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CIDADANIA E IMAGINÁRIO POLÍTICO POPULAR
Hélvio Reis Peclat
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Ciência Política.
Orientadora: Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira
Rio de Janeiro
Novembro de 2005
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ii
CIDADANIA E IMAGINÁRIO POLÍTICO POPULAR
Hélvio Reis Peclat
Orientadora: Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Ciência Política.
Aprovada por:
___________________________________
Presidente, Profª. Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira
___________________________________
Profª. Elina Pessanha
___________________________________
Profª. Maria Lucia T. Werneck Vianna
Rio de Janeiro
Novembro de 2005
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Peclat, Hélvio Reis.
Cidadania e imaginário político popular/ Hélvio Reis
Peclat. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2005.
vii, 98f.: il.; 31 cm.
Orientadora: Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 88-90.
1. Tradição hibérica. 2. Direitos de cidadania. 3. Tradição
liberal. 4. Representação. 5. Políticas públicas. I. Oliveira,
Isabel de Assis Ribeiro de. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de
Pós-graduação em Ciência Política. III. Cidadania e imaginário
político popular.
iv
RESUMO
CIDADANIA E IMAGINÁRIO POLÍTICO POPULAR
Hélvio Reis Peclat
Orientadora: Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.
Esta dissertação objetiva analisar o imaginário político popular e busca
mostrar que as representações da cidadania nele encontradas conjugam valores
característicos de duas tradições de cultura política distintas, a saber: a tradição
liberal individualista e a tradição ibérica holista. A presença destes dois conjuntos
de valores é interpretada através do conceito de iberismo. De acordo com este
conceito, a cultura política ibérica sofre modificações substantivas em razão da
introdução, no país, de valores e princípios típicos da tradição liberal. Tendo em
vista o objetivo de comprovar esta perspectiva, analiso as pesquisas recentes que
mostram o modo pelo qual as classes populares pensam o poder, a sociedade e os
direitos de cidadania. Os resultados dessa análise apontam para a idéia de que as
representações orgânicas do poder e da sociedade parecem explicar o modo como
os direitos de cidadania e o regime democrático são pensados pelas classes
populares brasileiras. Os direitos individuais ou civis são vistos como articulados ao
ordenamento social presidido, por sua vez, por um código de ética regido pelas
idéias de respeito e honestidade. Assim, os valores individualistas disseminados
pelos projetos de cidadanização liberal promovidos por instituições governamentais
e não governamentais, parecem passar por re-interpretações e reajustes. A lógica
de articulação entre as práticas e representações dos cidadãos deve ser entendida
pela localização do indivíduo num dos grupos que formam a sociedade. Se a
sociedade é vista como composta por pobres e ricos, a ação estatal não deve
privilegiar os últimos em detrimento dos primeiros. Antes, deve agir de maneira a
garantir os direitos de cidadania de acordo com sua posição na hierarquia social.
Palavras-chave: tradição hibérica, direitos de cidadania, tradição liberal,
representação, políticas públicas.
Rio de Janeiro
Novembro de 2005
v
ABSTRACT
CITIZENSHIP AND POPULAR POLITICAL IMAGINARY
Hélvio Reis Peclat
Orientadora: Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política.
This dissertation aims to analyze the popular political imaginary in order
to demonstrate that representations of citizenship are related to values of two
politically distinct cultural traditions: the individual liberal tradition and the
Iberic integrated tradition. These two values are interpreted by the Iberist
conception. According to this concept the Iberist political culture has been going
through important changes due to dissemination of values and principles, typical
of the liberal tradition. Aiming to confirm this perspective, I analyze recent
research results that show how popular classes have been interpreting power,
society and the rights of citizenship. The results of this analysis indicate the idea
that the organic representations of power and society seem to explain how the
rights of citizenship and the democratic regime have been represented by the
Brazilian popular classes. Individual or civil rights are seen as articulated
according to the social order presided by an ethical code conducted by ideas of
honesty and respect. If society is a compound of rich and poor, government
action should not benefit the former in detriment of the others, but warrant
citizenship rights in proportion to one’s hierarchy in society.
Key words: iberic tradition, rights of citizenship, liberal tradition, representation,
public policies.
Rio de Janeiro
Novembro de 2005
vi
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que, das maneiras mais variadas, contribuíram para a
conclusão deste trabalho. Agradeço a minha mãe, Maria Luiza Reis Peclat, por me
ensinar a ter paciência para vencer obstáculos.
Agradeço a uma outra mãe que ganhei de presente da vida, Marlúcia
Marinho Fernandes, por me dar abrigo nas horas mais difíceis desses últimos anos
e a Érika Schereider, sua filha, que sempre me estimulou a prosseguir refletindo
sobre questões relacionadas a temas políticos.
Agradeço a meus amigos Carlos Alberto Gurgel Tavares, Vinícius Rangel do
Nascimento e Luis Antônio Polonini Isaias, por compartilharem das minhas
angústias e alegrias durante este período.
Agradeço a minha orientadora Isabel Ribeiro de Oliveira pela paciência,
apoio e confiança nos resultados deste trabalho. A oportunidade de trabalhar e
aprender com ela foram decisivos para minha trajetória acadêmica.
Agradeço aos professores Roque e Eli Diniz que demonstraram afeto e
compreensão nos momentos em que precisei.
Agradeço ao apoio dos professores, alunos e às direções das escolas
estaduais Abdala Chama e Professor José de Souza Herdy.
Agradeço a meu amigo Gláucio André e sua esposa Maria pelos momentos
de descontração e pela oportunidade de conhecer pessoas tão alegres como os
sergipanos.
Agradeço a todos os amigos que fiz durante o mestrado, Fábio, o sempre
engraçado Trota, Fabrício, Nilson, Edvar, Marcio’s, Francisco e Elizabeth, pelo
carinho com que sempre me trataram.
Agradeço a Faperj, pelo apoio financeiro com que contei durante o tempo
necessário.
vii
Dedico este trabalho a Malvina Caldas Reis
Que iniciou a travessia
Que agora retomo
viii
SUMÁRIO
Introdução 1
Capítulo 1. Cultura política e cidadania: uma relação fluida 8
Capítulo 2. O imaginário político das classes populares brasileiras 23
Holismo e sociabilidade
Holismo e mudança social
Holismo e governo
Capítulo 3. Cidadania regulada e ideário liberal: o difícil caminho 61
Cidadanização regulada e o imaginário político das classes populares
Cidadanização liberal: o difícil caminho
Conclusão 84
Referências bibliográficas 88
Introdução
O objetivo desta dissertação consiste em analisar as representações populares da
cidadania buscando mostrar que nelas o predomínio do holismo enquanto forma de
compreensão das relações de poder não contradiz a idéia de criação de uma cultura
de direitos. Sustento a hipótese de que princípios atrelados à tradição ibérica em
conjuminação com valores típicos da tradição de cultura política individualista,
constituem como que o arcabouço ideológico a partir do qual as classes populares
brasileiras vêm pautando suas práticas e representações do poder e da sociedade.
Desde logo devo advertir que a pesquisa cujos resultados aqui apresento
não se fez sem o recurso às formas pelas quais o imaginário político das classes
populares brasileiras vem sendo apresentado pela literatura especializada. Este
recurso justifica-se tendo em vista a preocupação primordial de compreender a
maneira como estas pensam o poder, a sociedade, e os mecanismos de
participação política. Trata-se então de uma tentativa de atualizar um debate que
reputo necessário para o entendimento das particularidades que permitem
qualificar a democracia brasileira.
O primeiro aspecto a ser destacado no que diz respeito à afirmação da
existência de princípios e valores de tradições de cultura política distintos operando
em nosso imaginário popular, reside no significado e importância a ser conferida à
consciência individual, autônoma, nas práticas políticas dos cidadãos. De acordo
com a concepção liberal clássica de democracia a formação de esferas político-
jurídicas responsáveis pela administração do Estado constituir-se-á segundo um
pacto. Realizado entre indivíduos autônomos e calculistas tal contrato resulta na
constituição desta esfera pública como melhor meio de garantir a fruição de suas
propriedades. Aqui a ênfase recai na constituição de uma ordem pública calcada no
direito subjetivo que, por sua vez, está baseado nas vontades particulares dos
indivíduos. Daí poder-se afirmar que os cidadãos, tal como concebidos num
ordenamento político liberal, são capazes de participar ativamente da vida pública
2
já que esta é criada, artificialmente, para o benefício de cada um em particular. O
interesse no pleno funcionamento desta ordem política coincide, assim, com os
interesses de cada um em particular. Estamos, desta forma, no reino da
consciência individual, autônoma, que fundamenta um tipo de sociabilidade típico
das culturas anglo-saxônicas.
A contrapartida desta idéia é apresentada por Toqueville.
1
O problema, que
aqui interessa, apontado por este autor, é o fato de que, numa sociedade baseada
num padrão de sociabilidade individualista, como é o caso da estadunidense, as
possibilidades de que os membros da sociedade política não participem dos
negócios públicos aumentam na medida em que tendem a se isolar e voltar-se mais
para suas vidas particulares. Este fato poderia gerar, na ausência de estruturação
de classes sociais de forma escalonada, tal como nas nações absolutistas européias
ocidentais citadas por Toqueville como contra exemplo, um retraimento dos
cidadãos relativo à esfera pública e um aumento significativo do poder central. Isto
poderia contribuir, em longo prazo, para formação de sistemas políticos mais
fechados, ou despóticos, conseqüência não desejada pelos defensores mais
ardorosos do igualitarismo societário produzido pela democracia nos Estados
Unidos. Assim, a cultura política anglo-saxônica pode ser condizente com regimes
políticos autoritários ou democráticos.
Por outro lado, as criticas às concepções que afirmam que (1) o indivíduo é
um ser regido por sua consciência, (2) a sociedade deriva da simples escolha
racional individual e (3) que as escolhas individuais não estão sujeitas aos
interesses das classes sociais, elaboradas, respectivamente, por Freud, Durkheim e
Karl Marx, no mínimo devem ser consideradas quando se propõe uma análise crítica
das idéias e princípios fundamentais do liberalismo político.
Já de acordo com o tipo de diagramação do poder tal como formulado pelos
autores referidos à tradição do pensamento político ibérico, a participação política
1
TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América.
3
dos indivíduos não pode ser pensada sem que se faça referência à ordem social
previamente constituída. Aqui, a liberdade individual está consubstanciada no
direito de pertencer à comunidade política.
A definição de Vitória talvez seja a mais precisa. Para ele, o direito
subjetivo é o direito que todos tem de pertencer a uma
comunidade política e nela expressar livremente sua vontade. É no
âmbito desta formulação que encontramos no pensamento de
Vitória a defesa do direito de ir e vir, de comerciar e de expressar
livremente a opinião, atribuídos usualmente ao liberalismo.
2
No entanto, tal liberdade efetiva-se dentro de uma ordem social cuja justiça
não deriva das escolhas particulares, mas é dada pela obediência à lei, objetiva, da
natureza.
A crítica a esta forma de pensar a política aponta para o fato desta basear-
se em pressupostos hierárquicos e autoritários que acabam por reduzir o potencial
de atuação autônoma, consciente, e responsável dos indivíduos na vida política da
sociedade. Como afirma Schwartzman,
nosso legado ibérico (o legado ibérico brasileiro) só contribuiu para
um reforço do autoritarismo que tanto marca nossa prática
política.
3
A respeito desta crítica, tentarei nuançá-la através da análise das
representações da justiça e dos direitos presentes no imaginário popular brasileiro.
Buscarei mostrar que, seguindo vertentes analíticas que propõem uma revisão do
impacto do legado ibérico na cultura política brasileira, a despeito da presença de
traços autoritários na mesma, há representações de direitos de cidadania que,
inclusive, comportam direitos individuais.
Assim, evito a tentação de eleger determinada concepção da política como
única capaz de conduzir ao regime democrático. Na verdade, opto por tomar como
premissa fundamental para a reflexão sobre cidadania e cultura política a idéia de
Vianna que vê no iberismo uma construção política própria capaz de associar
2
OLIVEIRA, I. de A. R. Direito subjetivo e sociabilidade natural: uma revisão do
legado ibérico: 184.
3
SCHWARTZMAN, S. apud OLIVEIRA, I. de A. R. Direito subjetivo e sociabilidade
natural: uma revisão do legado ibérico: 5.
4
elementos da cultura política liberal americanista àqueles freqüentemente
associados à tradição ibérica do escolasticismo tardio, resultando numa modulação
original do Ocidente moderno.
4
A postulação de Vianna não objetiva reproduzir
uma das tradições em detrimento da outra, mas mostrar que mesmo no interior da
perspectiva americanista, que vê na organização do sistema político nos moldes
liberais a solução para a saída do atraso representado pela cultura política ibérica,
há um reconhecimento do predomínio desta cultura no imaginário popular. Ou seja,
a cultura política ibérica deve ser tomada como elemento estruturante do
imaginário popular e todos os projetos de organização da ordem política devem
considerá-la.
Assim, para Vianna, trata-se de enfatizar a articulação dos princípios ibéricos
com os do liberalismo reconhecidamente presente nas mentalidades populares. Ou
seja, nenhuma das correntes de pensamento acaba por se impor à cultura política
brasileira, mas são relidas e reelaboradas continuamente na prática política
cotidiana. Como afirma Oliveira, essa releitura de Vianna propicia
uma concepção de processo contínuo (mas não linearmente
progressivo) de formação dessa cultura, que nos permite agir e
interpretar as relações de poder por meio da identidade que nos
confere.
5
O conceito de iberismo assim entendido será tomado enquanto hipótese
central para a análise da cidadania tal como representada pelas classes populares.
Na primeira parte da dissertação mostrarei a importância da cultura política
para o entendimento das práticas políticas relacionadas ao exercício popular dos
direitos e deveres de cidadania. Para isto, farei uso seletivo do instrumental
analítico produzido por Almond e Verba em seu estudo da cultura cívica.
6
O
conceito de cultura política será acionado para esclarecer o modo como o
4
VIANNA, Luiz Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira
Vianna com Tavares Bastos: 147.
5
OLIVEIRA, I. de A. R. Direito subjetivo e sociabilidade natural: uma revisão do
legado ibérico: 188.
6
ALMOND & VERBA. The Civic Culture.
5
imaginário popular representa o poder sem, contudo, derivar dele um tipo
específico de cultura cívica tido por necessário ao funcionamento de um regime
democrático. Alternativamente, a cultura política brasileira será aqui compreendida
de acordo com o conceito de iberismo formulado por Vianna. Ou seja, buscarei
mostrar como o estudo dos valores associados à tradição ibérica e à tradição liberal
americanista contribui para o entendimento do modo como as representações e
práticas da cidadania vêm se configurando em nosso imaginário político popular.
Logo após mostrar a importância da cultura política para a reflexão sobre a
cidadania, iniciarei a exposição da literatura que utilizarei para caracterizar os
contornos e nuances dos modos de compreender o poder e a cidadania tal como
inscritos no imaginário das classes populares brasileiras. Isso será feito através,
principalmente, do uso das pesquisas de Caldeira
7
e Vidal
8
que tratam,
respectivamente, dos resultados das representações políticas dos moradores de
Jardim das Camélias, bairro da periferia paulistana e Brasília Teimosa, uma favela
de Recife.
Inicio descrevendo o imaginário político das classes populares ressaltando
que a forma de sociabilidade prevalecente determina um tipo de sociedade
hierarquizada composta de pobres e ricos. Se a sociedade é representada como
hierarquizada, as possibilidades de mobilidade social são restritas e sempre se
referem a regras anteriores às escolhas individuais e dos grupos que a compõe.
Esta hierarquia se mostra regida pela idéia de respeito que, por sua vez, funciona
como um imperativo ético determinante das posições sociais e dos direitos e
deveres dos cidadãos. A análise desta categoria identificará três tipos de
representação do poder: a primeira se mostra condizente com o autoritarismo
típico de nossa cultura política; a segunda sugere a presença da idéia de igualdade
7
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos.
8
VIDAL, D. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife. Ver
também, da mesma autora, Reflexões acerca da contribuição da experiência
brasileira para a compreensão da cidadania democrática moderna.
6
sem que o caráter holista e hierárquico do poder seja negado; e a terceira significa
uma ruptura com nossa tradição de cultura política em vista da prevalência dos
ideais de igualdade e individualidade. A presença de valores associados às tradições
ibéricas e liberais no imaginário político popular parece ratificar a hipótese deste
trabalho. Na seção destinada a tratar das relações entre holismo e governo, reforço
a idéia da presença de uma representação da justiça enquanto atributo da ordem
social como determinante dos lugares e das funções atribuídos ao poder público.
Finalizo o capítulo tratando das relações de poder clientelistas, e, mais
especificamente, do significado de seu enfraquecimento.
No terceiro capítulo, apresento a maneira pela qual a prática da cidadania
brasileira é caracterizada por Wanderley Guilherme dos Santos e as possibilidades
de a mesma ser modificada através da disseminação de valores tipicamente
liberais. Aplicando modelos de cidadania baseados em formulações liberais
contemporâneas, Santos avalia nossa democracia, ou poliarquia, como incompleta,
em função da penetração limitada de suas instituições e práticas típicas na cultura
política brasileira.
9
O maior entrave à consolidação de uma cultura cívica constituir-
se-á no processo de organização estatal da industrialização brasileira baseado no
modelo de cidadania regulada. Desta tratarei buscando evidenciar seus entraves e
potencialidades para a prática da cidadania.
Após apresentar o conceito de cidadania regulada desenvolvo a crítica dos
projetos de cidadanização liberal tomados como caminho para a disseminação de
uma cultura de direitos no Brasil. Tais projetos são calcados nas idéias de
individualização, racionalização e responsabilização e se defrontam com formas
holistas de sociabilidade e de representações do poder. A crítica desses projetos
será feita através dos questionamentos formulados por Luiz Fernando Duarte.
10
As
formas de representação holistas e hierárquicas da ordem política encontradas no
9
SANTOS, W. G dos. Razões da desordem.
10
DUARTE, BASTED, TAULOIS & GARCIA. Vicissitudes e limites da conversão à
cidadania nas classes populares brasileiras.
7
imaginário das classes populares explicariam sua resistência ao projeto de
cidadanização e conversão às práticas políticas liberais, sem, contudo, negar a
presença de direitos individuais como atributo do ordenamento político. Encerro o
capítulo reforçando a idéia de que a tensão entre holismo e individualismo
permanece alimentando nosso imaginário político popular e desafiando as análises
que tratam dos temas referidos à cidadania e à democracia no Brasil.
Concluo a dissertação reafirmando que a hipótese iberista é capaz de
conferir inteligibilidade às contradições entre uma ordem política holista e a
necessidade de institucionalização de uma cultura de direitos no imaginário
popular.
Capítulo 1
Cultura política e cidadania: uma relação fluida
Tendo em vista o pressuposto fundamental que orienta e baliza a abordagem
acerca da cidadania tal como apresentada por Van Gunsteren,
11
segundo o qual a
cidadania é um artefato a ser elaborado e reelaborado coletivamente em função da
identidade coletiva forjada por uma dada comunidade política, compreendo que
esta idéia deve ser incorporada ao conceito de cultura política.
O modo como utilizo tal idéia permite-me inferir que seu uso no estudo de
uma comunidade política específica não pressupõe qualquer tipo de engessamento
heurístico responsável por determinações pré-estabelecidas de formatos de
sistemas políticos irrevogáveis. Na prática isto significa que não compartilho
perspectivas que advogam o princípio segundo o qual um sistema político
democrático necessariamente deve consubstanciar-se numa ou noutra tradição ou
cultura política.
Uma das maneiras de esclarecer esta postura epistemológica pode ser
apresentada atentando-se para o caráter histórico e dinâmico da formação dos
Estados nacionais modernos e das regras definidoras do status de cidadania por
suas sociedades. Nesse caso é forçoso reconhecer que não há um modo coletivo
único de forjar a dimensão propriamente política da vida social de modo que esta
permita o pleno exercício dos direitos e liberdades individuais na presença de um
poder político democrático. A esse respeito compartilho o pensamento apresentado
por José Murilo de Carvalho quando salienta a existência de percursos distintos de
formação da cultura cívica:
Além das análises de Richard Morse
12
que salientam os contrastes
entre as tradições ibérica e anglo-saxônica, vários outros estudos
chamam atenção para tradições distintas dentro da própria
11
VAN GUNSTEREN, H. A theory of Citizenship: Organizing Plurality in
Contemporary Democracies.
12
MORSE, R. M. O espelho de Próspero: cultura e idéias na América.
9
Europa, exemplificadas sobretudo nos casos inglês, francês e
alemão. Diferenças têm sido apontadas mesmo entre as culturas
cívicas inglesa e norte-americana, geralmente tratadas como
pertencentes a uma mesma tradição.
13
Aplicando esta idéia ao debate contemporâneo acerca dos modelos de
democracia assumo que as relações entre cultura política e cidadania são mais
complexas do que aquelas defendidas por autores que vislumbram a aproximação
ao regime ideal através de um percurso normativo singular.
Neste sentido, este capítulo se desdobrará em três partes. Na primeira,
tomo como ponto de partida o instrumental analítico desenvolvido por Almond e
Verba na definição de cultura política.
