Download PDF
ads:
MARIA DAS GRAÇAS FAUSTINO REIS
A TEIA DE SIGNIFICADOS DAS PRÁTICAS
ESCOLARES: TRANSTORNO DE DÉFICIT DE
ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE (TDAH)
E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
PUC-CAMPINAS
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MARIA DAS GRAÇAS FAUSTINO REIS
A TEIA DE SIGNIFICADOS DAS PRÁTICAS
ESCOLARES: TRANSTORNO DE DÉFICIT DE
ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE (TDAH)
E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
PUC-CAMPINAS
2006
Dissertação apresentada como
exigência para obtenção do Título de
Mestre em Educação, ao Programa de
Pós-Graduação na área de Ensino
Superior, Pontifícia Universidade
Católica de Campinas.
Orientadora: Profa. Dra. Dulce Maria
Pompêo de Camargo
ads:
Ficha Catalográfica
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e
Informação - SBI - PUC-Campinas
t618.928589 Reis, Maria das Graças Faustino.
R375t A teia de significados das práticas escolares: transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade (TDAH) e formação de professores. - Campinas: PUC-
Campinas, 2006.
246p.
Orientadora: Dulce M. Pompêo Camargo.
Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, Pós-Graduação em Educação. Inclui anexos e bibliografia.
1. Crianças hiperativas. 2. Crianças - Idade escolar. 3. Distúrbios de aprendizagem.
4. Educação inclusiva. 5. Professores - Formação. I. Camargo, Dulce M. Pompêo. II.
Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências Sociais Aplicadas.
Pós-Graduação em Educação. III. Título.
22.ed. CDD – t618.928589
PONTIFíCIAUNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Autor (a): REIS, Maria das Graças Faustino.
Título: "A TEIADESIGNIFICADOSDASPRÁTICASESCOLARES:TRANSTORNODE DÉFICITDE
ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE(TDAH)EFORMAÇÃODEPROFESSORES"
.
Orientador (a): Prota.
Ora. Dulce Maria Pompêo de Camargo
Dissertação de Mestrado em Educação
Este exemplar corresponde à redação final da
Dissertação de Mestrado ent Educação da PUC-
Campinas, e aprovada pela Banca Examinadora.
Data: 23/08/2006.
BANCA EXAMINADORA
""<'.:~ '. \'" -,\ r
" . o \
\
o
\
'o ",C
, .{\ \;
,
" o
,
"
'
o
,
'''"'"- ."- . ,.._,
_ '-"". \. " .", -"""'.,' - . ,- t.. .
Prota. Ora. Dulce Maria Pompêo de Car;nargo
t. . '. ,)~T ir:
Prota. Ora. Josiane Maria de Freitas Tonelotto
--
I
I
',/ r, '- "J:.._,:
'o" ~_ '_.., ,_ _' "';""_
Prota. Ora. Katia Regina Moreno Caiado
.
l
BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Dulce Maria Pompêo de Camargo
1ª. Examinadora: Profa. Dra. Josiane Maria de Freitas Tonelotto
2ª. Examinadora: Profa. Dra. Katia Regina Moreno Caiado
Campinas, 23 de agosto de 2006.
À minha mãe,
o meu amor eterno. Saudade...
Ao Márcio, que esteve ao meu lado
em todos os momentos, a minha gratidão e o meu amor.
As cinco pessoas entrevistadas, a minha admiração,
pela força na transposição de barreiras e
pelo incessante sentimento de transformação social.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Dulce Maria Pompêo de Camargo, pela competência na orientação
deste trabalho, com carinho, paciência, incentivo e valiosos ensinamentos; por
possibilitar a ampliação dos meus espaços de diálogo e aprendizagem no grupo
de pesquisa que coordena, LESC (Laboratório de Ensino, Sociedade e Cultura).
À Profa. Dra. Katia Regina Moreno Caiado, pela co-orientação, em alguns
momentos; por me permitir a participação no grupo de pesquisa que coordena,
LEPESP (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Especial); pela
discussão crítica e pelas valiosas observações feitas no exame de qualificação.
À Profa. Dra. Josiane Maria de Freitas Tonelotto, pelo carinho, atenção e
disponibilidade em participar da avaliação deste trabalho; pelas valiosas
sugestões e observações apresentadas no exame de qualificação.
Aos professores do curso de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas,
pela dedicação, competência e compromisso com a construção de novos
conhecimentos.
Ao meu marido, meu pai, meus irmãos, demais familiares e amigos, por
compreenderem as minhas ausências, por acompanharem e vibrarem em cada
conquista.
Aos profissionais e colegas que me apresentaram os possíveis sujeitos da
pesquisa, pela disposição em ajudar e pelo compromisso científico. Agradeço,
especialmente, à Eloísa Ribeiro e Maria de Lourdes Feriotti, alunas do curso de
Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas; à psicóloga Maria Cristina
Bertani e ao psiquiatra Prof. Dr. José Ari Carletti de Oliveira, pela abertura do
diálogo e pelo interesse na pesquisa; à Profa. Dra. Maria Regina Peres, por
permitir a apresentação do meu projeto aos seus alunos; à Camila Dias, aluna do
curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia da PUC-Campinas.
Aos entrevistados que aceitaram participar da pesquisa, cujas percepções acerca
do ambiente escolar, a mim confiadas, mostraram caminhos para a compreensão
da questão abordada.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas,
pela importante troca de experiências e companheirismo durante o período em
que estudamos juntos.
Aos colegas de trabalho – professores, coordenadores, diretores e funcionários –
pelo incentivo e pela expectativa de novas contribuições que este trabalho venha
trazer à educação.
À Pontifícia Universidade Católica de Campinas, onde concluí a graduação e a
pós-graduação latu sensu, pela satisfação de retornar para realizar esta pesquisa.
Aos secretários e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação da
PUC-Campinas, aos bibliotecários da Biblioteca de Educação, pela atenção
dispensada.
À Diretoria de Ensino de Jundiaí, especialmente, aos supervisores e assistentes
técnico-pedagógicos envolvidos no Projeto Bolsa Mestrado, pela atenção,
colaboração e auxílio.
À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro, por
meio do Projeto Bolsa Mestrado, que integra o Programa de Formação
Continuada de professores.
Não posso estar no mundo
de luvas nas mãos constatando apenas.
A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção,
que implica decisão, escolha, intervenção na realidade.
Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós
e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar.
De estudar descomprometidamente como se misteriosamente,
de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo,
um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele.
(FREIRE, 1996, p. 86)
RESUMO
REIS, Maria das Graças Faustino. As teias de significados das práticas escolares:
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e formação de professores.
Campinas, 2006. 246p. Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação em Educação,
Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, 2006.
O presente trabalho está inserido na linha de pesquisa “Universidade, Docência e
Formação de Professores”, tendo como objetivo refletir sobre a teia de significados das
práticas escolares, na formação de professores. A investigação focalizou cinco adultos
com TDAH. A metodologia utilizada foi o Estudo de Caso, pela possibilidade de esse tipo
de pesquisa qualitativa permitir uma análise aprofundada do objeto de estudo, bem como
dos sujeitos envolvidos. Dentre as opções de trabalho com o Estudo de Caso, elegemos
a História Oral, que possibilitou, por meio de entrevistas orais gravadas, analisar a
influência da docência no desempenho escolar dos sujeitos da pesquisa. O conhecimento
produzido evidenciou a necessidade do estudo crítico e aprofundado sobre o tema
abordado nos cursos de formação de professores no Ensino Superior. Concluiu-se que a
abordagem do TDAH, nos cursos de formação docente, inserida no contexto da teia de
significados das práticas escolares, em suas várias dimensões – social, cultural,
pedagógica, biológica – deve contribuir significativamente para a valorização de cada
aluno e dos relacionamentos no ambiente escolar, além de contribuir para o professor
conhecer o que pode influenciar o desempenho escolar de alunos com TDAH.
Termos de indexação: Universidade, formação de professores, práticas escolares,
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH).
ABSTRACT
REIS, Maria das Graças Faustino. The meanings web of college practices: Attention
Deficit Hyperativity Disorder (ADHD) and teaching formation. Campinas, 2006. 246p.
Dissertation of Master in Education, Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Campinas, 2006.
This work is inserted in “University, teaching and teachers formation” research´s line, and
intend to reflect about the meanings web of college practices on teachers formation. The
investigation has focused in five adults with ADHD. The method used was a Study of
Case, by the possibility of this kind of qualitative research allows a deep analysis of the
study object, and the subjects involved. In addition, the work options of the Study of Case,
we’ve selected the Oral History, that allowed, thru the oral recorded interviews, to analyse
the teaching influence in college performance of the research subjects. The produced
knowledge shows the necessity of a critical and deep study about the approached theme
in the University teacher’s formation courses. We’ve concluded that the ADHD approach,
at the teaching formation courses, inserted into the meanings web college practices
context, with yours diferents dimensions – social, cultural, pedagogical, biological – must
contribute significantly to the each student valorization and the relationships into the
College environment, beyond to contribute to the teacher knows what can influence the
ADHD student’s performance.
Index terms: university, teacher’s formation, college practices, Attention Deficit
Hyperativity Disorder (ADHD).
LISTA DE QUADROS E TABELAS
Quadro 1. Profissão dos pais. ...........................................................................................97
Tabela 1. Sexo e idade. ....................................................................................................95
Tabela 2. Posição na família e quantidade de irmãos. .....................................................96
Tabela 3. Estado civil. .......................................................................................................96
Tabela 4. Renda familiar. ..................................................................................................96
Tabela 5. Escolaridade dos pais. ......................................................................................97
Tabela 6. Escolaridade dos sujeitos. ................................................................................97
Tabela 7. Educação básica. ..............................................................................................98
Tabela 8. Profissão dos sujeitos. ......................................................................................98
Tabela 9. Participação em atividades. ..............................................................................98
Tabela 10. Leituras semanais. ..........................................................................................99
Tabela 11. Fase da vida em que ocorreu o diagnóstico do TDAH. ..................................99
Tabela 12. Tipo de tratamento utilizado para o TDAH. .....................................................99
Tabela 13. Busca de informações sobre o TDAH. ..........................................................100
LISTA DE ABREVIATURAS E SÍMBOLOS
TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
DDA – Distúrbio de Déficit de Atenção
DA – Dificuldades de Aprendizagem
DCM – Disfunção Cerebral Mínima
DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, versão IV
CID-10 – Classificação Internacional de Doenças, décima revisão
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................13
PARTE I
FORMAÇÃO DE PROFESSORES, FRACASSO ESCOLAR E TDAH..............21
1. FORMAÇÃO DE PROFESSORES E EDUCAÇÃO INCLUSIVA ...............22
2. FRACASSO ESCOLAR: UM HISTÓRICO DE DISCRIMINAÇÃO,
PRECONCEITO E CONTROVÉRSIAS .....................................................42
3. TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE (TDAH):
IMPACTOS NA VIDA ESCOLAR...............................................................57
PARTE II
PRÁTICAS ESCOLARES E DESEMPENHO ACADÊMICO DE ALUNOS
DIAGNOSTICADOS COM TDAH ..................................................................90
4. TDAH E EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS: ESTUDO DE CASOS..........91
5. FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O SIGNIFICADO DAS PRÁTICAS
ESCOLARES NO DESEMPENHO ACADÊMICO DE ALUNOS
DIAGNOSTICADOS COM TDAH ............................................................110
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................147
REFERÊNCIAS...................................................................................................155
ANEXOS.............................................................................................................162
ANEXO 1
Questionário: perfil dos entrevistados..........................................................163
ANEXO 2
Questões orientadoras para a realização das entrevistas ...........................166
ANEXO 3
Entrevista com Cláudia................................................................................167
Entrevista com Paulo...................................................................................197
Entrevista com Sandra.................................................................................213
Entrevista com Thaís ...................................................................................232
Entrevista com Tânia ...................................................................................239
ANEXO 4
Cessão de direitos sobre depoimento oral.................................................2466
13
INTRODUÇÃO
Há muitos anos que as dificuldades de aprendizagem e de
relacionamento de alguns alunos inquietam-me. Logo no início da minha carreira
docente, na Educação Infantil e no primeiro ciclo do Ensino Fundamental, essa
preocupação movia-me a buscar explicações e soluções para a questão. Alunos
que corriam durante todo o recreio, que conseguiam ficar sentados por pouco
tempo para fazerem as atividades da sala de aula, que criticavam as ordens com
as quais não concordavam (era comum não concordarem com nenhuma), que
arrumavam muita confusão com os demais colegas, que tinham dificuldade para
respeitar as regras do grupo e que se achavam sempre com a razão foram os
primeiros a me levarem a pensar que algo estava errado. Seria falta de limites
impostos pelos pais? A escola seria pouco atraente?
Ao terminar o curso de graduação em Letras, em 1990, os alunos que
não conseguiam parar quietos, às vezes nem para comer, continuavam me
intrigando. Àqueles problemas iniciais, observados por mim, somavam-se outros,
relacionados à leitura e à escrita, desde a fase de alfabetização até as séries
finais do Ensino Fundamental.
Durante os 21 anos de exercício da profissão, muitos alunos
sinalizaram-me algumas pistas para o descontentamento que tinham com relação
ao ensino que recebiam na escola. A minha primeira hipótese para explicar tal
descontentamento estava relacionada à forma como se dá a comunicação entre
14
professores e alunos, tanto para a manutenção da disciplina como para a
abordagem de conteúdos. Fiz algumas tentativas de entender o problema:
estudos informais sobre comunicação; especialização em Análise de Discurso,
entre eles o pedagógico; monografia em análise de discurso publicitário
(procurava compreender como funciona esse tipo de comunicação que tanto atrai
crianças e jovens, e como a educação pode se apropriar de suas estratégias
comunicativas), exercício do magistério em curso de Comunicação Social, no
Ensino Superior.
Enfim, quando se tornou mais evidente para mim que a forma com que
alguns alunos aprendem não está em consonância com a forma com que,
geralmente, os professores ensinam, a minha inquietação docente tomou forma,
concretizando-se na presente pesquisa, que permitiu a reflexão sobre a relação
que há entre as práticas escolares e o desempenho acadêmico de alunos
diagnosticados com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade), e a
importância de a formação de professores ser contemplada com estudos críticos
sobre a forma como os problemas relacionados à indisciplina e à dificuldade de
aprendizagem desses alunos são tratados pelos professores.
Comportamentos inadequados de alunos nas diversas atividades
educativas realizadas nas escolas têm sido apontados por professores como uma
das principais dificuldades observadas no processo pedagógico. A falta de
preparo dos docentes para lidar com os conflitos que surgem nas salas de aula
também contribui para o agravamento da situação. Além disso, a proposta
educacional da escola, geralmente, prevê um único tipo de enquadramento dos
alunos ao processo pedagógico. Muitas vezes, os alunos com TDAH, por não se
15
adequarem ao padrão pedagógico convencional, tendem a reagir negativamente,
tornando-se inadequados. Os professores acabam apresentando dificuldades ao
tentarem incluir esses alunos em suas aulas, geralmente, por desconhecerem
maneiras de trabalhar com alunos cujo comportamento é diferente do
apresentado pelos demais.
É grande a responsabilidade de professores e pais na avaliação do
TDAH e na sua intervenção, pelo tempo de convívio diário que eles têm com os
alunos que apresentam desatenção, hiperatividade e impulsividade.
Muitas vezes, alunos com TDAH são tratados, nas escolas, como
preguiçosos e incapazes, por tenderem à desorganização, ao esquecimento e por
terem pouco senso de horário. Um dos problemas mais graves enfrentados por
eles é o preconceito de professores, colegas e, em alguns casos, da família. A
exigência dos professores e pais para que eles apresentem um único padrão de
comportamento pode agravar o problema, por criar um ambiente de tensão, que,
geralmente, leva à baixa auto-estima desses alunos. As reações emocionais
deles podem ser comprometidas pelo fato de não conhecerem os seus limites.
Como medida de superação do preconceito que envolve a vida dos
alunos com TDAH, a formação universitária de professores para trabalhar com
esses alunos deve apontar para a urgência em se repensar atitudes observadas
na dinâmica de ensino e educação, pois a falta de posturas pedagógicas que
incluam esses alunos no processo de ensino e aprendizagem pode ter contribuído
para o baixo desempenho escolar de alguns alunos que apresentam
comportamentos diferentes dos ditos “normais”. Patto (1996) coloca que:
16
O que está sendo defendido no presente texto é que a reflexão sobre a
teia de significados das práticas escolares – assim como o estudo crítico e
aprofundado sobre o TDAH –, nos cursos de formação docente, ministrados em
instituições de Ensino Superior, pode produzir mudanças pedagógicas
significativas que levem à inclusão escolar dos alunos que apresentam os sinais
do transtorno. O enfoque positivista, que influenciou – e ainda influencia – a
educação no Brasil, dificulta que se considere a realidade sem fragmentações.
Segundo Triviños (1987),
Buscando entender as relações que permeiam o desempenho
acadêmico dos alunos de que trata esta pesquisa, delimitamos como objetivos:
refletir sobre a formação do professor, especialmente para trabalhar com as
diferenças; compreender os impactos do TDAH no desempenho acadêmico dos
alunos e analisar as relações implicadas entre o aluno com o transtorno e a
prática docente, a partir da fala dos sujeitos participantes da pesquisa – cinco
adultos com o diagnóstico de instabilidade de atenção, impulsividade e
hiperatividade.
O objetivo central do presente trabalho é refletir sobre a teia de
significados das práticas escolares, enfatizando a necessidade de o professor
conhecer o que e como pode afetar o desempenho escolar de alunos com TDAH.
(...) O processo de produção do fracasso escolar acontece no interior da
escola e tem relação direta com sua estrutura e funcionamento; com suas
práticas disciplinares e pedagógicas; com a formação e as condições de
trabalho do corpo docente (...) (p. 12).
Esta visão isolada dos fenômenos sociais, oposta à idéia de integridade
e de transformação dialética hegeliana, permitiu que nossos
pesquisadores realizassem estudos, por exemplo, sobre o fracasso
escolar, desvinculados de uma dinâmica ampla e submetidos a relações
simples, sem aprofundar as causas (p. 36).
17
O objetivo final da investigação empreendida nesta pesquisa visa à proposição de
ênfase ao estudo crítico do transtorno nos cursos de formação de professores no
Ensino Superior, especialmente nos cursos de Pedagogia e Normal Superior,
como forma de melhorar as condições de aprendizagem e de convivência dos
alunos que apresentam o transtorno. Essas medidas poderão propiciar a
valorização da diversidade humana, bem como possibilitar a inclusão escolar dos
alunos que têm sofrido discriminação por apresentarem comportamentos e
organização do pensamento diferentes da maioria dos alunos.
Nosso ponto de partida foi a reflexão sobre o significado das práticas
escolares no desempenho de alunos com TDAH. Entretanto, fomos percebendo
outros temas se agregando: a participação do professor na avaliação do
transtorno e nas intervenções; o histórico das concepções sobre o desempenho
escolar; a formação de professores e a educação inclusiva.
A opção pelo termo “teia”, no título da dissertação, surgiu do
entendimento de que a questão sobre as práticas escolares relacionadas ao
TDAH deva ser compreendida a partir de múltiplos determinantes, principalmente,
social, pedagógico e biológico.
O estudo foi organizado em cinco capítulos, distribuídos em duas
partes: I. Formação de professores, fracasso escolar e TDAH; II. Práticas
escolares e desempenho acadêmico de alunos diagnosticados com TDAH. No
primeiro capítulo – Formação de professores e inclusão escolar –, o fundamento
teórico sobre a formação pedagógica do professor foi trazido à tona, chamando a
atenção para a urgência do rompimento com as tradicionais orientações que têm
pautado o ensino e para a necessidade da promoção da inclusão escolar.
18
No segundo capítulo – Fracasso escolar: um histórico de
discriminação, preconceito e controvérsias –, trazemos algumas das principais
concepções acerca do fracasso escolar, especialmente, relacionado às
dificuldades de aprendizagem e ao TDAH. Para Collares e Moysés (1996), o
desafio, para o professor que pretende ser agente efetivo de transformação
social, está em infiltrar-se na vida cotidiana escolar, quebrar o seu sistema de
preconceitos e retomar a cotidianidade em outra direção. A reflexão sobre a
postura do professor, enquanto produto de um processo discursivo, visando ao
traçado de alternativas de contorno do problema apresentado, pode contribuir
significativamente na formação dos professores.
No terceiro capítulo – Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
(TDAH): impactos na vida escolar –, apresentamos um levantamento teórico
sobre o transtorno: definição, descrição dos comportamentos, tipos de TDAH,
causas, incidência, avaliação e intervenção. A prática docente tem revelado não
ser tarefa fácil fazer a distinção entre uma simples distração e a dificuldade real
em manter a atenção, assim como identificar quando um comportamento
inadequado é sinal de falta de limites ou de hiperatividade. Por causa disso, o
termo Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), muitas vezes, é
usado de forma indevida, enquanto crianças que de fato apresentam problemas
relacionados à oscilação da atenção, impulsividade e/ou hiperatividade ficam sem
o tratamento adequado.
No quarto capítulo – TDAH e experiências educacionais: estudo de
caso –, procedemos à apresentação dos sujeitos participantes da pesquisa, dos
caminhos metodológicos e dos procedimentos técnicos escolhidos para a nossa
19
investigação. Uma de nossas preocupações foi avançar na compreensão e na
produção do saber do nosso objeto de estudo, ou seja, as relações implicadas
entre o desempenho acadêmico de alunos com TDAH, as práticas escolares e a
formação de professores. Optamos, como procedimento metodológico, utilizar o
Estudo de Caso, elegendo a História Oral como opção de trabalho – numa
proposta de resgate da legitimidade das experiências dos sujeitos, saberes e
percepções –, para entender quais questões envolvem o tema investigado.
Participaram da pesquisa cinco adultos com o diagnóstico do transtorno e que
concluíram (ou estão cursando) o Ensino Superior.
No quinto capítulo – Formação de professores: o significado das
práticas escolares no desempenho acadêmico de alunos diagnosticados com
TDAH –, apresentamos a sistematização da análise das falas dos sujeitos, por
meio do tema que possibilitou a construção do nosso conhecimento sobre o
objeto de estudo: “formação de professores: o significado das práticas escolares
no desempenho acadêmico de alunos com TDAH”, destacando as categorias
“dificuldades acadêmicas” e “formação de professores”, para expor a influência
das práticas escolares na aprendizagem e no comportamento de Cláudia, Paulo,
Sandra, Thaís e Tânia.
Por fim, nas Considerações Finais, apresentamos a síntese da
discussão, procurando ligá-la ao nosso ponto de partida, como resposta às
inquietações iniciais. É urgente que os professores repensem a sua prática de
maneira reflexiva, não apenas para atender às necessidades dos alunos com
TDAH, mas porque a escola precisa assumir o seu papel participativo e
democrático na sociedade. Se os alunos com o transtorno revelam aversão às
20
aulas monótonas, é porque têm dificuldade para aceitá-las como algo imposto e já
culturalmente aceito pela maioria das pessoas. É certo que eles precisam
aprender a aceitar as regras necessárias para uma boa convivência social, mas é
certo também que eles dão pistas aos professores de que o ambiente escolar
precisa ser modificado.
PARTE I
FORMAÇÃO DE PROFESSORES,
FRACASSO ESCOLAR E TDAH
22
1. FORMAÇÃO DE PROFESSORES E EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Nossas experiências docentes têm mostrado que, em uma sala de
aula, um único aluno com TDAH (Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade) pode alterar os trabalhos de toda a turma. Uma das
explicações para esse fato é que as escolas não estão preparadas para trabalhar
com a diversidade. As conseqüências são dificuldades escolares, expressas por
notas baixas, reprovações, expulsões da escola.
A constatação do problema configura-se como pista para os nossos
estudos sobre a formação do professor para lidar com problemas decorrentes do
transtorno, que, por sua vez, devem estar articulados com os estudos sobre a
formação de professores pensada em âmbito mais geral e no contexto histórico-
sócio-político em que a educação está inserida, a fim de evitar a proposição de
soluções mágicas e, portanto, inconsistentes.
A situação das escolas brasileiras nem sempre é das melhores. As
mudanças no sistema educacional não têm acompanhado o ritmo das
transformações ocorridas nas últimas décadas do século XX e início deste. No
entanto, muitas são as exigências impostas à educação, já que sobreviver na
atual sociedade requer o desenvolvimento de competências cognitivas superiores
(...) a escola é também um “mundo social”,
que tem suas características de vida próprias,
seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário,
seus modos próprios de regulação e de transgressão,
seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos.
(FORQUIM, 1993, p. 167)
23
e de relacionamento – ou habilidades mentais (BARKLEY, 2002) e funções
executivas (Idem, 1997) –, como
Diante desse quadro, a formação de professores também deve passar
por grandes transformações. A qualificação do professor e, conseqüentemente,
mais investimentos nos docentes passam a ser urgentes nas pautas dos
governos em todos os níveis de abrangência. Entretanto, os professores têm hoje
mais obrigações a serem cumpridas do que direitos que garantam a sua
valorização profissional, dentre elas uma formação de qualidade. Seguem abaixo
informações publicadas na revista Nova Escola, em maio de 2001, sobre o que se
espera do professor:
Percebe-se a carga de responsabilidade depositada nos professores e
a omissão das garantias de trabalho, dignamente condizentes aos deveres que
lhe são imputados. Chamamos a atenção à expressão “espera-se que você seja
capaz de”, pela idéia de individualidade presente na palavra “você”. Com exceção
do item “trabalhar em equipe com os outros professores”, todas as demais
Hoje, espera-se que você seja capaz de contextualizar os conteúdos e
articulá-los nas diferentes disciplinas; diversificar as atividades,
utilizando novas metodologias, estratégias e materiais de apoio;
dominar tecnologias que facilitem a aprendizagem dos alunos; acolhe
r
e respeitar a diversidade, utilizando-a para enriquecer as aulas; gerir a
classe e lidar com o imprevisto; (...) envolver-se nas questões da
escola, desempenhando outras funções além das tradicionais de sala
de aula; (...) trabalhar em equipe com os outros professores; enfrenta
r
os dilemas éticos da profissão; desenvolver projetos com a turma,
tendo como ponto de partida a realidade local (O MESTRE..., 2001).
análise, síntese, estabelecimento de relações, criação de soluções
inovadoras, rapidez de resposta, comunicação clara e precisa,
interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para
trabalhar em grupo, gerenciar processos para atingir metas, trabalha
r
com prioridades, avaliar, lidar com as diferenças, enfrentar os desafios
das mudanças permanentes, resistir a pressões, desenvolver o
raciocínio lógico-formal aliado à intuição criadora, buscar aprende
r
permanentemente, e assim por diante (KUENZER, 2002, p. 18).
24
orientações são direcionadas para o professor, visto como individual no processo
pedagógico. Isso nos leva ao seguinte questionamento: a serviço de quem estaria
a revista citada?
Nóvoa (2004) critica a postura de se pedir tudo ao professor, para além
das funções normais de ensinar, sobretudo ao que está relacionado aos
problemas sociais, e, simultaneamente, os professores serem “cada vez menos
prestigiados do ponto de vista social... É quase um paradoxo...” (p. 9).
Tomemos, como exemplo do que está sendo exposto, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – n. 9394, de 20 de dezembro de 1996
(LDB/96) –, especificamente o Artigo 59, que dispõe sobre as obrigações dos
sistemas de ensino com a educação dos alunos com necessidades especiais,
entre as quais poderíamos incluir o TDAH:
Art. 59 – Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com
necessidades especiais:
I – currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização
específicos, para atender às suas necessidades;
II – terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o
nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de
suas deficiências e aceleração para concluir em menor tempo o
programa escolar para os superdotados;
III – professores com especialização adequada em nível médio ou
superior, para atendimento especializado, bem como professores do
ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas
classes comuns;
IV – educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração
na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não
revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante
articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que
apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou
psicomotora;
V – acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais
suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular.
25
Apesar de a lei prever currículos específicos às necessidades dos
alunos, processos diferenciados de avaliação e atendimento docente
especializado, o sistema educacional, de maneira geral, ainda atende
precariamente tais exigências. Do professor, entretanto, é esperado que consiga
fazer as adaptações necessárias para trabalhar com todos os tipos de
necessidades especiais, inclusive o TDAH e os outros transtornos.
Ainda sobre esse mesmo artigo, Oliveira e Adrião (2002) posicionam-
se sobre a questão de a formação do professor poder ocorrer em nível Médio:
Os autores questionam se o tipo de educação inclusiva que está sendo
proposto não seria uma forma de manter práticas de exclusão de alunos da
escola. Sobre isso, Freitas (2002) aponta que as políticas públicas neoliberais,
com a finalidade de reduzir custos econômicos, sociais e políticos, colocaram em
funcionamento formas dissimuladas de exclusão objetiva (repetência e evasão),
criando a exclusão subjetiva (auto-exclusão, exclusão entre ciclos, “trilhas de
progressão continuada diferenciadas”). Nesse processo, a seletividade da escola,
em sua essência, não é alterada, e ainda há o agravante de a responsabilidade
da exclusão recair sobre o próprio excluído.
Emílio (2004) faz um alerta sobre a proposta de inclusão, ao considerar
que, ainda em condições institucionais favoráveis, é preciso haver grande
disponibilidade e empenho do professor. Em condições desfavoráveis ao
processo de inclusão, “mesmo que com boa vontade e dedicação, parece inviável
Tal constatação causa estranheza, pois trata-se da formação de um
profissional que, para além do domínio de habilidades exigidas para o
exercício profissional no ensino comum, deverá ter qualificação para
concretizar o “especial” da educação (p. 131).
26
que o professor seja capaz de realizar o que se espera dele” (p. 241).
Concordamos com a autora quando sugere a necessidade de que seja repensada
a quantidade de alunos por turma e a quantidade de alunos com necessidades
educacionais especiais em cada grupo. Voltando a Kuenzer (2002), no início
deste capítulo, pensamos como ser possível para o professor desenvolver tantas
habilidades requeridas aos alunos, se ele encontra tantas especificidades
pedagógicas em sala de aula.
Parece ser cultural a base das dificuldades para a melhoria da
qualidade na escola. Para Freitas, a adição de controle sobre a escola –
especialistas supervisionando professores, avaliação interna e externa, por
exemplo – e a adição de tecnologia apontam para a tendência de a melhoria da
escola ser vista da mesma forma que é vista nas outras instituições sociais,
especialmente nas empresas.
Falsarella (2004) destaca que há uma diferença de perspectiva entre a
cultura escolar docente e a cultura escolar administrativa. Enquanto nesta última
acredita-se, por exemplo, em mudanças rápidas e em situações de sala de aula
totalmente sob controle, na primeira as mudanças são quase imperceptíveis e as
situações que ocorrem em sala de aula são inusitadas e as decisões
emergenciais. Na ótica administrativa, o tempo é monocrômico, as coisas
acontecem passo a passo, enquanto na perspectiva docente é policrônico, muitas
coisas acontecem ao mesmo tempo.
Cunha (1995) aponta que a descontinuidade das políticas educacionais
tem levado a uma grande dificuldade de avaliação de sua eficácia no próprio
processo de mudança política. Assim, a educação seria mais vítima do que
27
motora desse processo, “ao contrário do que se imaginava nos anos 70 e começo
dos 80, no movimento de organização dos educadores” (p. 477).
Já Mello (2005, p. 70) sugere que a documentação e a memória
escolar “podem ser úteis para dar argumentos contra mudanças casuísticas e
demagógicas que os dirigentes políticos costumam impor à educação”. Segundo
ela, essas práticas poderiam garantir a continuidade do trabalho escolar. O foco
seria mantido, o fazer escolar é que seria mudado ou preservado, em função dos
objetivos de aprendizagem. Conhecer as iniciativas que deram certo, segundo
Mello, talvez seja a maneira mais eficaz de formação continuada para um
professor. É preciso, entretanto, que haja um conjunto de objetivos
compartilhados por todos e que os professores saibam refletir sobre a própria
prática. Na nossa pesquisa, o relato das pessoas entrevistadas sobre as suas
experiências educacionais e as práticas docentes que facilitaram ou não o
desempenho acadêmico de cada uma foi importante ferramenta tanto como
documentação quanto busca de embasamento teórico para a formação docente
necessária à especificidade educacional do aluno com TDAH.
Além da documentação e da memória escolar, debater com os colegas
sobre os problemas enfrentados no dia-a-dia do espaço escolar pode ser o
melhor caminho para aperfeiçoar a prática pedagógica.
Eu defendo que a formação contínua deve investir em três frentes:
investir a pessoa e a sua experiência, na valorização dessa experiência
e não no desapossar dessa experiência; investir a profissão e os seus
saberes, trabalhar os saberes que os professores já possuem; e
finalmente o investir a escola e os seus projectos... (...) Ou são os
próprios professores que desenvolvem o trabalho de pensar o trabalho,
ou outros assumirão essa tarefa e, no momento em que isso aconteça,
os professores passam a ser executantes de coisas pensadas,
concebidas, reflectidas, por outros... (
NÓVOA, 2004, p. 9).
28
Gómez (2004) compartilha da idéia de Nóvoa ao enfatizar a
importância de os professores ativarem ou reabilitarem o dom da palavra como
expressão dos compromissos e responsabilidades que têm com a profissão, com
as instituições educativas e com a sociedade.
Se o professor quiser ensinar aos seus alunos autonomia para superar
os novos desafios que se interpuserem em seus caminhos, deve ele mesmo
aprender a lidar autonomamente com as questões cruciais de sua profissão.
A formação do professor precisa levá-lo a repensar a sua própria
formação, da Educação Básica ao Ensino Superior, para mudar a sua condição
de objeto da história. É preciso não só constatar o que ocorre, mas intervir “como
sujeito de ocorrências” (FREIRE, 1996, p. 85). É preciso constatar para mudar,
não apenas para adaptar. Pela constatação podemos intervir na realidade, “tarefa
incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que
simplesmente a de nos adaptar a ela” (p.86). Para Freire, formar é mais do que
treinar o educando para o desempenho de destrezas.
A implementação de novas concepções e novos modelos educacionais
são de suma importância, pois os alunos com TDAH apresentam dificuldade em
enquadrar-se num mecanismo de ensino tradicional, em que todos os objetivos
são concentrados na esfera cognitiva, além de serem os mesmos para todos os
alunos e terem como ponto de referência o aluno padrão. Se não for dada a eles
a oportunidade de refletir sobre o conhecimento, ou ainda se eles não
No sólo como un recurso fundamental en el decir y hacer, puesto al
servicio del lenguaje y de la comunicación humana; también, y
sobretodo, como una forma de dar sentido a ala dignidad humana, a
cada persona y a sus circunstancias. En eso consiste la ética, como
discurso y práctica que desafia a la profesión docente (p. 13).
29
encontrarem relação entre os conteúdos do ensino e as suas necessidades,
acabarão desacreditando do valor e da relevância que o ensino lhes promete.
Além disso, a aceleração das mudanças ocorridas na sociedade não combina
com aluno passivo, receptor de conteúdos, mas com o cidadão capaz de
relacionar conhecimentos e produzir os seus próprios. Chizzotti (2001) chama a
atenção para o fato de que acúmulo de informações o aluno já sabe onde
encontrar, principalmente, com as novas tecnologias em informática. É preciso
propor-lhe desafios que lhe provoquem reflexões novas e estabeleçam novas
relações entre os conteúdos.
Para que isso ocorra, cabe ao Ensino Superior propiciar aos alunos,
futuros professores, situações que envolvam pesquisas sobre os problemas
cotidianos enfrentados pelos profissionais da educação, a fim de produzir
reflexões e a busca de informações que levem à solução de tais problemas.
Para Demo (1997), o questionamento é a alavanca crucial do
conhecimento, de sua marca inovadora; questionável é aquilo que apresenta
imperfeições ou erros, que acabam promovendo a necessidade de mudar. Só
inova quem sabe primeiro inovar-se. Conhecimento é a estratégia de desmontar
certezas, habilidade de lidar criativamente com a incerteza. Por isso, é um
processo interminável de desmonte. Cada nova teoria é feita para navegar em
frente, não para atingirmos algum porto seguro.
Sendo o conhecimento a fonte crucial da inovação moderna, é ele
também que a tudo tão depressa envelhece. Não há profissional mais exposto ao
envelhecimento do que o professor, por lidar diretamente com a reconstrução do
conhecimento.
30
O autor propõe o questionamento e a desconstrução do conhecimento,
bem como a reconstrução provisória, ao dizer que a Universidade precisa inovar-
se radicalmente, porque simples reformas já estão fora de questão. Ela não
consegue inovar-se no ritmo do conhecimento, além disso, tende a ser uma
trincheira de resistência. Para Demo (1997), há algumas vantagens em se fazer a
reconstrução provisória, como, por exemplo, a de não ter qualquer sentido
defender uma teoria considerada oficial, como se a academia tivesse algum
compromisso prévio de manter paradigmas.
Nesse sentido, a Educação Superior é fortemente questionada porque
a formação do professor nesse nível tem sido falha por não desenvolver a
capacidade de adequar os conteúdos ensinados às realidades do novo século. O
professor conclui o curso, sem estar preparado para o exercício da profissão, sem
ter aprendido a unir teoria e prática, para que a qualidade de ensino, em todos os
níveis, seja revertida em transformações sociais. A pesquisa e a discussão sobre
o tema levantado em nossa pesquisa, TDAH e formação de professores, não
podem ser ignoradas pela Universidade, posto que a maneira como o processo
pedagógico é conduzido pode influenciar na manifestação das características do
transtorno. Conteúdos, por exemplo, sem significado explícito para o tipo de aluno
que estamos abordando não atraem a sua atenção.
Castanho (2005, p. 136) concorda que a teoria é importante na
formação de professores, mas “é preciso refletir sobre a prática para os docentes
elaborarem sua práxis”. Dos 14 princípios que podem contribuir para o trabalho
docente, apresentados pela autora, após síntese de estudos de Castanho (1989)
31
e Karnal (2004), destacamos 11 que pensamos estarem estreitamente
relacionados com a educação inclusiva:
Sempre investigar o que o aluno já sabe e ensinar a partir daí.
Variar os tipos de avaliação amplia a chance de exploração de diferentes
tipos de inteligência na classe e permite que os alunos apresentem os seus
talentos.
O texto escrito, por ser um instrumento para o objetivo de fazer pensar, não
deve ser abandonado. Entretanto, é preciso usar também imagens,
músicas e outros recursos.
Usar a problematização, pois o questionamento leva à produção do
conhecimento. “Valorizar as inquietações riquíssimas que podem ser a via
de acesso para uma penetração sistemática no domínio do conhecimento
científico e filosófico” (p. 138).
A criatividade pode ser desenvolvida com discussões, encenações,
debates, dramatizações, atividades variadas.
Fazer trabalhos interdisciplinares, restaurando o sentido original de
conhecimento, único, sem fragmentação.
Ser paciente, além de um profundo compromisso com o ato do ensino, é
essencial na prática docente. Paciente com o aluno problemático, que
precisa muito mais do professor do que o aluno brilhante; paciente com os
resultados pouco visíveis a curto e médio prazo.
As palavras têm poder e repercutem em cada aluno de um modo diferente,
por isso, antes de proferi-las, é preciso dedicar-se à observação
sistemática e à reflexão sobre a experiência vivida.
Valorizar o processo interior, vivo, de dúvida, de criação, de investigação,
em detrimento das normas rígidas e uniformizantes. Acrescentaríamos
32
nesse item estudos sobre como a aprendizagem ocorre e os estilos de
aprendizagem.
Enfatizar a visão de conjunto, a interação das partes da realidade. O
detalhismo e a concepção acumulativa do conhecimento levam à
justaposição de informações, em vez de análise e relacionamento.
Valorizar o conhecimento como algo valioso desenvolve o esforço de
amadurecer, enriquecer-se e ligar-se à realidade criativamente. Ao
contrário, valorizá-lo como meio de conseguir notas e eliminar adversários,
prepara para a adaptação egoísta na sociedade de classes.
Na profissionalidade docente a que estamos nos referindo não há lugar
para a clássica percepção do professor como principal fonte de informação e
depositário da verdade e das certezas. Sobre isso, Mello (2001) afirma que se o
professor deve levar os seus alunos a relacionar a teoria com a prática, ele
mesmo, em sua formação, deve aprender a contextualizar os conhecimentos
especializados, de forma que haja construção de significados desses
conhecimentos.
Camargo (2002) aponta que é preciso garantir aos professores a
possibilidade de explicitar as suas inseguranças e os conhecimentos “que tiveram
dificuldades para desenvolver com os alunos, bem como a forma como
pretendem transformar a prática no dia-a-dia na sala de aula” (p. 228). Pensamos
que essa atitude frente às dificuldades docentes deve ser amplamente
privilegiada durante a formação dos professores, na Universidade.
Os fatores que programam o cotidiano da vida acadêmica
(homogeneidade, fragmentação e hierarquização) são criticados por Veiga (2002).
Ela propõe reflexões que visam apontar caminhos para a inovação da aula
33
universitária, sugerindo linhas de ação que superem o atual cotidiano acadêmico,
como a ênfase nos processos participativos de tomada de decisões e a busca de
fins determinados de forma democrática.
Veiga analisa quatro dimensões do projeto político-pedagógico, que
constituem uma possibilidade de inovação da aula universitária, a partir de
resistência para reverter o processo de cotidiano programado. Alguns trechos das
entrevistas analisadas nesta pesquisa confirmam a importância das dimensões
apontadas pela autora, que são:
Humana – É preciso que os alunos sejam convidados a participar da
construção dos projetos, ao mesmo tempo em que seja aumentado o poder
de participação e decisão dos alunos e professores. O caráter inovador da
aula centra-se na construção de uma outra relação pedagógica entre
professor e aluno.
Uma das entrevistadas nesta pesquisa
1
, diagnosticada com TDAH e
estudante do primeiro ano de História, criticou a falta de envolvimento dos alunos
com os conteúdos trabalhados por duas de suas professoras:
1
Todas as entrevistas se encontram no Anexo 3. Optamos por utilizar nomes fictícios, assim como
todos os nomes citados pelos entrevistados em cada entrevista. Informações mais detalhadas
sobre a metodologia da pesquisa encontram-se no próximo capítulo.
Porque tem professor que ele sabe, sabe muito. A minha professora de
Introdução à História e a minha professora de Geografia sabem muito, só
que elas usam palavras arcaicas. (...) a maneira como elas expõem a
aula delas eu acho que é antiga, não faz o aluno se prender (Cláudia,
Anexo 3).
34
Em outro trecho, a estudante explicita que o envolvimento a que ela se
refere requer que o professor permita a participação dos alunos nas aulas, de
forma diversificada:
Durante muito tempo, os alunos não foram convidados a participar do
processo de ensino e aprendizagem. Ao professor cabia ensinar e ao aluno
aprender o que o professor ensinou. Numa proposta participativa desse processo,
deve haver aproximação das partes envolvidas. Para isso, bons relacionamentos
tornam-se ingredientes indispensáveis à aprendizagem.
O desabafo da estudante evidencia que, além da relação pedagógica
entre professor e aluno, o relacionamento entre os alunos deve merecer a
atenção dos docentes.
Epistemológica – Urge uma nova forma de ensinar, aprender e pesquisar.
“Porque eu não aprendia no livro, aprendia experimentando” (Sandra,
Anexo 3). As pessoas entrevistadas nesta pesquisa relataram que precisam se
sentir desafiadas a fazer determinada atividade e que a busca do novo sempre
esteve presente em suas vidas. Entretanto, seus professores as consideravam
indiferentes durante as aulas. A explicação para isso talvez seja a forma como
As aulas não são dinâmicas. Aula, pra mim, tem que ser dinâmica, tem
que ter todo um jogo, corporal e de fala, e tem que fazer o aluno interagir.
Se não fizer isso, não vai me prender. Não me prende, não dá.
Conteúdo, você se vira, relacionamento, não. Eu tenho amigos, poucos.
De toda a minha vida escolar, eu posso contar quantos, nos dedos, eu
tenho. Nos dedos (Cláudia).
35
aqueles professores concebiam o processo de ensino e aprendizagem, centrada
no professor.
Metodológica – Necessidade de novos modos de relações e novos modos
de exercício de poder, nas instituições.
A questão metodológica foi mencionada, e em quase todos os
momentos criticada, por todos os participantes desta pesquisa. Foram apontados
problemas que envolvem questões metodológicas em todos os níveis de ensino,
inclusive o Superior:
“O que pega é o professor. Não pega a matéria. Se eu gosto do
professor, eu vou, se eu não gosto, já era” (Sandra). Analisando-se a fala da
entrevistada, é possível afirmar que o gostar do professor não está relacionado a
uma preferência pessoal por este ou aquele professor, mas é a forma com que o
professor envolve os alunos em sua aula que o aproxima ou o afasta deles.
Eu aprendi algumas coisas de Inglês por causa disso. (...) A classe tinha
que fazer mímicas. Era legal. Era divertido. Umas coisas assim
diferentes, não só aquela coisa de livro didático, livro didático, livro
didático, lousa, lousa, lousa, dever, prova. O que é isso? Nada (Cláudia).
Porque o que falta, eu acho, nas escolas, independentemente se você
tem DDA [Distúrbio de Déficit de Atenção] ou não, é uma dinâmica do
professor. Porque a dinâmica que ele monta na aula, é que vai dizer se a
classe vai bem ou se a classe vai mal (Cláudia).
(...) mas a maneira como a pessoa passa, eu acho que isso é muito...
muito importante. A maneira como a pessoa passa para o aluno é que faz
ele se interessar ou não por aquilo. E aquilo não está me interessando
(Cláudia).
36
Ética – Necessidade de uma nova ética, alicerçada no princípio da
responsabilidade e centrada na solidariedade com o futuro.
A falta de compreensão, tanto de professores quanto de colegas,
marcou a vida escolar dos participantes desta pesquisa. Além disso, a forma
arbitrária com que os problemas eram resolvidos na escola resultavam numa
seqüência de comportamentos negativos, ora de alunos ora de professores:
Houve, no entanto, experiências positivas vividas pela própria Sandra
que possibilitaram, a partir da aceitação de suas diferenças e da busca de novas
formas de ensinar, por uma outra professora, o afloramento de sentimentos de
auto-afirmação:
Uma outra entrevistada apontou que, no Ensino Superior, tem
encontrado apoio para superar as dificuldades que sempre sentiu na escola. A
sua fala revela que o respeito pelas dificuldades que os alunos com o TDAH
apresentam é de suma importância na atividade docente:
Eu odiava aquela professora. E eu repeti... (...) Foi por implicância,
porque a nota que eu tirei... Foi assim, por 0,2 pontos. (...) O Conselho de
Classe me detonou. Eu não me conformei com aquilo. Realmente, fiquei
com aquele rótulo: “A burra reprovou.” A primeira vez que eu tinha
reprovado. Piorou. Confirmou toda aquela expectativa negativa (Sandra,
Anexo 3).
Eu tive a sorte de que a maioria dos meus professores conhece o
problema. De tanto também eu ficar falando na Faculdade. Eles me
apóiam, eles me ajudam no que for preciso. Sabem das minhas
dificuldades, me incentivam a fazer as coisas (Tânia, Anexo 3).
Ela era uma excelente professora. Soube diagnosticar o problema e
trabalhava a parte que eu tinha deficiência, que ela deixava mesmo, ela
passava... Sempre me valorizava no que eu sabia (Sandra).
37
O senso de responsabilidade social pode ser observado na fala de
Sandra, ao contar sobre o material didático que cria especialmente para as suas
turmas, na escola de Inglês em que é proprietária: “Eu não consigo comprar uma
apostila pronta e dar para os meus alunos. Meus desenhos eu faço todos, na
mão”. Ela dá importância à valorização da construção dos conhecimentos, e não
apenas o produto final. Por isso, constrói as apostilas com os seus alunos.
Para Veiga (2002), o projeto político-pedagógico é um dos
instrumentos de oposição e resistência contra os fatores padronizadores do
cotidiano acadêmico; reforça a necessidade do conhecimento desse cotidiano; e
formula algumas indagações, a fim de abrir espaço para outras formulações,
exigidas pela necessidade de inovar a prática pedagógica. E, se até para o aluno
sem o problema por nós abordado a prática pedagógica tem de ser repensada, o
que se diria sobre a mudança para atender as necessidades do aluno com
TDAH?
Segundo Dias Sobrinho (2004), a educação superior deve produzir
conhecimentos e formação com um grande sentido de pertinência social, dando
respostas às demandas e às carências da sociedade. Para ele, é preciso
instaurar uma ética da responsabilidade social.
Os níveis alarmantes de exclusão social presentes no Brasil e em
outros países da América Latina apontam para a necessidade de a Universidade
ser crítica, cultural e popular. Em seu texto sobre a Universidade, Castanho
(2002) apresenta, entre outros, um referencial crítico-cultural-popular. Ele aponta
ainda que a Declaração mundial sobre a educação superior no século XXI: Visão
e ação - Unesco – está relacionada aos modelos contemporâneos por ele
38
apresentados: ela incorpora parcialmente o modelo neoliberal-globalista-
plurimodal (emergente) e o modelo democrático-nacional-participativo
(estabelecido e em crise de hegemonia), e aproxima-se do referencial crítico-
cultural-popular.
Para o autor, a Universidade segue para o novo século e para o novo
milênio entre o sim, o não e o talvez. O discurso do sim é o modelo neoliberal,
sem disfarces, da promoção ativa da exclusão em nome da eficiência capitalista;
o discurso do não é o referencial crítico-cultural-popular, a voz da resistência à
exclusão; e o discurso do talvez, o modelo democrático-nacional-participativo, que
esconde o sim ao proclamar o não.
Nesse cenário, a escola falha por não funcionar como um filtro dos
valores e das influências que são passados às crianças. Ela tem se aproximado
de uma educação técnica e pragmática, influenciada pelo mercado,
completamente excludente, enquanto se afasta de uma formação mais humanista
e crítica (DE LA TAILLE, 2005).
Analisar e entender o sentido complexo do pensamento e da ideologia
da época e da condição sócio-cultural e econômica vigentes são chaves para
compreender os influxos culturais que penetram a vida da escola. Como se define
o marco cultural público e intelectual na sociedade, na escola, no docente e na
aula, será um fator decisivo para compreender o peculiar intercâmbio cultural que
se estabelece na instituição educacional (PÉREZ GÓMEZ, 2001).
Libâneo (2001) aponta que o professor precisa retomar o seu lugar na
sociedade e, para isso, deve ser capaz de trabalhar com a cultura. Cultura aqui
39
entendida como um conjunto de ferramentas conceituais para estabelecer
relações, tomar decisões, resolver problemas, tanto pessoais como profissionais,
ser capaz de refletir sobre as políticas da educação e posicionar-se frente a elas
com competência.
A reflexão do professor sobre o modo pelo qual leciona, o modo pelo
qual o conteúdo é organizado, o aluno é tratado e a escola está organizada, não
pode ser ignorada em sua formação. É importante também considerar o sistema
educacional e social em que a escola está inserida quando se faz exigências ao
tipo de formação de professores necessária para o professor trabalhar com o
TDAH. É comum a disseminação de técnicas de ensino em vez do ensino de
“como a criança aprende”.
Ciasca e Rossini (2000) falam sobre a necessidade de, em vez de
mudanças fragmentadas de ensino, serem desenvolvidas mudanças em sua
base. “Aprender como ensinar a criança”, em detrimento do usual “ensinar a
criança aprender” (p. 13), poderia evitar que o aluno, antes mesmo de ter a
oportunidade de se apropriar dos fundamentos básicos da aprendizagem,
passasse pelo processo de rotulação, geralmente utilizado para a explicação do
seu desempenho escolar.
Ao mesmo tempo em que teóricos sobre educação defendem que a
formação dos professores ocorra na Universidade, por meio da ciência e da
pesquisa, somos levados a pensar com Kuenzer (1999) que as diretrizes
curriculares esboçadas, a partir da LDB 9394/96, propõem justamente o contrário,
com a redução de conteúdos obrigatórios para, em vez destes, a
40
A autora aponta a organicidade desse modelo às novas demandas do
mundo do trabalho flexível na sociedade globalizada. Aos que estão à margem da
sociedade, os sobrantes, não convém oferecer educação cara, ou seja, científico-
tecnológica e sócio-histórica continuada e de qualidade.
Kuenzer continua o raciocício, afirmando que, dessa forma, aos
(futuros) professores dos alunos sobrantes, portanto, professores também
sobrantes, caberia uma formação aligeirada e de baixo custo. A formação
específica e pedagógica se daria em espaço não-universitário, o que entendemos
em serviço, em programas de formação continuada. A função de cientista e
pesquisador da educação fica restrita apenas aos professores que atuarão no
Ensino Superior, ensino que não é para todos.
A partir da configuração desse cenário, em que a educação científico-
tecnológica e sócio-histórica de qualidade é subtraída da formação do professor
no Ensino Superior, como desempenhar a difícil tarefa de formar o professor para
trabalhar com as diferenças, tão presentes na escola?
Os problemas educacionais não estão isolados das transformações
ocorridas no sistema social, político e econômico. E assim é que a escola deve
criação de ênfases e opções entre percursos e disciplinas que
reinventam a taylorização, agora pós-moderna, com a justificativa da
flexibilização, que substituirá a formação já insuficiente, por “percursos”
aligeirados, mas de baixo custo, que satisfarão a demanda por formação
superior (p. 179).
Estes, sobram; precisam apenas de educação fundamental para que não
sejam violentos – embora usem drogas e comprem armas para alimenta
r
os ganhos com o narcotráfico –, para que não matem pessoas, não
explorem as crianças, não abandonem os idosos à sua sorte, não
transmitam Aids, não destruam a natureza ou poluam os rios, para que o
processo capitalista de produção possa continuar a fazê-lo, de forma
institucionalizada, em nome do “desenvolvimento” (idem, p. 180).
41
ser entendida. Não apenas o sistema educacional precisa sofrer transformações,
mas toda a sociedade, o que nos faz pensar num círculo vicioso necessário, pois
as chances de mudanças na sociedade parecem estar centradas, especialmente,
nas vias da educação.
Relembramos Freire (1996), ao dizer que a forma histórica de lutar
precisa ser reinventada. Não podemos nos eximir de um discurso negador da
humanização, “o discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da
exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o
discurso do elogio da adaptação tomada como fado ou sina” (p. 84). Ele nos
alertou que, enquanto prática ética, um momento importante da prática docente
deve ser a luta em defesa de direitos e da dignidade. A luta de que fala Freire
deve fazer parte da atividade docente. “O combate em favor da dignidade da
prática docente é tão parte dela mesma quanto dela faz parte o respeito que o
professor deve ter à identidade do educando, à sua pessoa, a seu direito de ser”
(p. 74).
42
2. FRACASSO ESCOLAR: UM HISTÓRICO DE DISCRIMINAÇÃO,
PRECONCEITO E CONTROVÉRSIAS
Refletir sobre a formação de professores com vistas à educação
inclusiva de alunos com TDAH suscita, inicialmente, a discussão sobre por que
alguns alunos apresentam desempenho escolar aquém do esperado.
A partir dos anos 80, do século passado, alguns autores (SUCUPIRA,
1985; COLLARES e MOYSÉS, 1992, 1996; CYPEL, 1993; PATTO, 1999; e
outros) dedicaram-se ao estudo da alarmante constatação de reprovação e
evasão escolar, e de encaminhamentos médicos de alunos com dificuldades de
aprendizagem e de comportamento, feito por professores. Com relação ao TDAH,
Sucupira (1985, p. 32) diz que
Apesar de duas décadas terem se passado, a questão continua atual.
