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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
MESTRADO EM LETRAS E CULTURA REGIONAL
GREICE TOMASI
LEITURAS NA FRONTEIRA: UM ESTUDO SOBRE A
RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA NAS OBRAS
DE CALDRE E FIÃO
Orientadora: Profa. Dra. Marília Conforto
CAXIAS DO SUL
2006
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2
GREICE TOMASI
LEITURAS NA FRONTEIRA: UM ESTUDO SOBRE A
RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA NAS OBRAS
DE CALDRE E FIÃO
Dissertação apresentada para a obtenção do
título de Mestre, na Universidade de Caxias
do Sul.
Orientadora: Profa. Dra. Marília Conforto
Caxias do Sul
2006
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3
DEDICATÓRIA
Para Maria do Carmo, Sandro e Laura, as
pessoas que tanto amo.
4
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Marília Conforto, orientadora
desta pesquisa, pelo incentivo, pela
colaboração e amizade.
5
RESUMO
O presente trabalho aborda uma reflexão crítica sobre a leitura da história no texto
literário e insere-se na linha de pesquisa Região e Regionalidade, pertencente ao Programa de
Pós-Graduação Mestrado em Letras e Cultura Regional da Universidade de Caxias do Sul.
Nosso objetivo foi de explicitar, de forma crítica, a fronteira existente entre o historiográfico
e o literário, a partir do deslocamento da narrativa da história nas obras A Divina Pastora e O
Corsário de José Antonio do Valle Caldre e Fião.Detivemo-nos em apontar a importância dos
romances de Caldre e Fião para o entendimento do quadro histórico da literatura brasileira e
gaúcha; analisar criticamente o deslocamento discursivo sobre: a Revolução Farroupilha, a
escravidão e o contrabando; evidenciar o moralismo de Caldre e Fião como pano de fundo
característico no desenrolar de suas narrativas e analisar a construção do herói e do vilão nos
romances escolhidos.
6
ABSTRACT
The present paper approches a critical reflexion about the reading of the history on
literay text and it fits in the Region and Regionalism research, which is part of the
Postgraduation and Master degree programs in the courses of Letras and Cultura Regional
from Universidade de Caxias do Sul. Our objective was to make it explicit, critically, the
boundaries between what is historiographical and the literary, from the shifting of the history
narrative at the works A Divina Pastora and O Corsário de José Antonio do Vale Caldre e
Fião. We kept our attention in showing the importance of Caldre's and Fião's novels for the
understanding of the historical scenario of the brazilian and gaúcha literatures. To critically
analyse the communicative shifting about: Farroupilha Revolution, slavery and smmugling; to
evidence Caldre's and Fião's morality as characteristical back cloth when developing their
narratives and to analyse the heroe and villain construction on the chosen novels.
7
PALAVRAS CHAVE: literatura história fronteira regionalidade- Caldre e Fião A
divina pastora – O corsário
KEYWORDS: literary history boundaries regionalism Caldre e Fião A divina
pastora – O corsário
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA .......................................................... 26
2.1 Fronteira entre literatura e história ............................................................................... 37
2.2 Narrador e personagens ................................................................................................ 38
3 A LITERATURA NARRA A HISTÓRIA .......................................................................... 44
3.1 A Província de São Pedro ............................................................................................ 50
4 REVOLUÇÃO FARROUPILHA, CONTRABANDO E ESCRAVIDÃO: HERÓIS
E VILÕES ................................................................................................................ 70
4.1 O contrabando .............................................................................................................. 75
4.2 A escravidão .............................................................................................................................. 77
4.3 Heróis e vilões ........................................................................................................................... 80
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 88
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 96
ANEXOS ............................................................................................................................. 101
A – ................................................................................................................................... 102
B – ................................................................................................................................... 103
C – ................................................................................................................................... 104
D – ................................................................................................................................... 106
9
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa faz uma reflexão crítica sobre a leitura da história no texto literário,
dentro da linha de pesquisa Região e Regionalidade.
Acredita-se ser importante a contínua formação do profissional que trabalha com
educação. Atuando na área da educação como professora e como coordenadora de ensino,
sentiu-se a necessidade de avançar na reflexão teórica, no sentido de transitar por outras áreas
do conhecimento, procurando introduzir, no cotidiano de trabalho, perspectivas teóricas
interdisciplinares, oportunizando ao aluno o diálogo interdisciplinar como possibilidade de
análise nas práticas pedagógicas e de pesquisa.
Escolheu-se o tema com o objetivo de explicitar, de forma crítica, a fronteira existente
entre o historiográfico e o literário, a partir do deslocamento da narrativa da história nas obras
A divina pastora e O Corsário, de José Antonio do Valle Caldre e Fião. Os objetivos
específicos foram: apontar a importância dos romances de Caldre e Fião para o entendimento
do quadro histórico da literatura brasileira e gaúcha; analisar criticamente o deslocamento
discursivo, sobre a Revolução Farroupilha, a escravidão e o contrabando; evidenciar o
moralismo de Caldre e Fião, como pano de fundo característico no desenrolar de suas
narrativas, e analisar a construção do herói e do vilão nos romances escolhidos.
Traçados os objetivos, partiu-se então para a formulação de hipóteses. E alguns
autores foram importantes à sua construção. A partir da leitura da pesquisa de Bernd,
1
ao
escrever que qualquer leitor sensível é capaz de distinguir um texto historiográfico de um
texto literário, porque cada um deles é regido por uma convenção diferente, ou seja, a
convenção de veracidade e a convenção de ficcionalidade, foram estabelecidas as bases para
1
BERND, Zilá. O maravilhoso como discurso histórico alternativo. In: LEENHARD, Jaques; PESAVENTO,
Sandra Jatahy. Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Unicamp, 1998. p. 128.
10
a construção da hipótese. Ainda segundo a autora, quando convenção de veracidade, o
enunciador se compromete com o dito pelo discurso e pela espera que seu discurso seja
tomado como verdadeiro. Nesse caso, o enunciador fica exposto ao erro. Quando
convenção de ficcionalidade, o enunciante não se compromete com a verdade do dito pelo
discurso, nem com o fato de seu discurso ser tomado como verdadeiro, não ficando, pois,
exposto ao erro.
Do exposto acima, formularam-se duas hipóteses:
1) A literatura, por ser da ordem da ficção, pôde dizer, ou seja, criticar, aspectos
histórico-sociais. A história, ao contrário, é ciência, é método, é verdade e por
isso seu discurso muitas vezes representa o poder. Assim, em alguns momentos,
o discurso literário se antecipa, deslocando para a narrativa ficcional questões
que tradicionalmente seriam abordadas no âmbito do discurso histórico, social e
econômico.
2) Como um gênero de ficção, a literatura pôde, também, antecipar-se ao discurso
histórico, deslocando as vozes sociais que, em sua narrativa, construirão os
personagens. É através do narrador e da voz dos diversos personagens que a
crítica às questões sociais importantes naquele momento se tornaram evidentes.
Além disso, o narrador conta também com o discurso moral e o tom severo da
narrativa para ratificar suas crenças defendidas ao longo da ficção.
Delimitadas as hipóteses de trabalho, partiu-se, então para a revisão bibliográfica,
que seria necessária para o diálogo interdisciplinar que se estava propondo. A bibliografia
revisada contempla dois âmbitos: a vida e obra de José Antonio do Valle Caldre e Fião e os
estudos a respeito da fronteira existente entre o historiográfico e o literário. A análise
configura-se como pano de fundo daquilo que se pretende mostrar com esta pesquisa. Para
apresentá-la optou-se pela divisão de suas temáticas.
a) Sobre a vida e a obra de Caldre e Fião
Muitas foram as obras analisadas sobre a vida pessoal e pública do autor em tese e,
dentre elas, elegeu-se a obra de Aquiles Porto Alegre, Homens ilustres do Rio Grande do Sul,
2
como a mais enriquecedora e clara a respeito de sua vida. Guilhermino Cesar, em
2
ALEGRE, Aquiles Porto. Homens ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Typographia do Centro, 1916.
(Coleção Especial Laudelino Teixeira de Medeiros).
11
Fundamentos da cultura rio-grandense, no artigo publicado sob o título “O criador do
romance gaúcho”, retrata Caldre e Fião nos mesmos moldes de Aquiles Porto Alegre. Além
de fazer comentários a respeito dos romances publicados e protagonizados, o mesmo autor,
em História da literatura do Rio Grande do Sul, no capítulo “O criador do romance”, além de
localizar Caldre e Fião entre os romancistas do cenário brasileiro da época, dedica um amplo
espaço para evidenciar passagens da obra O Corsário, pois de A divina pastora nada mais foi
encontrado naquele momento.
Seus romances foram esquecidos; constituem hoje raridade bibliográfica, bastando
dizer que não os encontramos na Biblioteca Nacional, nem no Gabinete Português
de Leitura. A Biblioteca Pública de Porto Alegre, a Biblioteca Riograndense e a
Biblioteca Pelotense também não possuem um exemplar de A Divina Pastora.
Pudemos, contudo, localizar um exemplar de O Corsário na biblioteca particular de
um amigo.
3
Lothar Hessel, José Augusto Medeiros Pereira e Antônio Carlos Machado, jornalistas
do jornal Correio do Povo, também dedicaram atenção à Caldre e Fião em momentos
marcantes de sua vida profissional.
CORREIO DO POVO, 28 DE AGOSTO DE 1963
Título da reportagem: Caldre e Fião
Escritor: Lothar Hessel
É deveras curioso como um homem da envergadura de José Antonio do Valle Caldre e Fião caia
em tão geral esquecimento entre seus conterrâneos, menos de um século após sua morte.
Escritor, médico, parlamentar, poeta, jornalista, orador e abolicionista, salientou-se em cada um
desses setores. Foi dos primeiros que no Brasil se insurgiram contra a escravatura, dirigindo
mesmo a primeira campanha no sentido de sua abolição e que se vitoriou com a promulgação da
Lei Eusébio de Queirós (1850) que proibiu definitivamente o tráfico de escravos. E influiu
decisivamente através dos moços do Partenon Literário, para a eclosão da segunda etapa, a qual
culminou com a Lei do Ventre Livre em 1871.
[...]
No arquivo público deparamos com o testamento do escritor: ‘Em nome da Santíssima
Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas distintas e Deus verdadeiro. (sic)
Declaro que sou católico, apostólico romano, e que nesta religião desejo morrer, encomendando
minha alma à Igreja e à misericórdia infinita de Deus [...]
4
CORREIO DO POVO, 7 DE JANEIRO DE 1978
Título da reportagem: A divina pastora e a Escravidão
3
CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1955.
4
HESSEL, Lothar. Caldre e Fião. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 de agosto de 1963. (Ver Anexo C).
12
Escritor: José Augusto Medeiros Pereira
[...] Conclui-se assim que o escritor que, como jornalista combatia a escravidão, que, como
poeta, não esquecia o sofrimento dos pobres negros, através do romance, no caso, A divina
pastora, retratou a vida sofredora dos cativos. E, na opinião dos adversários, de forma insidiosa
para penetração popular, com arte. Estabelecido o caráter social abolicionista da obra, estravasa
ela do interesse meramente literário e cumpre situa-la como o primeiro romance e mais do que
isso, cremos, a primeira produção literária inspirada no drama da escravidão.
5
CORREIO DO POVO, 15 DE ABRIL DE 1978
Título da reportagem: O Elogio Dramático ao Príncipe D. Pedro, de Caldre e Fião
Escritor: José Augusto Medeiros Pereira
[...] E pode-se afirmar que neste pequeno trabalho, sem maiores pretensões, Caldre e Fião saiu-
se muito bem, pois em versos bastante aliviados de carga arcádica (e arcaia ...), numa concepção
que apresenta aspectos ora dramáticos, ora de grande delicadeza e singeleza, enfrentou e
realizou umnero difícil, quase estéril à inspiração poética da época em que foi escrito. Pode-
se, no entanto, fazer restrições à autenticidade do indígena, que declama como um homem
branco ilustrado. Mas acaso escaparam Alencar e Gonçalves Dias deste processo de
transfiguração?
Fora do ponto de vista puramente literário o “Elogio Dramático” é, como se vê, um documento
que merece ser preservado pela riqueza de elementos que encerra e que interessam à crítica
literária na perspectiva histórica.
Estribilho do Elogio Dramático: “Viva D. Pedro II
Viva o Príncipe Imperial
Viva o povo brasileiro
A Instituição Liberal.
6
Ainda em revisão, a Revista Mensal do Partenon Literário, por meio de Aquiles
Porto Alegre, Aurélio Veríssimo de Bittencourt e Amaro da Silveira, também dedicou espaço
ao seu notável colega.
b) A relação história e literatura
5
PEREIRA, José Augusto Medeiros. A divina pastora e a escravidão. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 de
janeiro de 1978, p. 4. Cadernos de Sábado. (Ver Anexo A).
6
PEREIRA, José Augusto Medeiros. O elogio dramático ao príncipe D. Pedro, de Caldre e Fião. Correio do
Povo, Porto Alegre, 15 de abril de 1978. (Ver Anexo B).
13
Segundo Conforto,
7
o fazer literário e o fazer historiográfico são espaços em que a
história e a ficção acontecem. Tanto a história quanto a literatura têm procurado reivindicar o
status de produtoras de conhecimento verdadeiro. A literatura se defende utilizando a
justificativa de que, assim como a história, ela elege o assunto a ser enfocado, e o narrador
conduz a construção do discurso. Seu objetivo é o de desvelar para o leitor todos os meandros
da alma humana. A história, por sua vez, ao escolher o fato que será narrado, muitas vezes
possui um conhecimento limitado de uma batalha, uma morte ou da assinatura de um tratado.
Tudo o que compõe o episódio que será narrado é construído pelo narrador-historiador que,
diferentemente do narrador-literato, procura desaparecer atrás do narrado, dando ao seu texto
um cunho científico e, portanto, verdadeiro. Outras discussões elegeram a forma de narrar
entre a história e a literatura como a diferença entre ambas.
8
Chaves
9
também, no decorrer de suas pesquisas escreveu sobre a fronteira existente
entre o historiográfico e o literário, chamando a atenção ao significado do termo fronteira;, ao
invés de separar, como é usualmente empregado, em se tratando da relação literatura e
história a fronteira –, determinaria o ponto de convergência, em que se pode observar a
unidade da obra literária.
Bernd
10
afirma que, se a correlação entre literatura e história é importante em nível da
literatura em geral, ela se reveste de uma importância ainda maior no que tange ao Brasil e
aos demais países da América, que tiveram um passado colonial e cuja história foi escrita
pelos conquistadores em um primeiro momento e, posteriormente, pelos colonizadores.
Contudo, versões não oficiais dos acontecimentos históricos circulam paralelamente na fala
não autorizada das camadas populares que, por meio de suas lendas, contos, mitos, canções e
de toda forma de criações orais, contaram, de maneira simbólica, e a partir de um outro ponto
7
CONFORTO, Marília. Faces da personagem escrava. Caxias do Sul: Educs, 2001.
8
CONFORTO, op. cit., p. 13.
9
CHAVES, Flávio Loureiro. História e literatura. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.
10
BERND, Zilá. O maravilhoso como discurso histórico alternativo. In: LENHARD, Jacques; PESAVENTO,
Sandra Jatahy. Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Unicamp, 1998.
14
de vista, esses acontecimentos. A oralidade cria, assim, um espaço de conservação de resíduos
históricos e uma vertente dialógica na qual se inspiram os escritores latino-americanos que
navegam nas águas do maravilhoso. Não temos, pois, uma história, mas várias histórias e,
analisada dessa perspectiva, a literatura adquire uma importância maior, na medida em que
resgata e traz à tona a fala esquecida dos colonizados. A literatura nas sociedades pós-
coloniais terá essa característica, ou seja, a de preencher os vazios da história oficial, trazendo
para dentro do texto as versões populares dos diferentes fatos históricos, revestidas pelo
simbolismo do imaginário popular e prenhes de significações outras.
Os instrumentos usados nesta pesquisa são exclusivamente bibliográficos, por meio
das obras A divina pastora e O Corsário de José Antonio do Valle Caldre e Fião. Como uma
das teorias norteadoras, escolheu-se a de Foucault A ordem do discurso, em que o autor
aponta três direções para analisar a materialidade discursiva:
Para analisar a materialidade discursiva em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é
preciso, creio, optar por três decisões às quais nosso pensamento ainda resiste um
pouco, hoje em dia, e que correspondem aos três grupos de funções que acabo de
evocar: questionar nossa vontade de verdade, restituir ao discurso seu caráter de
acontecimento, suspender, enfim, a soberania do significante.
11
Compreende-se importante lembrar as três direções que Foucault elenca como
princípios na análise discursiva. No Princípio de Descontinuidade, o autor afirma que não
existe um discurso ilimitado, contínuo e silencioso que teríamos por missão descobrir,
restituindo-lhe, enfim, a palavra. Não se deve imaginar, percorrendo o mundo e entrelaçando-
se em todas as suas formas e acontecimentos, um não-dito ou um impensado que se deveria,
enfim articular ou pensar. Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se
cruzam às vezes, mas também se ignoram e se excluem.
Segundo o Princípio de Especificidade, não se deve transformar o discurso em um
jogo de significações prévias; não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que
11
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de L. F. A. Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.
15
teríamos de decifrar apenas. Enfim, o Princípio de Exterioridade põe em evidência que não se
deve passar do discurso para seu núcleo interior e escondido, ou para o âmago de um
pensamento ou de um sentido que se manifestaria nele, mas, a partir do próprio discurso, de
sua aparição e de sua própria regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade.
Considera-se importante evidenciar como a relação entre literatura e história pode ser
percebida. Partindo da perspectiva de Stone,
12
pode-se considerar que a aproximação entre
literatura e história no século XIX se pela retomada do uso da narrativa na constituição do
discurso histórico. Trata-se de uma retomada, pois, segundo o autor, em meados do século
XIX, a narrativa entendida pelo autor como “a organização de materiais numa ordem de
seqüência cronológica e a concentração do conteúdo numa única estória coerente, embora
possuindo subtramas” teria sido abandonada e associada à história dita évenementielle. O
que se pretendia, então, era uma história científica, que objetivava explicar o real por meio de
modelos, cuja forma de análise privilegiaria o método quantitativo, e a exposição dos
resultados seria feita de forma essencialmente analítica, em detrimento da descritiva.
O ressurgimento da narrativa, por sua vez, seria tributário da “desilusão generalizada,
como o modelo determinista econômico de explicação histórica”. Iniciava-se, assim, um
processo norteado pela busca por uma história com “uma face mais humana, em reação [...] à
macro-história, à história quantitativa e ao determinismo”.
13
Carvalho, em concordância com
as idéias de Stone, observa que esse regresso à narrativa é tributário de uma história que
pretende estudar os homens em circunstâncias, ao invés de uma investigação centrada nas
circunstâncias dos homens. A forma de escrita narrativa seria o instrumento mais apropriado
para uma abordagem que privilegiasse o indivíduo, e que tivesse as explicações assentadas em
uma gama mais diversificada de causas.
14
Tal deslocamento, para o autor, ainda que
12
STONE, Lawrence. In: CARVALHO, José Murilo. O historiador às vésperas do terceiro milênio. Rio de
Janeiro: Phoênix, n. 3. 1997.
13
BURKE, Peter. As fronteiras instáveis entre história e ficção. In: AGUIAR, Flávio et al. (Org.). Gêneros de
fronteira: cruzamento entre o historiográfico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. p. 114.
14
HARTOG, François. A arte da narrativa histórica. In: BOUTIER, J.; Júlia D. Passados recompostos. Rio de
Janeiro: Ed. da UFRJ, 1998.
16
apresentasse algumas armadilhas à investigação histórica, traria certos benefícios à cidadania,
uma vez que conceberia o ser humano como agente da história, atuante frente às
circunstâncias e não como seu fantoche.
Hartog,
15
no texto A arte da narrativa histórica, também considera que a chamada
“história-narrativa” confere maior destaque aos indivíduos e aos acontecimentos. Porém, ao
contrário de Stone, o autor não considera que o uso da narrativa na história se restrinja aos
casos em que os indivíduos e os acontecimentos são evidenciados. Hartog, espelhando-se em
Paul Ricoeur, acredita que a história, mesmo aquela voltada para o estudo das estruturas,
sempre fez uso da narração, ainda que de forma eclipsada. A história, para Hartog, seria uma
narrativa entre outras, e, assim sendo, não haveria precisamente um “regresso” da narrativa ao
campo da história, como supunham Stone e outros.
Como se pode observar, as mediações entre história e literatura podem ser descritas
como um terreno de geografia indefinida, de fronteiras turvas e terras um tanto quanto
pantanosas, como dão a ver as opiniões controversas sobre o uso da narrativa no discurso
histórico. Se nos embrenharmos ainda mais nesse terreno, poderemos nos deparar com
questões ainda mais controversas, como a da natureza da verdade e da objetividade histórica.
Contudo, vale observar, à luz de Paul Veyne, que, na investigação histórica, não como se
desvencilhar da subjetividade. A subjetividade marcaria tanto a literatura quanto a leitura que
o historiador faz do passado, na qual a imaginação é usada como ferramenta na interpretação
dos indícios históricos.
16
Essa imaginação não advém nem cresce do nada. O historiador tem por norte sua
fonte, sua documentação, a partir da qual desenreda as relações do homem com seu tempo. É
o historiador também um homem em seu tempo, e a leitura que faz do passado é marcada, de
15
HARTOG,. François. A arte da narrativa histórica. In: BOUTIER, J.; Júlia D. Passados recompostos. Rio de
Janeiro: Ed. da UFRJ, 1998.
16
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Trad. de Antonio Narino. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1991.
17
forma indelével, pelas relações que estabeleceram em seu próprio tempo; do mesmo modo, o
escritor, ao redigir sua obra literária, não a constrói sobre o vazio, desvencilhando-se de
qualquer relação com seu tempo, que pode, por exemplo, inspirá-lo em sua criação. Na
realidade, a noção de que existe uma relação entre o autor e seu tempo foi considerada na
escolha das obras de Caldre e Fião.
Ideologia é outro termo que transpassa a discussão das relações entre o discurso
historiográfico e o discurso literário. O conceito não é novo. Ele surgiu em 1810, na obra
Elements de idéologie, do filósofo Destutt de Tracy. Teria sido forjado para designar a
faculdade humana de pensar, ou seja, “tratar as idéias como fenômenos naturais que
exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente”.
Entretanto, essa categoria ganhou um sentido pejorativo com Napoleão Bonaparte. Para ele,
os ideólogos franceses eram todos “abstratos, nebulosos, idealistas e perigosos [para o poder]
por causa do seu desconhecimento dos problemas abstratos [concretos]”, como expõe
Brandão.
17
O significado de ideologia, definido por Marx e Engels, é entendido como produção
de idéias e de estados de consciência, em determinadas condições sociais e históricas,
mediante complexas mediações; em última instância, direta ou indiretamente, a partir das
atividades e dos comércios materiais entre os homens. Constituem, portanto, uma espécie de
linguagem da vida real.
18
Marx e Engels propuseram igualmente um nascimento, um devir e uma crise para as
ideologias, tidas como sistemas ordenados de idéias e de representações, separadas e
independentes das condições materiais de existência. Nesse sentido, teóricos, intelectuais e
ideólogos não estavam comumente vinculados diretamente à produção material das condições
17
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 5. ed. Campinas: Unicamp, 1996.
18
Ibidem, p. 20.
18
de existência, sendo por elas apenas determinados, a partir das complexas mediações, como se
viu. Ao exprimirem suas idéias, eles exprimiriam essa desvinculação e mediações.
Uma concepção fundamental de Marx e Engels para este trabalho é que “idéias de
classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força
material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual”.
19
Portanto, para
aqueles autores, as classes que dominavam a produção, a circulação e a distribuição dos bens
materiais regulavam igualmente a produção, a circulação e a distribuição das concepções
ideológicas de seu tempo.
Tal concepção é essencial neste trabalho, já que se parte do axioma de que, no século
XIX, no Brasil, até a Abolição da Escravatura, em 1888, dominava inconteste o modo de
produção escravista colonial e, portanto, as classes senhoriais escravistas: contexto exibido na
produção literária de Cladre e Fião, corpus deste trabalho.
