Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
BRASIL 500 ANOS: RITUAIS DISCURSIVOS DA NACIONALIDADE
Hugo Silva Santos Junior
2004
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
BRASIL 500 ANOS: RITUAIS DISCURSIVOS DA NACIONALIDADE
Hugo Silva Santos Junior
Tese de Dout orado ap resentada ao Programa de
Pós-graduação em Comunicação e Cult ura, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
p arte dos requisit os necessários à obtenção do
tít ulo de Doutor em Comunicação.
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz dos Reis Nunes
Rio de Janeiro
Abril 2004
ads:
iii
BRASIL 500 ANOS: RITUAIS DISCURSIVOS DA NACIONALIDADE
Hugo Silva Santos Junior
Orientador: Geraldo Luiz dos Reis Nunes
Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-graduação em Comunicação e
Cultura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obteão do título de Doutor em Comunicação.
Aprovada por:
__________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Geraldo Luiz dos Reis Nunes
_______________________________________
Prof. Dr. Felipe Pena de Oliveira
_______________________________________
Profª. D. Izabela Aquino Bocayuva
_______________________________________
Prof. Dr. Micael Herschmann
_______________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho
Rio de Janeiro
Abril 2004
iv
Santos Jr, Hugo Silva.
Brasil 500 anos: rituais discursivos/ Hugo Silva Santos
Junior. Rio de Janeiro. UFRJ/ECO 2004.
x., 176f. 3 vols: il. 21x29,7cm.
Orientador: Dr. Geraldo Luis dos Reis Nunes
Tese (doutorado) - UFRJ / Escola de Comunicação /
Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura, 2004.
Refencias Bibliogficas: 3f. 174-176.
1. Mídia. 2. Identidade Nacional. 3. Memória.
NUNES, G. L. R. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-graduação em
Comunicão. III. Título.
v
RESUMO
BRASIL 500 ANOS: RITUAIS DISCURSIVOS DA NACIONALIDADE
Hugo Silva Santos Junior
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz dos Reis Nunes
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Comunicão e Cultura, da Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obteão do título de Doutor em
Comunicão.
Este trabalho analisa a interferência ocorrida no campo da identidade nacional
brasileira a partir da implementação do Projeto Brasil 500 anos, empreendido pela Rede
Globo de Televisão, entre os anos de 1998, 1999 e 2000 período das celebrações desta
Rede de Televisão, pelos 500 anos de descobrimento do Brasil.
Procura-se mostrar quais foram as efetivas contribuições que a maior empresa de
comunicação, de âmbito nacional, deixou para o reforço do sentimento de pertencimento a
uma comunidade imaginada que denominamos de nação e para a constrão/atualização da
memória coletiva da História. Para isso, materializa-se a pesquisa a partir de ts vertentes: a
revisão bibliogfica, a construção e a produção de sentidos e a análise da recepção por parte
dosbrasileiros.
Palavras-chave:dia, identidade nacional e memória
Rio de Janeiro
Abril 2004
vi
ABSTRACT
BRASIL 500 ANOS: RITUAIS DISCURSIVOS DA NACIONALIDADE
Hugo Silva Santos Junior
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz dos Reis Nunes
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Comunicão e Cultura, da Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obteão do título de Doutor em
Comunicão.
This paper analyses the interference that ocurred in Brazil’s national identity field as
result of the implementation of the project known as Brasil 500 Anos, undertook by Rede
Globo de Televisão, between 1998 and 2000 time that this Television Network took to
celebrate the 500 years of Brasil’s discovery.
The intention is to show what is the real contribution that this huge, nation wide
comunication company, effectively left to the enhancement of the feeling of belonging to a
wonder” comunity that we call nation and for the construction/atualization of people’s
history memory. In order to do it, the research materializes towards three different views:
bibliographic review, the construction and prodution of senses and analisys of it’s reception
by brazilian people.
Key-words: media, national identity and history memory
Rio de Janeiro
Abril 2004
vii
RÉSUMÉ
BRASIL 500 ANOS: RITUAIS DISCURSIVOS DA NACIONALIDADE
Hugo Silva Santos Junior
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz dos Reis Nunes
Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Comunicão e Cultura, da Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obteão do título de Doutor em
Comunicão.
Ce travail procède à l,analyse de l interférence produite dans le champ de lidentité
nationale brésilienne à partir de la mise en oeuvre du Projeto Brasil 500 anos, entrepris par le
Groupe Globo de Télévision, dans la période comprise entre les années de 1998 et avril 2000
– période des célébrations des 500 ans de lacouverte du Brésil.
Nous cherchons à montrer quelles ont été les formes effectives de contributions que la
plus grande société brésilienne de communication, a mis en place pour le renforcement du
sentiment d’ appartenance à une communauté “ imaginée que nous appelons nation et aussi
por la construction/mise à jour de lamoire collective de l Histoire. Pour ce faire nous
avons travail à partir de trois sources: la revision bibliographique, la construction et la
production de sens et lanalyse de la réception par le public brésilien.
Mot-clé : media, identité nationale, mémoire
Rio de Janeiro
Abril 2004
viii
Dedicatória
Dedico este trabalho aos meus pais Hugo Silva Santos e Sylvia Fernandes Santos que, onde
quer que estejam, devem estar muito orgulhosos.
Aos meus dois filhos, Hugo Silva Santos Neto e Bárbara Menezes Silva Santos, como
estímulo para ultrapassarem todas as barreiras da vida.
ix
Agradecimentos
Este trabalho é apenas o como de uma nova possibilidade.
À Deus, por ter me proporcionado mais esta oportunidade na vida.
À Sandra Moita que, mais uma vez e de forma discreta, se fez presente nos momentos em que
eu mais precisei.
À Cláudia Mendes que, com sua pacncia, grandiosidade e carinho, sem saber me dava
forças para continuar.
Ao meu orientador e grande amigo, Dr. Geraldo Nunes pela transmissão de conhecimentos e
pela calma na hora das minhas angústias.
Aos professores da Escola de Comunicão da UFRJ, em especial àqueles com quem tive a
oportunidade de trocar informões onde, nas discussões dos temas, me ensinaram a pensar.
À Danielle Fevereiro que me substituiu em todas as minhas ausências.
Ao Ricardo Severiano que, com o seu domínio da informática, formatou este trabalho.
À Banca examinadora, Dr. Felipe Pena, D. Izabela Aquino Bocayuva, Dr. Micael
Herschmann e Dr. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho, pelo prazer de receber os seus
comentários.
Aos professores da Faculdade de Comunicação da Universidade Estácio de Sá, especialmente
as professoras Charbelly Estrella e Beatriz Schmidt, pelo carinho, paciência e ateão.
Aos meus amigos Jardiel Ferroz, Lafayette Máximo, Fernando Loureiro, Ls Chamma,
Sandro Torres, Idave Inácio, Marcos Evangelista, José Luiz Laranjo, Regina Varella, Paulo
Ribeiro, Marcelo Carvalho, entre outros, que sempre me estimularam a continuar.
À Universidade Estácio de Sá, pela concessão da bolsa de aprimoramento acadêmico.
Ao Jorge, funcionário da biblioteca e às diretoras Vera Pataco e Regina Ayres.
Aos meus alunos, pela paciência.
x
Sumário
Introdução......................................................................................................................... 11
1. A iia de construção do conceito de nação e comunidade imaginada........................ 20
1.2 – O reino dinástico.......................................................................................... 24
1.3 – Concepções de tempo .................................................................................. 26
2. Consumo e constrão da idéia de nação e de identidade............................................ 28
2.1 – Construção de identidade - a análise de John B. Thompson........................ 30
2.2 – Os movimentos sociais e as identidades numa sociedade
globalizada, fragmentada e plural.........................................................................
35
2.3 – O Local e o Global na identidade - fragmentação e pluralidade.................. 38
2.4 – Consumo e cidadania................................................................................... 45
2.5 – Das representações do popular e do massivo às retóricas do nacional........ 50
3. A construção da identidade nacional na cultura brasileira........................................... 56
3.1 – Conceitos de Casa e Rua e sua associação com
o trabalho como representões do nacional........................................................
58
3.2 – A representação do negro............................................................................. 60
3.3 – Conceituando racismo – a leitura psicanalítica do
esteriótipo de Homi Bhabha.................................................................................
63
3.4 – Afinal, o que é identidade e quem precisa dela?......................................... 66
3.5 – O Brasil e a crença das ideologias raciais. ................................................. 68
3.5.1 – A crença da democracia racial brasileira. .................................... 69
3.6 – O preconceito na mídia - onde está o negro? Só legislando? ................................. 71
3.6.1 - A estética do branqueamento na mídia e, em especial, na TV...... 71
3.6.2 - A estética do branqueamento na publicidade................................ 73
3.6.3 - A legislação brasileira se curva à necessidade de inclusão do
negro. Mas afinal, onde está o negro na publicidade?..............................
76
3.6.4 - A democracia racial brasileira....................................................... 79
3.7 - A identidade nacional brasileira a partir da comida e das mulheres....................... 81
3.8 – Carnaval: O império de Eros e a expressão máxima do profano brasileiro........... 82
3.9 – As festas de ordem – o povo brasileiro bem comportado...................................... 83
3.10 - O indivíduo e a pessoa no Brasil - o jeitinho brasileiro permeando as relões
sociais..............................................................................................................................
85
3.11 – O sagrado para o brasileiro.................................................................................. 87
4. A construção de identidades na publicidade.................................................................. 89
5 - A visão hermenêutica da história.............................................................................. 96
5.1 - Mas afinal, o que é pesiero debole?........................................................... 97
5.2 - Teríamos uma sociedade transparente pós-moderna?................................ 98
6 - Mídia e construção da memória coletiva nacional.................................................... 104
7 - O uso de celebridades e do mundo mítico da fama na mídia.................................... 109
8 - A identidade nacional na celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil...... 119
9 - O Projeto Brasil 500 Anos da Rede Globo de Televisão.......................................... 123
10 - A recepção do projeto Brasil 500 Anos.................................................................. 141
10.1 - A análise das cartas dos leitores da revista Veja...................................... 149
10.2 - A análise das cartas dos leitores da revista IstoÉ..................................... 157
Conclusão ....................................................................................................................... 170
Bibliografia..................................................................................................................... 174
Introdução
Este trabalho se propôs a analisar as possíveis alterações que possam ter ocorrido no
campo da identidade nacional brasileira tendo como ponto de partida o discurso da campanha
Brasil 500 anos” empreendida pela Rede Globo de Televisão e que compreendiam diversas
ações no campo do entretenimento e da educão que comaram a ser desenvolvidas durante
os anos de 1998, 1999 e 2000.
Como exemplo dessas ações encontramos a colocação de relógios, com o objetivo de
marcar cronologicamente o dia 22 de abril de 2000, nas principais capitais brasileiras, shows
de grandes nomes da Música Popular Brasileira (“ Mama África”, etc.), seriados e programas
ligados ao descobrimento do Brasil (“ A Muralha, A Invenção do Brasil, Aquarela do
Brasil, “ No quinto dos Infernos”, etc.), matérias em todos os programas jornalísticos da Rede
Globo, que versavam sobre o descobrimento, a identidade nacional, etc., além do programa
educacional Amigos da Escola que teve sua origem como uma ação alusiva às
comemorações do Brasil 500 anos e que perdura até hoje., a “ Bienal do Livro”, entre outras.
Essas ões que ocuparam grande parte de tempo e espo da mídia, podem ter provocado no
telespectador a sensação de que eram manifestações isoladas. Mas, na verdade, embutiam
uma inteão de celebrar a nação e de atrair as atenções para um ps chamado “ Brasil e,
possivelmente, intensificar o sentimento e o espírito de “ brasilidade” em cada cidao, tal
qual o acontecido por ocasião da festa do Bicentenário da Independência dos Estados Unidos.
Paralelamente e neste contexto, enquanto a campanha tinha como um dos objetivos o
de elevar o sentimento do nacional existiam as ações que faziam parte da agenda oficial do
governo brasileiro. Essas ões, que muitas vezes foram empreendidas de forma truculenta,
levaram os mass media a estabelecer uma série de críticas, o que levou à predominância de
um discurso midiático que apontava para manifestações contrias aos da comemoração.
Assim vimos estampadas nos noticiários impressos e eletrônicos, manchetes como
Comemorar o quê?”, Que ps é este? e matérias que desqualificavam as comemorações
dos 500 anos do descobrimento e levantavam questões nevrálgicas e ainda não resolvidas pelo
poder público brasileiro. Incluem-se aí as questões étnicas, do MST e etc.
Neste cenário, este trabalho de pesquisa busca compreender, a partir da análise do
discurso e da recepção do Projeto “ Brasil 500 anos, empreendido pela Rede Globo de
12
Televisão, até que ponto essa festa tornou-se mercadoria, ganhou repercussão no imagirio
nacional e foi negociada socialmente e consumida pela sociedade.
Em que medida esse esforço empreendido pela Rede Globo contribuiu, ou não, para o
reforço do sentimento de pertencimento do povo brasileiro a esta nação “ imaginada chamada
Brasil e como foram lidas e interpretadas as mensagens pelos brasileiros, também foram foco
deste estudo.
Devido ao fato das comemorações pelos 500 anos do descobrimento do Brasil terem
sido realizadas no ano de 2000, tal estudo apresentou-se como extremamente relevante
quando se pensa a questão da identidade nacional nas sociedades atuais, fragmentadas, plurais
e globalizadas em que temos mais dificuldade em saber/reconhecer quem somos nós e quem
são os outros. Soma-se a isto, o fato de ter sido, nos últimos anos, um dos mais extensos
acontecimentos, no que tange à duração das ações que compunham o planejamento dos
eventos e além de contar com a participação da maior rede de televisão brasileira no comando
deste acontecimento.
Assumindo uma postura analítica e ctica de todas as ações empreendidas nesta
campanha, pretendemos mapear não só as determinações, mas, também, as linhas de fuga
desse discurso, no sentido de articular o consumo, a identidade nacional e a dia e
determinar como a identidade nacional foi construída no discurso desta campanha, dando
ênfase na percepção, por parte do brasileiro, das possíveis alterações do seu comportamento
depois do aniversário de 500 anos de Brasil.