Segundo Ciasca (2003), professor e escola, envolvidos num processo
sociocultural desestruturado, ou mal-estruturado (inadequação pedagógica, falta
de recurso material e humano, entre outros), buscam uma falha no processo de
É necessário certamente compreender por quais razões
históricas, sociais, psicológicas, certos indivíduos, certos
grupos acedem mais facilmente ou mais amplamente do
que outros ao domínio de certos saberes ou modos de
pensamento ensinados nas escolas e por quais
mecanismos uma cultura com vocação universalista pode
se conformar com fenômenos de discriminação e de
confisco (FORQUIM, 1993, p. 172).
No nosso meio, a história da criança hiperativa é bastante conhecida de
todos. (...) Por ser uma criança difícil, que traz problemas para a classe e
não consegue aprender, é comum os professores chamarem os pais e
indicarem a necessidade de procurar o pediatra, neurologista ou
psicólogo, para que seja feito um eletroencefalograma. Tenta-se
encontrar uma alteração neurológica que explique os “distúrbios” do
comportamento.
43
ensino-aprendizagem e a sua justificativa, de forma simplista: causas de origem
orgânica ou física, detectadas mais facilmente na criança, são usadas para tornar
o processo “explicável”.
Para Sucupira (Ibid), comportamentos que se destacam do normal
seriam definidos em função de comportamentos desviantes dos esperados. O
diagnóstico de um comportamento anormal estaria sujeito aos limites de
tolerância dos observadores e, portanto, sujeito às regras e limites impostos pelo
microssistema social.
Collares e Moysés (1992) também denunciaram a maneira como a
escola explica o fracasso escolar de determinados alunos. Segundo as autoras, o
uso da expressão distúrbio de aprendizagem expandiu-se de maneira
assustadora entre os professores, que a usam para se referirem a uma doença,
um problema localizado no aluno, que interfere na aprendizagem. O exagero com
que a expressão passou a ser usada pelos profissionais da educação, levou
Collares e Moysés a constatarem a concretização do processo de biologização, e
conseqüente patologização, das questões educacionais. Dessa forma, o sistema
social vigente e a instituição escolar – os determinantes políticos e pedagógicos
do fracasso escolar –, são isentados de responsabilidades.
O termo TDAH é recente, mas as suas características são descritas
desde o início do século XX. É atribuída ao pediatra inglês George Frederic Still, a
primeira definição do transtorno (HALLOWELL e RATEY, 1999). Em 1902, ele
descreveu algumas crianças que eram difíceis de controlar, por apresentarem
sinais de não reconhecimento de regras, destemperamento, desonestidade e
voluntariosidade. Ele defendeu a hipótese de que a condição fosse herdada
44
biologicamente ou fosse conseqüência de lesões sofridas por ocasião do parto,
idéia que persistiu nos anos 30 e 40, para explicar comportamentos incontroláveis
de crianças com “lesão cerebral”.
Segundo estudos de Collares e Moysés (1992), o processo de
biologização do comportamento iniciou, pouco significativo, com Strauss, em
1918, ao lançar sua hipótese de que os distúrbios de comportamento e os de
aprendizagem, com menor ênfase, poderiam ser conseqüentes de uma lesão
cerebral mínima, suficiente para alterar o comportamento, mas não para provocar
outras manifestações neurológicas.
Em 1962, de acordo com as autoras, surgiu o termo disfunção cerebral
mínima (DCM), devido ao reconhecimento pela classe médica de um problema
que está relacionado às funções do cérebro, e não à uma lesão. As autoras
afirmam que, apesar de não existirem critérios que objetivassem os sintomas,
foram descritas manifestações clínicas: hiperatividade, agressividade, distúrbio de
aprendizagem, distúrbio de linguagem, incoordenação motora, déficit de
concentração, instabilidade de humor, baixa tolerância a frustrações, entre outras
menos comuns.
Collares e Moysés explicam que os distúrbios de aprendizagem eram
colocados como uma das manifestações da disfunção cerebral mínima e
entendidos como expressão de uma alteração biológica, individual. Elas
comparam as definições de distúrbios de aprendizagem estabelecidas em 1968 e
1981 e constatam que a última permite que qualquer criança com dificuldades
escolares se enquadre no diagnóstico. Em relação à disfunção cerebral mínima, a
mudança nas definições é mais sutil. Cypel (1993) aponta que, dentre as
45
manifestações clínicas da DCM, a dificuldade de aprendizagem (DA) era
proeminente de tal forma que DCM e DA passaram a ter o mesmo significado
para muitos pesquisadores.
Collares e Moysés (1992) destacam que as teorias biologizantes são
legitimadas e aceitas, na década de 60, porque os valores da sociedade
americana estavam sendo contestados pelos jovens e pelas minorias (movimento
hippie, movimento estudantil) e a crise no sistema escolar (fracasso previsível e
“explicável” de negros, fracasso inesperado e inexplicável da classe média
branca) demandava reforma das instituições sociais, inclusive a escolar. Em
reação aos conflitos vividos pela sociedade, ocorre uma intensa biologização das
questões sociais – disseminação de testes de QI, explicação dos diferentes
papéis sociais entre os sexos a partir de diferenças biológicas cerebrais, difusão
da psicocirurgia como solução para a violência nos guetos –, que gera uma
redução da situação e do destino de indivíduos e grupos a características
individuais. Dessa concepção decorre o processo ideológico de que “o indivíduo é
o maior responsável por seu destino, por sua condição de vida” (p. 39).
Momento histórico, forma de divulgação científica, mudança de nome
(de lesão para disfunção) e existência de tratamento medicamentoso permitiram a
fácil assimilação dessa teoria e o seu reconhecimento como científica. Collares e
Moysés criticam o fato de, apesar de hipóteses, termos como hiperativo, DCM
(disfunção cerebral mínima), distúrbio, dislexia, hipercinético transformarem-se
em verdade absoluta, no cotidiano da sala de aula, na fala dos professores.
Alertam para um mercado de trabalho em expansão, economicamente atraente,
porque o tratamento para os distúrbios de aprendizagem é demorado e caro. As
46
autoras revelam que surgem, então, novas profissões baseadas na nova
concepção de processo ensino-aprendizagem, assim como a mudança de
orientação na formação de alguns profissionais (fonoaudiólogos, fisioterapeutas,
professores de educação física, psicólogos, pedagogos e médicos – neurologistas
e pediatras). Os interesses econômicos ultrapassaram esses limites, chegando às
indústrias farmacêuticas, especialmente às que disputam o mercado com as
drogas Ritalina e Nootropil, usadas, respectivamente, para o tratamento da DCM
e da dislexia.
Cypel (1993) informa que, no início da década de 70, 40% dos
escolares recebiam o rótulo de DCM, de pais e professores, “bastava o indivíduo
apresentar alguma pequena inabilidade motora, ser algo inquieto, ou não
acompanhar a expectativa do professor” (p. 28). Informa também que já foram
encontradas cifras de até 20% de disléxicos em escolares, quando números reais
estão em torno de 1% de crianças que apresentam “dificuldades na aquisição da
leitura e escrita”, termo mais adequado que o termo dislexia, segundo o autor,
pela carga de preconceitos que o envolvem. Cypel admite que existem alguns
poucos disléxicos, mas é preciso tomar cuidado para que uma condição
relativamente incomum não se transforme em outra com características
epidêmicas.
A descrença da existência de patologias como DCM e dislexia residia
no fato de só se manifestarem quando a criança entrava na escola e melhorarem
ou serem curadas com o passar do tempo (COLLARES e MOYSÉS, 1992). Sobre
isso, Cypel aponta que
47
Ainda segundo o autor, o uso da nomenclatura DCM, no âmbito familiar
e escolar, caracterizava as crianças como possuidoras de um distúrbio cerebral, o
que as tornava diferentes da outras, ocasionando até a marginalização nesses
ambientes. Cypel esclarece que existem casos de prejuízo no desenvolvimento
da aprendizagem em decorrência de disfunções cerebrais, mas que a ocorrência
é incomum. “Embora as funções neurológicas ou neuropsicológicas sejam
importantes para o bom desempenho escolar, não atuam de forma exclusiva, ou
não são por si só suficientes” (p. 31).
Para Collares e Moysés (1992), os motivos para a aceitação pela
sociedade da medicalização do comportamento e da aprendizagem foram:
alterações da estrutura familiar, formação acrítica dos médicos e existência
precoce de terapêutica medicamentosa, sugerindo que esta tenha surgido muito
antes da definição clínica da hiperatividade.
Coles (1987) aponta que a classe média americana contribuiu para a
aceitação do transtorno como especialidade médica, no momento em que passou
a aceitar as explicações médicas para o fracasso de seus filhos na escola. Vários
problemas sociais decorrentes do modelo econômico estavam surgindo, duas
décadas após a Segunda Guerra Mundial, e interferindo nos problemas de
comportamento e aprendizagem escolar dos alunos. Segundo Coles, o fato de a
elaboração de uma especialidade clínica diferir das de “retardo mental” ou de
Muitas dessas crianças mostravam desempenho escolar aquém da
expectativa porque eram expostas a exigências para as quais ainda não
estavam preparadas, ou submetidas a currículo que não respeitava o
ritmo de aprendizado individual, entre outros fatos; em função disso
tornavam-se desinteressadas, desatentas e inquietas; uma vez adequada
a situação pedagógica, modificava-se o desempenho escolar e os
comportamentos bizarros desapareciam (p.29).
48
“privação cultural”, que eram utilizadas para explicar o rendimento escolar
insatisfatórios de alunos oriundos de grupos pobres e de minorias étnicas, teve
contribuição relevante para a aceitação do diagnóstico do distúrbio. Diagnóstico
que Werner Júnior (1997) submete à discussão crítica, propondo uma outra linha
de investigação, apoiada na abordagem histórico-cultural de Vygotsky. Em seus
estudos, o autor propõe que a manifestação dos sinais do transtorno está
condicionada ao tipo de relação existente entre as pessoas.
A nova mudança da nomenclatura da DCM em ADD (Attention Deficit
Disorders – ou DDA, Distúrbio de Déficit de Atenção, no Brasil), em 1980, é
criticada por Collares e Moysés (1992), por sobreviver autonomamente a teoria,
“sem precisar se comprovar, pairando acima daquilo que se chama ciência.
Sobrevive, e é mutante; modifica-se, perpetuando a espiral viciada” (p. 45). A
justificativa para a mudança é a disfunção básica estar situada na esfera da
atenção. A principal crítica das autoras, entretanto, reside na aceitação passiva da
sociedade na biologização dos problemas descritos nos dois subtipos da
síndrome (com e sem hiperatividade): freqüentemente falha em terminar tarefas;
freqüentemente parece não ouvir; freqüentemente age sem pensar;
freqüentemente tem dificuldade de concentração em trabalhos escolares;
freqüentemente tem distúrbios de aprendizagem:
Em seguida, as autoras fazem uma afirmação que julgamos ser tratada
com muita cautela: “Seu consolo [da criança] é a possibilidade de um dia
encontrar como terapeuta um ótimo analista que não acredite na existência
Se, de um lado, ao reduzir o social ao biológico, ocorre uma generalizada
isenção de responsabilidades, à criança rotulada sobra a estigmatização,
a introjeção da doença, com repercussões previsíveis em sua auto-
imagem, auto-conceito, auto-estima (p. 45).
49
dessas ‘doenças’ e seja capaz de lhe restituir a própria normalidade, de que foi
expropriada” (p. 45). As autoras falam de um contexto em que todos os problemas
escolares eram considerados doença, entretanto, consideram que nenhum
desses problemas podem estar relacionados a algum tipo de patologia. Portanto,
ao denunciarem um erro, talvez incorram em outro.
Ressaltamos, ainda assim, a importância dos estudos feitos pelas
autoras, por pregarem a necessidade de se recuperar o espaço pedagógico:
Outro estudo de Collares e Moysés (1996), sobre preconceitos
veiculados no cotidiano escolar e também sobre a medicalização da sociedade
em geral, alerta para o problema de crianças originalmente normais irem
incorporando o estigma de doente, chegando a perderem a própria normalidade.
Alertam também para a dupla perversidade do processo de patologização, que
rotula crianças normais como doentes e desaloja crianças que deveriam ser os
ocupantes legítimos dos espaços de atendimento, propostas, atendimentos e
preocupações. Apontam problemas no sistema educacional, ao mostrarem que o
processo de produção do fracasso escolar acontece no interior da escola e está
relacionado com a sua estrutura e funcionamento: práticas disciplinares e
pedagógicas, formação e condições de trabalho do corpo docente, relação
preconceituosa estabelecida pelos educadores com as crianças e as famílias das
classes populares. Mostram ainda que o sistema educacional como um dos
responsáveis pelo fracasso escolar de determinados alunos é pouco lembrado
Talvez aí resida um dos problemas fundamentais da educação hoje. (...)
O problema da escola brasileira não se resolverá, com certeza, pela
transformação do espaço pedagógico, do sadio, do prazer, em espaço
clínico, da doença, da rotulação. Cabe à educação a tarefa, o desafio de
retomar seu próprio campo de conhecimento, seja em nível teórico, seja
na atuação, no cotidiano da sala de aula (p. 46).
50
pelos professores participantes da pesquisa, que centram o problema na criança,
na família ou no professor.
Patto (1999) também apresentou estudos sobre as raízes históricas
das concepções sobre o fracasso escolar, desde as teorias racistas às modernas
teorias das relações humanas. A autora parte de seu inconformismo com os altos
índices de evasão e repetência, em escolas públicas de primeiro grau, em busca
da reflexão sobre os estereótipos e os preconceitos em torno das pessoas pobres
e à vida familiar entre elas, ou seja, em busca das relações entre a escola e as
famílias dos alunos. Para isso, Patto faz uma revisão da literatura sobre o
fracasso escolar, trazendo um estudo das relações entre a ciência psicológica e a
educação e, em seguida, analisa o fracasso escolar enquanto processo
psicossocial.
A autora revela como a história pessoal e a familiar de professores
influenciam a maneira particular de cada um perceber a família e a criança pobre,
a partir de estereótipos e preconceitos; revela as concepções sobre as relações
ensino-aprendizagem; as atitudes assumidas pelos professores, no jogo de
relações hierárquicas de poder no interior das escolas.
Ao contrapor a perspectiva da instituição escolar à dos sujeitos (família
e alunos), é muito importante a revelação que Patto faz sobre a maneira como o
É fundamental que se invista cada vez mais na formação do professor,
permitindo-lhe apropriar-se de novos conhecimentos científicos, novas
teorias educacionais. Porém, se esse investimento não tiver como uma
de suas premissas interferir no cotidiano escolar, romper preconceitos
como os citados, ocorrerá o que temos comprovado em nossa pesquisa:
teorias são transformadas ao serem incorporadas ao pensamento
cotidiano não modificado, de tal forma que se desfiguram, perdem sua
identidade, são reduzidas a técnicas, métodos, que só se diferenciam
dos anteriores pelo nome (COLLARES e MOYSÉS, 1996, p. 260).
51
fracasso escolar é produzido na escola: ele não apenas é produzido no cotidiano
escolar, mas é inculcado nas mentes, a partir de uma escola que se esforça em
docilizar os corpos.
Nas quatro histórias de reprovação escolar, estudadas pela autora,
aparece, além da perversidade do processo de fracasso, a crueldade com que ele
é tecido. Ela mostra que a estigmatização de alunos comuns acontece com a
participação ativa dos profissionais – não apenas diretores, professores,
orientadores educacionais, mas, psicólogos e médicos – quando o destino escolar
é traçado a partir de algumas marcas derivadas da herança étnica dos alunos ou
por suas condições sociais e culturais de vida.
Angelucci et al.
2
(2004) apresentaram um estudo das concepções
sobre fracasso escolar que foram desenvolvidas na última década do século XX.
Segundo as autoras, uma das concepções sobre as causas do fracasso escolar
centra o problema nos prezuízos da capacidade intelectual dos alunos,
decorrentes de dificuldades emocionais adquiridas em relações familiares
patologizantes. Dessa forma, ansiedade, dificuldade de atenção, dependência,
agressividade, etc., causariam problemas psicomotores e inibição intelectual que
comprometem a aprendizagem escolar. O fracasso escolar seria um fenômeno
que pode ser estudado sem que se faça uma reflexão sobre a responsabilidade
da escola no desempenho escolar dos alunos. Nessas pesquisas, a escola
aparece, às vezes, “reduzida à relação professor-aluno; nesses casos, atitudes
dos professores ou técnicas de ensino por eles utilizadas são a causa principal
das dificuldades de aprendizagem” (p. 60). Ao mesmo tempo em que se
2
Carla Biancha Angelucci; Jaqueline Kalmus; Renata Paparelli; Maria Helena Souza Patto.
52
estabelece relação entre fracasso escolar e fatores de ordem política e social,
nega-se que estes façam parte da “cultura da organização educacional”, ao tratá-
los como fatores exteriores à escola. Caberia ao aluno adaptar-se, com a
contribuição de professores e psicólogos, a uma realidade inquestionável, à
escola concebida como um lugar harmônico.
Há, ainda, pesquisas em que o fracasso escolar é concebido como
efeito de técnicas de ensino inadequadas ou de falta de domínio da técnica
correta pelo professor. Tal perspectiva continua sendo uma concepção individual
de explicação da causa do fracasso escolar, só que não mais centrada no aluno,
mas na capacidade profissional do professor. A escola é entendida como
produtora dos problemas de aprendizagem, “mas reduzida a uma relação dual
abstrata em uma escola abstrata, ou seja, desvinculada da sociedade que as
inclui” (ANGELUCCI et al., 2004, p. 61). Os alunos possuiriam dificuldades de
ordem emocional, cultural, ou outras, que poderiam ser sanadas pelo professor se
ele utilizar a técnica de ensino adequada, o que proporcionaria condições
propícias ao desenvolvimento das potencialidades dos alunos.
Apesar das críticas às concepções psicologizantes ou medicalizantes
do fracasso escolar, segundo Angelucci et al (2004), essas pesquisas restringem-
se à avaliação da criança e à intervenção na criança, num movimento de volta à
redução que criticam.
O acento técnico dessa concepção de fracasso escolar fica patente na
preocupação com a eficácia da prática pedagógica. Nesse contexto, se
r
bom professor significa ter formação técnica adequada; refletir sobre a
prática; planejar as intervenções; estar motivado. Se todos esses critérios
forem garantidos e, ainda assim, houver crianças que não aprendem, aí
sim se pode afirmar a presença de dificuldades psíquicas individuais que
devem ser encaminhadas a especialistas (p. 61).
53
Outras pesquisas apontam a escola como “instituição social que
contraditoriamente reproduz e transforma a estrutura social” (p. 62). Como a
escola é considerada inserida em uma sociedade de classes regida pelos
interesses do capital, o fracasso escolar é determinado pela própria política
pública. A solução para a reversão do problema seria: resistência da política
educacional aos interesses privatizantes e “compromisso com a construção de
uma escola pública capaz de distribuir com mais igualdade habilidades e
conhecimentos que lhe cabe transmitir” (p. 62). Aqui o tecnicismo é retomado pelo
fato de essas pesquisas admitirem a possibilidade de controle do fracasso escolar
por meio da implementação de políticas educacionais “progressistas”, controle
dificultado, entretanto, pelo conservadorismo dos professores, que resistem à
inovação. A reversão do fracasso escolar, objetivo final de reformas e projetos
oficiais, seria alcançada com “investimento na formação intensiva dos
professores, de modo a levá-los a conhecer em profundidade as propostas
governamentais” (p. 62).
A quarta vertente observada pelas autoras enfatiza a dimensão política
da escola. A escola também é compreendida como uma instituição social regida
pela lógica constitutiva da sociedade de classes, mas o foco está nas relações de
poder estabelecidas no interior das escolas, especificamente, na imposição da
cultura dominante, em detrimento da cultura popular. Essas pesquisas criticam as
três concepções sobre o fracasso escolar já apontadas. Criticam também
as relações causais lineares entre “problemas individuais” e “problemas
de aprendizagem” para explicar as dificuldades de escolarização dos
alunos oriundos das classes populares, porque questionam a polarização
entre indivíduo e sociedade e compreendem a constituição do sujeito nas
condições concretas de existência num determinado lugar da hierarquia
social (ANGELUCCI et al., 2004, p. 63).
54
As categorias, como não-aprendizado, problema emocional,
indisciplina, carência cultural, etc., são ressignificadas e entendidas como
expressão do conflito de classes no interior da escola. A indisciplina escolar, por
exemplo, nesse contexto, “pode ser tentativa de participação dos alunos no
mundo da escola, a partir de seus próprios referenciais culturais” (p. 63). Nessas
pesquisas, é comum a transformação de objetos de pesquisa em sujeitos, dada a
importância destes na produção de conhecimento.
Acreditamos que pesquisas que abordem as múltiplas perspectivas do
desempenho escolar sejam muito importantes, à medida que possibilitam a
compreensão da questão em sua totalidade, em busca dos seus reais
condicionantes, e da contribuição para o traçado de medidas de superação.
Sobre a dúvida de que o TDAH é real ou não, Barkley (2002) esclarece
que há outros transtornos sobre os quais não existe evidência de danos no
cérebro ou de doença. Se a falta de evidência de danos no cérebro ou de doença
fosse determinante para o diagnóstico, “incontáveis pessoas que sofrem de
problemas muito reais provavelmente ficariam sem tratamento e seus problemas,
com certeza, permaneceriam inexplorados” (p. 38).
Para Rodhe et al. (2000), é necessário não apenas constatar a
existência de um sintoma apresentado pela criança, mas tecer uma análise de
cada um dos sintomas.
Há, portanto, uma ruptura epistemológica: do conhecimento sobre a
“criança fracassada”, o “professor incompetente”, as “famílias
desestruturadas” para o conhecimento que incorpora a fala dos alunos,
dos profissionais da escola, das famílias das classes populares, numa
proposta de resgate da legitimidade de seus saberes, experiências e
percepções (p. 63).
55
Por isso, concordamos com Cypel (1993), ao defender a integração de
várias áreas no traçado de possibilidades de entendimento da questão:
Para Vygotsky (1991), o desenvolvimento humano, apesar de
depender de condições biológicas, é fundamentalmente cultural, por se constituir
nas relações sociais vivenciadas pelo sujeito com o outro.
Segundo Werner Júnior (1997), além da teoria de Vygotsky, sobre o
desenvolvimento humano, a perspectiva dialógica de Bakhtin representa um
caminho importante para a compreensão da constituição social do sujeito. Este,
por ser fruto também de um nascimento social, não pode ser considerado um
organismo biológico abstrato. “O homem nasce numa classe, numa época; é mais
que um corpo, do que um organismo vivo: é um ser ideológico, simbólico” (p. 54).
Bakhtin (1995) ressalta a importância do papel do outro, em seus
estudos sobre enunciação e atividade mental do sujeito: “Não é a atividade mental
do sujeito que organiza a [sua] expressão, mas, ao contrário, é a expressão que
organiza a atividade mental, que modela e determina sua orientação” (p. 112).
Assim, as condições sociais tanto determinam as condições reais da expressão
do sujeito quanto organizam a sua atividade mental. Para o autor, a palavra,
enquanto signo, orienta-se para o outro e pelo outro: “toda palavra serve de
expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação
ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade” (p. 113).
Estamos cada vez mais convictos e voltamos a repetir que o trabalho
com o aprendizado escolar é multidisciplinar. Embora esta seja uma
verdade reconhecida, na prática nem sempre assim ocorre. O trabalho
em equipe é extremamente proveitoso: permite aos profissionais
estabelecerem o limite de suas atuações e ao mesmo tempo cria a
oportunidade da troca de conhecimento nas diversas especialidades (p.
34).
56
Sobre a prática da patologização nas décadas apontadas por Sucupira
(1985), Collares e Moysés (1992, 1996) e Cypel (1993), quando, na escola, todo
comportamento que fugia das normas convencionadas pela sociedade era
considerado doença, temos algumas observações a fazer. Em nossa pesquisa, de
um total de cinco pessoas entrevistadas, duas queixaram-se por não terem
recebido o diagnóstico de TDAH na infância; outras duas, que chegaram a ser
encaminhadas para o atendimento médico ou psicológico, não tiveram o
diagnóstico correto durante alguns anos; a fala de pelo menos quatro
entrevistados revelou preconceitos vivenciados por eles na escola, por não
apresentarem comportamento e forma de aprender semelhantes aos da maioria
dos alunos, e revelou rótulos que receberam, na tentativa de seus pares
classificarem-nos em algum tipo de categoria de aluno. Em relação a esses
rótulos, pensamos que eles se deviam à falta de conhecimento docente sobre
como a criança com oscilação da atenção, impulsividade e/ou hiperatividade
aprende.
Entendemos a importância dos estudos dos autores citados, ao
desvendarem o contexto sócio-político que envolve o problema do fracasso
escolar. Assim também, criticamos a patologização do processo de ensino-
aprendizagem e ressaltamos que a nossa preocupação com o tema “TDAH,
práticas escolares e formação de professores” está relacionada à sobrevivência
dos indivíduos que apresentam o transtorno, na atual sociedade, no que diz
respeito à exigência do bom uso das competências cognitivas superiores
(KUENZER, 2002, p. 18), geralmente, comprometida nos indivíduos com TDAH.
57
3. TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE (TDAH):
IMPACTOS NA VIDA ESCOLAR
Quanta coisa bela / Mora na janela do pátio de brincar /
Terminou pode sair / Mas quem não fez que fique
e finalize a redação / Então, não sei / Me distraí /
Desconcentrei / Não consegui /
Deixei o pensamento solto avião
(Leandro Maia
3
)
A prática docente tem revelado não ser tarefa fácil fazer a distinção
entre uma simples distração e a dificuldade real em manter a atenção, assim
como identificar quando um comportamento inadequado é sinal de falta de limites
ou de hiperatividade. Por causa disso, o termo Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade (TDAH), muitas vezes, é usado de forma indevida,
enquanto crianças que de fato apresentam problemas relacionados à oscilação da
atenção, impulsividade e/ou hiperatividade ficam sem o tratamento adequado.
Para Rohde et al. (2000), é necessário ir além da constatação da
existência do transtorno e analisar cada sintoma manifestado. A justificativa para
a preocupação com o tema são as dificuldades no processo de escolarização, no
que diz respeito à leitura, escrita e cálculo, enfrentadas por alunos com TDAH.
Além dessas dificuldades, eles são, muitas vezes, confundidos com alunos
preguiçosos e pouco esforçados, dificultando ainda mais o processo de
aprendizagem (TONELOTTO, 2003).
De acordo com a Classificação de transtornos Mentais e de
Comportamento da Classificação Internacional de Doenças–10 (CID-10),
elaborada pela Organização Mundial de Saúde (1993)
3
Música Dia De Avaliação, Leandro Maia, CD Palavreio. (Ver letra completa na p. 154.)
58
Nos últimos anos, muito se tem ouvido falar em TDAH, mas poucos
profissionais na área da educação conhecem as dificuldades relacionadas à
atenção, hiperatividade e impulsividade, encontradas por alguns alunos. Abordar
esse assunto tem sido uma atividade desafiadora, seja por desconhecimento do
problema pelas pessoas, pela descrença de que ele realmente exista, ou pela
tendência de a literatura culpabilizar alguém. Neste caso, os argumentos vão
desde a afirmação de que a escola não oferece condições positivas de
aprendizagem para os alunos com TDAH, pois os conteúdos não são atraentes e
os professores não sabem motivar as aulas, até o argumento de que a causa seja
unicamente biológica ou, ainda, seja a falta de limites impostos pelas famílias.
Sobre limites, De La Taille (2003) enfatiza que há hoje uma crise tanto
de falta como de excesso deles. Um dos sintomas da crise de nossa sociedade
ocidental no final do século XX seria a ausência de limites pelos quais orientar
pensamentos e condutas:
No universo da cultura e da ciência, a onda “pós-moderna”, com seus
relativismos de toda sorte, com sua valorização da irracionalidade, com
suas “descontruções”, acaba por reduzir o universo a uma vasta planície
sem referenciais pelos quais nos localizamos. O certo e o errado, o
bonito e o feio, o verdadeiro e o falso misturam-se ou são considerados
meras “questões de opinião”: tudo é válido, nada é importante. O
permitido e o proibido mesclam-se, o excelente e o medíocre confundem-
se, o privado e o público interpenetram-se (p. 146).
O termo “transtorno” é usado por toda a classificação, de forma a evita
r
problemas ainda maiores inerentes ao uso de termos tais como “doença”
ou “enfermidade”. “Transtorno” não é um termo exato, porém é usado
para indicar a existência de um conjunto de sintomas ou comportamentos
clinicamente reconhecível, associado, na maioria dos casos, a sofrimento
e interferência com funções pessoais (p. 5).
59
Seria uma questão de falta de limites a situação enfrentada pelos
alunos que se levantam sempre da cadeira, ou por aqueles que não prestam
atenção nas aulas? Ou ainda, uma questão de abuso dos limites de autoridade
exercida pelos professores?
São muitas as posições que envolvem o tema da presente pesquisa.
Muitos alunos com TDAH apresentam dificuldades na escola, no tocante à
aprendizagem e ao relacionamento. Entretanto, o fato de alguns deles
conseguirem êxito nos estudos, apesar das dificuldades próprias do transtorno,
chama a nossa atenção para uma investigação que possa contribuir para revelar
quais seriam os determinantes do desempenho acadêmico desses alunos.
1. Definição de TDAH
TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade), DDA
(Distúrbio de Déficit de Atenção), Transtornos Hipercinéticos, tendência à
distração, desordem de auto-regulagem são os termos encontrados na literatura
científica para explicar os problemas que algumas pessoas apresentam para
terminar seus afazeres escolares, para se relacionar bem com outras pessoas e
para persistir em determinadas tarefas e terminá-las sem a supervisão de pais
(quando crianças e adolescentes) ou de chefes (quando jovens e adultos). Ocorre
em crianças e adultos, homens e mulheres, abrangendo todos os grupos étnicos,
estratos socioeconômicos, níveis de escolaridade e graus de inteligência. Apesar
de ter sido considerado por muito tempo um transtorno exclusivo da infância e
que seria superado no decorrer da adolescência, pesquisas atuais mostram que
60
apenas um terço das pessoas com TDAH o supera e dois terços o apresentam
por toda a vida (HALLOWELL e RATEY, 1999).
Existem ainda controvérsias sobre esse assunto, pois, enquanto houve,
nos últimos anos, considerável avanço no diagnóstico e na fundamentação dos
sintomas, alguns grupos negam o TDAH como merecedor de tratamento médico.
Barkley (2002, p. 12) afirma que estudos sobre a genética molecular
levam à crença de que o TDAH seja um “transtorno predominantemente originário
de uma base genética/hereditária”. Entretanto, variáveis sociodemográficas –
raça, número de irmãos, idade dos pais, nível cultural familiar, transtornos
psiquiátricos na família, conduta agressiva dos pais, transtorno mental materno,
fatores de risco pré e perinatais – têm sido apontadas como importantes na
elaboração do diagnóstico (GOLFETO e BARBOSA, 2003).
A existência de diferentes quadros clínicos indica que o transtorno é
bastante heterogêneo, apesar de ser caracterizado por sintomas de desatenção,
hiperatividade e impulsividade. Szobot e Stone (2003, p. 53) apontam que uma
das primeiras teorias propostas para descrevê-lo foi a que considera que ele não
seria “um distúrbio da atenção, mas o resultado de uma falha no desenvolvimento
dos circuitos cerebrais que possibilitam a inibição e o autocontrole”. Estudos
neuropsicológicos indicaram que crianças com TDAH têm um desempenho
prejudicado em tarefas que demandam funções cognitivas como atenção,
percepção, planejamento e organização. Elas apresentam também falhas na
inibição comportamental.
61
Sobre isso, Barkley (2002) afirma que a visão do problema como falta
de atenção e como hiperatividade tem se tornado limitada. Segundo o autor, a
questão fundamental está na inabilidade de inibir o comportamento. Para explicar
a sua teoria, ele se apóia nos estudos em que Jacob Bronowski propôs que a
espécie humana tem a habilidade de esperar por períodos de tempo mais longos
que outras espécies antes de responder. “Esse poder de esperar se origina de
nossa grande habilidade em inibir a ansiedade imediata de responder e, porque a
inibição entra em ação, esperar não é um ato passivo” (p. 67). Barkley concorda
com as quatro habilidades mentais estudadas por Bronowski, que nos permitem
impor um atraso entre uma mensagem e nossa reação a ela, e acrescenta mais
uma entre a terceira e a quarta:
(1) criar um senso de passado e, deste, um senso de futuro;
(2) falar a nós mesmos e usar esse discurso para controlar o próprio
comportamento;
(3) separar emoções de informações frente à nossa avaliação de eventos;
(4) contribuição de Barkley: interiorizar emoções e usá-las para criar
motivação interna para dirigir o comportamento em busca de objetivos;
(5) quebrar as informações ou mensagens que chegam em partes e, então,
recombinar essas partes em novas mensagens de saída ou respostas
(análise e síntese).
Barkley acredita que as pessoas com o transtorno apresentem problemas
nessas cinco habilidades mentais, que ele já havia denominado anteriormente
(1997) como funções executivas.
62
Assim também, Mattos et al. (2003) entendem o problema como uma
síndrome disexecutiva por considerarem que o principal comprometimento
decorrente do TDAH é o das funções executivas. O sistema de controle executivo
é responsável por recrutar e extrair informações de diversos outros sistemas
cerebrais. As funções executivas compreendem uma classe de atividades
altamente sofisticadas que, em conjunto, englobam todos os processos
responsáveis por focalizar, direcionar, regular, gerenciar e integrar funções
cognitivas, emoções e comportamentos. As funções executivas são responsáveis
pela realização de tarefas simples de rotina e, principalmente, pela solução ativa
de problemas novos.
Conforme apontamos nos capítulos anteriores, essas funções,
denominadas por Kuenzer (2002) como competências cognitivas superiores e de
relacionamento, são requeridas para a sobrevivência do indivíduo na atual
sociedade. Isso impõe à educação muitas exigências, no sentido de formar
indivíduos que possam usar plenamente as habilidades mentais.
Mattos et al. apontam que as pessoas com TDAH apresentam dificuldades
para tomar iniciativas, planejar, estabelecer prioridades, organizar-se para o
trabalho. Apresentam ainda procrastinação; falta de monitoramento em relação a
tempo, prazos e às próprias finanças; sonolência diurna; lentidão e inconsistência
no desempenho; declínio rápido da motivação após um momento de entusiasmo;
interrupção de tarefas antes de concluí-las; baixa tolerância à frustração e
problemas com a memória. Memória de trabalho não-verbal, memória de trabalho
verbal, auto-regulação e reconstituição são funções que proporcionam o
63
autocontrole dos comportamentos intencionais e a maximização dos resultados
futuros.
a) O comprometimento da memória de trabalho não-verbal no TDAH
manifesta-se na dificuldade de manter os eventos em mente, manipulá-los
ou agir de acordo com eles, na dificuldade de antecipar conseqüências
futuras e na diminuição do sentido de tempo e da organização temporal
das ações. A resposta comportamental da pessoa que apresenta o
transtorno obedece a um esquema de reforço imediato, pois ele não
consegue manter a atenção nas suas representações internas e guiar suas
ações por uma perspectiva futura.
b) As falhas da memória de trabalho verbal são percebidas pela dificuldade
em utilizar auto-instruções verbais para orientar os comportamentos. São
comuns as dificuldades de capacidade de reflexão, autoquestionamento e
solução de problemas verbais; a orientação do comportamento por regras
e instruções verbais e a geração de regras, metarregras e planos
(comportamento pelo senso de passado e futuro).
Ainda com relação às falhas de trabalho verbal, atividades que
requerem análise e síntese revelam que pessoas com TDAH apresentam
dificuldades de reconstituição de eventos lingüísticos. Organização de idéias,
planejamento e formulação do discurso são habilidades requisitadas para a
produção de linguagem. Uma grande dificuldade apresentada por crianças com
dificuldades relacionadas à atenção, impulsividade e/ou hiperatividade está
64
relacionada à elaboração de seqüências narrativas, seja na seleção dos fatos ou
na busca de vocábulos adequados.
c) É possível que três áreas sejam comprometidas quando há falhas na
capacidade de auto-regulação: afetivo-emocional, motivacional e da
ativação. Nesse caso, o desempenho de ações dirigidas a metas fica
prejudicado. O fato de a presença de pais e professores suprir essas
deficiências internas faz com que esse aspecto não seja facilmente
identificado nas crianças com o transtorno.
d) A dificuldade em desempenhar atividades que requerem análise e síntese,
por exemplo, recontar histórias e construir narrativas, caracteriza-se como
déficit da função de reconstituição.
De maneira geral, quando há comprometimento nas funções
executivas, é comum observar desinibição comportamental, diminuição da
persistência nas tarefas, baixa sensibilidade ao retorno do meio, inflexibilidade do
comportamento e menor capacidade de reengajamento nas tarefas após
interrupção.
Sobre as dificuldades decorrentes do comprometimento das funções
executivas, em nossa pesquisa, pudemos observar dificuldades com relação à
linguagem utilizada pelos entrevistados. Em vários momentos, durante as
entrevistas, Cláudia, Paulo e Sandra (Anexo 3), “pularam de foco em foco”,
interrompendo a seqüência narrativa. No exemplo abaixo, os grifos foram utizados
para marcar a interrupção de uma idéia e a sua retomada:
65
Outra dificuldade na utilização da linguagem pelos mesmos
entrevistados refere-se ao uso de narrativas para expor idéias, o que torna prolixa
a explanação dos assuntos. Notamos que, como apresentam dificuldades para
expressar objetivamente as idéias, narram episódios em que elas aparecem.
Poderíamos dizer que há um gasto considerável de energia para se fazerem
compreender. Um trecho da fala de Cláudia, por exemplo, em que ela conta sobre
não ter senso de direção, foi transcrito em 26 linhas (Anexo 3, p. 106).
Durante as entrevistas, quatro entrevistados demonstraram tentativas
de busca de idéias:
Tenho mil textos pra ler e eu não consigo ler. Agora, tem outra matéria
que é Sociologia, ou até mesmo a [História] Antiga que eu começo...
porque eu moro em Piracicaba. Eu estou morando em pensionato. E a
rua em que eu moro é muito movimentada à noite. O pessoal não pára no
semáforo, buzina; lixeiro gritando toda noite; aquelas coisas de cidade. E,
então, quando a rua está mais calminha, que é a meia noite, eu pego
para estudar. E, até meia noite, eu fico assistindo TV, conversando com
as meninas do pensionato, fazendo outras coisas. Quando eu tenho uma
matéria de Sociologia para estudar ou fazer um trabalho, eu pego à meia
noite. Eu viro a noite inteira, sem café, sem nada. Meu olho quer fechar,
quer dormir, mas eu não consigo. Eu perco o sono, de tão interessante
que está aquele estudo. Teve um dia que eu precisava fazer um trabalho,
de Renascimento. Eu catei uns cinco livros e levei para casa, da
biblioteca. (Cláudia)
Mas é porque aquilo ali se tornou, como eu posso dizer?... Ah outra coisa
que eu sinto muita dificuldade... Eu tive... o problema das aulas. O
professor vai e explica a matéria (Paulo).
Nessa fase, foi muito difícil porque ele começou, depois de um tempo...
Eu viajei para Porto Seguro... Porque ao mesmo em tempo que eu
gostava muito dele, ele também gostava muito de mim (Sandra).
Na faculdade, quando... Eu tento superar... Eu não tomo... Como eu não
tomo para assistir aula a medicação, eu tento me concentrar o máximo
que eu consigo (Tânia).
66
Duas entrevistadas confessaram muita dificuldade para resgatarem na
memória fatos passados sobre suas experiências escolares. Foi preciso, em
vários momentos da entrevista, desligar o gravador para que as entrevistadas
pensassem sobre determinada questão, para, só então, fossem gravadas as
respostas.
Segundo pesquisas de Lima e Albuquerque (2003), o TDAH costuma
estar associado a problemas na área da linguagem. As autoras recorreram à
lingüística, à psicolingüística e à análise de discurso para esclarecer e localizar os
aspectos da linguagem que possam estar comprometidos. Elas destacaram a
importância da memória e da atenção no desempenho da competência lingüística
e comunicativa. O objetivo das autoras era a investigação da origem das queixas
sobre o rendimento da criança, relacionadas, por exemplo, à dificuldade de
concentração nas tarefas de leitura e escrita ou à dificuldade de leitura e escrita
que levaria o aluno a não prestar atenção nas aulas.
Contar uma história, participar de uma conversa ou falar sobre um
assunto são algumas das dificuldades apresentadas por crianças com
dificuldades no processamento da linguagem e limitações para se comunicar.
Para as autoras, o fato de não interagirem verbalmente de forma adequada em
ambientes sociais pode acarretar problemas nos relacionamentos interpessoais:
(...) eu tinha que dar uma volta correndo no quarteirão, por exemplo,
porque, na época, por causa dessa euforia interna... E mesmo com essa
euforia... Eu sempre tive hipotireoidismo, desde o início da adolescência,
que é o contrário, deveria ter deixado também mais calma, mas... Acho
que é isso (Thaís).
67
Toda situação de interação lingüística que exija planejamento e
organização representa, para a criança com TDAH, um grande desafio. Além da
dificuldade para narrar, elas “falam muito, falam de forma acelerada, respondem
antes de terminar a pergunta, não esperam a vez, interrompem ou então parecem
nem ouvir o que é dito (...)” (idem). Em nossa pesquisa, destacamos o ritmo
acelerado de fala de duas das pessoas entrevistadas, Cláudia e Sandra, além da
prolixidade, já apontada anteriormente.
2. Descrição dos comportamentos e tipos de TDAH
As crianças com TDAH costumam apresentar desenvolvimento
inadequado em relação à noção de espaço; pouca coordenação motora;
dificuldades para ficar sentadas na sala de aula e prestar atenção; dificuldades
para completar as tarefas escolares na classe ou em casa, no tempo planejado
pelos professores. Tais características dessas crianças podem levar à rejeição
pelos colegas. Eles são mais agitados do que outros de sua idade e necessitam
de constante vigilância dos pais, pois costumam fazer travessuras mais graves do
que o esperado para a idade. Os sinais de desatenção, hiperatividade e
Produção e compreensão de linguagem são processos mentais que
operam com representações de diferentes tipos, como, por exemplo,
representações fonológicas, sintáticas, semânticas, ortográficas e
lexicais, dentre outras, que constituem o conjunto de competências do
falante e que se encontram armazenadas pelo sistema de memória. O
sistema de memória é fundamental para o processamento da linguagem,
pois é, sobretudo, a memória de trabalho que viabiliza as operações
lingüísticas, já que estas têm o caráter de linearidade, ou seja,
transcorrem no tempo, mas são processadas sucessiva e paralelamente
no modo computacional, precisando, portanto, ser mantidas pelo tempo
necessário para sua análise (compreensão) ou formulação (produção) (p.
121).
68
impulsividade são considerados fundamentais no TDAH. Entretanto, para que
sejam considerados característicos, devem ocorrer em freqüência acima do
comum.
A American Psychiatric Association criou, em 1980, dois subtipos de
transtornos de atenção: com e sem hiperatividade. A noção de subtipos foi
conservada na publicação do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais da American Psychiatric Association, quarta edição (DSM-IV), em 1994,
mas com três subtipos: um tipo predominantemente hiperativo-impulsivo, um tipo
predominantemente desatento e um tipo combinado (hiperativo/impulsivo e
desatento). Entretanto é utilizado o termo Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade (TDAH) para a referência de todos os tipos (BARKLEY,
2002).
Como já dissemos, algumas pesquisas apontam que o tipo
predominantemente desatento é mais freqüente no sexo feminino e, assim como
o tipo combinado, parece apresentar uma taxa mais elevada de comprometimento
acadêmico. Nível mais alto de isolamento social e retraimento de crianças
desatentas tem sido observado. A explicação para essa característica pode ser a
pouca oportunidade de aprender habilidades sociais de forma apropriada, por
causa do isolamento, ou da ansiedade e da relutância em participar de atividades
de grupo (ANDRADE, 2003).
Por outro lado, as crianças do tipo predominantemente hiperativo-
impulsivo têm sido descritas como mais agressivas que as crianças com um dos
outros dois tipos, o que as leva a enfrentar altas taxas de rejeição pelos colegas.
69
Alguns sinais de hiperatividade (tendência a estar sempre se
movimentando) observado nas crianças: agitar as mãos ou os pés ou se remexer
na cadeira; abandonar sua cadeira em sala de aula ou outras situações nas quais
se espera que permaneça sentada; correr ou escalar em demasia; ter dificuldade
para brincar ou envolver-se silenciosamente em atividades de lazer; parecer estar
“a mil por hora” ou “a todo vapor”. Werner Júnior (1997), baseado em seus
estudos, acredita que os níveis de tolerância dos pais, professores e dos próprios
examinadores que participaram da pesquisa relatada por ele podem ter
influenciado as queixas e as observações que levaram ao diagnóstico do TDAH.
Para ele, é por causa de um contexto social e não simplesmente de uma condição
inerente a criança que lhe é atribuída a hiperatividade.
Sinais de impulsividade (geralmente, observados em coexistência com
os de hiperatividade): dificuldade em aguardar a vez em filas, por exemplo;
emissão de resposta sem que o interlocutor tenha terminado a pergunta;
interrupção das conversas dos outros.
Sinais de desatenção: dificuldade de prestar atenção a detalhes ou
cometer erros por descuido em atividades escolares; não conseguir acompanhar
Enquanto as crianças com TDAH do tipo combinado, ou TDAH do tipo
predominantemente hiperativo/impulsivo, são mais propensas a serem
rejeitadas pelos seus colegas, aquelas com o tipo predominantemente
desatento são mais negligenciadas por seus colegas (BIEDERMAN,
1998, BIEDERMAN e cols., 1999; PFIFFNER e cols., 2000 apu
d
ANDRADE, 2003, p. 80). As crianças socialmente rejeitadas fazem com
freqüência tentativas de se socializarem, mas são, em geral,
argumentativas, muito ativas e falantes e incapazes de cooperar,
compartilhar ou esperar sua vez. Em contraste, crianças negligenciadas
mostram pouco comportamento agressivo, mas são tímidas, retraídas e
evitam interações com seus pares (PFIFFNER e cols., 2000 apu
d
ANDRADE, 2003, p. 80).
70
instruções longas e/ou não terminar as tarefas escolares ou domésticas; grandes
dificuldades em organizar as tarefas; evitar ou relutar em envolver-se em tarefas
que exijam esforço mental por um longo período (ler textos longos ou livros sem
gravuras); perder com facilidade coisas importantes para a realização de tarefas;
distrair-se com facilidade com estímulos alheios à tarefa; esquecer as tarefas ou
atividades diárias.
Segundo Andrade (2003), a todos os sinais do TDAH, o rendimento
escolar abaixo do esperado poderá ser acrescido, o que, geralmente,
desencadeia problemas nas esferas afetiva e emocional. Estudos apontam uma
taxa significativamente maior de repetências, suspensões e expulsões em
adolescentes com o transtorno do que em adolescentes que não o apresentam.
Extensamente são observados problemas no relacionamento interpessoal e
comprometimento social.
O autor ressalta que, quando isolados, alguns sinais de desatenção e
de hiperatividade/impulsividade podem ser a manifestação de dificuldades
situacionais do indivíduo.
Os sinais de desatenção, hiperatividade ou impulsividade poderão
variar de acordo com o estágio do desenvolvimento. Os de hiperatividade são
mais relatados por pais e professores em crianças mais jovens, enquanto os de
desatenção são mais apontados com o aumento da idade. O diagnóstico de
TDAH deve ser feito com muita cautela antes dos 6 anos, pois há uma atividade
mais intensa no desenvolvimento normal de pré-escolares (Ibid).
71
Para Barkley (2002), é provável que 50-65% das crianças com o
transtorno continuem a apresentar os sinais na vida adulta, acrescidos de novos
problemas característicos dessa fase da vida: direção de veículos, atividade
sexual, controle de dinheiro, casamento, relacionamentos, empregos. O autor, em
estudos que acompanharam a vida de crianças com TDAH até a fase adulta,
verificou que elas mudam de trabalho com mais freqüência que outras sem o
problema e são mais despedidas, provavelmente, pelo comportamento e fraco
autocontrole, no que diz respeito à supervisão, à pontualidade, aos prazos, às
escalas de trabalho, à persistência e à produtividade.
As conseqüências do TDAH são mais sérias na vida adulta, por causa
do aumento de diversidade, importância e tipo de responsabilidades que os
adultos enfrentam. O efeito do transtorno sobre “o manejo das responsabilidades
e necessidades da vida muda mais do que a natureza fundamental da própria
doença” (Ibid, p. 110).
3. Causas
As causas precisas do TDAH, apesar de inúmeros estudos já
realizados, ainda não são conhecidas. É improvável que exista “o gene do TDAH”,
mas acredita-se que vários genes de pequeno efeito sejam responsáveis por uma
vulnerabilidade genética ao transtorno, à qual poderiam ser somados diferentes
agentes ambientais, como desentendimentos familiares, presença de transtornos
mentais nos pais, uso de álcool e nicotina pela mãe na gravidez. Até o momento,
no entanto, não é possível estabelecer uma relação clara de causa e efeito entre
72
os possíveis agentes ambientais, apenas uma associação desses fatores com o
TDAH (ROMAN et al., 2003).
Barkley (2002) rebate a afirmação de teóricos sobre a falta de limites
imposta pelos pais ser a causa do aparecimento do comportamento hiperativo,
argumentando que por mais de 24 anos estudou a vida de famílias e as
interações entre pais e filhos com TDAH, e sugere que tal teoria não tem
fundamento. Ele acredita que os genes que pais e filhos têm em comum poderiam
ser a causa do TDAH, e não, um ambiente familiar problemático. Em estudo que
visava aprofundar essa questão, Barkley administrou medicação estimulante e
placebo durante algumas semanas a crianças com TDAH, sendo que mães e
filhos não sabiam em que semana recebiam medicação real ou placebo. Foi
verificado que quando as crianças usavam o medicamento real, tanto o seu
comportamento melhorava como também o comportamento da mãe em relação
às crianças. Com isso, o autor concluiu que o comportamento dos pais pode ser
negativo em resposta ao comportamento difícil das crianças, mas não deve ser a
causa do TDAH.
A partir de suas investigações, Barkley indica o desenvolvimento
cerebral anormal como uma possível causa para o transtorno, a partir de estudos
sobre deficiências de químicos cerebrais, atividade cerebral diminuída em
determinadas regiões e defeitos cerebrais, por causa do neurotransmissor
4
dopamina
5
, que se encontra diminuído no cérebro de pessoas com TDAH.
4
Neurotransmissores são substâncias químicas do cérebro que permitem que as células nervosas
transmitam informações a outras células nervosas (BARKLEY, 2002, p. 81).
5
Dopamina – proteína encontrada no sistema dopaminérgico (ROHDE, p. 42).
73
Estudos atuais mostraram atividade elétrica do cérebro menor na área
frontal do cérebro de crianças com TDAH, assim como fluxo sangüíneo diminuído
na mesma área. Um tipo de tomografia, utilizada em recente estudo por Zametkin
(BARKLEY, 2002, p. 83), verificou menor atividade cerebral em adultos com
TDAH, particularmente, na área frontal. Outro estudo com pacientes com TDAH e
pacientes com outros transtornos psiquiátricos, a partir do uso de técnicas de
imagem cerebral, evidenciou uma redução significativa na atividade metabólica do
cérebro nas regiões frontais dos pacientes com dificuldades atentivas.
Existem, atualmente, outros fatores de risco sendo investigados, como:
identificação de fortes associações psicossociais com o transtorno, desintegração
familiar, história de doença psiquiátrica nos pais, associação do TDAH a múltiplas
mudanças familiares, baixa renda familiar, crianças que vivem em lugar
superpovoado, ocorrência de maior prevalência de hemorragia vaginal, pré-
eclampsia, 20% de prematuridade e baixo peso ao nascer, anoxia (falta de
oxigênio no cérebro), encefalites, traumatismo craniano, intoxicações por chumbo
e monóxido de carbono. Uma questão colocada por Golfeto e Barbosa (2003) é:
as adversidades impostas por certos fatores psicossociais aumentam os riscos
para o TDAH ou é este que aumenta os riscos de adversidades psicossociais?
Barkley afirma que o transtorno parece determinado mais pela genética
do que por fatores ambientais, por isso, deveria ser entendido do mesmo modo
que outros traços geneticamente determinados, como, por exemplo, peso, altura,
inteligência, ou habilidade de leitura.
74
4. Incidência
Segundo a Associação Americana de Psiquiatria (1994), a prevalência
do TDAH é de 3 a 5% entre os escolares, sendo mais comum em meninos do que
em meninas. Entretanto, Golfeto e Barbosa (2003) apontam divergências
existentes nas taxas de prevalência do transtorno, justificadas por: descrição do
TDAH não-objetiva, que influencia a precisão diagnóstica; desigualdades
metodológicas. Os autores listam algumas dessas desigualdades (p. 16):
procedimentos de seleção que incluem diferentes tipos de crianças e
amostras;
diferentes escalas de avaliação para determinar a taxa de prevalência, bem
como uma seleção arbitrária do ponto exato de corte;
idades diferentes das crianças amostradas nos vários estudos;
tipos diferentes de entrevista diagnóstica (estruturada, semi-estruturada,
livre);
tipos diferentes de delineamento dos estudos;
Todo traço considerado “anormal” é, simplesmente, o reflexo de uma
linha muito tênue no continuum. (...) todos nós apresentamos um certo
grau desse traço de TDAH, e aqueles diagnosticados com TDAH
simplesmente representam o extremo. (...) A evidência atual sugere que a
maioria das pessoas com TDAH apresentam mais uma forma de
transtorno natural ou de desenvolvimento do que uma condição
patológica ou doença. Isso significa que o TDAH não deveria se
r
considerado uma condição patológica em geral. Na realidade, não se
trata de uma condição qualitativa ou categoricamente diferente do
normal, mas provavelmente localizada no extremo mais distante do traço
normal. Assim, a diferença é, realmente, apenas um problema de grau,
mas não necessariamente qualitativamente diferente do normal (2002, p.
90).
75
uso de critérios diagnósticos diferentes;
uso de diferentes fontes de informação (paciente, pais, professores),
combinadas ou isoladas.
Devido às desigualdades metodológicas, diferenças nas taxas de
prevalência do TDAH são observadas em vários países: por exemplo, nos
Estados Unidos, 3-6%; na Nova Zelândia, 2-6,7%; no Japão, 7,7%; na China,
8,9%; na Inglaterra, 1%; em Taiwan, 9%; na Itália, 4% (GOLFETO e BARBOSA,
2003, p. 15); Índia, 5-29%; Holanda, 1-3% dos adolescentes apenas; Brasil, 5-6%
(BARKLEY, 2002, p. 105). Há também diferenças nas taxas de prevalência
quando se trata de um mesmo país, por exemplo, Alemanha, 4% (BARKLEY,
2002, p. 105) e 8,7% (GOLFETO e BARBOSA, 2003, p. 15). Segundo Tonelotto
(2003), no Brasil também há divergências nas taxas de prevalência, assim como
há poucos dados de pesquisa sobre a prevalência, formas de tratamento e
perspectivas para a criança brasileira com o transtorno.