Susana, essa segunda mãe doméstica dos filhos de Margarida, estava repimpada sobre
um grande cepo, como uma rainha de sua nação toda adornada de miçangas e tendo
em sua mão um porongo cheio de pimentas que durante a tarde colhera para o molho
da comida de seus senhores-moços a quem amava mais que a prórpria vida. Ela
ergueu uma cabeça que nunca baixara sem a terrível idéia da escravidão que sobre ela
pesava, mas que pesava levemente; porque, direi de passagem, é melhor fisicamente a
escravidão no Brasil do que um estado de dependência em qualquer país da Europa e
da Ásia. Fisicamente! Disse eu? Sim; porquanto moralmente não. Oh? Isso é horrível
em qualquer parte da terra! Ainda mais, é horribilíssimo! [...].
20
A escravidão é um mal! E levada ao centro das famílias quanto não são mais graves
os seus resultados! Susana era a bem querida amiga de todos os seus senhores e ainda
assim ela se tinha preparado um dia para ser o instrumento da perdição e desgraça
daqueles que a amavam.
21
Bakhtin definiu palavra como um signo ideológico por excelência. Segundo ele, a
palavra, “produto da interação social, se caracteriza pela plurivalência. Por isso é o lugar
privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as diferentes formas de significar a
realidade, segundo vozes, pontos de vista daqueles que a empregam”. Mais adiante, o autor
19
Idem.
20
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora. Porto Alegre: RBS, 1992. p. 88.
21
Ibidem, p. 204.
19
enfatizou que a linguagem não pode ser encarada como uma entidade abstrata, mas como o
lugar em que a ideologia se manifesta concretamente.
22
Conceitos básicos acerca dos termos cultura e região servirão para melhor entender a
linha de pesquisa e os estudos a serem feitos.
Pozenato
23
aponta que a idéia de região é antiga. “A região não é, pois, na sua
origem, uma realidade natural, mas uma divisão do mundo social, estabelecida por um ato de
vontade.” Estabelece uma noção norteadora de espaço físico, enquadrada geograficamente.
Determina que “tanto o conceito de região (no plano do fazer científico) quanto a
definição de uma determinada região (no plano do fazer crítico) são construções”
24
realizadas
a partir de uma rede de informações que, segundo Pozenato, podem ser estabelecidas pelo
autor.
Bourdieu, em seu texto, traz a etimologia da palavra região (regio) descrita por
Emile Beneviste, que conduz ao ato da di-divisão”, ato mágico, social, apresentando suas
fronteiras como arbitrárias e regidas pelo poder.
O que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social através dos
princípios de di-divisão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o
sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade
do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo.
25
Para Kaliman, literatura e espaço se inter-relacionam, a primeira como lugar da
enunciação literária, e o segundo, como referência do texto. “1) Hay un lugar donde se
escriben, el espacio de la enunciación literária [...] 2) Hay un lugar como tema sobre el que se
escribe, el espacio como referencia del texto [...].”
26
22
BRANDÃO, op. cit., p. 10-11.
23
POZENATO, José Clemente. Algumas considerações sobre região e regionalidade. In: FELTES, Heloísa
Pedroso de Moraes; ZILLES, Urbano (Org.). Filosofia: diálogo de horizontes. Caxias do Sul: Educs, 2001.
p. 585.
24
Idem, p. 587.
25
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Difel, 1989. p.113.
26
KALIMAN, Ricardo. La palabra que produce regions: el concepto de region desde la teoria literaria.
Argentina: Universidade de Tucumán, 1994.
20
Freire, citado por Oliven,
27
em seu Manifesto regionalista (1926), desenvolve
basicamente dois temas interligados: a defesa da região como unidade da organização
nacional e a conservação dos valores regionais e tradicionais do Brasil em geral e do Nordeste
em particular. “Uma região pode ser politicamente menos do que uma nação. Mas vital e
culturalmente é mais do que uma nação; é mais fundamental que a nação como condição de
vida e como meio de expressão ou de criação humana.”
Sinteticamente, a região é a base territorial para a expressão do regionalismo. Ela se
define a partir da relação do homem com o meio e com os seus símbolos, é constituída por
diferenças e semelhanças e determina a expressão político-cultural dos seus.
Surge, neste momento, a importância de se mencionarem idéias discutidas a partir do
termo território, que atualmente vem acompanhado do termo desterritorialização. É
emergente a discussão pelo fato de Caldre e Fião ter se desterritorializado (foi morar no Rio
de Janeiro) para escrever seus dois romances que retratam o Rio Grande do Sul. Costa
28
aponta que, dentre os geógrafos, Claude Raffestin (1986, 1988) foi um dos que mais se
dedicou à discussão conceitual sobre território, analisando o processo que ele denominou de
T-D-R: territorialização desterritorialização reterritorialização. Para ele a territorialidade
humana, nossos laços com o território, numa concepção bastante aberta, “pode ser difinida
como ‘o cunjunto de relações que desenvolve uma coletividade e, portanto, um indivíduo
que a ela pertence com a exterioridade e/ou a alteridade por meio de mediadores ou
instrumentos”.
29
Segundo Raffestin:
O território é uma reordenação do espaço na qual a ordem está em busca dos sistemas
informacionais dos quais dispõe o homem enquanto pertencente a uma cultura. O
território põe ser considerado como o espaço informado pela semiosfera. [...] O
27
OLIVEN, Rubem. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis: Vozes, 1992.
28
COSTA, Rogério Haesbaert da. Des-territorialização e identidade: a rede gaúcha no nordeste. Rio de Janeiro:
Ed. Universidade Federal Fluminense, 1997.
29
RAFFESTIN, Claude. Território e identidade: raízes do gauchismo e da nordestinidade. In: COSTA, op. cit.,
p. 32.
21
acesso ou não-acesso à informação comanda o processo de territorialização,
desterritorialização das sociedades. É a teoria da comunicação que comanda nos
nossos dias a ecogênese territorial e o processo de T-D-R.
30
O primeiro conceito de cultura veio do latim colere, que significa cultivar; noção
vinculada à agricultura. Os romanos adapataram o termo e ampliaram seu significado para
refinamento pessoal. Após, com o advento do cristianismo, o conceito foi reforçado de
preceitos religiosos. A partir do século XIX, com o surgimento de novas teorias biológicas e
sociais e com o nascimento das potências européias, rompe-se essa visão religiosa. Para
Santos, “a moderna preocupação com a cultura nasceu associada tanto à necessidade do
conhecimento quanto às realidades da dominação política”.
31
Continuando sua análise coloca
que, ao se entender cultura como processo social, não podemos dissociá-la das relações de
poder e de dominação que se estabelecem na sociedade. Segundo ele, “[...] a cultura é um
produto da história coletiva por cuja transformação e por cujos benefícios as forças sociais se
defrontam”.
32
Já para Adorno, a cultura “somente é verdadeira quando implicitamente crítica”. Essa
crítica não deixa a cultura se objetivar, pois “o sentido próprio da cultura, entretanto, consiste
na interrupção da objetivação”.
33
Canclini
34
afirma que, hoje, todas as culturas são de fronteira. Todas as artes se
desenvolvem em relação com outras artes; assim; as culturas perdem a relação exclusiva com
seu território mas ganham em comunicação e conhecimento.
Pode-se comprovar o pensamento de Canclini observando a cultura nacional. Ela
apresenta matizes – isto é, aspectos diferentes – que constroem uma totalidade. Em relação ao
Brasil, Candido
35
defende um ponto de vista de abertura cultural, pois “[...] somos partes de
30
Idem.
31
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
32
Idem.
33
ADORNO, Theodor W. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. p.11.
34
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Edusp, 1998.
35
CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. São Paulo: Nacional, 1964.
22
uma cultura mais ampla, da qual participamos como variedade cultural. E que, ao contrário do
que supunham por vezes ingenuamente os nossos avós, é uma ilusão falar de supressão de
contatos e influências”.
Por outro lado, Bosi
36
concebe a cultura como um conjunto de elementos materiais e
imateriais, atribuindo-lhes o papel de projeto modificador do futuro, uma mola para superar
os desequilíbrios do presente. Para ele, a cultura contamina e é contaminada, e, nesse sentido,
o sucesso de um processo de aculturação reside na reinvenção, ou seja, na criação de um
sincretismo entre a cultura do colonizado e a do colonizador, no qual sempre prevalece a
cultura do mais forte, a do colonizador.
Para responder às questões utilizar-se, a análise discursiva e, para tanto, acredita-se
na necessidade de esclarecer o conceito de discurso. Moisés, em seu Dicionário de termos
literários, apresenta algumas definições para o termo, entre elas, a de representação do
diálogo de dois ou mais personagens. Como esse conceito não é próprio apenas à literatura ou
lingüística, na área filosófica ele pode ter uma acepção diversa, como a de “operação
intelectual que se efetua por uma seqüência de operações elementares parciais e sucessivas”,
ou “expressão e desenvolvimento do pensamento por uma série de vocabulários ou
proposições em cadeia”.
37
A narraçãoexposição minuciosa, parcial, esclarecedora, do que de modo sintético
e direto se expressa na proposição” destaca-se dentre as partes componentes essenciais de
um discurso. Portanto, na construção da narração de suas proposições, o orador escolhe os
pontos mais importantes, que sustentarão a defesa de determinado conceito ou idéia,
focalizando-os na perspectiva que melhor lhe convém. Salienta, pois, alguns fatos e minimiza
outros.
38
36
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
37
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
38
Ibidem, p. 154.
23
Maingueneau
39
enfatizou que, para analisar um discurso, deve-se considerar algumas
dimensões no âmbito de sua produção, as quais determinaram e delimitaram a enunciação.
São elas: os embates históricos, sociais, etc., que se cristalizam no discurso. O espaço próprio
de cada discurso configura-se para si mesmo no interior de um interdiscurso. A exemplo de
outros estudiosos, Maingueneau considera a linguagem um fenômeno que deve ser estudado
não em relação ao seu sistema interno, mas também como formação ideológica, que se
manifesta mediante competência socioideológica.
Para Foucault,
40
o discurso configura-se como o espaço em que poder e saber se
articulam. Quem fala, fala de algum lugar e esse discurso passa como verdadeiro, como
veículo de saber, do saber institucional. Portanto, o discurso é gerador de poder. Para esse
autor, o discurso é concebido como uma dispersão, sendo formado por elementos que não
estão ligados por nenhum princípio de unidade. Cabe à análise do discurso descrever essa
dispersão, buscando regras para reger essa formação discursiva. As regras são as relações
entre os objetos e os tipos de enunciados.
Focault partiu da suposição de que, em toda sociedade, a “produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos”. Esses procedimentos “têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. Em nossa
sociedade, Focault reconhece o procedimento de interdição, isto é, não se podefalar de tudo
em qualquer circunstância, de qualquer um, enfim, não se pode falar de qualquer coisa”.
41
As idéias de Focault sobre o conceito de discurso são aqui tomadas como ponto
gerador na análise. Acredita-se que são totalmente adequadas e respaldadas pelo
posicionamento discursivo tomado por Caldre e Fião, ao narrar seus romances. Na obra A
39
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Trad. de F. Idursky. São Paulo:
Pontes/Ed. da Unicamp, 1993.
40
FOUCAULT, op. cit.
41
Ibidem, p. 8-9.
24
divina pastora, a instituição da família gera um tipo de saber e poder permeado por um tipo
de ideologia que o reconstrói a realidade vivida nas comunidades do século XIX, no
momento em que a revolução tomava conta do estado. Acredita-se que a obra antecipa-se e
deseja atingir um determinado tipo de leitor, refletindo o pensamento ideológico do narrador
que, em seu segundo romance, expõe-se diferentemente. Vale lembrar: naquele período,
Caldre e Fião já estava engajado na carreira política e acredita-se que não poderia falar de
tudo em qualquer circunstância, de qualquer pessoa e muito menos de qualquer coisa que se
apresentasse contrária às ideologias do poder dominante.
Considera-se também importante o conceito de moral que cercará a análise desta
pesquisa, quando se trata do perfil do narrador Caldre e Fião. Sua postura moralista salta aos
olhos nos dois romances em questão.
Ele tinha filhos e filhas que educava na santa moral de Cristo, propagada, sustentada
e exemplificada pelos bons Padres Jesuítas nestas incultas terras.
42
– Ninguém as ignora: a fonte da moral é a própria alma de cada um de nós. Deus, no
momento em que nos infundiu essa substância semelhante à sua natureza, deu-nos as
regras imutáveis que dirigiriam as nossas ações e, para demonstrar-nos, sem cessar,
as condições delas, fez aparecer as dores físicas e os remorsos ou dores morais, que
nos despertam da letargia da indiferença corpórea a que também, por uma dupla
condição, estamos submetidos; em razão de que todas as vezes que preferimos o
prazer e o interesse ao dever, somos culpáveis e dignos de castigos do céu.
43
Ele deu alguns passeios por entre o grande número de plantas de cicuta que
brotam espontaneamente; muitos pés pequenos dessas plantas foram esmagados por
seus pés. A cicuta é uma planta extremamente venenosa, cujo suco fez morrer o
célebre filósofo moralista Sócrates... é abundante nestes sítios.
44
Para isso, toma-se como base a teoria da lei moral, explicada por Aranha.
45
A teoria
assume o posicionamento psicológico e a dualidade entre o físico e o mental. Considera o
problema moral como proveniente do fato de as pessoas possuírem vontade livre e poderem
ajudar ou prejudicar umas as outras. Reconhece leis morais universais capazes de prescrever
as ações que devem ser realizadas e proibir outras ações. Assume a razão como guia
42
CALDRE e FIÃO, op. cit., p. 88-89.
43
Ibidem, p. 233-234.
44
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Vale. O Corsário. Porto Alegre: Movimento, 1979. p. 112.
45
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. São Paulo:
Moderna,1992.
25
privilegiado para a motivação moral. A crítica feita em relação a essa teoria é que nossa
tradição moral deve ser vista apenas como uma entre outras, não havendo nela nada de
absoluto, pois os conceitos que a definem são metafísicos. Tal teoria tende a ignorar ou negar
o papel da imaginação nas nossas deliberações morais, possuindo um caráter necessariamente
negativo e restritivo.
26
2 RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA
As relações entre literatura e história estão no centro do debate da atualidade e
apresentam-se no bojo de uma série de constatações relativamente consensuais, que
caracterizam nossa contemporaneidade, na transição do século XX para o XXI: a crise dos
paradigmas e o fim da crença nas verdades absolutas legitimadoras da ordem social.
Baczko
46
pondera que a perplexidade atual das ciências humanas deriva de um
sentimento de perda da certeza das normas fundamentadoras de um discurso científico
unitário sobre o homem e a sociedade. Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria
geral de interpretação dos fenômenos sociais, apoiada em idéias e imagens legitimadoras do
presente e antecipadoras do futuro (o progresso, o homem, a civilização), ocorre uma
segmentação das ciências humanas e um movimento paralelo de associação multidisciplinar
em busca de saídas.
Assim, novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marcados por um ecletismo
teórico dentro de uma ótica interdisciplinar e comparativista e com grande apelo temático.
Portanto, o diálogo entre história e literatura, como objeto de estudo, configura uma
possibilidade de interpretação e análise para temas de pesquisa.
A compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético, uma
manifestação cultural, portanto uma possibilidade de registro do movimento que realiza o
homem na sua historicidade, nos seus anseios e nas suas visões de mundo, tem permitido ao
historiador assumi-la como espaço de pesquisa.
Assim, mesmo que os literatos a tenham sempre produzido sem um compromisso
com a verdade dos fatos, construindo um mundo singular que se apresenta como espaço de
leituras também do mundo real, é inegável que, por meio dos textos artísticos, a imaginação
46
BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984, p. 27.
27
produz imagens, e o leitor, no momento em que, pelo ato de ler, recupera tais imagens,
encontra uma outra forma de ler os acontecimentos constitutivos da realidade que motiva a
arte literária.
47
Revisando os momentos em que os estudos literários abordam sistematicamente a
relação entre os textos de ficção e os textos de história, são notáveis os períodos que
compreendem os estudos poéticos da Antiguidade, as pesquisas estéticas do Romantismo:
século XIX e as novas propostas teóricas de leitura da história no texto literário, gestadas ao
longo do século XX, que vieram a se tornar a opção para inúmeros pesquisadores no final do
século XX.
Como se vê, a história da discussão sobre a aproximação ou separação entre
literatura e história remonta ao início da teorização da arte ocidental, o que torna necessário
retroceder brevemente às idéias de Aristóteles, para se entender a construção desses
paradigmas antitéticos e suas configurações tanto na teoria literária quanto na historiografia.
O filósofo estabeleceu uma antítese entre história e poesia em sua obra Poética,
criando assim obstáculos quase intransponíveis entre as duas.
48
Para ele, a poesia encerra mais
filosofia, elevação e universalidade, por falar de verdades possíveis ou desejáveis. Por seu
turno, a história trataria de verdades particulares, acontecidas, não universais:
[...] não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso e prosa [...], diferem,
sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por
isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere
aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por referir-se ao universal
entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações
que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao
universal, assim entendido, visa à poesia, ainda que nomes às suas personagens.
Outra não é a finalidade da poesia, embora nomes particulares aos indivíduos; o
particular é o que Alcibíades fez ou que lhe aconteceu.
49
47
A categoria teórica mundo real que está sendo utilizada pode ser compreendida como um sistema de idéias-
imagens que significado à realidade, participando, assim, da sua existência. Logo, o real é, ao mesmo
tempo, concretude e representação. Veja-se LE GOFF, Jacques. L'histoire et l'imaginaire. Entretien avec
Jacques Le Goff. (Apud CAZENAVE, Michel. Mythes et histoire. Paris: Albin Michel, 1984. p. 55).
48
MENDONÇA, Wilma Martins de. Memórias do cárcere: história sim, literatura também. Graphos: Revista da
Pós-Graduação em Letras da UFPB, João Pessoa, n. 2, ano 1, p. 123-148, 1995.
49
ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 443-471. T. IV.
(Coleção Os Pensadores).
28
Assim concebidas, arte e história, ficção e verdade, constituíram manifestações
opostas. Com o avanço do racionalismo nos tempos modernos, tal contraposição seria
acentuada, resultando na inversão dos termos apresentados por Aristóteles.
Poesia, arte e ficção seriam progressivamente desqualificadas como modos do
conhecimento da realidade, passando a habitar um terreno quase etéreo: lugar de fantasia para
o artista ou de metafísica para o intelectual.
50
Do outro lado habitariam as ciências dos
homens sensatos e progressistas, com suas leis e seus postulados de objetividade,
racionalidade ou referencialidade, cumprindo funções utilitárias.
Assim, solidificou-se a separação entre ficção e verdade, base do divórcio entre arte e
ciência. As noções de história, desde o século XIX, que pretenderam a cientificidade da
disciplina, ou as manifestações do realismo e do naturalismo na literatura do mesmo período,
tiveram como fundamento essa distinção. Segundo Lima, “um verdadeiro veto ao ficcional,
um controle do imaginário, decorrente do racionalismo, pôde ser assistido desde meados do
século XVIII, atravessando os mais variados discursos, até mesmo os artísticos”.
51
No entanto, essa mesma separação daria suporte às correntes que, a partir do
romantismo, procuraram reafirmar o valor intrínseco e superior da poesia e da literatura
ficcional, manifestando uma repulsa à ciência. A teoria literária, que se constituiu
institucionalmente no século XX, ainda que tenha abandonado os ideais românticos ao
assumir o pendor científico, também buscaria assegurar a singularidade do literário e do
estético, diante das ciências e das outras linguagens e dos discursos, como a história.
Desse modo, a concepção aristotélica seria, mais uma vez, retomada para demarcar
posições. A literatura, nessa perspectiva, exprimiria o verossímil (a impressão de verdade, não
necessariamente falsa, que se inclui no espaço ficcional), enquanto a história pretenderia o
50
FERREIRA, Antonio Celso. A narrativa histórica na prosa do mundo. Revista Itinerários [Pós-Graduação em
Letras – Unesp]. Araraquara, n. 15/16, p. 133-140, 2000.
51
LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e imaginação no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984.
p. 31.
29
verdadeiro (no sentido da representação do acontecimento particular).
52
Assim, a teoria
instituída no século XIX conseguiu assegurar, até algumas décadas do século XX, a noção de
que literatura e história são campos distintos, indicando que, enquanto um ficcionaliza o real,
o outro o estabelece. Baseada nessa visão, a história autodenominou-se a única possibilidade
de registro da realidade do passado, não reconhecendo essa capacidade na literatura.
Essa teorização, contudo, ao propor a separação dessas formas de conhecimento,
ignorou as produções ficcionais e históricas de sua época, o que fortificou a contestação a essa
conceituação por parte da teoria e da arte pós-moderna.
Nesse processo, foram fundamentais os questionamentos a respeito do próprio
estatuto da história e as tentativas de compreender o papel social do historiador. O processo
de produção do texto histórico também passou a ser interpretado à luz da experiência literária.
Santos comenta a atitude de muitos estudiosos da escrita histórica, dizendo que eles têm: “[...]
sugerido que a historiografia deve utilizar-se das variações e criatividades que podem ser
constatadas nos diversos níveis da narrativa literária. Desse modo, incorporaria no próprio
discurso o caráter inerente relativo a todo conhecimento sobre o passado.”
53
Dessa reflexão, resultou a ponderação de cientificidade da narrativa histórica e a
instauração da idéia de relatividade do conhecimento nela revelado. Essas leituras basearam-
se na fragilidade da realidade histórica, como produto da subjetividade, a qual é ilimitada e
passível de erros. Há, ainda, a interpretação dos fatos dada pelo sujeito historiador, a partir da
seleção e organização da realidade que ocorrem numa narrativa histórica.
Desse modo, embora a descrença no discurso científico unitário sobre o homem e a
sociedade tenha se agudizado no interior desse quadro da crise dos paradigmas de
interpretação do real, na transição do século XX para o XXI, o debate sobre a história e suas
52
AQUINO, Ivânia Campigotto. Literatura e história em diálogo: um olhar sobre Canudos. Passo Fundo: UPF,
1999. p. 16.
53
SANTOS, Pedro Brum. Teorias do romance: relações entre ficção e história. Santa Maria: UFSM, 1996. p.
19.
30
conexões com os gêneros literários estava colocado desde a década de 70 do século
passado.
54
Pautada por uma ótica interdisciplinar, essa linha de reflexão vem acompanhando a
propensão de se interrogar as fronteiras de conhecimento que a tradição da pesquisa construiu.
Nesse sentido, é fundamental localizar e caracterizar essa polêmica, a fim de consubstanciar o
nosso problema teoricamente.
Rosenfeld toma como ponto de partida o narrador para diferenciar história e ficção.
O historiador, como enunciador real das orações, no ponto zero do sistema de coordenadas
espaço-tempo, projeta, a partir desse ponto zero, o mundo real do passado histórico.
Entretanto, ele não faz parte desse mundo enunciado. Na ficção narrativa, desaparece o
enunciador real e constitui-se um narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado,
identificando-se, por vezes, ou sempre, com um ou com outro personagem.
55
As proposições de Stone, na obra “O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma
velha história”, de 1979, podem ser consideradas como um marco da polêmica. Stone
anunciava um ressurgimento da narrativa na historiografia recente, em conseqüência do
declínio da história científica generalizante. Associando a história narrativa aos trabalhos dos
novos historiadores, o autor enfatizou que tal tendência significaria a atualização de uma
tradição, que durante dois séculos encarou a narrativa como modalidade ideal, pois os
historiadores sempre contaram estórias”.
