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rogerio josé camara
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Comunicação da Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Comunicação.
orientador:
prof. dr. andré de souza parente
Rio de Janeiro
Maio de 2004
investigação sobre escrita:
Algumas relações entre escrita e
imagem
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rogerio josé camara
orientador:
andré de souza parente
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-
graduação em Comunicação da Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Comunicação.
Aprovado por:
____________________________________________
Professor Doutor André de Souza Parente
(orientador)
____________________________________________
Professora Doutora Ana Maria Amorim de Alencar
____________________________________________
Professor Doutor Guilherme Silva da Cunha Lima
____________________________________________
Professor Doutor Henrique Antoun
____________________________________________
Professor Doutor Rogerio Luz
Rio de Janeiro
Maio de 2004
investigação sobre escrita:
Algumas relações entre escrita e
imagem
Camara, Rogério José.
Investigação sobre escrita: algumas relações entre
escrita e imagem
/ Rogério José Camara. Rio de Janeiro:
UFRJ/ECO, 2004.
ix, 125f.:il.; 29,7 cm.
Orientador: André de Souza Parente
Tese (doutorado) - UFRJ/ Escola de Comunicação/
Programa de Pós-graduação em Comunicação, 2004.
Referências Bibliográficas: f.121-125.
1. Escrita. 2. Imagem. 3. Design. 4. Comunicação. I.
Parente, André de Souza. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-graduação
em Comunicação. III. Investigação sobre escrita: algumas
relações entre escrita e imagem
.
agradecimentos:
André Parente
Kátia Maciel
Rogerio Luz
N-imagem
CAPES
Ana Alencar
Guilherme Cunha Lima
Henrique Antoun
Alda Pessotti
Gilberto Kunz
Wanda Diniz
Ricardo de Oliveira
Maria Lúcia Camara
Jorge Schmidt Camara
a Fatima e Luiza
a José Elias Neder Jr.
In memoriam
“(...) tudo tem a ver com quase tudo. tu pensas que não, mas tem.
números equações teoremas beleza e coesão, e temor por isso mesmo,
e o regente da ordem, aquele hermínio-espalhafato, a batina
esvoaçando diante da janela, devo ter confundido matiz e emoção, por
isso quando te ouvi o nome, me veio adolescência e riso, um esporrar
sem sentido, eu na frente da classe, sendo alguém, ridículo, mas
alguém (...)”
HILST, Hilda. Estar sendo. Ter sido.
Investigação dos mecanismos construtivos da escrita,
particularmente os princípios de suas operações
topográficas código/superfície, procurando compreender o
domínio sensorial do espaço, no qual ocorrem
entrecruzamentos múltiplos de unidades que,
contextualizadas, ganham dimensões semânticas. Toma-se
como sentido de escrita todo sistema de imagens
codificadas e diagramadas, que se concretize como
linguagem e seja passível de leitura.
Problematização das relações entre escrita e imagem
considerando: 1) a produção de um novo espaço físico,
visual e interpretável; 2) o ideograma: o caráter icônico e
relacional da escrita e suas transcrições de imagens visuais
e sonoras; 3) o diagrama: o confronto dos elementos, o
jogo, a montagem.
Palavras-chaves: escrita, imagem, ideograma, diagrama.
resumo
The present work investigates the constructive mecha-
nisms of writing, especially the principles of its code/
surface topographical relations, trying to understand the
sensorial domain of space in which multiple crossings of
visual and/or sound units occur, and that when contextual
zed, gain semantic dimensions. Writing is considered to be
every codified and programmed visual and sound image
system that becomes concrete as a language and can be
read.
The purpose of this essay is to study the relation between
writing and image taking into consideration: 1) the pro-
duction of a new physical, visual and interpretable space;
2) the ideogram: the iconic character of writing and its
transcriptions; 3) the diagram: the confrontation of the
elements, the play and the assembly.
Keywords:
Writing, image, diagram, ideogram
abstract
10
introdução 03
bandeira 07
a dura poesia concreta 09
mapas 11
gênese de escrita 13
ideograma 21
alfa beta 26
alfabeto 29
visível/invisível 37
paradigmas da legibilidade 41
manuscrito 47
impresso 55
homem letra 61
caligrafia 65
cartografias 75
projeções do mundo 76
projetações do mundo 82
aparelhos de captura 84
escrita urbana 1 89
vitrine 91
livro livre 92
escrita urbana 2 97
weingart 101
franklinstein 102
escrita urbana 3 105
o que faz juntar formigas?108
sumário
13
Estar no mundo. Relações a ver. Textos/texturas. Ler os
signos que nos cercam, os textos das massas, as cidades, as
texturas das ruas, as coisas, os rostos, as formas, as cores,
as palavras, as imagens, os ícones. Simultaneidade de
tempos. Ritmo. Captar a experiência primeira, fixar
vertigens, ouvir, sentir, ver, ler o mundo. A operação dos
diferentes modos de escrita. A coalizão do simbólico
(verbal) e do icônico (não verbal). A fusão entre códigos e
linguagens. A inter/penetração dos formatos e dos meios.
A escrita tem estrutura, forma, função, inserida na
cultura. Funda-se na capacidade do homem em estabelecer
relações e notar a diferença. Resulta da aproximação dos
opostos e dos elos situacionais entre um e outro. A escrita
constrói uma ambiência ao mesmo tempo em que rompe
com ela, redefine o espaço e cria uma geometria de
superfície. A projeção do mundo sobre o plano exige antes
a leitura das variáveis e, dela a dedução do traço da
diferença e sua energia dinâmica. Primeiramente a
concepção da imagem, a seguir associações por analogia a
produzir sentido e, então, a imagem cria a palavra.
Tais operações envolvem: – o arranjo dos símbolos; a
generalização de um código a todo tipo de movimento e a
todas as encenações; a observação das ações (traços,
conexões, topologia). O procedimento conduz à abstração e
tende a resolver-se em puro movimento estrutural, ao
modo esquemático.
O jogo: composição de elementos, dispositivo de
montagem e desmontagem, busca de encaixes e ajustes. A
modulação: variação e transformação do molde a cada
operação.
Desde o último século tem-se expandido o conceito de
escrita no ocidente. Do signo do discurso (transcrição da
linguagem articulada em caracteres imagéticos), passou-se
à ideografia dinâmica que se realiza na sinuosidade
complexa da acumulação e da fruição. Movimentos que
exibem as tensões resultantes da sucessão de eventos que
constituem a dimensão diacrônica do tempo. Misturam-se
os códigos ao invés de descrevê-los em sistemas
sincrônicos da linguagem. São modos de escrita que
procedem por deslocamentos metonímicos: o contínuo e o
descontínuo no vertiginoso espaço de vivências e
sensações. Espaços de escrita-leitura, atividades de trocas
(produção, recepção) nos quais os códigos se interagem
vertiginosamente. Uma espécie de geometria do arabesco:
armadilhas ao olhar, simetrias ocultadas, imbricadas,
dissimetrias disfarçadas. Entra em crise a imagem única e
harmônica do mundo, entra em crise os significados. Os
signos tornaram-se instáveis e ativos.
introdução
“Desde muito me ufanava em
possuir todas as paisagens
possíveis, e tinha por irrisórias as
celebridades da pintura e da poesia
moderna.
Admirava as pinturas medíocres,
bandeiras de portas, cenários,
telões de saltimbancos, letreiros,
iluminuras populares; a literatura
ultrapassada, latim de igreja, livros
eróticos mal escritos, romances dos
tempos da avó, contos de fadas,
almanaques infantis, velhas óperas,
refrões simplórios, ritmos
singelos” (Rimbaud, 1998, p: 161).
14
SobrEscrita
Constitui-se uma nova topologia, uma nova maneira de
pensar e de sentir. Ler é de certa forma um processo de
auto-apagamento para permitir-se à relação. O sujeito
vaga pelo espaço e nele se inscreve, a ele se entrega. “O eu
é um outro” sentenciou Rimbaud. Imerso no ambiente e
dissolvido pela dinâmica dos fluxos, o sujeito fragmenta-se
e propaga-se. É o contexto, a variedade das coisas que
constrói o sujeito e o permite existir. A crescente
mutabilidade e o alto grau de indeterminação passam a
exigir a capacidade de explorações aleatórias dentro da
própria dimensão mimética.
Este trabalho não avança exatamente sobre estas questões,
mas retoma a escrita numa perspectiva histórica, levando
em consideração as condições de produção e reprodução do
pensamento e os modos de abstrair e combinar os
elementos. A escrita é sempre parcial e simbólica. Seu
esforço repousa sobre as aproximações dos disparates,
coerentes a posteriori. Acumulação, paciência, comparação,
confrontação, interpretação. Coincidências de dados
sensíveis. A maturação da escrita, portanto, comporta um
esquema, sobre o qual se pode comparar.
Dois tópicos foram destacados das questões que envolvem
a escrita: o aspecto ideogramático e o diagramático. Pontos
tomados do “plano-piloto para a poesia concreta” proposto
nos anos 50 pelo grupo Noigandres: a idéia do ideograma
e o espaço qualificado, estrutura espaço-temporal. A partir
da idéia do ideograma interessa compreender o caráter
icônico da escrita, e suas transcrições de imagens visuais e
sonoras. Não somente a escrita da palavra, mas também a
escrita sintética – puramente de idéias – onde o sentido
impreciso da mensagem exige do leitor suas projeções. O
leitor realiza o símbolo. Um ideograma pressupõe uma
totalidade, ou seja, cada parte contém o todo, o que
favorece a construção do texto como uma rede de
possibilidades de conexões e leituras. Já o diagrama é o
modo de organização do discurso ou da escrita, mapeia e
expõe os elementos, tornando possível estabelecer suas
relações, conectar pontos. Do diagrama e suas
superposições ou sucessões opera-se o ritmo, as vibrações.
O confronto dos elementos, o jogo, a montagem, em suma
o diagrama permite a observação da diferença e a
verificação da regularidade de um processo em termos
matemáticos.
Relativo a uma tipoética da escrita. Relação contraditória e
complementar.
A construção do tipo e sua normalização, na medida em
que a transparência da escrita é condição para que ela se
torne legível. Esquecer o significante. Instaura-se no
pensamento ocidental a boa escrita baseada na presença ou
não do sentido. Com isso o gesto original da inscrição
15
Introdução
deve ser disciplinado: repetição, ritmo e organização. O
princípio econômico da escrita: a conquista de um
conjunto reduzido de códigos (traço/série) e sua
universalização; os procedimentos de síntese na passagem
de uma representação concreta ao signo puro.
– A construção poética por sua natureza icônica e
paratática. A poesia permite o deslocamento de um ponto
a outro, sem problemas. Faz circular a palavra em seus
diversos tempos e espaços, confronta pontos. Revela a
casualidade e a inconstância dos sentidos da palavra.
Do jogo à instituição. Ou entre jogar e comunicar. De
uma aproximação, a combinação, a operação comum, a
compreensão.
Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos em 1952, ano de fundação do Grupo Noigandres.
Klaus Werner, 1952
17
“(...) revolução e terror: poesia
concreta. A calma, terrível fixidez
de olhos e olhares olhados – e o
sorriso nenhum; a formalidade
amarfanhada, lencinhos nos bolsos
dos paletós, minha pose camiccia
rossa, atentamente relaxada. Em
escada e escala, uma perfílica
sombra conspiratória, tridêntica,
remetendo a outra e outras; mãos
macbethianas surripiando-se nas
sombras; um claro escuro de film
noir, sinistras listras de uma
bandeira. (Pignatari, 2000, p.45)
bandeira
19
A dura poesia concreta numa esquina de Vitória.
Emoldurada do céu que tende à grandeza do infinito e
encarcerada entre postes, fios, gatos, alhos e bugalhos. Do
ambulante que faz das laterais dessa parede sua vitrine. O
vão evidente e o concreto aparente emprestando a forma
mutável da reformável legis de uma inscrição urbana.
O que a antropogeografia mostra, são sucessivos desgastes
de energias na busca de novos padrões. Formas ainda
rígidas, de projetar, construir, organizar e vivificar a
cidade.
Estabelece-se o fluxo, o afluxo. Dividem-se setores para
atividades as mais diversas e avança-se na descoberta de
novos materiais que não só revolucionam o processo de
construção, como a cada momento transformam a maneira
do empilhamento dessa massa supostamente amorfa que
deveria dar vida, cor, movimento e geração de atividades
em cadeia a essa urbe que, pensada dessa maneira, não
passa da estabelecida e fria projeção de Mercator, onde
linhas retas possuem intervalos fixos sem adaptatividade
ou interferência. Talvez se possa arriscar, ignorantemente,
a marcar tal teoria como uma vertente geratriz do
discurso do fluxo, do entrever, do devir, da deriva e da
virtualidade, dando, ao espectro criador, um sentido
ilimitado de perpetuidade.
A cidade caminha e é adaptada pelo seu vivente. Esse
objeto humano age, corrói, se aglomera, pratica a
mercancia, trafica, mete medo, constrói entre, forma novas
estruturas de abrigo e rompe como uma geóclase. Tudo o
que não pode ser visto, mas que acaba comandando uma
nova ordem de discurso social, compondo esse novo
puzzle do inevitável que engolfa e recria a receita
projetada sem o saber dos arquitetos, que se digladiam
solitariamente a cada imposição de mudança.
Equação mais difícil e intricada, pois a cidade é
essencialmente produtora de vazios. Já o ninguém, não
produz vazios, nem silêncios. Ele forma a turgescência que
faz pensar novamente a cidade, a textura da urbanicidade.
Camara, Vitória, 2004
a dura poesia concreta
Jacques Polieri, 1967. Projeto de cenografia. Sala
giroscópica acima e sala giroscópica satelizada abaixo.
Duas possibilidades coexistem: 1. esfera e cubo móveis
ou cone fixado no cubo; 2. esfera, cubo e icoédro móveis.
21
Em busca de uma abordagem sobre a escrita partiu-se das
seguintes formulações:
a) definir os princípios essenciais de um espaço
caleidoscópio: princípios de vida e o movimento. O método
consiste numa semiografia descritiva que parte do sentido
primeiro de semiografia (representação ou descrição de
um sistema coerente qualquer por meio de signos), mas
procurando dar conta dos lugares abertos – no tempo e
também no espaço – múltiplos e simultâneos. Seguindo
formulações do cenógrafo Jacques Polieri (1971,p.18),
estabelece-se como preocupações fundamentais: “o jogo,
os jogos, os códigos do espaço, suas transposições ou
equivalentes tecnológicos”. Em seu método ele descreve o
“como” – especulações sobre a técnica, a eficácia e
compatibilidade dos meios – e não o “porquê” que são,
afirma Polieri “da ordem mitológica ou puramente
psicológica” (Ibid., p.18), às quais, aliás, a origem da
escrita está intimamente ligada;
b) toma-se por base estudos do geógrafo Milton Santos
(1997a) sobre o espaço social no qual afirma ser este
definido por três conceitos – “forma, estrutura e função”
a serem objeto de análise combinada e simultânea. Deve-
se considerá-los equivalentes aos termos de uma
totalidade.
“(...) não é suficiente combinar estrutura e forma ou função e forma.
No primeiro caso, equivaleria a supor uma relação sem mediação; no
segundo, uma mediação sem causa motora.
Em realidade nenhuma dessas três categorias existe separadamente e
apenas sua utilização combinada pode restituir-nos a totalidade em seu
movimento” (Ibid., p.38-9);
c) a questão do mapa, observando como ele oferece o
mundo a ver e, revela os modos de pensar o mundo. O
mapa como diagrama narrativo, a alimentar a imaginação.
O mapa como base da geometria visual – superfície.
Objetiva-se aqui tanto gráfico como o grafo. O gráfico se
refere ao traço – repetição, duplicação – marca do gesto, a
organização e domesticação do corpo. O grafo como espaço
de analogias, variações, coexistências e condensações de
imagens. A ligação de estruturas, espécie de re(l)ação a,
onde todos os elementos do universo subordinam-se.
mapas
A relação da poesia com a
linguagem é semelhante à do
erotismo com a sexualidade.
Também no poema – cristalização
verbal – a linguagem se desvia de
seu fim natural: a comunicação. A
disposição linear é uma
característica básica da linguagem;
as palavras se enlaçam umas às
outras de forma que a fala pode
ser comparada a um veio de água
correndo. No poema a linearidade
se torce, atropela seus próprios
passos, serpenteia: a linha reta
deixa de ser o arquétipo em favor
do círculo e da espiral. Há um
momento em que a linguagem
deixa de deslizar e, por assim dizer,
levanta-se e move-se sobre o
vazio; há outro em cessa de fluir e
transforma-se em um sólido
transparente – cubo, esfera,
obelisco – plantado no centro da
página. Os significados congelam-
se ou dispersam-se; de uma forma
ou de outra, negam-se. As palavras
não dizem as mesmas coisas que
na prosa; o poema já não aspira o
dizer, e sim a ser. A poesia
interrompe a comunicação como o
erotismo, a reprodução” (Paz,
2001, p. 13).
23
gênese da escrita
O ato de leitura antecede o ato de escrita, quer dizer,
paradoxalmente soube-se ler antes de escrever. Esta
hipótese, hoje amplamente aceita, substitui o mito da
origem verbal da escrita que sempre ocultou a função
gráfica do sistema. Foi o grafismo e não a língua que
motivou a aparição da escrita. O mundo é coberto de
sinais naturais depositados, por Deus, sobre a superfície da
terra. Mas estas marcas visíveis não designam diretamente
o que está oculto no mundo, elas dizem através delas. É
necessário que o homem, no exercício de sua sabedoria,
atue sobre elas e às interprete. Para se compreender as leis
do universo e de seus sinais, ou seja, decifrá-los, é preciso
trazer à luz o que se assemelha, o que se aproxima por
afinidades, descobrir um universo de relações entre os
elementos que recobrem o mundo. A magia permitia a
decifração do universo desvelando as semelhanças secretas
das marcas/signos. Vai-se diretamente às marcas: as
plantas, os animais estão carregados de grafismos que se
repetem, se entrecruzam revelando as entranhas do
mundo, o que está no verso da superfície.
A anterioridade da leitura em relação à escrita repousa
sobre o princípio da existência de uma “observação ante-
rior”, mas “os suportes desta observação fundadora são
sensivelmente diferentes” afirma Anne-Marie Christin
(2000, p. 26). Na China, segundo o mito dessa origem, o
imperador Pao Xi teria inventado a escrita depois de ter
contemplado as figurações das constelações e, “baixando
os olhos, contempla os fenômenos que estão sobre a terra”
(Ibid, p. 16). Na raiz da palavra wen, que significa ‘marca’,
‘conjunto de traços’, encontra-se esta relação com a
leitura do céu e suas constelações representadas pelos
traços que ligam as estrelas, conceito que também se
aplica aos veios visíveis das pedras, das madeiras e dos
animais. As coisas dispersas no mundo se correspondem e
são espelho do céu. A constelação se dissemina sobre a
terra com o poder de duplicar-se ao infinito. Na cultura
chinesa o traço não está ligado à palavra e sim ao ato de
contemplação de uma superfície aparente, que permite as
‘trocas’ entre o homem e o mundo, a fim de que ele possa
se comunicar com o ´poder da Eficiência infinita’. Há, na
China, uma correlação estreita entre a adivinhação e o
surgimento da escrita. Foi inventando a leitura para
compreender as mensagens visuais vindas de um mundo
estranho ao dos homens que o adivinho possibilitou o
acesso à escrita. O sábio seria aquele que lê o universo
que o cerca. A atenção se volta à projeção do cosmo sobre
a superfície de seus corpos. Os profetas se ocupam em
reconstituir as mensagens inscritas pelos deuses, sobres os
corpos dos animais, dos pássaros, dos quais eles
contemplam no céu os diagramas compostos pelas estrelas.
É o caso do valor simbólico atribuído à carapaça da
tartaruga na China, signo global de todo espaço-temporal.
A partir da forma e do grafismo da carapaça os chineses
“Doravante, a linguagem tem por
natureza primeira ser escrita. Os
sons da voz formam apenas sua
tradução transitória e precária. O
que Deus depositou no mundo
são palavras escritas; quando Adão
impôs os primeiros nomes aos
animais, não fez mais que ler
essas marcas visíveis e silenciosas;
a Lei foi confiada a Tábuas, não à
memória dos homens; e a
verdadeira Palavra, é num livro
que a devemos encontrar.(...) ela
(a fala) só é (...) a parte fêmea da
linguagem, como seu intelecto
passivo; já a Escrita é o intelecto
agente, o “princípio macho” da
linguagem. Somente ela detém a
verdade”(Foucault, 1995, p. 54-5).
24
SobrEscrita
concebem toda geografia mitológica fundamentada,
analogicamente, pela referência do céu como superfície.
No ocidente a relação primeira da leitura, face à escrita, de
traços ‘naturais’ também ocorre, mas não pertence à
mesma natureza. O mito mais evocado entre historiadores
e lingüistas é o da inscrição dos rastos dos animais sobre a
neve. Este seria o ‘livro da natureza’ que permitia os
caçadores da era paleolítica seguir determinado espécime
que deixava sobre o solo uma marca distinta de centenas
de outras. Rastos que o caçador lia e relacionava-o a um
determinado animal.
O mito do caçador e o mito do imperador chinês refletem
duas concepções e funções sociais diferentes da escrita
(Ibid, p. 26). O primeiro observa sobre a neve as inscrições
do animal ausente e que o persegue por necessidade de
sua vida cotidiana, ou seja, não é uma leitura com o
objetivo de fazer fluir o pensamento, mas essencialmente
utilitária, de interesse material. O segundo é atraído pelas
estruturas visuais que permanecem sobre a superfície dos
corpos das diferentes categorias da natureza, tomados em
analogia ao espaço mais imaterial e inacessível: o céu
estrelado. Para o chinês a escrita é concebida como um
meio de comunicação que o permite estar em relação
(infinita) ao universo, não respondendo a interesses
materiais imediatos.
Para Christin, no entanto, o mito do caçador inventor da
escrita esbarra num dado histórico: a escrita teria
aparecido nas civilizações agrícolas (Ibid, p. 29). Observa-
se dois princípios distintos de escrita. Um relativo aos
movimentos aleatórios do caçador nômade que segue sua
presa sem fixar-se e, o outro do homem sedentário
ocupado com a organização e delimitação do espaço.
O mito do caçador foi, até pouco tempo, interpretado com
parâmetros logocêntricos, como justificativa do
pensamento fonético. Por este entendimento, a inscrição
na superfície associada a uma determinada espécie animal,
se daria do mesmo modo que se relaciona uma palavra a
uma coisa, e, na medida em que o caçador lê uma série de
eventos estabelece-se o princípio da narrativa. Christin
fornece outra alternativa de interpretação quando afirma
que não é “a raposa que conta (...), mas o esquema
desenhado sobre o solo por sua passagem, e a estrutura
resultante da passagem de todas as raposas que puderam
se suceder em uma noite neste mesmo espaço” (Ibid,p.
28). A questão não é a identificação da figura a partir de
um traço, mas a rede de relações deste traço com todos os
outros. O percurso do caçador escapa a qualquer
subordinação ao eixo da palavra, pois se distingue da
narrativa verbal, esta centrada na temporalidade do fluxo.