Pensamos que, desta forma, estaremos dando continuidade ao estudo desenvolvido
para a conclusão do curso de mestrado que procurou estabelecer a relão existente entre o
consumo e a identidade nacional na publicidade brasileira.
Diante disso, nossa pesquisa se propôs a mapear e desenvolver as seguintes questões,
ponto de partida para uma análise pontual dos discursos sobre a identidade nacional, consumo
e mídia na campanha Brasil 500 anos:
Identidade e Mídia. A estereotipia das representões do nacional. A
construção, pela mídia, do sentimento de pertencimento a uma comunidade
13
imaginada chamada Brasil. A construção da identidade nacional como forma
de solão para as crises do social e do político.
Texto e contexto. A rede de sistemas complexos que envolvem a elaboração de
um projeto como o apresentado pela Rede Globo. A construção dos discursos
do nacional nos seus diversos contextos especialmente quando, predominava
naquele momento na mídia, um discurso que desqualificava a comemoração
dos 500 anos do descobrimento do Brasil.
A relão entre o nacional e os bens de consumo/mercadorias. O consumo
como forma de afirmação da identidade nacional. Um novo “ brasileiro”
espelho da atualidade, numa sociedade fragmentada, plural e globalizada.
Tipos e repertórios. As figuras e os discursos do nacional na campanha “ Brasil
500 anos”. Repertórios sobre o nacional. A etnicidade, a música, o folclore, a
família, a crença, o futebol, a comida, etc. Enfim, um olhar para o interior do
Brasil;
Global e local: a ordem mundial e a ordem brasileira. Analisar o contraste da
globalização e da possível originalidade de um povo. A perda de certezas
absolutas para se pensar algumas noções como: território, geografia, história
está na pauta de discussões no meio acadêmico internacional, porém
contraditoriamente estamos vivendo aqui, hoje nas comemorações, a afirmação
do sentimento de nacionalismo, de territorialidade e de pertencimento. Parece
que o acompanhamos os movimentos internacionais e isso pode nos
fomentar o sentimento de sermos originais. Se estão falando em movimento de
unificão, nós falamos que algo nos torna diferentes no mundo.
Os processos de identificação do brasileiro com os diferentes modelos de
sujeitos nacionais. A identidade como produto;
14
Regularidade e consenso, oposão e dissenso na produção e recepção dos
discursos do nacional. Os pontos que tangenciam os discursos do nacional. O
popular/povo; o “ brega; o autêntico. Povo e cultura popular na campanha
Brasil 500 anos.
A relão entre os discursos do nacional e o contexto social e político.
Construção e dissolão de preconceitos e tabus. Chegou a hora do nacional no
Brasil ?
Repercussão no público. Como foram lidas e interpretadas as mensagens da
campanha, no contexto do conteúdo predominante na época, que
desqualificava a comemoração do aniversário de 500 anos.
Nesta vertente, nosso trabalho se propôs, num viés transdisciplinar, analisar as
relações entre a construção da idéia de nacional e de cultura, comportamento e produção
discursiva e de subjetividades, tendo como ponto de partida a hipótese de que o aniversário de
500 anos de Brasil se tornou em um paradigma quando o assunto é a (re)afirmação/construção
da identidade nacional.
Nossa ênfase recaiu na produção de novos sujeitos e identidades nacionais, buscando
um mapeamento dos modelos de identificão que buscam levar o brasileiro a não ter mais,
na maioria dos casos, vergonha de ser e se sentir brasileiro. Tratou-se de encontrar na
campanha Brasil 500 anos” um ponto de vista diferencial para enxergar e analisar questões
que atravessam o universo da comunicão midiatizada e diferentes campos do saber,
especialmente o sociológico, o antropológico, o político e o econômico, e que convergem para
a mesma questão.
O discurso teórico sobre o campo da identidade nacional deve ter continuidade e nos
parece que se o houver um estudo mais acurado sobre esta questão, após o aniversário de
500 anos do descobrimento do Brasil e todos os esforços que se somaram na sua
comemoração, estaremos deixando passar uma oportunidade de se conhecer melhor os efeitos
15
e o caminhar dos discursos que constroem e descrevem o Brasil e os brasileiros. Assim,
cremos ser mister conhecer e analisar a campanha Brasil 500 anos”, no que tange seus níveis
de recepção, consumo diferenciado dos seus conteúdos, sua contextualizão e produção
simbólica.
Acreditamos que este tipo de pesquisa possa trazer uma real contribuição ao campo
das Ciências Sociais e à produção de conhecimento, no sentido de se pensar como esta
campanha descreveu o Brasil e os brasileiros e os modos de como a identidade nacional foi
construída neste discurso.
Soma-se a isto, a possibilidade de se relacionar intimamente seu questionamento
teórico a uma ação prática de uma emissora de televisão que, a partir da nossa alise deste
caso, pas desenvolvidas , programação e campanhas, permitio um corpo-a-corpo entre a
teoria e a ptica.
Por fim, no nosso entender, possmos um material vivo, carregado de significados
estratégicos e que se oferece como fértil campo de reflexão e pesquisa, onde o desejo de
controle esbarra nas derivas e deslizamentos do sujeito.
Assim, este trabalho poderá ser um indicador de uma questão crucial no campo da
Comunicão e Cultura que são as derivações e contaminações dos discursos sobre o
nacional, com todos os seus paradoxos, no contexto atual.
Esse trabalho
seguiu ts linhas complementares: a revisão da literatura existente e o
desenvolvimento dos pressupostos teóricos; o trabalho de campo, com a alise de todo o
projeto “ Brasil 500 anos” empreendido pela Rede Globo de Televisão, visto tratar-se da maior
rede de televisão aberta do Ps; e a pesquisa e alise das cartas de leitores das duas
principais revistas nacionais e semanais brasileiras: Veja e IstoÉ, de forma a se avaliar os
processos de recepção das mensagens e possíveis alterações no campo do comportamento do
sujeito quanto ao seu sentimento de pertencimento a uma comunidade imaginada brasileira.
O trabalho de levantamento deste material será feito junto à esta emissora de televisão,
incluindo-se aí, todas as ações empreendidas ao longo dos anos de 1998, 1999 e 2000 e a
partir dos arquivos das duas revistas nas respectivas editoras.
A partir desse primeiro levantamento procederemos a uma alise qualitativa e
quantitativa deste material, tendo como fio condutor as questões propostas anteriormente.
16
Em relação à análise de sua recepção, cabe observar que o foco do nosso projeto
recaiu na perspectiva da Análise dos Discursos Sociais das cartas dos leitores das revistas
Veja e IstoÉ, a partir de um completo levantamento das manifestações dos leitores dessas
revistas, em âmbito nacional. Apresentará como as pessoas pensam as ões e efeitos da
campanha Brasil 500 anos e se acreditam, ou o, que tenha havido alterações no
sentimento de identidade nacional.
Este trabalho, conforme haamos falado anteriormente, se desenvolveu num domínio
transdisciplinar, onde diferentes teóricos de diversas áreas de conhecimento foram utilizados
como base conceitual e fio condutor dos temas propostos.
Consideramos como relevantes alguns pontos nesta primeira abordagem e, tomando
como ponto de partida as questões propostas por Benedict Anderson, em seu livro “ Nação e
consciência nacional, trabalhamos o conceito de nação, que é datado da modernidade.
Assim, o primeiro capítulo deste trabalho apresenta a idéia de construção do conceito
de Não e Comunidade Imaginada. Neste sentido Anderson, soube observar as origens da
nacionalidade e do sentimento de pertencimento a uma comunidade política imaginada e,
implicitamente limitada e soberana, chamada nação. Segundo o autor, comunidade porque
o sentimento de fraternidade entre os seus membros. Imaginada porque jamais conheceremos
nossos compatriotas na totalidade. Limitada porque possui, geograficamente, fronteiras
delimitadas, e soberana porque é autônoma. É a partir deste conceito que enveredaremos para
os elementos centrais que constituem a identidade nacional que, segundo Anderson, passam
pela língua, crença, etnia e as fronteiras nacionais que, quando aplicados a um país de
dimensões continentais, como o Brasil, acabam por permitir uma leitura mais acurada do
conceito de identidade nacional principalmente, quando associamos esta iia com a análise e
importância dos meios de comunicação e dos discursos midiáticos, na construção da
identidade nacional. Neste sentido, Jesus Martin Barbero em seu livro “ Dos meios às
mediões, soube avaliar, especialmente na América Latina, como os meios de comunicão
trabalham como mediadores e agentes disseminadores da cultura popular e massiva e de que
forma as massas se transformaram em povo e o “ povo em nação”. Diante disso, a alise das
representões do popular e do massivo nos diversos meios de comunicão, apresentadas por
Nestor Garcia Canclini em “ Culturas híbridas”, nos revela como se este agenciamento.
17
No segundo capítulo, trabalhamos o consumo e a construção da idéia de Não e de
Identidade. Para isso foram articulados diversos autores como John B. Thompson, Manuel
Castells, Stuart Hall, Nestor Garcia Canclini e Jésus Martin Barbero. Neste capítulo,
trabalhamos com o conceito de que a identidade é um processo de construção continuado e
que as pticas tradicionais o desaparecem no mundo moderno. Elas apenas mudam o seu
status no momento em que deixam de ser consideras verdades. Tamm veremos de que
forma os meios de comunicão de massa agem como mediadores da construção das
identidades, especialmente na identidade nacional e no sentimento de pertencimento do
cidadão à nação brasileira. Veremos também o impacto que o mundo globalizado e as redes
de comunicão planetárias exercem nas tradições e na iia do nacional. Em outras palavras,
estabeleceremos uma relão entre o local e o global apresentando a questão da interfencia
da comunicão global na cultura local. Se, num primeiro momento, a globalização foi vista
como uma ameaça às culturas locais, hoje temos uma noção mais exata sobre seus impactos e
três correntes de pensamento começam a se apresentar. Stuart Hall, em seu livro “ A
identidade Cultural na Pós- modernidade” (p. 77), cita o argumento de Kevin Robin que
defende a idéia de que ao lado da tendência em direção à homogeneizão global, há
também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da alteridade. Há,
juntamente com o impacto do global, um novo interesse pelo local. Em outras palavras, a
comunicação global levou à percepção das diferenças e ao convívio com produtos culturais
prêt-porter de outros pses. Como conseqüência disto, houve a valorização dos costumes e
da cultura nacional.
O terceiro capítulo tratará da identidade nacional na cultura brasileira. Se fizermos
uma análise da mídia, na atualidade, vemos que há uma forte tendência à valorização do
interior do Brasil e de personagens que compõem o dito “ povo brasileiro”.
Para efeito de ilustração podemos evidenciar os programas televisivos que apresentam
o Brasil e contam um pouco sobre os brasileiros. Como exemplo, “ Brasil Legal apresentado
pela Regina Casé e “ Me leva Brasil, apresentado, aos domingos no Fantástico, pelo jornalista
Maurício Kubrusly. Podemos citar, também, o programa “ Amigos comandado por alguns
dos cantores de música sertaneja, a apresentão de forró”, no Domingão do Faustão, a
transmissão de Parintins pela televisão, sem falar na transmissão de eventos esportivos como
18
a Copa do Mundo, Olimpíadas, etc, que produzem uma comoção nacional, apresentando uma
verdadeira catarse coletiva.
Somado a tudo isto, temos a busca incessante das emissoras no sentido de retratar
personagens comuns nas programações, apresentando histórias do cotidiano de cada uma
delas e suas relações com o sucesso ou realizações de “ sonhos. Neste sentido, podemos
enumerar o programa “ No Limite, programa “ Domingo Legal, onde ídolos do telespectador
se travestem de motoristas, pintores de parede, etc. e vão visitar o na residência dele.
Enfim, a dia nos oferece um sem número de opções que, a cada dia, reforçam e constroem
a identidade nacional. O estudo da sociedade brasileira permeia a etnia, a religião, a língua e a
cultura como um todo. Neste aspecto e neste capítulo, Roberto DaMatta e Renato Ortiz
conseguiram interpretar a sociedade brasileira, a malandragem, o “ jeitinho brasileiro”, o
carnaval, a democracia racial brasileira, a culinária, as mulheres, enfim, o fundamento da
identidade brasileira. Aquilo que faz com que os brasileiros se reconheçam como brasileiros
nos mínimos e mais variados gestos. Aquilo que faz com que nossa brasilidade seja
estimulada. Nosso estilo, nossa “ maneira particular de construir e perceber a realidade.
Enfim, como é o Brasil e os brasileiros. Daremos ênfase especial à questão da raça negra em
nossa sociedade, na medida em que hoje, o Brasil está vivenciando uma grande discussão na
esfera do político e do social sobre as ões afirmativas, especialmente no que tange o negro.
Não raro, diariamente encontramos na dia noticrios que envolvem esta questão. Soma-se
a isto, o fato de que, em grande parte das ões comemorativas dos 500 anos de
descobrimento do Brasil, observamos a inclusão do negro de forma a (re)afirmar o discurso
oficial que aponta para o “ mito das três raças”.
No quarto capítulo trataremos da construção das identidades atras da dia. Para
isso, recorreremos, mais uma vez, ao autor John B. Thompson quando ele pensa a publicidade
mediada. Cabe observar que o autor entende a expressão publicidade como tornar públicas as
decisões da esfera política. Neste capítulo, também trabalharemos com o processo de
construção de celebridades e as formas com que a dia se apropria de suas imagens para
servir de modelo de identificão social e, com esta apropriação, facilitar o consumo dos
produtos/mercadorias veiculadas pela mídia.
19
No quinto capítulo, abordaremos a dissolução da história e a proliferação dos mass
media como elementos de transição para a entrada na pós modernidade. Para isso,
recorreremos ao filósofo Gianni Vattimo e ao seu pensamento debole.
O sexto capítulo apresentará a memória coletiva e como os meios de comunicão
(re)afirmam, (re)atualizam e/ou constroem a história e a identidade nacional. Para isso,
trabalhamos com os conceitos da historiadora Ana Paula Goulart, da pesquisadora Marialva
Barbosa.