56
Esse caminho aberto por Stone, o da inclinação
54
No plano das condições concretas da existência, a falência dos regimes socialistas, por um lado, abalou a
convicção de que era possível a reconstrução de uma sociedade alternativa ao capitalismo, dada a forma
histórica de realização totalitária em que tais regimes haviam descambado. Por outro lado, as próprias
economias do Primeiro Mundo não conseguiram resolver as questões sociais internas, aumentando o número
de desempregados e sem lar, ao passo que a vigência da liberal democracia não impediu a ascensão da direita
no Velho Mundo, com posições que podem ser associadas ao fascismo. E mais, a própria concepção dos
Annales de uma “história global” esfacelou-se nessa encruzilhada de incertezas de fim de século. Para uma
reflexão mais aprofundada desse processo, veja-se PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra
história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História: representações, São Paulo:
Anpuh/Contexto, v. 15, n. 29, 1995. p. 9-27.
55
ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada,
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 2, p. 20-21, 1964.
56
STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma velha história. Trad. de Denise
Bottmann. Revista de História, Campinas, n. 2, p. 12-27, 1991.
31
hegemônica às ciências sociais para o campo dos estudos literários, exige referências a outros
estudos da época, que também tentaram demonstrar, cada qual à sua maneira, a filiação da
história à literatura.
Assim, uma das contribuições foi dada por Gay em O estilo da história, que,
realizando um estudo dos estilos de quatro historiadores clássicos – Gibbon, Macaulay, Ranke
e Burckhardt –, indagou sobre a natureza do próprio conhecimento histórico: ciência ou arte,
verdade ou ficção? Conclui sobre a natureza dual da história: ciência e arte simultaneamente.
57
Num ensaio precursor da epistemologia da história, Veyne em Como se escreve a
história, reafirmou a propensão da história à narrativa e à literatura, sugerindo que o
historiador, no seu ofício, agiria como o literato, tomado pela trama e pelo enredo urdido
subjetivamente.
58
Ainda conforme a exposição de Veyne, o historiador deve se apropriar da
noção de intriga, elaborada pela ficção, recurso que possibilita uma compreensão aberta do
real. É o narrador, por meio de sua intriga, que faz emergir do esquecimento a matéria
desordenada de acontecimentos do real, pois atribui sentido aos fatos.
Assim, ao escolher os fatos que merecerão destaque na construção de suas tramas, o
historiador não deixa de narrar segundo seu ponto de vista. Se tal visão literária da narrativa
histórica pode ser interpretada como uma veleidade do historiador, não custa recorrer à
autoridade de um consagrado escritor de romances, José Saramago, que escreveu:
[...] parece legítimo dizer que a História se apresenta como parente próxima da
ficção, dado que, ao rarefazer o referencial, procede a omissões, portanto a
modificações, estabelecendo assim com os acontecimentos relações que são novas
na medida em que incompletas se estabeleceram. É interessante verificar que certas
escolas históricas recentes sentiram como que uma espécie de inquietação sobre a
legitimidade da História tal qual vinha sendo feita, introduzindo nela, como forma
de esconjuro, se me é permitida a palavra, não apenas alguns processos expressivos
da ficção, mas da própria poesia. Lendo esses historiadores, temos a impressão de
estar perante um romancista da História, não no incorreto sentido da História
romanceada, mas como o resultado duma insatisfação tão profunda que, para
resolver-se, tivesse de abrir-se à imaginação.
59
57
GAY, Peter. O estilo da história. Trad. De Denise Bottmann. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 21-29.
58
VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucalt revoluciona a história. Trad. de Alda Baltar e Maria A.
Kneipp. Brasília: Ed. da UnB, 1982. p. 37-45.
59
SARAMAGO, José. História e ficção. Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa: [s.n.], 1990. p. 7-19.
32
Ressalta-se que tal observação procede de um escritor de ficção, e ainda mais, um
dos criadores daquilo que se convencionou chamar romance histórico contemporâneo, o que
permite reforçar os laços de vizinhança entre história e literatura.
Retomando a discussão a partir do significado da narrativa e assumindo que um
mundo exibido por uma obra ficcional é sempre um mundo temporal, Ricoeur afirma que “o
tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em
compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência
temporal”.
60
Dessa maneira concebidas, historiografia e narrativa de ficção são formas de
conhecimento do mundo, em sua temporalidade, o que levaria a contestar tanto as noções
puramente estéticas da literatura quanto a idéia da escrita da história como discurso científico
de natureza oposta à narrativa.
Ainda levando em consideração o aspecto tempo, tanto para o acontecimento quanto
como para seu relato, Nunes, rastreando o pensamento de Ricoeur, argumenta:
[...] narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência
humana do tempo. A narrativa ficcional pode fazê-lo alterando o tempo cronológico
por intermédio das variações imaginativas que a estrutura auto-reflexiva de seu
discurso lhe possibilita, dada a diferença entre o plano do enunciado e o plano da
enunciação. A narrativa histórica desenrola-o por força dameses, em que implica
a elaboração do tempo histórico, ligando o tempo natural ao cronológico.
61
Com a proposta de refletir sobre literatura na perspectiva da história social, Chalhoub
e Pereira assumem a proposta de historicizar a obra literária seja ela romance, seja conto,
poesia ou crônica –, inserindo-a no movimento da sociedade, investigando suas redes de
interlocução social, destrinchando não sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas a
forma como constrói ou representa sua relação com a realidade social.
62
60
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. De Constança M. Cesar. Campinas: Papirus, 1994. p. 15.
61
NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce Cortes (Org.). Narrativa:
ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 9-35.
62
CHALHOUB, Sidney, PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (Org.). A história contada: capítulos de história
social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 7-32.
33
A partir da análise de obras de Machado de Assis, José de Alencar, Mário de
Andrade e Jorge Amado, entre outros, o livro organizado pelos autores citados argumenta que
a obra literária é uma evidência histórica objetivamente determinada, ou seja, situada no
processo histórico; necessita, portanto, ser adequadamente interrogada a partir de suas
propriedades específicas: “Em suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem
reverências, sem reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório
sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para historiadores a literatura é, enfim,
testemunho histórico.”
63
Indagando a historiografia do ângulo da lingüística, Barthes em O rumor da língua,
interrogou sobre o real dos fatos no discurso histórico, considerando que ele próprio possuiu
uma existência lingüística: é signo e discurso. Para o autor, diferentemente da literatura
ficcional, a história fingiu ignorar o imaginário e a ideologia do eu narrador na reconstrução
da interpretação dos fatos históricos.
64
Ainda segundo Barthes, a história deve ser vista, se não como ficção, pelo menos
como discurso: “Essa narração [a história] difere realmente, por algum traço específico, por
uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopéia,
no romance, no drama?”,
65
indaga o semiólogo. Seu estudo das características fundadoras do
discurso histórico responde que, do ponto de vista da estrutura, ambas as narrativas
compartilham diversas características.
Para Santos, a distinção entre história e literatura não mais se pode dar em função
do valor e do privilégio da primeira estar com a verdade, pois esta, como ensinava
Foucault, não está localizada em um ponto tal que se possa segurá-la, ela jamais é fixa. Santos
ainda afirma que,
63
CHALHOUB; PEREIRA, op. cit., p. 7.
64
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 10-27.
65
BARTHES, op. cit., p. 145.
34
[...] nessa perspectiva, a desconfiança sobre a história enquanto campo de uma
organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria a verdade tal qual
se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas encenações rias. O pensar
história como literatura situa-se no projeto, também histórico, de se desconstruir as
garantias e as certezas dos métodos e análise dirigidos pela força da tradição, pela
busca da origem, pela concepção de legado, pela credibilidade na influência e na
autoria.
66
Nesse sentido, essas questões seriam enfrentadas, como em nenhuma outra obra, por
White Meta-história: a imaginação histórica no século XIX, na qual concentrou sua análise
formalista dos historiadores oitocentistas Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt, bem
como dos filósofos da história: Marx, Nietzsche e Croce. Isso para elaborar sua tese
fundamental: a atividade do historiador seria ao mesmo tempo poética, científica e filosófica.
Incorporou em sua narrativa argumentativa modelos de análises literários, como ele próprio
fez com as obras daqueles pensadores citados, destacando seus enredos (romance, comédia,
tragédia e sátira), seus tropos retóricos (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) e
relacionando-os a modos de explicação e atitudes políticas.
67
No artigo intitulado O texto histórico como artefato literário”, White resume bem
suas posições, afirmando que
[...] tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como o que
elas mais manifestamente o: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados
como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na
literatura que na ciência.
68
Mas isso não equivale para ele a tomar a ficção verbal da história como discurso
destituído de valor; ao contrário, significa admitir que toda forma de conhecimento contém
elementos de imaginação e ficção, que a poesia não é seu elemento oposto.
Também presente em Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, talvez
o ensaio mais desafiador de White, “O fardo da história”, questiona a concepção científica da
66
SANTOS, Roberto Corrêa dos. História como Literatura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999. p. 129-135.
67
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. Trad. de José Lourênio de Melo. São
Paulo: Edusp, 1992. p. 20-31.
68
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: WHITE, Hayden e cols. Trópicos do discurso:
ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. p.
97-116.
35
história seguindo um insight nietzchiano. De acordo com ele, a dessemelhança radical entre
arte e ciência resultou de um mal-entendido promovido pelo medo que o artista romântico
tinha da ciência e de um desdém que o cientista positivista votava à arte romântica.
69
Argumenta ainda que, por oposição à cultura historicizada ocidental e burguesa, ao
pesadelo e ao fardo da consciência histórica na modernidade, as artes atuaram como uma
força libertadora, ao afirmarem a contemporaneidade de toda experiência humana
significativa, a exemplo de Kafka, Proust ou Virgínia Woolf.
Conclamando os historiadores a experimentarem destemidamente a visão artística,
ainda que isso signifique um mergulho no imprevisível, White conclui:
[...] somente libertando a inteligência humana do senso histórico é que os homens
estarão aptos a enfrentar os problemas do presente. As implicações de tudo isso para
qualquer historiador que valoriza a visão artística como algo mais que mero
divertimento o óbvias: ele tem de perguntar a si próprio de que modo pode
participar dessa atividade libertadora, e se a sua participação acarreta forçosamente a
destruição da própria história.
70
Em seus últimos escritos, White assumiu um tom menos provocativo, sem contudo
abandonar a marca da radicalidade comum em suas teses fundamentais. Um bom exemplo
disso é Teoria literária e escrita da história, em que o autor procura sistematizar as principais
objeções levantadas pelos críticos à sua obra, tentando responder detidamente a cada uma.
Contra a acusação de destruir a diferença entre fato e ficção, e de assim abrir espaço
para toda aventura historiográfica, esclarece que sua teoria apenas redefine as relações entre
os dois dentro dos discursos:
[...] se não existem fatos brutos, mas eventos sob diferentes descrições, a
factualidade torna-se questão dos protocolos descritivos para transformar eventos
em fatos [...]. Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição
lingüística. O modo da linguagem usado para constituir os fatos pode ser
formalizado e governado por regras, como nos discursos científicos e tradicionais;
pode ser relativamente livre, como em todo discurso literário modernista ou pode ser
uma combinação de práticas discursivas formalizadas e livres.
71
69
WHITE, Hayden. O fardo da história. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 2. ed. p. 39-
64.
70
WHITE, op. cit., 2001, p. 52.
71
WHITE, Hayden. Teoria literária e escrita da história. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 7, p. 21-
36
É interessante ressaltar que grande parte dos autores citados nessa exposição
pertencem a uma vertente historiográfica em crescimento nas últimas décadas, a denominada
nova história cultural, que, por sua vez, tem identificado a representação como um dos
problemas centrais da disciplina, procurando respostas a uma pergunta crucial: como a
narrativa histórica representa a realidade?
72
Nessa direção, a própria noção de documento, que sustentava a narrativa
convencional, foi alvo de inúmeras interrogações, bem como foi realçado o papel ativo do
historiador em sua recolha e interpretação, rompendo-se assim a idéia de que cabe a ele o
simples registros dos testemunhos.
73
Nesse caso, não se trata de substituir a ficção pela história, mas de possibilitar uma
aproximação poética em que todos os pontos de vista, contraditórios mas convergentes,
estejam presentes, formando o que Steenmeijer chamou de representação totalizadora. Assim,
a literatura pode ser considerada como uma leitora privilegiada dos acontecimentos
históricos.
74
Segundo Lucas, a aliança da história com a literatura apresenta-se em dois modos
patentes: primeiro, quando a literatura é, ela própria, um fenômeno histórico. se disse que
“o valor de uma obra é seu lugar na História”; segundo, quando o fato histórico pode ser
captado dentro da literatura, imanente ao texto. um caso extremo de realce do fator
histórico na literatura no caso do romance histórico, gênero de eleição do Romantismo.
48. 1994.
72
HUNT, L. (Org.) A nova história cultural. Trad. de Jeffrerson L. Camargo. São Paulo: M. Fontes, 1992. p.
39.
73
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. De Bernardo Leitão. Campinas: Unicamp, 1990, p. 12.
Historiadores estrangeiros renomados têm experimentado práticas narrativas novas, enfatizando a natureza
sempre parcial não dos testemunhos utilizados como também do próprio ato discursivo. Livros como o de
Le Roy Ladurie, Carnival in romans; Georges Duby, The legend of Bouvines; Natalie Davies, The return of
Martin Guerre; Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes; Simon Schama, Citizens, no exterior, ou brasileiros
como os de Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole e Emília Viotti da Costa, Coroas de glória,
lágrimas de sangue,o exemplos de escritos históricos capazes de problematizar o passado sem submetê-lo
às verdades incontestáveis dos escritos unitários.
74
Citado por ESTEVES, Antonio R. Literatura e história: um diálogo produtivo. In: ZILÁ BERND, Jaques
Migozzi. Fronteiras do literário. Niterói: Eduf, 1997. p. 65.
37
2.1 Fronteira entre literatura e história
Segundo a enciclopédia Einaudi, a origem da fronteira reside no movimento, que é
próprio de cada ser vivo, e ela é por isso móvel. A fronteira não implica uma zona de paragem
duradoura, mas a paragem perante a falta de condições vitais necessárias, ou, então, perante a
resistência doutro movimento em sentido contrário. A fronteira poderá ser avançada se as
condições vitais mudarem nesse sentido, ou, então, se o movimento em sentido contrário
enfraquecer. A mobilidade é, portanto, um caráter intrínseco da fronteira, mesmo se algumas
sociedades humanas tendem a fixar definitivamente suas próprias fronteiras.
Discute-se aqui a fronteira entre história e literatura. Infere-se que o termo fronteira,
nesta pesquisa, não comporta o significado usual, mas uma das suas acepções refere-se a
limite, extremo, fim. Nesse sentido, tem-se uma linha divisória rígida entre literatura e
história.
Segundo Bosi:
Falar em ‘fronteiras’ da literatura dentro desse campo de interações é sempre recuar
um pouco, é no fundo pensar em chão sólido de conceitos pelos quais tudo o que
guarda um compromisso direto com a experiência (com a experiência
consensualmente verificável) é não-ficção.
75
O termo fronteira, que será usado neste trabalho, é sinonímio de cruzamento. O
verbete possui dois significados importantes. O primeiro identifica cruzamento como
“intersecção de duas vias de circulação”, o que significa que a circulação dos dois discursos,
historiográfico e literário no espaço textual. O segundo refere-se como “encontro de duas
coisas”: a narrativa histórica e a narrativa literária.
76
Chaves, ao escrever sobre a fronteira existente entre o historiográfico e o literário,
afirma:
75
BOSI, Alfredo. As fronteiras da literatura. Gêneros de fronteira. Cruzamento entre o histórico e o literário. p.
12.
76
Concorda-se com o uso do termo fronteira apresentado por Marília Conforto no seu livro As faces da
personagem escrava; significação que também será utilizada na presente pesquisa.
38
A fronteira, aqui, não separa; antes, determina o ponto de convergência onde
podemos observar a unidade da obra literária. Eis uma lição que, no Brasil, devemos
primeiro a Augusto Meyer e logo depois a Antonio Candido: “Só a podemos
entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em
que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o
outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se
combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda,
que o externo (no caso, o social) importa não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno”. pois um momento privilegiado em que as
paralelas se cruzam e a ficção imaginária ilumina a realidade insatisfatória que lhe
deu origem.
77
2.2 Narrador e personagens
Quando se pensa num romance e na sua estrutura, sabe-se que seus constituintes
mais simples são: enredo, foco narrativo, personagens, tempo, espaço, etc. E, por se ter esses
elementos, de certa forma, arraigados na nossa consciência, dificilmente pergunta-se
principalmente quando se trata de um romance histórico e, portanto, com uma estrutura
diversificada – sobre a existência de um possível autor dentro do texto.
Não se quer com isso entrar em seu processo gerativo, na procura do ser biográfico,
mas de uma persona ou sujeito ficcional que insurge no romance como uma voz que se
desloca e, ao mesmo tempo, prende-se às personagens e à diegese. Sabe-se que o autor é
falado (Lacan) no romance, pois suas escolhas lexicais, seu enredo, suas personagens e
digressões são elementos que denunciam seu ser. O autor, assim como as personagens,
também representa papéis.
78
Diante de seu papel, o autor cria consciências outras que se
distanciam de seu ser biográfico e que, por vezes, inverte o papel e torna-se parte integrante
do público, para se ver encenado no palco. Ou, nas palavras de Lima em Persona e sujeito
ficcional: “Desloco-me de meu papel para que eu seja meu próprio voyeur”
79
(Grifo do
autor.)
77
CHAVES, op. cit.
78
LIMA, Luiz Costa. 1990. Persona e sujeito ficcional. In: CONGRESSO DA ABRALIC, 2., Belo Horizonte,
1990. Anais... Belo Horizonte, 1990.
79
Op. cit. P.127.
39
uma espécie de isomorfismo entre autor e persona, justamente porque cada ser
tem seu papel na vida ou no romance. Assim como a personagem, do ponto de vista da
literatura, apresenta muitas máscaras,
80
pois se constitui como parasita do real
81
(grifo do
autor) e, portanto, encarna “o papel” ou as atitudes e características humanas, o autor também,
como ser enunciativo, desempenha, em seu desdobramento textual, papéis que o distanciam e
ao mesmo tempo o aproximam de sua essência ou de sua persona.
Segundo Lima, o autor se constitui como persona quando o mesmo cria
carapaças simbólicas do indivíduo. É no exercício dos vários papéis que o homem se
constitui e marca sua alteridade, quer real, quer ficcional. O papel do autor (ser biográfico) é
recriar o mundo (ficcional) como possibilidade discursiva. Numa relação hierarquizada, teria-
se aquele que cria (autor) e aquele que é criado (persona), mas, quando esses dois elementos
estão inseridos num texto, ambos se constituem e se definem como seres sígnicos. Poder-se-ia
dizer, então, que o autor biográfico cria uma espécie de persona-autor, que se interpõe
textualmente num desdobramento metalingüístico.
Chiappini,
82
ao sistematizar alguns teóricos em literatura, para referencializar a
questão do autor, utiliza os conceitos de Booth, em A retórica da ficção, e de Dal Farra, em O
narrador ensimesmado, os quais explicitam a existência de um autor implícito.
83
Nesses
estudos, Booth menciona:
[...] o autor não desaparece mas se mascara constantemente, atrás de uma
personagem ou de uma voz narrativa que representa. A ele devemos a categoria de
autor implícito, extremamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do
jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração.
84
80
Persona(ae) era a máscara de madeira usada pelos atores gregos [...] por transporte semântico, depois a
palavra designou a configuração externa do ser, o contorno, o físico, [...]” Não confundir com persona
descrita por Luiz Costa Lima, cujo correlato está para “papel”.
81
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Cia. das Letras,1999. p. 89.
82
LEITE, M.; CHIAPPINI, Lígia. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1991.
83
É preciso ressalvar que a fonte pesquisada no que se refere ao autorimplícito é de
segunda mão, devido à dificuldade de consultar a fonte primária.
84
LEITE, M.; CHIAPPINI, Lígia. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1991. p. 18.
40
De forma correlata a Lima, Dal Farra, em O narrador ensimesmado, afirma que o
autor é um manejador de disfarces, que encoberto pela ficção insurge do interior da narrativa
denunciando sua presença pela escolha sígnica, da pontuação e das personagens que cria para
deixar sua marca.
Mas esse jogo entre autor implícito, narrador e personagens pode ser feito por
meio do leitor. Ao discutir o conceito de Booth, Chiappini diz que o deslocamento do ponto
de vista pode, a princípio, nos confundir, pois corremos o risco de cair em psicologismos ou
confundir personagens com pessoas, ou, ainda, confundir autor real com autor ficcional.
Segundo a autora, Booth tomou os devidos cuidados ao considerar a obra na sua
materialidade. E acrescenta ainda que,
o AUTOR IMPLÍCITO é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda
os movimentos do NARRADOR, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo
cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos
ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na HISTÓRIA.
85
Essa imagem ou essa persona, criada pelo autor, abre espaço para se pensar o sentido
de orquestração. Um deus criador surge para delinear um mundo sígnico, sua presença
pode ser percebida quando mediada por um leitor, mas é forte o suficiente para impor-se para
além e aquém das amarras de um narrador, de uma personagem ou de um ser real, biográfico,
para ser uma presença, um desdobramento metalingüístico.
Em Lector in fábula, Eco define o autor-modelo como aquele que coopera com o
texto, com o intuito de atualizar ou preencher os vazios e os índices que o texto carrega.
Segundo Eco, “o texto é uma máquina preguiçosa que exige do leitor um trabalho
cooperativo para preencher espaços do não-dito ou do já dito que ficaram, por assim dizer, em
branco, então o texto simplesmente não passa de uma máquina pressuposicional”.
86
85
Op. cit., p. 19.
86
ECO, op. cit., p. 11.
41
O autor (ser biográfico), ao criar seu universo ficcional, pressupõe um leitor-modelo
com a competência necessária para decodificar os variados meandros sígnicos de seu texto.
Trata-se de uma estratégia discursiva,
87
na qual o texto prevê não o leitor-modelo, mas
também o autor-modelo. Assim, leitor e autor, ao cooperarem entre si, desempenham papéis
no processo de construção textual.
A presença de um autor-modelo num texto se deve a certas conotações que indiciam
sua presença. Essas conotações são facilmente observadas quando temos em um leitor cujo
repertório crítico é ativo, isto é, capaz de operar o código metalingüisticamente. Sua presença
deriva de uma relação dialética entre o repertório de informação dado pelo emissor em relação
ao receptor: “Uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de conceitos e
formas já adquiridas pelo receptor porque fazem parte do senso comum, da cultura.”
88
O emissor, quando combina seus signos, não o faz gratuitamente, o autor-modelo
estava previsto intencionalmente, mas o percebemos quando o leitor-modelo o decodifica
metalinguisticamente.
Sendo assim, os pressupostos utilizados por Eco, ao tratar do autor-modelo, podem
ter uma correlação com uma voz metalingüística, que discute seu fazer textual. O mito do eu
do autor se concretiza pelo leitor e pela metalinguagem. uma espécie de dialogia entre
leitor e texto para se chegar ao autor-modelo. É o que observa Ferrara, em A estratégia dos
signos:
Na linguagem dialógica, escritura e leitura, emissor e receptor se suplementam, a
escritura solicita e comanda um suplemento de escritura. Este dobrar e desdobrar de
leitura, essa espécie de repetição da mesma prática parece apagar toda a novidade do
discurso, mas, na realidade, constitui toda a especificidade da linguagem dialógica
ou da moderna prática da linguagem.
89
Embora a autora explicite o dialogismo como forma paródica, sua análise também é
pertinente para o autor-modelo. Na paródia, quem opera o código ou faz a dupla leitura entre
87
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Cia. das Letras.1999. p. 31.
88
CHALHUB, Samira. Funções de linguagem. São Paulo: Ática, 1995. p. 15.
89
FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. A estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 89.
42
o texto-fonte e o texto parodiado é o leitor. Se ele não tiver o conhecimento prévio do texto-
fonte, a paródia não existe para esse leitor. Ao mesmo tempo, a paródia não deixa de ser um
desdobramento metalingüístico. Por isso, Eco apresenta os níveis de cooperação textual como
estratégia discursiva, para que haja a existência desse autor-modelo, mas isso decorre, antes
de tudo, do diálogo entre o leitor sagaz e o texto. Ou, nas palavras de Ferrara, “a
metalinguagem coloca em evidência outro aspecto estrutural do dialogismo: a leitura”.
