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1
Águeda Márcia Ferrão
Compartilhando silêncios: um resgate de recordações.
Belo Horizonte
Novembro de 2006
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2
Águeda Márcia Ferrão
Compartilhando silêncios: um resgate de recordações.
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Artes da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Artes.
Área de concentração: Arte e Tecnologia
da Imagem
Orientadora: Profª Dra. Maria Angélica
Melendi
Belo Horizonte
Novembro de 2006
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3
Para Afonso Ferrão, o melhor dos pais, que estava
lá bem no início e continua a estar
.
4
AGRADECIMENTOS
À Maria Angélica Melendi, pelo olhar, pelo direcionar, pelo
acolher: Minha mentora, hoje amiga.
Aos meus amigos:
Giovanna, pelo território dos afetos,
Miguel, pelo sorriso carinhoso,
Aléxis, pelo caminho percorrido juntos,
Luís Henrique, pela lembrança constante,
José Paulo(Zepa), pela valiosa tradução,
Jadson (Jajá), pela proximidade e compartilhamento do silêncio,
César, pela sabedoria da escuta,
Waléria, pela amizade,
Rejanne, pela companhia inocente,
Consuelo, pelo carinho e cuidadosa revisão.
À Zina e aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação da
Eba, pela atenção.
Aos colegas do mestrado e do grupo de estudo, pela parceria
neste caminhar.
5
À Minha família:
Meu marido, amor e companheiro,
Meus irmãos e sobrinhos, pela família que me proporcionam, e
por suportarem de perto meus humores,
Minha mãe, pelo colo constante e delicadeza.
Meu pai, que neste momento, gostaria estivesse comigo.
Ausente, a lembrança da sua presença e o som da sua voz em minha
memória, trazem um murmúrio de afeto e saudade. De sua ausência
restam a recordação, o caminhar, a luta diária, o exemplo, as coisas. O
meu eterno amor e agradecimento.
6
(...)as barreiras do trem, minha casa, um mercado,
a insondável e úmida noite. Mas nenhuma dessas
coisas fugazes, que acaso foram outras, importa.
Importa ter sentido que nosso plano, do qual mais
de uma vez zombamos, existia real e
secretamente e era o universo e nós mesmos.
Jorge Luís Borges
Ansiosos, guardamos tudo em arquivos,
compartimentos, seções distintas; febrilmente
distribuímos, classificamos, rotulamos. Sabemos
que esta coisa que chamamos mundo não tem
um início com sentido ou fim compreensível,
nenhum propósito perceptível, nenhum método
em sua loucura. Mas insistimos: ele deve fazer
sentido, deve significar algo.
Alberto Manguel
O homem é feito das marcas que o homem deixa
sobre as coisas. Ao reconhecer o humano
impregnado nas coisas, todo homem é homem-
mais-coisas, daí o afã de colecionar objetos,
imagens, signo.
Ítalo Calvino.
7
RESUMO
Esta escrita se faz em forma de reverência aos que, pela
plasticidade da matéria, da palavra ou dos sentimentos, salvaram do
esquecimento parcelas significantes de vida.
Nela, a memória pessoal se tece imbricada à dos entes referidos:
Joseph Cornell, Sophie Calle, Elida Tessler, a Tia, o Pai, a Vizinha, a
Professora, a Mãe, seja através das obras, seja através dos depoimentos
dados, e até mesmo de textos críticos sobre eles formulados.
Texto de resgate, este não se exime de imiscuir-se aos dos
“autores que teorizaram sobre as relações entre as pessoas e os
objetos”. Relações que se manifestam nos resíduos de lembranças e
que encenam a presença/ausência no processo da memória,
potencializando, assim, o devir.
Dessa forma, Borges, Benjamin, Barthes, Blanchot, Auster,
Manguel, são convocados a participar desta tessitura que não se
pretende acabada, mas se projeta no futuro.
8
ABSTRACT
This writing is done as a way of reverence to the ones, that through
plasticity of matter, of word or of feelings, preserved from oblivion
significant portions of life
In it, personal memory is framed imbricated with the ones of the
following reported beings: Joseph Cornell, Sophie Calle, Elida Tessler, the
Aunt, the Father, the neighbour, the Teacher, the Mother, be it through
works, or through given statements, and even through critical writings
about them.
Redemption text, this doesn’t relieve itself of meddling with
the ones of the “authors who speculated over relationships between
people and the objects”. Relations that manifest themselves in the
residues of remembrances and simulated the presence/absence in the
memory process, making potent, thus, the coming to be.
So, Borges, Benjamin, Barthes, Blanchot, Auster, Manguel are
convoked to share in this contexture that doesn’t aspire itself finished
and projects itself in the future.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Joseph Cornell studio............................................................. Pag.23
Figura 2. Joseph Cornell L’Égypthe de Mlle Cléo de Mérode......... Pag.29
Figura 3. Joseph Cornell Sand Fountain ............................................. Pag.29
Figura 4. Joseph Cornell Mapping an adventure............................. Pag.29
Figura 5. Joseph Cornell Butterfly Habitat .......................................... Pag.45
Figura 6. Joseph Cornell Homage to the Romantic Ballet............... Pag.48
Figura 7. Sophie Calle Le Rituel d’anniversaire................................. Pag.80
Figura 8. Sophie Calle Le Rituel d’anniversaire................................. Pag.84
Figura 9. Sophie Calle Le Rituel d’anniversaire................................. Pag.88
Figura 10. Sophie Calle Le Rituel d’anniversaire ................................. Pag.90
Figura 11. Sophie Calle La Visite Guidee ............................................. Pag.101
Figura 12. Sophie Calle La Visite Guidee ............................................. Pag.101
Figura 13. Sophie Calle La Visite Guidee ............................................. Pag.101
Figura 14. Elida Tessler Inda.................................................................... Pag.124
Figura 15. Elida Tessler Doador............................................................... Pag.139
Figura 16. Elida Tessler Doador...............................................................
Pag.143
10
SUMÁRIO
UM CELEBRAR DE ENCONTROS ........................................................................ 12
1. TEMPO DE BORBOLETAS................................................................................ 21
Joseph Cornell e os segredos em caixas....................................................... 22
Verdadeiros reservatórios de lembranças.................................................... 28
Encaixotando objetos – uma lembrança de infância I.............................. 35
1. A caixa, o relógio, a carta, a fotografia, o frasco: guarda.............. 39
Pandoras contemporâneas........................................................................... 44
1. Um sempre bailar................................................................................... 53
Borboletando – uma lembrança de infância II............................................ 58
2. E ESSE OUTRO MUNDO.................................................................................. 68
Sophie Calle ou a história das coisas…………………………......................... 69
É final de Verão................................................................................................ 75
1. Aniversário e o outro............................................................................. 78
2. A Sala...................................................................................................... 79
3. Os objetos, as coisas............................................................................. 82
4. O registro................................................................................................ 86
5. O livro...................................................................................................... 89
Uma casa, em especial.................................................................................. 92
De museus e de vitrines.................................................................................. 99
3. FALANDO DE AMOR, PARTILHA.................................................................... 111
Elida Tessler e os materiais da vida: coisas que lembram........................... 112
Recordo-o.......................................................................................................... 119
Objetos para lembrar......................................................................................
123
1. Calça........................................................................................................ 127
11
2. Fio de seda............................................................................................. 129
3. Meias de seda: Ida, inda, ainda. ........................................................ 133
A memória é um quarto de quatro paredes............................................... 136
Um corredor, um espaço estreito e comprido.............................................. 138
Referências......................................................................................................... 147
12
UM CELEBRAR DE ENCONTROS
13
Entrevejo com os olhos de hoje que relembrar é também rever
de outro modo uma história, e poder compreender histórias outras,
histórias de um mundo que se mesclam às minhas e pedem para serem
mostradas. Vejo que, apesar do hábito obstinado em agarrar-me aos
fatos e acontecimentos a que estou envolvida, — quiçá presa —, a
tentativa de reproduzi-los como se deram ontem, se esvai, porque tudo
agora é diferente. Muita coisa se perdeu dissipada em algum lugar no
tempo. O tempo que é algo que se tem que buscar, impossível
prescindir do tempo. Nossa consciência está continuamente passando
de um estado a outro, e isso é o tempo: uma sucessão
1
.
Os tempos se tocam, tudo vela, persiste, o que nos move na
vida, quais os nossos desejos, nossas paixões, nossos caminhos
mapeados por trilhas incertas e por vezes sombrias em busca do desejo
de um belo crepúsculo ao tardar do dia? O tempo que conhece a
resposta, continua a decorrer. É num dia como este, um pouco mais
tarde, um pouco mais cedo, que tudo recomeça, que tudo começa,
que tudo continua
2
.
E nesse continuar é que me vejo envolvida pela memória, não
se trata de uma memória qualquer, mas daquela que me leve à
introspecção, no meio do espaço circundante. Vejo-me colecionando.
Tudo me situa no mundo. Acumulo objetos diversos: fotografias, frascos
de perfumes, cartas, tecidos, recortes, imagens, palavras. Fazem parte
1
BORGES, Cinco Visões Pessoais, 2002, p. 62.
2
PEREC, 1998, p.116.
14
do acervo que me rodeia. Restauram minha lembrança e têm uma
séria relação com o corpo da vida.
Nada que recordo está na memória, mas sim, na falta de
esquecimento. Assim, a coleção, seja ela qual for, define um tempo. Tê-
la em mãos, por vezes, faria chorar, mas a beleza afetuosa ali contida
nos impede: são reservatórios de lembranças.
O mundo se apresenta de forma descontínua e fragmentária. É
fugidio e incerto. O que chamamos mundo é constituído pela memória.
O mundo não existiria sem a memória que lhe dá consistência.
Ao relacionar e envolver o outro durante todo o processo de
trabalho, não há como me fazer ausente. Escrevo através das
lembranças afetivas: desenho as palavras em histórias que se fazem a
partir dos objetos guardados em caixas, prateleiras, gavetas. Sinto que
todo o processo de inter-relação é como fazer o pão: agregar os
15
elementos — o trigo, a água, o fermento, o sal — amassar
cuidadosamente... deixar a massa descansar e crescer... após, assar...
para assim dividir, compartilhar a vida, o movimento, o segredo, o
apreço àqueles pertencentes ao nosso território.
O afeto, o sentimento, é intocável. Portanto, só pode ser
recordado e é acessível, apenas se é evocado através da memória.
À luz de Borges, Benjamin, Perec, Barthes, Blanchot, Manguel,
Baudrillard, Samuel Beckett, Paul Auster, Corzar, dentre outros autores
que se dedicaram a pensar as relações entre o tempo, a coleção, a
dileção e suas incidências sobre o trabalho da memória, trilhei um
caminho onde o ato de lembrar obedece a uma vida tecida com fios
invisíveis, formando teias que movimentam as idas e vindas. Encontros e
desencontros, alegrias e tristezas em seu eterno percurso, no qual habita
a necessidade íntima dos homens de acrescentarem ao mundo algo
que o faça avançar para uma natureza diversa daquela da criação
primeira.
Sabe-se que o lugar da memória é sempre um percurso, e nesse
percurso, o movimento se dá em lugares e tempos outros. Escolho,
então, o prazer de compartilhar. Envolvo coisas e pessoas em todo
16
processo de trabalho — a partir de minhas memóriascomo uma
forma de reinventar vidas e construir redes de solidariedade, que
através do exercício de outras formas de relacionamento, possibilitam o
estabelecer de novos modos de estar e ver o mundo.
Um trabalho que nunca se acaba, tem sido, porém, minha
experiência, como num jogo de passar anel, às vezes, incidentalmente,
o retemos por um segundo antes de transmiti-lo
3
. O trabalho como o
anel é partilhado, passado de mão em mão, retorna, é passado,
partilhado novamente e retorna. Assim uma trama se realiza dia após
dia, lançando uma luz de reconhecimento possível do ser.
Eu, condicionado pelo tempo e pelo espaço, mudo no tempo e
no espaço. Sou constantemente outro, a pessoa que vem do outro lado
da esquina, a pessoa esperando na sala ao lado, o dia depois de
amanhã, a pessoa que vai lamentar ou aprovar o que faço hoje, mas
que jamais o repetirá
4
.
3
BARTHES, Fragmentos de um discurso amoroso, 2003, XIX-XX.
4
MANGUEL, 2000, p.162-163.
17
Minha obra se faz por aproximações afetivas entre meu processo
e o de artistas que desenvolveram, em seus trabalhos, a objetualização
da memória sentimental, a partir de estratégias que valorizam mais o
processo do que a obra realizada, e em que a realidade deriva dos
estímulos da memória : Joseph Cornell, Sophie Calle e Elida Tessler .
Três encantadores do mundo
No primeiro capítulo: Tempo de borboletas, examino a produção
do artista americano, Joseph Cornell, que criou uma obra única ao
reunir objetos cotidianos, de forma fragmentada, em caixas. Parecia
ver o mundo, povoado por pequenos quebra-cabeças, como peças
de possíveis jogos.
Em cada uma delas se abrem narrativas que interligam as
imagens e os objetos por ele dispostos como em caixas de brinquedo:
um mundo, particular, encantado para se viver.
Toda sua obra tem o poder de conduzir-nos às maravilhas de uma
infância ideal — ao mundo encantado e ingênuo da criança. Segredos,
18
paixões, desejos, ilusões, afetos, aflições que se querem revelar,
compartilhar num borboletar.
Através de Habitat de Borboleta, 1940 e Homenagem para o Balé
Romântico: para o Sylphide Lucille Grahn, 1945, sou transformada
rapidamente em ser ativo, atuante entre objetos, num mundo de
segredos ativado através da imaginação, como Alice que entra nas
Maravilhas de um país através da toca do Coelho. Dentro das caixas do
artista, há o embate constante entre a fantasia e o real, conduzindo à
sutileza do eterno reviver.
No segundo capítulo: E esse outro mundo, a artista parisiense,
Sophie Calle, atua através do ritual mágico do cotidiano, organiza
narrativas que interligam as imagens, os objetos e o outro ausente,
conduzindo-nos à sensação de ver a realidade de fora.
Através dos jogos estratégicos, e a partir das histórias por ela
criadas, a artista seduz e envolve o outro, o espectador, em uma obra
cujo percurso sempre misterioso é, ao mesmo tempo, um convite ao
compartilhamento de vida/vidas, desejos, sonhos, numa sucessão de
movimentos que conduzem aos interstícios da memória. É o que se
pode notar claramente nas obras: O Ritual de Aniversário, realizada no
período entre 1980 a 1993, e A Visita Guiada, pertencente ao segundo
módulo da exposição idealizada em 1994 intitulada Ausência.
19
Em Falando de Amor, Partilha, a objetualização da memória é a
nós apresentada pela artista gaúcha, Elida Tessler, fundida ao seu
autobiográfico, através de fragmentos da vida/sua vida, conduzindo-
nos ao espaço ilimitado do todo, que é o mundo além do visto.
Transgride leis e liberta-se da orientação deste mundo. Sutilmente
a artista recolhe dele tudo que está à margem — onde não é visto—,
desorienta, indica-nos um lugar para onde converge a vida, uma vida
de solidariedade e compartilhamento total de sentidos, de lembranças.
Com-partilha que remete ao comunicar do amor, visto nas obras:
Inda, 1996, que assinala o início da Exposição intitulada Vasos
Comunicantes, e Doador, 1999, onde a ausência e a presença, assim
como o amor e o ódio coabitam no mesmo espaço.
Enfim, neste mundo em movimento, estou em constante procura
dos meus iguais, daqueles que habitam os mesmos territórios. De mãos
dadas com eles revivo minhas memórias. Em comunhão as exponho aos
outros.
Vejo que o outro é tão importante na obra desses artistas como
na minha. Ao me ver em cada um deles, a partir do sentimento
impregnado no jogo infinito das coisas, mesclei às minhas histórias as
20
suas, — uma história de lembranças encantadas, ao lado de meus
encantadores.
Foi como encadernar, ligar as folhas novamente, um ato de
amor. O livro se fez.
Mas aqui eu paro, para mencionar que, como é sabido, toda arte
é um jogo, um enigma, um eterno escorregar de um e do outro. É para
que o fazer se desenhe e todos os signos justapostos formem coisas: um
cálice, uma ampulheta, uma cadeira, uma flor ou um roseiral, um
sonho, o eterno desejo de encontro do nosso território. O território da
memória afetiva.
21
1.
TEMPO DE BORBOLETAS
22
JOSEPH CORNELL
E OS SEGREDOS EM CAIXAS
Conhecia todos os esconderijos do piso e
voltava a eles como a uma casa na qual
se tem a certeza de encontrar tudo
sempre do mesmo jeito.
Walter Benjamin
O que são quatro paredes afinal? Elas protegem a casa, a casa
protege o sonhador. O sonhador protege as imagináveis coisas boas
que podem acontecer dentro e fora dela. As coisas que nela existem
realizam os seus desejos.
