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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Tese de Doutorado :
Comunicação, Trabalho Imaterial e Política:
controle dos afetos e administração das semioses
Guilherme Nery Atem
2004
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Comunicação, Trabalho Imaterial e Política:
controle dos afetos e administração das semioses
Guilherme Nery Atem
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
(Tecnologias da Comunicação e Estéticas) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Comunicação e Cultura.
Orientador: Henrique Antoun
Doutor em Comunicação e Cultura
Rio de Janeiro, julho de 2004
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Comunicação, Trabalho Imaterial e Política :
controle dos afetos e administração das semioses”
por Guilherme Nery Atem
Tese submetida à banca de Doutorado na Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de Doutor em Comunicação e Cultura.
Aprovada por :
Prof. Orientador
(Henrique Antoun, UFRJ – Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ)
Prof.
(Marcio Tavares D’Amaral, UFRJ – Doutor em Letras pela UFRJ)
Prof.
(Paulo Vaz, UFRJ – Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ)
Prof.
(Erick Felinto, UERJ – Doutor em Letras pela UERJ)
Prof.
(James Arêas, UERJ – Doutor em Filosofia pela PUC-Rio)
Prof. – Suplente
(Felipe Pena, UFF – Doutor em Letras pela PUC-Rio)
Prof. – Suplente
(Vinícius Pereira, UERJ – Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ)
Rio de Janeiro, julho de 2004.
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Atem, Guilherme Nery.
Comunicação, Trabalho Imaterial e Política: controle dos afetos e administração das
semioses / Guilherme Nery Atem. – Rio de Janeiro: UFRJ / ECO, 2004.
ix, 251f.: 30 cm.
Orientador: Henrique Antoun.
Tese (doutorado) UFRJ / Escola de Comunicação / Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura, 2004.
Referências Bibliográficas: f. 262-277.
1. Trabalho material antigo e moderno. 2. Trabalho imaterial contemporâneo. 3.
Guerra semiótica. 4. Meios de Comunicação de Massa. 5. Novas Tecnologias de
Informação e Comunicação. 6. Modulação dos afetos. I. Antoun, Henrique. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Cultura. III. Título.
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Comunicação, Trabalho Imaterial e Política :
controle dos afetos e administração das semioses”
Por: Guilherme Nery Atem
Orientador: Henrique Antoun
Resumo da Tese submetida à banca de Doutorado na Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de Doutor em Comunicação e Cultura.
ATEM, Guilherme Nery. COMUNICAÇÃO, TRABALHO IMATERIAL E POLÍTICA :
CONTROLE DOS AFETOS E ADMINISTRAÇÃO DAS SEMIOSES. Rio de
Janeiro: 2004, 277 p. Tese de Doutorado Comunicação e Cultura, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
A partir de uma perspectiva genealógica como método de investigação, a
pesquisa pretende demonstrar que a Contemporaneidade comunicacional é profundamente
marcada pela produção de apatia política como forma de domesticação da coletividade,
habituando-nos com os valores (afetos e signos) capitalistas. Nossa hipótese é a de que nesta
época de Capitalismo Semiótico (imaterial e cognitivo), as potências revolucionárias da
subjetividade são “capturadas e incorporadas” pelo Mercado-Total revelando o que se
pode chamar de uma “economia da atenção”. Nosso objeto de análise, que denominamos
Semiocapitalismo de Controle, opera, via mídias de Massa e em Rede, pela modulação dos
afetos, através da produção e circulação aceleradas e excessivas dos signos do capital. A
compreensão das características ontológicas (Univocidade) e políticas (apatia) da
Contemporaneidade comunicacional deve partir da análise de uma “semiótica intensiva dos
afetos”, que constitui nossas potências e impotências de existir, assim como nosso devir.
Palavras-chave: Comunicação; Imaterial; Afeto; Signo; Apatia; Mídias.
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Communication, Immaterial Work and Politics :
the control of the affects and the administration of the semiosis
Por: Guilherme Nery Atem
Orientador: Henrique Antoun
Abstract da Tese submetida à banca de Doutorado na Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de Doutor em Comunicação e Cultura.
ATEM, Guilherme Nery. COMUNICAÇÃO, TRABALHO IMATERIAL E POLÍTICA :
CONTROLE DOS AFETOS E ADMINISTRAÇÃO DAS SEMIOSES. Rio de
Janeiro: 2004, 277 p. Tese de Doutorado Comunicação e Cultura, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
A genealogical perspective as the method of investigation is the starting point of
the present research, which intends to demonstrate that contemporary communications
produce political apathy, as a result of social control, imposing the values of capitalism
affects and signs. The hypothesis is that in our time of semiotic capitalism (immaterial and
cognitive), the revolutionary power of subjectivity is captured and incorporated by the
Whole Market, revealing what may be called “the economy of attention”. This
“Semiocapitalism” of Control is the objective of our analysis as it operates, via the Mass
Media and the Web, through the modulation of the affects and the excessive and fast
production and diffusion of signs of the capital. The understanding of the ontological
(Univocity) and political (apathy) characteristics of contemporary communications should
start from the analysis of the intensive semiotics of the affects, which constitutes our power
or our lack of power to exist and to become.
Key-words: Communication; Immaterial; Affects; Signs; Apathy; Media.
7
Para Clara, a minha filhinha,
a minha “razão suficiente”.
8
Agradecimentos
Antes de tudo, quero agradecer infinitamente ao meu querido amigo e
Orientador, o Professor Henrique Antoun. Se eu me mantenho com desejo de pensar, isso se
deve a ele o escultor de afetos”, o “arlequim que gargalha das tolices do mundo”.
quem teve o privilégio de sua convivência saberá o que isso significa.
Quero também agradecer imensamente àquela pessoa que apostou tudo em mim,
desde tempos: o Professor James Arêas o meu amigo e eterno “mestre”. James me
ensinou a força da philia, quando ela se embrenha no pensamento filosófico e dele se
empanturra em banquete.
Só tenho a agradecer ao Professor Márcio Tavares D’Amaral, o qual, sempre tão
amável e gentil, recolhe e cuida de nós, novatos e amadores do pensamento, que queríamos
aprender dele a “serenidade contundente do pensar filosófico”. Agradecimentos não menos
destacados ao Professor Paulo Vaz, que sempre me comunicou as alegrias da filosofia que
passa por entre as palavras e as coisas.
Aos mais novos amigos – e hoje membros desta banca –, os Professores Vinícius
Pereira, Erick Felinto e Felipe Pena. De Vinícius, tento aprender a potência de uma
inteligência que não cabe em si, e transborda. De Erick, tento aprender a agilidade
combinada com rigor filosófico (combinação tão rara hoje). De Felipe, procuro aprender a
concatenar a tradição clássica com a análise crítica dos novos meios.
À minha família: Angela, Digo (e Marcela), Sergio, Maria Luiza; Clara, Roni e
os Filgueiras. Agradecimento especial a Naira Cunha (“família por opção”), por tudo. Ao
amigo de infância (também “família por opção”) e parceiro musical: Rodrigo Saboya. A
Gilda Odete, pela sua amizade. A Elsa Buadas e Irley Franco, pela confiança em meu
trabalho. A Antônio Abranches e Theresa Atem (ambos, in memoriam).
Aos meus queridos amigos não “colegas”: Soraya Venegas, Jardiel Ferroz,
Patrícia D’Abreu, Simone Orlando, Simone Ravizzini, Rejane Moreira, Johnny Alvarez,
Sávio Laterce, Jorge Sápia, Márcio Serafim, Jupy Jr., José Ferrão, Patrícia Saldanha, Ana
Lúcia Enne, Ana Lúcia Moraes, Kléber Mendonça, Sérgio Cunha, Flávia Pitaluga, Carolina
Alvarez, Victa de Carvalho, Luciene Setta, Denise Trindade, Angélica Coutinho, Laranjo e
João Mário Wood Faulhaber. Ao novo amigo, Lécio Augusto Ramos (“uma mente
brilhante”). A Teresa Bonente, Ivana Barreto, Márcia Carnevale e Daniela Pereira, pela
força de sempre. A um dos responsáveis por minha ida para a Estácio, Hugo Santos. Para
Gilda Korff Dieguez e Ivo Lucchesi, pela sua postura política. Para Luiz Carlos Rotberg,
meu primeiro Orientador (na graduação). Com todos eles aprendi que a ambiência sócio-
afetiva conta tanto quanto o esforço árduo dos estudos.
Aos meus alunos e ex-alunos (principalmente Luana Cloper e Marcus César F.
Dias), e aos funcionários da Universidade Estácio de Sá, meus agradecimentos e minha
torcida por seu futuro. Aos colegas, professores (principalmente Raquel Paiva e Maria
Helena Junqueira) e funcionários da ECO-UFRJ, obrigado. Aos amigos feitos no NTA:
Leila Ribeiro e Marta Dantas, Jonas e Juliano. Ao CNPq, pela bolsa concedida no início do
Doutorado.
Àqueles de quem acabo de esquecer aqui. Aos meus futuros amigos, e aos que
jamais terei.
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Comunicação, Trabalho Imaterial e Política:
controle dos afetos e administração das semioses
Sumário
1- Introdução: As Três Ontologias, Constituição Onto-Política do Presente 010
1.1- O Problema 011
1.2- Pressupostos Teóricos 023
2- Da História do Trabalho ao Trabalho Imaterial: Alguns Planos de Imanência 040
2.1- O Pré-Capitalismo: Trabalho Material na Grécia Antiga 041
2.2- Surgimento e Expansão do Capitalismo: Trabalho Material Moderno 063
2.3- Do Capitalismo ao Semiocapitalismo: Trabalho Imaterial Contemporâneo 085
2.4- O Imaterial: Sentido-Acontecimento, Incorporais e Produção de Subjetividades 113
3- Afeto e Signo: a Comunicação e a Política da Apatia nas Dobras da Alma 138
3.1- Guerra Semiótica e Política da Comunicação: Jornalismo e Propaganda 139
3.2- Da Política da Comunicação à Comunicação da Política: os MCM 172
3.3- Ontologia da Rede e Pensamento Acentrado: as NTIC 200
3.4- As Mídias como Moduladoras de Afecções: “Onto-Política das Intensidades” 228
4- Conclusão: Sobre Como Pôr o Chão nos Pés, Invenção Onto-Política do Devir 253
5- Referências Bibliográficas 262
1- Introdução :
As Três Ontologias, Constituição Onto-Política do Presente
1- Introdução: As Três Ontologias, Constituição Onto-Política do Presente
1.1- O problema
Dorme o futuro das coisas que
doerão em mim, desprevenido.
(Carlos Drummond de Andrade)
Esta Tese tem como “problema” ou “questão” o seguinte diagnóstico, ao
mesmo tempo gritante e discreto: vivemos hoje uma realidade toda baseada na produção e
reprodução de afetos e de signos, os quais veiculam valores, muitas vezes implícitos, que
constituem radicalmente nosso modo de subjetivação. A Contemporaneidade, ou Pós-
Modernidade, se mostra o momento e lugar mais propício para o Controle semiótico dos
afetos, trazendo como um de seus efeitos de poder a apatia políticageneralizada
1
. As
mídias terão um papel primordial nisso, pois que potencializam infinitamente essa tentativa
de Controle, pela modulação afetiva que seus signos produzem.
Quando recebemos informações do mundo à nossa volta, em geral, e da mídia,
em particular, não dominamos ou conscientizamos as suas potenciais conseqüências sobre
nós. Se nossa subjetividade é construída ao longo da nossa vida – e se, como queria Michel
Foucault, poder e verdade se agenciam para a produção das subjetividades –, claro está que
surge a urgência de se pensar o processo dessas “dobraduras” do lado de dentro.
1
O exemplo recente como parte da demonstração da nossa Tese da apatia política é o
ocorrido na última eleição para o Parlamento Europeu (PE): A apatia dos eleitores europeus
ocorreu principalmente entre os dez países recém-chegados, onde foram observados os maiores
índices de abstenção (excetuando Malta e Chipre). No ano em que passaram a integrar a UE,
contrariando o movimento histórico dos países que ingressam no bloco, os novos parceiros não
demonstraram interesse pelas urnas, com uma taxa de abstenção de 70%. A menor participação
foi na Eslováquia, onde 16,6% dos cidadãos votaram (Fonte: Vivien Oswald, na matéria
Desunião Européia. End.: http://oglobo.globo.com/jornal/Mundo/143046582.asp. Publicado em
15/06/2004).
Somos intensamente marcados pelas afecções, pelos afetos trazidos por signos
midiáticos. Se as relações de poder pretendessem se limitar ao “Controle da Razão”, elas
fatalmente fracassariam. Se fosse assim, “tomar consciência da dominação” já bastaria.
Não é tão simples. Se a Razão nos leva a crer em certas idéias, é o hábito, o costume que
torna essas idéias mais críveis e mais sedimentadas (Blaise Pascal dizia isso, em
Pensamentos, p. 117). O poder precisa lançar mão de um “Controle das afecções” nos
afetando com afetos alegres e afetos tristes, numa seqüência cada vez mais acelerada, para
que não tenhamos tempo de experimentar profundamente esses afetos. Não conseguimos
parar para viver e pensar cada afecção alegre ou triste. E enquanto somos atropelados por
signos velozes, acabamos nos contentando com os clichês pois estes fornecem idéias
prontas para que consigamos viver na “velocidade das mídias” (ou seja, na “velocidade da
luz”).
Spinoza dizia que o indivíduo se torna um “autômato espiritual”, por conta
dessa cadeia veloz de afetos, ora alegres ora tristes. As pequenas tristezas mordem a alma
(“re-morsus”), depois as pequenas alegrias assopram na ferida. Quando embarcarmos
nessa cadeia veloz (e sempre “pegamos o bonde andando”), vemo-nos dispensados da
exigência de pensar. Uma idéia que vem da mídia puxa outra, que puxa outra, que puxa
outra... e, quando menos se espera, já se está “capturado e incorporado” pela lógica
mercadológica do que chamamos nesta Tese de “Semiocapitalismo” (ou Capitalismo
semiótico). Tiramos hoje nossas opiniões, idéias, valores, gostos e afetos de fontes sempre
midiáticas.
As afecções midiáticas não nos levam, em geral, à angústia que nos faria
pensar. Elas produzem, antes, uma sensação de “estarmos informados” e isso pode nos
bastar. Não há tempo para hesitações – mas só para as excitações”. Não nos co-movemos,
a não ser com o mundo cão” que é explorado nas telinhas. Nossa potência afetiva se
ritmada pela modulação(ou regulação biopolítica) semiótica exercida pelo Capitalismo
midiatizado (imaterial e cognitivo). O tempo da nossa alma nos é exógeno. Gilles Deleuze
dizia que toda instituição nos impõe, mesmo às nossas estruturas involuntárias e
instintivas, um ritmo dominante. Quais as idéias, quais os afetos, quais as “histórias” que
nos afetam? Se o coração é “meio corpo e meio alma”, perguntamos: de que um coração é
capaz?
Quando os afetos de uns são capturados pelos afetos de outros, o esforço
necessário, requerido (aos primeiros) para se conseguir criar uma resistência política é
majorado. O Semiocapitalismo (imaterial e cognitivo) domina “sem atritos” porque
domina sorrindo. A simpatia é uma arma que desarma, e é usada tanto por vendedores de
loja quanto pela própria mídia. Isso é “anestesia” ou “analgesia”, quando pensado
politicamente a euforia midiática é apenas um veículo para a produção de apatia. A
“bajulação” do consumidor é a arma de “captura e incorporação” usada pelo
Semiocapitalismo, e não a sua “fraqueza”.
O “autômato espiritual” é aquele indivíduo que não produz o “intervalo” entre
a Percepção e a Ação. No entanto, é no intervalo que se pode dar a Afecção que
originaria o pensamento e, portanto, é ali que se dariam as condições de possibilidade para
o devir revolucionário. A cada instante, entre a Percepção e a Ação é possível derivarmos,
desviarmos de nossa rota previsível. Contudo, o que se mostra possível não se faz
necessário: acabamos por repetir infinitamente o que se espera de nós. É como se o
Semiocapitalismo desestruturasse essas condições de possibilidade de devir. “Por que eu
lutaria contra uma sociedade que me oferece tudo aquilo que eu quero para ser feliz?”
perguntam, em coro, os individualistas-hedonistas-consumistas.
Os produtos e serviços (bem como os valores que eles carregam) oferecidos
pelo Semiocapitalismo seduzem porque prometem a suavização” da experiência de
existir. Novas potências e impotências de existir se delineiam. É por esse motivo que
insistimos: um dos maiores perigos da Contemporaneidade comunicacional é o da
produção de subjetividades apáticas
2
. O “irracional” que está na base mesma do
conhecimento não é banido, e sim capturado, incorporado ou reapropriado pelo
Semiocapitalismo. Um novo tipo de “domesticação”, de “docilização”. Nosso destino (se
acreditarmos piamente nos signos midiáticos) é a passividade e a impotência e, no
limite, sabemo-nos condenados à morte, à “morte-em-vida”.
O poder nos rouba as resistências políticas e desejantes, através do seguinte
procedimento: ele, o poder, separa a nossa potência daquilo que ela pode... Se o
Capitalismo tomava o corpo do Homem, logo que este nasce, numa espécie de direito à
primeira noite”, desvirginando-nos violentamente, o Capitalismo semiótico (imaterial e
cognitivo) toma a nossa alma, mas de modo afetuoso e simpático. O problema é que
sabemos que “amor de dinheiro, quando bate, fica”.
Pois é, a idéia é essa: a vertiginosa monetarização da Vida e dos afetos. Uma
das conseqüências disso, como notou também Hannah Arendt, é uma espécie de
mineralização do animal afetivo”. Hoje nós somos apáticos nosso ideal é o da
imperturbabilidade. Em outra oportunidade, dissemos poeticamente: “nessa nossa
Contemporaneidade invertebrada, vivemos a existência capenga de um sertão cuja essência
é devir-mar; queremos ser a ausência molenga de um balão cuja vontade é não voar”. As
2
Pensemos no provérbio árabe que diz: Todo homem é mais parecido com sua época do que com
seu pai” (DUAILIBI, Roberto. Phrase book II
).
mídias divertidamente estão “clonando” o morto-vivo. Nós inadvertidamente estamos nos
habituando a isso
3
.
Os signos do “medo do extermínio” circulam mundialmente, fazendo-nos
comprar e consumir produtos e serviços das indústrias e empresas de segurança. Vivemos
uma cultura do medo, fabricada pelas mídias mais do que nas ruas (ver o livro A cultura do
medo, de Barry Glassner)
4
. O medo, como se sabe, essa prisão sem grades”, aquece o
setor de seguros. Acreditamos sem pestanejar em tudo o que as mídias nos mostram. A
imagem carrega a Verdade, na Pós-Modernidade fluida e inconsistente.
Desde a chamada “crise da Razão”, ainda na Modernidade, podemos falar,
“com segurança”, da profunda insegurança que o jogo travado pelo real e a faculdade de
conhecer revela. Quando se crê na perfeita e total adequação entre o real e a mente, a
Razão passa a dar conta de tudo o que “entre o céu e a Terra”. Porém, quando se nota
que entre o “objeto cognoscível” e o “sujeito cognoscente” o que é fuga de ambos os
lados, então a receita racionalista desanda de vez. Por seu lado, o Empirismo ganha
novas antíteses, contrárias a si, mas também novas potências.
Blaise Pascal (1623-1662) dizia, no Século XVII, que a Razão tem razões
que a própria Razão desconhece e que eram as “razões do coração”. A partir da “deixa”
de Pascal, pode-se pensar que à Razão nunca foi dado o “direito de delirar”.
3
Como afirmaria Todd Gitlin, estudioso das mídias, os adolescentes de hoje estão mais unidos
pelos bens que consomem do que por uma cultura comum (DUAILIBI, Roberto. Phrase book II).
4
Segundo Glassner, num dado período de tempo pesquisado, enquanto o número de crimes nas
ruas diminuia em 20%, o número de notícias sobre crimes aumentava em 600%.
Mas e se formos “homo delirens”? E se o delírio for parte constitutiva da alma?
na Modernidade principalmente no Século XIX –, como se disse, a Razão
(Logocentrismo) começa a entrar em crise. A centralidade da Razão, a valorização do
conhecimento, o destaque nas teorias do método, a fundamentação da Ciência, a exigência
de Lógica e a abordagem crítica seriam considerados por muitos pensadores do Século
XIX como sendo funções limitadoras e aprisionantes do pensamento, não dando conta da
totalidade da experiência humana. A crise da Razão, a partir disso, começava com a idéia
de que sempre haverá algo (o real) que escapa à Razão.
A crise do Racionalismo crítico traria conseqüências marcantes para a época
Pós-Moderna, tais como a tentativa de superação dos questionamentos sobre a
fundamentação do conhecimento construindo em seu lugar os discursos do
ultrapassamento dos limites do conhecimento, através da intuição filosófica (como em
Bergson) e de uma (criticada) estetização do pensamento
5
. Quando se fala de estetização
do pensamento, está-se falando das funções do imaginário e da criação artística , como se
isso “atrapalhasse o bom curso da Razão iluminada”. É como se a Razão esclarecedora não
olhasse para o próprio “umbigo” (omphalós)...
Ao longo do Século XX, o “irracional” ganha potência nos estudos das ditas
“ciências duras” como, por exemplo, demonstra Gilles Gaston Granger (em O
irracional). O “Arrazoamento” é criticado a fundo por Heidegger. A “Razão Instrumental”
é denunciada pela Escola de Frankfurt.
5
É preciso esclarecer que nada temos contra a denunciada estetização do pensamento, pois
pensamos que o pensamento se compõe tanto daquilo que “sabemos” quanto daquilo que “não
sabemos”. E como é bom não ter que se explicar!
Parece que as neurociências de nossos dias confirmam a tese de que os
sentimentos e os afetos são fundamentais e que inclusive precedem o pensamento
racional, influenciando-o largamente. Para se localizar o problema e o espaço para a
tomada de decisão questão de racionalização –, a instância emocional e afetiva se mostra
vital.
Entretanto, como de costume, todo Acontecimento que se no mundo das
idéias deixa aberta uma “avenida” para a bobagem e a besteira: na esteira da crise da
Razão, eis que se grudam movimentos os mais estranhos, como a “misologia” e o
“esoterismo” (ambos incentivados pelas mídias). A “misologia” – aversão à Razão –
possui várias faces, da mais perigosa à mais idiota: está na crítica a todo tipo de
argumentação racional; na aversão às demonstrações lógicas; nas apologias à inconstância
irracional do comportamento (como forma de pseudo-revolução pessoal); até no asco
espalhado por mesas de bar, quando os assuntos ditos sérios” tomam vez; na decadência
da prática da leitura (substituída pela teleparticipação audiovisual); no discurso infantilóide
do “nada-a-ver”; etc.
O esoterismo” crença em um mundo fora e acima deste parece constituir-
se, desde o fim do Século XX, como a única saída para essa existência insegura e medrosa.
Para toda e qualquer angústia seja noturna ou diurna –, existirá um produto ou serviço
“analgésico”, seja uma igreja, seja um objeto técnico. Basta ligar para “o telefone que está
aparecendo em seu vídeo” e fazer o pedido. O “esoterismo” parece revelar a “perda de
sentido do ‘eu’ (com a face voltada para o individualismo da “salvação de si”), típica da
Pós-Modernidade acelerada
6
. O “culto neurótico ao corpo” também parece fazer parte
6
Theodor Adorno, em Minima moralia, diz que, em algumas pessoas, é um descaramento
dizerem “eu”.
dessa lógica da perda de sentido do ‘eu’ (mas com a face voltada para o narcisismo da
“auto-referenciação infinita”).
A crise da Razão, na realidade, acompanhou as diversas outras crises: de Deus;
da História; das Ideologias; do Homem; das Grandes Narrativas; da Verdade; do
Logocentrismo; da Modernidade; da Referência; dos Fundamentos; da Representação; etc.
É todo um modelo, Moderno ou Clássico, que começou a ruir algum tempo. E uma das
conseqüências tem sido as anomias Ética e Estética, na Contemporaneidade. Contudo, não
se trata, aqui, de privilegiar os efeitos nocivos dessas crises, mas apenas apontar para o fato
de que elas produziram, ainda mais com a intensificação midiática das últimas décadas,
novas potências e também novas impotências de existir; novas resistências e novas formas
de dominação.
A potência revolucionária das pessoas passaria a ser controlada, à distância,
tanto através de leis (Estado), como através das forças do Capitalismo (Mercado) e dos
valores comunicados coletivamente (Mídia). Respectivamente, a juridicização se fez
acompanhar pelo endividamento e pela apatia despotenciando a multidão (com
estratégias de massificação e/ou de individualização) e, assim, limitando a Democracia
real. A questão é que a História não avança por contratos”, nem pela ausência de dor”.
A potência (potentia) necessita, sempre de modo urgente, insurgir-se contra o poder
(potestas). Se uma sociedade se define por suas práticas cotidianas e por seu modo de
relacionar-se com seu futuro, como diz Antonio Negri, será então preciso mapear a forma
contemporânea da subjetivação política, forjada pelas novas relações de trabalho (imaterial
e semiótico-comunicacional).
A potência constituinte de realidade libera o desejo da multitudo, ao invés de
amarrá-lo com leis, com dinheiro e com sonhos pré-fabricados. É nesse sentido que se deve
recorrer à Filosofia da Práxis marxiana (ver a 11ª Tese sobre Feuerbach, em A ideologia
alemã). Se dependermos da tradição que teorizou a Política, a racionalidade não passará de
um instrumento de repressão, tendo o medo como origem de tudo (ver o conjunto da obra
política de Thomas Hobbes). O problema se agrava, segundo esta nossa Tese, porque não
basta nos desembaraçarmos da juridicização da vida: a formação totalitária do capital e a
construção midiática de valores buscam incessantemente nos domesticar, nos alienar e nos
tornar apáticos. Para isso, os novos poderes tiveram que se tornar “tão imanentes” quanto
as novas resistências. Perguntamos: procedimento mais “imanente” do que modular os
afetos através da imaterialidade de signos e de valores?
Antonio Negri dirá (em O poder constituinte, p. 37): No momento em que a
potência se institucionaliza, ela deixa de ser potência, declara jamais tê-lo sido”. É
quando o dever-ser “captura e incorpora” o ser. O problema pode ser notado assim: a
Política não é o “reino do dever-ser”, mas uma prática e uma teoria dos modos imanentes
de ser”. A potência revolucionária que combate o “dever-ser” foi o tema fundamental
de pelo menos quatro grandes pensadores: Nicolau Maquiavel, Baruch Spinoza, Karl Marx
e Michel Foucault. Os quatro pensam a Democracia como sendo a expressão política da
potentia.
Em Maquiavel, a potência se expressa como desejo e luta, e disso se nutre; a
virtú do povo armado supera a fortuna, por uma marcha dialética (a instabilidade e a força
estão na base mesma da Democracia). Em Spinoza, a potência também se pelo desejo e
a luta; a essência do Ser é neutra e os entes são seus modos imanentes de expressão da
liberdade, liberdade como sendo a “aptidão para o múltiplo simultâneo” (a Univocidade do
Ser)
7
. Em Marx, a revolução está na base da constituição do “ser social”; o desejo
libertário do “trabalho vivo” rejeita o capital (e seu “trabalho morto”) e organiza-se
coletivamente (da ditadura do proletariado ao comunismo). Em Foucault, a correlação
entre Verdade, Poder e Subjetividade revela uma prática imanente de constituição
ontológica do real; a subjetividade, que deriva relativamente do Saber-Poder, é de saída
“capturada e incorporada”, mas manteria uma potência de liberação (produção de si). É o
próprio Foucault quem nos oferece a bela definição que tomamos para nossa Tese (em
Arqueologia do saber, p. 11):
O projeto de uma história global é o que procura
reconstituir a forma de conjunto de uma civilização, o princípio
material ou espiritual de uma sociedade, a significação comum a
todos os fenômenos de um período, a lei que explica sua coesão – o
que se chama metaforicamente o ‘rosto’ de uma época”.
Nesta Tese, estamos definindo como “o rosto de nossa época” as principais
“linhas de expressão” do que denominamos “Semiocapitalismo”: imaterialidade do
trabalho; produtividade cognitiva; “predação das externalidades ou potências”;
totalitarismo de Mercado; Controle midiático dos afetos pela administração das semioses; e
produção de subjetividades politicamente apáticas. Notamos que as resistências acabam,
muitas vezes, se reestratificando ou sendo sobrecodificadas pelo poder. Fato é que os
poderes constituídos predam as potências constituintes ou seja: quando a estrutura
7
Diz Negri (A anomalia selvagem, p. 25): O pensamento constitutivo possui a radicalidade da
negação, mas ele a sacode para enraizá-la no ser real. Em Spinoza, a potência constitutiva da
transgressão qualifica a liberdade”.
tenta determinar ou controlar o devir
8
. A cada “mordida” que leva, o Semiocapitalismo
mesmo se recompõe.
Contra isso (e anterior a isso), como nos ensina Antonio Negri, a potência
constituinte da multidão refere-se a um “procedimento absoluto” de constituição do real
(das produções do mundo e de si). O real é constituído por relações imanentes entre os
indivíduos e os grupos. Será provavelmente a partir daí que se poderá pensar e praticar
uma “revolução permanente” (para atualizarmos a expressão de Trotsky). Se isso depende
de nossa História, remete-se não menos à “abertura ontológica” do nosso devir ou seja:
quando o devir tenta sobredeterminar a ou escapar da estrutura”. A cada “mordida”
que dá, o devir se atualiza para, em seguida, se virtualizar mais potente.
É necessário que se faça um estudo das condições de possibilidade das
resistências hoje daí a perspectiva intensiva”, ou ontológica e política (e não apenas
“extensiva”, ou descritiva) desta Tese. Então, é preciso destrinchar esse novelo de
Ariadne
9
.
Somos constituídos inteiramente por forças valores, afetos, signos que nos
esculpem a subjetividade aberta e vulnerável. Não acreditamos que a consciência, a Razão
organizada, o explícito, a argumentação lógica e a demonstração racional tenham grande
força na atual produção, reprodução e circulação de “bens simbólicos”, e da rede de poder
que lhes é referente. A própria história da cultura ocidental nos mostra isso: que as
potências constituintes da subjetividade (da multitudo) estão sempre em vias de serem
8
Antonio Negri (A anomalia selvagem, p. 279): Na desutopia de Spinoza a centralidade do
político é afirmação da absoluta positividade do ser”.
9
Ou, como diz ainda Foucault (Arqueologia do saber, p. 31): Não se busca, sob o que está
manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia
ser outro, como exclui qualquer outro (...)”.
“capturadas e incorporadas” pelos poderes constituídos (Estado, Mercado e Mídia). Quais
são os novos espaços de liberdade e de luta? Quais são os novos modos de subjetivação?
A Tese tem, portanto, como Objeto de investigação o “Semiocapitalismo de
Controle”, ou seja, a estreita relação entre o “inconsciente político” (apático) e o papel da
mídia na sua constituição imanente. Uma ética das Afecções, capturadas ou libertárias, e
que por sua vez se super-potencializa através das diversas mídias, sejam as de Massa ou
tradicionais (MCM: rádio, revistas, jornal, televisão, cinema), sejam as em Rede ou digitais
(NTIC: Internet). A partir daí, defenderemos que não é mais possível se pensar a
Comunicação Social sem recorrer ao tema da “guerra dos afetos através dos signos”. Nossa
Tese pretende demonstrar que a apatia é um efeito de poder causado tanto pelo excesso e a
aceleração vertiginosa de signos midiáticos, em sua forma de expressão, quanto pelas
mensagens capitalistas implícitas e explícitas, em sua forma de conteúdo.
1.2- Pressupostos Teóricos
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda.
(Cecília Meireles)
Para defendermos a nossa Tese da produção de apatia política através da
midiática modulação imaterial dos afetos e do Controle das semioses”, buscaremos
fundamentação teórica no conceito de “Univocidade do Ser”, o qual se abre para uma
análise ética (intensiva) das potências de ser e pensar. Para darmos conta do conceito de
Univocidade do Ser, recorreremos a uma análise comparativa de fundo entre as “três
ontologias” (como as definimos há pouco tempo, em nossos estudos, parodiando o título de
um livro de Félix Guattari – As três ecologias):
1- Analogia do Ser: a partir de Tomás de Aquino;
2- Equivocidade do Ser: a partir de Heidegger; e
3- Univocidade do Ser: em Duns Scot, Spinoza e Deleuze.
Para a teoria da Analogia, Ser e entes são essencial e relativamente diferentes
entre si, mas possuem medida comum, comunicando-se entre si:
a) A está para B, assim como C está para D exemplificando a analogia de
proporcionalidade, encontrada na relação entre os termos; e
b) A está para B, que está para C, que está para Dexemplificando a analogia de
proporção, encontrada nos termos da relação.
Ao que parece, esta era a melhor maneira de aproximar ou comparar duas
essências diversas, a saber: Deus e o Homem. Se as essências são diferentes entre si, o são
“relativamente”, pois se prestam à “relação”, via pensamento. Analogia: “as essências se
dizem, umas das outras, em vários sentidos”. Pela Analogia do Ser, há comunicação
possível entre essas essências: “a bondade infinita está para Deus, assim como a bondade
finita está para o homem” analogia de proporcionalidade; ou “José (bisavô) está para
Sérgio (avô), que está para Guilherme (pai), que está para Clara (filha)” analogia de
proporção.
Em Heidegger, por sua vez, Ser e entes o essencial e absolutamente
diferentes entre si; não possuem medida comum; não se comunicam entre si: ao vivermos
entre os entes (imanência), esquecêmo-nos do Ser; não percebemos a “diferença
ontológica” (que se abre na e a partir da clareira”) e, portanto, ainda não começamos a
pensar. É quase como se fosse: “o Ser não se diz, porque se se dissesse seria um ente
(linguageiro)”. Equivocidade: “a essência se diz em dois sentidos absolutamente
diferentes” (o sentido do Ser, por um lado, e o dos entes, por outro).
No texto A questão da técnica, Heidegger nos fala que quanto mais
mergulhamos na imanência irrefletida, mais nos esquecemos do Ser da técnica e, pior,
acabamos por esquecer esse esquecimento. Ser (da técnica, por exemplo) e entes (objetos
técnicos, por exemplo) jamais deveriam ser confundidos ou indiferenciados.
Na Idade Média, por seu lado, Duns Scot fundamentaria sua concepção do Ser
ao modo da Univocidade. Diferentemente das ontologias analogista e equivocista, Duns
Scot postularia que o Ser é unívoco (metafisicamente), mesmo sendo análogo
(fisicamente). Em Duns Scot, Spinoza e Deleuze, o Ser e os entes possuem a mesma
essência ou natureza: “a essência se diz em um e mesmo sentido de tudo aquilo que
dela se diz”. A essência é dita neutra e, portanto, o que diferencia Ser e entes (no
macro), e ainda os entes entre si (no micro), é a variação nos graus de potência. Antonio
Negri explicaria (A anomalia selvagem, p. 38): “A concepção do ser em Spinoza, ao
contrário, é uma concepção sobredeterminada, longe de qualquer analogia ou metáfora
possíveis: é a concepção de um ser potente, que não conhece hierarquia, que conhece a
sua própria força constitutiva”.
O Ser e todos os entes possuem a mesma essência, apenas diferenciando-se
pela intensidade na atualização dessas potências (aqui, falamos de potência em ato”,
como Negri fala das “possibilidades subjetivas de revolução em ato”
10
) – isso significa que
os corpos e as almas são forças (com suas intensidades relativas). Tudo se passa e se
passará na modulação entre a composição de forças (alegria, que aumenta nossa potência
de agir) e a decomposição de forças (tristeza, que diminui nossa potência de agir).
É a constituição do Ser a partir dos seus modos imanentes (pensados
transcendentalmente). Não se trata, aqui, de uma “mediação entre substâncias”, e sim de
captar os diferentes (e simultâneos) movimentos da “substância única” – o mundo é
“absoluto” porque é o que é; porque é o que há.
10
Antonio Negri nos explica o conceito de potência em ato(A anomalia selvagem, p. 248): A
´potestas´ é dada como capacidade conceptibilidade de produzir coisas; a ´potentia´, como
força que as produz atualmente”.
É uma concepção de mundo pouco dada às hierarquias. Antonio Negri explica
isto assim (A anomalia selvagem, p. 101): A essência absoluta, predicada univocamente,
refere-se tanto à essência divina existência de Deus quanto a todas as coisas que
descendem de sua essência. Estamos num ponto fundamental, num ponto em que a idéia de
potência passa ao primeiro plano com enorme força”. Univocidade do Ser é isso: uma
ordem da realidade constituida por graus sucessivos de perfeição, tecidos pela positividade
do Ser.
Deus é o Ser supremo, o grau máximo de “potência em ato”, que atualizaria
com maior intensidade a potência essencial. O homem atualizaria com menor intensidade
a (mesma) potência essencial. Os vários homens, quando comparados entre si, apresentam
diversos graus de potência, ou intensidade mas suas potências têm a mesma essência. A
substância (ou essência) se volta para os modos”, aos quais serve de horizonte e esse
horizonte é irredutivelmente coletivo, político (a multitudo). Como dirá Negri, a Filosofia,
desequilibrada, inclina-se para o devir.
A substância sem seus “modos” não passa de abstração – assim como os
modossem substância. Daí, basicamente, cada ente se expressa de um modo”, a partir
de suas potências de “ser afetado” (passiva) e de “afetar” (ativa) o mundo. Então, o fio do
raciocínio é: 1- estabelecimento da concepção univocista do Ser; 2- as diferenças são de
graus de potência ou intensidade; 3- a constituição de uma teoria das afecções e dos
modosdo Ser. Todos os modossão modificações”, afecçõesdo Ser. Antonio Negri
mesmo nota que a verdadeira política de Spinoza é a sua ontologia ou teoria das afecções,
quando diz (A anomalia selvagem, p. 233): A redução do horizonte ontológico à
imanência é de tal maneira radical que não representa nem mesmo um resultado da
busca, mas sim uma condição desta: condição prévia para a definição do projeto de
liberação”.
A partir dessa diferenciação inicial, então, poderemos analisar a Univocidade
ontológica na Contemporaneidade, naquilo que ela tem de mais característico: a circulação
abundante de signos, portadores que são de Interpretantes e de afecções portanto, de
Sentidos-Acontecimentos molares e moleculares –, os quais dependem do empírico, do
irracional e do estético, para modularem nossas subjetividades. E afirmamos que o modo
contemporâneo da subjetivação é a produção de apatia política, pela interiorização dos
afetos de obediência.
É pelas afecções que nos constituímos como “modos” de Ser. Somos
necessariamente afetados pelo mundo – para o Bem ou para o Mal, pouco importa. Spinoza
nos ensina que ora somos afetados com afetos alegres (o que aumenta a nossa potência de
agir), ora somos afetados por afetos tristes (o que diminui a nossa potência de agir)
11
. Certo
é que sempre estamos sendo afetados, modificados, modulados e disso não podemos
fugir. A todo momento, entramos em uma cadeia ou série de afecções”, sejam molares ou
moleculares, cadeia esta que nos arrasta para devires sempre adiados.
È preciso ressaltar, ainda, a diferença crucial entre idéias e afetos. As idéias
estão essencialmente atreladas à Razão, ao Logocentrismo. A idéia ilumina, esclarece,
explica, estabelece, estabiliza, territorializa verdadeira função apolínea. Uma idéia tem
pelo menos duas realidades uma objetiva (a idéia é, em si, “algo”) e uma subjetiva (a
idéia se refere a “outro algo”). A idéia representa. Como afirmou o Professor Luiz Costa
11
De certa forma, tentaremos argumentar nesta Tese que mesmo as mensagens “alegres e
eufóricas” das mídias podem ser pensadas como “maus encontros” (que nos despotenciam
politicamente).
Lima, em seu livro O controle do imaginário, o império da Razão despotenciou a liberdade
da imaginação, tornando-a constrangida.
Em contrapartida, os afetos dispensam a Razão denotativa, pois eles se
“apresentam” (e não representam nada). Afeto, ou melhor, afecção é mistura seja de
corpos no espaço vazio, seja de almas no tempo presente. Marcel Proust sabe algo a
respeito disso como na sua famosa passagem das madeleines. Todos nós somos
constituídos por uma infinidade de afetos, e de velocidades, experienciados de forma
consciente ou não, os quais se dobram, como signos (imaterialmente, portanto), rumo à
nossa interioridade. Nesse sentido, o mundo interior seria algo como um “mundo exterior
dobrado”; o mundo exterior sendo, pelo menos para alguns teóricos, um “mundo interior
projetado”.
Eis que (s)urge, então, a questão da produção, reprodução e circulação dos
signos, via Comunicação Social. Será preciso definir em que “registro de signos” nos
apoiaremos. As diferenças entre os estudiosos da Teoria dos Signos chegam a distâncias e
divergências intransponíveis, intradutíveis entre si. Nós nos conduziremos pela via da
Semiótica de Charles Sanders Peirce, mas em grande parte utilizando as chaves de leitura
propostas pelo Empirismo transcendental de Gilles Deleuze e pelo Concretismo literário de
Décio Pignatari.
Para quem já perambulou pelo labirinto da Semiótica, fica claro que numa hora
chega o momento de se reconhecer a filiação desta à Teoria Empirista do Conhecimento. É
por ela que começamos, para, em seguida, decalcá-la sobre os processos e funções
semióticos. A organização do conhecimento elaborada por David Hume (1711-1776) se
presta, praticamente inalterada, à Semiótica de Peirce. Agora, então, cabe-nos determinar
minimamente essa relação.
Se havia pensamento empirista antes de David Hume – por exemplo, com
Francis Bacon (1561-1626) e John Locke (1632-1704) –, era um tipo de Empirismo sem
dúvida bem mais simples que o de Hume. Este filósofo foi quem enriqueceu enormemente
a filosofia do Empirismo, ao colocar a crença e a parcialidade das paixões na base mesma
do conhecimento.
Seu ponto de partida é a classificação de tudo aquilo que se a conhecer,
como sendo de dois tipos: impressões e idéias. As impressões, que são os dados
fornecidos pelos sentidos, podem ser internas (como a “percepção” ou consciência de um
estado de tristeza), ou externas (como a visão de uma paisagem ou a audição de um som
qualquer). As idéias, por seu turno, são representações da memória e da imaginação, e
resultam das impressões como suas cópias modificadas.
Nenhuma idéia, por mais viva que seja, é tão viva quanto a impressão mais
pobre. Quando vivemos presentemente uma experiência qualquer, esta se imprime
fortemente em nossa mente. Se, tempos depois, tentamos lembrar, “reviver” aquela
sensação passada, pelo recurso à idéia, a representação na memória se mostra infinitamente
mais fraca, menos viva ou vívida do que se mostrou no momento da experiência original.
Por exemplo, a melhor memória de um beijo, no momento em que este é lembrado, jamais
se compara ao próprio beijo, no momento em que é “cometido” (a “eterna defasagem dos
onanistas”). Portanto, o que fica desde claro é a superioridade (pela antecedência
original), segundo Hume, das impressões sobre as idéias.
Entre a presença das impressões e a defasagem das idéias, haveria algumas
formas de a mente organizar os conhecimentos que estão se dobrando do mundo externo
para o mundo interno. Hume fala de três formas básicas de organização deste
conhecimento: a causalidade, a semelhança e a contigüidade
12
. Estas três formas são
procedimentos de fazer com que o passado se instale no futuro (como na frase: “O sol
nascerá amanhã”) – donde sai toda a tese humeana sobre a probabilidade como crença.
Para os empiristas, o conhecimento se origina no exterior, no mundo em torno
do indivíduo. Pela Percepção, o indivíduo contrai signos externos a si, fazendo com que
estes se dobrem para dentro de si (flexão). Pela Afecção (ver Spinoza), o indivíduo sente
“na carne de suas entranhas” o signo apreendido, dando a este uma significação ou sentido,
deixando-se então afetar pelo mundo. Pela Ação, o indivíduo devolve a “informação”
recebida-percebida, sob a forma ativa, fazendo-a desdobrar-se (re-flexão) no exterior. O
corpo tem aqui importância fundamental na construção do conhecimento bem diferente
do “corpo envergonhado de si”, típico do racionalista-moralista (Nietzsche é insuperável
na sua crítica ao racionalista-moralista).
Para David Hume, diga-se, as relações são exteriores aos seus termos (o que
permite a produção de diferenças): atomismo e associacionismo. Hume faz uma crítica da
“conexão necessária” entre causa e efeito. Esta conexão não seria, para ele, natural ou
necessária, e sim cultural, aprendida ou arbitrária. Toda cultura realizaria suas conexões
como se estas fossem necessárias e indispensáveis, como se não pudessem ser feitas de
outro “modo”.
12
Essas formas básicas de organização do conhecimento serão, mais tarde e sem alterações
profundas, aplicadas por Charles Sanders Peirce, em sua classificação dos Signos.
Hume fala também das paixões (pathos): estas são sempre “parcialidades” no
homem. Para ele, o homem não é essencialmente um “egoísta”, a ser limitado por qualquer
Contrato Social eficiente. O homem é mais “parcial” do que “egoísta”. Nos apaixonamos
por objetos parciais mãe, depois pai, depois amigos, depois um animal, uma idéia, um
deus, um lugar etc. A parcialidade da paixão abre caminho para: seleção/exclusão;
intolerâncias; fascismos e totalitarismos (ver o livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari).
Hume preferia as formas múltiplas de uma “generosidade ampliada”, dos afetos recíprocos
e difusos. Hume, como Spinoza e Artaud, defendia um “atletismo afetivo”...
Charles Sanders Peirce retomaria alguns dos conceitos de David Hume
principalmente os de semelhança e de contigüidade ou causalidade –, para construir sua
Teoria dos Signos
13
. Em Peirce, os Ícones funcionam por semelhança: a fotografia
assemelha-se ao seu referente. Os Índices funcionam por contigüidade ou causalidade: a
fumaça (visível) indica o fogo (invisível)
14
. Peirce formularia sua classificação dos Signos,
pela “relação do Signo com seu Objeto”:
1- Ícone: é um representamen que, em virtude de qualidades próprias, se qualifica como
Signo em relação a um Objeto, representando-o por traços de semelhança (Semiótica
e Literatura, p. 28-29).
2- Índice: Signo que se refere ao Objeto designado em virtude de ser realmente afetado
por ele (...) é o fato de sua ligação direta com o Objeto que o caracteriza como Índice
(Semiótica e Literatura, p. 29); está-se falado aqui de causalidade ou contigüidade.
13
A teoria dos Signos (Semiótica) do filósofo e químico norte-americano Peirce difere-se
fundamentalmente da do lingüista suíço Ferdinand de Saussure, fundador da Lingüística Moderna,
a qual serviria de modelo para a Semiologia de base estruturalista que dominaria as concepções de
mundo nas décadas de 60 e 70 do século XX.
14
Peirce não faz a distinção entre contigüidade e causalidade, nisto se diferindo de Hume.
3- Símbolo: Signo que se refere ao Objeto em virtude de uma convenção, lei ou
associação geral de idéias (...) A palavra é o Símbolo por excelência(Semiótica e
Literatura, p. 29-30). Logocentrismo. Por muito tempo, pensou-se que as palavras
guardariam semelhanças com seus objetos-referentes. Hoje, parece que elas são vistas
como estando numa relação causal ou contígua com seus objetos-referentes.
Entretanto, o conceito-chave peirceano que mais nos servirá como base será o
de Interpretante. Enquanto Ferdinand de Saussure criava sua concepção de “signo
lingüístico dual” Significante e Significado –, dando origem a uma Semiologia de base
estruturalista, Charles Sanders Peirce foi o criador da Semiótica introduzindo, entre o
Significante e o Significado, o Interpretante –, ou seja, nascia a noção de “signo extra-
lingüístico triádico”.
Em Peirce, o Interpretante se torna o elemento mais importante do processo
semiótico, porque é ele que produz na mente interpretadora a semiose necessária ao
conhecimento. Por isso, desde fica claro que não se deve confundir Interpretante
(“aquilo que o signo está apto a produzir”) com “intérprete” (Sujeito do conhecimento).
Essa perspectiva aberta por Peirce nos leva a um campo de pesquisa de “infinitas
possibilidades”
15
.
Buscamos utilizar este conceito de Interpretante para compreendermos com
precisão o que há de político nos processos de semiose contemporâneos. Desejamos
enfatizar o “trabalho afetivo” das mídias sobre as nossas capacidades de Percepção e de
Afecção. Nesse processo pós-moderno de “semiose ilimitada”, como o nosso “inconsciente
15
Antonio Negri, citando Spinoza, ressaltaria (A anomalia selvagem, p. 224): A potência de um
efeito é definida pela potência de sua causa na medida em que sua essência se explica ou se define
mediante a essência de sua causa”. Em Spinoza, como se sabe, conhecer é conhecer pelas causas.
político” vem sendo talhado, ou antes modulado, culturalmente – o que é que os signos que
hoje circulam aceleradamente estão aptos a produzir em nossa subjetividade, e que, por
conseguinte, nos definirá ontologicamente? Para estudarmos como isso se ao mesmo
tempo em que defendemos a tese de que é isso o que se –, buscaremos penetrar nas
condições de possibilidade de derivar, de escapar ao Controle dos valores por parte de um
sistema midiático organizado pelo Mercado-Totalitário (Semiocapitalismo imaterial e
cognitivo). O que é que estamos nos tornando? – esta, a questão que importa.
Por conta de nossa metodologia genealógica, iniciaremos este trabalho por uma
análise das atividades laboriais Pré-Capitalistas na Grécia Antiga (no capítulo 2.1).
Veremos como os antigos realizavam suas atividades de agricultura e artesanato, mas
também como se dava a relação entre cidadãos, estrangeiros (ou metecos) e escravos. A
Economia antiga e a forma de organização social referente terão papel de destaque, para
que possamos estabelecer as bases daquele tipo de trabalho (primordialmente material).
Nesse capítulo, abordaremos as práticas de trabalho na Grécia Antiga, berço da
nossa civilização ocidental. Os antigos gregos instauraram formas de atividade produtiva
extremamente peculiares e dependentes de “condições naturais transcendentes” (como no
caso da agricultura), ou de uma Techné (como no caso do artesanato), mas ambas bastante
bem definidas – consistindo em um “trabalho físico, braçal, material”.
Depois (no capítulo 2.2), estudaremos o surgimento do “Capitalismo”, a partir
da Revolução Industrial, na Inglaterra da segunda metade do Século XVIII. Abordaremos
aquela forma de dominação político-econômica, baseada na relação dialética “burguês-
proletário”, que teve lugar nas fábricas em expansão acelerada (“turbinada”). A Economia
moderna e a sua forma de ordenar o socius serão aí mapeadas, visando à determinação
desse tipo de trabalho (também primordialmente material).
Nesse capítulo, investigaremos as principais características do tipo de trabalho
realizado (e pensado) na Modernidade, notando as suas diferenças cruciais com relação
ao trabalho grego. O trabalhador da era moderna passa a ser operário, ou proletário, e suas
condições de vida (e sua subjetividade) transformam-se radicalmente mas continua-se
falando de um “trabalho físico, braçal e material”.
Em seguida (no capítulo 2.3), examinaremos como se deu a passagem daquilo
que chamamos de “Capitalismo” aquele típico da Modernidade para isto que
nomearemos “Semiocapitalismo” (ou Capitalismo Semiótico, imaterial e cognitivo
16
)
típico da Contemporaneidade. Ressaltaremos, então, as profundas transformações operadas
pela Contemporaneidade comunicacional, no que se refere às novas configurações do
trabalho. Através da análise das práticas imanentes de dominação, relevaremos a
característica imaterial (semiótica) das novas atividades produtivas, a saber: 1- nas
estruturas informacionais (por exemplo, a passagem do fordismo ao toyotismo, dando à
fábrica uma “alma” de empresa) e 2- nas trocas comunicacionais (principalmente quanto
ao estilo jornalístico “pizzaria de notícias” e à sustentação das identidades das marcas
publicitárias).
16
“Turbocapitalismo” é um termo conceituado por Edward Luttwak (no livro Turbocapitalismo),
referindo-se ao nosso “Capitalismo imaterial e cognitivo” (ou o que chamamos nesta Tese de
“Semiocapitalismo”). Recusamos esta denominação ao modo de Luttwak, porque a consideramos
absolutamente inapropriada àquilo que ela descreve. Uma referência teórica às “turbinas” nos
remete a forças “termodinâmicas” (materiais, físicas e energéticas: máquinas de fábricas podem ser
“turbinadas”), enquanto que o que se pretende conceituar é a nova relação “não-termodinâmica” de
potências (imaterial, comunicacional e informacional: empresas e marcas são imateriais”).
Ademais, Luttwak deixa escapar um tom de satisfação com este “novo Capitalismo”. Muito
economicista, e pouco politizado. Luttwak fala de cinco causas desta “nova estrutura do capital”:
flexibilização; Globalização; fragmentação; especialização; e aceleração.
Ali, buscaremos a caracterização da Pós-Modernidade como sendo fundada no
“Capitalismo Semiótico” (já eletrônico), mais do que num “Capitalismo Turbinado” (ainda
termodinâmico). Os signos gerados e geridos pelo Semiocapitalismo nos afetam e, assim,
nos constituem para Bem ou para Mal, e “para além de Bem e Mal”. Quanto ao nível
informático, ressaltaremos tanto seus problemas quanto suas soluções.
O marco da transição é a Revolução Informacional, ocorrida na segunda
metade do século XX, e seu processo peculiar de circulação do capital e dos serviços.
Como se verá no capítulo seguinte (2.4), este Semiocapitalismo, imaterial, ancora-se sobre
uma dominação dos conceitos, da linguagem, dos signos (“incorporais”), do Sentido-
Acontecimento, mas também dos direitos, das finanças, das marcas, dos serviços – e,
portanto, das subjetividades. Revela-se aí toda uma “Economia Política dos afetos”.
A proposta da Segunda Parte desta Tese será, em seu capítulo de abertura (3.1),
a de correlacionar os temas da “guerra semiótica” (ou seja: “como a guerra hoje depende
da ‘guerrilha’ informacional”) e da “política da comunicação” (ou seja: “como a
comunicação mantém uma certa organização da instância política?”). Política e guerra são
instâncias definitivamente entrelaçadas pelo pensamento contemporâneo desde Paul Virilio
(Velocidade e política, 1977). Neste sentido, Jornalismo e Propaganda se indiferenciarão.
No capítulo seguinte (3.2): o Marketing e a Publicidade como instrumentos
da sociedade de Controle (“como os produtos e serviços disputam as nossas mentes?”)
não “descobrem as necessidades do consumidor” (“tendências sociais”), para então lhes
oferecer um produto ou serviço. Na verdade, eles conquistam a “conta” de um cliente
(empresa anunciante) e, a partir daí, constróem nos consumidores potenciais um “desejo”
daquela marca, tornando-os por consumidores de fato (modos sociais de satisfação das
tendências naturais). Estaremos, ali, falando de como os Meios de Comunicação de Massa
(MCM) re-produzem subjetividades politicamente apáticas. Governar a massa é contê-la
dentro de certos limites – e a partir disso lucrar com elas.
Para entender isso, precisaremos recorrer tanto à Psicologia de Massa como à
teoria dos “memes”, esta de Richard Dawkins. Os “memes” fazem um “ativismo
publicitário” conosco, e isso revela uma política (pólis) toda organizada por parâmetros
comunicacionais-midiáticos. E quando a política está totalmente (questão de
totalitarismo) administrada pela Comunicação, e quando não se sabe do que um cérebro é
capaz, (res)surge, com toda a força, a problematização da circulação dos afetos através dos
signos. Estaremos, nesse ponto da Tese, como dizíamos, imersos na questão da
“massificação dos afetos”.
Nesse Capítulo, desenvolveremos um tema que resulta das questões da
“política da comunicação”, mas que não costuma ser pensado por seus teóricos: aquilo que
chamamos de “comunicação da política” (ou seja: “como a comunicação nos transmite
valores políticos, de modo ilocutório?”). Uma coisa é a “política da comunicação” se
referir à organização comunicacional da pólis; outra, diferente, é a “comunicação da
política” que se refere à constituição de uma subjetividade (a)política (ou
[des]politizada).
Esse capítulo será o desdobramento necessário do anterior. A partir das
questões levantadas pela Política da Comunicação, percebemos uma brecha por onde
deslizam relações de poder microfísicas (ou talvez micro-sígnicas). O problema se (im)põe
assim: quanto mais organizada comunicacionalmente, mais políticamente comprometida se
faz a ambiência (o Ethos) contemporânea.