Mesmo as figuras do período paleolítico são estranhas a
25
Gênese da Escrita
qualquer notação oral. Multidimensionais no espaço, suas
relações são estabelecidas topograficamente. O caçador
nômade organiza seu espaço pelos vetores de articulação,
sem estabelecer fronteiras ou medidas. O caminho não é
pré-determinado, nem mesmo as distâncias ou qualquer
tipo de encadeamento. É o principio da mobilidade. O
caçador define seu território por movimentos que
resultam de interações e mecanismos voláteis.
Movimentos que a rigor não eram “agenciados” nem pela
caça, nem pelo caçador. No entanto, qualquer apreensão do
real corresponde à determinada noção de território. Nos
desenhos do período os animais são representados de
modo “naturalista”, enquanto os homens aparecem de
forma abstrata e geometrizada (triângulos, linhas, etc.).
Com a produção de espaços de representação distintas o
homem assinala o desejo de determinar o seu lugar no
mundo, de territorialização. O homem, que se expande
sobre a terra, risca o solo e o define. Grafa, reorganizando
tempo e espaço.
A alteração das configurações sociais, de individualistas e
anárquicas para coletivas e institucionais, não se dariam por
necessidades naturais (esgotamento da caça, por exemplo),
mas por razões culturais, que se voltavam à uniformidade da
organização social e à estabilidade das instituições. A
invenção da agricultura reflete um comportamento
totalmente distinto dos deslocamentos aleatórios do caçador.
O agricultor explora metodicamente a superfície, mede e
delimita seus espaços, exerce ações regulares e passa a
dominar uma rede de sistemas, tais como os ciclos das
estações, dos frutos, do tempo, do nascimento. O que envolve
ainda: a repetição dos gestos ritmados na fabricação do
objeto; a domesticação do real na organização e na
estruturação das relações humanas; a observação dos
significantes naturais que simbolizam o eterno retorno e
asseguram a regularidade do sistema. Tais ocorrências ligam-
se à escrita, a utilização do utensílio implica na exteriorização
do corpo e do pensamento e o gesto ritmado é comum ao ato
de grafar. A produção da escrita estaria mais ligada ao ritmo
que propriamente à visualidade. Deste campo de
experimentação, vivo e ativo, organizam-se as idéias, revela-
se um universo antes desconhecido. A escrita funda novas
percepções o espaço.
Sob esta perspectiva o ato do nascimento da escrita reside
no desenvolvimento econômico e suas invenções: medidas
de distância, calendários, contagem de elementos, etc.
Estes elementos e toda organização social ganhariam novo
sentido com o surgimento das cidades, representação
máxima da estratificação dos espaços, como um sulco no
universo. “Lugar em que se encontram os pontos cardeais
que dividem o mundo, determina um código de
correspondências que integra toda a criação na sua rede. A
inserção espácio-temporal estabiliza-se porque tudo pode
26
SobrEscrita
ser fixado, anotado”(Barthes, In: Enciclopédia Einaudi, v.
11, 1987, p. 39). A cidade se dá ao mesmo tempo como
espaço de irradiação e de conjunção, na qual se avizinha os
elementos por semelhança, constituindo um
encadeamento. Corpos justapostos e domesticados sob o
principio econômico de contagem, o que se traduz em
traços modulados e seriados que linearizam e espacializam
o tempo.
A relação escrita/cidade tem sido ressaltada com
freqüência em estudos especializados, e, de fato, os
primeiros momentos da escrita fonética ocorreram entre
os Sumérios na Mesopotâmia onde se estruturou as
primeiras cidades. Com as riquezas provenientes da
agricultura e com os excedentes de produção de
mercadorias de modo geral, os Sumérios ativaram o
comércio entre-povos e, por sua vez, as cidades e suas
articulações. As condições para a sistematização da escrita
nesse período encontram justificativa na necessidade da
mercancia (chama-se atenção para o fato de que o deus
chinês da escrita e do comércio é o mesmo), da burocracia
(pois precisava-se de um instrumento de registro e
controle administrativo) e da infraestrutura pública
(construções, irrigações, propriedades). Se em relação à
sociedade agrária observou-se a necessidade de traçar e
delimitar o espaço em oposição aos fluxos a-métricos dos
caçadores nômades, nas cidades os ‘estriamentos’ são
ainda mais rígidos. Da estrutura urbana configura-se toda
uma sintaxe emitida pelas relações formais: escala, ritmo,
volumes, proporções, linhas e técnicas de construção.
Fala-se de uma escrita que organiza o tempo,
contextualiza povos e os inscreve (cita-se, como exemplo,
o fato do surgimento da escrita analítica no Egito ser
simultâneo a sua unificação).
Povos definidos pela escrita. A escrita mítica na qual o
valor do significado gráfico, símbolo de uma realidade
única e similar, não sendo vista como uma reprodução do
discurso oral. A escrita/marca, vestígios daquele vaga e se
expande sobre a terra, definindo o espaço por trajetos, até
riscar o solo. A escrita analítica, da palavra, construtora
de autoridades, relativa à ordem econômica e ao poder,
sendo o seu nascimento contemporâneo ao da matemática,
ao da medicina, por fim, ao pensamento científico. Neste
ponto, a linguagem inicia o desligamento de sua parecença
com as coisas, a escritas e as coisas já não são
semelhantes.
*
Mais do que estabelecer as origens sociais da escrita
interessa a esta a análise de sua gênese icônica e seus
mecanismos constitutivos. A escrita nasceu da imagem e
sua eficácia procede dela. Por sua vez, a imagem nasceu do
27
Gênese da Escrita
esforço de ruptura com o espaço físico que nos circunda.
Operação que simultaneamente abstrai duas das
dimensões do espaço-tempo e o reconstitui sobre o plano.
Não é uma operação simples, primeiramente é preciso
tornar visível determinado objeto ocultando seu entorno,
tornando-o presente e homogêneo, isolando-o sobre um
fundo. Tira-se a figura de sua existência, regida pelas leis
indefinidas do caos, para redefini-la sob um espaço de
ligações coerentes idealizado pelo homem. Busca-se uma
ordem em meio ao caos. O ato de grafar organiza o tempo
e o espaço sobre determinada superfície. O modo de
pensamento, que permitiu a abstração do mundo sobre o
plano, possibilitou a criação da imagem e da geometria e,
por sua vez, foi essencial para o desenvolvimento da
palavra e do instrumento. A interrogação visual a fim de
deduzir as relações daquilo que se observa e seu sistema,
permitiu conceber essas figuras como signos, mas signos
suficientemente ambíguos para que não sejam
interrogados somente em termos de significação, mas por
suas associações.
Não se pode alcançar uma forma até que se tenha clareza
programática. A projeção do mundo não existe sem traços
ou palavras. Traços que contêm, diversificam e ordenam,
possibilitando o entendimento do mundo. Procedimentos
de seleção, redução (em pontos) e simplificação do
contexto. São explorações analíticas que visam revelar
situações invisíveis (processos que não se dão diretamente
ao olhar), através de diagramas. O diagrama opera a
redução a um mínimo para elaborar um conceito. Sua
execução altera o projeto. A cada meio, a cada material o
homem se compõe diferente. O suporte, o instrumento, as
mãos fazem exigências imprevistas e afastam o homem da
natureza. Quando o homem, na era paleolítica, imprime a
sua mão sobre o muro de uma caverna, registra-se a
conquista sobre o real, transformado-o em universo
simbólico. Com a descoberta de tal suporte o homem
realizou a ruptura com o mundo, por meio da experiência
sensorial das coisas.
O projeto só existe com a energia do traço. O pensamento
não precede a ação. O pensamento é ação. As imagens
sucedem-se, sobrepõem-se. O deciframento da imagem ou
da representação dá-se no plano. Nele o significado da
imagem pode ser capturado em sua totalidade, por sua
estrutura. Ou, em procedimento de varredura da
superfície restituir suas partes abstraídas, seus elementos
mais puros (pontos, linhas, manchas), suas subunidades de
energia (diferentes graus de modulações e intensidades).
A varredura sobre a superfície exige deslocamentos,
consumando-se como experiência no espaço e no tempo. O
conjunto de imagens não tem significados inequívocos. As
imagens são interrogadas, interpretadas, no movimento de
28
SobrEscrita
seu engendramento. Imagens interconectadas, cada uma se
liga a outra e outra, transformando ou reforçando o
sentido da imagem que a precede. Imagens eventuais em
colisão, em livre associação, das quais se processam cenas.
Os significados são extraídos das relações espaciais dos
elementos - durante o trajeto - estabelecendo-se, também,
relações temporais. O olhar vagueante, sem foco central.
Os movimentos são inconstantes, interrompidos,
(des)articulados. Movimentos contrários, com idas e
vindas. Enredados e tissulares. O observador só tem visão
fragmentada, só se vê fragmento e necessariamente o
resultado é uma operação mental. Articula-se a
informação. Não se trata, portanto, da capacidade de
retratar. A informação é necessariamente abstrata. A
totalidade se configura como resultado de um conjunto de
informações.
Os elementos gráficos devem gerar formas. As formas
surgem do diagrama de forças entre os diversos elementos
irregulares. É definida pela coexistência de movimentos
heterogêneos que se articulam. Tudo começa no esforço de
alcançar uma forma, ter controle sobre ela. Contudo, não é
a forma sozinha, mas o conjunto que compreende a forma
e seu contexto. Faz-se necessário articular um campo de
forças que em princípio não se compreende. Desse modo é
preciso trabalhar as afinidades das fibras, tecê-las para
gerar um meio. Como ocorreu nas primeiras sociedades
agrárias, que com o processo de desfiamento da matéria
extraída da natureza e seu tecimento puderam
transcodificar os eventos em situações.
O meio permite, portanto, entrecruzar e ajustar figuras, em
um conjunto visualmente significante, funcionalizando a
tela entre o visível e o invisível. Quer dizer, a tela revela-se
como uma placa sensível com o propósito de representar ou
mapear o mundo, mas também como fronteira que permite
a comunicação do homem com o que está para-além. Um
ponto de fuga para o infinito, exigindo a leitura sob
diversas variáveis, não só sob o que se encontra no mapa, é
necessário mover-se por suas dobras. Neste caso é
paradigmática a concepção oriental da tela como espaço
mágico ou milagroso, no qual a ausência do ponto de fuga
não significa a ausência do sujeito, mas sua onipresença,
fora do campo de visão humano, expressa por variáveis,
multiplicado, disperso. Seus deuses estão presentes nas
pedras, nas árvores. Interrogar o invisível está na origem do
olhar. Ver é uma atitude metafísica. O imaginário humano
deposita sobre as pedras, as árvores e seus votos a
possibilidade de interconexão com os deuses. É através do
meio que o mundo se dá. Mas se por um lado a
imaterialidade ganha poder de ação e o invisível introduz ao
mundo dos deuses, por outro a comunicação dos deuses
com os homens e suas ações se revelam através do visível.
29
Gênese da Escrita
A mitologia e o grafismo (a mitografia) surgem
simultaneamente nas sociedades primitivas. A mitografia
é essencialmente multidimensional com a disposição das
figuras livremente espacializadas e, a princípio,
independentes em relação à linguagem fonética. A
transposição da língua para um suporte gráfico-visual só
foi possível com a emergência anterior da semantização
da imagem, o que confirma a participação da imagem na
origem da escrita. Uma nova etapa na escrita seria a
conversão do ideograma em fonograma, por meio da
homofonia, quer dizer dois signos com formas idênticas,
mas semanticamente diferentes. Na passagem do
ideograma ao alfabeto, o visível perde sua função
semântica. Esse tipo de notação implicaria numa
linearização dos símbolos, aproximando-se assim da
linguagem fonética. Enquanto a figura teria devorado o
espaço, a linha, dependente do logocentrismo, devorou a
figura e sua liberdade de espacialização.
Paul Klee, Uma folha do livro de registro da cidade, 1928.
31
A escrita teve início, independente da fala, com a
passagem da pictografia para a ideografia, o que ocorre
com a sistematização de processos já utilizados na
pintura. Desenhos compostos com traços elementares
que, elaborados a partir de realidades ambientes –
pessoas, plantas, animais – expressavam mais pela
associação da composição do que pelas partes isoladas.
Para se chegar a tal procedimento, alcançou-se antes uma
iconicidade geométrica e breve, ou seja, um traçado
uniforme e sintético o suficiente para permitir boa
identificação e a estruturação de um conjunto de signos.
Um movimento dual e inverso, o intrincado cruzamento
da imagem e sentido – redução icônica e expansão
semântica –, quanto menos precisa a representação da
imagem, mais livre e aberta ela se torna e mais os seus
sentidos expandem.
A pictografia a princípio reproduz diretamente um objeto
material, uma realidade concreta. Consiste em fazer o
desenho da coisa que ele designa, não estabelecendo
relações temporais e semânticas, o que exige a produção
de milhares de signos. Para evitar a multiplicidade de
signos, certos procedimentos deveriam ser aperfeiçoados.
A reforma mais importante era enriquecer as relações
entre o signo e os objetos cotidianos. Passa-se a não
representar a própria coisa, mas as circunstâncias que a
marcam ou a outra coisa a que ela se assemelha. O
objeto desenhado pode ser relacionado com outras coisas
que estão conectadas com este objeto particular
utilizando processos mentais, os quais são mais ou
menos baseados na realidade. O fato que um signo poder
ser usado para indicar uma abstração uma idéia,
transforma o pictograma num ideograma.
Com a associação (operação de linguagem) de duas
representações (pictogramas), por justaposição “chega-se
a designar o conceito abstrato que a representação, por si
mesma, é incapaz de evocar”(Ivanov, Apud: Campos,
1994, p. 49). O ideograma resulta do engendramento de
formas. Ele diz, não por descrições ou por definições,
mas por funções, pela observação da dinâmica das
tensões, das transformações. Os elementos, como na
natureza, encontram-se interligados, agindo um
1
pelos
outros. Realizam, por relações semânticas, uma
constelação de significados.
O ideograma precede a palavra e seu funcionamento
independe dela. Para Peirce, o ideograma deve ser inicial,
espontâneo e original, sem laços com o passado e sim
com o futuro, à medida que é pura proposição e
descoberta, implica noções de possibilidade. Trata-se do
exercício do olhar, indefinidamente subjetivo, antes de
nomear. Qualquer pensamento articulado, diz Peirce, e o
ideograma terá perdido sua inocência. Admite-se aqui,
ideograma
1
Frege aceita que todos os
números naturais maiores que um
têm que ser definidos por
referência aos seus antecessores,
mas afirma que as definições estão
incompletas enquanto o número
um e o conceito de somar um não
estiverem definidos. Para ele os
“números são atribuições dos
conceitos e não do objeto”. Diz
Frege: “O número não é abstraído
dos objetos, do mesmo modo que a
cor, o peso, e a dureza são
abstraídos; também não é uma
propriedade das coisas (...) Não é
qualquer coisa de físico, mas
também não é subjetivo (uma
idéia). Não resulta também no ato
de juntar uma coisa a outra: 1+1=2
não significa juntar uns porque
um não tem plural” (Frege, apud:
Beuque, s.d.)
“Em todas as escritas primitivas,
como nos hieróglifos egípcios,
ícones de um tipo não lógico, os
ideógrafos”
A única maneira de comunicar
diretamente uma idéia é através de
um ícone; e todo método de
comunicação indireta de uma idéia
deve depender, para ser
estabelecido, do uso de um ícone.”
(Peirce, 1995, p. 64-5)
32
SobrEscrita
um conjunto de ideogramas estruturado numa ‘língua
gráfica’, mas é de fundamental interesse a hipótese de
Peirce para compreender um sistema de ‘fenômenos
visuais’, que exige o pensamento plenamente mobilizado,
trabalhando sucessivas interpretações, o reconhecimento
das mais visíveis similitudes, do encadeamento das
coisas, suas atrações e afinidades, até se dar conta da
invenção da escrita.
A construção ideográfica exige um esforço de leitura
que ultrapassa linhas visíveis ou a assimilação metódica
das coisas. Buscando a intenção original, o desenho
indica o movimento gerador da natureza. Investe-se de
articulações poéticas, de confrontos entre diferenças e
semelhanças. Surge, dessa maneira, as metáforas, as
alegorias oriundas do contato momentâneo entre duas
coisas, movimento que se distancia cada vez mais do
ponto de origem. Na exploração dessa escrita,
introduzindo variações nos dados, ensaia-se a realidade
de maneira virtual e, através dela, é possível transpor o
mundo e projetá-lo.
**
**
*
O objeto pontual, estático e definitivo, não define forma.
Esta se expressa pela mutação, surge do movimento, do
conceito espaço-tempo. A ‘forma espacial’ diz por suas
extensões. Interessam as interações das formas, as forças
que as ligam. A escrita ocorre com o encadeamento
(temporal) de duas coisas diversas. O que tem início com
o advento da ideografia.
A sintaxe por correlações dinâmicas depende de uma
constituinte diagramática. Esta permite a articulação e a
visão simultânea dos elementos representativos de uma
função. O diagrama, segundo princípios matemáticos,
ilustra as estatísticas, permitindo pensar
quantitativamente (articulação de formas) uma qualidade
variável. O diagrama, no qual os ideogramas são
inscritos, é apreendido, não linearmente (predominância
temporal) como nas escritas alfabéticas, mas por cortes
simultâneos: verticais (pontual) e horizontais
(planificado). O espaço (topológico), munido de uma
estrutura, é passível de análise em sua localidade,
contraposta à totalidade de sua existência. O espaço,
portanto, nunca é absoluto – é relativo. Em topologia não
há grande nem pequeno. A forma da superfície é
expressa pelo conjunto de associações. O todo é analisado
segundo suas partes (singularidades), mas, por outro
lado, as especificações de função da parte é determinada
pelo todo. Para o esclarecimento destas questões, segue
citação de um trecho de entrevista com o matemático
Jean Dhombres, onde ele analisa conceitos matemáticos
de forma:
33
Ideograma
“(...) o que verdadeiramente expressa uma forma é uma família à
qual ela está agregada, um grupo no qual ela se classifica, existem
diversas práticas. E para ver, como também para dizer, em que
família uma forma está classificada (...) depende da escolha daquele
que quer ver.
Uma das soluções consiste em desdobrar a forma para fazê-la
engendrar uma família de formas, da qual ela será, de certo modo, a
representante. E um bom meio é o de desdobrá-la no tempo, fazer a
forma se mover. A morfogênese é precisamente o estudo das
deformações que se podem produzir em uma superfície com o
objetivo de saber como essas deformações se modificam, a fim de
fundamentar uma classificação: ver uma forma é isso. O que está
em jogo? Determinar (...) mudanças – as singularidades, como
dizem os matemáticos: a palavra aponta, então, o que singulariza, o
que se diferencia do contexto regular; desdobrando-se a superfície
em questão, seja pelo movimento, seja introduzindo-a em um
espaço maior com propriedades mais elaboradas. Com efeito,
existem várias técnicas para evidenciar o que permanece constante
em uma transformação e permite estabelecer tipos topológicos. Mas
permanece a idéia de ‘esticar’ a coisa que se apresenta como uma
forma fixa. Permanece igualmente a idéia - uma vez que passamos
sub-repticiamente do fenomenológico para a classe, senão para o
conceito – de que se coloca o problema de saber o que mantemos,
ou o que para nós é mais marcante nessa forma. Seria seu aspecto
geral? Talvez não. É freqüentemente o que ela tende de mais
singular ou mais irregular, como dizem os matemáticos, os lugares
onde a forma não é aquilo que esperávamos que fosse, e que
constituem a própria forma – sendo o verbo ‘constituir’ tomado no
sentido ativo, o de uma gênese possível da forma a partir de suas
singularidades. Não naquela forma de desenho, mas, certamente, de
uma forma já ideal; (...) uma classe de formas. (...) Assim como
uma função é, grosso modo, determinada pelos pontos em que é
irregular, também uma forma geométrica é igualmente
determinada por suas irregularidades. Certamente, isso necessita
ser colocado em um contexto algébrico extremamente preciso, mas
a idéia está presente, é ela que une as duas formas. A singularidade
determina a globalidade” (Apud: Noël, 1996, p.20-1).
A notação é inerente “ao continuum, receptáculo do
signo – não isolável.”(Polieri, 1981, p. 15) O valor do
signo é compreendido por relação a algo, pela tessitura
de oposições e aproximações, pela observação do
conjunto de ações, dos jogos, dos trajetos topológicos.
A escrita produz uma economia pela estratégia de
repetição. As variantes únicas – o jogo. Jogo redutor da
entropia. A síntese formal da escrita exige identidade
tópica. A estrutura nuclear totalizante é estabelecida
por um diagrama de base, a se observar todas as ações
(traços, simetrias, conexões, cinemática, topologia). Os
ideogramas chineses, por exemplo, hoje em número
aproximado de setenta mil, são construídos a partir de
nove traços. Operação de generalização de um código a
34
SobrEscrita
todos os tipos de movimentos. O signo, entrelaçado às
preferências diacrônicas, contém em si a totalidade da
linguagem. As múltiplas fusões das figuras, agenciadas
pelo espírito, exprimem o ilimitado do mundo.
35
Ideograma
Paul Klee
alfa
a l e f
a
m o v i m e n t o
força movente
força reprodutiva
economia de energia
energia doméstica
Forma original: BOI
Sentido original: energia primal.
Sentidos derivados: força, ser, ser humano, modo de ser,
homem, possibilidade, começo.
do fluxo das forças selvagens à energia domesticada
(e vice-versa).
o boi perde volume ressaltando o sentido reprodutível
da direção: força e dinamismo.
Metonímia: representando o todo
com uma parte.
Redução icônica e expansão semântica:
a transição do pictograma para o ideograma, da escrita da coisa para a
escrita da idéia.
a redução da imagem e a expansão do sentido entre a imagem.
A redução metonímica retém
somente a características mais
importantes das feições do boi.
Um complexo processo mental
culminou na rejeição e supressão
da imagem.
Iconicidade geométrica e
abreviada.
A escrita que transpõe o mundo e
o projeta.
b e t h
b
c o m p o s i ç ã o
habitat: comunidade dos homens
criando espaço para a energia primal
limites do mundo objetivo
arranjo das forças
balizamento do espaço
beta
Forma original: CASA
Sentido original: internalização, arranjo/composição de
energia.
Sentidos derivados: dentro, família, permanência, nutriente,
comida, abrigar, vida em família, útero.
Inicialmente um simples quadrado.
Eventualmente pontos: composição, contextualização familiar.
O quadrado se abre e as portas aparecem: extensão para fora.
Sentidos gramaticais:
dentro
quando
com
entre
de acordo com
A diagonal: o perfeito equilíbrio entre dentro e fora da casa.
“Sejam quais forem as diferenças lingüísticas, religiosas, econômicas ou militares, que
separam os povos, é certo que todos, fortes ou fracos, calcularam, argumentaram e
demonstraram de modo igual, quando se tratou de medir a diagonal do quadrado.