O sétimo capítulo trabalhará com o processo de construção de celebridades e mostra
como as ões empreendidas pela Rede Globo de Televisão por ocasião do Projeto Brasil 500
anos, se apropriou da imagem de ídolos midiáticos.
No oitavo capítulo, o poderíamos tratar do Projeto Brasil 500 anos sem
contextualizá-lo em relação às comemorações oficiais e a repercussão que tais eventos
obtiveram pela dia em geral. Assim, recorremos aos autores Micael Herschmann e Carlos
Alberto Messeder, no sentido de retratar/apresentar este cerio.
No nono capítulo, descreveremos todas as ações empreendidas, tanto no campo do
entretenimento como no campo educativo, pela Rede Globo de Televisão e procederemos à
descrição de cada uma das ões e, em seguida, a análise do discurso destas ões. A alise
obedecerá o critério cronológico das ações.
Por fim, no décimo capítulo, procederemos à análise da recepção a partir das cartas de
leitores encaminhadas para as revistas Veja e Istno peodo de janeiro de 1998 a dezembro
de 2000.
20
1. A idéia de construção do conceito de nação e comunidade
imaginada
Constantes mudaas e inovações vêm invadindo nosso mundo moderno, interferindo
cada vez mais no dia a dia. Não obstante o processo de globalização passou-se a valorizar o
sentimento de nacionalidade. Apesar da ameaça de americanização ou de aculturação dos
pses do terceiro mundo, hoje chamados de emergentes, o que percebemos é uma igual
valorização das culturas locais e das diferenças.
Através da busca da origem histórica da interferência das tradições que o
continuidade a um passado histórico (real ou imaginário) temos uma primeira forma de
entender o conceito de nação.
A idéia de nação é datada da modernidade. O sentimento do nacional surge a partir do
momento em que se encoraja e se cultiva um núcleo étnico, fazendo com que esses “ filhos” de
uma nação tenham um sentimento, quase que religioso, de pertencimento e amor pelo lugar
onde vivem e onde fizeram sua história de vida.
Assim, usamos como subsídio, para a elaboração de um conceito de nação e
Identidade Nacional Brasileira, além da história que atravessou séculos, aspectos da
miscigenação, aspectos das raças (seus conceitos e pré-conceitos), a mistura religiosa que
ocorreu há séculos e perdura até hoje, as tradições e cultura do povo brasileiro; com suas
especificidades e regionalismos. Destacando que, apesar dessas especificidades, que se
tornaram verdadeiros clichês - a forma gaúcha de encarar a cultura e o social, com suas
vestimentas e alimentação típicas (churrasco e chimarrão); o carnaval do Rio de Janeiro, o
frevo do Nordeste; as músicas sertanejas, outrora difundidas apenas no interior do País; o axé-
music, difundido largamente na Bahia; etc. - não se abandonou aqui, o conceito de nação.
Essa relação entre local e global torna-se mais complexa com o advento das novas
tecnologias de comunicão. Com a globalizão e o uso intensivo da Internet, as tradições
dos povos são difundidas mais rapidamente. Em contrapartida, acabamos absorvendo, de
forma fragmentada, parte das tradições de outros povos, como se estissemos num grande
supermercado cultural com produtos prêt-à-porter, prontos para o consumo. Ao mesmo
21
tempo, comamos a observar que a percepção das difereas e, com isto, a valorização e o
resgate das culturas locais levando a um processo simultâneo de globalização e interiorização
das culturas, como descreve Stuart Hall
1
:
Há, juntamente com o impacto do global, um novo
interesse pelo local”. A globalização ( na forma da especialização
flexível e da estratégia de crião de ‘nichos’ de mercado), na
verdade, explora a diferencião local. Assim, ao invés de pensar no
global como substituindo” o local seria mais acurado pensar numa
nova articulação entre global e local”. ( p.77)
Reportando-nos aos estudos de Benedict Anderson
2
, sobre a formação da nação e da
tomada da consciência nacional por parte do povo”, nos interessa mapear a trajetória da
percepção do conceito de nação e de identidade nacional, de forma geral. Embora tenha
desenvolvido esse trabalho na cada de 80, Anderson apresenta uma marcante atualidade,
especialmente quando chamava a atenção para a possibilidade de conflitos étnicos e para a
formação de novas nações. Como exemplo, podemos citar o Leste Europeu que, na década de
90, foi praticamente redefinido/reconceituado em termos de território, raça, nação.
Naquela época, Anderson chamava atenção para a falta de percepção, por parte dos
teóricos, da transformação fundamental na história do marxismo e dos movimentos marxistas,
mudaas que traziam uma nova ótica sobre a questão do nacional. Seus sinais mais
perceptíveis puderam ser vistos nas guerras entre o Vietnã, o Camboja e a China.
Essas guerras foram de importância histórica mundial, por terem sido as primeiras a
ocorrer entre regimes cuja independência e credenciais revolucionárias eram inegáveis. E,
ainda, porque nenhum dos beligerantes procurou, senão perfunctoriamente, justificar o
derramamento de sangue em termos de uma perspectiva teórica marxista” aceitável, nem por
razões ideológicas anti-capitalistas.
Anderson previu que “ apenas os mais confiantes ousariam apostar que, nos anos finais
deste século, qualquer deflagração importante de hostilidade entre Estados encontraria a
União Soviética e a China Popular parao falar nos Estados socialistas menores –
apoiando ou combatendo do mesmo lado” (p. 10). Ele sugeriu um choque entre a Iugoslávia e
a Albânia, o que de fato ocorreu, confirmando seu pensamento. Isto significa que a oposição
1 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
22
entre capitalismo e comunismo, que alimentou a guerra fria e seus aliados, seguia agora uma
nova lógica. Nesta, os combates se travavam por questões étnicas e nacionais e o mais por
alinhamentos ideológicos.
Neste aspecto, diz Anderson, podemos nos reportar a Eric Hobsbawn
3
quando este
afirma que “ os movimentos e Estados marxistas tenderam a tornar-se nacionais e não apenas
na forma, mas também, na substância, isto é, nacionalistas. Nada indica que essa tendência
o persistirá (p. 13). Tais previsõeso eram restritas ao ex- mundo socialista. Diversas das
Velhas Nações estão se vendo ameadas por “ sub-nacionalismos no interior de suas
fronteiras”. Isto pode ser observado a partir do momento em que nos deparamos com a
existência das sociedades hifenizadas, ou seja, aquelas formadas a partir de culturas
bridas e que servem de palco para os conflitos étnicos, culturais e sociais. Verificamos,
hoje, tais conflitos ocorrendo na França, em relão aos árabes, na Inglaterra, em relão aos
indianos, nos Estados Unidos, em relão aos latinos e asiáticos, entre outros.
Para ilustrar esta situação, Hobsbawn cunhou a expressão “ nation-ness, como
substitutiva da expressão “ nacionalidade”, por possuir múltiplas significações e estar vindo
carregada de um sentido constitdo como “ o valor mais universalmente legítimo na vida
política de nossa era (p. 12). Tal sentimento, mesmo com a ameaça da globalização, faz com
que, nem de longe, se pense no fim dos tempos do nacionalismo ou que vamos deixar de
acreditar no mito da Nação como sendo eterno.
Para compreender melhor, apesar da palavra nacionalismo só ser amplamente
empregada no final do século XIX
4
, por volta dos fins do século XVIII começaram a ser
apresentados os primeiros artefatos culturais que acabaram por criar vínculos afetivos bastante
profundos em relação aos cidadãos.
O conceito de Nação e as concepções de nacionalismo esbarram, segundo Anderson,
em três paradoxos: 1- a Modernidade Objetiva das nações aos olhos do historiador versus sua
Antigüidade Subjetiva aos olhos dos nacionalistas; 2- a universalidade formal da
nacionalidade como conceito sócio-cultural no mundo moderno, todo mundo pode e deve
ter, e terá, uma nacionalidade, tanto quanto te um sexo versus a particularidade
2 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Rio de Janeiro: Ática, 1989.
3 HOBSBAWN, Eric. Some reflections on the break-up of Britain. New Left Review, 105, set./out. 1997.
23
irremediável de suas manifestações concretas, tal que, por definição, a nacionalidade grega é
sui generis e 3- o poder político dos nacionalismos versus sua pobreza, e até mesmo
incoerência filosófica.
Poucos pensadores estudaram o nacionalismo em sua essência. Entretanto, Tom
Nairn,
5
autor da obra The Break-up of Britain, e estudioso da ciência social marxista, é citado
por Anderson quando acrescenta:
O nacionalismo é a patologia da moderna história do
desenvolvimento, tão inevitável quanto a neurose no indivíduo,
trazendo consigo muito da mesma ambigüidade essencial, uma
capacidade implícita semelhante para degenerar em demência,
enraizada nos dilemas do desamparo imposto à maior parte do mundo
(o equivalente do infantilismo para as sociedades), e em grande
medida incurável. (p. 359)
Anderson, fazendo uma leitura antropológica, propõe como definição de Não algo
do tipo: “ uma comunidade política imaginada e imaginada como implicitamente limitada e
soberana” (p. 14). Imaginada porque por menor que seja uma nação nunca um indivíduo
conhecerá a totalidade de seus compatriotas ou, até mesmo, jamais ouvi falar da maioria
deles.
É imaginada como limitada porque possui geograficamente fronteiras que são
perfeitamente delimitadas. É imaginada como soberana devido ao fato deste conceito ter
surgido numa época em que o Iluminismo e a Revolução Francesa estavam destruindo a
legitimidade do reino distico hierquico, divinamente institdo. É imaginada como
comunidade porque um sentimento de fraternidade e companheirismo profundo e
horizontal entre os seus membros.
Para que tenhamos a iia de soberania das nações, em seguida, apresentamos as
origens do nacionalismo a partir das comunidades religiosas e reinos dinásticos e suas
respectivas concepções de tempo.
As comunidades clássicas religiosas só eram imagiveis a partir da existência de uma
linguagem sagrada e um texto escrito. Na verdade, quanto mais morta a ngua escrita e mais
distante da fala cotidiana, mais garantia havia em relão a seguraa da sacralidade singular
4 KEMILÄINEN, Aira, Nationalismo, p. 10.
5 NAIR, Tom. The break-up of Britain. New Left Review.
24
de suas línguas. Assim, o ponto que tangenciava os sacerdotes em relão aos homens
comuns restringia-se aos signos — que pressupostamente, todos tinham acesso (um sinal
matemático de + pode ser reconhecido em qualquer parte do mundo sem que, necessariamente
possa se saber como é chamado em portugs, ou em inglês, ou qualquer outro idioma).
Apesar das grandes áreas geográficas ocupadas pelos reinos, todos conseguiam se conceber
partícipes de comunidades imensas. O fato de o enorme contingente populacional ser
analfabeto em relação ao pouco número de leitores/letrados fazia com que o domínio da
língua permitisse, aos sacerdotes, a intermedião nos contatos entre os céus e a terra. Entre o
sagrado e o profano. Entre o imortal e o mortal.
Diante de tanto poder que os religiosos possuíam por dominarem a ngua, era
eminente a interfencia nas decisões políticas. Tais incursões permitiram o início da noção de
território e nação conforme podemos observar a partir da carta, datada de 1712, de Paris,
escrita pelo viajante persa “ Rica a seu amigo “ Ibben”, descrita por Anderson :
O Papa é o chefe dos crisos; é um ídolo antigo,
agora reverenciado por hábito. Outrora, ele amedrontava até mesmo
os príncipes, pois podia depô-los tão facilmente quanto nossos
magníficos sultões depõem os reis da Iremécia ou Geórgia. Agora,
porém, ninguém mais o teme. Ele proclama ser o herdeiro de um dos
antigos cristãos, chamado São Pedro, e essa é por certo uma rica
herança, pois seu tesouro é imenso e ele tem um grande país sob seu
controle. (p.26)
Assim, a partir do século XVIII, inicia-se o processo da consciência da
territorialização” e da degradação gradual da própria língua sagrada.
1.1. O Reino Dinástico
O reino distico era percebido como o único sistema político possível. O rei
centraliza tudo no centro das decisões e sua legitimidade não é dada pela população que
são considerados, súditos e sim, pela divindade. Os Estados eram definidos por centros de
poder, as fronteiras eram porosas e indistintas” e as soberanias eram fundidas, sem que se
percebesse, umas nas outras — o poder estava restrito aos nomes “ de batismo” dos monarcas,
seguidos de um número ou alcunha: Guilherme “ o conquistador”.
25
É importante lembrar que não era apenas a guerra que levava os Estados monárquicos
a se expandirem. Uma política sexual, onde eram realizados casamentos disticos, reuniam
populações diversas sob novos dirigentes e, em conseqüência da anexação de um novo
território, o Estado ficava cada vez mais forte e poderoso. Apesar de os Estados dinásticos
terem se constituído bem antes do século XX, no icio da Segunda Guerra Mundial, em
1914, o sistema político mundial era constituído, fundamentalmente, de Estados dinásticos.
Isto embora alguns deles, já estarem algum tempo “ adquirindo um cunho nacional, na
medida em que seus exércitos eram formados por homens de mesma nacionalidade.
Paulatinamente, começa a haver a ocupação do espo distico que, associada à questão da
crea, da etnia, das fronteiras e da ngua, a nação encontra seu lugar e com ela, suscita todas
as discussões referentes ao nacionalismo.
Anderson indica o surgimento do nacionalismo, tal como o entendemos no Estado
Nação, a partir da mudaa de três paradigmas que anteriormente predominavam entre os
homens:
1- do domínio de uma ngua escrita restrita fundamentalmente aos sacerdotes onde, tal
acesso, permitia a comunicão com o divino e os distinguia dos demais seres humanos
queo detinham o domínio da língua;
2- na crença de que os monarcas dirigiam o Estado a partir de uma determinação divina;
3- na “ concepção de temporalidade” onde os homens e a origem das coisas teriam sido
criadas juntas.
Tais certezas comaram a entrar em decadência inicialmente na Europa ocidental e
depois por todo o mundo. As causas foram as alterações da economia, dos avaos sociais e
científicos, caractesticos do Iluminismo e, principalmente, o capitalismo editorial que
permitiu que as pessoas pensassem sobre elas mesmas e sobre os outros. A imprensa
enquanto mercadoria” se desenvolveu, tal qual as línguas vulgares
6
e a possibilidade de
acesso às informões, por parte das populações antes incultas, “ criou a possibilidade de uma
nova forma de comunidade imaginada que, em sua morfologia sica, prepara o cerio da
nação moderna.