Naquele cômodo da casa, em New York, o sol quase não
penetrava. Joseph Cornell cobrira a estreita janela ao lado das
prateleiras brancas com um grosso pano negro, e a escassa luz que
havia ali vinha de uma pequena fresta do tecido e uma lâmpada,
estrategicamente disposta no teto e de brilho muito fraco.
O cômodo — um estúdio — parecia pouco maior que um
compartimento de um armazém daqueles existentes em cidades do
23
24
interior, e tinha mais ou menos o mesmo formato da casa de ferragens
de meu tio: quadrado, teto baixo, com uma única e pequena janela
quase na ponta da parede lateral esquerda.
Joseph Cornell, um apanhador, guardava, classificava coisas.
Atulhou esse cômodo com uma infinidade de objetos — a composição
de uma vida inteira. Nas caixas deviam estar arquivados livros,
brinquedos, cartas, frascos, fotografias, manuscritos, objetos que
adormeciam o esquecimento.
Dentro de uma vitrine em madeira e vidro retangular, ao centro
do estúdio, sobre a mesa quadrada já gasta, objetos envoltos em peças
de seda branca, uma pintura fora da tela.
O arquivista produz arquivos, e é por isso que o arquivo não se
fecha jamais. Abre-se a partir do futuro
5
.
5
DERRIDÁ, 2001, p.88.
25
Tudo que possuía algum significado para ele estava ali,
compreendido naquele local onde a penumbra abria espaço à
fantasia silenciosa, quase imperceptível, naquele lugar onde inventara
um modo de sonhar de olhos abertos
6
, protegendo seus bens da
corrosão temporal para melhor partilhar.
Um esconderijo de criança, um universo inteiro a se escavar
naquele cômodo. Um mundo em miniatura, que continha nada mais,
nada menos, tudo que lhe era caro, um espaço para imaginação.
Suas paredes parecem proteger seu corpo, como se seu próprio
corpo fosse um mecanismo vivo feito de puro sonho.
Uma estante, densamente carregada de caixas-arquivo de
tamanhos variados, classificadas, uma a uma, à mão com letras
grandes, ocupava um lado inteiro de parede ao fundo do estúdio. Suas
prateleiras iam até o teto, e um tecido preto feito cortina à sua frente,
nada cobria ou protegia, parecia mais parte integrante daquela
grande caixa dividida em caixas. A cortina se encontrava torcida e
amontoada ao lado esquerdo da estante sustentada por um trilho em
bastão, como se aquela, sim, fosse a janela para se abrir e deixar a luz
projetar os encantos cuidadosamente guardados.
Acima de uma bancada situada exatamente ao lado da janela,
quatro prateleiras, que pareciam acolher tudo que aquele homem
6
AUSTER,1999, p. 102.
26
precisava para passar pelos dias: pequenas caixas, papéis, quadros,
bonecas e coisas, muitas coisas...
Naquele cômodo, era possível ver cores, como em contos de
fadas, perder-se nelas, fosse nos céus, numa jóia, num livro
7
, em tudo
que ali guardava, conduzindo a um movimentar intenso de histórias
possíveis, fora do mundo real visto. Pois, Cornell parecia tudo viver ali
ladeado por coisas entre quatro paredes — , conseguia se abastecer
com a eficiência de toda criança. Como o bosque de Alice, esse
mundo, não tem nome, e perambulamos por ele num estado
atordoado, com a cabeça cheia de murmúrios de aprendizado
8
.
A vida de Cornell movimentava-se naquele lugar por ele criado,
era como a vida que Crusoé teria vivido: um náufrago no coração da
cidade
9
. Pois aparentava não haver, nesse lugar, coisa alguma que
não desejasse, um santuário onde o que não era, um dia viria a ser a
sua memória.
7
BENJAMIN, 2000, p.101.
8
MANGUEL, 2000, p.25.
9
AUSTER, 1999, p.104.
27
Era um santuário, pouco maior do que um corpo, em louvor de
tudo o que existe além do corpo: a representação do mundo interior de
um homem, em seus mínimos detalhes. S. conseguiu literalmente cercar-
se com as coisas que estavam dentro dele mesmo
10
.
10
AUSTER, 1999, p.102.
28
VERDADEIROS RESERVATÓRIOS DE LEMBRANÇAS
As coisas que não nos levam a nada têm grande importância.
Manoel de Barros
Em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, filme de Jean-Pierre
Jeunet, a jovem Amélie encontra a pequena caixa de metal retangular
cheia de objetos infantis, abrigada numa abertura escondida pelo
rodapé do banheiro do apartamento em que vive em Paris.
Um prenúncio de uma afeição brotou em seu jovem peito, ao
abrir a caixa de metal e encontrar o pequeno tesouro de uma criança
que lá vivera antes dela, até mesmo, ter nascido.
Que histórias carregam esse pequeno objeto que abriga outros
tantos? Onde estava seu dono? Que homem se tornara? Quais seriam
seus segredos, suas verdades? O que significaram para ele os objetos
de sua infância... — carrinhos, bolas de gude, fotos?
A sua vida, por um segundo, se encontra com a vida daquele
desconhecido e a impulsiona a encontrá-lo, e, nessa jornada é guiada
até um mundo totalmente novo, excitante, cheio de aventuras e
esperanças. Uma história com algo mais...
29
30
Que segredos guardam uma caixa?
É assim que adentro o universo particular de Joseph Cornell, um
universo repleto de esperança, de inocência, uma história com algo
mais... secretamente mas visivelmente, ao abrigo de um segredo que
quer ser manifesto, de um segredo que quer se tornar público
11
.
Um segredo no qual a trama de afetos que se inventa é mais
importante que a verdade, verdade pautada em digressões que o
desviam do lugar diverso em que o esperam, o lugar do real.
Cornell guardava coisas em caixas e parecia guardar o tempo.
Fazia caixas, porque o seu trabalho assinalava um lugar para onde
converge um tempo de infância. Não a dele, a minha, a sua, mas
aquela que habita o coração dos homens.
Caixas de solidariedade total, não só de cada ser, um com o
outro, como também solidariedade para com as coisas e, mais
geralmente, para com a ordem secreta das coisas no universo. Ele
acomodou segredos dentro desses cofres minúsculos, deixando seus
passos ali registrados.
Há pessoas e coisas nos espaços das caixas, e somente uma
criança é capaz de compartilhar um saber absoluto de fantasias que,
depois, a vida adulta vai se encarregando de apagar, como o mar age
sobre as marcas na areia.
As caixas de Cornell, verdadeiros reservatórios de lembranças,
pequenas caixas-museus, pequenos relicários, contêm cenas que
11
DERRIDÁ, 2001, p. 60.
31
vivenciou ou não, mas que por algum motivo merecem ser lembrada.
Nelas podia acolher o quarto dos pais ou dos irmãos, a sala de jantar, o
café, o banco da escola, o sótão, a biblioteca, os antiquários, os filmes,
as óperas, a dança, a bailarina, numa escala que só criança projeta,
do tamanho de seu alcance, o que lhe cabe às mãos, um centro a se
movimentar sempre em busca da inocência por meio da inocência:
Dir-se-ia naquele doce instante
Brincavam duas cândidas
crianças...
12
Cornell, poeta da vida cotidiana, apanhador de objetos
impregnados de saudade, de lugares e dias distantes, nos deixou uma
obra única, ao reunir de forma fragmentada objetos cotidianos em
caixas. Era assim que parecia ver o mundo, como fragmentos
identificáveis cuja autonomia era capaz de reconhecer sem utilizar uma
Gestalt abrangente
13
.
O artista formava assim intrigantes partes de jogos de quebra-
cabeças. Uma caixa inteira é um brinquedo, uma janela para a vida no
qual podia-se embevecer livremente de suas fantasias, seus desejos,
segundo sua verdade, diante deste mundo incapaz de admitir que há
vários desejos circunscritos e até mesmo sufocados em cada ser.
A memória afetiva impregnada em seus objetos, não está antes
nem depois, encontra-se no “entre”, assim, busca fazer pontes que
ligam caminhos diversos. Como um rio, cujas águas sempre encontram
12
CASTRO ALVES, 1997, p. 62.
13
MANGUEL, 2005, p. 21.
32
caminhos de saída — às vezes de encontro ao mar —, mas sempre
procura um espaço para continuar, segue por caminhos que se
subdividem criando um extenso labirinto.
Labirinto formado por pequenos movimentos que atingem o todo,
e neste todo, é que está o que de mais preciso temos, tão precioso que
foi guardado, inscreveu-se. Logo, significa. Por isso nunca deve virar-se,
não tão bruscamente pelo menos, senão tudo rompe, em completa
desordem[....]
14
.
Desempacotar a arte de Cornell é descobrir que as coisas não
estão ali dispostas gratuitamente, exigem um olhar, sensível, que conduz
à compreensão do segredo, do afeto, da necessidade do outro.
Habilidades que nos passam despercebidas por muitos anos da vida,
sem nos darmos conta de que as possuímos, até que alguém chame
atenção para elas.
Homem-filho-criança-artísta-visionário, Cornell parece ter
possuído aquilo que quis possuir, e organizou em torno de si uma síntese
do universo em que acreditava, — tudo em caixas cujos segredos
jamais saberíamos. Segredos que sobreviveram às águas do Lete.
Mas quem era esse homem que, ao partir, virou pó. E é pó agora
dentro de uma caixa?
Uma eterna criança...
Agora em uma só caixa... todas.
14
PEREC, 1998, p. 28.
33
Todas com seus desejos, segredos, ilusões, fantasias, histórias
encantadas, contos de fadas, danças, filmes, ópera, teatro de revista,
ballet, bailarina, astronomia, carrinhos, bola amarela, animais:
papagaio, periquito, artigos, aspirais, frases, jornais, cavaleiros, números,
amarelo, azul, coliseus, anúncios, frascos, borboletas, correntes, cavalos,
crianças, moedas, corações, sêlos, fotos, ninho, céu, cosmos, caixinhas,
estrelas, anjo em mármore, flor, matemática, taças, gavetas, livros,
engrenagens, coruja, desenhos, colares, tule, cristais, purpurina, gotas,
ópera, boneca, mapas... em suas caixas encantadas, seu pequeno
tesouro, seu mundo desejado, colecionado, sua esperança em
aconchego.
A esperança estava, antes de tudo, na Caixa de Pandora e foi o
que restou nela. Só a esperança entravava nas Caixas de Cornell, não
preexistia ali nenhum vestígio de mal. Nas caixas do artista, podem-se
imaginar pequenas histórias, elaborar narrativas que interligam as
imagens aos objetos e a busca daquilo que queremos, um território em
que nos reconhecemos, lugar dos nossos afins, afetos.
34
Seus objetos de predileção são os textos do Imaginário: as
narrativas, as imagens, os retratos, as expressões, os idioletos, as paixões,
as estruturas que jogam ao mesmo tempo com uma aparência de
verossimilhança e com uma incerteza de verdade
15
.
15
BARTHES, 1978, p.40.
35
ENCAIXOTANDO OBJETOS – UMA LEMBRANÇA DE INFÂNCIA I
Gostávamos da casa porque, além de
espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas
sucumbem à mais vantajosa liquidação de
seus materiais), guardava as recordações de
nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e
toda a infância.
Júlio Cortázar
No quarto de dormir da minha tia paterna, havia um móvel, com
gavetas que ficavam protegidas por duas portas. Acima dele, na
parede um espelho retangular com moldura em madeira. A esse móvel
chamávamos de cômoda. Ela era usada para pôr roupas de cama:
viróis, fronhas alvas, lençóis de puro algodão, que exalavam naftalina.
No canto da primeira gaveta três missais e uma caixa vermelha cheia
de guardados pessoais.
Sobre a cômoda, que mais parecia uma “penteadeira”, ela
colocava pequenos castiçais de louça branca com detalhes em azul e
dourado — hoje em casa de meus pais, sobre a estante de livros. O
36
eterno frasco de lavanda, um porta-jóias, um pequeno jarro com
sempre-vivas, o rádio e o despertador.
Na sala de visitas, havia mesa e cadeiras com encostos verticais e
capas brancas de puro linho. No canto perto da janela ficava a
cristaleira de linhas retas, e no seu fundo, um espelho que refletia, não
só os objetos, mas todo o movimento ali feito, com a ajuda da fresta de
sol que a invadia todas as manhãs. No seu interior, as prateleiras de
vidro abrigavam poucos cristais, louças de uso diário, compoteiras
verdes, azuis e brancas, porcelanas, uma galinha de vidro laranja,
talheres de prata e alguns bibelôs. Parecia um relicário, que eu podia
tocar uma vez ao mês, para remover o pó, e conservar sua madeira
com óleo de peroba.
Aquele era um momento impar: brincava de recolocar os objetos
em outras posições, e em meio à fragilidade incidente, tentava recriar
um outro cenário encantado para enfeitar ainda mais o amor que ela
nutria por aquelas coisas, então suas, e que tinham sido de seus pais,
tios, ex-marido, amigos e irmãos.
Aqueles objetos, guardados seus, revelavam a ternura daquela
mulher, generosa mãe, sem ter gerado. Hoje consigo entender os restos
de memória ali impregnada.
A sua caixa era de cristal, bela e frágil, e suas lembranças ali
guardadas, cuidadosamente, reverberam o seu olhar, fazem-me
deparar não somente com a visão do outro, mas com um pouco de
mim mesma, ali espelhada.
37
Conservo ainda as duas imagens da casa da tia-paterna: a que
havia previsto: uma casa de bonecas, e a que meus olhos por fim viram;
uma caixa de cristal.
Quem nunca guardou um papel de bala, uma flor seca, uma
caixa de fósforos, bilhetes, anel de bala, corrente de ouro com
amuletos, peças de jogos, pedrinhas três-marias, boneca de pano, bola
de gude, santinhos de devoção, régua em madeira toda desenhada,
caderneta escolar, tocos de lápis de cor, primeiro baton, guardanapos
de bailes, conchas de mar, sabonetes em forma de flor, estrelas e, até
mesmo, um retrós de linha, vazio, da mãe que costurava?
Quem nunca pegou uma foto guardada e se recordou de
passagens de momentos felizes, ou tristes, de sua vida? Quem nunca
releu suas cartas de amor? Quem no seu quarto não possuía um
esconderijo secreto, em uma caixa de sapatos ou de brinquedos,
guardada cuidadosamente em uma das gavetas de sua cômoda?
Uma tarde, eu me lembro... comecei — por volta dos meus nove
anos — a guardar coisas, objetos, que adquiria, ou às vezes ganhava,
38
numa caixa de sapatos, branca por fora e parda por dentro. Não eram
quaisquer objetos, nem tampouco seriados, eram de origens, momentos
diversos, coisas de apreço, que acabaram de uma forma ou de outra,
incorporados à minha vida, e que exerciam (exercem) sobre mim, um
apelo afetivo através dos dias.
Fazia meus próprios caderninhos com colagens, dizeres,
desenhos, nomes de amigos e cartões postais, palavras soltas, cartas
que jamais foram enviadas; dados, dedais, resto de lã e linhas de
bordar, uma pequena ampulheta de jogos de adivinhar . Meu mundo
desejado ia surgindo de modos esparsos, na escala de meu amor,
possíveis páginas de um livro.
Cada objeto tomava forma e vida através das percepções, dos
sentimentos, dos pensamentos gerados por movimentos internos, formas
que se esboçam, se esquivam, voltam, desaparecem, se aproximam, se
apagam, chamas ou damas que dançam, jogos de sombras
16
.
Movimentos que são capazes de desencadear uma recordação, que
geram nostalgia e provocam sentimentos contraditórios.
16
PEREC, 1998, p. 25.
39
1. A Caixa, o relógio, a carta, a fotografia, o frasco: guarda.
Desde tenra idade, vasculhava as gavetas do quarda-roupas, dos
armários e das cômodas de minha casa. A caixa de madeira de
sabonete Phebo exalava cheiro suave, apesar de conter algumas
moedas de réis, alfinetes de fralda, retratos 3 x 4 de todos os filhos e
alguns pedaços de papéis escritos, parecendo lembretes, além de uma
carta de amor já amarelada pelo tempo.
A caixa de lenços finos de formato retangular, abrigava um
pequeno tesouro aos meus olhos, poucas jóias de família, anéis,
correntinhas, brincos, pulseirinhas, relógios, medalhão do Sagrado
Coração de Jesus, camafeu da minha avó materna, uma pedra de
cristal de uns 4 x 2 cm e nela encaixada um filete de esmeralda, e o
anel de colação de grau de Contabilista do meu pai.
A caixa verde de metal com lápis coloridos envoltos em papel de
seda. As agulhas de tricô e os frascos de perfume vazios em forma de
flor, coração e dorso de mulher, os broches de flor em tecido rosa,
vermelho, preto, que por vezes era usado para enfeitar o cabelo, tudo
de minha mãe. Tudo na terceira gaveta do guarda- roupas de meus
pais.