Segundo Golfeto e Barbosa (2003), a taxa de predomínio do TDAH
varia em gênero e em idade. O sexo feminino está mais associado ao tipo em que
prevalece a desatenção, enquanto os meninos apresentam mais distúrbios de
aprendizagem e outros problemas de comportamento escolar. Para Golfeto e
Barbosa (2003, p. 24) as meninas, geralmente,
Sobre as pesquisas nas diferentes faixas etárias, existe maior número
delas referentes à faixa dos 7 aos 14 anos de idade do que em outras, talvez pela
são subdiagnosticadas porque têm poucos sintomas de
agressividade/impulsividade, baixas taxas de transtorno de conduta e alto
nível de co-morbidade com transtorno de humor e ansiedade. (...) o tipo
combinado em meninas é mais freqüente em relação ao tipo desatento, e
o de menor freqüência é o tipo hiperativo/impulsivo.
76
maior facilidade de se fazer a devida diferenciação entre as crianças com TDAH
em relação às demais nessa faixa etária. Diagnosticar o transtorno em idade pré-
escolar é mais difícil por causa da atividade motora normalmente aumentada
nessa fase do desenvolvimento. Na adolescência e na vida adulta, um fator
complicador no diagnóstico são as co-morbidades
6
do TDAH, que podem ser
identificadas como o problema principal ou mais grave. A persistência desses
transtornos na vida adulta confirma-se com números elevados (Ibid).
Parece existir uma significante recorrência do transtorno em filhos de
pais com o mesmo problema. Tanto os irmãos dos pacientes apresentam uma
prevalência maior da doença do que meio-irmãos, como parentes em segundo
grau, quando comparados a parentes em segundo grau de controles
7
. Estudos
com irmãos gêmeos e filhos adotados têm sido fundamentais para apontar se
uma determinada característica é de fato influenciada por fatores genéticos. A
maioria das investigações com esses grupos encontrou grande concordância para
esse transtorno significativamente maior entre gêmeos monozigóticos
8
do que
entre dizigóticos
9
. A existência de importantes fatores genéticos contribuindo para
a origem do TDAH é confirmada com pesquisas com filhos adotados, nas quais
há uma freqüência significativamente maior entre os pais biológicos de crianças
afetadas do que entre os pais adotivos (ROMAN et al., 2003).
6
Co-morbidade é o termo utilizado para designar a ocorrência de dois ou mais transtornos em um
mesmo indivíduo (SOUZA e PINHEIRO, 2003, p. 85).
7
Controles – pessoas que não apresentam o TDAH e que participam das pesquisas para a
comparação no diagnóstico do transtorno.
8
Monozigóticos - geneticamente idênticos.
77
5. Avaliação
Segundo Martins, Tramontina e Rohde (2003), o diagnóstico do TDAH
é clínico, com base em critérios estabelecidos em sistemas de classificação,
como o DSM-IV (Associação Americana de Psiquiatria, 1994) ou a CID-10
(Organização Mundial de Saúde, 1993). Exames de neuroimagem,
neurofisiológicos (EEG) e testes neuropsicológicos ainda são reservados para
ambiente de pesquisa e representam promissoras ferramentas diagnósticas.
O processo de avaliação do TDAH deve ser abrangente, envolvendo a
participação dos pais, da criança e da escola, na coleta de dados (ROHDE et al.,
2000). Ciasca e Rossini (2000) também ressaltam a necessidade de integração
dos recursos interdisciplinares no processo avaliativo dos problemas de
aprendizagem.
Para Eidt (2004), o diagnóstico do TDAH é problemático devido à falta
de consenso na literatura sobre o transtorno e à sua própria complexidade, pois
exige não apenas a constatação da presença dos sintomas previstos nos critérios
do DSM-IV, mas uma análise detalhada do contexto em que a criança vive.
Quanto aos instrumentos de avaliação utilizados por psicólogos, os
mais comuns são (TOLEDO e SIMÃO, 2003, p. 194):
histórico familiar;
critérios diagnósticos de TDA/H (DSM-IV);
avaliação cognitiva (WISC III);
9
Dizigóticos – similares em 50% dos genes, aproximadamente.
78
avaliação percepto-motora (Viso Motor Bender);
avaliação emocional (fábula de Düss);
avaliação do desempenho escolar (TDE – Teste de Desempenho Escolar);
avaliação neuropsicológica para criança (Luria – Nebrasca);
avaliação atenciomal (WISC III – subtestes de aritmética, código e dígito);
entrevista com a professora e análise do material escolar, entre outros.
Eidt (2004) aponta a limitação desses instrumentos, apesar de válidos,
e ressalta a impossibilidade de que um único profissional avalie adequadamente o
quadro. A autora aponta ainda que, por não estarem suficientemente preparados
para a avaliação do TDAH, muitas vezes, o médico e o psicólogo esquivam-se de
tratar o problema ou fazem um diagnóstico precoce e indevido. A análise dos
dados de sua pesquisa evidenciou que
Sucupira (1985) já havia questionado a forma como a hiperatividade
tem sido diagnosticada, apoiada no argumento de que é subjetiva a avaliação do
comportamento hiperativo, porque vai depender do ambiente onde a criança é
observada.
Os dados da pesquisa de Eidt (2004) também evidenciaram a
dificuldade na realização do diagnóstico diferencial entre TDAH e indisciplina
os procedimentos de avaliação não incluem uma observação
sistematizada em diversos contextos e atividades e com diversos
procedimentos mediadores, que permitam uma aproximação maior do
fenômeno em questão e de suas possíveis causas. De acordo com os
dados obtidos na análise, do total de prontuários, 38 crianças (33,63%)
foram avaliadas em apenas uma sessão (p. 182).
79
escolar. A autora observou evidências da prática do uso de medicação como
instrumento de diagnóstico do TDAH:
Aquino (2003, p. 34) critica o deslocamento da função de educadores
para a de “pregadores dos ‘bons costumes’ e/ou fiscalizadores da conduta alheia”.
Nesse sentido, a sala de aula seria um grande reformatório dos hábitos
inadequados dos alunos. “Aconselha-se até o limite do suportável, castiga-se até
o limite do aceitável – daí em diante, não restará outra alternativa se não a de
buscar a redenção externa” (p. 35). Para o autor, o fracasso da estratégia de
correção dos comportamentos inadequados utilizada pela escola leva os docentes
a optarem pelos encaminhamentos parapedagógicos, principalmente, clínicos.
Além disso, o problema do excesso de encaminhamentos gera
imensas filas de espera, o que atrapalha o tratamento de alunos que realmente
precisam do tratamento.
Collares e Moysés (1996) alertam para a necessidade de serem
consideradas as relações escolares e sociais no processo de diagnóstico. Sobre
as questões escolares, Souza (1997) diz que o diagnóstico é feito, muitas vezes,
a partir de concepções negativas sobre o aluno e de práticas avaliativas que
desconsideram: a política educacional do Brasil, a qualidade da escola, a relação
Claro está que, ao reverenciarmos os saberes estrangeiros dos peritos
parapedagógicos (externos, portanto, às relações escolares), perdemos a
chance de nos reapropriar dos incessantes mistérios do ofício docente
que só os alunos – particularmente, os atípicos – podem nos propicia
r
(Ibid, p. 36).
Esses fatores possivelmente favorecem que crianças indisciplinadas
sejam indevidamente diagnosticadas e medicadas como potenciais
portadoras do TDAH, promovendo a “medicalização” e a naturalização
das dificuldades escolares (p. 182).
80
professor-aluno, a metodologia de ensino, a adequação de currículo, o sistema de
avaliação adotado, o desrespeito do sistema de ensino às diferenças sociais e
culturais, a forma como a família é vista.
Como na escola aumenta-se a exigência da atenção seletiva,
sustentada e alternada, e do planejamento e sistematização de estratégias, é nela
que, geralmente, surgem as dificuldades na atenção (TOLEDO e SIMÃO, 2003).
Por isso, o papel do professor no diagnóstico do TDAH é fundamental, no que diz
respeito à avaliação das características associadas ao transtorno e que serão
apontadas aos profissionais que farão o diagnóstico, geralmente, psicólogos e
médicos (psiquiatra, neurologista ou pediatra).
Lembramos que não basta o professor e a escola fazerem a
constatação do problema, é preciso que as práticas escolares sejam também
avaliadas nesse processo. Apesar da complexidade das questões que envolvem
o transtorno, verificamos a simplicidade com que o problema foi abordado na
revista Nova Escola (ARAÚJO, 2004, p. 28-29), que trouxe uma reportagem breve
com um teste para o professor aprender a fazer o diagnóstico do TDAH (“Déficit
de Atenção: um diagnóstico que você pode fazer”). Em nenhum momento, as
práticas escolares são colocadas como um dos determinantes das dificuldades
encontradas por alunos que apresentam o transtorno. Quanto ao tratamento,
coloca-se, na reportagem, que “nada se mostrou superior à associação de
remédios com acompanhamento psicológico”. Novamente, a escola não é
mencionada como parte integrante da intervenção.
Uma das entrevistadas da nossa pesquisa, diagnosticada com TDAH e
estudante do último ano de Psicologia, aponta que o fato de seus professores
81
conhecerem o seu problema tem ajudado na superação das dificuldades que
sente:
Entretanto, a entrevistada também deixa transparecer que alguns de
seus professores conhecem pouco sobre o transtorno:
Um outro entrevistado, que também cursa Psicologia, observa a falta
de professores preparados para trabalhar com alunos que apresentam o
transtorno:
Em vários momentos das entrevistas feitas na presente pesquisa, há
evidências da necessidade de estudos sobre o transtorno em questão pelos
educadores tanto em formação inicial como contínua.
Os problemas que envolvem o TDAH não são apenas da escola, mas
são também dela, porque se refletem nela. A atuação deve ser conjunta (escola,
Eu tive a sorte de que a maioria dos meus professores conhece o
problema. De tanto também eu ficar falando na faculdade. Eles me
apóiam, eles me ajudam no que for preciso. Sabem das minhas
dificuldades, me incentivam a fazer as coisas (Tânia, Anexo 3).
Qualquer problema que tem na Faculdade, qualquer dúvida (até o
professor tem dúvida sobre o TDAH), eles vêm perguntar para mim. Livro,
eles pedem emprestado, nomes de livros, essas coisas. (...) Tem uma
professora que ganhou, esses dias, um livro sobre TDAH em adultos, que
descobriram em adultos. Ela deu para eu ler primeiro, para eu passa
r
para ela ver.
Nunca tive [professores preparados], inclusive, em nível de faculdade,
fazendo o curso de Psicologia, atualmente... Tive problemas com uma
professora no ano passado. A maioria das professoras me entende. A
gente pega amizade, empresto livros, vídeos. Mas eu tive uns
professores psicanalistas que não aceitam o diagnóstico (Paulo, Anexo
3).
82
família e profissionais da saúde) tanto na avaliação do transtorno quanto na
intervenção.
Acreditamos que, tão importante quanto se discutir o abuso do
diagnóstico do TDAH, é importante a discussão sobre o subdiagnóstico, que, na
nossa pesquisa, foi apontado como um grande problema: “E, às vezes, eu vejo
assim, eu falo: se eu fosse diagnosticada antes, eu acho que teria sido melhor a
minha vida acadêmica. A dificuldade teria sido menor. Mas eu tenho dificuldade.
Isso é visível” (Tânia, Anexo 3). Sobre o professor conhecer o TDAH, Tânia diz
6. Intervenção
Assim como a avaliação, a intervenção no problema deve ser
multidisciplinar, coordenada entre profissionais das áreas médica, saúde mental e
pedagógica, juntamente com os pais (TOLEDO e SIMÃO, 2003).
A avaliação psicopedagógica, que deve ser ampla, envolve anamnese
com os pais, entrevistas com a(o) criança/adolescente, análise de fichas de
avaliação e cadernos escolares e contato com a escola. São avaliadas:
habilidades metalingüísticas (consciência fonológica, evocação de palavras e
fluência verbal), leitura, escrita, Matemática, noções espaciotemporais,
lateralidade, memória (MOOJEN, DORNELES e COSTA, 2003, p. 112). Cabe ao
Ah já é uma boa parte. Eu acho que já é uma boa parte. Ele sabendo,
fazendo um encaminhamento certo. Fazendo um trabalho junto com um
psiquiatra, com psicólogo, eu acho que já é meio caminho andado. O
professor saber detectar e dar um pouco mais de atenção para esse
aluno, já é meio caminho andado.
83
psicopedagogo “reconhecer os limites de sua atuação, estabelecer prioridades e
fazer os encaminhamentos adequados” (Ibid, p. 113).
Quando há a necessidade do uso de medicamentos, os estimulantes
são os mais utilizados no tratamento. A sua função é a de aumentar o nível de
atividade ou excitação do cérebro. Esse tipo de medicamento ativa a área do
cérebro responsável pela inibição do comportamento e pela manutenção dos
esforços de atenção.
Sucupira (1985), entretanto, critica a medicalização da hiperatividade
por não entendê-la como doença, mas como comportamento de origem
basicamente emocional. Werner Júnior (1997) também condena o uso de
psicofármacos, por acreditar que, temporariamente e sintomaticamente, podem
diminuir a manifestação de determinados comportamentos, mas não acrescentam
conhecimentos sobre o sujeito.
Porém, para os nossos entrevistados, o uso de medicamentos tem
possibilitado a superação das dificuldades decorrentes do TDAH, principalmente,
porque são todos adultos e, portanto, têm de cumprir inúmeras responsabilidades
profissionais, acadêmicas e familiares. Cláudia (Anexo 3), em resposta à questão
sobre a que ela atribui a superação das dificuldades pelas quais passou até
chegar à Universidade, diz: “Sinceramente? À volta do tratamento que eu voltei a
fazer (...)”.
Quando indicada, entretanto, a medicação deve ser usada como parte
de um tratamento, não como a única. O maior benefício da terapia
84
medicamentosa parece ser permitir a eficácia dos outros tratamentos,
psicológicos e educacionais (DUPAUL e CONNOR, 2002).
A mudança de postura do professor e da escola podem contribuir
significamente para a superação das dificuldades decorrentes do transtorno. Para
Toledo e Simão (2003), o professor tem papel fundamental no processo de
intervenção, uma vez que é na escola que dificuldades significativas, acadêmicas,
comportamentais e sociais, são vividas pela criança com TDAH. Assim como os
pais, “os professores devem ter esclarecimentos e informações acerca da
natureza do quadro, discriminando incompetência de desobediência” (p. 197). As
autoras orientam aos professores o uso de algumas estratégias, coletadas na
literatura (p. 197-198):
Sala de aula organizada e estruturada, com regras claras, programa
previsível, carteiras separadas, limites claros e objetivos, disciplina
equilibrada.
Colocar a criança perto de amigos que não desviem sua atenção, perto da
professora.
Encorajamento, elogio, afeição, responsabilidade, confiança, acolhimento e
aceitação.
Trabalhos em pequenos grupos, favorecendo oportunidades sociais.
Adaptar as expectativas quanto à criança.
Mudar o ritmo ou o tipo de trabalho, preparando a criança para novas
situações.
Favorecer oportunidades de movimento.
Recompensar os esforços, persistência e comportamentos bem-sucedidos.
85
Aproximar-se do aluno, permitindo “controle” extra.
Atividades físicas para a turma toda.
Intervalos previsíveis, dividindo a tarefa em pequenos objetivos.
Utilizar métodos variados – táteis, auditivos, cinestésicos.
Reconhecer seus próprios limites e frustrações.
Reuniões constantes com os pais e com a equipe que assiste à criança.
Moojen, Dorneles e Costa (2003, p. 113-114) também apontam
algumas intervenções específicas que o professor pode fazer para ajudar a
aprendizagem de seus alunos:
Estruturar o ensino;
- pequenas quantidades de conteúdo para serem lidas e trabalhadas;
- guias e gráficos do estudo;
- marcadores de texto que orientem o estudo;
- materiais parcialmente preenchidos, como mapas, gráficos e textos, que
facilitem a atividade;
- uso de recursos facilitadores, como: responder questões no livro, em vez
de copiar no caderno; uso de computador; uso de gravador de voz;
- uso de modelos visuais e recursos gráficos e concretos sempre que
possível;
- organização da sala de aula com materiais e atividades que trabalhem
com as potencialidades de todos os estudantes: música, artes, exploração de
descobertas, construções e audiovisuais com muita freqüência;
86
- uso de jogos, quebra-cabeças e outros recursos construídos pelos alunos.
Uso do computador por meio de:
- softwares educacionais (CDs interativos e programas organizados para
facilitar a compreensão de conteúdos acadêmicos);
- acesso a diferentes informações (CDs, enciclopédias, Internet).
Uso diferenciado do material matemático:
- redução do número de problemas em uma página;
- uso de recursos concretos e manipulativos para introduzir conteúdos
novos;
- uso da calculadora para resolução de problemas e para conferir
resultados;
- uso de tabuadas, listas de fórmulas e medidas de conversão sempre que
necessário.
O acesso ao conhecimento e às diferentes fontes de sua produção
deve ser garantido a todos os alunos, fazendo-se as adaptações necessárias, de
acordo com as características de cada um. A escola desempenha também um
papel importante, no que se refere à disposição de recursos variados, que
minimizem as conseqüências do TDAH (Ibid).
As dificuldades acadêmicas têm sido apontadas como uma das
principais conseqüências do transtorno. Além disso, as relações professor-aluno
podem afetar positiva ou negativamente o desempenho acadêmico e social do
87
aluno com TDAH. Quando o professor responde aos problemas com mais
controle e autoritarismo, a tendência é o aluno reduzir a sua motivação para
aprender e diminuir a sua auto-estima. Geralmente, a resposta da escola aos
problemas decorrentes do transtorno é punitiva em vez de construtiva.
Werner Júnior (1997) aponta, apoiado em suas investigações sobre o
diagnóstico do TDAH, que condições sociais podem influenciar na produção dos
sinais de desatenção como: “o tipo e a forma inadequada de pais e professores
exercerem a autoridade; as tarefas propostas pouco significativas (e não
adequadamente significadas); os contextos desqualificadores (em termos afetivos
e sociais)” (p. 143).
Muitos pesquisadores concordam que o professor não pode eliminar os
sinais do transtorno, mas pode ajudar a minimizar o problema. Para isso, é
importante que a formação profissional do professor contemple a reflexão sobre
as dificuldades de aprendizagem ou de relacionamento apresentadas por alunos
com TDAH, e ainda sobre o quanto a forma como a escola está organizada pode
interferir na aprendizagem desses alunos.
Tonelotto (2003) chama a atenção para a interferência dos problemas
de atenção na aprendizagem e a difícil abordagem e intervenção pelos
professores. Por isso, atribui grande importância à formação destes: “Quando não
oferecemos conhecimentos e preparo necessário aos profissionais da educação,
Eu acho que também foi a escola que eu estudei. Foi uma escola mais
rígida. Então, ninguém podia conversar, ninguém podia fazer nada. Mas,
mesmo assim, eu não conseguia parar na carteira quieta (Tânia, Anexo
3).
88
colaboramos para que crianças com problemas reais, internos e de severo
prognóstico sejam vistas como preguiçosas e mal-educadas” (p. 216).
Segundo Sarup (1980), muitos professores e diretores de escola
atribuem aos alunos que fracassam nos estudos ou aos “criadores de problemas”
as dificuldades encontradas nas salas de aula. “Mas (...) se a atenção fosse
focalizada no significado das situações de sala de aula, do ponto de vista dos
alunos (...), poderiam encontrar explicações totalmente diferentes para os êxitos
ou fracassos educacionais” (p. 73).
O autor aborda um estudo feito por Carl Werthman (1963) para explicar
que o significado da interação de sala de aula pode revelar o comportamento
sensato e racional, de alunos aparentemente difíceis. De acordo com Sarup,
Werthman constatou que os alunos aceitavam a definição que o professor fazia
de determinada situação quando consideravam justos os atos do professor.
Receber uma explicação e ouvir as razões do professor era considerado
importante pelos alunos. Conflitos e problemas de comportamento só surgiam
Destacamos a importância dos ensinamentos de Freire (1996, p. 28),
sobre permitir a insubmissão dos alunos, e acrescentamos que é preciso ir além:
permitir para entender as suas dificuldades, sejam elas acadêmicas ou de
relacionamento, e ajudá-los na superação.
Sarup parte do estudo de Werthman para afirmar que a aprendizagem
é uma questão social, um processo continuado de negociação. Isso implica a
nas classes onde os professores não seguiam as regras dos alunos –
onde, por exemplo, alguns professores exigiam atenção e exerciam
autoridade sem cortesia e respeito; ou faziam comentários sobre
assuntos como raça, aparência e inteligência; ou cujas notas eram
evidentemente injustas (SARUP, 1980, p. 73-74).
89
importância da linguagem na negociação da realidade, a importância da
interpretação das situações da sala de aula. Entre professor e aluno deve haver
verdadeiramente comunicação, diálogo.
Uma relação de confiança entre os alunos com o transtorno e seus
professores pode constituir um importante canal de comunicação para que os
alunos deixem transparecer as suas necessidades pedagógicas e para que os
professores as percebam. Queremos esclarecer que, ao propor a ênfase dos
estudos sobre o TDAH, pretendemos enfatizar que o professor deve conhecê-lo
para minimizar as dificuldades dos alunos, as suas limitações, para construir
estratégias de superação. Isso porque acreditamos, aliadas à reflexão de Sarup
(1980), que tal conhecimento, se utilizado apenas para classificar os alunos em
diferentes categorias, teria um caráter de rotulação, que define o sucesso e o
fracasso deles.
Ela era uma excelente professora. Soube diagnosticar o problema e
trabalhava a parte que eu tinha deficiência (...), sempre me valorizava no
que eu sabia. O que é importante. Eu tirava só nota oito, nove, dez com
ela. Aí entra a questão do professor (Sandra, Anexo 3).
PARTE II
PRÁTICAS ESCOLARES E
DESEMPENHO ACADÊMICO DE ALUNOS
DIAGNOSTICADOS COM TDAH
91
4. TDAH E EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS:
ESTUDO DE CASOS
Percurso teórico-metodológico
O objetivo central da pesquisa é refletir sobre as teias de significados
das práticas escolares, enfatizando a necessidade de o professor conhecer o que
e como pode afetar o desempenho escolar de alunos que apresentam
instabilidade de atenção, com ou sem hiperatividade, e impulsividade, durante as
atividades escolares.
Logo no primeiro contato com as teorias formuladas sobre o
desempenho escolar de alunos com TDAH, percebemos a necessidade de
considerar, antes de iniciar a análise dos dados coletados nas entrevistas, os
tipos de investigações já produzidas. O estudo de Angelucci et al. (2004), sobre o
estado da arte de pesquisas que abordam o fracasso escolar como objetivo
central – conforme já abordado no segundo capítulo desta pesquisa – serviu
como ponto de partida para a construção do conhecimento a que nos propusemos
no início da investigação. As autoras encontraram, num estudo introdutório acerca
de pesquisas sobre o fracasso escolar, realizadas entre 1991 e 2002, o
desempenho escolar descrito como um fenômeno estritamente individual do aluno
(questão de ordem psíquica); pesquisas que explicam o desempenho por uma
outra variável individual, a capacidade profissional do professor (questão de
(...) admitir e considerar a pluralidade e a diversidade de
versões e experiências no decorrer da análise científica
resulta em um conhecimento acurado – porque cuidadoso –
a respeito do objeto de reflexão, base para a formulação de
abstrações e generalizações (ALBERTI, 2004, p. 25).
92
ordem técnica); pesquisas que indicam a organização da escola como a causa do
sucesso ou do fracasso dos alunos (questão de ordem institucional); por fim,
pesquisas pautadas nas relações de poder existentes na sociedade (questão de
ordem política).
Esse estudo do estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar,
apresentado por Angelucci et al., foi importante por nos permitir situar a nossa
abordagem no conjunto das pesquisas já produzidas. Procuramos, então, a
superação das concepções de sucesso/fracasso escolar já apresentadas em
outros estudos, por meio de uma ruptura teórico-metodológica com concepções
psicologizantes, tecnicistas e institucionalizantes, e tentamos tecer uma análise a
partir dos condicionantes que movem a escola, um dos espaços da sociedade.
Como toda pesquisa deve configurar-se como espaço de produção do
saber em constante movimento, tentamos novas maneiras de entender as
dificuldades encontradas por alunos com TDAH no ambiente escolar, bem como
compreender o que limita a inclusão desses alunos no trabalho pedagógico. A
questão orientadora para o nosso trabalho foi: a que os entrevistados atribuem as
dificuldades e facilidades encontradas durante o processo de aprendizagem?
Sobre a construção do método e da teoria, Noronha considera que
ambos ocorrem “de modo conjunto e articulado, na medida em que advém da
Marx apresenta uma importante reflexão metodológica sobre o modo
como a realidade se apresenta ou está dada e suas determinações
históricas, que não são imediatamente dadas e que, portanto, precisam
ser desveladas através da investigação científica. Essa atitude de
desvelar os determinantes da realidade dada é realizada através da
construção do conhecimento (NORONHA, 2002, p. 12).
93
experiência, no momento em que se realiza o processo de descobrimento da
realidade” (p. 12).
Concordamos com Noronha, quando ela ressalta a importância da
clareza teórica que o pesquisador deve ter sobre as investigações que são feitas,
para que todo o esforço não resulte em equívoco ou não traga contribuição “para
a construção do conhecimento e para o avanço da fronteira do conhecimento
histórico” (p. 15). Essa preocupação acompanhou-nos durante toda a pesquisa.
Como metodologia de investigação, optamos pelo Estudo de Caso,
pela possibilidade de esse tipo de pesquisa qualitativa permitir uma análise
aprofundada do objeto de estudo, bem como dos sujeitos envolvidos, ou seja,
pela possibilidade de abordagem das várias facetas de um mesmo problema.
Para Triviños (1987, p. 134), o Estudo de Caso, marcado “pela implicação do
sujeito no processo e pelos resultados do estudo, exige severidade maior na
objetivação, originalidade, coerência e consistência das idéias”.
Dentre as opções de trabalho com o Estudo de Caso, elegemos a
História Oral. Esta, segundo Alberti (2004), é um método de pesquisa “que
privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou
testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de
se aproximar do objeto de estudo” (p. 18). Esse método de pesquisa, que produz
fontes de consulta para outras investigações, na segunda metade do século XX,
apresentou-se como possibilidade de estudo dos acontecimentos e conjunturas
sociais. A entrevista adquiriu validade de documento, mas a partir de uma nova
concepção: o objeto documentado foi deslocado. Não apenas interessam os fatos
94
passados, mas as formas como o passado foi e é apreendido e interpretado.
Assim:
Chauí (1994, p. 20), ensina que “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É
reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do
feito e do ido, não sua mera repetição.” Enfatiza ainda que o tempo da memória é
social, não apenas pela lembrança de eventos políticos e fatos insólitos, mas
“porque repercute no modo de lembrar” (p. 31).
A metodologia que adotamos permitiu-nos, principalmente, retomar
acontecimentos pouco informados sobre o TDAH, a partir de experiências
pessoais. Isso porque a peculiaridade do documento de História Oral “decorre de
toda uma postura com relação à história e às configurações socioculturais, que
privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”
(ALBERTI, 2004, p. 23). O procedimento metodológico por nós utilizado foi um
questionário com questões fechadas (Anexo 1) e a entrevista semi-estruturada
(Anexo 2), como forma de dar voz aos sujeitos da pesquisa. Adultos que tiveram o
diagnóstico de TDAH, na infância ou não – mas, neste caso, sofreram os seus
efeitos –, e que estivessem cursando ou tivessem concluído o Ensino Superior
configuraram-se como os sujeitos desta pesquisa.
Trata-se de ampliar o conhecimento sobre acontecimentos e
conjunturas do passado através do estudo aprofundado de experiências
e versões particulares; de procurar compreender a sociedade através
do indivíduo que nela viveu; de estabelecer relações entre o geral e o
particular através da análise comparativa de diferentes testemunhos, e
de tomar as formas como o passado é apreendido e interpretado po
r
indivíduos e grupos como dado objetivo para compreender as suas
ações (p. 19).
95
A primeira etapa de nossa investigação visou à busca de sujeitos
diagnosticados com o transtorno; a segunda, às entrevistas; e a terceira, à análise
dos dados obtidos.
A primeira dificuldade foi onde encontrar os sujeitos. Entramos em
contato com alguns profissionais da área de Psicologia, da área médica e com
pessoas de nosso círculo social (pessoal e profissional), na tentativa de
conseguirmos indicações de pessoas com o perfil que procurávamos. Assim,
selecionamos cinco sujeitos para participarem da pesquisa, que optamos chamá-
los por: Cláudia, Paulo, Sandra, Thaís e Tânia (Anexo 3).
Os entrevistados responderam, antes da entrevista, as questões
fechadas (“Questionário: perfil dos entrevistados”, Anexo 1) sobre os dados
pessoais e sócio-culturais, sobre a formação acadêmica e o diagnóstico do TDAH.
Segue abaixo uma síntese da caracterização social do grupo, organizada a partir
das informações obtidas nesse questionário:
Tabela 1 – Sexo e idade
Sexo Quantidade
de sujeitos
Idade
Masculino 1 32
Feminino 4 20, 25, 26, 27
96
Tabela 2 – Posição na família e quantidade de irmãos
Posição na família Quantidade de irmãos
Filho único nenhum
Segundo filho 1
Segundo filho 1
Primeiro filho 1
Primeiro filho 2
Tabela 3 – Estado civil
Estado civil Quantidade de sujeitos
Casado 1
Solteiro 4*
Total 5
* Três moram com os pais; um mora sozinho.
Tabela 4 – Renda familiar
Salários mínimos Quantidade de sujeitos
Até 5 1
Até 20 1
Acima de 20 2
Renda não informada 1
Total 5
97
Tabela 5 – Escolaridade dos pais
Pai Mãe Quantidade de sujeitos
EM incompleto
EF incompleto
1
ES completo
EM completo
1
ES completo
ES completo
2
ES completo
ES incompleto
1
Total 5
EF = Ensino Fundamental; EM = Ensino Médio; ES = Ensino Superior
Quadro 1 – Profissão dos pais
Pai Mãe
Pedreiro (aposentado) Merendeira (aposentada)
*Do lar
Editor/Delegado de cartório Psicopedagoga
Economista Diretora de escola
Administrador de escola Dona de casa
* Profissão não informada
Tabela 6 – Escolaridade dos sujeitos
Escolaridade Quantidade de sujeitos
ES completo 4
ES em curso 2*
ES = Ensino Superior
* Um dos sujeitos está cursando o segundo curso de graduação
98
Tabela 7 – Educação Básica
Ensino Fundamental Ensino Médio
Escola da rede pública
2
3
Escola da rede privada
3
2
Totais 5 5
Tabela 8 – Profissão dos sujeitos
Profissão Quantidade de sujeitos
Professor 4*
Psicóloga 1
Total 5
* Um dos sujeitos desempenha, atualmente, a função de
coordenador pedagógico.
Tabela 9 – Participação em atividades
Atividades Quantidade de sujeitos
Culturais 2
Esportivas/Físicas 2
Assistenciais 2
99
Tabela 10 – Leituras semanais
Material de leitura Quantidade de sujeitos
Jornal 3
Revista 2
Livro 4
Hipertexto (internet) 1
Tabela 11 – Fase da vida em que ocorreu o diagnóstico do TDAH
Fase da vida Quantidade de sujeitos
Infância 2
Idade adulta 3
Total 5
Tabela 12 – Tipo de tratamento utilizado para o TDAH
Tipo de tratamento Quantidade de sujeitos
Psicoterapia 1
Medicamento 2
Combinação de psicoterapia com
medicamento
2
Total 5
100
Tabela 13 – Busca de informações sobre o TDAH
Material informativo Quantidade de sujeitos
Livro 5
Internet 4
Vídeo 1
Mídia impressa 1
Os entrevistados selecionados para a investigação proposta nesta
pesquisa falaram, durante a entrevista, sobre a trajetória escolar de cada um,
apontando: a) em que fase da escolaridade descobriram o TDAH; b) como foi a
passagem pelos ensinos Fundamental, Médio e Superior; c) o que fizeram (e
fazem) para superar as dificuldades decorrentes do transtorno. A partir dessas,
foram feitas outras questões, quando necessárias, em cada entrevista, que durou,
em média, 45 minutos. Todas as entrevistas foram realizadas no ano de 2005.
Todos os entrevistados se declararam diagnosticados com TDAH, com
predominância do tipo hiperativo. O diagnóstico foi feito por médicos e/ou
psicólogos. São quatro professores e uma psicóloga, sendo que, de todos, um
ainda não concluiu o Ensino Superior e outro não concluiu o segundo curso. A
partir das respostas do questionário e da entrevista, trazemos a seguir o perfil dos
sujeitos desta pesquisa.
101
Cláudia
Cláudia tem 20 anos, é solteira, mora em Itupeva e cursa o primeiro
ano de História em uma Universidade particular. O transtorno foi descoberto na
infância, momento em que passou a se tratar com medicamento. Por volta dos 12
anos, resolveu abandonar o tratamento. Adotou-o novamente no ano anterior ao
ingresso na Faculdade, por sentir muita dificuldade para fazer todas as leituras
necessárias, durante o curso preparatório para o vestibular. Apesar de ter
abandonado o tratamento, a família esteve sempre atenta às suas dificuldades. A
busca de ajuda médica e psicológica na fase adulta foi decisiva para a superação
de seus problemas. Relatou que, durante toda a sua escolaridade, não tinha
dificuldade para aprender os conteúdos trabalhados na escola, mas apresentava
rendimento aquém do esperado nas provas, por causa do nervosismo que sentia
nos momentos de avaliação. No Ensino Superior, as dificuldades continuam
presentes, mas são outras. Em algumas disciplinas, não consegue concentração
suficiente para estudar, em outras, não consegue parar de estudar:
Atualmente, Cláudia faz tratamento medicamentoso. Se antes ler um
livro era quase impossível, hoje a leitura é uma atividade constante em sua rotina
diária. Ela afirma com orgulho ter lido 12 livros no ano passado. Costuma retirar
emprestados da biblioteca da Faculdade em que estuda muitos livros para
Introdução à História [...] Eu pego a matéria para estudar, depois de cinco
minutos estou dormindo. Sociologia eu viro a noite inteira, sem café, sem
nada. Meu olho quer fechar, quer dormir, mas eu não consigo. [...]
Comecei a estudar aquele dia eram onze e meia da noite. Três horas da
manhã, eu estava assim com o olho [fechando], mas eu não conseguia
fechar o meu livro. [...] Eu só fui dormir às cinco da manhã. Deitei na
cama e fiquei mais de uma hora para pegar no sono, de tanto que estava
interessante. Eu acho que o DDA tem esse problema, você não larga
nem que você queira.
102
pesquisas. Considera-se extremamente criativa para preparar apresentações de
trabalhos acadêmicos. Cita como exemplo de cidadania o fato de ter enviado e-
mail ao presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), fazendo reclamações e
perguntas. Costuma participar ativamente nas atividades do Centro Acadêmico da
Faculdade e diz que tem grande desejo de mudança social. Por isso, escolheu ser
historiadora. Está apenas no primeiro semestre do curso de História, mas já
pensa no Mestrado que quer cursar. Tem se informado sobre como fazer para
participar de um grupo de pesquisa na Faculdade. Aponta também que hoje tem
espírito de liderança. Confessa, entretanto, que, mesmo medicada, tem muita
dificuldade em manter a concentração por muito tempo. Hoje, é menos
introvertida e busca conversar mais com as pessoas. Participar das atividades já
citadas ajuda nesse intento. Sente inclinação para o magistério, é comunicativa e
diz que consegue atrair a atenção das pessoas quando fala.
Paulo
Paulo tem 32 anos, é solteiro, mora em São João da Boa Vista, atua
como Coordenador Pedagógico em uma escola pública estadual e cursa
Psicologia, o segundo curso no Ensino Superior (o primeiro foi Ciências
Contábeis), em uma Faculdade da rede particular. Teve o diagnóstico do
transtorno na idade adulta, após suas próprias suspeitas e a busca de ajuda
médica. Faz tratamento com psicoterapia. Quando criança e adolescente, Paulo
tirava notas baixas e seus pais recebiam constantes reclamações de seu
comportamento. Geralmente, não fazia todas as anotações no caderno, porque
apresentava dificuldade na escrita, não por não saber escrever, mas por não
103
conseguir acompanhar a quantidade de pensamentos que tinha ao mesmo tempo
ou por se distrair com freqüência:
No Ensino Superior, os problemas que apresenta estão relacionados
também à inconstância da atenção. Há dias em que não consegue se concentrar
de forma alguma – mesmo se a aula estiver muito interessante –; em outros dias,
chega a ficar concentrado nos estudos por até dez horas seguidas. Relatou que
nunca teve professores preparados para trabalhar com alunos que apresentam
TDAH. Ressaltou ainda que nem no curso de Psicologia, que cursa atualmente,
os professores sabem o que fazer para ajudar a melhorar as condições de estudo
dos alunos em questão. Entretanto, julga-se compreendido pela maioria dos
professores. Freqüentemente, precisa sair da sala de aula por alguns minutos
para, na volta, conseguir retomar a atenção. Contou que, na volta à sala, continua
participando da aula e, porque agora lê muito, costuma fazer colocações
pertinentes. Seus colegas de classe não entendem como isso acontece. Antes,
não gostava de ler, mas, desde que começou a aprender sobre os seus próprios
limites no estudo, passou a ler muito e agora gosta dessa prática. A leitura é um
dos principais motivos que o leva a fazer uso de medicação específica para o
TDAH:
porque a minha mente é como se fosse uma TV picture in picture: é como
se eu tivesse quatro televisões ao mesmo tempo, aliás cinco, uma
principal e mais quatro. Então, eu estou centrado aqui, mas, na minha
mente, eu estou pensando mais quatro coisas ao mesmo tempo.
Essas idéias que vêm a todo tempo desaparecem. Por isso que eu não
gosto de tomar medicamento. (...) Às vezes, eu não abro mão do
medicamento, porque eu tenho que ler um texto... Então, por exemplo,
começo a ler o texto e, às vezes, eu paro, quer dizer, eu me pego lendo o
texto e pensando em outra coisa. Eu, sem querer, começo a pensar em
outra coisa, paro de ler, não percebo. Quando percebo, eu estou com o
livro na mão, e o texto? Então, eu viajo e volto.
104
Paulo diz que não precisa estudar muito para fazer as avaliações.
Julga-se autodidata. Afirma que os momentos de alto grau de concentração são
responsáveis por passar horas fazendo a mesma atividade, geralmente
estudando ou praticando um de seus hobbies: “Quando me dá o hiperfoco,
nossa!, eu fico horas na tarefa. Isso é muito bom. Mas só que para dar o hiperfoco
é difícil.” Atribui o seu sucesso à descoberta dos próprios limites e por procurar
usar as características do transtorno a seu favor, principalmente a criatividade,
decorrente do hábito de fugir às regras.
Sandra
Sandra tem 26 anos, é casada, mora em Araras, é professora de
inglês, fala quatro línguas, é proprietária de uma escola de idiomas e cursa Letras
em uma Universidade da rede particular. Na infância, sua mãe, psicóloga,
acreditava que a filha era hiperativa, mas, ao buscar ajuda com outro profissional,
inicialmente, não teve a confirmação do diagnóstico. Só após outras tentativas,
veio a confirmação. Sua vida escolar, passada em escolas da rede privada de
ensino, foi marcada por baixo rendimento nas aulas e por problemas de
convivência com outros alunos e com os professores.
E nessa fase da segunda série, eu vi que tudo começou a desmoronar na
minha cabeça. Eu ia mal na escola, tinha medo de que a professora visse
a minha prova para falar que eu tinha errado, porque eu realmente não
conseguia prestar atenção na aula.
Eu tentava chamar a atenção de toda forma, para aliviar a tensão dessa
minha falha, entre aspas. Eu fazia de tudo lá: eu ia mal na escola, ficava
de recuperação, brigava com os alunos, mentia (...)
105
Apesar de ter superado muitas de suas dificuldades acadêmicas, na
profissão apresenta outras, principalmente, quando tem de desempenhar
atividades burocráticas, como planejamento semanal de suas aulas:
Se antes Sandra era recriminada por desenhar demais em vez de
escrever, hoje desenha as figuras das apostilas da sua própria escola de Inglês.
Ela mesma criou o material de ensino e diz ser o diferencial de sua escola,
comparando-a com outras da cidade. Antes de iniciar o curso de Letras, tentou
outros cursos, mas desistiu. Hoje, sente-se mais madura para levar adiante o
atual curso. Não tinha intimidade com a leitura indicada por seus professores,
mas agora lê muito. No primeiro curso Superior que tentou cursar, chegou a ser
monitora de uma turma de alunos de Medicina, apesar de estar no primeiro ano
de Fisioterapia. Atualmente, faz tratamento com medicamento e com psicoterapia.
Thaís
Thaís tem 25 anos, é solteira, mora em Campinas, é professora e uma
das administradoras de uma escola infantil. Teve o diagnóstico do transtorno na
idade adulta, há dois anos, e faz tratamento medicamentoso, com bons
resultados. Durante toda a infância, a mãe procurou ajuda com vários médicos,
mas não era encontrada a causa de suas dificuldades de aprendizagem e de
Eu dou aula numa escola em que eu não consigo apresentar o
semanário, mas minha aula é muito bem dada. Eu não sei explicar como.
A diretora vive me cobrando. Às vezes, ela fica brava ou tomo até
advertência, mas tenho um trabalho que ninguém questiona, porque é
bem feito. (...) mas eu me perco muito nessa parte burocrática. Eu não
gosto de documento, eu não tenho paciência de acabar um trabalho
iniciado. Não tenho paciência de preparar aula.
106
comportamento. Seus problemas eram sempre diagnosticados como uma
pequena disritmia. A primeira dificuldade que sentiu foi durante a alfabetização:
As dificuldades relacionadas à socialização também sempre estiveram
presentes. A ausência de autocontrole é apontada por Thaís como um dos
responsáveis pela agressividade apresentada por ela:
Estudou em escola da rede privada de ensino até a primeira série do
Ensino Médio. A partir da segunda série, fez o curso de Magistério. Neste, não
sentiu grandes dificuldades, devido, segundo ela, à mudança para uma escola da
rede pública de ensino. Iniciou os estudos no Ensino Superior assim que concluiu
o Ensino Médio. No início de cada ano letivo, levava cadernos e livros à
Escola/Faculdade, mas, como nunca anotava nada, acabava deixando de levá-
los. Fazia cópia do caderno de colegas para estudar para provas. Quando
questionada, durante a entrevista, sobre quais eram as suas dificuldades para
escrever, responde que era a falta de concentração: “ter que se concentrar para
fazer alguma coisa, de ler algum texto para, depois dele, partir para alguma outra
coisa”.
Thaís acredita que seus problemas de relacionamento, de falta de
paciência e baixa tolerância melhoraram bastante depois que iniciou o tratamento
medicamentoso para o TDAH. Na adolescência, tentou a psicoterapia, com vários
(...) na escola, eu não fui alfabetizada. Quem me alfabetizou foi a minha
mãe, em casa. No Ensino Médio, também tive algumas dificuldades.
Repeti o primeiro colegial (...) No Ensino Superior, não tive muita
dificuldade, acredito que por causa do curso não exigir muito.
(...) de primeira a oitava série, tinha muito problema em relação ao
autocontrole. Eu era muito agressiva. Então meus pais, constantemente,
eram chamados na escola, sempre tinha advertência (...) sempre
respondia com agressividade, em relação aos colegas e também aos
professores.
107
profissionais: “Então, eu fazia por um tempo, mas não tinha paciência para
continuar fazendo”.
Tânia
Tânia tem 27 anos, é solteira, mora em Valinhos, é estudante do 4
o
ano
de Psicologia. Teve o diagnóstico do transtorno na idade adulta. Faz tratamento
medicamentoso e psicoterápico. Usa a medicação, especialmente durante as
atividades profissionais, na Faculdade, pois sente muita dificuldade para se
concentrar durante o trabalho junto aos pacientes atendidos:
Quanto ao diagnóstico do TDAH, Tânia acredita que se tivesse ocorrido
mais cedo, seu desempenho acadêmico teria sido melhor. A maior dificuldade que
tinha, durante a infância e adolescência, era ficar dentro da sala de aula. Não
conseguia ficar na sua carteira, sempre mexia e falava com os colegas. Não
apresentou problemas sérios durante a sua escolaridade, embora não consiga se
lembrar de episódios ocorridos nessa época. Praticamente, tudo o que sabe foi
contado pela mãe. Após concluir o Ensino Médio, ficou anos sem estudar, por não
acreditar que seria aprovada no Vestibular:
(...) eu tomo a medicação de vez em quando, não tomo direto. Eu estou
aprendendo a me controlar sozinha. (...) Lógico que eu tenho os
atendimentos agora na Faculdade, que eu tomo para atender, se não eu
não consigo prestar atenção.
Então eu acho que se os professores estivessem preparados para ver,
eles teriam visto que eu tinha alguma coisa. Eu teria sido diagnosticada
antes e não teria passado por tanto sofrimento que eu passei até chega
r
na Faculdade.
108
Tânia aponta que um trabalho coletivo entre profissionais de diversas
áreas (professores, médicos e psicólogos) pode contribuir para a superação das
dificuldades encontradas por alunos com o transtorno. Para ela, o conhecimento
do professor sobre o problema, não apenas para detectar as dificuldades, mas
para dar mais atenção a esses alunos, pode contribuir também.
As entrevistas, a transcrição e a textualização
Antes de cada entrevista, os nossos objetivos, bem como a
metodologia, foram esclarecidos aos entrevistados, ressaltando a importância de
cada um dos sujeitos na pesquisa. Durante a conversa informal, preparatória para
a entrevista, os entrevistados contaram um pouco sobre as suas atividades, como
uma maneira de estabelecer um clima de tranqüilidade e simpatia entre as partes
envolvidas, participante e pesquisadora. Ao final das entrevistas, cada
entrevistado assinou um termo de cessão de direitos sobre o depoimento oral
(Anexo 4), e a pesquisadora assumiu o compromisso de enviar a cada um, após o
término da pesquisa, uma cópia da dissertação.
A transcrição e a textualização das entrevistas foram feitas pela
pesquisadora. Na textualização, optamos por fazer apenas a adequação
gramatical, mantendo as interrupções de pensamento, as mudanças de foco e as
posteriores retomadas, por julgarmos importantes na análise que seria
empreendida e pela freqüência da ocorrência.
Após a textualização das entrevistas, foi feito um primeiro levantamento
das falas recorrentes. Sabendo que as narrativas apresentam de forma figurativa
109
os temas, estes foram trazidos à tona a partir dos relatos dos entrevistados e
agrupados em um tema principal que encaminhou a discussão: “formação de
professores: o significado das práticas escolares no desempenho acadêmico de
alunos com TDAH”.
Para Noronha (2002), as indagações que o pesquisador faz ao real são
respondidas pelos dados. Por isso, é necessária uma posição teórica rigorosa
para que os dados tenham um tratamento adequado durante a investigação. Não
pensamos ser tarefa fácil atingir o grau de complexidade exigida pela nossa
pesquisa, mas esse foi o desafio a que nos propusemos em todo momento. Ainda
conforme a autora
(...) os dados só adquirem sentido como objeto de pesquisa histórica (...)
através de uma orientação teórico-metodológica coerente e consistente.
Do contrário, o pesquisador corre o risco de ficar prisioneiro da ilusão e
da aparência que os dados manifestam. O esforço de colecionar dados e
de ler documentos teorizando-os a partir somente de suas
manifestações visíveis e aparentes, resulta, portanto, numa atitude
parcial e quase inútil (NORONHA, 2002, p. 14).
110
5. FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O SIGNIFICADO DAS PRÁTICAS
ESCOLARES NO DESEMPENHO ACADÊMICO DE ALUNOS
DIAGNOSTICADOS COM TDAH
Neste capítulo, a partir dos pontos de convergência observados no
depoimento dos entrevistados, trazemos os resultados da pesquisa, assim como
a sua discussão.
A pesquisa configurou-se como possibilidade de reflexão sobre as
práticas escolares relacionadas ao TDAH. Seria muito simplista a idéia de que a
formação de professores seja a única causa das dificuldades encontradas pelos
alunos com o transtorno. No entanto, os professores são os sujeitos que,
diretamente, podem interferir na aprendizagem e fazer a mediação entre os
relacionamentos presentes no ambiente escolar. Por isso, na formação de
professores, deve-se realçar a importância de o professor conhecer o que e como
pode afetar o desempenho escolar de seus alunos, bem como refletir sobre a
participação da escola no problema, a partir de sua estrutura e funcionamento.
Foi solicitado aos entrevistados que falassem sobre o percurso escolar
de cada um, e todos citaram problemas escolares, no Ensino Fundamental e
Médio, principalmente, por causa do desconhecimento do TDAH pelos
professores e pela falta de aproveitamento das características positivas do
(...) o cidadão capaz de tomar decisões adequadas
precisa dispor de: informações pertinentes a respeito do
meio físico e social, de si mesmo e dos outros;
estratégias de pensamento que lhe permitam opera
r
essas informações; valores que orientem a sua ação.
Dependendo de como a escola valoriza
essas três tarefas, diferentes culturas escolares são
construídas (DAVIS, NUNES, NUNES, 2005, p. 207).
111
transtorno. No Ensino Superior, sentiram (sentem) menos dificuldades, por já
terem descoberto maneiras de superar os problemas decorrentes de instabilidade
da atenção, impulsividade e/ou hiperatividade, pela compreensão dos
professores, ou mesmo, segundo uma entrevistada, por causa da pouca
exigência feita aos alunos. Os entrevistados revelaram não apenas dificuldades,
mas facilidades na execução de determinadas atividades. As suas falas mostram
falhas na formação de professores e apontam caminhos para a reflexão do
significado das práticas escolares. Para a discussão desses conteúdos, optamos
pela focalização do tema “formação de professores: o significado das práticas
escolares no desempenho acadêmico de alunos com TDAH”. Destacamos os
tópicos “dificuldades acadêmicas” e “formação de professores”, para expor a
influência das práticas escolares na aprendizagem e no comportamento de
Cláudia, Paulo, Sandra, Thaís e Tânia.
5.1. Dificuldades acadêmicas
Embora Sandra e Cláudia (Anexo 3) tivessem recebido tratamento
medicamentoso na infância, sentiram dificuldades semelhantes às de Paulo,
Tânia e Thaís, que só tiveram o diagnóstico do TDAH na vida adulta. Uma, por
causa da dificuldade do diagnóstico correto, a outra, pela descontinuidade do
tratamento. Os principais problemas apontados pelos entrevistados estão
relacionados à leitura e escrita, falta de dinamismo das aulas, hiperatividade,
avaliação de conteúdos escolares, indisciplina e agressividade, relacionamentos,
auto-estima, diversidade humana.
112
Quatro dos entrevistados tiveram alguma dificuldade relacionada à
leitura e/ou à escrita durante a escolaridade, por causa da falta de concentração
ou por não gostarem de ler. Pelo menos três deles afirmam que lêem mais e
escrevem melhor, atualmente:
Nessas falas, destacamos dois aspectos: a importância da atenção nas
atividades de leitura/escrita e a necessidade de “aprender a gostar de ler”.
Segundo Romero (1995), a memorização e a organização do conhecimento são
dificultadas quando há falhas relacionadas à atenção seletiva, o que pode
ocasionar dificuldades com o aprendizado. Em “Eu sei o que é, mas eu não sei
Se você me der uma prova de Física com conceito e com cálculo, eu vou
mal nas duas, mas eu vou pior na de conceito do que na de cálculo,
porque na de cálculo eu dou um jeito para dar certo o resultado que você
me pede. Mas o conceito, eu não gravo muito conceito. Eu sei o que é,
mas eu não sei passar no papel (Cláudia).
Eu tenho facilidade para leitura, só que tem um porém nessa facilidade,
não pode ser uma leitura imposta. (...) Eu começo a ler o livro, mas se eu
não gostar do livro, o livro não rende, o livro pára. Nem resumo adianta.
Nem resumo adianta! Agora, se eu gostar do livro, vai (Cláudia).
Na fala, nunca troquei letras, nada. Era mais na escrita. Às vezes,
[acontecia] eu estar escrevendo e errar a letra, por causa da minha letra
[inaudível], ou eu trocar. À medida que eu vou escrever uma palavra que
tem a letra “c”, pela quantidade de emprego, inconscientemente, eu
coloco “ç”. Eu sei que não tem [cedilha], eu coloco, rabisco (Paulo).
Hoje eu escrevo. Escrevo mais. Hoje melhorou muito nessa área,
acredito que por causa do curso de Psicologia. Mas eu sempre tive
dificuldade. Nunca gostei da matéria de Português. Hoje eu me identifico
mais. (...) Nunca gostei de ler, fui gostar de ler depois que comecei
Psicologia. Quer dizer, tive que gostar de ler e hoje leio muito (Paulo).
No Ensino Superior, super gostoso, porque eu consegui fazer uma coisa
que eu nunca consegui fazer, que era ler. Eu odeio ler, mas eu estou
aprendendo. Interpretar, gostar. Eu tive facilidade em interpretação, mas
viajava na maionese também (Sandra).
A
credito que mais de ter que se concentrar para fazer alguma coisa, le
r
algum texto para depois dele partir para alguma outra coisa. Mais nesse
sentido. A concentração mesmo que era a maior dificuldade (Thaís).
113
passar no papel” (Cláudia) e em “ler algum texto para depois dele partir para
alguma outra coisa”, há sinais de comprometimento das funções executivas, mais
especificamente, a análise-síntese (BARKLEY, 2002; MATTOS et al., 2003),
conforme já abordado no Capítulo 3.
A idéia de que o ato de ler envolve aprendizado fica clara nos trechos
“tive que gostar de ler e hoje leio muito” (Paulo) e “Eu odeio ler, mas estou
aprendendo” (Sandra). A compreensão da necessidade da leitura – e,
provavelmente, a compreensão das limitações acarretadas pelo TDAH – tem
possibilitado a busca da superação dessa dificuldade. E, quando significativa, a
aprendizagem é efetiva.
Cláudia, quando questionada sobre o seu desempenho escolar,
responde:
A entrevistada acredita que teve menos dificuldades nas primeiras
séries escolares por causa do dinamismo das aulas. Outra explicação é que até
o Ginasial (hoje, segundo ciclo do Ensino Fundamental) fazia uso de medicação.
Para ela, é provável que, também por isso, só tenha sentido grandes dificuldades
após essa fase da escolaridade:
O Primário nem tanto, porque foi mais dinâmico. Eu tive algumas
dificuldades em algumas matérias, mas era porque eu não estudava
muito direito. Essa que é a verdade. Eu era um pouco relaxada. Mas no
Ginásio, tive bastante... (...) O meu Ginasial inteiro eu já senti dificuldade,
mas não era tanta quanto no Colegial e para ingressar numa Faculdade.
Eu pego as coisas muito fácil, quando eu quero. Mas transcorreu como
uma criança normal, porque eu estava na fase do remédio. Então,
enquanto eu estava fazendo tratamento, até os 12 anos, eu tinha
problema de nota, tinha. Claro, eu não era “a” inteligente. Mas eu tinha
minhas notas vermelhas porque eu não estudava direito. Porque, se eu
estudasse direitinho, era oito, oito e meio de média. Sempre assim
(Cláudia).