26
1.2. Concepções do Tempo
Apesar da sua importância na formação do nacionalismo, seria simplificado afirmar
que as comunidades imaginadas das nações tenham advindo por si só das comunidades
religiosas e dos reinos dinásticos e, portanto, tomado os seus lugares. Por trás da queda destas
comunidades, do acesso às nguas e linhagens sagradas estavam, de forma concomitante, uma
mudaa fundamental nos modos de apreender o mundo” que permitiu, mais do que
qualquer outra coisa, a possibilidade de “ pensar a nação”.
Tratava-se de um mundo onde grande parte das representações da realidade
imaginada era visual e auditiva e vigorava um outro conceito de história. Neste sentido,
Anderson relata alguns exemplos em que podemos conferir sua afirmão. Ele lembra que as
imagens pintadas, na Idade Média, dos pastores que haviam acompanhado a estrela até a
manjedoura em que Cristo nasceu, tinham feições de camponeses da rego de Borgonha. Ou
seja, o passado se confundia com o presente. Assim, pela possibilidade de se atribuir feições
de camponeses da região da Borgonha a algo que teria acontecido séculos, indicava uma
outra concepção de tempo, por parte dos cristãos medievais, ondeo aparece a idéia de que a
história é infindável, ou que possui uma corrente de causa e efeito, ou que separa passado e
presente.
Nesta linha, a cristandade assumiu as suas caractesticas universais a partir de uma
infinidade de especificidades e peculiaridades: seus vitrais, seus sermões, suas bulas, peças
morais, relíquias, etc, que atravessam diferentes épocas, criando a idéia de “ simultaneidade
do tempo. Como ilustração, Anderson cita Auerbach
7
que se refere a questão da
temporalidade como:
o aqui e agora não é mais um simples vínculo em uma
corrente terrena de eventos. Ele é simultaneamente algo que sempre
existiu e que se cumprido no futuro: e estritamente, aos olhos de
Deus, é algo eterno, algo onitemporal, algo já consumado na esfera
do evento terreno fragmentário. (p. 33 )
6 Observar que as línguas vulgares administrativas antecederam tanto a imprensa quanto a revolução religiosa do século XVI.
7 Esta citação está no livro Nação e Consciência Nacional, pp. 32-33.
27
Essa interpretão do tempo está próxima a noção do “ tempo messiânico”, de Walter
Benjamin
8
, onde a simultaneidade de passado e futuro em um presente momentâneo”.
É a partir desta leitura que a expressão enquanto isso” assume, num conceito
moderno de temporalidade, uma posição fundamental na abstração do conceito de nação a
partir do momento em que tempos simultâneos nos permite uma noção de conjunto. Em
outras palavras, os espos temporais em termos de nação se dão no momento em que as
pessoas vivem de formas diferentes, num mesmo tempo e num mesmo espaço sico. Como
exemplo, podemos citar um fato ocorrido recentemente no Brasil e onde pudemos ter esta
noção da temporalidade e do conceito de nação, de forma associada. Trata-se do impeachment
do, na época, presidente da república Fernando Collor de Mello.
Além do fato da mídia ter criado um momento de comoção nacional, na hora da
votão do impeachment, uma emissora de televisão estava presente em vários pontos do País,
entrevistando e observando as reações dos telespectadores. Neste momento a percepção,
por parte de todos, que ao mesmo tempo em que algo acontecia, outros fatos estavam
acontecendo (no caso as reações dos entrevistados), em rios lugares diferentes
temporalidades múltiplas. Por meio dos depoimentos e da ateão que todos tinham nesta
mobilização, permitiu-se aflorar o sentimento de pertencimento à nação.
8 Ibid., p. 33
28
2. Consumo e construção da idéia de nação e de identidade
Antes de abordarmos a interfencia da globalização e os impactos nas culturas locais,
em especial na cultura brasileira e na construção da idéia imaginada de nação, se torna
necessário que sejam feitas algumas considerações acerca das tradições, até porque muitas
delas irão contribuir na perpetuação e na construção do nacional, e seus possíveis desmanches
a partir da constituição das “ sociedades modernas em contraste com as sociedades
tradicionais.
Sobre este assunto, Thompson
9
se posiciona refratário ao conceito de que as tradições
se remetem, apenas, ao passado. Ele nega que tenha havido, na segunda metade do século
XX, um processo de “ desenraizamento das tradições”, a partir do desenvolvimento das
sociedades modernas, conforme alguns teóricos tentam fazem crer. Esta, aliás, é a orientação
do pensamento social clássico, pós-iluminista, que despotencializa a importância das tradições
no cotidiano da maioria dos indiduos.
Para o autor, antes do desenvolvimento da dia, a maioria das pessoas tinha a noção
de passado, de seus locais imediatos e de “ suas comunidades limitadas”, através das tradições
transmitidas oralmente, face a face, e que eram “ produzidas e reproduzidas” na vida cotidiana
de cada sociedade. Com o advento da dia e a possibilidade do indivíduo ter acesso aos seus
produtos por ela apresentados, houve um distanciamento do conteúdo simbólico”, do face a
face e, conseqüentemente, das formas com que as tradições eram autoritariamente impostas
nos diversos contextos sociais. A dia permitiu um processo de “ auto-formação” do
indiduo, deixando-o mais reflexivo e aberto aos próprios recursos e ao conteúdo
simbólico” propagado por ela, levando-o à busca de uma identidade coerente de si próprio.
Nesta perspectiva, Thompson afirma que o desenvolvimento midiático o
enfraqueceu as tradições. O que ocorreu foi a possibilidade de criar uma dimica na sua
existência sem, contudo, condená-la à extinção. Esse pensamento pode ser melhor apreciado
quando ele observa:
A mediatização da tradição dotou-lhe de uma nova
vida: a tradição se libertou das limitões da interação face a face e
se revestiu de novas caractesticas. A tradição se desritualizou;
9 THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
29
perdeu sua ancoragem nos contextos práticos da vida cotidiana. Mas
o desenraizamento das tradições não as privou dos meios de
subsistência. Pelo contrário, preparou-lhes o caminho para que se
expandissem, se renovassem, se enxertassem em novos contextos e se
ancorassem em unidades espaciais muito além dos limites das
interações face a face. ( p.160).
Assim, Thompson parte do pressuposto de que as práticas tradicionais o
desaparecem no mundo moderno. Contudo, admite que elas mudam o seu status na medida
em que perderiam o seu “ monopólio da verdade e se tornariam menos seguras no que tange à
sua exposão ao “ impacto corrosivo do escrutínio” e ao “ debate público”. Suas afirmões se
baseiam no fato de que, em pleno século XX, ainda existem certas tradições e sistemas de
creas tradicionais (incluem-se aí, as creas e práticas religiosas) e que, se as tradições
apenas estivessem ligadas ao passado, não teriam sobrevivido até hoje.
Segundo Thompson, as tradições podem ser distinguidas a partir de quatro aspectos. O
primeiro é hermenêutico, onde as tradições são aceitas como verdadeiras sem que haja um
questionamento pelo indivíduo que as põe em prática no seu dia-a-dia, transmitindo-as de
geração em geração.
O segundo aspecto das tradições é o normativo, que trata de pressuposões, crenças e
padrões de comportamento trazidos do passado e que servem de balizadores para orientar as
ações e creas do presente.
O terceiro aspecto é o legitimador, que atua como fonte de apoio para o exercício do
poder e da autoridade. Logo, ele legitima um sistema de dominação, seja ele racional -
envolvendo uma crença na legalidade de normas promulgadas; carismático, que diz respeito à
devoção à santidade ou ao caráter excepcional de um indivíduo; ou tradicional, envolvendo
uma crença no cater sagrado de tradições imemoriais.
O quarto aspecto seria o identificador, que refere-se à natureza da tradição em relação
à formação da identidade. É esse o aspecto que nos interessa para o desenvolvimento deste
estudo. O aspecto identificador da tradição, para Thompson, divide-se em dois tipos: auto-
identidade e identidade coletiva. O primeiro, se traduz pelo sentido que cada um tem de si
mesmo como dotado de certas caractesticas e potencialidades pessoais, como um indivíduo
situado numa certa trajetória de vida. Já a identidade coletiva refere-se ao sentido que cada
um tem de si mesmo como membro de um grupo social ou coletividade; um sentido de
30
pertencimento, de ser parte de um grupo social que tem uma história própria e um destino
coletivo.
Em outras palavras, a auto-identidade significa a imagem que o indivíduo tem de si
próprio, formada a partir de referenciais de subjetividades que incluem, moral, valores,
potencialidades e habilidades. Já a identidade coletiva diz respeito à relação que o indivíduo
estabelece com o ambiente social, proporcionando a identificação com o seu grupo e que lhe
a sensação de pertencer e compartilhar crenças similares, além de uma história comum.
A partir destes conceitos, Thompson relaciona e explica a tradição na constituição
destes dois tipos de formão de identidade:
Como conjuntos de pressuposições, creas e padrões
de comportamento trazidos do passado, as tradições fornecem
material simbólico para a formação da identidade tanto em nível
individual quanto em nível coletivo. O sentido que cada um tem de si
mesmo e o sentido de pertea a um grupo são modelados em vários
graus dependendo do contexto social pelos valores, creas e
padrões de comportamento que são transmitidos do passado. O
processo de formação de identidade nunca pode começar do nada;
sempre se constrói sobre um conjunto de material simbólico
preexistente que constitui a fonte da identidade. (p.165)
2.1. Construção de Identidades - A Análise de John B. Thompson
Iremos agora tratar das maneiras com que os meios de comunicão de massa agem
como mediadores na construção das identidades, visando associá-las à nacionalidade e ao
sentimento de pertencimento do cidadão à nação brasileira. Sabe-se que o processo de
formação da identidade do indivíduo é cada vez mais alimentado pelos sistemas simbólicos
mediados, o que permite um leque de opções para o indivíduo e a possibilidade de
enfraquecimento da cultura local, sem, contudo, haver a sua destruição. Há conexão entre a
formação do indivíduo e o seu “ local compartilhado”.
Em outras palavras, o indiduo, até pela disseminação das redes globais de
informação, passou a ter acesso às informações e comunicações cuja origem é distante e
transcendente à territórios e culturas locais mas, apesar deste acesso, não houve a destruição
31
entre a formação identitária do indiduo e o “ local compartilhado”. A expressão “ local
compartilhado” se refere à cultura local que é compartilhada com uma sociedade específica.10
Diante disto, o desenvolvimento da mídia fez com que o indiduo, além de se
enriquecer culturalmente e deslocar o processo de sua formação identitária, tivesse a
possibilidade de desenvolver novos tipos de intimidades, diferentes daquelas encontradas nas
relações face-a-face. Tratam-se de dois tipos de interação mediada: aquela em que pode haver
uma intimidade recíproca é o caso de uma ligão telefônica ou envio de cartas – ou aquela
em que o indiduo pode estabelecer uma relação de intimidade não recíproca onde a ausência
e a falta da possibilidade de acesso criam uma dependência e transformam o objeto, em
elemento de veneração – refiro-me, aqui, à relão estabelecida entre um fã e seu ídolo.
Feitas estas considerações, Thompson vai além na sua alise ao afirmar que mais do
que esta nova forma de intimidadeo recíproca, o desenvolvimento da mídia trouxe a
possibilidade de uma “ experiência mista” que vai de encontro às sociedades modernas: trata-
se da alteração do contexto espo-temporal da vida cotidiana que, nas sociedades modernas,
implica num processo de “ segregação institucional e experimental, onde “ certos fenômenos
sociais (doea, loucura, morte, etc.) são separados dos contextos sociais cotidianos e são
tratados por instituições especializadas e pessoal profissionalizado”.
Assim, relata ele (Thompson), para muitos indiduos, ter a experiência de ver algm
morrendo, sofrendo de uma doea crônica, etc., é uma experiência mais rara do que os fatos
corriqueiros. Portanto, a interação quase mediada permite que o indivíduo tenha acesso, a
partir do uso da televisão ou internet, a imagens de fome, guerra, doenças, violência, etc., sem
jamais encont-las em seu cotidiano (o que não é aplivel à realidade brasileira). Sobre este
assunto, o autor conclui:
Hoje vivemos num mundo no qual a capacidade de
experimentar se desligou da atividade de encontrar. O seqüestro das
experiências de locais espaço-temporais da vida cotidiana vai de
mãos dadas com a profusão de experiências mediadas e com a
rotineira mistura de experiências que muitos indivíduos dificilmente
encontrariam face a face. ( p.182)
10 A expressão pertence a John B. Thompson, empregada no livro A Mídia e a Modernidade – Uma Teoria Social da Mídia, 1998, p.181
32
Todas estas experiências mediadas são recebidas de forma seletiva pelos indivíduos.
Quanto mais informações disponível, maior se o descarte e a filtragem que o indivíduo fa.
Entretanto, apesar de haver uma seleção de informões, muitas delas desafiam a
compreensão e exigem que o indivíduo se esforce em compreender e dar um sentido a elas, no
sentido de estabelecer uma relação com o seu cotidiano.
O problema, portanto, reside no fato das pessoas terem que lidar com o deslocamento
simbólico num mundo onde a experimentação o está associada, necessariamente, ao
encontro. Esboçando seu pensamento quanto aos deslocamentos do simbólico, Thompson
explica como são construídas as identidades, as quais ele denomina de self.
Segundo o autor, o self o pode ser visto como um produto do sistema simbólico
externo” ou como algo fixo e que pode ser pego pelo indiduo. Ao contrário, o self é um
projeto simbólico” que é construído a partir dos materiais simbólicos disponíveis com os
quais constrói uma narrativa coerente da própria identidade. Esta narrativa se altera
conforme o tempo passa e conforme são apresentados novos materiais simbólicos de forma a
redefinir a sua própria identidade no transcorrer da vida de um indivíduo. Tal pensamento vai
ao encontro do pensamento de Stuart Hall, conforme havíamos descrito, anteriormente.