14
Essa definição adquire centralidade aqui
porque através dela organizo minha abordagem da cultura política brasileira, chave
para compreender como a cidadania é pensada pelas classes populares.
Na segunda parte, procuro desfazer a idéia de que a democracia apenas se
sustenta quando associada à cultura cívica liberal anglo-saxônica. O tratamento
crítico dessa idéia me parece útil por permitir extrair da análise das concepções
populares dos ideais de justiça um tipo de cultura cívica condizente com os
pressupostos de um regime democrático. Ou seja, trata-se de apresentar uma
visão holista de sociedade, encontrada nas representações populares do poder, na
qual critérios determinantes das idéias de direitos e deveres apontam para uma
maneira específica de se pensar a cidadania e os atributos do Estado que não deve
ser simplesmente vista como paroquial ou submissa. No mesmo sentido, Kuschnir e
Carneiro
15
reafirmam a relevância e originalidade do trabalho de Almond e Verba
no campo das pesquisas sobre cultura política, criticando, porém, a idéia segundo a
qual regimes democráticos apenas se coadunam com o ethos liberal anglo-saxão.
Para finalizar o capítulo, tratarei do modo como farei uso da definição de
cultura política formulada por Almond e Verba através de uma breve incursão no
13
CARVALHO, J. M. de. Cidadania: tipos e percursos: 1.
14
ALMOND & VERBA. The Civic Culture.
15
KUSCHNIR & CARNEIRO. As dimensões subjetivas da política: cultura política
e antropologia política.
10
conceito de iberismo elaborado por Morse e Werneck Vianna. Desta forma, busco
ratificar a idéia de que o regime democrático não necessariamente deve associar-se
a uma tradição de cultura política particular, podendo, inclusive, derivar de uma
concepção holista do poder. Passo a tratar do primeiro tópico.
O contexto histórico sobre o qual Almond e Verba desenvolveram o conceito de
cultura política pode ser caracterizado pelos dilemas originados no impacto da
conjuntura política do pós-guerra para a institucionalização de regimes
democráticos frente aos avanços do fascismo e do socialismo real no continente
europeu e a explosão de novas nacionalidades na Ásia e na África. No primeiro
caso, a participação política cidadã seria restrita em conseqüência de sua condição
de subordinação frente ao poder totalitário, ainda que este pudesse adotar,
formalmente, a institucionalidade típica de sistemas democráticos. No segundo, a
descolonização dos continentes asiático e africano geraria crescentes dificuldades
para seus novos governantes no que diz respeito ao atendimento das demandas
por mais participação política, restando a eles barrar a entrada deste contingente
populacional na esfera pública.
Se, por um lado, o desenrolar da história de boa parte destes países aponta
para a difusão de instituições políticas democráticas (sufrágio universal, partidos
políticos e legisladores eleitos) e ideais típicos deste modelo de organização do
poder (liberdade e dignidade individuais, e governantes autorizados em seu
exercício pelo consenso dos governados), seus povos, tendo em vista suas
trajetórias políticas particulares, não necessariamente as adotariam e os
acionariam, como nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, modelos de
desenvolvimento e consolidação da cultura cívica. E por que razão a simples difusão
destas instituições não seria suficiente para consolidar democracias mais estáveis?,
questionam-se os autores.
11
Para responder a esta questão ambos apontam para os diferentes sistemas
de crenças que fundamentam as atitudes políticas dos membros de uma sociedade.
Estes sistemas devem ser compreendidos como a cultura política de um povo
definida da seguinte maneira:
The term political culture thus refers to the specifically political
orientations - attitudes toward the political system and its various
parts, and attitudes toward the role of the self in the system.
16
Esta resposta pode ser interpretada como um reconhecimento teórico de que
as instituições democráticas por si só são insuficientes para garantir o
funcionamento estável dos regimes democráticos. Regimes democráticos devem,
necessariamente, contar com instituições que operacionalizem de forma pacífica e
procedimental os conflitos e as demandas da sociedade. Porém, seu efetivo
funcionamento depende de um sistema de crenças e valores que as sustente:
A esse respeito Lechner (1994) defende que a menos que se
desenvolva uma racionalidade normativa, vale dizer, uma cultura
política que valorize a democracia como valor, junto a uma
racionalidade técnico-instrumental, o processo de modernização
democrática somente poderá assentar-se em bases autoritárias de
dominação.
17
Assim, o tema específico da cultura política diz respeito às orientações e
atitudes relacionadas ao sistema político. As partes que compõem esse sistema são
classificadas, por Almond e Verba, em três classes. A primeira diz respeito às
estruturas legislativa e executiva. A segunda refere-se à classe daqueles
incumbidos do exercício de papéis no interior dessas estruturas, ou seja,
legisladores e administradores. A última classe de objetos do sistema político
encontra-se nas políticas públicas particulares, decisões ou enforcement de
decisões.
18
Em relação às orientações/atitudes, Almond e Verba, seguindo Parsons
e Shils, sugerem três tipos: a) Orientação cognitiva, que diz respeito aos
conhecimentos acerca do sistema político e a credibilidade nele, nos papéis e nas
16
ALMOND & VERBA. The Civic Culture: 12.
17
BAQUERO, M. Construindo uma outra sociedade: o capital social na
estruturação de uma cultura política participativa no Brasil: 88.
18
ALMOND & VERBA. The Civic Culture: 14.
12
pessoas incumbidas de desempenhar estes papéis, bem como acerca de seus
inputs e outpus; b) Orientação afetiva, isto é, os sentimentos a respeito dos
diversos elementos que compõem o sistema político; e c) Orientação avaliacional,
que incorpora elementos das demais na medida em que encerra julgamentos e
opiniões sobre o universo político baseando-se em critérios e valores
compartilhados socialmente, em informações e sentimentos.
O que ambos os autores estão propondo em seu estudo sobre a cultura
cívica é a possibilidade de abstração dos componentes de um sistema de poder,
seus objetos e as orientações e atitudes dos cidadãos referidas a eles, buscando
evidenciar de que modo eles se combinam e contribuem para a conformação de um
regime fechado ou aberto à participação política cidadã. Meu interesse nesse
conceito, entretanto, limita-se a destacar a síntese das representações sociais do
poder e atitudes dos indivíduos frente a ele. Ou seja, trata-se de caracterizar o
modo como são estipulados coletivamente os critérios que servem de referência
aos julgamentos acerca do sistema político como um todo, das ações políticas dos
responsáveis pela condução do poder e da participação dos cidadãos na vida
pública.
Tendo definido o conceito de cultura política ao qual farei uso para
caracterizar a cidadania tal como vem se constituindo entre as classes populares
brasileiras, passo a considerar a associação feita por Almond e Verba entre um tipo
particular de manifestação da mesma que supostamente conduziria à consolidação
da democracia.
Para ambos os autores, a tipificação da cultura política de uma sociedade, se
mais ou menos cívica, será determinada na medida em que forem conhecidas as
orientações dos indivíduos para os objetos políticos, as modalidades de orientação,
o fato de estes objetos implicarem ou não no aumento da participação nas decisões
políticas e no fortalecimento ou enfraquecimento dos mecanismos de enforcement,
ou seja, na adesão e participação efetiva nos processos de implementação das
13
políticas públicas. Através de um exame do modo pelo qual os objetos políticos são
internalizados pelos cidadãos, seria então possível classificar a cultura política de
uma sociedade particular de três maneiras, como: cultura súdita, paroquial ou
cívica. Da última, que aqui interessa, trato a seguir.
A cultura cívica apenas existirá quando houver uma cultura política de
participação congruente com a estrutura política.
19
Tal cultura é identificada pela
cultura política estadunidense. Portanto, de acordo com os autores, se há
instituições políticas democráticas numa dada sociedade sem correspondente
cultura de participação nestas instituições não se pode falar em cultura cívica muito
menos em cultura cívica não participativa, já que desta maneira enunciar-se-ia uma
contradição nos próprios termos da formulação. Sistemas políticos democráticos
serão viáveis apenas se as culturas políticas que lhe dão suporte, e por que não
dizer, o tornam operacional, forem baseados na cultura cívica.
Se tomo o conceito de cultura política como variável central de minha
abordagem da cidadania tal como representada pelas classes populares, não
atribuo a um tipo particular da mesma a possibilidade de consolidação de um
regime democrático. Como enfatizam Przeworski et al, Almond e Verba associam
democracia à cultura cívica estadunidense. Assim:
A cultura que Almond e Verba identificaram como democrática, a
cultura cívica, ostentava uma misteriosa semelhança com o que se
poderia esperar encontrar nos Estados Unidos. Não surpreende
que os Estados Unidos se ajustassem melhor ao ideal da cultura
democrática, seguidos pelo Reino Unido. E, sendo a democracia
nesses países mais antiga – mais estável – do que na Alemanha,
na Itália ou no México, a hipótese central do estudo encontrou
apoio nos dados testados: um tipo particular de cultura
política é requisito para uma democracia estável.
20
O problema na conceituação de cultura política, tal como feita por Almond e
Verba, reside no fato de que está se supondo que o conjunto de valores e crenças
políticas que explicariam o desenvolvimento de uma cultura cívica nos Estados
19
Idem: 30.
20
PRZEWORSKI, CHEIBUB & LIMONGI. Democracia e cultura: uma visão não
culturalista: 14. Grifo meu.
14
Unidos seriam decisivamente necessários para a consolidação de um regime político
democrático estável. Castro já procurara apontar o fato de que essa análise
respondia a uma dupla demanda:
por um lado, reforçar e justificar a compreensão da supremacia da
sociedade norte-americana como modelo a ser seguido; por outro,
promover e justificar a política norte-americana [...].
21
A idéia de que um tipo de cultura política, ou de cultura cívica, deva se
impor como condição sem a qual não pode haver consolidação da democracia
também está presente em análises de autores voltadas para a compreensão da
cidadania no Brasil que associam cultura política ibérica a déficit de participação
política. Neste sentido, mais uma vez a cultura política anglo-saxônica, ainda num
contexto histórico claramente distinto, é colocada como parâmetro normativo para
a conversão à suposta democracia autêntica.
De acordo com essa perspectiva, defendida por parcela significativa da
literatura especializada, que enfatiza o baixo nível de associativismo no Brasil, as
representações hierarquizadas e holistas do poder produzidas pelas classes
populares brasileiras poderiam ser tomadas enquanto manifestações de algo como
uma cultura política de tipo paroquial. Nesta,
as sociedades seriam caracterizadas ainda por baixos níveis de
participação política e associativa, na medida em que os agentes
têm uma visão limitada das estruturas de incorporação e resposta
às demandas individuais e coletivas.
22
Entretanto, a despeito de tal leitura da realidade política brasileira, reafirmo
que é possível pensar numa ordem política democrática caracterizada pela presença
de critérios baseados numa concepção holista de justiça que definem os direitos e
deveres dos cidadãos. Ou seja, o baixo grau de associativismo no Brasil não é
suficiente para caracterizar a política como paroquial, pois são muitas as razões que
podem explicá-lo, e não necessariamente uma visão limitada. A esse tópico voltarei
21
Castro apud BORBA, J. Cultura política, ideologia e comportamento eleitoral:
alguns apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro.
22
KUSCHNIR & CARNEIRO. As dimensões subjetivas da política: cultura política
e antropologia política: 6.
15
mais adiante, no texto. Frente a este tipo de postulação, reitero a possibilidade de
diversas vinculações entre instituições democráticas e diferentes culturas políticas.
Uma vez aceita tal postulação cabe investigar o modo pelo qual uma versão
específica da democracia -a liberal - é absorvida em uma versão ibérica. É neste
sentido que interpreto a afirmação de Moisés quando enfatiza a reciprocidade de
influências estabelecidas entre cultura política e instituições democráticas e a
tendência de sedimentação de ambas com o passar do tempo e dos processos
constitutivos dos sistemas políticos.
[...] processos clássicos de democratização sugerem que, mesmo
admitindo-se a existência de certa margem de autonomia na sua
formação, valores, atitudes e procedimentos políticos se reforçam
a partir da interação entre o comportamento e o funcionamento
das instituições políticas, algo que implica tanto em processos de
aprendizagem do seu uso, como de ressocialização política
induzida pela experiência, mas ambos sedimentam-se com o
passar do tempo e com a continuidade dos processos que
constituem os sistemas políticos.
23
De acordo com o pressuposto aqui assumido, duas implicações tornam-se
prováveis. A primeira delas é a de que a aposta numa conversão das classes
populares à cultura cívica liberal parece desconsiderar que a moldura jurídico-
institucional democrática, vigente desde a abertura do sistema político brasileiro em
1985, está posta para cidadãos cujo imaginário político é tipicamente iberista.
Tomando está constatação como ponto de partida para refletir sobre a cidadania no
Brasil é possível afirmar que os processos de ressocialização política, num contexto
em que prevalecem valores, atitudes e procedimentos políticos calcados no
imaginário político iberista, podem ensejar o surgimento de um tipo de cultura
cívica não necessariamente liberal.
Devo adiantar que um forte apelo à dimensão ética e à justiça, tal como
formuladas pelas concepções ibéricas de sociedade, parece presidir em larga
medida o sistema de representações sociais sobre poder entre as classes populares.
Este me parece ser o elemento constitutivo da linguagem mestra mais apropriada
23
Moises (1995) apud BORBA, J. Cultura política, ideologia e comportamento
eleitoral: alguns apontamentos teóricos sobre o caso brasileiro: 94.
16
para o entendimento, no caso brasileiro, das relações entre cidadãos e o sistema
político como um todo. Ou seja, se a maneira como os indivíduos representam a
política e seus papéis enquanto cidadãos se dá de modo articulado, tal articulação
fundamenta-se em representações sociais compartilhadas caracterizadas pelo viés
holista no qual a justiça do sistema político é referida à ordem social e não ao
indivíduo.
24
A segunda implicação, corolário da primeira, diz respeito à percepção
segundo a qual a disseminação de ideologias calcadas nas idéias de individualismo
societário, racionalidade instrumental e responsabilização dos poderes, baseadas
num ideário de justiça liberal, deve passar por re-interpretações cujos sentidos
produzirão novas identidades, formas de inserção no mundo da política e,
conseqüentemente, a própria reformulação deste. Assim,
(...) a ideologia veiculada no discurso da classe dominante é
metabolizada pelos dominados com diferentes graus de
organização e complexidade. Se, por um lado, a ideologia é uma
dimensão que marca o processo de estruturação do campo de
representação, por outro lado o processo representativo remodela
e reelabora todos os elementos e dimensões que nele incidem,
inclusive a ideologia, reestruturando-os num novo produto
diferente deles: o conhecimento de senso comum. Ou seja, os
mecanismos representativos são responsáveis pela remodelação e
conseqüentemente pela difusão diferenciada da ideologia
dominante entre indivíduos e grupos sociais. É através dos
mecanismos representativos que simultaneamente apreendemos o
mundo e partilhamos da ideologia dominante.
25
Neste sentido, mais uma vez encontro razões para um afastamento do
modelo clássico de Almond e Verba em razão do pressuposto já explicitado,
segundo o qual existe a alternativa de outro padrão cultural que não o anglo-saxão,
neste caso o iberista, possibilitar a formação de um regime de poder democrático.
Refletir sobre cidadania no Brasil significa tratar das ambigüidades
produzidas por discursos que visam organizar o seu imaginário popular de modo a
evidenciar de que modo as práticas políticas cotidianas traduzem tais ideologias.
24
Sobre isso, ver ANDRADE, M. A. A. de. Cultura Política e Representações
Sociais: Considerações Metodológicas.
25
Idem: 27.
17
Assim, se impõe a necessidade de uma breve incursão no debate que trata das
matrizes valorativas que influenciaram os processos formativos de nossa cultura
política. Isso será feito através da abordagem do conceito de iberismo.
Em O Espelho de Próspero, Morse propõe uma mudança radical de perspectiva
relativamente ao continente americano, ao tratar da influência dos princípios e
crenças das tradições ibérica e anglo-saxônica. Dessa argumentação me interessa
menos sua postura negativa frente à modulação estadunidense do ocidente do que
sua crítica à concepção segundo a qual, de um lado, regimes democráticos são
exclusivamente derivados da cultura política anglo-saxônica, e, de outro, a tradição
ibérica esta atavicamente associada a regimes autoritários. De acordo com tal
crítica, regimes democráticos são compatíveis com a tradição política ibérica.
26
Mas
ainda não é essa a tese cuja validade me proponho a examinar, e que já foi
submetida a exame por especialistas.
27
Minha atenção tem um foco mais preciso,
que incide sobre o modo como essa tradição vem se renovando em solo brasileiro
tendo em vista a penetração de valores liberais em nossa cultura política. A análise
do imaginário popular permite perceber a reciprocidade de influências operada
pelas duas tradições. Tal mixagem,apontada por Morse, será destacada e
desenvolvida pela reflexão feita por Vianna que, para explicar de que forma uma
nova síntese vem sendo produzida, formula o conceito de iberismo. A introdução da
idéia de iberismo, portanto, é relevante para meus propósitos por fornecer uma
chave de leitura para o entendimento das interações entre as práticas e o
imaginário político das classes populares e as instituições democráticas que vêm
sendo articuladas num diagrama de poder naturalmente inacabado e singular. Tal
26
Perspectiva crítica relativa às formulações iberistas de Morse pode ser
encontrada em SCHWARTZMAN, S. O Espelho de Morse; e, do mesmo autor, O
gato de Cortazar. Para as respostas de Morse a essas críticas ver MORSE, R. M.
A miopia de Schwartzman.
27
Uma síntese da literatura pertinente encontra-se em OLIVEIRA, I. de A. R.
Direito subjetivo e sociabilidade natural: uma revisão do legado ibérico.
18
associação será tema do último capítulo. Por ora trato da chamada opção ibérica
formulada por Morse no Espelho de Próspero.
Valendo-se de uma releitura do significado do personagem Próspero,
encontrado no ensaio El Mirador de Próspero, de Rodó, Morse apresentará uma
perspectiva na qual o significado dos Estados Unidos será associado à imagem de
um sujeito caracterizado como um colonizador paranóico de uma ilha encantada
contra o qual se coloca a imagem da Ibero-América compreendida enquanto reflexo
especular e profilático diante do enfermo.
28
A partir dessa analogia é possível
perceber que a intenção de Morse não é apenas passar em revista de modo crítico
as idéias e valores que conferem identidade aos povos em questão, mas
reconsiderar o padrão de avaliação que vem predominando nas abordagens
acadêmicas acerca de suas culturas políticas.
Assim, sua perspectiva pretende traçar uma revisão dos princípios que
fundamentam o modo como a história das idéias vem sendo tratada. Morse
estabelece como ponto de partida de sua abordagem uma visão na qual as histórias
anglo-saxônicas e ibéricas transcorrem a partir de racionalidades distintas baseadas
em projetos civilizacionais marcados por escolhas políticas e ideológicas singulares.
Desta forma, esse autor desqualifica a vertente que representa a história como um
progredir contínuo ou fáustico. É por esse motivo que a história anglo-americana,
associada à visão fáustica, deixa de ser o eixo a partir do qual se deve considerar
aquela experimentada pela Ibero-América. Para Morse, a idéia de evolução
capitalista das sociedades é tomada como uma construção ideológica que vem
sendo utilizada equivocadamente, a seu ver, por pesquisadores e acadêmicos
anglo-saxões, para produzir referências institucionais e econômicas a serem
perseguidas pelos ‘atrasados’ países de tradição ibérica.
29
28
MORSE, R. M. O espelho de Próspero: cultura e idéias na América: 13.
29
Idem: 21.
19
Contrariando a perspectiva fáustica, Morse volta-se para o estudo dos
princípios organizadores de sociedades tidas por individualistas e organicistas. Isso
fica claro quando afirma que
o que está em jogo são os princípios organizadores do corpo
político, não os resultados; uma sociedade baseada no pacto em
contraste como uma sociedade orgânica, um princípio nivelador ou
individualista em contraste com um princípio arquitetônico.
30
Partindo dessa perspectiva, o holismo que caracteriza a representação
ibérica de sociedade será compreendido enquanto indicando um tipo de
sociabilidade não necessariamente condizente com ordenamentos políticos
autoritários podendo, inclusive, sustentar regimes políticos democráticos.
31
Sua
leitura do pensamento ibérico permite-lhe concluir que a relação orgânica
estabelecida entre sociedade e poder não implica necessariamente o
estabelecimento de um regime político autoritário. Como afirma Morse,
(...) certos tipos de democracia são compatíveis com a tradição
neo-escolástica ibérica, enquanto que a tirania – como Toqueville
demonstrou profeticamente – encontra racionalidades, praticantes
e ocasiões favoráveis dentro da tradição protestante.
32
Essa releitura de nossa tradição inspirou incursões no campo do pensamento
neo-escolástico com alguns resultados que parecem ser relevantes para o melhor
entendimento do pensamento político brasileiro,
33
mostrando o quanto a
representação holista própria a este pensamento não implica na negação da
liberdade individual, substrato do direito subjetivo que legitima a ordem
democrática. De qualquer modo, o ponto que me interessa ressaltar é o da
associação, no imaginário popular, dessas duas formas de ordenar o vocabulário
político. Sobre isso, pode ser extraída, do texto de Morse, a constatação de que
30
Idem: 49-50.