A caixa de costura de minha mãe, era a única que ficava ao
alcance das minhas mãos, ali sob sua máquina de costurar. Em
40
madeira medindo (30 x 20 x 14cm), tinha sua tampa em desenho floral,
suas paredes internas forradas por um fino veludo preto. Abrigava
carretéis um ao lado do outro, as cartelas vermelhas e laranjas das
agulhas, as tesouras em suas capas de plástico e os dedais; embaixo no
fundo falso, ficavam meio em desordem as sianinhas, passa-fitas, botões
em cartelas, e soltos, alfinetes, retalhos de tecidos, restos de linhas
enroladas em papel de pão, elásticos, fitas em organza, ganchos,
colchetes, linhas de bordados em tranças, tiras bordadas, lastex, rendas,
muitas coisas que nunca mais vi em peça ou roupa alguma. Hoje, a
caixa de costura ainda resiste ao tempo e está lá no mesmo lugar de
antes. Penso que, talvez, fora destinada a revelar possíveis páginas de
uma história de mãe, cosida dia-a-dia. A sua caixa encantada.
Quantas coisas não retornam à memória uma vez nos tenhamos
aproximado das montanhas de caixas para delas extrair os livros para a
luz do dia, ou melhor, da noite
17
.
17
BENJAMIN, 2000, p.234.
41
Um mundo a se escavar, diverso daquele que me era
comumente apresentado, disponível a todas as crianças. Avessa ao
óbvio, o guardado acionava minha curiosidade e fascínio infantil. Todos
aqueles objetos dos meus pais, que ficavam ali aparentemente para
nada oferecer, conduziam-me a espaços e histórias outras, a um
silêncio barullhento que povoava meu imaginário.
Passava horas do meu dia a mexer, remexer nas caixas, muitas
vezes aproveitando a ausência de minha mãe, para mais sossegada
brincar. Todas as vezes, espalhava sobre a cama de casal os objetos
das caixas, e uma colcha de retalhos em imagens ia sendo construída
peça por peça.
Sentada ao chão, com o queixo apoiado numa das laterais da
cama, construía caminhos através de cada componente ali disposto,
individualmente harmonizava-o aos demais.
Parte por parte surgiam novos caminhos, confluências, outros
becos, outras esquinas, outras cidades. As cores das coisas iam se
diluindo... sem saber explicar, aquele mundo montado me acalmava. E
acabava por me deitar no chão frio do quarto, fitar o olho no telhado e
dormir.
E, de repente, me vem à lembrança que num desses dias
encantados, peguei o relógio de pulso da minha mãe que estava na
caixa de lenços finos e secretamente o desmontei, para fazê-lo tornar a
42
funcionar, pois há muito estava parado. Ele era daqueles relógios de
pulso, bem feminino, de corda, com o mostrador pequeno com
números ordinais, e pulseira elástica, de ouro. Intrigava-me o tempo
parado em meio a ponteiros radiantes. Nem tinha a dimensão de
tempo, o tempo para mim era marcado pelo dia do meu aniversário e
o Natal.
Infelizmente não consegui juntar novamente as engrenagens.
Com oito anos, eu sabia que os objetos são interessantes e que a gente
os conhece, não de longe, porém de perto, e que inconscientemente
eu tentava perpassar minhas fantasias naqueles objetos que passaram
a ser também um pouco meus.
Os olhos das crianças têm sede de coisas que estão perto. As
crianças querem pegar aquilo que vêem. Talvez o verdadeiro
colecionador possua alma de criança, a necessidade de ver com o
tato, para que o corpo escute a fala silenciosa dos objetos.
43
Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente,
precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem
os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que
realmente acontece, acontece em mim...
18
.
18
BORGES, Ficções, 2001, p.102.
44
PANDORAS CONTEMPORÂNEAS
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Castro Alves
Caixa: qualquer receptáculo, de madeira, papelão, metal etc.,
destinado a guardar ou transportar objetos
19
. É também uma daquelas
partes originais que se traz para se conservar um encanto do mundo.
Em um modo é a vigia de nossos sonhos, apegos, desejos. Um lugar
estimado com o brilho morno de nossas memórias.
O silêncio! Era um silêncio natural, e apenas se ouvia ao longe o
ruído que vinha da caixa em madeira com vidro (30,5 x 23,5 x 8,3cm),
em tom preto e detalhes em branco. Tinha em seu interior, copo, papel,
insetos, fio, cavacos de madeira e fatia de gesso, intitulada Habitat de
Borboleta, 1940, de Joseph Cornell.
19
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.(verbete:caixa).
45
46
A caixa, agora, janela se formara, constituída de seis vitrais
brancos, que abrigavam, cada um, uma borboleta colorida que
passeara pela floresta, como que à procura do frescor que o dia lhe
proporcionava. Agora dentro da caixa de madeira, buscam o frescor
da noite.
O todo sugerido combinava para formar desenhos, através de
fragmentos visíveis de partes de cada pequeno inseto, sob uma cortina
(nuvem) de pó branco com aberturas circulares, feito sinais de saída no
vitral.
Penso que, se eu esperar algum tempo, posso ver tudo. A poeira
através da fresta de luz. A caixa espaçosa na parede de meu quarto
com retratos de minha família. Até mesmo o alçar vôo delas (as
borboletas) por causa da abertura no vidro, abertura que é o mundo. O
mundo de cores cativado pelo artista.
que é chamado mundo: [...] uma floresta de símbolo e quem
descreveu perfume[s] tão "macio quanto oboés, verde como prados
20
".
20
BAUDELAIRE, Apud SHAFFNER, 2003, p.73.
47
Curiosa, vi o homem retirar uma caixa de madeira, e de dentro
dela recolher três moedas de ouro, uma tesourinha, um canivete e um
pente de bolso, colocando-os sobre a mesa de centro. Desta eu só
entendi o significado, anos depois, enquanto lia seus escritos. Vi que a
caixa cria sonhos, é lugar seguro para todas as coisas pequenas, um
espaço onde se guardam aqueles tesouros adquiridos com o tempo, a
memória de nossos pais, de nossos mundos perdidos, da emoção que
nos contém e revela-se num gesto qualquer.
Caixa em madeira (11,4 x 11,8 x 3,5cm), com estilhaços de copo
de vidro, cria sonhos, está revestida de muitos significados, dentre eles
do ser vivo, pois foi parte de uma árvore, contém, em seu interior azul-
prússia, asas de borboleta, contas de fantasia, tule, corrente, pó de
glitter para estrela do balé; na parte interna da tampa emoldurada em
veludo azul a gravura de uma bailarinha com asas, intitulada:
Homenagem para o Balé Romântico: para o Sylphide Lucille
Grahn,1945, de Joseph Cornell.
Nesta pequena caixa talvez esteja, embutida, não só sua paixão
pelo evento, como talvez a busca do lugar tão perto quanto possível
das fontes puras das aventuras do amor, que, como em contos de
fadas, transita a estrela de seus sonhos, a dançar, a bailar ao seu
48
49
encontro, no mundo muito longe, encantado, onde é possível reviver a
época da inocência.
Reduz então seu desejo de amor ao possível encontro impossível,
que, é zelado no casulo, para um novo ressurgir... Na caixa de jóia
preciosa, a música e a dança que só ele há de sentir.
É sabido, que as descobertas, ou imaginações da criança
desarticulam o mundo instituído, e, com outras significações, são
conduzidas a um novo lugar. Lugar onde encontra o maravilhamento
do olhar primeiro, que se permite fantasiar, sonhar. Para tanto, apenas,
e tão somente, um mundo de ilusões para construir/desconstruir, de
forma poética e sutil as histórias almejadas.
Um mundo outro, onde o mágico prevalece sobre o mundo
concreto, real. Neste sentido, recordo-me de Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carroll, história em que o escritor inglês tomou
como fonte de inspiração para seu mais famoso romance, publicado
em 1865, a criança Alice, filha de seu amigo Henry Lidell.
O texto de Lewis Carroll transita pelo universo fantástico de
criança, que, com certeza, movia o pensamento do homem que era
(que somos). Tornou-se, então, universal e atemporal.
50
Com os seus jogos de palavras, o escritor dava lugar a uma lógica
às avessas, das coisas e das situações diárias. Construiu uma narrativa
cheia de humor, com críticas sutis à sociedade da época e de algumas
de suas instituições.
Carroll, assim como Cornell, abre portas, janelas, caminhos às
maravilhas do mundo, apontando para o estranhamento, não para seu
reconhecimento. As questões mais profundas são propostas no diálogo
ingênuo da fantasia da criança com as coisas do mundo: Lembro-me,
então, da passagem da lagarta que dirige à Alice uma simples
pergunta: “quem é você?” Até então, antes da queda na toca do
coelho, a menina se definiria com facilidade, considerando a família de
origem, o laço de fita no cabelo, os vizinhos da casa em que morava.
Mas, agora, naquele mundo imaginário, qualquer tentativa de definir
uma identidade se tornara falaz.
Então quem somos? Somos o que, “a imaginação nos permite”,
somos Alices.
Nas caixas de Cornell, ou nas páginas do livro das maravilhas do
pais de Alice, de Carroll, abre-se a esperança do viver as aventuras mil,
num espaço reservado para os sonhos, espaço de encantamento,
onde se depara com um universo imaginário, desejado, em meio a
coisas, a animais que são personificados, objetos que tomam forma
humana e seres fantásticos, com uma história nova sempre a se tecer.
51
Com o artista e o escritor, passeio pelo reino da fantasia onde
tudo pode acontecer — aventurar, sonhar, chorar, querer, gritar, sorrir,
negar, pular, amar, viver na ficção de Alice.
Não há dúvida, a terra nonsense está no País das Maravilhas de
Carroll e nas caixas de Cornell. Neste lugar privilegiado, por eles
instituídos, manifestam o tédio para com o mundo que os rodeia e vão
atrás de outro, em busca de um lugar mágico. Encontram, mas mesmo
assim, esse lugar não traduz a perfeição de um conto de fadas, pois
nele há regras próprias, destituídas de sentido no mundo real.
Para viver nesse espaço repleto de pessoas, coisas e situações
nonsense, tanto Carroll como Cornell, reformulam incessantemente
conceitos e comportamentos, e nesse movimento, conduzem o
homem a um confronto consigo mesmo e com o desejo de um mundo
paralelo, uma divisão alternativa da existência, que possa abrigá-lo em
um subterrâneo — lugar privilegiado onde se é capaz de reconhecer-
se.
Não é que eu pensasse que um lugar como o País das Maravilhas,
realmente existisse, mas sabia que era feito da mesma matéria de
52
minha casa e de minha rua, e dos tijolos vermelhos que eram minha
escola
21
.
Carroll/Alice, Cornell/Alice, Alice/Alices, todos os sonhadores são
seus hóspedes temporários, viajando na trilha de suas verdades, desejos,
aflições — esperançados de uma passagem da realidade, que se altera
quando, como Alice, penetramos na toca do coelho, rumo à fantasia,
onde as coisas acontecem sob outra lógica, com uma voz silenciosa
cheia de signos, e significados.
Ah, eu tive um sonho tão esquisito! Disse Alice. E pôs-se a contar
à irmã, até quanto podia se lembrar, todas essas estranhas aventuras
que vocês acabaram de ler
22
”.
21
MANGUEL, 2000, p.20.
22
CARROLL, 2002.
53
1. Um sempre bailar
Tudo está quieto nesse dia, um dia de primavera, onde quase se
ouvia o bater de suas asas, em meio à brisa do dia ensolarado. Sobre
sua cabeça, o imenso céu azul.
Abria seu caminho entre as árvores, folhagens, desviava-se de
seus obstáculos, deslizando no ar num vôo tranqüilo com destino a mais
próxima flor.
Os desenhos coloridos traçados em suas asas, como com um
lápis aquarelado, fundiam com as cores presentes na natureza que a
abraçava. Incansavelmente, com sua leveza, colhia o pólen das flores,
e prosseguia a sua missão de germinar as espécies. Num voar suave,
seguia planando pelo ar, pelos campos, altos montes, e até muros da
cidade, só para, novamente, numa flor pousar e nesse pouso, uma
pausa... e um pousar o olhar no belo, no breve.
Voa, voa... até que seu ciclo se complete, acasale, e sua vida de
borboleta finde... sempre querendo deixar sua larva, que em casulo se
transformará, para um novo ressurgir... Então, se refazer numa nova
borboleta, nessa eterna história de larvas e borboletas, que lembra o
amor.
O amor, como a borboleta, é um pedaço de um ser solto pelos
quatro cantos da terra que anima o olhar, o coração. Por ele esquece-
se do necessário, apaga-se o primordial, afogam-se as leis, enterram-se
54
as doutrinas, rompem-se às regras... Pausa. Pára-se tudo, qualquer coisa.
O amor está passando num vôo a borboletar. O amor ingênuo,
imaginário, encantado pelas meninas-princesas presas nas torres, em
seus castelos.
O que é belo é breve, um rastro silencioso de dança, música,
harmonia e esperança resistem no ar.
O seu coração é como uma flor que brota a cada manhã, para
dela ter a gratidão do pousar num novo dia. E nesse sempre novo voar
pousar, há quem diga que a borboleta não tem destino certo. Será que
existe destino certo? Ou melhor, é deixar-se guiar pelo aroma e beleza
de flores, seguir os raios do sol, e desse vôo ser lembrada?
Lembrança da beleza efêmera, como a vida, que fica gravada
na sensibilidade daqueles que, no brilhar de um dia, param por um
segundo e voltam seus olhares para suas asas delicadas, menores que a
mão de uma criança, desenhando bolas de sabão, flores, ventos,
papagaios, em meio a um azul estrelado.
Vida bela, vida breve.
Agora não voa mais, está abrigada em uma caixa, em meio às
folhas, contas, tule, gliter e flores secas. Seu pequeno dorso já não existe
mais, nem mesmo a conjuração do vento e dos perfumes, das
folhagens e do sol que comandavam
23
seu vôo em direção a uma flor,
obriga a vida a continuar. O silêncio a transfigurou. No entanto, o ar no
qual se movimentara, então, aquela borboleta, está agora
23
BENJAMIN, 2000, p.81.
55
compreendido, entre os quatro lados da delicada caixa, que dela faz
lembrar o segredo.
Frágeis vestígios foram parte de uma linda borboleta, a estrela de
um balé, cujas asas brancas atravessadas de marron, preto, cinza e
azul, ligadas agora pelos elos de uma corrente prata, não sobrevive
mais. É pouco mais que um fantasma, uma lembrança de um pequeno
ser que viveu seu ciclo e caiu como uma folha outonal, viveu... restam
agora meras nuances espalhadas na superfície da caixa de madeira,
na qual sobressai, ao fundo azul-prússia , como jóia de família.
Preciosa borboleta, num repouso terno, seus indícios estão neste
instante sob a vigilância atenta e serena da jovem bailarina que silencia
seu vôo.
A jovem bailarina com asas de borboleta parece velar o sono de
seu amor. Como sentinela, guarda e pousa o olhar nos movimentos
que não cessam... um movimento de amor desejado, realizado,
frustrado, ou simplesmente imaginado, guardado... ou quem sabe um
seguir, um sempre seguir buscando os desejos secretos não realizados.
Diz a mitologia que a borboleta, metáfora da alma, significa
Psique, jovem com asas de borboleta, cuja história notável da busca do
amor de Eros nos leva à bela alegoria da imortalidade. Como a
borboleta, que após estender as asas do casulo em que se achava,
depois de uma vida como lagarta, flutua na brisa do dia como um dos
mais belos e deslumbrantes aspectos da natureza, a alma traduz a
essência da vida no seu eterno desenrolar.
56
Não há alegoria mais memorável da imortalidade da alma como
a da borboleta. É uma poética fábula de vida do amor que nasce,
sofre, aprimora, perpetua, morre... A borboleta é, portanto, a alma
humana, purificada pelo rastejar como o da lagarta em meio a
sofrimentos, amores, desamores, infortúnios —, que se prepara, assim,
para gozar a pura e verdadeira felicidade, o mundo do amor.
Quão suave. Quão bom é o retorno. Nada se precisa fazer, falar...
Nada. Ele voltou, o amor sempre voltará com novos tons e sob nova
aparência. Ele venceu a dor. A dor de morrer. A perda. A queda.
Apenas o amor tem o seu caminho, e atravessa o arco-íris. Como a
borboleta, a alma humana.
A borboleta, a bailarina, Psique voa, baila, plana em terras
próximas, distantes, noite e dia à procura do amor da flor, do homem,
de Eros, talvez com o fim de gozar a esperança de felicidade, para
depois pousar numa caixa, não numa caixa qualquer, mas naquela de
nossos afetos, de nossas recordações.
57
A bailarina e a borboleta parecem inertes, mas a inércia não
cabe neste lugar, pois nada parece capaz de detê-las.
O olhar como de uma criança, continua a procurar a beleza do
vôo da borboleta a movimentar, e a dança da bailarina que não cessa
em sonhar.
58
BORBOLETANDO – UMA LEMBRANÇA DE INFÂNCIA II
(...) mas tudo aconteceria diante
dos nossos olhos, tudo nos
aconteceria. Isto é exatamente o
que acontece ao grande
colecionador com os objetos: eles
se revelam para ele.