No capítulo seguinte (3.3), o objetivo será duplo: mostrar, por um lado, a
constituição horizontal e Acentrada das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação
(NTIC), bem como a sua “abertura ontológica” à (re)potencialização política – a Internet já
é usada para se organizar passeatas, para se trocar textos relevantes etc; e, por outro lado,
mostrar alguns dos efeitos do excesso de informação gerado pela aceleração tecnológico-
comunicacional na verdade, as preocupações são com a sensação de deriva” causada
pelo excesso, bem como com a tensão irreconciliável entre uma “imobilidade forçada” e
uma “mobilidade exigida”. Do liberalista “direito à informação” à individualista
“obrigação de estar informado”. Do permissivo “direito à mobilidade” ao camuflado
“imperativo de mover-se sem cessar”. Do alardeado “direito à palavra” à encaramujada
“produção espetacular de visibilidade-vulnerabilidade biopolítica” (aqui, Foucault retorna
com seu conceito de “vontade de saber”).
A partir das questões levantadas, portanto, faremos nesse capítulo uma leitura
do papel das chamadas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC, digitais)
na produção de subjetividades despotenciadas/repotenciadas politicamente. Contudo, não
se trata de recortar a Tecnologia pelo viés “apocalíptico” (como Baudrillard e Virilio)
nem ser deslumbrado ou “integrado” (como Lévy). O mais importante será reconhecer
como as NTIC produzem em nós novas potências e impotências de existir; novos modos de
ampliar nosso poder de afetar o mundo, a partir da potência de ser afetado por este. É claro
que importará mais uma abordagem filosófico-política do que propriamente técnica do
fenômeno. Recorreremos à “Filosofia da técnica”, mas apenas como uma fundamentação
teórica, visando a uma maior compreensão do nosso tema e a uma mais bem sedimentada
“tomada de posição” (ou “Tese”).
No último capítulo (3.4), problematizaremos as Mídias como moduladoras de
afecções”. Por que moduladoras”? Por produzirem incessantemente nossa subjetividade,
através da nossa capacidade de sermos afetados (afecções) e modulador(que pode ser
imaterial) não é “mecânico” (que é sempre material). Por que “afecções”? Porque somos
muito mais inconscientes, afetivos, afetados e afetantes do que poderíamos supor e é daí,
das afecções, que se podem liberar as condições de possibilidade de derivar e de devir. É aí
que podem nascer as “linhas de fuga”, pela ação de uma liberdade radical a “liberdade
ôntica”
17
. Buscaremos correlacionar o tema do Controle através dos afetos (ou seja: de
que modo a constituição política do Pós-Moderno se vale das técnicas de produção dos
valores?”) com a idéia de “administração e gerência das semioses” (ou seja: “como se o
processo de Percepção-Afecção dos valores capitalistas através do complexo
comunicacional, super-saturado e super-saturador?”).
Este processo, extremamente complexo, revela novas formas de produção e
administração das semioses: 1- damos, ainda, algum Sentido ao mundo? (talvez sim
cabe-nos investigar a fundo); 2- se “sim”, como damos Sentido ao mundo? (talvez um
Sentido meio sem-Sentido ou non-sense?); 3- o que o mundo significa? (talvez um imenso
Mercado?); 4- o que estamos nos tornando? (talvez um bando de ferozes consumidores, ao
mesmo tempo politicamente apáticos?); 5- ainda é possível falarmos de “buscar as
saídas”? (talvez não, se não houver mais “fora do Capitalismo” o que fazer então?)
18
.
Estas são apenas algumas das muitas questões que se nos apresentam hoje, e a investigação
17
Lembremo-nos da tese de Hannah Arendt, segundo a qual o Sentido da Política é a liberdade
(O que é Política?).
18
Ralph Waldo Emerson dizia que às vezes um grito vale mais do que uma Tese. Esta Tese tem,
portanto, a pretensão de servir como um “grito de alerta”.
terá que passar pela análise dos “processos sócio-políticos de semiotização dos valores
vigentes” e suas referentes semioses (moduladas e moduladoras).
Para tanto, como um primeiro passo, comecemos com a genealogia do
trabalho, e de suas formas de organização social, econômica e subjetiva. A Grécia Antiga,
berço de nossa civilização ocidental, apresenta seu “trabalho material”.
2- Da História do Trabalho ao Trabalho Imaterial :
Alguns Planos de Imanência
2- Da História do Trabalho ao Trabalho Imaterial: Alguns Planos de
Imanência
2.1- O Pré-Capitalismo: Trabalho Material na Grécia Antiga
Tolo é quem hoje trabalha / Há lá o que valha /
Este dormir e acordar / Sob o arvoredo sombrio /
Ouvindo as mágoas do rio / Que tem preguiça de andar?
(Mário de Alencar)
A História da Grécia ganhou um recuo de cerca de 500 anos: no final do
Século XIX da nossa Era, através de “recentes” escavações e descobertas arqueológicas,
foram encontrados vestígios daquela organização social, que em nada se parecia com o que
se conhecia dos gregos. Até então, só tínhamos acesso a documentos da vida grega a partir
do Século VII a. C. período que poderia ser classificado como Clássico (ou Grécia
Antiga). Essa descoberta revelou detalhes referentes à vida grega do culo XII a. C., ou
seja, daquilo que ficaria conhecido como Grécia Arcaica.
Agora sabemos que, até o Século XII a. C., as principais cidades Pilos e
Micenas, por exemplo organizavam-se centradas na figura do Ánax (Rei), que era o
soberano e por quem todas as decisões deveriam necessariamente passar. Das trocas
comerciais às crenças religiosas, tudo era determinado “de cima” pelo Ánax (Wa-na-ka).
Era o modelo arcaico de Soberania: o poderoso sendo considerado “um deus na terra”.
Mas por qual motivo o Século XII antes de nossa Era tornou-se um marco,
um divisor? Porque ali houve um grande acontecimento histórico que iria alterar para
sempre a organização grega. Datam dessa época as violentas invasões dóricas, que
mataram, espoliaram, expulsaram e escravizaram os habitantes das cidades citadas. As tais
escavações do Século XIX descobriram plaquetas de tijolo do Século XII a. C., as quais
eram usadas para fins de contabilidade. Àquela linguagem registrada nas plaquetas deu-se
o nome de Linear B.
Soube-se então do seguinte: na Grécia Arcaica, os homens anotavam em
plaquetas de tijolo cru a contabilidade daquilo que se produzia e circulava. Com as
invasões feitas por tribos dóricas, incendiando as cidades (Pilos e Micenas), as plaquetas
foram queimadas e, assim, endureceram, cozinharam, preservando-se com as últimas
inscrições por muitos séculos – e vindo a ser descobertas somente nos fins do Século XIX.
Depois daqueles eventos, entre 1.200 a. C. e 900 a. C. houve o que se chama de
“Idade Negra” pela falta de registros de uma linguagem e de um sistema sócio-cultural
definidos –, referindo-se a uma espécie de época de trevas”. A partir dos Séculos IX a. C.
e VIII a. C., os novos habitantes daquela região passariam a ter intensos contatos,
comerciais principalmente, com civilizações vizinhas. Viagens marítimas desmistificavam
lugares até então ditos “fabulosos”. A invenção do calendário jogou luz sobre a relação de
causalidade, em História. A invenção da moeda forçou a generalização e a abstração de
valores.
O surgimento da vida urbana ordenou o comércio, o artesanato, as artes, as
técnicas, os saberes, etc. Os gregos “importaram”: da Agrimensura egípcia, a Geometria e
a Aritmética; da Astrologia babilônica e caldéia, a Astronomia e a Meteorologia; da
Genealogia persa, a História; dos mistérios religiosos do Oriente em geral, as Filosofias da
Natureza, as Cosmologias, as Cosmogonias e os questionamentos profundos sobre a alma
humana.
Contudo, uma das mais importantes influências foi a seguinte: dos fenícios, os
gregos tomaram a linguagem alfabética, silábica e fonética. Isso abriu todo um novo
campo de possibilidades a serem desenvolvidas pelos gregos: essa linguagem juntava
fonemas, sons, para designar muito mais coisas do que apenas fazer contabilidade.
Designando, a linguagem ganha referência no mundo dos objetos concretos. As palavras
surgidas daí adquirem uma história, tornando-se, em seguida, palavras-conceitos. Os
conceitos permitiriam, quando não “exigiriam”, um grau bastante mais refinado de
abstração intelectual. Portanto, estavam dadas as condições de possibilidade para o
desenvolvimento posterior do pensamento filosófico bem como o surgimento, por
exemplo, dos conceitos de política, de logos”, de Ser, de “isonomia”, de democracia, de
isegoria
19
. Como afirma Jean-Pierre Vernant (Mito e sociedade na Grécia Antiga, p.
173):
A elaboração da linguagem filosófica vai mais longe,
tanto pelo nível de abstração dos conceitos e o emprego de um
vocabulário ontológico (que se pense na noção do Ser enquanto
Ser, ou do Um), quanto pela exigência de um novo tipo de rigor no
raciocínio: às técnicas persuasivas da argumentação retórica o
filósofo contrapõe os procedimentos demonstrativos de um
discurso cujo modelo lhe é fornecido pelas deduções dos
matemáticos, operando sobre os números e as figuras.”.
A cultura grega passava por um processo radical de laicização. O pensamento
racional tomava o lugar das explicações míticas, embora os gregos nunca tenham deixado
de crer em seus deuses. Logos (discurso lógico-racional que recorre às “demonstrações
matemáticas”) e Mythos (narrativa poética que recorre aos deuses e ao mistério para
19
Na definição grega, isegoriasignificava a “igualdade na liberdade de expressão”, atribuída
aos cidadãos da pólis. Vernant afirmaria: Pode-se dizer então que as regras do jogo político, tais
como funcionam numa cidade democrática regida pela isegoria, o direito à palavra igual para
cada um, tornaram-se também a regra do jogo intelectual”.
descrever o real) estavam em oposição. Citado por Jean-Pierre Vernant, Políbio dizia (Mito
e sociedade na Grécia Antiga, p. 175): O historiador não deve fazer a História servir
para produzir emoção nos leitores através do fantástico, (...) e sim apresentar as ações e
palavras inteiramente segundo a verdade, mesmo que sejam pobres de aventura”. Ou
mesmo Aristóteles (Mito e sociedade na Grécia Antiga, p. 178): (...) as sutilezas
mitológicas não merecem ser submetidas a um exame sério (...) Voltemo-nos antes para o
lado daqueles que raciocinam pela via da demonstração”.
Os micênicos (ou aqueus) haviam migrado para as ilhas e costas da Ásia
Menor e ali fundaram suas colônias, tentando preservar suas tradições. As novas condições
de vida e a nova mentalidade surgida daí encontraram sua primeira expressão através das
“epopéias”: poeticamente, o homem grego canta e conta o declínio das formas arcaicas de
viver e de pensar, enquanto prepara, sem saber, o futuro advento da Era científica e
filosófica (a partir do Século VI a. C.). Daqueles muitos poemas, somente dois se
conservaram no tempo, chegando até nós: a Ilíada e a Odisséia, ambos de Homero, datados
do Século VIII a. C..
O Logos racional permitiria aos cidadãos do Século V a. C. exercerem a
isegoria na Ágora (praça pública), a qual se localizava no centro da cidade (pólis). Dessa
época da Grécia Clássica, podemos destacar três características principais: 1- privilégio da
palavra como instrumento de poder político (isegoria, retórica, sofística); 2- exigência de
publicização das idéias (tema da res-publica); e 3- isonomia (as mesmas normas e regras
para todos os cidadãos). Ali, a famosa “unidade grega” se dava, basicamente, por dois
fatores: a) a língua grega, “estabelecida” por Homero; e b) a Constituição ateniense.
A pólis se constituía em torno da praça pública, e não mais em torno do palácio
do Ánax. A política se separou da religião, para se agenciar ao Logos. A instância pública
cuidava da redação das leis, enquanto que a instância privada ficava com a Economia
(oikos [lar] + nomos [norma, regra]). Para o imaginário grego, só os semelhantes (homoiói)
podem ter amizade (philia) entre si na imanência. Na transcendência, os cidadãos são
iguais (isói). Surgem daí as noções de justiça (dike), de injustiça (adikía), de virtude ou
excelência (areté), de moderação (sophrosine), entre outras.
Agora, as leis escritas e a Razão substituem a “prova de força”. O problema ali
era: que lei deve ordenar a cidade, para que ela seja una na multiplicidade de seus
concidadãos, para que eles sejam iguais em sua necessária diversidade? A Ágora era um
espaço blico, centrado, comum, igualitário, simétrico e laicizado. A política é filha da
cidade, segundo Vernant, e nasceu das relações dos homens entre si.
É nesse contexto de imanência versus transcendência que se constituiriam as
formas de atividade produtiva típicas da Antigüidade grega. Saltam aos nossos olhos
algumas questões aqui relevantes, tais como: como se dava ali o “trabalho”?; como se
dividiam os gregos?; quais os valores, ou a psicologia do homem grego?; havia classes?;
havia luta de classes?; e o problema da escravidão?... No entanto, para organizarmos a
exposição das respostas encontradas, iremos iniciar pela questão do “trabalho” grego
essencial e tipicamente material.
A primeira questão que podemos nos colocar é: qual o estatuto do “trabalho”,
enquanto categoria mental? Ou seja: como o trabalho” era visto e praticado pelos antigos
gregos? Jean-Pierre Vernant nos conta que não havia o termo “trabalho”, na Grécia antiga.
Ali, o “trabalho” era realizado e pensado simplesmente como “atividade ou tarefa a ser
feita” (Trabalho e escravidão na Grécia Antiga, p. 11):
Esses fatos do vocabulário fazem-nos suspeitar de
diferenças de plano, de aspectos múltiplos e até de oposições entre
atividades que, a nossos olhos, constituem o conjunto unificado de
condutas de trabalho. É claro que a ausência de um termo
simultaneamente específico e geral não basta para demonstrar a
ausência de uma noção verdadeira de trabalho”.
Trata-se de pensar o trabalho como atividade social. Os planos técnico, político
e social estão completamente imbricados, na Grécia Arcaica. Os escravos, por exemplo,
tinham que trabalhar duro nas minas do Laurion (Trabalho e escravidão na Grécia Antiga,
p. 08). Os “trabalhadores” gregos se dividiam basicamente em dois tipos: o agricultor e o
artesão. em Homero e em Hesíodo, qualquer forma de “atividade produtiva” se
relacionava fora do oikós (casa, lar), em favor de um público: eram artesãos, carpinteiros,
ferreiros etc
20
.
Havia toda uma hierarquização das funções e atividades. Por exemplo, a
agricultura era função mais nobre do que o artesanato, pois o agricultor, ao enfrentar as
diversas (e adversas) condições climáticas, estava se relacionando diretamente com as
vontades dos deuses. Havia o dia certo do mês para semear; o dia certo para colher; o dia
certo para castrar porcos etc. É a divindade que ensina as regras da agricultura,
naturalmente, aos homens (Trabalho e escravidão na Grécia antiga, p. 17): (...) a cultura
da terra não passa, ela própria, de um culto que institui o mais justo dos comércios com os
20
Hesíodo descreve uma vida camponesa que supõe um regime de pequena propriedade, explorada
diretamente por um camponês voltado para a terra. Não bastam capacidades e dons é preciso
colocá-los em ação.
deuses”. Nesta relação direta com a terra e com os deuses, o agricultor gozava de
“prestígio divino”. Seu “trabalho” era associado às funções guerreiras (virilidade): alma e
corpo bem temperados, bem treinados (Trabalho e escravidão na Grécia antiga, p. 14):
Trabalhando, os homens tornam-se mil vezes mais queridos pelos Imortais”.
o artesão, este era bem menos considerado pelos cidadãos gregos, pois ele
exercia sua atividade no conforto de seu lar, livre das intempéries e humores divinos. Ele
“trabalhava” com sombra e água fresca “alma frouxa”. Além dessa distância dos deuses,
o artesão desenvolvia, cada vez mais, uma técnica (techné) que dependia da sua
habilidade e destreza – dando à sua atividade um caráter mais imanente, temporal, positivo.
Algumas cidades gregas rejeitavam o artesão, afastando-o do quadro dos
cidadãos. Atenas até o aceitou, mas jamais o honrou, como o honrariam mais tarde as
cidades da Idade Média
21
. Entre o artesão e a cidade, no início, não existiam
intermediários, “atravessadores”, corporação ou confraria. Seu ofício é visto em sua função
político-econômica. Portanto, como dizíamos, os principais setores da vida laborativa
grega giravam entre as atividades agrícola (campo) e artesanal (ateliê).
A atividade do artesão (ou demiurgo) era vista como “produtiva”, da ordem da
poiésis (“fabricação”) derivada da raiz indo-européia TEK. O termo demiurgos”, em
Homero e em Hesíodo, não qualificava o artesão como “operário”, mas definia todas as
atividades que se exerciam fora do oikos, em favor de um público. Ali, entravam nessa
classificação os artesãos, os carpinteiros, os ferreiros, e que ainda tinham um caráter
itinerante, nômade.
21
Era-se cidadão de Florença na medida em que se pertencia a uma “arte” por exemplo, a da lã.
Era-se cidadão de Atenas na medida em que se era filho de um cidadão.
A atividade do agricultor era considerada como realizadora”, da ordem da
práxis (“ação”). Quando a atividade humana não gera nada fora de si, ela é práxis, e o ato
reside no interior do próprio agente (como afirma Aristóteles). A palavra ergon
(“atividade”) pode servir para distinguirmos a poiésis da práxis. A diferença é entre
“fabricar” e “agir”.
Havia na Grécia agrícola atividades diferentes, como: cultura arbustiva, cultura
de cereais (trigo e cevada), criação de animais, exploração de matas de corte. A
arboricultura prolongava a economia da colheita seus produtos surgiam como dons da
natureza, bênçãos que eram atribuídas a divindades que dispensam riqueza, como Horas,
Cárites e Oinotropos, cuja função era fazer os ramos crescerem e desabrocharem em frutos,
de acordo com o ritmo das estações, enquanto os homens participavam atrelando ao seu
“trabalho” a realização periódica de festas que promoviam a comunhão com os deuses.
Contudo, a essa prática Hesíodo não muita importância. Para ele, o agricultor deveria
regar a terra com seu suor, para fazê-la frutificar. Os dons da terra deveriam ser “ganhos”.
A terra é terra de labor, em Hesíodo e Deméter é a divindade dessa terra
cultivada. A função de Deméter é menos a de distribuir seus dons do que a de garantir uma
ordem regular em suas relações com os homens. Quando ela participa no crescimento do
trigo, o lavrador, segundo Hesíodo, não tem o sentimento de aplicar uma técnica de cultura
ao solo, nem de estar exercendo um ofício. Confiante, ele se submete às rígidas “leis” que
regem seu “comércio” com os deuses. Mesmo em Xenofonte, a agricultura em geral não
aparece como uma atividade de tipo profissional. Hesíodo dizia que, antes do mérito, os
deuses viam o suor. Não bastam capacidades e dons – é preciso colocá-los em “ação”.
Com as mãos no arado, o agricultor dirige uma oração aos deuses, em
benefício do trigo mas um dia correto para isso. O oitavo dia do mês era feito para se
castrar porcos e touros. O décimo terceiro dia do mês era feito para se plantar. Noutro dia
certo, jogava-se na eira o trigo sagrado da deusa. Aquele lavrador que conhece essas “leis”
e se esforça, evitando qualquer erro, pode confiar na justiça divina. Eis o contato “o mais
justo dos comércios” – com os deuses. Mas isso não era visto lá como “magia”.
Em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, temos o primeiro hino ao “trabalho”.
Trata-se ali do trabalho agrícola, mas numa época anterior ao regime da cidade. Entretanto,
como nota Vernant, mesmo no período Clássico a Economia grega permanecerá
essencialmente agrícola, com pequenas propriedades camponesas familiares excetuando
aquelas cidades dóricas, de tipo guerreiro.
No imaginário grego, o trabalho do artesão, ao obrigá-lo a uma vida caseira,
sentado à sombra da oficina ou o dia inteiro junto ao fogo, tornaria sua alma “mais frouxa”
o artesão, como as mulheres, trabalham no espaço interior”. A atividade do artesão se
remete ao nível de um pensamento já positivo, na Grécia, e sua atividade pode ser
concebida no contexto da cidade. O artesão em nada dependia dos deuses, para realizar
seu ofício – porque o barro não é vivo, e os deuses moram naquilo que é vivo.
Em antítese com o artesanato, a agricultura associava-se às atividades
guerreiras, definindo um campo das ocupações viris, em que não se teme o esforço ou o
cansaço, tendo que ter um corpo físico apto a isso. As pessoas do campo recebiam uma
educação forte e viril, e por isso têm uma alma e um corpo “bem temperados”. A
agricultura dá coragem.
A intenção de Xenofonte era mostrar o aspecto espontâneo e natural da
agricultura, por oposição às técnicas aprendidas do artesanato. É a divindade que ensina as
regras da agricultura, pelas quais o homem sentia a sua dependência das forças divinas.
Esse poder divino não se sobrepunha de fora à agricultura era sua “condição interna”. O
poder divino é tão absoluto nos campos de trabalho quanto nos campos de guerra.
A terra trata bem quem a trata bem, porque ela respeita acima de tudo a justiça
(dike). De todas as ocupações, é a agricultura a que mais se adequa à justiça. A atividade
dura e desgastante do campo adquiria valor por sua relação com a divindade. Os frutos da
terra, destinados ao consumo de subsistência, opunham-se aos “valores financeiros” da
circulação. Aquele trabalho significava mais um intercâmbio com os deuses, através da
Natureza, do que um comércio entre os homens.
Ora lavradores e artesãos se opunham em confronto, ora formavam uma classe
única que se opunha aos guerreiros e aos magistrados. Havia dois tipos de propriedade e
exploração agrícolas: 1- regime de pequena propriedade, diretamente explorada por
camponeses que eram cidadãos livres (Atenas); e 2- sistema de “rendeiros”, excluídos da
cidadania (cidades dóricas, de organização guerreira).
A Grécia conheceu a figura de Margites: o homem que, embora conhecesse
todos os ofícios, não praticava nenhum corretamente. Entrevê-se a exigência de
especialização do trabalho. Até os deuses têm cada um o seu fado exceto Zeus, que
estaria acima de qualquer especialização.
Se os homens se unem, formando a cidade, é porque têm necessidade uns dos
outros, isto construindo a philia. O trabalho, para Platão, Aristóteles e Protágoras, exprime
o essencial da ligação social. Os homens se definem como cidadãos por essa rede de
atividades complementares. É o contexto já de uma “divisão social do trabalho”. No
entanto, à especialização das tarefas, à diferenciação das profissões opõe-se a comunidade
política dos cidadãos definidos como semelhantes (homoiói) e iguais (isói) –, ou seja: o
que o plano técnico aproxima (isói: agricultores, artesãos e comerciantes), o plano político
afasta (homoiói: cidadãos versus escravos e estrangeiros).
Para Platão, cada um de nós não é completamente igual a qualquer outro, mas
essa natureza, ao contrário, nos distingue do outro. À execução de tarefas diferentes,
convém homens diferentes. Para Aristóteles, a Natureza faz de alguns homens escravos, e
de cada instrumento o mais perfeito, pois é feito para um uso, e não para muitos. A
unidade do Estado, diz ele, implica uma reciprocidade completa entre os iguais. Jovens,
crianças, mulheres, velhos, homens adultos... para cada um, uma tarefa própria mas sem
deixar de constituir uma hierarquia entre as tarefas, fundada nas diferenças naturais.
Na Grécia Antiga, a philia é por excelência um sentimento político. Ao
contrário, os sentimentos profissionais são da ordem da inveja, da concorrência. Basta
irmos a Hesíodo (em Os trabalhos e os dias): O oleiro não gosta do oleiro, o carpinteiro
do carpinteiro, o pobre tem ciúme do pobre, e o cantor do cantor”. É que Hesíodo está
definindo aí que a concorrência, a rivalidade (eris) só pode se dar entre iguais. Potências de
naturezas diferentes não constituem concorrência pois uma não ameaça a outra.
Potências de mesma natureza, mas com forças diferentes, também não posto que o que
há é comando e obediência.
A divisão do “trabalho” é um fato urbano grego: a cidade são os cidadãos, com
direitos iguais (isói), unidos por laços pessoais de amizade (philia), e a política (cidadania)
é que garante a união de indivíduos de diferentes potências. A divisão de tarefas não era
para “aumentar a produção”, e sim, como nota Platão, para que os vários talentos
individuais se exercessem em atividades que lhes eram próprias (as diferentes aptidões) e,
assim, criar obras cada vez mais bem feitas.
Entretanto, é preciso evitar a aplicação indiscriminada” da fórmula “divisão
do trabalho” ao mundo antigo. Há que se ter algum cuidado nisso. A divisão do trabalho se
origina numa contradição: à multiplicidade das necessidades opõe-se em cada um a
limitação de suas capacidades. Portanto, ela é uma necessidade inscrita na própria natureza
de cada homem, que faz melhor uma coisa porque só faz aquilo. É a necessidade que cria a
tarefa.
Nas pequenas cidades, o mesmo artesão talha a madeira para camas, portas ou
mesas. Numa cidade grande, cada artesão se especializa na produção de um único objeto,
havendo muitas vezes vários deles em uma única oficina. Essa divisão de tarefas nada tem
a ver com qualquer ideal de “processo de produção”, ou de “aceleração da produção”.
Qualquer trabalho, na Antigüidade, era tipicamente material, físico fosse na
agricultura, fosse no artesanato –, dependendo diretamente das divindades ou de uma
techné. A techné visa a produzir numa matéria um eidos (forma ou idéia), e submetido ao
Kairós (momento oportuno)
22
. O Kairós determina o melhor momento para se intervir na
matéria seja esta agrária ou artesanal. Se poder simbólico e o –, é apenas no
sentido de que este é mediado por objetos materiais.
22
Do kairós sabemos ser uma das quatro concepções gregas de Tempo junto com Aiôn (o
“tempo aberto”), Kronos (o crônico) e Cronos (o cronológico).
Uma das principais características da techné é que o instrumento deve ser mais
forte e resistente do que os elementos aos quais é aplicado. Mas, na Grécia Antiga, esse
modo de pensamento técnico ainda não era aberto para um progresso indefinido: cada arte
era circunscrita num sistema fixo de essências e poderes. Os “técnicos” eram limitados,
tanto em número como em recursos. As técnicas muitas vezes não visavam à satisfação das
necessidades, e sim a dar prazer
23
.
Para o artesão, em sua produção, a sua atividade parecia “naturalizar-se”. O
domínio do “artifício” definia aquelas atividades que só geravam ficções, ilusões (sofistas
e banqueiros). A ligação entre o aspecto natural e o caráter de serviço é muito estreita, no
artesanato. O pensamento grego considera menos o processo de fabricação (poiésis), da
ordem do instrumental, do que o emprego que dela se faz (práxis). O objeto fabricado
pertence a uma finalidade bem definida: a adaptação à necessidade em vista da qual ele foi
produzido.
Segundo Platão, para cada coisa existem três espécies de arte”: 1- a da sua
utilização (usuário); 2- a da sua fabricação (artesão); e 3- a da sua imitação (artista, pintor).
O pintor, por exemplo, imita porque só conhece a aparência exterior da coisa. O artesão
fabrica efetivamente a coisa, mas sem conhecer perfeitamente o eidos, a finalidade o
artesão não passa de um “intermediário” através do qual se realiza um “valor natural”
(valor-de-uso) em um objeto. Apenas o usuário possui essa competência, porque
encomenda o objeto da maneira como o quer. Entre o fabricante e o usuário, parece haver
um laço pessoal de dependência, uma relação de serviço. Segundo Aristóteles, todo artesão
23
Vernant diz que as técnicas de imitação que produzem prazer podem multiplicar-se
infinitamente, porque o prazer pertence ao domínio do ilimitado.
é um “escravo”, na esfera de sua profissão. Vernant distingue (Trabalho e escravidão na
Grécia Antiga, p. 32):
Da agricultura ao comércio, não encontramos na
Grécia um tipo de comportamento único, o ‘trabalho’, mas formas
de atividade que aparentemente organizaram-se de acordo com
relações quase dialéticas. (...) Consideradas em seu conjunto, no
entanto, as atividades agrícolas contrastam com as operações dos
artesãos como uma produção natural contrasta com a fabricação
técnica”.
De um modo geral, o homem não tinha o sentimento de transformar a
Natureza, e sim de se adequar a ela. Trata-se do “bom emprego das coisas”, e não de sua
transformação pelo “trabalho”. Em nenhum momento surge a idéia de se transformar a
Natureza, de se tornar senhor ou possuidor desta. No contexto da cnica e da Economia
antigas, o “trabalho” aparece em seu aspecto concreto. Talvez daí o antigo grego só
conseguir compreender claramente o valor-de-uso, mais do que o valor-de-troca. A
agricultura grega era de “subsistência”, e não de “circulação”.
Na produção artesanal, o artesão é a causa eficiente (motriz); a matéria é a
causa material; a idéia é a causa formal; e a intenção é a causa final. A essência de uma
cadeira é a perfeita adequação de todas as suas partes ao uso que se faz dela (Trabalho e
escravidão na Grécia Antiga, p. 32):
Entre o ‘trabalho’ do artesão e a essência da obra
definida por seu uso, não medida comum. Situam-se em dois
planos diferentes, um submetido ao outro, como o meio está
submetido ao fim sem participar de sua natureza. A fabricação de
um objeto é uma coisa, o uso desse objeto é outra, radicalmente
diferente”.
O trabalho artesanal é pura rotina, mera aplicação de receitas empíricas para
tornar um material conforme a um modelo que lhe vem de fora (das indicações ou ordens
do usuário)
24
. O artesão está completamente submetido ao Kairós, e é inteiramente
ultrapassado por seu ofício ao se submeter às exigências formais. Ele não precisa lançar
mão de iniciativa, nem de reflexão. Sua virtude, como diz Aristóteles, é “obedecer”. O
problema é que o cidadão grego opunha a contemplação, a vida ociosa, às categorias da
utilidade, da prática, do trabalho servil e artificial. Na Grécia Clássica, a laicização das
técnicas está concluída. Estranha aos domínios da política e da religião, a atividade
artesanal corresponde a uma exigência de pura Economia mesmo tendo ainda a Métis,
como “inteligência prática”, no domínio artesanal. O artesanato é atividade assalariada.
A ferramenta era vista como extensão do corpo humano. Ela age submetida ao
tempo humano não tem “tempo próprio”. A técnica da máquina motriz seria
introduzida na Grécia em torno do Século III d. C., com o moinho de água, inaugurando
“uma nova Era técnica” (segundo R. J. Forbes, em A History of technology, p. 589 e
seguintes – apud Vernant). A perspectiva, lá na Grécia, era “instrumentalista”, como
técnicas a serviço dos indivíduos e das cidades. A ciência grega é a “ciência do
aproximadamente”, e está ao nível do “mais ou menos”, como demonstrou Alexandre
Koyré.
24
Na Grécia Antiga, “o cliente tem sempre razão”.
Diz Vernant (Trabalho e escravidão na Grécia antiga, p. 28): Ao submeter a
capacidade do artesão à necessidade do usuário, o ofício é serviço, e não trabalho”.
Vernant diz que Marx, em O capital, observa que essa concepção traduz um estado
econômico em que o “valor-de-uso” ainda predomina sobre o “valor-de-troca”. Em
Aristóteles, a fabricação de um sapato tem um uso ou valor natural (o uso desse sapato);
mas pode-se-lhe propor um outro objetivo, “não-natural” (a venda desse sapato).
Isto era no tocante às diferentes atividades. No que se refere aos indivíduos,
havia inicialmente três tipos de “trabalhadores”: os cidadãos, os escravos e os metecos
(estrangeiros residentes). No plano técnico, todos eles se aproximavam muitas vezes,
“trabalhando” juntos nos canteiros de obras. Entretanto, mais tarde, o plano político
separaria o que o plano técnico aproximara. Política e economia eram diferentes: para
Protágoras, as duas podem ser intercambiáveis em um mesmo indivíduo; já para Hesíodo,
não.
Segundo Karl Marx, havia um antagonismo entre duas formas de posse do solo
antigo: 1- uma propriedade fundiária do Estado; e 2- uma propriedade fundiária privada.
Como nota Vernant (Trabalho e escravidão na Grécia Antiga, p. 70):
A ruptura de equilíbrio entre essas duas formas de
apropriação do solo em proveito da segunda ou seja, a
consolidação da propriedade privada da terra no contexto das
instituições da cidade aparece como a condição preliminar para
o desenvolvimento da escravidão e de uma Economia monetária”.
Marx dizia sobre a Antigüidade (Marx apud Vernant: Trabalho e escravidão na
Grécia Antiga, p. 67):
A pequena agricultura e o exercício independente das
profissões (...) formam a base econômica da comunidade clássica
em seu apogeu, depois que a propriedade comum de origem
oriental se dissolveu e antes de a escravidão ter se apropriado
seriamente da produção”.
A mão-de-obra servil foi fundamental na vida econômica antiga. Não se tem
notícia de qualquer revolta ou “greve” por parte de escravos, na Grécia Antiga. Pode-se
definir a cidade como um sistema de instituições que permite a uma minoria de
privilegiados (os cidadãos) reservarem-se o acesso à propriedade de um solo, num
determinado território.
Uma das mais relevantes oposições gregas era aquela entre, por um lado, a
oikonomia (economia agrária, de tipo familiar, sobre a qual a cidade como tal é constituída,
contrabalançada pelo artesanato primitivo: “microeconômica”) e, por outro lado, a
“crematística” (economia tornada necessária pelo próprio crescimento da cidade
comércio marítimo, empréstimos, atividades financeiras em geral: “macroeconômica”).
Como Moses Finley observou, uma das principais características da Economia grega é que
a terra e a moeda permaneciam constituídas em duas esferas separadas.
De um modo geral, como vimos, na Grécia antiga o homem não tinha o
sentimento de transformar a natureza, mas, antes, de se adequar às exigências dela.
Enquanto em Descartes o artesão conhece seu ofício porque compreende o mecanismo de
sua máquina, o artesão grego sabe utilizar, como convém e quando convém, uma dínamis
(potência, força). Platão, em Político, dizia: Nenhum ‘trabalho’ técnico é jamais a
aplicação das regras aprendidas”. A “arte” é saber utilizá-las no momento mais propício
(o tempo kairós). Vernant explica (Trabalho e escravidão na Grécia Antiga, p. 28):
A história social do trabalho confirma que esse
sistema de pensamento produz bem a forma de organização da
pólis. O lugar dos escravos nas atividades artesanais aumentará:
para participar da vida política, cada vez mais os cidadãos
descarregarão sobre eles e sobre os metecos o cuidado de garantir
a produção de riquezas. Por maior que tenha sido a importância
dos artesãos na vida das cidades comerciais como Atenas e
Corinto, as atividades econômicas permanecem, nas instituições da
cidade e para o pensamento que nelas se exprime, em segundo
plano. A pólis prolonga e generaliza as tradições aristocráticas:
não é ‘burguesa’ como a cidade na Idade Média”.
Na origem da cidade, a oposição principal se dava entre uma classe de
proprietários fundiários (eupátridas), que viviam na cidade e dominando as funções política
e militar, e os aldeões que constituíam o demos rural. Contudo, havia três características,
que conferiam uma certa unidade à vida social grega: 1- a unidade do campo e da cidade (o
centro da pólis sendo o lugar de reunião das instâncias públicas, em oposição à privacidade
dos oikos); 2- a unidade do cidadão e do soldado (a função militar era dividida entre todos
os cidadãos, e integrada à função política os “hoplitas”); e 3- a íntima ligação entre a
cidadania e a propriedade fundiária (todo cidadão tinha, ou deveria ter, a posse de alguma
terra). A terra conferia uma dignidade ao cidadão, que o dinheiro líquido não possuía.
Inicialmente, a terra era inalienável, separada do ciclo da Economia. A partir
do Século V a. C., a terra passa a integrar a Economia antiga. A partir do Século IV a. C.,
tudo passaria a ser contado em dinheiro. Após alguns anos, surge a figura do “puro
comerciante”, do intermediário”, que comercializava miudezas. Aristóteles chega a notar
(citado em Trabalho e escravidão na Grécia Antiga, p. 77): “Chamamos de bens (chrèmata)
todas as coisas cujo valor é medido pela moeda”. No entanto, isso não o impedia de
continuar refratário à mentalidade mercantil.
Na Antigüidade, a “força de trabalho” não era concebida como uma
mercadoria, que se poderia comprar ou vender. o havia um “mercado de trabalho”. Os
escravos não vendiam a sua força de trabalho o que caracteriza uma “relação pessoal”, e
não social, entre senhor e escravo. O escravo, como um instrumento, permanecia fora do
sistema geral de intercâmbios sociais – estava fora da sociedade, não era um cidadão (aliás,
não era nem mesmo “humano”[!], pois, para os gregos, a “humanidade” estava atrelada à
“cidadania”). Aristóteles considera o escravo como um instrumento animado” se estava
fora da sociedade, estava fora do “humano”.
As classes sociais (cidadãos versus metecos, por exemplo) entravam em
conflito, pelo mundo antigo, em função de seus interesses materiais. Economicamente,
estas duas classes não se diferenciam. Politicamente, sim. E o papel do Estado era o de
“mediador” dos interesses. Tanto Parain como Claude Mossé apresentam a luta de classes
antiga como sendo a oposição basicamente entre ricos e pobres. Contudo, a oposição dos
escravos a seus senhores nunca se exprimiu diretamente em lutas sociais
25
.
25
É bom notarmos que havia diferenças mesmo entre as categorias de escravos: existiam “escravos
domésticos”, “escravos que dirigiam um ateliê de artesanato para seu patrão”, escravos
acorrentados que trabalhavam nas minas do Laurion”, etc.
Em seu livro História da sexualidade 2 o uso dos prazeres, Michel Foucault
nos conta que o homem grego tinha as cortesãs, para o prazer (o prazer é a única coisa que
uma cortesã pode dar); as concubinas, para os cuidados de todo o dia (elas podiam oferecer
a companhia cotidiana); e as esposas, para ter uma descendência legítima e para a
administração do lar (dar filhos e garantir a continuidade da instituição familiar). Para as
esposas, o seu marido deveria ser o único parceiro sexual pois que elas se encontravam
diretamente sob o seu poder. Guardiãs do lar (oikos) e suas normas (nomos), as esposas
foram “as primeiras economistas”. Para os maridos, a exclusividade sexual não se lhes
impunha – apenas deles se esperava um respeito maior para com suas esposas.
Havia amesmo reflexões políticas a respeito da melhor combinação possível
de cônjuges, debates jurídicos a respeito das condições nas quais os descendentes poderiam
ser considerados legítimos e, assim, beneficiarem-se do status de cidadão. Uma
descendência legítima só poderia ser obtida com a própria esposa.
Econômica, de Xenofonte, é o mais desenvolvido tratado de vida matrimonial,
constituindo-se como um conjunto de preceitos relativos à maneira de se governar o
próprio patrimônio: como administrar o seu domínio; como dirigir seus trabalhadores,
como proceder às diferentes formas de cultura; como aplicar no bom momento (kairós) as
boas técnicas; como convém vender ou comprar, e quando convém; etc
26
. O duplo objetivo
era claro: conservar e desenvolver o patrimônio. É o mundo dos pequenos proprietários de
terras – oposto ao mundo dos artesãos, como percebemos.
26
ainda um outro tratado, chamado Econômica, atribuído a Aristóteles ou pelo menos à sua
escola (Liceu) – hoje atribuído pela designação de “pseudo-Aristóteles”.
Xenofonte enfatiza a necessidade de se recorrer a práticas racionais as quais,
algumas vezes, ele denomina “saber” (epistême), outras vezes chama de arte ou cnica”
(techné). A essas atividades estavam ligados um estilo de vida e uma ordem ética: um
exercício de resistência, um treino físico que é bom para o corpo, para a saúde e o vigor. O
proprietário de terras, acostumado aos trabalhos rudes e pesados, é um soldado vigoroso.
Seus bens e propriedades o fazem defender corajosamente o território de sua pátria.
O bom administrador de sua casa deveria ser, por conseguinte, um bom
administrador dos negócios públicos. A arte doméstica seria da mesma natureza das artes
política e militar, no sentido de que se trata de governar os outros homens. O marido
deveria fazer de sua esposa a colaboradora perfeita para a sua gerência da casa, para a
prática equilibrada e razoável da Economia. O marido deveria ensinar sua esposa, educá-la
já que ele se casava entre 25 e 30 anos de idade, enquanto ela tinha, em geral, algo em
torno de 15 anos de idade. Ela deveria se interessar pelos ensinamentos do marido.
Antes de se ocupar do campo ou do gado, do governo ou do comércio, o
marido precisava assegurar o bom funcionamento de sua casa. Enquanto o marido trazia
para casa os frutos do que produziu, trocou ou ganhou, a esposa cuidava de preservar esses
frutos e de fazê-los crescer. O lugar privilegiado do homem era o “lado de fora”; o da
mulher era “dentro de casa”. É a gestão da mulher que regula os gastos da casa.
Para que eles pudessem exercer essas funções distintas, os deuses teriam
dotado os sexos de qualidades particulares, traços físicos diferentes. Força e resistência nos
homens: semear, tratar, colher, arrastar, empurrar, lutar, suportar as variações climáticas, as
caminhadas, etc mas, antes de tentar governar qualquer coisa, o homem deve ser capaz
de governar-se a si próprio (a enkratéia). Por outro lado, um certo “medo natural” nas
mulheres: levando-as a se preocuparem com as provisões, a temerem sua perda, a recearem
os gastos.
O nomos era: que cada um se mantenha em seu lugar um hábito regular que
corresponde exatamente às intenções da Natureza, que define o bom e o belo para cada
situação. A “oposição natural” entre os sexos é indissociável da ordem da casa (oiko-
nomía). O casamento era uma “comunidade” (koinonia) de bens, de vida e de corpo.
Deve-se considerar que o bom (e belo) casamento é aquele que é útil para a
cidade, e que é em benefício desta que os filhos deverão ser “os mais belos e melhores
possíveis”. Havia uma incitação generalizada à virtude, bem como receitas contra o
relaxamento do comportamento (o que é sempre nocivo ao Estado).
Havia várias formas de desigualdade: entre homem e mulher; entre o senhor e
o escravo; entre o mais velho (pai) e o mais moço (filho); entre o cidadão e o estrangeiro
(meteco); entre o cidadão que comanda e o cidadão que obedece. Numa Constituição livre,
os cidadãos comandam e obedecem alternadamente, enquanto que em casa o homem deve
guardar comando permanentemente. Esta, entre o marido e a mulher, uma desigualdade
entre seres livres – mas baseada numa diferença de natureza (princípio aristocrático).
É claro que diferenças bastante consideráveis entre os muitos modos de se
exercer e pensar o trabalho, nas várias regiões e nas muitas épocas passadas. Contudo, é a
característica “não-capitalista” que os une em um mesmo conjunto, conferindo-lhes alguns
pontos de contato, e fazendo desses modos um tipo semelhante de “trabalho material
(físico, braçal) pré-capitalista”.
2.2- Surgimento e Expansão do Capitalismo: Trabalho Material Moderno
O rotundo burguês candidamente transporta
o suor dos seus próximos para as
profundidades da sua volumosa pança.
(Graciliano Ramos)
Na História das Teorias da Economia Política, uma querela das mais
importantes: a discussão sobre a origem do Capitalismo. Para o filósofo Karl Marx, o
Capitalismo teria surgido com a Revolução Industrial, na Inglaterra, na segunda metade do
Século XVIII. para o historiador Fernand Braudel, ele teria existido “desde sempre”,
tendo tomado diversas formas ao longo do tempo para Braudel, o sistema de trocas é
tão velho quanto a história dos homens(Uma lição de História de Fernand Braudel, p.
73).
Nesta Tese, contudo, não entraremos no mérito desta questão, que
partiremos de uma perspectiva marxiana – concebendo a diferença fundamental entre
“economia de mercado” (sistema simples de trocas, com ou sem capital) e “produção
capitalista” (sistema complexo de trocas, necessariamente com capital e acumulação). Paul
Fabra, jornalista da área econômica, associa a “economia de mercado” ao peso no valor-
de-uso (no contexto da “História das Riquezas”); e refere ao Capitalismo o maior peso no
valor-de-troca (no contexto da “Economia Política”)
27
.
27
Para um aprofundamento nessa última distinção entre “História das Riquezas” e “Economia
Política” –, remetemos ao brilhante livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas. Segundo
Foucault, a passagem da primeira para a segunda se dá a partir do pensamento de David Ricardo.
Se o comércio é anterior ao Capitalismo, o Capitalismo remodelou e
intensificou o comércio e isso não se reflete apenas numa maior quantidade de trocas”,
mas revela todo um novo modo de se exercer o poder e de se fazer política, agora
fundamentalmente através da Economia. A forma de o homem abordar o real muda aí.
Segundo Marx, Capitalismo se remete à exploração da mão-de-obra para a
extração de mais-valia como se detalhará mais adiante. Isso se porque, para Marx, a
troca capitalista, embora fundada sobre um princípio de igualdade, instaura na verdade
uma desigualdade profunda. Para tanto, é preciso um pequeno recuo, para a construção da
perspectiva desejada. Como pretendemos ressaltar as características principais do tipo de
trabalho desenvolvido na Modernidade de tipo material (físico, corporal) –,
procederemos pela exposição resumida do que acreditamos ser o “nascimento do modo de
produção capitalista”, ou seja, a Revolução Industrial.
Karl Marx, no segundo volume do Livro 1 de O Capital, fala do processo de
“acumulação primitiva de capital” processo este que se iniciou no último terço do
Século XV e nas primeiras décadas do Século XVI –, constituindo-se como condição de
possibilidade para o surgimento, posterior, do “modo de produção capitalista”. A
“acumulação primitiva de capital” se deu pela dissolução das vassalagens feudais, pela
expropriação das terras dos camponeses (“indivíduos sem direitos”), os quais viviam em
regime de relativa independência econômica, e a conseqüente substituição das funções
agrícolas da terra pelas funções pastoris (O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 833):
Opondo-se arrogantemente ao Rei e ao Parlamento, o
grande senhor feudal criou um proletariado incomparavelmente
maior, usurpando as terras comuns e expulsando os camponeses
das terras, os quais possuíam direitos sobre elas, baseados, como
os do próprio senhor, nos mesmos institutos feudais. O
florescimento da manufatura de lã, com a elevação conseqüente
dos preços da lã, impulsionou diretamente essas violências na
Inglaterra”.
Escancaradamente, o que se forjava ali era uma espécie de oligopólio das terras
produtivas: pouquíssimos grandes proprietários tomavam o lugar de milhares de pequenos
agricultores. Estes, expulsos de suas terras, tiveram que migrar para as periferias das
cidades – que era onde se estavam implantando as fábricas –, em busca de trabalho
(sobrevivência). A prática do trabalho até ali “pré-capitalista” é então radicalmente
transformada. Marx chega a chamar esse evento de revolução nas condições de
produção” (O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 834).
A propulsão da acumulação primitiva foi toda coordenada, na Inglaterra do
final do Século XVII, através de vários meios: o da expropriação de terras; o colonial; o
das dívidas públicas; o do moderno regime tributário; o do protecionismo. O que é preciso
ressaltar é que tudo isso se deu com o apoio do poder do Estado
28
(O Capital, Livro I, Vol.
2, p. 870):
A Companhia Inglesa das Índias Orientais, como se
sabe, obteve, além do poder político na Índia, o monopólio
exclusivo do comércio de chá, do comércio chinês em geral e do
transporte de mercadorias da Europa para a Europa. Mas, a
navegação costeira da Índia e entre as ilhas, o comércio do
interior da Índia se tornaram monopólio dos altos funcionários da
Companhia. Os monopólios de sal, ópio, bétel e de outras
28
Ao contrário do que pensam alguns pós-modernos (como, por exemplo, os “anarco-capitalistas”
norte-americanos), o Estado não foi, não é e não será nunca totalmente dispensável, justamente
pelo fato de ele legalizar e institucionalizar a rapina.
mercadorias eram minas inesgotáveis de enriquecimento. Os
próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam a seu bel-
prazer os infelizes hindus. O governador-geral tomava parte nesses
negócios particulares. (...) processava-se a acumulação primitiva
sem ser necessário desembolsar um centavo”.
Entre os anos de 1769 e 1770, os comerciantes ingleses produziram também,
na Índia, uma epidemia de fome, arrebatando todo o arroz e em seguida retardando a sua
venda, de modo a conseguir preços bem altos. Cerca de um século depois, em 1866, mais
de 1 milhão de hindus morreriam de fome, numa única província, a de Orissa: procurava-se
enriquecer o erário com os preços a que se vendiam os gêneros alimentícios à gente
faminta. O nome disso é “acumulação primitiva de capital”. Aliás, bastante primitiva!
Aqueles que antes eram agricultores, e que não receberiam qualquer
indenização pela expropriação de suas terras, passam a ser cooptados (capturados e
incorporados) pelas indústrias deste Capitalismo nascente. A classe trabalhadora inglesa
foi lançada, sem transições, da idade do ouro para a idade do ferro (Thornton apud
Marx: O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 834). Esses novos grandes arrendamentos seriam
chamados, no culo XVIII, de “fazendas de capital”, ou “fazendas comerciais”, pois
tornavam a população agrícola disponível para a indústria. Os arrendatários diziam que os
antigos moradores de suas terras tinham que ser mantidos pobres, para que trabalhassem
ativamente.
Ao serem retirados do campo e de suas atividades – expulsos à base de rapinas,
horrores e tormentos da chamada “grande limpeza” –, aqueles trabalhadores perdem o
contato com as atividades para as quais tinham aptidão. Eles passariam a trabalhar para
outrem, em troca de um salário: surgia o “proletário” – aquele que não possui bens
materiais, mas apenas a sua “prole” (força de trabalho). Poucos acres junto à choupana
tornariam o trabalhador demasiadamente independente(Hunter apud Marx: O Capital,
Livro I, Vol. 2, p. 836). Este novo trabalhador em nada se parece com o antigo: ele terá que
vender ao burguês capitalista a sua força de trabalho, que é a única coisa que ele detém. O
operário dali precisava acatar as exigências dos donos do capital
29
(Ensor apud Marx: O
Capital, Livro I, Vol. 2, p. 846-847):
Quando os mongóis invadiram as províncias
setentrionais da China, propôs-se, em seu conselho, exterminar os
habitantes e transformar suas terras em pastagens. Essa proposta
foi posta em execução por muitos landlords escoceses, em suas
próprias terras, contra seus próprios conterrâneos”.
No Século XVIII, foi proibida a emigração dos gaélicos expulsos de suas
terras, o que os levou na direção de Glasgow e para outras cidades industriais. Muitos
foram levados a se estabelecerem na orla marítima, a 2 acres por família
30
. Quando o
cheiro de peixe chegou ao focinho dos grandes comerciantes, diz Marx, estes arrendaram
também a orla e os gaélicos foram expulsos uma segunda vez. Em 1860, muitas pessoas
foram expropriadas e exportadas para o Canadá, sob falsas promessas. O antigo lavrador
torna-se proletário ou indigente, não por ter sido eliminada a servidão, mas por ter sido
suprimida a propriedade que tinha do solo que cultivava. É daí que decorrem todos os
problemas históricos e políticos modernos.
29
Como diz Marx: A força é o parteiro de toda sociedade velha que traz uma nova em suas
entranhas. Ela mesma é uma potência econômica” (O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 869).
30
Marx diz que eles “transformaram-se em anfíbios”, passando meia vida na água e meia vida na
terra.
O sistema capitalista nascente exigia ali a subordinação servil da massa popular
e a conversão de seu instrumental de trabalho em capital. Segundo Marx, a Reforma
Protestante de Lutero teria dado um forte impulso à expropriação de terras. Naquela época,
a Igreja Católica era proprietária feudal de grande parte do solo inglês. As expropriações
expulsaram os habitantes de suas terras, levando-os a engrossar a massa dos proletários. Os
bens da Igreja foram doados aos favoritos da Corte, ou vendidos a preços simbólicos a
especuladores, agricultores e burgueses. O direito legal dos lavradores pobres a uma parte
dos dízimos da Igreja foi confiscado. “Pauper ubique jacet (“O pobre está por toda
parte”), exclamou a Rainha Elizabeth após uma viagem através da Inglaterra. Como se
(O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 840):
Os capitalistas burgueses favoreceram a usurpação,
entre outros motivos, para transformar a terra em mero artigo de
comércio, ampliar a área da grande exploração agrícola,
aumentar o suprimento dos proletários sem direitos, enxotados das
terras etc. Além disso, a nova aristocracia das terras era a aliada
natural da nova bancocracia, da alta finança que acabara de
romper a casca do ovo e da burguesia manufatureira que dependia
então da proteção aduaneira”.
Estes foram, resumidamente, os métodos da acumulação primitiva, que
possibilitariam o surgimento e a expansão irrefreável do modo de produção capitalista,
principalmente a partir da segunda metade do Século XVIII. O capital-dinheiro, formado
por meio do capital-usurário e do capital-mercantil, era impedido de se transformar em
capital-industrial pelos entraves do antigo sistema feudal e pela organização corporativa na
cidade. Marx nos conta (O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 867) que:
A gênese do capitalista industrial não se processou de
maneira gradativa como a do arrendatário. Sem dúvida, certo
número de mestres de corporações, número maior de artesãos
independentes e, ainda, assalariados se transformaram em
capitalistas rudimentares e, através da exploração
progressivamente mais ampliada do trabalho assalariado e da
correspondente acumulação, chegam a assumir realmente a figura
do capitalista”.
Embora Adam Smith afirmasse o caráter rudimentar, primitivo da sociedade
que precedeu a acumulação de capital, David Ricardo garantia que jamais houve um
período na História em que não existisse capital. Ricardo parece identificar capital e
trabalho. Ele e Smith concordavam em que o papel principal do capital é o emprego da
mão-de-obra, através de pagamentos de salários. Os bens de consumo adquiridos pelos
trabalhadores seriam uma parte do investimento real da Economia, e aqueles novos bens
que eles produzem representariam a reprodução deste capital, mas sob uma outra forma.
Adam Smith considerava o trabalho como a única medida invariável de valor, e
distinguiu “valor-de-uso” e “valor-de-troca”. Diferentemente, David Ricardo acatava a
distinção entre esses valores, mas sustentava que o valor (em geral) do trabalho é tão
variável quanto o da prata ou o do trigo. Para Ricardo, não bem que seja uma medida
invariável de valor – não havendo nada que não possa exigir mais ou menos trabalho para a
sua produção. Talvez a exceção a esta regra seja o caso do ouro. O valor-de-troca é o preço
em termos do trabalho incorporado. Veremos isso melhor.
Segundo David Ricardo, para que um bem tenha valor-de-troca é essencial que
ele tenha “utilidade”, embora esta não seja uma medida de valor. Tendo uma utilidade”,
os bens derivariam seus valores-de-troca de duas variáveis: 1- a sua escassez (quadros de
um artista; artes em geral); e 2- a quantidade de trabalho necessário para obtê-los (a
grande maioria dos bens produzidos). No entanto, havia um problema “clássico”: por que o
vinho tem um valor maior do que o suco de uva, mesmo não tendo nele sido aplicado
nenhum trabalho adicional? Ricardo concluiria que deveria haver uma terceira variável: a
espera. Mas, por enquanto, o que nos interessa é a exploração material do trabalho físico
do trabalhador. Vamos agora aos seus horrores.
O proletário possui o seu corpo físico, a sua “força de trabalho” a qual o
burguês também possui, em menor quantidade, mas que, adiposo, se recusa a usar. O
burguês capitalista paga para alguém trabalhar por ele, operando suas máquinas. A “força
de trabalho” que o proletário oferece ao capitalista é também o seu “tempo de trabalho”. O
problema aparece quando se percebe que este “tempo de trabalho” é também “tempo de
vida” e este “tempo de vida”, passado quase todo na fábrica do burguês, não volta nunca
mais!
É na “linha de montagem” que o operário vai se acabando. Apoiado em
inúmeros documentos fidedignos, Marx relata as diversas causas de mortes de crianças,
adolescentes e adultos (homens e mulheres), todas atreladas àquelas condições desumanas
de trabalho. Marx fala de sangue infantil capitalizado (O Capital, Livro I, Vol. 2, p.
874). Foi a indústria têxtil algodoeira que introduziu a escravidão infantil na Inglaterra. É o
lucro dos fabricantes, aguçando-lhes a voracidade lupina(O Capital, Livro I, Vol. 2, p.
877). É incrível o número de doenças desenvolvidas numa fábrica da Era moderna, cada
uma mais cruel e horripilante do que a outra. Salas fechadas, sem ventilação mínima;
trabalho incessante, repetitivo e veloz; ausência de tempo mínimo para alimentação; dias
intermináveis, horas eternas, minutos infinitos...