114
Paulo diz que sempre teve problemas escolares, principalmente, até a
quarta série do Ensino Fundamental. A recusa em fazer atividades pouco
interessantes causava-lhe problemas:
Em outro trecho, reforça que teve dificuldades, mas que elas foram
diminuindo conforme avançava as séries. Segundo ele, o nível de exigência aos
alunos pode ser a explicação para as suas dificuldades:
Tânia diz que sempre teve dificuldade para ficar quieta na sala de aula
e que nunca prestou muita atenção às aulas: “Você tem que ficar quieto. Mas eu
tinha aquela dificuldade de ficar na carteira, sempre me mexendo, sempre falando
com todo mundo (...)” Quanto ao Ensino Superior, ela conta que a hiperatividade
atrapalhou muito o seu desempenho: “Lógico que eu não prestava atenção em
aula, vivia saindo da sala de aula. Isso me prejudicou muito no começo da
Faculdade, do curso”.
A dinâmica da sala de aula é apontada pelos entrevistados como um
elemento complicador para alunos com TDAH. Quando o sistema de ensino não é
adequado à diversidade de estilos de aprendizagem, os alunos são impelidos a
buscar estímulos mais interessantes durante as aulas.
Cláudia ressalta que sentia mais dificuldades nas avaliações do que
durante as aulas:
Eu me lembro que na terceita série eu fiquei de recuperação. Era na
Escola F, uma escola muito puxada, e eu fiquei até dezembro. Tive
professor de Matemática particular na sexta série. Foi sexta e sétima. Daí
pra frente, eu não tive muitos problemas, me dava muito bem.
Tinha época da minha vida, principalmente de primeira a quarta série,
que eu tive muita dificuldade. Eu era muito teimoso, bocudo, briguento.
Minha mãe chegou precisar assistir aula comigo, porque eu falava assim:
“Não vou copiar”.
115
Em seguida, ela explica que o problema é ter um tempo determinado
para resolver os exercícios da prova. O medo de não conseguir terminar a
avaliação no tempo previsto, aliado à confusão que fazia com os conteúdos
estudados, contribuía para os erros:
Sandra recorda-se que na escola de Educação Infantil não sentiu
dificuldades, mas a partir da primeira série do Ensino Fundamental passou a ter
problemas:
A sua fala, assim como a de Cláudia, aponta para a questão da
avaliação. Sandra atribui aos momentos de avaliação os seus maiores problemas,
pois era nas provas que ela mostrava que algo não estava bem. Suas dificuldades
Podia fazer todos os exercícios do livro, sozinha, sem professo
r
explicando. Ia super bem. Agora você me fala a palavra prova dessas
matérias. Eu ia super mal. Porque tudo o que eu tinha conseguido faze
r
em casa, por mais que o exercício fosse o mesmo... a prova, só muda o
número, mas o mesmo jeito de fazer, o que acontece? Dá um tilt.
Você fica apavorada, você fica sem unha, tem medo de que você não vai
fazer tudo, naquele pequeno espaço de tempo. Você faz o exercício
certo, apaga quatro vezes, e, quando entrega na hora, está tudo errado,
porque você mudou, você fez certo. Mas não. Quando o exercício ainda
é muito fácil... Eu tinha bastante dificuldade, principalmente, em Física e
Química, que, quando o exercício era muito fácil, era só colocar uma
formulinha, que nem a fórmula do triângulo, sabe? Base x altura / 2? Eu
complicava aquela fórmula, de um tal ponto que eu errava aquele
exercício.
Todo mundo gostava muito de mim. Minha mãe contava que eu era muito
querida por todo mundo. De repente, eu entro na primeira série e começo
a tirar nota baixa, coisa que eu nunca tive, porque eu não tinha nota, não
tinha nada. Era muito estímulo, aquela brincadeira na escola, e eu me
sentia bem na escola. (...) E nessa fase da segunda série, eu vi que tudo
começou a desmoronar na minha cabeça, eu ia mal na escola, tinha
medo de que a professora visse a minha prova para falar que eu tinha
errado, porque eu realmente não conseguia prestar atenção na aula. (...)
Aquele medo da escola, aquela frustração, em relação aos professores e
à escola. E por isso eu tirava nota baixa. (...) Eu cheguei, nessa fase, a
criar fobia da escola.
116
começaram a ser percebidas apenas quando passou a ter que fazer provas.
Antes, na Educação Infantil, sentia-se estimulada para aprender.
É preciso lembrar também que as provas, nas escolas, são feitas
quase sempre por escrito, o que nos faz supor que se houvesse a opção de fazê-
las oralmente, em algumas situações, é provável que os alunos tivessem um
desempenho melhor.
Pensamos que a questão da avaliação inicia-se muito antes de sua
concretização. É possível que a recusa em fazer cópias e anotações durante as
aulas sinalize um problema relacionado à prática avaliativa nas escolas. Paulo,
quando criança, não gostava de fazer cópias. No Ensino Superior, enfrenta alguns
problemas semelhantes aos dos outros níveis de ensino: “Nunca gostei de copiar
matéria e esse é meu grande problema. (...) Eu sempre assisti aula, anotando o
mínimo possível. Eu costumo anotar fazendo tópicos”.
Thaís, além de falar sobre as suas dificuldades relacionadas aos
conteúdos escolares, conta sobre os seus problemas com a organização dos
conteúdos estudados:
O fato de não perceber a validade de fazer anotações levava-a ao
desinteresse por essa prática escolar. Geralmente, nas escolas, os registros de
atividades são utilizados tão somente para o estudo que antecede as provas. Os
alunos com TDAH podem ficar à margem do processo educativo, por
apresentarem tendência à distração e apenas se concentrarem em atividades
(...) eu sempre tive [organização]. Era mais no caso de livro e caderno
que eu nunca tive. (...) Porque eu não tinha paciência para anotar nada.
E mesmo cedo [mais nova] que eu tinha [livros e cadernos], eu não tinha
paciência para guardar, porque eu achava que eu nunca mais ia precisa
r
ler. Então jogava [o material] na hora.
117
altamente motivadoras. Por isso, é preciso que o professor tenha um repertório
variado de estratégias didáticas de ensino.
Sandra fala sobre a valorização do uso de cadernos pelos professores,
em detrimento de outras formas de estudar:
Essa prática escolar, a de supervalorizar o uso de cadernos, comprova
que a avaliação somativa tem sido usada com prevalência sobre a avaliação
formativa, durante o processo de ensino e aprendizagem. Esse tipo de avaliação
privilegia a nota, bem como o produto demonstrado pelo aluno em situações
estipuladas e definidas pelo professor. Ela pode representar tranqüilidade para o
professor por levar à crença de que ele ensinou e os alunos interessados e
esforçados aprenderam. Por isso, a avaliação somativa, muitas vezes, leva os
alunos com TDAH a serem rotulados como desinteressados, por não darem as
respostas “certas” e no momento determinado pelo professor.
Por sua vez, a avaliação formativa revela preocupação com o processo
de apropriação dos saberes pelo aluno, com os diferentes caminhos que ele
percorre, mediado pelo professor, “a fim de promover a regulação das
aprendizagens, revertendo a eventual rota do fracasso e reincluindo o estudante
no processo educativo” (SORDI, 2002, p. 174).
Só que a aceitação dela [colega de classe] perante a professora [de
Geografia] era melhor que a minha. (...) Porque as minhas atitudes na
classe eram incomuns. As da menina não. Perante a professora, ela era
“certinha” (...) Ela copiava a lição, tinha caderno caprichado. O meu
caderno era relaxado. Eu até tirava notas boas, até nas aulas de
Geografia. Eu adorava fazer trabalho manual, fazia vulcão com massa de
vidraceiro, fazia tudo aquilo.
118
Tânia critica o tipo de escola em que estudou e, logo em seguida,
aponta que as falhas na formação do professor dificultam a compreensão da
inquietude de alguns alunos:
Sobre isso, Tonelotto (2003, p. 209) diz que um aspecto que contribui
para as dificuldades experimentadas por crianças com TDAH é a expectativa de
que elas correspondam “a contento a um ambiente escolar que por si só é muito
exigente”:
Cortella (2003)
10
acredita que uma escola que respeita a diferença é
uma escola que ensina a viver em uma sociedade que também é heterogênea,
composta por diferentes grupos humanos, interesses contrapostos, classes e
identidades culturais em conflito. Quando a escola permite, através do processo
de aprendizagem, a convivência participativa, ensina como participar do restante
da vida social. A democracia é um processo de negociação permanente dos
conflitos de interesses e idéias. Para haver essa negociação permanente é
preciso o respeito à diferença.
10
Mário Sérgio Cortella é um dos interlocutores do vídeo Diversidade e exclusão: a sensibilidade
de quem as vive, produzido pela Faculdade de Educação da USP e pela Secretaria Municipal de
Educação de Campinas, com o apoio da FAPESP.
Trata-se de um ambiente restrito e que aprova um número limitado de
comportamentos admissíveis que, por sua vez, não devem ser apenas
bons, mas eficazes e que levem à obtenção de resultados acadêmicos
satisfatórios. Assim, atender às exigências desse ambiente envolve
ajustes referentes aos aspectos cognitivos, emocionais e sociais do
desenvolvimento da criança (LOPES, 1998; PAPALIA& OLDS, 2000) e
esse ajuste é particularmente difícil para o TDA.
Eu acho que também foi a escola em que eu estudei. Foi uma escola
mais rígida. Então ninguém podia conversar, ninguém podia fazer nada.
Mas mesmo assim eu não conseguia parar na carteira quieta. Então eu
acho que se os professores estivessem preparados para ver, eles teriam
visto que eu tinha alguma coisa.
119
Segundo Cortella, para que exista o respeito à diversidade na escola, é
preciso aceitar que todos que interagem no ambiente escolar têm interesses,
visões de mundo e culturas diferentes e ninguém tem o monopólio da verdade.
Daí a necessidade de negociações permanentes para que todos façam
concessões, e todos tenham ao menos parte dos seus interesses e valores
contemplados no espaço público da escola.
Sandra conta:
Aquino (2003, p.51) argumenta que se a indisciplina denuncia uma
recusa “a um tipo de vinculação inócua ou obsoleta entre os pares escolares”, ela
seria um indício de tentativa de participação democrática. Da mesma forma,
Maggi (2002) salienta que a resistência às normas, arbitrariamente impostas,
pode ser uma maneira de o aluno preservar a sua individualidade.
Para Patto (1999), a rebeldia e a contradição estão sempre presentes
no ambiente escolar e no discurso de quem nele convive. “A burocracia não tem o
poder de eliminar o sujeito: pode, no máximo, amordaçá-lo” (p. 417).
“Eu era muito teimoso, bocudo, briguento. (...) Fui expulso na quarta
série (...)” (Paulo). A convivência problemática aparece como um grande
perturbador na vida dos sujeitos desta pesquisa. A agressividade, segundo
Paulo e Sandra, era uma das reclamações que seus pais mais ouviam de seus
professores. Paulo, inclusive, chegou a ser expulso da escola por mal
Não cheguei a fazer [um comercial para a televisão] porque a professora
de Português me reprovou. (...) A pior professora do mundo! Eu
desparafusei uma vez a cadeira dela e montei a cadeira. Deixei lá, para
ela sentar e cair. Realmente funcionou. Desparafusei a cadeira inteira.
Olha que trabalho! Cheguei mais cedo na escola, montei a cadeira e tirei
os parafusos. Ela sentou e a cadeira desmoronou. Eu odiava aquela
professora. E eu repeti [o ano]...
120
comportamento. Sandra afirma resolver algumas situações com objetividade e até
agressividade:
Thaís conta que agiu com agressividade contra uma professora, ao se
sentir obrigada a fazer algo com o qual não concordava:
Para Barkley (2002), conforme já abordamos no terceiro capítulo, a
questão fundamental do TDAH está na inabilidade de inibir o comportamento, ou
seja, na dificuldade de esperar por períodos de tempo mais longos antes de
responder.
Cláudia, Paulo e Sandra declararam que tiveram poucos amigos
durante a infância, por causa da dificuldade de convivência com outras crianças.
Cláudia afirma que suas maiores dificuldades na escola estavam relacionadas
mais às emoções do que aos conteúdos disciplinares, e que a dificuldade de
relacionamento com outras pessoas é atribuída, principalmente, à impulsividade e
à agressividade:
O meu problema, as minhas dificuldades, se tratando de escola, eu dou
um jeito, eu me safo. Agora, de convívio com outras pessoas... Eu não
sei se é DDA ou não, mas eu tenho esse problema de convívio. Eu sou
uma pessoa intransigente, impaciente, impulsiva, agressiva. Pode se
r
que eu esteja naquele estado de humor péssimo, e a pessoa me faz uma
coisinha. Pronto, já está levando patada para tudo que é lado.
Por esse problema do autocontrole, da agressividade, então, certas
coisas eu não aceitava. Sempre tive bastante facilidade para esporte.
(...) E, na quinta série, eu estava jogando futebol, fui expulsa. Eu não
aceitei ser expulsa e a professora de Educação Física tentou me tirar do
campo, eu não aceitei. Até a gente teve um atrito corporal mesmo.
Porque eu sou assim, o que eu tenho que falar, eu falo mesmo.
Infelizmente, eu não sei falar eu gosto de uma pessoa se não gosto. (...)
Isso me faz mal, mas é uma maneira de me expressar. Um pouco mais
agressiva, talvez. Mas eu não fico adulando muito.
121
Sandra diz que tentava superar as suas dificuldades na sala de aula
chamando a atenção de alguma forma: “Eu fazia de tudo lá, eu ia mal na escola,
ficava de recuperação, brigava com os alunos, mentia (...)” Interessante notar que
Sandra atribui a dificuldade em prestar atenção às aulas à idéia de que não era
uma boa aluna: “eu era uma péssima aluna, eu não prestava atenção, não
freqüentava, não fazia lição, não entregava a lição no dia”. O autoconceito
negativo que Sandra deixa transparecer pode ser explicado pela presença
marcante, na sua fala, de rótulos, preconceitos e diferenças percebidos por ela.
Mais adiante, abordaremos como isso interfere na formação da auto-estima.
Sandra não era vista como merecedora de confiança, segundo diz, por
causa de suas atitudes incomuns. Por ter um histórico de desleixo com as
atividades escolares e por ter atitudes contestadoras mais agressivas, caía no
descrédito dos professores:
A necessidade de modificar a ordem naturalizada do espaço escolar
fica evidente na fala de Sandra:
Nesta pesquisa, a indisciplina foi apontada pelos entrevistados tanto
como uma dificuldade de controlar a hiperatividade, como uma maneira de
(...) eu acho que as pessoas que têm hiperatividade são pessoas que
podem promover mudanças, que têm coragem de promover mudanças,
de chacoalhar o ambiente para acordar. Porque as comuns não
enxergam. (...) Porque eu sou assim, o que eu tenho que falar, eu falo
mesmo.
(...) a professora de Geografia disse que eu não tinha feito a cópia que
ela pediu. Minha amiga também não tinha feito (...) e falou: “Professora,
eu fiz uma parte, a outra eu esqueci no carro da minha mãe”. (...) Mas eu
sei que a Cristina não fez aquilo lá (...) Só que a aceitação dela perante a
professora era melhor que a minha (...): “Em você eu confio, mas a
Sandra vai ter que me apresentar”. (...) Aquilo me desmontou, porque
realmente eu tinha feito e tinha esquecido de verdade e ela [a amiga] não
tinha feito, estava mentindo e ela [professora] tinha acreditado nela e não
em mim.
122
mostrar aos professores a reprovação da conduta deles ou da estratégia de aula
utilizada:
Então, o comportamento agitado de alguns alunos, percebido como
negativo pelos professores, poderia ser, na verdade, uma tentativa de os alunos
mostrarem que algumas práticas escolares precisam ser revistas. A indisciplina
“equivaleria ao saldo do embate histórico entre uma escola idealizada e gerida
para um determinado tipo de aluno, mas ocupada por outro” (AQUINO, 2003, p.
50).
No final dessa fala, a entrevistada esclarece que em algumas
disciplinas – aquelas das quais gostava, pelo conteúdo ou pelo professor – suas
notas eram boas. Isso pode ser explicado pelo valor que ela atribui aos
relacionamentos, destacados em vários momentos durante a entrevista:
Cláudia afirma que tem dificuldades em determinadas disciplinas
escolares:
Depende da dificuldade, depende da solução. Se for uma coisa de
matéria, tudo bem, eu me viro, eu dou um jeito, mas eu tento fazer de
qualquer maneira. Nem que eu tenha que pagar professora particular,
nem que eu tenha que fazer uma... dar um jeito, rebolar, mas eu consigo.
Agora se for para o lado pessoal, na hora de convívio com outras
pessoas, implicâncias ou alguma coisa que eu não estou gostando que a
pessoa está fazendo, o assunto muda. Muda muito (Cláudia).
Então, a minha dificuldade na escola é em algumas matérias. O meu
boletim era vermelho, mas naquelas matérias de sempre, que eram
Matemática, Química, Física. Inglês, de vez em quando, dependia do
professor que eu pegava. Agora as matérias de que eu gostava e de que
eu gosto, todas azuis (Cláudia).
O meu rendimento foi muito relativo. Eu digo relativo por quê? Eu ia bem,
eu atingia a média. Às vezes, eu tirava até mais do que a média. Mas o
meu problema não é com o grau, o meu problema é a matéria. Incrível, é
aquela matéria que determina o meu rendimento (Cláudia).
123
No entanto, mais adiante, aponta que seu problema pode estar
relacionado ao professor, atribuindo à postura pedagógica dos professores as
suas dificuldades ou facilidades no estudo:
Cláudia deixa transparecer que as dificuldades de relacionamento
comprometem o estudo à medida em que o sentimento que tem pelo professor é
transferido para a disciplina que ele leciona: “Por isso, eu gosto de Sociologia.
Geografia eu gosto, mas já peguei implicância com o professor (...)” Sobre o
quanto a dificuldade de relacionamento atrapalha na escola, diz:
Segundo O’Connell (1996), os problemas de socialização, e
especialmente o de baixa auto-estima, são os mais comuns em crianças
desatentas. Assim, a importância das relações interpessoais no processo
pedagógico não pode ser ignorada pelos profissionais da educação. Cuidar dos
aspectos afetivos e emocionais é fundamental para que a aprendizagem seja
significativa. Isso implica uma transformação na formação dos docentes. Sandra
90%. (...) Muito mais que matéria, muito mais que conteúdo. Conteúdo,
você se vira, relacionamento, não. Eu tenho amigos, poucos, de toda a
minha vida escolar, eu posso contar quantos, nos dedos, eu tenho, nos
dedos.
Agora, o que eu não gosto, não vai, não anda. (...) E na Faculdade eu
também estou sentindo essa dificuldade. E numa matéria específica:
Introdução à História. Eu não sei por que eu peguei antipatia com o modo
como a professora explica (Cláudia).
(...) professor, pra mim, tem que me instigar, tem que me fazer ficar presa
à aula (...) As professoras que eu já peguei uma antipatia, que seria a de
Geografia e a de Introdução à História, eu acho que elas não explicam
bem, elas não falam bem (...) a maneira como a pessoa passa para o
aluno é que faz ele se interessar ou não por aquilo (Cláudia).
Agora, as matérias de que eu gostava e de que gosto, todas azuis.
Geografia, História, Espanhol. Eu gostava de Artes, Educação Artística
(...) Gramática, mais a parte de Literatura, não a parte de gramática em si.
Dependia muito... Tinha áreas da Matemática de que eu gostava (...)
(
Cláudia
)
.
124
também revela a validade de ser estabelecida uma boa relação entre o professor
e os alunos:
Durante anos, o autoconhecimento que cada entrevistado tinha de si
fora marcado pelas dificuldades escolares, tanto no que diz respeito ao
aproveitamento nos estudos quanto ao convívio com outros alunos. Talvez por
isso, alguns revelem que se tornavam cada vez mais introvertidos e afastavam-se
do convívio social, até poucos anos atrás.
Segundo Moysés (1986), após tantas experiências de fracasso, o aluno
pode se perceber como menos capaz e menos aceito, o que aumenta a
possibilidade de outros fracassos, por comprometer a formação da auto-estima.
Nos casos estudados aqui, foi o que aconteceu até determinado momento. “Hoje
já não me culpo mais...” (Paulo). A auto-estima baixa limita a superação das
dificuldades porque a pessoa tem como parâmetro de desempenho o sucesso de
outras pessoas.
Sandra comenta sobre o comportamento que apresentava, ao perceber
a persistência de suas dificuldades. Embora, para seus professores, o
comportamento aparentasse ser ofensivo, a sua fala revela que ele se
configurava como uma maneira defensiva de enfrentar o problema:
O que “pega” é o professor. Não “pega” a matéria. Se eu gosto do
professor, eu vou, se eu não gosto, já era. Não tive dificuldade, não. Eu
nunca aprendi nada. Se eu falar para você o que é uma oração
adversativa ou... não sei nada. Mas eu... se eu estou com a matéria ali, se
o professor está expondo, se eu gosto do professor, se o professor me
trata bem, que é o meu caso, nossa! Agora, bastou me virar a cara para
j
á... Eu não me preocupo com o fato, mas com a pessoa. Eu fui muito
bem em Português.
125
A maneira pela qual os alunos se vêem ou se percebem, de acordo
com Tonelotto (2002), é um dos grandes responsáveis pela interferência na
aprendizagem. A hiperatividade, segundo Villar e Polaino-Lorente (1994), é
associada à auto-estima negativa, por causa da falta de adaptação social com as
pessoas com as quais o aluno convive. A auto-estima é negativa quando há
grande discrepância entre o que se gostaria de ser e aquilo que se pensa que é; a
auto-estima é positiva quando a discrepância é pequena. Isso pode ser
comprovado também em nossa pesquisa: “(...) eu sempre me vi diferente. Tanto
que eu tive depressão por me achar diferente” (Tânia, Anexo 3). A entrevistada
acredita que se o problema tivesse sido descoberto antes, ela não teria passado
por tanto sofrimento: “Porque eu fiquei, depois que eu me formei no colégio, nove
anos sem estudar, de medo de prestar o vestibular, de medo de ‘Eu sou burra, eu
não entendi nada’, porque eu esqueci tudo que eu aprendi.”
Além de, em alguns momentos, as dificuldades que os entrevistados
sentiam terem sido percebidas por eles mesmos, em outros, eram apontadas e
reforçadas pela maioria de seus professores: “Eu começava a desenhar, perdia a
hora e não copiava nada. (...) ‘Mas você não copiou nada!’ Nossa... aí
desmoronava o meu dia, eu ficava chorando” (Sandra).
Os entrevistados relataram o esforço que faziam para atingir as
expectativas de seus professores, apesar do incontrolável tédio que sentiam
Cheguei na terceira série já com aquele rótulo: “Sandra não aprende”. E
eu me rotulei mesmo: “Eu sou burra, eu não aprendo.” (...) Eu tentava
chamar a atenção de toda forma, para aliviar a tensão dessa minha
falha, entre aspas. Eu fazia de tudo lá, eu ia mal na escola, ficava de
recuperação, brigava com os alunos, mentia, direto, nossa! (...) a
professora começou a perceber, sem diagnosticar o problema, mas
começou a rotular novamente. Só que eu também dava motivo, eu tenho
essa culpa também (...)
126
durante as aulas. A busca de outros estímulos surgia, muitas vezes, sem que
tivessem consciência da intenção: pediam para sair da sala de aula, faziam
desenhos, tinham outros pensamentos que não se relacionavam ao assunto do
momento. Entretanto, pelo menos três dos entrevistados (Cláudia, Paulo e
Sandra) relataram momentos de alto grau de concentração, em que a dificuldade
era parar de estudar.
Eram reais as dificuldades de aprendizagem encontradas por Cláudia,
Paulo, Sandra, Tânia e Thaís, mas não por falta de capacidade para aprender. A
inquietação e o tempo reduzido de concentração durante as atividades faziam
com que eles apreendessem apenas parte do que era ensinado pelos
professores. “(...) eu ia mal na escola, tinha medo de que a professora visse a
minha prova para falar que eu tinha errado, porque eu realmente não conseguia
prestar atenção na aula” (Sandra).
As conseqüências eram poucas anotações no caderno e notas baixas.
Os rótulos alusivos ao fracasso escolar foram inevitáveis: “Os alunos
aproveitavam da situação. Falavam ‘a Sandra é burra, só tira nota baixa...’ ”
(Sandra). Depois, acreditar no fracasso foi o próximo passo:
Aquele medo da escola, aquela frustração, em relação aos professores e
à escola. E por isso eu tirava nota baixa. (...) Eu cheguei, nessa fase, a
criar fobia da escola. Eu não podia ver caderno, não podia ver prova, não
podia nada, eu não queria estudar na escola (Sandra).
“Ah! A Sandra é burra.” (...) Isso me detonava. Chegou na sétima série.
Eu já estava com aquela coisa da auto-afirmação. “Eu tenho que prova
r
que eu... Não é possível ser tão ruim assim.” Aí eu já desisti de tudo.
“Não vou fazer Faculdade, não vou fazer nada (...)” (Sandra)
127
Esse processo de configuração do fracasso escolar é confirmado por
Pisecco (2001), que atribui aos problemas comportamentais e de desempenho
acadêmico o fato de escolares desatentos terem uma avaliação bastante negativa
de si mesmos e, posteriormente, este aspecto ficar consolidado na adolescência.
Entendemos que o professor deve conhecer o TDAH e valorizar as
características positivas dos alunos com o transtorno, para inseri-los alunos no
processo pedagógico:
A entrevistada chama a atenção para a necessidade de o professor
estar aberto à diversidade humana, para traçar metas de trabalho com os
alunos, a fim de integrá-los no processo de ensino e aprendizagem:
A sua fala revela uma prática comum nas escolas (e na sociedade): a
homogeneização dos sujeitos, por negar a diversidade, acaba por promover a
exclusão daqueles que não se enquadram aos padrões homogeneizantes. A
heterogeneidade humana, por outro lado, pode possibilitar o surgimento de
talentos inovadores. Nesta pesquisa, todos os entrevistados demonstraram muita
Ela era uma excelente professora. Soube diagnosticar o problema e
trabalhava a parte que eu tinha deficiência, (...) sempre me valorizava no
que eu sabia. O que é importante. Eu tirava só nota oito, nove, dez com
ela. Aí entra a questão do professor (Sandra).
(...) as pessoas interpretam de uma forma errada a criança que tem
hiperatividade. É isso que eu sinto. “Essa criança é agressiva, essa
criança tem problema, essa criança não aprende, essa criança não sei o
quê. (...) Acho que ela [professora] tem que saber lidar com cada um em
suas diferenças. E elas não sabem fazer (Sandra).
A curiosidade me deixava tensa, e ficava na aula aquela coisa da
curiosidade que me fazia buscar. Coisa que a outra só passava cópias e
ficava me detonando na classe. Aí os alunos aproveitam da situação e
fazem o quê? “Ah... a Sandra é burra. A Sandra não sei o quê. Tirou nota
baixa.” Eu usava óculos. [E os colegas:] “Quatro olhos!” Sabe? Isso me
detonava. Chegou na sétima série. Eu já estava com aquela coisa da
auto-afirmação (Sandra).
128
habilidade para criar soluções inovadoras para os problemas percebidos no
ambiente que os cerca. Aliás, parece que foi, em parte, graças a essa
característica que conseguiram superar as dificuldades e prosseguir os estudos
até o Ensino Superior. Essa habilidade também funcionou como uma mola
propulsora para a auto-afirmação de cada um. Infelizmente, esse mecanismo de
superação dos problemas decorrentes do TDAH não parece ter sido valorizado na
escola em que estudaram.
“Há que se considerar, portanto, que não são os problemas de atenção
em si que ocasionaram a discriminação, mas sim os comportamentos a eles
associados” (TONELOTTO, 2002, p. 38). A necessidade de reconhecimento que
caracteriza os seres humanos deve ser tratada com relevância quando se faz
referência à diversidade humana na escola. Para interpretarmos quem somos,
dependemos do reconhecimento que nos é dado pelos outros. “Um ponto central
para afastar o preconceito é uma visão de alteridade, em que se possa olhar o
outro como outro e não como estranho” (CORTELLA, 2003).
Para Cortella (Ibid), o respeito à diversidade humana é um processo
gradativo, que é complexo, que tem que ser construído aos poucos. Uma
condição para que isso aconteça é a valorização da diversidade como um
elemento enriquecedor do desenvolvimento pessoal e social. Outra condição é
criar um bom clima na escola e na sala de aula. É valorizar os aspectos afetivos e
emocionais, que são, às vezes, os que têm mais incidência no aprendizado
significativo por parte os alunos. A partir da fala de Sandra, pensamos que esse
problema poderia ser minimizado se a formação do professor for contemplada
com estudos críticos sobre o TDAH:
129
O processo educativo contribui para a formação das identidades, que
depende dos processos de socialização e de ensino e aprendizagem. A resposta
que a educação pode oferecer à diversidade e à desigualdade dentro das escolas
talvez seja o desafio mais importante enfrentado atualmente pelos sistemas de
educação e pelos professores (CORTELLA, 2003).
Goergen (2004), afirma que a estigmatização de certas pessoas
acontece fundada no comportamento diferente em relação aos indivíduos ditos
normais, no conjunto de normas e valores que a sociedade estabelece em
determinado momento histórico. E a escola participa desse processo, ao
selecioná-las segundo um modelo indefinido de normalidade.
Isso significa que o professor deve conduzir o trabalho pedagógico com
vistas à diversidade de comportamentos, e formas de pensamento, apresentados
pelos alunos. Como vencer esse desafio quando se constata que a sociedade
tende a uma homogeneização crescente e redutora?
A falta de compreensão de suas características individuais e de suas
dificuldades, tanto por parte dos professores como dos colegas, marcaram
profundamente os sujeitos dessa pesquisa. É claro que a não aceitação das
diferenças não é um problema exclusivo da escola, mas esta, como uma
representação da sociedade, reflete as manifestações sociais de convivência.
Gomes (1999) afirma que “a experiência escolar é avaliada sem que a escola
considere a maneira como ela mesma se relaciona com a subjetividade do aluno.”
Teria bloqueado a formação da baixa auto-estima, que eu acho muito
perigosa. (...) É uma coisa grave, porque a pessoa se sente mal, não
consegue se encaixar na sociedade. Ela vai criando... ela mesmo vai se
diminuindo. (...) Eu acho que se ele [professor] soubesse lidar, ele iria
bloquear esse tipo de sentimento e incentivar a pessoa (...)
130
Assim, a escola participa do processo de estigmatização e discriminação dos
alunos.
5.2. Formação de professores
Elencamos para a discussão sobre a relação entre formação docente e
TDAH os seguintes tópicos: desconhecimento dos professores sobre o transtorno,
formação de professores críticos, ensino significativo, participativo e questionador,
valorização das características positivas de cada aluno, integração entre
educação e outras áreas.
Para Tonelotto (2002), a qualidade da relação que o aluno mantém
com seu professor interfere na forma com que aquele se percebe. No
depoimento dos entrevistados nesta pesquisa, percebemos a inabilidade dos
educadores em lidar com as dificuldades daqueles, enquanto alunos, e as suas
próprias dificuldades em trabalhar com as diferenças. Os entrevistados
demonstram, agora na idade adulta, facilidade para lidar com o conhecimento
adquirido através do estudo sistemático. Entretanto, isso não acontecia nas
primeiras séries escolares. O fato de terem se sentido diferentes dos demais –
fosse por desatenção, por falar e agir sem pensar ou por não conseguirem ficar
quietos durante as atividades escolares – e por não terem sido compreendidos
pela maioria de seus professores e colegas parece ter influenciado a auto-estima
deles. Respondendo à pergunta sobre o que teria mudado na sua formação, se
tivesse professores preparados para trabalhar com alunos que apresentam
TDAH, Sandra afirma que
131
Os entrevistados atribuem muitas das dificuldades encontradas durante
a escolaridade ao desconhecimento dos professores sobre o transtorno.
“Não tem preparo nenhum. Nenhum. Porque o professor não sabe o que é,
muitas vezes” (Cláudia). Várias dificuldades observadas pelos entrevistados no
ambiente escolar parecem ter surgido a partir da dificuldade em manter a
atenção. Cláudia critica o julgamento equivocado tecido pelos professores ao
explicarem o problema:
Tânia acredita que sua vida escolar teria sido diferente, se os
professores conhecessem o TDAH:
Cláudia faz uma revelação muito séria: “Ou então, muitas vezes,
prefere que o aluno durma para não ter (...) problema com aluno.” A sua fala
sugere que, como, muitas vezes, esses escolares atrapalham o ritmo de estudo
da turma, o professor satisfaz-se com a “neutralização” da presença deles na sala
de aula.
E, às vezes, encara isso até como falta de educação do aluno. Mas, às
vezes, não é. Reclama do aluno e como o profissional não sabe dizer o
que é, já: “Esse aluno é malcriado, mal educado, ele não tem compostura
na sala de aula.” (...) Se tivesse professores preparados para trabalha
r
com o déficit de atenção, teria mudado o quê?: Tudo! Não teria sido muito
difícil, teria sido melhor, muito melhor. (...) Eu não teria as dificuldades
nas matérias que eu tive e teria muito mais facilidade nas que eu já tinha.
(Cláudia)
Então eu acho que se os professores estivessem preparados para ver,
eles teriam visto que eu tinha alguma coisa. Eu teria sido diagnosticada
antes e não teria passado por tanto sofrimento que eu passei até chega
r
na faculdade. (...) se eu fosse diagnosticada antes, eu acho que teria sido
melhor a minha vida acadêmica. A dificuldade teria sido menor. (Tânia)
Teria bloqueado a formação da baixa auto-estima, que eu acho muito
perigosa. Eu acho que o ponto fundamental está aí, porque os que não
sabem lidar, ficam rotulando como se a gente fosse um tapado, como
se fosse uma pessoa problemática, e na verdade não é. É diferente,
não um tapado.
132
Tão importante quanto a avaliação correta do TDAH, está o seu
subdiagnóstico, como alerta Paulo, que é professor e estudante de Psicologia:
O entrevistado refere-se ao subtipo de TDAH sem hiperatividade. Além
da dificuldade de o professor lidar com as características mais evidentes do
transtorno – como inquietação, impulsividade, no caso dos subtipos com
hiperatividade ou combinado –, existe o obstáculo da distinção da origem da
desatenção apresentada por alguns alunos – no caso do subtipo sem
hiperatividade –, para que seja comprovado que se trata de TDAH, e não outro
tipo de problema, como a dislexia, em que a falta de atenção também geralmente
está presente, mas não como origem das dificuldades de aprendizagem.
Tânia disse que a hiperatividade impelia-a a sair da sala de aula
constantemente, no início do curso de Psicologia, e que isso a atrapalhou muito.
Depois faz uma importante revelação sobre as suas aulas no Ensino Superior,
mostrando a necessidade do conhecimento sobre o TDAH pelos professores: “Eu
tive a sorte de que a maioria dos meus professores conhece o problema. (...) Eles
me apóiam, eles me ajudam no que for preciso. Sabem das minhas dificuldades,
me incentivam a fazer as coisas.” Assim como para Thaís, o Ensino Superior não
tem trazido para Tânia grandes problemas. Entretanto, com uma diferença: a
facilidade é explicada pelo fato de a maioria dos professores conhecer o
transtorno, e não por haver pouca exigência nos estudos.
Porque tem o caso dessas crianças que não têm a hipercinesia. Têm
todos os traços, todas as características, essas crianças estão
subdiagnosticadas. Então eu acredito que esse [índice] de 3 a 6% é bem
equivocado, tem muito mais que isso. E há as próprias pessoas que não
assumem [o problema] ser tratado como um transtorno. (Paulo)
133
Tânia atribui o seu sucesso nos estudos no Ensino Superior também
ao apoio que recebe dos colegas de classe: “Mas eu tenho a sorte que eu tenho
meus amigos que sabem do transtorno. (...) eles me ajudam muito. (...) até os
professores mesmo, como eu já disse, eles me ajudam muito nessa parte de ter o
transtorno.” O grau de satisfação com o Ensino Superior, mostrado por ela, revela
uma valorização positiva de sua auto-estima.
Além de constatarem alguns problemas na formação de professores,
três entrevistados apontam alguns caminhos para a superação do problema, ao
falarem sobre os profissionais que querem/procuram ser:
a) uma professora que saiba motivar a aula:
Uma professora com essas características contribuiu para que Cláudia
optasse pela licenciatura em História:
b) um coordenador dinâmico e preocupado com a interação entre seus pares:
Porque eu vou ver se eu consigo ser diferente dos outros professores. Eu
vou tentar fazer o aluno ficar preso à minha aula, porque o DDA não
consegue ficar preso à aula, por quê? Porque tem coisas mais
interessantes ao seu redor. (...) Eu vou ficar “prendendo” os meus alunos.
Vão prestar atenção em mim. Dar um tempo para fazerem as
brincadeiras, as piadinhas, porque tem que ter (Cláudia).
Então eles [as pessoas da Diretoria de Ensino] estão se acostumando
com meu jeito e está fluindo muito bem. E hoje se orgulham de me ter eu
como coordenador lá [na escola em que trabalha]. Eu trouxe muitas
novidades (...) (Paulo)
[Foi] mais por causa da profissão, de professor, que tive que amadurecer
socialmente muito rápido, porque eu era muito fechado. Quando eu
comecei a fazer este curso [Psicologia], até antes de eu descobrir a
hiperatividade, [foi] para buscar esse lado que eu nunca tive, de amigos.
(...) Hoje eu me dou muito bem com as pessoas, mas pelo motivo de ser
muito autêntico, e não sou falso (Paulo).
(...) mas só que me deu aquilo “Eu vou fazer História mesmo”, no terceiro
Colegial. Porque eu tinha uma professora dinâmica, dava exemplos na
aula que eram exemplos atuais, não exemplos antigos (...) (Cláudia)
134
c) apoio para outras pessoas com o problema:
Sandra também faz um desabafo ao falar sobre o tipo de profissional
que as pessoas devem ser:
Em suma, os entrevistados sugerem a formação do profissional
crítico, pesquisador, que busque informações sobre os problemas que surgem no
cotidiano da profissão. No caso do professor, a característica de profissional
crítico e reflexivo é muito importante, dada a impossibilidade, na graduação, do
estudo de todos os problemas que interferem na aprendizagem. Assim, ele
precisa buscar, continuamente, a sua formação, mesmo fora da Universidade.
Segundo Abramowicz (2002), o professor deve instigar seus alunos,
ensinando e aprendendo, vivendo a unidade dialética teoria-prática; deve ser um
investigador, para refletir sobre sua ação e suas práticas; deve ser também um
pesquisador, já que a pesquisa é a base fundamental da docência.
Além de muito estudo e vontade de querer mudar, é necessário que o
professor desenvolva uma capacidade de observação para perceber o que
E a minha indignação, principalmente, é com os profissionais que não
são profissionais. Porque, hoje em dia, a base da cidadania é o quê? É
quebrar o preconceito, e eles não fazem isso. Porque eles rotulam as
pessoas e não deixam que essas pessoas apareçam. Eu acho que eles
devem, por serem profissionais, conhecer esse tipo de [problema]
obrigatoriamente.
E assim eu vou conquistando meu aluno, porque tem mãe que enxerga
como eu. Eu tenho aqui [na escola em que a entrevistada é proprietária]
aluno que tem dificuldade, e a mãe, a primeira coisa quando ela tem um
problema, recorre à escola. Quando tem o mesmo problema que eu, se
tem hiperatividade, se tem déficit de atenção. A primeira coisa que a mãe
faz é recorrer à escola, aqui. “Me ajuda, pelo amor de Deus. O que eu
tenho que fazer?” Sendo que, na escola lá [na escola em que a criança
estuda regularmente], falam que é problema da família, problema da
mãe, problema de falta de responsabilidade dos pais. Acho que a
sociedade ou muda ou muda
(
Sandra
)
.
135
precisa ser modificado no cotidiano da sala de aula e buscar novas possibilidades
de ensino e aprendizagem.
Em alguns trechos da entrevista, Cláudia deixa transparecer que é o
desafio que os professores impõem aos alunos que atrai a sua atenção:
Da mesma forma que gosta de professores que a desafiam, ela
também costuma(va) desafiar os seus professores:
O seu desafio consistia em mostrar que ela não era o problema, mas a
forma de ensinar, utilizada pelas professoras. Cláudia leva-nos a pensar que,
quando o professor consegue surpreender, sendo um professor também disposto
a enfrentar e a propor desafios, o ensino se torna mais interessante para os
alunos.
A experiência de Cláudia evidencia que o ensino deve ser
significativo, participativo e questionador, deve motivar e envolver os alunos,
a fim de que eles não sejam impelidos a buscar, durante as aulas, atividades
paralelas que liberem a sua energia e criatividade. O aluno precisa ser
Quando eu tenho uma matéria de Sociologia para estudar ou fazer um
trabalho, eu pego à meia noite. Eu viro a noite inteira, sem café, sem
nada. Meu olho quer fechar, quer dormir, mas eu não consigo. Eu perco o
sono, de tão interessante que está aquele estudo. (...) Eu acho que o
DDA tem esse problema. Quando a coisa o instiga, faz você correr atrás.
Você não larga, mas nem que você queira.
Eu encaro como um desafio que eu faço para a pessoa. A pessoa me fez,
e agora eu estou retribuindo (...) (Cláudia)
Espanhol, a professora não fazia ninguém ficar preso na aula. (...) Eu
chegava em casa e me matava de estudar. Por quê? Eu queria desafiar a
professora. Chegar pra ela e falar: “Você é péssima. Eu não presto
atenção na sua aula porque eu não preciso disso”. (...) Tinha uma outra
professora, de Geografia, também a aula dela parecia uma feira (...)
Chegava na hora da prova, eu sempre ficava com média, seis e meio,
seis, sete, oito. Chegava em casa, o livro... abria a cabeça e colocava ele
dentro
(
Cláudia
)
.
136
incorporado ao processo pedagógico, para que se sinta motivado a aprender, pois
a passividade durante as aulas leva à dispersão. Para isso, todas as suas
atividades devem ser consideradas importantes, o trabalho pedagógico deve
partir de seu interesse, a criatividade precisa ser incentivada e valorizada. O
professor deve permitir que os alunos opinem e façam indagações.
Como Cláudia atribui ser muito importante que o professor proponha
desafios aos alunos, enfatizamos o que já dissemos no Capítulo 1, com Castanho
(2005), sobre o uso da problematização, do questionamento, gerar inquietude,
que pode levar à produção do conhecimento. Acreditamos que o desafio sugere a
idéia de movimento para novas descobertas, em contraposição às noções já
previstas, estáticas.
Na investigação feita, é clara a tendência que os entrevistados têm
para a execução de atividades de forma inusitada, como alternativa às
dificuldades que sentem. Apesar de terem aproveitamento abaixo das
expectativas de seus professores, os entrevistados mostraram, além de
habilidade criativa para superar as dificuldades encontradas no estudo,
capacidade para exercer suas atividades profissionais. Paulo, Sandra e Thaís
desenvolveram, ao longo da vida escolar, métodos de estudo, mesmo antes de
terem ciência do diagnóstico do transtorno ou conhecerem o tratamento. Tanto
Paulo quanto Thaís encontraram uma maneira de resgatar os conteúdos que
deveriam estudar antes das provas:
Na minha primeira faculdade, sempre que chegava época de prova, eu
xerocava o caderno dos meus colegas, porque eu não tinha nada
anotado. Mas, eu ia muito bem nas minhas provas (Paulo).
Só quando chegava perto da prova, eu pegava o caderno de alguém só
para xerocar (...) (Thaís).
137
A justificativa para essa atitude é:
Sandra também tinha dificuldade para registrar em cadernos os
conteúdos estudados, e, na vida adulta, a dificuldade em desempenhar atividades
burocráticas continua. Ela fala da dificuldade que sente quando tem de se
adequar a esquemas predeterminados:
No entanto, na sua própria escola, sente-se à vontade para criar
formas de desempenhar melhor as suas atividades, preparando ela mesma o
material didático:
Se eu vou escrever uma palavra muito longa, às vezes, no meio dela eu
j
á começo a escrever o final; a minha mente já está passando para a
próxima. O meu caderno é todo rabiscado, todo cheio de rasuras, sem
contar a caligrafia, que é horrível (Paulo).
Eu dou aula numa escola em que eu não consigo apresentar o
semanário, mas minha aula é muito bem dada. Eu não sei explicar como.
A diretora vive me cobrando. Às vezes, ela fica brava ou tomo até
advertência, mas eu tenho um trabalho que ninguém questiona, porque é
bem feito mesmo. (...) Realmente, o trabalho é legal, mas eu me perco
muito nessa parte burocrática. Eu não gosto de documento, eu não tenho
paciência de acabar um trabalho iniciado. Não tenho paciência de
preparar aula. (...) Então, eu acho que isso me prejudica demais porque
as pessoas não entendem por que. Acham que é desleixo, acham que eu
sou relaxada, acham que eu não tenho capacidade, julgam o não-feito e
j
ogam no trabalho. Pegam as piores características minhas e jogam pro
trabalho. “Se a Sandra é assim, ela deve ser uma péssima profissional.”
Na verdade, não é assim (Sandra).
Eu desenho minhas apostilas, eu passo para o computador, imprimo.
Tudo eu faço sozinha. (...) Só dá uma carga muito grande de estresse. Eu
não consigo comprar uma apostila pronta e dar para os meus alunos.
Meus desenhos eu faço todos, na mão [mostra alguns desenhos que já
fez]. Todo aquele conhecimento que as pessoas demoram para ter no
trabalho, eu tenho essas coisas. Eu acho muito legal isso (Sandra).
Porque eu não tinha paciência para anotar nada. E mesmo cedo [mais
nova] que eu tinha [livros e cadernos], eu não tinha paciência para
guardar, porque eu achava que eu nunca mais ia precisar ler (Thaís).
138
Paulo evita as atividades em que seu desempenho não é satisfatório e
substitui por outras que permitem que ele tire proveito da hiperatividade:
A vivência dos entrevistados aponta a vantagem de se permitir que a
pessoa com TDAH tenha liberdade para optar pelo método preferido para estudar
e trabalhar:
Dessa forma, o resultado do trabalho é agradável para as demais
pessoas e recompensador para quem o executa:
A escolha profissional de Thaís permite que ela tire proveito das
características do transtorno no desempenho de suas funções docentes:
Quando eu vejo que vou ter dificuldade, eu não faço. Eu procuro evitar,
porque eu sei que eu não vou conseguir. (...) eu procuro trocar tarefas,
canalizar energia, todas essas coisas assim. E fujo de papel. (...) Não fala
como eu tenho que fazer, não adianta. Eu não vou fazer daquele jeito
mesmo. Eu faço do meu jeito. Ela [diretora da escola] falou que tinha que
ter pauta. Ela não falou que a pauta [do HTPC – Hora de Trabalho
Pedagógico Coletivo] era para ser feita no papel. [Em trecho anterior da
entrevista] Então eu uso máquina fotográfica digital direto. Todos os
assuntos eu fotografei. Aí eu ligo a máquina na televisão e vou fazendo
toda a minha reunião com a
q
uelas fotos.
E eu estou me dando muito bem nessa reunião, porque geralmente HTPC
professor nenhum gosta. E lá agora eles estão começando a gostar (...)
Então, eu tenho que fazer as coisas do meu jeito, e minha diretora
descobriu isso em mim. Ela só tem que me pedir as coisas, e mais ou
menos passar as diretrizes, e eu me viro (Paulo).
Mas no trabalho, eu nunca tive problema nenhum, acho que, pelo fato de
você trabalhar com criança pequena, você tem que ter bastante energia.
Então a hiperatividade num certo ponto ajudava, que não cansava,
cantava, pulava o tempo todo, até prendia a atenção das crianças. Era
uma coisa boa. Mas, em relação às crianças, eu sempre tive paciência,
não influenciou muito.
Se você aprende a canalizar essa energia (...) você se destaca entre as
pessoas. Que é o que acontece comigo hoje em dia. (...) eu poderia
colocar o TDAH a meu favor e não contra mim. Isso foi muito importante:
pegar todas as características positivas, que são a impulsividade, a
criatividade (sou muito criativo – desde garoto, eu sempre me destaquei
pela criatividade), e canalizar isso ao meu favor. Isso é muito importante
(Paulo).
139
Essas experiências apontam para a necessidade de o professor
considerar as variadas formas de estudo e permitir que os alunos escolham,
sempre que possível, aquelas que melhor permitirem o aprendizado, ou seja, o
professor deve valorizar as características positivas de cada aluno,
aproveitando-as no processo pedagógico.
Alunos com TDAH podem precisar de ajuda para encontrar prazer na
sala de aula, pois aprendem a partir do que lhes agrada. Atividades que
estimulem a criatividade podem facilitar o interesse pelo estudo. Geralmente, os
próprios alunos sinalizam como tornar a aula mais prazerosa. O professor deve
estar atento à leitura que os alunos fazem de sua atividade com eles.
A recusa para fazer algumas atividades da maneira imposta pelos
professores é justificada pelos entrevistados, pela necessidade de muita
motivação para desenvolver determinadas atividades:
Eu só fui dormir aquele dia às cinco da manhã, porque eu fechei tudo. Eu
não estava mais agüentando, mas eu queria continuar fazendo. (...)
Deitei-me na cama e fiquei enrolando mais de uma hora pra pegar no
sono, de tanto que estava interessante. Eu acho que o DDA tem esse
problema. Quando a coisa o instiga, faz você correr atrás. Você não
larga, mas nem que você queira (Cláudia).
Então se eu gosto, eu vou atrás, eu me destaco no que eu gosto. Agora,
naquilo que eu não gosto, eu me mantenho como uma criança de cinco
anos porque eu não consigo, é um bloqueio. Eu mostro agressividade
(Paulo).
Precisamos aprender a compreender a significação de um silêncio, ou de
um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom menos cortês com que foi
feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um texto para se
r
constantemente “lido”, interpretado, “escrito”, “reescrito”. Neste sentido,
quanto mais solidariedade exista entre o educador e os educandos no
“trato” deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem
democrática se abrem na escola (FREIRE, 1996, p.109).
140
“Para falar, sempre tive bastante facilidade. Então quando tinha que
expor alguma coisa em sala, geralmente, o grupo fazia o teórico e eu falava (...)”
(Thaís). Fazer o que gosta, ou o que tem facilidade, parece a solução para os
problemas relacionados ao TDAH. Talvez este seja o maior desafio para os
educadores: permitir que o aluno aprenda a partir de suas preferências, mas criar
mecanismos para que ele aprenda aquilo de que ainda não gosta, mas
necessário.
As falas de Cláudia, Paulo e Thaís levam-nos a pensar que
preferências, rejeições, estado de ânimo, quando aceitos como ponto de partida,
permitem que o professor crie condições para compreender os sentimentos de
seus alunos e solucione obstáculos à construção do conhecimento (DAVIS e
OLIVEIRA, 1994).
Sobre isso, Abreu (2000, p. 96) afirma que
Abreu diz que muitas escolas funcionam como uma espécie de prisão,
onde os professores têm a função de controlar a presença, a disciplina e a
memorização de informações que raramente são transformadas em
conhecimento. Segundo ele, em cursos pré-vestibulares, no entanto, o ensino é
visto pelos alunos como interessante, os professores são considerados sensatos
e a disciplina, necessária. A explicação para tal mudança é a atitude dos
professores, que não estão controlando os alunos, mas estão ao seu lado, “para
ajudá-los naquilo que é o objeto de desejo deles: passar no vestibular” (p.97). O
É interessante observar como uma criança, mantendo sua autonomia,
motivada por seus valores, é capaz de disciplinar-se e ficar horas
tentando montar um jogo ou disputando uma partida de futebol. É claro
que precisamos agregar outros valores ao universo das crianças, mas
sem destruir os que elas já possuem.
141
autor lembra, com pesar, que a Universidade, com poucas exceções, repete os
erros da Educação Básica.
Para Abreu, o ensino deve ser interessante, saboroso, o que só é
possível se os professores ouvirem os alunos, conhecerem suas histórias
pessoais, seus desejos e sonhos, e, assim, descobrirem o que os motiva. Esse
parece ser um caminho para a educação de alunos com TDAH, também sugerido
por alguns dos entrevistados nesta pesquisa.
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), para que haja
argumentação, ou seja, para que se convença alguém por meio da discussão, é
necessário que se consiga a adesão prévia a certas teses: antes de se apresentar
a tese principal ao interlocutor é preciso apresentar uma tese de adesão inicial.
Transpondo essa teoria para o nosso trabalho, significa dizer que os professores
devem identificar quais são os pontos de partida de raciocínios de seus alunos –
por exemplo, fatos, verdades, presunções, valores e premissas, voltando à teoria
de Perelman e Olbrechts-Tyteca –, em seguida, propor uma idéia com a qual eles
possam concordar, para, então, propor a tese principal – o conteúdo que se
pretende ensinar.
Abreu (2000) alerta para o fato de que argumentar é convencer e
persuadir, mas não é impor a própria vontade. Convencer é vencer junto com o
outro, e saber persuadir é preocupar-se com o outro, a partir de suas
necessidades, sonhos e emoções.
Argumentar é motivar o outro a fazer o que queremos, mas deixando que
ele faça isso com autonomia, sabendo que suas ações são frutos de sua
própria escolha. Afinal, as pessoas não são máquinas esperando se
r
programadas. Persuadir é ter certeza de que o outro também ganha com
aquilo que ganhamos (p. 93).
142
Por isso, concordamos com Santos (1996), ao apontar a necessidade
de se colocar o conflito cultural no centro de um projeto educativo emancipatório.
Acreditamos que a reflexão sobre as práticas escolares é um importante
instrumento para desvendar a teia de significados (político, cultural, econômico,
pedagógico, entre outros) presentes na escola e no processo de ensino.
Assim, como Camargo (2002, p. 223), pensamos que não basta
“apenas enxergar e aceitar os alunos como diferentes. É necessário, também,
conhecê-los mais, para compreendermos melhor as suas expectativas e os seus
procedimentos.” Pensar em docência, então, requer que se considere a formação
político-cultural de professores para que os mitos presentes na escola, como o de
igualdade de oportunidade para todos, sejam transformados em práticas
pedagógicas que valorizem a cultura dos alunos e as diferenças. Para que isso
aconteça, é necessário lutar contra a ideologia hegemônica do capitalismo, que
propicia que aconteça justamente o contrário. Para Caiado (2003, p. 133),
“Então eu acho que se os professores estivessem preparados para ver,
eles teriam visto que eu tinha alguma coisa (Tânia).” Essa fala aponta para a
importância de se repensar as práticas escolares e de o professor compreender
quando deve buscar auxílio de outros profissionais para melhor encaminhar o
processo de ensino e aprendizagem de alunos com TDAH. Entretanto, é
essencial que essa busca ultrapasse a visão simplista de busca do diagnóstico do
transtorno, que impede que se chegue ao conhecimento sobre as possibilidades
A formação do professor deve considerar a heterogeneidade humana [...]
Questionar a determinação biológica não é negar a dimensão biológica. A
diversidade que há entre as crianças tem raízes históricas, culturais,
sociais e biológicas. Não há por que negar nenhuma dimensão do real. O
professor precisa conhecer as raízes da diversidade humana e, assim,
aprender a desenvolver e criar uma práxis pedagógica que impulsione o
desenvolvimento de todos.
143
de funcionamento dos problemas de desenvolvimento. Segundo Werner (1997, p.