Os recursos simbólicos não estão disponíveis para todos do mesmo modo. Pode haver
a interferência, inclusive, de recursos materiais e das habilidades que cada indiduo possui.
Entretanto, Thompson acrescenta que não dúvidas de que o desenvolvimento dos meios de
comunicação tiveram uma forte carga de interfencia no processo de autoformação
identitária. Antes dos meios de massa, a formação do self estava calcada na interação face a
face e estavam vinculadas ao local onde o indivíduo vivia e seus conhecimentos transmitidos,
muitas vezes, de geração para geração através do intercâmbio oral, tal qual descrito quando
nos referimos a Hobsbawn, no capítulo anterior.
Hoje, o processo de formação do self está cada vez mais dependente do acesso às
formas de comunicão, sejam impressas ou eletrônicas, e o conhecimento local é
suplementado” pelo conhecimento global que são “ reproduzidos tecnicamente e
disseminados pela dia. Vale lembrar, que tal disseminação do mundo exterior leva os
indiduos à compreensão e à reflexão sobre si mesmos.
33
Thompson lembra que o desenvolvimento da mídia o trouxe apenas o
enriquecimento” do self e chama a ateão para quatro pontos sobre os produtos da mídia e
suas conseqüências que são, possivelmente, considerados negativos na formão do self:
a intrusão mediada de mensagens ideológicas mensagens mediadas podem ser
ideológicas dependendo de como seo recebidas e incorporadas, reflexivamente,
pelos indiduos em sua vida. Como exemplo, textos e programas que contenham
imagens estereotipadas, ou mensagens tranqüilizadoras sobre problemas nacionais,
etc. Vale considerar que o cater ideológico dos discursos midiáticos deve ser
analisado a partir da forma com que os indiduos o incorpora(m) no seu cotidiano e
de que maneira podem fazer parte do seu projeto de formação de identidade.
A dupla dependência mediada refere-se ao paradoxo que envolve a possibilidade da
reflexão sobre a vida, por parte de cada indiduo a partir dos produtos que a mídia o
oferece, e a dependência com relação à formação do self e ao que se poderia chamar
de vida da imaginação” que, em grande parte das vezes, independe do controle do
indiduo. Como exemplo, podemos citar ideais de entrada no mercado de trabalho, no
sistema educacional, no sistema de assistência social, imaginados, que nem sempre se
realizam.
O efeito desorientador da sobrecarga simbólica — Apesar de haver a selão no
volume de informações, estas, muitas vezes, competem entre si e dificilmente
poderiam ser assimiladas de forma coerente. Entende-se que o indivíduo ainda tenha a
seu dispor a inflncia de pessoas com quem troca informações e que poderiam
contribuir para o estabelecimento da coencia entre elas. Entretanto, essas
informações não deixariam de desorientar os indiduos.
É fato, também, que a dia pode contribuir tanto para o crescimento da complexidade
social, pelo volume de informões, quanto proporcionar uma fonte de conselhos e orientação
para enfrentar essa complexidade. Como exemplo, Thompson refere-se aos indiduos que
34
confiam nas opiniões de críticos de cinema ou de TV para fazer a sua escolha, em meio a um
excesso de escolhas.
A absorção do self na interação quase mediada Ao nos referirmos sobre a interação
mediada estamos nos remetendo à natureza de dois tipos de relacionamento pessoal que tem
origem na dia, e que por nós, foram anteriormente explicitados quando nos referimos ao
tipo de interação que permite uma forma de intimidade com as outras pessoas sem a presea
no mesmo espaço-temporal (o telefone e a intimidade que ele permite) e a interação em que a
intimidadeo tem caráter recíproco (a relão do fã com seu ídolo).
Trata-se da incorporação dos materiais simbólicos da mídia como ideais no processo
de organização da vida do indivíduo e o sentido que ele a esta vida. Neste sentido, cabe
ressaltar que os materiais simbólicos mediados são recursos “ ricos e variados para a formão
do self, embora o sejam os únicos nem os mais importantes, devendo ser considerados
outros elementos como a falia, os amigos, o trabalho, etc.
A partir destas considerações, Thompson descreve como é a vida num mundo mediado
de informão e comunicão e, logo de icio, se contrapõe a posão da maioria dos teóricos
sociais que sugerem que a quantidade de informões midiáticas contribuem para a dissolão
do self como uma “ entidade coerente tendo ele, sido absorvido por uma “ desarticulada
exibição de símbolos mediados”, tornando-se disperso e descentrado tal qual “ as imagens
refletidas num espelho, onde o self se torna um jogo sem fim de símbolos que mudam a cada
momento”. Na visão de Thompson, isto não ocorre. O self o foi dissolvido pelo excesso de
informações e a metáfora do espelho o se adapta muito bem ao mundo contemporâneo. O
que, efetivamente, acontece é que o self compreendido como um projeto simbólico que é
organizado pelo indivíduo de forma reflexiva se libertou dos contextos locais e da vida
cotidiana, apesar de estar inserido nesta esfera, e passou a poder experimentar/vivenciar
acontecimentos distantes, interagir com outros à distância e deslocar-se para outros
microcosmos mediados” e que, de acordo com as determinações e prioridades feitas pelo
indiduo, estas ações exercerão graus de controle e poder”.
Thompson complementa:
À proporção que estas experiências mediadas vão
sendo incorporadas reflexivamente ao projeto de formação do self, a
35
natureza do self também vai se transformando. Não é dissolvida ou
dispersa pelas mensagens da mídia, mas aberta por elas, em vários
graus, para inflncias provenientes de locais distantes. ( p.202)
Assim, conclui Thompson, estar num mundo mediado significa estar em constante
articulação com as diferentes formas de experiência. É assumir que, durante o percurso de
suas vidas diárias, o indiduo se suplementado por experiências mediadas que serão
capazes de informar e remodelar” a construção da sua própria identidade a partir do
momento em que, quando está diante da dia ele não estará consumindo” uma fantasia; ele
estará num processo de exploração de todas as possibilidades e imaginando alternativas, no
sentido de empreendê-las no seu cotidiano. É, neste sentido, que a publicidade também vai
atuar como forma de experiência e interferir no cotidiano do indivíduo com suas ideologias e
representões, que no caso deste trabalho, referem-se a relação entre o consumo, a
publicidade e a identidade nacional.
Assim, após a compreensão, de forma geral, da interferência das experiências
mediadas advindas do desenvolvimento dos meios de comunicação, deveremos nos
concentrar nas formas com que acontecem na sociedade globalizada. Trata-se de compreender
a diversidade de manifestações sociais ocorridas nestes fins de século XX, dando origem a
uma sociedade globalizada, fragmentada e plural.
2.2. Os Movimentos Sociais e as Identidades numa Sociedade Globalizada, Fragmentada
e Plural – A contribuição de Manuel Castells
O sociólogo Manuel Castells, durante os últimos 25 anos, percorreu diversos países
espalhados pelos continentes europeu, astico, africano e americano, buscando mapear a
diversidade de manifestações sociais que eclodem no mundo, neste estágio da evolão
planetária, a que convencionamos chamar de globalizão.
Procurou nesse quadro marcado por uma enorme diversidade de povos, com
culturas e costumes, por vezes, simbolicamente tão “ distantes” quanto suas localizações
geográficas entender os impactos que a “ sociedade em rede produziu nas sociedades por
ele estudadas, dirigindo seu foco para as “ manifestões identitárias” coletivas, enquanto
36
mecanismos político-culturais que interferem nas mudaas sociais em curso, nos países
observados.
Optando por um estudo comparativo e acreditando na necessidade de se refletir sobre
os contextos novos em que se desenrola a vida social, conforme sinaliza a antropóloga Ruth
Cardoso, no precio de “ O Poder da Identidade”, Castells empenhou-se, ainda, em construir
um novo quadro teórico que desse conta desse mundo, se não admirável”, mas
indiscutivelmente “ novo”, como ele mesmo definiu. Um dos conceitos apresentados por
Castells para definir as caractesticas do mundo contemporâneo globalizado é “ A sociedade
em rede”, explicado da forma que se segue:
A revolão da tecnologia da informação e a
reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de
sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela
globalizão das atividades econômicas decisivas do ponto de vista
estratégico; por sua forma de organização em redes; pela
flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-
de-obra. Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de
um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente
diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida
tempo e o espaço mediante a crião de um espaço de fluxos e de
um tempo intemporal como expressões das atividades e elites
dominantes.(...)” (CASTELLS, 1999, p.17).
Entendendo que as bases materiais da vida deixam marcas locaiso visíveis (porque
virtuais), mas que mudam as formas de ão e as orientões sicas da cultura, conforme
ressalta, ainda Ruth Cardoso, Castells nos mostra como diversos movimentos sociais, em
escala mundial, se apóiam na defesa ou/e (re)construção de identidades coletivas para
enfrentar e responder – ao processo globalizante de homogeneização das sociedades e
culturas.
Operando com ts conceitos identidade legitimadora que se refere a que é
introduzida pelas instituições dominantes no sentido de disseminar sua dominação em relação
aos atores sociais, identidade de resistência que se refere à que é criada pelos atores que
estão à margem da lógica da dominação e que resistem e sobrevivem sob princípios diferentes
dos das instituições da sociedade (exemplo: o feminismo), e identidade de projeto que,
conforme Thompson havia descrito, se refere aos materiais culturais e mediados pelos meios
de comunicação que constroem ou redefinem a identidade do indivíduo Manuel Castells
37
estabelece uma forma de classificação das manifestações oriundas dos movimentos sociais em
diferentes contextos sócio-político-culturais.
À primeira vista, a própria terminologia utilizada por Castells acaba por sugerir uma
classificação dos movimentos sociais entre aqueles tradicionalistas, de resistência a
mudaas, que se contraporiam a outros, progressistas, alicerçados no desejo de
transformações sociais. Entretanto, o autor recusa qualquer tipo de valoração nesta
classificação, nos mantendo atentos para a inexistência de bons ou “ maus” movimentos
sociais. Assim como para a inexistência de “ bons” ou “ maus” projetos identitários por eles
defendidos. O que se impõe em sua análise é a observação das dinâmicas sociais e com que
contribuições estes movimentos nelas interferem.
Cabe destacar, ainda, embora soe redundante, que o trabalho de Castells nos faz ver
que, embora a forma neoliberal com que estamos nos globalizando, de maneira imperiosa,
tenha seus aspectos inegavelmente excludentes e conflitivos, não significa que os atores
sociais, das diferentes sociedades humanas, estejam inertes frente aos desafios político-
culturais que emergem no novo contexto mundial.
Da mesma forma como procedemos com os demais teóricos, cujas iias,
anteriormente, foram acolhidas em nossa pesquisa, nos propomos aqui a apresentar
resumidamente parte da discussão que Castells realiza sobre a questão identitária, atento às
suas articulações com os movimentos sociais em vel mundial, enfatizando, entretanto, que a
exposição de iias que se segueo pretende, de forma alguma, dar conta da riqueza e
complexidade do trabalho integral do autor, aqui citado.
Citando Calhoun, Manuel Castells nos mostra que a identidade está invariavelmente
alicerçada na distião entre o eu e o outro. Associando o conceito de identidade ao de
autoconhecimento, enfatiza que se trata invariavelmente de uma “ construção”, o
importando o quanto possa parecer uma “ descoberta”; nunca estando o autoconhecimento (e a
identidade) dissociado, portanto, “ da necessidade de ser conhecido, de modos específicos,
pelos outros.
Para Castells, entender a noção de identidade como construção implica em estabelecer,
ainda, uma distião entre o que podemos chamar efetivamente de identidade e o que os
sociólogos entendem como papel social. Ele chama a ateão para o fato de que, se, por um
38
lado, as identidades constituem fontes de significado para os próprios atores sociais, por eles
originados, e construídas por um processo de individualização”, os papéis sociais (ser por
exemplo, trabalhador, pai, vizinho, militante socialista, jogador de futebol, freqüentador de
uma igreja, etc.) são definidos por “ normas estruturadas pelas instituições e organizações da
sociedade”.
Por estarem apoiadas no processo de autoconstrução e individuação, as identidades,
portanto, se colocam, segundo este estudioso, como mais importantes fontes de significado
que os papéis sociais, uma vez que a importância relativa desses últimos no ato de influenciar
o comportamento das pessoas é negociada entre os indivíduos e as instituições e
organizações sociais.
Trabalhando essencialmente com identidades coletivas”, Manuel Castells ressalta que
a questão central que se coloca nesse tipo de estudo é entender como, a partir de quê, e para
quê, as identidades são construídas, destacando, por sua vez, que essa construção alimenta-se
de matérias primas fornecidas pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e
reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, e ainda, pelos aparatos de poder
e revelações de cunho religioso.
É na construção das identidades coletivas e das mediações de massa que abordaremos
as representações do nacional, no sentido de termos um material teórico vivo para
compreender e analisar a temática desta festa histórica que foram as comemorações dos 500
anos do descobrimento do Brasil e seusnculos com o consumo. Para tal, ainda precisaremos
rever alguns conceitos trabalhados, por Stuart Hall, por John B. Thompson, Néstor Garcia
Canclini e por Jésus Martin Barbero, para que a compreensão e alise possam ser mais
contundentes.
2.3. O Local e Global na Identidade Fragmentação e pluralidade A análise de
Stuart Hall e John B. Thompson
Em tendo feito as considerações referentes às tradições, sua inseão na formação de
identidades e suas articulações com a mídia de forma geral, podemos, agora, nos reportar à
39
questão das identidades na era global e de que forma, elas podem ou não, interferir na
construção da identidade nacional. Para tal alise, nosso referencial teórico se embasará na
reinterpretão de Stuart Hall
11
.
O autor se propõe a analisar o declínio das velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo moderno: o sujeito do iluminismo; o sujeito sociológico, como
veremos a seguir. Constatando uma crise de identidade”, Hall desdobra seu estudo na análise
específica das transformações que m ocorrendo nos processos identitários que se
relacionam a um tipo específico de pertencimento: a que os sujeitos estabelecem com as
culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, sobretudo, nacionais as identidades
culturais. E que caracterizam o sujeito pós-moderno.