(Serres, 1997, p. 9)
Fontes primárias:
DIAS PINO, Wlademir, SANTOS, João Felício.
A marca e o logotipo brasileiros.
OUAKNIN, Marc-Alain. Mysteries of the
alphabet
Fontes secundárias:
DRUCKER, Johanna. The alphabetic labyrinth.
SERRES, Michel. As origens da geometria.
a propriedade nítida
sobre a poeira da textura
aleatória.
39
A invenção da escrita linear, para Vilém Flusser, se deve à
transcodificação do tempo circular em linear, o que
envolve a tradução de cenas em processos. Esta
transformação faz surgir a “consciência histórica”,
dirigida contra as imagens e conseqüentemente contra a
consciência mágica, observável entre os filósofos pré-
socráticos e os profetas judeus. A invenção da escrita
afastaria o homem “ainda mais do mundo concreto
quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar”
(Flusser, 2002, p.10). Com a escrita alfabética, a imagem
polivalente da palavra seria substituída pela letra, esta fixa
e arbitrária. A escrita e sua multiplicidade de funções
(mnemônicas, mágicas) coexistindo com uma
multiplicidade de formas, passa a ter forma única. A
escrita como estrutura autônoma pouco a pouco foi
preenchida pela palavra até se fonetizar. Característica
que, retomando Flusser, possibilitaria a codificação de
planos em retas e a abstração de “todas as dimensões, com
exceção de uma: a da conceituação, que permite codificar
textos e decifrá-los” (Ibid.).
A escrita puramente figurada limita-se à transcrição de
narrativas mais concretas. Isto se deve à impossibilidade
da multiplicação dos signos na mesma proporção das
análises representativas, exigindo analogias cada vez mais
distantes do objeto figurado. Ela é mais propícia, portanto,
à imaginação do que a reflexão. Credulidade e não ciência,
segundo Foucault. Além disso, o signo não tendo relação
intrínseca com a pronúncia da palavra que figura, não
assegura, diz Foucault, que a cada época o som habite a
mesma figura, conseqüentemente a cada mudança de
hábitos ocorre uma mudança na língua. “Quando um povo
possui somente uma escrita figurada, sua política deve
excluir a história ou, pelo menos, toda história que não
fosse pura conservação” (Foucault, 1995, p.129). A
memória oral, por sua vez, trata basicamente do presente,
se preserva alguma coisa do passado é de modo
meramente parcial. Alça-se, então, à história mediante
uma escrita imbricada com a linguagem verbal. A
espacialização da linguagem passa do plano à reta, em
sucessão temporal: como se prescrevesse a lei do tempo,
diz Foucault (Ibid.). É mais especificamente o alfabeto,
inventado pelos gregos, que dá origem à história, ao
possibilitar manipular a relação entre o passado e o
presente. Deste modo, a língua acede a história através de
um sistema de signos decifráveis que faz durar a palavra,
deixando à disposição dos olhos, o que os ouvidos já
teriam deixado escapar.
O homem distancia-se da representação das imagens e
fenômenos e volta-se à representação dos conceitos
(palavras). Com o sistema alfabético, constituído de
pequeno número de signos arbitrários, atingiu-se o nível
combinatório de sílabas capaz de compor qualquer
alfabeto
40
SobrEscrita
significação. Trata-se de uma transcrição de sons e não de
idéias. Com ela é possível a cada descoberta estabelecer
um signo para transmiti-la, o que a escrita figurada não
permitia. O alfabeto favorece, portanto, a prática da
invenção para construir um saber científico/tecnológico. O
pensamento alfabetizado é muito mais abstrato, pensa-se
por linguagem mais do que por imagem. A redução do
texto a uma seqüência de signos abstratos permite que
esta seqüência seja interiorizada como forma de
pensamento independente de uma ação direta. A escrita
alfabética não desenha a representação de idéias, mas
permite que os fonemas se combinem possibilitando
chegar a totalidade da linguagem. Desde então o
desenvolvimento das idéias e da escrita passam a ser
correlatos e trabalham um pelo outro.
O sistema fonético caracteriza-se por entrelaçar dois
registros heterogêneos, o verbal e o gráfico. Ele coloca em
relação modalidades de expressão, a oral e a visual, que se
encontram em campos físicos distintos. O primeiro caso
implica na co-presença de pares, o locutor e o receptor, no
segundo basta um espectador.
Platão, na última parte de Fedro (1997: 274c-278b),
tematizou brevemente a escrita tecendo críticas a seu
caráter de perenidade e de exterioridade. Primeiro, a
escrita permanece não escolhendo o seu leitor. A
comunicação escrita, fixada em um suporte material, foge
ao controle do autor, impossibilitando inclusive uma
eventual explicação. Para Platão, o melhor seria ensinar e
aprender oralmente, através do diálogo, podendo o mestre
escolher o seu discípulo e estar presente com condições de
controlar e esclarecer os seus discursos e promover a
verdade nas almas. Segundo, por sua exterioridade, a
escrita seria uma armadilha para a memória ou um
instrumento do esquecimento, pois mata no pensamento o
exercício da memória, da reflexão. A memória seria, de
acordo com o filósofo, uma consciência e um saber inte-
rior (espontâneo), escrito na alma, portanto, muito mais
difícil de esquecer, diferente do conhecimento externo,
mecânico, derivado da escrita. Somente através da reflexão
e do exercício do pensamento o espírito humano poderia
conhecer a verdade invisível e universal, alcançando o
conceito e a essência das coisas. Na concepção platônica as
imagens sensoriais seriam falsas, fonte de erro, formas
imperfeitas que impedem o conhecimento verdadeiro. O
visível e sua essência não poderiam ser alcançados pelo
visível captado pelos órgãos sensoriais, mas através das
palavras que o sugerem. Assim, os ensinamentos só são
compreendidos por via da oralidade e o aprendizado só se
daria quando se toma pra si determinado conhecimento e
se é capaz de rememorá-lo interiormente, revolvendo a
memória, pois o saber deve ser atributo da alma sem o
desvio da escrita.
41
Alfabeto
Sob este ponto de vista a escrita teria, quando muito,
apelo mnemônico (275a). Ao relacionar a escrita à pintura,
Platão afirma que esta ilude com a sensação de estar viva,
mas quando se pergunta algo não responde (275e). O
escrito seria composto de um conjunto de signos inexato e
morto, que só se anima com a presença do leitor, mas
deste as palavras não podem se defender. Contrapondo a
comunicação escrita à comunicação oral, a primeira não
teria a mesma capacidade de persuasiva e é incapaz de
considerar as características de cada alma. O problema
estaria na duplicação e distância promovida pela escrita, o
que se traduz na ausência do sujeito ao sentido, à palavra.
Para os gregos a escrita é fundada na técnica de repetição
e por este aspecto é negativa, nela a palavra está
aprisionada, fixa, simulando a estabilidade do saber. Em
contrapartida, a palavra oral ‘voa’, não no sentido de
efemeridade, mas por possuir a leveza da alma e pertencer
ao conhecimento vivo e livre, em movimento. A
diversidade das almas se manifesta e o discurso se
desenvolve de acordo com a circunstância das perguntas e
é ordenado em conformidade, “de modo a oferecer à alma
complexa uma oração complexa e elaborada , e discursos
simples à alma simples”(277c).
Na oratória grega o fundamental consiste em encontrar os
argumentos exatos e convincentes do assunto tratado, ao
que eles se referiam como invenção. Isto se desenvolvia
por deslocações lentas, por ‘disposições’ seria a expressão
correta, na qual se ordena e reparte o argumento. E para
que as idéias, as palavras e sua disposição fossem retidas
na memória, era preciso utilizar-se de palavras e frases
com duração cuidadosamente estabelecidas
1
e, ainda, era
fundamental a ato (actio) do orador pelos gestos e
entonação. Considerando-se tais condicionamentos, o
discurso deve ser verdadeiro e persuasivo, o que só
poderia se realizar através da comunicação oral,
estruturalmente superior à escrita, segundo Platão.
Naquele período, século IV a.c., o uso da escrita alfabética
era bastante recente e surgia em contraposição à tradição
da dialética sustentada pela oralidade. O alfabeto, com a
introdução da representação (pois a letra, ao mesmo
tempo unidade distintiva e imitativa, isola e designa um
som da língua), trairia a escrita em seus fundamentos
icônicos (Christin, 2000, p.57). O signo associado ao som
também ocorreria em outros sistemas, mesmo no mais
figurativo de todos, o sistema hieróglifo. Curiosamente
Platão imputa a Theuht, divindade egípcia, a descoberta da
escrita (274d), mas sem que se faça alusão a qualquer
diferença entre os sistemas alfabético e hieroglífico. A
hipótese de Christin é que o caráter figurativo dos
hieróglifos explica o fato de Platão rejeitar a virtude
distintiva da escrita em função de sua “vaidade
1
Observa-se que a medida do
hexâmetro grego, que conhecemos
hoje através dos escritos, estava
intimamente ligada a oralidade.
Interessante lembrar que J.L.
Borges em entrevista ao jornalista
Roberto D’Ávila na TV Cultura
afirma nunca ter abandonado o
verso, pois, assim, poderia
memorizá-los mais facilmente.
42
SobrEscrita
imitativa”(Ibid.). A dificuldade estaria em considerar
valores puramente fonéticos em um sistema dominado
pela transposição analógica que, por sua vez, à primeira
vista, foi deduzido de outro sistema, a pintura. Além disso,
o hieróglifo serviria de modelo a uma arte da memória,
quer dizer, seus laços estariam em conservar lembranças
do passado. No entanto, para Christin, o fato dos
hieróglifos serem signos figurativos não permite deduzir
que sejam imitativos. A iconografia egípcia foi concebida
como um sistema espacial, extremamente complexo, de
repartições e variáveis dos signos, de maneira a permitir a
metamorfose sintática das figuras para que se tornem
signos verbais. Entretanto, a decodificação espacial (por
relações de vizinhança) e a conotação sugerida pelo
suporte (um papiro, uma tumba, um templo) mostram que
o hieróglifo mantém, assim como as escrituras puramente
ideográficas, a necessidade efetiva da leitura visual para
explicitar o valor do signo por estimativas de contexto e,
ainda, uma relação estreita com o suporte como
complemento indispensável. Em contrapartida, o sistema
alfabético, de acordo com Christin, foi o primeiro modo de
escrita a desvincular-se de um suporte específico.
Distinguindo-se do espaço visível e manipulável, o
alfabeto se apresenta como instrumento ‘puro’ de
representação da palavra e, conseqüentemente, seria mais
confiável, visto que se constitui como um sistema de
signos autônomo e totalmente abstrato.
Dissocia-se a palavra da imagem. O alinhamento fonético
do alfabeto descartaria o uso da ‘inteligência visual’ no
processo de leitura, de modo a prender a atenção do
ouvido e não especificamente do olho. O arranjo se dirigia
à sensibilidade acústica, respondendo às necessidades
impostas pela tradição grega da oralidade. O alfabeto, em
sua origem, objetivava a conversão da língua grega oral,
mas ao mesmo tempo tornava a língua um artefato
separado do locutor. Do discurso descritivo da ação da fala
que envolvia o jogo de fisionomia e gestos, e,
naturalmente, um interlocutor, passa-se a um artefato
passível de ser “recomposto, reordenado, repensado, a fim
de produzir formas de declaração e tipos de enunciação
antes indisponíveis – por não serem facilmente
memorizáveis”(Havelock, 1996, p.16). A escrita alfabética
pode ser preservada como memória e, mais do que isto,
estar “disponível para inspeção, reflexão e análise”(Ibid).
O que leva Havelock a designar o novo discurso como
‘conceitual’ e favorável à reflexão, em oposição à fala que
favorecia o discurso descritivo da ação.
No momento em que se pode servir de textos escritos, o
papel da memória, tal como dimensionada na tradição
oral, torna-se limitada, mesmo no ato da oratória quando
se dispõe de notas escritas. Seria então a escrita uma
memória exterior? De certo modo sim, sobretudo quando
43
Alfabeto
se está a discutir uma escrita determinada pelo verbo e
pela ‘lógica’ e, privilegia-se a memória verbal em relação à
visual. Dessa maneira o sistema proposto pelos gregos
procurou alcançar uma espécie de sublimação que renega
ou vela a ‘natureza’ da escrita comprometendo,
particularmente, a potencialidade do próprio sistema
alfabético. Este se revela como uma espécie de duplo
silencioso a partir do qual se pode verificar um detalhe do
discurso, retomar com facilidade a uma palavra. Esse
processo se dá pela ação dos olhos sobre um suporte capaz
de instruir por uma rede de índices materiais e dispor aos
olhos do leitor dados recuperáveis a partir de
determinadas operações. Não é uma operação restrita ao
ato mecânico e ao visual, é também uma operação mental
com conseqüências. O leitor do alfabeto pode construir
uma arquitetura mental, que não consiste em memorizar
de cor, mas em introduzir variações, reconstruir, verificar.
Sem se limitar à função oral, pode-se ensaiar a escrita.
Escrever é contar.
A redução racional do sistema alfabético mostra-se
perfeitamente adequada ao desenvolvimento de leis
cientificas e conceitos. Mas, para que a linguagem sirva ao
rigor da intelecção e à precisa transmissão de informação,
abandonou-se a pregnância sensível dos signos. As
imagens palpáveis, visíveis e audíveis arrefecem em prol
do rigoroso significado intelectual. Pela razão reduz-se a
pluralidade em unidades homogêneas.
A imagem é cifra da condição humana.” (Paz, 1990, p. 38)
Escrita é imagem em cifras.
A construção poética faz ver o (im)perceptível e ouvir o
(in)audível. Explorando o trânsito inesperado dos signos
verbais e não-verbais Duchamp, em L.H.O.O.Q., desloca o
sentido ótico da pintura. O artista hominiza a figura,
encobre o seu sorriso – barba e bigode. O enigma do
sorriso da Gioconda não está mais no tratamento pictórico
de seu rosto, o ponto foi deslocado para fora do quadro, ou
impõe a vibração oculta (não visível) da imagem. É preciso
buscar a imagem acústica da legenda, das letras e não das
palavras, da letra à frase, ler letra por letra, ler as
projeções fônicas - elle a chaud au cul.
Ler é de(s)cifrar.
Duchamp, L.H.O.O.Q., 1919.
47
visível/invisível
No ocidente idealizou-se uma escrita que atingisse
diretamente o sistema fonológico da língua e favorecesse
o alcance puramente semântico do texto. Segundo a
lingüística tradicional, somente a adequação ao fonetismo
verbal constitui uma verdadeira escrita, ou seja, os signos
devem ter uma correspondência exata com a língua. Sob
essa perspectiva predominou a abordagem da escrita
estritamente sobre o critério do fonetismo, investindo-se
num sistema de registro dos pensamentos e dos discursos
verbais de valor fonético, almejando, assim, a abstração
ideal de sua figuração.
Ao privilegiar a palavra, em suas dimensões semânticas/
sonoras, a lingüística ignorou a escrita e as variações que
diferenciam os espaços legíveis, afirmando ser indiferente
a forma do código visual na construção do sentido. A
forma do objeto impresso e a linguagem gráfica do texto
não teriam valor e, justifica-se através do alfabeto este
desprezo. Conseqüentemente, desconsidera-se a
participação na construção do significado os diferentes
modos de leitura e as particularidades dos meios, atribui-
se ao sistema de signos um funcionamento automático e
indiferente às subjetividades. Assim entendida, a escrita é
mero intérprete da linguagem oral – signo de signo – não
constituindo forma própria de expressão, não evocando
diretamente ações e coisas. A confiança nas virtudes do
alfabeto, com seu alto nível de abstração, levaria à
idealização de uma escrita que, independente de sua
materialidade ou espacialidade, tornasse o texto estável
em sua literalidade.
O sistema alfabético é o único modo de escrita que, sob o
modelo da língua, rompe os laços de origem com o visível,
embora este sistema seja herdeiro direto da escrita visual,
ou seja, estranha à linguagem verbal. O alfabeto interage
com a dimensão oral da linguagem, sem tratar-se de
transcrição exata da fala, visto que ele mesmo constitui-se
como linguagem singular. Na avaliação de Anne-Maire
Christin a leitura do sistema alfabético repousa
estritamente na decifração, significando não a palavra,
mas o alfabeto. O processo de decodificação independe da
avaliação semântica do contexto no qual os signos estão
inscritos e da condição material do suporte.
Em sintonia com o caráter instrumental da escrita, os
tipógrafos da revolução impressa empenharam grande
esforço na universalização do caractere pela anulação da
ressonância do traço manuscrito. Perseguiu-se, na idade
clássica, a precisa regulagem dos pretos e dos brancos,
ajuste de intervalos, modulações de linhas, movimentos
verticais e horizontais, enfim toda uma complexa
geometria que objetivava a legibilidade a ponto de revelar
puramente
o conteúdo semântico do texto. As parcelas
dadas deveriam constituir um todo dinâmico a favorecer o
48
SobrEscrita
fluxo numa só direção. A tipografia perfeita não deveria
despertar o interesse estético, pois ao revelar o seu caráter
figural, tornando-se visível, plástica, compromete sua
transparência sígnica, o perfeito funcionamento da letra
no sistema de representação. A composição tipográfica
deveria funcionar como uma bolha de máxima
transparência, perfeitamente redonda e homogênea, para
que o texto passasse despercebido, neutro e, assim, exercer
sua função de instrumento para a difusão genérica da
informação.
O livro passa a condensar em poucas páginas e em
pequeno formato (in-oitavo), graças aos caracteres
tipográficos, grande quantidade de informação. Se antes,
devido às dimensões e peso, eram difíceis de serem
transportados, exigindo quase sempre um apoio para
leitura, o novo formato de livro oportunizaria ao leitor
humanista mantê-lo cada vez mais próximo do corpo,
carregá-lo a qualquer parte, tê-lo na palma da mão. O
objeto (objetivo) final é um volume que deixe de ser
volume, um objeto que deixe de ser um objeto entre
outros objetos, que acessados por gestos mecânicos,
conduza de imediato à textura, ao texto, tendo por fim o
espírito. “(...) mergulho na leitura de seus amores e seus
amores lembram os meus; pensamentos que me recrio no
momento certo. Em seguida, ganho a longa estrada:
entretenho-me com os que passam, peço notícias de seu
país, imagino tantas coisas (...)” (Maquiavel, Apud.
Graton, In: Cavallo; Chartier, 1998 , v. 2, p. 5). Leitura do
livro, leitura de si, leitura do mundo, ocorrência fluida e
natural que depende da dis-percepção dos artifícios: da
escrita, do livro.
“Ora, é de fato um resultado da linguagem fazer-se
esquecer ao conseguir exprimir”(Merleau-Ponty, 2002,
p.31). O fato da escrita se dissimular aos olhos e nos
lançar diretamente ao significado é virtude de sua função
de linguagem. O traço se esvanece na medida em que
adquire a função distintiva de representar ou de significar.
É preciso que a letra se dissipe como elemento visível para
que a escrita se torne legível. Caracteriza a escrita,
portanto, a dimensão material, expressa pelas qualidades
táteis e formais, mas também a dimensão imaterial que
depende da dissipação de sua materialidade para que não
seja obstáculo à representação. Sob a sedução de um livro,
as letras e as páginas desaparecem, dando acesso ao
significado. “O texto primeiro se apaga e, com ele, todo
fundo inesgotável de palavras cujo ser mudo estava
inscrito nas coisas; só permanece a representação
desenrolando-se nos signos verbais que a manifestam e
tornando-se assim discurso” afirmou Foucault (1995, p.94)
em análise sobre a questão da representação na idade
clássica.
49
Visível / Invisível
Roger Chartier, em amplo estudo sobre as sociedades do
Antigo Regime, entre os séculos XVI e XVIII, demonstra
como a ampliação da produção de livros e,
conseqüentemente, da circulação do escrito no período
modificou pensamentos e relações de poder. Em seus
estudos sobre aspectos importantes na operação de
construção do significado efetuado na leitura, Chartier
apresenta como hipótese, além da forma por meio das
quais o texto é recebido, os determinantes históricos, tais
como as variantes dos modos e modelos nos tempos,
lugares e comunidades. A forma do escrito define sentido,
modificando pensamentos e relações sociais. Um texto
ganha novos públicos, usos e estatutos quando muda o
dispositivo e conseqüentemente o seu modo de leitura. A
escrita como imagem concretiza-se na relação suporte/
figura, cuja organização interfere na leitura e em suas
inquietações. A leitura, diz ele, é “sempre uma prática
encarnada em gestos, espaços e hábitos”(Chartier, In:
Estudos avançados 5/11 – USP, p. 178).
*
As palavras que o leitor vê não são as que ele ouvirá”,
assim James Joyce (Apud, Mcluhan, 1997, p. 125) fornece
a chave de decifração de seu livro Finnegans Wake
,,
,,
, no
qual cria longas palavras valise. As junções das palavras e
a ausência de cortes visuais não permitem o
reconhecimento instantâneo da silhueta da palavra,
tornando necessário desmembrá-la através da projeção
sonora para articular-se o universo de relações proposto
pelo autor. A escrita de Guimarães Rosa, por sua
particularidade, é muito mais inteligível quando lida em
voz alta. José Saramago subverte a pontuação alegando
que esta é uma mera convenção da escrita. Próximo da
doutrina platônica, o escritor alega que as palavras sobre o
papel estão mortas, precisando ser animadas pelo leitor,
que ao ouvi-las não depende de pontos nem vírgulas para
compreendê-las. Entretanto, estes procedimentos só se
resolvem na fabricação, no exercício insistente de
inscrição, de operação do suporte até encontrar uma
escrita distinta, própria. Não há exatamente sujeição da
escrita alfabética à linguagem oral, e muito menos existem
textos abstratos ideais separados de sua materialidade. A
cada novo processo, a escrita e a oralidade se afetam e se
revelam em suas particularidades. Pode-se mesmo dizer
que a palavra impressa veio destacar a separação do visual
e do sonoro. As qualidades táteis e formais da palavra
impressa interagem com a dimensão oral, mas desta a
escrita pôde ao mesmo tempo se libertar e servir.
51
paradigmas da legibilidade
Para que a leitura seja fluida, como exige o homem
letrado, o conjunto de signos deve conquistar uma
coerência formal e a letra ser reconhecida por sua
diferença. Os movimentos das hastes ascendentes e
descendentes, a regulagem das entreletras e o espaço entre
as palavras permitem a apreensão, num relance, da
silhueta da palavra.
As alternâncias entre o preto e o branco matizam os
cinzentos gerando ilusões de profundidade. A superfície do
texto, as linhas e as letras perdem a opacidade, dissipam-
se com o fluxo da leitura, “deixando apenas o desenrolar,
sucessivo, do sentido” (Foucault, 1988, p. 26). A letra
tipográfica, que em sua configuração é especialmente
estrutural (linha), é engolfada pelas luminescências –
crominâncias – e transparecem. As cores estão entre o
preto e o branco, são sombras ou deficiências da luz,
ensina Goethe.
Entre a luz e a sombra, sob a superfície que se oferece ao
olhar, especula-se o texto.