90
E
desse diálogo pode-se concluir que o autor-modelo também pode ser uma faceta da
metalinguagem.
Finalmente, pode-se dizer que essa voz que se insere nos romances não pode ser
confundida com seu autor (ser biográfico). Trata-se, na realidade, de uma estratégia discursiva
criada intencionalmente por seu autor biográfico, com o intuito de fazer com seu leitor
perceba sua presença e que, por sua vez, inscreve-se metalingüisticamente e, também, que
esse alter ego reflexivo do autor possibilita o encaminhamento temático e inter/extratextual
do romance e das personagens. Considera-se a classificação feita por Eco, quanto ao autor-
modelo, no que concerne à estratégia discursiva prevista pelo autor e da participação do autor-
modelo, como parte integrante desse processo. Por outro lado, considera-se válida, também, a
classificação de autor-implícito, sistematizada por Chiappini ao estudar Booth e Dal Farra, ao
explicitar que o autor-implícito “é uma imagem do autor real criada pela escrita”,
91
e que o
mesmo pode existir com a presença do leitor. Como diria Lima, o papel do autor (ser
biográfico) é recriar um universo ficcional como possibilidade discursiva e ao fazê-lo
desdobra de si mesmo um eu que é um outro.
Lima, no conjunto de ensaios que define como trilogia do imaginário, publicada ao
longo da década de 80, acredita que a criação literária ocidental se processa sob o veto do
ficcional, e que a tematização do tempo é também o traço essencial da narrativa histórica. O
90
Op. cit., p. 80.
91
LEITE; CHIAPPINI, op. cit., p. 19.
43
último parágrafo aponta para o mesmo caminho, lembrando a proximidade de origem e de
configuração do romance e da história:
[...] é interessante notar que o desenvolvimento do romance se pari passu com o
desenvolvimento da escrita da história. História e romance são formas discursivas
firmadas sobre o mesmo veículo: a prosa narrativa. Daí mesmo a dificuldade de
perceber-se e aceitar-se sua inscrição em campos discursivos diversos, sujeitos a
exigências distintas, em vez da tendência mais freqüente de subordinar uma à outra.
(Historicamente, essa tendência sempre se fez no sentido de subordinar o romance à
verdade da história).
92
92
LIMA, L.C. A questão da narrativa. In: ______. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro, Rocco, 1991. p. 140.
44
3 A LITERATURA NARRA A HISTÓRIA
O presente trabalho se debruça sobre a análise da obra que inaugurou o romance
gaúcho, A divina pastora, escrita em 1847, e O Corsário, escrito em 1849, ambas de autoria
de José Antonio do Valle Caldre e Fião, ambientadas na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul, no período imperial, logo após o término da Revolução Farroupilha (1845).
Nos romances, foram retratados a fisionomia dos pampas, o mito, o herói, o anti-herói, a
donzela desprotegida, a história, o povo e o gaúcho, com seus costumes, sua cultura, seus
ideais éticos e humanitários. A o autor se revela homem sensível aos anseios de liberdade,
sempre disposto a ajudar humanitariamente os escravos, os pobres e os necessitados. O foco
de análise faz-se sobre a tênue fronteira existente entre história e literatura. Procura-se
evidenciar as maneiras encontradas pela literatura para revelar os aspectos históricos e os
papéis sociais através dos diversos discursos apresentados pela narrativa.
Considera-se importante retratar o contexto histórico do período em que as obras
foram publicadas, para se compreender o espaço circundante do narrador e das personagens.
Tratamos por espaço para referirmos ao tempo das obras, onde foram escritas, para quem
foram escritas.
Os efervescentes anos de fundação da literatura brasileira produziram um intenso
debate que evidencia tanto as tentativas de definir a cor local quanto os primeiros esforços de
construção de uma história literária no País. A coincidência entre o processo de independência
e a busca de definição da especificidade da literatura gerou um movimento na cultura voltado
para buscar os pressupostos tanto da história propriamente dita quanto os da história literária.
Nesse esforço de delimitação metodológica dos fundamentos de uma história
literária, os textos pioneiros de Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), “Ensaio
45
sobre a história da literatura do Brasil” (1836), e de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-
1878), “Ensaio histórico sobre as letras no Brasil” (1847), tornaram-se responsáveis por traçar
“esquemas cronológicos que serviram de base à construção de uma periodologia”, veiculando,
diz Nunes,
93
pressupostos que contribuíram para estabelecer uma tradição canônica romântica.
“Ensaio sobre a história da literatura do Brasil foi publicado em 1836, no período
entre a Segunda Regência e a Maioridade, quando o autor encontra-se em Paris, completando
sua formação estudantil. Nesse momento, as elites políticas locais se articulavam em torno
da possibilidade de decretar a maioridade do príncipe regente, lidando com uma frente de
batalha dupla, tanto contra as ameaças de recolonização do país pelos portugueses, como
contra o radicalismo político das revoluções regenciais. Ressalte-se ainda que, naquela época,
a consciência de pertencer à unidade territorial não estava ainda consolidada na cultura. A
publicação do artigo de Magalhães coincide tanto com as manobras políticas no sentido de
conter a “maré” revolucionária, republicana e abolicionista, quanto de formar e revelar um
sentimento de unidade nacional, fundamental para as medidas de controle da economia e da
política brasileiras, empreendidas por um governo central.
Nesse período germinal da historiografia literária e de definição da literatura
brasileira, o artigo de Magalhães fundamenta suas motivações não necessariamente numa
empreitada voltada para traçar um balanço exaustivo dos períodos, das obras literárias e dos
autores da história, autodefinindo-se, antes, como um projeto de historiografia, uma
sondagem sobre a origem e o progresso da literatura. O texto levanta uma série de questões a
respeito dos critérios em torno dos quais a historia literária deveria assentar seus pressupostos,
traçando um esboço prévio para as histórias literárias que o seguiram.
Tributário em grande medida do texto de Denis, “Resumo da história da literatura
brasileira” (1826), Magalhães pressupõe uma ancestral e ‘instintiva’ evolução da inteligência
brasileira que, segundo ele, viera se constituindo com os aborígenes, mas que teria sido
93
NUNES, Benedito. Crivo de papel. São Paulo: Ática, 1998.
46
abortada pela invasão portuguesa. Propõe, com isso, que uma história literária deve teorizar o
espírito de cada época, procurando averiguar as modificações sofridas ao longo de seu
desenvolvimento, desde sua origem.
Para tanto, adota a convicção anacrônica de que, no Brasil, teria havido, desde a
Colônia, uma literatura brasileira com peculiaridades próprias, mas que, em contato com a
portuguesa, teria sofrido modificações que fizeram com que sua especificidade desaparecesse.
Uma história literária brasileira deveria, assim, averiguar quais foram as mudanças sofridas
pelo que se concebe como expansão da inteligência brasileira em cada uma de suas fases.
Assim, entre os pressupostos que levanta a respeito dos critérios de construção da
história literária, destina um lugar de destaque à filosofia da história, cabendo-lhe analisar
“qual a sua origem, seu progresso, seu caráter e suas fases”, além de observar os “homens que
a cultivaram e as circunstâncias que a tolheram ou favoreceram seu florescimento”. Para
Magalhães, uma vez que cada época é determinada por um espírito, ou uma razão própria, a
filosofia da história deve também fazer um levantamento das obras e dos autores
representativos de cada época:
Por um espírito de contágio, uma idéia lavra entre os homens de uma época; reúne-
os em crenças, em pensamentos se harmonizam e para um fim tendem. Cada
época representa então uma idéia que marcha escoltada doutras, que lhe são
subalternas, como Saturno rodeado de satélites, ela contém e explica as outras idéias
como as premissas no raciocínio contém e explicam a conclusão. Essa idéia é o
espírito, o pensamento mais íntimo de sua época.
94
Não obstante, a certa altura de seu texto, o autor desiste da empreitada de avaliar a
idéia que teria marcado as modificações de cada fase da literatura, alegando carência de
documentação. Essa espécie de fuga do problema proposto pela discussão, realizada por meio
do questionamento de seus princípios mais legítimos, pode ser melhor compreendida na
evidência de que o texto, ao se apoiar na romântica correspondência entre as origens da
94
MAGALHÃES, Gonçalves de. Ensaio sobre a história da literatura do Brasil. Niterói, Revista Brasiliense,
versão facsimilada pela Biblioteca da Academia Paulista de Letras, p. 134-135, 1978, t. 1.
47
tradição de um povo com sua literatura, funciona objetivamente como programa de definição
da nacionalidade em literatura.
Dessa forma, apesar de anunciar, em sua introdução, que seu objetivo seria averiguar
qual a razão que marca os diversos períodos da história literária brasileira, Magalhães, ao
longo de seu texto, abandona essa intenção, submetendo a história dessa literatura a um
programa de definição de sua especificidade. Mas esse abandono da filosofia da história, em
favor de um programa de definição da cor local,o se restringe a Magalhães, mas foi, antes,
uma ruptura gestada nos momentos iniciais dessa metodologia, num período anterior à
ascensão da burguesia como classe dominante.
Na passagem do século XVIII para o XIX, o nascimento da história literária foi antes
de tudo uma reação contra a antiga concepção de tempo, como um fenômeno circular que
repete o passado no presente, reproduzindo categorias e abstrações universais, tomadas como
fundamentos de uma verdade absoluta e sagrada. Proposta inicialmente por Herder, por volta
de 1770, quando da vigência do movimento romântico alemão, Sturm und Drang, e levado a
cabo posteriormente pelo idealismo alemão, especialmente por Schiller e Goethe, a moderna
concepção da história baseia-se no conceito de Bildung (formação e cultura), formulado em
estreita relação com o de filosofia da história.
De acordo com os pressupostos do idealismo alemão, o processo de formação da
sociedade e da literatura de um povo obedeceria a um princípio orgânico, análogo ao dos
fenômenos naturais, nascendo, amadurecendo e degenerando-se ao longo de uma cadeia
evolutiva, mas de tal forma que cada uma de suas épocas seria regida por leis próprias e
singulares. Assim, a história se desenrolaria estabelecendo relações de causa e efeito entre um
período anterior e o seguinte, movida por forças relativas e particulares, determinadas pelos
traços típicos de cada fase da sociedade.
48
Em seus momentos iniciais, a história literária buscou assentar seus fundamentos,
ressaltando a necessidade de se levantar os nexos que a ligam à história da literatura mundial.
Obcecados pela idéia de uma essência original ou de idéias primordiais regendo a formação
dos fenômenos, os românticos alemães prescrevem que a história literária averigúe os nexos
factuais que podem ligar um período dado a outro remoto, por meio de estudos comparativos,
que pudessem estabelecer as inter-relações fundantes de uma cultura com a de outra anterior.
A aceitação de que haveria uma essência orgânica regendo a harmonia entre os
contrários pressupõe, conforme Steiner,
95
a universalidade comum das leis de regulação dos
fenômenos, a literatura entre eles, e, simultaneamente, a necessidade de estudar as conexões,
os contrastes e a harmonia entre uma cultura e o sistema mundial em que ela se insere.
Assim, as formulações iniciais de uma história literária não se dissociavam da
história universal. Ressaltavam-se, antes, os nexos entre ambas, adotando como metodologia a
comparação entre as diversas literaturas do mundo. Os idealistas românticos procuram com
isso averiguar o legado de uma na outra, pressupondo um entrelaçamento dos acontecimentos
nas regiões do mundo, de tal sorte que estas podem ser compreendidas, numa expressão de
Elias, “no quadro de referência da humanidade como um todo”.
É nesse sentido que o princípio de originalidade das leis que regem a cultura leva a
teoria idealista da história a dividir a literatura de um povo em fases e conceber que cada uma
delas seria determinada, conforme Jauss, por uma idéia fundamental, interligando todos os
acontecimentos do mundo, até que tal idéia seja substituída por outra razão própria que
marcaria uma nova fase e a superação da anterior.
Se a história se constrói como uma linha evolutiva no processo de formação de uma
cultura, a filosofia da história seria o conhecimento do desenrolar desse processo ou,
conforme a formulação de Schelling,
96
a história deveria compreender as leis que regem a
95
STEINER, Georg. Nenhuma paixão desperdiçada. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 153.
96
SCHLEGEL, Friedrich. Conversas sobre poesia e outros fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 45.
49
formação da cultura, acompanhando todas as etapas de sua formação, indo de etapa em etapa
até chegar a uma provável fonte original.
Essa concepção evolutiva da história de um povo e de sua literatura coincide, como
se sabe, com o apogeu do capitalismo industrial, quando a burguesia caminha para tomar o
poder e firmar-se como classe hegemônica. Para Elias, a imagem da burguesia industrial,
como classe social em ascensão, foi simbolicamente apreendida, no plano das idéias, como
evolução da inteligência da humanidade.
Nesse momento, o domínio da técnica e da natureza e a iminência de ascensão da
burguesia contribuem para disseminar o sentimento de que a cultura avançava e que, por isso,
cada povo seria devedor de eras passadas que, de um ou de outro modo, teriam contribuído
para o progresso da humanidade. Diante dessa leitura, a história universal justificava-se “com
o argumento de que a concatenação dos eventos que tinham levado às circunstâncias das
gerações atuais podia ser entendida quando fosse reconhecido [...] que ‘uma longa cadeia
de eventos, interligados como causas e efeitos, estende-se desde o presente até os primórdios
da raça humana’.”
No entanto, mesmo que em seus primórdios a história literária tenha sido concebida
em estreita conexão com a filosofia da história, imediatamente depois a primeira delas
desliga-se da segunda. Com isso, a história literária deixa de observar os nexos causais que
ligam uma série de acontecimentos numa longa cadeia histórica. Ao falar em filosofia da
história, os momentos germinais da história literária pressupunham que o acompanhamento
cronológico dos autores e de suas obras, ao longo de uma cadeia temporal, dependia da
averiguação dos princípios sociais, culturais e políticos que ligam as fases de uma literatura às
da literatura mundial.
Dependia também da comparação entre os traços básicos dessa literatura dada com
os que norteiam as literaturas de todo o mundo, procedimento capaz de fornecer o
50
entrelaçamento factual entre elas e, com isso, a medida do progresso da humanidade. No
entanto, ao longo do século XIX, esse imbricamento entre filosofia da história, história da
literatura e literatura comparada desapareceu, cedendo lugar e esbarrando no isolamento da
história no âmbito da cultura, sem que se ressaltassem suas inter-relações com a história
política e social. Ao mesmo tempo, verificou-se que a história literária aderiu, em todo o
Ocidente, à ideologia nacionalista.
A retirada da história literária do âmbito político e seu conseqüente alheamento na
esfera da cultura, sobretudo na religião, na ciência, na arquitetura, na filosofia e na literatura,
devem-se, para Elias,
97
ao fato de que, no século XVIII, a história política e os assuntos dos
Estados absolutistas eram de competência dos membros da nobreza, configurando um espaço
que simbolizava, para os membros da burguesia ilustrada, a “área de sua humilhação e de sua
falta de liberdade”.
3.1 A Província de São Pedro
A vida econômica e social brasileira, após a independência, apresentava-se como
uma sociedade tradicional, patrimonialista, latifundiária, conservadora e escravista. No
período entre 1822 até 1840, o Brasil viveu em permanente instabilidade política, não
apresentando grandes modificações no plano social e econômico.
Inicialmente, o processo de independência do Brasil monopolizou os esforços
políticos e ideológicos das elites intelectuais brasileiras. A ruptura cultural e política com
Portugal e a formação de um grande império americano teriam reflexos nas representações
ideológicas. Nessa época, sobretudo no Brasil, a literatura identificava-se com a poesia e era
vista, por muitos, como a mais elevada expressão cultural e espiritual de um povo e de uma
nação.
97
Elias, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução dos habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro:
J. Zahar, 1997. p. 121.
51
Segundo Maestri,
98
após a definitiva independência de Portugal, a inclusão da
literatura brasileira, como uma página da literatura portuguesa, pretensão de muitos autores da
época, era considerada pelos senhores da nova nação como sinônimo de subserviência
colonial. Para as elites brasileiras, a construção de uma literatura nacional, de uma cenografia
nacional, de uma historiografia nacional, de uma arquitetura nacional era conseqüência lógica
da conclusão do processo de emancipação iniciado em 1822 e concluído em 1831.
O tardio desenvolvimento do capitalismo no Brasil e os interesses dos senhores
escravistas impediram que se suprimisse mais cedo a escravatura. No início do século XIX,
apenas alguns segmentos da pequena burguesia urbana, timidamente, é que se opuseram à
escravidão. A abolição acabou se impondo como realidade. O Império resistiu sempre a uma
abolição brusca, com medo de abalar os fundamentos da propriedade, mesmo quando fatores
importantes, como a pressão inglesa e o progresso da cafeicultura paulista em ritmo
empresarial, passaram a favorecê-la. A abolição do tráfico, em 1850, constituiu-se no marco
precursor mais importante da abolição: além de ter encarecido consideravelmente o escravo,
colocou em disponibilidade consideráveis parcelas de capital, para investimento na indústria,
no comércio e na agricultura.
Quatro grandes movimentos provinciais ameaçaram a unidade do País: a
Cabanagem, que explodiu na Província do Pará em 1835; a Revolução Farroupilha, no Rio
Grande do Sul, que durou de 1835 a 1845; a Sabinada, na Bahia, no período de 1837 e 1838 e
a Balaiada, no Maranhão, de 1838 a 1841.
Cabe, agora, antes de aprofundar a questão Farroupilha, cenário dos romances em
análise, lembrar o panorama sul-rio-grandense para melhor se contextualizar esta pesquisa.
A história do Rio Grande do Sul começou bem antes da efetiva ocupação de seu
território pelos portugueses. Inicialmente, o estado era uma “terra de ninguém”, de difícil
acesso e muito pouco povoada. Vagavam por suas pradarias os índios guaranis, charruas e
98
MAESTRI, Mário. Uma história do Brasil: Império. São Paulo: Contexto, 1997. p. 65.
52
tapes e, vez por outra, aventureiros que penetravam em seu território em busca de índios para
apresar e escravizar. Esse quadro foi modificado com a chegada dos padres jesuítas que, no
início do século XVII, na região formada pelos atuais estados do Rio Grande do Sul e Paraná,
e pela Argentina e Paraguai, fundaram as Missões jesuíticas. Nelas se reuniam, em torno de
pequenos grupos de religiosos, grandes levas de índios guaranis convertidos. Procurando
garantir a alimentação desses índios, os jesuítas introduziram o gado em suas reduções. O
clima e a vegetação propícios fizeram com que o gado se multiplicasse. Com isso, a região
passou a oferecer dois atrativos para os que apresavam índios: os próprios índios e o gado.
Até 1640, várias expedições vindas de São Paulo estiveram no Rio Grande, para
capturar índios e gado, provocando o desmantelamento das Missões existentes no atual
estado. Nessa época, os índios, comandados pelos jesuítas, derrotaram os chamados
bandeirantes e as missões tiveram mais de cem anos de paz. Ao final do século XVII, devido
aos constantes conflitos de fronteira entre Portugal e Espanha, os jesuítas resolveram
concentrar a população indígena convertida em uma área que consideravam mais segura, e
escolheram a zona localizada na Região Noroeste do Rio Grande do Sul. Foram criados os
Sete Povos das Missões. Mas a prosperidade desses povos, que funcionavam
independentemente das coroas portuguesa e espanhola, terminou por decretar seu fim. Em
1750, um tratado firmado entre os dois países estabeleceu que a região das Missões passaria à
posse de Portugal, em troca da Colônia de Sacramento, que havia sido fundada pelos
portugueses em 1680 nas margens do rio da Prata, defronte a Buenos Aires. Embora tenha
havido resistência por parte de padres e índios, as Missões foram desmanteladas. Mas
deixaram um legado que, por muito tempo, seria a base da economia do Rio Grande do Sul:
os grandes rebanhos de bovinos e cavalos, criados soltos pelas pradarias. Esses rebanhos
atrairiam os colonizadores portugueses, que passaram a se instalar na região de forma
sistemática a partir de 1726.
53
A descoberta das minas de ouro em Minas Gerais, posteriormente, criou uma grande
demanda pelo gado da região, e consolidou a ocupação do território. Naquela época, a célula
básica da comunidade gaúcha eram as estâncias, sempre com grandes extensões, onde o gado
era criado. Em 1740, chegou à região do atual Rio Grande do Sul o primeiro grupo
organizado de povoadores. Vindos da ilha dos ores, contavam com o apoio oficial do
governo, que pretendia que se instalassem na vasta área onde anteriormente estavam situadas
as Missões. Mas as dificuldades de transporte fizeram com que terminassem por se fixar na
área onde hoje está Porto Alegre, a capital do estado. Praticando a agricultura de pequena
propriedade, não encontraram, em um território em que cada estância funcionava como uma
célula independente, mercado para seus produtos, e terminaram por se integrar à economia
voltada para a pecuária.
Posteriormente, em 1780, um fato iria reforçar ainda mais o caráter rural da vida do
atual estado. Foi criada a primeira charqueada comercial em Pelotas. Aos poucos, o charque
se tornou o principal produto de exportação do Rio Grande, sendo enviado para as demais
regiões do País. Essa situação começou a ser modificada no início do século XIX. A estrutura
econômica do Brasil de então se baseava na exportação dos produtos agrícolas plantados em
grandes propriedades por trabalhadores escravos. O Rio Grande fornecia o charque para esses
trabalhadores, e também para os moradores pobres das grandes cidades. Mas, a partir da
década de 20 do século passado, o governo brasileiro resolveu estimular a vinda de imigrantes
europeus, para formar uma camada social de homens livres que tivessem habilitação
profissional, e pudessem oferecer ao País os produtos que até então tinham que ser
importados, ou que eram produzidos em escala mínima. Isso significa que o governo queria
trazer pequenos produtores para fornecer alimentos para as cidades e artesãos. A idéia,
apoiada por alguns, era rejeitada pelos senhores de escravos, que temiam que os trabalhadores
livres “fossem um mau exemplo”, demonstrando que o trabalho pago produzia mais e melhor
54
que o escravo. Moradores de regiões mais ao Norte do País, os grandes senhores de escravos,
conseguiram impedir que os imigrantes fossem destinados às suas regiões. Por isso, o governo
terminou por levá-los para o Rio Grande do Sul, que estava situado à margem do grande eixo
econômico, no centro do País.
Os primeiros imigrantes que chegaram foram os alemães, em 1824. Eles foram
assentados em glebas de terras situadas nas proximidades da capital gaúcha. E, em pouco
tempo, começaram a mudar o perfil da economia do atual estado. Primeiramente,
introduziram o artesanato em uma escala que, até então, nunca fora praticada. Depois,
estabeleceram laços comerciais com seus países de origem, que terminaram por beneficiar o
Rio Grande. Pela primeira vez havia, no País, uma região em que predominavam homens
livres, que viviam de seu trabalho, e não da exploração do trabalho alheio.
As levas de imigrantes se sucederam, e aos poucos transformaram o perfil do Rio
Grande. Trouxeram a agricultura de pequena propriedade e o artesanato. Por meio dessas
atividades, consolidaram um mercado interno e desenvolveram a camada média da população.
E, embora o poder político ainda fosse detido pelos grandes senhores das estâncias e
charqueadas, o poder econômico dos imigrantes foi, aos poucos, se consolidando. Durante a
fase inicial da colonização alemã, um fato iria abalar a política e a economia do Rio Grande,
causando reflexos políticos no centro do País e até nos países vizinhos. Foi a Revolução
Farroupilha, que durou de 1835 a 1845.