No início da industrialização, a exploração do tempo de trabalho tendia ao
infinito. Como o capitalista não conseguia esticar o dia para além das 24 horas habituais,
restava-lhe a super-utilização de algo em torno de 16 horas diárias de seus funcionários
até porque o operário precisava descansar ao menos um pouco. Por essa época, as leis
trabalhistas simplesmente inexistiam. Depois da organização de sindicatos de trabalhadores
e de muita luta político-jurídica, a jornada de trabalho das fábricas, em geral, foi sendo
gradualmente reduzida: de 16 horas para 14; de 14 para 12; de 12 para 10. Entretanto, o
Capitalismo nunca se deixou lesar por qualquer perda de lucros ou de mais-valia. A super-
utilização se marca pela utilização intensiva de cada minuto, de cada segundo do tempo de
produção. Daí o constante reinvestimento do capital em máquinas cada vez mais avançadas
(leia-se: “aceleradas”). Ao acelerar a produção ao “turbiná-la” –, o capitalista conseguia
produzir cada vez mais em menos tempo.
Surge uma outra preocupação: para serem despejados nas fábricas e
indústrias, aquelas pessoas teriam que passar por um treinamento rigoroso, disciplinar, para
que pudessem operar as máquinas aceleradas do novo ambiente de trabalho. E, como
sabemos, essas pessoas precisavam adequar o seu ritmo individual, o seu tempo, ao “ritmo
maior” das máquinas. O tempo biológico (instinto) era “atropelado” pelo tempo mecânico
(instituição). A “correnteza” arrastava tudo o que nela necessitava entrar: uma “roda-viva”.
O humano era arrebatado pela técnica materializada, tornada capital. Era a Modernidade,
com seu projeto de dominação e submissão da Natureza às exigências do Homem (projeto
cartesiano, sim, mas distorcido pelo burguês), e de dominação do Homem pelo próprio
Homem (projeto capitalista praticado pelo burguês).
Surgia, ali, uma nova forma de exercício de poder, apoiando-se nos corpos dos
indivíduos e em seus atos e gestos (e não mais na terra e em seus produtos). Este novo
poder chamado de disciplinar extrairia dos corpos tempo e trabalho (e não mais bens e
riquezas). Funcionaria, desde então, através da vigilância (e não mais através de taxas e
obrigações ocasionais). Supunha, como diz Foucault (em Vigiar e punir), um sistema
minucioso de coerções materiais. Este poder disciplinar tornava-se um instrumento
fundamental para a constituição do Capitalismo industrial, e do seu tipo respectivo de
sociedade.
Para Michel Foucault, de certa forma como para Marx, dominação não é a
relação de força global de um sobre os outros, mas as múltiplas formas de dominação que
se podem exercer na sociedade. O poder disciplinar não funciona verticalmente (como na
Soberania), mas sim horizontalmente, na sua parte mais externa, nas pontas, nas últimas
relações sociais. A Disciplina se exerce nas relações mais microfísicas, nas extremidades,
nas instâncias mais regionais e locais. Utiliza técnicas de intervenção material, mas
eventualmente violenta. Foucault pretende focalizar o poder na extremidade cada vez
menos jurídica de seu exercício.
Para ele, a questão a ser colocada era outra: estudar os corpos periféricos e
múltiplos, os corpos constituídos como sujeitos pelos efeitos de poder (Microfísica do
poder, p. 183). Agora, é a materialidade do poder se exercendo sobre os corpos dos
indivíduos que dará alguma coesão à totalidade social. Enquanto disciplinador, o poder é
algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali: é atópico.
Todos os indivíduos são centros de transmissão e recepção, ao mesmo tempo, do poder
(Microfísica do poder, p. 183): “o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (...) O
indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos”.
Então, a sociedade disciplinar instauraria seus mecanismos sicos, a saber: 1-
a produção de corpos dóceis; 2- a estruturação de recursos para o bom adestramento
(vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame); e 3- a organização de um regime
de panoptismo. Vejamos então, rapidamente, como viriam a funcionar estes três grandes
mecanismos da Disciplina, no “Capitalismo industrial”:
1- Corpos dóceis: dócil é aquele corpo que se deixa submeter, utilizar,
transformar e aperfeiçoar. A administração do corpo dócil tem a finalidade de torná-lo
rápido e eficaz para o trabalho, através da aplicação de técnicas e exercícios (Vigiar e
punir, p. 127): “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma
palavra: ela dissocia o poder do corpo”. Enquanto a potência produtiva é aumentada, a
potência política é diminuída: eis a alienação da consciência.
O corpo dócil é analisável e inteligível. É ordenado, pois está sempre buscando
e ostentando uma forma regular, uma harmonia prática, uma ordem. As disciplinas
realizam a sujeição dos corpos-individuais, impondo a relação utilidade-docilidade. Não
importava mais a “linguagem do corpo”, mas sim a sua economia, a sua eficácia produtiva
(Vigiar e punir, p. 126): “As disciplinas se tornaram, no decorrer dos séculos XVII e XVIII,
fórmulas gerais de dominação”. Hábitos deveriam ser automatizados, posturas seriam
corrigidas, gestos se fariam coordenados: uma “anatomia política do detalhe”, uma
Disciplina do minúsculo, sob as formas do treinamento. Exigia-se a previsão e a prescrição
de movimentos – mas tudo sempre tendendo a uma maior produtividade.
Em primeiro lugar, a Disciplina distribui os indivíduos no espaço, através das
técnicas: ela é uma arte de dispor em filas e de transformar os arranjos. A transformação
das multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas, dava-lhes
objetivos a serem alcançados com a máxima urgência e eficiência (Vigiar e punir, p. 134):
Determinando lugares individuais, tornou possível o controle de cada um e o trabalho
simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem”.
Em segundo lugar, a Disciplina visa à dominação das atividades, através de
cinco “submecanismos”: 1- o horário e seus 3 grandes processos: estabelecer cesuras
(cortes), obrigar a ocupações determinadas e regulamentar os ciclos de repetição (colégios,
oficinas, hospitais, exército...) A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as
virtudes fundamentais do tempo disciplinar (Vigiar e punir, p. 137); 2- a elaboração
temporal do ato: O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do
poder (Vigiar e punir, p. 138) aquela problematização dos “ritmos exógenos” a um
corpo, das técnicas para atravessar o tempo do instinto com o tempo da instituição; 3-
donde o corpo e o gesto postos em correlação: não ensinar séries de gestos definidos,
mas também impor a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, como
condição de eficácia e rapidez nenhuma parte do corpo deve ficar ociosa ou inútil; 4- a
articulação corpo-objeto: a Disciplina define suas relações é mais uma característica de
síntese que de retirada; é mais a produção de um laço coercitivo com o aparelho de
produção do que uma extorsão do produto; 5- a utilização exaustiva: princípio da não-
ociosidade; subdividir o tempo ao máximo é a Disciplina organizando uma economia
positiva do tempo. A este propósito, aliás (Vigiar e punir, p. 140):
Importa extrair do tempo sempre mais instantes
disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis. O que
significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo
instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento, fosse
inesgotável”.
O poder fica, por tudo isso, articulado diretamente com o tempo,
racionalizando-o e superutilizando-o (o “infinito para dentro”). As dispersões temporais
são recolhidas e tornadas fonte de lucro. Criou-se, assim, um tempo evolutivo de
aprendizagem e de trabalho. Os exercícios (físicos, materiais) se caracterizam por serem
repetitivos e graduados. O exercício, transformado em uma “tecnologia política do corpo e
da duração”, desenvolve-se rumo a uma sujeição que nunca terminará de se completar. O
beneficiário, é claro, foi o Capitalismo (Vigiar e punir, p. 142):
O desenvolvimento, na época clássica, de uma nova
técnica para a apropriação do tempo das existências singulares;
para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para
realizar uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou
em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que
passa”.
2- Recursos para o bom adestramento: A Disciplina fabril, aperfeiçoando-se,
tornar-se-ia a arte de compor forças, para obter um aparelho eficiente e, portanto,
lucrativo. A Disciplina procedia por três técnicas integradas de poder: 1- a Vigilância
hierárquica: um mecanismo que exercita o jogo do olhar, funcionando como um
observatório do comportamento humano e de suas multiplicidades, cuja finalidade é
produzir “efeitos de poder”, fabricando uma visibilidade total; 2- a Sanção normalizadora:
pela qual todos os detalhes da conduta são penalizáveis, cuja finalidade era reduzir os
desvios, tendo portanto um caráter fundamentalmente corretivo, e cujas punições eram da
ordem do exercício (o aprendizado é intensificado, multiplicado, repetido) – o efeito
corretivo esperado é da ordem da expiação, do arrependimento, da culpa e da má-
consciência; e 3- o Exame: combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que
normaliza, tendo por finalidade produzir o “conhecimento de seus objetos” como
afirmara Francis Bacon (1561-1626): Todo saber é um poder”; levanta-se um campo de
saber para efetuar-se uma relação de poder.
3- Panoptismo: Jeremy Bentham (1748-1832) concebera uma arquitetura do
poder que permitia ao vigilante ver tudo à sua volta, sem que ele mesmo pudesse ser visto.
Ele inventou um “dispositivo de poder” chamado “Panóptico”, o qual dissociava o duplo
ver / ser-visto. O Panóptico de Bentham é a figura arquitetônica da vigilância perfeita
(Vigiar e punir, p. 177): O princípio é conhecido: na periferia, uma construção em anel;
no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do
anel”.
Basta um vigia no alto dessa torre e um vigiado (louco, ladrão, estudante...) em
cada cela embaixo. Foucault diz que o “princípio da masmorra” (trancar, privar de luz e
esconder) é quase totalmente invertido: se conserva a primeira prática (o trancar); ao
invés de privar de luz, iluminar o objeto vigiado; ao invés de esconder, fazê-lo aparecer. É
aqui que o Panóptico consegue seu efeito mais poderoso e perverso: induz no detento um
estado consciente e permanente de visibilidade-vulnerabilidade, o que garante o
funcionamento automático do mecanismo de dominação-submissão: “princípio de
encastramento”.
Enfim: exercendo seu poder material sobre os corpos-individuais, a Disciplina
se constituiria no modelo de exercício de poder típico da Modernidade industrial – mas não
se limitando às fábricas, e sim espalhando-se por todas as instituições sociais (família,
escola, caserna, hospital, manicômio etc). Com o objetivo de aumentar cada vez mais a
produção, e com o menor esforço político possível, o Capitalismo disciplinar necessitou,
como acabamos de ver, produzir corpos docilizados, alienados ponto de contato entre
Marx e Foucault. É que se ressaltam as três formas integradas de alienação, na
“Modernidade turbinada”:
1- a alienação da produção: que se quando o trabalhador não participa de todo o
processo da produção de um objeto e, portanto, o conhece o seu trabalho. Ao
contrário do antigo “trabalhador”, o trabalhador da indústria o domina a totalidade
do objeto produzido. Ele deve dominar apenas uma pequena parte do processo de
produção. Ele é um “especialista em apertar parafusos” (lembre-se do filme Tempos
Modernos, de Chaplin)
31
.
2- a alienação do produto: já que o trabalhador não possui o objeto que ele produz.
Primeiro, ele não produz o objeto todo; depois, ele não tem dinheiro para comprar
aquilo que ajudou a produzir (“casa de ferreiro, espeto de pau”). Os frutos de seu
trabalho não lhe pertencem, mas são de propriedade de seu patrão, o burguês
capitalista. Isso se dá porque o operário vendeu sua força de trabalho.
3- a alienação da consciência: a mais famosa das alienações, por revelar o fundo
ideológico. Dá-se quando o trabalhador não se conta de que é dominado, nem de
como é dominado. É decorrente desta “falta de consciência”. Contudo, segundo Marx,
basta que esse operário tome consciência disso para que ele um primeiro passo em
direção à sua “desalienação”. Neste caso, os sindicatos têm um papel determinante.
31
Para se ter uma clara noção do quão problemática é esta questão, lembramos que ninguém nasce
com “aptidão para apertar parafusos”.
Esse trabalho material e físico operar uma máquina é uma ótima receita,
ainda, para o “controle de natalidade”. Vejamos o exemplo seguinte: o operário se acaba
durante 72 horas por semana em uma fábrica; chega em casa à noite e encontra sua mulher
estendida na cama, com cara de quem “quer safadeza”; ele, morto de cansaço, se irrita
porque sabe que não tem disposição (nem física, nem mental) para aquilo; ele briga com a
mulher, chuta o cachorro, belisca a criança, se deprime e enche a cara de álcool... Essa
relação íntima entre o trabalho físico e suas conseqüências sobre a subjetividade era
pensada por Karl Marx (Marx apud Rima: História do pensamento econômico, p. 227):
O modo de produção na vida material determina o
caráter geral dos processos social, político e espiritual da vida.
Não é a consciência dos homens que determina sua existência
[claramente contra o “argumento do Cogito” cartesiano], mas ao
contrário, é sua existência social que determina sua consciência.
Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças materiais de
produção da sociedade entraram em conflito com as relações de
produção existentes (...) Das formas de desenvolvimento das forças
de produção estas relações se transformaram em seus grilhões (...)
Com a mudança do fundamento econômico transforma-se mais ou
menos rapidamente toda a imensa superestrutura”.
Segundo Marx, o valor-de-uso se realiza com a utilização ou o consumo. Os
valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma
social dela. O valor-de-uso é o veículo material do valor-de-troca. Um objeto material
possui um valor-de-uso, mas inúmeros valores-de-troca – pois valores-de-uso idênticos não
se trocam. Marx afirma (O Capital, Livro I, Vol. 1, p. 44): Como valores-de-uso, as
mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores-de-troca,
podem diferir na quantidade, não contendo portanto nenhum átomo de valor-de-uso
32
.
Então, quanto maior a produtividade do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho
requerido para a produção de uma mercadoria, e quanto menor a quantidade de trabalho
que nela se cristaliza, tanto menor o seu valor.
Para Marx, enquanto o trabalho que cria “valor-de-troca” é “trabalho geral,
abstrato e igual”, o trabalho que cria “valor-de-uso” é “trabalho concreto e especial”, que,
pela forma e pela matéria, decompõe-se em formas de trabalho infinitamente diversas. O
“trabalho abstrato”, diz Carlos Astrada, faz-se fundamento de todas as relações sociais,
pois liga os diversos agentes sociais (Trabalho e alienação, p. 37-38): É apenas enquanto
‘valor-de-troca’ que pode ser considerado independentemente de sua utilidade concreta,
com relação ao trabalho nele colocado”. Ou, no entanto, como dirá Rima (História do
pensamento econômico, p. 229):
A insistência de Marx de que um objeto pode ter
valor-de-troca somente se representar o trabalho incorporado
levou-o a distinguir entre valor e preço. Um objeto como a terra
não cultivada pode fazer jus a um preço, mas não tem qualquer
valor-de-troca porque não qualquer trabalho nela
incorporado”.
Em Marx, “valor é a forma objetiva do trabalho social despendido para
produzir uma mercadoria(O Capital, Livro I, Vol. 2, p. 617). O valor de uma mercadoria
equivale ao tanto de “trabalho socialmente necessário para produzi-la”, que está contido
32
No vocabulário mesmo de Marx revela-se a sua filiação teórica ao atomismo antigo,
especialmente a Epicuro e Lucrécio. Para aprofundamento no conceito antigo de “atomismo”,
remetemos à tese de doutoramento de Karl Marx, intitulada Différence de la philosophie de la
nature chez Démocrite et Épicure. Bordeaux: Éd. Ducros, 1970.
nessa mercadoria. Ricardo havia feito o valor do trabalho depender da quantidade de
trabalho necessária para produzir o seu salário. No entanto, como sabemos, é claro que o
burguês não irá deixar esses valores “empatarem”: se o trabalhador produz o valor do seu
salário em 2 horas diárias, o capitalista lhe exigirá uma jornada de 12 horas haverá 10
horas de trabalho diário não pagas! Mentirosamente, a totalidade desse trabalho aparecerá
como “trabalho pago”. Eis a esdrúxula matemática da mais-valia, tão simples quanto
calhorda.
A mais-valia pode ser criada basicamente de duas maneiras: 1- com a extensão
do dia de trabalho; e 2- com a aceleração da produção. Quanto à extensão da jornada de
trabalho: ao longo da Modernidade, notou-se que os capitalistas algumas vezes
antecipavam, em média, a entrada dos operários na fábrica em 15 minutos, tomavam 15
minutos do primeiro horário de refeição (7,5 no início e 7,5 no fim), mais 15 minutos na
segunda refeição (com a mesma subdivisão) e retardavam a saída dos operários em mais 15
minutos. Com isso, conseguiam um sobretrabalho de 1 hora por dia (obviamente, não
pago)! Quanto à aceleração da produção: o investimento constante em novas máquinas e a
super-utilização de cada instante da jornada de trabalho. É claro que estas duas maneiras de
se arrancar a mais-valia poderiam até mesmo se sobrepôr, se adicionar.
Em todo caso, é apenas quando surge o modo de produção capitalista (típico
da sociedade burguesa) que se poderá falar especificamente de “valor-de-troca” e de
“trabalho abstrato” (por exemplo, no caso da idéia de “tempo socialmente necessário”). O
trabalho “livre” e assalariado torna-se, somente aí, mercadoria. É por isso que
enfatizamos: “trabalho abstrato” serve como medida apenas para se operar o retorno ao
“trabalho concreto, material”, e por explorá-lo ao máximo. O trabalhador da indústria
vende a sua força de trabalho ao seu patrão, em troca de um salário. Esse operário-
proletário vai se acabando, física e mentalmente, no cotidiano da produção. Nessa
Modernidade, a noção de trabalho é carregada de valores burgueses, ou seja, é em alguma
medida positivada – como em Hegel.
Para Hegel, o trabalho é positivado, quase naturalizado: não é castigo, mas
meio de uma dinâmica histórica dialética. Para ele, o trabalho não remeteria a um plano
divino, mas à vida secular, imanente, positiva e temporal. No entanto, a consciência do
senhor, para afirmar a sua independência, faz da consciência do servo por ele subjugado
uma consciência servil e serviçal, dominando-a. Em Hegel, os conflitos estão no mundo
das idéias; em Marx, estão no mundo material (a História da sociedade tem sido, até agora,
a História das lutas de classes).
Para Marx, o trabalhador põe a sua vida, o seu tempo, na produção do objeto
mas este objeto que ele produziu não lhe pertence (como foi dito acima): é ele quem
pertence ao objeto. O objeto adquire uma “existência própria, autônoma”. A vida desse
trabalhador é “doada”, “dedicada” ao objeto que lhe é estranho – a sua própria vida passa
a parecer-lhe “estranha e inimiga” justamente porque o trabalho no qual ele se alienou
não pertence a ele, e sim a outro homem. Eis o “uso humano de seres humanos”, ao qual
costumamos dar os nomes de “desenvolvimento” ou “civilização”. Para Marx, a produção
não somente produz um objeto para o sujeito, mas um sujeito para o objeto (ver Astrada:
Trabalho e alienação, p. 44). Ao contrário de Hegel, Marx irá destacar o lado negativo do
trabalho.
Em todo caso, tanto para Hegel quanto para Marx, a liberdade é um processo
constante de construção de si mesma, cujas realizações são relativas a cada etapa da
marcha dialética. Contudo, em Marx, o Capitalismo está fadado ao fracasso (dada a sua
natureza transitória), por produzir, “como antítese”, a luta de classes que levará àditadura
do proletariado”, e desta para o “Estado sem classes” (a “síntese final”) concepção que
não parece nem perto de se realizar, infelizmente.
Além disso tudo, é preciso lembrarmos da importância dos estoques, nesse
Capitalismo moderno. O capitalista precisa ter um determinado estoque (físico) de
matérias-primas, a fim de alimentar o seu processo de produção em escala previamente
estabelecida, durante períodos mais ou menos longos, sem depender dos humores do
mercado. Depois de produzidos, os produtos prontos precisavam aguardar seu pedido, e o
aguardavam num galpão (estoque físico). O burguês, portanto, para montar e ter a sua
fábrica, precisava: 1- comprar ou alugar um terreno relativamente grande (“capital
constante”); 2- construir o prédio ou galpão onde o trabalho se fará (“capital constante”);
3- comprar e instalar toda a maquinaria pesada (“capital constante”); 4- selecionar, treinar
(adestrar) e contratar os operários (“capital variável”); 5- gerir seus empregados no
cotidiano da produção (“capital variável”). A tensão parece estabelecer-se entre o “trabalho
vivo” (dos homens) e o “trabalho morto (das máquinas) e, como vimos, o segundo
domina o primeiro.
Tudo isso, como se vê, remete-nos à noção de um trabalho material”, no
contexto de um Capitalismo clássico (cada vez mais turbinado): é o homem agindo sobre a
Natureza para modificar-lhe as formas materiais. Esse tipo de trabalho requer,
incansavelmente, um imenso dispêndio de força e de resistência física, um enorme
investimento de músculos, de braços, mãos, pés etc. O limite imanente da exploração
capitalista esbarrava nas limitações materiais humanas. É como Marx diz (O Capital, Livro
I, Vol. 1, p. 53): Produtividade é sempre produtividade de trabalho concreto, útil, e
apenas define o grau de eficácia da atividade produtiva, adequada a certo fim, em dado
espaço de tempo”. Ou então (O Capital, Livro I, Vol. 1, p. 54):
Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força
humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de
trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor [-de-troca] das
mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força
humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim,
e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores-de-
uso”.
Não “dualismo de mundos”, em Marx. O plano da realidade é um só, e é
constituído pela seguinte cadeia interminável: “M-D-M-D-...”, onde M é Mercadoria e D é
Dinheiro (ver O Capital, Livro I, Vol. 1, p. 118). Toda a diferença de posição social se
quanto ao modo de se entrar nesta cadeia (ciclo). O proletário entra oferecendo a sua
Mercadoria (M), que é a única coisa que ele possui: a sua força de trabalho. Vendendo a
sua Mercadoria, ele a estatrocando por Dinheiro (salário), o qual será trocado por mais
Mercadoria (alimentação e saúde), a ser trocada por mais Dinheiro e daí por diante. O
capitalista entra oferecendo o seu Dinheiro (D), que ele havia acumulado: o seu capital
inicial. Comprando (com salário) a Mercadoria (força de trabalho) do proletário, ele a
estará transformando em mais Dinheiro, que será reinvestido na sua fábrica, a exigir mais
trabalho da Mercadoria – e daí por diante.
Estamos falando de um contexto que culminaria com o modelo de produção
fordista, ou seja: linha de montagem e produção loucamente acelerada e em massa. O
capitalista produzia em larga escala e, depois, tinha que dar um jeito para vender
igualmente em larga escala (o nome desse jeito” é Marketing e Publicidade). Algum
tempo depois, este modelo entraria numa espécie de decadência, em favor do modelo
toyotista (para nos atermos ao exemplo das fábricas de automóveis): produção sob
demanda e estoque mínimo – esquema possibilitado pela crescente informatização da
produção industrial, aliada às novas técnicas de logística (remodelando aquele “jeito”)
33
.
Por aí se pode ver que os “desejos do consumidor” são provavelmente um reflexo das
exigências do modo de produção.
Por muito tempo acreditou-se que a tecnologia e a automa(tiza)ção da
produção libertariam o homem liberando-o da produção e autorizando-o ao lazer. David
Ricardo, dentre outros, fez a crítica a isso. Na verdade, o que se viu foi uma avalanche de
desempregados de carne e osso, e nervos. Isso nos mostra, em alguma medida, que a
liberdade do homem sempre esteve inelutavelmente condicionada à realidade histórica das
épocas, às relações imanentes de poder.
33
Toyotismo é uma forma de organização da produção criada pelo engenheiro Ohno, da Toyota, e
que surgiu no Japão pós-45. Algumas características do toyotismo, que o diferenciam do modelo
fordista-taylorista: produção vinculada à demanda; trabalho em equipe; multivariedade de funções;
flexibilidade produtiva; sistema de senhas de comando para reposição de peças ou de estoque;
estoques mínimos; estrutura horizontalizada; organiza Círculos de Controle de Qualidade (CCQ’s);
empregos vitalícios para parte de seus trabalhadores; participação nos lucros; redução do número
de trabalhadores.
2.3- Do Capitalismo ao Semiocapitalismo: Trabalho Imaterial Contemporâneo
Novos métodos de trabalho são inseparáveis
de um modo específico de viver, pensar e sentir.
(Antonio Gramsci)
No mundo contemporâneo, o trabalho ganha novas feições. Com a revolução
tecnológica da informática, atrelada à crescente potenciação dos meios de comunicação,
vê-se a substituição do antigo trabalho material e físico(da agricultura e artesanato; das
fábricas e indústrias) pelo novo “trabalho imaterial e intelectual” (das “empresas
gaseificadas”). Este movimento refere-se à passagem do mundo da Soberania e da
Disciplina (setores primário e secundário do Capitalismo: produção e reprodução de
produtos) para o mundo do Controle (setor terciário: circulação e comercialização de
serviços)
34
.
Em primeiro lugar, a novidade dessa atual forma de organização do trabalho
seria a introdução fundamental dos processos avançados de informatização na produção
fabril. A robótica e a cibernética realizaram, nas últimas décadas, uma violenta revolução
nas cnicas produtivas, passando a substituir enormes contingentes de trabalhadores por
“braços mecatrônicos”. A onda de desemprego advinda daí solapou milhares de pessoas
(“de carne-e-osso, e nervos”).
34
Para alguns autores, não se trata tanto da “passagem” do setor secundário para o setor terciário, e
sim de uma “maior integração” entre fábrica e empresa. Ver, por exemplo, Os sentidos do trabalho,
de Ricardo Antunes.
Utilizando-se de sucessivos incrementos tecnológicos para acelerar e aumentar
sua produtividade, o capital também inventou e se aproveitou de crises, pobreza e
desemprego crescentes, destruições incessantes do meio-ambiente, novas formas de
exploração da mão-de-obra etc. Aquela promessa histórica de que os proletários passariam
a ter “tempo livre para o ócio” mostrou-se no mínimo inocente, e no máximo cínica.
A maior integração entre empresa e fábrica revela a importância do trabalho
informacional (ver Cocco, Galvão e Silva, no livro Capitalismo cognitivo, p. 08): “À
medida que a indústria se torna cada vez mais terciária, os serviços se tornam cada vez
mais industriais a passagem do fordismo para o toyotismo se mostra, então,
paradigmática. O modelo fordista aquele típico de uma sociedade Disciplinar
(normalizadora) é aquele em que a produção fabril se faz em larga escala e a priori. Isto
significa que, após produzir-se uma quantidade imensa de produtos, eis que surgia um
problema: como fazer escoar isso? Era preciso buscar saídas as mais criativas para vender
ao consumidor final aquilo tudo. É neste contexto que se desenvolveram as técnicas de
Marketing e de Publicidade e Propaganda.
Diferentemente, o modelo toyotista, ou pós-fordista, procederá pela forma da
“produção sob demanda”, ou seja, a posteriori. Isto significa que somente se ativa a
produção de um determinado bem de consumo depois da sua venda ter sido efetivada na
loja ou empresa e de, no mínimo, ter sido efetuado o pagamento inicial (a “entrada”).
A loja é, então, a “interface” entre fábrica e consumidor
35
. Fica aqui explícita a
importância do sistema de informação entre a empresa e a fábrica. Neste sentido, a
35
Preferimos chamá-la de “atravessadora”, para evidenciar o seu caráter de “cafetinagem”.
Sabemos que o que se realmente é “repasse”, mas com lucro na intermediação da transação.
“Loja” é o nome que se quando essa instância paga impostos. Se não os paga, chamamos de
“avião”.
perspectiva de “parceria”, mais do que de substituição”, entre essas duas instâncias tal
como quer Ricardo Antunes – é bastante evidente.
A introdução da tecnologia computadorizada, no entanto, não garantiu, até
hoje, de fato, uma maior qualificação do trabalho. O que se tem visto é a simples
intensificação da acumulação selvagem. O aumento da capacidade efetiva de controle
sobre a produção é também uma evidência dessas mudanças
36
. Surge, também a partir daí,
a preocupação (hoje neurótica) com a “qualidade total”. Para se atingi-la, permite-se até
mesmo a “reengenharia” das funções de trabalho e das empresas leia-se: demissões em
massa. A empresa e a fábrica devem ser “enxutas”, produzir o máximo com o mínimo.
Hoje em dia, o melhor trabalhador, do ponto-de-vista de qualquer empresa, é o
famoso “3 B’s”: “bom, bonito e barato” ele trabalha feito uma máquina, faz muito bem
feito e custa quase nada. Ele tem o animus laborans de um jumento, a empolgação
alienada de um “funcionário do mês” e faz as exigências trabalhistas que um relógio faz.
Fisicamente é um homem (Analogia), mas metafisicamente, uma formiga (Univocidade).
É preciso relevar aqui, ainda, a “necessidade imperiosa” de se reduzir o tempo
de vida útil dos produtos, na intenção de aumentar a sua circulação e de trazer o próximo
lucro mais cedo. Hoje, quanto mais “qualidade total”, menor deve ser o seu tempo de
duração útil – paradoxo com o qual lidamos todos os dias, mas que, mesmo assim, nem nos
incomoda, nem nos faz pensar: será que estamos apáticos? Ricardo Antunes dirá (Os
sentidos do trabalho, p. 51): Um sistema de softwares torna-se obsoleto e desatualizado
36
Segundo Ricardo Antunes, há basicamente dois enfoques críticos: o primeiro percebe uma
“descontinuidade” entre o antigo e o novo modo de produção; o segundo uma “continuidade”,
mesmo na aparência de mudança constante. Antunes se posiciona nesta segunda opinião.
em tempo bastante reduzido, levando o consumidor à sua substituição, pois os novos
sistemas não são compatíveis com os anteriores”.
Com a ajuda da informatização da produção, o tempo de vida útil dos produtos
foi reduzido violentamente. O supérfluo é sempre de reposição pida: super-fluidez.
Desperdício e destrutividade são valores em alta, neste Capitalismo insano que produz
nossa subjetividade (ela também, provavelmente, insana). E isso não carrega em si a beleza
do trágico – e sim a melancolia e a depressão do puramente, do tolamente dramático.
Krishan Kumar dirá (em Da sociedade pós-industrial à pós-moderna, p. 49): A
descentralização e a diversificação figuram com destaque em todas as descrições da nova
era”. A partir dos anos 1970 é que se começou a sentir os sinais de crise do capital.
Segundo Ricardo Antunes (Os sentidos do trabalho, p. 29-30), eis alguns dos sinais
notados:
1- a queda da taxa de lucro, que teve como um dos motivos o aumento do preço da força
de trabalho – uma conquista recente das lutas sociais dos anos 60;
2- o esgotamento do modelo de produção fordista-taylorista, dada a sua pouca capacidade
de lidar com fenômenos de retração do consumo e de recessão;
3- o “inchaço” e a relativa autonomia do sistema financeiro, revelando sua supremacia no
gerar e gerir do capital mundial essa liberalização do capital financeiro se refletiria
diretamente no processo acelerado e controlado de Globalização;
4- a crise do “Estado de bem-estar social” (Welfare state), trazendo crise fiscal e,
conseqüentemente, transferência de poder para o capital privado;
5- a aceleração das privatizações – para nós, sempre abusivas.
A chamada “economia real” (da agricultura e das indústrias) tinha dificuldades
enormes para chegar a taxas de lucro adequadas às novas realidades. no fim da cada
de 1970, vê-se o claro crescimento acelerado do capital financeiro (“economia irreal”?). A
reorganização do capital teve contornos não só econômicos, mas também políticos, sociais
e culturais. O neoliberalismo da Era Thatcher-Reagan, trazendo a privatização progressiva
dos Estados-Nação, a desregulamentação (sociopata) dos direitos trabalhistas, a
desmontagem do setor produtivo estatal. No entanto, hoje tudo isso parece ter-se dado
numa nuvem escura (espúria?) de consenso mundial. Os trabalhadores passam a ser, e se
sentir como, “mortos-vivos”
37
...
Segundo Kumar (no livro Da sociedade pós-industrial à pós-moderna), as
principais características do pós-fordismo, na sua diferença com o fordismo, seriam:
1- Na economia: o surgimento de um mercado global, com empresas globais, e o declínio
das empresas nacionais e/ou familiares e a decadência dos Estados-Nação; a dispersão
e a descentralização da produção; as hierarquias mais niveladas; a ênfase na
comunicação, e não no comando; a terceirização e as franquias; o marketing interno; a
extinção de muitas funções; o aumento do trabalho em casa.
2- Em relações políticas e industriais: a fragmentação das classes sociais; o surgimento de
novas “redes” sociais, baseadas em afetos comuns; os movimentos periféricos, sub- e
supranacionais; o declínio dos sindicatos; as negociações localizadas, fragmentadas,
individualizadas; o esfacelamento dos direitos trabalhistas e da previdência social; o
aumento da oferta de serviços privados.
37
É preciso que se leia o texto chamado Os mortos-vivos da globalização, de Phillippe Paraire,
que se encontra na obra organizada por Gilles Perrault, O livro negro do Capitalismo
.
3- Em cultura e ideologia: ascensão do individualismo; a cultura da livre iniciativa; a
modulação atravessando tudo: ensino, trabalho, saúde, lazer; fragmentação e
pluralismo em valores e estilos de vida; enfoques populistas da cultura; publicização da
vida privada (nas mídias de Massa e, mais tarde, nas em Rede).
No fundo de todo esse novo processo, o que se percebe é a crise experimentada
pelo capital, bem como, é claro, suas respostas sob as formas da reestruturação produtiva
(a “Era da acumulação flexível”) e do neoliberalismo thatcherista-reaganista (a “Era da
dominação malemolente”). No período dos governos Margareth Thatcher (na Inglaterra) e
Ronald Reagan (nos EUA), viu-se a rápida expansão do setor (imaterial) de serviços
privados e a consolidação econômico-financeira de uma Nova Ordem Mundial. Do
“coletivismo” para o “individualismo”: eis o movimento da Inglaterra nesse período. A
desburocratização gerencial revela essa “ansiedade de todos”: individualismo crescente e
aceleração das transações comerciais.
Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o sindicalismo inglês tido
como exemplo de força e estabilidade – teve um ganho político enorme, no que se refere às
lutas trabalhistas. Mas em seguida veio gradualmente perdendo terreno (perdendo o chão,
inclusive o “chão da fábrica”). O mundo ficava, desde então, menos “industrializante” e
mais “serviçal”; menos orientado para a produção e mais beneficiário de uma
“sobreprodução”; menos “econômico” (material) e mais “financeiro” (imaterial); menos
“rígido” e mais “flexibilizado”. O próprio processo de flexibilização da produção e de
crescimento dos serviços cuidava do enfraquecimento dos sindicatos, que se pôde notar
desde o início da década de 1980
38
. Como registra Ricardo Antunes (Os sentidos do
trabalho, p. 68):
O thatcherismo reduziu fortemente a ação sindical, ao
mesmo tempo em que criou as condições para a introdução das
novas técnicas produtivas, fundadas na individualização das
relações entre capital e trabalho e no boicote sistemático à ação
dos sindicatos”.
O ritmo das demissões na indústria soa como música aos ouvidos labirínticos
do setor de serviços. Semelhante ao que ocorreu na época da chamada acumulação
primitiva de capital”, que foi a condição de possibilidade para a implementação do regime
propriamente Capitalista, haveria um êxodo no caso, pós-moderno de trabalhadores
“expulsos” das indústrias (agora hipertecnologizadas), rumo ao setor de comércio e
serviços, em busca de sobrevivência. Esta seria uma Revolução Tecnológico-
Informacional, que, acompanhando as profundas mudanças econômicas e políticas, tanto
atingiria a indústria tradicional quanto possibilitaria a expansão da empresa de comércio e
serviços.
Respectivamente, tanto a precarização do trabalho quanto a apatia política se
mostram os efeitos mais aterradores. A idéia de “consenso” é, hoje, no nosso entender, a
mais perigosa ameaça à Democracia real, pois a instância Política democrática nunca
dependeu de consenso e sim de dissenso argumentativo; de divergência de propostas; de
diferenças internas. É dedicarmo-nos um pouco ao surgimento da Política na Grécia
38
Exemplo: como forjar uma greve, hoje, entre os trabalhadores de lojas de shopping centers?
Esses novos trabalhadores nem mesmo querem isso; nem mesmo vêem a necessidade de uma
greve...
Antiga (ver, por exemplo, J.-P. Vernant, em As origens do pensamento grego)
39
. Quanto à
precarização do trabalho, Ricardo Antunes enumera alguns dados recentes que nos
espantam (Os sentidos do trabalho, p. 16):
Dentre as medidas propostas para o enfrentamento da
crise japonesa encontram-se ainda aquela formulada pelo seu
capital, que pretende ampliar tanto a jornada diária de trabalho de
8 para 9 horas quanto a jornada semanal de 48 para 52 horas.
(Conforme informações que constam no Japan Press Weekly, fev.
de 1998) Podemos mencionar também o exemplo da Indonésia,
onde mulheres trabalhadoras da multinacional Nike ganhavam 38
dólares por mês, realizando uma longa jornada de trabalho. Em
Bangladesh, as empresas Wal-Mart, K-Mart e Sears utilizaram-se
do trabalho feminino na confecção de roupas, com jornada de
trabalho de cerca de 60 horas por semana e salários inferiores a
30 dólares por mês. O que dizer de uma forma de sociabilidade
que, conforme dados recentes da OIT para o ano de 1999,
desemprega ou precariza mais de 1 bilhão de pessoas, algo em
torno de um terço da força humana mundial que trabalha?”.
E quanto à apatia política, não é difícil notar: se entendermos por apatia
política” a falta de interesse, por parte da coletividade, pelos assuntos coletivos (e a
conseqüente “insignificância da política”
40
); a vontade de “pagar para não se aborrecer” (a
39
É por isso que a “teoria do agir comunicativo”, de Jürgen Habermas, não nos interessa hoje.
Habermas pretenderia teorizar em favor de um “entendimento” (consenso) social, a partir da
capacidade humana de se comunicar! Talvez ele estivesse confundindo “potência” (de se
comunicar) com “essência” (o Homem, por definição, como “ser comunicante”). Como nos
ensinaram Spinoza e Negri, na medida em que os homens estão sujeitos às paixões, não podemos
dizer que eles concordem por natureza.
40
Argumento trabalhado por Zygmunt Bauman, no livro Em busca da política.
“nova burguesia” é teleparticipativa e especular
41
); a inclinação, de origem social, para o
consumismo hedonista e irrefletido (e todos os seus problemas, no tocante à falta de um
real desejo
42
); a antipatia irracional por ideais socialistas (e a apologia idiotizada-
autocentrada das práticas capitalistas
43
); o profundo “economicismo” que penetrou nossa
linguagem cotidiana (trazendo um “apodrecimento da fala”, por mais que esta afirme ser
libertária
44
).
Isso tudo está revelando, em verdade, a violência velada das novas técnicas de
gestão da força de trabalho: vão surgindo os trabalhos temporários, as equipes provisórias,
as células de produção, os times de trabalhadores, os grupos semi-autônomos. A finalidade
será, evidentemente, a intensificação das condições de exploração capitalista, bem como a
“nova docilização” do trabalho, agora imaterial que tem tomado a forma do
espalhamento-espelhamento do discurso empresarial. -se por toda parte o discurso da
empresa, mesmo na boca daqueles que por ela são explorados.
A nova ética do trabalho está assentada sobre a organização em “equipes”. A
metáfora, claro está, vem do esporte: competições entre diferentes equipes da mesma
empresa; gincanas reproduzidas da TV; metas a serem atingidas; cotas a serem batidas;
clima lúdico. A busca desesperada pelo sucesso, por sua vez, migra da TV para a empresa,
41
Para um estudo de fundamentação deste argumento, remetemos ao belo livro A sociedade do
espetáculo, de Guy Debord.
42
Lindamente trabalhado por Jean Baudrillard, em seu texto Significação da Publicidade.
43
Remetemos ao nosso livro, O pensamento atacado: comunicação, política e produção de apatia,
fruto de nossa dissertação de Mestrado.
44
Ver a entrevista que G. Deleuze concedeu a A. Negri, intitulada Controle e devir, publicada em
Conversações
.
e depois retorna à TV
45
. Chegam a ser situações ridículas, infantilóides, essas vividas nas
empresas. Mais à frente, veremos a função Semiocapitalista de infantilização do adulto.
E o pior de tudo: não mais o antigo “patrão”, ou “chefe”. Temos agora o
“líder de equipe” que nunca está do “outro lado”; a quem nunca sentimos a necessidade
de nos contrapor, dialeticamente. O “líder” – leia-se führer” – é aquele que “está do nosso
lado”. O inimigo comum agora é a concorrência. Quando a equipe vence, seu líder assume
a vitória; quando perde, ele não se responsabiliza (pois terá sido a equipe que trabalhou
mal). É um poder sem responsável (irresponsável?).
Do ponto de vista estritamente ético, isso está revelando uma espécie de
“alergia” às responsabilidades, na Contemporaneidade. Richard Sennett deu o nome a isso
de “corrosão do caráter”: não haveria mais, no âmbito da empresa, o companheirismo, o
coleguismo, o comprometimento mútuo e desinteressado. Segundo Sennett, ao que
pensamos, tudo se resumiria numa “perda da inocência original”, na instância do trabalho.
Alguns dos fatores disso: a globalização da subjetividade; a flexibilização do trabalho; a
crise do tempo linear; a desimportância da caderneta-de-poupança; a impossibilidade de se
fazer planos a longo prazo; a incerteza generalizada; a sensação de deriva (ver seu livro A
corrosão do caráter).
Segundo Sennett, esses fatores contribuem para a “profunda decadência ética”
na Contemporaneidade. Haveria, ainda, a impossibilidade de organizarmos a história de
nossas vidas em uma narrativa coesa, coerente dada a “profunda superficialidade
degradante” das relações hodiernas e a fragmentação da história do mundo. A
45
A explicação deste mecanismo é simples, e quem a fornece é Guy Debord (A sociedade do
Espetáculo, p. 20, aforisma 24): o Espetáculo faz um discurso laudatório, se remete a si mesmo;
o Espetáculo refere-se à época da “gestão totalitária das condições de existência”.
possibilidade de se organizar a história de nossas vidas sempre dependeu da possibilidade
concreta de planejar-se para o futuro, de acordo com os fatos passados e presentes. Antes,
o mundo fazia sentido, então a história de uma vida também fazia sentido. Hoje, nem o
mundo, nem “eu mesmo” fazemos sentido. A impressão generalizada é a de non-sense.
Isso é fruto de uma organização global do esquecimento. É preciso entender que tempo
passado pariu este tempo presente (como formulou liricamente Eduardo Galeano).
Hannah Arendt dizia que ao se pressionar os homens uns contra os outros,
destrói-se-lhes a capacidade de se diferenciarem entre si – e que esta é a receita do
Totalitarismo (só que mascarado de “Democracia”). Depois disso, nota-se que os homens
passam estranhamente a se sentir culpados por algo que não puderam fazer, ou por algo
que não puderam deixar de fazer.
Para Richard Sennett, o trabalho tradicional era sério, rígido, demarcado (cada
um sabia exatamente qual era sua especialização), autodisciplinador, estável, seguro, de
longo prazo, com carteira assinada. Nele, provava-se o valor de alguém de acordo com o
seu esforço laborativo e com sua capacidade de adiar a sua satisfação (poupança). Ao
contrário, o trabalho atual seria brincalhão, flexível, híbrido (cada um deve ser apto a
realizar muitas tarefas de naturezas diferentes), lúdico, instável, inseguro, de curto prazo,
sem carteira assinada. Neste, provar-se-ia o valor de alguém pela sua capacidade de “vestir
e suar a camisa”, de “dar o sangue” pela empresa
46
.
Segundo Sennett, quem lucra com isso é o Capitalismo (A corrosão do caráter,
p. 126): O homem motivado é demasiado oprimido pela importância que tem de atribuir
ao trabalho”. Sennett tem uma intuição muito boa: ele afirma que, hoje, o ato de
46
Antonio Negri disse que “o novo trabalhador deve empenhar a sua alma”.
comunicar é mais importante do que os fatos comunicados. Aí, podemos ver efetivar-se
a fórmula de McLuhan:o meio é a mensagem”. Vejamos o que Antonella Corsani diz (In:
Capitalismo cognitivo, p.25):
...cada vez mais o que se consome são serviços,
tecnologias informáticas e comunicacionais e os conteúdos
informacionais, culturais, artísticos intimamente associados à
ferramenta, cuja especificidade repousa justamente na
indissociabilidade dos conteúdos que ela veicula”.
No plano do discurso empresarial, surgem o envolvimento participativo, os
trabalhos polivalentes, multifuncionais, integrados e horizontalizados. Essas novas formas
de dominação, entretanto, deixam escapar novos modos de resistência (pela criatividade de
quem é mais vitimado pelo poder). Como afirma Giuseppe Cocco (In: Trabalho imaterial,
p. 17):
Os modos e os termos desta recomposição subjetiva
não se qualificam em função de nenhum papel histórico, de
nenhum finalismo político, mas como processos de subjetivação
coletiva correlatos, ainda que negativamente, às bases materiais
da composição técnica”.
Neste novo trabalho, as potências recaem sobre a capacidade de escolher entre
as diversas alternativas e, portanto, sobre a responsabilidade de certas decisões (por parte
dos trabalhadores imateriais”, que fique claro). Tudo se passa no nível da interface entre
as diferentes funções, entre as diferentes equipes. É a personalidade, a subjetividade deste
trabalhador, que deve ser organizada e comandada em direção ao lucro. A qualidade e a
quantidade de trabalho são reorganizadas em função da sua nova imaterialidade
(circulação acelerada de signos atrelados ao afeto do consumo feroz).
A idéia de “sociedade da informação” revela a importância dada hoje à
produção e distribuição de conhecimento teórico. As Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação (NTIC) atravessam atualmente praticamente todas as atividades laborativas
humanas. Como nos diz Krishan Kumar (Da sociedade pós-industrial à pós-moderna, p.
15): A nova sociedade é hoje definida, e rotulada, por seus novos métodos de acessar,
processar e distribuir informação”. E este autor vai mais fundo em sua análise crítica (Da
sociedade pós-industrial à pós-moderna, p. 15):
O conceito de sociedade de informação ajusta-se bem
à tradição liberal, progressivista do pensamento ocidental.
Mantém a do Iluminismo na racionalidade e no progresso. (...)
Na medida em que o conhecimento e seu acúmulo são equiparados
à maior eficiência e maior liberdade, essa opinião, a despeito de
seus pronunciamentos favoráveis a uma mudança radical na
organização social, prosseguimento à linha de pensamento
iniciada por Saint-Simon, Comte e os positivistas”.
Contudo, pensamos que esta crítica acima não deveria dirigir-se somente aos
teóricos da “sociedade da informação” (e somente aos seus apologetas), mas, talvez mais
forte e especificamente, dever-se-ia dirigir à própria realidade disso que aqui denominamos
“Semiocapitalismo” (ou Capitalismo semiótico). Pensamos assim, porque vemos muitas
das teorias contemporâneas como meros “discursos de acompanhamento” disso que o autor
critica, e que se verifica mais na própria estrutura do real do que na simples
“imaterialidade-alacridade” das palavras. De fato, a informação é hoje fonte de capital e
a Comunicação é Capitalista. Mas isso não invalida, de modo nenhum (aliás, muito pelo
contrário), as observações de Krishan Kumar.
A sociedade da informação parece ter surgido no período da Segunda Guerra
Mundial (entre 1939-1945), consolidando-se na base mesma da sociedade no período
imediatamente posterior a ela. O computador terá, ao longo de décadas de pesquisa, seus
circuitos miniaturizados, ao ponto de chegar-se ao PC (Personal Computer). Enquanto
isso, cada vez mais as multinacionais dependerão do computador e de seus recursos ágeis
(flexíveis).
A economia de hoje é toda baseada na produção, reprodução e circulação de
informações. Na verdade, a empresa não produz qualquer objeto concreto”. O que ela
produz são signos: conceitos, idéias, afetos, serviços, fidelidades, marcas, notícias, etc.
Essa produção do trabalho imaterial requer, por seu turno, novas práticas de dominação e
de resistência; novas potências e impotências de existir.
A nova empresa se volta mais para a comercialização e a financeirização do
que propriamente para a produção industrial. Praticamente todos os donos de indústrias
investem em bolsas-de-valores. Deleuze dizia que a empresa do Controle virou “um gás”:
ela pode estar por toda parte (a onipresença das franquias). A empresa pode estar toda
dentro de um disquete, de um CD-ROM, ou de um site. Ao se desfazer sua base material
(escritório, computador), ela pode se recompor em pouco tempo o que confere a este
Semiocapitalismo a sua característica “gasosa” (ou melhor, como preferimos dizer,
imaterial).
Dizem Maurizio Lazzarato e Antonio Negri (Trabalho imaterial, p. 44): Para
a maioria das empresas, a sobrevivência passa pela pesquisa permanente de novas
aberturas comerciais que levam à definição de gamas de produtos sempre mais amplos ou
diferenciados”. Agora, o consumidor interfere, de maneira ativa, na constituição do
produto eis o processo de “customização”. Os serviços são como os produtos, que
imateriais. O Capitalismo semiótico chegou mais perto do consumidor-final... e o está
capturando e incorporando.
O trabalho imaterial essempre refazendo as condições da Comunicação e,
portanto, do trabalho e do consumo. A gestão da informação e a capacidade de decisão
requerem o investimento da (e na) subjetividade. Parece haver uma “revalorização do
valor-de-uso” da subjetividade do trabalhador. Uma revitalização do savoir-faire e da
criatividade (enquanto potências libertárias), mas também a criação de novos dispositivos
de dominação (o trabalho que, ao se confundir com o lazer, faz o homem trabalhar muito
mais: ver o caso extremo dos workaholics). Esta nova “produção” é acentrada e rizomática.
Entretanto, é o livre desenvolvimento das individualidades que, somadas em uma
coletividade, desempenharão com sucesso uma determinada tarefa. Este trabalho imaterial
não reproduz uma sociedade “modelar” (como na Disciplina), mas reproduz as
subjetividades dos trabalhadores, numa sociedade “modular” (de Controle).
Hoje em dia, o empreendedor deve se ocupar mais em reunir os elementos
necessários à exploração da empresa do que as condições produtivas do processo de
trabalho. O Capitalismo não ganha mais com a “expropriação do saber”, mas com o
investimento na potência produtiva que ele concentra. O trabalho imaterial implica em
modalidades de subjetivação que lhe são inerentes. Se na época clássica o intelectual era
considerado “alheio” aos processos de trabalho, hoje ele se encontra completamente no
interior do processo de produção do trabalho. Algumas novidades deste trabalho imaterial
crescente:
100
a) a fragmentação da força de trabalho: estertor dos sindicatos;
b) o computador como “a máquina que simula todas as máquinas”: imaterialidade
semiótica;
c) a flexibilização das formas de trabalho: a “empregabilidade” lugar à
“adaptabilidade”;
d) o desaparecimento dos “empregos” e o surgimento dos “trabalhos temporários”: fim
da carteira de trabalho, das férias, do 13º, do aviso prévio, da multa por demissão sem
justa causa, do fundo de garantia etc, bem como o surgimento das “equipes provisórias
de trabalho”;
e) a necessidade de “formação permanente” e de “cursos de reciclagem”: o empresário-
estudante e o estudante-empresário, que indiferenciam a escola da empresa o que abre
alas para a formação técnica, sem pensamento crítico, e voltada para os interesses do
Mercado – entregando a escola (e seus currículos) às empresas; e
f) os novos estoques, que são “estoques de informação” (bancos de dados diversos e
Internet): a logística do material dá lugar à logística do imaterial.
As novas exigências supõem novas motivações para este novo trabalho. A vida
tornou-se mais dinâmica, fluida ou gaseificada e a Coca-Cola é o refrigerante exemplar
do Controle, via mídia. O Mercado, ao se fazer Totalitário, espalhando-se por todas as
instâncias da vida, começa a se confundir com a própria vida. Exemplo concreto: a figura
do “cidadão” dá lugar à figura do “consumidor”. William Burroughs afirmava que todos os
potenciais humanos se espraiam por um imenso e silencioso Mercado. Diz, então, Luis
Carlos Fridman (Vertigens pós-modernas, p. 56):
101
No mundo da especialização flexível, as carreiras não
são mais o leito por onde flui a experiência de trabalho de toda
uma vida. Tudo pode acabar de uma hora para outra, quando
acontece a reengenharia das atividades, das funções e alocações
de recursos. A nova organização da produção derivada das
inovações tecnológicas permite uma descentralização das tarefas e
pressiona os trabalhadores a se adaptarem a novas habilidades e
iniciativas. A vivência do tempo é profundamente alterada: não
mais longo prazo”.
Ou segundo Krishan Kumar (Da sociedade pós-industrial à pós-moderna, p.
55): A especialização flexível depende da nova tecnologia da informação”. É a tecnologia
flexível que origem à especialização flexível. Em poucos minutos, novas idéias podem
transformar-se em novos produtos ou serviços. Aí, a produção é feita “ao gosto do
freguês” (seria o fim do “à moda da casa”?). Segundo Kumar, a especialização flexível
beneficiaria principalmente as pequenas empresas, pois contrabalançaria a vantagem
competitiva das economias de escala, típicas das grandes empresas, mas com a condição de
que as pequenas empresas ultra-especializadas se adeqüem às exigências de terceirização
das grandes empresas que as contratam.
No entanto, é claro que uma grande empresa também pode buscar a
especialização flexível. Aliás, nesta nova realidade macroeconômica (global) as empresas
grandes e as pequenas não se consideram rivais ou isoladas, mas sócias. Nas lojas da
Benetton, caixas-registradoras eletrônicas são projetadas e instaladas em rede, o que
imediatiza a transmissão de dados on-line sobre as vendas o tipo de artigo, a cor, o
tamanho etc. Esses dados, recebidos por sua matriz, formam o banco-de-dados que servirá
para as próximas (muito próximas) decisões sobre design e produção. Assim, a Benetton
102
reduziu o tempo de resposta a mudanças do mercado para apenas dez dias (ver Da
sociedade pós-industrial à pós-moderna, p. 57).
Semelhante foi a experiência da IBM: sua estratégia para a década de 1980, a
Era do microcomputador, foi a de, ao invés de fornecer um sistema auto-suficiente (e
rígido), projetar seu microcomputador de modo que todos os demais produtores pudessem
nele instalar seus hardwares e softwares. Isso é especialização flexível. Segundo a maioria
dos teóricos, ela é o âmago do pós-fordismo, pois combinaria a alta capacidade tecnológica
com a idéia de “revolução social”
47
.
É claro que o modo de produção fordista não desapareceu de vez. Contudo, o
atual Capitalismo semiótico de base imaterial se faz hoje a alavanca principal do novo
modo de produção, justamente por ser mais ágil, mais dinâmico, mais flexível, mais
desterritorializado. o podemos nos esquecer de que todas essas transformações referem-
se, ainda, a um Capitalismo. Pensamos, talvez ao contrário de muitos teóricos otimistas,
que estamos experimentando uma fase de intensificação da exploração capitalista. Nunca
se trabalhou tanto, para se receber tão pouco (“Te troco, minha vida, por um troco
qualquer”, cantava Lulu Santos). O pior disso é que o trabalho se imaterializou, o que
dificulta a visualização ou explicitação da “dominação malemolente e simpática”. Por
outro lado, o fato de o trabalho ter se imaterializado está possibilitando a formulação de
novos espaços de liberdade (como veremos mais adiante).
Dentre as muitas vantagens reais trazidas pelo computador está o fato de que
ele, posto a serviço da especialização flexível do trabalho, restabelece o controle humano
47
Conforme pensamos, esta dita “revolução” não passaria de uma “reforma social”. Isto porque,
ao que parece, uma das principais novidades é o embotamento do sentido de revolução, visível na
desesperança e sensação de deriva da nova classe trabalhadora. Chamamos isso de “nova
docilização”, como uma referência aos estudos de Foucault sobre a Disciplina.
103
sobre o processo de produção(Piore e Sabel apud Kumar: Da sociedade pós-industrial à
pós-moderna, p. 59). O computador é “a máquina que simula todas as máquinas”: objeto
de consumo e ferramenta, ao mesmo tempo. Isto significa que é o homem (trabalho vivo)
quem manipula a máquina-computador (trabalho morto), com ela fazendo o que bem
entender. Por isso, o homem (responsável pela atribuição de sentido: Comunicação)
determina os conteúdos da máquina-computador (responsável pela troca de sinais:
Informação), enquanto esta, como mero instrumento, apenas executa ou responde às
exigências humanas.
Essa é a supremacia do “trabalho vivo” (irredutivelmente humano) com relação
ao “trabalho morto” (incorporado na máquina). Os conhecimentos não necessitam mais ser
incorporados a um objeto físico
48
. Em outras palavras: estamos afirmando que, por mais
que a Contemporaneidade pareça ser “informacional”, continua ela sendo irredutivelmente
“comunicacional”. E é atrás dos signos e dos sentidos que estamos nesta Tese, não nos
importando tanto com as tecnicalidades sinaléticas.