31
Sobre a concepção de poder público associada à tradição ibérica, ver
BARBOZA FILHO, R. Tradição e artifício: Iberismo e Barroco na formação
Americana; e SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno.
32
MORSE, R. M. O espelho de Próspero: cultura e idéias na América: 49.
33
OLIVEIRA, I. de A. R. Direito subjetivo e sociabilidade natural: uma revisão do
legado ibérico.
20
(...) no momento crítico da expansão ultramarina as sociedades
progenitoras adotaram, deixaram-se levar ou foram arrastadas por
dois conjuntos de premissas políticas que seguem orientando a
lógica da ação e do pensamento políticos até hoje. Não estamos
dizendo que os respectivos filósofos morais tenham inventado
arbitrariamente regras básicas permanentes; o que estamos
dizendo é que numa conjuntura histórica crítica... suas
formulações deram expressões prototípica e profética à
cristalização de dois conjuntos de imperativos institucionais,
econômicos e morais. Essa mensagem profética consiste numa
orquestração de problemas, não num conjunto invariável de
posições ideológicas.
34
Aqui fica clara a idéia de que as premissas de ambas as tradições de
pensamento político devem ser passíveis de sofrer re-significações de acordo com o
modo como se conectam com valores associados a culturas políticas distintas.
Neste sentido, Morse trata, na segunda parte de O espelho de Próspero, do modo
como valores associados ao ideário liberal influenciam e convivem com aqueles
associados à tradição ibérica em solo ibero-americano.
35
Vianna
36
desenvolve essa postulação através do conceito de iberismo,
tratando das diferentes maneiras como Tavares Bastos e Oliveira Vianna buscam
resolver questões referidas ao exclusivo da terra e ao controle social das classes
subalternas.
De acordo com esse autor, o iberismo deve ser entendido como construção
política própria composta pela chamada opção ibérica e pelos valores que
fundamentam a teoria do liberalismo. Neste sentido, a opção ibérica, formulada e
defendida por Morse como superior ao projeto americanista, não deve ser
confundida com uma mera reprodução reiterada no tempo, na Ibero-América, dos
princípios que conformaram as principais idéias e motivos da cultura peninsular. Em
novo contexto e com atores distintos, os valores peninsulares passariam por
transformações ausentes das intenções dos colonizadores.
34
MORSE, R. M. O espelho de Próspero: cultura e idéias na América: 56.
35
Idem: 87-95.
36
VIANNA, L. W. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com
Tavares Bastos.
21
A idéia de superioridade e novidade da opção ibérica defendida por Morse
deve ser compreendida, segundo leitura de Vianna, como uma original remontagem
da tese clássica dos populistas russos sobre as vantagens do atraso. No entanto,
não é este tipo de questão que interessa desenvolver aqui. Ao apresentar a tese
americanista, Vianna chama a atenção para o fato de que nesta vertente da
democratização do sistema político a ação do Estado, entendido enquanto
instrumento de disseminação de ideais e instituições liberais tais como, liberdades
civis, propriedade privada, eleições livres e partidos políticos, seria fundamental.
Neste caso, é possível perceber que a proposta americanista de organização da
ordem política brasileira opera com princípios constitutivos da tradição política
ibérica. Ressalto esse ponto porque ele será retomado no capítulo 3 na seção em
que trato do modo como Duarte analisa as re-interpretações feitas pelo imaginário
popular dos valores disseminados por instituições associadas ao ideário liberal.
O que importa destacar na definição de iberismo proposta por Vianna é a
idéia de que a associação da opção ibérica com a americanista, que a caracteriza,
comprovada empiricamente quando um dos pólos faz uso prático das concepções
do outro, conduz a resultados não esperados por ambos.
Desta forma, para os propósitos desta dissertação, não se trata de excluir
uma dessas tradições na caracterização de nossa cultura política, mas mostrar de
que modo seus valores operam no imaginário popular e conformam o sistema de
crenças que dá suporte às ações dos cidadãos frente ao poder. Assim, posso
adiantar que a caracterização do imaginário popular, no que diz respeito às
representações do poder, deverá apresentar sínteses de valores liberais e ibéricos,
tendo os últimos, porém, maior peso na sua estruturação.
É por essa razão que no imaginário popular é possível encontrar
representações hierárquicas do poder convivendo com anseios populares de
ampliação de liberdades civis. Dessa combinação de valores associados a tradições
22
distintas e seu impacto na conformação do imaginário popular é que trato no
capítulo seguinte.
Capítulo 2
O imaginário político das classes populares brasileiras
Tendo em vista o princípio aqui adotado segundo o qual regimes democráticos não
são exclusivamente compatíveis com valores associados à cultura política
individualista, passo a examinar o modo como o imaginário das classes populares
brasileiras representam o poder e a justiça buscando evidenciar que os valores nele
encontrados não comprometem o funcionamento da democracia.
Na seção destinada a examinar a relação entre e holismo e sociabilidade,
mostro que as classes populares representam a sociedade sempre através da
distinção hierárquica entre pobres e ricos. O conhecimento dessa forma de
representação é importante porque permite esclarecer o modo como o sistema
político é pensado popularmente. As categorias morais que orientam ações e
julgamentos referidos ao desempenho cotidiano de papéis sociais dos indivíduos,
sempre relacionados a um dos grupos que conformam a sociedade, funcionam
como critério para a avaliação do sistema político. Assim, o esclarecimento dos
valores que presidem o elo social tornará possível caracterizar as orientações
cognitiva, afetiva e avaliacional, tal como salientadas por Almond e Verba, voltadas
para a percepção do sistema político.
Dessa forma, devo adiantar que o conhecimento acerca do sistema político e
a credibilidade nele, os sentimentos a respeito dos diversos elementos que o
compõem e os julgamentos e opiniões sobre o mesmo revelam uma representação
holista e hierárquica da sociedade na qual os direitos e as atribuições de cada
indivíduo (sempre referidos como pertencentes a um dos dois grupos, pobres e
ricos, que formam a sociedade) e do Estado dependem de regras estabelecidas
previamente às suas escolhas.
Após explorar esse modo de representação do poder pelas classes
populares, passarei a considerar como as mesmas tratam da mobilidade social.
24
Aqui, destacarei as alternativas individualistas e coletivas percebidas como meio de
tratar das injustiças provocadas pela atuação dos governantes quando privilegiam
os interesses dos ricos. Cabe destacar que todos os modos de manifestação de
descontentamento ou de conformismo, reproduzem um mesmo ideal de atuação
dos governantes. Este ideal toma como natural o caráter desigual e hierárquico da
sociedade condenando, porém, o favorecimento aludido.
Na terceira parte do capítulo, o foco da análise recairá, portanto, sobre a
ligação entre sociedade e política. Na quarta seção, destinada a analisar as relações
entre holismo e governo, mostro que o conjunto de regras necessárias ao
funcionamento justo da sociedade determina as ações governamentais. Os valores
que constituem a sociabilidade holista mostram-se determinantes da estruturação
da esfera propriamente política da vida social, posto que poder e sociedade são
representados de modo orgânico. Tomando por referência o conceito de cultura
política de Almond e Verba, especifico como o governo é identificado enquanto
lugar e função. À pessoa que ocupa o lugar da Presidência da República atribui-se a
obrigação do cumprimento do papel de manter o equilíbrio nas relações entre ricos
e pobres. A apresentação dos dados de uma pesquisa realizada por Reis e Castro
deverá corroborar a hipótese de que as representações populares do poder e da
sociedade se expressam em termos orgânicos, ora dando lugar a ideais
identificados como autoritários, ora reforçando valores e instituições
democráticas.
37
Concluo o capítulo mostrando que as práticas clientelistas que vêm sendo
utilizadas pelas classes populares como estratégia para atendimento de suas
demandas estão enfraquecendo. Ainda que a legislação eleitoral brasileira pareça
contribuir para o reforço das relações individualizadas e clientelistas entre políticos
e eleitores, pesquisa realizada por Avelino revela que o clientelismo vem perdendo
37
REIS & CASTRO. Democracia, Civismo e Cinismo. Um estudo empírico sobre
normas e racionalidade.
25
força no Brasil. Além de apontar essa tendência, procuro conferir inteligibilidade às
práticas políticas das classes populares.
As pesquisas de Caldeira e Vidal
Por considerar o trabalho etnográfico de Caldeira, intitulado A Política dos Outros, o
cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos,
profícuo para o estudo e apreensão do imaginário político das classes populares
brasileiras, iniciarei através dele a extração das formas como seus entrevistados
representam a sociedade e o poder. Destaco o modo como a sociedade é
representada para mostrar de que forma a constituição dos laços sociais
responsáveis pela produção de identidades dos grupos, pobres e ricos, influencia na
percepção do sistema político, como um todo, e de elementos particulares (voto,
papel dos políticos, dos governantes etc.). Assim, o modo como a sociedade é vista
implica a consideração sobre como funcionam e deveriam funcionar os mecanismos
sociais necessários à efetivação de um ideal de polis justa. Aqui se inscrevem as
noções de direitos e deveres e o papel das instituições políticas.
As entrevistas realizadas por Caldeira em Jardim das Camélias na primeira
metade de década de 1980 foram classificadas em dois grupos principais, cujas
opiniões estão referidas a suas experiências distintas de vida numa sociedade
concebida, em relação a seu funcionamento, mais ou menos da mesma forma. Aqui
nos interessa o grupo dos que participaram da política através da atuação em
sindicatos, partidos políticos e como cabos eleitorais entre 1945-1964. De um modo
geral, tais indivíduos possuem, se não uma proposta acabada de normatização das
relações políticas, capacidade de apontar para instrumentos políticos específicos, a
fim de mudar determinada situação social desfavorável. Neste sentido, este grupo
de entrevistados ganhará maior relevo quando tratar da temática da participação
política por contraposição àqueles entrevistados que apenas se limitam a questionar
as ações governamentais tidas por injustas por privilegiar o principal segmento
social oposto ao seu na estruturação da sociedade, os ricos.
26
Outro estudo que abordarei aqui se o de Dominique Vidal, relativo ao voto
na favela Brasília Teimosa localizada na cidade de Recife. Pesquisas realizadas na
década de noventa lhe permitiram compreender a lógica do voto através do
esclarecimento de categorias morais pelas quais os eleitores justificavam sua visão
do poder. Em trabalho mais recente, o mesmo autor oferece uma reflexão de cunho
mais teórico para tratar da cidadania no Brasil, tendo em vista suas representações
populares, comparando-a ao caso francês. Desta reflexão tratarei ainda neste
capítulo.
Holismo e sociabilidade
A principal forma de representação da sociedade brasileira, tal como apreendida
pela análise das entrevistas com os moradores do bairro da periferia paulista,
aponta para a existência de uma clivagem perene e intransponível entre eles, os
ricos, e nós, os pobres.
Ser pobre ou ser rico são marcas que as pessoas carregam
durante toda a vida.
38
Desta primeira apreensão da idéia de sociedade enfatizo não o que especialistas no
estudo da política no Brasil provavelmente considerariam mais uma manifestação
de conservadorismo de uma sociedade historicamente marcada pelas idéias
atreladas à concepção hierárquica, autoritária e escravista. De fato, estas etiquetas
infames bem podem ser atribuídas, sem qualquer equívoco de avaliação crítica, ao
que não só este entrevistado nos diz, mas a grande parte do material etnográfico
produzido por Caldeira e outros estudiosos do imaginário político brasileiro.
Entretanto, através de uma mudança de foco sobre esta mesma representação é
possível perceber que nela a sociedade é tida como algo que possui o poder de,
antes mesmo das escolhas de indivíduos autônomos e racionais e até dos governos,
dar sentido à existência individual de todos os seus membros. Ou seja, os
38
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos: 151.
27
indivíduos pertencentes ao grupo dos ricos assim o são, não em função de esforços
e realizações de projetos individuas. Como afirma uma das entrevistadas:
já vem do começo do mundo, rico e pobre, pobre e rico.
39
De acordo com esta visão, pobres e ricos teriam entre si relações de
complementaridade, ainda que conflitantes no que diz respeito às oportunidades de
vida, que garantem o equilíbrio social.
Se fosse tudo rico, como é que ia fazer, tudo rico, rico com rico?
Se fosse tudo pobre, como é que os pobres ia ajudar, pobre com
pobre? Tudo rico não podia, aí vinha a guerra, um ia querer ser
mais rico do que o outro, aí não convivia. O pobre, o pobre não
tem, vai ajudar como? Vamos supor, tem um quilo de arroz, o
outro ta passando necessidade, vai dividir? E o rico queria ter um
mais do que o outro.
40
Se há relação complementar entre duas grandes classes de pessoas que
determinam e caracterizam singularmente a sociedade,
olhar a sociedade significa perceber imediatamente uma
desigualdade básica: aquela que opõe a nós, os pobres, a eles os
ricos.
41
A ambas são atribuídos valores capazes de situar seus membros de modo
favorável ou desfavorável na sociedade em função de critérios morais, prestígio
social, financeiro e facilidade de acesso ao poder público.
No que diz respeito ao prestígio social e às condições financeiras, os ricos
são vistos como portadores de valores positivos ao contrário dos pobres
inferiorizados nestes aspectos.
Barão é quem tem capital. A gente é que não tem capital. Quem
tem capital é quem tem suas lojas, suas indústrias seus edifícios...
nós não temos capital o dinheiro que nós temos é só pra gastar:
ganha de manhã come de noite, aqui é assim (...) Pobre, quando
nasce, já nasce pobre, o futuro dele não tem mais o que vale; e o
rico quando vai nascendo já tem o seu berço pronto (...) o pobre
existe no mundo porque é teimoso: se pobre compreendesse, ele
nunca nascia, antes de nascer ele já tava morrendo: o pobre
nasceu para sofrer.
42
39
Idem: 159.
40
Idem: 160.
41
Ibidem.
42
Idem: 151.
28
Esse entrevistado expressa de modo extremo e dramático que aos
indivíduos do grupo dos pobres atribuí-se a grande e irremediável desvantagem da
carência de recursos financeiros e materiais destinados, de berço, aos ricos.
Por outro lado, quando se considera os grupos do ponto de vista moral é aos
pobres que recai a valoração positiva.
O rico não tem dó de ninguém [...] os ricos deveriam ajudar mais
os pobres, mas quanto mais eles podem tirar dos pobres é que
eles tiram. (...) Eu não prestava para ser rico não, eu tenho
coração muito mole.
43
A variação no que se refere à atribuição de valores positivos ou negativos, a
pobres e ricos, em função dos critérios considerados, confirma a perspectiva
segundo a qual há, nas representações dos entrevistados, algo como uma
representação holista da sociedade. Ricos e pobres em nenhum momento o são em
conseqüência de responsabilidades vinculadas aos indivíduos, ainda que as
possibilidades de melhorias nas condições materiais recaiam sobre ele, assunto que
tratarei adiante.
O mesmo padrão de sociabilidade holista encontrado em Jardim das
Camélias pode ser percebido no estudo realizado por Vidal acerca do
comportamento dos eleitores de Brasília Teimosa. Segundo esse autor, os
julgamentos desses, acerca das ações dos políticos, baseiam-se em critérios de
moralidade extraídos das mesmas regras que fundamentam suas avaliações
cotidianas do comportamento de seus vizinhos. O critério central é o que se
organiza pela categoria respeito, apresentada como imperativo ético que garante a
harmonia da ordem social numa sociedade caracterizada por um formato
hierarquizado. Sua desconsideração expõe o indivíduo a uma situação de não
pertencimento à sociedade e, conseqüentemente, de impossibilidade de reivindicar
direitos. Desde que o cidadão ou a cidadã cumpra com suas obrigações morais,
enquanto bom pai de família, trabalhador competente, dona de casa esforçada,
moça bem educada, deve poder exigir a contrapartida de respeito daquele com
43
Idem: 150 e 155.
29
quem se relaciona. Assim, o pai de família manda dentro de casa, os filhos
subordinam-se à mãe e o patrão deve solucionar parte de problemas do
trabalhador não previstos pela legislação trabalhista.
O respeito exprime o reconhecimento de se pertencer plenamente
à sociedade, o reconhecimento de uma identidade social positiva
como por exemplo: um pai de família responsável, uma dona de
casa esforçada, um trabalhador competente, um rapaz de bem,
uma moça educada, um bom brasileiro. O respeito se manifesta na
idéia de que as regras necessárias ao funcionamento harmonioso
da sociedade e à preservação da ordem social devem ser
estritamente observadas. [...] essas regras exigem contrapartidas,
visto que quem respeita tem que ser respeitado: enquanto
provedor das necessidades familiares, o pai de família manda
dentro de casa; cabendo à mãe tomar conta dos filhos, estes
últimos devem lhe obedecer [...].
44
Se a exigência de respeito, como afirma Vidal, permite compreender uma
das formas de gestão da diferença numa sociedade historicamente autoritária e
profundamente desigual, na medida em que ele assegura um lugar valorizado, a
subalterno, dentro dessa mesma sociedade, também implica o reconhecimento de
pertencer ao gênero humano, ao fato de ser gente (idem). Aqui é a igualdade da
condição de ser humano que fundamenta a exigência de respeito.
Transposto para a avaliação das ações dos políticos, o respeito
fundamentará o tipo de cobrança que as classes populares dirigem aos
governantes. Tanto no estudo de caso de Jardim das Camélias quanto no de
Brasília Teimosa, os políticos devem olhar para o pobre, fazer algo por ele. Devem
cumprir seu papel estrutural de equilibrar as relações entre pobres e ricos.
Além dessas considerações, Vidal sugere três significados distintos, em
termos de representação da sociedade e do poder que a organiza, ainda baseado
nessa exigência de respeito. No primeiro deles, o respeito deve ser entendido como
respeito entre indivíduos naturalmente tidos por desiguais.
(...) a idéia de igualdade não tem aqui lugar. Para os indivíduos
em situação de inferioridade, o sentimento de pleno pertencimento
à sociedade depende então da proteção dos dominantes. O
44
VIDAL, Dominique. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife:
106 (grifo do autor).
30
comportamento paternalista do empregador relativamente ao
empregado é a melhor ilustração desta perspectiva.
45
O caráter holista e hierarquizado da sociedade mostra-se evidente nessa
visão.
No segundo, a condição comum de pertencimento à humanidade dos
membros do corpo social, impõe-se a idéia de igualdade sem, contudo, negar o
caráter hierárquico da sociedade. Dominantes e dominados devem se respeitar
mesmo reconhecendo seus distintos lugares na hierarquia social. Aqui, a rejeição
da condição de escravo
pressupõe o reconhecimento de uma certa forma de igualdade
entre indivíduos [...]. A demanda por igualdade que se exprime aí
lembra a idéia de uma igualdade civil tal como historicamente
formulada no princípio cristão de igual dignidade dos homens
diante de Deus.
46
No último significado, a exigência de respeito, determinada pela similitude
dos homens no sentido toquevilliano, conduz à rejeição do caráter hierarquizado da
ordem social e impõe a idéia de igualdade entre indivíduos agora liberados das
posições sociais pré-estabelecidas. Neste caso,
o respeito não depende mais de posições precisas, supondo ao
contrário que seja reconhecida a identidade absoluta dos
indivíduos [...]. Quando os indivíduos são pensados assim como
fundamentalmente móveis, descolados de todos os elos
preexistentes, não escolhidos, e radicalmente iguais em natureza,
é uma demanda de igualdade no sentido moderno do termo que se
enuncia; esta forma de igualdade que está no princípio da idéia de
cidadania política.
47
Neste terceiro significado da categoria respeito, tanto holismo quanto
autoritarismo dariam lugar à igualdade e ao individualismo como princípios de
solidariedade necessários ao regime político democrático moderno.
Porém, como afirma Vidal, nenhuma destas configurações chega a se
estabilizar a ponto de eliminar as demais,
48
conclusão, a meu ver, capaz de conferir
45
Idem: 18.
46
Idem: 19.
47
Ibidem.
48
Ibidem.
31
plausibilidade à hipótese defendida nesta dissertação, tomada de Vianna, segundo
a qual valores liberais e ibéricos permanecem alimentando o imaginário político das
classes populares.
Holismo e mudança social
Neste tópico tratarei das duas maneiras como a mobilidade social se apresenta no
imaginário político popular. Elas podem ser resumidas nas ações individualistas e
coletivas, sempre referidas a uma sociedade representada hierarquicamente. Além
disso, finalizo considerando o modo como a sociabilidade se apresenta no
imaginário popular mostrando suas vinculações com a organização do poder.
Uma primeira representação da mobilidade social a restringe às ações
meramente individuais tendo em vista a visão radical de que a ação coletiva nunca
conduzirá a ela.
A mobilidade dentro da escala social é sempre concebida como
sendo de competência individual ou, no máximo, familiar. Apesar
de as condições para melhorar de vida serem em grande parte
dadas socialmente e de serem comuns a todos os pobres, não é
nunca enquanto grupo que os entrevistados pensam em um futuro
melhor... A sociedade é sempre a mesma, sempre haverá pobres e
ricos, a situação dos pobres será sempre desfavorável, mas eu, se
tiver coragem, ser duro, posso vencer porque é enquanto indivíduo
que se aproveita tanto as condições do mercado de trabalho
quanto as de educação oferecidas pela sociedade.