(Martín, 1974, p. 82)
os cinco erros da visão e sua correção
52
... do diagrama da página
O equilíbrio instável no
jogo entre os pretos e os
brancos, entre o dentro e o
fora.
A precisa regulagem ...
... das entre-letras
Fred SmeijersFred Smeijers
... das entre-palavras
Josef Mülller Brockmann
... das entre-linhas
Jan Tschichold
53
Palavra reproduzida, acima em tipografia
Garamond (1545), em versão atualizada
pelo estúdio Adobe, e abaixo em Futura
(1927). A primeira apresenta regularidade
e equilíbrio de distribuição das áreas pretas
e brancas. Desenho favorável à leitura
contínua e fluida. No segundo exemplo
ocorre o inverso, há irregularidade entre os
cheios e vazios, o que explicita a presença
do traço da letra. A Futura seria mais
propícia à estetização e à iconização da
palavra, como por exemplo, em cartazes e
logotipos.
Pela modulação da linha assinala-se os
movimentos verticais (linha do tempo),
que devem estabelecer o compasso, por
quebras rítmicas, ao fluxo (horizontal) do
olho.
Forma e contra-forma. A intensidade do
branco no olho da letra e seus matizes nos
espaços intermediários.
Emil Ruder
Os movimentos ascendente
e descendente das hastes
nas letras minúsculas
dinamizam a configuração
da palavra e particularizam
sua fisionomia.
As serifas fazem as
passagens de uma letra à
outra e acentuam os limites
das linhas, a quebra do
movimento. Assinalam o
vinco na dobra da linha.
Estão nos extremos das
ondas e indicam seus fluxos
e refluxos. As serifas são as
articulações entre os
membros da palavra im-
pressa.
“Sabemos – ai! – que à literatura sói preferir a
tipografia.
De fato, o que primeiro chama atenção na obra de
Cummings (...) são as travessuras tipográficas: os
caligramas, a abolição dos sinais de pontuação.
O primeiro e muitas vezes o único. O que é uma
pena, porque o leitor se indigna (ou se entusiasma)
com esses acidentes e se distrai da poesia, por vezes
esplêndida, que Cummings lhe propõe.”(Borges,
1999, v. 4, p. 358)
“Nos hábitos tipográficos de Valery restam ainda
alguns rastros desse comércio juvenil com os
simbolistas: uma ou outra charlatanice de reticências,
de itálicos de letras maiúsculas.” (Ibid, p. 283)
“É uma irreverência falar do espaço e do tempo, já que, em nossa mente,
podemos prescindir do espaço, mas não do tempo. (...) Um mundo de
indivíduos. De indivíduos que podem comunicar-se entre si, (...), que
podem ser milhões e que comunicam por meio de palavras. Nada nos
impede de imaginar uma linguagem tão complexa, ou mais complexa
que a nossa – e por meio da música. Quer dizer, poderíamos ter um
mundo em que nada mais existiria senão consciências e música. Poder-
se-ia objetar que a música necessita de instrumentos. Mas é absurdo
supor que a música em si necessita de instrumentos. Os instrumentos
são necessários para a produção da música. Ao pensarmos em tal ou qual
partitura, é possível imaginá-la sem instrumentos: sem pianos, sem
violinos, sem flautas, etc.” (Ibid, p. 231)
“Borges tinha o olhar de um míope, em sua
obra se vêem linhas quase invisíveis que, ao
nos aproximarmos, ganham sentidos
múltiplos. Há uma foto onde se vê Borges
lendo, ele tem o livro colado à sua cara. Esse
movimento é o que produz a leitura de seus
contos. À medida em que nos aproximamos,
tudo parece crescer, os signos mudam, o
texto se transforma. A literatura, diria
Borges, é sempre uma questão de escala.”
Ricardo Piglia (In: Folha de São Paulo, 27/
12/2003)
Manuscrito do século XIII. O comentário é feito em forma de glosas dispostas em torno do texto. O texto a
comentar aparece em Gótico e o comentário em cursiva, diferenciando níveis de autoridade, conforme uma
tradição estabelecida nos séculos XI-XII. A composição da página já expressa uma preocupação com a
rapidez tanto da redação como da leitura.
57
manuscrito
O percurso da escrita alfabética em direção à
‘transparência’ de suas formas está organicamente ligado
às mudanças nas práticas de leitura. Até a Alta Idade
Média a leitura dos manuscritos era restrita. Os livros
eram pouco lidos, embora as suas transcrições fossem
realizadas exaustivamente, na maioria dos casos como ato
de penitências impostas aos monges. A prática da escrita
voltava-se à reprodução de grande número de textos
destinados a serem guardados como bem patrimonial e
não espiritual. Os manuscritos, muitos deles ricamente
ilustrados e encadernados, serviam para ornar os palácios
e ampliar os tesouros da igreja e não se destinavam à
circulação. Dispostos em estantes os livros restavam
desprovidos da leitura e, portanto, do ato dinâmico que os
configura e lhes dão significado. O que os condenava a
uma existência puramente virtual. Seus conteúdos eram
sabidos muito mais por comentários, o que contribuía para
o aumento do valor material do livro. A atividade de
leitura restringia-se não só a um número reduzido de
pessoas, como também a um número reduzido de títulos;
lia-se em geral as sagradas escrituras. Desse modo a
prática de escrita, extensiva a textos de natureza variada
intencionando conservá-los, e a prática de leitura
estariam, de certo modo, separadas.
A configuração destes textos reflete o descarte do ato de
ler. Sem espaços em branco, sem separação de palavras e,
ainda, sem ortografia, pontuação ou gramática estáveis, os
manuscritos impunham grande dificuldade de
compreensão ao leitor. A construção gramatical dava-se de
acordo com o valor individual de cada escriba e ao leitor
cabia a tarefa de acrescentar ao texto sinais e marcas para
facilitar sua análise. A leitura em voz alta, característica
do período, não objetivava somente o alcance de uma
platéia. A oralização auxiliava a compreensão do texto,
facilitando a distinção de palavras e de frases. Essa
distinção dá-se pelo que o leitor ouve e não pelo que vê.
Na Alta Idade Média, grosso modo, o leitor lia soletrando
as palavras, buscando o sentido de cada uma, próximo do
que ocorre hoje quando se lê uma língua estrangeira
pouco familiar ou no período de alfabetização. Tomava-se
cada palavra como entidade separada do discurso, para
finalmente mussitar uma solução.
A partir dos séculos XI e XII inicia-se uma grande
transformação nos modos de escrita e de leitura, o que se
deve fundamentalmente à formação das cidades. Os
feudos concentravam o poder econômico e político nos
castelos que, estrategicamente situados, permitiam ao
senhor controlar, panoramicamente, suas propriedades e
súditos à volta. O universo feudal caracterizava-se pelo
poder centralizador e pela estrutura estanque, de poucos
fluxos. Uma nova dinâmica foi introduzida pela
urbanidade que teve origem a partir da reunião de burgos.
58
SobrEscrita
O desenvolvimento desses espaços era intensificado pelas
atividades de comércio e de produção, o que representava
um espaço de circulação, de trocas de idéias e de
mercadorias. Diferente dos feudos, a cidade estenderia seu
poder ao exterior, controlando sua circulação através das
muralhas, mas mantendo a porosidade e a
interdependência entre ela e os subúrbios, entre ela e as
outras cidades. A cidade configurava-se como uma
encruzilhada. Espaço de confluência intensificador de
novos fenômenos culturais e sociais, a provocar a ruptura
das constituições sagradas impostas pela igreja e pelo
poder senhorial, configurando nova divisão social e o
desejo de igualdade. Nesse ambiente surgiu a
universidade, que, embora administrada pela igreja, teriam
acesso a ela pessoas de origens diversas e não
exclusivamente religiosos ou nobres. O ambiente
universitário e os ambientes político e econômico
compunham os três principais espaços da cidade medieval.
Nestes trabalhavam profissionais como juizes, notários,
advogados, artesãos e docentes. Mas, como é característico
de qualquer configuração social/urbana, haviam os
excluídos do universo social desejado, o que confronta
radicalmente o esforço de ordem da Alta Idade Média
onde cada qual deve ter sua ocupação e seu lugar. Entre
estes personagens errantes estariam os chamados
Goliardos, que, sem recursos e sem domicílio fixo,
formavam grupos de estudantes pobres. De acordo com
Jacques Le Goff (2003, p.48) os goliardos seriam produtos
da mobilidade social urbana característica do século XII
que partiam para uma aventura intelectual de cidade em
cidade, de universidade em universidade, em contato com
diversos mestres, recolhendo migalhas de conhecimento,
vivendo de jograis e mendicâncias. Estes personagens são
exemplos de imagem de um universo de circulação, onde
se entranham linguagens e povos de origens distintas, a
exigir o esforço de organizar, administrar a sociedade pela
comunicação.
Neste movimento urbano, de estruturas determinadas e
rupturas, é que surgem os intelectuais ou os chamados
escolásticos, que exerciam o ofício da pesquisa e do ensino.
O intelectual medieval é um profissional, tal como outros
na divisão de trabalho estabelecida nas cidades, com suas
técnicas e materiais básicos e tal como um mercador é um
vendedor, um “vendedor de palavras” (Ibid.). A prática de
leitura dos escolásticos (e suas atividades correlatas como
o estudo, o comentário e o sermão) impôs a reestruturação
do texto escrito. Nesse novo contexto germinou a ciência
da linguagem, necessária para que se regule a definição do
conteúdo da palavra, suas correspondências às coisas que
significa. Esboça-se uma construção lógica e instrumental
da linguagem, uma gramática regulada facilitadora das
relações universais entre povos. A escrita muda para se
adaptar à classe dos letrados e à nova configuração social e
59
Manuscrito
econômica. A otimização do ato de escrita e de leitura se
deu com a retomada da letra cursiva. Para facilitar a
atividade do leitor, o escriba, introduz espaços claramente
visíveis entre as palavras, recorre às abreviações para
aumentar a velocidade de leitura, divide o texto em
colunas para facilitar a percepção da linha, sinaliza as
entradas com o uso da cor e a forma das letras para
orientar a localização de determinada informação, define
margens e entrelinhas. Enfim, compõe-se o texto de forma
mais regular e vislumbra-se a interação visual entre o
leitor e o livro. Houve no período expressiva
popularização dos livros, que passaram a ser instrumentos
de uso cotidiano. Para que pudessem ser freqüentemente
transportados, os livros tiveram seu formato diminuído.
Com um número menor de iluminuras e miniaturas
deixam de ser objeto de luxo.
A composição da página dos livros, com grandes margens,
previa os comentários em forma de glosas marginais, que
procuravam destrinchar o texto ao buscar o significado
das palavras até chegar à compreensão das sentenças. O
leitor ampliava o texto introduzindo acréscimos entre as
linhas do texto inicial. O efeito sinestésico dos diversos
exames resultava em textos circundados de glosas,
abreviaturas e comentários de vários níveis. Junto às
transformações de apresentação do texto houve também
mudança nas convenções gramaticais, o que envolvia o
ordenamento das palavras, facilitando a veiculação das
idéias. Outro caráter do surgimento de novas práticas de
leitura seria a introdução, por volta do século XIII, de
índices relacionados à numeração de páginas e a distinção
das diversas partes do texto facilitando o acesso às
informações.
Mcluhan, em diversos de seus escritos, insiste nas
vantagens das atividades relativas aos manuscritos
medievais frente à cultura impressa, sobretudo no que se
refere à oralidade. Para ele a filosofia escolástica se
desenvolvia por meio de debates orais animados por
comentários múltiplos sobre os textos, levando em
consideração todas as coisas, possibilitando a abordagem
dos assuntos por diversos ângulos. Mcluhan pressupunha
que a forma oral conduzia ao enciclopedismo e não ao
‘especialismo’ surgido com a imprensa. Nos textos
medievais, afirma ele, a palavra mantém sua original
associação com o som, provocando a memória sonora,
audiotátil e não visual. Os debates seriam propícios à
progressão do pensamento e a fluidez sinestésica de idéias,
o que se comprovaria, segundo esse autor, com a
observação das páginas dos livros medievais impregnadas
de textos acrescentados nas entrelinhas e nas margens.
De fato a cultura oral, por sua dinâmica, é prenhe de
aforismos, aliterações e sentenças entrecortadas.
60
SobrEscrita
Entretanto, a leitura pública não instigava
necessariamente o debate, como sugere Mcluhan,
representava modos de publicar os textos. Com a leitura
pública podia-se alcançar um número de pessoas inaptas à
leitura. Já entre os escolásticos o ditado possibilitava ao
estudante reproduzir os livros para tê-los disponíveis e,
até mesmo para comercializá-los. As aulas dedicavam boa
parte do tempo à produção de textos. Espaçadamente
escritos, permitiam os comentários marginais que, em sua
maioria, eram resultado das interpretações ditadas pelo
mestre. Ainda que estas atividades resultassem em
animados debates, Mcluhan desconsiderava que elas
pudessem funcionar como fator de pressão para cristalizar
idéias, conservar opiniões, ao contrário de despertar o
pensamento crítico e inventivo.
Potencialmente os textos medievais, determinados pelo
caráter multiforme dos escribas, é que apresentavam
possibilidades de quebras de consenso e não o embate oral.
Neles a ordem se baseava na própria utilização, possuia-se
certa liberdade para atribuir sentido às palavras, o termo
se definia à medida que o pensamento avançava revelando
a possibilidade de múltiplos significados. A instabilidade
intrínseca destes textos, tanto gramatical como semântica,
permitia grande liberdade de interpretação. Neles o leitor
se deparava com sentenças curtas e soltas, convivendo com
a ambigüidade e encontrando espaço para permutação e a
livre associação. As palavras são assimiladas como
entidades separadas a desdobrar-se nas relações ocultas
sem respostas únicas ou verdades. De tal hipótese pode-se
dizer que o debate serviria para estabilizar e unificar as
leituras possíveis, ou seja, cerceá-las (ou melhor seria
dizer orientá-las?) e não potencializá-las.
É o surgimento da leitura individual e silenciosa, ainda na
Idade Média, que viria a encorajar o pensamento crítico
“contribuindo para o desenvolvimento do ceticismo e da
heresia intelectual”(Saenger, In: Cavallo, Chartier, V. 1,
1998, p. 162). A leitura privada propiciaria à atitude
meditativa e interiorizada. Mas não havia ainda uma
separação do sentido visual em relação ao sonoro, como
ocorreria com o advento da imprensa. De fato, a nova
configuração da página, com diagramas visuais
orientadores de leitura e ilustrações esquemáticas, que
interagiam com o texto, vieram a facilitar a decifração do
manuscrito visualmente, mas ainda assim, a leitura era
essencialmente acústica. Lia-se com os lábios, ruminando
as palavras (ruminatio) e com os ouvidos. Participava do
ato de ler todo o corpo e o espírito. Não há ainda
distanciamento do corpo em relação ao texto. O habeas
corpus do leitor, ao qual se refere Michel de Certeau
(2002, p. 272), a acompanhar o texto apenas pelos
movimentos oculares, só viria mais tarde.
61
Manuscrito
A relação entre os sentidos e o caráter tátil presente no
processo de leitura medieval apresentada por Mcluhan é
de especial interesse. A descoberta pelos escolásticos de
meios visuais para traduzir graficamente as relações não-
visuais de força e movimento estava em completa e radical
divergência com o positivismo textual do humanista”
(Mcluhan, 1977, p. 154). No sistema de produção artesanal
da Idade Média reconhece-se o valor individual de cada
alma. Na igreja gótica, freqüentemente citada como o
‘livro do povo’, encontra-se em cada ornamento a
expressão particular de seu artífice. O resultado é que
cada elemento tem potência de expressão. Os elementos
repetem-se, mas em ação livre, em movimentos
descentrados. Seria este tipo de atividade artesanal que
John Ruskin viria a defender no século XIX, ao mesmo
tempo em que lançava críticas veementes à produção
mecanizada na qual, segundo ele, o operário se submete a
uma inteligência superior
1
, se transformando numa mera
ferramenta animada. Sob as condições da atividade
artesanal, o que inclui o texto manuscrito, o papel do
autor é vago. Cada homem se afirma como um artesão
que cria e transforma. Cria com Deus, cria com a
natureza. Homem artífice. O processo de produção decorre
de tendências naturais do homem medieval e resulta num
corpo orgânico de luminescências estelares. Não há um
espaço racional único onde cada coisa se encaixa, as coisas
criam seu espaço e expressam-se como unidade, mas não
se desconhece a relação. A concepção do espaço (de uma
igreja, de uma tela ou de uma página de livro) é em
princípio o de uma fronteira entre o mundo dos homens e
o do invisível (da aparição). “Luz através” afirmou
Mcluhan e não “luz sobre”. Um conjunto de figuras
disseminadas espacialmente, que fazem os olhos vibrarem
em movimento diáfano ao infinito. Para além dos astros,
onde o espaço deixa de existir, acreditava o homem medi-
eval, onde não existe o tempo, não há seqüência.
Dissociação entre corpo e aparência – através da carne.
“(...) o Verbo veio ao mundo através de Maria, revestido pela carne; e
ver não era compreender; todos viram a carne; o conhecimento da
divindade foi dado a uns poucos eleitos. (...) a letra aparece como
carne; mas o sentido espiritual que ela encerra se percebe como
divindade. (...) Abençoados os olhos que vêem o espírito divino através
do véu das letras.”(Orígenes, Apud: Ibid, p. 152)
1
Roland Recht (In: Duby; Laclotte,
1998, p. 207) demonstra que até
meados do século XIII o desenho
arquitetônico não era utilizado. Ou
seja, não havia a figura do
arquiteto como conceptualizador,
determinando previamente o plano
do edifício, através da expressão
racional do desenho, e distribuindo
os papéis no interior do estaleiro.
“Os arquitetos eram , pois,
sobretudo práticos, presentes e
ativos no estaleiro, no meio dos
outros corpos de ofícios”. Os
desenhos existentes não eram
relativos “ao processo de
construção, mas destinava-se a
consignar as grandes linhas de um
plano que o abade devia respeitar”
(Ibid.)
62
SobrEscrita
Entre os escolásticos da Idade
Média o livro se transformou
num instrumento de trabalho,
estabelecendo-se ao mesmo
tempo como uma máquina de
leitura (Valéry) e uma máquina
de pensar (Borges). Havia uma
espécie de produção coletiva do
livro. A rigor não se diferenciava
consumidor e produtor, leitor e
autor. No manuscrito
reproduzido acima encontra-se
numa mesma página, um texto,
uma glosa interlinear e uma ou
duas glosas marginais. O início
de cada glosa é indicado por um
colchete, o nome abreviado do
glosador e a palavra glosada. No
alto e na base da coluna coloca-se
uma marca remetendo os
diversos fragmentos de glosas,
uns aos outros. A mancha do
texto normalmente apresenta
duas colunas pequenas e duas
grandes, mas o escriba não
hesitava em traçar novas colunas.
A adequação perfeita dos diversos
elementos, apesar de realizados
por mais de uma pessoa e em
momentos diferentes, se deve às
convenções fixas e estáveis da
época. Cada um sabia como
intervir e como obter
determinado resultado: colocação
do texto, da ilustração, da
apresentação gráfica. O livro
adquire neste momento uma
estrutura que integra os
elementos da escritura e da
leitura. A diagramação não era
meramente uma questão estética,
mas uma disposição mais eficaz
para o exercício intelectual da
escrita e da leitura. Compreendia
todo um sistema de convenção de
pontuação, de abreviação, de
signos; hierarquia de estilos de
escritura e de suas proporções em
relação aos formatos; divisão de
capítulos e de alíneas.
Havia um trabalho prévio à
transcrição e à ilustração dos
manuscritos. As divisões de
colunas e linhas eram
cuidadosamente traçadas para
guiar a mão do escriba. Especula-
se que esta prática surge com a
utilização do pergaminho, já que
a fibra do papiro dispensava o
trabalho de traçar as linhas.
Isaias e Jeremias, século XIII.
63
Manuscrito
Alguns livros deveriam ser
ricamente ornados e ilustrados. O
livro reproduzido acima era
destinado a uma encomenda real.
Este livro deveria receber ainda
miniaturas e iluminuras como
indica os espaços deixados no
esquema da diagramação,
excepcionalmente arejado. O
texto aparece em duas colunas
estreitas e as glosas são dispostas
nas colunas laterais devidamente
identificadas com sinais na parte
superior da coluna. A caligrafia é
mais regular e cuidada.
Ética e Politica de Aristóteles, século XIV.
Máquina de leitura apresentada por Agostino Ramelli, 1588.
65
Com a imprensa, a regulamentação do fluxo linear da
linguagem impressa permitiria o ganho de velocidade da
leitura, caracterizando-se pela objetividade e ordem da
forma. A concepção do livro impresso, pelo próprio efeito
da duplicação, e a ampla organização e difusão de textos
passariam a exigir critérios de unidade e coerência a partir
do exercício da análise textual, ordenamento alfabético ou
indicial, paginação, etc. Procedimentos de organização que
resultam de duas atividades simultâneas: 1) a atividade
combinatória de informações com o cruzamento de textos
diversos, o que na época derivava da diversidade gerada
pelo intercâmbio transcultural; 2) a uniformização e
padronização de tradições divergentes e contraditórias sob
critérios de unidade, coerência e harmonia. Ambas
envolvem procedimentos característicos da atividade
científica: comparação e classificação, a gerar novos
sistemas de pensamento fundados na indução e dedução,
meios e fins, linearmente combinados.
A lógica de organização textual afetaria e incentivaria o
surgimento de novos sistemas de pensamento e novas
ciências. Ainda que para os cientistas modernos o
desenvolvimento da ciência se desse, não através da
leitura de textos, mas pela observação direta do ‘livro da
natureza’ preferindo serem retratados segurando plantas e
aparelhos de observação, ao invés de livros, o método de
construção do texto e do conhecimento científico na
renascença se assemelha. O erudito humanista empreende
a leitura extensiva de diversos livros, tendo em vista a
padronização das diversas versões dos textos manuscritos
em diferentes tempos a serem reunidos num único exem-
plar impresso. Para a consulta da ampla gama de livros
simultaneamente, inventa-se a partir do século XVI
aparelhos para facilitar o trabalho literário. O engenheiro
italiano Agostino Ramelli publicou, em 1588, um livro
sobre máquinas, no qual descreveu e ilustrou “uma bela e
engenhosa máquina, muito útil e conveniente para as
pessoas que têm prazer no estudo”(Ramelli, Apud:
Manguel,1999, p.155). O engenho possibilitava a
disposição de livros abertos numa roda em posição vertical
a ser girada sob o comando do leitor, recuperando com
rapidez uma ou outra informação, podendo assim
entrecruzar referências, aprofundar a discussão de
pormenores e mapear as similitudes e distinções. Do
mesmo modo no exercício das ciências naturais, se
buscava a aproximação entre as diversidades, a atração das
matérias umas às outras e as relações estabelecidas entre
duas coisas ou lugares. O objetivo era fazer com que os
elementos de tempos e espaços distintos circulem em um
veículo que os inscreva e os torne acessíveis aos olhos de
todos. Ilustra bem o intento o exemplo dos pássaros
empalhados expostos em galeria do Museu de História
Natural de Paris analisado por Bruno Latour (In: Baratin;
Jacob. 2000, p. 25). Trazidos de diversos locais do mundo
impresso
66
SobrEscrita
e épocas distintas os pássaros são imobilizados pelo
empalhamento, preservados e correlacionados uns aos
outros e apresentados ao visitante, classificados “por um
fino jogo de escritas e de etiquetas, (...) por um sistema
retificável de prateleiras, de gavetas, de vitrines” (Ibid, p.