O ritmo acelerado do Mercado prende nossas atenções em questões inofensivas
e inocentes. Tudo agora é questão de se conseguir “satisfazer as ‘necessidades’ imediatas
de consumo e de compra” que, portanto, serão infinitamente renovadas. Hoje, diz-se que
a produção é “produção de relações sociais”, e que a matéria-prima do trabalho imaterial é
a subjetividade e seu contexto. Eis a tarefa da “Indústria do Entretenimento” (não mais
“Cultural”). Como dizem Lazzarato e Negri (Trabalho imaterial, p. 46):
A necessidade de consumir, a capacidade de
consumir, a pulsão de consumir’ não são mais produzidas
48
Sugerimos, então a seguinte fórmula a ser pesquisada: “o modo de existência dos inobjetos
técnicos”.
104
indiretamente pelo objeto (produto), mas diretamente por
dispositivos específicos que tendem a identificar-se com o processo
de constituição da ‘comunicação social’. A publicidade e a
produção da ‘capacidade de consumir, do impulso ao consumo, da
necessidade de consumir’, transformaram-se num ‘processo de
trabalho’ ”.
Jean Baudrillard, em seu texto Significação da Publicidade (In: Costa Lima,
Luiz [Org.], Teoria da cultura de massa, p. 271), diz que a Publicidade apresenta duas
funções:
1- Manifesta: refere-se ao “imperativo publicitário” (ordem, comando). É a promoção da
venda através da explicitação publicitária de uma ordem Compre o meu produto ou
serviço” –, da qual se consegue duvidar.
2- Latente: refere-se ao “indicativo publicitário” (índice semiótico). É a (mesma)
mensagem implicitamente contida em todas as peças publicitárias, e que nos promete a
inclusão social através do consumo”, da qual não se consegue duvidar.
Para Baudrillard, é na função latente que reside o verdadeiro perigo da
Publicidade. Se a Publicidade de um produto tende a ser anulada, em nossa mente, pela
publicidade de seu concorrente, o sistema publicitário passa a recorrer ao mecanismo
persuasor: a função latente, cuja temática é a da “gratificação e frustração”. A
“gratificação” seria poder consumir; a “frustração”, não poder consumir. E pior: se o
“desejo” não é satisfeito pelo consumo e não o é mesmo –, virá necessariamente a
“frustração”, sob a forma da exigência de se continuar consumindo, até se alcançar a
“satisfação completa”. Como se vê, a Publicidade precisa, mais do que vender, produzir
subjetividades fiéis às suas marcas.
105
Este trabalho dos publicitários é tipicamente imaterial, pois que lida com
imagens, conceitos, desejos, impulsos, sonhos, esperanças... enfim, lida diretamente com
signos que carregam os afetos do consumo. Estamos diante (ou melhor, dentro) do que
chamamos nesta Tese de “Semiocapitalismo”. Segundo Lazzarato e Negri (Trabalho
imaterial, p. 47):
Os trabalhadores imateriais (aqueles que trabalham
na publicidade, na moda, no marketing, na televisão, na
informática etc) satisfazem uma demanda do consumidor e ao
mesmo tempo a constituem. O fato de que o trabalho imaterial
produz ao mesmo tempo subjetividade e valor econômico
demonstra como a produção capitalista tem invadido toda a vida e
superado todas as barreiras que não separavam, mas também
opunham economia, poder e saber”.
A linguagem, a economia, a natureza, a política, a subjetividade e a sociedade
encontram-se hoje completamente hibridadas, formando a “complexidade” do pós-
moderno. No Capitalismo industrial, o valor de um produto material era medido, entre
outros fatores, pela sua raridade: a posse daquele objeto ligava-o ao conceito de
propriedade. neste Capitalismo semiótico (das empresas), o valor de uma informação se
mede pela sua capacidade de compartilhamento ou seja, quanto mais a informação tiver
potência de circulação, mais valor ela terá
49
.
Neste trabalho imaterial, não destruição da informação (re)transmitida daí
a diferença deste novo conceito com relação ao ritual potlach”, em que a tribo destruía,
consumia, tudo o que havia acumulado, para demonstrar seu poder de “despesa”. Na
49
Um bom exemplo disso é o conceito de “memes”, em Marketing e Publicidade tema que
exploraremos mais adiante. O franchising segue a mesma lógica expansionista.
106
economia do conhecimento, quanto mais a informação é consumida, mais ela se aprimora,
ganhando novos sentidos que a enriquecem (uma dinâmica das inovações constantes)
50
.
Como afirmam Giuseppe Cocco, Alexander Patez Galvão e Gerardo Silva (em Capitalismo
cognitivo, p. 11): A produção do novo aparece como questão essencial para a ciência
econômica na medida em que implica a inserção do aleatório, da incerteza e do
desequilíbrio no cerne da atividade produtiva”.
Portanto, quem distribui um conhecimento não fica privado dele. O
conhecimento só tem valor se for distribuído, “trocado”. Aqui estamos em meio à oposição
entre o copyright (propriedade privada), por um lado, e o copyleft (“propriedade pública”,
ou “não-propriedade”, na Internet) mais o open source (código de fonte aberta, em
programas de computador), por outro. O receptor da informação, nessa nova realidade, é
sempre um retransmissor.
O consumidor tende a tornar-se igualmente um comunicador (como na
Internet, a “Rede de redes”), ou seja, um “usuário-consumidor” e ao mesmo tempo um
“usuário-produtor”. Portanto, a definição clássica de “público” como sendo “destacado
do evento” – já necessitaria de uma reformulação
51
.
Quanto à comunicação dos conteúdos, parece que os processos reprodutivos
(no sentido da padronização) tornam-se processos produtivos (no sentido da inovação), e
diretamente tributários das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTIC),
50
O problema surge quando o “novo” se torna mais do que uma obrigação, mas uma “neurose”
mesmo.
51
Por mais que essa hibridação entre emissor e receptor seja uma evidência, defendemos ainda a
importância primeira do “Autor” da informação seja ela um livro, um filme, uma música, um
quadro etc. Não podemos endossar cegamente as teses que comemoram a morte do Autor”.
Mesmo que haja “reapropriação coletiva”, precisa haver, antes, algo para ser “reapropriado” e
transformado.
107
como notam Giuseppe Cocco, Gerardo Silva e Alexander Patez Galvão (Capitalismo
cognitivo, p.07). A hipótese trabalhada por esses autores é aquela de uma organização
social que, ancorada pelas NTIC, ultrapasse os limites neo-industriais (toyotismo e
especialização flexível), para se poder constituir os novos espaços de liberdade. É uma
aposta promissora nas potências múltiplas da resistência política.
Essa tentativa (vital) de resistência política é buscada inclusive teórica e
logicamente, mas muitas vezes abrindo mão de um mínimo de pragmatismo. Segundo
Antonella Corsani: “Se o que é exterior ao mercado e exterior à firma ultrapassa a firma e
o mercado é porque a produção de riquezas está em outro lugar que não a firma, e o
mercado não é representativo da troca de riquezas (em Capitalismo cognitivo, p. 15).
Entretanto, não podemos nos esquecer do fato histórico de o Capitalismo sempre se
apropriar e reapropriar das potências de resistência. É um combate que não tem fim ao
contrário do que parece sugerir, com um leve tom de euforia, Corsani.
Se o Capitalismo tem alguma dificuldade de controlar as redes e os fluxos, de
regular as formas de cooperação e autonomia, por um lado, por outro lado vai tentando
sobrecodificar (por captura e incorporação) os novos sentidos produzidos. Isto equivale a
dizer: se o receptor está na ordem do dia, é ele quem deverá ser engolido pelo
Semiocapitalismo sob a fórmula “o cliente tem sempre razão”. Esta é a melhor maneira
de se entregar a subjetividade à megamodulação Capitalista.
O Capitalismo de hoje não nega, não tolhe a “independência” da subjetividade
Foucault falava disso
52
–, mas determina, sim, qual será a abertura do “leque de
sentidos possíveis”, ganhando em cima disso. É como dizem Lazzarato e Negri (Trabalho
52
Ver o texto Verdade e poder, publicado em Microfísica do poder.
108
imaterial, p. 52): Ao econômico não resta senão a possibilidade de gerir e regular a
atividade do trabalho imaterial e de criar os dispositivos de controle e de criação do
público / consumidor através do controle da tecnologia da comunicação e da informação e
dos seus processos organizativos”: como se isso fosse pouco! O risco de estarmos numa
época de dominação totalitária por parte do Mercado é enorme.
Desde Adorno e Horkheimer, pelo menos, que se sabe que o Capitalismo
procede pela eliminação das condições de possibilidade de se criticá-lo (ver A Indústria
Cultural: o Iluminismo como mistificação das massas). Para estes autores, a vitória do
Mercado é justamente aquela da produção dos valores (gostos, idéias, vontades, opiniões,
desejos etc), através de signos da “inclusão pelo consumo”.
Tecnicamente falando, os trabalhadores mais bem preparados para este
trabalho imaterial são aqueles que dominam conceitos e detêm o savoir-faire, ou know-
how. Eles têm idéias (trabalho imaterial de design ou de produção de identidades das
marcas), as patenteiam (propriedade intelectual) e botam os outros, os menos preparados,
para realizarem a etapa da produção material. O McDonalds não vende propriamente
sanduíches vende todo um serviço e uma idéia atrelados ao sanduíche. Mas são esses
serviços e idéias que alavancam as suas vendas. A Nike, e outras megaempresas, idem:
patente (trabalho imaterial dos advogados) e sustentação da identidade da marca (trabalho
imaterial dos publicitários, assessores de imprensa e comunicadores em geral), ambas se
referindo a um “trabalho imaterial” típico da Contemporaneidade comunicacional.
Patente e marca não são “materiais”, mas “trabalhos imateriais ou semióticos”.
E se o ator social fundamental hoje é o “saber social geral”, o risco fica sendo o de cairmos
no senso comum e no bom senso dos clichês, que nos dispensam de pensar e de criar.
109
Percebe-se claramente que estamos imersos em uma lógica da valorização da invenção, é
verdade. Mas é verdade, também, por outro lado, que a invenção é rapidamente registrada,
industrializada, copiada, re-copiada, infinitamente, até que se esgote sua “potência
inovadora”.
Enquanto alguns trabalhadores imateriais inventam, outros, os “sub-
trabalhadores”, repetem até que a fórmula de sucesso se esgote de vez. Enquanto se
puder lucrar com ela, não haverá necessidade premente de outra. Depois disso, e então,
se busca uma outra invenção, uma nova inovação”. Como cita a própria Antonella
Corsani (Rullani apud Corsani. In: Capitalismo cognitivo, p. 29): O custo de reprodução
de um conhecimento é muito baixo, quiçá nulo. Ou como diz Todd Gitlin (no livro Mídias
sem limite, p. 246-247): “Num negócio eivado de incertezas, a decisão mais fácil é copiar.
Indivíduos atrás de fazer carreira também querem aumentar sua probabilidade de
sucesso”. É só vermos o sucesso do sistema das franquias (trabalho imaterial), como forma
de difusão e garantia do Semiocapitalismo.
Portanto, ao contrário do que parece pensar Antonella Corsani, não se trataria
de uma “passagem” do regime de reprodução para o regime de invenção. Trata-se, isto
sim, de uma maior valorização da invenção, mas que necessita, ainda, da exploração da
reprodução infinita – que é a instância de onde se retirará o lucro (royalties etc). A
produção de conhecimentos gera capital, sim. Mas é a sua reprodução que multiplica e faz
circular este capital (exemplo das franquias). Este Capitalismo não é só “cognitivo”, como
se diz. Ele é também “recognitivo” pela energia afetiva da memória”, segundo
Lazzarato –, na sua reprodução difusa de signos que carregam o sentido do consumismo
capitalista. Infelizmente.
110
Quando se afirma que o processo difusor é um processo criador, confunde-se
“criação” com “comunicação” e inclusive esta idéia confusa reproduz-se, replica-se,
saltando de boca em boca, como os bocejos. Deleuze dizia que “criar” e “comunicar”
sempre foram tarefas diferentes. Se hoje parecem “a mesma coisa”, isso se deve à imensa
confusão conceitual, tipicamente pós-moderna. O pintor antigo não leva em conta a
preferência da opinião pública, quando escolhe a cor da tinta que irá usar. É o Mercado
comunicacional que lucra com essa bobagem. Na Pós-Modernidade, “tudo se equivale a
tudo”; “tudo tem a ver com tudo”. É um “vale-tudo” teórico, onde a melhor retórica vence:
um “jiu-jítsu semiótico”. O relativismo fácil nos leva diretamente rumo à asneira da
indiferenciação e da indiferença. Sejamos mais cautelosos, e menos apressados.
Os “sub-trabalhadores” de hoje não se identificam com suas atividades, as
quais não lhes oferecem estímulos próprios. Diz Luiz Carlos Fridman (Vertigens pós-
modernas, p. 60): Hoje, os padeiros de Boston não sabem fazer pão, apertam botões em
uma máquina reconfigurável, que faz pães franceses ou croissants”. Mas a rotina da
produção embota o espírito, segundo Adam Smith (Smith apud Fridman: Vertigens s-
modernas, p. 59): (...) o homem que passa a vida realizando poucas operações simples
torna-se tão estúpido e ignorante quanto é possível a uma criatura humana”. Gilles
Deleuze havia afirmado que o “morto-vivo” é uma invenção do trabalho, e não da
guerra.
Maurizio Lazzarato e Antonio Negri nos falam de um “terceiro período de
organização do poder” (neste mundo do Império): o da Política da Comunicação, que
utiliza o real como modulador de subjetivação. Só que a Política da Comunicação
produz um “resto” discreto, ilocutório: a Comunicação da Política que significa o
modo como a (idéia de) Política é apreendida pelas pessoas. Portanto, novos parâmetros e
111
novas resistências começam a se delinear... Em Lazzarato e Negri, a organização das
resistências no nível subjetivo não é um resultado, mas um pressuposto mesmo das
resistências. A contradição que opõe essa nova subjetividade à dominação capitalista não
será mais dialética, mas “alternativa”.
A revolução passa, então, a estar subordinada às novas regras da constituição
ontológica dos sujeitos, à sua potência de desejo e de organização (Travail immatériel et
subjectivité, p. 08): Os conceitos de trabalho imaterial e de ‘intelectualidade de massa’
definem portanto não somente uma nova qualidade do trabalho e da fruição, mas também
de novas relações de poder e conseqüentemente de novos processos de subjetivação
(tradução nossa). Lazzarato e Negri, mais uma vez (Trabalho imaterial, p. 58, na edição
brasileira):
Assim, a máquina comunicativa, com seus fluxos não-
significantes e significantes, é um enorme dispositivo de captura de
mais-valia, não de produção de ideologias. O novo capitalismo se
constitui sobre a potência dos fluxos, sobre os diferenciais de
velocidade de sua circulação...”.
Isto vai ao encontro de nossa concepção de “mundo pós-moderno”: neste nosso
mundo pós-Guerra Fria, em que o Capitalismo não tem mais o seu “Outro”, e em que
não há mais “lado de fora”, surgem duas questões:
1- Não mais ideologias”, que a única que perdura é a capitalista fazendo-nos a
todos “capitalistas na prática” (independentemente de crenças individuais divergentes).
2- Não mais, portanto, “saídas”, e sim “resistências” fazendo com que tenhamos de
resistir criativamente dentro deste “plano de imanência” capitalista.
112
É como afirma o Professor Todd Gitlin (em Mídias sem limite, p. 276):
Nesta época, ideologias de um mundo estão
decididamente decrépitas. Com o socialismo bastante
desacreditado e cada região do mundo combatida pelas outras, o
modo de vida que mais seduz acaba sendo esta civilização
globalizante de saturação e rapidez que exalta os indivíduos, liga a
liberdade ao gosto e estimula os sentidos”.
Hoje, a realidade macropolítica tem uma única face – o Semiocapitalismo
(imaterial e cognitivo). A realidade micropolítica tem infinitas faces o individualismo, o
consumismo, o hedonismo, a fragmentação das narrativas, a sensação de deriva, o
estilhaçamento dos Fundamentos, das Referências e das Representações. O imaterial é
trabalhado de modo a nos comunicar ilocutoriamente (pelos pressupostos implícitos, não-
verbais, mas também pelos discursos verbalizados) os valores capitalistas através de signos
midiáticos que nos afetam e que, assim, vão constituindo o nosso modo contemporâneo
de subjetivação (o que revela novas relações de poder), que se exerce pela produção de
apatia política. É todo o nosso “modo de ser” que se transforma, que se redefine. Veremos
isso a seguir.
113
2.4- O Imaterial: Sentido-Acontecimento, Incorporais e Produção de
Subjetividades
Ai, palavras, ai, palavras,
Mirai-vos: que sois, agora?
(...) – Duro ferro de perguntas,
Com sangue em cada resposta.
(Cecília Meireles)
Aqui, nós buscaremos demonstrar como se dão as “novas transformações
incorporais”, através da modulação midiática de signos. A cada Acontecimento por que
passa um corpo, é todo o Sentido a ele atribuido que se transforma (imaterialmente). Dessa
forma, a partir daí, quando da atribuição de um novo Sentido a um corpo qualquer (que
pode ser o nosso próprio), é o modo como vemos este corpo que se transforma então, o
classificamos diferentemente, dizendo que “ele é tal coisa”. Contemporaneamente, as
mídias efetuam transformações incorporais em uma série violentamente rápida, e por nós
incontrolável.
A imaterialidade comunicacional dos signos se presta, fácil e velozmente, à
constituição afetiva dos sujeitos, tendo efeitos imensuráveis e inéditos na produção do
imaginário político da cultura contemporânea. Até as “pequenas percepções” engendrarão
“pequenas transformações subjetivas”, e estas, por sua vez, produzirão “transformações
imateriais” a serem atribuídas à nossa constituição onto-política. É claro que a perspectiva
aqui se aproxima muito do Existencialismo sartreano, pelo qual a existência precede a
essência; a existência define a essência, de modo dinâmico e constitutivo. O que Acontece
a uma existência ressignificando-a será incorporado à sua essência. Negri dizia que o
crescimento, em ato, da essência humana se punha numa relação de contração e expansão
da espontaneidade, num processo de subjetivação. Por aí, pode-se ver que o pensamento
114
estóico (sobre os “exprimíveis incorporais”) nos valerá, sim, mas apenas até um certo
ponto desta análise.
Esse processo de constituição permanente da subjetividade pode ser doloroso e
entristecedor, como por exemplo: as novas formas de dominação política produzem em nós
novas capacidades ou fronteiras de tolerância (o Planeta como gigantesca “casa de
tolerância”). No entanto, pode ser desejante e alegre: os novos espaços de liberdade que se
delineiam, pelo combate criativo e pela criatividade combatente. É preciso que façamos,
portanto, uma análise crítica dessa “Economia Política do Imaterial”, buscando demonstrar
como ela se presta à produção de subjetividades politicamente apáticas através da
modulação” dos afetos por meio de um Controle midiático das semioses.
Antes de mais nada, é preciso que percebamos claramente o que foi dito no
capítulo anterior: o novo Capitalismo (Semiocapitalismo) se fundamenta numa valorização
do capital dito “imaterial” (o humano, o conhecimento, a inteligência). Christian Marazzi
fala de “novo capital fixo”, que seria, segundo afirma ele, algo inapropriável, indivisível,
inquantificável e difuso. Se a Era Industrial separou trabalho e conhecimento, a Era s-
Industrial reunirá estas instâncias: as potências do saber e da inteligência contam mais do
que o tempo de giro das máquinas. No Capitalismo da sociedade de Controle, é preciso
saber como se chegar mais perto do consumidor para fidelizá-lo (por “captura e
incorporação”).
As qualidades expressivas e imaginativas, bem como a dedicação “de corpo e
alma” (principalmente “alma”) à atividade imaterial: eis o que tem sido cada vez mais
procurado e valorizado pelas empresas. O tema da “motivação” está em pauta. Antonio
Negri, como vimos, dizia que o novo trabalhador deve empenhar a sua alma. É partindo
115
disso que podemos pensar em uma estratégia do Semiocapitalismo, que é a de “docilização
das almas” politicamente, as “almas dóceis” serão mais apáticas do que propriamente
“alienadas”
53
.
Vemos por toda parte, não somente nas indústrias pós-modernas, que a gestão
dos fluxos contínuos de informação atravessa os diversos tipos de atividade. Comunicação
e cooperação surgem como exigências para o bom funcionamento da empresa. O trabalho
imaterial de prestação de serviços torna-se hegemônico no setor terciário da economia,
relegando à periferia do mundo (Terceiro Mundo) o trabalho material-industrial. Como diz
André Gorz (L’immatériel, p. 17): “Le coeur de la création de valeur est le travail
immatériel”. É André Gorz quem nos diz ainda (L’immatériel, p. 18):
Les travailleurs postfordistes, au contraire, doivent
entrer dans le procès de production avec tout le bagage culturel
qu’ils ont acquis par les jeux, les sports d’équipe, les luttes, les
disputes, les activités musicales, théâtrales, etc. C’est dans ces
activités hors travail que se sont développés leur vivacité, leur
capacité d’improvisation, de coopération. C’est leur savoir
vernaculaire que l’entreprise postfordiste met au travail et
exploite”.
E o problema de nossa época reside justamente nisso: todas as potências do
sujeito são recolhidas e tornadas fontes de exploração, por parte do dito “Capitalismo
53
Segundo Marx, a alienação poderia ser combatida pela “tomada de consciência” por parte da
classe trabalhadora. Este seria o primeiro passo em direção à sua “desalienação”. Para s,
diferentemente, a apatia não pode ser resolvida pela “tomada de consciência”, visto que o apático
não é afetado pelas potências revolucionárias que lhe chegam. O apático é, por definição,
impotente para se angustiar.
116
cognitivo”
54
. Depois, dizemos que não entendemos por qual razão as instâncias do trabalho
e do lazer se indiferenciaram! Se a empresa busca fora de seus quadros as competências de
que necessita – como afirmam Muriel Combes e Bernard Aspe (em Capitalismo cognitivo)
– ela também constituirá, em boa parte, a subjetividade do novo trabalhador. Neste sentido,
chega a ser apressada (ou ingênua) a tese destes autores de que “o indivíduo não interioriza
a cultura da empresa”. É preciso perceber que não se trata de uma “relação” (de A para
B), mas de uma “correlação” (de A para B, e de B para A).
Os sujeitos se produzem, enquanto produzem. A linguagem será então o
instrumento comum a todos os trabalhadores do imaterial. A linguagem organiza os
saberes, a comunicação e a cooperação sobre as bases do entendimento e dos sensos”. Se
os recursos” do novo trabalhador são os saberes comuns, que se ter cuidado com a
replicação do senso comum e do bom senso. Toda socialização traz um caráter, embutido,
de “domesticação”. O consenso acha o seu melhor meio todo mundo percebendo,
sentindo, agindo e pensando as mesmas coisas e do mesmo modo (“um único modo”: isso
vai contra a Univocidade do Ser). Assim, não haverá Democracia real. André Gorz assim
explica o conceito de “Capitalismo cognitivo” (L’immatériel, p. 47):
L’économie de l’abondance tend par elle-même vers
une économie de la gratuité et vers des formes de production, de
coopération, d’échanges et de consommation fondées sur la
réciprocité et la mise en commun ainsi que sur de nouvelles
monnaies. Le ‘capitalisme cognitif’ est la crise du capitalisme tout
court”.
54
Para um estudo mais aprofundado disso, remetemos ao livro Capitalismo cognitivo (Org.:
Giuseppe Cocco, Alexander Patez Galvão e Gerardo Silva), Ed. L&PM, 2003.
117
Para Gorz, “tudo mudou”. Contudo, é bom deixarmos claro aqui que não
compartilhamos desta certeza de Gorz. Se olharmos para a História Mundial pós-
Revolução Industrial, veremos que sempre o Capitalismo buscou novas armas para
defender-se dos movimentos revolucionários. A capitalização atinge hoje as atividades
imateriais. O que significa “trocar conhecimentos”, senão uma realidade restrita à Internet?
Quem trabalha em instituições de ensino particulares sabe que não se “trocam” os
conhecimentos se os “vende”, sim, e aliás por um valor muito barato! O que são as
“horas-aula”?
55
Gostaríamos de poder concordar com Gorz neste ponto, mas nossa
realidade concreta de Terceiro Mundo nos impede de importarmos seu ponto de vista.
É o próprio Antonio Negri quem afirma a força “auto-regeneradora” do capital.
Ele afirma que estamos vivendo “novas formas de exploração(Valor e afeto, In Exílio, p.
68), as quais precisamos detectar para, em seguida, combater. Hoje em dia, o valor é um
investimento de desejo (Valor e afeto, In Exílio, p. 68): (...) trata-se de dominar o
contexto dos afetos que instauram a realidade produtiva como superestrutura da
revolução social e como articulação da circulação dos signos de comunicação”.
Negri nos fala também dos “novos espaços de liberdade” começando pela
noção de “afetos pensados a partir de baixo” e chegando nas “potências revolucionárias da
insurreição” –, que são abertos pela nova feição do Capitalismo, mas que devem ser
pensados como pressupostos da luta, e não como reatividade ou ressentimento (Valor e
afeto, In Exílio, p. 65):
55
O próprio André Gorz demonstra conhecer muito bem a Biopolítica da “pilhagem ou predação
das externalidades” – a partir dos estudos de Yann Moulier-Boutang (ver L’immatériel
, p. 78-79).
118
Nessa perspectiva teórica, o afeto é retomado ´a
partir de baixo´. Ademais, apresenta-se em primeiro lugar como
produção de valor. Por essa produção, ele [o afeto] se dá, em
segundo lugar, como produto das lutas, como signo, como
sedimento ontológico destas. O afeto nos oferece, portanto, uma
dinâmica de construção histórica – em toda a riqueza de sua
complexidade”.
O afeto pode ser entendido imaterialmente como “potência de agir”, ou
“potência de transformação” (devir revolucionário), mas não se remete mais simplesmente
a um valor-de-uso. Esse processo não é “formal”, e sim “material-imaterial”, pois que se
dá na concretude das relações de poder imanentes. O afeto é uma potência expansiva (diria
Nietzsche), uma potência libertária (diria Spinoza), de “abertura ontológica” (diz Negri)
56
.
E é justamente por ser assim que o afeto será constantemente “capturado e incorporado”
pelo Semiocapitalismo. Enquanto potência constituinte, o afeto será sempre um manancial
tanto para as novas resistências como para a nova dominação.
Fala Antonio Negri (Valor e afeto, In Exílio, p. 68): “Convenções de mercado e
trocas comunicacionais formariam, portanto, a base dos vínculos produtivos (e, portanto,
dos fluxos afetivos) não passíveis de medida, com certeza, porém suscetíveis de controle
biopolítico”. O afeto é controlado não como “objeto mensurável”, mas como afeto
mesmo, imensurável. Negri explica que o que escapa à “Economia Política” (mas que
perpassa a “politica econômica”) é o “valor-afeto-para além da medida”.
O pensador italiano não deixa de notar o trabalho imaterial de predação das
externalidades”, bem como a dificuldade de se captar essas transformações: “(...) o próprio
56
Segundo Spinoza, liberdade é a aptidão para o múltiplo simultâneo.
119
tipo de exploração se globalizou e invadiu os territórios metropolitanos e, desse modo, a
possibilidade de medir a exploração desapareceu definitivamente (Valor e afeto, In
Exílio, p. 58). Ou ainda, falando da chamada “economia da atenção” sobre a qual nos
debruçaremos mais adiante, nesta Tese (Valor e afeto, In Exílio, p. 59):
Entende-se com isso o interesse que há em integrar no
cálculo econômico a interatividade do usuário com os serviços de
comunicação. Mesmo nesse caso, em que é evidente que um
esforço para absorver a produção de subjetividade, a ciência
econômica ignora sua consistência. Tem como foco de atenção o
cálculo da ´audiência´ num horizonte desencarnado. O trabalho (a
atenção) é aqui subsumido quando é separado do valor (do
sujeito), ou seja, do afeto”.
O novo trabalho (imaterial) encontra seu valor no afeto (e em sua “potência de
agir”, diria Spinoza). Fala-se, então, de “trabalho vivo” (“imaterializadopelo humano),
como sendo mais determinante do que o “trabalho morto” (materializado nos objetos). É
por esta via que se poderá falar que o homem determina e dá Sentido ao seu trabalho; que a
máquina informacional (o computador e sua atividade sinalética) se encontra submetida à
“máquina comunicacional” (o homem e sua atividade semântico-semiótica). O humano
não foi “ultrapassado”, como querem alguns; está mais presente do que nunca embora
“capturado e incorporado” pela lógica do Semiocapitalismo.
Estando “fora” do capital ou seja, sendo uma “externalidade” (um valor-de-
uso) –, essa potência afetiva será imediatamente o alvo da volúpia Semiocapitalista (com
sua atribuição de um valor-de-troca). A sua integração na lógica do Capitalismo cognitivo-
semiótico será o “trabalho imundo” (atualizando a expressão de Nietzsche). Contudo, na
120
imanência do Semiocapitalismo não há realmente “fora do capital” o Planeta globalizado
exerce um Capitalismo sem atritos(e, por isso mesmo, velocíssimo). Mesmo o valor-
de-uso é imediatamente “valorado” (como valor-de-troca). É Antonio Negri quem diz
(Valor e afeto, In Exílio, p. 61):
No decorrer de seu desenvolvimento, o capital
reconduziu cada vez mais a força de trabalho sob seu comando;
pouco a pouco, eliminou as condições de reprodução, que ficavam
fora da sociedade do capital e, portanto, sempre conseguiu definir
o valor-de-uso da força de trabalho em termos de valor-de-troca
não mais apenas de maneira relativa como na fase de acumulação,
mas de maneira absoluta”.
Negri segue argumentando que a tendência à absorção da força de trabalho é
“irresistível”. Seria hoje impossível, diz ele, formular uma definição de valor-de-uso que
seja independente do valor-de-troca. Nas últimas décadas, o valor-de-uso tem sido
determinado pela lógica capitalista. Todo valor é agora “capturado e incorporado” pelo
Semiocapitalismo da sociedade de Controle. A medida-padrão universal é o capital, não
tanto como “meio”, mas como “fim em si mesmo”. Podemos, por isso, formular a seguinte
idéia aterrorizante: simpaticamente, o Semiocapitalismo nos habitua, nos ensi(g)na a
viver alegremente com o Capitalismo. O caráter de “naturalidade” facilmente se
desdobra em “neutralidade”. É isso que é constantemente comunicado (o Sentido, não o
sinal). Dirá Negri:
Quando falamos hoje de globalização é em duplo
sentido: num sentido extensivo, posto que ampliação mundial
da trama produtiva pelos mercados; num sentido intensivo, posto
121
que a vida social por completo se acha absorvida na produção
capitalista
57
.
Trocando em miúdos, pensamos que o “Capitalismo cognitivo” não é o “fim do
Capitalismo tout court”, mas sua reconfiguração, sua resposta às tentativas de resistência
política infelizmente. Ainda ficamos com Burroughs, para quem o Capitalismo de
Controle (e sua “camisa-de-força de geléia”) nunca dá nada de graça; nunca dá mais do que
precisa dar; e sempre que possível toma tudo de volta (Almoço nu, p. 06). Se deixamos de
ser simplesmente uma “sociedade de produtores” e tornamo-nos uma “sociedade de
consumidores”, surge a pergunta que não quer calar: “reciprocidade, novas moedas,
gratuidade”? Vai tentar explicar isso para o dono do supermercado, ou o proprietário do
apartamento alugado...
Na verdade, o que estamos querendo dizer é que é preciso aproximarmo-nos de
uma análise crítica do imaterial, sim, mas na sua relação com o consumo, mais do que com
a produção. O Semiocapitalismo privilegia o consumo, e submete a produção a ele. O
cliente tem sempre razão.” Citando Pekka Himanen (L’immatériel, p. 94), Gorz afirma que
o trabalho não ocupa mais o centro... posição esta agora ocupada pela distração e pela
criatividade individual. Esta idéia é sem dúvida interessante, contanto que se atente para o
fato de que o Semiocapitalismo absorve, compra as criatividades e oferece, vende as
distrações. É o que analisaremos daqui a pouco, mas mais à frente.
57
Entrevemos a importância da abordagem intensiva que buscamos imprimir nesta Tese.
Fala-se de intensidade de entrega”, “entrega de si” tanto aos modos de resistência quanto aos
apelos do Semiocapitalismo (imaterial e cognitivo). Estamos dentro de uma discussão cara à
Biopolítica.
122
Nessa atividade de produção de si, uma mobilização de todas as
capacidades e disposições (potências), principalmente das potências afetivas do sujeito
58
.
Parece-nos uma evidente atualização daquela “servidão voluntária” descrita por Étienne de
La Boétie. Se no trabalho material da fábrica o homem super-treinado podia, vez por outra,
liberar seus pensamentos durante seu trabalho manual e repetitivo, hoje, no trabalho
imaterial da empresa, o homem tem toda a sua subjetividade voltada para a atividade
laborativa. Sua alma está empenhada na resolução de problemas e na formulação de
soluções criativas para a empresa. Não surpreende a eclosão dos “workaholics”.
Uma das melhores questões que surgiram daí é a seguinte: (...) comment ne
pas investir sa propre dignité dans une activité indigne? (Muriel Combes e Bernanrd
Aspe apud Gorz: L’immatériel, p. 22-23). que essas exigências do “Capitalismo
cognitivo” deixam algum espaço de liberdade, pois as potências subjetivas lapidadas
poderão desde que se façam desejantes exceder as tarefas laborativas, e buscar sua
liberação em outras formas de expressão (jornalistas escrevem livros, muitas vezes bons;
publicitários pintam quadros, muitas vezes ruins, etc). Contudo, livros e quadros ainda
assim possuem valor-de-troca...
O valor do trabalho imaterial depende dos conteúdos e do conhecimento, das
informações e da dita “inteligência coletiva”. O Controle das vias abertas realiza a
capitalização das riquezas imateriais. Os ditos “serviços relacionais” (educação, assistência
social) implicam a produção de si, assim como, não menos, as atividades imateriais como
58
Como explicita Negri (A anomalia selvagem, p. 283): “A relação produção-constituição é então
a chave da articulação do ser (...)”. É isso o que ele chama de “produção como ontologia
constitutiva”, que, por sua vez, se faz política da natureza (natura naturante) para a “segunda
natureza” (natura naturada). O sujeito é pensado aqui como olugar ontológico da determinação”.
A Teoria Política de Spinoza é a da constituição onto-política da subjetividade, mas esta é sempre
movida pela resistência ao poder – questão de intensidades do Ser.
123
aquelas dos artistas, dos publicitários, dos jornalistas, dos designers, dos consultores. A
“doação de siconstitui paralelamente uma “doação de Sentido” como transformação
incorporal contemporânea, advinda do Sentido-Acontecimento, dos atributos que se
penduram na superfície do Ser de um ente.
Isso se torna a “virtualidade” das potências individuais. O problema é que essas
potências são constantemente chamadas a trabalharem pela lógica semiocapitalista da
empresa como afirma Gorz (L’immatériel, p. 25): La personne doit devenir pour elle-
même une entreprise, elle doit devenir pour elle-même, en tant que force de travail, un
capital fixe exigeant d’être continuellement reproduit, modernisé, élargi, valorisé”. Toda
atividade deve apresentar, ao menos potencialmente, a capacidade de tornar-se um
negócio; deve ser passível de financeirização por parte do “Capitalismo cognitivo”. A
sobrecodificação capitalista é brutal. Se é a vida que se tornou “o capital mais precioso”,
estamos falando de uma Biopolítica (gerência e administração da vida coletiva)
59
.
A lógica do capital se estendeu para toda a lógica da vida até se confundir
com a própria vida. Hoje, viver e trabalhar, viver e consumir foram indiferenciados. Somos
mais “trabalhadores-consumidores” do que “cidadãos”. Após o Welfare state e o
Warfare state”, ambos tradicionalmente gerados e geridos pela “forma-Estado”, eis que
nos deparamos com o “Workfare state”, controlado pela “forma-Mercado”.
Os novos constrangimentos, trazidos pela “forma-Mercado”, são difusos,
onipresentes. Isso dificulta seu reconhecimento como “inimigo”
60
. O trabalho imaterial do
59
O primeiro estudo sobre Biopolítica foi o de Michel Foucault, em História da sexualidade 1 a
vontade de saber.
60
Podemos brincar com o Cinema: não estamos apenas “dormindo com o inimigo” estamos, na
verdade, “trabalhando, consumindo, vivendo e tendo filhos com o inimigo”. O inimigo nos é
demasiado íntimo para que o percebamos. E o inimigo nos sorri.
124
“Capitalismo cognitivo” forja signos amortecidos e simpáticos que parecem substituir as
antigas ordens e comandos disciplinares. A persuasão (metafísica) toma o lugar da
violência (física). Toda persuasão é, por definição, clandestina (Vance Packard, ao falar de
“persuasão clandestina”, foi redundante). Persuadindo ganha-se a fidelidade canina do
consumidor-potencial-vulnerável, tornando-o consumidor-atual-compulsivo. E a estratégia
da fidelização de clientes lança mão da dosagem viciante que perambula nas mídias através
de signos carregados com afetos de consumo.
É o valor imaterial dos produtos materiais que alavanca suas vendas (sua
aceitação). O “capital simbólico” se faz hoje inestimável: quanto valem as marcas Mac
Donalds ou Nike? (na verdade, segundo analistas de mercado, estima-se que a marca “Mac
Donalds” valha algo em torno de US$ 70 bilhões; a “Nike” valeria US$ 7 bilhões). Não
compramos seus sanduíches, nem seus tênis compramos o acesso às suas identidades de
marca. Como estimar o impacto dessa “guerrilha semiótico-afetiva” na produção de
subjetividade contemporânea? Eduardo Galeano se perguntava (em Ser como eles): “Como
medir as mutilações da alma humana?”.
Para (re)aquecer as vendas incluindo para isso novos consumidores, que
antes eram excluídos da sociedade de consumo –, inventou-se o “cartão de crédito”. Com
ele, podemos comprar sem possuirmos o dinheiro físico naquele exato instante. Com ele,
compramos e não vemos o dinheiro “sair”. Com ele, nos endividamos para sempre mas
devemos ser capazes viver até uns 120 anos, para pagarmos durante uns 100 anos os juros
da dívida contraída (Biopolítica). Com ele e suas estratégias de “milhagem”, “vale a pena
ser fiel”. É preciso fidelizar, “cativar” o cliente
61
. Milhagem é pilhagem, afirmamos.
61
A palavra “cativo”, em espanhol, traz o sentido de “preso”.
125
Sem precisar ter salários altos para poder consumir, pôde haver o encolhimento
perverso dos salários não percebemos a “miniaturização salarial”, que acompanha “a
cultura do nanossegundo” (Peter Glotz apud André Gorz: L’immatériel, p. 91), se
consumimos mais do que antes. Consumindo seu salário futuro, as pessoas passaram a ter a
ilusão de estarem se enriquecendo como bem nota André Gorz (L’immatériel, p. 53). É
nesse contexto, em que o “capital imaterial” e o “capital material” estão bem separados,
que se o ultrapassamento pelo menos na instância da vida cotidiana da chamada
“economia real”. Ao ultrapassar o real-material, a ficção imaterial tornou-se “mais real do
que o real” (L’immatériel, p. 55). Hiper-real?
A imagem de marca” é ilimitadamente expandida, difundida pela lógica
mercadológica do Semiocapitalismo. O surgimento do franchising revela a estratégia da
Globalização acelerada e controlada: é preciso instalar-se em “todas” as esquinas do
Planeta, para que a todo instante os consumidores potenciais tenham “a liberdade e a
oportunidade” de se metamorfosearem em consumidores atuais – numa transformação
incorporal de Sentido, que revela que “algo Aconteceu”. Mas mais do que “estar
fisicamente” nesses lugares das instâncias locais, o que é preciso expandir e tornar
onipresente é a “imagem de marca” – as pesquisas chamadas de “recall” comprovam isso.
O uso das “celebridades” em anúncios e publicidades demonstra o comércio
simbólico, o Mercado semiotizado, condutor que é de valores e afetos em processo de
permanente monetarização. As “celebridades” da hora emprestam suas “qualidades” às
marcas, mas o inverso também se dá: marcas de sucesso transferem uma carga de
“simpatia” a “celebridades” que tentam se (re)afirmar na mídia. A vingança está contida na
própria gica cruel desse Mercado midiatizado: os “célebres” se revelam “céleres”
(passageiros).
126
Ao expressar os signos imateriais de uma marca, também se internalizam seus
valores e afetos. Como o próprio André Gorz afirmaria (L’immatériel, p. 62): Le vendeur
doit faire oublier que son but est de vendre et, en traitant le client comme une personne
singulière, donner au rapport commercial l’apparence d’une relation privée à laquelle la
logique économique ne s’applique pas”. Entretanto, sabemos que a finalidade é o comércio
capitalista; a “lógica econômica” se aplica, sim.
Os afetos capitalísticos são disfarçados envergonhados de si pelas mais
espertas construções semióticas. Gorz arremata (L’immatériel, p. 62): “La production
d’images de marque est la branche la plus florissante et profitable de l’industrie de
l’immatériel, et la source la plus importante de rentes de monopole”.
Esse trabalho imaterial revela uma dupla função, segundo André Gorz: por um
lado, uma função econômica e comercial (explicitamente); por outro lado, uma função
política e cultural (implicitamente). Do ponto de vista econômico-comercial, a marca deve
alavancar as vendas de seu produto ou serviço. Por este prisma, sabemos muito bem o
valor de uma “marca sólida” (vocabulário herdado da lógica do material). Do ponto de
vista político-cultural, a marca deve dotar aquele que a consome com o status de raridade
e, portanto, com uma promessa de “diferenciação”. Por este outro prisma, não sabemos
com certeza “do que uma marca é capaz”. Para manter-se em voga, na mídia e nas mentes,
fala-se de “sustentação da identidade de marca”. Para isso, é necessário que se faça
constantemente apelo aos bancos-de-dados (os quais devem ser sempre atualizados e
precisos).
127
As evoluções dos gostos e dos modismos são o “material” dos marqueteiros e
dos publicitários
62
. Império paradoxal do feedback”: receptor visível-vulnerável, mas
também cliente soberano
63
. Toda e qualquer opinião”, se ela vem de um cliente-
consumidor-público, deve ser ouvida e debatida (mas será que toda e qualquer opinião tem
potência própria e é digna de ser levada em conta?). Quem responde afirmativamente é a
sociedade de Controle: “Sim!”.
Segundo André Gorz, o “capital fixo imaterial” funcionaria como um meio de
produzir consumidores mais precisamente, ele seria um meio de produção de desejos, de
vontades, de imagens de si e de “estilos de vida” que, quando adotados pelos indivíduos, os
transformam naquilo que o autor chama de “nova espécie de consumidores”, que não têm
necessidade daquilo que desejam, e não desejam aquilo de que têm necessidade. O homem
é hoje, ao mesmo tempo, trabalhador e matéria-prima do Semiocapitalismo. O “valor
simbólico” do produto ou serviço torna-se a fonte principal de lucro (falamos aqui de
notoriedade, prestígio, confiabilidade, segurança etc, atrelados à marca).
André Gorz nos conta que, nos inícios da década de 1920, um sobrinho de
Freud, Edward Barnays, inventa um modo de a indústria (no caso, de tabaco) vender tudo
aquilo que produzia. Barnays inventara uma nova disciplina – na época, chamada de
“Relações Públicas” –, partindo do pressuposto de que se as necessidades humanas são
62
Sobre o mapeamento das mudanças de gosto dos clientes, remetemos ao conceito marqueteiro
de “camaguru”: o cliente é visto como um “híbrido de camaleão e canguru” pois a cada salto que
ele dá, muda de cor (e de afeto). Ver o livro de Francisco Alberto Madia de Souza: Datamarketing
behavior – introdução ao marketing de 6a geração, Ed. Makron Books / McGraw-Hill.
63
Isso nos levou a formular a seguinte expressão paradoxal: “tirania da Democracia”, que
significa mais do que o “direito”, e sim a “exigência” mesma de (co)participação no evento
cultural. Chega a ser gritante: o público canta e bate palmas durante a música; liga para o programa
de TV e vota; interpreta tudo ao seu próprio modo (e que modo!) etc. Aqui no Brasil, a tirania da
Democracia parece dar especialmente certo: não queremos “calmamente fruir”, mas
“desesperadamente participar”. Lima Barreto já dizia: “O Brasil não tem povo, tem público”.
128
limitadas, seus desejos são, por outro lado, ilimitados. Bastaria, então, segundo ele, que as
indústrias e as empresas se livrassem da idéia falsa de que as compras das pessoas
respondem a necessidades práticas e racionais. Era preciso fazer apelo ao inconsciente, aos
desejos mais escondidos. Barnays pegava “carona”, como bom “parasita” que era, nas
teorias de seu tio.
Ao invés de se dirigir ao senso prático, portanto, a Publicidade deveria conter
(implícita, latente e ilocutoriamente) uma mensagem que transformasse todo e qualquer
produto em vetor de um sentido simbólico. Era preciso apelar para as emoções irracionais,
capturar e incorporar os afetos das pessoas, criar uma cultura do consumo, enfim, produzir
o tipo de consumidor que sai atrás dos produtos do anúncio, e que acredita encontrar no
consumo um meio de exprimir seu ser, seu eu”. A promessa implícita seria a da “inclusão
social via consumo”.
Sabemos hoje como o cigarro tornou-se um signo de “emancipação feminina”,
no início do Séc. XX. Barnays tinha – segundo Hoover, em 1928 – transformado as
pessoas em “infatigables machines à bonheur” (L’immatériel, p. 65). Mas a “grande
jogada” de Edward Barnays seria percebida mais tarde, como nota André Gorz
(L’immatériel, p. 66):
Barnays, de son coté, était parfaitement conscient
d’avoir, en même temps, transformé des citoyens potentiellement
dangereux pour l’ordre établi en consommateurs dociles: les
gouvernants, pensait-il, allaient pouvoir agir à leur guise aussi
longtemps qu’ils sauraient canaliser les intérêts de la population
vers et par le désir individuel de consommer (...) Le consommateur,
individuel par définition, a donc éconçu dès l’origine comme le
contraire du citoyen...”.
129
A partir do sucesso de Barnays, a Publicidade passaria a dedicar-se
simultaneamente ao apelo aos desejos de todos e aos de cada um. A Publicidade, como
bem diz Gorz, é uma “máquina” (sic) semiótica de produção de imaginário, de desejos, de
sensibilidades, de afetos... logo, de subjetividade. O que se hoje, na Publicidade como
na mídia em geral, não é tanto a imposição de “normas” (que se remetem a uma Sociedade
Disciplinar ultrapassada), mas uma modulação dos afetos”, pois que se está falando
de uma Sociedade de Controle. As modulações contínuasestão substituindo os “moldes
fixos”: se as disciplinas queriam encontrar os comportamentos diferentes” para sancioná-
los, os controles querem encontrá-los para pô-los num banco-de-dados e ganhar dinheiro
com eles
64
.
De qualquer modo, o que se percebe é a “tomada de poder”, por parte do
Semiocapitalismo (imaterial e cognitivo), sobre os espaços públicos, sobre a cultura e o
imaginário social. Infectando estas instâncias com seus valores, passa o Semiocapitalismo
a modularos afetos através da constituição de signos de seu poder. Modulandoa vida
64
O Target Group Index Latina, que faz um estudo anual com 55 mil entrevistas em oito países da
América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Venezuela), mostra
o quanto se parecem os latino-americanos, ao analisar com o que mais concordam ou discordam os
cidadãos de Buenos Aires, Cidade do México, Santiago e São Paulo. Para Roberto Lobl, diretor
regional do Target Group Index Latina, o estudo é essencial para a alocação de recursos
publicitários de maneira mais precisa, objetiva e otimizada. O estudo fornece um raio-X completo
do entrevistado, com informações muito detalhadas de consumo de mídia, de produtos, opiniões e
atitudes, o que é essencial para o mercado publicitário”, argumenta Lobl. Segundo Roberto Lobl, a
pesquisa que se realiza em parceria com a Kantar Media Research e a Target Group Index
Global, e se estende a 50 países em todos os continentes – é muito útil e importante para a indústria
de produtos de consumo e serviços.O estudo permite que uma determinada indústria conheça em
profundidade seu consumidor, os concorrentes e os consumidores de produtos complementares.
Assim, ela sabe como está perdendo ou ganhando consumidores”, explica. Nestes países, 92%
de concordância com a frase é importante seguir aprendendo coisas novas”; 91% com
oportunidades devem ser aproveitadas”; e 90% quanto ao assunto é muito importante estar bem
informado”. Foram entrevistadas 1.792 pessoas em São Paulo, 5.091 em Buenos Aires, 2.001 em
Santiago e 4.560 na Cidade do México. Fonte de consulta: site do IBOPE:
http://www.ibope.com.br/imi/ogrupo/empresa/imi/index.htm
. Acesso em: 26/05/2004.
130
e o pensamento (o pensamento deu lugar ao, ou tornou-se, slogan”), ele tenta determinar
nosso futuro, nossos devires. Aquilo que podemos nos tornar pelas nossas potências
revolucionárias sofre por uma “domesticação”, e não ameaça o Controle exercido
pelo Mercado-Total.
Resumidamente, a Publicidade faz das marcas que ela anuncia dispositivos de
poder que disparam um tipo muito específico de “semiose”: as marcas induzem o
consumidor a uma certa produção de si. De qualquer modo, o que é comunicado é que la
activité de se produire est la clé qui donne accès au monde social(L’immatériel, p. 68).
Inundando todos os espaços sociais, a “Publicidade-divindade” (porque onipresente)
esteticamente alimenta as atenções com seus temas preferidos (sempre comerciais)
Naomi Klein escreveu sobre isso, em Sem logo. Primeira questão: será que não nada
mais urgente para ser pensado, ou notado, do que outdoors e luminosos? Segunda questão:
será que depois de estarmos habituados a conviver com a Publicidade teremos condição
intelectual de confrontá-la?
65
Citando Robert Kurz, André Gorz (L’immatériel, p. 69-70) transcreverá que a
Publicidade tem por função direta não tanto...
...d’inciter à l’achat de marchandises déterminées que
d’engendrer une conscience qui a intériorisé la forme, le sens,
l’esthétique spécifique de la ‘publicité en général’ et voit le monde
avec ses yeux... Le façonnage non seulement des désirs et des
convoitises mais aussi des sentiments, la mainmise sur
l’inconscient révèlent le plus nettement le caractère totalitaire du
capitalisme et rendent ce totalitarisme invisible, pour autant que
la mainmise réussit”.
65
O aprofundamento necessário desses questionamentos será feito no último capítulo desta Tese.
131
Nesta nossa “guerrilha semiótica” diária, é preciso, é urgente que nos tornemos
capazes de dominar a(s) linguagem(ns), não para que tenhamos potência suficiente para
compreendermos e interpretarmos este mundo, mas também para que tenhamos igualmente
potência de pensar e expressar nosso modo de resistência. Como diz Enzo Rullani, pela
boca de André Gorz (L’immatériel, p. 75): Dans le postfordisme, la connaissance produit
de la valeur aussi parce qu’elle génére du sens”. As potências humanas de comunicação,
de interação e de afecção são permanentemente cooptadas pelo Semiocapitalismo.
As ditas externalidades positivas” que seriam as potências não-capturadas
desenvolvem-se, é claro, “fora” das empresas (como se o Capitalismo estivesse restrito ao
interior das empresas!). Contudo, elas apareceram como tais após serem cooptadas!
Seria bom que pudéssemos crer na subordinação do valor-de-troca” ao “valor-de-uso”.
Entretanto, infelizmente, diante do mundo tal como ele se nos apresenta, honestamente não
vemos como fazê-lo.
A propriedade intelectual (imaterial) e a privatização do conhecimento (sob a
forma da patente) se servem do “poder constituído” do Direito (juridicização) para
monopolizar mercados em expansão. Mercados em expansão? Sim. Que se pense na
transformação incorporal da China, resultante da produção geopolítica de um imenso
Sentido-Acontecimento: num dado momento, fala-se de um pouco mais de 1 bilhão de
cidadãos chineses”; no momento seguinte, falamos de “um mercado de mais de 1 bilhão de
consumidores potenciais”. Alguma coisa se passou de um momento para o outro: a
abertura daquele país ao Mercado-Total capitalista. Alguma coisa “Aconteceu”, e isso
“significa” algo também: agora os chineses poderão endividar-se e viciar-se livremente,
132
através de produtos e serviços que eles “nunca viram mais gordos” (mas que aprenderão a
desejar loucamente, e a comprar furiosamente).
Esse tipo de transformação incorporal pode ser notado tanto no nível molar
(macropolítico ou coletivo) quanto no nível molecular (micropolítico ou individual).
Quando um indivíduo é afetado por um anúncio que traz uma marca, ou por uma notícia
que traz uma idéia, há algo nele que muda, que se transforma (ou “Acontece”), e de que ele
nem mesmo precisa ter consciência no caso das “pequenas afecções” e dos “pequenos
Acontecimentos”. Ele mesmo passa a “se definir” diferentemente. E isso carrega todo um
novo Sentido: ele se chama cidadão, no instante 1”, e passa a ser chamado de
consumidor, no instante “2”. Através de uma intensa e delicada semiótica, este sujeito
recebe um novo atributo, o qual passa então a defini-lo por fora (e a afetá-lo por dentro). A
mídia produz o Sentido-Acontecimento, mas não consegue captá-lo nos eventos cotidianos.
É Gilles Deleuze quem nos ensina (Conversações, p. 198-199):
Não creio que a mídia tenha muitos recursos ou
vocação para captar um Acontecimento. Primeiro, ela mostra com
freqüência o começo ou o fim, ao passo que um Acontecimento,
mesmo breve, mesmo instantâneo, se prolonga. Segundo, eles [da
mídia] querem o espetacular, enquanto o Acontecimento é
inseparável de tempos mortos. (...) É a arte, não a mídia, que pode
captar o Acontecimento”.
Os antigos filósofos estóicos diziam que o “exprimível incorporal” era algo que
se atribuía aos corpos. Para eles, as propriedades de um corpo se remetiam a “estados”
sempre em mutação, e não se referem ao “Ser” imóvel. Como nos diz Émile Bréhier (La
théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme, p. 09): Les Stoïciens se sont efforcés de
133
définir la propriété de façon à la faire naître de la qualité fondamentale de l’état, sans
intervention extérieure d’une forme”.
As transformações incorporais, portanto, se as compreendemos a partir de seus
formuladores (os estóicos), são atributos novos, os quais são sempre expressos por verbos
(a árvore não é verde, mas “verdeja”; o ferro não é quente, mas “esquenta-se”), onde se
confundem “predicado” e “cópula lógica”. Os atributos (verbos, que indicam atos) não são
“seres”, mas mais propriamente falando modos de serUnivocidade. Esses modos de
ser não se encontram no fundo do Ser, mas na sua superfície
66
. Se o mundo é real é
porque é superfície e é dado Spinoza atribui ao Ser uma “imediatez”, e essa concepção
de mundo é radical e abertamente materialista. Mas não nos esqueçamos de que é na
superfície do Ser que se dão as atribuições de Sentido (o imaterial se constitui por aí).
Nesta Tese, no entanto, estamos nos apropriando (ao nosso próprio “modo”) do
pensamento estóico para afirmarmos que as “transformações incorporais contemporâneas”
(via mídias) revelam afecções sofridas pelos seres, redefinindo-os ontologicamente, sim.
Antonio Negri falava de deslocamentos ontológicos”, possibilitados pelas potências
constituintes de realidade (ver A anomalia selvagem, p. 154).
É preciso entendermos que os atributos são efeitos incorporais, transformações
imateriais sofridas pelos corpos, e que podemos chamar de Acontecimentos (ou “efeitos
66
A inaudita lição dos estóicos: “superfície” não é “falta de profundidade”, e sim “o limiar entre
fora e dentro de um ser, onde os atributos incorporais (exprimíveis) se prendem”. Essa concepção
estóica ressurgiria modernamente em Alan Robbe-Grillet e em Pierre Klossowski, segundo
Deleuze. Michel Tournier chegou mesmo a escrever sobre isso, em Sexta-Feira, ou os limbos do
Pacífico: Estranho preconceito, contudo, que valoriza cegamente a profundidade em detrimento
da superfície e que pretende que superficial significa não de vasta dimensão, mas de pouca
profundidade, enquanto que profundo significa, ao contrário, de grande profundidade e não de
fraca superfície” (Tournier apud Deleuze: Lógica do sentido, Segunda Série de Paradoxos Dos
Efeitos de Superfície, p. 12, Nota 7).
134
incorporais”, que carregam “Sentidos”)
67
. Se os objetos existem física e corporalmente,
seus atributos existem lógica e incorporalmente. Matéria falada; imaterial falante.
Os Acontecimentos remetem-se ao “que é dito dos seres”. O Acontecimento
está no limite da ação dos corpos entre si. O atributo novo que recai sobre um corpo,
segundo os estóicos, não muda nada da essência ou substância desse corpo (essência e
substância são ali indiferenciadas, e remetidas à idéia de uma “transformação material”!).