Se por um lado, Thompson trabalha com a tradição como elemento formador da auto-
identidade e da identidade coletiva, Hall se remete à mesma questão e tamm admite que as
sociedades modernas do final do século XX estão passando por uma série de transformações
que mudam as identidades pessoais, a partir da fragmentação ou pluralização de identidades e
as quais denomina de “ crise de identidade. É para entender essa crise, que Hall identifica ts
concepções históricas de identidade:
a-) sujeito do iluminismo – caracterizado como um indivíduo centrado, dotado de
razão, de consciência e de ão, em cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior que emergia
pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo contínuo ou ‘idêntico’ a ele ao longo da existência do
indiduo”. Trata-se, fundamentalmente, do pensamento de Descartes que pode ser traduzido
pela frase: penso, logo existo”.
b-) sujeito sociológico caracterizado pela relação existente entre o “ mundo pessoal e
o mundo público”. Neste sentido, o indiduo percebe que seu núcleo interior não está
desassociado das outras pessoas que o circundavam e que era atras delas que o sujeito
aprendia a cultura e se completava em relação aos valores, sentidos e símbolos do mundo
habitado por ambos. Enfim, era um sujeito que possuía uma essência interior, mas que podia
11 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
40
ser formado, mudado ou transformado a partir do diálogo contínuo” com o mundo cultural
exterior e as identidades por ele oferecidas.
c-) sujeito pós-moderno – caracterizado pela inexistência de uma identidade fixa,
essencial ou permanente. Sua identidade está sempre sendo formada e transformada a partir
das formas “ pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam”. Em outras palavras, o sujeito pós-moderno possui identidades diferentes em
diferentes situações e momentos e, muitas vezes, identidades que competem entre si e que
empurram, umas às outras, em direções diversas, promovendo constantes deslocamentos em
nossas identificões.
Citando Ernest Laclau que utiliza o conceito de deslocamento, Hall salienta que as
sociedades da modernidade tardia são caracterizadas pela diferença, atravessadas por
diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de ‘posições’ de
sujeito, de identidades para os indivíduos” (p.17). A questão dos deslocamentos das
identidades está diretamente associada à própria velocidade de transformação que caracteriza
a modernidade. Am disso, tem-se uma dimensão política, uma vez que, ao considerarmos a
identidade o como algo acabado, fixo e imutável, mas como um processo em andamento,
ela pode mudar de acordo com a forma com que o sujeito é interpelado ou representado: “ a
identificão o é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada.”
(p.21)
Todas as transformações que se referem à modernidade podem ser pensadas a partir do
momento em que se tirou do indiduo os estáveis alicerces que eram sustentados pelas
tradições e pelas estruturas vigentes. Estruturas baseadas na relão com os poderes divinos,
conforme já vimos no capitulo anterior, e que, portanto, seriam imutáveis. Outro aspecto que
permitiu o surgimento de uma identidade moderna se refere à dissolução da ordem secular e
divina que pressupunha o nascimento de um indivíduo soberano. É a partir da queda destes
paradigmas que o autor considera que o sistema social da modernidade tenha comado o seu
movimento
12
.
12
Conforme exposto no primeiro capítulo, quando Benedict Anderson, em Nação e Consciência Nacional, descreve o final da Comunidade Religiosa e dos
Reinos dinásticos.
41
Datado o início dos movimentos identitários, o autor manifesta sua preocupação com
este “ sujeito fragmentado” e sua identidade na modernidade tardia ou na pós-modernidade,
como alguns teóricos preferem se referir. Para ele, a principal questão está ligada à identidade
nacional - visto que “ as culturas nacionais se constituem em uma das principais fontes de
identidades culturais”. Vale observar que tais culturaso são representadas, apenas por
instituições culturais, mas tamm, por símbolos e representões que são traduzidos a partir
dos discursos que constroem sentidos e que influenciam e organizam as nossas ões e a
concepção que temos de nós mesmos. Assim, as culturas nacionais quando produzem sentidos
sobre “ a nação”, nos levam a identificar e a construir as nossas identidades.
É nesta direção que o teórico, tamm se remetendo a Benedict Anderson, lembra que
um dos principais pontos que sustenta a identidade do sujeito pós-moderno é a nacionalidade
e o sentimento de pertencimento que uma pessoa desenvolve em relão a sua nação
(“ nationess) e que a construção dessa identificão o se naturalmente, mas é fruto de
um conjunto de artifícios embasados em tradição e história: uma narrativa de nação; o
conjunto de tradições inventadas que ditam valores; o mito da pureza e heroísmo do povo,
numa leitura do seu caráter genuíno e autêntico.
Ao se referir ao conceito de nação, Stuart Hall utilizando-se da definição de Anderson,
a descreve como “ uma comunidade simbólica e, que por esta razão, explica-se o “ seu poder
para gerar um sentimento de identidade e lealdade e levanta uma questão: Como é contada a
narrativa da cultura nacional? Para responder a esta questão, o autor selecionou cinco
elementos que permitiriam uma leitura mais acurada da análise dos discursos sobre o nacional
e que para este trabalho será de fundamental importância:
Numa primeira instância, o autor destaca a narrativa da nação”, discurso que surge
nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas narrativas são
formadas por diversas “ estórias, imagens, panoramas, cerios, eventos históricos, símbolos e
rituais nacionais que simbolizam e representam as experiências partilhadas, as perdas, os
triunfos e os desastres queo sentido à nação”.
No caso brasileiro, como ilustração, podemos citar uma série de obras, imagens,
gêneros midiáticos que constituem a idéia e o discurso sobre a nação e que muito contribuem
para sua formação simbólica. Desde clássicos da literatura e da sociologia brasileiras - como
42
Os Sertões” de Euclides da Cunha, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freire, “ Raízes do
Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, entre outros, até as atuais telenovelas, cito como
exemplos, marcantes títulos como A Escrava Isaura, Pantanal, “ Renascer, O Rei do
Gado”, entre outras.
O sentido do nacional permeia obras de épocas e gêneros distintos. Apenas para
ilustrar citamos as recentes minisséries como “ Aquarela do Brasil e “ A muralha”. Ou ainda o
surto de nacionalismo no cinema brasileiro contemporâneo (que segue uma linha histórica):
filmes como “ Central do Brasil, “ O Auto da Compadecida”, “ Eu, tu, eles”, Cidade de
Deus, entre outros, colocam o nacional brasileiro em pauta, principalmente quando, dois
deles, foram indicados para concorrer ao Oscar americano.
Também podemos citar momentos importantes de construção e experiência do
sentimento de nação a partir dadia televisiva: as transmissões em cadeia nacional das
Olimpíadas”, da “ Copa do Mundo”, dos campeonatos de “ Fórmula 1”, a história exemplar
do piloto Ayrton Senna, transformado-o em mito da nacionalidade, e os eventos esportivos
em geral. O nacional também surge fortemente na música popular brasileira: com o samba, o
pagode, o forró, o sertanejo, o axé music que se traduz na mistura de ritmos tipicamente
regionais. Como veremos, o nacional também vai aparecer nasões empreendidas pela Rede
Globo por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil que, de forma
exemplar e representativa das questões conceituais que temos analisado, se constitui no tema
deste trabalho.
Numa segunda instância, para se entender como se constitui a narrativa sobre o
nacional, Hall sublinha elementos como origens, continuidade, tradição e intemporalidade
(p.53) como caractestico dessas narrações. Trata-se de representar a identidade nacional
como questões intnsecas e essenciais do caráter nacional, algo da ordem de uma natureza
imutável, apesar de todas as transformações ao longo da história.
Discursos sobre a defesa do território nacional, a hegemonia e a soberania, sempre
implicam na crença em uma natureza eterna da nação. Podemos dar exemplos corriqueiros na
mídia. Quando o governo brasileiro assume uma posição de austeridade e soberania junto ao
FMI; ou quando defende a soberania do território, ver o discurso sobre a guarda da fronteira
amazônica diante de uma possível ameaça de invasão de traficantes colombianos, ou, até
43
mesmo, quando o governo brasileiro se coloca de forma frontal às potências mundiais, como
foi o caso da identificação dos cidadãos americanos nos aeroportos brasileiros e a questão da
o permissão da inspão da comissão de energia nuclear nas usinas de enriquecimento de
urânio. Estes discursos de soberania e hegemonia serão reencontrados nas ações
desenvolvidas pela Rede Globo por ocaso das comemorações do Brasil 500 anos .
Numa terceira instância de construção da narrativa da cultura nacional, Hall destaca as
tradições. Para expli-la, o autor se remete a Eric Hobsbawn e Ranger, quando conceituam a
expressão “ tradição inventada. Esta seria um conjunto de práticas, de natureza ritual ou
simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas atras da repetão a qual,
automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado” (p.54)
13
. Ou
seja, a inveão de mitos contemporâneos legitimados por um passado imaginado.
Assim, no caso brasileiro, podemos exemplificar com mitos e ritos recentes, como as
homenagens aos soldados desconhecidos, instituídas no pós-guerra ou os ritos das
festividades da padroeira do Brasil, instituídos apenas em meados do século XX.
Uma quarta estratégia discursiva se refere ao “ mito fundacional” que estabelece a
origem da nação em um passado tão distante que acaba por se perder no próprio tempo.
Tratam-se de “ tradições inventadas” de fatos inteligíveis”, marcados por triunfos e desastres
acontecidos durante o processo de construção do ps. Aqui o mito se funde com a História.
Uma quinta representão simbólica da identidade nacional é atribuída a uma iia de
povo ou “ folk puro, original. Trata-se do folclore, transmitido de geração para geração. No
Brasil, temos um arsenal riquíssimo deste folclore, que inclui o carnaval e seus derivados, que
são um dos mais conhecidos emvel planetário.
Diante disto, Stuart Hall, sintetiza o discurso do nacional como:
O discurso da cultura nacional não é, assim, tão
moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são
colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se
equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso
por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas
nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a
recuar defensivamente para aquele tempo perdido’ quando a nação
era grande; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este
constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura
nacional. ... esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para
13
Hobsbawn apud Hall.
44
mobilizar aspessoas para que purifiquem suas fileiras, para que
expulsem os outros’ que ameam sua identidade... ( p.56)
Stuart Hall o pensa as culturas nacionais como algo unificado. Segundo ele, as
identidades nacionais é que ainda são representadas como “ unificadas” e a forma que tem sido
usada para unificá-las tem se dado a partir do uso do conceito de “ um único povo”, que tem
na etniangua, religião, costume, tradições, sentimento de “ lugar” que são socialmente
partilhadas pelo povo a característica cultural mais marcante. Para ele, nenhuma nação tem
um único povo, cultura ou etnia. “ As nações modernas são, todas, híbridos culturais”.
Portanto, sociedades plurais.
Partindo desta assertiva, Hall credita à globalização todos os deslocamentos das
identidades culturais nacionais neste final de século XX e, examinando suas conseqüências
por ts vertentes, afirma algumas possibilidades:
Como resultado da homogeneização cultural, as identidades nacionais estão se
desintegrando” tornando-se globais.
Há uma forte tendência de reforço das identidades nacionais e locais” devido à
tentativa de resistência à globalização – Teoria do “ Glocal”.
As identidades nacionais estão desaparecendo e novas identidades, desta vez híbridas,
estão assumindo os seus lugares.
A característica principal do processo de globalizão, quando estamos avaliando as
identidades nacionais, é, segundo Hall, a “ compressão espo-tempo”. Ou seja, o mundo
parece menor e funcionando de forma simultânea. Algo que esteja acontecendo em um lugar,
geograficamente distante pode, atras dos meios de comunicão, ser percebido como ao
nosso lado. Simultaneidade do tempo experimentada pela transmissão imediata que nos leva a
pensar que estamos vivenciando todos os fatos num aqui e agora.
É nesta perspectiva que Hall contra argumenta sobre as conseqüências da globalização
e da compressão espo-tempo e afirma em relação à primeira hipótese: As identidades
nacionais permanecem fortes, especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de
cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais
importantes.” (p.73)
45
E vai além, quando propõe que esteja havendo um retorno da etnia e do local, mesmo
com a forte pressão do global:
... ao lado da tendência em direção à homogeneizão
global, também uma fascinação com a diferea e com a
mercantilização da etnia e da alteridade. Há, juntamente com o
impacto do global, um novo interesse pelo ‘local’. ... Assim, ao invés
de pensar no global como substituindo’ o local seria mais acurado
pensar uma nova articulação entre o global e ‘o local’. ( p.77)
2.4. Consumo e Cidadania - A Análise de Nestor Garcia Canclini
A reestruturação da esfera pública, com a descrea nas instituições de representação
política; o aumento do consumo privado de bens e dos meios de comunicação e a afirmão
do neoliberalismo em escala planetária deram origem a uma vertente do pensamento social
que enfatiza as novas conexões entre cidadania e consumo.
Para o desenvolvimento dos temas propostos por este trabalho, a alise das alterações
do comportamento dos consumidores do século XX, especialmente quando se refere às
retóricas do nacional e às perspectivas de alteração das sociedades globalizadas do século
XXI, se faz obrigatória, visto que o Projeto Brasil 500 anos da Rede Globo de Televisão pode
ser visto como um produto da mídia.
Assim, Canclini em seu livro “ Consumidores e Cidadãos. Conflitos Multiculturais da
Globalização” mostra que o coincidência entre o senso comum e o bom senso quando o
assunto é o consumo e se contrapõe à leitura simplista que associa o ato de consumir a gastos
inúteis e compulsões irracionais que atribuem aos meios de comunicação a onipotência de
incitarem as massas a se lançarem irrefletidamente sobre os bens.
Para o autor, os processos de consumo são mais complexos do que a relão banal
entre os “ meios manipuladores” e suas audiências. Diversos estudos sobre a hegemonia
cultural dos meios de massa avalizam sua posão e acrescentam que existem diversos outros
mediadores” que interferem neste processo como, a família, o bairro, e o grupo de trabalho.
Soma-se a isto, o fato de tais estudos apontarem para a concepção de que os vínculos entre os
46
receptores das informões e os emissores de mensagens não se numa relação de
dominação, e sim, a partir de interações de “ colaboração e transação” entre ambos.