26). Retirados do caos e da dispersão natural onde viviam,
destacados da vida, cuja dinâmica e fenômenos são de
difícil figuração e escapam aos dispositivos da visão, os
pássaros passam a estar disponíveis à comparação e à
denominação característica. A ciência natural estabelece
recortes visíveis em elementos que se encontram
representados confusamente por funcionamentos
simultâneos para oferecê-los analisados dentro de uma
ordem de descrição perfeitamente clara. Dispõe-se um
quadro das variáveis da descrição num esforço de
classificação e análise das identidades e diferenças filtradas
dos traços comuns e das superfícies visíveis. Para tanto, os
elementos devem se encontrar ali justapostos,
‘purificados’, excluídos das incertezas e do embaraço de
seu habitat, para encontrar uma descrição. O esforço é de
por em ordem o conhecimento e representá-lo num
sistema, no qual qualquer elemento pode vir a localizar-se.
O naturalista persegue a visualidade estrutural ao “pousar
pela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas e
transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras
lisas, neutralizadas e fiéis”(Foucault, 1995, p. 145). A
operação da ciência poda e escamoteia a autonomia e as
qualidades dos objetos para unificá-los. Submete a
realidade em sua pluralidade à unidade homogênea,
segundo distribuições ordenadas sob critérios de
aproximações e afastamentos. Ao procurar a distinção do
objeto, a ciência o separa do caos natural através do seu
desenraizamento. Exilado que está o objeto da coexistência
dinâmica e controladas as contradições do que poderia ser,
próprias da potência dos seres dotados de vida, a ciência
proclama o que é.
*
A visão do observador é pressuposta panótica, o
reconhecimento pleno sobre a diversidade concorre à
padronização. Na pintura convenciona-se a perspectiva
dispondo todos objetos num espaço tridimensional
homogêneo contínuo, global. Que se compare, a título de
exemplo, as imagens produzidas por Giotto e a pintura
renascentista. Em Giotto, apesar das figuras já
apresentarem volume e fisicalidade, os pontos de fuga são
independentes, cada elemento cria seu próprio espaço,
evidenciando-se o valor da interdependência do espaço e
das figuras em sintaxe relacional característica do
pensamento icônico medieval. Já na pintura clássica as
imagens apresentam todo um mundo enquadrado nas leis
do movimento retilíneo, ou seja, estando todos os
elementos inseridos num espaço racional único e contínuo.
67
impresso
O objetivo era transmitir um quadro de referência
espacial global e uniforme. Transformação semelhante
ocorreu no modo de representação dos mapas
desenvolvidos a partir do século XV. Os primeiros grandes
navegadores não contavam com mapas que oferecessem
um uniforme quadro de referências do mundo.
Utilizavam-se de mapas manuscritos irregulares e
multiformes, ou mesmo, navegavam por espaços ainda não
cartografados, tendo que unir e tecer suas errâncias,
costurando o mundo conhecido ao desconhecido,
recompondo-o. Não é por outro motivo a surpresa causada
pela descoberta da América, ou o fato de se pensar que se
tivesse chegado às Ìndias. A América não cabia naquele
mundo, era preciso recompor e ampliar a teia. Procurou-
se, a partir de então, o ‘fechamento do espaço geográfico’
mediante a troca de informações de cada investida
marítima. As informações conquistadas por observação
direta, eram planificadas em gráficos de coerência ótica
(resultante da classificação de um sistema de signos e
grupo de códigos determinados), que representassem uma
situação dada e que permitissem comensurar o mundo e
transmiti-lo globalmente aos olhos. Mediante coleta
sistemática de dados desenhou-se um quadro de
referências espacial uniforme e global do mundo, ao
contrário das múltiplas imagens encontradas nos mapas
medievais.
Havia, portanto, o desejo de elisão e abarcamento de todas
as informações. Atingir todos os níveis de conhecimento e
compilá-los implicava na “tensão entre o exaustivo e o
essencial”(Chartier, 1998, p.73), que resulta em arbitrar e
restringir o que tinha excelência de cultura, determinar o
isto e o aquilo do mundo que merecia acabar num livro.
São diversos os exemplos de livros publicados, sobretudo
entre os séculos XVII e XVIII, nos quais se empreendia a
tarefa de reunir todos os saberes (muito embora a própria
multiplicação dos saberes, esta instigada pela efervescência
de títulos publicados pela imprensa, não propiciasse
qualquer esperança de esgotamento). O exemplo mais
famoso é a Encyclopédie de D’Alembert e Diderot
realizada no século XVIII.
O texto enciclopédico deve ser simultaneamente legível e
de referência. Primeiro, o conceito de legibilidade, de
leitura contínua e fluida, implica na própria concepção de
razão: ordenamento do discurso com sentido, clareza,
medida e proporção de modo a torná-lo compreensível a
um amplo espectro de leitores. O texto deve encontrar a
exatidão dos termos com concisão e, ao mesmo tempo, ser
completo. Segundo, a enciclopédia é justaposição de
elementos parciais que ao mesmo tempo em que postula
uma homogeneidade, deve conquistar uma organicidade.
Ela deve facilitar a consulta, disponibilizando qualquer
dado a partir de determinadas operações, permitindo uma
68
SobrEscrita
leitura não-linear. Deste modo o sentido do discurso não
pode ficar isolado, devendo estabelecer uma relação com a
totalidade, visto que os significados se entrecruzam.
Conexões que o termo enciclopédia já evoca. Uma
exposição alude a outros conhecimentos implícitos e assim
sucessivamente, exponencialmente às figuras do cosmos.
Como chegar à unidade, à coerência e à homogeneidade?
Como articular as multiplicidades? Projetos anteriores ao
de D’Alembert e Diderot procuravam estabelecer uma
disposição orgânica das matérias ao procurar reproduzir a
ordem do mundo segundo critérios de analogia, de
subordinação etc., tal como compreendidos e idealizados
no período de produção. A referida Enciclopédia, em
contrapartida, introduz como novidade o uso do alfabeto
como elemento de ordem. Elemento neutro e arbitrário e
por isso eficiente dispositivo de localização das
informações por sua universalidade, sua ordem é ensinada
no primeiro momento de alfabetização e é idêntica em
todas as línguas que do alfabeto se utilizam. D’Alembert,
para estabelecer a conexão entre as matérias, define um
sistema de classificação baseada na tripartição de Bacon:
memória, imaginação e razão, respectivamente história,
poesia (artes em geral) e filosofia (atividades científicas).
Na Enciclopédia o caráter indicial do livro ganha
potencialidade. A compreensão de sua estrutura – índices
de assuntos, ordenação alfabética, blocos de texto inter-
relacionados – permite o acesso a assuntos diversos que se
conectam a partir de ações que integram a informação: o
folhear, a localização da página, o movimento da vista na
página da esquerda para direita nas linhas e do alto para
abaixo na ordem alfabética. A entrada e a saída podem
dar-se de qualquer ponto respondendo à dinâmica de
leitura e à sinestesia do pensamento.
No entanto, ainda que o primeiro momento de análise de
uma situação se dê por conexões não lineares, a análise
desempenhada pela linguagem manifesta-se
inevitavelmente pela ordem sucessiva dos signos verbais.
Para tornar possível o pensamento científico manifesta-se
a necessidade de uma língua perfeitamente analítica. Nela
a representação do todo não é dada a um só instante,
desdobra-se parte por parte no tempo, linearmente. Por
esse motivo a gramática assume fundamental importância
na idade clássica, tratando da análise dos valores
representativos da sintaxe e do ordenamento dos
vocábulos, pontuação e catalogação. A Retórica define a
espacialidade da representação, tal como ela nasce com a
linguagem; a Gramática define para cada língua a ordem
que reparte no tempo essa espacialidade”(Foucault, 1995,
p. 99).
A organização da matéria na página impressa deveria
oferecer, pela estrutura, o desdobramento linear da
linguagem. A imprensa possibilitou apresentar
69
impresso
visualmente textos e gramáticas uniformes. O que se
estende à uniformização do léxico, ainda instáveis na era
medieval, e à publicação de dicionários e livros de
referência.
Mas, ao mesmo tempo em que a impressão retínica era
intensificada, o tipo móvel em metal revela ao homem
ocidental a autonomia da letra como unidade formal, não
se restringindo, como signo, a representação gráfica de um
som da língua. Se já a partir do século XII a adoção de
palavras separadas despertaria o interesse pela composição
do texto passando os autores a escrever de próprio punho
as suas obras, aperfeiçoando estilo e a composição das
frases, a objetividade da forma e a mobilidade da letra na
tipografia apresenta leis ainda distinta daquelas suscitadas
pela prática do manuscrito. A manipulação da caixa
tipográfica revela a natureza estatística da linguagem
(basta observar o espaço dedicado a cada letra numa caixa
de tipos) e obriga a reconhecer que os brancos têm a
mesma materialidade da letra (peças de metal são
inseridas entre as palavras e nas entrelinhas). Isto
concerne a um jogo específico da linguagem escrita que se
refere às suas margens, seus brancos e seus silêncios,
particularidade que só viria as ser amplamente explorada a
partir do século XIX, pois no primeiro momento da
imprensa se procurou chegar a uma forma canônica dos
livros. Para Roland Barthes (2000) a homogeneidade da
ideologia burguesa, que imperou até meados de XIX,
impôs uma escrita única e instrumental, puramente a
serviço do conteúdo. Nas escritas clássicas, literalmente de
classe, afirma Barthes a universalidade da linguagem se
constitui como um bem, ou melhor, um ideal comum. O
texto escrito e a configuração do livro teriam função
reguladora e modeladora de condutas. Exercia-se sobre os
textos censura e controle para que não colocassem em
questão a ordem ou a moral. Para tanto constitui uma
semântica perene e sólida e, sintaxe com princípios de
uniformidade. Molda-se a frase no intuito de moldar e
conter a interpretação do leitor. Não havia forma que
pudesse ser apropriada, (re)cortada ou trabalhada de modo
diferenciado e individual. Evitava-se, no seu uso, a
ambigüidade de suas funções. O objetivo de simplificação,
precisão e de economia do sistema de escrita, que
conheceu uma espécie de culminância na idade clássica,
perderia consistência a partir da segunda metade século
XIX. Ou seja, após objetivar o absoluto controle da
entropia na escrita e de seu uso quase exclusivo através do
livro, ela é lançada às ruas e se vê impregnada novamente
por metáforas, pela figuração e pela iconização, questões
estas que serão retomadas mais adiante.
O homem a medida de todas as coisas
A imagem do homem como uma espécie de microcosmo no centro de um universo que
ele reproduz. O homem é a própria natureza e pode transformá-la com sua atividade.
Francesco Di Giogio Martini ,1480.
Leonardo da Vinci, 1512.
71
Na Renascença iniciou-se a investigação sistematizada
para concepção de caracteres adequados às
particularidades da impressão em metal. Os humanistas,
inspirando-se na elegância das letras lapidares romanas,
irão buscar a regularidade e objetividade da forma por
meio do rigor da geometria.
A atividade de composição dos caracteres móveis ressalta
duas propriedades da escrita, pouco observadas no
manuscrito: a) a letra como entidade independente, um
signo como unidade formal autônoma, do qual deve-se
fixar em metal seus traços; b) o uso consciente dos
espaços em brancos que na caixa tipográfica são
elementos físicos como os outros signos.
Neste período procurava-se inter-relacionar todos os
aspectos do conhecimento e o homem renascentista
exercia simultaneamente diversas atividades: pintor,
gravador, geômetra, arquiteto, escritor e teórico. A
concepção dos signos responde a este contexto, no qual
articula-se em cada elemento do mundo, na mais singela
das formas, “o signo do homem, a mão de Deus e a
unidade prodigiosa do universo” (Cohen, Apud, Massin,
1970, p. 23).
homem letra
Coluna de Trajano
As inscrições lapidares, nas quais o rigor e
a funcionalidade eliminam quaisquer traço
de subjetividade, expressam em sua
imagem a organização social da Roma
antiga. São inscrições das leis. O cidadão
pertencia inteiramente ao Estado – seus
bens, seu corpo, sua alma – nada restava de
liberdade individual. Cidadãos disformes e
defeituosos deveriam ser eliminados.
Fragmento da coluna de Trajano
Cursiva Romana
Encontra-se também entre os Romanos a
ancestral das letras minúsculas
desenvolvidas pela tipógrafos da revolução
impressa, a semiuncial. Criação do período
romano derivava da uncial e da cursiva
romana.
Semiuncial, século IV
72
Gutenberg - Bíblia de 42 linhas (1455)
Gutenberg, em sua Bíblia de 42 linhas, procurou
simular a variação típica dos manuscritos. De
acordo com o modo de escrita do período ele
utilizou cerca de 300 sinais: abreviações,
ligaduras e um grande número de letras mais ou
menos largas para melhor justificar as linhas.
Catalogação apresentada por Emil
Ruder com variantes das letras
encontradas na Bíblia de 42 Linhas.
Acima e ao lado fragmentos da Bíblia de 42 Linhas.
Geoffroy Tory - Champ Fleury (1529)
Inspirada pelos manuscritos humanistas do
século XV, que se opunham ao gótico empregado
por Gutenberg, as primeiras tipografias
renascentistas ainda mantinham características da
escrita à pena. Geoffroy Tory incorporou na
construção de seu trabalho a síntese cosmológica
do início da Renascença. Seus estudos de
desenhos tipográficos fundem racionalismo e
misticismo. A partir de pesquisa ao mesmo tempo
caligráfica e tipográfica Tory desejava encontrar
um novo meio de revelar o universo de conhecimentos contidos nos signos e a relação
ideal que sustenta toda forma natural. Ele utilizou a teoria da proporção derivada da
figura humana como base de seus desenhos. Sempre com o objetivo de alcançar a
absoluta harmonia, ele procurou estabelecer relações entre os sons, as formas e os
deuses. Ao tratar todo o conjunto de questões da escrita impressa, Tory também
introduziria modificações no uso da pontuação e ortografia. Sobre o tema ele publicou
um pequeno fascículo intitulado Briefue Doctrine pour deument ecrire em langaige
françois (1533) expondo as exigências de acentos e signos auxiliares na língua francesa.
73
A serifa no primeiro momento ainda influenciada
pelo gesto da mão e da pena, do qual se
distanciaria mais tarde com a construção
puramente geométrica.
Romain du Roi (1695)
No fim do século XVII, uma
reforma na Imprensa Real da
França, propiciou a criação de novos
tipos muito diferente das
desenhadas até auqela época. A
comissão de reforma designada pelo
rei Louis XIV em 1695, movida pela
paixão daquele período por métodos
científicos, cria um diagrama
ortogonal rompendo com a forma orgânica do tipo humanista, eliminando resíduos de
referência ao movimento da pena e, por sua vez, ao manuscrito. Subdividindo a
superfície em unidades mínimas o diagrama permite modulações matemáticas
combinando círculos e retas. A construção do tipo Romain du Roi já contém
praticamente todos os ingredientes dos desenhos realizados hoje em computador. Pouco
utilizado no período em que foi criado, influenciou os desenhos de caracteres nos séculos
posteriores.
Didot (século XVIII)
Utilizando-se de métodos semelhantes aos da
realização do Romain du Roi, Didot polariza as
diferenças de espessura na modulação da linha e cria
o ponto tipográfico. Este fundamental para regular a
intensidade de brancos e pretos no exterior e inte-
rior da letra, em função da fluidez da leitura.
Yukei Tejima
Duville, l’Art du tracé rationnel de la lettre (in: Peignot, 1982)
75
A invenção da imprensa não faria desaparecer a caligrafia.
Ao contrário, a imprensa favoreceria o aprendizado da
escrita e da leitura. O homem letrado deveria apresentar
uma caligrafia de traços firmes e elegantes.
A escrita alfabética por suas características solicita a
manutenção da linha durante uma seqüência de gestos até
corporificar a palavra. A permanência do contato da pena
sobre o papel força a estreita proximidade entre a mão, o
instrumento e o suporte. Apóia-se sobre o papel. Cola-se o
olho no trilho. A atenção ao espaço gráfico cede à
concentração dedicada ao curso da linha. Temporalização.
No Oriente manteve-se, desde os primórdios, o uso do
pincel e de outros instrumentos naturais de escrita. O
calígrafo oriental, aos modos da pintura, busca a
plasticidade mais pura e a relação espacial dos elementos
e, diferente da pintura, a marca de cada gesto é definitiva
e não pode ser velada. O domínio do pincel inicia-se no
aprendizado da escrita, antes de usa utilização na pintura.
Os movimentos dos traços são entrecruzados e não
contínuo. Na escrita oriental cada ideograma evidencia-se
como uma totalidade relativa, figurando-se no espaço.
Mas, no Oriente, o uso caligrafia ultrapassa os limites da
escrita, pois liberta o signo do sentido preciso do contexto
verbal, tornando-o impreciso, equívoco, um signo plástico.
Ao final aprecia-se a composição dos elementos e as
ocorrências de casualidades. Espacialização e configuração.
No Ocidente abandonou-se o pincel e outras ferramentas
primárias, à procura de instrumentos que possibilitassem
traços mais precisos. Os modelos que inspiram o
manuscrito são as gravações em pedras. O estilete, o
estilo. A rigidez do cálamo e da pena convém à formação
do caractere retilíneo e esquemático (Peignot, 1982, p. 69).
O talhe da pena é determinante na conquista do valor
construtivo e consciente do desenho.
caligrafia
76
Manuais de Caligrafia
A partir do século XVI, sobretudo no século XVIII,
produziu-se grande número de manuais de caligrafia. Eles
serão essenciais como princípio de estandardização e
legibilidade na elaboração de documentos para negócios e
transações legais.
Liber artificiosus alphabeti maioris
Os números traduzem qualquer elemento de ligação dos
homens com a vida. Esta concepção, bastante presente na
modernidade, segue tradição esotérica utilizada pelos
renascentistas na procura da forma ideal. O Liber
artificiosus alphabeti maioris publicado no fim do século
XVIII, se destina a apresentar essas concepções e a
alimentar a curiosidade mundana a cerca das ciências,
“que apenas a ignorância as tornaram ocultas” (Peignot,
1982, p.70). A poética
contida nos signos fica
abandonada no
subconsciente quando suas
formas se tornam muito
familiares. A pesquisa
realizada em caligrafia por
homens como Dürer e Tory
intenta fazer aflorar este
mundo perdido, dar
transparência aos
conhecimentos que os
signos contêm e mostrar os
traços de sua face.
R. Gething, Calligraphotecnica, 1619
Johan Marken, Liber artificiosus alphabeti maioris, 1782. Exercício de caligrafia.
Dürer
No quadro Erasmo de
Rotterdam , Dürer
representa o encontro entre
a gravura lapidar e a página do livro impresso, a produção
do manuscrito. A lápide e o livro refletem um sobre o
outro, estando o escritor/calígrafo na interface.
Letra ‘M’, desenho
de Albrecht Dürer
Albrecht Dürer, Erasmo de Rotterdam, 1526
77
Método Franco
No livro Método de Caligrafia
(Franco, 1920; In: Tupigrafia 4)
são apresentados os aparelhos para
se chegar à elaboração perfeita da
caligrafia para fins comerciais.
Controle da postura e do gesto
para se conquistar a regularidade
da grafia com padrão universal.
Grafologia
Em tempos mais recentes desenvolveu-se o estudo da grafologia voltado à identificação
da personalidade pela caligrafia. A revista Tupigrafia número 4 reproduz algumas páginas
do livro Grafologia Prática de Eric Singer impresso nos anos 50. Naquele período, os
principais usuários destes guias, segundo a revista, eram empresas interessadas na
identificação da personalidade de um candidato ao emprego, e, a polícia na investigação
de suspeitos. A grafologia estaria a serviço das instituições como elemento de
investigação interessada em definir o caráter adequado para o bom funcionamento da
ordem e do progresso. Hoje, a grafologia se soma às varias ciências de auxílio ao
indivíduo na identificação de suas fragilidades e incertezas e, da solução para o sucesso.
Após a consulta adequa-se a assinatura e o gesto ao caráter de sucesso.
Nas páginas do livro reproduzido expõe-se paralelamente a letra ‘anômala’ e o desenho
ilustrando a personalidade que a caligrafia revela. Os desenhos mantêm os mesmos
traços sintéticos, finos e cortantes das letras e, há a aproximação da configuração do
desenho ao da letra, para que a associação seja mais direta.
Antônio de Franco, Método de Caligrafia (Revista Tupigrafia 4, 2004)
Eric Singer, Grafologia Prática (Revista Tupigrafia 4, 2004)
78
Consta que o logotipo da Coca-Cola foi desenhado por
volta dos anos 1890, pelo sócio e contador da empresa que,
sendo um notário, estava habituado ao exercício da bela
grafia comercial.
O logotipo chama atenção por sua sobrevivência mais do
que secular, a despeito de ser anterior (e, portanto, não
atender) às regras da ‘Boa Forma’. Estas procuraram
definir, a partir de conceitos técnicos e científicos, a
qualidade formal para objetos produzidos pela industria. O
idealismo estético, extraído das vanguardas
construtivistas, voltava-se à conformação geométrica/
racional adequada às linhas de produção e aos critérios de
pregnância e universalidade. Trata-se de uma estética da
máquina, pouco voltada à representação. Sob esta ótica o
logotipo da Coca-Cola, em análise apressada afeita a
manuais, poderia ser descartado. O argumento: não
apresenta boa legibilidade, é de difícil reprodução e vin-
cula-se temporalmente aos maneirismos do art nouveau
(hoje quem o associa a tal estilo ou tempo?).
A posição, contudo, não alcança unanimidade. Tom Wolfe,
habitual crítico das vertentes funcionalistas e
construtivistas, sentenciou: “Os logotipos de escritura
manual da Coca-Cola ou Hertz – se pegam na mente e
causam um reconhecimento instantâneo. Os logotipos
abstratos são ineficazes a este respeito... (apud: Manual
de Imagen Corporativa, 1991, p. 88). A colocação por
extremos parece extraída de algum manifesto modernista,
nos quais sempre se confronta e delimita-se o espaço de
atuação. É preciso manter sempre o arco estendido, dizia
Décio Pignatari em período de embates e rupturas.
A Coca-Cola surgiu numa época em que a necessidade de
um logotipo que particularizasse a marca da empresa já
era latente, devido à prosperidade comercial e às
formações da massas nos grandes centros urbanos no final
do século XIX. Mas as realizações neste campo ainda eram
rarefeitas e incipientes. A Coca-Cola aparece entre as
primeiras empresas a investir numa marca registrada
identificável, a partir do controle de suas aplicações, de
ajustes prudentes no desenho e do apelo ao status social.