Bergson
Entre as imagens de coleções com que tive contato na infância,
há uma que se fixou mais nitidamente à minha memória. Foi a primeira
coleção de verdade que vi — a coleção de borboletas da D. Isabel
Dupim, a vizinha de esquina que lidava muito bem com todas as
crianças do bairro. Professora de Catecismo, sabia acolher com amor.
O portão de ferro verde de sua casa, nunca estava trancado,
nada fechava, e dia e noite convidava a entrar e se encantar com a
cerca viva formada por buganvílias amarelas, violetas e vermelhas que
dividia seu lote do do vizinho.
Jovem senhora, mãe de três filhos, altura média, cabelos pretos
escorridos, pele jambo, unhas sempre vermelhas, olhos atentos, voz
firme. Se bem me recordo, era agradavelmente serena, de tal modo
que eu nunca podia dizer, com certeza, quando estava irritada. Tinha
59
sua coleção como um pequeno tesouro que revelava aos poucos,
detalhe por detalhe, nunca na sua inteireza.
Uma coleção cheia de leveza, louvor e lirismo que enchia meus
olhos, pois era de borboletas de várias espécies e cores, capturadas
pelos quatro cantos do bairro em que residíamos.
Época de inocência, anos 70, o bairro Tibira não era todo
povoado. Em frente a minha casa havia um curral com vacas e
bezerros do Seu Zeca, um senhor de postura esguia com seu cajado na
mão, de saúde frágil: era asmático. Lembro que andava com seu
pequeno rebanho pela rua do beco onde morava e onde ainda está a
casa de meus pais, um pouco maior que a daqueles tempos.
Propositalmente, o senhor, como rastros de pão de Joãozinho e
Maria, deixava suas bombinhas de asma vazias de capas azul-celeste
pelo chão, sabedor de que eu as cataria e compartilharia com outras
crianças para assim brincar, transformando-as em belos jarros de flores.
60
Vivia, em meio à natureza, chão de cascalho, gramados, campos
de várzea, grotas, jardins, pequenas matas com muitas flores e grandes
lotes com árvores frutíferas — um habitat propício para passarinhos,
maritacas, micos, vaga-lumes, borboletas. Era fácil o contanto com elas.
As borboletas, eram facilmente capturadas ali mesmo, onde
esvoaçavam em direção às flores, pousando sobre uma delas.
Atraída pela paixão de D. Isabel pelas borboletas, comecei a
colaborar com seu pequeno tesouro, sem saber que existiam aurora,
vanessa, esfinge
24
. As espécies não existiam para mim. Minha ação se
resumia no simples ato de colaborar e, ingenuamente, apanhar a
borboleta como quem colhe uma flor para presentear a um ser querido.
Sem saber, penetrava, então, o espírito daquele belo ser
condenado à morte. Ele, trêmulo, contudo cheio de graciosidade, já
impossibilitado de alçar vôo, estava agora preso entre os dedos
indicador e polegar da pequena mão de criança... ato que tornava
possível encher o coração e os olhos com o arco-íris que ia se
formando. Uma chave para apreensão do mundo e das coisas ia
abrindo outros caminhos a se compartilhar, uma maneira de me
comunicar com o outro, através de imagens e, pelo que se sabe ouvir
nelas, o caminho do retorno, procurando recuperar o ato da presença,
24
Tipos de borboletas
61
o verdadeiro lugar onde se reúne numa unidade indivisa aquilo que “é”:
esta folha de hera quebrada, esta pedra nua, num passo perdido na
noite
25
.
Mesmo quando criança, diz ele que só se comunicava com o pai
por intermédio das coisas do armazém
26
.
Para a criança que eu era, aquela coleção de borboletas
aproximava-me da delicadeza daquela senhora. Ela era cheia de vida,
uma perpetuação de um belo momento fugaz que me reduzia, por
vezes, ao silêncio indagativo. Por que tão bela se tão frágil? Será que o
Deus Criador não podia lhe poupar a morte tão breve e o tempo lhe ser
mais amigo? Às minhas indagações, a Professora de catecismo
respondia: cada lagarta tem seu tempo de casulo e seu tempo de
borboleta. Não há como forçar e nem como acelerar os tempos, sem o
risco de perdemos o vôo da borboleta!
25
BLANCHOT, 2001, p.75.
26
SHEAR, Alex. Apud, BLOM, 2003, p.199.
62
Então pensei, não inteiramente convencida, que guardá-la era
uma forma de eternizar a beleza do tempo de uma vida. Esse tempo,
que sentimos estar por ele deslizando, pois não há um só momento em
que possamos dizer ao tempo: “Pára! És tão belo!...” como queria
Goethe. O presente não se detém
27
.
Assim continuava a acompanhar cuidadosamente cada
borboleta, em seu pouso nas flores. Não havia necessidade de ir longe,
colhia-as ali mesmo, no pequeno jardim de minha casa em que havia
um lindo arbusto de Camará de folhas expostas e pequenos buquês de
florzinhas rosa e brancas, ali residia meu pequeno mundo a se
colecionar.
Colocava-as numa caixa de papelão branca e, ainda vivas,
levava-as para D. Isabel, sem a consciência de que me tornava a cada
dia uma colecionadora, ao doar as borboletas para aquela senhora.
Ficou então em minha vida aquilo que de outra forma, estaria
irremediavelmente perdido.
27
BORGES, 2002,p.68.
63
Pode-se ser um colecionador sem de fato colecionar ou acumular
seja o que for, mas em vez disso, desfazer-se de coisas
28
.
Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E
talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado será tão
destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de
compreender nossa saudade
29
.
Cuidadosamente, D. Isabel, acondicionava as borboletas em
grandes vidros, álbuns de fotografias, caixas de camisas, formando uma
palheta natural de infinitas cores.
28
BLOM, 2003, p.219.
29
BENJAMIN,2000, p.104.
64
Em meio a livros e outros objetos pessoais, lá estavam suas
coleções de borboletas, nas prateleiras da estante da sala de estar.
Como numa grande vitrine a compartilhar não o todo óbvio, mas cada
detalhe individual.
As borboletas colocadas em álbuns, uma ao lado da outra,
dispostas como retratos 3 x 4, contavam histórias... O violeta, cor do
amor, o azul, cor do céu, o amarelo, cor do sol, do ouro, o vermelho, cor
da vida, todas as cores se faziam uma só. O amor ali impregnado
impunha àqueles álbuns, — mais de quinze, que hoje não devem existir
mais, pois assim a natureza o quis, se tornaram pó, pó de uma
lembrança de dias felizes, um efeito de álbum de família, algo mais
profundo, mais inspirador, afastado do mundo das generalidades,
registrado na memória, como sempre um novo dia a se começar.
A inquietude de criança era acalmada naquelas épocas pela voz
de D. Izabel que soava suavemente: “estou precisando de belas
borboletas para minha coleção”.
Eu então podia colecionar. Hoje posso perceber que nas
borboletas que doei, estava impregnado o meu olhar, minha paixão
pelo conservar, acolher, compartilhar vida... agora entrevejo “tanta
65
coisa ligada a objetos e sua história, tantos sentimentos, esperanças e
ilusões que precisamos preservar para nos preservarmos”
30
, como um
livro a se fazer em nossas vidas de forma multifacetada, uma maneira
rica e mais ambígua de auxiliar a memória afetiva.
E me vem a imagem da última vez que entreguei uma borboleta
ao primoroso par de mãos da senhora , e escrevo:
ODE Borboleta
Voa, voa...
Fada
madrinha
Voa, voa...
Pra seu encanto
Perpetuar!...
30
BLOM, 2003, p.228.
66
É interessante assinalar como em cada caixa de Joseph Cornell,
se abrem narrativas que interligam as imagens e os objetos por ele
dispostos como caixas de brinquedos.
Toda sua obra tem o poder de conduzir-nos às maravilhas da
infância, quando olhamos através do globo de cristal ou de um
pequeno objeto translúcido para se abrir um mundo onde qualquer
coisa se aventura às imaginações possíveis.
Por vezes, as caixas lembram histórias de contos de fadas,
cenários de filmes, cenas de teatro, um cotidiano onde o desejo é o
único senhor. Com seus elementos dispostos em prateleiras, divisórias,
vitrines, que lembram o eterno jogo infantil de brincar de casinha, onde
em cada peça disposta, encontram-se personagens para criar a
narrativa de um jogo, onde não existe ganhador ou perdedor.
Caixa cheia de coisas, um pára-raios de emoções. Não é algo
que, à primeira vista, pertença aos limites de um Museu, pois são
pequenos museus portáteis de fotografias, signos, olhares, a
efemeridade doce de uma riqueza sem fim.
A esperança de criar um mundo próprio a partir do mundo que
lhe era oferecido, através dos objetos arrancados do seu contexto
habitual, e que aparentemente não representam nada, entra no círculo
da significação e tornam-se imagens do seu desejo, do seu afeto. Tais
objetos moviam Cornell a encerrar suas esperanças dentro de caixas,
descobrindo uma energia peculiar, que impulsionava o seu fazer como
que à procura de novos mundos que deviam ser protegidos.
67
Sabedor de que o mundo e a memória são espelhos de reflexão
recíproca, não tendo como desvincular um do outro, uma vez que eles
não se afastam, que se atraem e, se desafiam reciprocamente, cada
um desejando o outro, Cornell circunscreve o seu campo de atuação
no eterno interstício deste mundo desordenado, fugidio e incerto,
conduzindo-nos assim a determinados espaço secretos.
Revivemos nas caixas do artista, essas memórias de maneira nova,
pois, ao mesmo tempo, abrem-se nossas lembranças. Participamos do
mundo com os nossos sonhos flutuantes... À luz de nossos encantos e de
mãos dadas com nossos encantadores... Entrelaçando os fios de nossas
redes, de nossas histórias... Em um contínuo tecer...
68
2.
ESSE OUTRO MUNDO
69
SOPHIE CALLE
OU A HISTÓRIA DAS COISAS
E é um pouco por compromisso igual que, se os sonhos têm por função
assegurar a continuidade do sono, os objetos asseguram a continuidade da vida.
Jean Baudrillard
Abro o livro Leviatã. Paul Auster, nos apresenta Maria Turner,
artista cujo trabalho pautava-se na criação de situações diferentes das
definidas como arte. Na contramão do simbolismo de Leviatã
31
, ela se
faz notar através de jogos simples e livres a partir de rituais cotidianos.
Com o envolvimento direto do outro, ao agir, não faz mais do que
desenrolar as idas e vindas de um desejo, que ela apresenta e
representa sem fim
32
.
31
O nome vem do monstro bíblico que o filósofo Thomas Hobbes tomou emprestado para
simbolizar o Estado opressor. No livro de Paul Auster, dois escritores lutam por vias distintas
contra o silêncio que lhes é imposto, em meio à era Reagan, ao terremoto de Los Angeles, a
fatos históricos/políticos, que são utilizados como pano de fundo da História, regida pelo acaso,
tendo a estátua da liberdade como pretexto e metáfora.
32
BARTTHES, 1978, p 44.
70
Instigada pelas histórias das histórias de Maria, que ao mesmo
tempo, é a história de cada um de nós
33
, mergulhei numa viagem
através da personagem. Neste sentido, a estratégia de Auster: era criar
em seu romance a personagem Maria Turner, fotógrafa, que executa os
projetos/trabalhos de Sophie Calle
34
.
Diz ele, que seu trabalho era extravagante demais, idiossincrático
demais, pessoal demais
35
para ser visto como pertencente a qualquer
veículo ou disciplinas particulares. Ela era possuída por suas idéias,
dedicava-se aos seus projetos (sem o desejo de fazer arte), mas com a
necessidade de entregar-se às suas obsessões, viver sua vida
exatamente como queria. A vida lhe apresentava mapas que deveria
percorrer, aliás, viver sempre vinha em primeiro lugar. Calle ou Maria
Turner? De quem fala Paul Auster?
Quando Auster fala de Maria Turner, fala ao mesmo tempo de
Sophie Calle. Quando fala de Sophie Calle fala também de Maria Turner.
Sente-se que a imagem de si mesmo é uma extensão da imagem
do outro. Nesse efeito de apresentar trabalhos como realidade através
de falsas aparências, em que só se questiona a existência através do
jogo do sentido de realidade, sob forma de simulação, se dá no
aparecimento do duplo que cria esse efeito de sedução, de captação
33
AUSTER, 2001, p. 72.
34
A obra desta artista francesa foi a mim apresentada por Giovanna Martins, a partir do
território dos afetos; quando de conversas em atelier em que se falou sobre memória e
relações de afeto que ela aborda em sua produção artística, e que está desenvolvida na
dissertação de Mestrado em Artes Visuais: 3 Personagens no território dos afetos. Belo
Horizonte. UFMG. 2006.
35
AUSTER, Op.Cit, p. 83.
71
característico do trompe-l’oeil
36
. Como pontuado por Baudrillard, a
realidade não é captável senão quando nossa identidade nela se
perde, ou quando ela ressurge como nossa própria morte alucinada
37
.
Calle transita livremente entre fotografias, textos, imagens,
objetos. Em seu percurso, vários projetos criados pela artista eram
apenas e exclusivamente seus, e não se concebiam pertencentes ao
universo da arte, tampouco eram apresentados a alguém.
Eram jogos. Jogos despretensiosos, sem qualquer intenção artística
nem de registro como tal. Penso que o prazer de Calle residia na
proposição e aceitação dos envolvidos às regras desses jogos.
A artista toma consciência, de que tais propostas poderiam ser
movimentações que estivessem inseridas no contexto da arte, quando
alertada pelo crítico de arte e escritor, Bernard Lamarche-Valdel, ao
conhecer seu projeto em execução Les Dormeurs. Incentivada por ele,
participa do Salão de Jovens, exposição realizada no Museu de Arte
Moderna da Cidade de Paris, em 1979. Aí então, Calle-Calle, permite dar
vazão a Calle-Artista ou vice-versa.
36
BAUDRILLARD, 1997, p. 16.
37
Ibdem, 1997, p.17.
72
Calle, considerada com freqüência como uma “inventora de
histórias
38
”, constrói narrativas escritas, que suplementam as imagens de
uma série de acontecimentos, reais ou imaginários. Ela, cautelosamente,
os estrutura, a partir de tramas elaboradas, nas quais sujeito, coisa,
personagem, autora, artista, dividem o mesmo espaço, o mesmo tempo.
Seus jogos estratégicos prendem o espectador numa teia de sentidos,
através de pistas que conduzem uma leitura daqueles, como meios
necessários para conferir talvez veracidade aos fatos por ela narrados.
As movimentações de Calle são verdadeiras? Não se sabe. Sabe-
se que, ao estilo dos romances policiais, inclui o espectador na situação
de um participante leal, à procura das divisas entre o que pertence ao
mundo real ou o que pertence à imaginação.
Sophie Calle, persona e personagem, é o eixo em torno do qual os
trabalhos vão sendo tecidos, com a ajuda de objetos seus e dos outros,
adquiridos e ou doados, fotografias de sua autoria ou não. Seus cenários
são sempre clarões de uma memória, na qual se supõe a presença da
autora.
Nesses jogos estratégicos, a rede se faz e não se sabe, ou pouco
importa, quem pertence o trabalho. Mas o secreto emaranhado que se
produz em volta de sua identidade, fascina, faz um convite a envolver-se
no jogo e conduz a julgar a possibilidade de participar de suas falas
secretas.
38
Expressão usada por Hervé Guibert in Panégyrique d’une faiseuse d’histoire. Catálogo da
exposição A suivre, no Musée d’art moderne de la ville de Paris, 1991.
73
As suas estratégias funcionam como um eterno desvio de átomos,
átomos que uma vez desviados de suas rotas, como bem pontuado por
Bourriaud: provocam um encontro com o átomo vizinho e, de encontro
em encontro, um ricochete, e então, o nascimento de um mundo
39
. O
mundo possível de Calle, que se abre a novas possibilidades de
encontros (aglutinação) de elementos que se mantinham separados:
como exemplo, a ausência e a presença manifestada como rituais.
O signo do duplo é presença viva nos trabalhos da artista, quando,
ao tomar-se pela personagem por ela criada, estabelece um espaço
sempre a especificar, não afirma nada, não fecha nada. Há em suas
ações uma possível escritura, um trabalho de reinvenção do mundo.
Com isso, suas obras abrem os sentidos da arte como condições do que
pode acontecer, das movimentações possíveis desse espaço
expandido, como caminhos a se desenhar.
A artista é atraída, agitada, não diretamente pela obra, e sim
pela sua busca, o movimento que a ela conduz
40
, o princípio efetivo de
uma trajetória que se faz por meio de signos, gestos, objetos. Seu
trabalho estende-se na invenção de sua relação com e entre coisas e
pessoas, em meio a um feixe de relações com o mundo que geraria
outras relações, e assim por diante, infinitamente
41
.
Trata-se de uma arte que busca o reconhecimento de si, do outro
e do espectador. Suas formações manifestam-se nos espaços por ela
39
MARTINS, Giovanna. Estética Relacional. Separata traduzida pela autora a partir da obra de
Nicolas Bourriaud: Esthétique relationnelle. MIMEO, 2001.