49
Este depoimento revela que a ação individual é preferível à ação coletiva na
resolução de questões sociais, econômicas e políticas. O exame do sentido da
mobilidade social apreendido junto às representações dos entrevistados demonstra
que esta se encontra referida a um tipo de diagramação
50
do social no qual as
posições, estratégias e os cenários políticos-jurídicos e econômicos em que eles se
colocam podem ser tidos como previamente estruturados. Ainda que as condições
49
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos: 169.
50
O conceito de diagrama aqui adotado refere-se à sua formulação tal como
utilizada por Oliveira. Para Foucault, o diagrama é como que um mapa das
relações de poder, que são sempre virtuais, potenciais, instáveis, moleculares.
Uma vez constituído, cria uma nova realidade, que, por sua vez, será alterada a
partir das lutas sociais que se dão nos espaços frouxos e livres deste mapa.
OLIVEIRA, I. de A. R. S/ ref.: 116.
32
sejam adversas, tendo em vista a exploração dos ricos em relação aos pobres, a
representação da mobilidade social pelos últimos revela que, através do trabalho e
do esforço, é possível almejar uma condição de vida mais digna.
Embora limitadas (as vidas dos entrevistados) pela qualidade do
cenário em que transcorrem, regem-se por regras próprias– a dos
pobres – são estruturadas não com relação aos ricos, mas com
relação aos iguais e àquilo de podem dispor, ou seja, o esforço e o
tratamento.
51
Caso adotasse uma postura analítica que privilegiasse exclusivamente o
esforço individual como regra determinante da mobilidade social, como ocorre em
sociedades cujo princípio de ordenamento social é tipicamente calcado na
sociabilidade individualista, estaria sugerindo a hipótese de que a organização
social e política tal como representada pelos entrevistados de Caldeira estaria
baseada numa leitura do processo social consubstanciado no cálculo individual pré-
social e pré-político. Não creio que este seja o caso. Que há algo que poderia
chamar de individualidade na constituição dos domínios social e político tal como
apresentados pelo imaginário dos entrevistados não contesto. Porém, confiro um
outro significado à sua presença. A liberdade de escolha e a possibilidade de
ascensão social estão referidas a um ordenamento social sem o qual ambas não
fariam sentido.
A trajetória ascendente de um pobre, de um trabalhador, na escala social é
possível, de acordo com os entrevistados, através do esforço próprio somado a
alguns elementos como trabalho, escolaridade, além do favor divino e a sorte de se
ganhar na loteria. Porém, esta só ocorre dentro de um enquadramento nas regras e
processos baseados em racionalidades que estruturam a mobilidade mesma. Ou
seja, o desejo de ascensão social por si só, ainda que alicerçado no
desenvolvimento de capacidades técnicas e educacionais específicas para atuar no
mundo do trabalho, não é suficiente para o alcance da melhoria das condições de
51
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos: 167.
33
vida. É necessário reconhecer e atuar de acordo com um referencial normativo que
limita os projetos de ascensão na escala social.
Esse referencial traduzir-se-á numa maneira de teorizar o funcionamento da
sociedade, de representá-la de modo ideal. Da contraposição entre ideal, aqui
considerado como algo semelhante a um padrão avaliativo, com o real
funcionamento dos mecanismos, acessado pelo mapa cognitivo, resultará a
referência pertinente para a compreensão das ações sociais. A percepção do
funcionamento equivocado dos mecanismos sociais, haja visto que eles tendem a
favorecer o grupo dos ricos na quase totalidade de suas relações com os pobres, só
pode ser apreendida quando se atenta para as formulações que os entrevistados
fazem da justa ordenação da polis. Esta conjugação entre real e ideal e a
insistência na prevalência do último como capaz de ordenar a sociedade pode ser
corroborada atentando-se para este trecho do texto de Caldeira.
A distância entre o modelo (que aqui entendo como representação
da sociedade ideal pelos entrevistados) e a realidade obriga,
então, a contínuos rearranjos à medida que vai sendo percebida.
Em nenhum momento se abandona o modelo, embora se possa
até duvidar dele: a distância não é avaliada como um erro do
modelo ou do projeto, mas como um mau funcionamento da
realidade. Frente às dificuldades, esta última é que é julgada,
condenando-se como desvio ou como injustiça o que é
discrepante.
52
Mais uma vez predomina um padrão holista de ordenamento social e
político. Se a estrutura social é anterior às escolhas individuais, idéia sempre
presente nos relatos aqui considerados sobre o imaginário político das classes
populares, a questão recai sobre a particularidade desta estrutura. Se a mesma
apresenta-se de modo a produzir e reproduzir injustiças efetivamente vivenciadas
pelos indivíduos enquadrados em segmentos sociais estabelecidos também
previamente às escolhas individuais, duas alternativas serão aventadas pelos
entrevistados com o objetivo de lidar com seu formato organizacional: a
individualista, na qual o sentimento de pertencimento a um grupo social é diluído
52
Idem: 185.
34
em prol de soluções individuais para problemas que atingem os pobres, e a
alternativa coletiva contestatória.
A análise destas formas de reação às injustiças provocadas pelo mau
funcionamento da estrutura social será feita a partir da extração de relatos
tomados junto a pesquisas realizadas em diferentes momentos da história recente
do Brasil. A despeito de estar fazendo uso seletivo do material empírico produzido
por autores cujos interesses são distintos dos meus, espero poder mostrar as
continuidades e descontinuidades das representações políticas das classes
populares brasileiras.
a) Individualismo
A solução individualista parece significar uma tentativa de criação de um
ambiente no qual o desajuste entre sociedade ideal e real é resolvido pelo indivíduo
através do estabelecimento, por ele, de um domínio ordenado privadamente que
permita garantir as condições dignas de vida. Entre as principais estratégias deste
tipo de comportamento destaco a esperança de, através da criação de uma
poupança, alcançar a posição de autonomia em relação ao mercado de trabalho.
Entre aqueles que idealizam o trabalho autônomo como meio de se alcançar
uma digna condição de vida, o mercado formal de trabalho é apresentado como um
tipo de configuração em que tanto o trabalho fabril quanto o comercial não são
devidamente valorizados pelos proprietários das fábricas e empresários comerciais.
É a essa desvalorização que se contrapõe a alternativa individual do trabalho
autônomo.
A gente trabalhar pros outros só leva desvantagem: trabalha,
trabalha, chega no fim do mês passa nervoso... Faltei dos dias e
falei: pra trabalhar de graça, prefiro ficar em casa, parado.
53
O que está sendo apontado aqui pelo entrevistado é que dado o grau de
injustiça, que pode ser medido pela sua desfavorável situação salarial nas relações
capital/ trabalho, a alternativa para obter o justo salário seria agir fora das regras
53
Idem: 188.
35
que determinam o funcionamento destas relações. O problema é que atingir esta
meta alternativa parece ser quase impossível;
Vou ver se eu agüento pra mim trabalhar pra mim. Quando eu
tiver com 100 anos, aí dá.
54
Em pesquisa feita em 1978, voltada para a compreensão do impacto das
migrações do meio rural para as cidades, Durham constata que os trabalhadores do
campo, valorizando a idéia de obtenção de um emprego fabril na cidade, também
adotavam a perspectiva segundo a qual a estratégia individual de economizar seria
o melhor caminho para se estabelecer por conta própria.
55
Este tipo de solução para os problemas gerados pelo funcionamento injusto
da estrutura social que rege e deveria tornar possível, segundo as orientações
avaliativas dos entrevistados, o acesso a direitos e deveres, conduz, a meu ver, a
posturas desfavoráveis à participação política nos assuntos coletivos. Quando um
entrevistado de Jardim das Camélias ou migrantes rurais que buscam ascensão
social na cidade, no final dos anos 70, afirmam que o único caminho para ter
acesso a condições dignas de vida é tornando-se autônomo, interessa-me enfatizar
nesta visão o fato de que os mecanismos de mobilidade social ascendente
existentes não se mostram suficientes para prover as condições necessárias ao
alcance de sua meta. A justiça aqui seria obtida apenas através do uso privado dos
poucos recursos sócio-econômicos disponíveis ao trabalhador ou através de uma
organização do poder baseada na vontade de uma liderança carismática. No
primeiro caso aquele que deseja ascender socialmente precisa poupar. No segundo,
está posta uma alternativa política autoritária associada ao nosso legado ibérico; a
ordem política ideal deve se impor através da vontade de um político que a
incorpore.
54
Ibidem.
55
Durham apud OLIVEIRA, I. de A. R. O imaginário político do trabalhador na
literatura brasileira: 5-6.
36
A despeito de se tratar de uma clara manifestação de descontentamento
com o modo como os mecanismos da sociedade funcionam, inclusive revelando-se
na negação do sindicato como meio de representação de interesses coletivos, esta
solução não me parece favorecer a criação de laços sociais necessários ao
tratamento das questões públicas. No primeiro caso, no qual a poupança é o único
caminho para resistir às injustiças sociais, não haveria sequer a constituição de
uma ordem pública, formada a partir dos interesses particulares, como ocorreria
numa diagramação do poder tipicamente liberal, para garantir a fruição privada dos
bens adquiridos legitimamente. O que há é uma recusa à participação na ordem
pública no momento mesmo de constituição do domínio privado.
Entretanto, não é possível deixar de atentar para o fato de que esta maneira
de lidar com as injustiças provocadas pelo funcionamento perverso dos mecanismos
sociais é também uma forma de manifestação política já que implica num tipo de
consideração e atitude frente ao modo como a sociedade se estrutura. Esse aspecto
será trabalhado mais adiante, ainda no presente capítulo.
b) Ação coletiva
As ações coletivas que visam alterar o caráter injusto das relações entre
pobres e ricos são apresentadas por Caldeira quando trata da situação em que os
pobres, auto identificados como trabalhadores, se queixam de não receber um
salário justo. Nesse caso estaria em jogo a reprodução da desigualdade social mais
ampla entre as duas classes de pessoas que formam a sociedade visto que quem
mais trabalha, o pobre em geral, recebe menos do que naturalmente merece. Esta
injustiça decorre tanto da exploração dos ricos, que apenas querem maximizar seus
ganhos quando utilizam a mão-de-obra dos pobres, quanto da complacência do
governo com a lógica de ação dos primeiros.
A atuação governamental no sentido de equilibrar as relações entre pobres e
ricos é considerada pelos pobres como uma obrigação sistematicamente
descumprida pelos governantes. Nessas condições, os pobres se vêem como um
37
trabalhador isolado desprovido de recursos de poder para enfrentar, no mercado de
trabalho, os patrões.
Os patrões enchem o bolso, o presidente ajuda, ele também enche
o bolso e nós aqui em baixo estamos na pior , cada dia que passa
tende a piorar . [...] Governo devia impor aos patrões, ele imporia
aos patrões: você não pode ganhar tanto, porque tem que ganhar
tanto lá.
56
Para que o governo cumpra suas obrigações, um dos entrevistados de
Jardim das Camélias propõe ações coletivas baseadas na pressão do trabalhador
organizado sobre o poder público.
Na opinião de Gersino, o pobre, pra ter um certo direito de viver
como se deve, precisa fazer manifestação. Ele acha que os patrões
têm poder pra dar conforto mas que não há por que dá-lo, uma
vez que se prevalecem do excesso de oferta de mão-de-obra.
Assim sendo, para resolver a questão salarial depende do poder
público: se ele quiser ele faz. (Gersino) Não imagina que a solução
seja o governo olhar; se ele tem poder de impor regras, o fato é
que só faz com que sejam cumpridas quando há manifestação.
Está aí o papel do povo, fazer manifestação.
57
O equilíbrio entre os desiguais só pode ser obtido se o governo estipular um
padrão salarial tido por justo pelos trabalhadores, cabendo a estes obrigar o
primeiro a implementá-lo na forma da lei. Os mecanismos do mercado de trabalho
por si só jamais produzirão justiça social.
O que destaco da apreensão de Caldeira, em relação às ações coletivas
propostas pelos entrevistados, é o papel atribuído ao governo não só de mediador
mas, principalmente, de ator capaz de impor aos ricos o dever de estabelecer
políticas salariais justas. Portanto, a justiça social só pode ser alcançada mediante a
ação do Estado. As relações trabalhistas mediadas apenas pelo mercado acabam
por reproduzir as desigualdades de poder mais gerais entre ricos e pobres.
Holismo e governo
De acordo com Caldeira, o governo é representado de duas maneiras: como o lugar
que abriga o poder do Estado, no caso o executivo federal, já que se trata da esfera
56
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos: 196.
57
Idem: 198.
38
de poder que é responsável pelo bom funcionamento da sociedade como um todo e
do jogo social que a anima; e, como a pessoa que o exerce, o presidente da
República. De ambos os modos de representar o governo, pode-se depreender de
que forma se apresenta o princípio pelo qual o poder é pensado, como seus
mecanismos são instituídos e de que maneira aqueles que o ocupam devem se
comportar, ou seja, quais são suas atribuições e responsabilidades.
No que diz respeito ao governo enquanto lugar poderia caracterizá-lo de
acordo com algo semelhante a uma visão topografia do poder: o governo fica lá em
cima. É importante eleição direta porque o povo vai ver se camarada dá pra por ele
lá em cima ou não, porque se o brasileiro pôr ele lá em cima pode tirar também...
58
É a partir deste lugar, do governo, que a ordem da sociedade é instituída e
qualquer mudança tem de passar por lá.
59
A mesma idéia de distanciamento do poder em relação ao povo é encontrada
por Vidal quando interpela os moradores de Brasília Teimosa sobre o mundo da
política.
Os advérbios de lugar que utilizam para designar a prefeitura, o
Senado ou o Palácio do Planalto referem-se à distância
incomensurável entre o povo e os eleitores: lá, dentro, em cima.
60
Esta apreensão da idéia de governo pode ser destacada como
fundamentalmente diversa daquela formulada pelo ideário liberal. De acordo com
esse último, a origem e a dinâmica institucional será baseada na sociabilidade
individualista. No diagrama liberal o governo só poderia existir enquanto
manifestação de interesses individuais, não apresentando distanciamento em
relação ao povo que o instituiu.
58
Idem: 208.
59
Idem: 209.
60
VIDAL, D. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife: 105.
39
A fim de melhor caracterizar este tipo liberal de apreensão tópica do poder
farei menção à obra clássica de Toqueville, A Democracia na América, na qual este
autor torna claro seu princípio de organização nos Estados Unidos.
Já tive a ocasião de dizer que o princípio de soberania do povo
paira sobre todo o sistema político dos anglo-americanos. (...)
Entre as nações onde reina o dogma da soberania do povo, cada
indivíduo constitui uma porção igual do soberano e participa
igualmente do governo do Estado. Assim, cada indivíduo é julgado
tão esclarecido, tão virtuoso, tão forte quanto qualquer outro dos
seus semelhantes. Por que, então, obedece ele à sociedade, e
quais são os limites naturais dessa obediência? Obedece à
sociedade nunca porque seja inferior àqueles que a dirigem, ou
menos capaz que outro homem de se governar por si mesmo;
obedece à sociedade porque a união com seus semelhantes
parece-lhe útil e ele sabe que essa união não pode existir sem um
poder regulador.
61
Se no caso anglo-saxão o poder não é pensado como uma esfera da vida
social exterior à participação e aos interesses individuais, a topografia social
construída por Caldeira pode ser compreendida quando se atenta para o fato de
que aos cidadãos e políticos, e aos lugares que ocupam na ordem social, atribuem-
se funções e papéis prescritos pelo próprio ordenamento social. Não nos
esqueçamos que pobre quando ele nasce, já nasce pobre, o futuro dele não tem
mais o que vale, e rico quando vai nascendo já tem seu berço de ouro pronto...,
62
ou seja, não só há o governo-lugar, como também o lugar-pobre e o lugar-rico. A
questão aqui é, portanto, o que os articula (os lugares) e como esta articulação
pode gerar um ordenamento social justo.
Atentando para o modo pelo qual os entrevistados se referem às relações
entre pobres e ricos é possível perceber que há grande descontentamento. Ainda
que ambos sejam vistos como elementos que compõem e conferem sentido à
dinâmica social e política, o enquadramento de suas práticas nunca encontra
respaldo no modelo de sociedade tido por justo. Se é natural a existência de pobres
e ricos, não é aceitável, por exemplo, que a relação custo de vida/ salários seja
61
TOQUEVILLE, A. de. A democracia na América: 56-57.
62
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos: 151.
40
desfavorável e que os últimos explorem os primeiros. Da mesma forma, se a
qualificação profissional é necessária para a obtenção de melhores salários é justo
que se tenha acesso a ela. O problema aqui não é ainda discutir se estas formas de
representação da sociedade e de seus objetos políticos são mais ou menos
democráticos; trato, antes, de mostrar como ambas são representadas pelo
imaginário popular.
Mas se a sociedade pode ser representada topograficamente é possível
questionar sobre como o governo, no caso o executivo federal, deve atuar
independentemente da vontade de quem o ocupa. A idéia que destacaria nesta
avaliação seria a de que ele, o governo-lugar,
é responsável por toda a ordem da sociedade, e qualquer mudança
tem de passar por .
63
De qual ordem se trata quando se fala na ordem, eu diria política, da
sociedade? Estaria ela alicerçada na vontade singular de quem ocupa o governo-
lugar, e então estaríamos diante de uma representação autoritária do poder, já que
a ordem social seria feita de acordo com a vontade pessoal. Ou existiria uma forma
alternativa de entender a legitimação do exercício do poder a partir do modo como
os entrevistados apresentam a diagramação do político?
O que está sendo tratado aqui é a procedência ou não de caracterização de
nosso modo histórico de fazer e de pensar a política como autoritário. Se de fato
a coincidência aludida, lei igual à vontade particular de um presidente, e não
encontro dificuldades em mostrar esta conexão (no tempo de Getúlio não existia
isso aí, existia lei. Sabe o que é lei? Aquilo que baixava um decreto tinha que ser
cumprido)
64
, a diagramação política da sociedade brasileira só pode ser autoritária.
Mas antes de aceitar precipitadamente esta idéia defendida por inúmeros autores
que tratam do impacto do legado ibérico na formação de cultura política brasileira,
63
Idem: 209.
64
Idem: 219.
41
gostaria de apontar para o que me parece escapar a esta maneira de interpretar o
domínio político no Brasil.
Em primeiro lugar, me parece claro que não se trata de uma sociedade cuja
lógica de ordenamento político baseia-se no individualismo típico das sociedades
anglo-saxônicas. Logo, o governo não é concebido, em princípio, como resultado de
acordos estabelecidos entre indivíduos autônomos, ou seja, pré-sociais e cuja
razoabilidade se dê fora dos elos sociais. Talvez por isto o governo esteja distante
dos indivíduos pertencentes ao grupo dos pobres e/ou dos ricos.
O governo-lugar, neste caso, está desvinculado dos grupos e indivíduos
considerados isoladamente. Não há conexão necessária e prévia entre governo-
lugar e qualquer dos grupos sociais de modo isolado. O governo-lugar é neutro e
externo aos interesses dos grupos.
Toma-se como pressuposto, ao se pensar a relação trabalho-
salário que os patrões não pagariam mais, já que seu interesse é
ganhar o máximo possível. Mas os entrevistados acreditam
também que os empregados não têm poder ou condições de fazer
alguma coisa de modo a obrigar os patrões a pagar o que
deveriam. Assim é que apelam a uma instância externa, o
governo, talvez o único que tenha poder de interferir no que
determinam os patrões.
65
Nesta leitura, o governo aparece como a instância de poder a que se atribui
o papel de promover a justiça, mesmo que de fato ele não se comporte do modo
esperado ou desejável. Se este é tido por instância externa capaz de assegurar a
justiça das relações trabalhistas, ele também é representado como reprodutor dos
interesses dos ricos. A causa das grandes desigualdades sociais que configuram as
relações entre os grupos é atribuída à força dos ricos e a fraqueza, incapacidade de
influenciar o governo, dos pobres. Como conseqüência, ocorre o mau uso do poder,
ou seja, o fato de os governantes que ocupam o lugar-governo não estarem
fazendo o que deveriam fazer.
66
65
Idem: 196.
66
Idem: 212.
42
Ora, se o governo-lugar, neste caso, é regulado pelos interesses dos ricos e,
desta maneira, não atende aos interesses dos pobres, não sendo assim um governo
justo, isto não exclui a idéia de que ambos os grupos, na concepção dos
entrevistados, podem fazer com que seus interesses sejam considerados na
diagramação do bom governo. Este será injusto quando favorecer a um dos grupos.
Os entrevistado do grupo 1, embora concebam o governo como
um lugar de onde são tomadas as decisões que afetam a
sociedade, identificam ao lugar uma função precisa e determinada
por lei, além de conceberem uma relação bastante clara entre o
governo e os governados; estes teriam de escolher o governo e
vigiá-lo para que cumprisse a sua função.