Um logotipo exige legibilidade global: a apreensão da
palavra pela estrutura, como imagem, diriam os poetas
concretos. No entanto, isto não depende necessariamente
da clareza de cada caractere. A integridade da imagem do
logotipo da Coca-Cola deve-se à particularidade de suas
linhas e aos ajustes de seus movimentos para a
corporificação da marca.
79
Selecionado em concurso público, o símbolo
proposto por Aluízio Magalhães para as
comemorações do 4º centenário da cidade do Rio de
Janeiro em 1964 gerou polêmica.
Foi questionada a sua originalidade e, devido ao seu
grau de abstração, considerado excessivamente
intelectualizado e de pouco apelo popular.
O símbolo em sua concepção se alinha ao ideal
estético da escola de Ulm: construção de um objeto
padrão, de comunicação direta e imediata, livre de
filtros culturais ou sociais, reduzindo ao mínimo o
ruído e ambigüidades. No desenho do símbolo não
se encontra referência à paisagem ou a um detalhe
particular da cidade. Opta-se por uma forma
universal e de fácil emprego em qualquer meio. Sua
significação deve derivar do uso sistemático.
“(...) a pedra da Gávea, o Corcovado, o Pão de
Açúcar, particulares de um todo, são muito mais
expressivas quando vistas na sua própria realidade,
na sua imagem verdadeira, e nunca sintetizadas no
aperto da medida de um símbolo” escreveu
Magalhães (In: Souza Leite (Org.), 2003, p.172).
A concepção do desenho, espelhamentos e rotações,
já fazia parte do léxico dos artistas concretos nos
anos 50 e, por sua vez, esteve bastante presente na
obra de Aluízio Magalhães nos anos 60 e 70. Na
arte concreta, com suas postulações sobre o
problema da estrutura dinâmica (movimento), a
projeção e o agenciamento do espaço são
privilegiados, tendo em vista a construção objetiva
do espaço e da figura e sua aprenção.
No símbolo, o número 4, que serve de célula
geratriz, é rebatido em movimento circular, o que
resulta numa forma mais simples, o losango, do que
a célula inicial e de maior pregnância. A forma, ao
mesmo tempo em que se fecha nela mesma, ganha
dinâmica própria, podendo ser desdobrada e
combinada indefinidamente.
A despeito da polêmica, o símbolo passou a fazer
parte do cotidiano da cidade, sendo reproduzido
espontaneamente em fantasias de carnaval,
vestuários, calçadas, fachadas, etc. Foi também
adotado por ambulantes interessados em ver o seu
negócio integrado ao evento. A simplicidade de sua
forma permitia a sua ampla reprodução com o rigor
das máquinas ou com a imprecisão das mãos.
Mesmo com as distorções dos gestos indisciplinados
dos grafiteiros o símbolo pode ser identificado,
quando no contexto do evento.
80
O nome da empresa – Coca-Cola – composto por duas
palavras com o mesmo número de letras, com som e
imagens semelhantes – sugere um movimento de
translação com possibilidade de espelhamentos. Esta
característica é explorada graficamente. As letras iniciais
“c” ao mesmo tempo em que se destacam do corpo das
palavras, abraçam todo conjunto, integrando-os com a
extensão da linha das iniciais ‘C’ ora por baixo, ora por
cima, favorecendo o fechamento e a unidade da marca.
O uso de paronomásias e espelhamentos de palavras eram
utilizadas na poesia concreta, como elemento auxiliar para
estabelecer a unidade estrutural do poema. Estas
características, ‘naturalmente’ presentes na marca Coca-
Cola, permitiram ao poeta Décio Pignatari manipular
Slogan ‘beba Coca-Cola’ com o rigor geométrico da poesia
concreta e, elaborar sua desestruturação semântica a partir
de jogos anagramáticos e fonéticos.
Elementos decompostos, desprendidos, espelhados e,
sobretudo processados. Apreende-se o símbolo em seus
desdobramentos. Identifica-se o ‘beba’ no ‘babe’, ingerindo
ou expelindo, a ‘coca’ no ‘caco’, no todo ou na parte. Não
é, portanto, somente o sentido de totalidade que importa,
mas também o da fragmentação. A totalidade do símbolo
compreendida no residual. Graças à força expressiva e à
particularidade dos traços caligráficos de sua marca, a
empresa pode lançar mão da exposição de sua marca em
pequenos fragmentos (veja-se os painéis publicitários mais
recentes), e ser identificada por qualquer fresta entre os
abundantes elementos do espaço urbano. O caco da Coca
já era entendido como elemento de comunicação pelo
menos desde 1915, quando a direção da empresa solicitou
o desenho de uma garrafa que pudesse ser reconhecida
num pedaço de vidro. Nascia então a famosa garrafa da
Coca inspirada num desenho de cacau.
A ilustração de uma vagem de bagas de cacau, perto do verbete coca
na Encyclopédia Britannica, despertou-lhe a atenção. Ele pode, na
verdade, ter confundido cacau com coca.” (Pendergrast, Apud: Pinho,
1996, p. 122)
A jovem espanhola exibe sua
jovialidade com a cadência
desprendida de seus movimentos.
Jovialidade regida pelo trilho da
onda.
81
O design de filiação construtiva era pensado sob o ideário
ético/socialista e voltado às questões de produção e
funcionalidade (o objeto padrão, útil à sociedade). A
indústria americana já em sua origem investe na
distribuição e no consumo. As dificuldades de
(re)produção de seus símbolos (a forma orgânica e o peso
da garrafa, inadequação do logotipo à tipografia) não eram
tão relevantes. A proposta é envolver o consumidor com a
marca, em apelo à individualidade. Seu slogan: ‘pensa no
global, atua no local’. A estratégia é de expansão e
conquista de todos os espaços. Presente entre os soldados
americanos na guerra, junto aos astronautas no espaço
extra terrestre, circulando seus símbolos entre todos os
ícones do american way of life. Inscreve-se a marca por
associações: a silhueta sexy da garrafa (anos 20) à Mae
West ou à ‘saia justa’; a onda ao movimento livre e jovial.
Transforma-se revolução em estilo. Determinam-se
atitudes, desejos. Leva-se o símbolo à boca: mama-se nele.
A Coca-Cola, de certo modo, antecipou-se ao que hoje é
explorado largamente. Não se trata exatamente de um
sistema de identidade visual, no sentido de pré-determinar
o uso da marca e as regras estritas de inscrição, mas sua
inserção no cotidiano e no inconsciente. A marca
cuidadosamente largada em cada esquina,
intermitentemente, penetrando, com a fluidez de suas
formas, pela periferia do olhar, entre o que se lê.
Hoje a concepção do símbolo de
uma empresa não procura
necessariamente relacionar-se ao
objeto ou ao produto. Não se
trata mais de dizer o produto,
mas fazer o símbolo fluir no
universo do consumidor. Seus
significados podem em algum
momento congelar-se e em outro
dispersar-se, passar de uma forma
a outra, por negações e
associações. Formas esvaziadas
que aspiram a ser. Relações de
imagens que inspiram o devir a
ser do consumidor. Sintaxe
relacional: ideografias.
um exemplo
o símbolo Mastercard
Intercessão de dois círculos,
representado de forma
semelhante a um gráfico escolar
de conjuntos, a priori vazios e
sem sentido.
Por sobreposições o símbolo é
associado a outras imagens,
inscrevendo o ideal de liberdade e
prazer.
O status do ato de consumir:
duas barracas de praia, duas bolas
de sorvete, um par de pés pro
alto vestidos confortavelmente
com sandálias, duas cabeças que
se tocam.
82
Camara, Vitória, 2004.
O mundo prêt-à-porter
(In: Dias Pino; Santos, s.d.)
A operação diagramática é ativa, já é a leitura de alguma
coisa. Ela gera e elabora conceitos através de elementos
mínimos e simultâneos – verbais e não verbais. É ao
mesmo tempo sintética e dinâmica. Permite a observação
da situação (onde se está), a relação entre elementos
distintos; a interferência e a introdução de novos dados,
novos contextos (onde se ir).
Em tempos remotos homens se lançavam ao mar por
espaços não cartografados. Outros, em terra, sonhavam e
representavam um mundo que não se apresentava aos
olhos. Imaginavam bestiários, abismos e paraísos.
Traça-se o mapa depois do percurso. Componentes
colhidos em separado são examinados em suas relações.
Retira-se o elemento de sua realidade, de seu contexto. Da
contraposição de linguagens, dos diferentes tipos de
choque, propõe-se um conceito. É preciso gerenciar,
organizar os elementos na tentativa de decodificar,
estabelecer a mensagem - comunicar. Passar da existência
à razão. Chegar ao final de uma idéia, à linha, à estrutura.
Explorações analíticas que visam revelar situações que
estão fora do alcance do olhar. O mapa é a forma de
codificação, geometrização e organização de informações.
Revela o modo como se percebe e representa o mundo.
Por sua vez, é explícita a limitação do mapa (e mesmo as
limitações das palavras) diante dos labirintos e da
dinâmica do espaço. Como se dar a ver o espaço
projetando-o sobre um plano? Transformação em pontos,
procedimento de redução: seleção e simplificação do
contexto.
Mas não se trata somente da representação do mundo.
Quando o homem se descola da natureza, ele se lança ao
ato da criação. E como criar? Imaginar, tomar posse,
formar e depois se adequar à topografia local? Render-se à
arquitetura de apreensão direta? Que seja então positivo,
sem imolar-se com o envolvimento emocional, com as
pequenas ondas luminosas, com as cores quase
imperceptíveis, com as intermediações. Constrói-se um
navio e coloca-o na piscina, livre dos caprichos do mar.
O homem quer imaginar a sua própria morada, mas é
necessário atenção à morada, às suas relações, suas
ressonâncias, seus espíritos, devendo ao menos observar as
cores que surgem na projeção dos traços negros sobre a
superfície branca. Afinal, escreveu Clarice Lispector, “a
criação não é uma compreensão, é um novo mistério.”
cartografias
86
Mapa de 1375 expondo a riqueza em ouro da África. Os
mapas medievais não apresentam com precisão a posição
relativa dos locais e compõem uma visão fragmentada e
particular do mundo. Eram verdadeiros diários
representando experiências pessoais de viagens com notas,
imagens, riqueza local e impressões diversas. A narrativa
visual articulada pela correspondência entre os
personagens e sua espacialização é característica da Idade
Média.
1. pojeções do mundo
O mapa em T-O (1493).
Compõe o mundo nos três
continentes então conhecidos
e de acordo com a divisão
bíblica do mundo entre os
filhos de Noah.
Extremamente conciso e
geométrico este mapa reflete
a despreocupação com a
precisão geográfica dos
mapas posteriores ao avanço
do comércio marítimo.
87
Três janelas justapostas
formando uma espécie de
diagrama narrativo
apresentam os passos para
definir uma cosmografia. Na
parte de baixo o observador
utiliza instrumento para
definir a posição de um
objeto celeste em relação à
sua localização na terra, ao
horizonte (latitude celeste) e
posição relativa aos pontos
cardeais (longitude). Acima,
à direita, a posição relativa
estabelecida a partir de dois
pontos de observação. E, o
resultado registrado em
gráfico no lado esquerdo.
Projeção e planificação do mundo em
linhas.
Diversos estudos feitos na renascença
européia apresentam a complexidade de
projetar a superfície da esfera global no
plano. Busca-se uma convenção universal.
No século XVI Mercator, matemático e
geógrafo, criou um sistema de projeção, no
qual as longitudes são representadas por
linhas retas paralelas eqüidistantes, e os
graus de latitude por linhas retas paralelas
perpendiculares. A distorção nos pólos é
uma convenção visual que se aprendeu a
ler e, é até hoje considerada válida.
Peter Apia, Cosmografia, 1539
88
“ DO RIGOR NA CIÊNCIA
... Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal perfeição que o
mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do
império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas
Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos
levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e
coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da
Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado
Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do
Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas
Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o
País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
(Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV,
Lérida, 1658.)” (Borges, v.2, 1999, p. 247)
“Conta o Príncipe Modupe em sua autobiografia,
‘Eu Fui Um Selvagem’, como aprendeu a ler mapas
na escola e como voltou à sua aldeia com o mapa de
um rio que seu pai percorrera durante anos, como
comerciante. ´(...) meu pai achou um absurdo.
Recusou a identificar a correnteza que ele cruzara
em Bomako e cuja profundidade, dizia, não ultrapassava a altura de
um homem, com as grandes águas espraiadas do grande delta do
Níger. As distâncias medidas em milhas não tinham qualquer
significado para ele ... Os mapas eram mentirosos, disse-me ele
secamente. (...) As coisas que ferem uma pessoa não aparecem num
mapa. A verdade de um lugar reside na alegria e na tristeza que dele
provêm. (...) eu apagara a grandeza de seus carros de bois, com suas
mercadorias e com seu calor’” (Mcluhan, 2000, p. 181).
“Eis agora a questão fundamental de qualquer atlas:
de que é que se deve traçar um mapa? Resposta
evidente: dos seres, dos corpos, das coisas... que não
conseguimos conceber de outro modo. Porque é que,
com efeito, nunca desenhamos as órbitas dos
planetas, por exemplo? Uma lei universal prevê as
suas posições: de que é que nos serviria um roteiro
neste caso de movimentos e situações previsíveis?
Basta deduzi-los da lei. Pelo contrário, não há
qualquer regra que prescreva o recorte dos rios, o
relevo das paisagens, a planta da aldeia onde
nascemos, o perfil do nariz ou a
impressão digital do polegar...Aí
estão singulari-dades, identidades
e indivíduos, infinitamente
afastados de qualquer lei”
(Serres, 1997,p. 17).
90
Alguém já deve ter imaginado, ou realizado, um mapa no
qual o mundo é representado em função do tempo de
transporte físico, e não do espaço. Neste mapa a Europa
estaria diminuta. Paris e Londres se interceptariam. Entre
Londres e NovaYork o oceano Atlântico se espremeria à
espessura de um mar. A África seria enorme. Algumas
cidades seriam afastadas de suas visinhas, ou mesmo
apareceriam fora de seu país, ficando isoladas e reservadas
aqueles que voam para o exótico. Afinal, quem está dentro
e quem está fora?
Em 1913 Blaise Cendrars publicou “La prose du
Transsibérien et de la petite Jehanne de France”, que ficou
também conhecido como “Le premier livre simultané”.
Transsibérien se refere diretamente à estrada de ferro
inaugurada em 1905 ligando a Rússia Ocidental ao
Pacífico e, de certo modo, alude a todas as estradas que
estavam sendo construídas pelo mundo estreitando os
espaços, permitindo viajar em velocidade “meteórica”.
A obra é impressa numa única folha de papel de mais de
dois metros dobrável. A reunião de todos os 150
exemplares “atteignant la hauteur de la Tour Eiffel”
(Apud. Perloff, 1993, p.31). O trabalho foi realizado com a
colaboração da pintora Sonia Delaunay, o que foi assim
creditado – “couleurs simultanées de M
me
Delaunay-
Terk”. Um conjunto de massas de cores puras, saturadas,
intensas como a vida na era da eletricidade. Vibrações,
dinamismos, distorções do espaço e do tempo. Um poema
de viagem, mas que desfoca o trajeto, costurando outros
tempos e espaços.
Simultâneos, também, a cor e o texto – verbovisual. A
lógica plena da palavra em linhas que flutuam e se perdem
entre a luz. Como quando se fixa o olhar nas chamas da
fogueira. Assim Cendrars descreve seu poema “(...) uma
experiência única em simultaneidade, escrita em cores
contrastantes a fim de levar o olho a ler de um só golpe de
vista o conjunto do poema” (Ibid, p. 41).
91
No século XIX assiste-se ao advento da formação das
grandes cidades e a humanidade entra no século XX
marcada pelo signo das metrópoles. Em Londres e Paris
multidões moviam-se sob a terra. Submergiam em um
ponto e saiam em outro. Entre os pontos o percurso sob a
vida frenética da cidade, num túnel negro iluminado,
sentados, em movimento inerte, um cidadão frente ao
outro olhando através.
Publicidades do metrô de Londres utilizavam-se de
expressões como “centro nervoso, força”. Em um dos
cartazes, representa-se um punho e a eletricidade
correndo nas veias. Foi a partir de códigos usados em
plantas de circuito elétrico que o engenheiro-projetista
Harry Beck desenvolveu um novo mapa para o metrô de
Londres, em 1913, que não tendo sido aceito na época,
viria a ser aproveitado em 1933. O desenho utiliza
somente linhas verticais, horizontais e diagonais com os
ramais diferenciados por cores. Ignora as posições
geográficas exatas em prol da eficiência comunicativa. O
centro de Londres foi ampliado para que fosse reproduzido
com clareza todas as suas linhas e estações, enquanto as
zonas periféricas aparecem reduzidas e com as estações
representadas em intervalos regulares. Mesmo o rio
Tamisa, única referência geográfica de superfície presente
no mapa, é convertido ao princípio geométrico, ao ter o
seu percurso rigorosamente representado em linhas
paralelas aos ramais. A partir de 1913, Beck dedicou vinte
e nove anos ao mapa, simplificando-o até que pudesse
compreender todas as extensões do metrô no formato de
uma carteira de identidade, legível nas partes e no todo a
“um só golpe de vista.
Mapa utilizado na década de 20
Harry Beck, Mapa do metrô de Londres, 1913.
O mapa quanto passou a ser utilizado em 1933
92
Belo Horizonte foi planejada em 1895 pelo engenheiro
Aarão Reis.
Área urbana: malha regular – Divisão em seções, traçado
das ruas em linhas ortogonais e avenidas na diagonal.
Planejamento interno de circulação e, controle da
comunicação com a zona suburbana, através do traçado da
avenida do Contorno.
Área suburbana: área
subalterna à cidade, de
espaços imprevistos, sem
projeção arquitetada.
Traçado rarefeito, irregular
com poucos encontros de
acesso à malha urbana.
Representa o poder público
no local somente o
cemitério municipal.
2 projetações do mundo
Sobreposição: ao lado a
planta de Belo Horizonte
sobreposta ao curral Del
Rey. Cidade que antes
ocupava o local surgida no
veio do vale, à beira dos
rios e das vias de comércio.
Gráficos de Carlos Teixeira sobre a planta
original de Belo Horizonte. 1) Avenida do
Contorno, Av. Afonso Pena, o rio ao norte
ea serra ao sul. 2) Malha das ruas. 3)
Malha das Avenidas. 4) Traçado dentro e
fora da Avenida do contorno (Teixeira,
1999, p. 76).
93
Brasília é uma imagem, um símbolo, um logotipo. Foi
pousada num planalto, longe de qualquer civilização.
Totalmente arejada, sem nenhum vestígio de outra cidade,
nenhuma montanha, nenhuma mancha à volta. Empoleirada
“na linha horizonte” envolvida somente pelo céu – uma
cidade totalmente espiritual. O nada e todas as cores.
Elimina a presença de linhas verticais, nivelando a prumada
dos prédios. A vastidão sem referência de profundidade,
pode-se bater no céu ou nunca alcançá-lo. Salientes, apenas
os prédios públicos, inscritos no espaço como caligramas por
Oscar Niemeyer.
Lucio Costa arqueia o eixo horizontal, o das residências e dos
serviços, “a fim de contê-lo no triângulo que define a área
urbanizada” (Ibid). Os arquitetos arquitetam e exercem
sobre o papel. Idealizam uma constelação perfeita, com os
movimentos deduzidos à lei. Cada unidade em sua órbita
dimensionada em toda extensão de suas funções. Como em
Um Lance de Dados de Mallarmé, as áreas arejadas, os
brancos, “assumem importância, (...) a versificação os exigiu,
como silêncio em derredor (...) não transgrido essa medida,
tão-somente a disperso” (In: Campos; Campos; Pignatari,
1974, p.151). Todas as unidades prismam-se “nalguma
cenografia espiritual exata” (Ibid.). Entretanto, a intenção dos
arquitetos de positivação, de definitividade dos espaços da
cidade diferencia-se do poema de Mallarmé. Um Lance de
Dados não se fecha numa logotipia. O mundo verbal é
naturalmente ambíguo, plural, fenomenológico e, além disso,
o poema de Mallarmé é uma forma aberta “que contém uma
pluralidade de leituras” (Paz, 1990, p. 50). Ele foi concebido
estereograficamente, onde figuras radiantes podem ser vistas
como orifícios rompendo o limite do espaço. Espaços de
reversibilidades, interjeições, negações, a “ausência da idéia”
(ibid.). No projeto de Brasília traça-se o ideal, em planta
baixa, de uma cidade sem vão, sem ocos, sem buracos. Todo
espaço deve estar destinado, funcionalizado, sem usos
estranhos. Os arquitetos imaginavam que pudessem retirar
do mundo, da cidade, das pessoas tudo aquilo que fosse
inominável, imperfeito – feio. Se possível fosse, chegar-se-ia
assim ao ‘não lugar’ com todas as distinções e nenhuma
distinção entre a cidade e uma sala de aeroporto. Se possível
fosse, pois o ‘ideal Brasília’ inevitavelmente esbarra na
polifonia da existência. Nem o poeta, nem o arquiteto têm a
palavra final. Ao projeto se designa a ordem, o uso ao caos.
“Brasília é construída na linha do
horizonte. Brasília é artificial.
Tão artificial como devia ter sido
o mundo quando foi criado.
Quando o mundo foi criado, foi
preciso criar um homem
especialmente para aquele
mundo. Nós somos todos
deformados pela adaptação à
liberdade de Deus. Não sabemos
como seríamos se tivéssemos sido
criados em primeiro lugar e
depois o mundo deformado às
nossas necessidades. Brasília
ainda não tem o homem de
Brasília.(...) Os dois arquitetos
não pensaram em construir
beleza, seria fácil: eles ergueram
o espanto inexplicado. A criação
não é uma compreensão, é um
novo mistério.” Clarice Lispector
(in: Schwartz (Org.), 2002, p.
515)
Lucio Costa, Memória Descritiva do Plano
Piloto, 1957
Memória Descritica do Plano Piloto
“Nasceu de um gesto primário de quem funda um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em
ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz” (Lucio Costa, 1995, p. 284).
O sinal da cruz, o símbolo absoluto. Os eixos vertical e horizontal, que simbolicamente
expressam o eixo do poder e o da vida.
Conquista-se neste gesto a simplificação dos fluxos com apenas um único entroncamento.
Uma cidade geométrica, que elimina as ruas e as calçadas. Privilegia-se o carro, que se
movimenta sob leis e traçados rigorosos, esquivando-se dos movimentos adversos e
imprevisíveis dos pedestres. Uma cidade apreensível pelo todo, sem barreiras. São poucos os
dados a processar, não é preciso muita memória. Funcional – deslocamentos regulares:
trabalho, casa, lazer.
94
3 aparelhos de captura
unidade homem
Ao se propor uma natureza à medida do homem, foi necessário também mapeá-lo em
seus movimentos e encontrar as suas medidas perfeitas à maneira do módulo.