198),
Thaís responde, ao ser questionada sobre o que teria mudado em seu
desempenho escolar, caso os seus professores conhecessem o transtorno: “Eu
acredito que muito pouco, porque a hiperatividade era muita e acho que isso teria
mudado muito pouco”. Por isso, Tânia acredita na divisão de tarefas ao dizer
que, se o professor tiver boa formação para trabalhar com o TDAH, poderá fazer
um encaminhamento adequado a outros profissionais e somar esforços para
contornar os problemas: “Fazendo um trabalho junto com um psiquiatra, com
psicólogo, eu acho que já é meio caminho andado. O professor saber detectar e
dar um pouco mais de atenção para esse aluno, já é meio caminho andado.”
Assim também, nós pensamos que o professor é muito importante na
avaliação do transtorno, pelo tempo de convivência que tem com os alunos.
Entretanto, não se pode delegar ao professor a tarefa de diagnosticar o problema.
Ele pode, e deve, avaliar as dificuldades apresentadas pelos alunos e, se for o
caso, solicitar que a família procure ajuda especializada. Deve também relatar aos
especialistas as suas percepções sobre o desempenho acadêmico ou
comportamental dos alunos, bem como traçar estratégias de ação docente, a
partir do que for constatado pelos profissionais competentes.
Apesar das evidências de que o desempenho escolar de alunos com
TDAH depende, em grande parte, dos professores, queremos lembrar, apoiadas
em Aquino (2003), que há, atualmente, uma tendência de se exigir do professor o
cumprimento de inúmeros papéis: familiar, clínico, assistente social, nutricionista –
144
uma espécie de “polivalência funcional a ele atribuída, redundando, muitas vezes,
numa apropriação messiânica, porém cambaleante, do lugar docente” (p. 23).
Na nossa pesquisa, as práticas escolares, responsabilidade imediata
dos professores, ocuparam lugar de destaque na discussão e apontaram
caminhos para a reflexão sobre a formação de professores e o trabalho com
alunos que apresentam instabilidade da atenção, impulsividade e/ou
hiperatividade. “(...) mas a maneira como elas expõem a aula delas eu acho que é
antiga, não faz o aluno se prender” (Cláudia). De maneira geral, a ênfase das
falas dos entrevistados recaiu sobre o próprio TDAH, sobre a formação do
professor e sobre a cultura da homogeneização que estrutura e organiza o
ambiente escolar, permitindo-nos afirmar que o transtorno não foi a única causa
das dificuldades encontradas pelos entrevistados.
A influência do professor no desempenho escolar dos alunos apareceu
de forma relevante na fala dos entrevistados, apontando para a importância da
formação técnica do professor e da formação que valorize a diversidade humana.
Entendemos que há também determinantes estruturais e organizacionais a serem
considerados no processo pedagógico, por exemplo, as condições de trabalho
dos profissionais da educação e as condições de ensino oferecidas aos alunos.
Para Emílio (2004), alguns cuidados, como o número de alunos por turma e a
quantidade de alunos com problemas de aprendizagem ou de comportamento em
cada classe, quando observados, podem possibilitar a interação entre os
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem e o atendimento às
necessidades de cada um.
145
A autora, ao final de sua investigação sobre o cotidiano escolar, coloca
que, em certas situações, a busca de parcerias com outros profissionais, médicos
e psicólogos, que possam auxiliar a família e o aluno a lidar com suas
dificuldades, é imprescindível “para que a escola possa desempenhar bem o seu
papel e assumir as responsabilidades que lhe cabem” (p. 221-222).
Nutti (1996) enfatiza a necessidade de integração entre saúde e
educação. A autora critica a tendência à patologização do fracasso escolar, ou
seja, a tendência de se atribuir as causas do fracasso a algo externo ao ambiente
escolar. Chama a atenção também para o fato de essa prática acarretar longas
listas de espera nos serviços de saúde, dificultando o atendimento de toda a
clientela. Isso porque o modelo clínico, centrado unicamente na avaliação e no
tratamento individual, não soluciona as dificuldades de aprendizagem dos alunos
que buscam atendimento médico ou psicológico. Depois, Nutti aponta a
importância de os profissionais da educação refletirem sobre a sua concepção
acerca do baixo rendimento acadêmico, geralmente, centrada exclusivamente em
fatores extra-escolares, e de os profissionais da saúde fazerem o mesmo, pois o
seu discurso poderia reforçar concepções errôneas sobre os fenômenos
psicológicos e as relações humanas.
Sacristán (1995) atenta para o discurso pedagógico dominante que
hiper-responsabiliza os professores em relação à prática pedagógica e à
qualidade de ensino, “situação que reflecte a realidade de um sistema escolar
centrado na figura do professor como condutor visível dos processos
institucionalizantes de educação” (p. 64). A condição para a melhoria da
qualidade da educação é, muitas vezes, projetada sobre a figura do professor. A
146
explicação se deve a uma certa deformação profissional, a uma ocultação
ideológica dos condicionalismos reais dessa prática, ou ainda ao fato de “esta
atitude encobrir o baixo estatuto social da profissão docente” (p. 64).
Segundo o autor, a atuação dos professores é acentuada tanto pelo
discurso pedagógico quanto social. Para ele, a prática docente está relacionada
aos professores, mas não depende unicamente deles. É preciso, a partir de
condicionantes políticos e históricos, compreender as ligações entre os
professores e a prática, bem como o princípio da relativa “irresponsabilidade” dos
professores em relação à prática. Por isso, entendemos ser necessário refletir
sobre a teia de significados das práticas escolares, que são o contexto imediato
do trabalho pedagógico, em suas diferentes dimensões, ou, na definição de
Sacristán, refletir sobre o “sistema de práticas educativas aninhadas” (práticas
institucionais, organizativas e didáticas). Para o autor, é preciso que o conceito de
prática seja alargado, saindo dos limites do domínio metodológico e do espaço
escolar, pois a prática é mais abrangente que as ações dos professores:
A
prática profissional depende de decisões individuais, mas rege-se po
r
normas colectivas adoptadas por outros professores e por regulações
organizacionais. A cultura da instituição é muito importante, mas é
preciso não esquecer as determinações burocráticas da organização
escolar (Ibid, p. 71).
Quando se responsabiliza os professores por aquilo que acontece nas
aulas, esquece-se a realidade do contexto de trabalho. As regras a que
a realidade do “posto de trabalho” do professor se submete encontram-
se bem definidas antes de ele começar a desempenhar ‘muito
pessoalmente’ o papel preestabelecido (SACRISTÁN, 1995, p. 72).
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao admitirmos que a escola é uma instituição social atravessada de
interesses e conflitos, a discussão sobre os significados das práticas escolares
passa a ser fundamental na formação dos professores. Não apenas para que os
conflitos sejam resolvidos, mas, ao contrário, para permitir que eles sejam
nomeados, compreendidos “em sua dimensão histórica e, desta forma, possam
redimensionar as relações de força aí existentes” (PATTO, 1999, p. 421).
A presente pesquisa permite afirmar que o êxito na administração dos
problemas decorrentes do TDAH está relacionado à adoção de medidas que
incluam um novo direcionamento na educação. É fundamental que o trabalho
educacional seja integrado com compreensão, determinação, perseverança e
paciência. Mas, somente isso não basta.
A nossa análise, a partir da fala dos entrevistados, leva-nos à
consideração da necessidade de sólidos fundamentos teóricos e da prática
investigativa na formação de professores. Não apenas o método de ensino
adotado pelos professores influenciou a aprendizagem dos sujeitos desta
pesquisa, mas também a dificuldade daqueles para gerenciar a dimensão
emocional dos relacionamentos que ocorrem na sala de aula.
O mais devastador aspecto do TDAH apontado pelos entrevistados foi
o prejuízo à auto-estima. O estudo revela, portanto, a necessidade de mudança
A mudança do mundo implica a
dialetização entre a denúncia da situação
desumanizante e o anúncio de sua
superação, no fundo, o nosso sonho
(FREIRE, 1996, p. 88).
148
de paradigma do professor, que, tão habituado a trabalhar visando aos anseios e
expectativas da maioria dos alunos, imprime uma forma de trabalho
homogeneizante, situação presente não apenas nas escolas, mas na sociedade,
de maneira geral.
Acreditamos que a questão orientadora inicial da pesquisa (a que os
entrevistados atribuem as dificuldades e facilidades encontradas durante o
processo de aprendizagem?) tenha sido respondida, satisfatoriamente, a partir
dos dados coletados e analisados. Pensamos, ainda, serem necessárias outras
investigações sobre como promover uma educação eficaz aos alunos com
dificuldades em usar plenamente as funções executivas do cérebro, num
momento em que as transformações ocorridas na sociedade requerem, como já
abordado no primeiro capítulo, o desenvolvimento de competências cognitivas
superiores e de relacionamento, como,
Reforçamos o argumento utilizado por Freitas (2002) para alertar os
profissionais da educação para as formas dissimuladas de exclusão objetiva
(repetência e evasão), que têm criado, muitas vezes, a exclusão subjetiva (auto-
exclusão, exclusão entre ciclos, por exemplo). Educar alunos com as dificuldades
próprias do TDAH é um grande desafio, quando se pretende desenvolver as
competências cognitivas superiores, citadas por Kuenzer (2002), principalmente,
análise, síntese, estabelecimento de relações, criação de soluções
inovadoras, rapidez de resposta, comunicação clara e precisa,
interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para
trabalhar em grupo, gerenciar processos para atingir metas, trabalha
r
com prioridades, avaliar, lidar com as diferenças, enfrentar os desafios
das mudanças permanentes, resistir a pressões, desenvolver o raciocínio
lógico-formal aliado à intuição criadora, buscar aprende
r
permanentemente, e assim por diante (KUENZER, 2002, p. 18).
149
quando se tratar de educação pública, devido à precariedade do ensino oferecido
aos alunos e da formação docente.
Pensamos que os resultados da pesquisa satisfazem o nosso objetivo
inicial, quando observados pela ótica do estudo: o ponto de vista de (ex-)alunos.
Quanto aos seus limites, para a apreensão das relações intersubjetivas
vinculadas ao TDAH e presentes na cotidianidade escolar, uma grande
contribuição poderia vir de novas pesquisas desenvolvidas a partir do ponto de
vista de professores – ou ainda de alunos e professores –, que contassem com
outro instrumento de coleta de dados, além da entrevista: a observação, essencial
ao pesquisador de campo interessado nos estereótipos e preconceitos presentes
nas relações escolares. Segundo Gomes (1999), “as contradições entre o
discurso e a ação pedagógica só se revelam por meio da comparação entre eles,
discurso e ato”.
Macedo (2006) enfatiza a necessidade da negociação da diferença.
Embora admita a impossibilidade de tradução desta, acredita na transformação de
todas as culturas particulares “ao obrigá-las a negociar no horizonte mais amplo
das experiências homogeneizantes” (p. 135). Acrescenta que a negociação da
diferença exige que se tenha uma ação política, e, assim como Freitas (2002),
lembra que isso não é fácil, pois práticas de exclusão podem surgir dos mesmos
argumentos que criticam a discriminação, dependendo do contexto, político ou
não, em que se inserem.
Por enquanto, a melhor medida de contorno dos problemas dos alunos
com TDAH, em sala de aula, parece ser a mudança de postura do professor, no
sentido de tornar o ensino mais participativo, solidário, democrático, criativo e
150
reflexivo, ao mesmo tempo em que as políticas educacionais devem contribuir
para a promoção social de todos, em sua diversidade. O grande desafio que se
coloca à formação docente para trabalhar com alunos com TDAH é a
ressignificação da formação, no sentido de focalizar os esforços mais em “como a
criança aprende” do que em técnicas de ensino.
A pesquisa mostra a importância de o professor refletir sobre as
práticas escolares enraizadas no dia-a-dia da escola. Além da formação técnica
do professor (individualização do problema), os entrevistados apontaram como
causas de suas dificuldades escolares o próprio TDAH (outra forma de
individualizar o problema) e a cultura da homogeneização presente no ambiente
escolar, que o estrutura e organiza:
Isso nos leva a pensar que a formação de professores para trabalhar
com alunos que apresentam, não apenas este transtorno, mas, atitudes incomuns
e formas de pensamento diferentes dos demais, deve apontar para a análise da
escola e de suas práticas em todas as dimensões possíveis. Assim, não se trata
de isolar, de definir uma única concepção de causa das dificuldades enfrentadas
por esses alunos. Acreditamos que, a formação do professor, compromissada
com as transformações sociais, ao apontar para a urgência de se colocar a
cultura e as relações de poder no centro das discussões educacionais, poderá
abarcar o problema discutido nesta pesquisa em suas diferentes dimensões.
Chegou na quarta série, mudaram-me de escola, porque achavam que a
escola era o problema, mas, na verdade, não era. Eu estava desde
pequena naquela escola. Eu era o problema (Sandra).
Eu era muito teimoso, bocudo, briguento. Minha mãe chegou precisa
r
assistir aula comigo, porque eu falava assim: “Não vou copiar!” Aí a
professora chamava minha mãe. Fui expulso na quarta série (...) (Paulo).
151
Para a superação das barreiras que oferecem obstáculos à
aprendizagem, bem como a formação de identidade dos alunos de forma mais
humanitária, o trabalho dos profissionais da área da educação precisa ser coletivo
e estar articulado com políticas sociais e econômicas, pois exige mudanças
profundas em atitudes, crenças e práticas para assegurar que todos os alunos,
sem qualquer discriminação, tenham as mesmas oportunidades de aprendizagem
e que possam desenvolver plenamente suas capacidades.
Também acreditamos que a configuração do atual contexto
educacional não deve ocultar a responsabilidade de cada categoria participante
do sistema de ensino. É necessário buscar formas de transformar a sua realidade,
em todas as suas dimensões: ao mesmo tempo em que se luta por um sistema
político e social mais justo, deve-se atentar para as práticas escolares que
reforçam o atual sistema.
O problema abordado neste estudo está relacionado a questões de
ordem social também pelas formas de interpretação do TDAH. É preciso que se
ultrapasse a discussão dicotômica sobre quem seriam os culpados pelo
desempenho escolar dos alunos com o transtorno – geralmente, ora a escola ora
o aluno –, buscando a superação da questão, a partir da compreensão de sua
complexidade.
Nossa experiência em escolas públicas estaduais, permite-nos afirmar
que para os alunos com TDAH em situação econômica desfavorável, geralmente,
a única esperança para a solução dos problemas decorrentes do transtorno
Mesmo porque, construir uma escola inclusiva, uma vida digna, é desafio
coletivo de muitas vozes. Não se constrói no isolamento acadêmico, mas
com a participação acadêmica. Nem com um passe de mágica, ou com
medidas simplistas. E nem por decreto (CAIADO, 2003, p. 132).
152
parece ser a escola, já que suas famílias dependem, em sua maioria, da
precariedade do atendimento na rede pública de saúde. Além da dificuldade de
submissão a uma avaliação diagnóstica do problema, geralmente, são
necessários meses de espera para a primeira consulta e outros tantos meses de
intervalo entre as próximas. Isso, quando a família encontra um especialista que
trate o transtorno. Já para os alunos de famílias sócio e economicamente mais
bem posicionadas na sociedade, há outras possibilidades de tratamento, além da
intervenção pedagógica.
Os sujeitos da nossa pesquisa estudaram em uma época em que a
discussão sobre a inclusão escolar não ocupava lugar privilegiado nos espaços
de formação de professores. Talvez por isso, estiveram à beira da exclusão
escolar, em vários momentos. Pensamos que “escaparam” por si mesmos do
destino de tantos outros alunos que abandonam a escola, por não se
enquadrarem aos seus moldes. Sobre isso, é preciso ressaltar que as condições
sócio-econômicas de suas famílias podem ter contribuído para a superação das
dificuldades, por meio da busca de atendimento especializado, ou mesmo, por
haver, além da preocupação dos pais, condições familiares favoráveis para uma
tentativa de compreensão das dificuldades. Dos cinco entrevistados, três
estudaram em escolas particulares, no Ensino Fundamental, e os pais recorreram
à ajuda especializada na infância. Parece-nos que o sucesso escolar deles pouco
se deve à utilização de práticas escolares que privilegiassem o trabalho com as
diferenças existentes entre os alunos. Patto (1999) coloca, ao estudar a
historicidade do fracasso escolar, que o destino escolar de crianças burguesas
que apresentam problemas de aprendizagem, certamente, é diferente do destino
de crianças que vivem em condições sócio-econômicas desfavoráveis.
153
Esse contexto leva-nos a novos posicionamentos: a) Quem, afinal, são
os alunos com instabilidade de atenção e/ou hiperatividade que chegam à
Universidade? b) Apesar de tantas dificuldades encontradas na escola, todos os
sujeitos desta pesquisa revelaram extraordinária superação. De que seriam
capazes, se tivessem recebido uma formação escolar que respeitasse as suas
individualidades? c) Observamos que alguns dos entrevistados parecem ter um
aguçado senso de transformação social. A garantia de melhores condições de
aprendizagem aos alunos com TDAH que se encontram em situação econômica e
social desfavorável na sociedade, com acesso à participação plena na produção
de conhecimento, representaria riscos ao sistema social e político vigentes?
São muitos os conhecimentos a serem produzidos, envolvendo as
concepções acerca do TDAH e as medidas de superação das dificuldades dele
decorrentes. Acreditamos que o nosso estudo seja uma pequena contribuição
rumo aos novos conhecimentos que estão por vir.
Há problemas que perpassam a escola –
estão nela, mas não são dela, como desigual
distribuição da renda (...)
Por outro lado, há problemas que estão na escola e
são dela. É o caso da formação dos docentes, sua
valorização no exercício profissional por meio de
carreira atraente, salários condignos e competitivos e
abertura para uma formação continuada.
(CURY, 2005, p. 29-30)
154
DIA DE AVALIAÇÃO (DDA
11
)
Letra: Leandro Maia
12
- CD: Palavreio
Comecei
Não terminei
Nem completei a tal lição
Mas levantei a mão
Começar e terminar
E colorir e entregar
Voltei pro meu lugar
Quanta coisa bela
Mora na janela do pátio de brincar
Terminou pode sair
Mas quem não fez que fique e finalize a redação
Então, não sei
Me distraí
Desconcentrei
Não consegui
Deixei o pensamento solto: avião
Começar e terminar
E colorir e entregar
Larguei o pensamento solto: pé no chão
Branca folha rabiscada
Não escrevo quase nada
Próxima questão:
Faço um mapa bem bonito
De um tesouro escondido
Deixo o pensamento solto: embarcação
11
DDA: Distúrbio de Déficit de Atenção. A canção é estruturada segundo a forma de Chorinho, ou
seja, A-B-A-C-A. Entretanto, as reaparições da parte A sofrem alterações (distrações). De acordo
com o autor, a composição é distraída porque nela existem músicas e melodias incidentais que a
influenciam, como Lithium (Nirvana) e My Life (Beatles), além de melodias paralelas, ruídos de
folhas sendo rasgadas, lápis escrevendo, suspiros, balbucio, como se uma criança estivesse
cantarolando enquanto faz o desenho mencionado na música. A homenagem do compositor aos
Beatles aparece também no nome Dia de Avaliação - sigla de DDA, assim como Lucy in the Sky
with Diamonds é uma sigla de LSD. A ficha técnica da gravação é: Leandro Maia – violões e
vozes; Mimo Aires – percussão, efeitos e ruídos.
12
Leandro Maia – Educador Musical, Regente Coral e Arranjador – é formado em Música
(UFRGS), especialista em Letras (UNIRRITER), mestrando em Letras/Literatura Brasileira
(UFRGS). Atualmente o compositor portoalegrense prepara seu primeiro CD autoral, Palavreio,
que pode ser acompanhado na página <www.tramavirtual.com.br/leandro_maia> ou por correio
eletrônico (palavreio@gmail.com).
155
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, M. A importância dos grupos de formação reflexiva docente no
interior dos cursos universitários. In: CASTANHO, S.; CASTANHO, M. E. (Orgs.)
Temas e textos em metodologia do ensino superior. 2.ed. Campinas, SP: Papirus,
2002.
ABREU, A. S. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2000.
ALBERTI, V. Manual de história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
ANDRADE, E. R. Quadro clínico do Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. et al. Princípios e práticas
em transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Porto Alegre: Artmed, 2003.
ANGELUCCI, C. B. et al. O estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar
(1991-2002): um estudo introdutório. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 1,
jan/abr 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 17
jan. 2006.
AQUINO, J. G. Indisciplina: o contraponto das escolas democráticas. São Paulo:
Moderna, 2003.
ARAÚJO, P. Déficit de atenção: um diagnóstico que você pode fazer. Nova
Escola. São Paulo: Editora Abril, n. 172, maio 2004.
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico
de transtornos mentais, DSM-IV. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 1995.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BARKLEY, R. A. ADHD and the nature of self control. New York: Guilford Press,
1997.
BARKLEY, R. A. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Porto Alegre,
RS: Artmed, 2002.
BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Lei n. 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Brasília: Diário Oficial da União, 23
de dezembro de 1996.
CAIADO, K. R. M. Aluno deficiente visual na escola: lembranças e depoimentos.
Campinas, SP: Autores Associados: PUC, 2003.
CAMARGO, D. M. P. Conhecimento escolar: o mito da fronteira entre a ciência e
a cultura. In: VEIGA, I..P.; CASTANHO, M. E. L. M. (Orgs.). Pedagogia
universitária: a aula em foco. 3.ed. Campinas, SP: Papirus, 2002.
156
CASTANHO, M. E. Universidade à noite: fim ou começo de jornada? Campinas,
SP: Papirus, 1989.
CASTANHO, S. A universidade entre o sim, o não e o talvez. In: VEIGA, I. P. A.;
CASTANHO, M. E. (Orgs.). Pedagogia universitária: a aula em foco. 3.ed.
Campinas, SP: Papirus, 2002.
CASTANHO, M. E. M. O professor e os problemas educacionais atuais: teorias e
perspectivas. In: ALMEIDA, M. Políticas educacionais e práticas pedagógicas:
para além da mercadorização do conhecimento. Campinas, SP: Editora Alínea,
2005.
CHAUÍ, M. Apresentação: Os trabalhos da memória. In: BOSI, Ecléa. Memória e
sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CHIZZOTTI, A. Metodologia do ensino superior: o ensino com pesquisa. In:
CASTANHO, S.; CASTANHO, M. E. (Orgs.). Temas e textos em metodologia do
ensino superior. Campinas, SP: Papirus, 2001.
CIASCA, S. M. Apresentação. In: CIASCA, S. M. (Org.). Distúrbios de
aprendizagem: proposta de avaliação interdisciplinar. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2003.
CIASCA, S. M.; ROSSINI, S. D. R. Distúrbios de aprendizagem: mudanças ou
não? Correção de dados de uma década de atendimento. Temas sobre
desenvolvimento, v. 8, n. 48, 2000.
COLES, G. The learning mystique. New York: Pantheon Books, 1987.
COLLARES, C. A. L.; MOYSÉS, M. A. A. A história não contada dos distúrbios de
aprendizagem. Cadernos Cedes, n. 28, Campinas, SP: Papirus, 1992.
COLLARES, C. A. L.; MOYSÉS, M. A. A. Preconceitos no cotidiano escolar:
ensino e medicalização. São Paulo: Cortez, Campinas: Unicamp. Faculdade de
Educação / Faculdade de Ciências Médicas, 1996.
CORTELLA, M. S. Diversidade e cidadania. In: ARELARO, L. G.; SILVA, S.
Diversidade e exclusão: a sensibilidade de quem as vive. São Paulo: Produtora de
Vídeos, 2003 (vídeos).
CUNHA, L. A. Educação, Estado e democracia no Brasil. 2. ed. São Paulo:
Cortez; Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense; Brasília, DF:
FLACSO do Brasil, 1995.
CURY, C. R. J. Políticas inclusivas e compensatórias na Educação Básica. In:
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005.
CYPEL, S. O aprendizado escolar: reflexões sobre alguns aspectos neurológicos.
Revista Idéias, n. 19, 1993.
157
DAVIS, C.; OLIVEIRA, Z. R. Psicologia na Educação. São Paulo: Cortez, 1994.
DAVIS, C.; NUNES, M. M. R.; NUNES, C. A. A. Metacognição e sucesso escolar:
articulando teoria e prática. In: Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, 2005.
DE LA TAILLE, Y. Limites: três dimensões educacionais. Campinas, SP: Ática,
2003.
DEMO, P. Conhecimento moderno: sobre a ética e a intervenção do
conhecimento. São Paulo: Vozes, 1997.
DIAS SOBRINHO, J. Educação superior, globalização e democratização. Qual
universidade? Texto apresentado na Reunião Nacional da ANPEd, Caxambu,
MG, nov., 2004, mimeo, 21p.
DUPAUL, G. J.; CONNOR, D. Os estimulantes. In: BARKLEY, R. [Trad. Luís
Sérgio Roizman]. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH): guia
completo e autorizado para os pais, professores e profissionais da saúde. Porto
Alegre: Artmed, 2002.
EIDT, N. M. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: diagnóstico ou
rotulação? Dissertação (Mestrado em Psicologia Escolar) – Faculdade de
Psicologia da PUC-Campinas, Campinas, 2004.
EMÍLIO, S. A. O cotidiano escolar pelo avesso: sobre laços, amarras e nós no
processo de inclusão. Tese (Doutorado em Psicologia) – Faculdade de Psicologia
da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
FALSARELLA, A. M. Formação continuada e prática de sala de aula – os efeitos
da formação continuada na atuação do professor. Campinas, SP: Autores
Associados, 2004.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREITAS, L. C. A internalização da exclusão. Educação & Sociedade, v. 23, n.
80, set 2002.
GOERGEN, P. Prefácio. In: JANNUZZI, G. M. A educação do deficiente no Brasil:
dos primórdios ao início do século XXI. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.
GOLFETO, J. H.; BARBOSA, G. A. Epidemiologia. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P.
et al. Princípios e práticas em transtorno de déficit de atenção/hiperatividade.
Porto Alegre: Artmed, 2003.
GOMES, J. V. Prefácio. In: PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar:
histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
158
GÓMEZ, J. A. C. Palabra de profesores. Número Zero – Jornal da Educação. Ano
I, Edição no. 1, p. 13, abr 2004.
HALLOWELL, E. M.; RATEY, J. J. [Tradução: André Carvalho]. Tendência à
distração: identificação e gerência do distúrbio de Déficit de atenção (DDA) da
infância à vida adulta. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
KARNAL, L. Dez mandamentos do professor. Campinas, texto inédito, 2004.
KUENZER, A. Z. As políticas de formação: a constituição da identidade do
professor sobrante. Educação & Sociedade, ano XX, n. 68, dez. 1999.
KUENZER, A. Z. O que muda no cotidiano da sala de aula universitária com as
mudanças no mundo do trabalho? In: CASTANHO, S.; CASTANHO, M. E. (Orgs.)
Temas e textos em metodologia do ensino superior. 2ª ed. Campinas, SP:
Papirus, 2002.
LIBÂNEO, J. C. Nova Escola, N. 142, maio 2001. Seção Exclusivo On Line.
Disponível em: <http://novaescola.abril.com.br>. Acesso em: 17 out. 2005.
LIMA, C. C.; ALBUQUERQUE, G. Avaliação de linguagem e co-morbidade com
transtornos de linguagem. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. Princípios e práticas
em transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Porto Alegre: Artmed, 2003.
MACEDO, E. F. Currículo e diferença nos parâmetros curriculares nacionais. In:
LOPES, A. R. C.; MACEDO, E. F.; ALVES, M. P. C. Cultura e política de currículo.
Araraquara, SP: Junqueira & Marin, 2006.
MAGGI, N. R. Por que as crianças resistem às leis? Ciências e Letras, n. 32,
jul./dez., 2002.
MARTINS, S.; TRAMONTINA, S.; ROHDE, L. A. Integrando o processo
diagnóstico. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. et al. Princípios e práticas em
transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Porto Alegre: Artmed, 2003.
MATTOS, P. et al. Neuropsicologia do TDAH. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. et
al. Princípios e práticas em transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Porto
Alegre: Artmed, 2003.
MELLO, G. N. Formação inicial de professores para a educação básica: uma
(re)visão radical. Nova Escola, n. 142, maio 2001. Seção Exclusivo On Line.
Disponível em: <http://novaescola.abril.com.br>. Acesso em: 17 out. 2005.
MELLO, G. N. A memória da escola educa os professores. Nova Escola, edição
185, set 2005.
MESTRE do novo milênio. Nova Escola, edição 142, maio 2001. Disponível em:
<http://novaescola.abril.com.br>. Acesso em: 4 fev. 2006.
159
MOOJEN, S. M.; DORNELES, B. V.; COSTA, A. Avaliação psicopedagógica no
TDAH. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. et al. Princípios e práticas em transtorno
de déficit de atenção/hiperatividade. Porto Alegre: Artmed, 2003.
MOYSÉS, M. L. M. Mudança da auto-estima em menores institucionalizados. In:
Boletim da Associação Brasileira de Psicopedagogos do Estado de São Paulo,
ano 5 (10). São Paulo: EDICON, 1986.
NORONHA, O. M. Políticas neoliberais, conhecimento e educação. Campinas,
SP: Editora Alínea, 2002.
NÓVOA, A. A solução pode estar no trabalho de pensar o trabalho. Número Zero
– Jornal da Educação. Ano I, Edição no. 1, p. 8-9, abr. 2004. Entrevista concedida
a João Rita.
NUTTI, J. Z. Concepções sobre as possibilidades de integração entre saúde e
educação: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade
de Educação da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1996.
O’CONNELL, K. L. Attention deficit hyperactivity disorder. Pediatrics Nurses, v. 22,
n. 1, p. 30-33, 1996.
OLIVEIRA, R. P.; ADRIÃO, T. Organização do ensino no Brasil: níveis e
modalidades na Constituição Federal e na LDB. São Paulo: Xamã, 2002.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e
de comportamento da CID-10: Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto
Alegre: Artmed, 1993.
PATTO, M. H. S. Apresentação. In: COLLARES, C. A. L.; MOYSÉS, M. A. A.
Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez,
Campinas: Unicamp. Faculdade de Educação / Faculdade de Ciências Médicas,
1996.
PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e
rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica. [ Prefácio: Fábio Ulhôa Coelho; tradução: Maria Ermantina Galvão]. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
PÉREZ GÓMEZ, A. I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre:
Artmed, 2001.
PISECCO, S. et al. The effect of academic self-concept on ADHD and antisocial
behaviors in early adolescence. Journal of Learning Disabilities, v. 34, n. 5, p. 450-
461, 2001.
160
ROHDE, L. A. et al. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Revista
Brasileira de Psiquiatria, v. 22, s. 2. São Paulo, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br>. Acesso em: 12 jul. 2006.
ROMAN, T. et al. Etiologia. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. et al. Princípios e
práticas em transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Porto Alegre: Artmed,
2003.
ROMERO, J. F. As relações sociais das crianças com dificuldades de
aprendizagem. In: COLL, C. et al. [Tradução de Marcos A. G. Domingues]
Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais e
aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
SACRISTÁN, J. G. Consciência e acção sobre a prática como libertação
profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (Org.). Profissão Professor. 2. ed.
Portugal: Porto Editora, LDA, 1995.
SANTOS, B. S. Para uma pedagogia do conflito. In: SILVA, L. H. et al (Orgs.).
Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina,
1996.
SARUP, M. Marxismo e educação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
SORDI, M. R. L. Alternativas propositivas no campo da avaliação: por que não?
In: CASTANHO, S.; CASTANHO, M. E. (Orgs.) Temas e textos em metodologia
do ensino superior. 2.ed. Campinas, SP: Papirus, 2002.
SOUZA, M. P. As contribuições dos estudos etnográficos na compreensão do
fracasso escolar no Brasil. In: MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. (Orgs.).
Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1997.
SUCUPIRA, A. C. S. L. Hiperatividade: doença ou rótulo? Cadernos Cedes, n. 15,
1985.
SZOBOT, C. M.; STONE, I. R. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade:
base neurobiológica. In: ROHDE, L. A.; MATTOS, P. et al. Princípios e práticas
em transtorno de déficit de atenção/hiperatividade. Porto Alegre: Artmed, 2003.
TOLEDO, M. M.; SIMÃO, A. Transtorno e Déficit de Atenção/Hiperatividade. In:
CIASCA, S. M. (Org.). Distúrbios de aprendizagem: proposta de avaliação
interdisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
TONELOTTO, J. M. F. Atenção e sua relação com atitudes de crianças no
contexto escolar. Tese (Doutorado em Ciências Médicas/Neurologia) -
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Campinas, 1998.
TONELOTTO, J. M. F. Autopercepção de crianças desatentas no ambiente
escolar. Revista Estudos de Psicologia. V. 19, n. 3, Campinas, SP: PUC-
Campinas, set. / dez. 2002.
161
TONELOTTO, J. M. F. Aspectos acadêmicos e sociais do transtorno do déficit de
atenção. In: CIASCA, S. M. (Org.). Distúrbios de aprendizagem: proposta de
avaliação interdisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
TRIVIÑOS, A. N. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa
qualitativa. São Paulo: Atlas, 1987.
VEIGA, I. P. A.; RESENDE, L. M. G.; FONSECA, M. Aula universitária e inovação.
In: VEIGA, I. P. A.; CASTANHO, M. E. (Orgs) Pedagogia universitária: a aula em
foco. 3.ed. Campinas, SP: Papirus, 2002.
VILLAR, I. O.; POLAINO-LORENTE, A. Estilos Atribucionales y autoestima en
hiperatividad infantil. Revista de Psicología Geral Y Aplicada, v. 47, n. 4, p. 461-
466, 1994.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
WERNER JR, J. Transtornos hipercinéticos: contribuições do trabalho de
Vygotsky para reavaliar o significado do diagnóstico. Tese (Doutorado em
Medicina) – Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Campinas, 1997.
CD:
Dia De Avaliação. Leandro Maia. CD Palavreio. Disponível em:
<http://www.tramavirtual.com.br/leandro_maia>. Acesso em: 23 abr. 2006.
ANEXOS
163
ANEXO 1
Questionário: perfil dos entrevistados
Dados Pessoais
1.1. Nome:____________________________________________________
1.2. Idade:__________
1.3. Na família, é:
( ) filho(a) único(a)
( ) primeiro(a) filho(a), de ___ filhos
( ) segundo(a) filho(a), de ___ filhos
( ) terceiro(a) filho(a), de ___ filhos
( ) __________________, de ___ filhos
1.4. Estado civil: _______________________________
1.5. Profissão: _________________________________________________
1.6. Renda familiar aproximada: ( ) até 05 salários mínimos
( ) até 10 salários mínimos
( ) até 20 salários mínimos
( ) acima de 20 salários mínimos
1.7. Escolaridade do pai:________________________________________
1.8. Profissão do pai:____________________________________________
1.9. Escolaridade da mãe:________________________________________
1.10. Profissão da mãe: _________________________________________
1.11. Escolaridade do cônjuge:____________________________________
1.12. Profissão do cônjuge:_______________________________________
Dados sócio-culturais
2.1. Participa de atividades:
( ) culturais
( ) esportivas
( ) assistenciais
164
( ) outra(s): __________________________________________
2.2. Lê, semanalmente:
( ) jornais
( ) revistas
( ) livros
( ) outro(s): __________________________________________
Formação acadêmica
3.1. Licenciatura Curta ( ) Licenciatura Plena ( ) Bacharelado ( )
Cursando ( )
Área: ________________________________________________________
3.2. Pós-graduação: Sim ( ) Não ( ) Cursando ( )
Área:________________________________________________________
3.3. Mestrado: Sim ( ) Não ( ) Cursando
Área:________________________________________________________
3.4. Doutorado: Sim ( ) Não ( ) Cursando
Área:________________________________________________________
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
4.1. O transtorno foi descoberto na:
( ) infância
( ) adolescência
( ) juventude
( ) idade adulta
4.2. O problema foi sinalizado (se necessário, indicar a ordem dessa sinalização:
1
o
., 2
o
., 3
o
.):
165
( ) pelo(s) professor(es)/pela escola
( ) pela família
( ) por você mesmo(a)
( ) por outro(s): _______________________________________
4.3. Quanto ao diagnóstico do transtorno:
( ) com hiperatividade ( ) sem hiperatividade
4.4. Atualmente, faz algum tipo de tratamento? ( ) sim ( ) não
4.5. Forma de tratamento:
( ) com psicoterapia
( ) com medicamento
( ) outra(s): __________________________________________
4.6. Você busca informações sobre o transtorno? ( ) sim ( ) não
4.7. Que fontes você usa?
( ) livros
( ) internet
( ) vídeos
( ) meio jornalístico (revistas, jornais, televisão)
( ) outro(s): __________________________________________
166
ANEXO 2
Questões orientadoras para a realização das entrevistas
1. “Cabeçalho” gravado antes de cada entrevista:
(Cidade), (data).
Entrevista com (entrevistado), a cargo da pesquisadora Maria das Graças
Faustino Reis, no contexto do projeto Ensino Superior: docência e inclusão
escolar de alunos com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)
13
,
desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas.
Estamos em uma das dependências do local de trabalho/estudo (da residência)
do(a) entrevistado(a).
2. Questões das entrevistas com adultos que apresentam TDAH:
Fale sobre a sua trajetória escolar, apontando:
a) Em que fase da escolaridade você descobriu o TDAH?
b) Como foi a sua passagem pelos ensinos: Fundamental, Médio e Superior,
especialmente neste último?
c) O que você fez (e faz) para superar dificuldades decorrentes do transtorno?
Outras questões foram levantadas, de acordo com a necessidade.
13
O título da dissertação foi alterado para A teia de significados das práticas escolares: Transtorno
de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e formação de professores.
167
ANEXO 3
Entrevista com Cláudia
Cláudia tem 20 anos, é solteira, mora em Itupeva e cursa o primeiro ano de
História em uma Universidade particular. O transtorno foi descoberto na infância,
momento em que iniciou o tratamento medicamentoso. Na adolescência,
abandonou o tratamento, só retornando aos consultórios de especialistas na
idade adulta. Atualmente, faz tratamento medicamentoso.
Itupeva, 30 de abril de 2005.
Pesquisadora – Cláudia, fale sobre a sua trajetória escolar, apontando: a) Em que
fase da escolaridade você descobriu o TDAH? b) Como foi a sua passagem pelos
ensinos: Fundamental, Médio e Superior, especialmente neste último? c) O que
você fez (e faz) para superar dificuldades decorrentes do transtorno?
Entrevistada – Eu estou no primeiro semestre de História. A área que eu escolhi é
representante de sala. Isso eu já não passei, graças a Deus, mas eu faço parte do
Conselho e do CA (Centro Acadêmico). Eu acho que o DDA tem muito espírito de
liderança, muitas vezes, e tem muita criatividade, e isso faz com que eu me
destaque na Faculdade e vire até ponto de referência, ou alguma futura chacota,
ou pra uma futura crítica. Eu estou percebendo isso porque eu não sou de ficar
esperando as coisas acontecerem. Eu quero fazer as coisas do meu jeito,
naquela hora. Se não for daquele jeito, não vai. E... tanto é que, no Conselho, eu
entrei desse jeito. Teve eleição, eu me inscrevi. Eu falei: “Ah vai ter mais gente
pra se inscrever”. Quando fui ver, eu era a única. Eu era a única lá! Eu falei: “Não,
tudo bem. Como eu vou ser suplente...” Mas, pelo fato de eu ser suplente do
Conselho de Curso da Faculdade, eu tenho que participar das reuniões do CA
para saber o que está sendo debatido. E muitas vezes... e na primeira reunião
que eu participei, quinta-feira agora, eu percebi muito isso, muito do que eu
chamo de “síndrome do bem”, que, por causa disso, muitas pessoas estão me
vendo já com os olhos meio que “Ah, meu, essa menina chata de novo! Mas por
que ela está se metendo? Ela não foi convidada”. Entendeu? E eu também estou
168
percebendo isso porque, apesar de eu não fazer parte da chapa do CA, que é
presidência, do comitê do CA, eu estou me vinculando muito a essa área, à área
política dentro da Faculdade. Eu estou brigando muito. Então, eu acho que o
DDA, não é que ele fuja, ele... quer revolucionar o mundo, não consegue e se
frustra. Daí acaba caindo meio que na depressão prática da coisa. E eu estou
querendo mudar as coisas lá e eu estou batendo de frente com muita gente.
Pesquisadora - Essa iniciativa de participar das atividades na Faculdade
acontecia também nos outros níveis de escola?
Entrevistada - Acontecia e não acontecia, dependia de onde eu estava, do colégio
em que eu estava e do grupo em que eu estava. Porque eu sempre me destaquei
no meio das pessoas. Ou porque eu falo demais ou porque faço muitas
brincadeiras. Mas, querer mudar a visão de uma... como eu estou querendo lá na
Faculdade, não é como no Colegial, no Ginasial. Eu ainda não tinha muito essa
visão. Agora eu entrei e falei “Vou revolucionar tudo.” Sabe? Meio que
mentalidade de historiador, querer mudar tudo. Porque no ginásio, é o meu ponto
de vista, você ainda não percebe muito as coisas que quando você entra na
Faculdade você percebe. Aquelas intrigas de oposição, aquelas políticas que
você tem que ficar amarrando de um lado e de outro, tentar fazer todo mundo feliz
e ficar feliz também, senão não dá certo. Ainda mais agora, que eu estou no
Conselho de Curso e de Área, eu estou percebendo muito isso. Lá dentro da
Faculdade, a gente fica sabendo de brigas políticas internas do curso que deixam
você de cabelo em pé. “Mas como?” Você quer fazer uma coisa e o cara não
deixa porque está com medo de te apoiar. E no Colegial, tanto no Colegial como
no Ginásio, eu nunca estudei numa escola... nas escolas em que eu estudei não
tinha grêmio, não tinha... grupos estudantis. Então eu não sentia tanta essa
necessidade de praticar a política mesmo. Eu sempre me interessei pelas... pelas
coisas de História, entendeu? Eu sempre quis tentar mudar tudo, o sistema.
Pesquisadora - Sempre houve uma idéia de participação, pelo que você está
dizendo.
169
Entrevistada – Sempre, sempre. Tanto é que quando eu estava no Cursinho,
quando eu já comecei a meio que entrar no Ensino Médio, eu abri um blog – eu
não sei se agora ele está funcionado ou não –, reclamando da política do país. Eu
já cheguei, ano passado, a mandar e-mail para o presidente do partido do PT,
metendo a boca no governo, fazendo perguntas que... eu nunca tive resposta,
mas eu acho que, se todo mundo fizer, muda alguma coisa. Agora que eu entrei
na Faculdade, que eu fiquei sabendo da briga de PT, PSDB, a coisa piorou,
porque eu sou PDSB ferrenha. Não sou filiada, mas eu sou [PSDB]. Então, a
coisa complica.
Pesquisadora - Em que fase da escolaridade você descobriu o transtorno?
Entrevistada – Eu descobri o transtorno, não fui nem eu, foi o meu pai, quando a
notícia... que eu tinha sido adotada. E, logo que me adotaram, o médico já falou
“Ela pode virar débil mental, porque há possibilidade de se constituir alguma
seqüela.” A seqüela só foi descoberta no primeiro ano, quando eu tive... eu já
fazia meio que um tratamento, porque eu tinha ficado um tempo sem respirar.
Mas a seqüela só foi realmente definida quando eu tive a minha primeira
convulsão. Quando eu completei um ano, logo depois eu tive a minha primeira
convulsão, duas na minha vida inteira. Daí eu comecei a fazer tratamento para
controlar, e essa seqüela que foi descoberta com a minha convulsão atacou a
minha hiperatividade, que, ao longo do tempo, eu fiz tratamento com Gardenal,
com remédio manipulado, com Ritalina. O último remédio é Ritalina, o que eu
estou tomando hoje também é Ritalina. Atrapalhou na escola? Muuuito, não vou
dizer que não, mas eu não senti tanta dificuldade enquanto eu estava tomando o
remédio. As dificuldades só foram percebidas depois que eu parei de tomar os
remédios e o efeito do remédio já tinha saído do meu organismo. Dois, três anos
depois que eu já tinha parado de fazer o tratamento.
Pesquisadora - Em que época foi isso, em que você sentiu as dificuldades na
escola, por ter parado com o tratamento? Mais ou menos quando?
Entrevistada – Hoje eu estou com 20... Mais ou menos uns cinco ou seis anos.
170
Pesquisadora - Faz uns cinco ou seis anos? Você devia ter uns 15 anos.
Entrevistada - 14 pra 15 anos.
Pesquisadora - E você tomou a medicação a partir de que ano?
Entrevistada – Eu tomei desde o começo, de bebê...
Pesquisadora – ... desde um ano de idade...
Entrevistada – Não, um pouco antes até de iniciar o tratamento – porque eu tinha
parado de respirar, fiquei roxinha. [Tomei] até os 12 anos. É, porque para o
remédio sair do corpo, de dois a três anos. Então, com 14, eu comecei a sentir as
dificuldades. O meu Ginasial inteiro eu já senti dificuldade, mas não era tanta
quanto no Colegial e para ingressar numa Faculdade.
Pesquisadora – E quando você ingressou na Faculdade você fazia uso de
medicação?
Entrevistada – Já. Eu retornei a fazer o tratamento com 19 anos, porque, por
causa do déficit, eu não estava conseguindo entrar na Faculdade.
Pesquisadora - E como foi no ensino Fundamental, logo nas primeiras séries?
Como era o seu comportamento? Como era o seu rendimento na escola?
Entrevistada – O meu rendimento foi muito relativo. Eu digo relativo por quê? Eu
ia bem, eu atingia a média. Às vezes, eu tirava até mais do que a média. Mas o
meu problema não é com o grau, o meu problema é a matéria. Incrível, é aquela
matéria que determina o meu rendimento. Eu estou dizendo isso por quê? Eu, no
meu Colegial, eu odiava... não é que eu odiava, eu gostava de Matemática,
Química e Física. Podia fazer todos os exercícios do livro, sozinha, sem professor
explicando. Ia super bem. Agora você me fala a palavra prova dessas matérias.
171
Eu ia super mal. Porque tudo o que eu tinha conseguido fazer em casa, por mais
que o exercício fosse o mesmo... a prova, só muda o número, mas o mesmo jeito
de fazer, o que acontece? Dá um tilt. “Mas eu já fiz isso.” Você fica apavorada,
você fica sem unha, tem medo de que você não vai fazer tudo, naquele pequeno
espaço de tempo. Você faz o exercício certo, apaga quatro vezes, e, quando
entrega na hora, está tudo errado, porque você mudou, você fez certo. Mas não.
Quando o exercício ainda é muito fácil... Eu tinha bastante dificuldade,
principalmente, em Física e Química, que, quando o exercício era muito fácil, era
só colocar uma formulinha, que nem a fórmula do triângulo, sabe? Base x altura /
2? Eu complicava aquela fórmula, de um tal ponto que eu errava aquele exercício.
Então, a minha dificuldade na escola é em algumas matérias. O meu boletim era
vermelho, mas naquelas matérias de sempre, que eram Matemática, Química,
Física. Inglês, de vez em quando, dependia do professor que eu pegava. Agora
as matérias de que eu gostava e de que eu gosto, todas azuis.
Pesquisadora - Quais eram essas matérias?
Entrevistada - Geografia, História, Espanhol. Eu gostava de Artes, Educação
Artística (é, de Educação Artística todo mundo gosta), Gramática. Gramática,
mais a parte de Literatura, não a parte de gramática em si. Dependia muito...
Tinha áreas da Matemática de que eu gostava, como análise, geometria analítica.
Mas me dá uma prova de PA [Progressão Aritmética] e PG [Progressão
Geométrica] e análise combinatória. É zero na prova. Assuntos como figuras,
planas, assim eu gosto. Todos [assuntos] de que eu gosto da Matemática, eu vou
bem. Agora o que eu não gosto, não vai, não anda. Eu posso ficar três horas, eu
posso passar a tarde inteira, o dia inteiro, a semana inteira tentando estudar
aquilo e não vai. Eu me sento na carteira, eu me sento na mesa da escrivaninha.
Cinco minutos, eu estou na cozinha. Da cozinha, eu vou lá pro fundo, mexer com
os cachorros. Daí eu volto. Não, vou estudar. Passo na cozinha, vou ao banheiro,
faço tudo, menos estudar. Porque o estudo não rende. E na Faculdade eu
também estou sentindo essa dificuldade. E numa matéria específica.
Pesquisadora - Qual é?
172
Entrevistada - Introdução à História. Eu não sei porque eu peguei antipatia com o
modo como a professora explica. Eu não sei o que é. Eu pego a matéria pra
estudar, dá cinco minutos, eu estou dormindo. Eu consegui bater o recorde,
quinta-feira. Eu a estudei por 45 minutos. Consegui bater o meu recorde de 45
minutos. Isso porque eu vou ter prova. Tenho mil textos pra ler e eu não consigo
ler. Agora, tem outra matéria que é Sociologia, ou até mesmo a [História] Antiga
que eu começo... porque eu moro em Piracicaba. Eu estou morando em
pensionato. E a rua em que eu moro é muito movimentada à noite. O pessoal não
pára no semáforo, buzina; lixeiro gritando toda noite; aquelas coisas de cidade. E,
então, quando a rua está mais calminha, que é à meia noite, eu pego para
estudar. E, até meia noite, eu fico assistindo TV, conversando com as meninas
do pensionato, fazendo outras coisas. Quando eu tenho uma matéria de
Sociologia para estudar ou fazer um trabalho, eu pego à meia noite. Eu viro a
noite inteira, sem café, sem nada. Meu olho quer fechar, quer dormir, mas eu não
consigo. Eu perco o sono, de tão interessante que está aquele estudo. Teve um
dia que eu precisava fazer um trabalho, de Renascimento. Eu catei uns cinco
livros e levei para casa, da biblioteca. Aquelas coisas pequenas, aquelas Bíblias,
pequenininhas [ironia]. Levei pra casa para estudar. Comecei a estudar aquele
dia, eram onze e meia da noite. Três horas da manhã, eu estava assim com o
olho [mostrando como estavam os olhos: olhos fechando por causa do sono], mas
eu não conseguia fechar o meu livro. Isso porque a apresentação... Era uma
terça. Eu estava fazendo um trabalho de terça para quarta. Era só fazer a
transparência... que eu estava me matando mais por causa da transparência,
porque a professora falou assim: “Quero que vocês façam um esquema de aula”.
Falei “Vou fazer o esquema de aula na transparência”. E para montar a
transparência? Começou. O resumo deu quatro páginas, de tudo. E para passar
as quatro páginas em quatro transparências, eu fiquei numa dificuldade, porque
eu queria colocar tudo e não podia. Tinha perdido o meu trabalho. Eu comecei a
fazer as transparências, eu lembro que eram três e meia da manhã, quando eu
dei uma levantada, uma espreguiçada, um alongamento básico. Voltei. Fiz a
transparência. Eu só fui dormir aquele dia às cinco da manhã, porque eu fechei
tudo. Eu não estava mais agüentando, mas eu queria continuar fazendo. Fechei
173
tudo. Falei: “Agora eu vou dormir”. Deitei-me na cama e fiquei enrolando mais de
uma hora pra pegar no sono, de tanto que estava interessante. Eu acho que o
DDA tem esse problema. Quando a coisa o instiga, faz você correr atrás. Você
não larga, mas nem que você queira.
Pesquisadora – A apresentação era naquele dia?
Entrevistada - Era no dia seguinte. E eu fiquei tão nervosa que fui umas quatro
vezes ao banheiro, naquele dia. E minha apresentação... a minha professora
montou um esquema de fazer todos os grupos apresentarem. É assim, ela dá o
trabalho em tópicos. Um grupo apresenta um tópico, mas todos têm que saber do
que está sendo falado, para haver uma discussão. E, naquele dia, a discussão
fluiu tão bem, mas tão bem, que até eu participei. [Inaudível] Eu morri de medo,
mas eu participei. Tanto é que, quando mudava de tópico, a professora olhava pra
mim, diretamente, e falava: “Tem mais alguma coisa a acrescentar ou a falar?” Eu
falava: “Não, professora...”
Pesquisadora - Porque você participou bastante? É isso?
Entrevistada – É, e porque o que eu disse na primeira vez da minha participação
ninguém tinha tocado ainda. Foi uma coisa que nenhum grupo abordou. Porque
eu tento, como eu sou uma DDA, fazer tudo diferente de todo mundo. Eu tento
complicar o fácil e o fácil eu faço o mais fácil possível, dependendo da coisa.
Pesquisadora - Isso é um traço natural?
Entrevistada - É um traço natural. Não tem... “Ah mas ela faz isso porque...” Não,
não é. Quando eu me interesso por uma coisa, eu corro atrás, muito. Eu viro rato
de biblioteca, se deixar. E, na Faculdade, essa parte de CA, essa parte do
Conselho e esse meu trabalho que eu comecei agora me interessam. Então, eu
estou correndo atrás. Eu quero participar.
174
Pesquisadora – Eu vou aproveitar e fazer uma pergunta: o que faz esse estudo de
Sociologia ser tão interessante, ao ponto de você ficar até de madrugada
estudando?
Entrevistada - É que a História tem várias áreas. Sociologia seria o estudo da
sociedade, do desenvolvimento da sociedade, com seus pensadores – Marx,
Durkheim e outros que eu não lembro o nome agora. Não me pergunte. E esses
estudos, esses pensamentos – Lutero, reforma religiosa, Renascimento,
Iluminismo –, essa parte me interessa muito. Eu gosto muito dessa área. Eu acho
que até foi por isso que eu decidi fazer História. Eu gosto muito da parte medieval
e da parte antiga. A História Antiga que a gente diz é a parte da Grécia, de Roma,
do início do feudalismo, aquela parte das Cruzadas. Isso me interessa muito,
porque eu acho que, se não fosse isso, a nossa civilização não estaria como está
hoje. E também é uma maneira de... a Sociologia me interessa também muito
porque, a partir do momento em que eu conhecer nossos pensadores, como a
sociedade se desenvolveu, eu vou poder, com base nisso, mudar a minha. Inserir
o comportamento deles na minha. Se for utópico ou não, a gente vai saber
depois. É por isso que eu gosto de Sociologia. Geografia eu gosto, mas já peguei
implicância com o professor [inaudível].
Pesquisadora - Você consegue perceber de onde vem essa implicância, ou não,
ainda não é clara para você?
Entrevistada – É clara. É a maneira como... professor, pra mim, tem que me
instigar, tem que me fazer ficar presa à aula. Por mais que eu esteja fazendo
tratamento, por mais que eu esteja tomando o remédio de novo, e o remédio me
faça ficar concentrada, me dá sono na aula. E o professor tem que me fazer ficar
acesa as quatro horas de aula. Sair da Faculdade cansada, estressada, com
sono, com tudo, sair da sala de aula. Mas por quê? Eu me entretive, eu fiquei lá
prestando atenção, anotando, até com tendinite se der, de tanto que fico lá
anotando. As professoras que eu já peguei uma implicância, que seria a de
Geografia e a de Introdução à História, eu acho que elas não explicam bem, elas
não falam bem, pela explicação delas, para me prender, que nem a de Antiga. Eu
175
posso estar morrendo de sono na aula de Antiga, de História Antiga, mas eu não
bocejo uma vez. Eu posso estar assim só meio mole na aula de Introdução à
História, eu bocejo a aula inteira, o dia inteiro. É só entrar na sala que eu estou
com sono já. Essas coisas que... Os textos são legais, mas a maneira como a
pessoa passa, eu acho que isso é muito... muito importante, a maneira como a
pessoa passa para o aluno é que faz ele se interessar ou não por aquilo. E aquilo
não está me interessando.