Segundo Canclini, definir o consumo é algo bastante difícil, visto que o uma
teoria sociocultural do consumo”. Entretanto, no sentido de identificar os pontos de
conflncia que possam conceituar de forma global o consumo e que também se incluam os
processos de comunicão e recepção, ele propõe, como ponto de partida, uma definição que
se traduz pelo conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os
usos dos produtos.” (p.53).
Assim, na perspectiva desta definição, o consumo deve ser compreendido,
especialmente, pela “ racionalidade econômica” e pela participação do ciclo produtivo e de
reprodução social. Em outras palavras, é o fim de um processo que se iniciou na geração de
produtos que tem por objetivo a expansão do capital e a reprodução da força de trabalho.
Tudo é engendrado visando a lucratividade dos produtos, mesmo quando se trata de prover
alimentos, habitação, transporte e diversão para os membros de uma sociedade. Podemos não
concordar com estas estratégias de estímulo ao consumo, mas, com certeza, não podemos
negar que as mercadorias e a indução publicitária de compra não se traduzem em atos
arbitrios.
No entanto, considera o autor, o consumo o é modelado apenas pela racionalidade
dos agentes econômicos. Há estudos, que se desenvolvem a partir da Antropologia e da
Sociologia Urbana, que apontam para uma teoria mais complexa sobre a interação entre
produtores e consumidores e “ emissores e receptores” e que denotam que no consumo
existe uma manifestão da racionalidade sócio-política interativa. Neste sentido, Canclini
completa:
Quando vemos a proliferação de objetos e de marcas,
de redes de comunicação e de acesso ao consumo, a partir da
perspectiva dos movimentos de consumidores e de suas demandas,
percebemos que as regras móveis da distião entre os grupos, da
expansão educacional e das inovões tecnológicas e da moda
também intervêm nestes processos. (p.54)
47
Canclini recorre a Manuel Castells para concluir seu pensamento sobre o consumo: O
consumo é um lugar onde os conflitos entre classes, originados pela desigual participão na
estrutura produtiva, ganham continuidade através da distribuição e apropriação dos bens”.
14
Portanto, consumir é estar disputando aquilo que a sociedade produziu e os modos de
se usar estas mercadorias. O consumo é um lugar de diferenciação e de distinção entre as
classes e os grupos, e que possui aspectos simbólicos e estéticos queo ao encontro de uma
racionalidade consumidora. Racionalidade esta que se constrói muito mais pela
apropriação dos meios de distião simbólica do que na busca dos próprios meios de
produção. Assim, a lógica que rege a apropriação de benso está, necessariamente, na
satisfação de necessidades. Se concentra, sobremaneira, no fato de um membro da sociedade
possuir uma mercadoria diferenciada e absolutamente impossível de que outro a tenha.
Canclini concentra sua alise nas classes menos favorecidas pelo fato dos ricos terem
acesso a todo tipo de mercadoria. E para isto, ele volta a investir contra o pensamento que se
refere a irracionalidade e ao desperdício do consumo quando se refere aos gastos dispendiosos
que são feitos, pelas classes mais populares, por ocasião das celebrações que estão associadas
aos ritos, como casamento, batizados, festas de quinze anos para meninas, etc.
Assim, tamm uma data ou aniversário de um santo padroeiro justifica moral ou
religiosamente o gasto e os significados que regulam a sua vida. Quanto mais caros forem os
bens comprados para a realização dos rituais, mais forte se o “ investimento afetivo e a
ritualização que fixa os significados a eles associados.
Por fim, acrescenta Canclini comprar objetos, pendurá-los ou distribuí-los pela casa,
assinalar-lhes um lugar em uma ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros,
são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas
com os demais.” (p.59)
Após terem sido feitas algumas considerações sobre o consumo, seria importante
entendermos como o consumidor reage diante do consumo em tempos globalizados. Para isto,
Canclini recorre à questão do nacional e afirma que o caráter nacional era definido pelas
tradições “ autênticas” do povo e que, hoje, sabe-se que esta autenticidade é ilusória pelo fato
de possuir ingredientes de origem autóctone” e estrangeira”, fazendo com que haja
14 Canclini apud Manuel Castells in Consumidores e CidaosConflitos Multiculturais da Globalização, 1997, p.54
48
processos históricos bridos. A partir desta hibridização, são construídos símbolos
transnacionais que são consumidos pelas classes populares portanto capazes de ler as
citações de um imagirio multilocalizado”- através da televisão e da publicidade.
Diante disto, a televisão e a publicidade o se utilizar, não só das representões que
compõem a sua sociedade, mas tamm, de símbolos que pertencem a outras sociedade, mas
que são percebidos de forma planetária dando origem, assim, a uma cultura internacional-
popular”
15
. Assim, Canclini exemplifica alguns símbolos:
... os ídolos do cinema hollywoodiano e da música
pop, os logotipos de jeans e cartões de cdito, os heróis do esporte
de vários países e os do próprio que jogam em outro compõem um
repertório de signos constantemente disponível. Marilyn Monroe e os
animais jurássicos, Che Guevara e a queda do muro, o refrigerante
mais bebido no mundo e Tiny Toon podem ser citados ou insinuados
por qualquer desenhista de publicidade internacional confiando em
que sua mensagem terá sentido ainda para aqueles que nunca saíram
do seu país. (p.63)
Canclini chama a ateão para o fato de que, apesar de haver a distinção entre os
grupos hegemônicos e subalternos principalmente como oposão entre o “ nativo e o
importado”, ou entre o tradicional e o moderno, há espo para diferentes formas de adesão e,
com isto, há a formação de subsistemas culturais que permitem a co-existência do que é
produzido e consumido internamente e o que vem de fora. Assim, enquanto alguns cidadãos
optam por ouvir, por exemplo, músicas de Sting, Santana, etc., outros optam e preferem
músicas de Chitãozinho e Xororó, Roberto Carlos, etc.
Os relatos do multiculturalismo se encontram, hoje, divididos entre a teorização
acadêmica e os movimentos sócio-políticos. Por um lado há a concepção, pelas ciências
sociais, que as identidades são “ historicamente constituídas, imaginadas e reinventadas em
processos constantes de hibridização e transnacionalização, os quais diminuem seus antigos
enlaces territoriais (p.120)
16
. Por outro lado, aqueles que supervalorizam o território que
deu origem às etnias e às nações fixando “ dogmaticamente os traços biológicos e telúricos
15 Expressão criada por Renata Ortiz e citada por Canclini em Consumidores e Cidadãos (p.63)
16 Teoria construtivista
49
associados a esta origem como se fossem alheios às peripécias históricas e às mutações
contemporâneas”
17
. (p.120).
Canclini observa que nos conflitos intetnicos e internacionais existe uma fixão em
conceber a identidade nacional como um núcleo sólido e compacto” de resistência ao
multiculturalismo e que a defesa da “ pureza, exercitada em muitos pses, está em oposição
às correntes modernas que visam “ relativizar” as especificidades de cada etnia e nação com o
objetivo de construir formas democráticas de convincia, complementação e
governabilidade multicultural.
A oposão entre estes discursos estabeleceu, juridicamente, que os habitantes de uma
certa área geográfica, denominada de país, devessem ter uma cultura homogênea, uma única
identidade. Esta identidade deveria fazer parte de uma nação traduzida, por Canclini, como:
uma entidade espacialmente delimitada, onde tudo
que é compartilhado pelos que a habitam língua, objetos, costumes
os diferenciaria dos demais de forma tida. Esses referentes de
identificão, historicamente mutáveis, foram embalsamados pelo
folclore em um estágio tradicional de seu desenvolvimento, e foram
declarados essências da cultura nacional. ( p 121)
Hoje, vemos todos estes referentes de identificação exibidos em museus, transmitidos
nas escolas e pelos meios de comunicão de massa, assumindo uma atitude dogtica
atras dos discursos religiosos e políticos, e defendidos, quando há instabilidades, pelo
autoritarismo militar”.
Para o autor, este modelo foi tão convincente que permitiu a estruturação das zonas da
cultura, do saber, do esporte, etc., delimitando-as em unidades nacionais”, especialmente na
América Latina.Aqui, o deslocamento das identidades únicas para o multiculturalismo global
encontram, no fundamentalismo e nos movimentos étnicos e nacionalistas da política, um
elemento de oposição que ignora o cater polifônico, imagirio e híbrido das identidades
modernas.
17 Teoria fundamentalista
50
2.5. Das Representações do Popular e do Massivo às Retóricas do Nacional O que
pensa Jesús Martin Barbero
Enquanto Castells caracteriza as identidades como legitimadoras, de resistência
política e de projeto de construção da identidade, Barbero trata da formação das identidades
coletivas nas manifestações populares. Tema que nos interessa na medida em que diversas
ações empreendidas pela Rede Globo por ocasião das comemorações de 500 anos de
descobrimento do Brasil o se apropriar dessas manifestões populares como forma de criar
identificão entre consumidor e produto/mercadoria. No caso, o próprio Projeto “ Brasil 500
anos.
Barbero sugere que o campo teórico das ciências humanas encontrou-se em crise a
partir da “ redescoberta do popular efetuada nos últimos anos. Isto por que, o grande
problema da interpretão da cultura popular, por parte dos “ letrados, está no fato de ser
vista como um déficit, uma desqualificação sobre a qual, o é possível se pensar a cultura.
Citando Certeau
18
, Barbero mostra que esse paradigma que busca um modelo para a cultura
popular autêntica ou originalo é produtivo:
Contra a tendência a idealizar o popular, contra esse
culto castrador’, Certeau tem reconstruído os marcos de sua própria
história [do popular] e o mapa do que este culto encobre. A cultura
popular a que se refere Certeau é a impura e conflitiva cultura
popular urbana. Popular é o nome para uma gama de práticas
inseridas na modalidade industrial, ou melhor, o lugar a partir do
qual devem ser vistas para se desentranharem suas táticas. Cultura
popular fala então não de algo estranho, mas de um resto e um
estilo. (p.115).
Por “ resto”, Barbero entende que seja a bagagem constitda pelas tradições culturais
que resistem ao discurso e à colonização tecnológica”. Tradições e saberes marginalizados
que “ carregam simbolicamente a cotidianeidade e a convertem em espo de criação muda e
coletiva. Quanto ao estilo” da cultura popular, o autor chama ateão para as operações
18
M. de Certeau L’ Invention du quotidien. Arts de Faire, Paris, 1980
51
banais do dia a dia: o “ modo de caminhar pela cidade, habitar a casa, de ver televisão, um
estilo de intercâmbio social, de inventividade técnica e resistência moral”.
É esse popular impuro, midiático, que a publicidade e a media, em geral, vai trabalhar.
Como exemplo, podemos citar manifestações populares recentes como o pagode. O pagode é
a atualização do samba. Em determinadas situações ele chega até aos letrados
descontextualizado do local onde nasceu. Pode ser considerado como uma arte impura, que
nasce do cotidiano. Diante desse ideal de pureza dos letrados, um conjunto de pagode só é
legitimado quando, por exemplo, chega ao Teatro Municipal, “ legitimado” como arte ou
quando atinge a dia que por ser pensada pela elite letrada é um dos locais de legitimação da
cultura popular, e onde se pode dizer o que é melhor ou pior para o povo e o que deve ser
visto como popular tradicional ou culto.
Data de meados do século XIX o início do deslocamento da legitimidade burguesa
onde, de submisso e oculto, o popular se transforma em consenso valorado. Esta mudaa
contém uma série de movimentos, entre os quais, a “ dissolão do sistema tradicional de
diferenças sociais, a constituição das massas em classe e o surgimento de uma nova cultura,
de massa. (p. 167). Contra a iia de que massa tem a ver com perda da autenticidade ou
degradação cultural como alguns teóricos sugerem, massa, para Barbero, significa:
O modo como as classes populares vivem as novas
condições de existência, tanto no que elas têm de opressão quanto no
que as novas relações contêm de demanda e aspirações de
democratizão social. E de massa será a chamada cultura popula….
sabemos que essa inversão vinha sendo gerada muito tempo, mas
ela não podia transformar-se efetiva senão quando, ao se
transformarem as massas, em classe, a cultura mudou de profissão e
se converteu em espaço de hegemonia, passando a mediar, isto é,
encobrir as difereas e reconciliar os gostos. (p. 169)
Assim, os mecanismos da medião de massa ligam-se, estruturalmente, “ aos
movimentos no âmbito da legitimidade que articula a cultura”, encobrindo as tensões entre as
classes, produzindo e oferecendo a partir do desenvolvimento tecnológico da dia, a sua
resolão no imaginário, com a permissão ativa dos dominados.
Essa medião e consentimento dos dominados só existiram no momento em que a
cultura de massa foi constitda acionando e deformando ao mesmo tempo sinais de
52
identidade da antiga cultura popular e integrando ao mercado as novas demandas das massas.”
(p. 169)
Assim, o massivo surgiu de forma paulatina e a partir do popular. E hoje, falar de
cultura de massa é atribuir um nome àquilo que é entendido como um conjunto de meios
massivos de comunicação”. É neste contexto que envolve a cultura de massa e os meios de
comunicação, que encontramos a formação da idéia de Não. É atras dos meios de
comunicação que a Nação e o nacional se deslocam da retórica e assumem o caráter de
sentimento”.
Antes de fazermos uma alise dos meios massivos na formação das culturas
nacionais seria ideal analisarmos os processos sociais que serviram de base para a constituição
da Nação, na América Latina.
Para tal, Barbero parte das lutas pela independência, ocorridas entre metrópoles e suas
colônias, apontando para ts vertentes observadas neste processo de descontinuidade: o
descompasso entre Estado e Nação onde alguns estados só se constituem em Não muito
depois e algumas nações somente mais tarde se consolidam como estados -; as formas
desviadas com que as classes populares se engajam no sistema político e no processo de
formação dos Estados Nacionais; e no papel político e ideológico em que os meios de
comunicação desenvolvem a nacionalização das massas populares.
Começando sua alise pelo descompasso entre Estado e Não, Barbero marca os
anos 20 como o início do processo de reorganização da economia e da política na América
Latina. É o período em que se inicia o processo de industrialização como única forma de
substituição das importões e absorção de mão-de-obra. É neste momento, em que a
interveão do Estado, que são feitos investimentos em obras de infra-estrutura no setor de
transportes e de comunicões.