Leonardo da Vinci
Jean Cousin
Dürer
Le Corbusier
95
“Desde então, as simulações a que chamamos retratos,
reproduções ou representações passaram, durante muito
tempo, por atrasos para os princípios, impossíveis de encontrar
ou ausentes. As ciências pesadas pelas boas razões e, por vezes,
mesmo as humanas pelas más, cumularam de desprezo os
geógrafos, os anatomistas, os urbanistas...escarnecendo da
distância entre a verdadeira geometria, demonstrativa, e aquela
que se praticava no terreno ...vaga. A lei rigorosa, finalmente, é
a melhor das memórias, sem stock e, portanto, leve, quando é
necessário desenhar os traçados, e depois conservá-los, para
manter a recordação, muito pesada, das singularidades.
(...) Como os algoritmos procedem, no sentido absoluto do
termo, isto é, descrevem processos e métodos através de
conjuntos de caminhos, pode dizer-se que a sua razão é
cartográfica. Ao proceder passo a passo, mas à velocidade da
luz, a simulação alcança aquilo que designávamos por razão”
(Serres, 1997,p.18).
“Sentia um calmo mas inquisitivo
interesse por tudo. Com um charuto
entre os lábios e um jornal ao colo,
divertira-me durante a maior parte da
tarde, ora espiando os anúncios, ora
observando a promíscua companhia
reunida no salão, ora espreitando a rua
através das vidraças esfumaçadas.
Essa era uma das artérias principais da
cidade e regurgitara de gente durante o
dia todo. Mas, ao aproximar-se o
anoitecer, a multidão engrossou, e,
quando as lâmpadas se acenderam, duas
densas e contínuas ondas de passantes
desfilavam pela porta. Naquele momento
particular do entardecer, eu nunca me
encontrara em situação similar, e, por
isso, o mar tumultuoso de cabeças
humanas enchia-me de uma emoção
deliciosamente inédita. Desisti
finalmente de prestar atenção ao que se
passava dentro do hotel e absorvi-me na
contemplação da cena exterior.
De início, minha observação assumiu um
aspecto abstrato e generalizante. Olhava
os transeuntes em massa e os encarava
sob o aspecto de suas relações gregárias.
Logo, no entanto, desci aos pormenores e
comecei a observar, com minucioso
interesse, as inúmeras variedades de
figura, traje, ar, porte, semblante e
expressão fisionômica. O homem da
multidão (Poe, 1989, p.130-1)
Em reportagem do jornal Folha de São Paulo (1999, 13
out.), apresentou-se teste realizado em Londres com
câmeras de vídeo ligadas a computadores capazes de
identificar criminosos fichados. Simulando o mesmo
processo de reconhecimento facial do cérebro, o sistema
reconhece até pessoas disfarçadas, ao capturar a imagem
do rosto e compará-lo, rapidamente, com um banco de
dados de milhares de outros. O processo ainda leva em
conta que os rostos diferem de momento a momento e
com o passar dos anos.
Os algoritmos e o rápido processamento de dados têm
sido instrumento de organização e controle de fluxos
caógenos – de organicidades.
Folha de São Paulo (13/10/1999)
Folha de São Paulo (13/10/1999)
existência / razão
96
(in: Salles, 1994, p.84)
“Tempo Livre”
Pavilhão do Brasil: RIPOSATEVI
XIII Trienal de Milão, 1964.
Projeto de Lúcio Costa
“Uma homem americano parado em sua roupa de linhas retas – calças
e paletó e até mesmo com cartola – muito se assemelha a um arranha-
céu. O indígena escolhe para tanga a palha que cobre a taba. O árabe,
esse, se veste com a forma de uma tenda. A japonesa carrega nas
mangas do vestido formas semelhantes a beirais de seus telhados. É
que o homem, na rua, psicologicamente, quer se sentir protegido. É,
também, que a arquitetura sempre foi um marco – monumento vivo –
ao tempo que o homem habita. (Dias-Pino, 1973)
Imagens do catálo da exposição “Elogio ao A//a” de Wlademir Dias-Pino (Brasília, 1993)
99
escrita urbana 1
O contexto urbano realiza um universo de significados onde
tudo é signo, é linguagem. A linguagem urbana é múltipla e
complexa, formada de uma diversidade de sistemas, através
dos quais se organiza. Toda ordem exige o estabelecimento
de seus elementos constitutivos através dos quais se ordena
uma linguagem que articule a dinâmica de estruturas
contextualizadas. Tais linguagens representam maneiras
específicas de organização. Mas a ordem projetual não é
absoluta, imutável. As variáveis sígnicas não são totalmente
passíveis de processamento e escapam ao controle e à
legitimidade. Seus usos, sua dinâmica, expandem e
redirecionam o sentido objetual do ambiente urbano.
Implicam na transformação do significado da cidade.
A cidade, assim como a escrita-leitura, é atividade de troca e
de relação (produção, recepção). Ela se caracteriza como um
registro material de sua própria história, expresso nos
vestígios de sua existência. Surge no momento em que o
homem se sedentariza, se fixa num ponto e delimita seu
território criando uma estrutura racional e abstrata. O
homem fabrica, constrói uma nova natureza e quer, com a
perenidade de seus materiais, garantir o domínio de uma
propriedade. Com a presença dos monumentos gerações
sucessivas recordam acontecimentos e fixam contratos com
os deuses e com os seus mortos.
Na sociedade primitiva as mudanças eram lentas e as formas
derivavam da estrutura social, praticamente sem mediação.
Esse imediatismo deixaria de existir em vista da
complexidade. As estruturas transformam-se com o tempo,
conhecendo mudanças relativas de valor. A forma, a cada
tempo, ganha funções múltiplas, novos atributos. Os
significados de um tempo se interceptam com os do presente,
numa rede de significados móveis. Os traçados da cidade
contêm experiências daqueles que a construíram o que
“requer a leitura do passado dos signos, percorrer a história
das relações do homem com o mundo a fim de apreender as
nuances das mediações produzidas e ser possível produzir
uma inteligibilidade do mundo” (Ferrara, 2002, p.38).
A cidade renascentista enquadrava-se na lógica do mundo
mecânico, da perspectiva, constituindo um discurso
homogêneo e ininterrupto: cada elemento correspondendo a
um universo coerente que ansiava garantir ao homem o
domínio da natureza. De certo modo, os projetos urbanísticos
modernos seguiam uma lógica não muito distante do
pensamento renascentista, considerando-se o
antropocentrismo do Modulor. Pensava-se a cidade industrial
à escala humana. A forma da cidade deveria corresponder
precisamente a sua função. O projeto deveria eliminar todas
as contradições. Pela projeção desejada a forma fluiria num
espaço de continuidades, o espaço da civilização e o espaço da
natureza, o ambiente interior e exterior formariam um único
bloco. Mas o traço sobre o papel, a projeção do arquiteto, não
100
SobrEscrita
dá conta da dinâmica do espaço habitado e de seus fluxos
incontroláveis. O desenvolvimento industrial, necessitado de
grande contingente de mão de obra, ocasionaria a explosão
urbana colocando como referente as massas. A formação das
grandes metrópoles rompe com a possibilidade de uma cadeia
pretensamente bem atada. Este era um dos embates do
modernismo, o ideal de uma sintaxe relacional ordenadora do
caos em espaços urbanos de forças e ocorrências
descontínuas. O todo já não é apreensível, resta apenas como
uma abstração. A velocidade da máquina, a multidão, a rápida
convergência de imagens em mudança modificariam a
sensibilidade humana. Não é mais um mundo inteligível por
um mapa bem delineado, pela perspectiva linear ou pela
seqüência regulada do tempo. Os gestos bruscos, a
substituição rápida dos estímulos, a simultaneidade de
experiências, o conflito entre coleção e integração, ordem e
contra-ordem, proporcionavam um ambiente abarrotado,
caótico como jamais havia sido visto no passado. O nexo
sintático da tradição clássica perderia seu eixo estrutural
exposto à fragmentação e a dialética das imagens urbanas,
que exigiriam ações simultâneas sobre o símbolo e a técnica
e, uma nova gramática que ultrapassasse o sistema mecânico
de organização do espaço.
Houve na metrópole moderna um súbito crescimento do
corpo informacional e de experiências sensoriais.
Informações de difícil apreensão, difusas e desorganizadas
que sugerem grande riqueza informativa, mas de difícil
apreensão. A palavra escrita, a partir do século XIX, já não se
restringiria mais ao fluxo narrativo linear do livro. Ela se
faria presente nas ruas, fragmentada e iconizada em cartazes,
letreiros, em livres associações desprovidas de uma narrativa
lógico-discursiva. Mas o texto urbano não se constitui
somente de palavras, mas de uma diversidade de elementos
(visuais, sonoros, olfativos, táteis e cinestésicos),
proporcionando um permanente bombardeio de estímulos
multisensoriais. Neste ambiente há a articulação de linguagens
heterogêneas imbricadas umas às outras, num complexo de
significações. Jonathan Crary afirma que os estímulos surgidos
na modernidade tornariam a atenção o elemento mais vital,
ainda que pouco provável, pois “a atenção sempre conteve em
si as condições para sua própria desintegração” desse modo “a
atenção e a distração não eram dois estados essencialmente
diferentes, mas existiam num único continuum (In: Charney;
Schwartz, 2001, p. 87). A atenção envolvia um processo
dinâmico e estaria sujeita a intensidades variáveis de acordo
com o os estímulos dados por um conjunto indeterminado de
elementos. Tais estudos indicaram que a experiência perceptiva
era instável e mesmo dispersiva.A atenção parecia estar
relacionada à fixidez perceptiva e à apreensão da presença, mas
estava, ao contrário, relacionada à duração e ao fluxo, nos
quais objetos e sensação tinham uma experiência mutante,
provisória, e era isso em última instância que obliterava seus
objetos” (Ibid, p. 88).
101
Escrita Urbana
vitrine
Atraindo voyeuristicamente o passante, os objetos expostos
na vitrine são desfrutados a distância, perversamente.
As vitrines são um dos elementos de maior poder de
sedução no espaço urbano. O produto ali exposto surge
num espaço virtual quase metafísico, que o deixa em
posição intermediária, nem dentro da loja nem na rua.
Entre o objeto e a rua uma parede invisível, o vidro.
Translúcido, como fosse uma barreira de ar congelado, o
vidro permite ver o objeto, mas não tocá-lo. A vitrine
fascina e seduz. Castrados pela impossibilidade momentânea
de efetivar a posse, dá-se o impasse descrito em nota por
Marcel Duchamp.
A questão das vitrines. Submeter-se à interrogação das
vitrines. A exigência das vitrines. A prova da vitrine da
existência do mundo exterior. Quando alguém se submete
ao exame da vitrine, este alguém pronuncia também sua
própria sentença. De fato, a escolha desse alguém é uma
viagem de ida e volta. Das exigências da vitrine, da
inevitável resposta às vitrines, minha escolha é
determinada. Nenhuma teimosia, ab absurdo, em esconder
o coito através do painel de vidro com um ou vários objetos
da vitrine. A pena consiste em cortar o painel e sentir
remorso tão logo a possessão é consumada. (Apud,
Venâncio Filho, 1986, p.22)
À vitrine, como à publicidade, só interessa quando se age no
primeiro impulso, sem que os anseios sejam saciados.
Procura-se, como estratégia, manter-se sempre, o desejo de
consumo e a frustração.
Em caso comum, a frente da loja é ocupada na maior parte
pela vitrine e a entrada é mantida fechada por uma porta
de vidro. Evita-se que a parte interna da loja fique
devassada, a barreira é proposital e espera ser rompida.
Com a luz do dia a arquitetura e o movimento da rua
refletem sobre o vidro, que parece engolfar o espaço.
Deslocando-se diante da vitrine tem-se a sensação que o
objeto também se move ocupando planos diferentes. À
noite, com pouca luz, tem-se a pupila dilatada e
conseqüentemente a visão das coisas desfocada. A vitrine
iluminada possibilita recuperar o foco justamente ao se
olhar o objeto exposto, que nítido, ganha aura.
Foto de loja e pintura de Don Eddy, 1973-4
(In. Demetresco, 2001, p. 81)
Manuscrito de Guilherme de Almeida (In. Op. Cit., p. 73)
102
livro livre
No século XIX, os sistemas se fecham sobre ele mesmo. O
Universo irá se encaminhar em direção ao esgotamento, “a
morte térmica, Zero” (Benoit, 1998, p. 381). Se de uma parte
ele se dirige ao esgotamento entrópico, se verá também surgir
estruturas complexas, neg-entrópicas, subvertendo toda
probabilidade. Os eventos neg-entrópicos procuram compensar
a entropia global por localidades de alto nível de organização e
de complexidade, e de grande improbabilidade (a vida, o
pensamento, a palavra, etc.).
Constelação é uma expressão recorrente na obra de Mallarmé,
que sempre perseguiu uma correlação entre poesia e Universo.
Ele designa aos seus poemas constelares uma pureza justaposta
à concepção do Universo. Seu projeto mais radical Livre, que
restou em notas, é resultado de diversas de suas reflexões de
Mallarmé acerca da escrita. Tal questão aparece influenciada
pela abundância de escritas que então saltavam do livro e
tomavam as ruas. Letreiros, jornais, cartazes, palavras
esgarçadas nas beiradas e interpoladas umas às outras. A
linguagem é a da velocidade, do simultâneo, do anárquico. O
mundo já não se deixava imprimir sob a forma tradicional do
livro.
Mallarmé era “um syntaxier na definição de Haroldo de
Campos (1997, p. 260), ele subverte a sintaxe, para propor uma
sintaxe relacional. “O livro, expansão total da letra, deve
diretamente dela retirar uma mobilidade e, espacialmente, por
correspondências, instituir um jogo, nunca se sabe, que
confirma a ficção” (Mallarmé, 1994, p. 269). Ao conceber o
poema como uma constelação, o poeta o retira do plano
bidimensional (temporístico-linear) para lançá-lo ao espaço
quadridimensional (cósmico). Organiza o espaço
estereograficamente, fragmenta o texto, toma as palavras como
elementos potenciais, como feixe radiante de significados.
Mallarmé insere as frases numa ordem de movimento, de
sincronismos, de interjeições onde a palavra é contextualizada
indefinidamente. Concebe um espaço de reversibilidades, no
qual figuras radiantes podem passar a ser vistas como orifícios
rompendo o limite do espaço. Um jogo que movimenta-se ao
infinito.
O Livre propõe a total mobilidade e correspondência dos
elementos que o integram. Composto de quatro livros que
podem ser ordenados dois a dois formando no todo um quinto,
o livro total. Cada livro é subdividido em cinco volumes, que
comportam três grupos de oito folhas cada um. Mesmo as
folhas são subdivididas – ½ folha, ¼ de folha, 18 linhas de
doze palavras. Com isso chega-se a exaustivas combinações
seguindo uma paginação tridimensional. As páginas
intercambiáveis proporcionam múltiplas estruturas e múltiplas
leituras possíveis. Um livro múltiplo, não comportando
nenhum signatário. Em o Livre, Mallarmé visava concretizar o
ideal de uma obra de arte total, desestabilizando,
definitivamente, a estrutura linear e discursiva. Soltando as
páginas, deixando-as à mercê da casualidade, Mallarmé
intensifica o movimento. O Livre é decomposto em lâminas,
fotogramas intercambiáveis a serem ainda dobrados e
desdobrados. A palavra torna-se holográfica, prismática, um
“1) a ciência, a arte não têm limites,
porque o que se conhece é ilimitado,
inumerável, e a ilimitação e a
inumerabilidade são iguais a zero. 2) Se
as criações do mundo são os caminhos de
deus e ‘seus caminhos são inescrutáveis’,
tanto ele como seus caminhos são iguais
a zero. 3) Se o mundo é a criação da
ciência, do conhecimento e do trabalho, e
sua criação é infinita, então é igual a
zero. 4) Se a religião conheceu deus,
compreendeu o zero. 4) Se a ciência
compreendeu a natureza, compreendeu o
zero. 6) Se a arte compreendeu a harmo-
nia, o ritmo e a beleza, compreendeu o
zero. 7) Se alguém compreendeu o
absoluto, compreendeu o zero. 8) Não há
de ser em mim nem fora de mim;
ninguém, nada pode mudar a si mesmo,
e nada que possa ser mudado”(Malevich,
Apud, Argan, 1992, p.672).
103
Cada livro é subdividido em cinco volumes
intercambiáveis.
O Livro é composto de quatro livros que
podem ser ordenados dois a dois formando
no todo um quinto, o livro total.
Cada volume comporta três grupos de oito folhas cada um, que podem ser organizadas e lidas de diversas maneiras.
Cada folha pode ser subdivida em ½ folha e ¼ de folha, ou ainda
em 18 linhas de doze palavras.
Uma paginação tridimensional vertical se
efetua folha a folha na extensão do
paralelepípedo construído pela
superposição dos cinco livros formando o
livro total.
objeto metafórico a ser definido e contextualizado
indefinidamente. Há a contínua modificação de relações entre
os elementos sincrônicos. Parte(s) inteira da totalidade.
Mallarmé visa então a dinâmica do bloco formado pelas
superposições. Tombeau, coffret e bloc; são três imagens
utilizadas por Mallarmé quando se referindo ao Livre. Um
cubo – linha, superfície e volume – que é explorado
sistematicamente em suas proporções, em todas suas possíveis
relações, em todos os possíveis pontos de vista. A forma cúbica
do livro, colocada em órbita, provoca o colapso da estabilidade
da superfície bidimensional e da própria sintaxe. Esse espaço
instável mantém o leitor em zonas de transição, de ressonância,
por onde se navega sem uma direção específica. Dissolve-se o
volume e fragmenta-se o espaço.
104
Página do poema Mallarmé,1897, Trad. de Haroldo de Campos
Um lance de dados,
Página de Exercício Findo de Décio Pignatari - 1968
Camara, São Luís, 2001
107
A cidade surgida do excedente da produção agrícola e
conseqüentemente da necessidade de organização social e
de gestão da produção coletiva, acabaria por gerar todo
tipo de excedente. O território de organização social
perderia seu padrão funcional. Já no século XIX descreve-
se os habitantes de East End em Londres como aqueles
que levavam “uma vida selvagem, sujeita a vicissitudes de
extrema dureza e excesso ocasional” (Booth, apud, Hall,
1995, p. 31). A cidade muitas vezes descrita como um imã
já não era mais capaz de exibir um padrão – ou uma
forma – que articulasse e contivesse satisfatoriamente
todos os elementos que atraia para si. O planejamento
urbano do século XX teria origem na reação da classe
média ao submundo urbano. A crescente complexidade dos
problemas abriria espaço para formulações radicais de um
novo urbanismo que pela premissa consideravam as
cidades já existentes inadequadas pra a nova configuração
industrial-urbana. Le Corbusier seria o nome central, seu
Plan Voisin de 1925 se realizado envolveria a derrubada
de boa parte de Paris. O plano ideal era uma cidade
absolutamente geométrica, construída sobre um terreno
limpo, onde cada unidade funcionasse como uma máquina
seja ela de morar ou de produzir.
As postulações construtivas sobre o problema pretendiam
a designação precisa do objeto e sua dinâmica, a partir da
projeção e do agenciamento do espaço. Investiu-se sobre a
racionalização do uso de elementos purificados e em
estado primário de modo a funcionar como geratrizes,
visando maior controle estatístico de suas resultantes. A
construção objetiva do espaço obedecia princípios de
uniformidade e concisão. O método consistia em
subdividir a superfície em unidades-padrão para que se
pudesse variar as diversas áreas com precisão, em termos
de organização e relatividade. A redução/teorização do
esquema objetivava o controle da totalidade do sistema e a
simplicidade resultante. Buscava-se o dimensionamento
harmonioso do espaço construído como num quadro, no
qual todos os elementos deveriam estar incorporados no
projeto para que se identificasse sem ambigüidade as
funções abrigadas pela arquitetura. As cidades projetadas
sob a perspectiva industrial enfatizaram a cadeia
seqüencial e a otimização do espaço pela eficácia e
economia de tempo. Define-se cada coisa em seu lugar,
num universo harmonioso e inteligível. Com isso
pretendia-se conter o signo informacional multiforme,
redundante, perecíveis, ou seja, toda poluição visual que
pudesse ser gerada anarquicamente e superposta à
arquitetura.
A concepção racionalista do modernismo tomaria como
função hegemônica a produção industrial e, a partir, desta
determinaria seu desenvolvimento. A cidade era pensada
“não mais como um lugar onde se mora, mas como uma
escrita urbana 2
108
SobrEscrita
máquina que deve realizar uma função”(Argan, 1993,
p.230). Tratava-se de objetivar a construção do espaço,
determinando sua subdivisão e sua progressão, e nele o
homem empenha-se em torno da produção.
Como projeto urbano propunha-se a relação dialética dos
diversos conteúdos de uma cidade, organizando o sistema
de modo a chegar numa resultante. Entretanto, a
resultante “não é um quadro estatístico nem a
representação sintética de uma situação social de fato; é
um programa, um plano, um projeto tendo em vista a
mudança de uma situação de fato reconhecida como
insatisfatória. Trata-se, porém, de saber o que e com que
fim se programa, se planeja, se projeta”(Ibid., p. 212). O
projeto, deste modo, oscila entre uma pretensa hegemonia,
de natureza ideológica, e a contínua transformação e
deslizamentos dos sistemas de signos, não passíveis de
processamento.
Almejava-se o controle do excesso de estímulos da vida
industrial/urbana através da fundamentação e
harmonização da realidade cotidiana com todas as suas
concentrações de valores. O racionalismo formal, por
querer redesenhar o mundo segundo seus próprios
preceitos, foi freqüentemente levado a uma estética
cartesiana, de concepção tecnocrática e programadora da
identidade cultural. O que se constata é que este
racionalismo, maquinizador da vida, não veio a assegurar
o bem-estar. O industrialismo não transformou a
sociedade classista numa sociedade horizontal, sem classes
e nem logrou em privilegiar funções sociais. Sobre o ideal
urbanístico do construtivismo escreveu Argan:
A cidade industrial da urbanística construtivista era como um
tabuleiro de damas no qual as pessoas se moviam segundo itinerários
obrigatórios e tempos pré-calculados, uma cidade cuja estrutura era
como um quadro de Mondrian. Porém o mesmo Mondrian, em seu
último período norte-americano, se deu conta de que era
utópica”(Ibid, p. 262).
O impacto sofrido por Mondrian frente à mega-cidade de
Nova York fez ruir fio preto o perfeito equilíbrio das
escalas para comunicar um mundo inteiramente de cores,
prismático. Já não era um mundo de fachadas, janelas ou
ambientes cuidadosamente modulados, mas visto do alto
do Empire States ou de grandes Boulevares com sua
arquitetura/signo (prédios/letreiros). Não se trata de um
espaço ritmado, mas do ritmo trazido para o interior da
linha pelas cores, multiplicando as vibrações no interior
do quadro e decompondo o espaço. A (pré)concepção da
estrutura (urbana) é abandonada, sendo esta então
entendida como um sistema dinâmico (in)definido pelas
relações dialéticas. Observe que neste momento Mondrian
passa a usar fitas adesivas, pedaços de papel ou pincela os
109
Escrita Urbana
pequenos retângulos sem regularidade e acabamento. Com
isso compõe indefinidamente os pequenos retângulos que
eventualmente se sobrepõem formando zonas nucleares e
evidenciando os deslocamentos em perspectiva dos
contrastes cromáticos. Abandonando a unidade estrutural
a pintura de Mondrian ganha caráter operatório que, por
definir, permanece inacabada.