A relação entre as palavras e as coisas físicas é, assim, bastante fluida e maleável. O que o
atributo faz é indicar aquilo que se afirma de um Ser ou de uma propriedade (“a árvore
verdeja”). Ser afirmado é ser significado e toda significação remete-se a um “exprimível
incorporal”. Os estóicos mesmos garantem: um signo (um imaterial) é um “exprimível
incorporal”.
Os estóicos querem distinguir por os diversos modos ou intensidades pelos
quais um Acontecimento pode expressar-se. A Univocidade significa que há um só e
mesmo Sentido para o que ocorre e o que se diz disso... isto é, o Acontecimento (com sua
face virada para as coisas) e o Sentido (com sua face virada para os expressos),
respectivamente. Então, se um mesmo Sentido para o que ocorre e para o que se diz
disso, podemos aqui afirmar que se se transforma o que ocorre, transforma-se o que se diz
disso (como querem os estóicos); e se se transforma o que se diz, transforma-se o que
ocorre no real (como queremos nós). Não falamos de um “Ser polissêmico”, mas de um
“Ser que é polêmico” (no horizonte ético-afetivo de uma guerrilha modal).
67
De modo diverso, Michel Foucault iria dizer que “um enunciado é sempre um acontecimento que
nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente” (Arqueologia do saber, p. 32). Entretanto,
Foucault adotava ali uma perspectiva própria, não exatamente tirada dos estóicos.
135
A Univocidade, como se vê, está entranhada no Sentido-Acontecimento
como diria Negri (A anomalia selvagem, p. 207): Cada construção de um grau do ser é
uma constituição e quanto mais o ser se articula e se afina, tanto mais carrega a
responsabilidade inteira do processo constitutivo, dos antagonismos resolvidos, da
liberdade conquistada”.
As próprias relações são modos ou intensidades de Acontecimentos”. Por seu
turno, os Acontecimentos seriam modos de relação com a existência e o tempo” (ver
Deleuze: A dobra Leibniz e o barroco)
68
. O Acontecimento intervém como um crivo, um
marcador: contraimos intensamente (intensivamente) os signos das “extensões”, os
“preendemos” por nossa potência de sermos afetados e, assim, nos individuamos
diferentemente a cada instante. Nesse sentido, somos obrigados a afirmar que algo está
sempre “Acontecendo”.
Como bem diz Deleuze (A dobra Leibniz e o barroco, p. 175): O mundo é
uma virtualidade que se atualiza nas mônadas ou nas almas, mas é também uma
possibilidade que deve realizar-se nas matérias ou nos corpos”. É Deleuze mesmo quem
nos explica a relevância do pensamento de Leibniz, no que se refere à tensão entre
“público” (coletividade) e “privado” (individualidade), a partir das mônadas como
multitudo de singularidades (A dobra – Leibniz e o barroco, p. 196):
O que é público segundo Leibniz é o estatuto das
mônadas, sua requisição, seu estar em-multidão, em-amontoado,
seu estado derivativo. Mas o que é privado é seu em-si por-si, seu
68
Em David Hume, lembremo-nos, as relações são exteriores aos seus termos não se fala de
“qualidades”, mas de estados de coisas”. Em Whitehead, como em Leibniz, as três componentes
de um Acontecimento: as “extensões” (um elemento se estende sobre os seguintes), as
intensidades” (a matéria é preenchida por caracteres que determinam a sua textura ou
resistência) e as “preensões” (para Whitehead, são unidades individuais, pessoais). Nesta Tese,
como se sabe, estamos trabalhando sobre as “intensidades”.
136
ponto de vista, seu estado primitivo e sua projeção. No primeiro
aspecto, elas pertencem a um corpo que lhes é inseparável. No
outro aspecto, um corpo lhes pertence, corpo do qual elas são
inseparáveis”.
Gilles Deleuze diz que o Acontecimento é coextensivo ao devir (já que ele
libera um Sentido diferente e diferenciante para aquilo que poderá ser) e que o devir, por
seu lado, é coextensivo à linguagem (o próprio da linguagem é, ao mesmo tempo,
estabelecer limites e ultrapassar os limites estabelecidos). Os estóicos descobriram a
dimensão do “Sentido” quando pensaram o Acontecimento: o sentido é o expresso da
proposição, este incorporal na superfície das coisas, entidade complexa irredutível,
Acontecimento puro que insiste ou subsiste na proposição” (Lógica do sentido, p. 20).
Se o Acontecimento comporta um instante no qual ele se efetua ou encarna nos
corpos (no tempo presente), ele não deve contudo ser confundido com os “eventos”. Ou
ainda: O brilho, o esplendor do Acontecimento é o sentido. O Acontecimento não é o que
acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos sinal e nos espera
(Lógica do sentido, p. 152). O “Sentido” residirá nas crenças (ou desejos) daquele que se
exprime.
A partir dessa idéia é que poderemos insistir no tema da “produção
contemporânea de Sentido”, pela via das mídias, para problematizá-la com respeito à
potência revolucionária das pessoas. Falamos aqui de “doação de Sentido” (atribuição de
valor), o que não impede exatamente as singularidades (impessoais e pré-individuais;
pequenos eventos que constituem um sujeito, um lugar, uma idéia). Muito pelo contrário:
até as utilizam.
137
Vejamos com Deleuze (Lógica do sentido, p. 56): Se as singularidades são
verdadeiros acontecimentos, elas se comunicam em um e mesmo Acontecimento que
não cessa de redistribuí-las e suas transformações formam uma história”. A História
(molar) não caminha por “grandes eventos”, nem por “Contratos Sociais”. Ela caminha,
sem cessar, por “micro-eventos” (moleculares) quase imperceptíveis, mas que não são por
isso menos importantes, pois que fazem parte de nossa constituição ontológica.
Do mesmo modo, os indivíduos não são constituídos somente por “grandes
eventos” (representações, idéias, consciência, razão, explicação), mas também e talvez
principalmente por “micro-eventos” (percepções, sensações, inconsciente, afetos,
imaginação). Através de micro-eventos”, é todo o Sentido-Acontecimento que se atribui
ao Ser que muda. O que se passou? – perguntamo-nos. Não temos o controle sobre isso.
Diante de uma constatação dessas, como estimar a influência do poder
constituído das mídias e do Capitalismo imaterial sobre a potência constituinte dos
sujeitos? Seria preciso que olhássemos para os últimos Acontecimentos (e suas
transformações de Sentido). Nossa potência de existir vem sendo modulada, administrada
com nossa impotência de existir. O que nós somos? O que estamos em vias de nos tornar?
Nossa Tese: somos, em nossa maioria, politicamente apáticos; ontologicamente
despotenciados para resistir. E isso tornou-se banal.
138
3- Afeto e Signo :
a Comunicação e a Política da Apatia nas Dobras da Alma
139
3- Afeto e Signo: a Comunicação e a Política da Apatia nas Dobras da Alma
3.1- Guerra Semiótica e Política da Comunicação: Jornalismo e Propaganda
O Capitalismo traz em si a guerra,
como a nuvem traz a tempestade.
(Jean Jaurès)
Ao contrário do que certamente pensa o senso comum, “comunicação” e
“consenso” não são sinônimos. A comunicação se pretende um veículo para a Democracia,
mas a Democracia não se faz no “consenso”, e sim no dissenso, na disputa saudável de
idéias como podemos notar desde o surgimento tanto da Política como da Democracia,
na Grécia Antiga. Se pensarmos bem, hoje a Política foi toda midiatizada, mas a mídia
ainda não foi politizada
69
. Jacques Rancière, professor de Filosofia Política, por exemplo,
tem estudado a função da discórdia na constituição da Política. Portanto, estamos aqui
afirmando logo de início o caráter erístico das relações humanas.
A definição de “consenso” se aproxima mais da idéia de “pensamento único”
todo mundo pensando, dizendo, fazendo e querendo as mesmas coisas, e do mesmo modo.
Hoje nós vivemos na Era da Comunicação e da Informação, e a guerra não escapa a isso.
Hoje, nem mesmo a guerra pode dispensar os serviços comunicacionais veremos o caso
das estratégias de Psychological Operations(Psyops), que se dão mais abertamente em
tempos de guerra, e mais discretamente em tempos de paz . É a partir das informações que
se faz, ou não, uma guerra. Afirmamos isso, porque trabalharemos neste capítulo a estreita
relação entre a política dos signos e a Comunicação Social; entre a política da comunicação
69
Para um estudo introdutório do caso da “Política midiatizada”, remetemos aos textos A política
informacional e a crise da democracia, de Manuel Castells (último capítulo do livro O poder da
identidade) e também ao Política midiatizada: entre o global e o local, de Antonio Rubim (em
http://www.facom.ufba.br/compolitica/textos/polimidiat.htm
). A idéia de “mídia despolitizada”, que se
refere à publicização da vida privada, é usada, por exemplo, por Muniz Sodré e Raquel Paiva, no
texto Na televisão (em O império do grotesco
).
140
e aquilo que chamaremos de guerra semiótica”. Neste capítulo, perceber-se-á a íntima
relação entre a Propaganda e o Jornalismo uma cumplicidade que ganha notoriedade em
tempos de guerra, e que co-produz, como efeito da modulação dos afetos, a desinformação
e a apatia política de um povo. Como notou Noam Chomsky (no livro 11 de setembro, p.
32-33):
(...) trata-se de uma atitude absolutamente típica da
grande mídia, e das classes intelectuais em geral, alinhar-se em
apoio ao poder num momento de crise e tentar mobilizar a
população para esta causa (...) Para citar o editorial do New York
Times (16 de setembro): Os responsáveis agiram pelo ódio que
nutrem contra os valores prezados no Ocidente, tais como
liberdade, tolerância, prosperidade, pluralismo religioso e voto
universal’ ”.
É partindo, portanto, de uma análise da guerra mais recente a invasão do
Iraque pelos EUA e pela Inglaterra, no início de 2003 que pretendemos alcançar, com a
maior clareza possível, o conceito de “4ª Guerra Mundial” (a “guerra semiótica”, segundo
o Subcomandante Marcos). A política de relações internacionais norte-americana tem
expressado claramente a “guerra semiótica” que vem sendo travada. É um bom exemplo.
Na verdade, trata-se aqui, neste capítulo, de uma análise de caso necessária (a constituição
de uma financeirização controlada e controladora do mundo, e a postura unilateral dos
EUA) para o aprimoramento de conceitos (“guerra semiótica”, “política da comunicação”)
que sustentam esta Tese (a da produção de impotências políticas via processos
comunicacionais”).
141
Em agosto de 1997, o Subcomandante Marcos líder dos guerrilheiros
zapatistas da floresta Lacandona, em Chiapas, México publicou no jornal Le Monde
Diplomatique um texto intitulado La quatrième guerre mondiale a commencé. Este texto
rapidamente ganhou divulgação planetária, via Internet. Nele, Marcos mapeia o Planeta, e
mostra que nas relações estreitas entre Capitalismo financeiro e Globalização controlada a
“guerra semiótica”, ou “guerrilha de informações”, tem um papel crucial. O que ele chama
de “4ª Guerra Mundial” é a Era da informação em tempo real, a qual nos comunica sempre,
ininterruptamente, que o Capitalismo saiu vitorioso e que, portanto, nós devemos aceitá-lo
como “Ele” é.
Partindo da tese do Subcomandante Marcos, faremos aqui um pequeno estudo
da história da constituição política do Século XX. Não intencionamos “esgotar o assunto”,
mas apenas diagnosticar minimamente o plano dos eventos passados que “pariram” este
tempo presente. Para falarmos da relação entre “guerra semiótica” e “política da
comunicação”, por um lado, e sobre a “dobradinha” crescente entre Propaganda e
Jornalismo, por outro, situaremos, de início, as relações de força política em escala global.
Se pecamos por omissões, esquecimentos ou imprecisões, ganhamos em agilidade e
dinâmica, para que cheguemos onde queremos: uma crítica ao Semiocapitalismo
Absolutista”. É como nos diz o Subcomandante (em La quatrième guerre mondiale a
commencé - Pièce 2):
L'un des mensonges néolibéraux consiste à dire que la
croissance économique des entreprises produit une meilleure
répartition de la richesse et de l'emploi. C'est faux. De même que
l'accroissement du pouvoir d'un roi n'a pas pour effet un
accroissement du pouvoir de ses sujets (c'est plutôt le contraire),
l'absolutisme du capital financier n'améliore pas la répartition des
142
richesses et ne crée pas de travail. (...) Pour obtenir ce résultat
absurde, le système capitaliste mondial « modernise » la
production, la circulation et la consommation de marchandises. La
nouvelle révolution technologique (l'informatique) et la nouvelle
révolution politique (les gapoles émergentes sur les ruines de
l'Etat-nation) produisent une nouvelle « révolution » sociale, en
fait une réorganisation des forces sociales, principalement de la
force du travail. (...) Le secteur agricole et la pêche sont tombés de
22 % en 1970 à 12 % en 1990, le manufacturier de 25 % à 22 %,
mais le tertiaire (commerce, transports, banque et services) est
passé de 42 % à 56 %. Dans les pays en voie de développement, le
tertiaire a crû de 40 % en 1970 à 57 % en 1990, l'agriculture et la
pêche chutant de 30 % à 15 %. (...) Mais la « modernité »
néolibérale semble plus proche de la bestiale naissance du
capitalisme que de la « rationalité » utopique.
Em tempos de guerra, o uso político que se faz das mídias é bastante revelador.
Revela a “canalhice organizada”. Vejamos ainda que de modo conciso o caso das
Psychological Operations (Psyops)
70
, que se definem pela utilização planejada de
formas não-violentas de ação (a mídia), para influenciar os pensamentos e as atitudes de
grupos politicamente diferentes sejam eles inimigos, neutros ou até aliados
(http://www.attention-span.net/psyops/psyops.htm):
L’action psychologique (psychological operations ou
PSYOPS) comprends toute forme d’action planifiée prise pour
affecter la perception ou le comportement d’une cible politique
choisie sans l’usage de force militaire. L’action psychologique
70
Fonte de consulta:
http://www.attention-span.net/psyops/psyops.htm . Acesso em 01/05/2004.
143
s’inscrit dans le cadre des relations internationales dans la
mesure où un état tente d’imposer sa volonté sur un autre état”.
Trata-se de afetar os pensamentos e o comportamento do “alvo”, lançando mão
de “informações” (signos e sinais) para, explorando a potência cognitiva desse “alvo”,
produzir afetos e valores considerados como fundamentais para a dominação
(http://www.attention-span.net/psyops/psyops.htm):
Lorsque les destinataires sont étrangers l'action est
dite offensive alors que lorsque l'action est dirigée vers sa propre
population elle est dite défensive (Durandin, 1993). Son utilisation
n'est pas seulement en temps de guerre, ce qui tend à nuancer les
définitions classiques de guerres et de paix (McLaurin, 1982)”.
Os objetivos passam por desacreditar governantes e autoridades de países que
se quer controlar, ridicularizar suas tradições, semear uma “guerra intestina” entre os
cidadãos, perturbar a economia, espalhar a desordem etc. Os meios para se atingir esses
objetivos são as diversas mídias potencializadoras de afetos e signos inteiramente
modulados (e moduladores) –, que são utilizadas sob três procedimentos: a propaganda, a
desinformação e a medida ativa. Como dirá W. R. Bloom, citado no site que usamos como
fonte
71
, há sete razões para o uso das Psyops:
1. elles sont moins dispendieuses;
2. elles permettent d'atteindre un plus grand nombre d'objectifs;
71
BLOOM, W. R.. Propaganda and Active Measure. In: GAL. R. & MANGELSDORFF, A.
D.. Handbook of Military Psychology, New york, Jonh Wiley & Sons Ltd, p 694-709. Citado no
site
http://www.attention-span.net/psyops/psyops.htm . Acesso em 01/05/2004.
144
3. toutes actions ou situations ont des significations psychologiques qui peuvent être
utilisées par les actions psychologiques;
4. la population est peu favorable à l'usage de la force et les actions psychologiques
deviennent un moyen populaire d'imposer ses politiques;
5. les dilemmes de sécurité sont des phénomènes psychologiques qui peuvent avoir
plus d'effet sur les actions de l'antagoniste qu'une démonstration de force;
6. les actions psychologiques permettent d'atteindre des objectifs sans perte de vie; et
7. les actions psychologiques peuvent être implantées sans que la cible s'en
aperçoive”.
Para Bloom, trata-se de “estímulos” (signos e seus processos de semiose) que
transportam uma mensagem através dos meios de comunicação. Durandin dirá que o
tratamento da “informação” leva os indivíduos a perceberem diferentemente
(distorcidamente) a realidade. Durandin fala em modular as condutas pelo Controle das
percepções e das opiniões: La propagande a pour but d'exercer une influence sur
l'individu ou sur un groupe soit pour le faire agir dans un sens donné ou soit pour le
rendre passif et le dissuader de s'opposer à certaines actions. Alguns autores descrevem as
Psyops como sendo “uma corrupção da razão humana”, “uma miragem do intelecto”,
“uma desintegração da/do moral e da vida espiritual de uma nação pela vontade de uma
outra”. Contudo, é importante, para as Psyops, que a “informação-propaganda” não esteja
muito distante da idéia que a população faz da realidade – princípio da “verossimilhança”.
Um governo pode “desinformar” uma população, deixar de informá-la, no caso
de as “notícias” a serem transmitidas serem más, para: não baixar a auto-estima da
população; aumentar a produção e o trabalho; esconder crimes de guerra e/ou ações “pouco
145
nobres”. “Desinformar” não deixa de ser usar a liberdade de imprensa para manipular as
massas, ou ainda para falsear a percepção que a coletividade tem da realidade. Isso só pode
se dar e se torna de extrema importância numa época como a nossa, em que a mídia
é onipresente. A “desinformação” pode vir muito bem organizada: Si plusieurs signes
différents qui s'accordent pour décrire le même mensonge l'effet de la désinformation
augmente”.
Essa “guerra semiótica” se de diversas formas: omissão de fatos; negação;
minimização ou supressão de indícios; exageros; exibições; saturações; invenções etc. Por
exemplo, o exagero de certos fatos pode servir para se desviar a atenção da população
daquilo que realmente importa. Mostra-se o máximo de informações supérfluas, a fim de
mascarar as informações urgentes.
Os canais para as Psyops são muitos: os MCM (TV, rádio, jornal, revista); as
organizações específicas (ONG´s, grupos comunitários); os meios informais (rumores,
boatos); movimentos de massa (movimentos ecológicos e/ou pacifistas, congressos);
manifestações culturais (festas, competições esportivas). Muitas das “informações” são
“pressupostos lógicos” que irão, como que “naturalmente”, gerar na mente que as recebe
uma “conclusão lógica” (logicamente perfeita, mas pragmaticamente falsa). Lembremos de
Guy Debord: ninguém mais pode hoje verificar nada pessoalmente temos que acreditar
em imagens; em imagens que outros escolheram por nós.
A cobertura jornalística que a mídia globalizada fez da guerra no Iraque parece
ter transformado o que é histórico no que é histérico. Entre mortos e feridos, nem mesmo a
Verdade escapou. É aí que podemos perceber a hibridação entre Jornalismo e Propaganda.
Mas essa mistura não é nova, nem mesmo recente... apenas ganhou novas potências nos
146
dias de hoje, forjando uma nova configuração do imaginário político pós-moderno.
Clausewitz dizia que a guerra é a política por outros meios. Foucault, invertendo
genialmente a sentença de Clausewitz, dirá que a política é a guerra por outros meios.
Tentaremos nos equilibrar por entre estas duas concepções, buscando olhar ao mesmo
tempo, estrabicamente, para as duas, e tentar analisar os últimos fatos ocorridos. Vamos
então, antes de tudo, historicizar um pouco este capítulo da Tese...
É sabido que desde o Séc. XVI os europeus costumam colocar seus dedos, sua
mão ou o braço inteiro no Oriente Médio (mas igualmente em todo o Terceiro Mundo),
inicialmente na forma das transações comerciais. No entanto, pretendemos fundamentar
nossa análise no Séc. XX. Em 1904, a Casa Branca dispunha do Corolário da Doutrina
Monroe. Com isso, o presidente Theodore Roosevelt estabeleceu que as injustiças
crônicas ou uma impotência que resulte no afrouxamento geral dos laços civilizatórios
podem forçar os EUA ao exercício de um poder de polícia internacional”. Com essa
autorização unilateral, fuzileiros norte-americanos invadiram:
1- Nicarágua (1912-1933): os EUA criam ali uma Guarda Nacional, nomeando como seu
comandante Anastasio Somoza;
2- Haití (1915-1934): que ficou sob uma lei marcial até 1929. Depois da saída dos
americanos, houve dois golpes de Estado, em 1946 e em 1957, feitos pelo exército
treinado e orientado pelos militares americanos; e
3- República Dominicana (1916-1924): os EUA invadiram e criaram ali uma Guarda
Nacional, sob seu Controle. Em seguida, em 1930, o ditador Leonidas Trujillo seria
nomeado pelos americanos.
147
Em 1936, na Nicarágua, o general Anastasio Somoza instaurou uma ditadura
familiar, que seria derrubada em 1979 pela Revolução Sandinista. Na República
Dominicana, o general Leônidas Trujillo tomou o poder em 1930 e o seu assassinato,
em 1961, abriria caminho para as eleições livres. No Haiti, a ditadura da família Duvalier
também governou com as bênçãos de Washington de 1957 a 1986. Os EUA patrocinavam
essas ditaduras em troca de facilidades comerciais e financeiras. Nunca houve, de fato, um
rastro democrático em “países periféricos” após as invasões norte-americanas. Smedley
Butler, oficial norte-americano confessou, em 1933: Ajudei no estupro de meia-dúzia de
repúblicas centro-americanas para o benefício de Wall Street”.
Esses são apenas exemplos concretos de como os EUA m feito sua política
externa, ao longo do longo século XX. Historicamente, sempre que as tropas americanas
deixaram esses e outros países, deixaram também ditaduras duradouras treinadas por
aquelas tropas de ocupação americanas. Ao longo de todo o séc. XX, os EUA enviaram
seus militares a vários países da América Latina, sob o velho pretexto de democratizar e
garantir a segurança das populações locais”. Democratizar ou “democretinizar”?
Mas não é nos EUA que existem “canalhas”. Na verdade, a guerra pelo
petróleo do Iraque começou quando, em 1908, o Imperador alemão Wilhelm II obteve do
sultão Abdul Hamid a concessão sobre uma faixa de terra de 1.500km de comprimento,
atravessando a Turquia e a Mesopotâmia. A Alemanha passou a ter o direito de construir
uma estrada de ferro de Constantinopla a Bagdá e de explorar as riquezas minerais daquele
subsolo.
Entre 1914 e 1918 ocorre a Guerra Mundial tendo como uma de suas
causas aquele acordo entre a Alemanha e o Império Otomano para a construção da ferrovia
148
Berlim-Bagdá, que repercutiu na invasão do Iraque pela Grã-Bretanha, em 1914. Em 1920,
com a derrota do Império Otomano, a Inglaterra ocuparia a maior parte do Oriente Médio,
com o apoio da comunidade internacional, e criaria vários principados, dentre eles o do
Kwait, ao sul do Iraque. A Kwait Oil Company, empresa anglo-americana, reservou para si
mesma uma concessão de 99 anos para a exploração legalizada do petróleo iraquiano.
Entretanto, em 1938, o rei do Iraque, Ghazi, exigiu a anexação do Kwait ao seu país,
considerando-se roubado pelos ingleses. Neste mesmo ano, Ghazi viaja à Suíça e morre
misteriosamente. Outros insatisfeitos também morreriam misteriosamente. Depois disso,
nenhum governo iraquiano abandonou esta reivindicação.
Após a Guerra Mundial, Inglaterra e França determinaram, de acordo com
seus interesses petrolíferos, como seriam as fronteiras dos países do Oriente dio
72
. Em
1932, o poder havia voltado às mãos dos iraquianos, através de um pacto com os
britânicos. De 1920 a 1958, o povo iraquiano sofreria repressões, execuções,
enforcamentos por parte do governo real mas sempre com o apoio dos ingleses. Em
1958, forças revolucionárias rompem com a Inglaterra, e diversas reformas são iniciadas:
reforma agrária, código de garantias individuais, igualdade da mulher no caso de herança
etc. O sistema feudal britânico que tinha dado 95% das terras a 5% da população fora
ali revogado. A terra, então, foi distribuída aos camponeses.
Entre 1939 e 1945 se desdobra a 2ª Guerra Mundial. Sempre com participações
decisivas dos EUA. Em 1941, ingleses ocuparam novamente o Iraque, para garantir
petróleo. Com o fim da Guerra Mundial, muitos países se encontravam em frangalhos,
em sérios problemas econômicos. Toda guerra produz um impacto fortíssimo no Planeta
72
A Inglaterra tinha traçado fronteiras imprecisas, de propósito, entre o Irã e o Iraque e as
disputas entre os dois Estados seriam a causa da guerra conduzida por Saddam Hussein.
149
menos nos EUA, que foram o único país a lucrar com aquelas guerras mundiais. Segundo o
professor de Economia Reinaldo Gonçalves (UFRJ), sempre houve um aumento brutal do
PIB norte-americano durante as suas guerras (“keynesianismo militar”: modelo de
crescimento econômico sustentado pelos gastos públicos). A 2ª G.M. termina em 1945, e
em 47 surge nos EUA a idéia de emprestar dinheiro àqueles países fragilizados, em troca
de “alinhamento” com a ideologia capitalista. São então criados o Plano Marshall e a
Doutrina Truman, que se tornam mecanismos de Controle pelo endividamento das nações.
Naquela época pós-guerra, a pobreza da Europa conferiu à necessidade de
produtos norte-americanos um caráter de urgência. Era preciso que os EUA “dessem” suas
mercadorias para a Europa, sem pagamentos único modo de endividar ainda mais a
Europa. Os EUA oferecem ajudas econômica, política e tecnológica. Estamos falando do
início da Guerra Fria (nome dado pelo analista político britânico Walter Lippman). Víamos
ali um embate ao modo da dialética (seqüências de afirmações e negações, intermediadas
por sínteses provisórias): a URSS cria, ainda em 47, para fazer frente àquelas medidas
norte-americanas, o Cominform (para coordenar as atividades dos partidos comunistas no
mundo) e, em 49, cria também o Comecon (para integrar economicamente o bloco
comunista).
Em resposta, os EUA criam, também em 49, a OTAN (Organização do Tratado
do Atlântico Norte), que objetivava militarizar o Plano Marshall, significando que um
ataque militar a qualquer país capitalista passaria a ser considerado como “ataque a todos
os países” – e deveria ser devidamente punido. Com a OTAN começava uma tripla corrida:
150
a armamentista, a espacial e a ideológica
73
. Como afirma o Subcomandante Marcos (em La
quatrième guerre mondiale a commencé):
La « guerre froide », la mal nommée, atteignit de très
hautes températures : des catacombes de l'espionnage
international jusqu'à l'espace sidéral de la fameuse « guerre des
étoiles » de Ronald Reagan; des sables de la baie des Cochons, à
Cuba, jusqu'au delta du Mékong, au Vietnam; de la course effrénée
aux armes nucléaires jusqu'aux coups d'Etat sauvages en Amérique
latine; des coupables manoeuvres des armées de l'OTAN aux
menées des agents de la CIA en Bolivie, où fut assassiné Che
Guevara. Tous ces événements ont fini par faire fondre le camp
socialiste comme système mondial, et par le dissoudre comme
alternative sociale.
Enquanto isso, em 1961, o general Kassem líder revolucionário e chefe do
governo iraquiano decide retomar o Kwait pela força. Em 63, Kassem é assassinado por
oficiais kwaitianos. A Inglaterra, enfraquecida pela Guerra Mundial, não podia
garantir as posições privilegiadas das grandes companhias petrolíferas no Oriente Médio
então, propôs aos EUA um pacto “para defender o mundo livre”. Contudo, na realidade,
tratava-se de uma aliança para assegurar a proteção das companhias petrolíferas ocidentais
e garantir a exploração do petróleo pelos EUA e pela Inglaterra.
73
Segundo o economista francês François Perroux, o Plano Marshall incita a maior experiência
de economia dirigida em escala internacional que jamais foi tentada”. (Perroux apud Bataille, p.
200).
151
Em 1963, o novo regime iraquiano, que chegara ao poder com imenso apoio
popular, inicia uma queda-de-braço com a IPC
74
. A idéia era impedir que os iraquianos
invadissem o seu próprio país. O governo iraquiano, então, nacionalizou 90% de suas
terras o que provocou a ira capitalista, que patrocinou um golpe de Estado, ainda em 63,
pelo partido Baath, apoiado por grupos de interesses anglo-americanos, e financiado pelo
Kwait. Kassem tinha sido assassinado e o regime ditatorial e torturador voltou com toda
a força. Mais de 400 mil pessoas foram presas e torturadas, dentre as quais 20 mil nunca
reapareceriam.
Esse golpe no Iraque possibilitou: o cancelamento da lei 80, sobre a
nacionalização do petróleo, a abolição da igualdade das mulheres, a suspensão da reforma
agrária, o “arquivamento” do direito ao trabalho e o fim das negociações sobre os direitos
do povo curdo. Alguns anos mais tarde, vários líderes do golpe revelaram que estavam a
serviço dos grupos capitalistas ingleses e americanos. Em retribuição, os americanos e os
franceses forneceriam armas aos iraquianos, para a sua guerra contra os curdos. O Iraque já
não tinha mais Soberania frente aos EUA.
Em 1964, o Baath deixa o poder, e os novos governantes tentam instaurar no
Iraque um socialismo baseado no modelo egípcio. Após a nacionalização do setor bancário
e das grandes indústrias, o governo decide criar uma companhia nacional do petróleo
iraquiana (a INOC) e tenta negociar a exploração do petróleo com a IPC.
74
IPC: Companhia petrolífera de propriedade do Reino Unido, da França e dos Países Baixos,
países que controlavam as riquezas do Iraque desde o fim da 1ª Guerra Mundial, e não utilizavam a
totalidade do potencial petrolífero a fim de manter os preços controlados, deixando uma mínima
parte dos lucros para os iraquianos, para impedir a reconstrução do Iraque, que foi pilhado pelo
Império Otomano e pelos próprios britânicos.
152
Em julho de 1968, o Baath volta ao poder, retoma a repressão à oposição e
firma acordos com as superpotências. No início da década de 70, o Iraque nacionaliza o
petróleo e reinicia um grande programa de reconstrução do país com obras de
infraestrutura, investimentos em educação (o Iraque ganha 3 medalhas da UNESCO) e
uma campanha de alfabetização. A receita do petróleo serviria para essa reconstrução.
Em 1980, o Iraque dispunha de 15 bilhões de dólares de reservas cambiais,
antes da guerra contra o Irã. Em 1988, depois do conflito, o Iraque tinha 70 bilhões de
dólares de dívida externa sendo 40 bilhões de dólares devidos ao Ocidente e ao Terceiro
Mundo; 28 bilhões de francos devidos à França; e uns 30 milhões de dólares devidos aos
países do Golfo Pérsico (Arábia Saudita e Kwait). A guerra Irã-Iraque deixaria 3 milhões
de mortos. Mesmo assim, o nível de industrialização do Iraque, em 1991, ainda era
comparável ao da Europa. Mas isso é inaceitável para os “donos do mundo”, deste
“mundo-cão”: em 1991 vem a Guerra do Golfo, que atrasaria o desenvolvimento do Iraque
em cerca de 50 anos, levando-o à sua era pré-industrial. A guerra contra o Iraque é
fundamentalmente geopolítica, mas também econômica e simbólica o subsolo do Iraque
tem petróleo ainda para mais 1 ou 2 séculos de exploração. Era “inevitável” que ele fosse
atacado.
Quando Saddam Hussein revelou aos americanos sua intenção de reconquistar
o Kwait, em 1990, os EUA acenaram que não iriam se meter. Saddam acreditou, então,
nesse “sinal verde”. No entanto, foi a invasão começar que os EUA passaram a atacar
Saddam. Os países ocidentais querem dominar o petróleo do Oriente Médio, e é por isso
que nenhum país dali pode conquistar sua Soberania, sua independência
75
. Depois da
75
O imperialismo americano sempre se esforçou para manter conflitos para se apoderar das
riquezas.” (Subhi Toma, em “O Iraque, vítima do petróleo”. In: O livro negro do capitalismo
).
153
guerra com o Irã (1988), os EUA exigem que o Iraque se desarme e, para isso, decretam
o embargo (de 1991 a 2003) para obrigá-lo a se curvar. Enquanto isso, os EUA protegiam
Israel descaradamente, através de pressões, no Conselho de Segurança da ONU.
Surge uma aliança de 33 países, dentre os mais poderosos do mundo, com uma
propaganda massiva para mobilizar a opinião pública, retratando os iraquianos como 18
milhões de fascistas que ameaçam a paz da humanidade”. A opinião pública passava a
aceitar a idéia de uma guerra contra o Iraque. O Iraque tinha se tornado uma ameaça para
a paz mundial”, apesar de sua economia representar naquele momento um por cento da
economia das potências rivais. Na Arábia Saudita e em Israel, a imprensa estava submetida
ao controle militar. Na mídia, o Iraque saía vencido. Era ali o jogo da mentira, do
desmentido, da calúnia, da difamação, da desinformação travestida de informação. Isso se
chama Psyops.
Ali, os EUA proibiam o Iraque de usar suas bombas químicas Sarin e Tabun
(que matam as pessoas em volta do local onde elas caem). Mas os EUA usavam sua bomba
FAE (Fuel Air Explosive), que acaba com todo o oxigênio existente num círculo de 1,5 km
quadrado, matando, por asfixia, tudo aquilo que respira. Isso sem falar das bombas
americanas de Napalm, de fósforo e de fragmentação. Os EUA travam com o Iraque uma
guerra tripla: militar, de embargo e de destruição do tecido social. É uma forma cruel de
“asfixia”: o embargo econômico (que sempre vem acompanhado do “embargo semiótico”).
Vamos lembrar que uma população esfomeada pensa em comer, não faz
uma revolução
76
. O embargo é uma terapia da asfixia”, que tem lugar em “tempos de
paz”, e que incide sobre as nações que não se alinham ao modelo capitalista norte-
76
Lembre-se de Sêneca: “Eu canto a canção de quem me serve o pão”.
154
americanizado. O povo do Iraque é um povo em perigo. Mas nós vamos continuar
comendo “Big Macs” e “descomendo” uma “massaroca” embolada feita de “dois
hambúrgueres-alface-queijo-molho especial-cebola-picles-num pão com gergelim”.
Em 1990, antes do embargo, o Iraque correspondia aos critérios da OMS: para
cada indivíduo, o país investia 30 dólares/mês; o orçamento para os hospitais era de 500
milhões de dólares; morria 1 criança em cada 24 mil. Alguns anos depois do embargo: para
cada indivíduo são gastos 2 dólares/mês; o orçamento é de 37 milhões de dólares para a
saúde; morrem 92 crianças em cada mil. O peso médio das crianças iraquianas pós-
embargo foi reduzido em 22%.
Para os EUA, o primeiro resultado comercial da guerra contra o Iraque foi o
Controle do mercado de compra e venda de armamentos, no Oriente Médio, mercado que
ali estava em declínio. Os lucros dos fabricantes de armas vêm mais do exterior do que do
mercado interno americano. A partir daí, os fabricantes de armas americanos tiveram seus
negócios alçados a mais de 100 bilhões de dólares – o que fez surgir as 3 gigantes do setor:
a Lokheed-Martin, a Boeing-MacDonnel Douglas e a Raytheon.
Enquanto isso (no início da década de 90), no resto do mundo o equilíbrio
geopolítico dos dois blocos (o capitalista e o comunista), tinha chegado ao fim, com o fim
da Guerra Fria e a “transição” pela Era da Coexistência Pacífica, pela qual EUA e URSS
haviam postulado um entendimento diplomático e até mesmo jurídico-econômico, visando
ao abrandamento das tensões dessas duas superpotências da Guerra Fria. Mas, em verdade,
aos poucos, o bloco capitalista se fazia mais e mais forte.
Com o esfacelamento da URSS e, em 1989, a derrubada do Muro de Berlim
que separava as “duas Alemanhas”, a ocidental-capitalista e a oriental-comunista –, os
155
EUA se tornaram a única superpotência planetária, não mais dispondo de um inimigo
ideológico de fato. Ali, o Capitalismo passa a não ter mais o seu “Outro”, que pudesse
limitá-lo ou contra ele servir de contraponto ou referência exterior. O capital pôde então se
espalhar pelos quatro cantos do globo, através do Mercado-Total (e isso é a Globalização).
Era o fim da “3ª Guerra Mundial” (Guerra Fria), e o início da “4ª Guerra Mundial”.
O que o Subcomandante Marcos chama de “4ª Guerra Mundial” é a hegemonia
capitalista, com sua guerra para conquistar novos territórios, capturando-os, incorporando-
os e transformando-os em mercados livres” (pelo qual países se fazem livres para
consumirem os produtos e serviços das megaempresas, bem como livres para se
endividarem cada vez mais). E, segundo ele, isso não se faz sem a produção e/ou
reprodução de Sentidos comprometidos com o Império. Como afirma o Subcomandante
(La quatrième guerre mondiale a commencé):
Dans cette nouvelle guerre, la politique, en tant que
moteur de l'Etat-nation, n'existe plus. Elle sert seulement à gérer
l'économie, et les hommes politiques ne sont plus que des
gestionnaires d'entreprise. Les nouveaux maîtres du monde n'ont
pas besoin de gouverner directement. Les gouvernements
nationaux se chargent d'administrer les affaires pour leur compte.
Le nouvel ordre, c'est l'unification du monde en un unique marché.
Les Etats ne sont que des entreprises avec des gérants en guise de
gouvernements, et les nouvelles alliances régionales ressemblent
davantage à une fusion commerciale qu'à une fédération politique.
L'unification que produit le néolibéralisme est économique; dans le
gigantesque hypermarché planétaire ne circulent librement que les
marchandises, pas les personnes. (...) Il s'agit d'une destruction des
bases matérielles des Etats-nations, mais également d'une
destruction historique et culturelle.
156
Nesse processo macropolítico, os Estados-Nação necessitam se reconfigurar
completamente, para sobreviverem ao poder avassalador da Nova Ordem Mundial. Seus
territórios esperam pelo novo “senhor”, o Mercado, que os recompensará, incluindo-os na
lógica do capital. A “4ª Guerra Mundial” se passa nos grandes centros financeiros do
mundo verdadeiros centros de tomadas de decisão –, afetando todos os Estados-Nação,
numa “guerra total”, informacional e comunicacional.
A “mundialização” nada mais é do que a extensão totalitária da lógica
capitalista por todos os aspectos da vida até que o Mercado se confunda com a própria
vida; até que o consumo se confunda com a cidadania. Fala o nosso Subcomandante (La
quatrième guerre mondiale a commencé):
Grâce aux ordinateurs, les marchés financiers, depuis
les salles de change et selon leur bon plaisir, imposent leurs lois et
leurs préceptes à la planète. La « mondialisation » n'est rien de
plus que l'extension totalitaire de leurs logiques à tous les aspects
de la vie. (...) La mondialisation a réussi à y effacer les frontières
entre des Etats rivaux, ennemis depuis des siècles, et les a obligés à
converger vers l'union politique.
A bomba financeira mata mais do que as bombas físicas ou químicas. Jean
Ziegler escreveu um texto chamado Os banqueiros suíços matam sem metralhadoras. E
Philippe Paraire escreveu um texto chamado Os mortos-vivos da globalização. Ambos os
textos, e muitos outros, estão numa obra chamada O livro negro do capitalismo (Org.:
Gilles Perrault). As vítimas da “4ª Guerra Mundial” são os excluídos (do mundo do
trabalho), mas também os novos incluídos (pela vida financeira). Os EUA não são o
157
Império – o Império é capitalista, transnacional, não-ideológico e não-nacionalista. Mesmo
os EUA são teledirigidos pela dinâmica do mercado financeiro, via FMI, Banco Mundial e
OMC (Organização Mundial do Comércio). Nenhum Estado-Nação resiste hoje ao mais
simples ataque do capital especulativo (ver Bauman: Globalização – as conseqüências
humanas). Segundo o Subcomandante Marcos, nessa Nova Ordem Mundial não
Democracia real, nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade a não ser “de
fachada”, para “gringo ver”. Os governos servem, hoje mais do que nunca, para legalizar a
rapina, através de leis que contrariam os interesses de seus povos. Marcos diz, numa
passagem tenebrosa:
Le fils (le néolibéralisme) dévore le père (le capital
national) et, au passage, truit les mensonges de l'idéologie
capitaliste: dans le nouvel ordre mondial, il n'y a ni démocratie, ni
liberté, ni égalité, ni fraternité. La scène planétaire est transformée
en nouveau champ de bataille règne le chaos. (...) Des pays
entiers deviennent des départements de la méga-entreprise
néolibérale, qui produit ainsi, d'un côté, la destruction /
dépeuplement, et, de l'autre, la reconstruction / réorganisation de
régions et de nations.
O american way of life” ajuda a destruir as bases materiais dos Estados-
Nação, levando-lhes uma desconstrução histórica e cultural. Trata-se de uma guerra
planetária que, segundo o Subcomandante, é baseada em sete pilares: 1- a dupla
acumulação de riqueza e de pobreza nos dois pólos da sociedade global; 2- a total
exploração capitalista do mundo; 3- o pesadelo das condições de existência de grande parte
da humanidade; 4- a relação íntima entre o poder e o crime; 5- a violência dos Estados; 6-
158
o mistério insondável da macropolítica; 7- as formas múltiplas de resistência que se
desdobram disso tudo.
Mas o que importa reter aqui é o seguinte: o Planeta todo passou a se organizar
ao modo do sistema capitalista, o qual não tem mais “lado de fora”. O Mercado se espraia
por toda parte, por toda a nossa existência, até se confundir com a própria vida. Ele penetra
em países e cidades sem respeitar “barreiras legais” – ou então subornando os legisladores
desses locais. E se isso não for “por bem” (suborno), será “por mal” (ditaduras sangrentas).
Por exemplo: ao longo da década de 90, os EUA reduziram drasticamente (mais ou menos
em 40%) o número dos soldados em suas forças militares. Mas isso, longe de significar a
busca da paz ou a intenção de desarmamento, se deveu a dois fatores inegáveis:
1- A contratação de empresas privadas de serviços bélicos” (num sistema chamado
outsourcing), como a Dyncorp com mais de 20 mil empregados e contratos
milionários com o governo norte-americano, para dar “treinamento militar” aos
exércitos do Terceiro Mundo (Panamá, Haití [que, ao mesmo tempo é aqui e não é
aqui], Somália, El Salvador, Bósnia), para que estes pudessem fazer suas ditaduras
militares –, ou a MPR que treinou e assessorou o exército da Croácia, e que meses
mais tarde resultou nas sangrentas ofensivas contra a população sérvia, culminando
com o “Massacre de Krajina” (em que croatas dizimaram todos os homens, mulheres e
crianças que encontraram pelo caminho), massacre esse que foi “abafado” pelos EUA
no Tribunal Internacional de Haia. (Obs.: os contribuintes norte-americanos estão
financiando, com seus impostos, e provavelmente sem sabê-lo, essas contratações de
“matadores de aluguel”).
159
2- A introdução, nos EUA, de novas tecnologias de destruição em massa exclusividade
norte-americana, “por direito”, e que nenhum outro país pode ter: nem o Iraque,
bombardeado, nem a Coréia do Norte, não-bombardeada –, como os mísseis com
“margem de erro de 30 cm” etc. os EUA “podem” ter, e usar, armas de destruição
em massa (o que, devido ao seu histórico, deveria nos causar aquela mesma
insegurança que eles dizem buscar combater). São armas químicas, não “físicas”;
são armas atômicas, nucleares, de nêutron, de urânios enriquecido e enfraquecido
(radioativos, usados pelos americanos na Guerra do Golfo); são armas químicas de
mostarda e armas “semióticas” de ketchup (nos hambúrgueres do McDonalds, com seu
“Ronald McDonald”, aquela versão globalizada do palhaço “Bozo”).
As bombas de mostarda causam queimaduras graves, cegueira e doenças
pulmonares. As bombas Tabun causam asfixia, paralisia, convulsões e doenças nervosas.
As bombas de gás Sarin causam espasmos, cegueira, asfixia, doenças nervosas e perda do
controle dos músculos. As bombas de varíola causam dor de cabeça, febre, calafrios,
erupções na pele. As bombas de antrax causam infecção generalizada, febre, dificuldade
de respirar, pulsação elevada, dor no peito, choque e envenenamento do sangue. Só a título
de lembrança: em 1922, quando um rei curdo foi proclamado, as populações curdas foram
bombardeadas e atacadas com gás pelos ingleses. Essa prática atravessaria todo o Século
XX.
Na Guerra Irã-Iraque (de 1980 a 88), os iranianos mataram centenas de curdos
com gás de cianeto. E isso foi comprovado, na época, sem espaço para dúvidas como
garante o cientista político Stephen Pelletiere, a maior autoridade mundial em “Iraque”, e
que era analista da CIA naquela época. Contudo, o governo norte-americano e sua mídia
oficial colocaram a culpa no Iraque, divulgando que o Iraque havia lançado ali gás de
160
mostarda. Mas os EUA pretendiam, antes mesmo disso, demonizar o Iraque de Saddam
Hussein (do Baath, Partido Socialista da Ressurreição Árabe, de um nacionalismo laico).
Até 1972, a exploração do petróleo no Iraque era feita pelas transnacionais
Shell, Mobil, BP e Exxon. Em 72, o Iraque nacionalizou (estatizou) a exploração do
petróleo, tirando-a das mãos dessas empresas. Se juntarmos o ódio capitalista dessas
empresas com a força da comunidade judaica norte-americana (que não queria ver uma
nação árabe dominando o Oriente Médio), entenderemos o primeiro lado da questão. Se
lembrarmos que o Iraque detém a maior bacia hidrográfica do Oriente Médio os rios
Tigre, Eufrates, Zab Menor (ao sul) e Zab Maior (ao norte) –, e represas e sistemas
avançados de exploração dessa água, entenderemos o segundo lado da questão. Existe um
antigo projeto, engavetado por Saddam, que possibilitaria a distribuição da água iraquiana
para todo o Oriente Médio.
Se compreendermos que quem dominar o petróleo e a água, controlará o
Oriente Médio no Século XXI, e isso é uma questão geopolítica, chegaremos a uma visão
bastante clara dos interesses capitalistas nessa última guerra
77
. Fora, é claro, que uma
guerra como essa ajuda os EUA a saírem da recessão; reaquece a indústria armamentista;
faz Bush-filho finalmente chamar a atenção (e ganhar o respeito) de Bush-pai; uma de
“bonzinho” e protetor do Planeta contra terroristas demoníacos”; gasta o excedente
produzido e acumulado etc.
77
Concordando com Marcel Granet e com George Dumézil, Georges Bataille diz: “Uma sociedade
verdadeiramente militar é uma sociedade de empreendimento, para a qual a guerra tem o sentido
de um desenvolvimento de poderio, de uma progressão ordenada do império(A parte maldita, p.
93).
161
Poderíamos mesmo dizer que o excesso de produção (nas sociedades industrial
e pós-industrial) faz parte da origem das últimas guerras
78
. Isso sem falar do mais
aterrorizante: se sabe que Saddam Hussein tinha acabado de criar uma lei que
desvinculava o preço do seu petróleo do dólar americano, para vinculá-lo ao euro o que
“quebraria” a economia norte-americana. Então, antes de quebrar economicamente, os
EUA quebram física e semioticamente os outros. Isso quer dizer que, do ponto-de-vista
americano, não havia momento melhor para invadir e tomar o Controle do Iraque.
Logo após o “11 de Setembro”, 9 redes de TV norte-americanas recusaram
comerciais da embaixada saudita (“Povo da Arábia Saudita: aliados contra o terrorismo”),
alegando: “sempre queremos dinheiro, mas os comerciais sauditas são impróprios para a
nossa marca”. A sustentação da identidade da marca acima de tudo! Acompanhando isso: o
principal nome a comandar o Iraque no pós-guerra é o do general Jay Garner. Com ele, as
empresas Parsons e Bechtel concorreram para a reconstrução física do Iraque, no projeto
“Futuro do Iraque”. Os EUA sempre justificaram suas invasões com o pretexto da
“proteção dos cidadãos locais e promoção da Democracia”.
Agora, vamos nos aproximar mais de uma análise de como a mídia esteve
fazendo a cobertura da Guerra no Iraque. Esta foi a primeira vez na História que uma
guerra foi coberta pela mídia 24 horas por dia. Foram mais de 3 mil jornalistas do mundo
inteiro. Aidan White (Presidente da Federação Internacional dos Jornalistas) afirma que
esta foi a primeira guerra da Era da Informação, e ela marcou profundamente o papel da
78
Segundo Georges Bataille (A parte maldita) e François Châtelet (Uma história da Razão), diante
da acumulação de produção e de energia, sociedades primitivas faziam festas de homenagem aos
deuses, gastando, desperdiçando o excedente acumulado. Diferentemente, nossa “civilização” faz a
guerra. Contudo, deixar a guerra como única saída para se desfazer do excedente das forças
produzidas é ter de assumir a responsabilidade dessa guerra.
162
mídia atual. O que se viu foi uma clara linha divisória na cobertura da guerra – de um lado,
os ocidentais; de outro, os árabes. Neste sentido, como separarmos as funções do
Jornalismo daquelas da Propaganda?
Este conflito marcou também o fim do reino absoluto das grandes agências de
notícias e das televisões ocidentais. A rede americana CNN que cobriu sozinha a Guerra
do Golfo (1991) perdeu terreno para sua concorrente, a Fox, e perdeu a sua audiência
árabe para a Al-Jazeera (do Qatar). Na Guerra do Golfo, tínhamos Bush-pai e Saddam,
ambos, assistindo ao noticiário da CNN. Havia ali, claramente, um “sistema global de
informação” (segundo Waddick Doyle, professor da Universidade Americana em Paris).
Havia uma única versão dos fatos e fosse esta versão verdadeira ou falsa, o efeito era o
mesmo: a produção e reprodução de certezas e de uma sensação de segurança quanto à
informação consumida. As notícias, ali, tinham o caráter cíclico típico das remissões ao
mesmo”, ad infinitum. A Verdade era construída pela repetição e esse mecanismo é
explicado pelo conceito de tautismo(híbrido de tautologia com autismo), de Lucien Sfez
(em Crítica da Comunicação): “repito, logo provo”.
Aidan White ainda diz que esta cobertura da guerra foi a mais intensa, mas não
foi a melhor possível. Isso porque mesmo com milhares de câmeras, microfones, máquinas
e computadores, a cobertura foi escandalosamente seletiva e tendenciosa (para os dois
lados). Por estarem acompanhando as tropas invasoras, os mais de 500 jornalistas
perderam sua independência, em troca de segurança (estes não foram mortos). Foi dos
mais de 2.000 repórteres “independentes” que saíram a maioria dos jornalistas mortos e
feridos – provavelmente atacados pelo famoso “fogo amigo” (um fogo mui amigo!”,
segundo Henrique Antoun) o que deixou um rastro de críticas e suspeitas. A Verdade,
163
antes centrada e agora cambaleante, vai aos tropeções, evolui aos trancos e barrancos pelas
avenidas (infovias) do espetáculo comunicacional. Estamos em busca do Sentido perdido.
Desde que os romanos “tomaram para si a administração da Verdade”, depois
da época de ouro da Grécia, que esta, a Veritas, ganhou a primazia no Ocidente (contra a
Alétheia, a Verdade antiga, grega). Desde então, Verdade significa “adequação entre a
realidade e o discurso”. o Tomás de Aquino desenvolveu esta concepção de Verdade,
chamando-a, em Latim, de Adequatio: o que se diz deve ser coerente (adequado) com o
que se vê.
Na nossa Pós-Modernidade, vivemos a crise das grandes narrativas (de
interesse coletivo), e o gradual predomínio das micronarrativas (de interesse pessoal) – ver
Jean-François Lyotard, no livro O pós-moderno. E é justamente isso que vimos na
cobertura jornalística dessa última guerra: informações desencontradas, desconectadas
entre si; sensação de se estar à deriva; reprodução de verdades parciais sobre uma realidade
única. Os próprios jornalistas do jornal O Globo diziam estar “perdidos” num mar de
informações não-seguras, não-verificáveis, não-apuráveis lhes restava escreverem o
que cada lado do conflito afirmava ser a “Verdade dos fatos”. Este é um exemplo violento
das crises da referência, da representação, do sujeito, das identidades social e coletiva. O
eu se fragmentou – o eu virou mero ditongo. É como afirma o Subcomandante Marcos (em
La quatrième guerre mondiale a commencé - Pièce 6):
Des faits isolés ? La suppression des frontières
commerciales, l'explosion des télécommunications, les autoroutes
de l'information, la puissance des marchés financiers, les accords
internationaux de libre-échange, tout cela contribue à détruire les
Etats-nations. Paradoxalement, la mondialisation produit un
monde fragmenté, fait de compartiments étanches à peine reliés
164
par des passerelles économiques. Un monde de miroirs brisés qui
reflètent l'inutile unité mondiale du puzzle néolibéral. (...) La
mégapolitique englobe les politiques nationales et les relie à un
centre qui a des intérêts mondiaux, avec, pour logique, celle du
marché. C'est au nom de celle-ci que sont décidés les guerres, les
crédits, l'achat et la vente de marchandises, les reconnaissances
diplomatiques, les blocus commerciaux, les soutiens politiques, les
lois sur les immigrés, les ruptures internationales, les
investissements. Bref, la survie de nations entières”.
Um dos maiores filósofos do Séc. XX, Martin Heidegger afirmou, durante a
“2ª Guerra Mundial” (em A superação da metafísica): A guerra não é mais aquilo que
pode chegar à paz. A guerra tornou-se uma aberração do uso e abuso dos entes, que
progride na paz e em paz”. A idéia-crítica de Heidegger é que a paz tornou-se sem sentido
e inconsistente. Nessa guerra de valores que tentam se afirmar sobre outros valores, só uma
idéia atravessa o mundo “só uma palavra me devora” –, penetrando a subjetividade do
público “do cabo ao rabo”: o direito de informar” (pregado pelo “neoliberalismo de dois
gumes”) surge acompanhado do “direito de ser informado” (reivindicado pelo
“individualismo atomizado”). Ninguém, em sua consciência, escapa a isso. A Política
está inteiramente midiatizada, mas a mídia, ao contrário, parece continuar despolitizada.
Isso só demonstra a força da mídia e a fragilidade da Política.
A Comunicação se traduz no único modelo cultural possível no Império: para o
Bem (com algum hacktivismo) ou para o Mal (com a massificação das subjetividades).
Hoje, as informações são produzidas em larga escala (exemplo das agências de notícias e
das novas tecnologias de transmissão da informação videofones da Cisco Systems) e,
portanto, deverão ser consumidas igualmente em larga escala e em alta velocidade
165
(exemplo do ciberjornalismo denominado “o último minuto” ou “o último segundo”). Em
1977, o pensador francês Paul Virilio afirmava o duplo aspecto da Política: a velocidade
e a guerra.
O professor Muniz Sodré escreveu (em A comunicação do grotesco, p. 07):
Por trás do racionalismo de Apolo (a escrita) e do arrebatamento de Dioniso (a imagem),
se encontra o olho comercial de Hermes”. Pegando carona nesta frase antológica,
afirmaremos: por trás do “salvamento do Planeta” está o “olho-gordo” no petróleo e na
água do Iraque.
uma guerra que corre paralelamente àquela das bombas (guerra
termodinâmica, em que pessoas explodem pelos ares): a “guerra semiótica”, midiática (ou
eletrônica – seja analógica, seja digital –, em que as mentes implodem no éter, via satélite),
que batalha a cada minuto pela adesão da opinião pública internacional, o que facilitaria
bastante o trabalho de “captura e incorporação”, não do Oriente Médio, mas de todo o
Planeta. Os EUA divulgam que querem “reconstruir o Iraque” mas parece que eles
precisavam, antes, destruí-lo por completo, para então “reconstruí-lo”. Estima-se que a
tal “reconstrução” do Iraque deva render algo em torno de US$ 900 bilhões às empresas e
empreiteiras norte-americanas (as licitações correram soltas nos EUA; o Iraque foi todo
mapeado e dividido no papel, formalmente – agora, trata-se de fazê-lo materialmente).
Em 1991, somente o correspondente Peter Arnett (CNN) cobria a Guerra do
Golfo, diretamente de Bagdá. Nesta “Guerra de Bush-filho”, foram milhares de repórteres.
A guerra ficou espetacularizada de vez. Mas com o World Communicator, parece que um
único enviado pode fazer o trabalho de toda uma equipe de TV – é um desgraçado,
166
duplamente desgraçado (vai sozinho para a encrenca e ainda trabalha feito um jumento).