Pesquisadora - Pela sua fala, eu percebo que você gosta de desafio. Você
mostrou isso pela preferência ou não por alguns professores. Parece-me que o
desafio que eles impõem aos alunos, à aula, é que a atrai.
Entrevistada - É isso mesmo, é mais o desafio. Porque tem professor que ele
sabe, sabe muito. A minha professora de Introdução à História e a minha
professora de Geografia sabem muito, só que elas usam palavras arcaicas. Usam
palavras que não dá, que a gente tem que ficar... Está certo que é um nível
superior, você tem que ter um vocabulário mais... não dá para ela falar “Ô mano,
beleza! Ah! Então tá! Ah! Tá. Tá bom!” Não dá para ela ficar falando assim. Ela
tem que ter um nível de linguagem, mas a maneira como elas expõem a aula
delas eu acho que é antiga, não faz o aluno se prender.
Pesquisadora – Seria tradicional, uma maneira tradicional?
Entrevistada - É muito tradicional, é tipo Colegial. É aquela maneira batida e
pronto. Ela lê o texto, faz um comentário, um ou dois, e pronto. E fica rodando em
cima daqueles comentários a aula inteira. Só fala a mesma coisa e fica fugindo
muito do assunto. Isso é que me está pegando um pouco a dificuldade em
estudar essas duas matérias. Geografia nem tanto, é mais Introdução à História,
que ela roda, roda... Ela pega, faz a nota de bolo: vamos preparar os ingredientes.
Demora quase quatro horas para montar o bolo. Seria essa a comparação. Agora
tem professor que não. Tem quatro horas de aula, em quinze minutos já fez o
bolo, já serviu, e a gente já comeu e está fazendo outro. As aulas não são
dinâmicas. Aula, pra mim, tem que ser dinâmica, tem que ter todo um jogo,
176
corporal e de fala, e tem que fazer o aluno interagir. Se não fizer isso, não vai me
prender. Não me prende, não dá. “Vou tapear você...” Porque o desafio não é o
professor que faz para mim, sou que faço para o professor. Ele explica a matéria
e eu falo “Na próxima prova eu o desafio. Vou tentar fazer o melhor”. Eu encaro
como um desafio que eu faço para a pessoa. A pessoa me fez, e agora eu estou
retribuindo quando eu estou entrando. É isso que eu penso a respeito de todas as
matérias que eu fiz e que eu estou fazendo, e que eu vou fazer.
Pesquisadora - Essa observação que você faz com relação ao modo de lecionar
de alguns professores você percebia nos outros níveis de ensino, no Fundamental
e no Médio, ou Primário, Ginasial e Colegial? Não sei como você prefere.
Entrevistada - O Primário nem tanto, porque foi mais dinâmico. Eu tive algumas
dificuldades em algumas matérias, mas era porque eu não estudava muito direito.
Essa que é a verdade. Eu era um pouco relaxada. Mas no Ginásio, tive bastante...
tanto é que eu só fui me interessar por História no segundo e no terceiro ano do
Colegial. Na metade do primeiro, quer dizer, na metade da oitava... mas só que
me deu aquilo, “Eu vou fazer História mesmo”, no terceiro Colegial. Porque eu
tinha uma professora dinâmica, dava exemplos na aula que eram exemplos
atuais, não exemplos antigos, aqueles exemplos mais batidos do que aquela
carne que você bate, bate, bate, e, quando você vai pegar, está toda furada de
tanto que você bateu. Isso... É que o professor... Eu acho assim, professor tem
que fazer aluno se prender à aula. Eu já falei isso e vou falar de novo. Mas, por
quê? O professor que não prende o aluno à aula, o que ele consegue? Nada. Eu,
para você ter uma idéia, eu tinha uma professora de Geografia, no meu Colegial,
e até no Ginasial... quando eu mudei de colégio... que eu mudei, na metade do
ano, de um colégio pro outro, porque nesse colégio... É que é assim: eu estudava
em um colégio em Jundiaí, chamado Escola A
14
[uma escola da rede privada de
ensino], e ele não tinha Colegial. E eu mudei para a Escola B [outra escola da
rede privada de ensino], não sei se você já ouviu falar, e lá tem Colegial. Então eu
mudei no meio do ano para a Escola B, pra quê? Pra me habituar ao sistema e já
pra embicar no Colegial, pra já ter uma idéia de como o colégio funciona.
14
Os nomes das escolas foram omitidos.
177
Pesquisadora – Isso foi na oitava série?
Entrevistada – Foi, na metade da oitava série.
Pesquisadora – Você tinha estudado na Escola A de que série até que série?
Entrevistada – Da primeira até a metade da oitava. E, que aconteceu? Quando eu
entrei, fiz todos aqueles... Como que a gente vai falar hoje?... Aqueles créditos
que você tem que fazer... que a gente faz hoje na Faculdade, quando se transfere
de uma para outra. E na Escola B tinha aula de Espanhol e tinha aula de Religião.
Espanhol, a professora não fazia ninguém ficar preso na aula. Era aula vaga. Ela
explicava, explicava e ninguém prestava atenção. Nem eu prestava atenção. E eu
estudava... Como eu nunca tive aquela matéria, eu não estava tendo matéria
naquele ano e passei para lá por transferência. Eu fiz a primeira prova só para
conhecer como é que era, para ficar com a nota do bimestre, mas aquela nota
não ia contar. Ia só contar a minha prova do meu bimestre, que eu cheguei a ficar
com cinco de prova. Na minha primeira prova, como eu não tinha conhecimento
de Espanhol, eu tirei dois e meio, numa prova de zero a dez. Baixíssimo, dois e
meio. Só que depois, no terceiro bimestre, eu fiquei com cinco e meio a seis. A
professora não sabia... ela sabia sobre a aula dela, mas eu não conseguia prestar
atenção. “André, me empresta a lapiseira, me empresta isso?” E sentava de lado
para conversar. Era sempre assim. Eu chegava em casa e me matava de estudar.
Por quê? Eu queria desafiar a professora. Chegar pra ela e falar “Você é péssima.
Eu não presto atenção na sua aula porque eu não preciso disso”. Eu me matava
de estudar e eu fui bem na prova. Eu fiz isso nos meus três anos de Espanhol que
eu tive na Escola B. Tinha uma outra professora, de Geografia também, a aula
dela parecia uma feira, feira livre: era papelzinho, era conversa. Chegava na hora
da prova, eu sempre ficava com média, seis e meio, seis, sete, oito. Chegava em
casa, o livro... abria a cabeça e colocava ele dentro. De algum jeito ele tinha que
entrar. Então, tem matéria que eu tenho facilidade, que eu não preciso me
esforçar para pegar, fazer a... ter todo o trabalho de anotar, prestar atenção. Só
de estudar já fica. História, desde que eu entrei na Escola B, da metade da oitava
178
até o terceiro ano, eu não estudava História. Não vou dizer “Não pegava no livro”.
Pegava, lia, mas não era de ficar correndo atrás, de ficar decorando. Por quê? Eu
fazia os deveres, eu escutava a professora falando, não falava mal. Tanto é que,
no meio do segundo Colegial, veio uma professora nova. Ela vivia me desafiando.
Era muito engraçado. Eu me sentava assim de lado, porque ficava com a carteira
assim e meu grupinho de amigos aqui [mostrando]. Eu vivia assistindo aula, só
que assim. A professora me odiava. Ia perguntar alguma coisa, pra quem ia? Ou
era pra mim ou era para o Carlos, que estudava na minha sala também. Teve
uma vez que ela mandou fazer um trabalho e eu não estava fazendo. Ia ter que
apresentar na próxima aula, que era aula dupla, uma antes e uma depois do
intervalo. Então ela falou assim pra mim... Eu caí num grupo, e eu [inaudível] era
Guerra do Paraguai. Eram aquelas guerras lá, que todo mundo tem que
aprender... Eu caí, acho que foi na do [inaudível], eu e um outro grupo igual. A
menina falou assim: “Quem quer começar a falar, o seu grupo ou aquele grupo?”,
porque são dois temas iguais, que ela [professora] deu dois pra cada um, dois
temas iguais para dois grupos. A menina falou. A professora virou pra mim e
falou: “Tem mais alguma coisa para comentar? Você concorda, você discorda, ou
o quê?” Falei assim pra ela: “Olha, professora, eu concordo com o que o grupo
disse, só que ela esqueceu de frisar isso, isso, isso, isso...” Coloquei acho que
umas vinte coisas que a menina não tinha colocado. A professora ficou de boca
aberta. Gosto de professor assim, não de professor que deixa a coisa toda batida
e depois você chega e tem que ficar decorando e pronto.
Pesquisadora - Eu vou voltar um pouco à sua alfabetização. Você se lembra se
teve grandes dificuldades, se precisou de ajuda na organização dos estudos na
fase de alfabetização? Como foi?
Entrevistada – Eu pego as coisas muito fácil, quando eu quero. Tabuada, foi na
primeira série que eu comecei a aprender. Eu podia falar de cor um dia que eu já
aprendia. Tabuada até que não tive dificuldade. Gramática, enroscava em
algumas coisas, como “ç”, dígrafo, algumas regras de acentuação. Mas
transcorreu como uma criança normal, porque eu estava na fase do remédio.
Então, enquanto eu estava fazendo tratamento, até os 12 anos, eu tinha problema
179
de nota, tinha. Claro, eu não era “a” inteligente. Mas eu tinha minhas notas
vermelhas porque eu não estudava direito. Porque, se eu estudasse direitinho,
era oito, oito e meio de média. Sempre assim. Quando eu ficava com vermelha,
era, das duas uma, ou porque ou encrenquei mesmo naquela matéria ou porque
eu não estudei direito.
Pesquisadora - O que você chama de encrencar na matéria?
Entrevistada – Quando você sente dificuldade, quando você tenta fazer a coisa e
a coisa não vai. Você tenta andar pra frente e parece que a coisa a puxa pra trás.
Essas coisas assim. Eu tinha muita dificuldade na segunda e na quarta série, em
gramática, como eu sempre tive. Ditongo, hiato, tritongo, aquelas coisas que eu
tinha já uma dificuldade. Mas depois, Cursinho e Colegial, que sempre estão
batendo a mesma coisa sempre, eu não tive tanto.
Pesquisadora – Pelo que você diz, as dificuldades são sempre contornáveis.
Entrevistada – São.
Pesquisadora – Parece-me, pela sua fala, que as dificuldades têm sempre
solução. É isso mesmo?
Entrevistada – Depende da dificuldade, depende da solução. Se for uma coisa de
matéria, tudo bem, eu me viro, eu dou um jeito, mas eu tento fazer de qualquer
maneira. Nem que eu tenha que pagar professora particular, nem que eu tenha
que fazer uma... dar um jeito, rebolar, mas eu consigo. Agora se for para o lado
pessoal, na hora de convívio com outras pessoas, implicâncias ou alguma coisa
que eu não estou gostando que a pessoa está fazendo, o assunto muda. Muda
muito.
Pesquisadora - Em que sentido?
180
Entrevistada - Eu estou com problema lá no pensionato onde eu estou, de
relacionamento. Eu quero falar um monte de coisas para uma pessoa. Já está na
garganta, saindo. Muitas coisas que eu discordo que ela está fazendo lá dentro eu
estou querendo falar para ela. Só que sei que, se eu for falar com ela... Eu queria
falar na sexta-feira. Tanto é que, a coisa está tão assim a ponto de explodir já,
que eu fugi – entre aspas. Eu fiquei quase uma semana fora do pensionato. Dormi
na casa de umas amigas minhas, arranjando pretexto para dormir na casa dessas
amigas, para não ter que encontrar a pessoa. Porque se eu encontrar essa
pessoa, da maneira como eu estava com a cabeça quente, era capaz de eu ser
acusada de homicídio, qualificado, porque eu ia descer a lenha nela. Eu ainda vou
descer a lenha nela, mas quando eu estiver mais calma. O meu problema, as
minhas dificuldades, tratando-se de escola, eu dou um jeito, eu me safo. Agora,
de convívio com outras pessoas... Eu não sei se é DDA ou não, mas eu tenho
esse problema de convívio. Eu sou uma pessoa intransigente, impaciente,
impulsiva, agressiva. Pode ser que eu esteja naquele estado de humor péssimo, e
a pessoa me faz uma coisinha, pronto, já está levando patada para tudo que é
lado. Não precisa ser a mesma pessoa. Uma outra comenta uma coisa que eu já
discordo, pronto, é patada para tudo quanto é lado. E relacionamento com
pessoas de fora, pra mim, é muito complicado, porque eu sou egoísta. Eu divido
as minhas coisas, mas, se quer usar as minhas coisas, usa, lava e guarda. Não
usa, deixa de molho e, quando eu vou usar, está suja. Ainda bem que, lá no
pensionato onde eu estou, cada uma tem o seu quarto. Se eu tivesse que dividir o
quarto com alguém, ia ser briga na certa. Ia ser tapa voando para tudo quanto é
lado. Essas dificuldades de relacionamento eu não encaixo. [Inaudível] Eu vou
guardando, guardando, guardando, até a hora que ou eu falo para a pessoa ou eu
não olho mais na cara dela, porque eu não consigo mais olhar, de tanto que já me
pegou no nervo.
Pesquisadora - As dificuldades que você tem, então, estão relacionadas ao lado
pessoal, não ao desempenho escolar? Não dizem respeito ao conteúdo?
Entrevistada – De vez em quando, eu sinto, mas as dificuldades de conteúdo eu
tento me safar de alguma maneira. Eu me viro, eu estudo, passo o dia, dou um
181
jeito, mas aquele conteúdo pra mim vai, numa boa. Mas relacionamento com uma
pessoa diferente, que tem outra mentalidade, não dá. Não dá. Eu sou uma
pessoa muito chata para escolher amigo. Eu sou muito seletiva. Tanto que, na
Faculdade, dos 40 que tem na minha classe, eu só converso com quatro. Quer
dizer, eu conversava com quatro. Agora pulou para três, porque uma menina saiu.
Porque eu quero que a pessoa seja legal, simpática, que não seja falsa, que não
fale de mim por trás, que me entenda, que me compreenda, que tenha saco para
me aturar quando eu tenho as minhas crises de “Ah eu vou morrer. Ah alguém me
ajuda? Ah eu quero a minha mãe! Ah...” Sabe aquelas crises que todo mundo
tem? Porque eu tenho uma atrás da outra. Incrível. Não sei se é porque eu estou
sozinha, sem meus pais, ou porque eu estou numa cidade que eu ainda não me
encontrei direito. E comigo é muito difícil. Eu olho para a cara da pessoa e falo
“Ela é legal”. Não tem o que discutir. Eu posso estar uma semana te analisando,
mas se eu já bati o olho nessa pessoa, ela é legal, acabou. Aparência, para mim,
conta muito. O primeiro dia de convivência com alguém, pra mim, conta muito,
porque o gesto é que vai dizer como a pessoa é. E essa menina que eu estou
tendo problema na casa, eu falei: “Ih, eu acho que o meu santo não vai cruzar
com o dela.” Eu comecei com o meu “ih”. Esse “ih” já é: “É, o meu santo não
cruza com o dela”. Agora as outras meninas que moravam na casa, que elas
saíram, a gente dividia coisas juntas. Elas não implicam comigo, conversam com
meu pai e minha mãe. A gente se ama, a gente se dá super bem. Tanto que uma
virou para mim, quinta-feira, porque elas moram numa casa... Eu estava
estudando na sala. Teve um dia que eu dormi na sala, uma sala pequenininha. Só
que estava frio e eu dormindo no chão, reclamando da garganta, do dente, assim
por diante, que eu reclamo de tudo quando eu fico gripada. Eu faço manha pra
tudo. Ela falou pra mim, na quinta-feira: “Se você dormir no chão, você apanha, se
eu te encontrar aí nesse chão. Estamos conversadas?” Eu falei: “Estamos.” Eu
falei: “Ih, minha mãe falando. Minha mãe falando!”, eu pensei na hora. Eu falei:
“Tá, tudo bem!” À noite, eu fui para a cama. Daí quando... Ela também estava
com dor de cabeça, não estava bem, mas ela acabou de dizer... [Pensei:] “Ih,
minha mãe. Olha minha mãe falando aí!” Eu dormi lá no quarto. Ela: “Sua sorte é
que eu não te encontrei no chão quando acordei, senão você tinha apanhado.”
Falei: “Ich! Ainda bem que eu vim pra cama.”
182
Pesquisadora - Eu vou voltar a essa dificuldade que você citou. O quanto ela
atrapalha na escola?
Entrevistada – O relacionamento?
Pesquisadora – Isso. Que peso ela tem?
Entrevistada – 90%.
Pesquisadora – 90%, você diria? Comparando com matéria, conteúdos?
Entrevistada – Muito mais que matéria, muito mais que conteúdo. Conteúdo, você
se vira, relacionamento, não. Eu tenho amigos, poucos, de toda a minha vida
escolar, eu posso contar quantos, nos dedos, eu tenho, nos dedos. Contando
Cursinho, dois anos de Cursinho, e assim por diante. Eu tenho poucos. Por quê?
Eu sou uma pessoa que aparento uma coisa e não sou. Porque, como eu sou
uma pessoa fechada, a pessoa que bate o olho em mim fala: “Ela é fresca, ela é
metida, ela é isso, ela é aquilo.” Mas não é bem assim. O pessoal que me
conhece sabe disso. Só que, pra mim, bastou olhar a pessoa, naquela semana, e
achar alguma coisa nela que não me passa que ela é [minha amiga]
15
, eu isolo.
Eu isolo muito porque eu já tive caso de amigos por interesse. A maioria dos
amigos que eu tive... e eu só fui perceber isso depois, depois que eu parei de ter
aquele convívio com a pessoa. Porque, eu não sei se é DDA ou não, aí eu já não
posso te dizer, mas eu sou uma pessoa muito emotiva. Isso vem do DDA, alegria,
impulsividade, aqueles sintomas básicos. Mas eu também tenho bom coração.
Então se tem uma pessoa precisando de ajuda, por mais que ela não mereça, por
mais que em vez de ajudar eu queira tacar pedra nela, eu vou lá e ajudo. Muitas
vezes, eu coloquei a minha mão no fogo por pessoas que não mereciam. Eu só
fui perceber isso depois que eu parei de ter o convívio com aquela pessoa. Tanto
é que se aquela pessoa, se eu encontrar na rua hoje, e ela falar assim pra mim:
“Oi Cláudia! Tudo bem? E aí, como é que você está?” Eu: “Tudo. bem.
15
Expressão mais aproximada do que foi possível ouvir.
183
bom” É monossílabo. Não é nem átono nem tônico. É sem acento mesmo, para
não dar ênfase por nada. Eu odeio falsidade. Então, se eu sei que aquela pessoa
é falsa, eu já me travo. Para questão de relacionamento, eu sou assim, com um
pé aqui e um pé lá no Japão. Eu sou muito desconfiada das pessoas, muito
desconfiada das pessoas. Eu sempre acho que elas estão falando mal de mim,
pelas costas. Sempre. Na Faculdade, eu também estou tendo esse tipo de...
embate com as meninas da minha classe. Acho que sempre, quando está todo
mundo reunido, estão falando de mim. Eu sempre tive essa síndrome de
perseguição, como dizem.
Pesquisadora - Quando você diz sempre, é em todos os níveis escolares?
Entrevistada – É, em todos os níveis, principalmente, nos iniciais. Porque, nos
colégios em que estudei, eu sempre caí em classes que eram desunidas, que
sempre tinham intrigas, um queria matar o outro e não sabia como. E já que não
consegue matar, vamos falar mal. E isso me irrita a tal ponto que eu começo a
estourar. Estouro uma na frente da outra, que nem campo minado. Quem está
comigo, está num campo minado. Dependendo de onde pisa, explode. E daí, o
pessoal já me rotula como a agressiva, a “crica”, a chata. Como é que é...? “Olha
lá a metida, a filhinha de papai, quer se achar a melhor e não...” Entendeu? E eu
fico muito brava com isso. Muito brava.
Pesquisadora - Tem algum episódio escolar que você gostaria de relatar? Pode
ser positivo ou negativo o seu enfoque. Se não tiver, não tem problema. É só uma
curiosidade.
Entrevistada – Tem muitos. Um foi no segundo Colegial. Não esqueço até hoje. A
professora deu um trabalho falando sobre Ásia, África. [Inaudível] foi muito legal.
Vários grupos fizeram... Até hoje... Eu podia até te mostrar, mas a minha mãe
jogou fora. É que numa dessas brigas, acabou rasgando e foi para o lixo. Mas foi
assim: vários grupos pegaram países europeus para fazer aquela apresentação
bonita. Fizeram “mil” cartazes. Um cartaz foi com bandeira, um cartaz foi com
mapa, um cartaz foi com foto, um cartaz foi com características, um cartaz foi com
184
isso, um cartaz foi com aquilo. E como eu sou criada por filhos de japoneses, eu
falei assim... E tinha lá Japão, a parte asiática. Eu e uma amiga, a gente só fazia
do Japão. Era a Cristina. Só assim, era grupo. Podia ter quinhentos na formação
dos grupos, mas éramos só eu e ela. Se eram grupos de cinco, fazíamos sempre
nós duas juntas. E a professora falou assim: “... Sobrou lá.” O que é que tinha
sobrado? Ucrânia, Japão, Austrália e Portugal, acho, estavam ainda entre os
nomes para serem escolhidos. Eu virei e falei: “Eu não sei quanto à Cristina, mas
eu vou fazer do Japão”. Minha avó, quatro anos antes, tinha ido para o Japão.
Então, tirou fotos. Eu falei: “Vou pegar umas fotos emprestadas da minha avó,
vou levar para o trabalho”. O nosso cartaz, eu me lembro como se fosse hoje, era
uma cartolina preta, com aquele Durex azul em volta. Em cima estava escrito
Japão, com a bandeirinha. Tinha um gráfico – porque todos tinham que ter
gráfico. Não interessa que gráfico que era, era um gráfico. Todo mundo colocava.
Eu coloquei um gráfico de natalidade, do lado de natalidade, [inaudível] e um de
produção. Do outro lado, a gente colocou um mapa do Japão, e esse mapa
mostrava as produções agrícolas, um movimento ou outro. O que mais? E a
bandeira do Japão, em cima, do lado do nome, branca com a bolinha vermelha. É
isso. Todos nós fizemos o nosso trabalho. Aquele dia, havia cinco grupos para
apresentar e o nosso não ia dar tempo. Não ia dar tempo. Só faltavam
exatamente cinco minutos para acabar a aula. Sabe o que são cinco minutos
preciosos para acabar a aula? A professora falou: “Você quer apresentar agora ou
você quer apresentar na próxima aula?” Mas como o nosso trabalho estava para
ser apresentado naquela hora, eu falei: “Eu não vou apresentar no outro dia.
Vamos apresentar agora.” Só tínhamos nós e o nosso cartazinho. E eu não gosto
de, quando vou apresentar alguma coisa, ficar lendo o que estou fazendo. “Ah...
isso, isso, aquilo...” Eu odeio ler. Eu leio o papel, mas toda vez que vou falar lá na
frente, eu improviso e começo a gaguejar. É muito engraçado. E que aconteceu?
A minha amiga lia e fingia que não estava lendo. Ela lia uma parte, a outra parte
que estava embaixo, ela falava. Ela mostrou tudo, os gráficos, eu fiquei
segurando o cartaz. E ela foi falando a parte dela. Eu virei e falei: “Gente, é o
seguinte”, eu falei a minha parte. “Agora algumas curiosidades, algumas coisas
que eu trouxe meio que em off. Minha avó foi para o Japão, há não sei quantos
anos, uns quatro ou cinco anos atrás, e eu estou aqui com umas fotos que eu
185
queria que vocês dessem uma olhada. Mas antes de eu passar as fotos para a
sala, vou mostrar algumas que eu queria que vocês observassem e vou explicar o
que é”. Porque, um dia antes, fui perguntar para a minha avó: “, que é isso?”
Ela falava, e eu: “, que é isso?” E fui fazendo. Eu expliquei, contei para todo
mundo. Aqueles cinco minutos viraram quase quinze. E a classe, o mais
engraçado, enquanto todo mundo, todos os outros grupos apresentavam, todo
mundo conversava. Mas no meu grupo, quando eu... Toda vez que eu
apresentava algum trabalho, eu não sei por que – se é espírito de liderança –, não
sei o que é, o pessoal ficava quieto. Dava para você escutar um pernilongo na
sala. O pessoal, depois que acabou a aula... É que é assim: lá na Escola B, bate
o sinal da aula, daí você tem uma tolerância de três a quatro minutos para o
professor chegar na sala, porque uma sala é aqui embaixo e a outra é lá em cima.
Até o professor descer escada, chegar na sala, demora um pouco. Então tem
uma tolerância de uns cinco minutinhos lá. E, nesses cinco minutinhos, aluno vai
ao banheiro, tomar água. O professor da outra aula estava esperando. Falou
assim: “O que aconteceu aqui?” E a classe: “Não, professor, é que a Cláudia
estava apresentando o trabalho dela sobre o Japão. Precisava ver que
apresentação!” O pessoal elogiando assim. Daí que eu percebi que tinha jeito
para ensinar alguém. Aí que eu comecei a pensar em ser professora. [Inaudível]
Outros dois episódios que eu estou lembrando foi um no ano passado que uma
amiga minha do Cursinho teve dificuldade em História. Eu dava aulas para ela.
Tanto que uma vez, eu até catei emprestado o mapa múndi, porque eu estava
explicando e coloquei na lousa. E comecei a falar: “Não, porque isso, porque
aquilo...” E o filho do diretor do colégio, além de ele trabalhar na secretaria, ele
também dava aula de História. Teve uma hora que ele parou, ficou olhando. Ele:
“O que está acontecendo aqui?” Eu: “Não, professor, é que eu estou tirando uma
dúvida da Márcia e eu estou explicando.” Eu desenhei... Não, eu não tinha
pegado o mapa ainda, eu só tinha desenhado o mapa, mas ficou direitinho o
mapa da Itália desenhado na lousa. Ele falou assim: “Você não quer pegar o
mapa lá embaixo, para te ajudar? Se bem que o seu desenho ficou perfeito!” Você
sabe como é o desenho de historiador, né? É assim [desenhando em uma folha
de papel sulfite]: Brasil, é um triângulo; Itália, muito mal desenhado, é isso; e
assim por diante, é um rabisco. Então tem horas... tem professor que não
186
desenha nem mapa para não correr o risco de ser vaiado. Ela virou um dia e
falou: “É, você merece... sabe explicar melhor que outros professores. Eu vou te
dar um presente no fim de ano.” Eu falei: “Imagina, Juliana, não precisa, o que é
isso? Não precisa! Você aprendeu?” Ela: “Aprendi.” [Eu:] “Então está bom,
pronto!” E um agora [outro episódio]... [relembrando] o do trabalho da minha avó
foi no segundo ano. O da [inaudível] foi ano passado, no Cursinho [episódio
anterior], e esse ano, foi quando eu fui dar um recado para a sala, porque deu um
“rolo” lá, e eu estava como representante de sala, até arrumarem um
representante. A mosca imperou na sala, a classe inteira quieta. Ninguém
contestou. Só teve um que fez uma pergunta, mas o resto, todo mundo prestando
atenção. E toda vez que eu vou dar um recado naquela sala, é isso, todo mundo
fica quieto e escuta, fica até mais quieto do que em aula normal.
Pesquisadora - A que você acha que se deve isso?
Entrevistada – Não sei se é dom, se é... Já me falaram muitas vezes que eu tenho
espírito de liderança, que já dá para ver que a pessoa é meio líder. Tanto é que já
até me compararam com Hitler, por causa disso. Porque, apesar das barbáries
que ele fez, ele foi “o” gênio. Porque para ele fazer o que fez, ele teve todo o
espírito de liderança, de dominação, o dom de convencimento das pessoas, para
que elas entrassem na causa do jeito que fizeram. E falam que eu tenho isso,
muito disso. E até que eu brinquei: “Então, eu vou ser o presidente da República
daqui a pouco!” Porque querem me colocar em tudo dentro daquela Faculdade.
Antes, era representante de sala. Eu fui, mas aí falaram que o método não foi
democrático. Eu falei: “É até as eleições.” [Eles:] “Então está bom.” Daí eu entrei
na suplência. Da suplência, querem me jogar para presidente do CA. E para
presidente do CA... o pessoal não está nem mais falando em presidente do CA,
está falando em DCE, Diretório do Centro Acadêmico, do Centro Estudantil.
Então, o povo está querendo que eu vá lá para frente. Eu estou fazendo História,
eu não quero pegar pepino. “É que é comissão de formatura.” “Ma quê, é
comissão de formatura! Não sou louca!” Querem tacar tudo na minha mão lá
naquela Faculdade. Não sei por quê. Eu falo para o pessoal... Eu sei que eu
187
tenho o dom de reunir as pessoas, prender as pessoas, fazer com que elas se
mobilizem por alguma coisa.
Pesquisadora - Qual o preparo que você percebia, ou não percebia, nos seus
professores para trabalhar com o aluno que tem o déficit de atenção.
Entrevistada – Não tem preparo nenhum. Nenhum. Porque o professor não sabe
o que é, muitas vezes. Acha que aquele aluno... que está fazendo de tudo para
chamar a atenção, que muitas vezes acontece com DDA. Ele está fazendo aquilo
de propósito, só para implicar, para virar para os pais e falar “Olha, pai, olha pra
mim.” E, às vezes, encara isso até como falta de educação do aluno. Mas, às
vezes, não é. Reclama do aluno e como profissional não sabe dizer o que é:
“Esse aluno é malcriado, mal educado. Ele não tem compostura na sala de aula.”
Ou então, muitas vezes, prefere que o aluno durma para não encher o saco, não
ter problema com aluno. Eu tinha um amigo meu, no Cursinho, no ano passado,
que ele, vira e mexe, saía da sala. Por quê? Vira e mexe, ele pedia para tomar
água. E quando ele ficava na sala, ele dormia. E tinha professor que não queria
deixar ele dormir. Mas viu que ou ele dormia ou ele dormia, senão ele enchia o
saco da sala inteira. E o pouco que ele ficava acordado, às vezes, ele fazia a aula
render. Se não, deixa o aluno dormir. É a melhor coisa que você faz.
Pesquisadora - O aluno fazia a aula render?
Entrevistada – É, às vezes, com as perguntas ou quando o professor perguntava
para ele. Ele já sabia a matéria, ele já respondia. Se não, era sono. Ele chegou
até a roncar, uma vez. Pagava para dormir. Eu achava que ele tinha DDA, tinha
todas as características. Mas não sei se ele procurou ajuda. A gente perdeu o
contato depois.
Pesquisadora – Você acha que, se tivesse professores preparados para trabalhar
com o déficit de atenção, teria mudado o quê na sua formação?
Entrevistada – Tudo! Não teria sido muito difícil, teria sido melhor, muito melhor.
188
Pesquisadora – Apesar dessas facilidades que você apontou para trabalhar com
os conteúdos?
Entrevistada – Lógico, teria sido essa idéia que eu faço.
Pesquisadora – No sentido de ser...
Entrevistada – ... a melhor. Eu não teria as dificuldades nas matérias que eu tive e
teria muito mais facilidade nas que eu já tinha. Porque eu vou ver se eu consigo
ser diferente dos outros professores. Eu vou tentar fazer o aluno ficar preso à
minha aula, porque o DDA não consegue ficar preso à aula, por quê? Porque tem
coisas mais interessantes ao seu redor. Porque eu estou olhando aqui, mas eu
[inaudível]. Mas por que isso acontece? Porque eu não estou presa totalmente
àquela aula. Ou senão me dá sono. Só de saber que o professor vai dar aula, já
começo a bocejar. Por quê? Ele não sabe prender o aluno. Eu vou ficar
prendendo os meus alunos. Vão prestar atenção em mim. Dar um tempo para
fazerem as brincadeiras, as piadinhas, porque tem que ter. Uma aula de 50
minutos, nunca é de 50 minutos. [Tem de] dar aquela quebrada. Mas mesmo
assim, você tem que fazer o aluno pegar você. Você tem que pegar o aluno e o
aluno tem que te pegar. Não adianta você querer pegar o aluno e o aluno não
querer te pegar. Se eu tivesse tido professores, no meu ensino, até no Superior,
que é onde as pessoas menos sabem, com uma dinâmica diferente... Porque o
que falta, eu acho, nas escolas, independentemente se você tem DDA ou não, é
uma dinâmica do professor. Porque a dinâmica que ele monta na aula é que vai
dizer se a classe vai bem ou se a classe vai mal. Uma vez, estava corrigindo
umas provas de Matemática. Olha só, Matemática! Tudo a ver [com ironia]! É que
eu estava ajudando a Márcia, que é uma amiga minha, que morou no pensionato,
professora de Matemática. Estava corrigindo as provas dela. E ela fez um jogo
com os alunos, com tabuleiro. Mas Matemática, num jogo de tabuleiro? E escola
estadual foi sempre A, B, C, D. As provas que eu corrigi eram B e A, a maioria.
Por quê? Ela soube fazer o aluno se prender àquela aula. Agora, eu estava vendo
umas [provas] de matriz com ela, que ela estava me mostrando. D e E. Por quê?
189
O aluno não ficou preso àquilo. Eu adorava, eu amava, quando eu estava no meu
ginásio, quando a professora fazia Bingo com a gente. Era super legal. Eu tinha
uma professora de História que fazia Bingo com a gente. Ela fazia as cartelas, eu
com... É... escrito Bingo. Os números e cada número tinha uma resposta de uma
pergunta. Assim, do tipo pergunta e resposta. Se você tivesse aquela resposta,
você marcava na sua cartela. E quem ganhasse o Bingo, ela dava um chocolate,
um número de balinha, por rodada. Então, a aula ficava “presa”, era legal. De
Inglês também. Eu aprendi algumas coisas de Inglês por causa disso. A
professora chegava, virava e falava “Olha, você vai para fora.” Depois ela
chegava para o aluno e falava: “Olha, agora pode voltar.” E a gente começava a
falar algumas palavras. A classe tinha que fazer mímicas. Era legal. Era divertido.
Umas coisas assim diferentes, não só aquela coisa de livro didático, livro didático,
livro didático, lousa, lousa, lousa, dever, prova. O que é isso? Nada.
Pesquisadora – Você, cursando a Universidade, mostra que superou algumas
dificuldades para chegar – você é bem jovem – no primeiro semestre de uma
Faculdade bem conceituada. A que você atribui a superação das dificuldades
pelas quais você passou até chegar à Faculdade?
Entrevistada – Sinceramente? À volta do tratamento que eu voltei a fazer, porque,
até então, chegava... Quando eu fazia Escola C... Eu fiz Cursinho na Escola C. O
primeiro ano de Cursinho foi na Escola C. Fazia os exercícios, aqueles mais
cabeludos possíveis e imagináveis. Eu dava um jeito, mas chegava no resultado e
fazia certo. Porque, quando você está fazendo Cursinho, o professor não vai
corrigir os exercícios na lousa. Na apostila, tem os exercícios; atrás da apostila,
tem as respostas. Tem que bater. Se bateu, ótimo; se não bateu, se ferrou. É bem
assim. Só uma vez ou outra, quando o professor está adiantado com a matéria
que ele dá, tem um exercício que ele acha que não vai dar mesmo para a gente
fazer: “Olha, gente, vou fazer com vocês porque...” No mais... Eu já falei que eu
sou movida pela emoção. Então as minhas notas também refletem o meu estado
de humor. Meu estado sentimental. Peguei uma provinha no primeiro dia de
Cursinho só para... não era nenhuma novidade. Fui super mal. Pra quê?
Derrubou! Porque tinha gente que tinha visto... porque era matéria simples,
190
ridícula. [Inaudível] e eu consegui errar ainda. Eu tive um namoradinho no
Cursinho, na Escola C, e as minhas notas começaram a subir. “Se eu não
estudar, eu não vou poder vê-lo. Se eu não puder vê-lo, eu vou ficar triste. Então
vamos estudar.” Então eu preciso de um incentivo a mais para estar movendo
também as minhas notas. Se eu não tiver incentivo, a coisa não anda. Eu até fiz
um desafio com um amigo: “Eu quero ser melhor do que você.” Então vai lá.
Racha de estudar. Mas estuda, estuda, estuda, chega na hora do simulado, dá
aquela parada. Chega na hora do Vestibular, pode ser o mesmo exercício, com o
mesmo resultado, com o mesmo número, do mesmo jeito, não vai.
Pesquisadora - O que acontece?
Entrevistada – Trava, trava tudo. Eu complico tudo. Tudo por causa... do
contrário. Um exercício que você tem que fazer desse jeito, de uma maneira, bem
fácil, eu falo: “Está errado! Está errada essa maneira. Não pode ser isso. Tem
que... Esse cálculo só vai dar certo com a fórmula. Sem fórmula, não dá certo.”
Quando vai ver, a fórmula está errada e o seu cálculo anterior estava certo. Eu
perdi nessa brincadeira umas dez questões de Vestibular, nas provas que eu
fazia. Conceito, eu sou... Se você me der uma prova de Física com conceito e
com cálculo, eu vou mal nas duas, mas eu vou pior na de conceito do que na de
cálculo, porque na do cálculo eu dou um jeito para dar certo o resultado que você
me pede. Mas o conceito, eu não gravo muito conceito. Eu sei o que é, mas eu
não sei passar no papel.
Pesquisadora – A organização da definição, da idéia, é que fica complicada?
Entrevistada – Gramática, eu sei o conceito e não sei colocar no papel. Geografia
e História nem tanto. Mas, Inglês também eu sei o conceito, mas eu não sei
colocar no papel. Espanhol eu me viro, mas é também por aí.
Pesquisadora - Quando eu conversei com sua mãe por telefone, ela me falou de
uma comunidade virtual na internet...
191
Entrevistada – Orkut!
Pesquisadora – Eu gostaria que você falasse um pouco sobre isso.
Entrevistada - É uma comunidade de amigos. Para você entrar lá, você tem que
ser convidada por alguém que está lá dentro. Exemplo: eu estou lá dentro e te
convido. Se você quiser chamar os seus amigos, você vai lá, manda e-mail para
eles e os convida. E todo amigo que você convidar vai entrar na sua lista. E quem
está lá dentro, se eles te acharem, podem te adicionar. Vai depender se você vai
querer ou não adicioná-los na tua lista também. É assim que funciona. E lá tem
várias coisas, e-mail, chat, e fotolog, blog, tem tudo. Lá é um mix de tudo. Mas o
muito legal de lá é que tem umas comunidades dentro, com vários temas: DDA
[Distúrbio de Déficit de Atenção], TDA [Transtorno de Déficit de Atenção], tem de
História. Há várias: de saúde, de animal, de viagem, de comida, de tudo que se
possa imaginar tem. As comunidades que eu tenho na minha página pessoal são
as mais piradas possíveis. Uma não tem nada a ver com a outra. Eu tenho duas
de DDA, duas “Eu odeio acordar cedo”, uma no meu nome. Quer dizer, que
inventaram, já tem umas 300 pessoas com o mesmo nome. “Qual é o seu nome?”
“Cláudia.” “Legal.” De escola, de História. Eu tenho de mitologia chinesa. Eu tenho
acho que... umas 30 comunidades. Tem gente que tem 1000 comunidades. E tem
só que... Por mais que eu tenha bastante comunidade, eu não entro em todas.
Essas comunidades servem como um fórum. Só que em vez de você se inscrever
no fórum, você entra no Orkut. Você achou aquela comunidade, você entrou. Aí
você vai em cada assunto... naquele tópico, com a pessoa. Ele lança uma
pergunta e boa.
Pesquisadora – E você tem acompanhado as discussões sobre o déficit de
atenção por essa comunidade?
Entrevistada - Às vezes. É que agora pouco. Eu estou lá em Pira [Piracicaba],
então eu não tenho como ficar acompanhando toda hora. Mas quando eu entro,
eu vejo. Já descobri que 90% dos acidentes de carro são causados por déficit de
atenção, que a maioria das pessoas que tem déficit de atenção tem um nível de
192
leitura acima da média nacional. O que eu falei em off [antes do início da
entrevista], eu li 12 livros para o Vestibular. Eu li 12 livros! Tem uma menina, que
também tem DDA, que às vezes ela tem crise de insônia junto. Numa noite, ela lê
quatro livros. Só que o livro tem que prender o leitor. Se ele não prender, o livro
pára e fica lá tomando poeira. Eu só não estou conseguindo terminar o meu
“Anjos e demônios” porque eu estou sem tempo, porque senão eu terminava.
Porque eu nunca consigo pegá-lo para ler. E quero começar a ler “Tróia” agora,
por causa de História.
Pesquisadora - Você sempre teve facilidade com leitura, como aponta ter agora?
Entrevistada - Eu tenho facilidade para leitura, só que tem um porém nessa
facilidade, não pode ser uma leitura imposta. Não é que nem você chega lá no
Colegial e você tem que ler “esse” livro. Eu começo a ler o livro, mas se eu não
gostar do livro, o livro não rende, o livro pára. Nem resumo adianta. Nem resumo
adianta! Agora, se eu gostar do livro vai. Pra mim, o livro... Eu tenho que ver a
capa dele, quando eu for comprar o livro. Eu tenho que ver a capa dele, virar
atrás, e ver mais ou menos uma sinopse do que está contando aquele livro. Se eu
gostar da sinopse, eu encho o saco do meu pai até não puder mais, para ele
comprar o livro. Pra você ter uma idéia, “Senhor dos anéis”. Aquela febre do
“Senhor dos anéis”. Assisti ao primeiro filme. Saí revoltada do cinema, apesar de
eu saber que era uma trilogia. Eu já sabia. Tudo bem. Naquela época: “Ah não!
Eu vou ter que esperar até o outro ano para ter um outro filme, para depois
esperar outro ano para fazer outro filme. Não, eu quero ler o livro.” O livro: R$100.
Aquele grosso, grande. Eu falei: “Eu não vou ficar comprando primeiro um, depois
o outro, depois o outro. Eu compro os três juntos.” Começou a abaixar, abaixar,
abaixar. Até que teve um dia que eu estava em São Paulo com a minha mãe, o
livro estava de R$75 por R$69 e pouco. Eu enchi o saco dela: “Não, mãe! Por
favor, compra pra mim? Eu quero ler. Está barato!” Ela falou assim: “Quanto
está?” Comecei, ... Eu ia fazer o trabalho de convencimento, para falar. Ela
falou: “Tudo bem. Eu compro. Pega lá o livro.” A “Bíblia”. Ela: “Espere aí! Quanto
é que está?” Eu: “R$69,50.” “Barato?!” Eu: “Mãe, esse livro, até tal dia, estava
quase R$100. Mãe, eu estou gostando de ler.” Ela: “Está bom, vai. Compra.”
193
Comprei o livro. Quando gosto da coisa que eu estou fazendo, eu paro tudo. Se
eu estiver assistindo TV, eu paro de ouvir do lado... A casa pode estar caindo,
mas eu estou presa à programação da TV. Eu estou assistindo... Se eu estiver
acompanhando uma novela, alguma coisa assim, e estiver jantando, o olho fica lá,
o garfo fica aqui, até o comercial. Daí o garfo vai pra boca. Eu começo a comer,
mas eu não desgrudo. Mas é... assim. Tanto é que eu sou a última a terminar de
comer. Para fazer janta, quando eu vou pra cozinha, eu chego até a queimar a
comida, às vezes, por causa... E quando eu leio um livro, pra mim, o livro tem que
ser assim. No começo do “Senhor dos anéis”, eu achei ele meio chato, a parte
que fala do hobbit. Eu falei “Poxa, não vai começar nunca essa coisa chata? Meu,
que coisa absurda, que coisa chata!” Comecei a ler o livro... Era assim: eu
acordava às 8h da manhã, fazia tudo que tinha que fazer (porque a empregada
estava de férias), terminava às 10h. Fazia tudo correndo. Deitava na minha cama,
porque, como aquele livro é pesado, não dá para você ficar segurando. Então eu
o colocava na cama e ficava lendo. Formigava perna, braço, tudo. Ficava lendo,
até a hora do almoço. Largava tudo. E minha mãe: “Cláudia, você não vai
almoçar?” Então ia, almoçava, lavava, limpava a cozinha e voltava para o quarto.
Das 2h até às 9h da noite, na hora de dormir. Parava, tomava banho, jantava,
esquecia a TV, voltava para o quarto e continuava lendo até as 4 da manhã do
outro dia. Tanto que teve uma época que eu estava tão entretida no livro, mas tão
entretida no livro, que minha mãe ameaçou de jogá-lo fora, porque eu não fazia
as coisas direito para ler o livro. Eu falei “Calma, mãe. Já está acabando.” [e
continua repetindo o diálogo das duas, durante a discussão por causa do livro].
Outro livro também que me prendeu assim: “Código da Vinci”. Eu já tinha ouvido
falar do livro. Caiu o preço, falei: “É agora. Se não for agora, não quero mais.”
Enchi o saco, foi lá e me deu. Li o livro. Em três dias eu acabei o livro. Tanto que
eu comecei a ler o livro na Marlene [psicóloga]. Eu tinha começado a ler o
“Senhor dos anéis” pela quinta vez já, mas como o livro era muito pesado, falei:
“Vou levar o ‘Código da Vinci’, vou dar uma folheadinha lá.”
Pesquisadora - Na sala de espera?
194
Entrevistada – Não, na sala, junto com a minha mãe. Naquele dia, eu participei da
sessão. Ela, fazendo a sessão, eu não escutava o que elas estavam falando. Eu
lia. Em menos de meia hora de sessão, eu já estava no capítulo três do livro
[risos]. Isso porque a Marlene me perguntava alguma coisa em relação à minha
mãe, eu parava, falava, comentava, ou comentava sobre o livro (que ela já teve
paciente que leu), voltava e continuava lendo o livro. Porque, quando eu gosto da
leitura, eu posso parar de ler o livro na página cem e ainda faltam mais quarenta
páginas... Eu posso demorar para voltar a ler por vários meses, mas eu sei onde
eu parei. Se eu pegar para continuar, eu sei tudo que eu li. É como se a história
voltasse. É como se eu tivesse acabado de ler. Eu volto, termino de ler, como se
eu não tivesse... Agora, se eu pegar um livro de que eu não gosto, volto na
primeira página. Começo a ler tudo de novo, porque não vai. Não vai!
Pesquisadora – Interessante! Tem mais alguma coisa que você queira dizer,
Cláudia? Com as questões, eu encerrei.
Entrevistada – O que eu sempre falo, eu sempre falo na comunidade [virtual,
sobre TDAH], é bom e não é ter DDA. É bom porque seu lado de criatividade, seu
modo de... O lado bom da coisa é que você se envolve mais, você cria mais, você
se entrega mais às coisas que está fazendo. Mas o lado ruim é que você tem que
saber lidar. Se você não souber lidar com isso, você não... não anda. Tem muita
gente que reclama porque não sabe lidar com o que tem. Eu gosto de ter DDA,
adoro, mas controlado, não descontrolado. Fazendo tratamento, tudo bonitinho,
porque se eu deixar ele descontrolado, aí já fica aquela bagunça. É isso.
Pesquisadora – Eu agradeço muito a sua entrevista.
[A entrevistada pediu para falar sobre outra questão.]
Entrevistada – Quando eu parei o tratamento, com 12 anos, até os 15, acho, eu
não saía de casa para nada. Era muito quieta. Não parecia que eu tinha
hiperatividade. Tanto é que o meu pai falou: “Como ela é hiperativa?” Era mais
quieta do que uma lesma. Quieta, devagar, porque quem é hiperativo corre, não
195
pára em casa, é rodeado de amigos (rodeado de amigos entre aspas). Mas
aqueles mesmos amigos não paravam em casa, porque, na minha infância, eu
era rodeada de amigos. Vivia vindo gente aqui em casa para me chamar para
brincar. Eu saía de casa às 10h da manhã e só voltava, dependendo do horário,
quando era horário de verão, seis e meia, sete horas da noite.
Pesquisadora - Isso até que idade?
Entrevistada – Até os 10 anos. Depois disso, eu me fechei para o mundo, até os
15, 16. Eu era hiperativa, mentalmente. Quer dizer, eu já era, fiquei pior ainda,
mas, exteriormente, eu não era como quando eu era criança. Eu era mais parada
que uma lesma. Hoje, não. Hoje eu tenho uma vida social, tenho meus amigos, eu
não paro... Quem me vê na Faculdade fala que eu sou louca, porque eu não paro.
Sala de aula... Acabou sala de aula: biblioteca e internet. Se não é isso, é alguma
coisa relacionada ao CA. Corre atrás da... Dá idéia de fazer programação para o
outro ano, já começa a discutir outras coisas. Eu, quando eu estou no intervalo –
como diz o meu professor de [História] Antiga, recreio: “Crianças, vamos para o
nosso intervalo, ou recreio!” –, eu não paro no pátio, eu não paro e sento. Eu só
paro e sento por causa das meninas, porque se deixar, se eu ficar sozinha, eu fico
circulando a Faculdade inteira. Vai para a biblioteca, vai fazer isso, vai fazer
aquilo. Vai tirar xerox, conversa com um, conversa com outro. Eu tenho muita
facilidade de conversar com todo mundo também, porque... Na minha classe, eu
converso com todo mundo. Todo mundo que você possa imaginar. Até neguinho
que não é do meu curso eu converso. Eu nunca vi na vida... Ontem uma menina
que cursa fono [Fonoaudiologia]... a gente trocou altas idéias. Ela me deu altas
dicas. Eu não sabia o nome dela e ela não sabia o meu. Mas sei que ela está na
Faculdade. Ela já me deu umas dicas de iniciação científica, do Inglês que eu
estou querendo fazer, entre outras coisas. O pessoal olha assim pra mim...
porque todo dia eu apareço diferente na Faculdade. Tem dia que eu levo uma
malinha: quer dizer que eu vou dormir na casa das meninas. Outro dia, é quando
eu estou voltando com a malinha, ou seja, eu estou voltando da casa das
meninas. De vez em quando, eu passo a semaninha lá. E eu não tenho senso de
direção. Outra coisa também que o DDA não tem é senso de direção. Não sabe o
196
que é direita, esquerda, sobe e desce. Não sabe! A Faculdade fica [inaudível] à
direita. Vira e mexe, eu vou para o outro lado do bloco. Eu quase tive a idéia de
levar umas migalhinhas de pão e ficar jogando para seguir o caminho. Tanto é
que da última vez que eu fui na casa das meninas, na quinta-feira, eu não errei o
caminho. Elas fizeram uma festa, falaram que ia gear, cair neve. Por quê? Eu não
errei o caminho. Primeira vez que eu não errei o caminho. Uma vez eu peguei
carona com um amigo para ir à casa das meninas. Eu fui parar do outro lado do
bairro. Porque a minha idéia da casa delas era para lá, para a direita, não para a
esquerda. A gente rodou o bairro inteiro e não achou a casa. Daí eu lembrei de
um ponto de referência. Porque comigo só ponto de referência. Escola D, que
elas moram na rua de baixo. O pessoal: “Ah... faz assim, assim, até chegar.” Aí
que a gente chegou na casa. Mas isso, já tinha passado o quê? Uns 20 minutos
procurando a casa. E eu ficava desesperada: “Poxa! Estou de carona, o cara está
me fazendo um favor e ainda eu estou perdida. O que é isso?” Eu me perco muito
fácil, muito fácil. E uma coisa também que eu sinto dificuldade é de ensinar o
caminho para a pessoa. ”Ah pega esquerda, pega direita.” Eu não sei... Comigo é
na hora: “Você tem que virar aqui. Pronto! Em cima, na bucha!” Tanto é que lá
perto do pensionato onde eu estou, tem um Pão de Açúcar, na Regente Feijó. Só
que o quê? Cinco quadras para cima e três quadras para a esquerda. Eu falei
para a menina: “Não, você sobe a rua, vai reto.” Ela foi parar do outro lado da rua,
porque eu tinha esquecido de falar para ela virar. Toda vez que eu vou indicar
alguma coisa para ela, ela diz: “Está bom, Cláudia, não se preocupe. Eu já sei,
você não sabe me indicar. Está bom, eu me viro. Quem tem boca vai a Roma.”
Mas é assim.
Pesquisadora – Obrigada pelo acréscimo.
197
Entrevista com Paulo
Paulo tem 32 anos, é solteiro, mora em São João da Boa Vista, atua como
Coordenador Pedagógico em uma escola pública estadual e cursa Psicologia, o
segundo curso no Ensino Superior (o primeiro foi Ciências Contábeis), em uma
Faculdade particular. Teve o diagnóstico do transtorno na idade adulta. Faz
tratamento com psicoterapia.
São João da Boa Vista, 4 de junho de 2005.
Pesquisadora – Paulo, fale sobre a sua trajetória escolar, apontando: a) Em que
fase da escolaridade você descobriu o TDAH? b) Como foi a sua passagem pelos
ensinos: Fundamental, Médio e Superior, especialmente neste último? c) O que
você fez (e faz) para superar dificuldades decorrentes do transtorno?
Entrevistado – A fase de escolaridade que eu descobri... Estou com 32 anos...
Descobri está fazendo dois anos o Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade. Eu sempre tive problemas escolares, problemas de rendimento e
altos e baixos. Tinha época da minha vida, principalmente de primeira à quarta
série, que eu tive muita dificuldade. Eu era muito teimoso, bocudo, briguento.
Minha mãe chegou precisar assistir aula comigo, porque eu falava assim: “Não
vou copiar!” Aí a professora chamava a minha mãe. Fui expulso na quarta série e
fui parar na Escola E [uma escola estadual da cidade]. E sempre assim... toda
minha vida escolar. Tinha época boa, tinha época ruim. Eu me lembro do terceiro
ano do Colegial. Eu sempre fui um bom aluno em Matemática, a partir da oitava
série. Na sexta e na sétima séries, eu cheguei a ter professor particular. Aí, de
vez em quando, eu dava um banho nos meus colegas. Então é assim, tem
coisas... no que eu me dou muito bem, é fantástico. É como em Triatlon, se eu
soubesse praticar bem. Então, se eu gosto, eu vou atrás, eu me destaco no que
eu gosto. Agora, naquilo que eu não gosto, eu me mantenho como uma criança
de cinco anos porque eu não consigo, é um bloqueio. Eu mostro agressividade. E
de gostar de fazer... sempre é... procuro fazer as coisas da minha maneira. Nunca
gostei de copiar matéria e esse é o meu grande problema. Meu curso, meu
198
primeiro curso foi lá na Instituição A. Foi, acho que, em 90, 91, 92 e 93, que foi
Ciências Contábeis. Eu sempre assisti aula, anotando o mínimo possível. Eu
costumo anotar fazendo tópicos. Eu não anoto tudo o que o professor fala, tudo o
que o professor escreve. Eu só coloco os títulos.
Pesquisadora – E depois você se lembra?