67
Gostaria de destacar um outro viés de leitura para dar conta da maneira
como os entrevistados em geral percebem o desvio do governo na situação em que
ele não cumpre com suas funções. O desvio decorre do fato de o governo não
pautar suas ações pelo que Caldeira denomina atendimento do interesse geral (do
povo ou dos brasileiros). Quem ocupa o lugar-governo estaria agindo de acordo
com os interesses dos ricos que são mais poderosos que os pobres como já foi dito.
Além disso, aos ricos, como já vimos, são atribuídas categorias morais negativas,
como egoísmo e busca do atendimento de interesses próprios. Logo, se o governo
favorece e age como um rico ele não poderá atender ao interesse geral. O governo,
a pessoa que ocupa o lugar, deveria agir como um pobre, o governo devia
repartir.
68
Ora, do ponto de vista de uma avaliação afetiva, e esta é uma dimensão a
ser considerada na análise da cultura política de uma sociedade, já que inclui seu
modo de perceber e dar sentido aos objetos de poder, o fato da pessoa que ocupa
o lugar (o governo) agir como um pobre significa que, assim procedendo, o
governo estaria visando atender o interesse geral, já que os pobres são capazes de
partilhar o necessário à existência de todos os membros da sociedade.
67
Idem: 214.
68
Idem: 216.
43
Ser bom, neste caso é o resultado de um julgamento moral, e também uma
caracterização do governo ideal.
(...) a coisa mais difícil é ver um rico ajudar a um pobre. A gente
vê uma pessoa mais pobre que a gente, então a gente pensa
naquela pessoa que a gente sabe que passar fome é duro. Eles
preferem jogar fora, os ricos.
69
Não há, nestes depoimentos, a suposição de que o governo deva ser
responsabilizado através do uso de mecanismos institucionais, porém, a vontade
daquele que ocupa o lugar-governo deve ser semelhante à dos pobres.
Nesse sentido, o conjunto de regras que determinam as ações justas do
governo parece estar presente na própria maneira como as relações sociais estão
organizadas. Não é necessário o cálculo individual para determinar tais regras
tendo em vista que as mesmas estão como que inscritas na ordem social. O elo
social preside o elo político e gera uma concepção de poder mais orgânico e
articulado entre povo e governo. Visão tipicamente ibérica.
Esta leitura iberista das relações entre sociedade e poder pode ser
corroborada através do exame dos dados obtidos pelo survey realizada entre os
anos de 1991 e 1992, que tratou da idéia de um pacto social focado nas conexões
entre questões de caráter trabalhista e questões de caráter político, feita por Reis e
Castro.
70
Duas mil, cento e cinqüenta amostras foram produzidas pela aplicação de
questionários a categorias diversificadas de trabalhadores de diferentes setores
ocupacionais de empresas paulistas e a população em geral com objetivo de
estabelecer um background social mais amplo.
A intenção da pesquisa era investigar dois conjuntos de variáveis atitudinais
relacionadas às relações trabalhistas (propensão à negociação de questões
trabalhistas que poderiam ensejar comportamentos mais ou menos cordatos ou
reivindicativos e até mesmo egoístas) e ao apoio ao regime democrático, tendo em
69
Idem: 155.
70
REIS & CASTRO. Democracia, Civismo e Cinismo. Um estudo empírico sobre
normas e racionalidade.
44
vista as relações mais amplas entre cognições e normas referidas ao tema da
democracia. Para meus propósitos centralizarei o foco sobre as variáveis atitudinais
e cognitivas referidas ao apoio ao regime democrático, às orientações quanto aos
direitos civis e à idéia de um líder capaz de governar o país sem a necessidade de
partidos políticos.
A dimensão cognitiva definiu-se a da combinação entre indicadores e medidas
que davam ênfase a assuntos políticos e trabalhistas, procurando
combinar o empenho de manter-se politicamente informado com a
avaliação direta do grau de informação sobre questões políticas e
trabalhistas e da maneira conceitualmente sofisticada de lidar com
tais questões.
71
As perguntas relacionadas a esta dimensão foram denominadas pelos
autores como índice de sofisticação política.
Através da observação da tabela 1 é possível afirmar que o índice de
sofisticação política aumenta com o aumento da escolaridade dos entrevistados. A
tabela 2 mostra que o grau de adesão à democracia também se eleva à medida que
o grau de sofisticação política aumenta.
71
Idem.
45
O problema apontado pelos autores, o qual gostaria de salientar a fim de
corroborar a idéia segundo a qual valores associados à tradição de cultura política
ibérica podem conviver com valores referidos a regimes democráticos, reside na
constatação de que, se por um lado a adesão à idéia geral de democracia,
demonstrada pela tabela 2, é ampla, quando se atenta para as disposições
referidas a uma das dimensões da idéia aludida
72
o seguinte paradoxo é
apresentado:
enquanto os itens diretamente políticos que compõem os dois
índices de disposição democrática resultam em distribuições com
níveis totais de concentração nas categorias altamente favoráveis
à democracia que alcançam a faixa dos 31 e 42 por cento, a
categoria dos altamente favoráveis à defesa dos direitos civis das
pessoas não vai além de uma porcentagem total de 18 por cento,
72
As dimensões da idéia de democracia que correspondem aos índices de
disposição democrática 1 e 2, foram compostas pelas seguintes questões:
disposição democrática 1; preferência pela democracia por contraste com uma
ditadura ou um regime autoritário; eleições como melhor meio de se escolher o
governo e as autoridades; a necessidade da câmara dos deputados, do ponto de
vista da utilidade prática e dos partidos políticos se queremos ter democracia:
disposição democrática 2, concordância ou discordância com as questões
seguintes; os problemas do país apenas serão resolvidos se deixarmos o
presidente da república governar do jeito que ele achar melhor, os juizes e os
tribunais não deveriam se meter nas decisões que o presidente toma, e uma vez
eleito, o presidente deve mandar sem o congresso e os partidos políticos criarem
obstáculos. Idem: 43, nota 14.
46
e mesmo entre os entrevistados do extremo superior de
sofisticação não temos senão 39 por cento intensamente apegados
aos direitos civis.
73
Os percentuais de apoio aos direitos civis se concentram, com pouco mais de
cinqüenta e oito por cento, entre baixos e médios-baixos exceto nas respostas
dadas por entrevistados que pertencem aos índices de sofisticação política muito
alta. Essa percepção desfavorável aos direitos civis, cujos sujeitos e beneficiados
são os indivíduos, parece-me traduzir a força das representações ibéricas do poder
e da sociedade por contraste com o modo como são vistos pela tradição liberal.
Deste problema tratarei com mais atenção no capítulo 3. Aqui apenas afirmo que a
diagramação do poder, tal com representada popularmente, não exclui a idéia de
direitos individuais, mas os interpreta através de outra chave de leitura.
O maior problema surge quando se atenta para as respostas dos
entrevistados a respeito da seguinte afirmativa:
Em vez de partidos políticos, o de que a gente precisa é um
grande movimento de unidade nacional dirigido por um homem
honesto e decido.
74
A tabela 3 mostra que do total de entrevistados, 73,7 por cento concordam
que um homem honesto e decidido deva governar o país, sendo que entre aqueles
que se situam nas categorias de maior índice de sofisticação política apenas na
subcategoria muita alta o percentual de discordantes é maior, com 49,2 por cento
contra 42,6 por cento de respostas favoráveis a um líder honesto que promova a
unidade nacional.
73
Idem: 21-32.
74
Idem: 32.
47
Ainda que tais dados possam ser avaliados como reveladores do caráter
autoritário da consciência popular, quando se atenta para o índice de disposição
democrática-2 apresentado pela tabela 2, que questiona sobre a concordância ou
discordância com as idéias de que (1) o país deveria ser governado por um
presidente que o conduzisse de acordo com sua vontade; (2) de que juízes e
tribunais não deveriam se meter nas decisões governamentais; (3) e que o
presidente eleito deveria governar sem o Congresso e os partidos políticos, a idéia
de se delegar o poder irrestritamente ao presidente é negada por 68,9 por cento do
total dos entrevistados.
Esta visão favorável ao regime democrático é confirmada pela pesquisa
realizada pelo Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) em 2002. Após o segundo turno das
eleições presidenciais, perguntas elaboradas com o intuito de medir o grau de apoio
à democracia foram feitas a 2.513 pessoas de todas as regiões do país. 80,4% dos
entrevistados consideraram que, mesmo como problemas, a democracia é a melhor
forma de governo. Questionados sobre o modo de resolução dos problemas
nacionais,
58% dos entrevistados optam pela participação da população nas
decisões importantes, o que denota a valorização de mecanismos
democráticos de participação. Todavia, 42% escolheram como
melhor forma a atuação de um líder que colocasse as coisas no
lugar. Essa perspectiva se contrapõe à primeira e mais uma vez
torna clara uma divisão entre as tendências observadas nas
respostas dos entrevistados. Constata-se uma certa polarização
entre aqueles que têm uma perspectiva de valorização dos
mecanismos efetivos de participação política e aqueles que vêem
na atuação de um grande líder a solução dos problemas. Uma
perspectiva voluntarista ou populista não é, portanto, descartada
para 42% dos entrevistados.
75
Mais uma vez se apresenta a contradição entre, de uma lado, respostas que
denotam o apoio ao regime democrático e o controle popular das ações
governamentais e, de outro, respostas que acreditam que uma grande liderança
75
PAIVA; MARTA & LOPES. As Percepções sobre Democracia, Cidadania e
Direitos: 373.
48
deva resolver os problemas que afetam a sociedade como um todo. Como explicar
tal paradoxo?
Em primeiro lugar, devo advertir que não opto por tratar esta questão
através de uma perspectiva que atribui o paradoxo aludido aos problemas inerentes
a um país que, egresso de um regime autoritário, passa por um período de
consolidação de suas instituições democráticas. Que o Brasil conta hoje com os
mecanismos institucionais necessários ao funcionamento de um regime
democrático, ou poliárquico, como o define Dahl,
76
não questiono. Porém, o
problema desse tipo de análise, a meu ver, está na pressuposição de que tais
instituições são suficientes para produzir por si só comportamentos políticos
condizentes com o funcionamento do regime democrático.
Ao contrário da posição assumida por Przeworski et al, que defendem a idéia
segundo a qual um país não necessitaria de uma cultura democrática para
estabelecer instituições democráticas nem para sustentá-las,
77
acredito que a
cultura política é variável que contribui para a sustentação da democracia. Estudo
empírico realizado por Putnam,
78
que buscou entender como as diferenças de
cultura política entre as regiões italianas influenciam no funcionamento e
estabilidade de um regime democrático, demonstra que o desempenho das
instituições democráticas depende, fundamentalmente, do desenvolvimento de uma
cultura cívica. Neste sentido, acredito que o conjunto de valores iberistas, que
caracteriza a cultura política brasileira, interage com as instituições democráticas
produzindo reflexos na maneira como vem ocorrendo a constituição das
representações e práticas da cidadania.
Dito isso, a hipótese por mim defendida para tratar desta contradição é a de
que, como já afirmei nesta seção, as funções do governo, tal como representadas
76
Sobre os mecanismos institucionais e as condições necessárias ao
funcionamento da poliarquia, cf. DAHL, R. Poliarquia: 25-27.
77
PRZEWORSKI; CHEIBUB & LIMONGI. Democracia e cultura: uma visão não
culturalista: 9.
78
PUTNAM, R. D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna.
49
pelas classes populares, são definidas de acordo com uma concepção de justiça em
que a defesa do interesse geral deve prevalecer sobre a defesa dos interesses
individuais. O problema a ser enfrentado aqui, quando se pensa na questão da
institucionalização de valores e atitudes associados a uma democracia
representativa, é o de como fazer para que o poder seja efetivamente fiscalizado
por uma população que aceita a idéia de que um líder honesto possa governar sem
a presença de mecanismos representativos, como os partidos políticos e o
Congresso, e ao mesmo tempo não tome atitudes contrárias aos interesses comuns
da polis.
Como afirmam Reis e Castro,
79
quando a população nega a idéia de que o
presidente deva ser deixado em paz pelos demais poderes e pelos partidos para
governar como achar melhor a idéia defendida por O’Donnell de que o Brasil pode
ser classificado como um caso de democracia delegativa parece mostrar-se
equivocada.
Segundo O’Donnell, a democracia delegativa deve ser compreendida como
correspondente à implantação de governos democráticos em países egressos de
regimes autoritários. A implantação de governos democráticos não significa a
consolidação de instituições democráticas que sejam capazes de operacionalizar a
participação dos cidadãos nas decisões que afetam toda a comunidade política.
Neste sentido, seria necessária uma segunda transição que conduziria à criação e
fortalecimento de instituições democráticas que se tornem importantes pontos
decisórios no fluxo do poder político.
80
A meu ver, essa segunda transição pode ser
interpretada à luz das tentativas de conversão das classes populares aos ideais de
cidadania liberal, tema que trato no capítulo seguinte.
Entretanto, como já afirmei, a idéia de se delegar o poder de modo irrestrito
ao presidente da república é negada pela maioria dos entrevistados da pesquisa
79
REIS & CASTRO. Democracia, Civismo e Cinismo. Um estudo empírico sobre
normas e racionalidade: 32.
80
O’DONNELL, G. Democracia delegativa?: 26.
50
realizada por Reis e Castro. Esta percepção pelo menos deve nuançar a idéia de
O’Donnell segundo a qual o Brasil pode ser classificado como uma democracia
delegativa.
Uma explicação alternativa para o paradoxo apresentado, tendo em vista o
modo como venho tratando das representações populares do poder, é a de que os
políticos, de modo geral, devem agir segundo uma lógica de organização das
relações de força entre os diferentes grupos que conformam a sociedade
obedecendo a um conjunto de proposições éticas que se impõe a toda ordem social.
Neste sentido, categorias morais como respeito e honestidade aparecem como
fundamentais para o entendimento do modo como o poder público deve ser
conduzido. Assim, os governantes e políticos de um modo geral não devem pautar
suas ações em função dos interesses particularistas dos ricos, antes devem garantir
o equilíbrio, a justiça, das relações deles com os pobres. Os partidos políticos e o
Congresso deveriam cobrar dos poderes públicos a realização deste ideal de justiça,
e não agir em função do interesse do grupo que dispõe de mais recursos para
influenciar sobre as ações governamentais. A negação dos partidos políticos e do
Congresso como mecanismos efetivos de representação de interesses parece estar
associada à idéia popular de que ambos tendem a agir a favor do grupo dos ricos,
não promovendo a justiça. Da mesma forma, quando o Presidente da República age
em função dos interesses particularistas dos ricos ele deixa de promover a justiça
social e perde credibilidade. Neste sentido, um governo tirânico ou autoritário não
condiz com as representações populares do poder. Isso pelo fato de que os
governantes não devem tomar decisões que envolvam a sociedade como um todo a
partir de suas vontades particulares ou das vontades particulares de um dos grupos
que estruturam a ordem social, mas de uma concepção de justiça cujo sujeito
encontra-se na ordem social e não nos interesses individuais.
81
81
Abordagem que trata desse tipo de representação do poder derivada de uma
concepção holista de sociedade é encontrada em OLIVEIRA, I. de A. R.
Discussão de justiça social em contraposição à concepção de justiça no
liberalismo; uma problemática do direito natural moderno.
51
O que destaco nesta representação popular da justiça é o modo como o
poder público é definido. O sentido conferido à sua substância me parece ser
semelhante àquele proposto por Cícero quando define a idéia de bem comum:
Cícero disse que, então, o bem comum é da responsabilidade do
povo; e povo não é qualquer grupo de homens, associados de
qualquer maneira, e sim a reunião de um número considerável de
homens que estão ligados por consenso acerca da lei e dos direitos
e também pelo desejo de usufruir vantagens recíprocas.
82
O que importa observar aqui é que a idéia de justiça, associada à tradição
ibérica, apresentada pelas classes populares, denota um forte componente coletivo
na definição do bem comum. Ou seja, a concepção de bem comum não deriva do
somatório do interesses particulares, mas da idéia de que o poder público deve agir
como um pobre, e a ação de um pobre, por sua vez, é associada à concepção de
partilha justa da coisa pública. Portanto, ainda que a sociedade seja caracterizada
de modo hierárquico disso não resulta a defesa de um modelo de organização do
poder autoritário.
Tendo em vista tal caracterização do imaginário político das classes
populares coloca-se a questão das possibilidades de criação de uma cultura de
direitos no Brasil. Desta questão trato no capítulo seguinte, mas antes gostaria de
trabalhar a questão política em um tópico específico: o que se refere à temática do
clientelismo e, mais especificamente, de seu enfraquecimento.
O clientelismo aqui será abordado como uma das estratégias utilizadas pelas
classes populares para fazer frente ao funcionamento injusto da estrutura social.
Esta prática foi apontada, nas últimas décadas, como predominante nas relações
entre essas classes e uma rede de partidos e políticos que, por ocuparem cargos
executivos ou legislativos que lhes garantem recurso de poder, trocam o apoio
político - votos principalmente - por uma gama de benefícios materiais e/ou
imateriais que possam suprir suas necessidades mais imediatas. Este tipo de
82
cero apud PUTNAM, R. D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália
moderna: 129.
52
relação pode ser vista como mais uma das manifestações de nossa cultura política
ibérica. Gostaria de mostrar que tal associação não é necessária. Antes disso,
apresento o modo como o conceito de clientelismo vem sendo caracterizado pela
ciência política.
Alex Weingrod apresenta dois significados dados às relações estabelecidas
entre patrões e clientes por estudos antropológicos.
83
Na primeira, a patronagem é
definida como o complexo de relações entre aqueles que usam sua influência,
posição social ou algum outro atributo, para assistir ou proteger outros, e aqueles
que são ajudados e protegidos, os clientes. Na segunda, a estrutura do sistema de
patronagem é baseada no relacionamento entre clientes que procuram por um
homem com habilidade e conexões de amizade para protegê-lo e um patrão que
aceita esse dever em troca de lealdade política. Desigualdade de acesso aos
recursos de poder e reciprocidade dos laços estabelecidos entre patrão e cliente,
elementos presentes nas duas definições, constituem-se enquanto aspectos
essenciais de uma cultura política clientelista.
Especificamente no campo da política, Weingrod define patronagem como
relações nas quais
partidos políticos distribuem serviços públicos ou favores especiais
em troca de apoio eleitoral.
84
Neste mesmo sentido, Diniz ressalta o papel de mediação da máquina
política, qual seja,
de ponte entre as necessidades e demandas das clientelas
individuais ou grupais e os órgãos públicos encarregados da
administração municipal e estadual. Os quadros e líderes da
máquina agem então como intermediários junto às autoridades
competentes, abrindo vias e canais informais através dos quais se
dariam a tramitação de pedidos e a escolha das formas de
atendimento.
85
83
WEINGROD, Alex. Patrons, patronage, and political parties: 323.
84
Idem: 324.
85
DINIZ, E. Voto e máquina política, patronagem e clientelismo no Rio de
Janeiro: 43.
53
A literatura especializada no campo da ciência política, que trata dos limites
e potencialidades dos modelos de estruturação e interação estabelecidos entre
políticos e eleitores, aponta o padrão denominado clientelista como um dos maiores
entraves à institucionalização de um regime democrático e à existência de grupos
sociais e cidadãos que baseiam suas práticas políticas a partir de uma cultura
política cidadã. O predomínio do clientelismo em países denominados em
desenvolvimento, como o Brasil, decorreria dos
desajustes entre desenvolvimento econômico-social e a falta de
estabilidade das instituições políticas.
86
A despeito dessa correlação, abordagens alternativas vêm apontando para
fatores que tornam mais complexo o entendimento acerca das relações clientelistas
num contexto de baixo desenvolvimento econômico e pouca institucionalização dos
partidos políticos.
Pesquisas realizadas em períodos mais recentes trazem evidências que
apontam para o enfraquecimento das práticas clientelistas mesmo num contexto
como o mencionado. Dominique Vidal confirma o enfraquecimento dessas práticas,
em seu estudo realizado na Favela Brasília Teimosa,
87
como conseqüência, entre
outros motivos, da impossibilidade de (o político) ter a certeza da lealdade de um
eleitor e a evocação dos direitos do cidadão. O primeiro motivo sinaliza para uma
ruptura na lógica do sistema clientelista já que o não cumprimento do que foi
acordado por uma das partes (patrão-cliente) inviabiliza essa estrutura de relações.
Isto ocorre, a meu ver, em função da multiplicação de atores políticos num
contexto de descentralização administrativa que conduz à impossibilidade de
monopolização dos recursos públicos por políticos ou máquinas políticas.
86
FILHO, G. A. Clientelismo e política no Brasil: revisitando velhos problemas:
26.
87
VIDAL, D. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife.
54
Esta impossibilidade pode criar condições institucionais para o surgimento da
competitividade entre os políticos no que diz respeito à oferta de bens públicos em
troca do voto. Neste sentido,
tal competitividade, por sua vez, desestabiliza as relações
[clientelistas] anteriores, pois o surgimento de patronos
alternativos dá aos clientes a possibilidade de comparar os
benefícios recebidos. Dessa maneira, as relações de troca tornam-
se passíveis de constantes renegociações: seja pela ameaça,
potencial ou real, do cliente de trocar de protetor; seja pelas
tentativas deste último de assegurar a dependência da sua
clientela. [...] Como conseqüência, as pressões distributivas
tendem a crescer, aumentando os custos de manter a clientela.