Mesmo assim, são milhares de enviados, de centenas de “máquinas de informar”.
A mídia oficial (jornal O Globo, de 26 de março) faz matérias sobre a riqueza
pessoal de Saddam Hussein e nós nos acostumamos a repetir, com as novelas, que todo
milionário é malvado, sujo e infeliz, e que todo pobre é honesto, limpinho, feliz e
bonzinho. Portanto, Saddam deve ser malvado mesmo. Na mídia internacional, diariamente
EUA e Iraque divergiam em suas informações sobre a Guerra: a Verdade é alvo-móvel. O
Pentágono, como se sabe, levou 500 jornalistas junto com suas tropas. O Iraque possuía
funcionários do Ministério da Informação para acompanharem jornalistas em sua cobertura
da Guerra o que censura a liberdade de expressão. Para os americanos, o regime de
Saddam estava sempre “em chamas, prestes a ruir”... Saddam estava sempre “ferido de
morte”, “milhares de soldados iraquianos se rendiam sem parar”. Para os iraquianos, os
helicópteros dos EUA eram sempre “abatidos por milícias iraquianas”, a resistência
continuaria “sempre firme”, vários soldados da coalizão “foram feitos reféns”. E no resto
do mundo, ficamos sem saber o que de fato estava (e está) acontecendo por lá.
Surge a tal questão da ética no Jornalismo. Devemos ou não publicar as fotos
de mortos, feridos e prisioneiros de guerra? Devemos ou não divulgar massivamente o que
pensamos? Devemos ou não denunciar planos secretos descobertos? Devemos ou não
lançar mão de declarações “em off”? Como ser imparcial, se a própria natureza humana é
essencialmente parcial e passional (como dizia o filósofo David Hume)?
Quais os efeitos dessa guerra (ou invasão, golpe de Estado) na história das
Relações Internacionais? Onde está a Verdade? O próprio jornal O Globo deu uma matéria
enorme, no dia 26/03, intitulada: Verdade, uma vítima da guerra (por José Meirelles
167
Passos). Isso tudo é reflexo de um mundo que perdeu seus parâmetros mínimos e antigos,
mas que ainda não inventou outros minimamente seguros.
A mídia norte-americana fazia duas edições diárias: uma para o público interno
(população e governo), defendendo irrestritamente a invasão; outra para o público externo
(demais países), mais cautelosa e algumas vezes até crítica. Essa aula de mau-caratismo no
Jornalismo, esse exemplo de imoralidade de Mercado é o que Chomsky chamaria de
“neoliberalismo de dois gumes”, ou de “Democracia de Mercado”. Não se podia
desagradar nem o público interno, inicialmente majoritariamente pró-guerra, nem o público
externo, majoritariamente anti-guerra. É algo que se aprende ilocutoriamente (de modo
não-verbal) com as “leis de mercado”. Sabemos que os EUA discutiam o pós-guerra
ainda no período pré-guerra. A Grã-Bretanha dizia querer um governo da ONU; os EUA
indicaram um general americano, Jay Garner. A arrogância tem hoje as cores da bandeira
americana, mas também tem a agilidade e a flexibilidade do Semiocapitalismo do Império.
O repórter Peter Arnett foi demitido pela CNN, que é pró-guerra, por ter dado
uma entrevista a uma TV iraquiana criticando a ofensiva dos EUA. No mesmo dia, ele foi
contratado pelo jornal inglês Daily Mirror, que é anti-guerra. O repórter free-lancer Philip
Smucker foi afastado do front, pelo Pentágono, por estar “abrindo muito a boca” sobre as
estratégias da coalizão. Outros repórteres ali foram simplesmente censurados pelas tropas
da coalizão. Eles tiveram seus aparelhos eletrônicos confiscados. Isso porque esses
repórteres, para terem o direito de acompanhar as tropas, tiveram que assinar um
documento chamado de “Guia de Relações Públicas” onde estão registradas as “regras
do jogo”: o governo teria total hegemonia sobre as informações, sem que os jornais
pudessem entrar, futuramente, com ações na Justiça. Muitas notícias tiveram que ser
168
retidas. Conseqüência: diversas imagens transmitidas como se fossem “ao vivo” tinham de
fato sido gravadas horas antes.
Outra exigência do governo dos EUA foi a de fazer os textos passarem pelo
copidesque dos comandantes militares no front. As autoridades iraquianas também
censuraram seus jornalistas caso ocorrido com a rede Al-Jazeera, no início de abril de
2003. Um fotógrafo do Los Angeles Times, Brian Walski, foi demitido por ter alterado uma
fotografia, manipulando a imagem “para dar a ela uma maior dramaticidade”. Registre-se:
só foi demitido por ter sido divulgada essa adulteração.
Nós vimos eclodirem duas guerras: a primeira é óbvia; e a segunda é essa que
se faz pela sedução da opinião pública (eis a “guerra semiótica” organizada pelas Psyops).
A mídia norte-americana contou histórias do drama de soldados feridos neste combate
(como Jessica Lynch), para comover o público e, assim, arrebanhar mais e mais
simpatizantes (rebanhos, massa, alma coletiva, unidade mental). O texto chega a ser
“brega”: Mesmo ferida, Jessica lutou arduamente pela vida(O Globo, 04/04)
79
. O jornal
saudita Al Watan e algumas TV’s árabes estamparam fotos de crianças mutiladas, bebês
feridos, mães desesperadas... Contudo, a maioria da mídia árabe não se rendeu ao
sensacionalismo (por exemplo, os jornais Al Ahram, Al Hayat e Asharq Al Awsat).
Nessa guerra paralela, até mesmo as redes de televisão iraquianas foram
fisicamente bombardeadas e o pior: com bombas experimentais (não se sabe ao certo o
que pode acontecer, em termos de “efeitos colaterais”). Essas bombas experimentais
liberam impulsos eletromagnéticos capazes de interromper as operações de computadores,
por exemplo. Mesmo assim, oito horas depois do ataque as emissoras transmitiam sua
79
Hollywood já prepara, para breve, um filme de guerra sobre Jéssica Lynch.
169
programação normalmente. TV é alvo civil, como as escolas, as creches e os hospitais. Isso
foi considerado um ataque à liberdade de expressão, o que representaria uma violação da
Convenção de Genebra. Mais uma vez, trata-se dos EUA comunicando que eles podem
ser tendenciosos.
Militares da coalizão confiscaram os satphones (telefonia por satélite, que
veicula imagens e reportagens) da Thuraya empresa árabe, que é sediada nos Emirados
Árabes –, pois estes “facilitariam a localização das tropas da coalizão pelos inimigos”.
Somente os telefones de empresas americanas foram então permitidos, como os da Iridium
– embora também deixassem espaço para que “inimigos” os localizassem. Thuraya e
Iridium já concorriam por fatias de mercado naquela guerra.
Sabemos que as informações circulam pelo mundo na velocidade da luz
estamos na era da Globalização acelerada e controlada. Deve ser por isso que a cada
notícia boa (para os EUA), crescia o índice de adesão popular à invasão; e a cada notícia
ruim (para eles), a adesão caía imediatamente. A Fox News, a CNN e a MSNBC foram,
nesta ordem, as três líderes de audiência, e se utilizavam de analistas de guerra que são ou
foram militares. Não há analistas pacifistas ou críticos da invasão – segundo Steve Rendall,
do grupo de análise de mídia chamado “Justiça e Precisão na Reportagem”. Outras redes
de TV se abstiveram de noticiar a guerra, ou qualquer coisa que lembrasse a guerra.
John Barlow – ativista político da Internet – afirmou que os EUA sabem
produzir, como ninguém, um “Inferno Disney”, ou seja, a espetacularização da matança,
pronta para ser vendida na mídia como referência, no mundo real, de Rambos, Van
Dammes, Schwartzneggers, Duros-de-Matar, Difíceis-de-Aniquilar, Impossíveis-de-
Assassinar, ou qualquer outro filme da “vendedora de ilusões”, da agência de Propaganda e
170
“Indústria Cultural” chamada Hollywood. Mas nós ficamos até tarde para ver a entrega do
Oscar aquela festa para a qual não fomos convidados, mas que sustentamos nas
bilheterias; aquela festa local, mas difundida globalmente –, ficamos felizes ou tristes com
a vitória ou a derrota de uns e de outros na festa do Oscar. “Guerra semiótica”, e nada
mais.
Várias pessoas, e também os jornalistas (risos), escreveram e têm escrito coisas
muito interessantes na Internet, em sites independentes, como o Indymedia (Independent
Media Center), por exemplo. Por esse meio novo, a Internet, é possível que cada um de nós
leia e também produza notícias, sem o medo de repressão ou de censura
80
. A questão aí é a
seguinte: na Rede mundial de computadores, todo mundo é receptor e emissor, ao mesmo
tempo e “na real”, das informações que ali circulam. Isso não é no tocante às notícias: a
melhor forma de se organizar um protesto nas ruas, um protesto real e concreto, é através
da Internet, uma máquina virtual-atualizante (casos: Seattle em 99; Davos em 2000;
Gênova em 2001; e seguintes).
É o melhor exemplo de que o mundo virtual não é imaginário, ilusório ou falso
o virtual não se opõe ao real, e sim ao atual. Os boicotes mundiais aos produtos ianques
são orquestrados por “pessoas comuns”, na Rede. É preciso olhar sem medo para essa nova
forma de midiatização da política (e de politização da mídia), que é a Internet com sua
estrutura Acentrada e anárquica. Mas falaremos disso mais à frente.
No entanto, antes de passarmos à análise das Novas Tecnologias de Informação
e Comunicação (NTIC), como a Internet, abordaremos um tema mais tradicional: os Meios
de Comunicação de Massa (MCM) e seu papel de “produtores de apatia política”.
80
É claro que existem outros perigos, na rede: hackers do mal (crackers) atacaram o site da Al-
Jazeera, no início de abril de 2003.
171
Pensamos ser produtivo um estudo que atravesse essas duas estruturas básicas das formas
midiáticas – tanto a “tradicional” (MCM), quanto a “recente” (NTIC) –, para que tenhamos
uma visão mais ampla possível do fenômeno comunicacional contemporâneo, bem como
das relações de poder que nele são produzidas, reproduzidas e postas em circulação
acelerada.
172
3.2- Da Política da Comunicação à Comunicação da Política: os MCM
Para fazer os adultos pensarem ‘direitisticamente’,
as ditaduras usavam terapias de sangue e fogo
– e as democracias usam a televisão.
(Eduardo Galeano)
Os Meios de Comunicação de Massa (MCM) se prestam, como sabemos, à
domesticação dos impulsos violentos tanto da coletividade quanto dos indivíduos. Essa
questão só se torna clara e definitiva quando se estuda os seus procedimentos. Para tanto,
levantamos neste capítulo a hipótese de que os MCM praticam as Psychological
Operations” (Psyops) em tempos de paz.
Na tradição acadêmica, já é considerada “clássica” a vertente que problematiza
a relação entre Comunicação e cultura de massa. Isso se dá, é claro, pela própria
configuração histórica da cultura mundial nos últimos séculos. Sabe-se que o surgimento
da Comunicação de Massa atrela-se à instauração progressiva de uma cultura de massa, e
que esta, por sua vez, é tributária da constituição de uma sociedade de consumo, produzida
pela Revolução Industrial. Para assentarmos essa questão, faz-se necessário um conciso
estudo histórico-crítico disso que chamaremos aqui “cultura moderna”.
Nessa tarefa, então, procuraremos demonstrar que a relação entre Comunicação
e constituição da Política não se resumirá numa mera disciplina acadêmica a “Política da
Comunicação” –, mas revelará, isto sim, algo de mais complexo: aquilo que chamamos de
“Comunicação da Política”. Este problema se resumiria assim: não se trata apenas de
“como a Política é administrada pela mídia” (Política da Comunicação), mas de “quais são
os valores e afetos que circulam na mídia, via construção de signos, e que constituem o
nosso imaginário político” (Comunicação da Política). Portanto, passemos ao seu estudo
propriamente.
173
Contudo, antes de começarmos, convém conceituarmos a expressão “cultura de
massa”. Primeiro, vamos àquilo que esta expressão não é: ela não se confunde com
“cultura popular” (espontânea), nem com “cultura superior” (erudita). “Cultura de massa”
é uma expressão que pressupõe a reprodução de alguns poucos signos, os quais nos
remetem sempre (por sua invariabilidade, ou repetição do mesmo) às mesmas idéias, aos
mesmos afetos, às mesmas ações. E isto se no âmbito do coletivo. Estamos falando da
construção de uma “unidade mental”, típica da estratégia de padronização dos gostos,
visando à intensificação do consumo.
É a partir da Revolução Industrial no Século XVIII que o mercado
capitalista se institui. O raciocínio é simples: as indústrias produzem em larga escala e,
portanto, seus produtos deverão ser consumidos também em larga escala. Para produzir
esta demanda pelos mesmos produtos, seria necessária a padronização dos gostos
vimos o sucesso de Edward Barnays (no capítulo 2.4). Nesse sentido, para este fim,
constituíram-se as atividades do Marketing e da Publicidade (sobre as quais falaremos mais
adiante, neste capítulo). É provavelmente que os conceitos de “massa” e de público”
passarão a conviver intimamente – vindo até a se (nos) confundir.
Ao longo do Século XIX, surgiram diversas teorias da “psicologia das
massas”, principalmente através das figuras de Scipio Sighèle e de Gustave Le Bon.
Sighèle dirá que em toda multidão condutores e conduzidos, hipnotizadores e
hipnotizados. Ele via o jornalista como um agitador, e o leitor como um “gesso molhado”,
pronto para ser moldado e marcado. Gustave Le Bon falava da “lei da unidade mental das
multidões”: ao ingressar na massa, o indivíduo abandonaria a sua “alma individual” e
assumiria uma “alma coletiva”. Para ele, as principais características das multidões seriam:
174
a impulsividade, a irritabilidade, a sugestibilidade e a credulidade as quais levariam
facilmente à violência.
Segundo Le Bon, o entusiasmo e o fanatismo coletivos seriam os responsáveis
pela dirigibilidade das massas. Diz ele que a massa se inclina para a sua própria imagem,
ou para a imagem de seu líder (o que em muitos casos é a mesma coisa) e, assim, a massa
não autoriza a deliberação e não deixa nenhum lugar para a razão. Aí, o indivíduo tornou-
se um “autômato”. Para ele, é uma aberração que os sistemas políticos modernos
fundamentem seus mecanismos reguladores supremos na “opinião das multidões”. Charcot
falaria de “contágio, sugestão e alucinação”, que transformariam os indivíduos em
“autômatos, sonâmbulos”.
Por volta de 1835, o astrônomo e matemático Adolphe Quételet funda a física
social” ciência que toma como unidade básica a idéia de “homem médio”
81
. Quételet
extrai de tabelas um “índice de tendência ao crime”. A ordem moral estava ali espelhada na
ordem física, desta se servindo como pretexto. A técnica de regulação dos riscos e a razão
probabilitária serviam como ferramentas de gestão das massas. A sociedade se pensa como
um corpo orgânico, que deve ser regulado para o bom funcionamento do todo (noção
biomórfico-funcionalista).
Bertillon cria a “antropometria”. Galton cria a “biometria” e a “eugenia”.
Lombroso, a “antropologia criminal” (em 1876, com seu livro L’uomo delinquente).
Desrosières pensava a massa como uma ameaça, real ou potencial, para “a sociedade como
81
Umberto Eco, em Apocalípticos e integrados, diz que o esforço dos mass media é o de
determinar o gosto do público, tornando-o “médio”, através de estatísticas (ratings). Ele
complementa lembrando que esta “média” é puramente teórica, servindo como ferramenta de
regulação do gosto popular. Concordamos com ele: a decisão da mensagem é prévia à alardeada
“determinação do gosto do público”. A TV se torna, assim, instrumento de pacificação das
“multidões”, tornando-as “massas” (como um novo “recurso para o bom adestramento”).
175
um todo”. Para ele, este risco justificaria, por si só, a instauração de mecanismos de
regulação e Controle estatísticos da coletividade. Fechner inventa a “psicofísica”, que tenta
“quantificar a mente, a alma, o intelecto”.
Estamos aqui em plena época da “Biopolítica moderna”. Como “um poder que
regula a vida coletiva”, a Biopolítica se faz, desde então, a melhor técnica de ordenamento
do social. Sendo um “poder positivo-produtivo” como diz Michel Foucault –, ela não se
limita a “dizer NÃO”. Sua força reside exatamente na sua capacidade de produção: de
relações de poder; de discursos da Verdade; de subjetividades. Foucault nos ensinava
que um poder negativo (restritivo, coercitivo, violento, jurídico) não duraria muito tempo.
O poder economiza mais sua própria energia (sua força de dominação) quando produz,
quando é “positivo”. Torna-se assim mais eficaz, e duradouro.
Em 1933, Wilhelm Reich publica seu livro, A psicologia de massas do
fascismo. Segundo ele, enquanto o terapêuta consegue tratar de um paciente de cada vez, a
sociedade fabrica sofrimentos em massa daí resultando uma cruel distância entre a dor e
sua cura. Para Reich, o social seria a fonte dos males psíquicos
82
. Ele afirmava que aquele
que está “sujeito ao fascismo” torna-se em pouco tempo um “sujeito do fascismo”. É o
processo de “captura e incorporação” o qual, aliás, é brilhantemente conceituado por
Elias Canetti, em sua monumental obra Massa e poder. Para Ortega y Gasset (A rebelião
das massas), o “homem de massa” não valoriza a si mesmo, mas também não sente
angústia, percebendo-se idêntico aos demais. É a apatia política sendo produzida.
82
Percebe-se facilmente que, para vender “soluções mágicas” que aliviam a “dor de existir”, a
Publicidade e o Marketing precisam, antes, nos convencer de que sofremos e, então, merecemos a
“inclusão social via consumo.
176
Gabriel Tarde dizia que a “Era das massas” seria passado, pois se viveria
na “Era dos públicos”. Para Tarde, quando cremos que possuímos uma opinião, na verdade
estaríamos apenas atualizando uma “opinião da sociedade”. As opiniões não seriam
individuais, mas coletivas, socializadas desde sempre. Segundo ele, não somos nós que
possuímos as idéias, e sim o exato contrário disso: são as idéias que se afirmam no mundo
através de nós. Esta concepção de mundo duraria até hoje – vide o trabalho do Marketing e
da Publicidade (conforme veremos em breve, neste capítulo, mais detidamente).
É Canetti quem nos leva a pensar sobre a estratégia de “captura e
incorporação”. A ordem, a organização, serve para dar forma (massa) ao informe
(multidão). Pela sugestão de um “afeto único”, produz-se a “unidade”, a “coesão” que
permitirá fixar uma identidade à coletividade capturada. E quem dará o tom será o líder da
massa (führer). A partir daí, as ordens que se seguem são da instância do “aguilhão”, pois
instauram uma obrigação a ser cumprida, uma dívida a ser sanada. Para Canetti, a ordem é
mais antiga do que as palavras – pois se assim não fosse, os cães não a entenderiam.
A função política da ordem revela um jogo de poder extremamente complexo.
Oswald Spengler dizia que a ordem e não a comunicação é a principal função da
linguagem (a Comunicação seria um veículo para as ordens e os comandos). Para a
Sociolingüística, a linguagem não pode ser concretamente separada da Pragmática, do
contexto social onde se dão as relações de poder (inclusive da e na língua). Segundo
Roland Barthes, em O prazer do texto, a língua é fascista se por fascismo entendermos
aquilo, não que proíbe, mas aquilo que obriga a dizer. Neste mesmo sentido, Michel
177
Foucault pensará a ordem do discurso na produção de visibilidades-dizibilidades (saber-
poder)
83
.
Em sua obra, Friedrich Nietzsche também nos ensina coisas fundamentais
sobre a dita “psicologia das massas”. Ele pensará este tema a partir de uma “crítica do
ritmo” (como em Henri Meschonnic, para quem “a crítica do ritmo é uma Política”:
Critique du rythme): a sociedade impõe seu ritmo dominante (o tempo da instituição) aos
múltiplos ritmos individuais (tempo dos instintos). Se a violência da “forma-Estado” era
espacialmente organizada, a da “forma-Mercado midiatizado” é temporalmente
constante. Dizia Nietzsche: Chamo corrompido, quer seja um animal quer seja uma
espécie, a um indivíduo quando perde os seus instintos, quando escolhe e prefere aquilo
que lhe é prejudicial(O anti-Cristo, p. 18). Mais à frente, veremos como a estruturação
dos instintos se dá hoje a partir da modulação semiótica dos afetos do consumismo.
Ou ainda, em outro momento, diz Nietzsche: As pessoas vivem para o hoje,
vivem com muita pressa, vivem muito irresponsavelmente: é precisamente a isso que se
chama ‘liberdade’ (O crepúsculo dos ídolos, p. 118-119). Neste livro, Nietzsche criticará
ferozmente a regulação dos fluxos sociais, bem como seu impacto no ritmo dos indivíduos:
Em certo grau, todo ritmo continua a dirigir-se aos nossos músculos (p. 90). Se
quisermos atualizar a força do pensamento nietzscheano, poderíamos dizer: o ritmo das
pulsões de consumo tomou o lugar do antigo legislador. Isso pode ser lido assim: hoje
em dia, para se manter a ordem pública, não é mais necessário o poder de repressão ou a
lei; basta a incitação ao consumo desvairado, o que nos desvia a atenção, modulando-a
83
Segundo Foucault (Arqueologia do saber, p. 28): O discurso manifesto não passaria, afinal de
contas, da presença repressiva do que ele não diz; e esse não-dito seria um vazio minando, do
interior, tudo que se diz”. Não só minando, mas “contaminando” também – diríamos nós.
178
conformemente às exigências do Mercado-Total. Estamos imersos na imanência de um
poder material, positivo, construtivo, constituinte do real.
As subjetividades, produzidas por este mesmo real, são então constituídas por
afetos e signos do poder capitalista. Os processos de subjetivação se fazem singulares, é
verdade, mas se querem os mais universais” possíveis. O problema é que não se sabe do
que um cérebro é capazcomo disse o professor Vinícius Pereira, numa bela atualização
de Spinoza. E também o professor James Arêas tem a expressão perfeita, para quem quiser
ouvir: “O desejo tem o limite da própria resistência”.
Como bem disse, ainda, o professor Luiz Costa Lima, a razão capitalista
converte-nos a todos em jogadores aos quais não se perguntou se queriam jogar(Teoria
da cultura de massa, p. 36). Ele nota, a partir de Max Weber, uma característica decisiva da
conduta de consumo no Capitalismo: a “democratização do luxo”. É ao longo do Século
XIX que se quebram todas as travas que prendiam a explosão do consumo. A
Comunicação à distância se desenvolve bastante, nessa época – por exemplo, com a
instalação do primeiro cabo submarino intercontinental (em 1857).
Formaram-se dois campos (de batalha) opostos, no que se refere à “cultura de
massa”: o primeiro, a favor, imputava-lhe o sucesso do aumento do número de receptores e
a conseqüente “des-elitização”, ou “inclusão social”; comemorava sua redução dos preços
das obras culturais e sua tendência à “universalização”. O segundo, contra, impingia-lhe a
carga de “apassivadora”, de “padronizadora”, de “tautológica”, de “tecnicista”; denunciava
sua função de recognição e sua mediocridade.
Seria mais bonito ficarmos entre os dois “campos de batalha”, mas temos que
assumir que somos mais seduzidos pelo segundo. E isso por algumas razões, as quais
179
devemos ao menos citar: a) a segunda visão é mais empírica, imanente (a primeira é no
mínimo megalômana e irresponsável!); b) a obra-de-arte, como “bem cultural”, nunca
pretendeu ser produzida para o grande público (esta finalidade é comercial, demagógica,
populista!); c) a dita “inclusão social” não é o bálsamo para todas as dores do mundo (há o
controle dos incluídos! Não se deve “incluir” de qualquer jeito, a todo custo!).
Em todo caso, uma idéia atravessa essas teorias: a regulação das coletividades.
A sua organização, a sua disciplinarização serviam para o direcionamento – rédeas curtas –
da massa. A espontaneidade dispersiva e heterogênea das multidões deveria ser ordenada,
organizada por uma “matematização aglutinante e homogeneizante” da massa. É ainda
Nietzsche quem nos alerta contra o moralista, o pastor e o fraco (ressentidos e reativos):
...preferirá sempre um punhado de ‘certeza’ a toda uma carroça de belas possibilidades;
talvez haja inclusive fanáticos puritanos da consciência, que prefiram um nada seguro a
um algo incerto para deitar e morrer” (Além do Bem e do Mal, p. 16). E complementa: “O
homem está ainda inesgotado para as grandes possibilidades(Além do Bem e do Mal, p.
104).
Por sua vez, o operário vai perdendo progressivamente o contato com sua
“cultura popular” (folclórica), e não consegue um real acesso à chamada “cultura superior”
(erudita). Contudo, como diz o professor Costa Lima (Teoria da cultura de massa, p. 39):
Não bastou, portanto, a arrancada do sistema
capitalista, o incremento da velocidade da comunicação, o
aparecimento dos primeiros meios de reprodução técnica e a baixo
preço para que se desse a cultura de massa. existem, sim, os
seus veículos, os mass media, que aprendem o jeito de cativar a
tudo e a todos. Inexiste a integração inconsciente de suas
mensagens numa modalidade de cultura.
180
E será exatamente este o projeto seguinte da massificação: a busca de uma
“integração inconsciente”, visando à solidificação da “cultura de massa”. Este projeto
capitalista perseguiria a “integração total” instaurando um “Espetáculo Integrado” (Guy
Debord) –, pela qual produção e consumo se tornassem entre si reciprocamente álibis, e
sua mediação se desse pela reprodução, intensa e intensiva, de afetos capitalísticos.
Falamos, então, de uma “(re)produção modulada e moduladora de subjetividades”,
politicamente tão alienadas quanto apáticas. Isso se desdobra assim, segundo Costa Lima
(Teoria da cultura de massa, p. 43): A comunicação agora deixa de ser basicamente
verbal, escrita e/ou literária para tornar-se, utilizando a aglutinação joyceana, verbo-
voco-visual. Tecnicamente, passamos à era da comunicação multidirecional”.
A cultura de massa e a sociedade de consumo significam basicamente a mesma
coisa. Acompanhando este fenômeno, notamos que nenhuma atividade precisará ser
“criadora” basta-lhe que seja rentável” (leia-se: “comunicável”). É a instância
econômica moderna sobrecodificando a espontaneidade de outrora: toda a “energia” social
será voltada para o consumo intenso, o “consumismo”. Se o antigo Totalitarismo impunha
“exigências políticas”, a dita Democracia (ou novo Totalitarismo disfarçado) impõe
“exigências econômicas”.
É o que afirma Luiz Costa Lima: o make it new de Ezra Pound lugar ao
make it easy dos mass media. Os efeitos são confundidos com as causas. É aí que a
potência de abstração intelectual se despotencia. Vende-se mais tornando as pessoas
preocupadas com questões banais. Surgirá daí, posteriormente, uma “economia política da
atenção” (sobre a qual nos debruçaremos mais adiante, no último capítulo). A “cultura
mosaico” se refere à sensação de deriva, típica da Pós-Modernidade. Um direcionamento
181
oculto, ilocutório, da opinião pública, construindo “opiniões fáceis”, sugerindo idéias nas
quais acreditar, afetos que devemos sentir, signos que deveremos reproduzir (ad nauseam).
A recepção de uma mensagem, qualquer mensagem, altera algo no receptor. Há
alguma coisa de maleável modulável no receptor. Como em Hume: os órgãos dos
sentidos são agitados pelos objetos externos. Se a mensagem o faz sentir e agir, é porque já
o modificou. Por sua capacidade de ser afetado pelo mundo, o receptor de uma mensagem
está necessariamente exposto aos afetos veiculados por signos. Se o Capitalismo fornece a
base imanente, material de produção das relações de poder, deduz-se daí que o receptor é
incessantemente bombardeado por afetos e signos docemente “financeirizados”.
Se Roland Barthes falava de “sujeito no signo”, falamos aqui de “signo no
sujeito”. E este conceito de sujeito” que usamos, usamos como Foucault: “sujeito” é
“sujeito a”, é “assujeitado”; é “o primeiro dos efeitos de poder, e não o seu oposto”.
Poderíamos falar também de “sócio-político no signo” e de “signo no sócio-político”: será
que modificamos realmente a mensagem ao recebê-la? Será que ela nos modifica sempre
para o nosso bem? O que será que será?
Jesus Martín-Barbero nos ensina que a “mediação” é tudo aquilo que faz a
passagem, o contato, a correlação entre dois ou mais termos. A “mediação” se entre
sensibilidades, entre afetos. Para este autor, a TV seria um outro modo de organização
(“mediação”) política, contudo atravessada pelo Mercado. O problema é que o Mercado
não cria vínculos societários entre os sujeitos. Barbero chama a nossa atenção para o fato
de que as nossas “matrizes culturais” ativam e moldam nós diríamos modulamos
hábitos que conformam as “competências de recepção”.
182
Concordando com Milton Santos, Barbero pensará a globalização como
fenômeno que se teria convertido em um conector universal”: é isto a “mediação
generalizada”. Os Meios de Comunicação de Massa (MCM) se constituiriam hoje como
espaços-chave de condensação e de interseção de múltiplas redes de poder e de produção
cultural, “conectando”, fazendo a mediação entre indivíduo, Mercado e coletividade. Mas
Barbero vai mais fundo: É preciso abandonar o mediacentrismo, uma vez que o sistema
da mídia está perdendo parte de sua especificidade para converter-se em elemento
integrante de outros sistemas de maior envergadura, como o econômico, cultural e
político” (Dos meios às mediações, p. 304).
O consumismo deve ser estimulado constantemente, principalmente na mídia
de massa. A promessa embalada e etiquetada pelo Marketing e pela Publicidade é a
seguinte: a felicidade pode ser alcançada através do consumo. A inclusão social, o
consenso, se exclusivamente pelo consumo (compulsivo). Ao comprar, sentimo-nos
seguros, dentro de um mundo inseguro e incerto. Ao consumir, sentimo-nos abarrotados de
reserva de energia, o que nos prolongaria a vida, caso fosse necessário. Poderíamos aqui
começar a falar de “uma sociedade de consumo que consome gente”, no dizer de Eduardo
Galeano (em Ser como eles).
Aquilo que se poderia fazer “aberto ao novo” transforma-se instantaneamente
em repetição exaustiva, massacrante. Uma “fórmula de sucesso” da massificação
midiática, quando certo (vende), é repetida, reproduzida ao infinito. Quando tal
“fórmula” se esgota, sim é que se passa a tentar criar algo de “novo”. Trabalhar com a
imaterialidade da Comunicação Social tem muito mais de reprodução do que de produção
propriamente.
183
O consumo deve ser renovado periodicamente, seja pelo tempo de vida útil
(cada vez mais curto) dos objetos e/ou serviços, seja pelo bombardeamento (violentamente
incessante) de nossa atenção pelo Marketing e pela Publicidade, nos Meios de
Comunicação de Massa (MCM). A progressiva aceleração da produção industrial levou a
uma igual aceleração do consumo desses bens. Os MCM estão para isso: a reprodução
eterna da compulsão de consumo. Assim, as nossas atenções permanecem presas a
questões inofensivas. A base material da potência desejante da revolução é modulada
(controlada) por afetos – politicamente amortecidos – de consumo.
Como bem notaram Adorno e Horkheimer (em A Indústria Cultural o
iluminismo como mistificação de massas, In: Teoria da cultura de massa), a estratégia do
poder massificador é a de enfraquecer toda e qualquer virulência dos fatores que negariam
o sistema capitalista. A “pasteurização” não necessita recorrer à violência física. A sedução
é a nova arma do projeto capitalista, em um contexto “branco” de Democracia, em “tempos
de paz”. Um dos exemplos mais fortes: a “Indústria Cultural” despotenciou a Arte,
tornando-a “não mais incômoda”. A Arte hoje tem imensa dificuldade de fazer pensar.
Pior: qual é o atual (pós-moderno) estatuto da Arte? um “estatuto da Arte”? Se tudo
hoje é Arte, o que não seria Arte? Qual a diferença entre Arte e comércio quando a
primeira já se vê “capturada e incorporada” pelo segundo?
Como escreveu Walter Benjamin (A obra de arte na época de suas técnicas de
reprodução, In: Teoria da cultura de massa, p. 09-10): O alinhamento da realidade pelas
massas, o alinhamento conexo das massas pela realidade, constituem um processo de
alcance indefinido, tanto para o pensamento, como para a intuição”. Benjamin alertava-
nos para um fenômeno tão curioso quanto importante: o crescimento do número de
participantes transformou o seu modo de participação. Ele diz (A obra de arte na época de
184
suas técnicas de reprodução, In: Teoria da cultura de massa, p. 27, nota 31): À
reprodução em massa, corresponde efetivamente uma reprodução de massas”.
Enxovalhada a “aura”, a Arte não se democratizou massificou-se para o consumo rápido
(e rasteiro). E mais Benjamin (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, In:
Teoria da cultura de massa, p. 21):
As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte
modificam a atitude da massa com relação à arte. (...) Na medida
em que diminui a significação social de uma arte, assiste-se, no
público, a um divórcio crescente entre o espírito crítico e o
sentimento de fruição. Desfruta-se do que é convencional, sem
criticá-lo; e o que é verdadeiramente novo, critica-se a contra-
gosto”.
Marilena Chauí enumera os problemas para a experiência humana daí advindos
(em Convite à Filosofia): a) de “expressiva”, a Arte torna-se repetitiva e reprodutiva; b) de
“criativa”, ela se torna evento a ser consumido; c) de “experimentação do novo”, torna-se
consagração do consagrado. Consumo é uma coisa; fruição é bem outra. Surgem os
“supermercados” da Arte: todo um mercado dos leilões, das galerias de Arte, das
exposições etc. A “Indústria Cultural” vende cultura, publicitariamente. Para esta, cultura é
lazer, entretenimento, diversão, distração... “suplemento de alma”.
Através dos MCM, a cultura pós-moderna confere a tudo um ar de semelhança.
O lixo cultural, a bobagem, a pasmaceira são legitimados pela validação de afetos
capitalísticos, os quais não conhecem resistência. Como dizem Adorno e Horkheimer (A
Indústria Cultural o iluminismo como mistificação de massas, In: Teoria da cultura de
massa, p. 115): Os talentos pertencem à indústria muito antes de serem apresentados
185
por ela...”. “Cria-se” para se vender o que compromete, de saída, a qualidade do que é
“criado”. Empobrecem-se os materiais estéticos. Empobrecem-se as potências perceptivas
e afetivas. Eis o trágico disso (A Indústria Cultural o iluminismo como mistificação de
massas, In: Teoria da cultura de massa, p. 119): Os produtos da Indústria Cultural podem
ter a certeza de que a mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente”. O mundo
inteiro passa pelo filtro da “Indústria Cultural”. A imaginação e a esponteneidade são
assim controladas.
Aqui no Brasil, a formação histórica da nossa cultura teria passado, segundo a
maioria dos autores, por três etapas fundamentais:
1- a da transplantação(de 1500 a meados do Século XVIII): importação de cultura
externa e a conseqüente “aculturação” dos povos indígenas. A violência da coroa
portuguesa marcou este período em 1747, ela mandou destruir, queimar o primeiro
estabelecimento gráfico brasileiro (o que revela sua intenção de impedir a eclosão de
qualquer independência intelectual por aqui);
2- a da transição (da segunda metade do Século XVIII a 1930): da transplantada à
nacional. A pequena burguesia teria sido a camada social intermediária que formaria o
primeiro “público” brasileiro. Destaque das artes plásticas, sobretudo em Minas Gerais
– com o barroco, a torêutica e a arquitetura. Prevalência de temas religiosos. Houve um
belo período de música barroca. Artistas e cientistas se freqüentavam. A imprensa é
fundada no Brasil, estimulando uma literatura nacional (o Romantismo e o
Indianismo). Vem o Modernismo, em 1922, fazendo resistência intelectual e artística
aos valores externos dominantes. A Guerra Mundial impulsionaria a indústria e o
mercado nacionais;
186
3- a nacional (a partir de 1930): impulsionada pela formação e consolidação de um
mercado interno. É considerada a etapa de desenvolvimento de uma “Indústria Cultural
brasileira”. Entretanto, aos poucos vê-se a influência cultural européia ser substituída
pela dominação norte-americana (já não se aprendia francês, mas inglês). Era a
burguesia que ia ao teatro, ao cinema, que ouvia dio e assistia à TV. A educação
básica não chegava à reflexão crítica. A “cultura de massa” no Brasil chega após 1945,
com as novas técnicas comunicacionais. O Brasil torna-se um imenso mercado
consumidor de bens culturais (de massa).
O teórico Hans Magnus Enzensberger apelidara o Capitalismo de “indústria da
consciência”. Isso seria perfeito, caso o Controle da consciência bastasse ao capital. Se
assim fosse, bastaria que “tomássemos consciência” para que nos livrássemos do poder.
Seria extremamente tolo crer nisso. Aí, estaríamos presos no paradigma da “alienação”
um tanto defasado hoje. A dominação precisa, antes, levar-nos à apatiaa qual não se
resolve com “tomada de consciência”, ou com a organização de uma Razão
instrumentalizada
84
.
A produção de subjetividades precisava alcançar o inconsciente e assim o
fez. De nada adianta, hoje, levar jovens alunos a tomarem consciência”. O problema se
deslocou, já é outro. Tentar forjar a “tomada de consciência” é tarefa natimorta, quando se
a profunda indiferença contemporânea. A fórmula do consenso, nos últimos tempos,
tem sido: “tanto faz”. Ideal de imperturbabilidade, ataraxia. Despotenciação do coletivo.
E por qual motivo ou razão a potência constituinte da multidão (espontânea)
deve ser regulada e controlada pelo poder constituído das “leis de mercado” (modulador)?
84
Esta foi a nossa “tese”, em O pensamento atacado.
187
A resposta não tarda, nem falha: porque o poder constituído necessita vampirizar” a força
constituinte da multitudo, que, por si , lhe falta tal força. A multidão deve, portanto,
ser tornada massa! Fundador da poesia moderna, Charles Baudelaire conhecia e amava,
no Século XIX, as potências da multidão, dando-lhes um duplo caráter, indissociável
poético e político (As multidões, em Pequenos poemas em prosa, p. 36-37 trad.: Aurélio
Buarque de Holanda):
Nem a todos é dado tomar um banho de multidão:
gozar da multidão é uma arte; e pode fazer, à custa do gênero
humano, uma farta refeição de vitalidade, aquele em quem uma
fada insuflou, no berço, o gosto do disfarce e da máscara, o horror
ao domicílio e a paixão da viagem.
Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis para o
poeta diligente e fecundo. Quem não sabe povoar a sua solidão,
também não sabe estar só em meio a uma multidão atarefada.
O poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua
vontade, ele mesmo e outrem. Como as almas errantes que
procuram corpo, ele entra, quando lhe apraz, na personalidade de
cada um. Para ele, e para ele, tudo está vago; e, se certos
lugares estão vedados ao poeta, é que aos seus olhos tais lugares
não valem a pena de uma visita.
O passeador solitário e pensativo encontra singular
embriaguez nessa comunhão universal. Aquele que desposa
facilmente a multidão conhece gozos febris, de que estarão
eternamente privados o egoísta, fechado como um cofre, e o
preguiçoso, encaramujado feito um molusco. Ele adota como sua
todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as
circunstâncias lhe deparam.
188
Aquilo a que os homens chamam amor é muito
pequeno, muito limitado e muito frágil, comparado a essa inefável
orgia, a esta sagrada prostituição da alma que se dá inteira,
poesia e caridade, ao imprevisto que surge, ao desconhecido que
passa.
É bom algumas vezes lembrar aos felizes deste mundo,
ao menos para lhes humilhar por um instante o orgulho tolo, que
felicidades superiores à deles, mais vastas e mais requintadas.
Os fundadores de colônias, os pastores de povos, os padres
missionários exilados no fim do mundo, conhecem, por certo,
alguma coisa dessas misteriosas embriaguezes; e, no seio da vasta
família que seu gênio criou, eles devem por vezes rir daqueles que
lhes deploram o destino tão agitado e a vida tão casta”.
A multidão é sempre vista como um “vulcão de potências incontroláveis, em
vias de erupção”. E nós seríamos os herdeiros de Empédocles: ou nos atiramos no vulcão,
ou fugimos dele, deixando ali apenas como rastro as sandálias (que, hoje, podem ser as
“Havaianas”). É certamente por isso que o poder tenta transformar multidões em massa.
Acompanhemos, portanto, o pensamento da professora Gilda Korff Dieguez (em Massa:
misticismo e mitificação): a massa, por si mesma, não fala é falada. É “objeto” do saber-
poder e não seu “sujeito”. Reduzindo sua potência libertária de pensar, reduz-se sua
potência ativa de agir e isso irá gerar e gerir a passividade (apatia política), a qual será
incapaz de questionar o poder.
A atual confusão mental não revela “falta de inteligência” das pessoas. Revela,
isto sim, o reflexo da fragmentação do mundo pós-moderno, que é descontextualizado.
Essa confusão generalizada procede pela mistura indevida – um “vale-tudo” semiótico – de
189
idéias e noções esparsas. Ultimamente, o “erro” não vem tanto das respostas, mas das
perguntas que não cabem – descabidas.
Como diz Gilda K. Dieguez, a massa parece nada saber, e nada querer saber:
niilismo, mas com diploma superior! Se não se aderir à massa, fica-se condenado a uma
posição “marginal”. O que define o homem de massa” é a sua disposição para ser
mandado, sua vontade de seguir um líder... Nietzsche diria: é a inclinação bovina do
rebanho! E o “senhor”, por sua vez, é no fundo um fraco que precisa enfraquecer os
fortes, para neles mandar e desmandar: É preciso defender os fortes dos fracos!Então
Gilda dirá:
A única chance de praticarmos a liberdade é o resgate
do sentido de historicidade, de contextualização do tempo presente.
É por isso que a memória, a linguagem e a atenção são tão
bombardeadas pelos administradores e gerentes do poder
planetário, notadamente através dos Meios de Comunicação de
Massa”.
Brilhantemente, e reeditando o pensamento que Jean Baudrillard desenvolve
em Significação da Publicidade (In: Teoria da cultura de massa), Gilda K. Dieguez
explicará que a principal estratégia da massificação (transformação de indivíduos e
multidões em massa) é a de moldar a penúria, de maneira a provocar uma “necessidade” de
compensação, via consumo (Massa: misticismo e mitificação): No entusiasmo bestial da
satisfação imediata e instantânea (via consumo), a maioria nem se conta do quanto
está sendo violentada”. Mas essa violência não é percebida por ser sedutora, seminua.
Sugerimos aqui uma “fórmula” para ser matutada doravante: em cada produto ou serviço,
um sofista.
190
Gilda diz que a Democracia não mais censura, exatamente por não haver mais
a necessidade de se censurar. A Democracia atual que é midiática – lança mão da
dispersão da atenção” e da “infantilização do pensamento”.
Quanto à dispersão da atenção”: pela ação incisiva da TV, com seus blocos
de programação e seus intervalos comerciais, habituou-nos ao relaxamento de nossa
atenção. Vamos acompanhando uma narrativa – jornalística, novelesca, fílmica – com
atenção e interesse. Chega um momento mais ou menos a cada 10 minutos em que a
narrativa é abruptamente interrompida, e temos um corte seco em nossa percepção. Aí,
levantamos do sofá, vamos ao banheiro, pegamos um copo d´água, ligamos para aquela
pessoa... até a vinheta nos ordenar para que voltemos à contemplação.
A obediência reflete, por toda parte, a imagem do comando. Aprendemos a
obedecer, antes de aprendermos os “conteúdos”. Somos ensi(g)nados a “dever”: quando
somos interrogados, instaura-se uma “dívida moral”, da qual nos livraremos pela
resposta rápida e correta. A TV, por exemplo, não nos “obriga” a nada, mas nos “seduz” a
tudo. Grande parte dos nossos sonhos foram produzidos fora de nós mas aprendemos a
chamá-los “nossos”. Se a industrialização foi a dos objetos e produtos (material), a pós-
industrialização é a dos sonhos e desejos (imaterial). Se a primeira colonização foi a do
corpo (escravidão), a segunda é a da alma (produção de subjetividades). Perguntamo-nos:
como forjar “quilombos imateriais, afetivos”?
Mais do que a simples alienação, é a apatia que extrapola o mundo do
trabalho, alcançando o mundo dos lazeres. Desde a Revolução Industrial inglesa que o
Capitalismo domina a tecnologia da exploração financeira do trabalho. Contudo, nas
últimas décadas viu-se o gradual crescimento da exploração capitalista dos lazeres: as
191
“Indústrias” Cultural, do Entretenimento, do Espetáculo (Integrado), do Turismo etc. Um
de seus principais dispositivos é a “inflação do imaginário”: ídolos, fãs, olimpianos”,
“semi-deuses” da fama, projeções fantasiosas, identificações fabricadas afetos
modulados por signos que não cessam de nos comunicar as vantagens da adesão
impensada.
Esse hábito é tão cotidiano e banal, que nem mesmo nos damos conta dele. Por
isso é que é um “hábito”. Nossa capacidade (ou potência) de nos concentrarmos é
“fuzilada” por raios catódicos “dançantes”. Por não conseguirmos reter nossa atenção por
muito tempo, acabamos por ter problemas com a experiência da leitura dos livros, e com a
experiência de assistir às “aulas com mais de 30 minutos” (qualquer aula). Nossa potência
de abstração intelectual vai sendo “minada”, materialmente enfraquecida. Flashes de
memória, imagens paradas e cheias de certezas... o mundo parece fragmentado,
descontextualizado, enquanto nossa subjetividade se torna estilhaçada, desconexa. Por fim,
jamais começaremos a pensar.
Quanto à infantilização do pensamento”: “infantilizar” é capturar pelas
pulsões, é criar desejos e necessidades de posse e consumo para, em seguida, oferecer
produtos e serviços novos. Uma das conseqüências produzidas é a de não se suportar a
distância entre um desejo e a sua realização e isso é bem típico em crianças e
adolescentes. Não é à toa, não é sem razão que os MCM têm (re)produzido tantos “adultos-
com-cabeça-de-criança”, os “adolescentes-com-quarenta-e-poucos-anos”: ou seja, o sujeito
tem o dinheiro de um adulto (pois trabalha e ganha bem), mas tem os afetos constituídos de
um adolescente (pois é seduzido por joguinhos semi-debilóides). Quer melhor partido que
este?
192
A “fórmula clica” é conhecida: “problema / solução / não-solução /
problema”. Primeiro, diz-se que temos um “problema” (obesidade, por exemplo). Depois,
dizem-nos que uma “solução” (uma cinta elétrica que nos dará choques e, assim, nos
livraremos dos quilinhos a mais). Em seguida, percebemos que esta “solução” não é
definitiva, e que inclusive dura pouco a “não-solução”). O Professor Todd Gitlin diz
assim (no livro Mídias sem limite, p. 109): Mesmo nos bens duráveis de ponta, a emoção
de sua chegada desgasta-se rapidamente, deixando os consumidores entediados e
disponíveis. Após cada conquista, vem a sensação de contentamento apenas limitado e a
pergunta: e agora?”. E a resposta: comprar mais!
Portanto, como se vê, temos mais um “problema”: estamos para sempre
condenados a “terapias de eletrochoque” por nossa loucura consumista
85
. No contexto
dos MCM, a mídia nos incita a essa forma de ética. Uma ética da prevenção dos riscos
associada a uma “cultura do medo” (ver Barry Glassner, em A cultura do medo). Antonio
Negri nos fala (A anomalia selvagem, p. 278-279): O mercado é superstição. Mas
superstição instalada para destruir a criatividade do homem, para criar medo contra a
força produtiva, entrave e bloqueio à liberação”. Isso é produção de apatia política por
parte dos poderes constituídos do Estado, do Mercado e das Mídias. Enfim, a cultura de
massa pretende padronizar as almas e os corpos, os gostos e os comportamentos, os afetos
e as compras, visando ao aumento brutal dos lucros do Mercado capitalista. Para isso,
criou-se a “Era do culto às aparências”.
85
Há alguns séculos, as pessoas eram levadas à tortura, e esta era uma “punição” ou uma “extorsão
de confissão”. Hoje, as pessoas pagam para serem “torturadas” nas máquinas cada vez mais
esquisitas – de uma academia de ginástica. E se sentem extremamente felizes!
193
O consumo do espetáculo (TV, cinema, rádio, livro, revista, jornal, lazer,
turismo, museu etc) se torna o “espetáculo do consumo” (um circo dos horrores). O
shopping center é a versão higienizada da barbárie de outras épocas. Os signos culturais
(políticos, estéticos) são pasteurizados, ou seja, são incapazes de nos levar a um
desdobramento crítico. É este o dado cruel da “Indústria Cultural”, segundo Adorno e
Horkheimer: ela produz valores (por afetos e signos) que são incapazes de criticar o
establishment. A potência revolucionária é podada já no “útero”.
Se não queremos mudar, se não vemos Sentido em transformar a realidade,
como é que chegaremos a um mundo mais justo? Se pensamos que o mundo nos tudo
aquilo que desejamos, quando é que sentiremos a necessidade de revolução? O
Capitalismo tomou o lugar de Deus na condução de nossas vidas. Os signos do poder que
nos humilha vão sendo adorados e idolatrados salve, salve! O ordinário é tornado exta-
ordinário (pelo endeusamento de figuras midiáticas), enquanto o extra-ordinário é tornado
ordinário (pela banalização por repetição infinita) este é o procedimento imaterial da
modulação dos afetos. Faz-se a fama e deita-se na cama! Ou vice-versa.
É o “sinoptismo” do Controle (muitos vigiando poucos: telespectadores vendo
na TV seus felizes “artistas”), que substitui o “panoptismo” da Disciplina (poucos vigiando
muitos: vigilante no alto de uma torre olhando seus infelizes confinados). Acontece que, ao
se espelhar nos midiáticos, o telespectador poderá tentar identificar-se. O desejo de
imitação poderá não se concretizar, e inviabilizar-se, originando mais uma neurose.
Os produtos saem incompletos das fábricas. Eles são finalizados na mídia
onde serão devidamente erotizados. Simpatia e fait divers são arquitetados minuciosamente
nos escritórios de Marketing e nas agências de Publicidade, mas também nas redações
194
jornalísticas. Não temos mais o “herói-trágico” – temos o “herói-simpático”, que sempre se
dá bem no final (happy end).
Em Jornalismo, Albert Kientz (Comunicação de massa – análise de conteúdo) e
Pierre Bourdieu (Sobre a televisão), por exemplo, falarão da busca desesperada por
audiência. Os conteúdos devem, para tanto, ser nivelados “por baixo”, para que possam
atingir, afetar o maior mero de pessoas. Os eventos chegam crus, brutos das ruas e são
tornados “notícias”, tendo para isso que passar pela “caixa-preta” (Kientz) de uma redação.
Nesse processo, a linguagem selecionada é a mais simples possível, o que banalizaria a
potência lingüística de um povo.
A versão apresentada será sempre parcial e pessoal”, bem ao contrário do que
pode parecer à primeira vista. As seções intituladas “Editorial” dão a entender que o resto
das mensagens é imparcial, livre do “dedo do profissional”. No “Editorial”, pode-se emitir
opiniões do jornal, mas no restante da edição, não. Este discurso é “para bovino
adormecer”. Isso sem falar do fast thinking(Bourdieu): as edições jornalísticas são hoje
parecidas com “pizzarias de notícias” – o estilo é “embrulha e manda”.
Este é o contexto do “condicionamento das mensagens”, sobre o qual escreveu
Albert Kientz. Nesse sentido, os clichês do pensamento, as frases-feitas, os lugares-
comuns, a mediocridade (ou “midiocridade”?), o senso comum, o bom senso e o consenso
têm um lugar privilegiado. As verdades que circulam são alçadas à condição de
“incontestes”. Mas pensamento e urgência se contrapõem...
Como diz o professor Muniz Sodré, depois de muitos anos, depois de algumas
gerações de rebaixamentos sucessivos de padrões, de níveis de qualidade, o público por
isso formado se teria tornado incapaz de achar interessantes as mensagens mais ricas.
195
então, fica muito fácil quando não covarde justificar o baixo nível pelo “gosto do
público”. Isso é um “Totalitarismo semiótico”, pois que forma, constitui uma “atmosfera
emocional” propícia ao capital midiatizado, e à mídia capitalizada. Quando vemos o
Marketing atravessar todas as instâncias da nossa existência, percebemos a chamada
“contaminação semiótica”. O “grotesco” passa a ser usado como elemento de sedução e
amolecimento de qualquer resistência, em qualquer nível ou classe social pois como
disse Eugênio Bucci: “Os baixos instintos não têm classe social”.
Em Marketing e Publicidade, a guerra entre marcas concorrentes se num
contexto de “estado de natureza” midiático: não códigos de conduta, nem regras, a não
ser juridicamente, formalmente, no papel. É um “vale-tudo” comunicacional, onde o “mais
forte” vence – eis os perigos deste “darwinismo social”.
É com as estratégias publicitárias de “posicionamento de marcas” (ver Al Ries
e Jack Trout, em seu livro Posicionamento) que teremos os dispositivos mais assustadores.
“Posicionar” é ocupar a mente do cliente (efetivo ou potencial) antes da concorrência. Não
importa ser o primeiro a entrar no Mercado – importa ser o primeiro a ocupar as mentes. A
marca deve espalhar-se em dois sentidos: 1- na mente de um cliente (deve penetrá-la
sedutoramente); e 2- nas mentes do maior número possível de clientes (massificando-se no
Mercado). Pesquisas como as de recall revelam as “identidades de marcas” mais fortes:
Coca-Cola, McDonalds, IBM, Benetton, por exemplo, são “memes” de sucesso.
Para tanto, faz-se necessário o investimento em técnicas bastante eficientes: a
marca deve ser um meme” ver Richard Dawkins, em O gene egoísta –, ou seja, deve
funcionar como um “gene”, como um “vírus” que se replica sozinho, assim que penetra
num meio propício (o cérebro distraído, que servirá de “hospedeiro”). “Meme” é um nome
196
que lembra (foneticamente) “gene”, e (semanticamente) memória”. Isso porque se replica
como um gene”, e dispara na mente a “memória” de uma marca, a qual, assim, se faz
forte e sobrevive às concorrentes. Como disse William Leach (Land of desire apud Gitlin:
Mídias sem limite, p. 294-295, nota 92):
Mas, idólatras do ‘empreendimento’ como somos,
nunca pensamos em boicotar os que nos jogam na cara seus
negócios em momentos inoportunos. (...) Mas ‘por que’, perguntou
Ross, ‘um homem deveria ter permissão de agarrar e torcer
violentamente minha atenção toda vez que dou um passo para fora
da porta, de fazer fulgurar suas mercadorias em meu cérebro com
um letreiro?’
86
.
No entanto, é preciso enfatizar que essa estratégia marqueteira e publicitária
tem sucesso em um contexto de cultura de massa, onde muitas mentes desejam a mesma
coisa. Um cérebro massificado é presa fácil para a “captura e incorporação”
Semiocapitalista. E o mais incrível senão assustador! é que os indivíduos saem pelas
ruas, aos gritos, bradando sua individualidade, sua originalidade, sua liberdade! Foi
Adorno quem disparou a sentença mais cruel porque precisa –, ao criticar o sujeito
imerso nesse clima publicitário, na cultura de massa (em Minima moralia): Em algumas
pessoas, já é um descaramento dizerem ‘eu ”.
86
Em inglês, sign” é tanto “letreiro” como “signo” – informação relevante para aquele que estuda
criticamente o Semiocapitalismo.
197
Para finalizar este capítulo, desejamos ressaltar a especificidade da estrutura do
que chamamos de “Meios de Comunicação de Massa” (MCM): UM–MUITOS. Isto
significa que a mensagem parte de UM e se destina a MUITOS. Esta estrutura é centrada
na primazia do emissor (que se faz um termo da relação comunicacional) e se presta à
hierarquização através da modulação semântica, geralmente intencional. Se o emissor
ocupa o centro, os receptores ficarão com a periferia.
A estrutura dos MCM é, portanto, “arborescente” a partir de um “tronco”
único é que derivam os muitos galhos” como suas continuidades. Quando a mensagem
chega aos receptores, é porque ela passou pelo crivo “soberano” do emissor que a
seleciona e a edita, excluindo as outras, sempre de acordo com seus interesses comerciais.
Este modelo está intimamente atrelado às grandes corporações midiáticas, as quais são
tributárias do Capitalismo que as patrocina.