Como pano de fundo das obras em análise nesta pesquisa, a Revolução Farroupilha
merece destaque e contextualização. Também chamada Guerra dos Farrapos, explodiu no RS
e foi a mais longa revolta brasileira. Durou dez anos, e uma das suas principais causas foram
os problemas econômicos da classe dominante. O Rio grande do Sul tinha uma economia
baseada na criação de gado e vivia, sobretudo, da produção do charque. Este era vendido nas
diversas províncias brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e na Região
55
Nordeste), para a alimentação dos escravos. Os produtores gaúchos, donos de imensas
estâncias, reclamavam duramente do governo do Império contra a concorrência que sofria do
Uruguai e da Argentina, países que também produziam e vendiam charque para as províncias
brasileiras. Como os impostos de importação eram baixos, os produtos importados do Uruguai
e da Argentina chegaram a custar menos que a carne do Rio Grande do Sul. A concorrência
estava arruinando a economia gaúcha.
Os poderosos estancieiros gaúchos queriam que o governo do Império protegesse a
pecuária do Rio Grande e dificultasse a entrada do charque argentino e uruguaio no Brasil.
Essa mesma elite de grandes estancieiros também brigava com o governo do Império por uma
maior liberdade administrativa para o Rio Grande do Sul. Entre os principais líderes dos
farroupilhas destacaram-se Bento Gonçalves, David Canabarro e José Garibaldi.
Em 1835, Bento Gonçalves comandou as tropas farroupilhas que dominaram Porto
Alegre, capital da província. O governo do império reagiu energicamente, mas não teve forças
suficientes para derrubar os farroupilhas. A rebelião expandiu-se e, em 1836, fundou a
República Rio Grandense, também chamada República de Piratini. O momento máximo da
expansão do movimento farroupilha deu-se em 1839, com a conquista de Santa Catarina e a
fundação da República Juliana, sob o comando de David Canabarro e Garibaldi.
A Revolução Farroupilha foi contida a partir de 1842, por meio da ação militar de
Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias. Além da ação militar, Caxias procurou
entrar em acordo com os líderes farroupilhas. Em dia de março de 1845, durante o
Segundo Reinado, celebrou-se o acordo de paz entre as tropas imperiais (comandadas por
Caxias) e as forças farroupilhas.
Voltando ao contexto nacional, o Segundo Reinado pode ser dividido em três
momentos: de 1840 a 1850 período da consolidação do Império, marcado pela criação de
leis voltadas para a ordem, até então ameaçada pelos movimentos populares. Dentro desse
56
contexto, os romances de Caldre e Fião foram escritos: A divina pastora (1847) e O Corsário
(1849); de 1850 a 1870 período da estabilidade geral, marcado pelo desenvolvimento da
economia cafeeira e por uma série de realizações materiais feitas pelos grandes proprietários
rurais capitalistas; de 1870 a 1889 declínio da monarquia, quando começaram a se
desenvolver a propaganda e o movimento republicano, que puseram fim ao Império. Entre as
principais medidas, os liberais procuraram pacificar o País, concedendo anistia a todos os
implicados nas rebeliões regenciais. A Câmara, formada em sua maioria por conservadores,
opunha-se ao gabinete liberal. Valendo-se do poder Moderador, o imperador dissolveu a
Câmara e convocou novas eleições a qualquer custo, utilizando-se de todos os meios
possíveis. Novos presidentes foram nomeados para as províncias; juízes de direito e
delegados foram substituídos. Todas essas mudanças tinham o objetivo de intimidar o
eleitorado e garantir a vitória para os liberais.
Os liberais de São Paulo esperavam ajuda dos liberais das Províncias de Minas
Gerais e do Rio de Janeiro e dos farroupilhas que ainda lutavam contra o Império no Sul do
País. Em 17 de março, Tobias de Aguiar, em Sorocaba, foi proclamado presidente provisório
da província. Os liberais paulistas já estavam derrotados quando os de Minas entraram na luta.
Comandada pelos liberais moderados José Feliciano Pinto e Nunes Galvão, receberam o
apoio do liberal exaltado Teófilo Ottoni. Os liberais das duas províncias foram presos e
anistiados em 1844 pelo imperador. Pouco a pouco, foram se integrando à nova ordem
imperial e aceitando a centralização do poder. De 1844 a 1848, quando dominaram o poder,
os liberais utilizaram as mesmas leis reacionárias que haviam combatido. O Brasil
escravocrata tinha preconceitos contra o trabalho manual; por isso, quase não havia escolas
técnicas no País. O ideal educativo de nossa sociedade patriarcal era o bacharel, com sua
retórica vazia e pomposa. No Parlamento, e nos altos cargos do Estado, predominavam os
bacharéis. O revezamento dos partidos no poder, as disputas entre as elites e a necessidade de
57
progresso material no País requeriam uma estabilidade do Estado, que era dada pelo
imperador e pela burocracia estatal.
A prática de conciliação foi muito comum ao longo de toda a história do Brasil.
Embora se tenha tentado confundir a noção de conciliação com a de entendimento, ambas são
distintas. Numa conciliação, os grupos dirigentes, sem muito contato popular, sem diferenças
econômicas, sociais ou partidárias profundas entre si, desejam por trégua à recomposição de
forças, para impedir que outros setores sociais, ou mesmo as disputas entre os grupos
dominantes, pudessem criar dificuldades para a situação vigente. Portanto, conciliação é um
arranjo, um acordo entre elites dominantes, sem consulta ou apoio popular, um pouco contra o
próprio povo.
Tanto liberais como conservadores podiam participar do mesmo governo,
defendendo o centralismo progressista, que lhes dava cargos governamentais. A década de
1850 foi marcada pela conciliação e pelo progresso material que beneficiava os grupos
dominantes. A conciliação começou a declinar com a morte do Marquês de Para e com o
abalo provocado pelas quebras no comércio e na indústria em 1856. A defesa da livre
iniciativa unia conservadores moderados que queriam reformas parciais e liberais moderadas,
que odiavam a revolução e a temiam. A Liga Progressista dominou o poder de 1862 a 1868,
quando fundiu-se com os liberais históricos, reunificando os liberais. Uma parcela dos liberais
mais jovens, aliado a alguns liberais históricos, formou o Partido Radical, que identificava o
liberalismo com a democracia e exigia descentralização, ensino livre, Senado temporário e
eletivo, extinção do poder Moderador e sufrágio direto e universal, entre outras
reivindicações.
Dessa forma, concorda-se com o pensamento de Sodré,
99
em que aponta a literatura
como consolidadora do Estado nacional.
99
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1964. p. 25
58
É nesta fase que vamos vivendo que os escritores, em nosso país, aproximam-se da
vida, isto é, do que os rodeia, da terra, da gente, dos dramas e dos problemas
próprios do nosso meio e do nosso tempo, elaborando uma literatura peculiar,
original e brasileira. E tão somente por isso é que nos distanciamos da periodicidade
adotada, como as suas poucas variações, para obedecermos ao critério histórico,
mostrando como o desenvolvimento literário em nossa terra obedeceu às
contingências econômicas, políticas e sociais que lhe impuseram um período
colonial, na vigência da subordinação à metrópole, um período de elaboração
nacional, na vigência da estrutura econômica levantada na fase de subordinação, e
um período, ainda recente, caracterizado como nacional, quando o Brasil adquire os
traços que definem a nação, entre os quais se destaca, pela sua importância, o da
participação do povo na obra nacional, inclusive na literária, pelo conhecimento e
pelo interesse com que começa a encará-la e recebê-la.
Conforme foi considerado, por meio da literatura é possível perceber o movimento
da vida num outro tempo, escoado, vivido, passado. O historiador faz falar as suas fontes,
procura avidamente as marcas deixadas pela presença de pessoas de outro tempo, de um
tempo que foi presente (para o autor de outrora), pois, como diz Benjamin, “a história é
objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo
saturado de agoras”.
100
Não obstante, sua análise e compreensão se dão sempre a posteriori e,
paradoxalmente, num outro agora (do historiador).
Nesse sentido, o papel do autor como elo de ligação entre tempos presentes reais é
fundamental, pois segundo Sevcenko:
O ponto de intersecção mais sensível entre a história, a literatura e a sociedade está
concentrado evidentemente na figura do escritor. Eis porque uma análise que
pretenda abranger esses três níveis deve se voltar com maior atenção para a situação
particular do literato no interior do meio social e para as características que se
incorporam no exercício do seu papel em cada período.
101
Assim, chega o momento de debruçar-se sobre o percurso vivido pelo primeiro autor
de um romance rio-grandense: José Antonio do Valle Caldre e Fião,
102
que nasceu em Porto
Alegre em 15 de outubro de 1821. Foi professor antes de exercer a medicina, tornou-se
100
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 229.
101
SEVCENKO, Nicolau. A Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 246.
102
Veja-se Anexo D fotografia digitalizada da Revista do Partenon Literário 1876. Acervo do Instituto
Histórico Geográfico do Rio Grande do Sul.
59
médico, escritor e jornalista, além de político; apesar destas atividades, não se pode
estabelecer relações de sua origem social nem com a burguesia incipiente, nem mesmo com a
oligarquia rural, bem mais presente na sociedade rio-grandense da época.
No ensaio biográfico realizado por Carlos Reverbel, que consta no livro A divina
pastora, José Antonio do Vale, ainda sem o apelido que acrescentaria ao nome mais tarde, era
órfão de pai e, em 1834, aos 13 anos de idade, teria começado a trabalhar numa farmácia
porto-alegrense. Em 1837, com 16 anos, foi admitido como auxiliar da botica da Santa Casa
de Misericórdia de Porto Alegre, onde trabalhava por alimentação em troca de aprendizado.
Mais tarde mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou a faculdade de medicina e escreveu
seus dois romances: A divina pastora em 1847
103
e O Corsário em 1851, retornando ao Rio
Grande do Sul em 1852 após obter o diploma.
Apesar de sua formação, levou uma existência modesta,
104
porém militante: escreveu,
dirigiu e fundou vários periódicos,
105
nos quais defendia o ideário liberal da época. Em 1867,
durante o grande surto de cólera em Porto Alegre, participou ativamente como médico
sanitarista, mas, segundo Reverbel, o jeito de cuidar dos doentes revelou o destino que lhe
estava reservado, como médico dos pobres, naquela comunidade”,
106
seguindo desse modo até
o fim da vida. Participou ainda ativamente da fundação do Partenon Literário em 1868 além
de escrever libelos em defesa da abolição, até 1876, ano de sua morte.
103
As informações sobre datas de publicação dos livros de Caldre e Fiãoo muitas, Carlos Reverbel diz que a
obra A divina pastora foi escrita em 1847; porém, o livro Terra farroupilha: formação do Rio Grande do Sul,
de Aurélio Porto (volume comemorativo do segundo centenário da fundação do Rio Grande do Sul 1737-
1937) diz que o livro foi publicado em 1837. O mesmo acontece com O Corsário, que, segundo Aurélio
Porto, foi publicado em 1841.
104
Nas palavras de Aquiles Porto Alegre: “Como médico de grande clínica, jamais exigiu retribuição dos seus
serviços. os conscienciosos, espontaneamente, lhe recompensavam o trabalho. Morava numa casa de
modesta aparência [...]. Não tinha horas marcadas para repasto. Só vinha à casa quando sua clínica o permitia.
Tomava apenas uma refeição diária, um jantar de pobre ... [...].” (REVERBEL, Carlos. Traços biográficos de
Caldre e Fião. In: CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora. Porto Alegre: RBS, 1992. p.
250).
105
Fundou e dirigiu “O Filantropo” de 1849 a 1851, colaborou com “O Rio-Grandense” em 1852, foi redator
“n’O Conciliador” em 1857, e da publicação da Revista Partenon Literário de 1868 a 1876, e também
participou de “A Reforma” de Gaspar Silveira Martins em 1871. (CESAR, Guilhermino. Cronologia
bibliográfica. In: CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O Corsário. Porto Alegre: Movimento; IEL; INL,
1979. p. 20.
106
REVERBEL, op. cit., p. 249.
60
Carlos Reverbel descreve de maneira expressiva a posição social do velho escritor no
fim de sua vida, quando diz que “o velho lidador se encontrava nos últimos anos e, não
dispondo de poder, sua influência estava bastante limitada. Além disso, vivia notoriamente
em estado de pobreza franciscana”.
107
Caldre e Fião era, além de cristão, um homem de ciência, imbuído do espírito que
percorreu todo aquele século, resultado da herança dos modernos na crença firme de que os
problemas da sociedade se resolveriam pela ciência e pelo progresso. Talvez por isso o
espírito reto, generoso e militante desse rio-grandense, que possivelmente por adotar a crença
de que melhores seriam os resultados sociais obtidos, quanto mais participativo fosse o ser
humano na sociedade, tenha o médico, que sufocou o romancista, se aliado ao abolicionista.
Tanto assim que muito mais por suas atitudes e por seus ideais, do que por sua posição social,
sua postura ideológica pode ser traduzida pelo ideário liberal daqueles jovens românticos do
século XIX.
108
O tom dramático da narrativa de Caldre e Fião n’A divina pastora revela uma
aproximação com o sentido de idealismo, muito próximo do romantismo, que corresponde ao
momento histórico-literário vivido pelo autor e suas condições de existência, bem como
traduz com maior fidelidade os sentimentos de quem narra uma história que se passa em sua
terra natal, da qual acha-se distante algum tempo e que ao escrever, rememora, revive,
redescobre e, também, reinventa o lugar, as pessoas, os detalhes do cotidiano, tudo
impregnado de lembranças e percepções particulares, isto é, que dizem respeito a um
indivíduo, o próprio autor.
109
107
REVERBEL, op. cit., p. 251.
108
Conduta e pensamento bastante adequados aos fundamentos do “espírito liberal” da época, porquanto em
perfeita conformidade às formulações vigentes de “jusnaturalistas e moralistas, como Benthan, que
acreditavam que bastava ao indivíduo buscar inteligentemente sua própria felicidade para estar buscando,
simultaneamente, a felicidade dos demais”. (Apud ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo:
M. Fontes, 1990. p. 604).
109
O idealismo é aqui utilizado porque expressa a representação de um período vivido pelo autor, que contava
com apenas 14 anos quando eclode a Revolução Farroupilha.
61
Caldre e Fião não foi um autor regionalista no estrito sentido de evocação da
realidade campeira dos rio-grandenses. Ele foi um escritor da primeira geração dos
românticos brasileiros, um médico engajado nos problemas sociais de seu tempo e um homem
saudoso de seu lugar de nascimento, tanto que preferiu voltar à terra natal, quando poderia ter
fixado residência na Corte. Há nesse retorno algo extremamente romântico.
Para além dessa constatação, em Caldre e Fião uma definição de ser regional e
que talvez o se enquadre na linha regionalista, definida pelos comentaristas literários,
110
mas é inegável que o ser social fixado pelo escritor também existe na realidade sulista, e é
possível crer, de maneira mais contundente do que se supõe. Então, é necessário que se saiba
o que pensa Caldre e Fião de seu principal personagem, o homem do Rio Grande do Sul;
antes, porém, devem-se analisar alguns aspectos pontuais.
Nunca é demais reiterar o caráter precursor da obra de Caldre e Fião, não apenas por
ser o primeiro a apresentar uma perspectiva ‘regionalista’ no romance brasileiro, mas por
participar ativamente da produção intelectual e cultural do País durante seu processo de
criação. Numa palavra, um homem integrado no seu tempo, o tempo das incipientes tentativas
de construção de uma literatura de cunho nacional, de uma literatura que demonstrasse as
peculiaridades da cultura brasileira. Uma necessidade que surge, a partir de 1822, com a
Proclamação da Independência do Brasil, a fim de definir uma representação do tipo social
brasileiro, numa intenção claramente nacionalista, que pretende formar uma idéia de povo e
de Pátria.
111
110
Essa produção literária situada a partir da fundação do Partenon Literário, é denominada por Guilhermino
Cesar de gauchesca” (para diferenciá-la da literatura gaúcha como um todo), na qual foi, então, que “como
centro da gauchesca, nesse que poderíamos chamar o seu primeiro momento, o homem da Campanha teve
uma atividade bifronte: ou era o campeador no encalço das reses através do campo indiviso, ou era o guerreiro
que ia à caça do inimigo platino”. (Apud CESAR, Guilhermino. Notícia do Rio Grande: literatura. Porto
Alegre: Ed. da UFRGS, 1994. p. 24).
111
Antonio Candido afirma que é após a independência “que a literatura brasileira adquire consciência da sua
realidade [...]. Era preciso mostrar que tínhamos uma literatura, exprimindo características que julgavam
nacionais [...]. Ser bom, literariamente, significava ser brasileiro; ser brasileiro significava incluir nas obras o
que havia de específico do país, notadamente a paisagem e o aborígene” (Apud CANDIDO, Antonio.
Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1985. p. 171).
62
Inicia-se, então, o processo nacionalista de construção da história e da cultura
brasileira e, nesse andamento, são especialmente significativos o aparecimento da obra
Suspiros poéticos, de Gonçalves de Magalhães em 1836, e a fundação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838, demonstrando uma sincronia entre a criação artística
e o pensamento científico nacional. E, nesse curso dos acontecimentos culturais, em 1844
vem a lume o primeiro romance de costumes brasileiro, de Joaquim Manuel de Macedo, mais
conhecido como Doutor Macedinho, intitulado A Moreninha.
No ano seguinte, em 1845, o naturalista alemão Von Martius publica, por meio do
IHGB, Como se deve escrever a história do Brasil,
112
em que define os parâmetros do ofício
do historiador brasileiro. Em 1847, aparecem os Primeiros cantos, de Gonçalves Dias,
mantendo-se ainda o compasso em relação ao ‘movimento literário’ em curso o
romantismo, e a temática aliada ao discurso científico –, o nativismo e o indianismo,
113
e,
nesse ínterim, surge A divina pastora, como marco inicial do regionalismo na literatura.
A primeira observação que se impõe é a de que A Moreninha não apresenta nenhum
tema colateral relacionado com a história nacional, o que no caso d’A divina pastora é
contundente, pois o autor “projeta a narrativa num contexto histórico real: a ‘Grande
Revolução’ que, deflagrada em 1835, só concluirá na década seguinte em 1845, isto é, apenas
112
“Cabia ao historiador brasileiro redigir uma história que incorporasse as três raças, dando predominância ao
português, conquistador e senhor que assegurou o território e imprimiu suas marcas morais ao Brasil. [...] dar
atenção às particularidades regionais, escrevendo suas histórias de maneira a fazê-las convergir rumo ao
centro comum ou à unidade de uma história nacional; [...] demonstrar que a vasta extensão do território e suas
diferenças regionais exigiam como regime político a monarquia constitucional, tendo a unidade figurada no
imperador. E era tarefa sua prover a história com elementos que garantiriam um destino glorioso à nação.”
(Apud CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000. p. 22).
113
Nesse sentido, as primeiras manifestações literárias tratam das belezas naturais do Brasil na primeira fase do
romantismo, também chamado ‘nativismo’; em seguida o ‘indianismo’ que traz à tona o nativo brasileiro
(“o bom selvagem”), assim como aparecem os outros elementos constitutivos da ‘raça brasileira’, ou seja, o
europeu-colonizador (o herói desbravador) e o negro (o despersonalizado), sempre esquecido ou confundido,
ora com a abolição, ora com a escravidão, instituições que lhe conferem o caráter, e por fim a valorização
das diferentes regiões brasileiras, ou seja, o ‘regionalismo’; todos esses elementos açambarcados pela idéia-
força da formação de “uma raça histórica”, ou seja, na impossibilidade de constituirmos ‘biologicamente’ uma
raça homogênea, devemos nos empenhar em construir uma cultura homogênea que nos conduza à
‘civilização’.
63
dois anos antes da publicação da Divina Pastora!”.
114
Isso que obriga a tomada de posição
política pública sobre o conflito e seus envolvidos, algo deveras arriscado em qualquer
período histórico.
Por essa via, Caldre e Fião é alçado a um grau bem superior em relação ao contexto
literário predominante no romantismo, extrapolando os limites de um simples drama
romântico, pois, tal como assevera Chaves:
A tendência predominante no romantismo era a busca do passado, retroagindo a
épocas remotas numa eliminação do contingente, à cata do exótico e do inusitado.
Caldre e Fião subverte esta corrente, ancorando a ação de seu livro no presente
imediato e altamente problemático, porque trata de fatos candentes sobre os quais
pouquíssimos ousavam falar, as brasas ainda acesas sob uma camada de cinza fina.
E não apenas isto. Seja qual for o grau de adesão de suas idéias políticas, o
fundamental é que elas estão, expostas com meridiana clareza, buscando
interpretar honestamente a sociedade e a conjuntura que a mergulhara numa grave
crise.
115
Nesse sentido, deve-se considerar duas informações sobre a divulgação da obra de
Caldre e Fião e que suscitam algumas reflexões sobre a época em questão. A primeira
informação é encontrada em César, sobre um anúncio do romance A divina pastora, o qual
em 10 de fevereiro de 1848, foi publicado no Correio da Tarde, jornal do Rio de Janeiro, sob
a seguinte nota:
DIVINA PASTORA. Saiu à luz o volume desta novela brasileira; onde se os
costumes e hábitos dos povos do Rio grande do Sul, e muitas cenas domésticas em
que a virtude aparece sempre triunfante, vestida com os trajes da religião cristã, e o
vício açoutado pelo castigo de Deus; assim como muitos episódios da História
Brasileira, e muitas poesias inspiradas pela majestade pureza do céu do Brasil.
116
114
CHAVES, Flávio Loureiro. Um texto resgatado. In: CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina
pastora. p. 16.
115
Ibidem, p. 16.
116
CESAR, Guilhermino. Bibliografia de Caldre e Fião. In: CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O
Corsário. p. 28.
64
A segunda, refere-se ao fato mencionado acima e de como as informações
anunciadas no jornal aparecem de fato na capa da edição de 1847, que veio estampada na
reedição de 1992, onde consta o título A divina pastora, acompanhado do subtítulo, Novella
Rio-Grandense, e do seguinte verso inscrito no frontispício:
Cantando a virtude
Na terra natal,
Sorri-me o prazer,
De mim foge o mal.
117
Vejam-se então um pouco mais atentamente esses dois documentos quando postos
em confrontação: o anúncio do jornal divulga uma “novela brasileira” que trata dos costumes
e hábitos dos povos do Rio Grande do Sul, além de apresentar alguns episódios da História do
Brasil; contudo, o que se na capa da edição original do romance é o subtítulo de “novella
rio-grandense” e, apesar da nota iludir a “muitos episódios da História Brasileira”, não
esclarece que o romance ambienta-se em meio a Revolução Farroupilha;o obstante, são os
versos que chamam a atenção e que podem ser interpretados como uma breve confissão de
procedência do autor, ou talvez como um pequeno tributo à terra natal, no sentido de exaltar e
de ufanar-se do lugar de sua origem, ou ainda uma forma poética de atribuir um caráter
fidedigno ao texto apresentado.
Além disso, considerando-se a análise de Chaves, é possível compreender algo mais
do silêncio demonstrado pelo periódico do Rio de Janeiro sobre quais episódios históricos
trataria o romance e na maneira de apresentar a obra, pois, para o mercado consumidor da
época, uma novela de costumes brasileira, ambientada no Rio Grande do Sul, deveria ser mais
“atraente” que uma novela rio-grandense, pois que os recentes acontecimentos da Revolução
tornavam a Província ainda mais distante da Corte, cultural e politicamente, além do que os
habitantes urbanos não viam com bons olhos aqueles rebeldes do campo.
117
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastor, op. cit., p. 19.
65
Assim, em sua narrativa ‘folhetinesca’ (gênero literário comum à época), Caldre e
Fião vai construindo uma imagem do Rio Grande de São Pedro, dos costumes, da
alimentação, do linguajar próprio daquelas gentes, com muitos detalhes sobre as roupas e as
armas, além de comentários sobre a Revolução Farroupilha, pois, como foi dito, a trama
desenrola-se durante o conflito militar. E por isso Chaves é enfático ao afirmar que “o
romance de Caldre e Fião é essencialmente histórico”, e de sua importância,
no sentido talvez bem mais moderno da problematização da história à luz da ficção.
Os seres imaginários e seu destino fictício estão porque através deles podemos
melhor compreender a engrenagem que movimenta a história, a imaginação
nascendo da realidade e sobre ela reincidindo para inaugurar novas perspectivas e
iluminar novos cominhos.