Os funcionalistas pretendiam apreender a realidade pela
totalidade, sendo as partes especificidades funcionais
somente entendidas através do todo. Procurava-se
designar às formas o seu papel funcional. Não foi por
acaso que Malevich foi deixado de lado pelos
construtivistas. O intento da arte construtiva, ou mais
especificamente da arte concreta, foi o domínio de toda
aproximação fenomenológica para transformá-las em
resultantes experimentais objetivas, enquanto Malevich
voltou-se a uma atitude exploratória do espectador sobre
o objeto, considerando ser nas ações experimentais de
fruição sujeito/objeto que o objeto ganha significação. O
artista definiu o Suprematismo como “a supremacia do
sentimento puro na arte”(Apud, Chipp, 1988, p. 345),
sendo que “a sensação é sempre não-objetiva” e assim, diz
Malevich, “qualquer tentativa de se reconhecer a utilidade
de um objeto é utopia” (Ibid, p. 350). Entende o artista
que a pré-concepção de um objeto utilitário é inviável,
pois sempre leva a confinação do sentimento. A existência
do signo depende do uso, da ação, da leitura do espectador
– que confere expressividade e significação aos detalhes
significativos. Os deslocamentos táteis se fazem pela
integração sensorial do corpo/signo. Em atitude radical a
pintura de Malevich elimina a representação do objeto
propondo como experiência a “pura ausência de objetos”,
levando assim a sua pintura ao grau zero, o Quadrado
branco sobre fundo branco, expressão do ilimitado e do
absoluto.
O branco é, ao mesmo tempo, o vazio e o pleno, a pura
aparência, o momento mais intenso do espectro. O branco
é opaco (Wittgenstein, 1996, 17, p. 19), não se deixa
atravessar. Malevich rompe com a paisagem, diante do
universo de velocidades, extremamente visível e
diferenciado, saturado de elementos midiáticos. Por um
lado, a visibilidade extrema, o excesso de contrastes leva à
cegueira e acaba por conduzir ao refugio nos lugares
evidentes, no que já está precisamente definido e
conceituado, deixando-se escapar a sutil luminescência das
coisas e suas infinitas variáveis. Por outro, essa sutil
diferença, o branco sobre o branco, contém qualquer
possibilidade de experiência, para o qual na maioria das
vezes se é míope. A floresta suscita, ao homem urbano, a
visão de uma misteriosa mancha verde, vaga e contínua,
dada a incapacidade de distinguir suas infinitas texturas.
Kevin Lynch (1997) demonstra como povos que vivem em
110
SobrEscrita
paisagens “indiferenciadas” são capazes de perceber e
conferir significado aos detalhes significativos. “Os
aleutas não têm nomes nativos para os grandes
elementos verticais de sua paisagem: cordilheiras, picos,
vulcões, e demais coisas do gênero. Contudo, até a menor
das características horizontais por onde corre a água –
riacho, regato ou tanque – tinha seu próprio nome” (Ibid,
p. 150). Os povos nômades consideram vitais os
elementos de deslocamento. Em meio à paisagem gelada
de brancos, “sem rastros”, desenvolveram uma
cartografia própria. Guiam-se, por exemplo, pelas tênues
variantes de coloração das nuvens que indicam, pela
reflexão, a presença de terra ou de água, possibilitando-
lhes saber o que se encontra abaixo da linha do
horizonte. As cidades, por sua vez, são tradicionalmente
pensadas em termos de fronteiras, com estruturas
cuidadosamente lapidadas para que através delas
prismem as cores de vida. Revelam, porém, um universo
de conhecimentos para além do que lhes foi destinado,
ultra e intra cromático, acima e abaixo do campo visível,
escondido num canto qualquer daquilo que existe e que
não se deixa imprimir sob forma de um mapa.
111
Escrita Urbana
weingart
O tipógrafo suíço Wolfgang
Weingart, seguindo a tradição
construtiva na tipografia,
retomaria, nos anos sessenta, a
observação sobre a arquitetura
clássica. Mas, desta vez, ele não
iria buscar a precisa harmonia
estrutural destas construções e
sua simplificação final em linhas horizontais e verticais. Ele abandona
o conceito dado a essas obras e, lança um olhar especulativo sobre a
superfície, observando suas desfigurações, suas pequenas modulações,
suas texturas. O interesse se volta ao estado de ruína, aos fragmentos
resultantes das diversas ações do tempo.
Weingart investigava a passagem da composição mecânica à
fotocomposição, da impressão tipográfica (relevo) ao offset (plana). A
tipografia caracteriza-se pelo espaçamento fixo, pelo absoluto controle
da disposição dos elementos e pela regularidade dos tipos, já o offset
pela possibilidade, em função da planificação de todos os elementos
que integram a página, de uma de interação complexa e plástica entre
texto e imagem. No offset a imagem é dissolvida em reticulas e
recomposta por interpolações dos pontos. Não por acaso as paisagens
traduzidas por Weingart em tipografia são templos e cidades em
processo de dissolução, ou os espaços pueris dos desertos, que se
movimentam a cada lufada de vento.
112
franklinstein
“(...) passei-lhe (a Franklin Horylka) o problema do alfabeto vertical,
que há anos me atraía e preocupava: criado para a articulação e a
arquitetura horizontais, o alfabeto tipográfico, com ou sem serifa,
funcionava mal na formação vertical, especialmente com mais de seis
ou sete dígitos-letras, e piormente em caixa baixa. Eu não estava
interessado na funcionalidade da tradição mecânica e sua fantasística
conversão eletrônica, instaurava-se uma nova diversidade, barroca,
bem americanizada.
(...) como foi que, durante tantos anos, por alçapões e escápulas
renitentes, ocupei-me desse problema do alfabeto vertical, como se ele
fosse, não digo central e nuclear, mas importante em pertinência para
o design visual e gráfico da cidade? Como não suspeitar, ao menos, que
a questão poderia ter sofrido um certo processo de senilização ao longo
de minhas preocupações e ocupações e quanto parecia claro que a
cidade estava à beira de uma convulsão eletrônica produzida do alto,
pelos engenhos exploratórios e informacionais enviados ao espaço?
Alfabeto vertical, problemática bizarra condenada aos labirínticos
bastidores maneirístico e alienados de pseudo-investigações
científicas?...
(...) livrei-me da óbvia normalidade do signo discreto e singular, a
letra, passei a pensar em agrupamentos de letras, sílabas. Com o
problema-solução nas mãos, Frank me veio me veio com uma criação
surpreendente, na qual fundia as caixas alta e baixa e articulava
duplamente o jogo ortogonal vertical/horizontal.
(...) um que outro ponto duvidoso, com algo de art déco, que tanto
funciona na vertical como na horizontal, que monta palavras como
totens que o olho apalpa, que parece transformar todas as palavras em
poemas – e que não facilita a leitura! Este alfabeto que batizo de
Franklinstein (...)”(Pignatari, 2000, p. 103-5).
Poema de Décio Pignatari, 1975
Franklin Horylka, Alfabeto Vertical
Camara, Rio de Janeiro, 2003.
115
Diante da ausência do destino entra em crise a própria
idéia de projeto (este entendido como antecipação).
Segundo Argan esta crise “manifesta-se como uma
divergência crescente entre programação e projeto”,
sendo a programação a “preordenação calculada e quase
mecânica” que “tende não mais a preceder o projeto, mas
a substituí-lo como procura de soluções dialéticas para as
contradições que se vão determinando sucessivamente na
sociedade” e, o projeto “um processo integrado numa
concepção do desenvolvimento da sociedade como devir
histórico”. A crise de um esquema de vida projetada
seria, para Argan, a própria crise da cultura, na qual o
homem dimensiona sua existência e, segundo ele a
programação retiraria “dos indivíduos toda escolha e
decisão, conferindo-as ao poder. E, como tende à
repressão até mesmo violenta de qualquer contradição ao
seu sistema, nega à sociedade toda forma de existência
histórica” (Argan, 1993, p. 251).
A crise do projeto moderno deveu-se à imposição de uma
identidade cultural e à excessiva padronização do objeto.
Nas cidades ditas artificiais, aquelas criadas por
planejadores, a produção de espaço não ocorre de
maneira socializada, ou seja, não deriva do trabalho
individualizado. Este seria o caráter essencial da forma
de vida do homem, a criação do espaço geográfico em
processo, em ação, por acumulações de experiências,
ainda que os pequenos grupos de ação não se apercebam
do grande complexo do sistema. Esse caráter progressivo
e dinâmico da relação do homem com o ambiente, em
que vai se incorporando diferentes feições em diferentes
momentos históricos é que fazem a cidade adquirir
textura de vida. Esta textura seria característica das
cidades denominadas por Christopher Alexander como
naturais. Seriam estas as cidades que nasceram
‘espontaneamente’, resultado de uma série de heranças,
durante anos e anos, e, por isso, muito mais complexas,
pois seriam mais culturalizadas, mais humanizadas e,
também, mais artificializadas, visto que as formas
culturais serão sempre artificiais, pois são formas
impostas à natureza. (Santos, 1997b, p. 89). A
constatação de tais fatos levaria os urbanistas juntamente
com teóricos de diversas áreas a mudarem radicalmente a
estratégia de ação a partir dos anos 60 e 70. Ao invés do
espaço homogêneo dos modernos, passou-se a propor a
reabilitação dos bairros, a valorização do contexto, sem
demolições e sem violentar os moradores ou a memória
da cidade.
A cidade antes pensada pela racionalização do espaço
(subdivisão, expansão, distribuição), passa a ser proposta,
nos anos setenta, como um sistema de serviços e de
informação. O arquiteto Robert Venturi já identificaria
em Las Vegas uma arquitetura de signos a que ele se
escrita urbana 3
116
SobrEscrita
referia como anti-espacial, uma arquitetura de
comunicação e não de espaço. O próprio edifício já é o
anuncio. A publicidade está em toda parte, circulante e
conectada entre si. Estabelecia-se a lógica de mercado, na
qual realidade e representação deixam de ser categorias
estanques. Nos anos sessenta a promessa de liberdade
abrigaria as minorias e a diversidade, desabrochando em
movimentos como as revoluções sexual e feminina, o
pop, o rock etc. Tomou-se como mote a individualidade,
contraditória aos projetos comuns.
Hoje, a revolução da informação atinge diretamente as
configurações geométricas e estilhaça a cadeia linear,
introduzindo a lógica da simultaneidade, no qual tudo é
percebido ao mesmo tempo, num processo sem princípio
nem fim. As imagens visuais e auditivas que se dissipam
num mínimo gesto, criando a precipitação do tempo, dos
mundos virtuais e provocando uma saturação da
percepção no limite do intolerável. As formas deixam de
ter um papel exclusivamente funcional e ganham função
de marketing. “(...) nascem já prenhes de simbolismo, de
representatividade, de uma intencionalidade destinadas a
impor a idéia de um conteúdo e de um valor que, em
realidade, elas não têm. Seu significado é deformado pela
sua aparência” (Santos, 1997a, p. 41).
As medidas de ordem – econômica, políticas, militares,
etc. – são transformadas pelo paradigma informacional.
Os fluxos financeiros flutuantes se confundem com os
fluxos de bens, imagens e pessoas no mercado, que são
apropriados e consumidos através das mídias. A distância
entre os pontos se reduz a zero, em função do acesso
imediato e instantâneo. O campo deixa de ser distinguido
por unidades espaciais, e passa a ser compreendido pela
capacidade de integrar os sistemas dinâmicos de
articulação – pelos movimentos e suas direções. As novas
formas de consumo globalizado ocorrem à revelia da
localidade, articulado pelos meios de comunicação. O
consumo a domicílio e o crescimento das comunidades
virtuais, que se movem independente de uma rede
rodoviária, têm como conseqüência o esvaziamento dos
espaços públicos e a degradação dos territórios urbanos,
hoje considerados lentos, inseguros e catastróficos.
Entretanto, o desenvolvimento de fontes informacionais
em rede não tornou indiferente viver na cidade ou no
campo como se chegou a acreditar. As cidades ainda
mantêm-se como força atrativa (e dissipativa) de
diversos valores. Os mapeamentos simbólicos urbanos
produzem os contornos de diferenciação. Processa as
construções simbólicas do imaginário popular. É
sobretudo nas grandes metrópoles, que põe-se em
circulação as novas modalidades de consumo, com
alguma particularidade regional que o mercado sempre
117
Escrita Urbana
procura. A cultura mundial integrada desenvolve tanto
hibridização como a homogeneização.
Os grandes pólos passam a ser resultantes não só do
desenvolvimento econômico, mas também dos valores
que eles sedimentam. A cidade se caracteriza não mais
como um núcleo duro de produção, mas pelo valor de
uso. Ela deve ser imagética, promotora do evento
espetacular da cultura. Trata-se do cultural turn de que
fala Otília Arantes (2000), na qual a cultura torna-se
parte decisiva da política, da economia, enfim, da imagem
da cidade. Faz-se necessário a mega exposição, a
promoção de eventos internacionais e midiáticos, a
implantação do Guggenheim, os grandes projetos
arquitetônicos que se tornem imagem no mundo. A
cultura virou a vedete, como previu nos anos sessenta
Guy Debord, e isso colocaria o homem em alienação.
Imputa-se ao homem a liberdade total do gozo de sua
particularidade e identidade, para a contrapartida da
reprodução material do mundo globalizado. Celebra-se a
“ideologia da diversidade”, estetiza-se o heterogêneo, o
exótico. Nesse universo o homem decodifica e é
codificado, lê e é lido, passa a ser (auto)observável. O
‘homem comum’ pode ser um mero ‘vivenciador’ e não
agente. Mas também pode se auto-explodir no meio de
uma multidão e levá-la com ele. Os signos aos milhares,
os mil alvos diferentes, os homens, chegando-se até
aquele mais insignificante para capturá-lo com uma
câmera, planificá-lo, e em cadeia nacional multiplicá-lo
ao infinito para depois se dizer, ele é o retrato do
brasileiro comum. Transforma-se o particular, o
indivíduo em mercadoria. Não é um mundo desprovido
de razão. A medida de ordem é transformar um conjunto
de mensagens entrópicas, continuamente processadas, em
informação. De preferência, processar mensagens
improváveis, inesperadas, para que pela surpresa,
produzam informação.
118
SobrEscrita
o que faz juntar formigas? medida de dissolução.
Uma especulação sem dados: recentemente um prefeito da cidade do
Rio de Janeiro, tomou a iniciativa, zeloso que era da boa imagem da
cidade, de eliminar certas concentrações de pessoas indesejadas. Todos
os casos deveriam ser resolvidos democraticamente com o uso da lei,
sem imposição da força policial.
Em um dos casos, grupos de Pitboys reuniam-se freqüentemente à
noite nos finais de semana em frente às lojas de conveniência nos
postos de gasolina. Os grupos ali se encontravam e se preparavam para
a noite exibindo seus corpos sob a intensa e difusa luz fria, enquanto
consumiam um coquetel de energizante, cerveja e gasolina.
A medida de dissolução? Quebra de consistência – a retirada de um
dos elementos da composição. O legalmente viável? A proibição de
venda de cerveja em postos de gasolina. O argumento ao público?
Incompatibilidade entre os elementos álcool e direção. O imperativo
publicitário? Se beber não dirija, se dirigir não beba.
A medida mostrou-se (relativamente) eficiente até a primeira liminar.
119
Escrita Urbana
Camara, São Luís, 2001.
121
No lugar da conclusão chega-se ao início da formulação,
ao entranhamento verbal, vocal e visual. No caso, toma-se
a palavra – grama – de som e imagem idênticos, mas
sentidos e origens diversos. No mesmo vocábulo, outros
vocábulos. Dessa sugestiva ambiguidade a possibilidade de
abertura.
O ponto de partida: a frase “é grama, é rizoma” de
Deleuze e Guattari (1999, v. 1, p. 12).
Assim mesmo, ponto extraído não do texto original
(chiendent), mas da tradução – grama – e dela três
palavras homofonógrafas e algumas imagens:
1. grama
er er
er er
er
vv
vv
v
aa
aa
a
2. grama
pesopeso
pesopeso
peso
3. grama
gramáticagramática
gramáticagramática
gramática
ponto de partida
122
SobrEscrita
1. grama
er er
er er
er
vv
vv
v
aa
aa
a
- -
- -
- do lat. graminaS.f. erva, relva.
A relva que se estende indiferenciada para além do
horizonte. Indistinção que coloca o caboclo de cócoras
imerso nos “elementos do cisco(...): gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc. (Barros, 2001, p. 11).
As trilhas abertas na superfície da grama revelando as
incidências de percurso. Apagamentos por fricções na
trama. Formação de signos e figuras.
Artificial
xx
xx
x natural – A natureza pensada na modernidade
como abominável, pois caótica, entrópica, incontrolável.
Para Baudelaire “tudo quanto é belo é resultado da razão e
do cálculo” (2002, p. 875). A virtude seria artificial.
Submete-se a natureza à geometria elegante e encanta-se
o olho pelas divisões harmônicas e pelos jogos de
correspondência entre o tempo e o espaço. Havia na
modernidade o desejo de cidades projetadas de acordo com
a escala humana, de regularidade matemática. Ou a
semelhança articulada com a singularidade, ajustamento
de um elemento com os elementos adjacentes, a
multiplicidade reconciliada com a unidade global –
modulação. Objetiva o projeto a apreensão imediata da
estrutura na sua totalidade. A parte pelo todo.
Artificial
ee
ee
e natural – (ou pouco importa qual seja). Na
contemporaneidade a superdimensão das metrópoles
fragmenta a superfície, interpola estruturas, dissolve
formas, padrões, diferenciações e hierarquias. A metáfora
evidente: selva de pedra. O signo da metrópole é o caos.
Do alto uma textura a ser tateada. A visão do mundo em
fragmentos desconexos é de uniformidade. Do chão a
perda de referência espacial e de continuidade. A casa é o
corpo. A compreensão do espaço é resultante da
capacidade de abstrair e manipular a informação. Trata-se
de uma série de operações mentais que consistem no
reagrupamento de fragmentos, desdobramento do lugar
procurando constituir a figura. A unidade, a singularidade
do ser conhecidas, estatisticamente, pelo contorno do
global. A imersão no texto (visual, sonora, tátil, verbal
etc.) e sua leitura, a sustentar uma escrita, um núcleo de
significados. Do caminhar no labirinto a noção de lugar. A
parte é o todo.
123
Ponto de Partida
124
126
SobrEscrita
2 grama
peso peso
peso peso
peso - gr. Grámma - S. m. Fís. Unidade de
medida de massa no sistema.
A letra contendo a totalidade da linguagem. O “livro
expansão total da letra” (Mallarmé). Na internet a página é
o peso (Beiguelman). As diversas unidades discursivas
letra/sílaba/palavra/frase e suas interposições. A unidade
poética, a linha, o ideograma. O livro espaço de dispersão e
reunião. Uma certa totalidade.
A
caracara
caracara
cara e o
rostorosto
rostorosto
rosto. Cara do grego Kara, ‘cabeça’. Tomadas de
uma mesma espécie não se distingue a cabeça de um animal
de outra, compreendidas como volumes com características
genéricas. Um desconhecido na multidão, um cara.
Contudo, assinala Mcluhan, sobre o uso do ‘frio’ no lugar
do ‘quente’, a gíria opera espelhamentos, reversibilidades de
sentido, é o caso de se chamar o ‘chapa’ de ‘cara’, ou seja,
chama-se de cara um rosto íntimo. Da superfície de um
rosto, dos seus traços e rugas individualiza-se um cara, mas
“os rostos não são primeiramente individuais, eles definem
zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um
campo que neutraliza antecipadamente as expressões e
conexões rebeldes às significações conformes” (Deleuze;
Guattari, 1999, v. 3, p. 32).
Russel expõe o dilema entre
indivíduoindivíduo
indivíduoindivíduo
indivíduo e
cidadãocidadão
cidadãocidadão
cidadão. Em
princípio, ele diz, o indivíduo, tal como as mônadas, devem
espelhar o universo e harmonizar suas vontades com as
vontades conflitantes. Os atos individuais são sempre anti-
sociais, escreveu Artaud. “O indivíduo em si é auto-
suficiente, ao passo que o cidadão está essencialmente
circunscrito por seus semelhantes” (Russell, 1978, p. 15). O
cidadão coopera e procura um objetivo já pronto para
cooperar. O Estado deseja bons cidadãos (unívocos),
temendo indivíduos (equívocos). Curiosamente são
potencialmente estes, diz Russell, que introduzem as vias a
serem seguidas pelos cidadãos.
Borges escreveu: a massa de oprimidos é apenas uma
abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém.
Novamente a dicotomia entre o natural e o artificial. O
primeiro é livre e espontâneo, o segundo envolve a
consciência, a hierarquização e a ordem. E é justamente a
delimitação, a fusão e a dissociação alternada dos signos e, a
eliminação do acaso que permitem conhecer o contorno da
figura – individualizar pelo global. O homem individualiza
e se faz indivíduo, não foi de outra forma que ele se
descolou da natureza.
“Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e
segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos
maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e sua
construção, sua seleção, o plano de consistência, as unidades de
medida em cada caso” (Deleuze; Guattari, op. cit., v. 1, p.12).
127
Ponto de Partida
Waldemar Cordeiro, Indivíduo s/ massa, 1966
Waldemar Cordeiro, Massa s/ indivíduos, 1966
128
SobrEscrita
3 grama
gramática gramática
gramática gramática
gramática - el.comp. pospositivo, do gr.
grámma, - anagrama,(...), caligrama, (...), criptograma,
(...), diagrama (...) ver tb.gramático.
A gramática em princípio se refere à regularidade, à forma
física, às determinações semânticas, ao que pode ser
expresso através de sistemas de regras e de princípios.
Permite que se dê a conhecer um pensamento particular,
ou seja, que os homens se signifiquem. Possibilita a
intersubjetividade, ou a subjetividade absoluta.
Para que se de conta de fenômenos confusos e
desordenados, idealiza-se sistemas que dêem conta das
variações em determinadas condições de vida. É o processo
de busca não do elemento estável, mas o transitório,
aquele engendrado na medida em que se traça uma
trajetória. Por um lado, aspira-se por modelos
matemáticos do universo, o que justifica isolar um
elemento importante da estrutura do organismo. Por
outro essa grande estrutura se perde nos pormenores, nos
pontos obscuros que escapam para domínios não
delimitados.
Espécie de diagrama da linguagem.
Diagrama de uma percepção que engloba e é englobada
pelo mundo, abandonando a exclusividade de um ponto de
vista distanciado, do olhar déspota, mas também enlaçado
no movimento das diversas cadeias semióticas. Diagrama
não de repouso, mas de zonas de possibilidades. O
diagrama sugere uma infinitude.
129
Ponto de Partida
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