Como afirma Dênis de Moraes (em Planeta mídia, p. 11): No Século XXI, o
que conduzirá o mundo do Capitalismo será a informação fornecida pelas companhias de
Comunicação. A informação torna-se o ´lubrificante´ dos ciclos de troca e de lucro”. A
diversificação de produtos e serviços comunicacionais confessa a tática de hiper-
segmentação do Mercado, visando obviamente ao aumento dos lucros de “uma dúzia” de
gigantes do setor de entretenimento. Enquanto vemos a multiplicação das fontes de
informação, não vemos as formações de conglomerados midiáticos. Essa concentração em
poucas megaempresas revela uma estratégia que não pode ser outra diferente da do
“Controle”.
Em Cinema: 1-Sony (Columbia e Tristar); 2- Disney; 3- Viacom; 4- Time
Warner (Warner Bros.); 5- News Corporation (Twentieth-Century Fox); 6- Seagram
198
(Universal); e 7- Transamérica-Trácida Corp. (United Artist e Metro-Goldwin Mayer).
Embora competidoras, a Columbia-Tristar-Buena Vista e a Fox-Warner são sócias da
United International Pictures (UIP), sediada em Londres, e que comercializa filmes da
MGM, da Paramount, da United Artists e da Universal. A Motion Picture Export
Association (MPEA) é a “agência de propaganda” do Departamento de Estado norte-
americano.
No Japão, o quatro consórcios que controlam 70% da produção de aparelhos
de vídeo: 1- Sony; 2- Fuji; 3- Hitachi; e 4- Matsushita. A indústria fonográfica “mundial”
se concentra em cinco megaempresas: 1- Sony; 2- Warner; 3- BMG Ariola; 4- EMI; e 5-
Polygram. Sabe-se que as filiais regionais dessas empresas, espalhadas pelo mundo, estão
diretamente submetidas às suas matrizes.
Hoje, já se está falando de hiper-segmentação (por grupos de “afetos”) de
Mercado, como alternativa à massificação generalizada e ao crescimento do uso da
Internet. Na verdade, o que notamos é claramente o seguinte: os MCM preferem ainda a
massificação, mas começam a investir em hiper-segmentação. É preciso esclarecer um
ponto: não se deve falar de “fim das massas” pelo menos por enquanto. Preferimos
pensar numa estratégia que adota como alvo não exatamente a “massa”, mas a “malta”
(menos numerosa, mas não menos submissa) como diria Elias Canetti –, e que visa à
reprodução, no público, de “fidelidades quase caninas”. Como exemplo disso, citamos as
novas estratégias do Controle: a customização (no setor secundário, da indústria
informatizada) e a “glocalização” (no setor terciário, de comércio de produtos e serviços).
As “micro-afinidades”, as micro-preferências”, os “micro-afetos”, enfim, se
agrupam em pequenos blocos de audiência, em “micro-fragmentações” de Mercado, que
199
cruzam dados de gênero, raça, idade, classe social, orientação sexual, hábitos de consumo
etc. Mais do que “classes” propriamente, está-se falando aqui de “estilos de vida”. Para
cada “malta” haverá dois ou três produtos ou serviços e isto “fideliza”. É o Marketing
que, ao invés de se enfraquecer, continua tentando “fixar hábitos”, para ganhar em cima
disso.
No próximo capítulo, veremos a especificidade da Comunicação (produção,
reprodução e circulação de afetos políticos via constituição de signos) no caso das
chamadas “Novas Tecnologias de Informação e Comunicação” (NTIC). Veremos como
este segundo modelo se constitui e, por aí, nos constitui enquanto indivíduos singulares
prometendo livrar-nos das agruras da massificação.
200
3.3- Ontologia da Rede e Pensamento Acentrado: as NTIC
Um solo fértil, mas deserto,
nos leva a pensar na felicidade
de seus habitantes possíveis.
(Gilles Deleuze)
Este capítulo da Tese tem por objetivo o estudo crítico das novas potências e
impotências trazidas pela Internet, pensando esta como uma Nova Tecnologia de
Informação e Comunicação (NTIC). Se por um lado a Internet pode servir como
nenhuma outra mídia anterior como um instrumento de recomposição política de luta
(organizando movimentos sociais), por outro lado pode servir como “intensificadora dos
MCM” como instrumento de consumo de lazer (ofertando-nos infinitas possibilidades de
distração despolitizada). Tudo dependerá da postura que se tem diante dela.
É pensando nessas duas vertentes que buscaremos determinar o que chamamos
de a ontologia da Rede ou seja, o que é a Rede das redes? Se a Internet é de fato
Acentrada, o pensamento que nela navega ou que nela se à deriva também se fará
Acentrado. Haveria uma potência libertária nisso, pois que (como veremos) o pensamento
se liberaria dos “centros” de significação e de subjetivação (sujeição) e isso é
radicalmente diferente da prática dos Meios de Comunicação de Massa, forjando então
uma resistência contra a apatia política. No entanto, pode-se cair também na armadilha da
“fragmentação descontextualizadora”, que não atribui qualquer Sentido ao mundo, e à
Política e isso não difere em nada dos MCM, reforçando então a produção de apatia
política.
Em todo caso, o que pretendemos, em verdade, é mostrar os prós e os contras
da digitalização da vida cotidiana. Como um elemento tecnológico da maior importância
hoje, e como a mais nova mídia entre nós, a Internet revela a imensa produção e a intensa
201
circulação de signos que estão aptos a produzir em nós efeitos incorporais em cadeia. É
todo o nosso modo de nos relacionarmos com a informação e com a Comunicação que se
transforma. Surgem a partir disso novas formas de atribuição de valor e de Sentido (afetos
e signos); novos modos de experimentar o tempo (novos ritmos sociais e subjetivos); novas
maneiras de nos orientarmos espacialmente (rizoma ou rede); novos jeitos de se organizar
a pólis, a coletividade (horizontalidade, crise da autoridade e acentramento das relações de
poder).
Para tanto, procederemos por uma análise onto-política da Rede. A “Filosofia
da técnica” nos servirá de base, como fundamentação teórica para que possamos alcançar o
nosso objetivo, que vem a ser o da análise crítica das novas intensidades políticas
contemporâneas. Contra a mera descrição de dados e informações (“análise extensiva”),
afirmamos que somente a “Filosofia da técnica” nos habilita a pensarmos as NTIC do
ponto de vista intensivo”, ou seja, ontológico e político. É por isso que começaremos
assim...
Gaston Bachelard dizia que um instrumento é uma teoria materializada, e que
uma ciência, por sua vez, tem a idade de seus instrumentos de medida. Pensando nisso,
podemos reconhecer que a Modernidade trouxe a busca frenética pelas certezas do
conhecimento. São fabricados inúmeros objetos técnicos, instrumentos, que passariam a
“mediar” as relações dos indivíduos entre si, e dos indivíduos com a coletividade. A
técnica parece ter ocupado o lugar de “Deus” na mediação generalizada entre homem e
mundo.
O “homem moderno” especificamente o cartesiano-kantiano acreditava na
separação entre sujeito (cognoscente) e objeto (cognoscível). A natureza e a cultura são ali
202
pensadas separadamente, cada qual dizendo respeito a “realidades” próprias
87
. O homem
usava a máquina numa dimensão linear e evolutiva. Em todo caso, o que importa aqui é
notarmos o fato de que a Modernidade, pelo próprio efeito da industrialização, multiplicou
infinitamente os objetos técnicos – o que não se limitaria a uma mera transformação
quantitativa, pois uma transformação num grau desses altera qualitativamente a nossa
relação com a técnica, e, portanto, altera substancialmente o nosso modo de abordarmos o
real. Para Alain Finkielkraut, a essência da técnica estaria tanto nos objetos como em nosso
modo de vê-los.
Martin Heidegger (1889-1976) um dos maiores pensadores do Séc. XX
investiga, por sua vez, o sentido do Ser, colocado no horizonte da temporalidade, o que o
levaria à crítica da tradição metafísica (pós-aristotélica). Segundo ele, a tradição metafísica
caminhou na direção de seu “acabamento” (completude), traduzindo-se na Era da técnica
planetária (Modernidade), a qual encobriu ou retraiu o sentido do Ser – e, por isso,
Heidegger dizia que ainda não começamos a pensar. A metafísica fez “cair no
esquecimento” a questão do Ser, em proveito de uma fascinação pela profusão das
diferentes figuras possíveis do ente.
A analítica da existência heideggeriana é apenas um prelúdio da investigação
mais profunda sobre o Ser. Ele diz que o pensamento é o “pensamento do Ser”. O Ser,
como tal, não é uma existência, porque é a condição de possibilidade para toda a existência
possível. Enquanto o Ser transcende os entes, os entes, com seus corpos“anagrama do
87
Os estudos de Bruno Latour demonstram a falibilidade de tais crenças modernas. Ver o seu livro
Jamais fomos modernos
.
203
animal pesado e imundo que se rebola na lama”
88
–, permaneceriam na dimensão
superficial da imanência.
A metafísica, segundo Heidegger, parte do ente e se dirige ao ente, não
“fazendo questão do Ser”. E pior, ou mais profundo: ela é a “história do esquecimento
desse esquecimento”. O “acabamento” da metafísica (isto é, sua completude) se tornou a
Era da técnica planetária. Quanto maior o número de entes a nos cercarem, menor é o
distanciamento que temos deles, e mais difícil se torna perceber a diferença radical entre o
Ser (que funda) e os entes (que são fundados). É preciso passar da experiência ôntica (dos
entes) à investigação ontológica (sobre o Fundamento, a Verdade ou sentido do Ser). É
preciso evitar o “mergulho irrefletido na imanência”.
Mas o Homem, enquanto ente, não transcende a entidade na imanência. Isso é
o tal “mergulho na imanência”, bastante típico da Pós-Modernidade, segundo os estudiosos
do pensamento heideggeriano. O “mergulho na imanência” se caracterizaria por quatro
passos: 1- esquecimento do Ser; 2- esquecimento desse esquecimento; 3-indiferenciação
entre Ser e entes; e 4- indiferença quanto à questão do sentido do Ser.
Na Era da moderna técnica planetária, tudo se torna objetivável, determinável,
manipulável, calculável (é o “acabamento” da prescrição de Descartes: O homem deve se
tornar o mestre e possuidor da natureza”). A ciência não pensa: ela manipula as coisas,
mas que se recusa a habitá-las (no dizer de Merleau-Ponty). Na Modernidade, o homem se
encontra imerso na vontade de colocar ao seu alcance tudo o que existe e de adquirir sobre
a totalidade do existente (ou ente) a maior força possível. É a vontade de dispor dos entes,
88
O anagrama de “corpos” é “porcos”. Ver Gustavo Corção, em Lições de abismo.
2
04
de colocá-los à sua disposição. O ente tem realidade como objeto disponível e
manipulável.
Pela técnica, o homem se apropria totalmente do mundo, mas tornando-se, por
sua vez, um “funcionário da técnica”. A objetividade moderna multiplicou os objetos, até
objetificar o próprio homem mais um objeto entre objetos. Por essa linha de pensamento,
seria a dominação da técnica que geraria o reinado político da dominação total, e
totalitária, do homem. É um regime totalitário, esse que nos domina totalmente, e que
impede que o questionemos (ver adiante as teses do filósofo Dominique Janicaud).
No texto A questão da técnica, Heidegger se propõe ultrapassar os limites da
técnica, para poder desvelar-lhe a sua essência, o seu Ser (o “Ser ou a essência da
técnica”). A essência não se deve confundir com o objeto particular. Se mantivermos os
objetos técnicos como referentes, e se nos mantivermos atentos a eles, jamais chegaremos
à sua essência. Não importa como a técnica funciona, e sim o que é a técnica”. O
pensador alemão criticará então a “Razão instrumentalizada”. A técnica responde,
portanto, como nos ensina Heidegger, pela última fase/face da metafísica “acabada”.
Para ele, pensar a essência da técnica é uma forma de “des-encobrimento, des-
velamento, des-ocultação”, no sentido da pro-dução, que conduz do encobrimento para o
des-encobrimento (Alétheia). Ao des-encobrirmos a essência da técnica, des-cobrimos o
seu véu e, com ele, a sua Verdade. A técnica moderna des-encobre a realidade da natureza,
através de uma com-posição de dis-positivos técnicos. É o sub-solo que se des-encobre; é
uma jazida de minério que se des-encobre. É no des-encobrimento que se funda toda a pro-
dução. É a natureza sendo posta à dis-posição da exploração pela técnica moderna. Na
205
Modernidade, a natureza é objetificada e explorada: extraída, armazenada, estocada,
manipulada, transformada, reprocessada, distribuída, consumida, controlada.
Segundo Heidegger, não uma “demonia da cnica” o que é o mistério
de sua essência. A técnica encobridora é a mesma que pode des-encobrir sua essência. É
que Heidegger está acompanhando, nesse momento, e com uma preocupação ética, o
pensamento do poeta Hölderlin, quando este diz: Ali onde cresce o perigo, cresce também
o que salva”. E “salvar”, aqui, significa alcançar a essência da técnica. Fazendo a
experiência dos limites da técnica, chegaremos mais perto de sua essência. Mas é preciso
insistir nisso: a técnica não deve ser confundida com a essência da técnica.
Se a Razão instrumentalizada (“arrazoamento”) mergulha os entes na
imanência irrefletida, o pensamento filosófico sobre a essência da técnica permite ao
homem transcender o dado, em direção ao fundamento da técnica, para compreender a sua
“razão de Ser”. A essência (o Ser da técnica) permanece a maior parte do tempo encoberta
– mesmo antecedendo e fundando todo o resto (os entes técnicos).
A técnica não é um simples meio, um simples instrumento Heidegger e sua
concepção anti-instrumentalista da técnica. Se a sua essência permanece a maior parte do
tempo encoberta, é porque ela mesma, a técnica, trata de encobri-la, de ocultá-la em sua
Verdade essencial e fundamental, em seu Ser. Mas pensar sobre a essência da técnica pode
nos des-encobrir, des-velar, des-ocultar, revelar o seu Fundamento, ou Verdade. Enquanto
nos entregarmos à prática irrefletida da técnica, jamais compreenderemos a essência da
técnica. Ou seja, para Heidegger, o Homem está tão decididamente empenhado na busca
daquilo que a com-posição explora e produz, que já não toma esta questão como um apelo,
nem se sente afetado ou angustiado por essa exploração. Heidegger dizia: A angústia
206
manifesta o Nada (Que é metafísica?, p. 237). Segundo Heidegger, portanto, a
Modernidade seria marcada pela concepção de mundo “tecnicista”.
A técnica e a ciência não pensam o Nada (e portanto o excluem), mas,
ironicamente, estão “dentro” dele. Se Heidegger recusa o raciocínio calculador, é porque
este reduz o numerável (como um possível) ao numerado (como um necessário). Em
relação às condições de possibilidade de uma superação da metafísica, Heidegger diz: O
pensamento do Ser não procura apoio no ente (p. 249). Em última instância (ou em
primeira?), a metafísica pensa o ente enquanto ente. Ao abandonar o fundamento do Ser, a
Filosofia o faz pela metafísica. Dirá Márcio Tavares D’Amaral (Contemporaneidade e
novas tecnologias, p. 16): “Mas a tecnologia fala: fala com a ciência, e interpela o mundo.
E o mundo, convertido à eficácia tecnológica, responde. – Entre a interpelação e a
resposta, cabe ainda o espaço de uma questão? Descobrir isto é a tarefa atual do
pensamento”.
Há, afirmamos, uma produção de não-perplexidades (ou melhor, de não-
espantos, de não-maravilhamentos), operada justamente através da banalização (pela
repetição) do extra-ordinário, até se o transformar em ordinário. A tecno-logia, começada
na Modernidade e acelerada na Contemporaneidade, exige que o homem seja rápido em
sua de-cisão o que revela todo o caráter do “arrazoamento”, pois que, como o próprio
Heidegger nos diz, este exige: império da razão técnica; busca da razão de tudo;
esclarecimento / iluminação de todos os “objetos” (entes) da natureza; explicações lógico-
racionais; cálculo da natureza; busca das constantes e eliminação progressiva das variáveis
(incontroláveis, portanto não-lucrativas). Dizia Planck sobre isso que o real é aquilo que é
mensurável.
207
Márcio Tavares D’Amaral afirma (Contemporaneidade e novas tecnologias, p.
19): (...) O homem comum terá naufragado no controle do ordinário, que se conta em
números e não vale por si”. A certeza no calcular, diz ele, é antecipatória. Mas sempre o
extra-ordinário irá irromper e desbancar o ordinário; é aí que se embrenham o pensamento
e o possível. Gérard Guest explica que Les analyses de Être et Tempsmanifestent le
caractère dérivé et second des reconstructions théoriques de la science et de la
représentation en matière de ‘visions du monde(em Heidegger ou la question de l’être,
p. 502). Caráter derivado e segundo com relação à essência da técnica.
A tecno-logia, hibridada que é com a política, não permite hoje que o homem
hesite no momento da de-cisão. A hesitação se na percepção-entendimento da cisão.
Contudo, o dispositivo político-tecno-lógico, determinando os movimentos vitais no
espaço-tempo, produziria a necessidade daí a urgência na exigência de de-cisão. Márcio
Tavares D’Amaral dirá (Contemporaneidade e novas tecnologias, p. 26): A forma do
espanto que pensa é a insistência no Labirinto, que in-decide”.
Pensamos que, em linhas gerais, é contra esta hiper-aceleração das de-cisões
que Heidegger escreve. Uma ética da de-mora (de-meurer) como estratégia contra aquela
exigência-urgência de de-cisão veloz. A ciência faz referência ao mundo, mas se dirige
ao ente (e não ao Ser). A ciência rejeita e abandona o Nada não tem angústia: tem,
talvez, “ansiedades”... e muita pressa. A ciência e a técnica dão forma a uma feroz vontade
de dominação planetária. Buscamos o problema da técnica e da ciência em um texto de
Heidegger chamado L’époce des ‘conceptions du monde’, de seu livro Chemins que ne
mènent nulle part (p. 99, 100, 105, 114, 120 e 123, respectivamente):
Un phenomène essentiel des temps modernes est la
science. Un phenomène non moins important quant à son ordre
208
essentiel est la technique canisée. (...) La technique mécanisée
reste jusqu’ici le prolongement le plus visible de l’essence de la
technique moderne, laquelle est identique à l’essence de la
métaphisique moderne. (...) La science devient donc recherche par
le projet que s’assure lui-même dans la rigueur de l’investigation.
(...) Strictement parlant, il n’y a science comme recherche que
depuis que la vérité est devenue certitude de la représentation.
L’étant est déterminé pour la première fois comme objectivité de la
représentation, et la vérité comme certitude de la représentation
dans la métaphisique de Descartes. (...) Ici commence cette
manière d’être homme qui consiste à ocuper la sphère des pouvoirs
humains en tant qu’espace de mesure et d’accomplissement pour la
maîtrise et possession de l’étant dans sa totalité. (...) Le processus
fondamental des Temps Modernes, c’est la conquête du monde en
tant qu’image conçue”.
Haveria uma “mediação generalizada pela técnica”. Diferentemente da
Modernidade, no entanto, a Contemporaneidade postularia a mistura entre natureza e
cultura, até mesmo entre homem e máquina: o monstro do Dr. Frankenstein (na Literatura
de Mary Shelley) e o Ciborgue (na Antropologia de Donna Haraway) são apenas dois dos
exemplos que ilustram o Pós-Moderno. As próteses enquanto objetos técnicos
prolongam as potências do corpo: óculos, bengalas, pernas mecânicas, marca-passos,
chips, comprimidos excitantes (“neo-afrodisíacos”), veículos de transporte e de
Comunicação etc. Seríamos “híbridos”, ontologicamente agenciados com o artificial. O
professor Paulo Vaz diz (O inconsciente artificial, p. 219):
Também as fronteiras que separam os seres humanos
das máquinas que eles constroem passam a se fluidificar com o
desenvolvimento da Inteligência Artificial. As máquinas
209
tradicionais operavam de modo mecânico e padronizado;
substituíam o trabalho humano em tarefas ditas menores porque
repetitivas. Tais tarefas não exigiam justamente o que é tido como
distintivo do humano: a consciência de as estar realizando. (...) A
Inteligência Artificial, porém, passa a construir máquinas com
sensibilidade ao meio, isto é, que têm uma ´representação interna´
do exterior e que são até mesmo capazes de operar sobre suas
próprias regras de funcionamento quando se mostram ineficazes”.
Como bem lembra Bruno Latour, não se sabe mais, “com certeza científica”, se
uma dada catástrofe natural foi originada pela própria natureza ou pelo homem. Como Le
Roy e Bachelard, Latour pensa os “fatos” como “feitos”, como produzidos, como
constructos do homem. É por que natureza e artifício se “hibridizam”. Natureza,
linguagem e sociedade são hoje indiscerníveis – enquanto a “pureza” de cada uma é
argumentada, a sua mútua hibridação é praticada. Como lembraria Régis Debray, o
discurso da técnica como desumanização”, como “desnaturação”, como “perda da
origem”, “perda do autêntico” ou “perda de Sentido” parece provir de um ideal religioso,
de um esquema de “queda”, de decadência”, de “perda de uma pureza originária”. O
próprio Lévi-Strauss iria afirmar ser a técnica, ao mesmo tempo, parte, produto e condição
de nossa existência.
A Rede das redes (Internet), por exemplo, é real como a natureza, narrada
como o discurso e coletiva como o social. Para Latour, pode-se dizer, “a ciência é a
política por outros meios” nunca saberemos, diz ele, se os cientistas “traduzem” ou
“traem” as coisas. A “humanidade” se definiria, assim, pelas trocas e mediações constantes
entre o homem e as coisas. Pode-se pensar as técnicas como “produções humanas”, como
“narrativas de civilização”, como “fatos sociais”. Será uma boa questão a que segue,
210
mesmo que se preste ao chamado (e criticado) “determinismo tecnológico”: um “olhar
instrumentalizado” questão de “adestramento” das potências, dos modos de ver
pressuporia um corpo hibridado com o dispositivo de poder que o “instrumentaliza”
semioticamente sem parar, o que poderia comprometer, já na base do pensamento, as
potências libertárias que este suscita.
Em Simondon, o ser vivo resolveria continuamente “problemas”, não somente
se adaptando (ou seja, modificando e ajustando sua relação com o meio), mas
modificando-se, reinventando suas estruturas internas, introduzindo-se em novas
“problemáticas vitais”. É possível aqui pensar-se em Bergson, e seu conceito de “evolução
criadora”. O corpo contemporâneo pode ser definido como “mutante”: a body building e a
body modification de Stelarc e de Orlan, a intrusão de chips por sob a pele etc. Surge o
“hiper-corpo”, socializado, mundializado, virtualizado, e que se faz acompanhar de
“interfaces amigáveis” (com seus “signos infrapessoais”, ou “micro-signos”, ou seja: o que
é que isto discretamente nos comunica?).
Ao hibridar-se com os objetos técnicos, o homem pôs em cheque o mundo e a
si mesmo. Quando seus olhos passaram a poder ver a novas distâncias; quando seus
ouvidos pareceram “super-sônicos”, e tudo isso num tempo instantâneo do “aqui-e-agora”,
por intermédio de Novas Tecnologias de Comunicação e Informação (as NTIC), aquelas
oposições clássicas, ou modernas, embaralharam-se: “local e global”; “aqui e lá”; “público
e privado”; potência e direito”. Todas estas e muitas outras fronteiras vêm sendo
redimensionadas pelas NTIC, especialmente pela Internet.
Ao se impor sobre a comunicação oral, a escrita tornou presente alguém que
pode nem sequer estar vivo (“escrever para tornar-se imortal”). A secretária eletrônica
211
tornou desnecessário que duas pessoas estejam presentes simultaneamente para que haja
comunicação (seqüestro da voz alheia, para fins de “estar conectado”). A TV trazia o
mundo para a nossa sala (imperativo de “estar informado”). O telefone celular me
desobriga de “estar em casa” (imperativo de “estar circulando”). A Internet concretiza a
potência da ubiqüidade, outrora um privilégio divino como disse Paulo Vaz (no texto
Esperança e excesso): Deus torna-se desnecessário! Talvez o corpo contemporâneo esteja
recebendo as exigências-urgências de novos ritmos (sociais, biológicos, lingüísticos), os
quais nos são comunicados muitas das vezes de modo ilocutório por signos carregados
desses afetos.
Este “novo corpo” é tanto investido de novas potências como investido de
novas impotências, pois ele se oferece para ser uma modulação de prazer e dor”. Hoje, o
que se vende mesmo como idéia é a possibilidade de manter-se vivo e belo o que
de estético na Biopolítica). É um corpo que se consome a si mesmo, como um canibal que
roesse as próprias unhas. As vantagens, prometidas e/ou realizadas, são da ordem das
“novas formas de experimentação”, das “novas relações sexuais e/ou sociais”, da
“construção de novas identidades”, da “invenção de novas ficções e/ou verdades”, de
“novas relações espaço-temporais”, de “novos sentidos de comunidade”... enfim, de
“novas significações para a Política”.
Trocando em miúdos, o conceito de “lugar” torna-se secundário. O caminho”
(a “meada”) que se esgueira por entre os “lugares” é o que mais importa, nesta nossa
cibercultura. Procuramos sem parar “o fio da meada”. A “desterritorialização” é total – isso
porque o mundo encolheu, e o território ficou pequeno demais para nós todos. Fala-se até
mesmo de uma “virtualização”, ou “relativização” do tempo. O que realmente conta é o
acesso (ou o não-acesso) às informações desejadas. O problema que daí deriva é aquele da
212
“confiabilidade da informação” tema este cada vez mais em voga, quando se fala de
Jornalismo na Internet. Duvidamos facilmente das informações retiradas da Rede das
redes por conta de sua não-institucionalização. No entanto, confiamos cegamente nas
informações construídas por grandes agências de notícias. Talvez estejamos nos
esquecendo dos interesses comerciais destas últimas...
Na cibercultura, todo e qualquer usuário das NTIC é, ao mesmo tempo,
emissor e receptor de informações. Uma mesma pessoa produz informações enquanto
consome outras. Isso faz de cada pessoa um equivalente de um “banco-de-dados afetivo”,
e é por isso que o Marketing está falando de “Marketing de relacionamento”. Contudo,
um dos maiores problemas hoje é o “excesso de informação”, que é agravado pelas NTIC.
um paradoxo estranhíssimo nisso: somos uma “sociedade da informação”,
todos concordam, mas somos também extremamente “desinformados”! Isso se pelo
efeito desconjuntado do “excesso de informação”. Quando somos vitimados por
avalanches contínuas de informações, temos, como primeira reação, o choque da “super-
informação” (são muitas informações, e em velocidade tão alta que queremos retê-las
todas, sem no entanto consegui-lo). Em seguida, vem a sensação sem palavras de que
estamos completamente “desinformados” (se antes o que nos paralisava era a “falta de
informação”, hoje é o “excesso” dela). Por esta hipótese, a apatia política é rapidamente
explicada. Mas o excesso já vinha de antes da Internet...
Segundo Ignácio Ramonet (no livro A tirania da Comunicação), assistir ao
telejornal não é necessariamente “informar-se”. Isso se por três razões pelo menos: a) o
telejornal é estruturado como ficção, então não é feito para “informar”, e sim para
“distrair” (invenção e exploração capitalísticas do “déficit de atenção”); b) a veloz
213
seqüência das notícias (umas 20 por edição) produz o duplo efeito negativo, a
“superinformação” e a “desinformação” (superficialidade e paralisia); e c) o telespectador
quer “informar-se sem esforço” (mas com passividade) contra o quê Ramonet afirma:
informar-se é cansativo”. Até mesmo no Jornalismo, vê-se a “septissemia” do Marketing
e da Publicidade, em vista do aumento da audiência. O problema é que não se está apenas
comercializando notícias, mas “afetos políticos através de signos”. Quais os efeitos disso
em nossa subjetividade em constituição? A Internet nos remeteria, contudo, a uma
horizontalidade (“rizoma”) inédita.
Ramonet dirá que agora as informações devem possuir três qualidades
essenciais: a) ser fáceis (causa: condicionamento das mensagens; efeito: analfabetismo
funcional, alienação e apatia); b) ser rápidas (causa: velocidade e excesso; efeito:
desinformação e paralisia); e c) ser divertidas (causa: espetáculo e entretenimento; efeito:
descontextualização histórica e incompreensão histérica). O sistema midiático que junta
os MCM e alguns modos de uso das NTIC produz subjetividades deste tipo:
“analfabetas-funcionais (intelectualmente) e alienadas (eticamente)”, “desinformadas
(imaterialmente) e paralíticas (materialmente)”, apáticas (politicamente) e histéricas
(esteticamente)”. Eis o imenso paradoxo, notado por Ramonet: quanto mais o mundo se
complexifica (por exemplo, após a 2ª Guerra Mundial), mais o Jornalismo simplifica o seu
discurso. Provavelmente, o déficit será crescente.
Como nos ensina o professor Paulo Vaz, em Esperança e excesso, podemos
fazer duas leituras do “excesso de informação”: 1- qualitativa: “muito lixo e pouca
informação” (pressupostos normativos como parâmetro de qualidade). Esta leitura parece
desejar manter-se na passividade de uma recepção “pré-mastigada” da informação. 2-
quantitativa: “o que vale como ´informação´ é sempre contextual” (portanto, depende do
214
nosso interesse no momento da pesquisa). A subjetividade estaria em estreita, e explícita,
relação com a necessidade. Contudo, talvez pudéssemos apostar numa leitura, nem
qualitativa nem quantitativa, mas intensiva: se o mundo é fragmentado, e as nossas
subjetividades também, como o excesso de informação afeta a nossa constituição
subjetiva? Se nem sequer sabemos bem o que queremos
89
! Talvez a resposta possa ser: “a
torrente nos comunica que a torrente faz bem” (ver o capítulo 3.4); o excesso de
informação constitui o nosso ser de modo a que fiquemos perdidos e fragmentados, à
deriva e apáticos. Há um modo de ser paralisado: é pela apatia.
O excesso pode também “asfixiar contanto, é claro, que ainda tenhamos
capacidade (ou potência) de sermos afetados pelo mundo. Se o excesso traz os benefícios
da multiplicidade simultânea de “caminhos possíveis”, traz igualmente a ameaça da
incompreensão generalizada do que fragmentadamente nos cerca. Contra a perspectiva do
“determinismo tecnológico” muitos teóricos contemporâneos se levantaram. Para eles, a
tecnologia não traria todo este “impacto” ético-político alardeado por aí. O que somos não
seria tão “dependente” do arsenal tecnológico. Concordamos que a metáfora do impacto”
seja demasiado “apocalíptica”. Contudo, não podemos isentar as novas tecnologias de sua
co-responsabilidade, ou co-autoria (“quase-causa”), na produção de nossa subjetividade.
Somos “quase-causados” (enquanto “efeitos de uma relação verdade-poder”) por diversos
fatores, simultaneamente: éticos, políticos, lingüísticos, estéticos, morais, econômicos,
biológicos, físicos, químicos, espaciais, temporais, visuais, sonoros, tácteis, olfativos,
gustativos etc. Se sempre fomos “determinados” por esses fatores, por que o o seríamos
quando o fator é o “tecnológico”?
89
A ilusão de que “sabemos o que queremos” vem do Marketing, justamente para justificar suas
estratégias invasivas.
215
Tudo o que existe – e que portanto já faz diferença no mundo – é produzido por
tantas “pequenas causas”, que se pode dizer de cada uma das “pequenas-causas” que é
uma “quase-causa”
90
. A “antiga” tecnologia comunicacional os MCM não consegue
mais monopolizar totalmente “a fala”, os discursos, os enunciados, a informação. A
questão é de outra ordem: “como nós selecionaremos as ´boas´ informações de modo
eficaz”? A Rede das redes é um emaranhado de caminhos, de feixes que se entrecruzam
sem cessar.
Precisamos saber como passear pelas “infovias”, evitando “derrapagens” e
“colisões” no caminho (o qual, aliás, não é pré-determinado). Como afirma Paulo Vaz, em
Esperança e excesso, isso revela que a questão se deslocou: da busca da Verdade (na
Modernidade) para a busca da Liberdade (na Pós-Modernidade). Diz ainda Paulo Vaz
(Esperança e excesso, p. 08): “A Rede é nossa forma de infinito, só que não como extensão
desmedida que explode o lugar, mas como possibilidade de conexões e caminhos”.
No “lugar” (que é material), os estoques são físicos, de coisas; transporte
corporal de objetos e de sujeitos. Na Rede (que é imaterial), os estoques são não-físicos, de
informações; transporte incorporal de “inobjetos” e de Sentidos-Acontecimentos. Como
nos ensina Paulo Vaz, a concentração e o acúmulo dão lugar às conexões cada da
Rede contém virtualmente a Rede toda. A informação está virtualmente em todos os
lugares e, portanto, em “lugar nenhum”: chegamos à “distopia”, a outra face da
“ubiqüidade”.
90
Quando várias causas concorrem, simultaneamente, para a produção de uma mesma ação, e
todas são, ao mesmo tempo, causas dessa ação, chamamo-las de “quase-causas”. Spinoza dizia
(Spinoza apud Negri: A anomalia selvagem, p. 225): Quanto mais numerosas forem as causas
simultaneamente concorrentes pelas quais um afeto é excitado, mais este é forte”. Ao que Negri
completa (A anomalia selvagem, p. 225): E o sentido do processo é dado pela intensidade da
adequação da mente ao real”.
216
Na nossa Contemporaneidade, o homem se agencia fácil e rapidamente com a
cultura através da “mediação tecnológica generalizada”. O homem é mais um turbilhão em
uma natureza turbilhonante (Michel Serres apud Paulo Vaz: O inconsciente artificial). As
teorias do acaso e da turbulência começam a ganhar a cena intelectual, que o contexto
sócio-cultural é excessivamente tecnologizado e controlado. No imaginário tecnocultural,
homem e máquina se indiferenciam, dando lugar ao “pós-orgânico” (Deleuze e Guattari,
Paula Sibilia). Os órgãos biológicos ganham status de “organizadores”, “ordenadores”,
“comandantes”, os quais imporiam sua soberania sobre o todo do corpo. O corpo virou o
“inimigo” a ser dominado, submetido, controlado.
A própria noção de “homem” perde seu sentido em algumas teorias pós-
modernas, pois que máquinas e coisas “ganham vida”. Esquecemo-nos da diferença entre
“trabalho vivo” e “trabalho morto”, tão cara à concepção de mundo materialista de Marx. É
nesse “turbilhão” que também nos esquecemos de que esta diferenciação nos servia de
arma na luta contra o Capitalismo. Isso tem cheiro de “despolitização”.
Temos, de um lado do “ringue”, os apologetas da tecnologia (tecnófilos,
integrados), como Pierre Lévy para quem a cnica seria “natural no homem”, porque o
homem nunca viveu, e nem conseguiria viver, sem lançar mão dos objetos técnicos. Para
Lévy, seria impossível separar o humano do artificial, que a técnica propõe e o homem
dispõe”. Para autores como ele, a técnica e a tecnologia não trariam mais desastres do que
trazem benefícios. Uma coisa seria compensada pela outra. Lévy dirá o seguinte (O que é o
virtual?):
Ou o ciberespaço reproduzi o midiático, o
espetacular, o consumo de informação mercantil e a exclusão
numa escala ainda mais gigantesca que hoje. Esta é, a grosso
217
modo, a tendência natural das ´supervias da informação´ ou da
´televisão interativa´. Ou acompanhamos as tendências mais
positivas da evolução em curso e criamos um projeto de civilização
centrado sobre os coletivos inteligentes...”.
Do outro lado do “ringue”, temos os acusadores ferrenhos da tecnologia
(tecnófobos, apocalípticos), como Jean Baudrillard, Paul Virilio e Dominique Janicaud.
Este último diz que a técnica é “totalitária”, já que não conseguimos “dizer não” a ela. Em
geral, as críticas desses três autores poderiam ser assim resumidas: haveria uma imensa
confusão entre potência” e “direito”. A “potência” (ou capacidade) de fazer algo não se
deveria confundir com o “direito” (ou permissão) de fazê-lo. A capacidade de clonar seres
humanos não autoriza de imediato a sua clonagem. Assim como a capacidade de surrar
outra pessoa (técnicas de luta, tecnologia marcial) não autoriza o “pit-boy” a fazê-lo.
Contudo, se um ponto médio em que tecnófilos e tecnófobos se identificam,
este ponto parece ser a idéia – que lhes ocorre num “acesso de moderação e modéstia” – de
que a técnica seria, ao mesmo tempo, neutra e não-neutra. Neutra, porque dependeria
do uso que se faz dela (a culpa do assassinato é da faca?). Não-neutra, porque ela
determina definitivamente a nossa abordagem do real (a invenção da faca de fato aumentou
as potências de assassinar). Um bom exemplo deste pensamento nos é oferecido,
poeticamente, por Roger Lesgards (em O império das técnicas, p. 11):
Assim, pode-se ver correr e inchar, na superfície do
planeta azul, o grande rio da técnica, capaz, em seus
transbordamentos, de fecundar as planícies adjacentes, tanto
quanto de provocar nelas irremediáveis erosões, de arrastar
aluviões e poluições, de aliviar o fardo dos homens e de submetê-
los a novas obrigações, de elaborar uma competição que fabrique
218
tanto ´vencedores´ quanto excluídos, de desenvolver as
comunicações que permitem uma melhor ´comunhão´ ao mesmo
tempo em que multiplicam o número de ex-comungados´ ”.
A tecnocultura, como se pode ver, não deve ser demonizada, nem tampouco
consagrada. que se fazer o inventário de suas potências de nos afetar. Há que se fazer o
diagnóstico de nossa potência de sermos afetados por ela. Não se trata apenas de
acompanhar as mudanças quantitativas, nem de apenas criticar as mudanças qualitativas. É
preciso que atentemos para as novas intensidadesproduzidas pela Contemporaneidade
tecnológico-comunicacional. O que estamos deixando de ser? O que estamos nos
tornando? Estas, as perguntas cabíveis.
E como não poderia deixar de ser, todas essas questões se intensificam quando
a tecnocultura se desdobra em cibercultura. Se a tecnocultura se refere à realidade histórica
atravessada pela relação “homem objeto técnico”, a chamada cibercultura remeter-se-á
ao momento em que essa realidade histórica passa a se compor, em uma parte
considerável, de correlações informático-informacionais”; quando uma boa parte de
nossas vidas se digitalizada; quando nosso tempo se mede em milésimos de segundos,
nosso espaço se mede em pixels e nossos afetos, em “memória RAM”; quando não
importam os átomos, mas os bits e bytes.
A “digitalização do mundo e da vida” é ameaça para uns, promessa de
redenção para outros. Uns e outros, jogados aos pés do computador, exagerados. Uns
juram que o computador pessoal está degenerando toda forma de Política (Baudrillard,
Virilio). Outros, de modo menos exaltado, argumentam que o que está havendo é uma
“reconfiguração da Política” (Antonio Rubim). Para uns, a Política está em seus estertores,
219
respirando por aparelhos toda forma de Política se resumiria ao que se conhece dela
(fala-se de uma Política sob a forma-Estado), e é isto que estaria em decadência. Para os
outros, a Política (fala-se de uma Política como sinônimo de Coletividade) está muito
viva, buscando novos modos de se expressar apenas não estaríamos percebendo esta sua
“reconfiguração”, a qual, ademais, só confirma sua resistência ativa. Segundo uns, o
computador é o “diabo”. Segundo outros, ele é um Deus todo-poderoso”, já que se
caracteriza pela tão sonhada “ubiqüidade” (por sua forma Acentrada).
De qualquer modo, o acentramento da Rede das redes (a Internet) não é uma
promessa é um fato consumado. A Internet, como se sabe, foi inventada com finalidade
bélica pelos norte-americanos. Para que funcionasse mesmo sob forte bombardeio
(termodinâmico), ela deveria ser imaterial (ou mais especificamente “digital”), e
completamente Acentrada. É claro: se fosse Centrada – se possuísse um centro de comando
ela poderia ser “tomada e controlada pelo inimigo”. Fez-se a Rede de modo Acentrado,
sem “ponto principal ou privilegiado”, sem hierarquias; sem centro, portanto sem periferia.
Neste sentido, a Democracia ali é total, diríamos: uma “Democracia selvagem”
muitíssimo diferente dessa “Democracia de Mercado” (Chomsky), fajuta, que tentam nos
fazer engolir através dos MCM. A Rede das redes está fora de Controle”, pelo menos até
agora. Isto não é “otimismo”, é realismo. Mas é claro que isso trouxe a reboque novas
utopias de liberdade.
Vivemos numa sociedade em Rede (Manuel Castells), interconectada, onde a
informação existe em excesso e circula na velocidade da luz. A Internet, na sociedade em
Rede, ganha estatuto “privilegiado” pelo saber. Porém, quando pensada pelo viés do
Centrado, e portanto erradamente, a Rede se torna algo inóspito e incompreensível,
220
portanto ameaçador, para muitos. Mas se pensada como ela é de fato, ou seja, como
Acentrada, a Rede ganha algum Sentido e se torna mais habitável.
O Acentrado é politicamente revolucionário, porque se afaz aos múltiplos
devires simultâneos que todos nós temos e que todos os nós (da Rede) têm. O
pessimismo seria pior, pois é o resguardo de todo aquele que é cansado e triste (Nietzsche
versus Schopenhauer?). A Rede tem seus problemas intrínsecos, é claro, mas tem o mérito
de reconfigurar politicamente a realidade que habitamos. O que seria dos atuais
movimentos de ativismo político sem a sua organização rizomática?
Estamos nos direcionando aqui para a compreensão dos aspectos ético-
políticos da vida em Rede, pensando a Rede como um labirinto “(des)lugar” do excesso,
da incerteza e da insegurança; “(des)lugar” das encruzilhadas e das velozes tomadas de de-
cisão. No entanto, é preciso que façamos um esclarecimento: aquela perspectiva que repete
sem cessar que “a linha reta é o melhor caminho entre dois pontos” se prende a um clichê
que não conhece suas reais causas e conseqüências difundindo uma pretensa submissão
das linhas (fluxos) aos pontos (nós). Ao aterrisarmos em um da Rede, é toda a nossa
“identidade” que é indagada, incitada a ser “redefinida” (para ser mantida ou não).
Diferentemente, ganhamos uma nova potência de pensamento ao deslocarmos
essa perspectiva para a compreensão de que não é a linha que esentre dois pontos, mas é
o ponto que se forma do cruzamento de duas ou mais linhas! O ponto é o lugar da
individuação, para onde confluem as linhas que o fundam. Portanto, não é a fixidez
sucessiva, ou identidade, do ponto-nó que importa, mas a multiplicidade simultânea, ou
devir, das linhas-fluxos. Como diz Deleuze, não linhas retas, nem na natureza, nem nas
palavras.
221
A Rede pertence tanto à Tecnociência quanto à vida social (“Redes
simbólicas”). O homem-na-Rede dispensa detalhes inúteis, levando apenas em
consideração algumas conexões úteis para resolver o seu problema daquele instante. Ele
joga com a “comutação”, com as alternativas que o caminho lhe apresenta. Os nós (pontos)
das Redes são quaisquer “lugares”, memórias, minicentros de seleção ou de
correspondência. Aos nós se associam algumas variáveis: semelhança e duração, por
exemplo. Na Rede, as transformações de conjunto (globais, macropolíticas) são instauradas
por pequenas transformações particulares (locais, micropolíticas). As Redes compõem-se
por uma organização reticular e fluida de nós. A mensagem procura, por conta própria,
qualquer passagem (corredor) que estiver livre. A mensagem como Clinamen!
As estruturas Centradas são hierarquizadas. No imaginário tecnocultural,
Centrado remete-se a: idêntico; próprio; consciente; determinável / determinado;
classificável / classificado; ordenável / ordenado; hierárquico; conforme à norma”. O
centro é o “órgão” distintivo de tomada de de-cisão (como aqueles conglomerados de
emissores, dos MCM). A periferia é o lugar dos subordinados indiscerníveis (a Massa de
receptores). Os raios seriam canais de Comunicação possível (os meios, a mediação
técnica).
Alguns pensadores clássicos buscaram conceituar o Centrado, atrelando-o
definitivamente ao conceito (agora gêmeo) de Circularidade. Proclo dizia (apud Petitot:
Centrado / Acentrado): Na sua inteireza, o círculo está presente centralmente no centro;
porque o centro é a causa, e o círculo é o que é causado por ele”. Damáscio definiu (apud
Petitot: Centrado / Acentrado): O centro contém em simultâneo todos os seus raios, mas
anteriormente à sua separação”. Dionísio Areopagita afirmou (apud Petitot: Centrado /
Acentrado): No centro, todas as linhas de um mesmo círculo são apenas uma; este ponto
222
possui em si todas essas linhas confundidas e unidas não somente umas com as outras,
mas ainda com o único ponto de partida do qual elas emanam”.
Jean Petitot, matemático especializado no tema, assim provocou esse
paradigma-clichê (Centrado / Acentrado, p. 347): De Platão a Bentham (...), a figura
ideal do círculo, como todo o esquema formal a que se tenha sujeitado a matéria sem que
isso constitua exigência objetiva, adere no fundo ao despotismo”. As figuras do “círculo” e
da “árvore” continuam a dominar de modo totalitário as representações sociais, por meio
das diversas “evidências”, em realidade falaciosas, que têm por função objetivar meras
divisões de categorias formais. Deleuze e Guattari assim criticaram os sistemas Centrados-
arborescentes (Introdução: rizoma. In: Mil platôs, p. 26):
Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos
que comportam centros de significância e de subjetivação,
autômatos centrais como memórias organizadas. Acontece que os
modelos correspondentes são tais que um elemento só recebe suas
informações de uma unidade superior e uma atribuição subjetiva
de ligações pré-estabelecidas”.
Depois da Idade Média, com os adventos do Humanismo Renascentista, da
Reforma Protestante e da Revolução Científica, o Centro não mais se aplica a Deus.
Agora, se aplica mormente ao Homem. Em cada lugar, a cada momento, um mundo (eis o
“perspectivismo”). Jean Petitot assim nos explicava o “poder do Centro” (Centrado /
Acentrado, p. 344): “(...) existe uma outra razão para a excepcional pregnância do círculo
como forma: ele fornece a imagem de um esquema minimal de organização”. Nesta linha
de pensamento, Deleuze e Guattari afirmaram (Conclusão: do caos ao cérebro, em O que é
a Filosofia?): “Pedimos somente um pouco de ordem para nos livrarmos do caos”.
223
Para Michel Serres, uma árvore sempre se forma a partir de uma Rede. No
Acentrado mais “estados” (Sentidos-Acontecimentos) do que “seres”. A solução
Centrada remete-se à subordinação sucessiva de cada ponto periférico a um mesmo e
soberano ponto central, o qual será a instância transcendente das tomadas de de-cisão e que
envia no mesmo instante àqueles pontos periféricos uma mesma instrução. Este modelo
responde por aquela estrutura UM–MUITOS, típica dos Meios de Comunicação de Massa
(TV, por exemplo). É um caso de “estrutura arborescente”, segundo a crítica filosófica.
A solução Acentrada
91
consiste, pelo contrário, em efetuar essa sincronização
gradualmente, agindo cada ponto de modo “míope”, globalmente, e não possuindo portanto
nenhum conhecimento da sua posição atual na Rede. O acentramento remete-se à
(auto)coordenação simultânea de cada ponto com todos os outros pontos, e sem a
existência ou a exigência de qualquer ponto central de subordinação (transcendental).
Este modelo responde pela estrutura” MUITOS–MUITOS, típica de uma
Comunicação em Rede, ou seja, da Internet como uma das NTIC. É um caso de
“paralelismo”, segundo a Matemática, ou de “rizoma”, segundo a Filosofia. Seria
interessante o estudo do conceito matemático-arborescente de “iteração”, para compará-lo
às estruturas labirínticas das Redes
92
. Jean Petitot afirmaria (Centrado / Acentrado, p. 336):
91
Seus formuladores: Moore (1964); Rosensthiel (1966); Waksmann (1966); Balzer (1966-67);
Moor e Langdon (1968); Herman e Rosenberg (1975).
92
Iteração: procedimento algébrico, segundo o qual o objeto da operação seguinte é o resultado da
operação anterior. Qualquer semelhança com a estrutura da Dialética não será mera coincidência!
224
O problema geral do acentrismo pode colocar-se do
seguinte modo: em que medida um sistema, cujas componentes
apenas agem em função de uma informação local, é suscetível de
performances globais? O exemplo típico de um sistema semelhante
é o cérebro”.
O imaginário tecnocultural associa algumas noções ao conceito de Acentrado:
“diferencial; errático; inconsciente; marginal; descentrado; excêntrico”. No entanto, a boa
teoria do acentrismo excederia tais formalizações. Em Teoria Política, por exemplo, a idéia
de acentrismo foi fundamental para as análises que Michel Foucault faria das práticas
“microfísicas” do poder: o poder produtivo, atópico, circulante e descentralizado
(constituinte, segundo Negri); os “fiscais-fiscalizados”.
Uma idéia clássica de acentrismo, tirada do paradigma do centrismo: no Séc.
XII, havia uma concepção teológica que afirmava ser Deus uma esfera cujo Centro está em
toda parte e a circunferência, em parte alguma. Mestre Eckhart concebia Deus como uma
mônada ou esfera em cada momento e lugar, Deus seria o Centro de todos os momentos
e lugares. A idéia de Univocidade do Ser do medieval Duns Scot teria criado as
condições de possibilidade para a concepção spinozista (horizontalizada!) de Deus sive
Natura(“Deus, ou seja, a Natureza”). Mais tarde, Gilles Deleuze diria que isso era um
“diagrama da imanência”.
O paradigma acentrista contemporâneo revela dispositivos imanentes, que
estão para além das “ideologias”. Revelam a “descodificação absoluta” (Deleuze): o
desfalecimento dos esquemas tradicionais de troca simbólica. A própria noção de
“estrutura”, na verdade, se “desestrutura”, pois passa a ser a ilusão imanente de uma
transcendência. E a sua face Política é a da crise da autoridade – o que não é bom, segundo
225
Hannah Arendt, pois abre espaço para o crescimento do Totalitário. Mas isto não significa
que viver sob a autoridade fosse bom – trata-se aqui apenas de um diagnóstico das
transformações no “hardware” da Política e do poder.
Um pensamento que nada compreende da multiplicidade simultânea (ou seja,
da Diferença, em Deleuze) é aquele que, orgulhosamente, parte do UM e se divide em
DOIS, e daí em diante, segundo um esquema centralizador. No Rizoma, ao contrário, cada
ponto é conectável com cada ponto; cada traço seu é uma “natureza diferente”; ele
produz regimes de signos diferenciais, e também não-signos; ele não se deixa conduzir ao
Uno não é feito de unidades (diferenças das quantidades) nem de essências (diferenças
das qualidades), mas de afetos (diferenças das intensidades); não tem começo (soberania
da Origem) nem fim (soberania teleológica), mas somente meio por onde cresce,
transborda e se desdobra (ver Deleuze: A dobra – Leibniz e o barroco); não tem sujeitos ou
objetos, ou seja, identidades, mas multiplicidades e variações; não é definido por pontos,
posições ou nós, mas por linhas (de segmentaridade, de estratificações, de fuga...); não é
objeto de representações (nem externa, “árvore-imagem”, nem interna, “árvore-estrutura”);
é sempre desmontável, reconfigurável, modificável modulável; possui múltiplas entradas
e saídas; relaciona-se com os devires é feito da horizontalidade dos platôs (mas em
Deleuze e Guattari, vários platôs não formam uma montanha”!); Rizoma é aliança ou
conectividade ilimitadas (e...e...e...); sacode o verbo “ser” (é...é...é...).
O Centrado-arborescente mostra-se também extremamente problemático, se
pensarmos em seu funcionamento na Lingüística (entendida como pretensa “ciência da
linguagem verbal”). Os lingüistas estabelecem as invariantes da linguagem verbal. Mesmo
quando analisam as suas variações, eles o fazem com a finalidade previamente definida de
estabelecer suas recorrências e repetições, estabilizando-as, como faz todo tipo de ciência
226
sobre seus objetos. O problema detectado por Deleuze e Guattari é que a ordem da
ciência sempre serve para garantir as exigências das outras ordens (Política, Lingüística).
Na verdade, o que os lingüistas fazem é extrair das variáveis um conjunto de
constantes, para daí traçar um sistema explicitamente homogêneo (e implicitamente
Centrado). Disseram Deleuze e Guattari (Postulados da Lingüística, p. 46. In: Mil platôs):
Mas o empreendimento científico de destacar constantes e relações constantes sempre se
duplica no empreendimento político de impô-las àqueles que falam, e de transmitir
palavras de ordem”. Estamos no seio da relação “saber-poder”, mas chegando à
problematização das formas de subjetivação que lhes são referentes. Ordens e comandos,
assim, retornariam.
Esta forma de pensar as potências acentradas da linguagem nos serve como
fundamentação filosófica, no que tange ao processo imaterial-comunicacional de
produção, reprodução e circulação de signos políticos, bem como à constituição ontológica
do sujeito contemporâneo. Fato é que necessitamos pensar as novas potências Acentradas
da Comunicação e da expressão. É nisso que o “Ser-Acentrado” das Novas Tecnologias de
Informação e Comunicação (NTIC) se difere radicalmente do “Ser-Centrado” dos Meios
de Comunicação de Massa (MCM) o que sugere uma “abertura ontológica” maior e mais
potente, a ser verificada com o passar dos anos. Neste ponto, concordamos com a tese do
professor Antonio Rubim (da UFBA), sobre a “reconfiguração da Política pelas NTIC”.
Agora, é preciso passarmos à análise crítica daquilo que irá, enfim, atravessar
(como questão das mais pertinentes) tanto os MCM quanto as NTIC a presença
avassaladora das diversas mídias em nosso cotidiano, bem como o seu impacto ontológico-
227
político em nosso modo contemporâneo de subjetivação (a apatia produzida e que nos é
ensi(g)nada, bem como a resistência necessária e que nos é urgente).
228
3.4- As Mídias como Moduladoras de Afecções: “Onto-Política das
Intensidades”
Política é a arte de conduzir rebanhos.
(Platão)
A função deste capítulo é a adequação do problema da “avalanche midiática”
àquele da constituição ontológica dos indivíduos. Desde já, é bom salientarmos que nossa
perspectiva não se limitará ao mero acompanhamento quantitativo das últimas
transformações sócio-culturais (a inegável multiplicação das mídias), e nem à simples
crítica bem/mal-humorada das mutações qualitativas do mundo (“o mundo está
melhor/pior do que antes”). Vemos armadilhas perigosas nessas duas abordagens.
Preferiremos que fique claro uma análise intensivadas novas aberturas ontológicas.
Eis a pergunta aqui cabível: em que medida se pode pensar em devir revolucionário, numa
sociedade planetária regida por valores capitalistas, comunicados, de “contrabando”, por
signos midiático-espetaculares?
É por isso que iniciaremos pela temática da “Sociedade do Espetáculo” (com
Guy Debord, em A sociedade do espetáculo), situando-a, para, em seguida, podermos
avaliar suas novas potências imateriais, semiopolíticas (com Todd Gitlin, em Mídias sem
limite). Partiremos de duas concepções aparentemente conflitantes: o Empirismo e o
Irracionalismo. Do primeiro, aproveitaremos o processo de “dobrar o mundo externo em
direção ao mundo interno”. Do segundo, a importância do inconsciente no processo de
elaboração dos imateriais recolhidos. O Racionalismo seria o “inimigo” comum.
Empirismo e Irracionalismo nos explicam as condições de possibilidade para a “captura e
incorporação” que sofremos por parte do Capitalismo Semiótico.
Neste capítulo, então, partimos da conceituação do que chamamos as
“micropercepções inclusivas” e a “modulação de afecções”. As “micropercepções
229
inclusivas” são aquelas pequenas percepções cotidianas, que, por se fazerem
constantemente presentes, nos dispensam de prestar-lhes atenção e é que nossa
subjetividade se vê mais vulnerável ao exercício do poder semiocapitalista. O escritor
francês Le Clézio dizia que uma pequena mudança na temperatura ambiente, ou uma
ligeira alteração na tonalidade de uma tarde, ou nos sons quase-imperceptíveis lhe
causavam transformações psíquicas violentas. A tese – dele e nossa – pressuposta aí é a das
“quase-causas”, que nos constituem definitivamente, mas sobre as quais não temos
controle ou entendimento no momento em que nos estão afetando.
Se o próprio mundo (fonte, nascente de afecções), com seu ritmo, já nos
impacta com afetos e signos, que dirá o complexo midiático (modulador, rio caudaloso de
afecções), com seu ritmo alucinado de produção imaterial? E nossos espíritos ficam à
deriva, e em maremoto. Aqui surge o tema do Controle através dos afetos (ou seja: “de que
modo a constituição política da Pós-Modernidade comunicacional se vale das técnicas de
produção dos gostos para tentar tornar-nos apáticos?”), em consonância com a idéia de
“administração e gerência das semioses” (ou seja: “como se o processo de percepção-
afecção dos valores capitalistas através do complexo comunicacional-semiótico?”). A
investigação teque passar pela análise dos processos de “semiotização sócio-política” e
suas referentes afecções-semioses. Portanto, comecemos pela análise das características
“espetaculosas” da cultura pós-industrial.