88
O que também parece corroborar o enfraquecimento das práticas
clientelistas, ou seja, o uso de recursos públicos para garantir, pelo menos, a
expectativa de atendimento das demandas pelos clientes eleitores e manter assim
a estabilidade das relações de poder deste tipo, são os dados apresentados por
estatísticas que mostram queda nas taxas de reeleição para a Câmara dos
Deputados, em nível federal, entre os anos de 1974 e 1990, apresentadas por
Filho. Isso significa que, mesmo tendo acesso aos recursos de poder necessários à
manutenção de clientelas, os políticos não vêm conseguindo garantir um eleitorado
fiel. A observação da tabela 1 permite concluir que ocorre queda acentuada nas
reeleições de candidatos considerados por bancadas regionais.
89
Tabela 1: Taxa da reeleição para a Câmara Federal (por bancadas regionais)
78/74 82/78 86/82 90/86
Região Sul 51,3% 39,0% 36,6% 31,2%
Região Sudeste 55,55% 51,3% 36,1% 39,6%
Região Centro-
Oeste
47,6% 46,4% 25,0% 36,6%
Região Nordeste 65,4% 57,0% 44,3% 42,4%
Região Norte 47,6% 64,3% 34,0% 18,7%
Brasil 56,3% 51,4% 37,8% 37,1%
Fontes: TSE (1974, 78, 82 e 86); Folha de S. Paulo (23/10/90, A-10).
88
Caciagli e Belloni apud FILHO, G. A. Clientelismo e política no Brasil:
revisitando velhos problemas: 226 (grifo meu).
89
Idem: 235.
55
Assim, como afirma Filho,
os resultados confirmam o baixo número de parlamentares que
conseguem sobreviver a uma legislatura. Exame mais cuidadoso
revela acentuado declínio dessa taxa a partir da primeira eleição
pós-redemocratização do país, em 1986. Se em 1978 e 1982 a
reeleição situou- se acima de 50%, ela cai para cerca de 37% nos
dois pleitos seguintes, 1986 e 1990.
90
A tabela 2 confirma a idéia de que a possibilidade de se usar recursos
públicos para garantir clientelas não vêm se mostrando eficaz.
91
Um mesmo
candidato dificilmente consegue se reeleger por dois mandatos consecutivos, sendo
que o percentual daqueles que se perpetuam por mais de três apresenta quedas
consideráveis.
Tabela 2: Número de mandatos para a Câmara Federal (parlamentares eleitos em
1990, por bancadas regionais)
2 consecutivos 3 consecutivos + de 3 mandatos
Região Sul 31,2% 10,4% 5,2%
Região Sudeste 39,6% 14,8% 10,1%
Região Centro-Oeste 36,6% 7,3% 4,9%
Região Nordeste 42,4% 19,8% 7,9%
Região Norte 18,7% 6,1% 2,0%
Brasil 37,1% 13,7% 7,2%
Fontes: TSE (1974, 78, 82 e 86); Folha de S. Paulo (23/10/90, A-10).
Por outro lado, a mesma multiplicação de atores políticos, associada ao tipo
de sistema eleitoral prevalecente no Brasil, parece dificultar o desenvolvimento das
orientações cognitivas nas classes populares que lhes permita representar os
objetos políticos e o sistema político em geral de modo claro e democrático.
Neste sentido, o formato constitucional do sistema eleitoral brasileiro, que
mescla critérios de proporcionalidade e majoritariedade nas eleições para os cargos
legislativos e executivos respectivamente, parece mais confundir do que esclarecer
o eleitor. A pouca inteligibilidade do funcionamento do sistema eleitoral é atribuída
90
Ibidem.
91
Ibidem.
56
por Vidal à dificuldade por parte dos entrevistados em compreender os métodos de
escolha eleitoral. Se o método majoritário é relativamente inteligível aos eleitores
que conseguem explicar que é o mais votado que se elege ao mesmo tempo em
que conseguem identificar os candidatos a cargos do executivo federal, estadual e
municipal, o mesmo não ocorre em relação ao método proporcional. A quantidade
elevada de candidatos associada à complexidade do processo de designação dos
eleitos seriam os principais componentes desse método a dificultar o entendimento
dos processos políticos no Brasil.
92
Assim, a percepção do eleitorado de que a busca por um patrão deve ser
uma alternativa válida para o atendimento de suas demandas é corroborada pelo
caráter da nossa legislação eleitoral que, por sua vez, acaba por ratificar as
relações individualistas entre políticos e eleitores negando o componente ideológico
de agregação de interesses atribuído aos partidos políticos.
A combinação entre o sistema proporcional e a inexistência das
listas partidárias dá ao eleitor excepcional liberdade de escolha
frente á intervenção das direções partidárias. Durante o processo
eleitoral o eleitor vota em candidatos únicos para os cargos em
disputas, de modo que a eleição ou não de um determinado
candidato depende, em última análise, de seu próprio esforço sem
passar pelo partido.
93
Isso contribui tanto para o acento de nossa tradição de cultura política
centralizadora que faz com que o executivo seja visto como instituição capaz de
resolver os problemas de desenvolvimento econômico do país, como também para
a consolidação de um tipo de prática parlamentar que pode ser traduzida pelas
freqüentes negociações individualistas ou personalistas entre políticos e eleitores e
políticos e o governo federal. De um lado, busca-se garantir o apoio dos
parlamentares aos projetos de lei do executivo e, de outro, os recursos necessários
à garantia da manutenção das clientelas são obtidos através do apoio dos
parlamentares aos projetos do poder central. A conseqüência deste tipo de
92
VIDAL, D. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife: 116.
93
FILHO, G. A. Clientelismo e política no Brasil: revisitando velhos problemas:
232.
57
estruturação entre os poderes é o fortalecimento das práticas clientelistas e o
enfraquecimento da administração pública baseada em princípios democráticos.
94
Voltando ao caso de Brasília Teimosa, o papel articulador exercido pelos
cabos eleitorais entre os eleitores da favela e os candidatos ganha relevo na
medida em que contribui para a conformação das orientações cognitivas dos
eleitores diante do sistema eleitoral. Dado o baixo grau de institucionalização dos
partidos políticos na sociedade, aos cabos eleitorais, estes sim integrados
socialmente, já que participam da vida cotidiana dos locais onde trabalham para um
candidato, cabe trazer o distante mundo da política para a pauta dos eleitores ao
menos durante a época da política. A eles cabe lembrar aos eleitores os trabalhos
realizados pelos políticos para o povo, organizar comícios, distribuir camisas, bonés,
chaveiros, como também manter as relações clientelistas.
Entretanto, a ação dos cabos eleitorais, que acabam por levar o mundo da
política para o cotidiano dos eleitores de Brasília Teimosa, não parece consolidar as
práticas clientelistas. Em conseqüência da proliferação de atores políticos, do
descrédito nos políticos, da abundância das ofertas de transação, do aumento do
custo das práticas clientelistas e da evocação dos direitos do cidadão,
onde se destacam o direito ao respeito e à dignidade, a maior
parte dos moradores de Brasília Teimosa não considera o fato de
ter recebido um bem ou uma ajuda de um político como um favor
que estabelece uma relação de reciprocidade.
95
A despeito do papel desempenhado pelos cabos eleitorais, principalmente
nas eleições, os critérios utilizados pelos eleitores para a escolha daqueles que
ocuparão os cargos dos poderes instituídos não podem ser reduzidos à atuação
destes agentes. Da mesma forma, associações entre variáveis utilizadas pela
sociologia eleitoral, como as relações entre sexo/idade/religião/nível de instrução
não contribuem decisivamente para a compreensão da lógica das escolhas eleitorais
94
Idem: 232.
95
VIDAL, D. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife: 112-113.
58
em Brasília Teimosa.
96
O que se impõe como fator explicativo das escolhas
eleitorais, segundo Vidal, são categorias de compreensão da política baseadas em
critérios morais.
Assim, o voto em Brasília Teimosa dificilmente será compreendido
utilizando-se critérios ideológicos que envolvem a distinção entre esquerda e
direita, tampouco pela identificação dos eleitores a partidos políticos. Vidal traz
evidências de que o entendimento a respeito do significado do fato de um político
pertencer à esquerda ou à direita, se constrói a partir de categoria morais que
opõem os justos, de direita, os direitos, aos errados, de esquerda. Ou seja, as
orientações cognitivas dos eleitores de Brasília Teimosa devem ser compreendidas
através das categorias morais que fundamentam as regras de convívio social entre
eles e lhes fornecem critérios para avaliar ações de governantes e dos ricos.
Neste sentido, volto a ressaltar a importância da dimensão moral para o
entendimento das práticas políticas. Cidadãos e políticos devem ser respeitados por
cumprirem com suas obrigações dentro de uma ordem social hierarquizada. Assim
como o bom pai de família deve ser respeitado e mandar em casa, o bom político
deve olhar e fazer pelo povo e não se submeter ao poder dos ricos. As funções dos
políticos inscritas na ordem social se sobrepõem às ideologias de seus partidos. Ou
seja, as regras de funcionamento da sociedade e do poder tal como representada
pelos moradores de Brasília Teimosa baseiam-se numa dimensão ética distinta
daquela existente em sociedades individualistas em que a lógica política funciona
como se fosse regulada pelas leis da economia de mercado. A cobrança dos
eleitores pobres em relação aos políticos se coloca em função do bem do grupo dos
pobres, não de interesses particularistas de um pobre. Quando um pobre se refere
à política ele não o faz sem referência à sua situação na hierarquia social, a mesma
que regula a função dos políticos, dos ricos e de toda vida social.
96
Idem: 118.
59
Portanto, o fato de os eleitores na sua maior parte não votarem naquele que
lhe forneceu ou lhe prometeu algum bem sugere que o uso que fazem das relações
clientelistas se restringe a determinações circunstancias. Assim, a idéia de que
nossa cultura política poderia ser classificada como paroquial me parece equivocada
porque a atenção dos eleitores não parece estar voltada apenas para os outputs do
sistema político, para seus resultados em termos de atendimento de demandas
urgentes. A maneira como os políticos conduzem a esfera política da vida social
parece preocupar sim os eleitores que, desacreditados do modo como eles atuam
cotidianamente, acabam vendo as eleições como um momento da vida social em
que devem legitimar a imoralidade. Por isso os moradores de Brasília Teimosa
vêem o mundo da política
como um universo totalmente separado da experiência dos pobres
[...]. As palavras política e político evocam práticas imorais que o
trabalhador, cuja identidade é definida pela honestidade e a
moralidade, deve evitar.
97
A época da política,
98
ou seja, as eleições, é vista pelos moradores da favela
como uma espécie de ritual, cujo início é marcado por sinais claramente
identificados por todos, em que eles compartilham do significado de seu resultado:
os políticos eleitos se prestarão à defesa dos interesses dos ricos. Neste caso, a
participação política é tida como uma atividade coletiva que objetiva legitimar a
injustiça de uma ordem social regulada por um poder público que age em função
dos interesses dos ricos. Estes, por sua vez, são identificados como agentes
contrários à realização do ideal de justiça de uma comunidade hierarquizada em
que cada segmento possui direitos determinados previamente às suas escolhas e
interesses. É como se a idéia holista de justiça estivesse sendo subvertida pela
ação estatal na medida em que ela (a ação estatal) extrapola os direitos subjetivos
dos ricos concedendo-lhes mais do que deveriam ter. Daí, talvez, seja possível
97
Idem: 105.
98
Os moradores de Brasília Teimosa se referem aos sinais que anunciam o
início das campanhas eleitorais, um panfleto encontrado debaixo da porta, um
novo adesivo no vidro do vizinho, como o começo da época da política: Chegou
a época da política. Idem: 104.
60
interpretar a resistência à idéia, que tratarei no capítulo seguinte, de direitos dos
criminosos: eles lutam pela obtenção de liberdades e direitos civis que extrapolam
o que indivíduos na condição social em que se encontram podem ter. Da mesma
forma, parece-me que a simples associação de baixo nível de associativismo com
cultura política ibérica implica desconhecer as conexões entre a visão de justiça, tal
como representada pelo imaginário popular, e a participação política efetiva das
classes populares. Se participação política significa legitimação da injustiça social,
ela não pode ser tida como desejável.
Neste sentido, o problema estaria no modo como os cidadãos devem cobrar
a realização das obrigações atribuídas aos políticos. Problema, aliás, apontado no
conceito de iberismo formulado por Vianna e associado às preocupações de W. G.
dos Santos quando trata da questão da cidadania no Brasil.
Capítulo 3
Cidadania regulada e ideário liberal: o difícil caminho
No segundo capítulo objetivei mostrar de que forma as classes populares no Brasil,
moradores de bairros periféricos de centros urbanos, representam as relações de
poder, pensam a cidadania e formulam concepções de justiça que possibilitam
julgamentos acerca da eqüidade da ordem social na qual estão inseridos. Agora o
foco analítico recairá sobre o modo pelo qual W.G. dos Santos se posiciona frente
às questões referidas ao estudo da cidadania no Brasil em comparação com
pesquisas mais recentes sobre a mesma temática.
O que considero central na abordagem aqui empreendida é a tentativa de
apreender e compreender de que modo se dá a articulação, sempre complexa e
tensa, entre cultura e cidadania, na especificidade do caso brasileiro. Desta forma,
acredito poder mostrar o que escapa às construções teóricas como a apresentada
por Santos em função das mudanças ocorridas no campo do imaginário político das
classes populares.
Ao contrário da tendência refletida na maior parte das pesquisas e
formulações de cunho mais propriamente normativo a respeito da democracia no
Brasil, optarei por tomar um caminho que não considere a tradição na qual se
baseia nossa cultura política como algo a ser, sob pena de perpétuo retrocesso,
superado.
Na verdade, tratarei esta tradição de modo a evidenciar o que nela é
importante para a compreensão da cidadania brasileira tendo em vista as relações
dinâmicas estabelecidas entre o sistema político e a sociedade. Importa ainda
destacar neste viés de leitura, que o modo de construção efetiva da cidadania no
Brasil pode ser considerado um modo específico de construção da cidadania
moderna.
62
O viés de leitura aqui tentado está de acordo com abordagens mais
recentes, como as de Morse e Oliveira, que objetivam revisitar a nossa tradição de
cultura política a fim de refletir sobre as possibilidades de se compreender a
especificidade dos problemas associados à cidadania e à democracia no Brasil
moderno.
O que está sendo colocado em questão nesses autores é exatamente a idéia
de que análises e perspectivas que apenas identificam nossos problemas de déficit
de cidadania e democracia política, relacionando-os à tradição ibérica,
provavelmente estão deixando de questionar as possibilidades de tratar estes
problemas a partir do que em nossa história cultural pode ser valioso para a
construção de uma cultura de direitos de cidadania. É orientado por esta idéia que
as teses defendidas por Santos acerca da cidadania serão interpretadas neste
trabalho.
Na primeira parte deste capítulo mostrarei os limites e potencialidades do
conceito de cidadania regulada, elaborado por Santos para a compreensão da
cidadania brasileira, comparando-o à especificidade que esta adquire no imaginário
político das classes populares brasileiras. Na segunda parte, introduzirei na análise
da democracia no Brasil os processos que considero cruciais para a disseminação
da cidadanização liberal decompostos por Duarte em três elementos, quais sejam,
individualização, racionalização e responsabilização.
99
Mostrando como nossa
cultura política pode ser compreendida dentro desses processos espero poder
apontar para as incongruências e paradoxos provocados pelas tentativas
institucionalizadas, realizadas tanto pelo Estado e seus organismos, quanto por
entidades civis não governamentais, de conversão das classes populares brasileiras
ao ideário da cidadania liberal. Ideário este, que, a meu ver, não só parece
preencher as expectativas de Santos sobre o futuro da democracia no Brasil, mas,
e o que realmente importa aqui, nortear seu esquema interpretativo.
99
DUARTE; BASTED; TAULOIS & GARCIA. Vicissitudes e limites da conversão à
cidadania nas classes populares brasileiras.
63
A cidadania regulada e o imaginário político das classes populares
A reflexão acerca da cidadania elaborada por Santos, já bastante sedimentada na
literatura pertinente ao tema no Brasil, pode ser definida através do conceito de
cidadania regulada. De acordo com Santos
por cidadania regulada deve-se entender o conceito de cidadania
cujas raízes encontram-se, não em código de valores políticos,
mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais,
tal sistema de estratificação é definido por norma legal. Em outras
palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que
se encontram localizados em qualquer uma das ocupações
reconhecidas e definidas em lei... A cidadania está embutida na
profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do
lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reproduzido por
lei.
100
Tendo assim definido o modo de institucionalização da cidadania no Brasil,
Santos poderá determinar o lugar preciso da não-cidadania. Este será ocupado por
aqueles indivíduos cujas funções no processo produtivo não estão regulamentadas
pelas leis fixadas pelo Estado. O acesso aos direitos de cidadania e a extensão deles
dependerá, portanto, sempre do reconhecimento legal da profissão.
Tomando o conceito de cidadania regulada como referência para a
compreensão do imaginário político das classes populares, buscarei mostrar que a
análise das práticas políticas populares, tal como apresentadas pela literatura
pertinente, permite-me inferir que algumas das idéias fundamentais expressas no
conceito parecem ser passíveis de releituras capazes de colocar em outros termos a
discussão acerca da cidadania no Brasil. Esses outros termos devem permitir
explorar elementos de nossa cultura política que possam ser favoráveis à
disseminação de uma cultura de direitos.
O problema brasileiro da incorporação dos atores mais relevantes da ordem
industrial contemporânea ao sistema político foi resolvido por um mecanismo de
engenharia política expresso pela política social e trabalhista. Esse mecanismo foi
responsável tanto pela formação das identidades empresariais e operárias no Brasil
100
SANTOS, W. G. dos. Cidadania e Justiça: A política social brasileira: 75.
64
como também pela incorporação destes atores ao sistema político via sindicalização
tutelada pelo Estado e, se não excluiu, ao menos enfraqueceu a representação
independente de interesses baseada na atuação de partidos políticos nos
parlamentos. Se a luta autônoma pela garantia de direitos e mecanismos de
proteção social no Brasil é substituída por uma acomodação de conflitos promovida
pelo Estado via política social, uma conseqüência crucial será o caráter
hierarquizado e limitado da cidadania tal como delineada por este modelo. Ele
estaria impedindo que uma ordem política universalista e igualitária pudesse se
estabelecer entre nós.
De acordo com o conceito de cidadania regulada, posso inferir, no que diz
respeito à dimensão mais propriamente sociológica, que os laços sociais
estabelecidos entre operários e patrões são baseados numa concepção
hierarquizada de sociedade instituída pela prática e presença de um Estado
garantidor de direitos e deveres diferenciados entre as classes. Concepção desta
ordem encontra-se nos relatos extraídos pelo trabalho de campo realizado por
Caldeira.
101
Tanto trabalhadores formais quanto informais, moradores do bairro
Jardim das Camélias, representam as relações sociais tomando como seu elemento
estruturador a distribuição da riqueza entre eles que, por sua vez, é
predeterminada pela própria organização social e política. Ou seja, a existência e
participação dos cidadãos na sociedade são condicionadas pela preeminência de
uma estrutura social e política que regula de modo hierarquizado as oportunidades
de vida de todos os seus membros.
Neste sentido, parece haver uma congruência entre a estruturação
corporativista da ordem social brasileira implementada pelo Estado varguista e o
imaginário social e político das classes populares. Em ambos os casos há
predominância de formas de sociabilidade predeterminadas e reguladas por um
poder central garantidor do ordenamento social e das relações de poder entre as
101
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos.
65
classes. O modo como este poder central é visto pelas classes populares parece
corroborar o conceito de cidadania regulada elaborado por Santos na medida em
que sua percepção de direitos e deveres aponta para a institucionalização de
privilégios para aqueles que ocupam cargos de maior importância no processo de
acumulação capitalista no Brasil. Neste sentido, quanto mais rico se é mais se pode
contar com o favorecimento do poder central, aspecto de nossa ordem política e
social não fundamentalmente questionado pelas classes populares.
Para melhor compreender a congruência acima apontada creio ser
necessário explorar um pouco mais o conceito proposto por Santos. De acordo com
sua formulação, a cidadania no Brasil não deriva de um código de valores políticos,
mas de uma estrutura ocupacional organizada pelo Estado através de normas
legais. Entretanto, presumo que algum suporte valorativo deve alicerçar o princípio
ocupacional para que ele se torne operativo. Neste sentido, o trabalho parece ser o
valor central que organiza a cidadania regulada.
O trabalho é um valor que adquire centralidade nas representações sociais e
políticas das classes populares e que foi capaz de cimentar os elos corporativistas
que ligavam as classes entre si e estas ao Estado. Neste caso, ao invés de valores
tal como liberdade e igualdade, o valor trabalho, compartilhado amplamente pelas
classes populares, parece ter contribuído de forma decisiva para ao sucesso da
ordenação corporativista da sociedade brasileira. Mas qual seria seu sentido
enquanto fundamento do elo social e político?