118
Chaves faz uma apresentação concisa da trama que é ambientada em Porto Alegre,
Viamão e na Vila de São Leopoldo, da seguinte maneira:
A intriga está centralizada em Edélia (a ‘divina pastora’), donzela belíssima e
virtuosa; logo apaixonada por seu primo Almênio, bravo guerreiro farroupilha, que
entretanto, irá casar com Clarinda, filha de imigrantes alemães no Vale dos Sinos.
Atormentando a vida de todos, aparece Francisco, o vilão, protótipo da felonia
rediviva.
[...] Ao início da ação, Almênio é um guerilheiro farroupilha, que colocou sua
juventude e bravura indômita ao serviço da Revolução de 1835, separatista e
republicana. Na trama do romance, esta questão desempenha um papel decisivo,
pois é exatamente a adesão às forças insurrectas que provoca a repulsa de sua prima
Edélia a “divina pastora” e, a partir daí, a impossibilidade de qualquer simpatia
às suas tentativas de aproximação efetiva. [...] Finalmente convencido da ilegalidade
da República de Piratini, Almênio troca de lado, passando ao exército imperial. Mas
então já é tarde demais, ele prometeu casamento à bela Clarinda.
119
É fundamental, para a análise que se quer empreender, tentar buscar os parâmetros
do autor para a construção de seu personagem masculino, representante da Revolução
Farroupilha, ou dela questionador, identificando qual é a percepção de Caldre e Fião sobre um
filho do Rio Grande; e, nesse sentido, ele oferece uma descrição exemplar do pensamento
científico e sociocultural contemporâneo ao descrever o rio-grandense:
118
CHAVES, Flávio Loureiro. Id. Ibidem. p. 16.
119
CHAVES, Flávio Loureiro. Id. Ibidem. p. 10 e 15.
66
Alguns historiadores têm querido que o clima por si forme o Rio-Grandense tão
austero em costumes, tão forte e constante em combates, tão bom e fiel amigo na
sociedade e tão vingativo e implacável inimigo quando é ofendido, como ele é
atualmente descrito por todos os estrangeiros que têm observado seus hábitos e seus
usos e que têm atravessado as plagas que ele habita; mas quanto a mim, que me
considero com algumas propriedades e quesitos necessários ao historiador, suponho
dever atribuir-lhe muitas dessas coisas à sua alimentação e educação moral. O Rio-
Grandense aprende, desde os seus primeiros passos, a respeitar os mais velhos, a ser
amigo, a desprezar o covarde e a vingar-se do inimigo; guarda fiel os usos que lhe
foram transmitidos por seus pais e julgar-se-ia desonrado se um dia deixasse de
cumprir os preceitos de seu evangelho. O evangelho da moral Rio-Grandense não é
escrito, é tradicionário, mas apesar disso, ainda não foi alterado em um de seus
artigos: para sabê-lo, in totum, é necessário ser Rio-Grandense e viver muitos anos
naquela divisão política do Império que chamamos Província do Rio Grande do
Sul.
120
nesse parágrafo de Caldre e Fião todo um discurso científico vigente no século
XIX, e que na literatura nacional atingirá seu ponto máximo de expressão no romance
‘sociológico’ de Euclides da Cunha, em 1902, Os Sertões. Não obstante, ao atribuir
características específicas do rio-grandense à “sua alimentação e educação moral”, o autor vai
buscar seus fundamentos além da ciência; ele inicia pela ciência, mas conclui seu pensamento
com base nos costumes, nos códigos culturais aprendidos por ele mesmo, embora a conduta
de homem enunciada (um cavalheiro do século XIX), seja, num sentido ético e moral, uma
cultura universal a qualquer sociedade educada dentro dos princípios do iluminismo europeu.
Em janeiro de 1849, o jornal O Americano inicia a publicação em folhetins de “O
Corsário, romance brasileiro” e, em 1851, sai publicado pela Tipografia Filantrópica, no Rio,
“O Corsário, romance rio-grandense” de José Antonio do Vale Caldre e Fião.
Inicialmente convém traçar as semelhanças entre as obras e, nesse sentido, nota-se de
imediato a presença da mesma dicotomia sobre a ‘naturalização’ do romance (brasileiro x rio-
grandense) que foi discutida n’A divina pastora. Outro ponto comum é a ambientação
histórica, pois também nessa obra a Revolução Farroupilha apresenta-se como ‘pano de
fundo’, inscrevendo novamente a narrativa de Caldre e Fião, na perspectiva do romance
histórico, inclusive nesse caso importantes figuras do movimento aparecem como
120
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Vale. A divina pastora, op. cit., p. 81.
67
personagens do romance, como é o caso de Bento Gonçalves, José Gomes Jardim e Giuseppe
Garibaldi.
Cesar oferece um resumo do enredo desse romance regional ambientado no Litoral
do Rio Grande do Sul, e que tem como palco dos acontecimentos as cidades de Rio Grande e
Porto Alegre:
A efabulação d’O Corsário abrange um quadro psicológico, moral e histórico, de
grande envergadura; chega a ser ousada, para o tempo, dadas as limitadas ambições
de nossos primeiros romancistas. Toma um episódio que foi comum nas costas do
Sul o naufrágio e navios veleiros, na altura de Tramandaí. Os destroços de
repetidos naufrágios eram recolhidos por famílias das redondezas, uma das quais
vivia das desgraças ocasionadas pelo mar. De uma feita, vem dar à praia o capitão
de um navio corsário, Vanzini, homem de passado escuro, autor de crimes que o
haviam tornado indesejável em Veneza. Maria, moça praiera, encontra o capitão
desfalecido, num dos cômoros da costa, e por ele se apaixona, mas o jovem serve-se
de todos os recursos para iludi-la, pois a sua alma de corsário visava sobretudo os
bens materiais. [...] A linha sentimental do romance é o amor de Maria e Vanzini:
afinal, desmascarado este nas suas intenções, a moça vem a amar um rude e honesto
vaqueano, João Martinho, prometendo ao leitor o happy-end das histórias do gênero.
[...] Assim é que, a par das descrições da vida das populações litorâneas, com seus
contrabandistas e aventureiros, perpassa pelo romance e sopro épico da luta
farroupilha.
121
As diferenças entre os dois romances não são muitas e iniciam pelos locais de
ambientação das tramas, anteriormente referidos, mas esses ambientes por si não oferecem
maiores contrastes além da mudança na paisagem de campos e coxilhas para cômoros de areia
e mar. No entanto, o mais significativo a ser percebido na presente obra, em contraste com a
anterior, é que as palavras gaúcho e monarca das coxilhas aparecem substituindo rio-
grandense, mostrando uma distinção social.
Sobre esse aspecto, observa Cesar que o termo gaúcho “nunca é usado pelo
romancista como patronímico, senão como significando campeiro, peão, campeador”.
122
De
qualquer maneira, o uso da palavra começa a acontecer, pois já havia sido notada sua ausência
por Meyer em seu estudo sobre a palavra gaúcho:
121
CESAR, op. cit., 1971, p. 144.
122
CESAR, Guilhermino. O criador do romance gaúcho. In: CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O
Corsário. Op. cit., p. 17.
68
Na tradição escrita, e abrangendo literatura e folclore, mostraria o estudo
semasiológico certa dubiedade no emprego da palavra, que pode levar a conclusões
interessantes, do ponto de vista que aqui mais importa, isto é, transição do sentido
antigo e restrito para a atual acepção de apelido regional. No decênio da grande
revolução (1835-1845), o filho do Rio Grande é sempre o contineiro, ou
continentista, o riograndense. A letra do primeiro Hino Republicano, composto por
Medanha, abre com o verso / Nobre povo Rio-grandense/ e da sua variante consta:
Aos livres continentistas,
Ao povo republicano.
Procurei em vão, na poesia de cunho farroupilha, a palavra gaúcho. Nos primeiros
documentos da nossa poesia popular, é freqüente o uso de monarca, termo este
enfunado de narcisismo, carregado de ênfase, para dar a entender o filho da
campanha, de vida mais ou menos folgada e ainda bem próxima do tipo de vida que
caracterizava o gaudério.
123
Todavia, Caldre e Fião, no romance O Corsário, não modifica a percepção que tem
sobre a diferença entre um legítimo Rio-Grandense (em letras maiúsculas) e outros
conterrâneos. E, nesse sentido, Chaves faz uma crítica em relação ao posicionamento literário
adotado pelo escritor, a fim de retirar-lhe a classificação de autor regionalista conferido,
aliás, por ele e por César, considerando então que, apesar de pioneira, a ocorrência do gaúcho
em sua narrativa é “insuficiente para configurar uma atitude regionalista”.
Cabe aqui apontar a antecipação de uma narrativa histórica, feita por Caldre e Fião,
por meio dos seus romances, em que projeta pela primeira vez, muito antes do “Heródoto
Brasileiro”
124
– Francisco Adolfo de Varnhagen com sua obra História geral do Brasil (1850),
um pouco da história política, social e econômica brasileira, sob o panorama revolucionário e
pós-revolucionário do século XIX.
Caldre e Fião também antecipa-se ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro
(IHGB)
125
(1838) na documentação narrada, por meio dos seus romances, do episódio
123
MEYER, Agusto. Gaúcho: história de uma palavra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1957. p. 36.
124
Ele foi considerado, de fato, o “Heródoto do Brasil”, pois foi o iniciador da pesquisa metódica nos arquivos
estrangeiros, onde encontrou e elaborou inúmeros documentos relativos ao Brasil. In: REIS, José Carlos. As
identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2003. p. 24.
125
O novo país precisava reconhecer-se geográfica e historicamente. O projeto do IHGB era geográfico e
histórico. Geográfico, teria a tarefa de situar cidades, vilas, rios, serras, portos, planícies; de conhecer e
engrandecer a natureza brasileira, seu céu, clima, suas matas, riquezas minerais, a flora e fauna; de definir os
limites do território. Histórico, deveria eternizar os fatos memoráveis da pátria e salvar do esquecimento os
nomes de seus melhores filhos. Para isso, deveria coletar e publicar os documentos relevantes para a história
do Brasil, incentivar os estudos históricos, manter relações com instituições congêneres do Exterior,
especialmente com a instituição que foi seu modelo, o Institut Historique de Paris. Desde então, o Brasil
69
revolucionário farroupilha, que até 1947 ano de publicação de A divina pastora, o havia
nenhum registro a respeito dos dez anos da memorável revolução. Pelo exposto, pode-se
analisar Caldre e Fião como um dos primeiros romancistas a registrar a história da Província
de São Pedro e a Revolução Farroupilha, contribuindo com o IHGB e caracterizando-se,
assim, como também um historiador.
procurou os franceses como referência intelectual. O IHGB será o lugar privilegiado da produção histórica
durante o século XIX, lugar que condicionará as reconstruções históricas, as interpretações, as visões do
Brasil e da questão nacional. In: REIS, op. cit., p. 26.
70
4 REVOLUÇÃO FARROUPILHA, CONTRABANDO E ESCRAVIDÃO: HERÓIS E
VILÕES
Em princípio, o propósito de Caldre e Fião era escrever um romance de costumes,
que, sem embargo, tornou-se também um drama político e social, pois, conforme já foi dito, a
história tem como pano de fundo a Revolução Farroupilha. E, nesse sentido, em suas páginas
são descritos os planos, as artimanhas, a urdidura enfim, da trama política que um conflito
armado, em qualquer tempo, envolve. Um período dramático da vida real, quando as
maquinações em torno de sentimentos patrióticos não revelam heróis, mas simples homens
envolvidos em conspirações secretas que, por meio da narrativa desse autor, tornam-se as
“vítimas algozes” de seu próprio destino.
Assim, a percepção do autor acerca do conflito está plasmada nas passagens a seguir,
bem como sua visão sobre os homens que protagonizam e os que coadjuvam acontecimentos
dessa natureza; além disso, ele fornece indicações sobre os lugares sociais que ocupam os
indivíduos nessa sociedade, e identifica, mediante seu discurso, que tipo de entendimento
tinham seus contemporâneos sobre o homem do Rio Grande do Sul.
O próprio autor dialoga com o leitor na obra A divina pastora, buscando evidenciar
seu ponto de vista a respeito, deixando claro à corte (lugar onde escreveu a obra) que não
concordava com os motivos e que ela somente serviu para manchar a história do povo de
morais inigualáveis e mascarar a situação econômica do Rio Grande do Sul na época,
Se sábios fôssemos, as negras cores dos hórridos fatos passados no Pará, na Bahia,
em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e mais províncias brasileiras
126
não teriam
manchado o quadro histórico de nossa pátria. É a ignorância a fonte de todos os
males. E vós o sabeis? Sim. Então não acusai Almênio. E de mais quereis uma lição
política? Quereis que vos eu diga quais minhas idéias a respeito da revolução que
teve princípio, na província de meu nascimento, em 20 de setembro de 1835 e que
devastou seus campos por nove anos, cinco meses e oito dias? Não farei dela a
história; direi em definitivo: a razão condena os partidos que, em uma reunião
social, tendem a disseminar a desordem e com ela a desconfiança que destrói os
126
O texto alude aos movimentos insurrecionais e separatistas que eclodiram na primeira metade do século XIX.
(Apud CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 45.
71
laços da fraternidade, mas olhemos para as circunstâncias morais de nossa
associação nesses tempos e facilmente adivinharemos o motivo da guerra. O povo
excitado por gênios irrefletidos esperava do governo salutares providências que
serenassem os ânimos, mas esperou debalde e a torrente do descontentamento, como
uma longa enfiada de corais cuja ponta se desprendeu e deixa escoar um a um cada
um deles sem que destra mão os possa segurar, correu veloz por sobre a reação das
almas experientes. Vejamos o motivo! Alguns caudilhos antolhavam um futuro
cheio de esperanças, de ouro e de glória individual, e muito poucos o da verdadeira
glória da Pátria; e marcharam para eles pela mesma via.
O pensamento de Caldre e Fião vem ao encontro das palavras de Azevedo, em que
deixa claro o verdadeiro posicionamento do rio-grandense como protagonista da grande
revolução e defensor de suas fronteiras
Verdadeiramente, de perto podemos sentir que a realidade é bem diversa da que,
de ordinário, se imagina. São os próprios rio-grandenses, quem faz questão de
afirmar que seu Estado é bem brasileiro, o mais brasileiro de todos pelo papel que
lhe tem cabido na defesa das nossas fronteiras ao sul e da nossa soberania, brasileiro
porque o quer e tem sempre querido ser. O episódio da sua história que lhe valeu a
fama de separatista a revolução farroupilha com a República Rio-grandense de
1835 não visava cindir a unidade do Império mas forçá-lo a promulgar uma
constituição federalista. Os dirigentes desse grande movimento, Bento Gonçalves,
David Canabarro e outros, nem afirmavam a sua lealdade ao Brasil como se
recusavam, por esse motivo, a aceitar os auxílios da “castelhanada” para uma
definitiva e inteira separação.
Esse sentimento é hoje o mesmo. “Quando pensamos na terra gaúcha, na grandeza
moral do nosso povo, no caráter excepcional da nossa gente e ainda Manoelito de
Ornelas
127
quem fala não limitamos esse pensamento a fronteiras de províncias.
Ampliamo-lo por toda a vastidão territorial da nação. A história do Brasil é feita
pela história dos seus Estados”.
128
Não só com suas palavras, mas também por meio de seus personagens, Caldre e Fião
espelha-se demonstrando os efeitos sociais e morais da revolução:
Pai de Edélia: Na verdade, disse Paulo, é muito interessante esta historieta; qualquer
Estadista que sobre ela refletisse tiraria uma lição proveitosa; vede, meus filhos, que
uma reforma repentina acarreta a destruição de um povo inteiro ainda o mais
numeroso e bem regido da terra.
129
Pedro Joaquim (alfaiate) se coloca contra as revoluções: Deus nos livre de
revoluções, disse Pedro Joaquim abanando a cabeça; elas só são boas para quem não
quer trabalhar, para esses cavalheiros de indústria que andam por a ferrar calotes
em todo mundo; para esses peralvilhos quem ter aqui comigo, mandam-me fazer
uma casaca, vestem-na, e andam por aí passeando de chicotinho e luneta; e eu à
espera do dinheiro, fazendo cruzes na boca. Para esses sim a revolução é boa.
130
127
ORNELAS, Manoelito. Tradições e símbolos, Porto Alegre: _____ 1940. Obra Citada por Thales de
Azevedo (assim descrita).
128
AZEVEDO, Thales de. Gaúchos. Bahia: Progresso, 1958. p. 22.
129
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Valle. A divina pastora, op cit., p. 122.
130
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Valle. O Corsário, Op. cit., p. 83.
72
Curiosamente, na obra A divina pastora, Caldre e Fião expõe seu repúdio a qualquer
designação e tratamento em torno da política. Convém tratá-lo por curioso, pois em poucos
anos o escritor tornou-se deputado e proferiu muitos discursos na Assembléia Legislativa da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, comprovações que serão vistas no decorrer da
análise investigativa.
Sejamos claros e falemos a verdade: eu sou pouco apto para explicar estas coisas,
tenho repugnância em caminhar pela vereda da política, tanto mais que seu templo
está cheio de adoradores e seus altares perfumados com poderoso incenso trazido de
lá da pestilenta Europa, que o foi buscar às desertas plagas da embrutecida Ásia.
131
Em O Corsário, a narrativa vai se desenvolvendo e quando passa a discutir, por meio
de seus personagens José Gomes Jardim, um dos chefes revolucionários, e Matias, o
comerciante de São José do Norte, os rumos da possível revolução, vão aparecendo algumas
designações e qualificativos a respeito do homem rio-grandense:
Jardim: – [...] É em minha casa que se reúnem os meus antigos amigos, e bem vezes
temos tratado dos males que oprimem a tria, e de todas as desgraças dos nossos
concidadãos, e das vantagens incalculáveis que resultariam da união do Estado
Oriental com esta província, formando uma região independente e livre, que deva
marchar pelo caminho da prosperidade, desentravada de todos os abusos que
apresenta um governo longínquo, situado à distância de mais de 400 léguas. E a
nossa generosidade, o nosso patriotismo não deveriam deixar sem uma resposta e
sem uma satisfação pronta as reclamações da nossa terra e dos nossos patrícios.
Matias: – Pretendeis então fazer uma revolução para a separação da província, e para
a união com o Estado Oriental?
Jardim: Não, meu amigo, nós não necessitamos de recurso das armas: temos o
recurso moral da nossa parte. A maior parte dos velhos generais que combateram
contra o Artigas e contra alguns chefes argentinos tem-se declarado de acordo com
este nosso pensamento, mesmo ligando-se e despertando no ânimo dos nossos
vizinhos a união que hoje me parece infalível. Como sois velho, conheceis bem
qual o caráter da gente da nossa terra, e deveis saber que a independência e a
liberdade hão de ser bem recebidas em toda a parte em que se proclamar. Nós o
necessitamos [...] do recurso das armas; desse recurso atroz que pode dar origem a
muitas fontes de desgraça e a muitos rios de sangue. Mas ... [...]
Jardim: Mas, se for necessário o recurso das armas, então os nossos velhos
generais, a nossa valente mocidade de aparecer em campo, de mostrar aos
escravos, a esses miseráveis escravos do Imperador, para quanto presta um guasca
deste continente.
132
131
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 46.
132
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Valle. O Corsário, op. cit., p. 64-65.
73
Na seqüência, o mesmo personagem, Matias, encontra-se com Bento Gonçalves,
ocasião em que o autor faz a apresentação do líder farroupilha, que incumbe de divulgar
certas ‘instruções’ que se referem, entre outras coisas, ao tratamento dado pelo governo à
província e das ‘causas’ do abandono do cargo pelo presidente Braga e encerra sua mensagem
dizendo “que a nossa causa é a causa da liberdade, e da pátria. Que todos aqueles que me não
seguirem, não são mais do que traidores indignos do nome Rio-Grandense”.
133
No sétimo quadro, ou penúltimo capítulo do romance, é narrado um encontro entre
Bento Gonçalves e alguns dos personagens envolvidos na trama, em que se estabelece um
diálogo entre Manoelzinho, um rapazote de 14 anos (filho de Matias que foi expulso do Rio
Grande por Bento Gonçalves e sobre o qual narra-se o encontro acima) e o próprio chefe
farroupilha sobre os motivos da revolução:
Manoelzinho porém, saído o primeiro deste estado de torpor e sobressalto, deu
passos para o chefe da insurreição; estendeu-lhe a mão e disse-lhe com ironia:
Valente coronel, foi sem dúvida a vossa ida à corte que vos fez mudar as boas
disposições patrióticas que tínheis em outro tempo, como me afirmou meu pai!
E voltando-se para os outros com voz firme e pronunciada:
Um rio-grandense não deve trair sua pátria!... não deve servir aos interesses dos
cortesãos!!
Todos estremeceram; Bento Gonçalves fixou-lhe um olhar em que transluzia a raiva
e o desespero; mas que brevemente mudou por um sorriso que a sua dissimulação
sabia emprestar-lhe em momentos críticos. Ele disse depois com acento pausado:
– És ainda muito moço, meu menino, para me compreenderes. Entende?
[...]
Meu menino, disse Bento Gonçalves instanteneamente inflamado por um orgulho
que lhe era próprio, eu não sou escravo das vontades alheias: a minha espada que
cingi desde bem tenros anos, e que me deu o primeiro posto militar de capitão de
guerrilhas das antigas milícias, quando me achava nos campos de Cerro Largo,
jamais serviu senão em defesa da pátria, do rei que tínhamos, e dos nossos gloriosos
imperadores. Estás enganado quando dizes que a minha ida à corte mudou as minhas
disposições patrióticas. Vós todos que me ouvis, continuou falando para os mais
que estavam na sala, sabeis que nós não servimos aos caprichos do governo do Rio
de Janeiro; mas que, pelo contrário, é o governo do Rio de Janeiro quem se presta
servilmente aos nossos planos de federação e de separação da província.
O mais alto funcionário desta província, bem como o mais ignorante gaúcho do
campo, vos acusam de que recebeis ordens secretas do Rio de Janeiro, disse
Manoelzinho com ar duvidoso.
– Assim é, meu menino: porém eles se enganam. Os nossos fins políticos são nossos
e nossos; as nossas espadas brandem-se em defesa da nossa pátria; e se
interesses que nos guiem, esses interesses não passam do círculo da província. Se
um governo fraco e ignorante das nossas cousas tem hoje assumido o poder e nos
favorecido, não penseis por isso que deles recebamos ordens. O grande mal que tem
133
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O Corsário, p. 82.
74
pesado sempre sobre o império, desde a sua independência, é a má escolha que o ex-
Imperador, e depois dele a Regência, tem feito de ministros inábeis, e também da
versatilidade contínua de suas nomeações.
134
O estrangeiro europeu foi sinalizado por nosso romancista como uma maldição que
somou na desintegração da cultura e nos valores do rio-grandense; esse fato pode ser
evidenciado nas insistentes retomadas que Caldre e Fião faz, como narrador, nos seus
romances, fortificando a irretocável conduta moral do filho do Rio Grande. O romancista
coloca a si e a personagem escrava observando a presença do estrangeiro na vida e na história
do povo rio-grandense.
Se o Rio-Grandense é dotado de um nobre orgulho, que os estrangeiros lhe lançam
em rosto, tem em compensação um coração em que a misericórdia acha a mais fiel
guarida; o Rio-Grandense é o Árabe Americano, o hospitaleiro por excelência. Se o
Rio-Grandense tem muitas vezes de que arrepender-se é de ter feito bem ao
estrangeiro quando não conhece seus corrompidos hábitos.
135
A negra Susana: Como sabeis, meus filhos, o estrangeiro é sempre amado entre estas
boas gentes destas terras, mas nem sempre também corresponde aos bons ofícios
que recebe. Quando receberdes em vossa casa o estrangeiro, tratai-o como melhor
vos for possível, mas nunca lhe abri o coração, porque esse é o órgão da vida e, se
ele o tocar, vós morrereis de uma morte amarga! O Estrangeiro!