40
BLANCHOT, 1994, p. 209.
41
MARTINS, Op. Cit.
74
criados, espaços das insignificâncias, frestas abertas entre as relações
humanas, possibilitando outras trocas, que não aquelas vigentes no
sistema. Tendo como ponto de partida um cotidiano, que já não há
tempo para o encontro.
Num possível jogo de memória, a obra de que nunca [se] é senhor,
de que nunca [se] está seguro, que não quer responder a nada senão a
si própria e que só torna a arte presente no ponto em que a arte se
dissimula e desaparece
42
, Calle nos conduz a espaços efetivamente
emocionais, capazes de desafiar o esquecimento no mundo
circundante, mostrando-nos que a realidade nada mais é que um
mundo encenado.
42
BLANCHOT, 1994, p. 211.
75
É FINAL DE VERÃO
Ninguém lembra a primeira vez em
que viu o amarelo ou o negro ou a
primeira vez em que tomou gosto
por uma fruta, talvez porque fosse
muito pequeno e não pudesse
saber que estava inaugurando uma
série muito longa. Naturalmente, há
outras primeiras vezes que ninguém
esquece.
Jorge Luis Borges
É final de verão, me vem à lembrança meu aniversário de nove
anos, quando a vizinha presenteou-me com um corte de tecido azul
cheio de flores.
Na família de nove irmãos, não era costume presentear, mas a
comemoração era feita, num pequeno ritual de apagar as velas de um
pequeno bolo, glaçado de açúcar refinado e suco de limão. Aquele
simples e afetuoso ritual, assinalava que o amor deve ser alimentado
todos os dias, mas em especial na data simbólica do aniversário, talvez
76
“simplesmente para saber que se está viva, que viveu, que lhe importam
vida, as pessoas e os sentimentos que brotam da difícil relação entre as
pessoas
43
.
Já adolescente comecei a anotar em agendas anuais, na data
do meu aniversário, os nomes de todos que me ligavam e que se
lembravam de mim. Ano após ano, tenho assim procedido. Só agora me
dou conta que esta estratégia se converte em uma chamada à
memória. O afeto se instala nesse ato, lembrar e ser lembrado. O registro
dos nomes daqueles que de mim se lembraram e que são lembrados,
dá-se como uma forma de reter as coisas, os feitos em minha memória, o
sentimento materializa-se, assim, em registro (prova, indício, testemunha)
de um processo memoralístico e mnemotécnico e se constitui como uma
espécie de alerta, pra nossas ilusões
44
, conduzindo-nos a uma realidade
desejada no percurso do outro. E abre novas possibilidades para
interpretar narrativas no plano da vida frente aos desafios do
esquecimento.
Realidade e ficção. Onde reside uma e outra? Tudo é ficção? Mas
esta ficção não é um desejo de realidade? Sem respostas, lembro-me da
43
CALLE, In OLIVARES, 1997, p.32-47.
44
CALLE, Apud, MELENDI, 2005, p. 81.
77
fala do demônio de Goethe: “Ah sim, agora estás perdido”. — “Devo
então parar?” — “Não, se paras, estás perdido
45
”. O homem sonha. Ao
dormir cria suas próprias versões da realidade, nas quais pode realizar
seus desejos secretos. Ele se apropria das experiências que vivenciou ou
presenciou e cria mundos possíveis para maquiar o que seu pensamento
mais deseja: exteriorizar o seu desejo.
No sonho tudo parece estar vivo e, entretanto, o impulso de
realidade não tem maiores conseqüências. Há, claro, a avidez de um
tempo reencontrado ou a encontrar, como na ficção: este espaço
simulador de uma realidade pretendida para além de suas fronteiras.
Então, volto a Goethe e penso: não devo parar, pois se paro, não crio
um mundo para vivenciar desejos, um mundo a desaparecer para que a
realidade surja.
É nesse caminho de busca do que está por vir, por encontrar ou
por reinventar que a obra se faz, ela vai para si própria, para sua
essência
46
. Com isso, seu centro está sempre a se deslocar, a correr. E, é
nesse correr, percorrer, que a arte é produzida, antes como qualquer
coisa que nunca se descobre, nunca se verifica e nunca se justifica
diretamente, de que só nos aproximamos desviando-nos, ela se dá o
caminho, nunca já lá está
47
, por mais que se aproxime, nunca atinge o
centro, pois se o atingir não há como continuar.
45
GOETHE, Apud BLANCHOT, 1994, p. 39.
46
BLANCHOT, 1994, p.206.
47
Ibdem, p. 211.
78
1. Aniversário e o outro
Em 1980, Calle inicia O Ritual de Aniversário. No dia do seu
aniversário, 9 de outubro, a artista promove um jantar comemorativo na
data. Esse procedimento vai se repetir até 1993.
Convida amigos pedindo-lhes que levem um desconhecido à
comemoração. Durante todas as festas realizadas, novas pessoas se
agregam ao ritual.
Desde o início do ritual até seu encerramento — aos 40 anos —,
conhecidos de Calle seguiram a instrução de convidar desconhecidos
da artista, tantos quantos necessários para se perfazer o número igual a
sua idade, na época.
A festa repetiu-se durante 13 anos consecutivos, seguindo o
mesmo processo do primeiro. O propósito, talvez, tenha sido encontrar a
singularidade no que se repete
48
. A repetição é insubstituível, porque é
igual, cada festa realizada potencializa a outra, e sob esta relação de
potência, a repetição se inverte interiorizando-se: não é a festa de
aniversário de Calle, a que comemora ou representa o seu aniversário, é
a festa de aniversário de Calle, a que festeja e repete de antemão todos
os aniversários dos que estão ali presentes.
48
FOUCAULT;DELEUZE, 1995, p. 97.
79
2. A sala
Sala ampla, janelas do teto ao chão, cortinas abertas.
A mesa posta com mais lugares — 37 assentos —, com melhores
desenhos na louça, com mais talheres, com mais copos. Coisas reais e
ilusórias, forma-corpo-desejo-realidade...
Sobre três mesas agrupadas, toalha branca, além da louça e
talheres, um jarro de flores. Ao centro o candelabro. Tudo
harmoniosamente disposto à espera de uma comunhão.
Além das coisas, o silêncio. O único ruído vinha da claridade que
incidia através das janelas com suas cortinas abertas.
Todo um ritual preparado para fixar o momento, criar um
documento para ser arquivado, fixar afetos, organizar a vida. Algo de
tudo isto, de alguma forma, ficou ali impresso.
Depois, o jarro de flores já não está mais sobre a mesa, as cadeiras
desarrumadas, anunciam a ausência do outro. Aliás, ausência é parte
essencial de alguns dos rituais da artista, que nos conduz a criar novas
regras e novos jogos. Nenhum personagem à mostra, ninguém é visto,
percebe-se que houve um movimento, que uma comemoração se
desenhou naquele lugar. Uma sala calma no interior da qual se deu um
jogo de tramas de afetos que se inventou e se fez mais importante que a
verdade, no desenrolar de idas e vindas de um desejo, que a artista
80
81
apresenta e representa. Parece que o ritual é uma maneira de fixar este
dia
49
.
A simples experiência de viver cadencia o tempo quase tão
seguramente quanto a gota incansável
50
, as regras desse ritual privado
tornam-se uma chamada de atenção à nossa memória, nossos desejos e
ilusões. É neste adelgaçamento de espaço
51
que Calle atua — entre o
real e o irreal—, um espaço tão ínfimo, que se tem a impressão de andar
sobre uma linha, nessa quase imperceptível distinção entre a realidade e
a ficção. Sua obra nos chama para a participação direta, fazendo-nos
parceiros e, ou, confidentes que viabilizam a realização de seus jogos.
Como se vê, a obra de Calle dá-se como um mapeamento, um
caminho, uma trajetória que pode ser lida através de signos, de objetos,
de formas e gestos, por ela gerados.
Esses movimentos efetivados através do ritual mágico do
cotidiano da artista (conjunto de afetos, desejos e percepções),
conduzem-nos ao prosaico dos sentidos de todos, e à sensação de
estarmos inseridos em sua realidade. Faz religar elementos que se
mantinham separados, a partir de momentos de subjetividade das
experiências singulares. Você vê você mesma a partir do resultado das
eternas transações com a subjetividade dos outros
52
. E, nesse jogo, como
49
CALLE, In OLIVARES, 1997, p.32-47.
50
PEREC, 1988, p. 40.
51
BLANCHOT, 1994, p.105.
52
MARTINS, Giovanna. Estética Relacional. Separata traduzida pela autora a partir da obra de
Nicolas Bourriaud: Esthétique relationnelle. MIMEO, 2001.
82
no de “passar anel”, o anel nunca é o mesmo, mas uma outra volta da
espiral
53
, novas estratégias de jogos podem estar por vir.
A sala, a mesa, as cadeiras, os talheres, os copos, as flores, o
lustre... uma vez por ano, talvez, em lugares secretos, distantes, Calle
desencante outras salas à procura de presentes...
3. Os objetos, as coisas.
Mais do que todos os jogos secretos do desejo de Sophie Calle,
toda a rede de sedução em que ela nos envolve, — uma aranha
tecendo sua teia —, o que mais me interessa são as coisas, os objetos e
as histórias que eles contam.
No Livro II da série Doublè-Jeux, à página 50, vejo uma vitrine com
10 objetos.
Na prateleira superior, suas penas marrons e douradas já não
possuíam mais o brilho natural, o cantar da ave não se ouvia mais. Mas
ele estava lá, um galo empalhado, aparentemente imóvel, cuja altivez
era vivificada pela postura animal. Como um protetor colocado no alto
de uma flecha de uma igreja, estava assim disposto do lado direito da
vitrine, acima de todos os demais objetos como o guardião da vida e
irradiador de luz. Está ali, como um talismã, para todas as manhãs
53
BARTHES, 1978, p. 54.
83
anunciar o nascimento do sol e afastar dali todas as influências
maléficas. Quem se desprendeu dele, não se sabe, sente-se que cedeu
um pouco de sua luz àquela que o recebeu.
84
85
Colocado na mesma prateleira, o chapéu e a capa de toureiro
pareciam ainda quentes do corpo ausente, em suas tramas de fios
entrelaçados: fios rosa, vermelhos, dourados, amarelos, violeta, verdes,
brotaram-se flores ao fundo do cetim cor de pele. A vitrine agora era seu
anfiteatro, não existia mais toureiro nem touro, estava ali agora como
cortina para se ver além, um jardim a se passear. Agora calmo, sem
movimento, pode ser a lembrança de um duelo de resistência entre
homem e animal, mais ainda um duelo de persistência frente às tramas
dos percursos da vida. Estava ali em memória de alguém? Ou em
saudação a um touro vencedor? Quantos movimentos, alegrias, medos,
incertezas, perigos passou quem o usou? Vitórias memoráveis, derrotas
reconhecidas.
Na prateleira inferior, o álbum grosso, encadernado luxuosamente.
Ao invés de fotos de família, podem se ver, em sua página aberta,
fotografias de lugares, possíveis postais de uma coleção. As fotos
conduzem-nos à impressão de um “estive aqui, mas agora não estou
mais. A foto tem esse poder de afastar de nós, as coisas do mundo, por
isso evidencia a falta. Essa falta remete-nos a uma recordação do que
já foi. O álbum agora ali exposto como um livro, que deseja ser
totalmente folheado, lido em cada detalhe, abre à imaginação ricas
histórias, perfaz a recordação daquelas casas, torres, ruas, árvores, pôr-
do- sol, campos, céus, através do registro do afeto do outro.
No interior da vitrine havia ainda, um livro, um castiçal, um par de
meias finas rosa, um par de sapatos pretos feminino, um documento que
86
não sei precisar, um Cd de Elvis Presley. Não estão ali por acaso, são
objetos que contam muitas histórias.
4. O Registro
O Ritual de aniversário apresenta-se a nós como uma série de
vitrines com presentes, que foram dados a Calle em cada um de seus
aniversários. Todo ano, durante 13 anos.
As vitrines, como relicários, têm em suas prateleiras,
cuidadosamente arrumados, os presentes recebidos em anos anteriores,
nenhum detalhe lhe escapa. Eles estão ali, objetos de afeto, expostos,
para acordar do esquecimento. Prontamente exorcizam a idéia de
apagamento, instauram uma memória, uma perturbação
54
. Buscam
reter das coisas, os sentimentos, de estar viva, do que se viveu e do que
é caro à vida: as pessoas e os liames que brotam da interação com o
outro. E ao fundir-se aos outros, às histórias dos outros, promovem um
encontro com uma Calle adormecida, introspectiva demais, difícil de se
ver, e de com ela relacionar.
Então, ela cria um desvio capaz de inventar um mundo de
encontro que deve ser durável, funde a sua vida com a dos outros, a
54
BARTHES, Fragmentos de um discurso amoroso, 2003.
87
partir da data de seu aniversário, celebra seu nascimento, suscitando
novas possibilidades de vida, de memória.
As listas dos presentes, ao lado dos nomes de quem os ofereceu,
anunciam uma ausência. Elucidam um encontro de elementos sagrados
e, ou, secretos, que iluminam uma lembrança afetiva, a partir da
comunhão que se dá através das estratégias, dos jogos de
aproximações, das relações entre pessoas, entre pessoas e coisas.
Os trabalhos de Calle quase sempre têm uma versão em livro. No
pequeno livro violeta, que tenho em mãos, posso ver nas páginas à
direita, as imagens das vitrines com os presentes, nas à esquerda as listas
de objetos e nomes. As listas mais parecem lembretes de dias felizes num
pequeno diário, onde se registram os encontros, onde receber é uma
forma de dar, e de criar condições de uma troca de desejos, sonhos,
afetos, memória..., chamados a dialogar entre si, tecem uma rede do
encontro entre o desejo e a realidade.
88
89
5. O Livro
As vitrines podem ser exibidas numa sala de exposições. Podem
também ilustrar um livro que relate a cerimônia. De fato, Le rituel d’
anniversaire foi publicado e faz parte do Livro II da série Doublè-Jeux.
Neste, há uma pequena narrativa de simples construção, onde
ela descreve Maria Turner, personagem criada pelo seu amigo Auster, no
livro Leviatã. Ela fala que não sabe quando Maria é Sophie e quando
Sophie é Maria no romance. O livro inclui também, as listas dos presentes
que ela ganhou a cada ano, e que se completavam com as imagens
feitas da comemoração — mesa posta, vitrines com os objetos expostos,
mesa desarrumada.
Sabe-se que o último desses encontros comemorativos, que
formam o ritual, realizou-se em 1993, quando aos 40 anos, deu por findo
o ritual, e a primeira exposição da série foi feita, logo após, na Espanha.
Entre verdade e ficção, a história do Ritual de Aniversário,
estende-se para reafirmar sua existência, existência do envolvimento
afetivo do outro, confirmando assim a sua. A rede continua se fazendo,
os afetos e o imaginário tecem historias nas paginas do livro, que se abre
a outros possíveis envolvimentos.
90
91
Deixamos, pois, esses lembretes de leitura, de escuta, no estado
muitas vezes incerto, inacabado, que convém a um discurso cuja
instância não é senão a memória dos lugares (livros, encontros) em que
tal coisa foi lida, dita, escutada
55
.
55
BARTHES, Fragmentos de um discurso amoroso, 2003, p. XXIV.
92
UMA CASA, EM ESPECIAL.
Seus mundos distantes nem sempre eram
estranhos, e a saudade que despertavam
em mim nem sempre era um chamariz ao
desconhecido, mas antes, por vezes, aquele
desejo mais suave de voltar a casa. Isso,
porém, talvez fosse resultado da luz de gás,
que caía tão suavemente sobre todas as
coisas.
Walter Benjamim
Entre as curtas viagens que fiz, houve uma que se fixou mais
nitidamente em minha memória: a imagem daquela casa simples de
onze cômodos que entravam uns nos outros. O piso em tijolo, janelas
compridas, à frente uma venda, ao fundo um belo quintal com árvores
frutíferas.
As coisas que nela havia, eram muito íntimas a meus olhos. Na
biblioteca, livros, muitos livros, sobre a escrivaninha de jacarandá objetos
pessoais: máquina de escrever, suporte para canetas, óculos, extrator de
grampos, uma estatueta, folhas, muitas folhas amareladas, jamais
escritas.
93
Na mesinha de apoio uma pequena escultura em bronze, de uma
vaca amamentando sua cria. O rádio e o globo terrestre ocupavam o
canto esquerdo da estante de livros. Fotos de família na parede. A
cadeira rente à mesa.
No quarto, tudo muito simples, uma cama de casal e um pequeno
guarda-roupas estilo inglês, uma cadeira ao canto direito perto da
janela e, a seus pés, um par de chinelos. Uma pequena mesa com forro
de linho, sobre a qual estavam objetos de louça para higiene, uma
lamparina no criado mudo, e pendurada ao lado de um espelho de
corpo inteiro, uma beca preta.