Entrevistado – Só de olhar os títulos. Eu tinha que fazer uma entrevista num
trabalho com a minha terapeuta, porque eu tinha uma visita com ela, e eu me
lembro que eu coloquei em torno de 10 [palavras] até. Eu não sigo linhas. Outra
vez, eu tive que usar até folha de papel sulfite, porque eu não sigo linhas. Então
eu anotei em torno de umas 12 a 15 palavras. Eu achei que era só pra comentar
na sala. No dia em que eu fui falar, o professor falou: “Tem que entregar tudo o
que a terapeuta falou.” Aí eu escrevi uma página. Com aquelas 12 a 15 palavras,
eu fiz uma redação. Depois que eu comecei a fazer Psicologia, na... [área] do
cérebro humano – eu sou formado na área de exatas –, eu escrevo, estou
escrevendo melhor. Estou escrevendo muito. Mudou muito a minha vida. Na
minha primeira Faculdade, sempre que chegava época de prova eu xerocava o
caderno dos meus colegas, porque eu não tinha nada anotado. Mas eu ia muito
bem nas minhas provas. Sempre fui um dos primeiros a entregar. Minha caligrafia
é horrível, desde o fato de lista de supermercado... Eu chego no supermercado, e
eu não sei o que eu escrevi. Não é que eu erro pra escrever, mas quando eu vou
escrever uma palavra, eu começo a escrever o começo dela e, às vezes, eu já
estou escrevendo o fim. Então dá a impressão de que eu erro a todo o momento,
mas o pensamento é muito mais rápido do que a minha mão. Se eu vou escrever
uma palavra muito longa, às vezes, no meio dela eu já começo a escrever o final;
a minha mente já está passando para a próxima. O meu caderno é todo
rabiscado, todo cheio de rasuras, sem contar a caligrafia, que é horrível. Eu me
lembro que para superar... Como em Contabilidade eu tinha que fazer o balanço
patrimonial, e, na época, eu ainda não tinha o computador (foi em 94), então eu
tinha uma máquina de escrever. Eu montava [as linhas]
16
com régua, porque tem
o débito e o crédito das colunas. Eu não consigo fazer um negócio bonitinho.
16
Expressão mais aproximada do que foi possível ouvir.
199
Então, eu datilografava, xerocava, e depois eu usava dessa maneira. Era uma
das maneiras de eu conseguir estudar. Xérox, usava muito. Tenho o meu jeito de
estudar. Hoje estudo em grupo, mas sempre estudei muito sozinho, sempre
fazendo o trabalho sozinho.
Pesquisadora – Por quê?
Entrevistado – É que eu era muito tímido. Hoje eu sou uma pessoa totalmente ao
avesso. Até eu começar a lecionar, em 94... – eu me formei em 93 e fui lecionar
por uma casualidade –, eu era muito tímido, muito vergonhoso. Comecei a
namorar aos 22 anos de idade. Nunca tinha namorado. Pra ver! Hoje sou o
inverso. É como se tivesse passado numa máquina, e sumido toda a timidez. Sou
até exibido demais, às vezes. [Foi] mais por causa da profissão, de professor, que
tive que amadurecer socialmente muito rápido, porque eu era muito fechado.
Quando eu comecei a fazer este curso [Psicologia], até antes de eu descobrir a
hiperatividade, [foi] para buscar esse lado que eu nunca tive, de amigos. Eu
coloquei até um quadro em casa. Comprei um quadro branco, coloquei em casa,
para fazer um grupo de estudo. Hoje eu me dou muito bem com as pessoas, mas
pelo motivo de ser muito autêntico, e não sou falso. A vantagem é: os que gostam
de mim, gostam de paixão; quem não gosta, me odeia de paixão. E isso é assim
no serviço, é assim em todo lugar. Os que gostam de mim, gostam. Eu não tenho
pessoas meio termo, onde eu trabalho. Os que gostam, gostam do jeito que eu
sou. Eu não mudo, eu sou muito autêntico. Para superar as dificuldades, depois
que eu descobri [o TDAH], melhorou muito, porque eu criei métodos. Por
exemplo, eu uso uma bolsa, onde eu carrego todas as minhas coisas: carteira,
celular, um estojo. [Houve] tempo que eu usava um estojo para cada lugar, um
estojo com lápis e caneta... Então são pequenas coisas... Hoje eu uso um estojo
pra tudo e carrego dentro desta bolsa [mostrando]. Meu porta-cd, porque eu adoro
computador, perco horas no computador, gasto horas no computador, tenho
hábito de ler na tela do computador. Às vezes, ao invés de eu anotar numa folha à
caneta, xerocar e ler, eu pesquiso na internet, e anexo para estudar, e eu faço
resumo. Eu procuro várias páginas que falam sobre o mesmo assunto. Vou
200
copiando e jogando para dentro do Word, depois anoto o nome como se fosse um
trabalho. Automaticamente, eu estou lendo e aprendendo. Esse é meu novo jeito
de estudar.
Pesquisadora – E você não se perde nas informações que você busca e
armazena?
Entrevistado – No computador não, a menos que o computador esteja muito
desorganizado. É que, geralmente, quando eu salvo um arquivo, dou nome para
esse arquivo, dou um nome pessoal, eu invento... Eu tenho muita criatividade.
Então, meus amigos acham o maior barato os nomes que eu dou para
determinados arquivos. Só que eu posso precisar desses arquivos daqui a dois
anos e eu vou encontrar. Então eu já fiz técnicas, facilita muito. Eu falo que o
computador também me ajuda muito. O computador é minha ferramenta de
trabalho que eu uso para tudo. Não gosto de jogo no computador, nunca fui fã de
vídeo game. Mas o computador em si, para mim, é uma ferramenta que é meu
aparelho de som... Tenho dois mil e tantas músicas no computador. E também a
facilidade: posso fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. O computador me
proporciona isso, porque, às vezes, eu estou fazendo algum trabalho, estou
navegando na internet, estou ouvindo música. E tudo ao mesmo tempo. O
computador me proporciona isso. Não vivo sem internet.
Pesquisadora – Você me disse sobre a facilidade com o estudo de Matemática. E
o estudo de Português? Você poderia dizer como foi?
Entrevistado – Eu sempre tive mais facilidade na área de exatas. Na área de
Português, eu sempre tive problemas de caligrafia. Eu lembro uma vez que eu
quase repeti – naquela época repetia – em História, que, na época, era decoreba
ainda. Fiquei de recuperação, quase bombei no Colegial. E sempre tive... Hoje em
dia, inverteu. Inverteu não, por eu estar fazendo Faculdade de Psicologia,
melhorou muito. Hoje eu escrevo. Escrevo mais. Hoje melhorou muito nessa área,
acredito que por causa do curso de Psicologia. Mas eu sempre tive dificuldade.
Nunca gostei da matéria de Português. Hoje eu me identifico mais. Hoje é o
201
contrário, eu me identifico mais com o ensino de Português e menos com a área
de exatas. É incrível, não é?
Pesquisadora – A que você atribui essa mudança?
Entrevistado – Por causa do curso! Eu acho interessante, porque eu, no ano
passado, fui dar uma aula de Física. E eu me lembro que fui fazer um exercício
que eu já havia feito há quatro anos. Eu lembro que não precisei do Livro do
Professor [livro com respostas]. E dessa vez, nem com o Livro do Professor eu
consegui entender o exercício. Eu acho que, em relação à pessoa normal, o meu
lado matemática apenas continua sendo normal, mas, depois que eu fui para a
área de humanas (eu acho muito interessante isso), meu lado de exatas regrediu.
Não estagnou, mas ele regrediu um pouco. Pouca coisa, mas regrediu. Eu não
tenho mais aquela facilidade que eu tinha com números. Ainda tenho uma certa
facilidade. Mas aquela facilidade de professor, de pegar um exercício e fazer um
exercício mais complexo, no fundo, eu tive uma decaída.
Pesquisadora – Você disse que tinha um pouco de dificuldade com Português.
Era mais na escrita ou na fala? Ou você não tem isso nítido ainda?
Entrevistado – Isso faz tempo, mas era mais na área da escrita. Na fala, nunca
troquei letras, nada. Era mais na escrita. Às vezes, [acontecia] eu estar
escrevendo e errar a letra, mas, por causa da minha letra [inaudível], ou eu trocar.
À medida que eu vou escrever uma palavra que tem a letra “c”, pela quantidade
de emprego, inconscientemente, eu coloco “ç”. Eu sei que não tem [cedilha], eu
coloco, rabisco. Então eu tenho dificuldade, recebo cobrança dos professores
ainda, nesse sentido. Nunca gostei de ler, fui gostar de ler depois que comecei
Psicologia. Quer dizer, tive que gostar de ler e hoje leio muito. Teve um ano que a
professora disse que eu tinha que ler um livro, e acho que era “Mil e uma noites”,
com todas as histórias, que são várias. Na última página, tinha um resuminho
que contava como surgiu a história. Eu copiei aquilo e entreguei para a
professora. Queria morrer por ter copiado. E hoje não. Hoje eu leio muito. Adoro
ler.
202
Pesquisadora – E, antes, o que impedia que você lesse mais?
Entrevistado – Eu não gostava.
Pesquisadora – O enfrentamento dos problemas do TDAH foi mais complicado
em algum dos níveis de ensino – no Fundamental, no Médio ou no Superior?
Você acha que em um desses níveis houve mais dificuldade, ou não?
Entrevistado – Olha, pelo que me lembro, tive muita dificuldade até a sexta série.
Eu me lembro que na terceita série eu fiquei de recuperação. Era na Escola F,
uma escola muito puxada, e eu fiquei até dezembro. Tive professor de
Matemática particular na sexta série. Foi sexta e sétima. Daí pra frente, eu não
tive muitos problemas, me dava muito bem.
Pesquisadora – E, no Ensino Superior, não há problema?
Entrevistado – Fiquei de segunda época no primeiro ano de Faculdade.
Pesquisadora – Hoje você está no quarto ano?
Entrevistado – Eu estou no terceiro do segundo curso. No primeiro curso
[Ciências Contábeis], sempre me referindo ao primeiro curso, eu lembro que eu
fiquei de segunda época no primeiro ano. E é sempre assim. Tem época que eu
vou muito bem. Tem disciplinas que eu vou muito bem, só de assistir aula. Eu não
preciso pegar nem caderno para estudar. Tem outras que são cheias de altos e
baixos. E tem dias também. Tem dia que parece que nada entra. Tem dia que o
professor fala “A” e eu sei o abecedário todo. Tem dia que o professor pode
explicar trezentas vezes, que eu não consigo captar. Oscila muito. Tem dia que
eu não consigo me concentrar. Uma outra característica muito interessante é o
seguinte: estudar de fato eu estudo muito... Às vezes... Eu tenho problema de
ansiedade – que, sempre tem uma comorbidade, além do TDAH. A minha
comorbidade, hoje em dia, eu sei que é com a ansiedade. Então, às vezes, eu fico
203
enrolando, entre aspas, três, quatro horas para começar a fazer alguma tarefa.
Mas aí que eu falo, meia hora, quando eu consigo sentar: “Então agora eu vou
estudar”. Desligo celular, desligo campainha, desligo tudo. Essa meia hora que eu
estudo, acho que deve valer por quatro de uma outra pessoa. Porque é a
concentração. Quando me concentro muito, me dá sempre mal estar nessa parte
de cima [da cabeça]. Isso eu sinto desde garoto. Quando, às vezes, eu me
concentro muito, me dá um mal estar aqui, sempre. Às vezes, eu fico numa tarefa
por duas ou três horas. Aí me dá mal estar. É difícil de eu pegar, mas também
quando pego, eu não largo. Tem coisas que eu fico concentrado até dez horas.
São os altos e baixos.
Pesquisadora - Você acha que teve professores preparados para trabalhar com
alunos que apresentam o transtorno?
Entrevistado – Nunca tive, inclusive, em nível de Faculdade, fazendo o curso de
Psicologia, atualmente...
Pesquisadora – Nem nesse curso?
Entrevistado – Nem nesse. Tive problemas com uma professora no ano passado.
A maioria das professoras me entende. A gente pega amizade, empresto livros,
vídeos. Mas eu tive uns professores psicanalistas que não aceitam o diagnóstico.
São os anglosaxões da Psicologia. Então tive um problema com uma professora.
E eu sinto que, mesmo tendo uma professora, que dá aula pra mim nesse ano...
eu percebo que ela não é preparada para trabalhar com pessoas com
hiperatividade, sejam crianças... Embora ela tenha uma área fenomenológica, que
é uma linha da Psicologia. Eu sinto que alguns professores, e, poucos
profissionais, deixam papéis muito batidos... e acredito mais ainda, que o... (Eu
estava comentando isso com uma professora. Ela fez esse comentário e eu fui
buscar pessoalmente.) que esta estatística de 3 a 6% [das crianças que
apresentam o transtorno], é uma estatística totalmente equivocada, porque deve
ser muito mais do que isso, do que de 3 a 6%. E, principalmente, no que diz
respeito a profissionais, a profissionais liberais. É, porque a criança quando
204
possui a hiperatividade, ela gosta dos desafios. Eu li a respeito. Uma
neuropediatra que eu tenho amizade falou que fez uma pesquisa lá no Instituto B,
e, foi constatado que 15% dos alunos do Instituto B têm hiperatividade, e em nível
de Faculdade. Posso até ver direitinho pra você. Então, acredito que advogados,
profissional mesmo, essas pessoas... o hiperativo é mais fácil de chegar ao fim de
curso Superior (isso é uma posição minha) do que alguém criado como uma
pessoa normal.
Pesquisadora – Você pode repetir? Eu perdi a sua linha de raciocínio.
Entrevistado – A minha conclusão é a seguinte: profissionais liberais, pessoas
que se destacam, que ficam em posição de liderança... Eu acredito que se fizer
uma pesquisa séria, você vai encontrar muito mais pessoas... Se pegar uma
escola, os professores, se fizer uma pesquisa de profissionais, estatisticamente,
eles dizem que tem 6% [de alunos com TDAH]. Mas eu acredito que tem bem
mais do que isso. Porque tem o caso dessas crianças que não têm a hipercinesia.
Têm todos os traços, todas as características, essas crianças estão
subdiagnosticadas. Então eu acredito que esse [índice] de 3 a 6% é bem
equivocado, tem muito mais que isso. E há as próprias pessoas que não
assumem [o problema] ser tratado como um transtorno. Existe um certo... Tem
amigos meus, que tenho certeza, têm hiperatividade, mas eles negam. Deixam
passar como se fosse uma gripe. Não vou dizer que negam, mas não levam a
sério a hiperatividade. Acho que seria a maioria também. [Inaudível], amigos e
meus professores, eles não levam a sério a existência do transtorno. Meus
amigos, alguns professores da Faculdade, embora psicólogos formados, devido à
área em que eles atuam, não levam muito a sério isso daí.
Pesquisadora – Você acha que o fato de professores conhecerem o problema já
mudaria algo?
Entrevistado – Mudaria e muito. Pelo fato de eu não conseguir parar dentro da
sala... Não é frescura minha. Parece que falta o ar. Eu tenho que sair... Eu saio...
embora na Faculdade haja uma certa liberdade, então facilita mais. E por eu
205
saber que eu tenho... E outra, eu tenho fases que eu chamo de “ultratividade”,
porque eu durmo muito pouco. Mas, de vez em quando, dispara mais ainda a
hiperatividade, de eu dormir três horas de sono, e não me faz falta. Tem dia que
eu sinto que parece que vai sair energia. Como é que eu posso dizer? Parece que
estou todo eletrizado. Parece que... sei lá! Sabe? É uma energia... Então eu tenho
fases também. Tenho fases que eu não durmo. É um estresse. E, muitas vezes,
eu sinto que o corpo está cansado, mas a mente não. Aquela vontade de fazer...
Às vezes, me dá dor, mas eu estou ali. Quando eu tenho um objetivo muito... é
uma energia muito legal. Às vezes, eu estou assistindo aula e eu sinto vontade de
sair. Às vezes, a aula está boa, mas eu tenho que sair. Eu vou, saio, tomo uma
água. Às vezes, eu vou à cantina, pego uma bala e volto. Mas é porque aquilo ali
se tornou... Como eu posso dizer? Ah... outra coisa que eu sinto muita
dificuldade... Eu tive... o problema das aulas. O professor vai e explica a matéria.
Eu entendi a matéria. Aí ele abre as questões. Torna-se repetitivo,
desestimulante. Eu tenho que procurar outro estímulo. Eu saio da sala... Por
sorte, o laboratório de informática é do lado. Eu vou navegar na internet, volto e
pego a aula. E a classe fica meio assim comigo. E eu gosto de ler muito, então,
tem algumas matérias que eu já estou por dentro. Eu entro no meio da aula e
participo como se tivesse assistido à aula desde o começo. Hoje os meus colegas
assimilam isso melhor, mas no começo eles achavam que eu era exibido... E não
é. Eu gosto muito de participar. E o professor tem que ter muito bem preparada a
aula porque eu participo mesmo, e pergunto mesmo. E, às vezes, eu não
pergunto. Às vezes, eu faço algumas colocações durante a aula, que os meus
colegas ficam meio assim. Mas é porque eu leio muito, eu gosto muito. Naquilo
que eu gosto, eu vou atrás, eu procuro, eu aprendo. Sou autodidata. Tenho noção
disso. Inclusive a hiperatividade eu não trato com a minha terapeuta, porque,
depois que eu descobri, que eu fui atrás, que eu pesquisei, que eu li, eu mesmo
tomo algumas medidas. Isso me ajudou muito. Melhorou a minha auto-estima. E
eu procuro usar toda essa hiperatividade a meu favor. Por exemplo, uma tarefa...
Teve uma vez que a minha diretora pediu uma tarefa que era pegar as papeletas
de notas e contar as notas vermelhas. [Contar] É uma dificuldade que eu tenho.
Então uma vez eu contava, tinha 12. Eu contava de novo na papeleta, tinha 14.
Se eu tiver que entrar numa classe e contar quantas pessoas... Se tinha 32
206
pessoas, por exemplo, a primeira vez que eu conto dá 33, da outra vez que eu
conto dá 31, depois eu conto, dá 32. Eu até posso contar e acertar. Mas eu posso
recontar várias vezes que chego a vários valores diferentes. Eu me perco. Eu
tenho certeza que é por causa da hiperatividade. Em algumas coisas, eu tenho,
entre aspas, o QI acima da média. Em outras, eu me sinto com a inteligência de
cinco anos. E não adianta eu brigar. Se me mandar ir nas classes contar quantas
crianças tem em cada uma, eu troco o serviço. Eu deixo essa tarefa e faço outra
em que eu me destaque. Agora naquilo que eu gosto eu faço mais rápido –
naquilo que eu me dou bem –, mais rápido do que qualquer pessoa, e melhor.
Então, eu procuro fazer essas coisas que a hiperatividade me ajuda.
Pesquisadora – E que coisas seriam essas?
Entrevistado – Ah... [pausa]
Pesquisadora – Por exemplo, de atividades burocráticas você foge?
Entrevistado – Eu fujo. Por exemplo, a minha diretora pediu para ter pauta nas
reuniões semanais. Então eu uso máquina fotográfica digital, direto. O que eu fiz?
Todos os assuntos eu fotografei. Aí eu ligo a máquina na televisão e vou fazendo
toda a minha reunião com aquelas fotos. Então, tudo que eu posso... Conselho de
Classe eu informatizei. Nós ficávamos em quatro pessoas para fazer Conselho de
Classe. Eu fiz sozinho o Conselho de Classe, das 8h da manhã até as 5h da
tarde. Eu fiz sozinho, sem parar. Eu só tomei um lanche e comecei de novo.
Pesquisadora – Sozinho, que você diz, é: coordenando sozinho?
Entrevistado – Sozinho. Nós fazemos em quatro pessoas lá na frente, eu, a
diretora, a vice-diretora e a secretária. Eu fiz sozinho o Conselho de Classe na
sexta-feira. Eu sozinho não, eu e o computador. Quer dizer, toda aquela papelada
eu consegui informatizar. Então, tudo que eu consigo informatizar, eu me dou
bem. Todas as minhas atividades, eu procuro informatizar. Até agora, minha
diretora conseguiu um computador para vir para a minha sala, porque ela viu que
207
eu me destaco. Quando eu vejo que vou ter dificuldade, eu não faço. Eu procuro
evitar, porque eu sei que eu não vou conseguir. E no que eu vou conseguir
fazer... Eu procuro trocar tarefas, canalizar energia, todas essas coisas assim. E
fujo de papel. O máximo que eu posso. Eu aprendi a fazer as coisas a meu modo.
Por exemplo, os meus superiores chegam e falam assim: “Você tem que fazer tal
coisa, por causa disso.” Não fala como eu tenho que fazer, não adianta. Eu não
vou fazer daquele jeito mesmo. Eu faço do meu jeito. Ela [diretora da escola] falou
que tinha que ter pauta, ela não falou que a pauta [do HTPC – Hora de Trabalho
Pedagógico Coletivo] era para ser feita no papel. E, detalhe: os professores,
adoraram, amaram. E eu estou me dando muito bem nessa reunião, porque
geralmente HTPC professor nenhum gosta. E lá agora eles estão começando a
gostar, porque eu levo vídeo, eu paro o vídeo, faço comentários. Então, eu tenho
que fazer as coisas do meu jeito, e a minha diretora descobriu isso em mim. Ela
só tem que me pedir as coisas, e mais ou menos passar as diretrizes, e eu me
viro.
Pesquisadora – E como você reage quando você tem que entrar num esquema
predeterminado?
Entrevistado – Ah, é frustrante. É frustante, eu não consigo. Empurraram o curso
goela abaixo, lá do Ensino Médio em Rede. Como coordenador, uma semana
sim, uma semana não, eu tinha que ir. E já fizeram reclamação para a minha
diretora, porque eu chego atrasado. E o detalhe é que, outro dia, eu cheguei
atrasado, e ainda tive atividade. Depois eu tive que buscar um [inaudível] e saí no
meio curso. Aí eu voltei. Quando eu voltei, era para fazer uma atividade no
computador. Eu fui o último a entrar na sala de informática. Eu fiz a minha
atividade primeiro que todo mundo, e ainda ajudei mais duas pessoas. Daí eu
cheguei no meu supervisor, e falei: “Eu sempre cheguei atrasado, mas o meu
está pronto e preciso ir embora.” Hoje eles se acostumaram comigo, mas no
começo, até eles me entenderem... E eu não escondo de ninguém. Faço do
TDAH a minha bandeira. Conto para todo mundo, de boca cheia, que eu tenho
hiperatividade. Não escondo isso de ninguém, e sou muito bem resolvido com
isso.
208
Pesquisadora - E você acha que isso ajuda? O fato de as pessoas saberem que
você tem o transtorno de déficit de atenção ajuda no relacionamento?
Entrevistado – Ajuda. Porque é o que eu falo, eu sou um tipo de personalidade. É
claro que ninguém é perfeito. Eu acho que se eu tivesse que escolher entre
nascer de novo, entre aspas, normal – sem hiperatividade – e com hiperatividade,
é lógico que eu escolheria nascer com hiperatividade de novo, porque é uma
energia... Se você aprende a canalizar essa energia, a direcionar essa energia,
você se dá bem, você se sobressai, você se destaca entre as pessoas. É o que
acontece comigo hoje em dia. A partir do momento em que eu tive o diagnóstico,
todo dia é um aprendizado. Por fazer somente dois anos... Embora a gente
aprenda coisas novas todos os dias... Mas eu poderia colocar o TDAH a meu
favor e não contra mim. Isso foi muito importante: pegar todas as características
positivas, que são a impulsividade, a criatividade (Sou muito criativo. Desde
garoto, eu sempre me destaquei pela criatividade.), e canalizar isso ao meu favor.
Isso é muito importante.
Pesquisadora – E faz só dois anos que você descobriu. Como foi?
Entrevistado – Dois anos. Está fazendo agora, esta semana inclusive. Foi num
congresso. No primeiro ano de Faculdade, de Psicologia, eu tive muita
facilidade... Eu descobri aqui, vim fazer e descobri. Eu sempre gostei de guardar
recortes de revista. E todos os assuntos que eu guardava, percebi que tinham
relação com a Psicologia. Então, no primeiro ano, eu tirei de letra. Eu vim num
congresso e, no meio de uma palestra, eu descobri. Foi na palestra de um
especialista de Campinas. Ele deu a palestra, e eu vi que tudo que ele falava,
falava de mim. Aí eu cheguei, entrei na internet. Isso foi numa sexta-feira. No
domingo... Tem uma farmácia aqui em São João que vendia sem receita. Fui à
farmácia, comprei a Ritalina, tomei. Nesse dia, eu não perdi a chave nenhuma
vez. Só que, interessante, eu percebi que com o uso prolongado da Ritalina, ela
perde o efeito. Então eu procuro usar a Ritalina ou anfetamina, ou cafeína, em dia
que... Por exemplo, eu tenho um texto... Porque a minha mente é como se fosse
209
uma TV picture in picture: é como se eu tivesse quatro televisões ao mesmo
tempo, aliás cinco, uma principal e mais quatro. Então eu estou centrado aqui,
mas na minha mente eu estou pensando mais quatro coisas ao mesmo tempo.
Então, eu falo que quando eu tomo Ritalina ou anfetamina, essas televisões
desaparecem. Eu fico concentrado. Eu fico só na [imagem de televisão] principal.
Essas idéias que vêm a todo tempo desaparecem. Por isso que eu não gosto de
tomar medicamento. Eu tomo... Por exemplo, por eu ter ansiedade, para eu
começar uma tarefa, eu enrolo muito, mas só que depois que eu começo ninguém
me tira. Quando me dá o hiperfoco... na realidade, vários autores falam isso, que
não é déficit de atenção, é oscilação da atenção. Quando me dá o hiperfoco,
nossa!, eu fico horas e horas na tarefa. Isso é muito bom. Mas só que para dar o
hiperfoco é difícil. Às vezes, eu não abro mão do medicamento, porque eu tenho
que ler o texto... Então, por exemplo, começo a ler um texto e, às vezes, eu paro,
quer dizer, eu me pego lendo o texto e pensando em outra coisa. Eu, sem querer,
começo a pensar em outra coisa, paro de ler, não percebo. Quando eu percebo,
eu estou com o livro na mão, e o texto? Então, eu viajo e volto.
Pesquisadora – Mesmo quando é um texto interessante?
Entrevistado – Quando é interessante, não. Eu me dou muito bem com sínteses.
Não gosto de textos que dizem a mesma coisa de 300 formas diferentes. Embora
poucos colegas gostem, eu só estudo por síntese. No ano passado... Tem uma
professora que eu não gosto muito do jeito de ela dar aula. Eu consegui achar a
matéria dela de um semestre, em quatro páginas. Achei num site na internet. E eu
levei uma hora e meia para assimilar as quatro páginas no dia da prova. Ainda
tirei sete. Você vê, meus colegas assistiram a aula dela... Eu fiz uma cirurgia no
ano passado, eu aproveitava isso para não assistir à aula dela (fiz uma cirurgia no
ombro) porque eu nunca gostei da aula dela. A aula é muito chata. A disciplina e o
jeito dela... o jeito dela dar... Ela pega a aula e faz a mesma coisa dez vezes, de
dez maneiras diferentes. Então, se eu já assimilei na primeira vez, aquela aula
fica enjoativa. Eu gosto muito de síntese, eu sou muito prático. Isso é ou não é...
E por isso eu gosto muito da internet, porque tem todos os assuntos. É claro que
eu tenho certo critério para pesquisar na internet, não é de qualquer página.
210
Procuro artigos científicos, mas eu sempre acho. E é um momento de ficar
estudando, pesquisando.
Pesquisadora – Você descobriu há pouco tempo o transtorno, mas antes disso
parece que você já tinha passado por um processo de superação desses
problemas que surgiram, logo cedo, na escola. A que você acha que se deve
isso?
Entrevistado – Os desafios. Quer dizer, hoje, como eu estudo, quer dizer, a minha
linha da Psicologia é a linha comportamental, como posso dizer, eu criava
métodos para superar a minha dificuldade. Eu tinha barreiras. Por exemplo, eu,
por não conseguir fazer uma coluna certinha, se tiver que escrever um número
embaixo do outro, por causa da disgrafia, eu não consigo. Tenho que fazer uma
coluna, com uma régua, fazer a coluna para escrever dentro. Então são métodos
que eu fui criando para superar. E de gostar de desafios. Tenho vários hobbies.
Eu fui criando métodos para superar barreiras. Eu sempre gostei, desde de
garoto, de novidades, de desafios. Então, se eu vir como desafio, eu vou atrás.
Assim eu tento, ao meu modo, superar.
Pesquisadora – Tem algum episódio escolar, tanto no ensino Fundamental, Médio
ou Superior, que foi marcante para você e que você gostaria de relatar?
Entrevistado – Eu me dava muito bem em Física, no terceiro Colegial, que é
eletricidade. Um dos meus hobbies é eletrônica. Desde garotinho, com cinco
anos, desmontava rádio da minha mãe. Então, eu já entendia alguma coisa. Eu
gostava muito da aula, porque a professora fazia competição, como quem
terminava primeiro ou conseguia fazer o exercício. Isso me marcou muito. Isso foi
uma sinalização depois para eu fazer Contabilidade, por eu me destacar em
exatas. E hoje eu descobri que o meu forte é humanas, embora eu sou muito bom
em Matemática. Sempre fui bom, mas hoje... Foram fatos que aconteceram que
eu não percebi, mas o meu forte também é humanas. E eu lido bem com esse
lado de exatas e humanas. Muito interessante. Acho que um complementa o
211
outro. Embora deu uma decaída na área de exatas, eu acho que um lado
complementa o outro, acaba ajudando. Raciocínio rápido... acaba ajudando.
Pesquisadora – Tem algo mais que você gostaria de relatar, antes de nós
encerrarmos?
Entrevistado – O apoio dos meus familiares, das pessoas que trabalham comigo,
por eu ser muito aberto, por eu fazer do TDAH a minha bandeira, de eu não ter
vergonha de falar – pelo contrário, eu falo de boca cheia que tenho hiperatividade
–, isso me ajuda muito. Embora algumas secretárias de escola que trabalham
comigo falam que o [indivíduo com] TDAH tem costas largas, porque joga-se a
culpa toda nele [no transtorno]. Mas levo tudo na brincadeira. E é assim: se de
repente eu derrubo alguma coisa, se eu sou desastrado, hoje já não me culpo
mais, porque eu sei que eu não derrubei porque eu quis. Claro que eu evito, mas
eu não tenho mais aquela preocupação, aquela frustração. De repente, se eu viro
um copo de leite, eu paro e dou risada, porque eu acho engraçado, porque eu não
tenho culpa, o culpado é o TDAH. Não que eu faça do TDAH minha muleta, uma
desculpa para tudo, mas eu aprendi a lidar bem. Então no que ele me ajuda, no
que posso me destacar, eu aproveito dele. No que eu não posso me destacar...
Outra coisa, eu gosto de... Às vezes eu combino três, quatro coisas ao mesmo
tempo. Hoje eu não combino mais nada. Quer dizer, antes eu tinha que ter
horário, e essas coisas. Quando eu combino com meus amigos: “Vamos sair no
sábado?” “Olha, vamos ver. Quem sabe nós saímos. Me liga na última hora.” Eu
não combino mais horário exato. “Entre 9 e 11, ou a partir das 9”. Então, são
métodos ou maneiras de eu estar lidando, porque, às vezes, pelo problema de eu
esquecer... Então eu não deixo nada fixo, determinado, uma regra. “Não. Olha,
vamos sair este final de semana?” “Olha, até podemos sair. Me liga e a gente
combina de última hora.” Não marco nada no começo da semana, deixo para, na
hora, decidir. Procuro não programar, ou se programo deixo subentendido
“Vamos sair hoje à noite?” “Vamos. Ah... depois das 8 você me liga. Depois das 8,
a gente se encontra, e vê o horário melhor.” Então, às vezes, vão surgindo as
coisas. Se está perto da hora e eu vejo que estou meio atarefado, eu combino
uma hora mais folgada. Mas nada certinho, rigoroso, militar. Eu tive uma
212
namorada que ela era assim: marcava de pegá-la às 8. Se eu chegava 5 para as
8, ela estava colocando o sapato; se eu chegava às 8 e cinco, ela estava batendo
o pé na calçada. Então, foi muito terrível essa época pra mim. Foi terrível. Imagine
eu, todo o meu jeito de ser assim. E eu vivo assim... Eu falo que eu me sinto
como um apaixonado, porque eu sigo meus impulsos, não reprimo mais os meus
impulsos. Se eu estou com vontade de fazer alguma coisa, eu faço. Claro que tem
regras, assim, dentro de... respeitar os outros, mas se me dá vontade de fazer
alguma coisa, eu faço. Tiro proveito. Então, se eu derrubo alguma coisa, um
copo... Que às vezes eu tenho médico [inaudível], de repente, no dia, na quarta-
feira, a uma hora da tarde, me deu um branco. Eu só fui me lembrar à noite. Eu
falei “Ah... não adianta estressar, passou.” Então, eu me dou bem. As pessoas
que trabalham comigo são legais. E hoje eu estou famoso na Delegacia [Diretoria]
de Ensino. Um supervisor veio me procurar. Então, é muito interessante, a gente
começa a ver o lado positivo, começa a esquecer as piadas que eu apronto lá
dentro. Eles já sabem que entregar papel pra mim é morte, porque eu vou perder
o papelzinho. Eles têm que esperar eu estar com a minha agenda na mão. Às
vezes, eles vão me entregar, olham se eu estou sem minha agenda na mão. Se
eu tiver com a minha agenda eu anoto, se me entregar papel, eu perco. Então
eles estão se acostumando com meu jeito e está fluindo muito bem. E hoje se
orgulham por me terem como coordenador lá. Eu trouxe muitas novidades,
informatizar... Inclusive todas as escolas que foram informatizadas, os
professores entregam a papeleta e a [o pessoal da] secretaria digita. Eu inovei
isso também. O professor entrega o disquete. Além de informatizar, eu inovei... E
quando eu fui coordenador na Escola E [uma das escolas onde estudou, quando
criança], há três anos, eu informatizei. Só que a diretora era desconfiada. Eu
informatizei e não tinha informatização paralela. E depois que eu saí de lá, eu fui
o pai da criança. Informatizei e está até hoje... Ela viu que funcionava a
informatização. Então é isso. As pessoas confiarem, darem um voto de confiança,
e verem que eu sou capaz, que é o meu jeito... E todos agora me procuram para
tirar idéia. Isso é muito gratificante.
Pesquisadora – Agradeço muito a sua participação na minha pesquisa.
213
Entrevista com Sandra
Sandra tem 26 anos, é casada, mora em Araras, é professora de inglês,
proprietária de uma escola de idiomas e cursa Letras em uma Universidade
particular. O transtorno foi sinalizado, na infância, pela mãe, que é psicóloga, e
confirmado por um médico algum tempo depois. Faz tratamento com
medicamento e com psicoterapia.
Araras, 11 de junho de 2005.
Pesquisadora – Sandra, fale sobre a sua trajetória escolar, apontando: a) Em que
fase da escolaridade você descobriu o TDAH? b) Como foi a sua passagem pelos
ensinos: Fundamental, Médio e Superior, especialmente neste último? c) O que
você fez (e faz) para superar dificuldades decorrentes do transtorno?
Entrevistada – Bom, eu descobri... Na verdade, foi minha mãe que diagnosticou e
me levou para fazer tratamento com uma psicóloga, inclusive é a que eu estou até
hoje, Marina. Mas ela disse que não era hiperatividade, que não era déficit de
atenção e que era ciúme da minha irmã que estava para nascer. E como eu tinha
oito anos de idade – foi na segunda série –, tive muitos problemas nessa fase, na
escola, principalmente com a professora. Simplesmente, eu não me adaptava à
classe, sendo que era uma escola em que eu estava desde o maternal. Então,
realmente, não era um problema de convivência, era uma fase. Eu estava
também descobrindo o problema e [ele] sendo diagnosticado errado. Mas minha
mãe sempre disse que eu era muito... eu pulava o dia todo, eu não dormia à noite
desde pequenininha. Eu tinha terror noturno quando tinha um ano. Eu lembro até
a sensação que eu tinha ao deitar, que era uma sensação horrorosa. A mesma
sensação que eu tenho hoje, porque o remédio... Eu estou tomando o remédio e
ele vai aumentar um pouquinho os sintomas, para depois diminuir. Todo
tranqüilizante tem efeito contrário no início. E eu lembro que a minha mãe me
dava um remédio quando eu era pequena. Na verdade, ela me contou do
remédio, é lógico, mas eu lembro do remédio que eu tomava para dormir. Eu tinha
um ano e não dormia. E esse remédio me deixava nervosa, piorava todos os
214
sintomas, eu não dormia a noite inteira. Eu ia da uma às cinco da manhã
acordada. Minha mãe tinha 19 anos e ia para a escola, no dia seguinte, sem
dormir (porque ela não tinha terminado o Ensino Médio ainda). Ela ficou
desesperada e falava: “Ela tem algum problema e eu tenho que tratar”. E me
levou para Campinas, num médico (eu tinha um ano ainda), Dr. Sérgio, se não me
engano, um pediatra muito bom de Campinas. E ele mudou o remédio, um
remédio que fez efeito, que realmente deu certo. Então, desde pequenininha, eu
estou sendo medicada. Mas nessa fase conturbada que eu tive aos oito anos, eu
não tomava medicamento algum. Não tomava nenhum medicamento porque não
era diagnosticado como hiperatividade. Simplesmente, esse pediatra, na infância,
disse que eu tinha as características, mas, na época, não era muito conhecido
esse distúrbio. Chegando na fase escolar, eu sempre... Tinha uma professora que
gostava muito de mim, no maternal, Tia Carmem. Até hoje ela me encontra no
Orkut e me manda mensagens: “Ai, que saudade!” Me conta coisas legais, que na
classe, ela comenta, eu era uma das alunas que ela tinha mais afinidade.
Inclusive a filha dela se chama Sandra por causa de mim. Me achava muito
inteligente, eu era muito estimulada. Ela sempre disse isso, depois de adulta. E
minha avó também. Eu era a primeira filha e a primeira neta. Eu passava bastante
tempo com a minha avó. Minha avó era diretora de uma escola infantil, até o pré,
e ela me levava para brincar no parque. Todo mundo gostava muito de mim.
Minha mãe contava que eu era muito querida por todo mundo. De repente, eu
entro na primeira série e começo a tirar nota baixa, coisa que eu nunca tive,
porque eu não tinha nota, não tinha nada. Era muito estímulo, aquela brincadeira,
e eu me sentia bem na escola. De repente, na primeira série, [o meu
desempenho] começou a cair. Minha mãe estava grávida da minha irmã. Em 86,
eu entrei na segunda série, foi quando a minha irmã nasceu, em novembro. Essa
fase foi muito conturbada, e todo mundo achava que era ciúme da minha irmã.
Inclusive, eu tinha características de ciúme. É lógico, eu tinha já um irmão, que
nasceu quando eu tinha dois anos, que era meu melhor amigo. Sempre amei o
meu irmão, nunca tive essa briga com ele em casa. Uma criança que eu defendia
na escola. E nessa fase da segunda série, eu vi que tudo começou a desmoronar
na minha cabeça. Eu ia mal na escola, tinha medo de que a professora visse a
minha prova para falar que eu tinha errado, porque eu realmente não conseguia
215
prestar atenção na aula. Ela dava um desenhinho... Sempre quando ia começar
uma aula, ela começava o cabeçalho da escola e um desenhinho. Quando ela
colocava o desenho, aquilo era tudo. Aquilo era a aula para mim. Eu começava a
desenhar, perdia a hora e não copiava nada. O desenho ficava lindo, e eu ia toda
contente mostrar o desenho para a professora: “Olha que lindo!” [E ela:] “Mas
você não copiou nada!” Nossa... aí desmoronava o meu dia, eu ficava chorando.
Inventava que estava passando mal, inventava que tinha vontade de vomitar, e...
queria ficar deitada na cama lá do ambulatório. Ficava deitada no ambulatório
para poder ir embora para casa. Só que, realmente, eu tinha gastrite, porque,
quando eu cheguei na quinta, na sexta série, eu não podia ouvir falar em prova de
Matemática. Mas esse foi um problema que surgiu na segunda série. Aquele
medo da escola, aquela frustração, em relação aos professores e à escola. E por
isso eu tirava nota baixa.
Pesquisadora – Era escolar particular?
Entrevistada - Particular. Eu cheguei, nessa fase, a criar fobia da escola. Eu não
podia ver caderno, não podia ver prova, não podia nada, eu não queria estudar na
escola. A professora que eu tinha parecia uma bruxa. Isso eu faço questão de
deixar claro. Ela falava: “Você está trocando massa cinzenta por titica de
galinha?” Ela falava assim pra gente! Dava “cróqui” [pequenos socos] na cabeça.
Por incrível que pareça, na época, já era uma coisa incomum, mas ela fazia.
Graças a Deus, ela iria se aposentar, porque ninguém gostava da professora.
Cheguei na terceira série já com aquele rótulo: “Sandra não aprende” e eu me
rotulei mesmo: “Eu sou burra, eu não aprendo.” Aí a coisa pegou. Eu tenho
estrabismo e, nessa fase, eu ia fazer uma cirurgia. Na terceira série, eu comecei a
usar óculos, porque eu fiz uma segunda cirurgia quando eu tinha oito anos, nessa
fase conturbada da segunda série. Foi quando minha irmã nasceu e eu operei o
olho de novo. Imagine, usava tampão, tinha que colocar óculos. Aquilo era a
morte para mim. Entrar na classe, com todo mundo ali com nove anos, e eu com
óculos. Aquilo, para mim, era a morte. Eu tentava chamar a atenção de toda
forma, para aliviar a tensão dessa minha falha, entre aspas. Eu fazia de tudo lá,
eu ia mal na escola, ficava de recuperação, brigava com os alunos, mentia, direto,
216
nossa! Não sei como... depois de adulta, não, mas quando criança, nossa! Mentia
tudo. Mentia que minha irmã tinha nascido, mentia que a minha mãe estava
grávida, e, na verdade, na época, não estava mais, inventava mil histórias, tanto
para fugir da... Minha mãe falava: “Tem lição?” [Eu:] “Não, não tem.” Lá tinha um
formulário que dava a nota de 1 a 100% de rendimento da escola no dia. Eu tinha
que levar essa ficha para a minha mãe. Eu sempre levava com 3%, 5%, nunca
com 50 para cima, que era o esperado. E eu mentia. Minha mãe: “Trouxe a
ficha?” [Eu:] “Não, esqueci.” Ou: ”Trouxe, está no carro. Tirei 100% hoje.” Era
sempre 3 ou 2%. Mentia que estava passando mal. Chegou na quarta série,
mudaram-me de escola, porque achavam que a escola era o problema, mas, na
verdade, não era. Eu estava desde pequena naquela escola. Eu era o problema.
Nesse tempo, eu tinha uma amiga de quem eu gostava muito, a Lúcia, que é
minha amiga até hoje, a melhor amiga que eu tenho. Ela estudava comigo numa
outra escola particular, aqui em Araras. Nessa escola, eu entrei de uma forma
diferente, mas como eu já tinha esse jeito agressivo – eu já tinha esse jeito todo
assim de fazer tudo de qualquer jeito, eu era relaxada com meu material – a
professora começou a perceber, sem diagnosticar o problema, mas começou a
rotular novamente. Só que eu também dava motivo, eu tenho essa culpa também,
nesse ponto, porque eu escrevia no quadro: “Professora Célia, eu odeio você.
Vai...” Pode falar palavrão? Eu falava para ela: [e diz o palavrão]. Isso não é uma
coisa normal em uma criança de dez anos. Sendo que a minha família nunca fez
isso, ninguém nunca me ensinou. Eu apanhava do meu pai quando eu falava
essas coisas em casa, mas eu falava. Não estava nem aí. Fui crescendo assim.
Chegou na época da quinta série, eu fiquei internada no hospital. Eu tive prova de
Matemática. Vomitei muito naquela noite, que seria a da prova, mas porque eu
era uma péssima aluna, eu não prestava atenção, não freqüentava, não fazia
lição, não entregava a lição no dia. Mas houve uma vez, nessa mesma fase, que
a professora de Geografia disse que eu não tinha feito a cópia que ela pediu.
Minha amiga também não tinha feito. Eu estava sentada na minha carteira e ela lá
na frente com a menina que não entregou a dela e [a menina] falou: ”Professora,
eu fiz uma parte, a outra eu esqueci no carro da minha mãe.” Naquela época era
fichário já, na quinta série. E ela deixou uma folha no carro da mãe. Mas eu sei
que a Cristina não fez aquilo lá, ela não fez, eu conheço a Cristina. Eu sei como
217
ela é, ela é que nem eu. Só que a aceitação dela perante a professora era melhor
que a minha. A professora falou: “Em você eu confio, mas a Sandra vai ter que
me apresentar.” Eu ouvi ela falando isso. Aquilo me desmontou, porque realmente
eu tinha feito e tinha esquecido de verdade e ela não tinha feito, estava mentido e
ela [a professora] tinha acreditado nela e não em mim.
Pesquisadora – E por que você acha que a professora acreditou mais nela?
Entrevistada – Porque as minhas atitudes na classe eram incomuns.
Pesquisadora – As da menina não?
Entrevistada – As da menina não. Perante a professora, ela era “certinha”: “Te
adoro.” Ela copiava a lição, tinha caderno caprichado. O meu caderno era
relaxado. Eu até tirava notas boas, até nas aulas de Geografia. Eu adorava fazer
trabalho manual, fazia vulcão com massa de vidraceiro, fazia tudo aquilo. A
professora era Mônica. Depois eu peguei uma professora excelente, que era a
Cíntia, ela me entendia perfeitamente. Sabia que... Essa professora até hoje, eu
acho... Ela era uma excelente professora. Soube diagnosticar o problema e
trabalhava a parte que eu tinha deficiência, que ela deixava mesmo, ela passava,
sempre me valorizava no que eu sabia. O que é importante. Eu tirava só nota oito,
nove, dez com ela. Aí entra a questão do professor.
Pesquisadora – Era professora de qual matéria?
Entrevistada – Era de Geografia. As duas. Só que uma tinha reação contrária: de
me colocar para baixo e lá em cima. Fingia que gostava de mim. Na hora do
intervalo: “Ai, linda. Vem aqui.” Perante a minha mãe: “Nossa! Que fofa, que
gracinha!” E atrás, detonava. E a outra não, a outra me colocava para cima: “Não,
Sandra. Você não sabe isso? Por que você não gosta? Não vai ler... Faça um
trabalho manual, que você tanto gosta, faz estalactite...” Porque eu gosto dessas
coisas. A curiosidade me deixava tensa, e ficava na aula aquela coisa da
curiosidade que me fazia buscar. Coisa que a outra só passava cópias e ficava
218
me detonando na classe. Aí os alunos aproveitam da situação e fazem o quê?
“Ah... a Sandra é burra. A Sandra não sei o quê. Tirou nota baixa.” Eu usava
óculos. [E os colegas:] “Quatro olhos!” Sabe? Isso me detonava. Chegou na
sétima série. Eu já estava com aquela coisa da auto-afirmação. “Eu tenho que
provar que eu... Não é possível ser tão ruim assim.” Aí eu já desisti de tudo. “Não
vou fazer Faculdade, não vou fazer nada, porque meu pai me sustenta. Não estou
nem aí.” Era isso que eu pensava. Realmente, eu tinha tudo o que eu queria.
Meu pai me dava roupa legal, me dava tudo, dinheiro pra sair, dinheiro pra isso e
para aquilo, os brinquedos que eu queria, na hora em que eu queria. Isso foi um
grande erro, mas eu tinha. Coisa que eu não faço para o meu filho hoje. Faço o
contrário. Mas, na sétima série, começou a melhorar. Já comecei a conhecer
amigas que vieram de outras escolas, que também agiam da mesma forma que
eu. Amigas de uma classe social mais baixa até, financeiramente falando. Já
falavam um vocabulário que eu estava acostumada a falar, por ter esse problema
de não me importar com o que as pessoas achavam de mim. Meu pai nunca
falava: “Nois vai lá.” Só que, diante de tudo isso, eu não estava nem aí. Eu era
relaxada até na maneira de falar. Acabava falando: “Noi vai. Inté.” Coisa que eu
sabia que era o contrário e que eu nunca fui criada dessa forma. Eu encontrei
pessoas que falavam assim, que vieram de escolas públicas, vieram de famílias
mais simples, que não tinham estudo. E eu comecei a me identificar com essas
pessoas, conhecendo famílias que davam valor realmente à família, ao estudo.
Para a menina estar naquela escola particular era uma economia mensal imensa
para poder pagar. E eles davam valor. E essa menina que eu falo é a Daniela,
que eu adoro. Ela mora na Praia Grande. Na oitava série também. Só que na
oitava série, eu estava com 14 anos. Eu tinha o corpinho lindo. Até tenho uma foto
minha que eu vou mostrar para você. Magrinha, fazia comercial de TV. Eu não
cheguei a fazer... Porque eu fui chamada para fazer no Shopping Morumbi em
SP... Não cheguei a fazer porque a professora de Português me reprovou. Não
perdôo essa mulher até hoje. A pior professora do mundo! Eu desparafusei uma
vez a cadeira dela e montei a cadeira. Deixei lá, para ela sentar e cair. Realmente
funcionou. Desparafusei a cadeira inteira. Olha que trabalho! Cheguei mais cedo
na escola, montei a cadeira e tirei os parafusos. Ela sentou e a cadeira
desmoronou. Eu odiava aquela professora. E eu repeti... O que eu estava falando
219
agora... Meu pai falou: “Você repetiu, você não vai.” Me frustrou, me cortou, me
podou pela primeira vez na vida.
Pesquisadora – E você acha que foi reprovada por implicância?
Entrevistada – Foi por implicância, porque a nota que eu tirei... Foi assim, por 0,2
pontos. Meu pai falou: “Você acha que era para reprovar por causa de 0,2
pontos?” Estava de Matemática e Português de recuperação. Matemática, o
professor encontrou a minha mãe no supermercado e falou: “Não, não. A Sandra
passou, tranqüilo. Só vai para Conselho de Classe porque faltaram 0,2 pontos de
Português.” O Conselho de Classe me detonou. Eu não me conformei com aquilo.
Realmente, fiquei com aquele rótulo “A burra reprovou.” A primeira vez que eu
tinha reprovado. Piorou. Confirmou toda aquela expectativa negativa. Na oitava
série, eu tinha uma amiga, a Laís. Ela era completamente pirada. Hoje ela está
fazendo Medicina. Ela continua pirada, uma amiga que eu adoro e que me
incentivou muito, me ajudou muito porque ela era muito pirada. Ela tinha aquela
personalidade forte. E ela sabe que chamavam ela de louca, mas ela era uma
pessoa que só tirava nove, dez, nove, dez. Piradona! Ninguém suportava a Laís
porque ela só aprontava. E quando eu comecei a andar com ela, veio aquela
coisa: “Não, eu sou alguém, tenho uma personalidade forte também como a Laís.”
Comecei a me espelhar na Laís. Foi aí que eu consegui me afirmar. Eu
consegui... A Laís foi uma ponte para mim, para eu conseguir ser alguém. Porque
ela, com toda loucura, com todos problemas... O pai dela é médico também, a
mãe dela ficava em casa, porque ela realmente destruía a casa. Era coisa de...
Ela passava álcool na barriga do irmãozinho: “Está geladinho?” [Ele:] “Está.”
Jogava um fósforo e pegava fogo na barriga do menino. Desse jeito! Não tinha
como segurar. Fazia coisas terríveis. Na vida adulta... Bom, eu comecei a
namorar, com 17 anos, também. Eu era apaixonada e ele me achava
completamente doida. Ele gostava de mim assim. [Trecho interditado pela
entrevistada.] E esse cara que eu namorei – “ficava”... Eu queria namorar, e ele,
acho que, nem queria tanto, mas eu queria porque estava apaixonada por ele.
Mas ele está bem até. Na época, eu era doida. Sair comigo, ele não sabia se ia
voltar para casa. Porque eu pegava o carro da minha mãe... Eu tinha acabado de
220
pegar a Carta [Carteira de Habilitação], com 18 anos. Bebia pra caramba,
vomitava no carro. Coitado, ele me trazia para casa e explicava para a minha mãe
o que eu tinha feito. Outro dia, ele me deixava em casa, eu ia bater na porta da
casa dele, depois de ter passado mal, de ele ter me deixado em casa, de ter
vomitado no carro, de ficar bêbada. Eu ia bater na porta da casa dele, porque eu
queria ficar com ele. Então... coisas que eu não teria conseguido sair de noite na
rua sozinha. Eu corro risco de estar no carro, bebendo. Entrei debaixo de um
caminhão. Foi uma coisa bem grave. A minha mãe me proibiu de tomar cerveja,
de fazer tudo. Aí eu parei realmente. Até hoje, eu não tomo mais, porque eu sei
que eu não vou... Não que eu não vá saber o limite... Porque se eu tomar... Se
estou na empolgação, cheio de amigos, vou tomando, pego o carro e dirijo. Não
estou nem aí com nada. Então, não posso fazer isso. Geralmente, não faço. Eu
sei o meu limite. E eu sou médium, o que piora todos os sintomas, pela
influência... a vibração... que se você se sintonizar com coisas ruins, você vai
sofrer as conseqüências... se você acredita nisso, sua religião... Eu não posso
beber, porque eu sofro influências negativas. Agora, nessa fase adulta, foi difícil,
porque, como eu gostava muito desse cara, eu fazia tudo para estar com ele.
Fazia tudo, mas tudo mesmo. Seria capaz de tudo. Não me matar, essas coisas,
mas seria capaz de tudo para ficar com ele. Mentir para o meu pai e minha mãe,
pegar carro escondido, viajar com ele e não falar para ninguém onde eu estava,
para ficar com ele. Nessa fase, foi muito difícil porque ele começou, depois de um
tempo... Eu viajei para Porto Seguro... Porque, ao mesmo tempo em que eu
gostava muito dele, ele também gostava muito de mim. Então, na época que ele
começou a gostar de mim, eu fui para Porto Seguro com minhas amigas, na
formatura do Colegial. Ele falou: “Você vai para Porto Seguro?” Querendo dizer
“não vai”. Ele não chegou a falar “não vai”. Porque ele é dez anos mais velho que
eu. Ele não chegou a falar não vai, mas ele disse assim: “Você vai, não é? Está
bom. Juízo...” Realmente, eu me comportei na viagem. Ao mesmo tempo em que
eu gostava dele, eu queria aproveitar a festa com as minhas amigas. A minha
mãe saiu num sábado à noite e o encontrou beijando uma moça. E me contou.
Falei: “Nossa! Legal o que você fez, não é?” Aí eu descobri que eu tinha que dar
mais valor para mim do que para as outras pessoas. Primeiro “não” que eu levei
na minha vida, primeiro chifre que eu tomei na vida. Mas também não machucou,
221
até aprendi a me virar. “Quer saber? Estou fora. Não vou ficar lambendo quem
não me quer, também.” E aprendi a dar valor para mim mesma. Fui estudar. Aí eu
tomei jeito. Já conhecia o meu marido. Porque [além de] esse cara que eu
namorei, eu ficava com meu marido hoje. Quando eu namorava ele, eu gostava
dele, mas eu também gostava do meu marido, que era o meu namorado também,
em São Paulo. Minha mãe não se conformava quando ela descobriu que eu
namorava os dois. Embora ela gostasse dos dois. E eu tomei a decisão quando
eu vi que o Paulo tinha feito isso...
[Interrupção – A entrevistada teve de abrir a porta para alguém que chegou.]
Entrevistada – Ao mesmo tempo em que eu gostava do Paulo, vi que eu gostava
também do meu marido, com quem eu estava desde os 14 anos. Só que ele, por
ser mais velho que eu, ele já tinha... claro, a vida sexual dele já era ativa, a minha
não.
[Interrupção – Outra vez, teve de atender a porta.]