136
em relação aos imigrantes alemães, os primeiros a chegar (1824), o nosso autor os
elogia em diversos momentos de sua narrativa; concede a eles o mérito de, conforme a
narrativa, sermos exemplo na produção agrícola e de terem trazido conhecimento e valores
morais; esse fato os engrandece e os torna bem-vindos dentre um povo tão honrado. Vejam-se
as palavras de Caldre e Fião:
A indústria alemã, levada pelos colonos, prospera sem entraves, no meio de uma
liberdade constante que é partilha dos brasileiros e que a ela bafeja agradavelmente.
A agricultura, essa primeira mãe da felicidade dos homens, única e verdadeira
riqueza dos estados novos, é exercida pelos seus habitantes e de seus contornos com
admirável desenvolvimento. Entre alguns colonos, expatriados de sua terra por
motivos talvez bem justos, encontra-se uma pura e adiantada ciência; conversei com
muitos que conheciam de perto as ciências físicas, as matemáticas, a história natural,
as ciências morais e muitas aplicações desses conhecimentos abstratos aos usos da
vida [...]
137
134
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O Corsário. p. 192-193.
135
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 41.
136
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 89.
137
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 153.
75
Segundo Pozenato,
138
quando chegaram os colonos alemães e os italianos, em 1824 e
1875, respectivamente, a tradição local possuía suficiente unidade para se impor como padrão
principal de cultura. Depois de um marginalismo inicial, em que as duas colônias
permaneceram com sua vida própria, inclusive a língua de origem, o processo de integração
começa a dar-se pela assimilação, por parte dos imigrantes, dos valores culturais dos
primeiros povoadores do território. De um modo geral, salvas as peculiaridades facilmente
observáveis, é a cultura do gaúcho que vai servir de elemento aglutinador dos novos
habitantes.
4.1 O contrabando
O contrabando teve, desde o período colonial, papel significativo na fronteira do
extremo-sul do Brasil, podendo até mesmo ser considerado como um elemento complementar
à subsidiária economia sul-rio-grandense. A própria formação histórica do Rio Grande do Sul –
região de posse duvidosa entre as potências ibéricas, de tardia colonização e de extensa área
fronteiriça – originou aquele fenômeno.
Dentre as zonas gaúchas onde mais intensamente desenvolveu-se o contrabando,
destacou-se a da Fronteira, principalmente pela identidade histórica entre essas duas regiões.
As origens da colonização rio-grandense estiveram intimamente ligadas à tentativa
de expansão lusa no Prata, com a formação e a constante busca de manutenção da Colônia do
Sacramento, possessão portuguesa que serviu em larga escala à prática do comércio ilícito.
Mesmo com os movimentos emancipacionistas e com a conseqüente formação dos Estados
Nacionais, as ligações históricas persistiram. A posse exercida pelo Brasil sobre a Cisplatina,
num primeiro momento, promoveu uma maior fiscalização, incapaz, porém, de deter
138
POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Porto Alegre: Movimento,
1974. p. 24.
76
completamente os contrabandistas, os quais atuariam ainda mais fortemente a partir da
independência do Uruguai.
Os conflitos nos quais o Brasil envolveu-se, durante o Período Imperial, ou seja, as
“questões platinas”, tiveram decisiva participação dos rio-grandenses que em muito se
aproveitaram das intervenções políticas e militares para promover a manutenção e até
intensificação do comércio clandestino.
A própria crise desencadeada pela Revolução Farroupilha levou ao incremento das
atividades comerciais ilícitas, de parte a parte, pois tanto rebeldes quanto governistas as
praticavam. O lucrativo contrabando na fronteira do Rio Grande do Sul, além de possuir o
amplo interesse de grandes proprietários rio-grandenses, contava com um verdadeiro
incentivo institucional por parte dos governos platinos, principalmente o uruguaio, que
buscava ampliar até mesmo uma infra-estrutura que serviria não só ao comércio legal.
139
O governo imperial buscou de forma infrutífera combater o contrabando no Rio
Grande do Sul, pois, além das dificuldades em fiscalizar uma área tão vasta, encontrava a
conivência e até a participação das autoridades locais naquela atividade ilícita. Essa ineficácia
gerava constantes protestos de setores da sociedade gaúcha, visivelmente ligados ao comércio
do Litoral, que apontavam o contrabando como responsável pela possível ruína econômica da
província, levando, inclusive, a confrontos regionais e políticos.
Apesar disso, o comércio ilegal continuou sendo praticado, levando políticos como
Ramiro Barcellos, na República, a afirmar que o Estado do Rio Grande do Sul é,
comercialmente falando, ‘o mais rico departamento da República Oriental do Uruguai’.”
140
A obra de Caldre e Fião, O Corsário, o deixou de apontar, significativamente, o
contrabando como uma prática constante e uma forma viável economicamente. Matias, um
comerciante muito amigo da família de Maria, moça que resgatou um corsário que naufragou
139
CESAR, Guilhermino. O contrabando no Sul do Brasil. Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: Escola Superior
de Teologia São Lourenço de Brindes, 1978. p. 70.
140
Citado no Jornal Echo do Sul. Rio Grande, 24 de janeiro de 1890. p. 1.
77
nas águas de Tramandaí, esclarece a Martinho, homem que pretendia casar-se com Maria, a
respeito do trabalho e da pessoa de Vanzini, o corsário salvo pela bela e inocente mulher.
Convém que saibas, meu amigo Martinho: eu te conheço muitos anos; vi-te
mesmo ainda mamando nos braços de tua mãe. Eu fui em outros tempos morador
das costas, onde por trinta anos recolhi os despojos dos barcos portugueses e
espanhóis que por passavam carregados de misteres para as colônias do Rio do
Prata; até que, aborrecido dessa vida vaga e trabalhosa, me retirei daí, e me
entreguei ao comércio, que tem aumentado a cada dia a minha fortuna, achando-me
hoje em circunstância de poder benfazer a todos os meus camaradas. Filipe era meu
vizinho: sua filha Maria também nasceu debaixo dos meus olhos. As saudades do
meu antigo ofício me fizeram entreter relações com todos os contrabandistas de
Buenos Aires e Montevidéo, a quem eu ajudava em suas temerárias empresas, e
mesmo com os corsários italianos, e os homens da esquadrilha de Brown, que
bastantes vezes vieram às nossas costas do mar do Estreito entregar-me as suas
numerosas e ricas presas. Vanzini era do número dos temerários corsários que tantos
males e tantas afrontas fizeram à esquadra brasileira no tempo da guerra da
independência da província Cisplatina.
141
4.2 A escravidão
As obras em análise configuraram-se em um panorama, em que a construção da
nacionalidade brasileira estava em ebulição. Situadas na segunda metade do século XIX,
momento que pode ser apontado como de fundamental importância na concepção do negro no
imaginário social brasileiro e em plena busca por uma identidade para a jovem república, que
mobilizava a classe dominante e os intelectuais das diversas áreas, elas apontam a
personagem escrava pela da voz do narrador, que em alguns momentos lhe concedia a
palavra.
Nessa busca da construção da nacionalidade, a literatura, a história e a política da
época queriam encontrar a forma mais moderna de se definir o perfil do País. Certamente, tais
reflexões não podiam se realizar sem que houvesse grande preocupação com a questão racial
e a mestiçagem. Considerando que aquele era um momento em que a presença do negro
começava a ser discutida acerca de sua necessidade, e que o nosso narrador/autor antecipava-
se na exposição de seus ideais abolicionistas, já na obra A divina pastora pode-se observar:
141
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O Corsário, op. cit., p. 54.
78
Susana, essa segunda mãe doméstica dos filhos de margarida, estava repimpada
sobre um grande cepo, como uma rainha de sua nação toda adornada de miçangas e
tendo em sua mão um porongo cheio de pimentas que durante a tarde colhera para o
molho da comida de seus senhores-moços a quem amava mais que a própria vida.
Ela ergueu a cabeça que nunca baixara sem a terrível idéia da escravidão que sobre
ela pesava, mas que pesava levemente; porque, direi de passagem, é melhor
fisicamente a escravidão no Brasil do que um estado de dependência em qualquer
país da Europa ou Ásia. Fisicamente! Disse eu? Sim; porquanto moralmente não.
Oh? Isso é horrível em qualquer parte da terra! Ainda mais é horribilíssimo!
142
É importante, neste momento, lembrar que nesse século foram criadas no País as
instituições de pesquisa e ensino superior, principalmente por influência da transferência da
Corte para com o afã de reproduzir aqui um ambiente cultural semelhante ao europeu.
Além de ser um período de grande importância, em nível mundial, as idéias de naturalização
da igualdade dos homens, herdadas da Revolução Francesa, passam a ser revistas e
questionadas. O termo raça é introduzido no pensamento social mundial a partir de seu ponto
de vista biológico, embora no Brasil ele tenha adquirido uma conotação visceralmente
político-social.
As teorias raciais chegam ao Brasil pelo discurso estrangeiro, que constantemente
faz referências à composição do povo brasileiro como algo absolutamente negativo, por conta
da grande mistura ocorrida principalmente com o elemento negro. Com a obra A divina
pastora, pode-se notar que o autor corroborou com esse discurso estrangeiro quando aponta a
personagem escrava Susana como uma convivência maléfica aos senhores e às suas famílias.
A denúncia que fez, em relação aos malefícios da escravidão, foi feita em nível moral,
reforçando a tese da vingança servil.
Susana foi mera espectadora desta cena em que a virtude acabava de sair vitoriosa,
ajudada da ardente mocidade que ordinariamente é acessível a todos os bons
sentimentos. Ela ficou na carretinha, vendo afastar-se dela esses jovens virtuosos
com certa emoção de prazer e arrependendo-se de seu comportamento criminoso.
Fora ela que, atraída pelos presentes de Francisco, enganara sua senhora-moça e a
induzira a segui-lo, pretextando seu estado de moléstia e conciliando o ardente amor
142
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 88.
79
que penetrara no coração da moça com considerações de humanidade e de
piedade.
143
Alguns dias depois, Susana foi atacada de febre escarlatina e, apesar da aplicação
constante de bichas no pescoço, de duas largas sangrias, de vomitórios e cáusticos,
com que costuma a impecia de muitos cirurgiões martirizar os coitados enfermos;
sucumbiu a ela, deixando todos os da falia de Paulo numa grande consternação. [...]
A escravidão é um mal! E levada ao centro das famílias quanto não são graves
os seus resultados! Susana era a bem querida amiga de todos os seus senhores e
ainda assim ela se tinha preparado um dia para ser o instrumento da perdição e
desgraça daqueles que a amavam.
Quem tinha salvado a inocente Edélia? [...] a Providência Divina.
144
(Grifo
nosso.)
Na faculdade de direito do Recife, Sílvio Romero faz considerações nas quais aponta
a mestiçagem como a grande peculiaridade do país, e o branqueamento como a solução para
os problemas decorrentes dela. “Nas escolas de medicina do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais, por exemplo, a discussão racial era tão constante que muitas vezes parecia [que]
estávamos a um passo do apartheid social.”
145
Curiosamente, após dois anos da publicação de A divina pastora (1847), Caldre e
Fião, em O Corsário, apresenta uma personagem escrava que é aliada e protetora de seus
senhores. Nitidamente as experiências na Corte e a carreira política interferiram nos
posicionamentos e mudaram o rumo de seu discurso:
Neste momento uma mulher apareceu no jardim, e trazia na mão um papel dobrado.
A sua face tostada denunciava um pouco de aflição, seus lábios pareciam não querer
abrir-se; as suas pernas pareciam obedecer à sua indecisão, porque ela apenas desceu
a escada da parte da cãs que dava para o jardim, deu dous passos, e ficou parada
olhando para as senhoras que estavam conversando.
– Anastácia! Exclamavam todas as três vendo-a.
– Minha senhora! Exclamou a mulata com voz submissa e respeitosa.
Aqui? Perguntou Mariana. tantos dias que não tens vindo visitar-me; julguei
que estivesses zangada comigo; outrora eu não passava um só dia sem ver-te. Tenho
estranhado isto tanto!...
– Minha senhora! ... repetiu Anastácia.
– Anastácia, disse Ana por seu turno, precisava tanto de ti esta manhã! ... Procurei-te
e não te achei.
– Não estava em casa, minha senhora, disse Anastácia; há três dias que caminho sem
cessar!... Não tenho dormido durante estes tempos uma hora, porque as aflições
dos meus protetores pertencem-me, são minhas, e tornar-me-ia odiosa a mim mesma
se eu não fizesse o que fiz; se eu não trabalhasse noite e dia em alívio daqueles que
também me têm aliviado. Convinha salvar... [...]
Minha Anastácia! ... como sois boa! ... nunca haveis de negar que fostes a minha
protetora, e que o seríeis de todo o mundo, se todo o mundo precisasse de vós.
146
143
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 140.
144
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 204.
145
SHWARCZ, L. M.; REIS, L.V.S. Negras imagens. São Paulo: Edusp, 1995.
146
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Valle. O Corsário, op. cit., p. 139.
80
4.3 Heróis e vilões
A crença de que um bom romance era aquele que trazia lições de moral para os
leitores, recorrente nos textos brasileiros que se pronunciaram sobre os romances estrangeiros,
esteve presente também nas críticas que se propuseram a analisar as produções nacionais.
Esse aspecto pode ser flagrado na primeira crítica de romance brasileiro localizada: o texto
que Dutra e Mello escreveu por ocasião da publicação de A Moreninha, de Macedo, publicado
na Minerva Brasiliense em 1844, mesmo ano em que veio a lume a mencionada obra.
Primeiramente, o autor assinalou o grande aumento da publicação de romance,
demonstrando não olhar com bons olhos a maior parte das produções. A essa abundância de
narrativas corresponderia uma leitura extensiva das obras que Dutra e Mello não aprovava,
pois insinuou que as pessoas devoravam” os livros ao invés de apreciá-los e depois os
esqueciam, não tirando qualquer proveito da leitura além da mera distração. Por isso,
reconheceu que o público era o grande incentivador da produção do gênero e acusou-o de
haver retirado o romance do “berço horaciano”. Essa acusação se deveu ao fato de que, a seu
ver, o apelo do público para que se publicassem sempre mais romances levou os escritores a
esquecerem de que deveriam agradar e também instruir os leitores:
[O romance] esqueceo-se de que devia fazer a educação do povo, ou pelo menos de
que podia aproveitar o seu prestigio para isso. Penetrando na cabana humilde, na
recamara sumptuosa, no leito da indigência, no aposento do fausto, perdeu de vista o
fanal que devia guial-o; deslembrou-se de levar a toda a parte a imagem da virtude, a
consolação mitigadora, a esperança e o horror do vício.
147
O autor queixou-se da falta de instruções moralizantes nas narrativas, alegando que o
romance, devido ao fato de alcançar um público muito vasto, deveria empenhar-se em educá-
lo. Assim como os críticos, alguns romancistas brasileiros que publicaram entre as décadas de
1830 e 1870, como Caldre e Fião, pareciam acreditar que um dos caminhos seguros para
produzir um bom romance era incluir nele passagens e ensinamentos moralizantes. Um
147
MELLO, Antonio Francisco Dutra e. A Moreninha. Minerva Brasiliense, 1 de outubro de 1844.
81
exemplo bastante significativo desse aspecto são as concepções de romance e da função do
romancista, que se pode apreender na leitura de paratextos de Teixeira e Sousa, um dos
primeiros romancistas brasileiros. Em seus prefácios, o autor parecia estar ciente da
importância de incluir moral em seus romances:
O fim porém do romancista é (si o fundo de sua obra é fabuloso) apresentar quase
sempre o bello da natureza, deleitar e moralisar. Si nesse fundo ha alguma cousa, ou
muito de historico, então melhorar as scenas desagradaveis da natureza, corrigir em
parte os defeitos da especie humana; adoçar os mais terriveis traços de horrorosos
quadros, tendo sempre por fim deleitar, e moralisar, ainda que instrua pouco, ou
nada.
148
Conto-vos, pois, uma história, que me hão contado.
Escrevo para agradar-vos; junto aos meus escritos o quanto posso de moral, para que
vos sejam úteis; junto-lhes as belezas da literatura, para que vos deleitem.Não
corrijo este meu escrito, porque essa honra vós lhe fareis!
149
O narrador aproveita a ocasião para declarar aos seus leitores, se lhe perguntarem no
fim desta história quem é o herói dela, e qual a ação principal, que ele os não quis
designar abertamente [...] Não obstante, o leitor judicioso verá que todos os fatos se
reúnem afinal na vida de um homem, que todavia não parece ser o principal
personagem, ao menos em grande parte desta história: e então no fim dela, ou quase
no fim, o leitor notará claramente o alvo que o narrador quis ferir, e a moralidade da
sua história.
150
Na concepção da missão do romancista, expressa pelo autor no primeiro fragmento,
um dos requisitos postulados é o dever de moralizar, aspecto que ecoa nos dois textos
seguintes, os quais fornecem pistas ao leitor a respeito da obra que precedem e instigam-no a
avaliá-la. A presença da moralidade nos textos é previamente anunciada pelo escritor,
parecendo ser uma forma de criar no público uma predisposição positiva em relação a eles. O
autor não insistiria tanto nesse ponto se não imaginasse que agradaria ao público, o que indica
que ele acreditava que seus contemporâneos esperavam encontrar princípios morais nos bons
romances.
148
SOUZA, Antonio Gonçalves Teixeira e. Gonzaga ou A Conjuração de Tira-Dentes. Rio de Janeiro,
Typographia de Teixeira & Cia. Rua dos Ourives n. 21. 1848.
149
SOUSA, Antônio Gonçalves Teixeira e. O filho do pescador. São Paulo: Melhoramentos, 1977.
150
SOUSA, Antonio Gonçalves Teixeira e. (Apud CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira.
Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. p. 116. v. II).
82
Assim, podemos dizer que houve um diálogo entre os parâmetros de avaliação da
crítica de romances divulgada na imprensa brasileira entre as décadas de 1830 e 1870 e as
narrativas publicadas naquele período, o que permite pensar a influência dessas críticas sobre
as produções dos nossos primeiros romancistas, visto que foram publicadas num momento em
que os brasileiros iniciavam a produção do gênero no País. Nesse sentido, pode-se dizer que
esses escritores, destituídos de modelos nacionais e movidos pelo intuito de obter êxito em
suas produções e corresponder ao gosto do público leitor, certamente levaram em conta as
considerações dos críticos que se pronunciaram sobre o romance quando produziram seus
textos. Além disso, a leitura de romances estrangeiros que circulavam no País, naquele
momento, de certa forma forçava a idéia de que a moral deveria ser um dos elementos centrais
de um bom romance. Como mencionado, muitas das narrativas importadas para o País,
naquela época, haviam sido escritas com o intuito de deleitar e instruir e acabaram fornecendo
tanto modelos para os romancistas brasileiros quanto parâmetros de análise para os críticos.
Nesse sentido, a abordagem das críticas de romances publicadas pela imprensa
brasileira oitocentista, entre as décadas de 1830 e 1870, mostra-se de fundamental
importância, pois possibilita que nos aproximemos da noção de romance compartilhada por
parte dos intelectuais da época e compreendamos melhor o contexto em que se deu a
formação do romance brasileiro.
A leitura dos textos que constituem o corpus de estudo desta pesquisa, permite que se
atribua às personagens que carregam todas as características típicas dos rio-grandenses, o
título de heróis e as quais o leitor entrega sua afeição. Caldre e Fião, seguindo os
ensinamentos da crítica da época, faz questão de, seguidamente, em suas narrativas,
caracterizar o rio-grandense e reforçar sua postura moral.
A divina pastora traz consigo diversos momentos de narrativa, enaltecendo os
deveres morais e apontando-os no cotidiano das personagens. O autor emprega a palavra
83
divina e parece seguir o exemplo de Dante Alighieri, em A divina comédia, apontando o
caminho dos bons e dos maus.
A vida do justo é como um ligeiro batel nas mansas águas do prateado Taquari, no
calmoso estio, em noite de luar. Soprado meigamente pelas brandas auras perfumadas
pelas flores das margens, voga tão brandamente e nem mesmo move a superfície das
águas. A vida do mau é, pelo contrário, igual a armado iate na Lagoa dos Patos,
lutando com o furor das ondas encapeladas pelos furiosos ventos, que depois de inútil
e cansada resistência se quebra sobre os baixios do estreito ou sobre a arenosa Ponta
de Cristóvão Pereira.
151
Segundo Coutinho,
152
a crítica moral reage contra as tendências naturalistas a
enxergar os aspectos vis do homem, e a exacerbação romântica que idealisa e exagera o culto
do indivíduo. A literatura possui uma finalidade ética. Para ela, moral e religião se
confundem. A crítica assim é um instrumento da ação religiosa pela defesa dos valores
morais.
Pode-se perceber que o discurso de Caldre e Fião esclarece a afirmativa de Coutinho,
pois faz questão de vincular os valores éticos e morais aos ensinamentos da Igreja cristã.
Veja-se o trecho abaixo:
No rosto pálido e desfeito de Francisco assomou um vislumbre de fugitivo rubor que
denunciava a vergonha de uma mentira dita e que a franqueza e a inconsideração de
uma criança haviam patenteado. A mentira forma a vanguarda de todos os crimes na
carreira da vida. Quem mente está apto a praticar todos os pecados contra o próximo
e contra Deus.
153
Nosso romancista expõe a moral circundante no contexto familiar, em que a palavra
divina é pregada pelo patriarca, visando ao agradecimento pela vida e pelo trabalho, sendo
mais uma vez um multiplicador da palavra cristã:
Paulo e sua família se reúnem em redor da tábua comum, onde o alimento cotidiano
ministrado pela providência do Senhor Deus está depositado, todos se assentam; e
151
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 26.
152
COUTINHO, Afrânio. Caminhos do pensamento crítico. Rio de Janeiro: Pallas, 1980. p. 885-886.
153
CALDRE e FIÃO. José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 131.
84
então, por entre o gozo do manjar simples e delicado, um salmo da sagrada Bíblia e
um conto de moral verdadeira são recitados por Paulo; nunca tristes recordações
vêm perturbar-lhes as frontes serenas. As orações terminam este ato e cada qual
busca o consolador trabalho.
154
A família é o berço dos ensinamentos morais e, na figura do pai, encontramos o
amigo, o companheiro, o confidente e o disseminador de experiências. Na figura da mãe,
encontramos a conselheira, a protetora, a incansável mediadora da família e atenta assistente
nos cuidados de todos, inclusive dos escravos.
Paulo era o chefe, o carinhoso pai desta reunião social onde se respeitavam
estritamente os deveres naturais, onde havia amigos e nunca mandantes, onde havia
convenções e nunca ordens, onde uma única idéia dominava, e a mesma fonte de
conhecimentos ministrava em taça áurea o saber fecundo que fortifica o coração do
homem contra a vil ignorância, que polui e aniquila. Margarida era a esposa de Paulo,
a parte reflexiva de suas bondosas disposições, a consoladora, a medianeira,
finalmente a mãe por excelência; filhos, parentes e escravos eram o alvo de seus
cuidados: em tudo providente, as menores ões dos seus interpretava
amigavelmente.
155
Não se pode esquecer que nosso romancista caracteriza os frutos de uma exemplar
família. A filha moça, como uma donzela desprotegida, é mencionada como a única esperança
de guardiã da velhice de seus pais, e de seus irmãos apreende os conhecimentos pelo ato de
não freqüentar liceus:
Edélia era a filha querida deste par ditoso, a digna esperança, a estrela que eles viam
fulgurar no fim de sua vida como a consoladora guia, o arrimo de uma velhice
prolongada, pois na mocidade tinham gozado a doce quietação da virtude. Anibal e
Acácio, filhos virtuosos que haviam proveitosamente recebido as lições de moral
tantas vezes repetidas, freqüentavam os liceus e escolas e à porfia tratavam de
instruir Edélia nas matérias por eles estudadas, do que se maravilhavam, enchendo-
se de sumo gosto, Paulo e Margarida.
156
O romance dos séculos XVIII e XIX utilizou sobretudo a técnica do retrato para
caracterizar direta e indiretamente as suas personagens. Nas grandes narrativas, o retrato pode
incluir a fisionomia, o vestuário, o nome próprio e a sua história genealógica, o
154
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 25.