As pesquisas de campo que tomam esta categoria, trabalho, como base para
a reflexão sobre as formas de representação da sociedade e do poder pelas classes
populares percebem-na enquanto expressando um dos valores fundamentais na
definição da cidadania e nas formas de integração dos cidadãos à sociedade e, por
conseguinte, ao poder. A idéia de trabalho, no imaginário das classes populares
brasileiras, apresenta-se enquanto critério de determinação da dignidade do
66
cidadão e traz embutida uma concepção de justiça e direitos indispensável ao
funcionamento mais harmonioso da uma sociedade desigual.
No que diz respeito às relações entre trabalho e capital, no âmbito da esfera
da justiça e dos direitos, as classes populares enfatizam a existência de exploração
do primeiro pelo segundo, exploração esta apoiada pelos governantes. Ainda que se
tenha como natural a existência de uma hierarquia social estabelecida e
estruturante entre pobres e ricos, há um limite na desigualdade que pode ser
suportada pelas classes populares. Uma situação em que ele é ultrapassado pode
ser exemplificada na insatisfação com a baixa remuneração paga ao trabalhador em
geral. Quando se ultrapassa esse limite, surge o sentimento de desrespeito em
relação ao trabalhador provocado pela ganância dos patrões e o comprometimento
dos governantes com estes. E quando há este desrespeito está se desrespeitando
um membro legítimo, reconhecido da sociedade, um cidadão, ou melhor, um bom
cidadão, um bom trabalhador.
Se o estado corporativista implementou a cidadania regulada como
mecanismo de engenharia política com o objetivo claro de organizar o processo de
acumulação capitalista brasileiro, a noção de cidadania tomada junto às classes
populares parece conter representações que vão além da idéia de hierarquia
ocupacional. O cidadão não é apenas um mero trabalhador inscrito no processo
acumulativo cuja posição na estrutura ocupacional escalonada lhe confere direitos.
O cidadão também é aquele que pode exigir respeito (ou direitos) por ser um bom
trabalhador, um bom pai de família, um bom vizinho.
Assim, como afirma Palmisciano, referindo-se às representações da
cidadania extraídas da pesquisa de Vidal;
102
as noções de ter direito de ou ter direito acabam vindo associadas
a um julgamento moral que entende que tem direito ou direitos
quem é direito. Isso porque, se não são todos que sabem ou
podem procurar os direitos, também não são todos que fazem por
102
VIDAL, D. Reflexões acerca da contribuição da experiência brasileira para a
compreensão da cidadania democrática moderna.
67
merecê-los. E ser direito significa preencher pelo menos três
condições: cumprir os deveres, ser um bom cidadão, íntegro e com
ficha limpa, e ser um bom trabalhador.
103
As normas que regem os direitos do trabalhador incorporam, além dos
critérios de qualificação profissional e conhecimentos técnicos e científicos, uma
dimensão moral referida a um código de valores cuja gramática parece centrar-se
na idéia de cumprimento de deveres como determinante da dignidade ou da honra.
Este mesmo código parece ser utilizado na avaliação feita pelas classes populares
em relação aos patrões e governantes.
Como já mencionei no segundo capítulo, as soluções apresentadas pelas
classes populares para as situações relacionadas à ordem sócio-econômica e
política que lhes pareçam injustas são as ações individuais e as ações coletivas. As
duas soluções têm como ponto de partida a mesma representação da sociedade, da
organização do poder e da idéia de direitos e deveres. Esta representação está
associada à percepção de que a sociedade estrutura-se e funciona de tal modo que
a dimensão moral, que a constitui e lhe prescreve as normas determinantes das
possibilidades de ação social, se forja anteriormente à opção individual por esta ou
aquela solução para as questões sociais.
Se o conceito de cidadania regulada não mais pode ser aplicado para se
explicar de modo satisfatório questões que envolvem o entendimento das questões
trabalhistas, em função de todas as mudanças institucionais, legais e políticas
ocorridas nas últimas décadas, concepções de caráter ético parecem continuar
regendo as práticas e modos de pensar das classes trabalhadoras e populares no
Brasil.
Estas mesmas idéias de dignidade moral, exigência de respeito e a
concepção holista de sociedade, responsáveis pelos critérios de avaliação das
relações entre empregados e empregadores no Brasil, contrárias a algo semelhante
à ética capitalista encontrada em sociedades cujos princípios de ordenamento são
103
PALMISCIANO, A. L. S. C. de M. Lições de cidadania: a experiência do balcão
de direitos no Rio de Janeiro: 46.
68
referidos ao liberalismo, encontram lugar na definição popular de cidadania. Esse
ponto fica claro quando se trata de estabelecer os direitos atribuídos a criminosos.
Como bem demonstra Caldeira,
104
o esforço feito pelo governo do estado de
São Paulo, associado à igreja, durante boa parte da década de oitenta, no sentido
de ampliar os direitos de cidadania, principalmente os civis, para os criminosos
comuns (a partir da idéia de que os mesmos deveriam ter, tanto quanto os presos
políticos encarcerados na vigência do regime militar, o reconhecimento social do
direito de vocalização de suas demandas) foi claramente rejeitado pela população
paulistana.
Dentre os motivos apontados por Caldeira para explicar esta rejeição
destaco aquele que identifica nestes direitos, os civis, privilégios de pequenos
grupos ou indivíduos. Ao contrário dos movimentos sociais, como de pobres das
periferias que reivindicavam o atendimento a direitos sociais, tais como moradia,
educação, saúde e segurança, os direitos solicitados pelos presos, principalmente o
de reivindicar, se não a cidadania plena, ao menos, em função de sua condição de
ser humano, o direito à vida e à integridade física, foram associados aos mesmos
direitos que os ricos parecem se valer para influenciar governantes e políticos para
lhes favorecer. Neste sentido, o fato de estes presos não compartilharem, de
acordo com o imaginário da quase totalidade da sociedade paulistana, da mesma
humanidade dos demais, trabalhadores, bons pais etc., e ainda reivindicarem um
direito tido por negativo explicaria, em parte, a rejeição às demandas dos presos
comuns quando comparadas àquelas reivindicadas pelos movimentos sociais e
presos políticos.
105
Caldeira conclui essa análise sustentando que, na sociedade brasileira,
os direitos civis têm associações bem diversas dos direitos
coletivos. Se estes expressam, tanto na era Vargas quanto
104
CALDEIRA, T. P. do R. Direitos Humanos ou “privilégios de bandidos”?:
Desventuras da democratização brasileira.
105
Idem: 166 e 168.
69
sobretudo a partir nos anos 70, a expansão dos direitos a grupos
espoliados e excluídos da cidadania, o fato é que, em relação aos
direitos individuais, a associação mais freqüente é com privilégios.
Enquanto a maioria da população considera essenciais os direitos à
saúde, educação, previdência social, etc., tende a ver como luxo
os direitos de expressão, de participação em associações, de
liberdade individual. Os direitos civis parecem ser menos
conhecidos e valorizados...
106
Mais uma vez apresenta-se um tipo de representação da sociedade na qual
um padrão de sociabilidade tipicamente holista baseada num código de honra e
dignidade parece estar condicionando o comportamento das classes populares
quando estas se encontram diante de questões básicas do ordenamento político de
molde liberal. E isto pode ser comprovado pela ênfase conferida aos direitos sociais,
aqueles que tem como referência a coletividade, em detrimento dos direitos civis,
referidos aos indivíduos.
Este modo hierarquizado de ordenação do poder está, portanto, presente
tanto nas representações das classes populares quanto no conceito de cidadania
regulada, sendo que a dimensão ética, como critério de avaliação das relações
sociais e políticas, pode ser depreendida das representações populares.
Trata-se agora de considerar mais detidamente os direitos civis, ou
individuais, essenciais a um ordenamento liberal-democrático da ordem política.
Como isso pode ser tratado? Será que não há lugar para eles nas representações
das classes populares e dos trabalhadores no Brasil? Caso exista, qual seria?
Como já observei, o conceito de cidadania regulada pressupõe um tipo de
ordenamento do poder baseado não em código de valores políticos compartilhados,
mas na hierarquização ocupacional efetivada pelo Estado, determinante do
conjunto de direitos diferenciados de categorias de profissionais. Em relação às
representações populares da cidadania, afirmei que os direitos civis são vistos de
forma negativa, associados a privilégios não tolerados. Neste modo de ordenação
da polis brasileira, a maneira de lutar por melhorias nas condições de vida dos
106
Idem: 168.
70
trabalhadores passaria pela mediação de um poder executivo forte e centralizador
das decisões sobre a organização do processo acumulativo.
É claro que este tipo de ordenação corporativista contradiz a idéia de
formação de uma polis democrática. Mas se ela deixou de vigorar no âmbito
jurídico, as representações populares do poder que a tornavam funcional, fulcro de
nossa cultura política, permanecem fortemente baseadas em valores que
sustentam uma moralidade não apenas holista como claramente hierárquica.
É neste sentido que compreendo as frustrações apresentadas por autores
que buscavam encontrar nos movimentos sociais e no aumento das associações
civis,
107
ocorridos nas últimas três décadas no Brasil, as bases para um ativismo
político tipicamente anglo-saxão.
Em artigo recente, Caldeira,
108
retomando a discussão a respeito da
associação estreita, operada no imaginário popular paulistano, entre direitos
humanos e privilégios de bandidos, busca mostrar como, a partir do
aprofundamento nas últimas duas décadas da linguagem de direitos no imaginário
popular, a idéia de direitos individuais vem sendo utilizada por criminosos
encarcerados para articular, com certo grau de legitimidade, suas demandas por
melhores condições de vida nos presídios. A disseminação de valores fundamentais
a uma linguagem de direitos parece estar desfazendo a associação entre direitos
individuais e privilégios de bandidos. Isso foi possível, segundo Caldeira, pela
atuação dos movimentos de defesa dos direitos humanos e pela criação do Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH) em 1996 pelo governo federal. O PNDH
define os direitos humanos como direitos de todos os cidadãos e principalmente dos
grupos marginalizados. Assim, os criminosos encarcerados passaram a pleitear
mudanças no sistema prisional baseando-se numa apropriação da idéia de direitos
civis presente no imaginário popular.
107
SANTOS, W. G. dos. Razões da desordem: 77-115.
108
CALDEIRA, T. P. do R. Violência, Direitos e Cidadania: relações paradoxais.
71
Nem mesmo o PCC articula-se publicamente sem o imaginário da
cidadania e dos direitos!
109
Entretanto, a disseminação de uma linguagem de direitos de caráter liberal
pelo governo federal através do PNDH, como de resto por outras instituições
governamentais e não governamentais, num imaginário popular marcado pela
tradição ibérica não se faz sem contradições.
110
As possibilidades de efetivação de direitos individuais, de acordo com as
representações do poder tomadas junto aos trabalhadores e moradores das
periferias dos grandes centros urbanos, parecem sempre estar vinculadas, de modo
subordinado, a uma concepção de sociedade na qual regras de bom convívio, em
esferas como trabalho, família e relações de poder colocam-se como determinantes
das possibilidades de ações individuais. Ou seja, direitos individuais não são
pensados fora da esfera moral que engloba e confere sentido à vida social com um
todo. Os problemas deste tipo de representação do poder, da justiça e dos direitos
parecem claros: o que fazer para garantir direitos civis a certos grupos sociais e
indivíduos tendo em vista sua não aceitação como bons cidadãos? Seria necessário,
diante deste problema que parece recolocar o caráter autoritário da cultura política
brasileira como fator determinante dos fracassos das tentativas de cidadanização
entre nós, promover a ressocialização política das classes populares de tal forma
que elas pudessem compreender o valor da igualdade básica entre todos na
conformação de um regime político mais democrático?
Cidadanização liberal: o difícil caminho
Reconhecidas as dificuldades relativas à temática da cidadania brasileira que podem
ser resumidas na ausência de práticas políticas e sociais enraizadas capazes de
fazer funcionar instituições, direitos e deveres, típicos do ordenamento liberal da
ordem política e social, apresentarei uma outra via de interpretação na qual os
109
Idem: 45.
110
A respeito disso cf. OLIVEIRA, I. de A. R. Cidadania e política de direitos
humanos no Brasil.
72
aspectos centrais necessários à superação desta ausência são problematizados.
111
Para tratar desse tema, apóio-me no texto de Duarte et al
112
que analisa as
reflexões trazidas pelo projeto de duas ONGs brasileiras, o Iser e o Idac, sobre as
relações entre o ideário liberal e as práticas de promoção efetivadas na tentativa de
cidadanização feita no Morro da Coroa, no Rio de Janeiro, por um Escritório Modelo
de Assistência Jurídica.
Através da argumentação de Duarte, buscarei mostrar as dificuldades
inerentes à tentativa de conversão da cultura política das classes populares
brasileiras em uma cultura política liberal. Estas podem ser mais bem
compreendidas quando se indaga sobre como os cidadãos das classes populares
brasileiras formulam seus interesses e justificam seus direitos inalienáveis e de que
maneira pensam os fundamentos da legitimidade e funcionamento das instituições
políticas. Nesta reelaboração das tentativas de conversão ao ideário liberal é que a
cultura política ibérica se mostra dinâmica e capaz de (re)formular sua própria
versão moderna de cidadania.
Mostrando de que modo se dá a articulação entre a cultura ocidental
européia, tida por matriz da disseminação da ordem política e dos valores liberais,
e a cultura popular, Duarte arrolará, por assim dizer, dilemas que circundam de
modo inexorável os campos teórico e das experiências mais concretas vividas por
sociedades diversas. Destacarei, dentre estes dilemas, dois diretamente associados
às contradições entre o ideário liberal-individualista e o imaginário político das
classes populares brasileiras tal como o tenho tratado nesta dissertação.
O primeiro deles diz respeito à contradição entre o ideário liberal-
individualista e o imaginário político das classes populares brasileiras. O ideário
111
Crítica mais radical à idéia de cidadanização liberal como mecanismo de
democratização da cultura política brasileira pode ser encontrada em SOUZA, J.
A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro; e, do mesmo
autor, A gramática social da desigualdade brasileira.
112
DUARTE; BASTED; TAULOIS & GARCIA. Vicissitudes e limites da conversão à
cidadania nas classes populares brasileiras.
73
liberal-individualista é definido por Duarte através de três processos:
individualização, racionalização e responsabilização.
A individualização remete à forma ou modo de aglutinação
societária... A cidadanização depende em primeiro lugar desse
processo, que implica preeminência do indivíduo sobre a totalidade
social, quer ela se chame sociedade ou comunidade. A
racionalização remete ao meio pelo qual os sujeitos sociais se
relacionam com o mundo, com os instrumentos de apreensão do
tempo, lugar, causalidade, ordem etc... O terceiro e último
processo, o da responsabilização, corresponde à relação moral
entre os dois outros, entre o modo e meio, entre o sujeito
individualizado e suas razões racionais. A cidadanização
pressupõe-no tanto quanto os outros e não é à toa que, sob a
rubrica sinônima da conscientização, preside às propostas de
conversão.
113
Tratando da aglutinação societária das classes populares brasileiras já pude
demonstrar o quanto suas formas de sociabilidade são baseadas em valores que
ordenam as esferas social e política de modo a conferir-lhes sentido moral antes
mesmo das possíveis escolhas individuais. A sociedade é sempre concebida de
modo orgânico e hierarquizado, de tal maneira que cada indivíduo tem seu lugar e
suas possibilidades de mobilização social demarcados por um conjunto de valores
que se aplicam às vicissitudes e circunstâncias familiares, trabalhistas, criminalistas
etc.
No que diz respeito ao que aqui interessa, a relação entre cultura política e
cidadania, ou seja, aos modos de relacionamentos estabelecidos entre as classes
populares e instituições políticas, importa enfatizar que, como mostrou Peirano, em
seu estudo sobre cidadania em Rio Parnaíba, Minas Gerais;
a política está, (...) vinculada à dominação das relações
personalizadas e hierárquicas, em contraste com o modelo
individual e universalista da ideologia moderna. Não são as
características individuais e peculiares de cada pessoa, nem
tampouco sua qualificação ou mérito que determinam sua escolha
para um emprego, mas, sim, sua posição social dentro de um
grupo e a rede de relações que mantêm com os outros membros
do grupo.
114
113
Idem: 13.
114
PEIRANO, M. G. S. Sem lenço, sem documento: reflexões sobre cidadania no
Brasil: 51.
74
Nesta visão da cultura política brasileira enfatizo não a força dos laços
clientelistas, que vem sofrendo alterações significativas e até mesmo se
enfraquecendo, mas a forma de sociabilidade que parece persistir no imaginário
popular e as idéias de justiça e legitimidade do exercício do poder estatal. Esta
forma de sociabilidade, sem dúvida, não se mostra semelhante a algo como um
padrão individualista de organização da ordem social e política. Ou seja, não há
aqui o predomínio de um padrão de solidariedade típico das culturas políticas anglo-
saxônicas, não há preeminência do indivíduo sobre a totalidade social.
Esta percepção holista da sociabilidade é corroborada por Peirano quando
afirma, contrastando com a idéia de nação moderna tal como definida por Dumont
no trabalho supracitado, que,
em suma, Rio Parnaíba desconfirma a concepção de Louis Dumont,
de que uma nação é uma sociedade que se vê como composta de
indivíduos. Lá a idéia de nação é mediada pela identidade de filho
do município, identidade essa que tem o título de eleitor como seu
símbolo político. A ênfase não recai no indivíduo como valor
último, mas no grupo.
115
Pesquisa realizada por Kuschnir, na qual buscou mostrar aspectos da
trajetória de candidatos a uma das cadeiras da câmara dos vereadores do
município do Rio de Janeiro, mostrou que os motivos dados por um político-
candidato para obter o voto do eleitorado podem ser enquadrados no padrão de
sociabilidade aludido. Em primeiro lugar, uma candidatura é vista como uma
obrigação, um dever que, no mais das vezes, esta acima das vontades egoístas dos
candidatos eleitos.
Eu não me lancei candidata, fui lançada. (...) eu não era
candidata, saiu legenda pra mim, tinha número e não era
candidata. Com dois meses antes das eleições, as pessoas
começaram a assediar (...) Então foi uma opção que eu tive que
fazer.
116
Neste depoimento, o caráter quase involuntário da opção pela candidatura é
evidente. Em outro depoimento o mesmo se mostra de modo mais exasperado.
115
Idem: 56.
116
KUSCHNIR & CARNEIRO. As dimensões subjetivas da política: cultura política
e antropologia política: 183.
75
Eu até tinha uma certa (...) contradição com o parlamento. Eu
achava que o parlamento não servia pra muita coisa. Tanto que
em 1982 a organização [o partido] tentou indicar meu nome e eu
é que não aceitei, eu é que não quis ser candidato. Em 1986, o
meu nome foi aventado e eu votei contra o meu próprio nome. Em
1998, a coisa ficou um pouco assim meio que sem saída, porque
eu tinha um trabalho muito forte. Tipo eu era o que tinha mais
chance de ser eleito (...). Então acabei sendo eu o indicado por
esse grupo.
117
Se os candidatos eleitos citados permanecem afirmando a idéia de que a
vida parlamentar significa um sacrifício, já que abandonam seus projetos de vida
particulares quando optam por cumprir uma obrigação social, tal obrigação deve
ser entendida no contexto das regras que regem a vida cotidiana de uma
comunidade. Desta forma,
O fato de o candidato pertencer a uma determinada comunidade,
seja ela uma comunidade local, seja um grupo cuja identidade se
dá através de valores comuns, é uma das condições fundamentais
para que sua candidatura tenha legitimidade. O papel desta
comunidade é justamente o de sujeito das pressões que o
candidato sofre. Quer dizer, nesta visão dos entrevistados, é a
comunidade que lança a candidatura; é a comunidade que indica,
que praticamente obriga um de seus integrantes a assumir, a
contragosto, a candidatura para vereador.
118
Da pesquisa realizada por Kuschnir, é possível depreender que a lógica
seguida pelos candidatos entrevistados, eleitos em 1996 às cadeiras da câmara dos
vereadores do município do Rio de Janeiro, para convencer seus eleitores, é
presidida pela idéia de reconhecimento comunitário da necessidade da candidatura.
Portanto, a individualização não opera enquanto princípio da nossa
morfologia social, não define as formas de articulação das classes populares com a
esfera estritamente política da vida em sociedade. Esta constatação conduz o
problema do entendimento da cidadania no Brasil para a questão da racionalização.
A respeito deste processo, devo advertir que aqui ele está sendo
compreendido não como intrínseco a uma ou outra tradição de cultura política. Ou
seja, a racionalização não é apenas aquela pela qual indivíduos modernos se
117
Idem: 184.
118
Idem: 186.
76
relacionam com as instituições políticas tipicamente liberais. Esta, aqui, será
compreendida enquanto
processo de racionalização, ou seja, esta transformação social que
propicia um certo vínculo entre pessoas e coisas e normas de
conduta, de tal forma que a confiança passe a ser depositada no
sistema, e não nas pessoas.
119
Julgo esta definição pertinente em razão da ênfase atribuída à confiança no
sistema como meio de cristalização de formas de organização da vida social aceitas
como razoáveis. Esta razoabilidade, por sua vez, pode ser encontrada tanto num
modelo de organização liberal do poder quanto num modelo associado à matriz de
procedência ibérica, bastando, para tanto, que a confiança esteja depositada no
sistema (liberal ou não) que estabelece o vínculo entre pessoas e coisas e normas
de conduta. Além disso, caracterizar a racionalização evidenciando seu aspecto
processual permite perceber que os vínculos referidos estão sujeitos a
transformações determinadas por práticas e representações culturais contingentes.