Na cozinha, uma extensa mesa para as refeições, ladeada por
compridos bancos. Os vasilhames: louças e utensílios, que deviam ser
muitos, já não estavam mais ali. Quebraram-se ou se perderam com o
tempo. Restavam poucos copos esmaltados, talheres em prata, pratos,
bules, panelas de ferro e xícaras de café e chá, expostos em simples
prateleiras forradas com tecidos de fino crochê. Aquele espaço
denotava que o habitante ilustre, um grande escritor, era homem de
hábitos simples em seu dia-a-dia.
A sua casa era o lugar das lembranças, com um itinerário a
percorrer através dos cômodos e das portas, tudo ali havia de ser visto e
gravado, desde a mais simples fresta de luz que passava por uma telha,
às coisas preservadas, das quais consegui extrair palavras. Palavras que
94
as coisas, só elas, me falam
56
, como disse Rilke em carta a Lou Andréas
Salomé. Este lugar é o lugar de memórias íntimas, de afetos, de realidade
e sonhos vividos, que se fez e se faz presente nas minhas lembranças.
Como um fantasma, a memória permeia nossos corpos passados, que
podem estar em vários lugares ao mesmo tempo, ou quiçá em lugar
nenhum. Ela existe e não existe a partir de tudo, a partir do nada frente
ao esquecimento.
É preciso saber falar com os fantasmas que moram em arquivos
velhos ou novos, pouco visíveis ou inacessíveis, secretos ou privados.
Falando de memórias, não direi ‘elas’, mas nós.
O frasco de perfume sobre a penteadeira de um dos quartos,
guardava o que se quer reter. O perfume que dá alma às nossas
lembranças.
56
RILKE, Apud MACIEL, 2004, p.103.
95
Tudo naquela casa parecia cheio de histórias que estavam ali
para provar uma memória dos dias vividos. Não se dão hoje da mesma
maneira que ontem, mas suscitam a leveza do compartilhamento de
vidas.
Toda casa é uma espécie de museu. Em seus cômodos podemos
nos deparar com móveis cheios de gavetas, armários e suas prateleiras,
escrivaninhas, cofres, sótãos com seus baús, caixas e mais caixas. Um
lugar impressionante, um mundo silencioso que abriga os secretos, em
que está o escondido, em meio às coisas encerradas em seu interior, e
que conseguem transmitir ao corpo a sensação do lugar onde estão,
requisitando, para isto, todos os sentidos. Em toda casa, há um itinerário
a percorrer, um espaço vivido, que faz a lembrança, em seus
fragmentos, compor um fio mesmo esgarçado de dias vividos.
Vê-se que esses objetos e outros providos de mesmo valor
sentimental demonstram uma intimidade, revelam momentos vividos em
épocas passadas sem mostrar sinais de esgotamento para quem os
possui: Junto coisas e trastes, jornais e revistas durante anos. Transformo
os móveis e as gavetas em museu, (...)
57
.
57
CARPINEJAR, 2005. p. 68.
96
Uma gaveta cheia de pastas, fotos enfurnadas num envelope
pardo, um velho isqueiro, grampeador e uma caixa de grampos,
calculadora, dois molhos de chaves. Um talão de cheque em uso, outro
novo, gomas de borracha, clipes, fita para máquina de escrever,
pequeno rádio portátil, dois canivetes, uma lanterna. Enterrado no fundo
da gaveta da escrivaninha, um cartão de aniversário de 2001, um papel
datilografado com nomes e aniversários de familiares, uma medalha do
santo de devoção, um caneco de louça branca estampado em flores,
um espelho com moldura vermelha. A lista é copiosa.
Um guarda-roupa cheio de coisas: gravatas, uma caixa com
antigas cartas de amor, meias, cartas de baralho, lenços com
monograma, pijamas, bonés, vestidos, bolsas, perfumes, cintos, fitas
coloridas, frascos de perfumes, pequena caixa em madeira cheia de
colares. Em uma das portas na parte de dentro o espelho de corpo
inteiro. Colada nele uma mensagem de bom dia. Uma boneca.
97
Um guarda-louças, em suas prateleiras xícaras, pratos, pires, copos
de alumínio, chaleira, coador de pano e outros vasilhames que se
misturam aos mantimentos. Uma caixa-de-fósforo, um maço de velas.
Duas estantes cheias de livros, livros que estavam também em
caixas de papelão espalhadas pelo sótão. Um rádio velho, um tabuleiro
de damas e ludo sobre uma pequena mesa, um banco de madeira,
uma máquina de costura, um lampo, um baú. Uma verdadeira Caixa
de Pandora.
Um mundo a se escavar cada vez mais fundo, dentro de mim, de
ti, de quem quiser. É preciso deslocar: ir para onde não se é esperado.
Permitir transportar-se a espaços antes não explorados. Espaços estes
98
que acumulam sobrevivência, que, mesmo mudos, fazem-se intrigante
quando ressuscitados, pois de uma maneira ou de outra, há partes
dentro da gente que estão marcadas para renascerem.
O tempo e a memória dentro dos objetos parecem recriar-se, uma
vez que se consiga extrair algum sentido do que se observa e assim
permitir-se fazer uma história outra, num mundo em que tudo é duplo,
em que a mesma coisa sempre acontece duas vezes
58
. Assim, os objetos
contam a história dos homens, pois, independente do uso na vida
prática que possam ter, são passíveis de um investimento afetivo que os
desloca de seu espaço utilitário e os insere no campo da paixão e da
propriedade privada
59
.
Os objetos não têm como se eximir do contágio direto do mundo
que os envolve. Uma vez já incorporados em nossa vida, entram no
universo de nossas referências pessoais, alinhavados pela afinidade que
cada um mantém com o outro. Com isto, ganham um estatuto diverso
do utilitário. Dão um testemunho de nossa presença ativa, despertando
a lembrança, se fazendo sentir.
58
AUSTER, 1999, p. 95.
59
BAUDRILLARD, 2000, p.109.
99
DE MUSEUS E DE VITRINES
No vazio das peças
Móveis quadro tapetes
(...)Objetos deixam-se moldar
com amiga docilidade.
Carlos Drummond de Andrade
Museu, instituição dedicada a buscar, conservar, estudar e expor
objetos de interesse duradouro ou de valor artístico, histórico etc.
Etimologicamente, templo das Musas, lugar onde elas residem; lugar no
qual se exercita a poesia. É nesse espaço instituído, que Sophie Calle
instala A Visita Guiada, pertencente ao segundo módulo da exposição
idealizada em 1994, intitulada Ausência, para os museus de Rotterdam e
de Lausanne. Visto pela última vez é o primeiro módulo que foi exibido
nos dois museus. A Visita Guiada foi desenvolvida e instalada somente
no Museu de Rotterdam, em sua sessão de Artes Decorativas.
No museu, as vitrines estão cuidadosamente organizadas, ao
alcance dos olhos. Objetos utilitários, que aparentemente não dizem
nada, são expostos como lembretes de uma mudança dos tempos, do
100
desuso natural das coisas, substituídas quase automaticamente por
outros objetos produzidos em ritmo acelerado. Tirados de circulação
pelo homem, são reunidos e preservados em museus. Os objetos estão
expostos em caixas como borboletas, como espécimes, como
“exemplos de”, como elos com outro reino da história da autenticidade,
da beleza
60
. Um reino repleto de histórias que interligam, não só os
elementos que compõem um espaço, mas os segredos que carregam.
Ao contrário de toda a inércia aparente, para Calle, pouco importa o
valor utilitário atribuído a cada objeto, uma vez que, agora, eles acham-
se presentes ali unicamente para significar. Negam suas funções
primárias e se desdobram formalmente de si mesmos criando uma menor
dependência com os outros objetos e se [dão] como totalidade, como
presença autêntica, [têm] um estatuto psicológico especial. [São vividos]
de outra maneira. É quando, não servindo para nada, [servem]
profundamente para qualquer coisa
61
. Servem para, e como, memória,
como um retrato de família. Significam um agora no tempo.
60
BLOM, 2003, p.190.
61
BAUDRILLARD, 2000, p.83.
101
102
Assim como a razão, que anula a sedução, a praticidade (alheia,
rígida) anula o imaginário e a afeição. Ela localiza-se à margem das
relações do homem consigo mesmo, com os outros e com as coisas do
mundo. Sendo ponto crucial na vida diária, a praticidade libera a
possibilidade de qualquer lembrança.
Por isso a artista insere os objetos de sua coleção pessoal nas
vitrines ao lado das peças do acervo do museu.
Ao inserir esses objetos, carregados de afetos — ganhos,
apropriados, adquiridos —, Calle continua a trabalhar com a
objetualização da memória sentimental. A ausência e a presença
(elementos em embate constante em seus trabalhos) funcionam como
luz e sombra delas mesmas, como em O Ritual de Aniverrio. Em A Visita
Guiada, a ausência é revelada através da presença das peças ali
expostas. Peças que fazem renascer os segredos, que se justapõem,
103
testemunhos da ambigüidade do homem frente aos signos de um
mundo anterior e interior.
Calle chama à luz os sentidos, ao penetrar no universo do museu,
vivificando os objetos ali expostos, juntamente com os seus, irmanando-
os uns aos outros, gerando recordações perdidas de vidas distintas.
São as histórias se misturando, através do átimo da vida de um
com a do outro. É o medo do esquecimento que dispara o desejo de
lembrar ou é, talvez, o contrário
62
?
62
HUYSSEM, 2000, p.9.
104
Todo objeto guardado precisa ter um significado para ser admitido
no acervo pessoal e secreto de quem os possui. Mostrá-lo de forma
autobiográfica é uma maneira de compartilhar vida, de se fazer vida, de
possibilitar o acesso à memória através das lembranças que se mesclam
com a dos outros, permitindo o surgimento de uma rede de
solidariedade, algo que seja, de fato, uma difusão do desejo e da
afeição.
Compartilhando suas histórias reais ou ficcionais, Calle toca o
outro, e algo acontece. Mas o que acontece? Pode ser, que sejam
percepções, sensações, ou simplesmente, memórias, memórias ou coisas
imaginadas. Mas sempre ocorre algo
63
.
Calle disse: “eu não tenho memória nenhuma. Necessito inventar
algo para fixar as coisas, se não esqueço tudo
64
.
Ou seja, os objetos de afeição, guardados como pequenos
tesouros, nos ligam a alguma coisa de muito distante
65
, se fazem
escrituras em um dado momento de nossas vidas e se tornam coisas
outras no decorrer do tempo.
Calle, então, apropria-se dos objetos em exibição no museu e une
a eles os seus, com cumplicidade. Cumplicidade que ultrapassa a mera
63
BORGES, 2002, p.62.
64
CALLE, In OLIVARES, 1997, p. 32-47.
65
BLOM, 2003, p.192.
105
relação de posse e uso, e lhes confere um significado especial, retirar seu
valor só pode estar, se não na utilidade, no significado; significam algo,
representam algo, provocam associações que os tornam valiosos aos
olhos de quem os tem
66
.
Ela coloca uma pequena historia ao lado de cada objeto que
introduz. Evidencia-se neste conjunto uma realidade a se justificar pelo
desejo ou pela imaginação, pois as coisas carregadas de afetividade
lançam pontes no espaço, no tempo, na nossa distância de nos
mesmos.
O Museu de Rotterdam, exibe coisas comuns, objetos decorativos,
desses de desing, que são apresentados como objetos raros e valiosos.
A artista com seus objetos, pessoais carregados de histórias afetivas,
instala um outro espaço neste lugar: o emocional, no limiar entre
presença e ausência.
A memória é estimulada por cada peça ali inserida. Quando as
peças da artista são reunidas às demais peças do museu, elas assumem
um sentido outro, pois fazem ressaltar as histórias pessoais que eles,
também, carregam.
O que parece contar para Calle é a possibilidade de relacionar
suas peças às outras peças, oferecendo jogos entre memórias, entre
sentidos, entre afetos, entre vidas. Algo a se guardar, lembrar,
compartilhar.
66
BLOM, 2003, p.192.
106
A vista segue os caminhos que lhe foram preparados na obra
67
.
No museu, há um espaço a percorrer, um itinerário a ser seguido,
com pistas (música, voz de pequenas narrativas, textos ao lado de seus
objetos) que conduzem a leitura do visitante, através de estratégias,
onde a artista é ao mesmo tempo objeto e sujeito, autora e
espectadora.
Como o próprio título indica, A Visita Guiada é constituída de um
itinerário fixo. O visitante é guiado através de um discman, como os
usados nas visitas guiadas dos museus, no qual histórias são contadas
por Laurie Anderson. As 21 narrativas, uma para cada objeto que
passou a integrar as vitrines, conduzem o visitante a ver as obras a partir
do que escuta. Com uma posição crítica, Calle se vale desse recurso,
para introduzir a ficção no espaço sagrado do museu, para conferir
validade a seus relatos autobiográficos.
67
Fala de Paul Klee, anotada em livro de artista de minha autoria. 2001.
107
Calle continua a se transportar e transportar o espectador a
espaços emocionais, numa eterna trama de afetos que se inventa e
reinventa. Os objetos, completos de nós mesmos, ligam a artista e os
visitantes, a espaços outros, espaços adormecidos.
Perto, nas vitrines, estão os objetos do museu, representantes
solitários de uma vida diferente que se aproxima da sua por mais
particular e secreta que seja, permitem uma breve visita a outro mundo
68
que não o seu.
As coisas dizem muito das pessoas... Ao mostrar o sentido simbólico
conferido por si a cada um de seus objetos, parte indicativa de uma
possível coleção protegida da corrosão do tempo e do esquecimento,
Calle os lança ao público para melhor partilhar.
Assim:
A cama, o balde de plástico, a gilete, o prato de sobremesa, a
xícara de café, carta(2), cartas(3), cartas(4), cartas(5), tele star, o
telefone, a Polaroid, o lençol, a camisola de núpcias, o peignoir, a
gravata, a peruca loura, carta(1), o sapato vermelho, o salto agulha, a
pintura do século XIX...
São objetos para lembrar...
68
BLOM, 2003, p.194.
108
Outra forma de procura e conhecimento do eu é ocasionada pela
possibilidade de encontrar a si mesmo no Outro
69
.
69
BORGES, 2001, p.10.
109
Na obra de Sophie Calle, é interessante notar como, em cada
trabalho, propõe imaginar pequenas histórias que, talvez, jamais
aconteceram, narrativas que interligam as imagens, os objetos, e o outro
ausente.
Em seu processo de trabalho, a objetualização da memória
afetiva, valoriza mais o percurso do que a obra realizada em si. A
realidade nasce do ativar da memória. Falando de si através do outro
ausente, Calle institui uma ligação com o espectador prendendo-o
numa sedutora rede de apelos afetivos.
Ao expor fragmentos de sua vida, ela junta o autobiográfico ao
cotidiano, como se assim, ao exteriorizar seus segredos íntimos, conferisse
maior realidade aos seus relatos. Através dos jogos estratégicos da
artista, a partir das histórias criadas por ela, revivemos nossas histórias,
uma nova maneira de reinventar a vida/vidas, sonhos, numa sucessão
de movimentos que conduzem aos interstícios da memória.
O que seduz, o que envolve na obra de Calle, é sempre seu
percurso misterioso que é, ao mesmo tempo, um convite aberto ao
compartilhamento.
Imagens e textos são indissociáveis no trabalho de Calle. As
fotografias deixam aberturas a serem preenchidas pelo texto, sugerindo
mapas, caminhos a percorrer. Vêem-se claramente três instancias em
seus trabalhos: ação (o outro), galeria (espectador), livro (leitor). A obra
está em todas estas instâncias e ao mesmo tempo em lugar nenhum.
110
Então onde está a obra? Nesse movimento, nessa circulação. Atuando
através do ritual mágico do cotidiano, afasta a vulgaridade dos sentidos
de todos e promove a sensação de ver a realidade de fora.
111
3.
FALANDO DE AMOR, PARTILHA
112
ELIDA TESSLER E OS MATERIAIS DA VIDA:
COISAS QUE LEMBRAM
Os objetos vão contornando
a sombra, alforriando os pertences.
A memória é o hábito de trocar lençóis,
mas há manchas que permanecem
corroendo o tecido.
Carpinejar
Tal como uma mensagem numa garrafa abandonada aos
movimentos imprevistos das ondas, lançada ao mar por um náufrago
sem nome, na esperança de um encontro com uma outra vida que
soubesse da sua...
Tal como as mensagens em pensamento que os homens lançam
para as estrelas desde crianças, voando nas suas naves imaginárias,
que conduzem a outros mundos. Nem mais nem menos reais que este,
apenas outros...
Tal é a obra de Elida Tessler, pautada por esse movimentar
constante de caminhos possíveis, que regem nossa ingênua condição
113
de náufragos num vasto mundo, cujas leis desconhecemos, mas que
teimamos em lhes percorrer os segredos e as dobras, guiados pelo sentir
e pelo desejo de conhecimento que, desde sempre, secretamente nos
habita.