155
Ibidem, p. 23.
156
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. A divina pastora, op. cit., p. 24.
85
temperamento, etc., mas também a relação com os espaços habitados e a integração numa
dada época histórica.
No estudo dedicado ao herói, incluído no capítulo referente à temática,
Tomachesvski fornece elementos teóricos para o reconhecimento de personagens e, dentre
esses, está herói. Para Tomachevski, “o personagem tem a função de um fio condutor [...] e
deve, mais ou menos fixar nossa atenção”.
157
Também afirma que os personagens habitualmente carregam consigo uma carga
emocional. “O personagem que recebe a carga emocional mais viva e acentuada chama-se
herói. O herói é o personagem seguido pelo leitor com a maior atenção. Provoca a compaixão,
a simpatia, a alegria e a tristeza do leitor.”
158
No romance O Corsário (1849), poder-se-ia esperar, pela estrutura da obra, que o
monarca fosse Vanzini, o corsário veneziano. O centauro, o orfeu dos pampas não é o
corsário, é Bento Gonçalves, o líder da Revolução Farroupilha. Veja-se o entrelaçamento da
história com o mito.
O episódio narrado por Caldre e Fião, em O Corsário, situa-se na linha do fabuloso e
fantástico. Mistura de história, geografia, mito, herói, anti-herói, donzela desprotegida de tipo
medieval. No meio dessa história fantástica, emerge Bento Gonçalves, como monarca das
coxilhas. Apresentava um caráter índobre, mas insinuante, e capaz de destruir as vontades de
todos com um simples gesto.”
159
Ele mesmo diz: “Não sou escravo das vontades alheias: a
minha espada que cingi desde os tenros anos, e que me deu o posto militar de capitão de
guerrilhas das antigas milícias, quando me achava nos campos do Cerro Largo, jamais serviu
senão em defesa da pátria.”
160
157
TOMACHEVSKI, B. Temática. In: MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: EST/ICP, 1982. p. 44.
158
Ibidem, p. 194.
159
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O Corsário, op. cit., p. 193.
160
Ibidem, p. 192.
86
Nos pagos, é conhecido como monarca de opinião, destemido. Uma espécie de
guarda fiel do continente sulino. A corte do monarca das coxilhas compunha-se de gaúchos,
que Caldre e Fião assim os descreve:
Eles traziam chapéus de abas largas; trajavam chiripás com franjas: coletes
vermelhos com botões amarelos, chales de cachemira velhos amarrados à cintura,
excetuando um deles que cingia uma linda e bordada guaiaca; e trazia ainda grandes
e pesadas chilenas de prata; estavam armados à rio-grandense, com espada, duas
pistolas, uma faca, carabina e o laço e as bolas, que estavam seguras aos tentos dos
cavalos; seus aspectos eram guerreiros; em seu todo apresentavam uma lhana
franqueza e alegria bem pronunciada.
161
No meio desses gaúchos rudes, acostumados a enfrentar toda espécie de obstáculos,
o monarca das coxilhas, o centauro dos pampas, o orfeu do Continente da Província de São
Pedro, é Bento Gonçalves.
Para melhor demonstrar o pensamento do autor, é necessário citá-lo textualmente,
justamente o excerto de sua caracterização ao líder farrapo Bento Gonçalves:
Quando Matias se viu livre dessa turma, se dirigiu com seu vaqueano para a estância
de Bento Gonçalves; [...]. Bento Gonçalves o recebeu com afabilidade e com aquela
natural bonomia que o caracterizava. Bento Gonçalves era um homem de estatura
regular: sem ser gordo, o seu corpo não era contudo muito delgado. A sua presença
agradável atraía desde logo a simpatia dos outros; simpatia que se vigorizava com o
seu trato e maneiras delicadas. Ele não parecia um oficial das guerrilhas
acostumado ao trato grosseiro dos gaúchos, e à cavalheirosa altiveza dos
monarcas, mas sim um homem educado nos salões polidos e magníficos das
cidades: o seu espírito ativo e a sua sagacidade própria supria bem as estudadas
ilustrações que se adquirem nas escolas. A estratégia lhe era conhecida, e se ele não
tinha na arte da guerra os conhecimentos matemáticos que soem fazer um hábil
general na velha e carcomida Europa, a prática lhe havia ensinado mais do que era
preciso a um soldado da América. (Grifos nossos.)
162
Na figura do jovem Almênio, o grande amor de Edélia A divina pastora, Caldre e
Fião expressa a condição de um verdadeiro monarca, que enquanto muito jovem comete
erros o de pertencer ao exército republicano mas que, depois arrepende-se e se une ao
exército imperial.
[...] entrei no exército do Imperador, liguei-me à causa da minha pátria, porque a
liberdade não está naquele que a pronuncia todos os dias mas no mais reto e naquele
que sabe melhor fazer respeitar e sustentar os seus deveres e os seus direitos.
– Pensaste bem, menino, disse Paulo. E então! ... Estás Capitão? Quantas batalhas?
161
Ibidem, p. 163.
162
CALDRE e FIÃO, José Antonio do Valle. O Corsário, op. cit., p. 76.
87
Nenhuma, meu tio, respondeu Almênio. Foram-me dadas estas insígnias e eu as
recebi como um fiador dos serviços que hei de prestar em prol da integridade do
Império.
Nesse momento, o romancista parece desculpar-se ao Império por dez anos de
intensa problemática em virtude da grande revolução, que, no momento em que escrevia o
primeiro romance da literatura gaúcha, o fazia de longe, pois estava na Corte, no Rio de
Janeiro, buscando acentuar as virtudes do seu povo e as belezas da sua terra.
88
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Certau diz que o gesto que liga as ‘idéias’ aos lugares é, precisamente um gesto de
historiador”;
163
portanto, cabe aos historiadores acompanhar a trajetória de homens e mulheres
no tempo, identificando suas formas de expressão e de organização em diferentes lugares,
enfim, os modos de ser e de estar no mundo, característicos da condição humana, trazendo do
fundo do tempo seus pensamentos e suas lembranças, a fim de restituir-lhes um lugar na
memória da sociedade.
Mas esse esforço de leitura de realidades sempre distantes, espacial e temporalmente,
possui diversas possibilidades de escrita e múltiplas abordagens teóricas; portanto, pode-se
como pesquisadores, priorizar o que mais convier à nossa tendência pessoal ou que atenda
melhor às exigências do objeto em estudo. Por conseguinte, a narrativa histórica é sempre
uma versão pessoal do historiador, que resulta do conjunto da operação historiográfica diante
da visão em retrospecto, que tem, dos indícios que representam, um tempo que se foi,
analisados por meio dos recursos conceituais que utiliza para interpreta-los.
Nesse sentido, a opção teórica aqui adotada definiu-se em função da utilização da
literatura como principal fonte da narrativa histórica; com efeito, a história cultural forneceu
os elementos fundamentais para a presente análise, porque possibilita a ênfase nos aspectos
particulares da vida de um povo, tornando possível, pela da noção de representação, a
percepção de como as “práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, exibir
uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma
posição”,
164
se manifestam num meio específico e se estruturam no tempo.
165
163
CERTAU, op. cit., p. 65.
164
CHARTIER, Roger. História intelectual e história das mentalidades: uma dupla reavaliação. Lisboa: Difel,
1990. p. 56-57.
165
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como, em diferentes
lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa desse
tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a
89
E, além disso, por corroborar a definição de que a cultura de um povo constitui uma
série de representações coletivas ou não, que um grupo social tem de si mesmo e de outros, e
por isso torna possível a utilização de fontes literárias de diversos tipos, e, nesse caso, é sobre
a tênue fronteira existente entre história e literatura, em que paira nosso olhar investigador, ou
seja, sobre como a história serviu à literatura e como a literatura contou a história, a
composição da sociedade rio-grandense da segunda metade do século XIX, e tangencialmente
para a narrativa dos escritores, dirigiu-se uma interrogação sobre a percepção, e por via de
conseqüência sobre a representação de sua própria sociedade; é portanto, desse cruzamento de
representações que surge a reflexão sobre o que pode ser definido por identidade cultural.
166
Um conceito essencial em história cultural é o de representações, pois, por meio dele
é possível compreender as questões relativas à identidade, visto que não opera sozinho, ao
contrário, aglutina em torno de si contribuições de outros campos do saber, tais como a
sociologia, a filosofia, a psicologia e a arte, a fim de somar esforços para o entendimento,
daquilo que pode ser definido como sentidos partilhados.
167
Ou, ainda, por outro lado, como
habitus,
168
tal como foi definido por Bourdieu e adotado amplamente por Chartier, ou seja, a
apreensão do mundo social, como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis,
consoante as classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas,
próprias do grupo. São esses esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o
presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.” (Apud CHARTIER,
Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. p.17.
166
Sendo a cultura um conceito construído historicamente e que, portanto, possui diversos entendimentos, a
definição aqui adotada é a de Roger Chartier: “O Conceito de cultura [...] designa um conjunto de
significações historicamente transmitido e inscrito em símbolos, um sistema de concepções herdadas,
expressas nestas formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
saber sobre a vida e suas atitudes diante dela.” (Apud CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre
incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002. p. 60).
167
A noção de representação em Psicologia Social está definida, nesta disciplina, “a partir de sua definição
primeira, que é interpretar a realidade que nos envolve, de um lado, mantendo com ela relações de
simbolização e de outro atribuindo-lhe significações”. Desse modo, as representações sociais “recobrem o
conjunto das crenças, dos acontecimentos e das opiniões que são produzidas e partilhadas pelos indivíduos de
um mesmo grupo, a respeito de um dado objeto social”. É no quadro dessa disciplina, que se encontram as
definições mais elaboradas, tentando distinguir diferentes níveis de construção das representações: um nível
profundo, concebido com um ‘nó central’, no qual se constroem por consenso representações ‘não
negociáveis’, que constituem a memória da identidade social; um ‘sistema periférico’, no qual se constroem
‘categorizações’ que permitem à representação ‘ancorar-se na realidade do momento, [...] como grade de
‘decifração’ das situações sociais”. In: GUIMELLI, C. La pensée sociale. CHARAUDEAU, Patrick.
Dicionário da análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. p. 432.
168
Roger Chartier faz uso da definição de Bourdieu da seguinte maneira: “A articulação entre as propriedades
sociais objetivas e sua interiorização nos indivíduos, sob forma de um habitus social, que comanda
pensamentos e ações, leva a considerar os conflitos ou as negociações, cujo desafio continua sendo sua
90
capacidade que têm alguns grupos sociais de vivenciar determinadas práticas, inculcadas a
partir de valores e símbolos que obedecem a determinadas produções de sentido que, ao fim e
ao cabo, lhes conferem uma distinção, uma existência e uma visão de mundo exclusiva.
169
Nesse aspecto, cabe um esclarecimento sobre o manejo dessas construções de
sentido, ou seja, identidade, sociedade, Estado ou religião são categorias históricas e culturais,
portanto, sua explicação não pode pretender a universalidade. Do mesmo modo história e
cultura não são universais, ambas adquirem seus significados pelo ser humano, isto é, são
criações humanas, que representam o pensamento do homem sobre o mundo num
determinado período.
Também a utilização da categoria identidade cultural visa a ressaltar uma questão
central nessa discussão que é o regionalismo, ou seja, aquelas características específicas de
cada região brasileira, que conferem ao caráter nacional essa multiplicidade cultural que
compõe paradoxalmente nossa especificidade mais marcante.
170
Portanto, na composição de uma identidade, seja ela nacional seja regional,
concorrem contribuições culturais de várias ordens, entre as quais encontra-se a literatura,
pois, assim como por meio dela constroem-se novos significados, também são consolidadas
antigas crenças, mas, sobretudo, revelam-se modos de percepção da realidade pela linguagem,
de tal maneira que, como afirma Wittgenstein, os limites da minha linguagem significam os
limites de meu mundo”.
171
capacidade para fazer com que se reconheça sua identidade. É do crédito concedido (ou recusado) à imagem
que uma comunidade produz de si mesma, portanto seu ‘ser percebido’, que depende a afirmação (ou a
negação) de seu ser social.” (Apud CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e
inquietude. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002. p.10).
169
Para um detalhamento sobre a importância da noção de representação, como “a pedra angular de uma
abordagem ao nível da história cultural”, veja-se: CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: Difel, 2002. p. 23.
170
As estratégias utilizadas pelo Estado brasileiro no sentido de construir, mediante um discurso autorizado (do
qual José de Alencar será o principal arauto), as características nacionais, afirmando o regionalismo como um
movimento contrário ao nacionalismo, “pois tenderia a salientar as diferenças, e não as semelhanças, entre
os brasileiros de várias regiões”, são muito claramente apresentadas por Dante Moreira Leite. In: LEITE,
Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1993. p. 220.
171
MORENO, Arley R. Wittgenstein: os labirintos da linguagem. São Paulo: Moderna; Campinas: Ed. Unicamp,
2000. p. 105.
91
Com efeito, é na e pela linguagem que se revela essa especificidade da natureza do
ser humano, qual seja, a singularidade de uma existência única, e a exclusividade de pertencer
a um gênero variado em comportamentos sociais, ou seja, é simultaneamente uno e múltiplo.
Uno porque individual e múltiplo, justamente porque cada grupamento humano revela
características próprias de sua construção cultural e entre as quais está a linguagem.
172
Assim, retorna-se àquelas categorias históricas, mencionadas anteriormente, para
acrescentar mais uma: a alteridade, que é a capacidade do ser de criar outros seres ao mesmo
tempo iguais e diferentes de si, e, nesse sentido, a alteridade estabelece o confronto entre os
universais.
A rigor, é desse choque que se originam as discussões em torno das categorias
identidade e cultura, e elas tornam-se necessárias sempre que existe a percepção de distorções
nos padrões de referência de indivíduos, inscritos num determinado ambiente e período
histórico, isto é, quando um grupo social percebe-se diferente, seja nas atitudes e nos
comportamentos, seja nos hábitos mais simples de alimentação ou habitação, enfim das
diversas possibilidades de existência captadas no encontro com um outro ser.
A partir dessa percepção, surgem as lutas simbólicas que se operam tanto no interior
do discurso quanto no nível da existência individual, elas resultam em classificações que os
grupos sociais criam de si para os outros ou vice-versa, pois é a construção de sua identidade
social que está em jogo, e no limite está sua própria manutenção, pois, conforme indica
Bourdieu:
Sabe-se que os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu
ser social, tudo o que define a idéia que eles têm deles próprios, todo o impensado
pelo qual eles se constituem como “nós” por oposição a “eles”, aos “outros” e ao
qual estão ligados por uma adesão quase corporal. É isto que explica a força
mobilizadora excepcional de tudo o que toca a identidade.
173
172
Quanto à distinção para a não-universalidade dos termos, adota-se a explicação dada por Castoriadis, para
esclarecer que a singularidade no ser humano não é acidental, ela é da essência do ser, por isso, segundo ele:
“É cada vez a singularidade do indivíduo, ou a singularidade de uma sociedade particular, que fazem que
sejam este indivíduo e esta sociedade, e que traduzem a sua essência.” In: CASTORIADIS, Cornelius et al. A
criação histórica e a instituição da sociedade. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1992. p. 84.
173
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 124.
92
Sendo assim, a literatura, como uma forma da expressão humana, porque
potencializa o eu da sua natureza, convertendo em arte a linguagem e a racionalidade,
agregando significado e valor ao mundo pela escrita, possibilita uma visão da história por
meio de textos literários, não apenas como meras fontes, mas também como depoimentos de
uma realidade específica. Literatura e história, portanto, são resultado de ações
eminentemente humanas, produtos de um período e de uma região específicos, estão
carregadas de intencionalidade e também de contingências, e revelam, sobretudo no seu fazer,
as dificuldades de traduzir em palavras a imensa diversidade de ações, sensações e
pensamentos dos indivíduos e da sociedade que os cerca.
A literatura é, além disso, um locus privilegiado de produções de sentido, porque ela
própria é uma representação simbólica da realidade na qual está inserida, porquanto a fala, o
discurso, a narrativa literária são expressões de sensibilidades presentes num determinado
meio social que está impregnado de significados.
Desse modo, é o discurso, a narrativa, que aproxima história e literatura, que são
ambas representações do real, embora com níveis diferentes de liberdade de criação, pois o
romancista cria seus personagens e enredo semelhança de uma época ou lugar), a fim de
cativar seu leitor. Ele tem, via de regra, o propósito de encantar quem o ; por isso, sua
narrativa livre de contingências pode conter o que for necessário para a realização desse
objetivo de sedução. Por outro lado, o historiador tem compromissos e responsabilidades
metodológicas que restringem e controlam sua liberdade narrativa, pois sua escrita deve ser o
meio pelo qual o passado, ou a “passeidade”,
174
torna a existir. Nesse sentido, ao historiador
cabe revelar o que existe de palpável na vida (que realmente existiu), sem ignorar seus
174
A “passeidade”é utilizada por Paul Ricouer para referir-se à representação do passado pela narrativa
histórica, ou mais exatamente refere-se “à atribuição de um conteúdo ficcional à narrativa histórica,
entendendo-a como a representação de um ausente, no caso, o “real-vivido”ou a “passeidade”. Cfe.
LEENHARD, Jaques, PESAVENTO, Sandra Jatahy. (Org.). Discurso histórico e narrativa literária.
Campinas: Ed. da Unicamp, 1998. p.10. Apresentação.
93
próprios sentimentos nem as sensibilidades de outrora, mas também sem pretender uma
recriação autêntica (tal e qual o vivido).
A escrita da história, como uma prática social, é magistralmente apresentada por
Certeau,
175
que muito precisamente registra essa tensão entre a mise-en-scène literária e a
operação historiográfica, ou dito de outro modo, entre o que é vivido e como é dado a ler esse
vivido, enfim, da relação entre uma prática (da história) e seu resultado (o discurso). Nesse
sentido, Chartier relembra o pensamento do mestre ao dizer:
Michel de Certeau formulara essa tensão fundamental da história. Ela é uma prática
“científica”, produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas modalidades
dependem das variações de seus procedimentos técnicos, das restrições que lhe
impõem o lugar social e a instituição de saber onde é exercida, ou ainda, das regras
que necessariamente comandam sua escritura. O que pode igualmente ser enunciado
ao inverso: a história é um discurso que coloca em ação construções, composições,
figuras que são aquelas de toda a escritura narrativa, logo, também da fábula, mas
que, ao mesmo tempo, produz um corpo de enunciados “científicos”, se entendermos
por isso “a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem
‘controlar’ operações proporcionais à produção de objetos determinados.
176
Não obstante essa distinção quanto ao nível de controle na operação narrativa, existe
uma confluência natural entre as atividades, pois se os escritores descrevem o mundo em que
vivem por meio de enredos, criam dramas e romances, que refletem o tom de uma época, uma
forma de ver e de sentir o mundo em determinado tempo. Por sua vez, os historiadores narram
acontecimentos mediante fontes escritas ou não, mas fundamentalmente é de pessoas que
ambos tratam, de existências impregnadas de sentimentos e de memórias que, igualmente,
tecem tramas em que o tema central é a própria vida.
E é precisamente que se encontram essas narrativas, isto é, quando a história,
aliada à literatura consegue captar o melhor” conjunto de referências sobre uma época, um
lugar, um grupo social, e juntas constroem um discurso que traduza algo semelhante àquilo
que Hegel chamou de “espírito” e ao que Marx chamaria de “condições de existência”. Enfim,
175
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 65-109.
176
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre as incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 2002. p. 100.
94
a literatura se estabelece como via de conhecimento do passado, justamente por proporcionar
à história um depoimento indireto sobre os anseios e os sentimentos das pessoas de um
determinado tempo, assim como por revelar a maneira de falar desses indivíduos. O
conhecimento do passado registrado nas páginas do romance, mesmo que perdido no tempo,
como é o caso de A divina pastora, retoma toda sua importância como narrativa da história de
seu tempo. É o que exemplifica, a seguir, o discurso de Chaves, ao tomar posse da Cadeira de
número 7 na Academia Rio-Grandense de Letras:
Certa noite recebi seu chamado urgente. Quando cheguei, deu-me a notícia sob todos os
pontos de vista inacreditável: era iminente o deslinde do mais intrincado enigma da literatura
brasileira A divina pastora, de José Antonio do Valle Caldre e Fião. Primeiro romance rio-
grandense e um dos primeiros no Brasil (antecedente às obras de Alencar, de Manoel Antonio e
Bernardo Guimarães), o livro fora publicado no Rio de Janeiro em 1847 e logo sumira por
completo numa espessa teia de mistérios e indagações, que permaneceram irresolúveis ao
longo de um século e meio, provocando o ceticismo de todos e a descrença de muitos. Tratava-
se de um livro inexistente. E, no entanto, acabava de ser descoberto por nosso amigo comum, o
livreiro Adão Fernando Monquelat, dentro de uma arca de velharias adquirida na banda do
Uruguai. Passamos boa parte daquela noite a garimpar as escassas indicações bibliográficas
disponíveis.
Nada se pode comparar ao terrível susto que, sem querer nem perceber, pregou-nos
Monquelat na manhã seguinte. Ingressando na biblioteca, retirou do bolso um pequeno volume
e colocou-o à nossa frente. Sem pronunciar palavra, olhamo-nos incrédulos. Ora, nós recém
havíamos lido a indicação precisa de Sacramento Blake, talvez o único a descrever a roupagem
gráfica do livro; o romance compunha-se não de um mas de dois volumes, impressos com certo
intervalo de tempo entre um e outro. O que não dissemos, os dois sabíamos: desgraça muito
pior do que não topar jamais o encantado livro seria tê-lo incompleto e pela metade.
Ainda desta feita protegeu-nos o espírito de Simões Lopes Neto, não fosse logo ele o redator
da lenda do Negrinho do Pastoreio, “que anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-
os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz
ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm”. No caso, não
tivemos tempo sequer de alumiar nossa oferenda, pois a suspeita se desfez na primeira
inspecção. Ocorre que, em algum dia perdido, alguém providenciara uma encadernação e,
obviamente, nesta foram juntados num só invólucro os dois exemplares. Na contracapa lia-se a
95
etiqueta: “Encadernado na tipografia de Echenique e Cia.”; quer dizer, a mesma casa na qual
o nosso Capitão tivera sua obra editada e na mesma cidade de Pelotas.
Mais uma vez a generosidade de Carlos Reverbel associou-me a um momento importante da
nossa vida literária. Entregou-me a execução da edição crítica que, ao final de 1992, foi
publicada; mas, sobretudo, me permitiu observar a paixão e competência com que se dedicou a
uma tarefa quase impossível, a biografia de Caldre e Fião. Ao fim e ao cabo, ele conseguiu
resgatar e trazer à luz mais um autor decisivo na configuração intelectual do Rio Grande do
Sul, alterando profundamente a leitura do próprio sistema cultural brasileiro.
177
O percurso teórico feito nesta pesquisa demonstrou que é possível resgatar a leitura
da história no texto literário, pois a palavra é a materialização do pensamento humano. Ela é o
meio pelo qual a vida humana adquire status de obra filosófica strictu sensu, isto é, a
linguagem se revela como uma capacidade de expressão e de compreensão da realidade em
que se vive, cujas idéias têm o propósito de representar um modo de ver e de sentir o mundo,
construindo formas simbólicas para o entendimento de si e fundando parâmetros de distinção
para os outros.
177
CHAVES, Flávio Loureiro. Discurso de posse na Cadeira 7. Academia Rio-Grandense de Letras. Porto
Alegre, 1999. p. 6-7.
96
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101
ANEXOS
102
ANEXO A
Fonte: Jornal Correio do Povo, 7 de janeiro de 1978.
103
ANEXO B
Fonte: Jornal Correio do Pvo, 15 de abril de 1978.
104
ANEXO C
Fonte: Jornal Correio do Povo, 28 de agosto de 1963.
Fonte: Jornal Correio do Povo, 28 de agosto de 1963.
105
ANEXO D
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876.
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
106
110
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
111
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
112
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
115
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
116
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
117
Fonte: Revista Partenon Literário – 1876
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