Aqui está uma diferença fundamental que se impõe a qualquer tentativa de
compreender a cultura política brasileira. A racionalização, ou seja, o sentido dos
vínculos dinâmicos, capazes de conferir confiabilidade ao sistema, estabelecidos
entre pessoas, normas e objetos políticos, é determinada por uma concepção ética
distinta daquela em que a noção de justiça está referida aos direitos individuais. Se
há referências no imaginário político das classes populares que sustentem algo
como a defesa de direitos particularistas, como já afirmei antes, os problemas
referidos à individualidade dos cidadãos são pensados a partir de regras que os
situam socialmente. É esta ética que permite, por exemplo, que, mesmo se
aceitando a hierarquia social como natural, se rediscuta sua morfologia na medida
em que um de seus componentes, os ricos, estejam sendo excessivamente
privilegiados.
Da mesma forma, pode-se compreender que tipo de papel o Estado deve
assumir. Seu principal atributo seria o de garantir aos pobres condições necessárias
119
OLIVEIRA, I. de A. R. S/ ref. (2002): 6.
77
à sua existência interferindo nas suas relações com os ricos todas as vezes que
estes os estiverem explorando. Ao Estado cabe a garantia dos direitos individuais e
sociais. O Estado aqui tem suas atribuições determinadas antes das escolhas de um
governante em particular. Ele deve sempre olhar para os pobres, não ceder ao
poder dos ricos. Caldeira ilustra e esclarece a dinâmica da racionalidade das
relações de poder tal como representada pelas classes populares brasileiras quando
afirma que é
apenas com relação à oposição ricos-pobres que se pode entender
o mau-uso do poder, ou seja, o fato de os governantes que
ocupam o lugar não estarem fazendo o que poderiam ou deveriam
fazer.
120
Se os governantes não fazem o que deveriam é porque não cumprem com
um papel que lhes é predeterminado, prescrito pela ordem social. E esta, por sua
vez, sempre aparece como estruturante do campo político nas representações dos
diferentes grupos de entrevistados nas pesquisas aqui consideradas.
A mediação entre classes e objetos políticos, portanto, ocorre em função da
atuação estatal previamente determinada por um código de ética compartilhado
socialmente. É este código, delimitador do campo de atuação das classes e do
Estado, que funciona como critério para julgamentos acerca da eqüidade-
legitimidade, das relações sociais e políticas. E nele os atributos de ricos e pobres
podem ser considerados positivos ou negativos de acordo com o contexto em que
se apresenta. Uma reflexão que trate das possibilidades de participação política das
classes populares certamente deverá considerar esta dimensão.
É a partir dela que se pode entender o processo de conscientização. Para o
trabalhador das classes populares a cidadania regulada não é o único referencial
para o pedido de algum tipo de auxilio ou direito trabalhista. Cabe aos patrões o
atendimento de demandas dos trabalhadores não encontradas na legislação
trabalhista. Da mesma forma, a mera operação do mercado de trabalho não
120
CALDEIRA, T. P. do R. A política dos outros: O cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos: 212.
78
encontra lugar no código de ética das representações populares. Não faz sentido,
tanto para o funcionamento pleno do mercado laissez-fariano como para o
corporativista, ter obrigações que não estejam de alguma forma firmadas por
acordos ou contratos. Entretanto, a exigência de respeito, comumente apresentada
pelas pesquisas de campo, extrapola tais acordos e contratos.
O respeito se manifesta na idéia de que as regras necessárias ao
funcionamento harmonioso da sociedade e à preservação da
ordem devem ser estritamente observadas.
121
Responsabilidade aqui tem a ver com respeito, categoria nuclear num código
de ética compartilhado e gerado socialmente. Não se trata, portanto, de um código
social utilitarista no qual os interesses e desejos pessoais determinam as regras do
convívio social. A responsabilidade daqui derivada muito pouco tem a ver com o
associativismo anglo-saxão que pressupõe a ação barganhada dos
indivíduos na condução de todos os tipos de interesse coletivo.
122
A forma de manifestação da responsabilidade política nas classes populares
brasileiras parece desconcertar análises que ao criticar a persistência de laços
políticos e sociais holistas, supostamente responsáveis pela contemporaneidade da
cultura política autoritária, deixa de perceber o grau de capacidade da percepção
popular das injustiças sociais resultantes do próprio ordenamento social hierárquico
tomado como natural. O que estou enfatizando aqui é que as relações estabelecidas
entre as classes populares e os objetos políticos são mediadas por um código de
ética que conforma a racionalidade política e permite compreender de que maneira
as manifestações de descontentamento ou conformismo com o ordenamento social
hierárquico podem ocorrer. Ou seja, há um conhecimento do modo como funciona a
ordem política em geral, as relações de poder entre as classes e os mecanismos de
atuação nesta esfera, que permite a um operário, por exemplo, reivindicar
melhores salários e condições de vida. A qualidade das formas de responsabilização
dos poderes públicos apresentadas pelas classes populares só pode ser
121
VIDAL, D. Categorias morais, mídia e voto numa favela do Recife: 106.
122
DUARTE; BASTED; TAULOIS & GARCIA. Vicissitudes e limites da conversão à
cidadania nas classes populares brasileiras: 9.
79
compreendida atentando-se para os modos como estas interagem com as
instituições políticas. Mesmo quando a cobrança por melhores condições de vida
não ocorre através da atuação sindical e se encerra num inconformismo reticente, é
possível notar que há nele (no inconformismo reticente) conhecimento dos
mecanismos sociais responsáveis pela situação desfavorável e capacidade de
apontar os culpados.
Evidências trazidas por pesquisa realizada no Rio de Janeiro na segunda
metade da década de 1980 por Pessanha junto aos trabalhadores da indústria naval
confirmam a presença, no imaginário político das classes populares, de formas de
responsabilização dos poderes públicos. Questionando os operários mais velhos a
respeito de sua compreensão e participação na política a autora obteve como
respostas o reconhecimento da relevância dos partidos políticos enquanto
mecanismos institucionais de representação de interesses. Isto pressupõe o
reconhecimento da legitimidade do poder legislativo enquanto arena acessível e
eficaz no encaminhamento de demandas salariais e tantos outros direitos auto-
atribuídos pelos trabalhadores. Pode-se também depreender das representações
dos trabalhadores entrevistados por Pessanha que a conquista e o acesso a direitos
deve passar por uma repactualização, consolidada pela ação estatal, dos termos de
convívio social e político entre ricos e pobres, operários e patrões.
Existe a noção do recorte do espectro em partidos, e estes, e os
políticos, não são uma só coisa, indiferenciada, mas, ao contrário,
representam efetivamente posições distintas que correspondem a
práticas diversas. O governo, nesse contexto, não aparece aqui
como neutro, mas qualificado em termos de sua postura a favor ou
contra os interesses operários. A perspectiva da política está
marcada, por outro lado, pela dimensão da mudança.
Testemunhas de efetivas melhorias em suas condições trabalho e
de vida, a partir de sua ação sindical e de alianças políticas no
contexto do populismo, esses operários têm boas razões para
acreditar que as mudanças sociais dependem da política e passam
por ela.
É nesse sentido que eles percebem que os partidos e os políticos
desempenham um papel fundamental para o encaminhamento
dessas mudanças. Os políticos e seus partidos são vistos como
instrumentos de comunicação e encaminhamento para cima - ou
80
seja, para outros níveis, considerados superiores, de decisão
política- dos interesses especificamente operários da categoria.
123
O segundo dilema que reputo fundamental para a reflexão sobre as
possibilidades de conversão das classes populares à cidadania liberal diz respeito à
reação destas às propostas implementadas por órgãos governamentais ou não
governamentais que atuam no sentido da disseminação de uma nova cultura de
direitos. Quais têm sido as reações populares a estes projetos? A busca por esta
resposta parece centralizar, de alguma forma, as atenções de muitos dos que se
preocupam com as questões que se referem à democracia no Brasil. A partir dela
pode-se falar em avanços ou retrocessos em nossa cultura política, sendo o avanço
identificado com o sucesso da difusão dos ideais liberais e igualitários sobre as
práticas sociais seculares de clientelismo e personalismo.
O caso do paradoxo dos bairros populares parece ilustrar de modo claro a
situação de ambigüidade que os projetos de promoção social baseados nas
premissas liberais acabam por provocar. Ao disseminar um padrão de morfologia
social de tipo individualista, sem o qual o indivíduo enquanto sujeito da
responsabilidade pública que opera nos termos da racionalidade liberal não pode
existir, os projetos de promoção social esbarram, em função do próprio princípio
liberal de respeito às diferenças, na continuidade de padrões de sociabilidade
baseados em laços de parentesco e vizinhança. Ora, esses tipos de vínculos sociais,
como observa Duarte, coíbem
o processo de individuação (e seus corolários) pelo reforço de
entes intermediários de pertencimentos, que ocupam parte da
responsabilização pretendida.
124
A percepção deste paradoxo confirma a idéia de que as classes populares
possuem o poder de conferir novos sentidos às intenções primordiais dos
123
PESSANHA, Elina. Cultura, trabalho e política: a tradição dos operários da
indústria naval do Rio de Janeiro: 295-316.
124
DUARTE; BASTED; TAULOIS & GARCIA. Vicissitudes e limites da conversão à
cidadania nas classes populares brasileiras: 15.
81
interventores sociais a partir da releitura das premissas que orientam as ações dos
últimos.
O que as pesquisas de campo têm mostrado a respeito da relação entre
disseminação de uma cultura de direitos referida ao ideário liberal e o imaginário
político das classes sociais parece, portanto, ser mais complexo do que supunham
as esperanças dos conversores. Se é inegável que mudanças em nossa cultura
política tem ocorrido, deve-se perguntar sobre o caráter da dinâmica dessas
mudanças. O que percebo é a existência de uma complexa teia de relações
estabelecidas entre o imaginário e as práticas políticas populares e as ações de
promoção social na qual as novas idéias sobre direitos, as idéias liberais, são
reinterpretadas pelas classes operárias de acordo com a percepção desenvolvida ao
longo de sua experiência e contato efetivo com a esfera política da ordem social, ou
seja, com os partidos políticos, sindicatos, legislativo, executivo, judiciário etc.
O estudo realizado por Peirano
125
mostra o quanto um projeto estatal
voltado para a disseminação da idéia de igualdade jurídica pode ser reinterpretado
e perder seu caráter original. De acordo com a autora, a ação governamental no
sentido da promoção da desburocratização do atendimento às demandas dos
cidadãos de Rio Parnaíba em Minas Gerais visava estabelecer laços mais igualitários
e individualistas entre eles e os poderes públicos. Essas ações chocaram-se com
uma concepção local segundo a qual documentos, como o título de eleitor, são tidos
como fundamentais para o reconhecimento do pleno pertencimento à sociedade, o
que, por sua vez, significava a possibilidade de se ter acesso aos bens públicos e
privados.
De um lado, o projeto do governo federal de desburocratização procurava
levar consciência política e cidadã aos moradores da cidade. De outro, prevalecia a
125
PEIRANO, M. G. S. Sem lenço, sem documento: reflexões sobre cidadania no
Brasil.
82
percepção dos moradores do município de que os documentos determinavam a
possibilidade de inserção social e no mundo do trabalho. Neste sentido,
a solução local era, inclusive, vista como mais favorável e mesmo superior à
governamental na tentativa de se eliminar as injustiças sociais.
126
Já para os
funcionários do Judiciário e despachantes do município a desburocratização teria
outro significado. Eles viam nela
a solução para se romper com o esquema de satelitização em que
Rio Parnaíba estava envolvido, no qual a cidade fica em situação
de dependência de São Gotardo, Carmo do Parnaíba , Patos de
Minas, e mesmo Belo Horizonte. A quebra deste sistema
acarretaria um maior fortalecimento do município.
127
Desta forma, é possível perceber que tanto a ideologia em que se baseava o
projeto do governo sofreu re-interpretações influenciadas pelos valores hierárquicos
e holistas de sociedade apresentadas pelos moradores da cidade, quanto o próprio
governo, em sua tentativa de disseminar um modelo de cidadania de cima para
baixo, parece ter feito uso da tradição ibérica. É neste sentido que entendo a idéia
de Andrade quando afirma que
os mecanismos representativos são responsáveis pela
remodelação e conseqüentemente pela difusão diferenciada da
ideologia dominante entre indivíduos e grupos sociais.
128
A remodelação da ideologia liberal pelos moradores e pelo próprio governo
aparece no estudo de Peirano de modo claro.
Se as pesquisas parecem confirmar a presença da idéia de direitos e, porque
não dizer, de laços sociais regulando previamente as ações individuais no
imaginário popular, e neste caso o conteúdo da idéia de cidadania regulada
elaborada por Santos parece ter sido de alguma forma assimilada pelas classes
populares brasileiras, esta assimilação parece ter ocorrido num imaginário receptivo
cuja dinâmica tende a reelaborar esta noção em novos contextos. Desta forma, a
126
Idem: 58.
127
Ibidem.
128
ANDRADE, Maria Antonia Alonso de. Cultura Política e Representações
Sociais: Considerações Metodológicas: 28.
83
questão da conversão passa a ganhar novos contornos e perde seu caráter
meramente impositivo para adquirir vitalidade em processos sociais providos por
códigos próprios que devem ser considerados. Ou seja, a expectativa que afirma
ser questão de tempo a conversão das classes populares à cidadania liberal é, a
meu ver, equivocada pelo fato de não considerar a dinâmica dos processos sociais
providos da evidente capacidade de produção de sentidos peculiares. Estes
apontam para uma configuração das relações de poder cujo teor parece conciliar a
idéia de liberdade individual a um ordenamento social holístico.
Portanto, a questão a respeito da possibilidade de efetivar-se entre nós a
garantia do provimento de direitos individuais deve ser recolocada, a meu ver, nos
seguintes termos; é possível, de fato, que direitos ou liberdades individuais,
necessários ao funcionamento de uma ordem política democrática, possam coexistir
com um ordenamento político holista e hierárquico tal como apresentado pelo
imaginário político das classes populares?
Conclusão
Tendo em vista o objetivo de caracterizar a cidadania tal como representada pelas
classes populares brasileiras, mostrei que valores associados à tradição ibérica e à
tradição liberal parecem estar contribuindo para a configuração de uma linguagem
de direitos cujo diagrama pode ser descrito como iberista. De acordo com esse
conceito desenvolvido por Vianna, a cultura política brasileira se caracterizaria por
combinar, de modo complexo e tenso, representações e atitudes diante do poder
que sinalizam de um lado para o reforço de uma visão hierarquizada e holista dele
e, de outro, para uma visão na qual os direitos individuais é que prevalecem sobre
a ordem social.
A fim de melhor compreender o modo como os dois conjuntos de valores
aludidos, tidos como incompatíveis pela literatura especializada, vêm operando no
imaginário político popular, optei por uma abordagem que trata da cidadania
estabelecendo como variável central a cultura política. Esta foi entendida a partir da
maneira que Almond e Verba a formularam e como estudos recentes vêm
rediscutindo tal formulação. Assim, se a cultura política refere-se às atitudes e
orientações dos cidadãos frente, exclusivamente, ao sistema político e suas partes,
e ao modo como os cidadãos vêem seus papéis, procurei desfazer, seguindo
estudos mais recentes, a idéia de que a cultura política mais propícia ao
funcionamento do regime democrático, a cultura cívica, estaria associada à cultura
política estadunidense.
Isso me permitiu, a partir da apropriação da idéia de cidadania segundo a
definição de Van Gunsteren, para o qual ela é um artefato a ser elaborado e
reelaborado coletivamente em função da identidade coletiva forjada por uma dada
comunidade política, questionar sobre o modo como a mesma vem sendo
representada pelas classes populares. Daí, passei ao exame das representações
populares da cidadania, através da análise de trabalhos que tratam do modo como
o imaginário popular representa o poder, a sociedade e os direitos.
85
Fazendo uso, principalmente, das pesquisas de Caldeira e Vidal, mostrei que
os moradores de Jardim das Camélias e Brasília Teimosa, representam o poder e a
sociedade de modo orgânico. Ou seja, as regras responsáveis pelo funcionamento
da ordem social são utilizadas como critério para a avaliação do funcionamento do
sistema político. Assim, a sociedade é representada como composta por dois
grupos, pobres e ricos, caracterizados por categorias morais positivas e/ou
negativas. Seus direitos e deveres devem ser garantidos por um Estado regulado
por uma idéia holista de justiça cujo sujeito determina-se pela ordem social e não
pelo somatório dos interesses dos indivíduos considerados isoladamente, o que não
exclui a presença de direitos atribuídos aos indivíduos.
Se a ordem política é caracterizada de maneira holista e hierarquizada isso
não significa que ela deva ser vista como autoritária. As atribuições dos ocupantes
dos cargos públicos, como o da presidência da república e dos parlamentos, não
são determinadas pelas vontades de seus ocupantes, mas por regras inscritas na
ordem social que afirmam que os governantes devem manter as relações entre
pobres e ricos, tidos por naturalmente desiguais, de modo a lhes garantir o que
lhes é devido. Neste sentido, o sentimento de injustiça expresso pelos
entrevistados quando se referem às relações entre patrões e empregados parece
estar baseado na idéia de que os governantes vêm agindo em função dos
interesses dos ricos, concedendo a esses mais do que lhes é de direito.
Diante das situações de injustiça colocam-se ações individualistas e
coletivas. As primeiras significam uma radical descrença na possibilidade de os
governantes agirem de acordo com o ideal compartilhado de justiça. Daí derivam
duas conseqüências; ou a justiça é obtida através do uso privado dos poucos
recursos sócio-econômicos disponíveis ao trabalhador, permitindo-lhes atingir
condições mais dignas de vida, ou através de uma organização do poder baseada
na vontade de uma liderança carismática e autoritária. As ações coletivas, ao
contrário, significam a luta pela realização do ideal de justiça através da pressão
86
sobre os governantes para que eles cumpram com suas atribuições de equilibrar as
relações entre pobres e ricos. No mesmo sentido, afirmo que o clientelismo, já
enfraquecido, vem sendo utilizado, em grande medida, como estratégia das classes
populares para lidar com as injustiças sociais.
Para finalizar, tentei mostrar que a persistência de um suporte valorativo
que tornou operacional a cidadania regulada parece inviabilizar o projeto de
conversão das classes populares brasileiras ao modelo de cidadania liberal. A
cidadania regulada, que vinculava direitos sociais apenas aos trabalhadores
portadores de Carteira de Trabalho, contou com a idéia apresentada pelas classes
populares de que os diretos do trabalhador não devem ser atribuídos apenas
àqueles portadores de tal documento, mas também ao bom trabalhador. O trabalho
não é regulado apenas pela Legislação Trabalhista, mas pela condição moral de se
ser bom ou mal trabalhador. Neste sentido, ser bom denota uma categoria moral
articulada por um código de ética que permite entender o modo como as relações
sociais e políticas são representadas pelas classes populares.
É a partir deste código que essas classes vêm reinterpretando os valores
associados aos projetos de cidadanização liberal. Assim, os processos necessários a
este projeto, individuação, racionalização e responsabilização, ganham novos
sentidos. A individuação esbarra no holismo característico de nossa sociabilidade,
que, por sua vez, não exclui a possibilidade do surgimento da responsabilização
centrada, senão nas razões racionais de um indivíduo, numa racionalidade na qual
ele está sempre referido, e se reporta nas suas decisões, a normas que lhes são
exteriores e anteriores e tidas por justas (ainda que tais normas, que representam
a sociedade ideal, dificilmente sejam realizadas).
A hipótese central que norteou esta dissertação afirma que a cidadania, tal
como representada pelo imaginário popular brasileiro, pode ser caracterizada como
iberista. A validade desta hipótese pôde ser comprovada através da análise do
modo como as classes populares representam a sociedade, o poder e a justiça e os
87
direitos de cidadania. Tal análise se fez através, principalmente, do recurso a três
estudos de campo em que os autores abordam tais representações. Assim, foi
possível perceber que a presença de valores associados à tradição ibérica e à
tradição liberal, no imaginário popular, vem se atualizando e configurando uma
concepção de cidadania com características singulares. Se, por um lado, prevalece
um padrão de sociabilidade holista, por outro, a idéia de direitos individuais
também se mostra presente. Esta convivência tensa e complexa entre princípios e
valores associados a tradições de culturas políticas distintas comprova a relevância
da noção de iberismo para a compreensão da cidadania no Brasil.
O que poderia conferir maior plausibilidade à hipótese aqui defendida seria o
exame de mais estudos de casos que tratam da maneira como as classes populares
representam o poder. Da mesma forma, acredito que maior atenção deva ser
dispensada aos trabalhos recém publicados que fazem uma revisão das influências
do legado ibérico sobre as concepções de cidadania presente entre nós. Portanto, o
desenvolvimento destes dois tópicos seria importante para um refinamento da
hipótese deste trabalho e devem ser incluídos em trabalhos posteriores.
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