Entrevistada – Eu sempre gostei dos dois. Eu estava na dúvida com quem eu
ficava. Eu sempre tive dúvida em tudo na minha vida. Eram sempre dez opções,
eu queria as dez ao mesmo tempo. Isso foi uma característica muito clara desde a
infância. “Que brinquedo você quer?” Era sempre o que eu não tinha. [O telefone
tocou insistentemente, e já havia tocado outras vezes. Interrompi perguntando se
ela preferia atender. Ela disse que não.] Por exemplo, meu pai me dava um
brinquedo que eu queria muito. Mas o brinquedo que eu mais gostava era sempre
aquele que eu não tinha. Não era nunca aquele que eu estava ganhando, era o
da amiga ou o do primo, nunca era o meu. E isso com namorado foi a mesma
coisa. Inclusive o meu marido, ele namorava a minha prima. Para ter uma idéia!
Catorze anos! Ela não sabia disso. Eu escolhi ficar com os dois. Só que quando o
Paulo começou a ficar com outra [trecho interditado pela entrevistada], eu resolvi
ficar com o Fábio. Foi aí que eu engravidei, porque eu quis engravidar. Meu pai
tinha falado: “Você não vai se casar.” Eu queria me casar, ele não deixou. Eu
falei: “Então, eu vou ficar grávida, para poder me casar.” Ele falou: “Você vai arcar
222
com as conseqüências.” E realmente eu caí na vida adulta. Eu realmente
engravidei para poder me casar. Meu marido estava ainda fazendo Faculdade.
Sofri todas as conseqüências de uma vida desestruturada, porque, até então, era
toda estruturada a minha vida. Meu pai me bancava, eu tinha empregada em casa
para fazer tudo. De repente, eu tive que trabalhar. Então tinha a escola, eu estava
saindo do terceiro Colegial. Minha vida era trabalhar, ganhar o pouco dinheiro que
eu ganhava, porque eu não tinha Faculdade ainda. Abandonei a Faculdade A,
abandonei a Faculdade B, para poder me dedicar ao meu filho. Não me arrependi,
mas faria diferente se eu tivesse uma segunda oportunidade. E eu vi que eu meti
os pés pelas mãos. Foi uma grande característica dessa situação, porque, por
exemplo, você acha que não era para eu ter esperado? Era sempre impulsiva,
ansiosa. E nessa ansiedade de querer me casar, de querer ter filho, sendo que
não era a hora, eu fiz tudo errado. Estou com ele até hoje, mas poderia não estar.
Teria jogado tudo pelo ralo. E agora, na [minha] vida adulta, o meu filho perdeu o
fôlego. Foi aí que voltou todo aquele sintoma que eu tinha. Quando eu era
criança, eu tinha medo de dormir, porque eu ouvia barulhos. Ficava assim “piii...”,
no meu ouvido. E eu, dormindo, ouvia esse barulho. Imaginava: “Será que é a
panela de pressão da casa de cima?” Ficava pensando essas coisas, porque eu
não sabia que era da minha cabeça. Eu achava que era um barulho externo e era
interno. Ficava “Piii...” E eu fechava os olhos e enxergava imagens. Enxergava...
sabe veneziana, que tem aqueles furinhos? Eu enxergava furinhos, eu enxergava
um monte de caracol girando, que era um monte de bolinha colorida. Eu
enxergava essas coisas. E eu achava que isso era alguma coisa que eu estava
vendo, não sei. Eu tinha medo, tinha medo de dormir, um pavor imenso. O quarto
ficava todo cinza. Eu me lembro daquela imagem. O quarto era cinza de tão...
Tinha essa característica. Eu ficava com a coberta aqui [mostrando], tremendo,
suada. E eu notei que esse medo voltou quando meu filho começou a perder o
fôlego. Era a mesma sensação que eu tinha quando eu era criança. Talvez uma
ansiedade da escola, pode ser que desencadeou isso. Nessa época, eu comecei
a ter de novo, quando o meu filho tinha um ano, dois anos, três anos, piorou
quando ele perdeu o fôlego. Ele perdeu o fôlego de uma tal forma que não voltava
mais, começou a ter convulsão no carro... Eu acho que é convulsão. Ele começou
a pular no carro, o maxilar travou e eu tentando abrir a boca dele. Ele não voltava.
223
Eu morava num condomínio, saí de lá... Era perto do hospital. E nesse momento
eu cheguei a abraçar o meu filho assim todo caído, todo desmaiado. Eu falava:
“Fábio, eu vou perdê-lo!” É uma coisa que eu nunca vou esquecer. E eu acho
que, a partir daquele momento, eu comecei a desenvolver a Síndrome do Pânico.
Porque toda essa ansiedade, toda essa impulsividade foi afunilando ali. E se
manifestou dessa forma. Eu já era agitada, tinha uma vida conturbada, tinha
estresse, já tinha toda aquela vida desregrada, meu marido morando em SP, três
anos da vida dele. Depois ele veio para cá. Aí vem a questão financeira, porque
estava se estabilizando ainda. Coisa que eu nunca tinha sofrido antes. Exceto
quando meu pai passou uma crise, mas ele não deixou a gente sentir. Ele só não
dava brinquedo, roupa, mas nunca faltou comida, sempre teve empregada. Não
senti na pele. Depois disso, só medicamento. Mas, ao mesmo tempo, a agitação,
a ansiedade, e querer fazer tudo ao mesmo tempo e não concluir nada. Eu dou
aula numa escola em que eu não consigo apresentar o semanário, mas minha
aula é muito bem dada. Eu não sei explicar como. A diretora vive me cobrando.
Às vezes, ela fica brava ou tomo até advertência, mas eu tenho um trabalho que
ninguém questiona, porque é bem feito mesmo. Todo mundo comenta: “Olha, que
legal!” A minha escola [em que é proprietária] hoje está com 123 alunos, ali, sem
fazer marketing, sem nada, por indicação de pai para pai. Realmente, o trabalho é
legal, mas eu me perco muito nessa parte burocrática. Eu não gosto de
documento, eu não tenho paciência de acabar um trabalho iniciado. Não tenho
paciência para preparar aula. Eu desenho minhas apostilas, eu passo para o
computador, imprimo. Tudo eu faço sozinha. Então isso tudo eu acho que, para
mim, é muito bom, porque eu aprendo muito. Só dá uma carga muito grande de
estresse. Eu não consigo comprar uma apostila pronta e dar para os meus
alunos. Meus desenhos eu faço todos, na mão [mostra alguns desenhos que já
fez]. Todo aquele conhecimento que as pessoas demoram para ter, no trabalho,
eu tenho essas coisas. Eu acho muito legal isso. [Explica alguns desenhos que
ela fez, enquanto me mostra.] Então, eu acho que isso me prejudica demais
porque as pessoas não entendem por quê. Acham que é desleixo, acham que eu
sou relaxada, acham que eu não tenho capacidade, julgam o não-feito e jogam no
trabalho. Pegam as piores características minhas e jogam pro trabalho. “Se a
224
Sandra é assim, ela deve ser uma péssima profissional.” Na verdade, não é
assim.
Pesquisadora – É mais ou menos o que acontecia nas primeiras séries, não é?
Entrevistada – É, me julgavam sem conhecer o meu problema. E se eu falo que
eu tenho um problema, como eu estou trabalhando no mesmo lugar há 11 anos
já, elas acham que: “Imagina! Ela é assim mesmo, sempre foi assim.” Não, eu
entrei lá com 15 anos. Hoje eu tenho 26. As coisas mudaram, eu cresci, eu
amadureci ali dentro. E ela [a diretora] como tem 40, 50 anos... A vida de uma
criança, de um adolescente de 15 anos para 26 anos tem todo um período de
transformação que não tem de 40 para 50. É bem menor a relação de... E ela não
entendia isso. Quer dizer, até hoje vão me rotular. Por exemplo, eu fui arrumar a
escolinha lá [a entrevistada tinha um compromisso de trabalho no mesmo horário
dessa entrevista]. Vai ter a festa, mas só pelo fato de eu ter saído mais cedo, vão
falar: “A Sandra é assim mesmo. Ela não está nem aí.” Na verdade, não é. Eu
estou preocupada com o que tem lá para arrumar. E eu sofro com isso, porque
me rotulam. Só que quanto aos pais da escola [da escola em que é proprietária],
eu não preciso provar que o meu trabalho é bem feito. As mães chegam aqui e
falam: “Eu não tiro o meu filho daqui, porque a Escola G [nome de uma escola de
Inglês muito conhecida] está uma droga. É o que eles falam. O método que é
desenvolvido aqui, com o pessoal, todo dia, é que faz a diferença. Coisa que
geralmente o pessoal, não só de escola de idioma, todo mundo que trabalha, a
maioria quer o quê? Não vê a hora de ter um funcionário, para se livrar. Eu sou o
contrário, eu odeio passar tarefa para funcionário. Eu acho que ele não vai ter a
capacidade de fazer da mesma forma que eu vou fazer e vai prejudicar no
resultado final. E é isso que me dá esse estresse e essa ansiedade, porque eu
quero abraçar tudo de uma vez.
[Comento um pouco sobre os desenhos que a entrevistada me mostrou e explico
que os deixarei de lado para vê-los com calma quando encerrarmos a entrevista.]
225
Entrevistada – Eu acho que isso é uma grande vantagem, porque eu sei que a
minha escola hoje depende exclusivamente de mim. Eu não dependo da compra
de material de ninguém, eu não dependo de nada, eu não dependo de professor
para dar aula. Eu dependo do meu trabalho. Se eu fico doente, eu sou a única
prejudicada. Se eu falto no trabalho, eu vou me prejudicar. Eu acho que isso é
que faz você crescer e dar valor. Isso ninguém enxerga. Ninguém vê que eu vou,
por exemplo, lá na outra escola que eu trabalho, eu vou com muito amor mesmo,
de verdade. Eu chego, dou risada, sinto prazer em estar fazendo. Coisa que as
outras professoras – fazendo semanário, preparando aulinha, falando “amém”
para a diretora – só andam de cara feia, cara amarrada. É isso que eu acho que
é, realmente, saber aproveitar as oportunidades, porque as pessoas interpretam
de uma forma errada a criança que tem hiperatividade. É isso que eu sinto. “Essa
criança é agressiva. Essa criança tem problema, essa criança não aprende, essa
criança não sei o quê. Ninguém é obrigado a sentar numa mesa e a professora
jogar uma coisa que dez vão entender da mesma forma. Acho que ela tem que
saber lidar com cada um em suas diferenças. E elas não sabem fazer. E isso me
deixa muito triste. Quando tem um aluno na minha classe, do pré, e ele tem
dificuldade porque ele está... Ele tem cinco, seis anos. Mas ele faz seis anos em
setembro. Ele deveria estar no Jardim II, não no Pré. Mas a mãe quis empurrar
para o Pré. A escola tem que falar: “Não!” Perde um aluno, mas não perde a
responsabilidade, entendeu? Tem medo de perder R$270 de mensalidade, mas
não quer perder... não pensa em perder a responsabilidade, que eu acho que é
mais importante que o dinheiro. E é isso que eu vejo nos alunos das outras
escolas. Na Escola H, até que não é assim. É uma escola excelente. Eu gosto
muito de trabalhar lá, inclusive meu filho estuda lá e eu não troco por nada. Até
vou sentir quando tiver que tirar, porque tem só até a quarta série. Mas eu acho
que as escolas pecam muito nisso, não só as escolas, como os profissionais. A
criança tem prazer em montar um Lego, em construir um castelo, chegar até em
cima. O adulto tem prazer em quê? Em só terminar e ficar olhando o que ele
terminou. Por que a criança não tem aquele medo de bater a mão e cair tudo de
novo? Porque o prazer dela está em montar e construir. Assim como o meu
prazer está nas minhas aulas. Está em fazer, em montar, aprender, construir,
226
passar informação, [ajudar]
17
os meus alunos a brincar, está na convivência
agradável. Sendo que eu percebo que a opinião dos outros professores em
relação a isso é o quê? “Meu semanário está em ordem, está lindo. Olha só! Está
aqui, a minha aula é essa. Olha! Está certinho. Vamos tomar lanchinho? Ai... que
legal. Ai... chegou 5h. Graças a Deus! Vou para minha casa... Chegou o dia cinco.
Caiu o pagamento. Que bom!” Eu nem lembro que é dia de pagamento! Juro por
Deus! Apesar de que eu preciso de dinheiro. Todo mundo precisa, claro. Eu nem
lembro que tem dia de pagamento. Eu nem estou nem aí com o meu semanário.
Desde abril que eu não entrego o meu semanário. Não estou nem aí, pode falar o
que for. Mas eu vou com amor dar aula. Meus alunos me adoram. Chego na
classe, sem brincadeira: “Tia Sandra, Tia Sandra...” Todo mundo cantando e...
porque realmente é uma coisa prazerosa para todo mundo. Essa semana, tive a
oportunidade de ficar da uma às quatro horas dando aula de Inglês. Eu fico da
uma às três. Uma hora a mais que eu fiquei. Nossa, fluiu que foi uma maravilha.
Levei os alunos para escovar os dentinhos, cantei músicas. Fui ver a horta da
escola, mostrei coisas diferentes, não só de Inglês. Expliquei porque temos que
lavar as mãos. “Cadê os bichinhos que todo mundo fala, que fica na folhinha e
ninguém vê?” Quer dizer, vamos criar consciência na criança através do
conhecimento, não da imposição. É isso que eu tento fazer, mas ninguém pensa
assim e eu acabo me ferrando, acabo tomando advertência. [Inaudível] Eu choro
muito. Daí eu vejo... “Não vou chorar, porque eu sei que o meu trabalho está
certo. Mas meu conflito é esse. A sociedade não me aceita como eu sou. Não me
aceita. Porque eu sou diferente, eu vejo que eu sou diferente. A forma de eu lidar
com as pessoas, de eu tratar. Eu não tenho paciência de ficar adulando as
pessoas. Eu não tenho paciência. Eu vou mostrar para elas pela competência.
Não é: “Seu filho é lindo! Ai... bem, vem aqui, toma um café.” Pelo amor de Deus!
Deixa seu filho aqui, fica tranqüila, vai fazer o que tem que fazer, depois você
volta pegar ele. E assim eu vou conquistando meu aluno, porque tem mãe que
enxerga como eu. Eu tenho aqui [na escola em que a entrevistada é proprietária]
aluno que tem dificuldade e a mãe, a primeira coisa quando ela tem um problema,
recorre à escola – quando tem o mesmo problema que eu, se tem hiperatividade,
se tem déficit de atenção. A primeira coisa que a mãe faz é recorrer à escola,
17
Expressão mais aproximada do que foi possível ouvir.
227
aqui. “Me ajuda, pelo amor de Deus. O que eu tenho que fazer?” Sendo que, na
escola lá [na escola em que a criança estuda regularmente], falam que é
problema da família, problema da mãe, problema de falta de responsabilidade dos
pais. Acho que a sociedade ou muda ou muda. Não tem outra alternativa. Ou eles
vão evoluir com as diferenças ou eles vão ficar no preconceito, passando a vida
inteira bitolado. Acho que é esse o ponto em que eu queria chegar. Ou muda, ou
muda. Eu sou do signo de Aquário – não sei se você acredita nisso –, e é um
signo também totalmente diferente do zodíaco, onde a gente tem uma visão do
futuro. Tem, mesmo, uma visão totalmente diferente. Eu acho que isso também
piorou a minha característica de hiperativa, porque se eu fosse do signo de
Câncer, que é mais calminho, mais tranqüilo, talvez eu fosse mais aceita na
sociedade. Não sei. Minhas roupas na adolescência eram extravagantes. Não
eram punk, nada, mas eu adoro miçangas, essas coisas (apesar de hoje eu estar
meio relaxada). Eu adoro brincos enormes, eu adoro brilho. Minha roupa tem que
ter brilho, bem perua, nesse ponto. Eu acho que, na adolescência, foi mais por
auto-afirmação. Saia curta... Eu era magrinha, toda bonita. Só que aí, o que
acontecia? “Essa daí vai ficar com todo mundo!” Não, eu queria experimentar.
Ficava? Ficava. Beijar mata? Não mata. Certo que eu não saía com ninguém.
Fiquei com duas pessoas, meu marido e meu namorado só. Acho que hoje em dia
as pessoas estão bem pior. Beijar era proibido. Eu não estava nem aí. Beijava
mesmo. Ficava com um hoje, no outro dia, ficava com outro, porque eu queria
conhecer, porque eu queria aprender. Porque eu não aprendia no livro, aprendia
experimentando. Então era tudo isso. E as pessoas não entendiam isso e
encaravam de uma forma errada.
Pesquisadora – E como que é no Ensino Superior?
Entrevistada – No Ensino Superior, super gostoso, porque eu consegui fazer uma
coisa que eu nunca consegui fazer, que era ler. Eu odeio ler, mas eu estou
aprendendo. Interpretar, gostar. Eu tive facilidade em interpretação, mas viajava
na maionese também. O professor falava: “Faça um trabalho sobre pobreza e
países desenvolvidos?” “Faço.” Nossa! Montava uma folha expositiva imensa,
uma coisa que era [para ser feita em] uma folha para entregar para o professor.
228
Exagerada. Sempre fui exagerada. Na roupa, na escola, no trabalho, na vida: em
geral. Até em contar as coisas, viu? [risos]. Veja se eu não estou fugindo da
realidade aí. Não! Brincadeira! Mas é que, na época em que eu fiquei sem
remédio, eu ficava com medo: “Ai mãe, quase fui assaltada. Mãe...” Ficava
desesperada. Imagina! Um cara passou de moto, grudou um pouquinho no vidro.
Eu achava que estava quase sendo assaltada. Entendeu? Nessa época, eu sofri
muito com isso. Agora, no Ensino Superior, está sendo super agradável, super
gostoso. A aceitação da classe é excelente. Eu percebo... a coragem de me abrir
perante todos eles e falar: “Olha, eu tenho Síndrome do Pânico, eu preciso de
vocês para poder me encaixar nessa classe, se não eu vou me sentir mal, eu vou
sair fora mesmo.” E, nossa! Fui super acolhida. A Viviane... nunca vou esquecer.
A Júlia... inteligentíssima, vai muito bem em Literatura. Em Inglês, ela não vai
muito bem, a gente acaba trocando informações. Ela me ajuda na parte de ter
paciência, porque ela é muito paciente e eu sou completamente sem paciência. E
eu estou tendo muito apoio dessas pessoas. Eu estou muito feliz de estar tão
bem na Faculdade. Só um professor que não me entendia muito, o de Literatura,
o Valdir, porque, realmente, eu era impertinente. Eu não entendia a postura dele
de ficar lendo um texto durante quatro aulas, e a gente ter que ficar em círculo
ouvindo aquilo. Para mim, era a morte. Só que, depois, eu fui vendo que era
necessário aquilo e fui entendendo [inaudível] como eu não gosto de uma pessoa.
Eu vou maltratar, eu vou agredir, eu vou me esquivar? Não. Tenho que aprender
a ser amiga. Com a diferença que eu também quero ser tratada. Então, eu tento
lidar com as diferenças assim. Consegui me encaixar no grupo muito bem. Tenho
notas oito, nove, dez. Não tirei nenhum sete até hoje. Só acho que com a
[professora] Sueli devo ter tirado oito, sete e meio, é uma das minhas notas mais
baixas, mas porque exige muita atenção, estudo. Mas, graças a Deus, eu vou
muito bem.
Pesquisadora – Os professores sabem do TDAH?
Entrevistada – Alguns sabem, outros não.
229
Pesquisadora – Como foi a sua relação com a Língua Portuguesa? Foi muito
complicada? Ou, não foi a pior?
Entrevistada – Não. O que pega é o professor. Não pega a matéria. Se eu gosto
do professor, eu vou; se eu não gosto, já era. Não tive dificuldade, não. Eu nunca
aprendi nada. Se eu falar para você o que é uma oração adversativa ou... não sei
nada. Mas eu... Se eu estou com a matéria ali, se o professor está expondo, se eu
gosto do professor, se o professor me trata bem, que é o meu caso, nossa! Agora,
bastou me virar a cara para já... Eu não me preocupo com o fato, mas com a
pessoa. Eu fui muito bem em Português.
Pesquisadora – Você acha que se tivesse professores preparados para trabalhar
com o TDAH teria mudado o quê?
Entrevistada – Teria bloqueado a formação da baixa auto-estima, que eu acho
muito perigosa. Eu acho que o ponto fundamental está aí, porque os que não
sabem lidar ficam rotulando como se a gente fosse um tapado, como se fosse
uma pessoa problemática, e na verdade não é. É diferente, não um tapado. E isso
na vida adulta leva inclusive ao suicídio. É uma coisa grave, porque a pessoa se
sente mal, não consegue se encaixar na sociedade. Ela vai criando... ela mesmo
vai se diminuindo. Ela chega ao ponto de: “Ninguém gosta de mim.” E dá um tiro
na cabeça. Acabou. Acontece muito. Inclusive a... Claro que tem toda a parte
fisiológica, gera uma depressão, uma Síndrome do Pânico, fobia de público. Vai
gerando problemas futuros. Eu acho que se ele [professor] soubesse lidar, ele iria
bloquear esse tipo de sentimento e incentivar a pessoa, porque eu acho que as
pessoas que têm hiperatividade são pessoas que podem promover mudanças,
que têm coragem de promover mudanças, de chacoalhar o ambiente para
acordarem. Porque as comuns não enxergam. As que têm problema, que têm
essa característica, elas chacoalham: “Não! Isso está errado, não é assim. Vamos
acordar.” De ter coragem de se expor e falar, sem estar preocupado com o que
vão pensar dele. Porque eu sou assim: o que eu tenho que falar, eu falo mesmo.
Infelizmente, eu não sei falar “eu gosto de uma pessoa”, se não gosto. Eu chego
para pessoa: “Olha, eu não gosto, eu sinto muito.” Eu, infelizmente, sou assim.
230
Isso me faz mal, mas é uma maneira de me expressar. Um pouco mais agressiva,
talvez. Mas eu não fico adulando muito. Eu acho que isso é bom também, porque
você consegue acordar as pessoas que estão adormecidas ali, que acham que o
que o professor falou é lei. Não tem posição de questionamento. Uma coisa que
eu tenho: se o professor falar uma besteira, eu não vou ficar ouvindo o professor
falando. Eu falo: “Olha, está errado.” Eu o chamo num canto e falo. E muitas
vezes, já aconteceu. Inclusive um professor da Faculdade chegou a falar uma
coisa errada e eu falei. Ele foi obrigado a corrigir. Acho que isso ajuda, é muito
importante. Na Grécia antiga, Aristóteles, Platão, eles questionavam. [Inaudível]
Pesquisadora – Você acha que o uso da internet, do computador, facilita ou não o
seu estudo? Você faz esse uso?
Entrevistada – Para mim é fundamental, mas é muito prejudicial também, porque
quem tem esse distúrbio, é extremamente inteligente, por incrível que pareça.
Então, ele busca caminhos para facilitar o seu problema. Por exemplo, editar,
copiar, editar, colar. Seleciona o que está ali, muda aqui, põe ali, disfarça aqui,
está pronto o trabalho. Eu tento resistir, mas na hora do aperto eu faço muito.
Óbvio, todo mundo faz. Mas eu acho que o que dificulta também é que nós não
temos noção do limite, de onde parar. Eu, se ficar na Internet, vou até as cinco
horas da manhã, mesmo se eu tenho que acordar às seis para dar aula no dia
seguinte. Me prejudica fisicamente. Então eu acho que é uma excelente
ferramenta de trabalho, mas eu acho que para quem tem hiperatividade o ideal
seria o livro, embora ele não iria ter paciência de ler. Teria que ensinar a ter
paciência, ensinar a pesquisar e ensinar que as coisas não são tão fáceis como a
gente acha que é. Pra gente tudo é fácil. Se falar para mim: “Vá para São Paulo.”
Então, na próxima semana, eu marco com você e apareço lá, realmente. Pra
gente, é tudo fácil. Só que existem problemas decorrentes dessa facilidade. No
caso da internet, é a falta de informação, porque você acha fácil e não vai se
preocupar com o conteúdo ali. Vai usar a inteligência para quê? Para descobrir
um meio mais fácil de resolver um problema. Esse é o raciocínio. Agora, a internet
é boa para pesquisar. Para mim, é fundamental. Eu busco informação todo dia na
internet. Se eu não tenho o que fazer, eu vou para a internet. Vou ler sobre
231
epilepsia. Além de epilepsia, eu vou ver sobre o funcionamento do corpo humano.
Eu vou estudar. Coisas que nem são da minha área, mas que eu me interesso
muito. Só que eu perco a noção do tempo. No dia seguinte, eu tomo Ritalina,
porque eu estou passando mal, tenho que tomar remédio, e acordo. Tenho que
trabalhar e fazer o meu trabalho ainda. Arrependendo-me de ter ficado na
internet. Eu não sei se a internet é boa pra gente, não. Eu acho que a nossa
cabeça já é um caldeirão de idéias, a internet é outro. Embora eu não consiga
viver sem. Para a criança que tem hiperatividade, é péssima. Jamais eu a deixaria
no videogame ou... Ia deixar sempre uma corda, uma bola, uma bicicleta, para
poder gastar energia. Jamais com videogame e internet.
Pesquisadora – Sandra, eu estou encerrando. Tem alguma coisa a mais que você
gostaria de falar?
Entrevistada – Eu acho que não. Acho que não tem mais nada. A gente chegou a
conversar o que eu queria. E a minha indignação, principalmente, é com os
profissionais que não são profissionais. Porque, hoje em dia, a base da cidadania
é o quê? É quebrar o preconceito, e eles não fazem isso. Porque eles rotulam as
pessoas e não deixam que essas pessoas apareçam. Eu acho que eles devem,
por serem profissionais, conhecer esse tipo de [problema]
18
obrigatoriamente.
Pesquisadora – Agradeço muito a sua participação na minha pesquisa.
18
Palavra mais aproximada do que foi possível ouvir.
232
Entrevista com Thaís
Thaís tem 25 anos, é solteira, mora em Campinas, é professora, é uma das
administradoras de uma escola infantil. Teve o diagnóstico do transtorno na idade
adulta. Faz tratamento com medicamento.
Campinas, 29 de novembro de 2005.
Pesquisadora – Thaís, Fale sobre a sua trajetória escolar, apontando: a) Em que
fase da escolaridade você descobriu o TDAH? b) Como foi a sua passagem pelos
ensinos: Fundamental, Médio e Superior, especialmente neste último? c) O que
você fez (e faz) para superar dificuldades decorrentes do transtorno?
Entrevistada – No Ensino Fundamental, a primeira dificuldade foi na
alfabetização: na escola, eu não fui alfabetizada. Quem me alfabetizou foi a minha
mãe, em casa. No Ensino Médio, também tive algumas dificuldades. Repeti o
primeiro Colegial, fiz Magistério até o terceiro ano. O Magistério para mim foi mais
fácil. Como eu já estava em escola particular, eu fiz o Magistério em escola
estadual. Então foi bem fácil, eu não tive dificuldade nenhuma. Do terceiro ano do
Magistério, fui para o Ensino Superior. No Ensino Superior, não tive muita
dificuldade, acredito que por causa do curso não exigir muito. Porque eu nunca fui
de ter livros, cadernos. Eu até que tinha no começo do ano um caderno, mas
nunca anotava nada. Quando chegou... Saía e entrava na classe o tempo todo,
porque na Faculdade era permitido isso, ninguém tinha controle de nada. Só
quando chegava perto da prova, eu pegava o caderno de alguém para xerocar.
Sempre fazia uma cola e dava uma lida no caderno de alguém. E não precisei
ficar de DP [dependência] em nenhum ano, nada. Aí foi descoberto... A infância
toda, a minha mãe procurou sempre diversos médicos, porque eu não dormia,
tinha muita dificuldade e hiperatividade mesmo. A minha mãe procurava vários
médicos. Era sempre diagnosticado como uma pequena disritmia, eles falavam.
Então eu tomei muitos anos Tegretol. Alguns anos eu tomei... remédio para
dormir. E só foi diagnosticado mesmo o transtorno há dois anos, que foi quando
eu comecei a fazer todo o tratamento, com os remédios. E aí melhorou.
233
Pesquisadora – No Ensino Superior, quais eram as principais dificuldades que
você sentia? Era ficar dentro da sala, era se concentrar numa leitura, era o
interesse?
Entrevistada – Acho que eram os três: tanto para ficar dentro da sala como para
se concentrar... Para falar, sempre tive bastante facilidade. Então, quando tinha
que expor alguma coisa em sala, geralmente, o grupo fazia o teórico e eu falava,
que nessa parte não tinha problema nenhum para falar.
Pesquisadora – Organização dos seus trabalhos individuais como era? Você
conseguia fazer numa boa ou não?
Entrevistada – Não, conseguia. Em termos de organização, eu sempre tive. Era
mais no caso de livro e caderno que eu nunca tive.
Pesquisadora – E por que você não tinha?
Entrevistada – Porque eu não tinha paciência para anotar nada. E mesmo cedo
[mais nova] que eu tinha [livros e cadernos], eu não tinha paciência para guardar,
porque eu achava que eu nunca mais ia precisar ler. Então jogava [o material] na
hora.
Pesquisadora – Thaís, como que o problema foi tratado na escola? O TDAH?
Pelo que você disse no início, o TDAH não foi descoberto tão cedo, foi só agora
na idade adulta. Mas você apresentava algumas dificuldades na escola. Seus pais
recebiam reclamações sobre o seu comportamento? Que tipo de reclamação? O
que você sentia em relação a essas reclamações? Fale um pouquinho sobre isso.
Entrevistada – Isso. Eu me formei em 2002. O TDAH foi descoberto só em 2003.
Então, principalmente, de primeira a oitava série, tinha muito problema em relação
ao autocontrole. Eu era muito agressiva. Então meus pais, constantemente, eram
chamados na escola, sempre tinha advertência, esse tipo de coisa. Por isso,
234
minha mãe sempre procurava médicos, porque ela sabia que não era só uma
questão de comportamento social, que tinha alguma coisa física, mas os médicos,
na época, ainda não diagnosticavam. Então, qualquer coisa, sempre respondia
com agressividade, em relação aos colegas e também aos professores.
Pesquisadora – Tem algum episódio escolar que foi marcante para você e que
você gostaria de relatar?
Entrevistada – Por esse problema do autocontrole, da agressividade, então,
certas coisas eu não aceitava. Sempre tive bastante facilidade para esporte.
Jogava futebol, na escola, jogava tudo que podia jogar. E, na quinta série, eu
estava jogando futebol, fui expulsa. Eu não aceitei ser expulsa, e a professora de
Educação Física tentou me tirar do campo. Eu não aceitei. Até a gente teve um
atrito corporal mesmo. Mas eu acho que é mais isso, porque o resto mesmo era
mais com colegas.
Pesquisadora – Você acha que ocorreram mudanças significativas após a
descoberta do transtorno? E ainda, como você superou e tem superado as
dificuldades decorrentes do TDAH?
Entrevistada – É, com certeza, teve bastante mudança, principalmente, no social.
Problemas de relacionamento, da falta de paciência, da pouca tolerância, que,
depois que comecei a fazer o tratamento, melhoraram bastante.
Pesquisadora – O uso do computador, ou mesmo da internet, facilitava (facilita), o
seu estudo? Ou ainda, facilita a sua vida? De que maneira?
Entrevistada – Facilita, tanto para trabalhar como na época em que eu estudava.
Facilitava bastante. Nunca tive maiores problemas. Eu sempre fui organizada
nesse sentido.
Pesquisadora – Você disse, no início da entrevista, que não teve dificuldades com
a linguagem oral, mas que tinha na escrita. Tanto é que na apresentação de
235
trabalhos orais, normalmente, o grupo fazia a parte escrita e a exposição oral
ficava ao seu cargo. Quais eram essas dificuldades na escrita?
Entrevistada – Acredito que mais por ter que se concentrar para fazer alguma
coisa, por ter de ler algum texto para, depois dele, partir para alguma outra coisa.
Mais nesse sentido. A concentração mesmo é que era a maior dificuldade. Tinha
alguma dificuldade também... Agora... desde... Depois que eu comecei a fazer o
tratamento, melhorou isso. Por exemplo, direita e esquerda, que eu não
conseguia, de imediato, responder, principalmente, no carro: vira à direita, vira à
esquerda, que eram coisas imediatas, eu nunca conseguia. Sempre demorava um
pouco, ou falava errado.
Pesquisadora – O enfrentamento do problema, do TDAH, foi mais complicado em
algum dos níveis de ensino? Se foi, em qual deles?
Entrevistada – Eu acredito que todos. Até a quarta série, eu não tenho lembrança
nenhuma, de como foi, se eu tinha dificuldade ou não. Sei do problema da
alfabetização porque a minha mãe conta, porque, antes da quarta série, eu não
tenho lembrança nenhuma. De quinta a oitava, eu tenho muito pouca lembrança e
do Colegial que eu tenho um pouquinho mais, mas também não é muito. Então, o
que eu lembro, sei que tive uma certa dificuldade.
Pesquisadora – Tem alguma coisa ainda que eu não perguntei e que você
gostaria de falar?
Entrevistada – É, o tratamento que eu faço, que eu comecei a fazer em 2003. Eu
comecei tomando a Ritalina e tomando Topamax. E eu tomava 60 mg de Ritalina,
junto com Topamax por dia. Agora, após um ano, eu comecei a tomar... porque
comecei a me controlar melhor. Não sei se também por conta da idade. Agora eu
tomo 30 mg por dia. Mas a Ritalina só não era suficiente para fazer o sono, para
poder ter um sono bom. Eu cheguei a fazer, antes de ser descoberto o TDAH,
aquele exame do sono, que é monitorado. E o que foi... Em um hospital
universitário eu fiz... Foi diagnosticado que eu só dormia o sono leve, não entrava
236
na fase do sono profundo, mas mesmo assim também não foi diagnosticado o
transtorno. Era só esse problema do sono mesmo, eu só dormia a primeira fase
do sono. Agora, juntamente com as 30 mg de Ritalina por dia, eu tomo um
regularizador do sono, que ajuda um pouco mais. Antes eu dormia muito pouco,
mas não sentia cansaço nenhum. Três horas por noite que eu dormisse era o
suficiente.
Pesquisadora – Thaís, você me falou um pouco sobre o seu desempenho nos
estudos. Você poderia falar um pouco sobre o seu desempenho no trabalho
também?
Entrevistada – Desde os 14 anos, quando eu comecei a fazer o Magistério, já
comecei a trabalhar com criança. Comecei como auxiliar de classe, e fui
passando por várias áreas, até hoje, que eu trabalho na parte administrativa. Mas
no trabalho, eu nunca tive problema nenhum, acho que, pelo fato de você
trabalhar com criança pequena, você tem que ter bastante energia. Então a
hiperatividade num certo ponto ajudava, porque não cansava. Cantava, pulava o
tempo todo, até prendia a atenção das crianças. Era uma coisa boa. Em relação
às crianças, eu sempre tive paciência, não influenciou muito. E hoje, que eu faço
a parte administrativa, também é numa boa. Eu tenho que ter bastante
organização, porque eu faço tudo, nota fiscal, boleto, esse tipo de coisa que eu
faço hoje, e atendo as mães. E hoje em dia, me dou super bem. Acredito que por
tomar Ritalina isso tenha melhorado. Acho que, no trabalho, eu nunca tive
maiores problemas, por conta disso.
Pesquisadora – Thaís, o único tratamento para o TDAH que você faz hoje é
medicamentoso ou você faz algum outro tipo?
Entrevistada – É medicamentoso, mas, na adolescência, a minha mãe tentou
várias vezes que eu fizesse psicoterapia. Fui em vários profissionais diferentes.
Então, eu fazia por um tempo, mas não tinha paciência para continuar fazendo.
237
Pesquisadora – Thaís, você disse que tem poucas lembranças da sua passagem
pela escola. Você se lembra um pouco mais do Ensino Médio e do Ensino
Superior. Com base nessas lembranças que você tem, você acha que se tivesse
professores preparados para trabalhar com alunos com TDAH teria mudado essa
sua condição de aluno com dificuldade de aprendizagem?
Entrevistada – Eu acredito que muito pouco, porque a hiperatividade era muita e
acho que isso teria mudado muito pouco. E acho que é importante salientar que,
principalmente, na adolescência, eu tive algumas compulsões. Por comida: comia
desesperadamente. Nunca cheguei a engordar por conta do metabolismo ser
rápido e de praticar bastante esporte, mas comia compulsivamente, fumava
compulsivamente. Hoje em dia, eu parei de fumar já há cinco anos, mas eu
fumava. Chegava a fumar dois maços por dia. Tinha uma euforia muito grande.
Diversas vezes, durante o dia, eu tinha que dar uma volta correndo no quarteirão,
por exemplo, porque, na época, por causa dessa euforia interna... E mesmo com
essa euforia... Eu sempre tive hipotireoidismo, desde o início da adolescência,
que é o contrário, deveria ter deixado também mais calma, mas... Acho que é
isso. Mesmo com a compulsão por comida nunca cheguei a ficar gorda, mesmo
tendo o “hipo” [hipotireoidismo], que engorda. E, hoje em dia, já é mais controlada
a compulsão por comida. Hoje em dia, é tudo normal.
Pesquisadora – Thaís, nós estamos encerrando. Tem algo mais queira deixar
registrado?
Entrevistada – Em relação ao uso de drogas. Durante toda a adolescência, eu
consumi maconha. Toda a família sabia, tentava com que eu parasse, mas não
era um problema de falta de apoio familiar, não era nada disso. Era mais mesmo
pela hiperatividade, pela falta de sossego mesmo, de buscar algo a mais.
Experimentei outras drogas, mas nenhuma usei, só experimentei, não tornei a
usar. Só maconha mesmo, que foi durante a adolescência.
238
Pesquisadora – E você usava por que motivo? Ela te fazia bem em algum sentido
ou era só pra acompanhar amigos? Você tem essa noção do porquê de você ter
usado, ou não?
Entrevistada – É pelo gosto mesmo, do que trazia. Não só para acompanhar
amigos, porque, depois, na adolescência, teve uma época em que eu fumava até
sozinha, não precisava ter companhia para isso. Então, é mais pela sensação que
o consumo dava mesmo.
Pesquisadora – Obrigada.
239
Entrevista com Tânia
Tânia tem 27 anos, é solteira, mora em Valinhos, é estudante do 4
o
ano de
Psicologia. Teve o diagnóstico do transtorno na idade adulta. Faz tratamento
medicamentoso e psicoterápico.
Valinhos, 1º. de dezembro de 2005.
Pesquisadora – Tânia, Fale sobre a sua trajetória escolar, apontando: a) Em que
fase da escolaridade você descobriu o TDAH? b) Como foi a sua passagem pelos
ensinos: Fundamental, Médio e Superior, especialmente neste último? c) O que
você fez (e faz) para superar dificuldades decorrentes do transtorno?
Entrevistada – Eu descobri o TDAH quando já estava na Faculdade, estava no
primeiro ano de Faculdade. E... foi difícil, porque eu percebia que todo mundo
prestava atenção e eu não prestava, todo mundo parava quieto e eu não parava.
Vivia saindo de dentro da sala de aula. E eu percebi que alguma coisa estranha
estava acontecendo, porque eu sempre fui assim. Mas na Faculdade é diferente,
você pode sair da sala a hora que você quiser, já no colégio não. Você tem que
ficar quieto. Mas eu tinha aquela dificuldade de ficar na carteira, sempre me
mexendo, sempre falando com todo mundo, mexendo com todo mundo. E foi aí
que eu descobri que eu tinha. Contei para o psiquiatra e descobri que eu tinha. No
Ensino Fundamental, eu acho que eu sempre fui aquela aluna mediana. Tudo o
que eu aprendi, no Fundamental e no Ensino Médio, eu esqueci tudo já. Eu falo
que eu não lembro de muita coisa que eu... Não foi... Decorou, apagou da minha
memória, porque eu não lembro. Nunca prestei muita atenção. Eu sempre fui
muito hiperativa mesmo, desde pequena. E hoje em dia... porque eu faço para
superar... eu tomo a medicação de vez em quando, não tomo direto. Eu estou
aprendendo a me controlar sozinha. Eu estou tentando me controlar sem a
medicação, que é lógico que eu vou ter que tomar o resto da minha vida, mas eu
tento me controlar. Lógico que eu tenho os atendimentos agora na Faculdade,
que eu tomo para atender, senão eu não consigo prestar atenção. Atendo uma
criança hiperativa. Minha orientação aqui é escolar, e eu vejo... Coitado! Eu olho
240
para ele e falo: “Eu sou assim!” Mas eu o entendo. É até interessante eu ver uma
criança que é hiperativa assim, que não quer tomar o remédio, que fala: “Não, eu
sei que eu tenho energia para gastar. E se eu tomar o remédio, eu vou ficar sem
energia. Vão me tirar a energia.” A gente tem que explicar. E eu vejo que é difícil
mesmo para qualquer pessoa quando começa a tomar o remédio. Fala: “Ai... vou
ter que tomar isso para o resto da minha vida!” Mas está sendo interessante para
mim. Eu estou aprendendo a lidar bastante. Eu tive a sorte de que a maioria dos
meus professores conhece o problema. De tanto também eu ficar falando na
Faculdade. Eles me apóiam, eles me ajudam no que for preciso. Sabem das
minhas dificuldades, me incentivam a fazer as coisas. Qualquer problema que tem
na Faculdade, qualquer dúvida (até o professor tem dúvida sobre o TDAH), eles
vêm perguntar para mim. Livro, eles pedem emprestado, nomes de livros, essas
coisas. Até alunos, quando vão fazer algum trabalho, eles vêm conversar comigo,
perguntar, tirar as dúvidas comigo para apresentar o trabalho. Isso eu acho
interessante. Resumindo, é isso.
Pesquisadora – E você acha que, se você não estivesse presente na sala,
apresentando o transtorno, o curso não abordaria tanto quanto tem abordado
sobre o tema?
Entrevistada – Eu acho que não. É porque eu falo muito sobre isso na Faculdade.
Eu tento... Porque é uma coisa que não só o psicólogo, mas, um pedagogo, assim
como várias outras pessoas têm que saber. Os professores. Agora, como dizem,
é a doença do momento. O transtorno do momento é esse. Então têm professores
que estão abordando. Mas, eu cheguei a brigar com professor por causa disso,
por ele começar a explicar sobre isso e colocar como se fosse um monstro. E eu
virar para ele e falar: “Não! Espere lá! Não é bem assim.” [Ele:] “Como!” Aí ele
começa a gritar comigo e eu a falar: “Não!” [Ele:] “Mas por que você está quieta?”
[Eu:] “Porque eu tomo Ritalina.” E ele ficar quieto, sabe? Mas eu cheguei a brigar
com o professor por causa disso, porque o professor mesmo, universitário, tem
uns que não sabem realmente como que é o transtorno. Então eu acabo indo lá e
explicando: “Não, não é assim. É assim...” Tem uma professora que ganhou,
nesses dias, um livro sobre TDAH em adultos, que descobriram em adultos. Ela
241
deu para eu ler primeiro, para eu passar para ela, para ela ver. Ela falou assim: “E
aí, fala direitinho tudo mesmo?” Então, é legal isso. Eles me apóiam. Tanto que
eles falam que, quando eu me formar, vai ser uma vitória para mim, tanto para
eles também, que me apoiaram. Isso eu acho legal. [Sobre a superação:] Na
Faculdade, quando... Eu tento superar... Eu não tomo... Como eu não tomo para
assistir aula a medicação, eu tento me concentrar o máximo que eu consigo. Só
que, como o professor mesmo já falou para mim, o Arnaldo: “Você gasta energia
à toa, sendo que tem uma medicação que pode... Você não precisa tomar o dia
inteiro. Toma só para assistir aula.” Mas eu tenho a sorte que eu tenho meus
amigos que sabem do transtorno. Eles até se divertem comigo na sala de aula por
causa disso. Mas eles me ajudam muito. Porque eu prefiro... Eu pego uma
pessoa que entende daquela matéria, eu me sento com ela e ela me explica. Aí
eu tomo a medicação. Ela me explica: “Olha, é assim, assim.” Aí eu entendo mais
do que numa sala de aula. Porque, às vezes, mesmo com a medicação, eu me
distraio. Eu não posso... A hiperatividade diminui, mas eu acabo me distraindo
mais, na sala de aula. Qualquer coisa eu me distraio. Então eu prefiro não tomar.
Eu prefiro, porque, às vezes, até brigam comigo, falam: “Quando você toma, você
fica chata.” Porque eu fico quieta, fico prestando atenção na aula. Então está todo
mundo acostumado já. Mas, eu acho legal... Até os professores mesmo, como eu
já disse, eles me ajudam muito nessa parte de ter o transtorno. Eles... Nossa!
Para eles é... Nossa! Uma pessoa que tem, que foi diagnosticada na Faculdade,
está passando por tudo isso. E, às vezes, eu vejo assim, eu falo: se eu fosse
diagnosticada antes, eu acho que teria sido melhor a minha vida acadêmica. A
dificuldade teria sido menor. Mas eu tenho dificuldade. Isso é visível. Tanto que
era para eu estar me formando agora. Eu vou ficar mais um ano na Faculdade,
porque no primeiro semestre eu peguei DP [dependência], pelo fato de eu não
saber que eu tinha. Lógico que eu não prestava atenção em aula, vivia saindo da
sala. Isso me prejudicou muito no começo da Faculdade, do curso. Mas agora eu
já estou... fui começando a me adaptar. Fui me adaptando. Mas é complicado,
porque tem gente que te olha e fala: “Nossa! Essa menina é louca. Ela toma
remédio tarja preta. É meio louca. Ela não bate bem da cabeça.” Mas eu estou
acostumada já com isso, porque eu acho que a minha vida inteira eu fui “a louca”.
Todo mundo me tratou... Eu sempre me vi diferente. Tanto que eu tive depressão
242
por me achar diferente. Um dos motivos da minha depressão. Então isso é
decorrência também. TDAH dá decorrência... dá depressão mesmo. Porque eu
me sentia diferente, mas hoje em dia eu estou acostumada a ser diferente. Eu
acho legal. Como diz o Arnaldo [um professor], ser diferente faz bem. É legal. Se
fosse todo mundo normal, ia ser chato. Eu me adaptei muito bem com isso. Mas
tive muita dificuldade. Tanto em relação ao social... Todo mundo, o jeito que me
via, falava: “Nossa! Ela é louca.” Até eu explicar o que era o transtorno. Eu falo
assim: “Eu não tenho TDAH, eu sou TDAH. Eu sou assim. Eu nasci assim. Então
eu não tenho o que... não posso mudar o meu jeito. Então vocês é que tem que
se adaptar a mim. Não tem jeito.” Todo mundo se acostumou comigo. Os
professores, a Faculdade inteira me conhece. Como dizem, eu sou mais
conhecida do que nota de um real. Isso é bom, por um lado. Mas tive as
dificuldades, como eu já disse, mas eu me adaptei. Aprendi a me adaptar no
meio. Foi com a ajuda de todo mundo, dos meus amigos, que eu tive sorte... de
professores. Então eu aprendi a me adaptar.
Pesquisadora – Tânia, conte um pouquinho como foi a sua alfabetização: se você
precisava de alguém que a ajudasse na organização dos estudos, por quanto
tempo você precisou dessa ajuda, ou teve essa ajuda.
Entrevistada – Não, que eu me lembre, eu não precisei de ajuda de ninguém. Eu
só sei da... Eu não lembro como que foi a minha alfabetização. Não lembro de
nada, minha mãe é que me fala, que conta como foi. Diz que eu não tive trabalho
nenhum, mas que eu sempre fui aquela aluna mediana. Eu nunca fui uma aluna
excelente. Mas não lembro de nada que aconteceu lá na alfabetização. Não
lembro como foi.
Pesquisadora – E seus pais recebiam muitas reclamações? Você tem lembrança
de reclamações que seus pais recebiam sobre o seu comportamento?
Entrevistada – Não, eles falam que não. E eu também não lembro de nada. Mas
eles falam que não houve problema nenhum.
243
Pesquisadora – Você acha que teve alguma dificuldade séria acadêmica nos
níveis de ensino pelos quais você passou? Alguma dificuldade de estudo mesmo?
Entrevistada – Tive. Eu... Porque lembro que eu estudava era tudo na...
Decorava, a gente decorava tudo. Então ela dava pergunta, a gente decorava e
pronto. Então eu não lembro de nada que aconteceu... do que eu estudei. Nem...
até mesmo no Ensino Médio eu não lembro. Tem coisas assim besta mesmo,
coisa simples que todo mundo sabe que eu não lembro mais. Que eu não sei.
Pode ver, às vezes, até me chamam de burra. Pode me chamar, mas eu não
lembro. Eu tenho que tentar voltar, mas eu não lembro de nada. Não sei o que
aconteceu.
Pesquisadora – Você acha que enfrentar o problema do TDAH foi mais
complicado em algum dos níveis de ensino?
Entrevistada – Eu acho que sim. Foi. Num primeiro momento, foi. Eu não sabia o
que eu tinha. Foi no Ensino Médio... adolescente. Você vê que é diferente de todo
mundo. E isso foi mais difícil para mim. Depois, quando eu entrei na Faculdade
também. Mas eu fui me acostumando.
Pesquisadora – Você acha que se seus professores fossem preparados para lidar
com o TDAH teria mudado alguma coisa? Teria mudado o quê?
Entrevistada – Eu acho que eu teria sido diagnosticada antes. Se eles... Se
tivesse professores preparados, eu acho que eles teriam percebido o meu... E,
mesmo assim, que eu... A minha mãe e o meu pai não tinham reclamações do
meu comportamento, mas eu não parava quieta dentro da sala de aula. Eu acho
que também foi a escola em que eu estudei. Foi uma escola mais rígida. Então
ninguém podia conversar, ninguém podia fazer nada. Mas, mesmo assim, eu não
conseguia parar na carteira quieta. Então, eu acho que se os professores
estivessem preparados para ver, eles teriam visto que eu tinha alguma coisa. Eu
teria sido diagnosticada antes e não teria passado por tanto sofrimento que eu
passei até chegar na Faculdade. Porque eu fiquei, depois que eu me formei no
244
colégio, nove anos sem estudar, de medo de prestar o vestibular, de medo de:
“Eu sou burra, eu não entendi nada”, porque eu esqueci tudo que eu aprendi. E,
mesmo assim, eu fui, prestei e passei.
Pesquisadora – Você acha que só o professor compreender a existência do
TDAH, dar mais atenção para o aluno já é suficiente para que esse aluno tenha
sucesso nos estudos?
Entrevistada – Ah... já é uma boa parte. Eu acho que já é uma boa parte. Ele
sabendo, fazendo um encaminhamento certo. Fazendo um trabalho junto com um
psiquiatra, com psicólogo, eu acho que já é meio caminho andado. O professor
saber detectar e dar um pouco mais de atenção para esse aluno, já é meio
caminho andado.
Pesquisadora – Você teve algum tipo de dificuldade ligado à linguagem, seja oral
ou escrita? Se teve, que tipo de dificuldade era, ou é?
Entrevistada – O meu, um pouco é a escrita. Eu não consigo... Na minha cabeça
eu tenho um texto, sei tudo. Na hora em que eu vou passar no papel, eu esqueço
as palavras, eu troco a ordem. Mas aí com... Eu olho de novo, tem que ler dez
vezes a mesma coisa para conseguir fazer, senão não consigo.
Pesquisadora – Tem algum episódio escolar que tenha sido marcante e que você
gostaria de relatar? Algum que você se lembre?
Entrevistada – Que eu me lembro? Tem muito. Na Faculdade, foi que eu acho
que mais aconteceram as coisas. Cair dentro da sala de aula, porque não paro
quieta. Várias coisas. Sempre acontece. Por causa da hiperatividade mesmo, mas
é legal. Até divertido de falar.
Pesquisadora – O uso da internet, do computador facilita o seu estudo, ou é
indiferente? Por causa do transtorno, eu quero dizer.
245
Entrevistada – Ele facilita um pouco, é bem mais rápido de você achar, mas eu
não tenho muita paciência de ficar no computador, de ficar procurando coisa na
internet. Não tenho muita paciência, não.
Pesquisadora – Você disse que ficou vários anos longe dos estudos, por um
pouco de receio do sucesso, do insucesso, na verdade, do fracasso. Mas você
relatou que você está encontrando sucesso nos estudos. A que você atribui esse
sucesso?
Entrevistada – Eu acho que foi um pouco da minha força de vontade. Aquela
coisa... Eu sempre quis fazer Psicologia, e eu ia fazer um dia. Não sei quando,
mas eu ia fazer. Aí eu comecei a parar para pensar e eu falei: “Vou tentar. Eu sou
diferente e daí. Eu vou fazer Psicologia. Eu vou chegar lá, vai ter um monte de
gente diferente também.” Consegui passar no vestibular – lógico, passei na
terceira chamada. Como todo bom estudante [ironia], passei na terceira chamada,
mas passei. Isso é o que importa. Tive um pouco de dificuldade, lógico, logo que
eu entrei. Mas eu percebi que a cada ano que foi passando, a cada semestre do
curso, na verdade, eu percebi que fui, cada vez mais, me empenhando mais,
tendo mais força de vontade. E por isso que eu acho que quando eu me formar
mesmo vai ser um sucesso, vai ser uma vitória para mim. E eu acabei
encontrando pessoas que acabaram me ajudando, me incentivando. Tenho minha
família que me incentiva também, está sempre do meu lado. Então isso foi bom
para mim.
Pesquisadora – Tânia, nós estamos encerrando a nossa conversa. Tem algo mais
que você gostaria de deixar registrado nessa entrevista?
Entrevistada – Eu acho legal o trabalho que você está fazendo, de mestrado,
fazendo com que os professores enxerguem um pouco o transtorno. Eu conheço
muito professor também que acha que isso não é nada, é frescura. Então, eu
acho legal isso que você está fazendo, e fico grata por poder participar.
Pesquisadora – E eu agradeço muito a sua participação.
246
ANEXO 4
Cessão de direitos sobre depoimento oral
CESSÃO DE DIREITOS SOBRE DEPOIMENTO ORAL
PARA MARIA DAS GRAÇAS FAUSTINO REIS
Pelo presente documento, ______________________________(nome),
___________(nacionalidade), ______(estado civil), _______(profissão), RG no.
_____________, emitida por ___________, CPF no. _____________, residente e
domiciliado(a) em ____________________
cede e transfere neste ato, gratuitamente, em caráter universal e definitivo à Maria
das Graças Faustino Reis, pesquisadora-mestranda da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUC-Campinas) a totalidade dos seus direitos de autor
sobre o depoimento oral prestado no dia ______________, na cidade de
________________________, perante a referida pesquisadora.
Na forma preconizada pela legislação nacional e pelas convenções internacionais
de que o Brasil é signatário, o DEPOENTE, proprietário originário do depoimento
de que trata este termo, terá, indefinidamente, o direito ao exercício pleno de seus
direitos morais sobre o referido depoimento.
Fica, pois, Maria das Graças Faustino Reis plenamente autorizada a utilizar o
referido depoimento, no todo ou em parte, editado ou integral.
Sendo esta a forma legítima e eficaz que representa legalmente os nossos
interesses, assinam o presente documento em 2 (duas) vias de igual teor e para
um só efeito.
______________________________, ______________________
Local Data
________________________ __________________________
Maria das Graças Faustino Reis
Depoente Pesquisadora
Testemunhas:
Ass.: _____________________________________________
Nome legível:
CPF:
Ass.: _____________________________________________
Nome legível:
CPF:
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo