mas a partir das cosmogonias, ou mitos?
Não seria oportuno, capacitar animadores dentro do pensar simbólico, para que estes
tenham a capacidade de sentir e ver a vida a luz da fé? Em oposição à razão que mecaniza a
sociedade ao passo da secularização?
Bem! Como se afirmou, estas últimas páginas não são conclusivas, justamente por
se tratar do simbólico, ou seja, por se abrir às novas interpretações, propostas e
significações. Ao contrario, caso houvesse uma conclusão, a razão teria vencido mais uma
135
vez, e a dissertação seria contraditória. Como a pesquisa constatou que o simbólico é um
processo humano que deságua no mistério Divino e vice versa, a pesquisa a conclusão não
poderia ser diferente. Contudo o simbólico vive e atua como pressuposto hermenêutico.
136
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A Platéia. São Paulo, 1932,1935.
Prontuários DEOPS/SP, AESP: n 1538 – Frente Negra Brasileira.
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Diário de São Paulo. São Paulo, 1931-1934.
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