230
As décadas de 50, 60 e 70 do Séc. XX viram o nascimento de uma das mais
violentas correntes de pensamento (ativista) político: a Internacional Situacionista
93
, que
pregava, e praticava, o ultrapassamento da separação entre Arte e vida (entre artista e
espectador). Através da organização de escândalos públicos, seus membros intentavam
produzir nas pessoas um espanto (matriz e motor do pensamento), combatendo as forças da
alienação, da passividade e da apatia. Os situacionistas construíam “situações poéticas”,
“novos estados afetivos”, de ampliação das possibilidades ou modos de vida. Debord dizia
que podemos construir algo sobre as ruínas do Espetáculo. É claro que os situacionistas
não escapariam ao “gosto pela exclusão” (hoje também comercializável pelo Mercado
semiótico).
Em larga medida, como se pode ver, os situacionistas carregam explicitamente
uma postura marxista: a da transformação material da realidade. Poderíamos ilustrar isso
com a 1Tese sobre Feuerbach (Marx e Engels, em A ideologia alemã): Até agora, os
intelectuais fizeram interpretar o mundo; cabe agora transformá-lo”; e com a frase de
Debord: Um fantasma ronda a cultura: a Internacional Situacionista”. Em seu livro de
1967, A sociedade do espetáculo, Debord sistematiza as preocupações da Internacional
Situacionista, criticando no Capitalismo o seu “sistema geral de ilusões”, onde a imagem
teria mais importância do que a realidade – entendendo que a imagem é uma versão
sempre limitada da realidade. Ali, Debord já defendia uma “sociedade sem classes”.
93
O termo “Situacionismo” nada tem a ver com “ser partidário da situação” (versus “oposição”). O
sentido dessa expressão é: se somos produtos das situações que vivemos, é preciso então que
interfiramos nessas situações, que passemos a produzi-las, ao invés de nos contentarmos em
observá-las, como meros espectadores. “Situacionismo”, por aí, é a “ciência das situações”. Essa
postura se faz pela seqüência de três passos: 1- saber que o mundo me afeta; 2- saber como o
mundo me afeta; 3- fazer algo a partir disso.
231
Contudo, o se pense que Debord e os situacionistas se prendiam a uma
utopia. Para eles, a realidade ultrapassa em muito qualquer utopia. Diziam que a riqueza
das possibilidades técnicas atuais nos dispensaria de buscarmos um ponto-fixo seguro no
imaginário, no utópico. Era preciso, segundo eles, colocar-se os recursos técnicos a serviço
da criatividade coletiva.
Se o “Capitalismo turbinado” das indústrias passou a dispensar a força de
trabalho vivo (o humano) em prol das máquinas mecatrônicas (robótica e cibernética),
aquele enorme contingente de trabalhadores iria se deslocar novamente como na época
da “acumulação primitiva de capital” (na origem do Capitalismo). Saindo das fábricas, os
trabalhadores iriam para o setor terciário, para o comércio de produtos e serviços
impulsionando, da sua parte, o “Capitalismo semiótico”. O novo trabalhador é ao mesmo
tempo usuário e matéria-prima da “capitalização-midiatização do lazer”: férias, turismo,
horário de lazer, consumo de espetáculos. As organizações da produção, do lazer e do
consumo deveriam equilibrar-se para um maior aproveitamento do capital.
Para Debord, a sociedade do Espetáculo se montou como uma forma de vida
pobre e fragmentária, pela qual os indivíduos são levados a consumir passivamente as
imagens de tudo aquilo que lhes falta na vida material. A unidade concreta que falta à vida
material é recuperada (pelo menos sob a forma de uma promessa) no plano simbólico da
vida imaterial do consumo de imagens. Segundo Debord, a origem do espetáculo é “a
perda do sentimento de unidade do mundo”. Se as relações sociais eram mediadas
indiretamente pelas coisas, hoje seriam “mediadas diretamente” (paradoxo) pelas imagens.
Todd Gitlin explicaria assim (Mídias sem limite, p. 174): Um paradoxo maravilhoso
que as mídias, que são, por definição, conexões, coisas entre coisas, prometam
imediatismo, a condição de não ser mediado”. Da antiga degradação do Ser em Ter,
232
passamos à nova degradação do Ter em Aparecer – é o que dirá Debord. Como diz Anselm
Jappe – estudioso do pensamento de Guy Debord (A arte de desmascarar, p. 01):
No espetáculo, a economia, de meio que era,
transformou-se em fim, a que os homens submetem-se totalmente, e
a alienação social alcançou seu ápice: o espetáculo é uma
verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê
governado por algo que, na realidade, ele próprio criou
94
.
É preciso dizer que, para Guy Debord, o Espetáculo não é “um conjunto de
imagens”, e sim “uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens”. O Espetáculo
é ao mesmo tempo o resultado e o projeto da atualização do Capitalismo, e que teria
separado radicalmente a realidade e a imagem. O Espetáculo seria a linguagem comum”
dessa separação entre realidade e imagem. Quando a necessidade se socialmente
sonhada, esse sonho, por sua vez, se torna necessário e a enganação imagética recolhe
seus dividendos: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna
imagem (A sociedade do espetáculo, p. 25, aforisma 34). É aqui que se nota que
Baudrillard saqueou amplamente os conceitos de Debord, o qual admirava profundamente
as idéias produzidas pela Escola de Frankfurt.
O Espetáculo nos diz: se o que aparece é bom, o que é bom deverá aparecer.
Isso exige, como “resto lógico”, a sensação de que “sou bom e, portanto, mereço (então
quero) aparecer”. É aí que Debord fala que ninguém escapa mais do desejo de ser
94
O Espetáculo oferece rituais de culto a deuses imanentes. Nesse sentido, vemos claramente a
importância do ensaio de Paul Lafargue, genro de Marx: A religião do Capital, publicado como
anexo em Direito à preguiça
.
233
filmado
95
. E se a vida privada é publicizada (o “sujeito no signo”, de Barthes), é preciso,
inversamente, buscar o que há de vida pública na vida privada (o “signo no sujeito”, para
nós). Administrando os sonhos, o Espetáculo organizado administra as condições de
existência: O espetáculo é a época da gestão totalitária das condições de existência(A
sociedade do espetáculo, p. 20, aforisma 24). É a forma de expressão escolhendo a sua
forma de conteúdo.
Segundo Guy Debord, houve inicialmente dois tipos bem distintos de
Espetáculo, que se remetiam à imanência geopolítica mundial:
1- Espetáculo Difuso: tipo ocidental, “democrático”, que se caracterizava pela produção
abundante de mercadorias e por um discurso da “liberdade de escolha”; sustentado pela
economia dos EUA; e
2- Espetáculo Concentrado: típico dos regimes totalitários, e que se caracterizava pela
produção de uma identificação mágica com a ideologia do/no poder, e que por isso
disfarçava a falta de um real desenvolvimento econômico; sustentado pela URSS (de
Stálin) e pela campanha alemã (de Hitler).
Cada uma dessas formas de poder se sustentava denunciando a outra, servindo-
se desse expediente para afirmar-se no mundo. Entretanto, em seu texto intitulado
Comentários sobre a sociedade do espetáculo (de 1988), Debord teve que admitir que o
domínio espetacular conseguiu se aperfeiçoar e se unificar num modelo total.
95
Todd Gitlin, na esteira de Andy Warhol, dirá (Mídias sem limite, p. 198): Tendo sido fãs,
espectadores querem ters”.
234
Aqueles dois modelos acima deram lugar, no mundo todo, a um novo tipo de
Espetáculo (globalizado e globalizante): surge o Espetáculo Integrado: sob a máscara da
“democracia de mercado” (lição norte-americana), este remodelou inteiramente a
sociedade segundo sua própria imagem e semelhança (lição totalitária) pretendendo que
nenhuma outra alternativa seja sequer concebível.
Nunca o poder do Espetáculo foi tão perfeito, pois hoje se consegue “falsificar”
(pela administração das imagens) tudo: desde cerveja ou tênis, até mesmo o pensamento ou
os próprios revolucionários (como as camisas com foto de Che Guevara)
96
. Ninguém hoje
consegue “verificar” nada pessoalmente temos que confiar em imagens, as quais, aliás,
outros produziram e de-signam. O Espetáculo Integrado é mais conveniente do que as
antigas ditaduras sangrentas e ilegítimas. A alienação, a passividade e a apatia políticas
extrapolaram o mundo do trabalho, e alcançaram o mundo dos lazeres. Tínhamos que ser
incitados ao “consumo do Espetáculo” em nosso tempo de lazer, para que, logo em
seguida, fossemos banhados pelo “Espetáculo do consumo” mas isso se fazia banal,
portanto quase imperceptível.
Seria contra este “consumo do Espetáculo” que nos leva ao “Espetáculo do
consumo” que escreveria Todd Gitlin (em Mídias sem limite) professor de Cultura, de
Jornalismo e de Sociologia na Universidade de Nova York. Em seu excelente livro, Gitlin
não enfatiza tanto os conteúdos comunicados pelos diversos media”, tal como a maioria
dos teóricos da Comunicação Social, mas preocupa-se com o fato mesmo da comunicação
incessante e veloz. Para ele, a Comunicação não se limita a rádio, TV, cinema, imprensa,
Publicidade e Internet. Na verdade, ele vai muito mais longe, considerando como mídias
96
Talvez seja este o sentido dado pelo cantor Lobão, quando, numa entrevista televisiva, criticava
a personagem do “doidão de shopping center”.
235
outdoors, telefones celulares, palmtops, DVD’s, jogos eletrônicos, alto-falantes, walkmen,
discmen, telões digitais etc.
Gitlin analisa como ninguém a presença ostensiva dos diversos media”, os
quais nos abordam tão constantemente que não percebemos a grandeza de sua presença.
não temos a possibilidade de fugir do fenômeno comunicacional, que nos envolve com
fluxos ultra-rápidos de imagens e trilhas sonoras abundantes de afetos e de signos. A partir
dessa constatação, Todd Gitlin buscará o mapeamento de seus efeitos sobre nossa
subjetividade e conclui explicitando a ambigüidade pós-moderna, que gira entre a
saturação e a compulsão de consumo, bem como o papel do individualismo fabricado pela
dispersão da atenção.
A mesma mídia que a notícia a distorce com edições audiovisuais de
“espelho do mundo” a condutora de afetos políticos. Gitlin chega mesmo a afirmar que o
noticiário é uma distorção cognitiva uma espécie de jiu-jitsu imaterial entre afetos e
signos. O “Capitalismo sem atritos” pôde se instaurar sobre a base sólida da
domesticação política, exercido com simpatia pelos diversos media. Gitlin acaba por seguir
o rastro de Michel Foucault, em Vigiar e punir, no que se refere à análise crítica da
produção de corpos dóceis (e de almas idem), chegando ao mesmo ponto, só que estudando
essa função despolitizadora na mídia.
O noticiário televisivo como um vídeo-clip serve aqui de exemplo, tanto pela
rapidez quanto pela “distração” oferecida. A idéia ilocutória é a de que a História
caminharia a passos largos, por “grandes acontecimentos”, todos dignos de menção
imagética e de minutos de nossa atenção. A descontextualização sócio-cultural é fabricada
pela desconexão entre as notícias – o telespectador como um “esquizo bobo-alegre”.
236
A grande “sacada” de Todd Gitlin é a de que as mídias estão
contrabandeando o hábito de viver com as mídias (Mídias sem limite, p. 12).
Provavelmente, Gitlin não foi o primeiro a tratar disso mas é, sem dúvida, quem tratou
do assunto com mais fôlego e agilidade intelectual. Não importa o que se está
comunicando e sim o fato de que se está comunicando sem parar. A quantidade de
tempo de vida e de atenção dedicados às mídias é algo assustador. Assustador, mas hoje
banalizado portanto, um “assustador” que o assusta a ninguém (quase uma
“conversa para boi dormir”)
97
.
Até mesmo a expressão “sociedade da informação” acaba escondendo ou
pelo menos servindo de eufemismo para a centralidade midiática. Ninguém quer “ficar
sem informação”, ou “ter uma informação falsa”. Todos nós queremos agora não só
receber informações, mas também (o mais possível) produzi-las, emiti-las, trocá-las,
vendê-las, comprá-las. Mesmo aqueles que combatem loucamente as tecnologias
informacionais querem disseminar mais rápido e com maior alcance as suas idéias.
Este modo de vida parece ainda muito atrelado à Razão (instrumentalizada). O
pressuposto da “sociedade da informação” é a “evolução sócio-cultural através da
transparência da informação”. Podemos nos tornar “melhores” pela participação no sistema
97
Pela primeira vez desde que o IBOPE//NetRatings iniciou suas operações no Brasil, os usuários
nacionais superaram os norte-americanos na utilização de Internet em casa. Em abril, os usuários
domiciliares de Internet no Brasil bateram mais um recorde em tempo de navegação, com 13hs
43min. Pela primeira vez desde setembro de 2000, quando o IBOPE//NetRatings começou a operar
em nosso país, os brasileiros superaram os americanos, que navegam em média 13hs 21min. O
uso de Internet no domicílio vem crescendo de forma constante ao longo de todo este tempo,
apesar das diversas crises na economia nacional e mundial. Em setembro de 2000, o tempo de
navegação era de 7hs 50min e, apenas nos últimos 12 meses, tivemos um crescimento de 24,5% no
número de horas de utilização da Web”, observa Fábia Juliasz, diretora-executiva do
IBOPE//NetRatings, observando ainda que em abril deste ano (2004) o número de usuários ativos
no Brasil foi de 11,9 milhões. Fonte de consulta: site do IBOPE:
http://www.ibope.com.br/imi/ogrupo/empresa/imi/index.htm
. Acesso em: 26/05/2004.
237
comunicacional globalizado. Para muitos de nós, os “coletivos inteligentes” chegam a ser
comoventes! Neste sentido, o Sentido oculto é o de um neo-positivismo, quando não de um
neo-evolucionismo como nos lembram Todd Gitlin e Krishan Kumar (ver o capítulo 1.3
desta Tese).
Para nosso descanso – mas não para nos livrarmos das mídias – teremos
infinitas possibilidades de sentirmos novas sensações, confortos, conveniências e prazeres.
Dizem-nos que somos “livres” para escolhermos nossos programas favoritos, mas não nos
dão uma concessão pública de um canal de TV ou estação de rádio na Internet, a coisa
é muito diferente, e essa é a graça deste “novo meio”. Mas em geral, é só “zapear” (na TV)
ou “clicar” (na Internet) – tornamo-nos a versão pós-moderna do “flâneur” de Baudelaire e
de Benjamin: hoje somos zapeurs”, ou então cliqueurs”... ou ainda as duas coisas ao
mesmo tempo. Queremos unir diversão e conveniência, banhando-nos com imagens e sons
não importa o “meio” (os fins justificam os media?). Como dirá Gitlin (Mídias sem
limite, p. 15):
O mais importante nas comunicações em meio às
quais vivemos não é que enganem (o que fazem); ou que
transmitam uma ideologia limitante (o que fazem); ou que
enfatizem o sexo e a violência (o que fazem); ou passem imagens
diminuídas do bom, do verdadeiro e do normal (o que fazem); ou
corroam a qualidade da arte (o que também fazem); ou que
reduzam a linguagem (o que certamente fazem) mas que, com
todas as suas mentiras, distorções e prazeres rasteiros, saturem
nosso modo de vida com uma promessa de sentimento, ainda que
talvez não saibamos exatamente como nos sentimos a respeito
deste ou daquele lote de imagens, a não ser que estão lá, jorrando
de telas grandes e pequenas ou borbulhando no cenário da vida,
mas sempre correndo em frente”.
238
por uma solicitação de adesão social via mídia, via consumo
98
; uma
exigência sedutora de busca de diversão “inconseqüente”; uma pressão a favor da falta de
seriedade; uma discreta e acachapante (paradoxo!) produção de subjetividades em forma
de vídeo-clip (audiovisual). Quanto à adesão: é falsa, fantasiosa as mídias não
“representam”, elas prometem (principalmente). Quanto à diversão e à falta de seriedade
(infantilização): estas são sobrecodificadas pelo Mercado-Total nosso hábito de conviver
pacificamente com as mídias nos torna mais do que cidadãos, mas consumidores mesmo.
Quanto à produção de subjetividades “esquizos” (dispersão da atenção): estas são mais
vulneráveis ao apelo consumista, bem como mais afeitas aos fluxos midiáticos vertiginosos
– tornando-nos consumidores compulsivos de mídia.
Por causa dos fluxos violentos de afetos trazidos por signos midiáticos, nossa
subjetividade vai sendo modulada”: num minuto estamos tristes com a notícia de um
“rombo na Previdência”. No minuto seguinte, nos achamos alegres com o último “gol de
placa” na rodada da semana. Imediatamente, outra história triste; em seguida, outra
alegre
99
. Essa cadeia de afecções está em variação constante, e jamais nos livramos dela.
98
Pesquisas recentes apontaram para o fato de os jovens de hoje não suportarem “estar sozinhos”.
A solidão é evitada com celulares, laptops etc. É preciso estar numa situação de poder ser
encontrado, contactado... estar conectado deixou de ser um “direito” para ser uma “obrigação”.
Este tema foi levantado por Teresa Quiroz (Presidente da Felafacs), em palestra do dia 12 de maio
de 2004, no Auditório do CFCH da UFRJ (campus Praia Vermelha).
99
Uma exemplificação do problema político embutido é a “última moda” de um telejornal
noturno (o Jornal da Globo): abre-se o noticiário com muitas histórias de violência nos grandes
centros urbanos brasileiros; passa-se por notícias divertidas que nos distraem; termina-se o
programa com notícias “esperançosas” sobre as novas oportunidades de emprego fora dos grandes
centros. A mensagem (ordem) ilocutória é: “saiam dos grandes centros, voltem para sua terra de
origem, fujam da violência e do desemprego e, de quebra, ajudem-nos a desincharmos as nossas
cidades, sumindo delas”.
239
É claro que o próprio mundo é assim mas as mídias dão a essa “montanha
russa afetiva” uma potência infinitamente maior. Após o telejornal, não nos lembramos
das notícias que acabamos de ver. Não tivemos tempo para sermos devidamente afetados
por cada uma das notícias, mas a sensação de insegurança e medo, por exemplo, se
imprimiu diretamente no inconsciente.
Se não fomos afetados por cada notícia em particular, como é que cada uma
delas iria nos interessar, ou nos fazer pensar? Temos déficits de atenção, e quando
conseguimos prestar atenção, queremos nos divertir e não pensar em nada que atrapalhe
este prazer infantil. Nossa memória tem a duração de um espirro isso quando não nos
atrelamos alegremente aos signos do poder. As sugestões dos programas são feitas para
que sejam aceitas “de leve”, sem dor. A apatia política é produzida em larga escala pelo
trabalho imaterial das mídias.
Ao contrário do que se afirma apressadamente por aí, o botão de “zapear” não
é uma arma nossa: é o responsável pelo próprio fascínio da mídia, é parte ativa de sua
essência. Vamos “passando o tempo en passant”, vamos nos distraindo da vida... e, quando
vemos, é a própria vida que passou, en passant, e que não volta nunca mais (como no caso
do antigo trabalhador da fábrica). Viver entulhado de mídia é a melhor terapia ocupacional.
As mídias produzem um “zumbido aparentemente sem sentido” no cinema
norte-americano, movimentos de objetos ou de câmeras, montagens velozes, lutas físicas
ou “embates sexuais”, clichês e grunhidos facilitam, amaciam a aceitação simpática do
filme pelas platéias não-anglófonas.
Uma enorme quantidade de informação nos chega numa torrente isso não
temos a liberdade de decidir. Não é obrigatório construir uma significação a cada pequena
240
experiência com a mídia, diz Gitlin. Porém perguntamo-nos: e se as significações forem
resultantes de resíduos de memória, de compostos da imaginação não necessariamente
racionais? Quais as conseqüências políticas de tamanha potência de “edição mental das
quase-informações”? Que tipos de sonho, de angústia, de desejo e de afetos políticos
podem estar resultando inconscientemente dessa experiência pós-moderna de cognições
híbridas? Esses nossos questionamentos não intencionam “saber para controlar”, mas
“saber para entender e poder explicar”.
É aí que entra o valor político do nosso conceito de “micropercepções
inclusivas” aquelas percepções muito sutis, que operam uma “contração” (ou inclusão)
do mundo exterior para o mundo interior do sujeito. Como Todd Gitlin explicaria em seu
livro (Mídias sem limite, p. 127-128):
Em outras palavras, o prazer de fitar essas imagens
que se sustentam sozinhas e passam correndo não é estritamente
visual, mas vem a ser outro tipo de prazer, o tipo que Mark Crispin
Miller chama de ‘subvisual’ prazer visceral com a desorientação
que resulta de uma seqüência de explosões, prazer na imersão em
um desfile enlouquecedor de fragmentos, o tipo de prazer que,
extrapolando do cinema para as outras artes, passou a ser
chamado de ‘pós-moderno’. A montagem é a mensagem, e a
mensagem é que a torrente faz bem”.
Muito do que habita nosso inconsciente é não-racionalizável (omphalós) isso
será o (i)material a ser usado pela “usina do inconsciente”, tal como formularam Deleuze e
Guattari. O mundo (material) fora de nós é “dobrado” para nossas mentes sob a forma de
signos, portanto de forma imaterial. Quando “sentimos” (afecção), é porque atribuímos
241
“Sentido” – e esse “Sentido” não precisa ser necessariamente lingüístico, mesmo que possa
ser “transduzido” em palavras posteriormente.
Informações audiovisuais não se limitam a “representar” a realidade do mundo.
Elas não apenas “indicam” (como índices semióticos), elas de fato “são” – têm uma
realidade objetiva, além da óbvia realidade subjetiva. São presenças envolventes. As
mídias são “ocasiões para experiências”, como diz Gitlin – “experiências que são, em si, os
principais produtos, as principais transações, os principais ‘efeitos’ das mídias(Mídias
sem limite, p. 20).
A cada instante que passa, nos vemos mais e mais imersos na torrente das
mídias. Quando não estamos dormindo, estamos de alguma forma conectados” ao
zumbido incessante. Apesar de prometerem uma experiência de “totalidade”, as imagens
midiáticas seriam vestígios efêmeros, pertencentes a um tempo presente, que passa, sempre
evanescente. A sensação, ao fim e ao cabo, pode ser a da “descontextualização do mundo”,
a da fragmentação da subjetividade.
A Pós-Modernidade não tem, como pretende Baudrillard, um “gosto pelo
irreal”. Provavelmente o problema é muito mais complexo do que isso. Umberto Eco pôde
falar de um “desejo frenético do quase-real” (em Travels in hyperreality apud Gitlin, p.
35). O que esperamos dessas imagens é que amplifiquem a vida, que a intensifiquem, ao
serem “melhores” do que o real, mais vívidas, mais “garantidas”. Talvez esperemos das
mídias que elas sejam “extensões da vida”. Essa busca da “intensificação” que diverte, da
“intensidade potente”, provavelmente foi e é tornada possível por nossa “sensação de
impotência de existir”. Gitlin critica (Mídias sem limite, p. 62): Os divertimentos
encorajam as pessoas a sentir de forma intensificada, a regozijar-se com sentimentos
242
familiares, mas também a experimentar alguns novos, para sentir-se, sem riscos, uma
outra pessoa”.
Essa nossa “sensação de impotência de existir” não é “natural ou espontânea” –
é fabricada pela própria mídia, para que, assim, a própria mídia se justifique, além, é claro,
de render dividendos ao Mercado-Total globalizado (patrocinador das mídias). Como
Gitlin afirmaria (Mídias sem limite, p. 57): Assim se evidencia o indivíduo moderno, um
ator que é, também, em meio expediente, um aventureiro e buscador de estímulos que tenta
freneticamente encontrar-se abandonando-se. Este indivíduo paradoxal está preparado
para as mídias ilimitadas”.
Contudo, o homem não suporta a distância entre sua potência e a realização
dela. É que o Capitalismo semiótico “captura e incorpora” as potências, ofertando-lhes
imagens e sons, mas tornando-as politicamente impotentes: se estamos “preparados” para a
mídia ilimitada, se temos direito a ela, por quê não nos entregarmos desde já? Diz Todd
Gitlin (Mídias sem limite, p. 39): Sentimos não temos dúvida que temos o direito de
ser abordados por nossas mídias, direito de desfrutá-las, direito de aceitar em nossa sala
os rostos que escolhemos e de entrar em inúmeros mundos, de fluir com eles”.
Se o neoliberalismo defende o “direito de informar”, o individualismo defende
o direito de estar informado” isso já vimos. Gitlin dirá que o “direito de ir embora”
fundiu-se, confundiu-se ou tornou-se o “direito de estar em outro lugar”. O risco da
“informação total” é o de ela se tornar “totalitária” ou seja, sem “lado de fora”, sem
“outra possibilidade de vida”. Todd Gitlin explica esta idéia (Mídias sem limite, p. 92-93):
Hoje nenhum espaço está a salvo. Colocam-se
anúncios nas costas das poltronas de avião, à altura dos olhos em
mictórios, atrás das portas dos cubículos dos banheiros femininos.
243
(...) Qualquer um que tenha uma tela ou uma superfície quer
alugá-la a lateral de um ônibus ou de uma bomba de gasolina, o
teto e os lados de um táxi, até mesmo suas calotas”.
Se não temos a potência que gostaríamos de ter, buscamo-la na selvageria dos
fluxos sígnicos, os quais, sem percebermos, modulam nossos afetos, numa cadeia de
pequenas afecções alegres seguidas de pequenas afecções tristes... e assim por diante. Por
estarmos imersos na torrente das mídias, somos afetados por signos de alegria e de tristeza
numa variação contínua que, por se fazer cada vez mais veloz, nos impede que
experimentemos cada afecção, seja de horror, seja de júbilo e isso nos entorpece. Sem
essa experiência, como é que poderemos pensar na coletividade?
A variação velocíssima de estímulos afetivos, via signos midiáticos, exaure as
potências ontológicas e políticas dos sujeitos contemporâneos. É aí, neste ponto, que
detectamos a produção midiática de apatia política
100
(Mídias sem limite, p. 64): Mas, na
verdade, precisamente esta riqueza e este colorido de impressões tão apressadas são
apropriados para a necessidade de estímulo dos nervos superexcitados e exaustos”. A
partir disso, podemos então nos perguntar: o que é que estamos nos tornando? Essa questão
é claramente ontológica, mas não menos política. Como demonstração, selecionamos um
trecho do livro do Professor Gitlin (Mídias sem limite, p. 69):
Num amontoado de letreiros, cada um convidativo à
sua própria maneira elétrica, um luminoso em especial pode
provocar um arrepio de encantamento, um formigamento de prazer
ou uma reação irritadiça ou atordoada um pequeno surto de
100
Que não se deve confundir com uma “apatia consumista”, que de fato não existe. A idéia é
justamente a de que a apatia política facilita, e até estimula, o “afeto consumista”. Este, por sua vez,
reforçará a apatia política, fechando a cadeia lógica do Semiocapitalismo.
244
sentimento – seguido por um rastro fugidio de brilho antes de
sumir, deixando, caso o anunciante tenha sorte, uma recordação
instável de sentimento afetado pelo resto de uma imagem. Contudo,
assim que passar a sensação, o transeunte voltará a passar pela
cidade em estado de prontidão – ou indiferença”.
Para Todd Gitlin, o paradoxo contemporâneo está no fato de que o inesperado
(extra-ordinário) surge com tanta freqüência que chega a ser esperado (ordinário). O
inesperado em si é esperado. Estamos de prontidão, no limite... e estressados a o
desgaste total. Paralisia (ou apatia) pelo excesso de estímulos vivemos a inércia e a
perplexidade da vida cotidiana. Ignácio Ramonet, lembremo-nos, dizia: informar-se é
cansativo(em A tirania da Comunicação). Se o mundo pressiona, a leitura deve ser feita
aos pedaços. Mais horas de “lazer” significam, na prática da imanência feroz, mais coisas
para se fazer ao mesmo tempo agora.
Os “estímulos anestésicos” se multiplicam, como que em franchising. Os
moduladores de afecção e sensação” se multiplicaram nas últimas décadas. Contudo, a
disponibilidade das mensagens audiovisuais não saciou a fome de imagens e sons pelo
contrário. Quanto mais desses produtos ou serviços temos, mais os usamos; quanto mais os
usamos, mais queremos usá-los: esta lógica é semelhante àquela do vício. Para fugirmos do
“tédio”, mergulhamos na torrente e fazemos raftings semiótico-afetivos”. Talvez tenha
sido Hollywood que nos tenha ensinado a esperar que a nossa vida tenha música de fundo,
intriga amorosa e happy end
101
.
101
Ver o clássico livro de Edgar Morin, Cultura de massas no século XX o espírito do tempo
(vol. 1 – neurose).
245
Há hoje uma “economia política da atenção”. Os anunciantes pagam para
conseguir a atenção dos consumidores potenciais. As empresas de Marketing têm
profissionais especializados em planejamento de campanha e em “posicionamento da
marca” (na mente do público-alvo). As agências de Publicidade organizam e executam a
comunicação que deve chamar a atenção do público-alvo. As empresas jornalísticas
atrelaram definitivamente suas notícias às regras do entretenimento e da diversão sabe-se
hoje que a melhor maneira de se vender notícias é inseri-las, juntamente com seu público,
num ambiente de entretenimento e diversão. Se “vender afetos” serve para todas as
atividades, até para o Jornalismo, está-se falando de um Mercado irredutivelmente
Semiocapitalista.
Em realidade, o desejo de todos é o de sobressair em meio à bagunça de afetos
e signos. Essa “bagunça” sem sentido é aquele zumbido das mídias, produto do frenesi da
competição ao modo capitalista. Para chamar a atenção, a empresa com seu trabalho
imaterial deverá atrelar sua proposta a um “estado de espírito” qualquer, que dependerá
do tipo de produto ou serviço que ela vende, e como dirá Todd Gitlin (Mídias sem limite,
p. 84): Estados de espírito têm valor monetário. Organizá-los é um bom negócio”. Isso é
um trabalho imaterial, pois as imagens não sofrem o efeito da gravidade, não se cansam,
não têm que ser transportadas por uma maquinaria pesada (Mídias sem limite, p. 156):
Na era do fluxo incessante de imagens, não há angústia social que não possa ser
atendida com uma mercadoria, uma moda e uma aparição no noticiário nenhum dos
quais serve para dissolver a angústia”.
Antropologicamente, uma “marca” sempre foi o mesmo que um “estigma” (ver
Erving Goffman, em Estigma). A maioria das pessoas manifesta sua indiferença quanto a
246
marcar-se com as marcas da hora
102
. Usar uma marca pode ser uma declaração, uma
confissão pública, um cartão de visita. No “Planeta marcado pelo Espetáculo do consumo”,
até mesmo os que se declaram “revolucionários” se marcam com marcas. O
Semiocapitalismo tenta ser um “Capitalismo sem atritos” poder-se-ia dizer, uma “Era da
Coexistência Pacífica (Passiva)” entre vida e Mercado, entre viver e consumir. Segundo
Neal Gabler (apud Gitlin: Mídias sem limite, p. 190), a vida se tornou um espetáculo
encenado para as mídias”. Daí a relevância, mesmo e principalmente hoje, das teses de
Guy Debord.
O imensurável, o incalculável, o não-quantificável – ou seja, o afeto (que
também não é “qualidade”, mas intensidade”) foi primeiramente mapeado por bancos-
de-dados cada vez mais precisos (levantamento imaterial de um campo de saber) e, agora,
foi tornado fonte de lucro por empresas deste Capitalismo da sociedade de Controle
(exercício imaterial de uma relação de poder). A distração é justamente aquilo que o novo
trabalhador precisa para que volte a trabalhar mais intensamente (alegre, pimpão,
empolgado, doando mais a sua alma).
Somos “reenergizados”, “recarregados”, “estimulados” pelo entretenimento
comercializado. Talvez por isso sejamos cine-addicteds (isto é, “viciados em
movimentos físicos”), ou mais: celeraddicteds(isto é, dromo-addicteds”, “viciados em
velocidade ou corrida”, como poderia preferir Paul Virilio). Detectado por Virilio em 1977
e relembrado por Gitlin em 2002, um dos prazeres da rapidez é “deixar os lentos para trás”.
Algumas pessoas usam estimulantes químicos (drogas licitas e/ou ilícitas);
outros usam estimulantes alimentícios (energéticos, suplementos) mas todos usam os
102
Nunca poderemos esquecer o poema Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade.
247
estimulantes afetivo-sígnicos (as diversas tecnologias midiáticas os MCM e as NTIC).
Com as mídias, vivemos momentos fantásticos: ao mesmo tempo em êxtase (fora de nós) e
integrados (unidos num só). Fala ainda Todd Gitlin (Mídias sem limite, p. 145):
Abra envelopes falando ao telefone, leia e-mail
enquanto espera o ‘atendimento ao consumidor’, jogue um
videogame enquanto assiste à novela o leitor está familiarizado
com essas tentativas de esticar o tempo, de transformar seqüência
em quase simultaneidade”.
O problema é que diversão não é apenas diversão o “infotenimento” do atual
Jornalismo. Ela nos distrai dos assuntos políticos mais relevantes e urgentes, ensi(g)nando-
nos a tolerância, a complacência, o consenso e a anestesia. E o fato de que se produz sem
cessar o “novo”, a “novidade”, não contradiz nossa Tese apenas a confirma: não
deveríamos confundir o novo (um produto ou serviço elemento “reformista”,
conservador e comercializável) com o inovador(elemento distintivo da verdadeira Arte
elemento revolucionário e não-comercializável). “Omo dupla ação” não é “inovador”
(não requer muita criatividade), com relação ao “Omo”, mas é apenas “novo” (mais um,
somente atualizado).
A “democratização” não deveria ser confiada às mídias (de Massa, como a
TV), porque estas hipervalorizam a vida privada, em detrimento da vida coletiva. A
Política foi toda ela “capturada e incorporada” pela mídia (ver Manuel Castells, em A
política informacional e a crise da democracia, In: O poder da identidade). No contato
entre Política e mídia, a segunda tem devorado a primeira. Problemas públicos não são
mais tratados em “Ágoras”. Atualmente, o que se são problemas pessoais levados a
248
público pelas mídias tanto as de Massa (na TV) como as em Rede (na Internet). O
grotesco não está só na TV.
O problema maior talvez seja o da desmobilização social, tempos praticada
pelas mídias de Massa, e que a Internet ou pelo menos parte de seus usuários pretende
superar. A busca compulsiva por afetos divertidos e por prazeres efêmeros tende a esvaziar
o interesse pela esfera pública. As pesquisas empíricas de Robert Putnam confirmam isso
(em Bowling alone apud Gitlin: Mídias sem limite, p. 222):
Na década de 1970, ‘os que diziam passar mais tempo
assistindo à TV do que no passado tinham probabilidade
significativamente menor de freqüentar comícios, prestar serviços
a organizações locais, assinar petições e coisas semelhantes do
que pessoas semelhantes em termos demográficos que disseram
passar menos tempo diante da televisão’ ”.
Putnam demonstrou que aqueles que deixam a TV ligada como “pano de
fundo”, em casa, revelaram-se os mais desligados da vida política. A torrente é por demais
atarefada. Assim, o poder não precisa se esforçar para combater mobilizações políticas
enfraquece-as para controlá-las. Nossa sorte é que o sentido revolucionário ainda não
desapareceu por completo. Mas ele tem sido caluniado pela grande mídia (capitalista).
Gostaríamos de dar mais um exemplo atual da íntima relação entre trabalho
imaterial e Capitalismo midiático, exemplo este coletado na obra de Todd Gitlin (Mídias
sem limite, p. 240): a “capitalização-midiatização” do entretenimento é uma das maiores
fontes de recursos financeiros dos EUA. No ano de 1999, o conjunto das mídias de Massa
– cinema, TV, rádio, Publicidade, impressos e programas para computador – foi a principal
atividade de suas exportações, responsável por um valor de quase 80 bilhões de dólares. Só
249
os programas de computador (incluindo o entretenimento de videogames e pornografia
digital) respondem por 50 bilhões deste total.
A força de penetração do Semiocapitalismo nas regiões locais é algo de se
notar com algum susto. Como se poderia entender que habitantes da cidade de Hong-Kong
usam alegremente pelas ruas, cotidianamente, camisetas-outdoors que gritam: Sinto-me
Coca-Cola”? Este problema não é simplesmente de Política, de cultura ou de economia; é
um problema de ontologia política. Insistimos: o que estamos nos tornando? Qual a
“abertura ontológica” do leque de virtualidades que nos afetam, e que têm a capacidade
mínima de se atualizarem em nós, individual e coletivamente
103
? Outro exemplo mais
uma demonstração da gravidade da coisa é fornecido por Gitlin (Mídias sem limite, p.
241):
Ou a experiência de um repórter de televisão alemão
enviado à Sibéria para filmar a vida nativa que, depois de voar de
Moscou e viajar durante dias de barco, ônibus e jipe, chega perto
do mar Ártico, onde vive uma tribo de tungusianos conhecidos dos
etnólogos por seus rituais com peles de urso. No armazém da
comunidade está um avô com o netinho nos joelhos. O avô está
vestido com roupas tungusianas tradicionais. O netinho usa na
cabeça um boné de beisebol com aba para trás”.
103
Sabemos que Umberto Eco diz que a variabilidade da interpretação é a lei invariável da
comunicação de massas(Travels in hyperreality, de 1967, apud Gitlin). Contudo, pensamos que
essa “variabilidade” não revela uma “liberdade” real, ontológica, mas apenas determina o leque de
possibilidades pré-determinadas (ou semas”) pelo “emissor”. Essa “variabilidade” tem a função de
seduzir o público e, portanto, está perfeitamente integrada à lógica do Semiocapitalismo.
250
Na tensão entre global e local, o primeiro tenta de tudo para “capturar e
incorporar” o segundo; o segundo pode tentar resistir a todo custo (“identidade de
resistência”), pode ceder sem reservas (“identidade legitimadora”) ou pode ainda ceder
com reservas (“identidade de projeto”) – ver Manuel Castells, em O poder da identidade. O
recente fenômeno da glocalização” – conceito criado por teóricos da Administração
japoneses, e utilizado por Massimo Canevacci surge para, no fim das contas, “capturar e
incorporar” (seu eufemismo é “conseguir aceitação”) mais veloz e eficientemente as
diversas instâncias locais (exemplos: Mac Lanche Carioca” para o Rio de Janeiro e Big
Mac com carne de soja para a Índia).
O Planeta inteiro está unido como numa “aldeia” por um tipo estranho de
sensibilidade convergente. Essa sensibilidade padronizada aceita, como seus “desvios-
padrão”, gostos e comportamentos divergentes os bancos-de-dados estão para mapeá-
los e ganhar dinheiro em cima deles também. Na realidade imanente do contexto do
Semiocapitalismo, a nossa potência de “sermos afetados pelo mundo” definirá
conseqüentemente a nossa potência de “afetarmos o mundo”. E para nos ajudar a
compreender isso, a ontologia política de Spinoza ainda é fundamental.
Mas não se pense que o Império (Capitalista e midiático) nos impõe seus
signos à força, “de fora”. Ele nos ataca “por dentro”, afetivamente. O cidadão, tornado
público, realmente “quer” esses signos – e os “quer” com toda força. No entanto, o
problema é mais complexo: depois de algumas gerações sendo gradativamente
acostumadas aos afetos e signos divertidamente capitalistas, como não esperar que hoje as
pessoas se declarem “amantes” desses afetos e signos? É uma pedagogia perversa, essa do
Controle semiocapitalista.
251
Poderíamos lembrar da estratégia permanente das Psychological Operations
(Psyops), mesmo e sobretudo em tempos de paz. Na juventude, a sensação de
vinculação social ultrapassa o mero “consumo imediato”. Ela atingiu o próprio ritmo da
sociedade e, portanto, dos indivíduos: as pessoas adentram o fluxo semiocapitalista e ali
tentam “navegar” (“Navegar é preciso”, mas também “urgente”), enquanto administram o
risco de ficarem “à deriva”. Como dizia Gitlin, o fluxo é a mensagem. É Gitlin ainda quem
confirma a nossa Tese da apatia política produzida pelas mídias velozes e excessivas
(Mídias sem limite, p. 260-261 e 263):
Num mundo tão indiscriminadamente brutal, em que
suportar seus ataques e atritos ou mesmo sentir medo é uma
vitória, ele [o filme de ação] oferece o prazer da transcendência
niilista. (...) O que têm em comum [os diversos gêneros de filmes de
ação] é o choque cinético (...) No mundo inteiro, esses filmes e os
videogames e música heavy metal a eles comparáveis domesticam
a brutalidade. (...) São os Sistemas Dolby do ruído emocional em
meio à confusão e à inconclusividade da vida cotidiana. Para levar
a platéia a sentir intensamente sem riscos, ministram doses
homeopáticas de choque”.
A violência não é gratuita, na mídia. Assim como os cigarros são veículos para
fornecer nicotina, o entretenimento midiático é um veículo para fornecer doses controladas
de adrenalina e, como diz Gitlin, o até mesmo resenhados como se fossem produtos
farmacêuticos! Os desenhos animados baseados na Disney exercem o trabalho imaterial
da “produção de adorabilidade”, da reinvenção cotidiana da simpatia capitalizada, da
amabilidade vulnerável, pelo Controle “criativo” da dosagem de afetos e signos. Esses são
os “novos recursos para o bom adestramento”. O sucesso da Disney é que ela sempre
252
ofereceu afetos otimistas – reconfortantes, aconchegantes. É claro que, assim, haveria
demanda por parte do público. O fato de a Disney roteirizar a ridicularização de toda
autoridade também seduziu milhões, dando margem e força a um tipo midiático de
Totalitarismo
104
.
O excesso material nas telas, telinhas e telões apenas adorna, como suporte
material, aquilo que é verdadeiramente comunicado: o imaterial, que nos chega pelos
signos carregados de afetos capitalísticos – em Hollywood, diz-se que “o dinheiro todo está
na tela”. O que o Semiocapitalismo nos ensina é a vivermos “naturalmente” com o
capital. A idéia que nos chega por afetos e signos midiáticos é: queremos mais mídia,
durante mais tempo. Dirá Todd Gitlin (Mídias sem limite, p. 279): Não como desviar-
se da sedução e do clamor, da praticidade e da irritação das mídias”. Não nos
questionamos mais ou quando o fazemos, em geral estamos fazendo a pergunta errada,
“descabida”.
104
O fato de Hannah Arendt assinalar que o Totalitarismo surge quando a autoridade se desfaz não
significa que ela, e nem nós nesta Tese, defendamos a autoridade ou o Autoritarismo. Apenas
queremos nominar o inominável, mascarado de “Democracia de Mercado”.
253
4- Conclusão :
Sobre Como Pôr o Chão nos Pés,
Invenção Onto-Política do Devir
254
4- Conclusão: Sobre Como Pôr o Chão nos Pés, Invenção Onto-Política do
Devir
Até hoje, os homens se contentaram
com interpretar o mundo. Agora,
é preciso transformá-lo.
(Marx e Engels)
A produção de si e a produção do mundo são dois projetos, duas exigências
inseparáveis. se consegue uma com o complemento da outra. Escrever a “história de
si”, ser “escultor da própria existência” (a “relação consigo”) faz sentido se se tiver em
mente a urgência política desse projeto. É mais uma questão de necessidade vital, de
sobrevivência-resistência mesmo, neste Planeta de celofane mas também de silício e de
silicone.
Michel Foucault dizia que o ponto mais intenso das vidas, aquele no qual se
concentra sua energia, é exatamente onde elas se chocam com o poder, se debatem contra
ele, tentam utilizar suas forças ou escapar às suas armadilhas(Foucault apud Deleuze:
Foucault, p. 101). Deleuze diz que o poder, ao tomar como objetivo a vida, suscita uma
vida que desejará resistir ao poder. Há tensão e luta constantes entre subjetivações e
sujeições
105
. A subjetividade contemporânea parece-nos codificada e sempre recodificada
pelo Semiocapitalismo de Controle, tornando-se (ou lutando para não se tornar) aquilo que
este quer daquela: apática. Gilles Deleuze explica muito bem este ponto (Foucault, p.
113):
105
A scientia sexualis ganhou a potência das mídias, então a sexualidade se organiza inteira em
torno de focos de poder emanados pelo Semiocapitalismo hedonista. Depois dos poderes alienantes
e modeladores que vinham da Igreja (pastoral), do Estado (jurídico) e das indústrias (Disciplina e
Capitalismo de produção), vivemos agora submetidos ao poder narcotizante, viciante e modulador
que nos chega das mídias (Controle e Capitalismo de sobreprodução).
255
A luta por uma subjetividade moderna passa por uma
resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em
nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra
que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e
conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela
subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito
à variação, à metamorfose”.
Diferenciar-se, sem contudo se deixar “capturar” (Foucault, p. 130): Aqui, é
tornar-se senhor de sua velocidade, relativamente senhor de suas moléculas e de suas
singularidades, nessa zona de subjetivação (...)”. Isso nos remete ao tema do devir ou
melhor, do devir-revolucionário. Baldanders é a personagem do devir que escapa a toda
apreensão e classificação
106
. No dizer de Gilles Deleuze (Foucault, p. 123):
Que poderes é preciso enfrentar e quais são as nossas
possibilidades de resistência hoje, quando não podemos mais nos
contentar em dizer que as velhas lutas não valem mais? E será,
acima de tudo, que não estamos assistindo, participando da
‘produção de uma nova subjetividade’? As mutações do
Capitalismo não encontram um ‘adversário’ inesperado na lenta
emergência de um novo Si como foco de resistência? Cada vez que
há uma mutação social, não há um movimento de reconversão
subjetiva, com suas ambigüidades, mas também seus potenciais?”.
O problema mais grave levantado por esta Tese é o de que o Mercado-Total
(totalitário) se espraia por todas as instâncias da nossa vida até se confundir com a
própria vida. Consumir e viver são hoje indiferenciados – há mesmo quem postule o acesso
106
Ver O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarita Guerreiro.
256
à cidadania através do consumo (como Néstor García Canclini). Estamos intensamente
habituados com o “Capitalismo sem atritos” o que não poderá nos impedir de continuar
apostando nas potências libertárias, mesmo que sem “receitas de sucesso”. Se o Planeta é
inteiro capitalista não mais apresentando, portanto, “lado de fora” , não haveria mais
“saídas”. O que não significa que deveríamos renunciar ao combate – muito pelo contrário.
É preciso, a partir de agora, pararmos de pensar em termos de “buscar as saídas” (projeto
hoje utópico ou inocente), e começarmos a pensar em termos de “buscar as resistências”
(projeto imanente da potência constituinte). O combate só se faz no enfrentamento.
A intenção da Tese foi a de defender a importância de se ter uma postura ativa
na constituição do plano de imanência política, destacando, por conta disso, tanto a
tradicional prática dos MCM de “predar as externalidades (as potências)” quanto o papel
recente das NTIC na retomada da potência poiética, ou seja, no “fazer” comunicacional (e
não só mais num “receber passivo”).
Defendemos aqui a invenção onto-política do devir como uma necessidade de
liberdade radical (ou necessidade radical de liberdade), que somente poderá ser construída
pela via revolucionária do desejo (diferentemente da via consumista do prazer). Para isso,
ressaltamos a necessidade vital de se traçar planos de imanência, ou consistência: de se
saber como pôr o chão nos pés (no dizer de Chico Buarque
107
). Como dizia o
compositor Gonzaguinha, precisamos construir “a manhã desejada”.
Obviamente que não se trata de “pôr os pés no chão” esta idéia já está
comprometida com o atual “estado de coisas” um mau encontro). Fazê-lo nos parece
algo extremamente “submetido às regras do Controle”. É adequar-se, sem pestanejar,
107
Em sua música recente, Cantiga de acordar (parceria com Edu Lobo), que integra o CD
Cambaio
.
257
àquilo que o Semiocapitalismo nos oferece e satisfazer-se com isso. É tudo o que o
chamado Império quer e promove.
Ao contrário, pôr o chão nos péssignificaria transformar o mundo tarefa,
como vimos, proposta por Marx e Engels na sua 1Tese sobre Feuerbach e levada ao
extremo pelos Situacionistas entre 1957 e 1972
108
. Pôr o chão nos pésé entortar este
mundo, é dobrá-lo para que ele caiba nas nossas necessidades, é fazê-lo desviar de sua rota
atual e colocá-lo em variação infinita – tarefa fundamentada por Epicuro e Lucrécio no seu
Clinamen atomista (que unia a potência à vontade, qualificando assim a “liberdade”).
Uma das principais características da Contemporaneidade comunicacional é
que ela perdeu a noção daquilo que urge. O que urge, o urgente, é pensarmos a respeito do
que estamos nos tornando. No âmbito macropolítico, vê-se a “indiferenciação”, a perda da
capacidade de diferenciar (entre “direita” e “esquerda”; entre cidadania e consumo; entre o
que é público e o que é privado; entre o que é politicamente digno de atenção e o que não
é). No âmbito micropolítico, pode-se notar que o problema é o da “indiferença”, da “não-
eticidade” (o individualismo feroz; o consumismo compulsivo; a despreocupação com o
“outro” – “o outro pode perecer”)
109
.
O Mercado-Total semiocapitalista procura o tempo todo “capturar e
incorporar”, com seus “poderes constituídos”, as potências ativas e combatentes da
coletividade, promovendo a cristalização (o “embalsamento”) da chamada “potência
108
As teses Situacionistas, que tentaram reeditar a Filosofia da Práxis de Marx e Engels, e que por
objetivavam uma “sociedade sem classes”, construíram uma sólida crítica à sociedade de
consumo espetacularizada. A sua noção de “relações sociais mediadas por imagens” tem sido
permanentemente saqueada (e, então, pouco citada).
109
Pierre Bourdieu e Zygmunt Bauman diriam que vivemos o “império da razão cínica”. Em
Richard Sennett, isso se chama “corrosão do caráter”. Cornelius Castoriadis problematizará a
“insignificância da Política” (sua “não-significação”, seu “não-sentido”).
258
constituinte”. Diz Peter Glotz (apud André Gorz: L’immatériel, p. 98): Plus le
capitalisme numérique étendra son emprise sur notre vie, plus augmentera le nombre des
dissidents”. Ao que complementa Gorz (L’immatériel, p. 98):
L’expérimentation d’autres modes de vie et d’autres
rapports sociaux dans les interstices d’une société qui se délite,
attaque et délégitime le contrôle que le capital exerce sur les
esprits et les corps. Les contraintes et les valeurs de la société
capitaliste cessent d’être perçues comme naturelles, libérant les
pouvoirs de l’imagination et du désir”.
Segundo André Gorz, nós temos o direito a uma existência social que não se
esgote nesta relação econômica, e que não coincida com ela. A inscrição da potência no
seio do Ser abre ontologicamente esse Ser para o futuro, para o devir. Mas o devir não é a
simples sucessão de “eventos” ou ões é o presente deslizando para o futuro e, assim,
mudando sua intensidade ou modo de ser. E o devir é produzido no nível da
composição ontológica (material e imaterial) de sujeitos desejantes. É por isso que nesta
Tese não analisamos as forças da “qualidade” (extremamente subjetiva), nem as da
“quantidade” (extremamente objetiva). Aqui, visamos sempre à compreensão das
intensidades de suas potências, fossem as capturadas ou as não-capturadas pelo
Semiocapitalismo (imaterial e cognitivo).
Eis o que buscamos mostrar com esta Tese: não se trata de discutir a
“qualidade de vida”, pois corre-se o risco de se cair numa discussão “assistencialista”,
quando não nos “direitos do consumidor”. Não se trata também de discutir a “quantidade
de vida”, já que a própria Biopolítica nos quer vivos e saudáveis para trabalharmos por
150 anos. Trata-se, isto sim, da intensidade de vida”: com que intensidade
259
internalizamos os afetos e os signos do Semiocapitalismo? Com que intensidade essa
internalização modula nossos afetos? Com que intensidade afetiva nos entregamos (seja ao
canto de sereia do Semiocapitalismo, seja aos movimentos sociais de resistência)? A que
“grau de intensidade” correspondemos, ética e ontologicamente, dentro da “ecologia
subjetiva” atual? Com que intensidade somos o que somos?
Os afetos (ou melhor, as potências de ser afetado) correspondem às afecções
(misturas, agenciamentos de almas e/ou de corpos). E Antonio Negri nota que, do ponto de
vista imaterial, a imanência está carregada de afetividade e esta se o tempo todo em
vias de ser “capturada e incorporada” e, portanto, tornada politicamente apática (Valor e
afeto, In Exílio, p. 70):
Na verdade, nossa vida social, para não falar de
nossa vida produtiva, está esmagada pela impossibilidade de agir,
pela frustração de não criar, pela castração de nossa imaginação
cotidiana. (...) É preciso destruir o inimigo a partir do afeto.
Porque o afeto (a produção, o valor, a subjetividade) é
indestrutível”.
Os MCM modulam nossos afetos através de uma “moralização simpática”, a
qual constrói este mundo deste jeito que o vemos. As práticas das NTIC passam pela
pulverização da “autoridade” e pela multiplicação da liberdade de expressão” (o que, por
si só, não garante que estejamos praticando a Democracia real, pois igualmente modulam
nossos afetos, distraindo-nos sem parar, mas que se mostra bem mais “ontologicamente
aberto” do que os MCM). Depois de Nietzsche ter dito que todos os meios usados até hoje
para moralizar a humanidade foram radicalmente imorais, e que é impossível “querer para
260
trás”, pois o indivíduo é “um fragmento de fatum, mais uma necessidade para o que vem e
será” (em Crepúsculo dos ídolos), Deleuze poderá afirmar (em Lógica do sentido, p. 151):
Chegar a esta vontade que nos faz o Acontecimento,
tornar-se a quase-causa do que se produz em nós (...) Ou a moral
não tem sentido nenhum ou então é isto o que ela quer dizer, ela
não tem nada além disso a dizer: não ser indigno daquilo que nos
acontece. Ao contrário, captar o que nos acontece como injusto e
não merecido sempre a culpa de alguém), eis o que torna nossas
chagas repugnantes, o ressentimento em pessoa, o ressentimento
contra o Acontecimento. Não outra vontade má. O que é
verdadeiramente imoral é toda utilização das noções morais, justo,
injusto, mérito, faltas. Que quer dizer então querer o
Acontecimento?”.
Como diz lindamente Deleuze, Nietzsche foi aquele que não esperou a sua
própria possibilidade
110
. O Amor fati (“amor aos fatos”) nietzscheano é, no dizer de
Deleuze, o “combate próprio dos homens livres”. É preciso que nos tornemos dignos
daquilo que nos Acontece, mas não para aceitarmos passivamente, apaticamente os
mandos e desmandos deste Semiocapitalismo, e sim para o passarmos o resto das nossas
vidas nos lamentando pelos cantos, nos lamuriando como as mais infelizes das criaturas; e
sim para que tenhamos a potência ativa (e não reativa, e nem ressentida) de recriação
imanente da vida cotidiana. Antonio Negri nos ensinara (em A anomalia selvagem, p. 215):
É a urgência real do inexistente, colocada como esquema expansivo da eticidade”. É o
110
A partir daí, o “revolucionário” será para sempre aquele que não aceita esperar a sua vez
preciso “furar as filas”), sendo aquele que se recusa a aguardar que o mundo se transforme para que
ele mesmo se sinta seguro para “tornar-se” preciso “filar os furos”). É aqui que percebemos que
uma Filosofia da Práxis contemporânea não poderá ser apenas marxiana, mas também radicalmente
nietzscheana.
261
pensador italiano quem diz que a Filosofia é grande e bela, nesses caminhos da subversão
do real e da sua miséria.
Nossa força de existir neste mundo; nossas potências ontológicas e políticas de
resistir às mudanças de procedimento do poder (hoje Semiocapitalista) merecem não
apenas ser conservadas (como talvez pudesse querer Spinoza), mas expandidas mesmo
(como certamente pôde querer Nietzsche) è la nostra dignità la forza della vita”, diz a
bela música de Vallesi e Dati. Talvez a dignidade hoje esteja na tentativa de não se deixar
despotenciar.
Isso foi o que tentamos demonstrar e defender com esta Tese: o poder nos quer
ontologicamente fracos e tristes; politicamente apáticos e cabisbaixos, para que nos
domine sem que ofereçamos resistência. É necessário, contra isso, que nos tornemos
sempre modos mais potentes” – um problema de devir (Univocidade). Sejamos mais
“contíguos do que vai adiante”. Essa é uma questão tão ontológica quanto política, como se
vê. Nada de “espetacular”, mas talvez de “especial”. Mas, enquanto isso não Acontece,
vamos nós, entre a super-excitação da satisfação consumista e o esgotamento pela apatia
política, bocejando, meio-distraídos e meio-cansados... e dormindo “o sono dos justos”.
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( F I M )
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