Talvez seja esse, seu íntimo propósito: ousar abrir uma porta que
ponha os movimentos cotidianos em comunicação. E, com isso, trazer
as idéias que ficaram guardadas na memória e no tempo para o
mundo da criação artística. Vê-se que, ao compartilhar o seu fazer
com os outros, a artista enuncia sua maneira de se acomodar no
mundo que a circunda.
Tessler é atraída pela acumulação de pequenas memórias.
Realiza um trabalho simples e, ao mesmo tempo alucinante. Seu
registro das coisas perdidas aponta delicadas tramas de significados
singelos. Essas coisas, objetos comuns que passam despercebidos aos
olhos que olham sem ver, trazem à tona uma sólida reflexão sobre a
passagem do tempo e a persistência da memória.
Trata-se de uma obra que se dá no interstício entre espaço e
tempo. Num ‘entre’ ínfimo, onde um ruído quase imperceptível reflete
sobre coisas que são ao mesmo tempo, inércia pregnante e motor da
memória. Rastro do que se foi. Presença apalpada na fresta do
imaterial
70
, como bem pontuado por Angélica de Moraes.
Na experiência diária sabe-se que o oxigênio assegura a vida,
mas este mesmo, condutor de vida, corrói, deteriora, enferruja ao longo
70
TESSLER, 2003, p. 7.
114
dos segundos, minutos, horas... os objetos, os corpos, que persistem a
viver. Este viver que não hesita frente à morte, que, ao contrário, a
recusa, pois a recusa da morte, a tentação do eterno, tudo [...] conduz
o homem a preparar um espaço de permanência onde possa
ressuscitar a verdade, mesmo se ela perece
71
.
Como o marco compassado dos ponteiros do relógio que, a
cada badalar, celebra o instante que se escoa. Nesse pequeno espaço
de tempo em branco se dá o fazer de Tessler. Ela celebra a corrosão
das coisas, catalisando o tempo passado que já é futuro, vestígio do
presente que sempre esvai. Ela diz: a noção de tempo, bem como a
de espera, está incluída em minha prática. Meu trabalho de ateliê
consiste em recuperar alguma coisa perdida. Uma perda essencial,
primordial. Uma perda que tem a cor específica da ferrugem. O gesto
primordial é o de depositar uma coisa sobre a outra e acreditar no
interstício de espaço e tempo
72
.
Nesta dupla fantasmática, espaço-tempo, um não substitui o
outro, mas, alternam-se, em eterna transformação, eram e passam a
ser, trata-se, pois, da idéia da permanência fugaz
73
, e porque não
pensar que este era passa também por este é? Este era passado passa
também por este é presente? Percebe-se então, que em qualquer
momento estamos no centro de uma linha infinita, em qualquer lugar
71
BLANCHOT, 2001, p. 73.
72
TESSLER, 2003, p. 26.
73
BORGES, Cinco visões pessoais, 2002, p. 69.
115
do centro infinito estamos no centro do espaço, já que o espaço e o
tempo são infinitos
74
, e junto a eles coabita a memória.
Cada um de nós, de um modo ou de outro, de maneira bem
particular, sente, percebe que o tempo estica, diminui, deteriora a
forma, a cor, a consistência das coisas... que ele não nasce da espera,
nasce do fim. Esse tempo que corre durante a noite quando se dorme,
que é passado, presente, futuro, que em qualquer momento está no seu
centro, um cento que corre, e desliza, sem que nada se possa fazer
para pará-lo.
Que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me
perguntam, eu ignoro
75
. Todos seremos capazes de dizer como Santo
Agostinho. Mas sabe-se que o tempo é algo de misterioso, e que com
ele carrega-se a memória. Antes mesmo que as coisas desapareçam
por completo na lembrança, Tessler recolhe-as e acolhe para depois se
despedir delas com afeto, pois, uma vez já circunscritos em sua
memória, não são como o pó que se esvai ao vento, mas como aquele
com que se faz o barro para criar o novo homem, que nasce e morre a
cada dia.
Evoco a passagem Bíblica: “Dois de cada espécie virão a ti, para
os conservares em vida”. Essa foi a tarefa de Noé
76
. Recordo tal
passagem aqui, uma vez que traz a metáfora da memória através dos
tempos, este topos é ‘fala’ constante nas obras da artista, que aparece
74
BORGES, 2002, p. 28.
75
SANTO AGOSTINHO. Apud BORGES, 2002, p. 62.
76
Citado em BLOM, 2003, p. 201.
116
na contramão dos objetos esquecidos. Ao vivificar, humanizar aquilo
que o homem descartou, restitui-lhes, resgata-lhes muitas horas vividas,
perdidas, desejados, realizadas ou frustrados.
Nestas movimentações, coisas pequenas, quase imperceptíveis,
ancoram as digressões na obra de Tessler. Esse centro que movimenta
vidas, como um trabalho de escavação permanente, consegue tocar
em algo além da exisncia humana; um trabalho de amor, um seguir
constante, um ritual.
Tessler, tem na literatura a matéria-prima para as narrativas de
seus trabalhos, aliás toda sua obra é sustentada por algumas palavras,
apresentadas em objetos e instalações. Palavras, em cada palavra,
todas as palavras
77
.
As palavras desorientam, e é assim nas obras da artista, que
trazem consigo sempre a apropriação de um texto, que ora pode ser
escolhido por ela, ou confiado à escolha a outros: filhas, amigos ou
conhecidos. Nos seus trabalhos há fragmentos de obras de vários
autores, dentre eles: André Breton, Guimarães Rosa, Darcy Ribeiro, T.S.
Eliot, Adélia Prado, Lewis Carroll, James Joyce, que com freqüência
escreveram/escrevem, estiveram/estão envolvidos poeticamente com
os movimentos cotidianos, com a poeira diária, através da experiência,
da memória, da história e da arte.
77
BLANCHOT, 2001, p. 67.
117
Como se vê, em suas obras há o envolvimento direto do ‘outro’
que, em todo lugar, é repetição do mesmo
78
. Penso que talvez seja uma
forma de Tessler, fundir o autobiográfico ao cotidiano alheio e assim
fazer uma rede de aproximações de vidas: uma rede de solidariedade,
de estima, de histórias íntimas, de lembranças, que traz consigo
reflexões, que questionam o ato de ver, que obrigam a movimentos de
pensamento sobre a relação do que é visto.
Ao utilizar tal estratégia do envolvimento direto do ‘outro’ em suas
obras, Tessler, também se apropria de objetos de uso cotidiano de
pessoas de seu círculo de amizade, e acaba por envolver-se com o
arquivo pessoal de cada doador. Tais objetos passam a ser um pouco
seus, de cada um, de todos. A apropriação não é nada mais que uma
nova produção de significados, em meio ao processo subjetivo que
constrói a inter-relação objeto-sujeito. Uma vez que, já abstraído de sua
função, o objeto é qualificado pelo sujeito que o conserva, cessa,
eno, de ser umlice, uma garrafa, uma meia, um sapato, uma
mesa, para se tornar algo que estabelece novas interações no mundo.
É interessante assinalar que a repetição é presente na obra da
artista. Em muitas delas, a atenção é chamada pela acumulação, ao
aproximar-se, se vê a singularidade de cada peça, como para reforçar
que cada uma, em particular, tivesse uma história a se revelar... histórias
dos passos, dos caminhos percorridos, desejados ou não, vividos ou
não, ou simplesmente sonhados, imaginados a circular. Neste sentido
78
FOUCAULT; DELEUZE, 1995, p. 98.
118
há que se pensar a repetição com o pronominal, encontrar o sI mesmo
da repetição, a singularidade no que se repete. Pois não há repetição
sem um repetidor, nem repetido sem alma repetidora
79
.
A repetição, como a vida, não é substituível porque não se dá
sempre da mesma forma, ela é um sempre re-repetir, um sempre
retomar, um eterno voltar em busca de algo que já tenha ocorrido. Só a
repetição possui a segurança serena do presente: com a repetição, a
existência anterior passa a existir agora, mas, exatamente por isso,
contém um elemento essencial de diferença que torna a experiência,
ao mesmo tempo, determinada e única
80
. É assim que o trabalho de
Tessler vai se tecendo, em busca de alguma forma de comunicação,
determinada e única, dos indivíduos com o simples e o fácil de tudo
que os envolve. Abrindo uma fresta, para um, um só que seja, respiro
íntimo, diante dos afazeres tortuosos que os dias nos reservam. Um
encontro com a memória.
79
FOUCAULT; DELEUZE, 1995, p. 97.
80
PERNIOLA, 2000, p. 30.
119
RECORDO-O
Lá no fundo está a morte, mas não
tenha medo. Segure o relógio com
uma mão, pegue com dois dedos o
pino da corda, puxe-a suavemente.
Agora se abre outro prazo, as
árvores soltam suas folhas, os barcos
correm regata, o tempo como um
leque vai se enchendo de si mesmo
e dele brotam o ar, as brisas da
terra, a sombra de uma mulher, o
perfume do pão.(...) E lá no fundo
está a morte se não corremos, e
chegamos antes e
compreendemos que já não tem
importância.
Júlio Cortázar
Recordo-o (verbo pronunciado por Jorge Luis Borges ao falar de
Funes, O Memorioso), atrevo-me, então, neste instante, a usá-lo para
falar de um pai. Recordo-o, os traços, as linhas do seu rosto forte e
sempre corado. Recordo-o, possuía algo de muito singular no olhar.
Rosto severo, que não escondia o amor de ser, e que não voltarei a ver,
a tocar. Recordo nitidamente sua voz, de poucas palavras, gesticulava
ao falar.
120
“Numa certa ocasião...”, era assim que o pai prendia a atenção
de todos que o circundavam, quando começava a narrar cada história
de suas memórias no tempo. Memórias advindas da infância difícil,
quando, após perder os pais muito cedo, ficara a cuidar dos nove
irmãos; também do período de quatro anos de sua adolescência que
passou no seminário de Diamantina; ou mesmo jovem adulto, operário
da fábrica de tecidos; dos causos de suas tias mais velhas; dos
lugarejos do Norte de Minas, onde, em meio às trilhas de trem, seguiu
seu caminho até se aposentar.
Homem de hábitos simples, qualquer coisa, mesmo a coisa mais
ínfima, era o bastante. Uma camisa, cueca samba-canção, meias,
lenços alvos de algodão, cinto de couro preto, sapato vulcabrás,
gravata preta de elástico, blusa do seu time favorito, pijama velhinho,
sandálias em couro fechadas nas laterais com abertura na frente, seu
radinho de pilha, sua lanterna, canivete, fumo, palha, óculos de aro
preto, relógio de pulso Oriente.
Lâmpada de querosene, lanterna para sinalizar. Como Agente
Ferroviário, de noite, trabalhava a telegrafar ao longo de anos
enviando mensagens para que os trens seguissem suas trilhas em paz;
de dia dormia. A vida dentro da família, da religião, da leitura, mais sua
máquina de escrever, a estação de trem, os trilhos que se seguiam
como suas caminhadas matinais preenchiam seus dias.
O tempo ensinou-lhe algumas astúcias: evitar multidão, que lhe
causava fobia; evitar ter muitos amigos, poucos, mas sinceros; evitar
121
bebedeira, — uma boa pinga agradava quando degustada em sua
cuia da casca do côco, em casa —; evitar empréstimos, tudo à vista
era melhor, não havia fadiga; evitar a cidade, a lua na roça brilhava
mais; evitar muita eloqüência, poucas palavras mas sábias; evitar a
distância, perto o cheiro é vivo; evitar luxos materiais, não levaria nada
consigo quando partisse.
“Numa certa ocasião...”
Am das historias que trago comigo a partir de seus relatos, e dos
poucos objetos de sua predileção, de que me apropriei, sempre ao
repetir a frase do pai, sou um pouco ele, a memória que deixou
“numa certa ocasião...”
Sua distração ao dirigir: o modo como às vezes isso se tornava
apavorante. Sempre achei que uma batida é que ia acabar com ele.
Por outro lado, sua saúde era tão boa que parecia invulnerável,
imune aos males físicos que afligiam o resto de nós. Como se nada
pudesse jamais tocá-lo
81
.
81
AUSTER, 1999, p. 38.
122
A recordação mais remota: a ausência.
Durante anos, o pai saía de casa, todo dia, de madrugada,
quando a filha ainda dormia, e voltava por volta das seis da manhã
quando a despertava para ir à escola. Ele não vinha só, seu assovio
desafinado podia ser percebido ao dobrar a esquina de sua residência,
localizada em um beco que hoje leva seu nome. O banheiro era o
primeiro cômodo da casa a ser por ele visitado. O ritual diário de se
lavar e pendurar sua calça de caminhada atrás da porta, era sagrado,
para, só as, fazer seu desjejum. Em seguida pegava seu rosário e ia
para o alpendre fazer suas orações.
Desde cedo, ao que parece, a filha estava em busca do pai,
freneticamente à procura de se parecer com ele, ou estar com alguém
que com ele se parecesse.
Sabe-se que durante os trinta e três dias em que o pai se ausentou
lar para se tratar do coração, a calça ficou ali suspensa atrás da porta
do banheiro esperando-o retornar. O fato é que ele não mais voltou. A
primeira coisa que a filha viu após sua partida, foi a calça pendurada
no lugar de sempre, era como se ali ele estivesse. Aquele objeto a fez
tremer.
Agora, a calça de tecido cinza azulado não está mais lá, foi a
pedido, doada a um fiel amigo que continua a caminhar.
123
OBJETOS PARA LEMBRAR
Inda
82
, 1996, assinala o início da exposição Vasos Comunicantes,
de Elida Tessler, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em
2003. Constituída por meias de nylon que pendem ao fundo de uma
ampla sala, sobre um extenso espaço em branco da parede.
A intrigante imagem das meias movimenta a mente, o sentir... por
segundos tem-se a sensação de que o chão falta...
Sei que não eram meias quaisquer, eram meias de sua mãe já
falecida. Pareciam parte de um acervo pessoal, que a acompanhara
durante uma vida. O que significava? O que significavam para a filha
que delas se apropriou? As meias, leves e delicadas da mãe, um
zumbido de lembrança, pensamento sobre as meias, agrupadas como
um só corpo, em formas e cores, imperceptivelmente movediças, as
figuras variando como num caleidoscópio. São meias finas!
As meias, suspensas lado a lado, nos recebem... com um silêncio
de cortar com foice. A ausência é evidenciada a partir da presença
infinita do que permanece radicalmente ausente, presença sempre
infinitamente outra em sua presença, presença do outro em sua
alteridade: não presença
83
.
82
Inda é palavra do dialeto ídiche, que significa ainda é, apropriada pela artista que tira partido
tanto do significado do termo quanto da semelhança fônica com o nome de sua mãe Ida. Nome
que potencializa uma série de significações: a que se foi, a que ainda é, etc
83
BLANCHOT, 2001, p. 80.
124
125
Digo aqui: manifestar a presença do sensível, o Sagrado, que é a
presença imediata, é este corpo que passa, mas que é seguido e
apreendido , até a morte, pelo homem.
Mas agora amanhece! Eu esperava, eu vi chegar,
E o que eu vi, o Sagrado seja minha palavra
84
.
Talvez seja pelo afã de desvendar os sentidos das coisas, que a
coleção seja o fio condutor que liga a memória à lembrança de fatos,
pessoas, lugares. Ou um dizerainda é e umnão mais é. Em Inda,
de Tessler, o lugar de onde nascem estas negações pode ser visto,
sentido, através do caminho das imagens das meias, ou melhor do que
se sabe ver nelas.
84
BONNEFOY, Ives. Apud BLANCHOT, 2001, p.81.
126
A coleção, ao contrário, pode nos servir de modelo, pois é nela
que triunfa este empreendimento apaixonado de posse, nela que a
prosa cotidiana dos objetos se torna poesia, discurso inconsciente e
triunfal
85
.
Quando Elida Tessler guarda e exibe as meias de sua mãe, talvez seja
para continuar os passos, a experiência da mãe, talvez, não faz mais do
que desenrolar as idas e vindas de um desejo, que ela apresenta e
representa sem fim
86
.
Volta à pergunta: e para os que se envolvem ao vê-las, cores e
formas recorrentes que sustentam a unidade do conjunto das meias, o
que significa? Nesta rede de sentidos, os signos se misturam e não se
pode especificar o valor pessoal, sabe-se, pois que histórias afastadas
umas das outras, tornam-se próximas, por mais distantes que estejam e,
misteriosamente compreende-se o que têm em comum uns com os
outros, no emaranhado de acontecimentos da vida diária, com as
histórias de nossos fantasmas.
85
BAUDRILLARD, 2004, p. 95.
86
BARTHES, 1978, p. 44.
127
A história, enfim, que as meias contam, é a história de todos os
fantasmas de um fantasma, o corpo humano. Sua ausência não igual a
sua falta, pois a ausência enuncia uma presença.
1. Calça
[...]
o lugar do Pai, sempre morto, como se
sabe; pois só o filho tem fantasmas, só o
filho está vivo
.
Barthes
14/11/2004 12:29h
... e pendurou a calça. Imediatamente após, reconheci o assovio que
vinha do banheiro... Acabara de chegar de sua caminhada matinal. A
roupa excitava-se ao deixar a eletricidade do corpo, inquietava
freneticamente a parede de azulejo por detrás da porta que a
abrigava durante o resto do dia. Era atração para os olhos, assim que a
fresta de sol trazida pela pequena janela de vidro projetava a sombra
da calça. Sombra se espichava até o canto da parede, e chegava a
ultrapassá-la, tão comprida ficava. O espelho que a refletia inquietava
o pequeno ambiente, parecia multiplicar o número de calças... Será
que os espelhos multiplicam o número dos homens? Confesso que senti
um certo desconforto. A calça... O espelho... A sombra... Bem, passara
128
a imaginar que a sombra era o único ser vivo que se avistava por lá. O
que está acontecendo aqui? Mas que é isso? De fato, coisa simples não
o é! Mas mesmo tampouco se conta entre o simples e eu, como sei
muito bem, desde muito, sigo suas pegadas, preparando-me para
seguir meu próprio rumo. Tinha me recordado, vi coisas... Mas como são
as coisas?
Coisas que se transformam em outra coisa, a eterna idéia da
permanência do fugaz, o que não há que ser substituído, faz-se outro.
É fato que nosso universo está repleto de coisas, objetos a nos
circundar. O nosso pensar e o nosso afeto passam por eles. O nosso
sentir não os ignora. O nosso agir acostumou-se a lidar com eles. Uns
acham-nos necessários, outros excessivos, outros ainda supérfluos. Mas
cada olhar esconde um ser, um modo de sentir, de estar, modos de
pensar. Por isso, o objeto amoroso seja doado ou guardado, varia de
pessoa para pessoa, seu valor só pode estar, se não na utilidade, no
significado; significam algo, representam algo...
87
87
BLOM, 2003, p. 192.
129
2. Fio de seda
Em meio às coisas da vida, Inda têm suas narrativas encerradas
em meio aos fluxos da memória vivida e da memória lida, os fluxos do
tempo. As meias parecem estar num eterno seguir para além de um
tempo determinado. Possuem um movimento que parece um relatar de
histórias que não se repetem e que estão sempre a se tecer, geram
assim inquietantes semelhanças aos hábitos da vida cotidiana.
O andar das meias da mãe de Elida Tessler elucida um perpetuar
dos atos de sua vida, como os fios tecidos pela aranha. A aranha que
não se cansa de fiar, permanece a tecer a presença, a lembrança do
amanhã. A aranha que como a mãe, sempre deixa um rastro de fio de
seda enquanto caminha, e por esse fio fica suspensa quando cai, por
ele volta a subir... Tais fios de seda também envolvem seus alimentos,
alimentos da vida e remetem à linha da vida, tecida, esticada e
cortada pela morte. Morte que Aracné, transformada em aranha por
Palas, desafiou ao rivalizar com um deus.
Morte que como os fios de seda, agora teia, peça já tecida —
como as meias maternas de Elida Tessler — indicia a transformação
ininterrupta da existência, arrasta ilusões, a pensar acerca das coisas:
verdade/mentira, bem/mal, beleza/fealdade, presença/ausência,
vida/imortalidade.
130
Inda, são corpos sem matéria, sem movimento? Objetos que
animam o olhar, coisas sensíveis a se resguardar, é uma
presença/ausência; eu próprio como coisa, ainda meu ser mas no
estado de objeto
88
.
Por que as meias estão ali aparentemente inertes? Uma inércia
que não cabe no intrigante objeto pessoal, mas o frenético movimento
que, como o tempo, parece não cessar, suprime as distâncias entre a
ordem do visível e da experiência, abre um espaço para se consignar
histórias. Ao sair do segredo e da esfera privada, o objeto passa a ser
submetido a novas interpretações.
Na verdade os objetos desempenham um papel regulador na
vida cotidiana, neles são abolidas muitas neuroses, anuladas muitas
tensões e aflições, é isto que lhes dá uma “alma”, é isto o que os torna
“nossos”
89
, compreendemos melhor nossos medos, nossas perdas que
são sempre singulares e absolutas.
88
DEBRAY, 1993, p. 29.
89
BAUDRILLARD, 2000, p. 95.
131
Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos
90
.
Velar, encobrir ou negar muitos desejos? Ou um tempo que
escorre nas coisas que sempre deslizam seu significado primeiro.
Lembrar.
Vê-se na coleção de meias de nylon de Elida Tessler: a lembrança
é ao mesmo tempo tênue e presente. Tão tênue como os fios tramados
da meia, mas muito sólida, fixada na filha. Esquecidas num
compartimento secreto, para que, num tempo certo, possam ser
redescobertas. Para Borges, no esquecimento concretiza-se — de
maneira assustadora, inquietante —, o tempo que escorre
91
.
Será que os fios tramados não se deslocam na captura de um
tempo que se vai?
90
BORGES, O Livro de Areia, 2001, p. 52.
91
BORGES, Apud WEINRICH, 2001,p. 288.
132
[...] a coleção representa o perpétuo reinício de um ciclo
dirigido onde o homem se entrega a cada instante e com absoluta
segurança — partindo não importa de que termo e seguro de a ele
voltar — ao jogo do nascimento e da morte
92
.
As meias de seda, mornas e íntimas, modelam, embelezam,
protegem, — um invólucro de movimentos que se fizeram, dos passos
que se perderam. Elas já não estavam guardadas em gavetas,
acondicionadas em saquinhos de algodão perfumado, livres de serem
desfiada. As gavetas dos armários e cômodas já não as cabiam,
estavam agora expostas, para serem vistas. Como a dizer que é preciso
continuar a se deslocar em direção aos sonhos, aos lugares
inesperados, aos espaços de poesia, que tornam presente o ausente.
Levam a um profundo silêncio, um silêncio abissal, diante da mãe que
92
BAUDRILLARD, 2000, p. 103.
133
não mais está, há somente a sua imagem: A imagem que é tida como
filha da Saudade
93
.
3. Meias de seda: Ida, inda, ainda.
As meias estavam penduradas na parede da extensa sala.
Dócil parede totalmente branca.
Iluminavam o piso cinza escuro.
Eram meias de seda, em cores e tamanhos diferentes.
Como que se cantassem fora das gavetas de armários, ou
cômodas, estavam ali penduradas, lado a lado, livres, para serem
vistas.
Há que ter desprendimento para mostrá-las.
Dias, anos... sessenta e nove meias, sessenta e nove caminhos de
uma memória a se contar, partilhar.
Horas, minutos... 69. 69 meias de seda, peles, lembranças,
desejos, choros, risos, atropelos, saudade, realizações, vidas... 69
meias, suspensas entre o céu e a terra. É um novo corpo, um novo
corpo sensível cuja forma não é imóvel, porque a presença
93
DEBRAY,1993, p. 38.
134
sacramental é viva, e “um movimento sempre recomeçando... que vê
claramente como a forma é apenas um aspecto daquilo que existe”
94
,
que ainda é.
As meias-finas antes guardadas, estão agora ali vivificadas,
alinhadas em meio a parede, dando passos que não querem parar,
como se a gravidade fosse pouco para as sustentar.
À distância, vê-se uma nuance de cores, cor de carne, cor de
terra, cor de pó, cor de luz, cor de tempo, — uma cortina que se quer
tocar, atravessar.
Algumas meias parecem barrar a luz, outras, ainda mais
timidamente alegres, como um véu transparente, deixam a luz passar
por uma abertura que não há, pois perto não há porta, não há janela,
parece não haver nem uma corrente de ar, mas há algo que se quer
encontrar. Encontrar uma fresta aberta a um mundo todo particular,
uma memória afetiva a compartilhar.
Objetos prediletos, peças de uma possível coleção, apropriadas
e preservadas por um elo de afeição possibilitam a proteção da
memória frente ao esquecimento em meio às tramas da vida.
Nas delicadas peças, há veias e sangue a circular, ternos
movimentos de um corpo impulsionando os sentidos de um outro corpo
a buscar-se , um corpo-memória-tempo.
Nas meias estão presentes marcas incisivas como marcas nas
páginas de um livro de cabeceira — grifos sagrados —, um lembrete
94
PERNIOLA, 2000, p. 111.
135
imperioso a não se esquecer, em meio aos espaços incertos e brumosos
flutuantes entre o vazio do céu e da terra.
As meias, parecem estar ali como monumento à mãe, um
memorial de afeto eterno a se lembrar.
[...] o cheiro e o gosto das coisas continuam em suspenso por
muito tempo, como almas, prontas para nos fazer lembrar...
95
95
PROUST. Apud BLOM, 2003, p.161.
136
A MEMÓRIA É UM QUARTO DE QUATRO PAREDES
[...] “coisas entre as coisas”, todas
estranhas umas às outras, todas
familiares e enigmáticas, em lugar
de um universo de sujeitos
comunicando-se todos uns com os
outros, todos transparentes uns aos
outros.
Jean Baudrillard
A memória é um quarto de quatro paredes, uma janela e porta,
no fundo do quintal. Um cômodo, apartado da casa de minhas
recordações, é, agora, derrubado o galinheiro que tinha ao lado, um
único e grande espaço, onde está a cozinha da casa de meus pais.
Muitas pessoas guardaram muitas coisas ali… O tempo da memória se
localiza num agora, num presente do narrador
96
.
Costumava ficar neste quarto a brincar parte do meu dia. Ele
funcionava como despensa, depósito da casa. Havia uma prateleira
96
CASTELO BRANCO, 1994, p. 32.
137
com os alimentos da família, entre compotas e quitandas; em outra,
materiais de limpeza que não ousava tocar. Um armário que fora da
minha avó paterna, apoiado embaixo da pequena janela em madeira,
abrigava livros, objetos de pescaria, ferramentas; e sobre ele, um galo
em madeira feito sentinela. Em um outro canto do ‘quartim’ — era
assim chamado —, ficavam utensílios, eletrodomésticos que há muito
não saiam dali para exercer qualquer função. Lembro-me de um
escovão, que era meu cabideiro da casa de brincar, de um lampião a
gás, que era meu lustre de cristal, de um tapete enrolado que era
minha cama.
Conhecia todos os pormenores dos cantos e recantos, de cada
caixa, gaveta, prateleira. Sabia de tudo, desde a caixa de pregos, ao
pote de frutas cristalizadas.
Durante muito tempo aquele pequeno lugar foi o meu recanto
favorito, costumava me unir às coisas abrigadas nele e tecer histórias
que só eram interrompidas ao soar das seis horas, quando ouvia a suave
voz da minha mãe a me chamar para o banho e, após, lanchar.
Fixei na memória meu ‘quartim’ que hoje já não há, mas gravei a
precisão do lugar e das coisas que abrigava, sentindo que voltaria
sempre a ele, a fim de buscar algo esquecido.
138
UM CORREDOR, UM ESPAÇO ESTREITO E COMPRIDO
(...) Quantas coisas.
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Servem-nos, como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que partimos em um momento.
Jorge Luis Borges
Um corredor, um espaço estreito e comprido, fechado por três
lados, só uma porta para entrar, e um lustre para iluminar. É nessa sala
que estão dispostos os objetos da instalação de Elida Tessler, Doador,
1999, exibida na II Bienal do Mercosul em Porto Alegre.
Objetos que a partir da apropriação e da colaboração de
amigos, familiares, conhecidos, mapearam um momento de dor da
artista, quando ao remexer o guarda-roupa de sua mãe falecida,
deparou-se com muitas, muitas coisas que ela guardara. Estava
rodeada por um acúmulo de coisas, muitas coisas vivas e mortas, e
mortas que haviam vivido. Acariciava-as com olhos cautelosos. Viveu
cada desejo seu ali, sentia como se o pensamento entrasse nas coisas.
139
140
A dor fez com que Tessler, compartilhasse, naquele momento, a
delicadeza de uma memória familiar ao envolver o ‘outro’ em seu
processo de trabalho. Solicitou aos amigos a doação de um objeto cujo
nome devia incluir a palavra dor. Iluminados através da lembrança, os
objetos oferecidos por cada doador, foram chegando até à artista, que
assim mostrou sua coleção, a partir de sua vida emaranhada no rastro
de outras vidas. Histórias que se fizeram, histórias que se fazem a partir
dos fragmentos de todos os sentidos, sentimentos particulares de cada
um, pessoa-objeto.
Neste sentido, cada doador passa a ser um colecionador, que
coleciona ao desfazer-se de coisas, uma vez que recebe o sentimento
de quem os recebeu. Tessler não só deles se apropriou como os
compartilhou, outra forma de colecionar, estendendo-a a uma possível
comunhão com o mundo para se tornar parte dele. Cada coleção é
um teatro da memória, uma dramatização e uma mise-en-scène de
passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da
lembrança após a morte. Ela garante a presença dessas lembranças
por meio dos objetos que evocam
97
.
Cada objeto pregado nas paredes do corredor, não é senão o
vestígio deixado pela desaparição de todo o resto
98
, do desuso comum
das coisas, que se não servem para mais nada, apenas fazem uma
ponte de lembranças de uma dor, de um luto.
97
BLOM, 2003, p. 219.
98
BAUDRILLARD, 1997, p.34.
141
O objeto, neste caso, evidência a dor da falta que causa aquilo
que esteve ali, mas agora não está mais. Reforçada na ausência da
mãe, presente em cada detalhe, reforçada na palavra que nomeia os
detalhes das peças com o sufixo dor.
Reconstruir, a memória, como uma rede de doações, a partir de
seus fragmentos, e seguindo sua linha quebrada, suas linhas de fratura,
a forma mais secreta do Outro
99
. O outro, o mundo, o objeto, de onde o
ser se retirou...
Cada objeto que é incorporado a nossa vida, seja pelo caráter
de possuir ou de entrar no universo de nossas referências particulares,
perde seu valor utilitário e adquire outro, agora “objeto puro”
100
,
privado de sua função ou uso, torna-se outro, configura-se como a
presença ativa do ser, de uma vida de lembranças. Borges acreditava
que as coisas concretas permaneciam para além do nosso
esquecimento, neste sentido inventariou-as e catalogou-as como
maneira efetiva de manter viva a memória do mundo.
99
BAUDRILLARD, 1997, p. 34.
100
BAUDRILLARD, 2000, p. 94.
142
No entanto a imagem dela permanece ligada à do banco, para
mim, não o banco da noite, mas o banco do anoitecer, de modo que,
falar do banco, tal como eu via o anoitecer, é falar dela, para mim. Isso
não prova nada, mas não quero provar nada
101
.
Corredor
Assim doador, com: pregador, aspirador, coador, secador,
espanador, ralador, apagador, batedor, regador, ventilador,
liquidificador, bastidor, amolador, prendedor, ebulidor, medidor,
computador, babador, abridor, escorredor, despertador, moedor,
espremedor, transformador, apagador, barbeador, aquecedor,
apontador, marcador, passador... acondicionados num corredor
compartilhador.
101
BECKETT, 2004. p. 6.
143
144
A obra de Elida Tessler dispõe as coisas uma ao lado da outra, de
forma que as bordas que as limitam se transformem em passagens para
outras entidades, também encerradas em si mesmas: a memória, o
autobiográfico, o tempo, o espaço, a morte, a vida.
Valoriza o humano, o apreço que sobeja das coisas perdidas,
mesmo as mínimas ganham da artista um tratamento amigo,
assoprando novos significados, conferindo-lhes, por força da
proximidade, qualidade de um conjunto de fragmentos, que é dado a
vida.
Traçando uma trilha afetiva do espaço, sentimentos se fundem na
repetição, na escrita, na presença, na ausência e no envolvimento
direto do outro, como “vasos comunicantes”, interessa-lhe o caminho
construído peça por peça, não a chegada
102
.
Seu fazer, gravita em torno do universo cotidiano, segue por
caminhos movediços, resgata, registra, cotorna todos os seus espaços
vazios. Vazios, que permitem falar do sujeito da memória: o homem.
Com sutileza e sensibilidade, consegue recolher do mundo tudo
que está à margem, nada menos do que os desejos, os temores, as
caras, as intimidações, as aproximações, as ternuras, os protestos, as
desculpas...
103
chama-nos a atenção para um lugar para onde
converge a vida. Não a minha, a dela, a tua vida, mas a vida como
força suprema que habita o coração dos homens.
102
MANGUEL, 2005, p. 59.
103
BARTHES, 1978, p. 32.
145
146
Me ajudaram, mais do que você possa
acreditar, vivos e mortos tiveram sua maneira
de convidar-me a andar ao seu lado, me
mostraram caminhos que eu sozinho não teria
nunca percorrido. Me deixaram viver perto
deles, me deram de presente coisas, atente
que é por isto que este livro é como uma casa
na qual vivemos todos juntos e na qual cada
um adota móveis e janelas e latas de sardinhas
e garrafas e guitarras e sapinhos e sobretudo
uma tendência geral a não se sentar nas
poltronas, a não comer na mesa, a ler no
banheiro e a tomar banho na biblioteca,
supondo que houvesse uma.
Cortázar
147
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