É, neste cenário, que se o surgimento de uma nova burguesia que, ao mesmo tempo
controla o mundo dos negócios e da política provocando mudaas que apontam para um
novo nacionalismo baseado na idéia de uma cultura nacional, que seria a síntese da
particularidade cultural e da generalidade política, da qual as diferentes culturas étnicas ou
regionais seriam expressões. Assim, na busca desta cultura nacional e a partir dos modelos
da cultura burguesa dominante, Barbero sintetiza:
53
A nação incorpora o povo, transformando ‘a
multiplicidade dos desejos das diversas culturas (...) num único
desejo: participar do sentimento nacional. Sob esta forma, a
diversidade legitima a insubstitvel unidade da Nação. Trabalhar
pela Nação é antes de mais nada torná-la uma, superar as
fragmentões que originaram as lutas regionais ou federais no
culo XIX, tornando-lhe possível a comunicação entre várias regiões
rodovias, estradas de ferro, tegrafos, telefones e rádio – mas
acima de tudo das regiões com o centro, com a capital. ( p.217)
Esta concepção básica levou ao desejo de construção de uma Não, que pudesse ter
uma identidade própria e que estivesse atrelada ao discurso modernizador dos pses
hegemônicos visto que só desta forma e a partir deste discurso, é que haveria o
reconhecimento e a validação de todo este esforço.
A segunda vertente proposta por Barbero, que se refere às formas com que as classes
populares se engajam no sistema político, é descrita a partir da migração das massas para a
cidade, onde o autor ressalta que grande parte dos Estados vai buscar nesta camada social, a
sua legitimação nacional. Surge o populismo que é traduzido pela forma com que o Estado
funda a sua legitimidade a partir do atendimento de algumas reivindicações formuladas pelas
massas urbanas. Mais do que uma estratégia de poder, a ascensão das aspirações populares
resulta numa forma do compromisso que é estabelecido entre massas e Estado.
Segundo o teórico, a presença das massas na cidade, aos poucos, comou a ser
sentida: o volume de pessoas que migraram do campo para a cidade, na busca dos benecios
que a cidade representava, gerou um déficit muito grande na área de habitação e transportes,
inaugurou um novo modo de morar na cidade e de se comportar no cotidiano. Surgem os
bairros de periferia destinados aos pobres e, em lado diametralmente oposto, o local de
moradia e circulão dos ricos e as transformações da sociedade começaram a ocorrer, a partir
do momento em que os bens e serviços, que até então eram privigios de poucos, tiveram que
ser oferecidos às classes populares.
A transformação da sociedade pode ser percebida a partir da citação abaixo:
A massificação afetou a todos, mas nem todos a
perceberam e sentiram da mesma forma. As classes altas aprenderam
muito cedo a separar a demanda das massas com sua carga de
periculosidade política e também seu potencial de estimulação
econômica – da oferta massiva de bens materiais e culturais sem
estilo’, pelos quais não podia sentir senão desprezo. Para as classes
dias, pequeno-burguesas, aquelas que por mais que desejassem
54
não podiam distanciar-se, a massificão foi especialmente dolorosa,
porque atacava aquele anseio de interioridade que caracterizava seus
membros, zelosos de sua individualidade e de sua condição de
pessoas diferenciadas . (p.223)
Segundo o autor, a massificão teve mais ganhos do que perdas para a massa: na
massificão estava a possibilidade de sobrevincia sica desta classe além da possibilidade,
que foi dada a ela, de acesso à cultura. Esta nova cultura, a cultura de massa, passou a ser um
local onde a massa se identificava, desde a música até as novelas de rádio e ao cinema e, am
disso, o local onde ela podia retomar algumas das suas formas de ver, sentir e expressar o
mundo.
Assim, o massivo também se incorpora ao nacional e diversas manifestações da massa
seo percebidas como genuinamente brasileiras. Quanto às formas desviadas com que as
classes populares se engajaram no sistema político, Barbero conclui:
O massivo é hibridizão do nacional e do
estrangeiro, do patetismo popular e da preocupação burguesa com a
ascensão, e de dois tipos básicos: os que sem serem ricos chegam a
aparentá-lo,os que imitam as formas eternas que caracterizam os
ricos’, e seu oposto sitrico, os desgarrados tipos do subúrbio e da
malandragem. Uma cultura, enfim, essencialmente urbana, que
corrige seu marcado materialismo o que importa, o que tem valor, é
o econômico e o que significa a ascensão social com o
transbordamento do sentimental e do passional . (p.224)
Em outras palavras e aproximando com a questão da formação da identidade
brasileira, o que Barbero quer expressar se refere à aversão da burguesia a tudo que emana da
massa e o horror de que esta classe média tem de poder ser confundida a ela.
Foi através da combinação de progresso tecnológico com a possibilidade de acesso às
formas de cdito financeiro que houve a possibilidade de se produzir massivamente um
grande número de bens de consumo de forma a barateá-los nos seus custos de produção e
permitir às massas o acesso ao consumo inaugurando, nos EUA, nos anos 1920, o “ consumo
de massa e com ele, surge a mentalidade de que era indispensável educar as massas para o
consumo”, fazendo com que, além da alfabetizão, elas devessem adquirir “ uma certa
cultura.
Barbero relata que a melhor maneira de expressar o modo de como o consumo se
converteu em elemento “ de cultura é a partir da mudança radical sofrida pela publicidade”,
55
a partir do momento em que ela passou a estar, fortemente presente, no cotidiano dos
indiduos e a transformar “ a comunicação inteira em persuasão”. Segundo este autor, a
publicidade deixou de informar sobre os produtos conforme pode ser vista na citação, abaixo:
Deixando de informar sobre o produto, a publicidade
se dedica a ‘divulgar os objetos dando forma à demanda’, cuja
matéria-prima vai deixando de ser formada pelas necessidades a
passa a ser constituída por desejos, ambições e frustrações dos
sujeitos. agora o processo de secularização iniciado séculos antes
chega de verdade às massas: quando o ideal de salvação for
convertido’ no de bem-estar , essa figura objetiva da felicidade,
que é a única comprovável e mensurável em objetos. (...) Para a
cultura de massa a publicidade não será somente a fonte mais vasta
de seu financiamento; é, também, a força que produz o seu
encantamento. ( p.193)
Após verificarmos como se deu a passagem do popular para o massivo e de povo para
público e a constituição do público cidadão, a partir da mediação dos meios de comunicação,
pensamos que seja necessária a avalião das representões do nacional na cultura brasileira.
Em outras palavras, como se apresenta a identidade nacional na cultura brasileira e o que faz
com que nós nos reconheçamos como brasileiros e tenhamos o sentimento de pertencimento a
uma comunidade imaginada chamada Brasil. Diante disto, no próximo capítulo
apresentaremos algumas das caractesticas mais marcantes do povo brasileiro e que, com
certeza, pelo menos algumas delas, foram apropriadas pela Rede Globo, por ocaso da
implementação das ações do Projeto Brasil 500 anos.
56
3. A construção da identidade nacional na cultura brasileira - as
análises de Roberto DaMatta e Renato Ortiz
Conforme apresentado no capítulo anterior, o século XVIII foi marcado, na Europa
Ocidental, pelo surgimento de uma nova experiência do nacionalismo e pelo final do
pensamento que atribui ao religioso a razão de todos os acontecimentos. Este peodo foi
marcado, enfim, pelo pensamento racionalista. A partir deste cenário e analisando a
construção da identidade nacional, Roberto DaMatta descreve em seu livro O que faz o
brasil, Brasil ? alguns dos aspectos da sociedade brasileira que, sem sombra de dúvidas,
nortearão/contribuio para a nossa análise do Projeto Brasil 500 anos empreendido pela Rede
Globo de Televisão, por ocasião das celebrações de aniversário de 500 anos de Brasil.
Segundo o autor, alguns teóricos sociais do século XIX viam o Brasil como um
pedaço de terra desprezível, conforme pode ser analisado pela citão, abaixo:
um pedaço perdido de Portugal e da Europa um
conjunto doentio e condenado de raças que, misturando-se ao sabor
de uma natureza exuberante e de um clima tropical, estariam fadadas
à degeneração e à morte biológica, psicológica e social. (p. 11)
Esse pensamento, que marcou o século XIX, sofreu alterações que nos interessa
analisar, ao criar modelos mais positivos para a nacionalidade. Comaremos a mapear a
noção de identidade brasileira o apenas como território, o país, local geogfico, mas
também como cultura, fronteira ou território percebidos e respeitados de dentro” e “ de fora”,
por todos os outros países do mundo. Partiremos de uma alise que contempla e passa por
outras questões relativas a identidade, como a experiência da “ casa um lugar com o qual
se tem uma ligação especial, única e totalmente sagrada, da rua, e do trabalho, tal como
apresentadas por DaMatta.
A partir da leitura de Roberto DaMatta, analisaremos ainda eventos definidores da
cultura brasileira como a festa do carnaval, bem como ritmos, música e sonoridade únicos
localizados e dispersos em várias regiões do Brasil.
Como caractesticas desse “ nacional, vamos encontrar no Brasil uma sociedade em
que valores específicos são seguidos e onde se julgam “ as ões humanas” dentro de padrões
que lhe são exclusivos. Um Brasil que é em parte conhecido e em parte desconhecido tem
57
mistérios e é, de acordo com DaMatta, grande e poderoso como um espírito”. É como um
Deus que está presente em todos os lugares, se manifesta nas mais diversas formas e faz com
que o povo ame suas divindades de forma ferrenha. Numa relão direta entre nacional e
religião.
Uma outra caractestica do nosso nacional, para o autor, é a imposão das leis nas
esferas política e econômica, no qual, segundo DaMatta, falamos um idioma oficial e ao
mesmo tempo, precisamos dobrar a língua para entendermos algumas das expressões. Um
Brasil que convive com um “ jeitinho malandro” expresso por uma vontade escusa de ganhar,
de levar vantagem em tudo, sem levar em conta as leis existentes.
O autor encontra a nacionalidade nas experiências mais cotidianas, como na comida
com especificidades que lhe conferem um inigualável sabor, nas formas de vestir e até mesmo
na nossa relação com a “ mulher” que é adorada, contada e cantada
19
.
Por fim, um nacional que deve ser avaliado com o olhar cúmplice do próprio
brasileiro, inserido neste contexto. É, sem dúvida, uma análise diferente da baseada em
métodos importados p-estabelecidos, partindo do princípio de que os modelos de análise e
avaliação de uma sociedade o podem ser definidos por critérios universais. Neste aspecto,
DaMatta expõe a leitura que faz do Brasil quando afirma sobre a forma com que o ps:
... o BRASIL do povo e das suas coisas. Da comida,
da mulher, da religião que não precisa de teologia complicada nem
de padres estudados. Das leis da amizade e do parentesco, que atuam
pelas lágrimas, pelas emões do dar e do receber, e dentro das
sombras acolhedoras das casas e quartos onde vivemos o nosso
quotidiano. Dos jogos espertos e vivos da malandragem e do
carnaval, onde podemos vadiar sem sermos criminosos e, assim
fazendo, experimentamos a sublime marginalidade que tem hora para
começar e terminar. Deste Brasil que de algum modo se recusa a
viver de forma totalmente planificada e hegemonicamente
padronizada pelo dinheiro... (p.14 )
É a partir deste viés que DaMatta descreve o Brasil e os brasileiros. É nesta
perspectiva que podemos interpretar o primeiro ponto e o mais visceral de nossa alise que
se constitui na percepção da menor célula social, a família, como lugar de onde partem e para
onde convergem todas as demais caractesticas que constituem o nacional.
19
Cantada nos dois sentidos: música e paquera
58
3.1. Conceitos de Casa e Rua e sua Associão com o Trabalho como Representações do
Nacional
Quando observamos os cidadãos brasileiros percebemos que há, pelo menos, um
movimento rotineiro no seu dia-a-dia: ir do trabalho para casa e da casa para o trabalho. Neste
momento, casa e rua interagem e se complementam. Mas há uma divisão clara entre estes dois
espos da vida social brasileira: o mundo da casa e o mundo da rua, onde, neste último,
inscrevemos o trabalho, o movimento, a surpresa e a “ tentação”.
A casa/lar nos a sensação de família. De um grupo fechado e limitado, mas que
possui a mesma substância: a mesma carne, o mesmo sangue e, com isso, os mesmos valores,
que são chamados de tradições de família”
20
. Valores que passam pela “ honra e vergonha
de tal forma que a família se constitui como uma pessoa moral que age, principalmente, nas
fronteiras do público e do privado.
É por isso, que o brasileiro tem um alto sentido de defesa dos seus bens, sejam imóveis
ou móveis, suas crianças ou mulheres. E, até mesmo, empregados, visto que trabalham sobre
o mesmo teto da família e, portanto, fazem parte dela. Segundo DaMatta, a iia de residência
é um fato social totalizante, como a define Márcel Mauss, citado pelo autor, quando fala da
casa” e acrescenta que:
não estamos nos referindo simplesmente a um local
onde dormimos, comemos ou que usamos para estar abrigados do
vento, do frio ou da chuva. Mas estamos nos referindo a um espaço
profundamente totalizado numa forte moral. Uma dimensão da vida
social permeada de valores e de realidades múltiplas. (p.24)
Quanto às “ realidades múltiplas, DaMatta se refere às coisas que “ m do passado e
objetos que estão no presente e às pessoas que morrem e nascem e que fazem parte da
casa”. Neste sentido, os membros de uma “ casa” são insubstituíveis, são únicos e singulares.
São marcados por divisões de sexo e idade tendo, como responsabilidade, manter a “ honra e
o “ respeito” evitando, sobremaneira, a “ vergonha.
A partir daí, são gerados sentimentos como o amor filial e familiar, estendido a todos
que se aproximam desta família: amigos, compadres, comadres, etc. Tais sentimentos fazem
20 Vale lembrar o conceito de Eric Hobsbawn sobre tradições inventadas, in A Invenção das Tradições,1989.
59
com que as portas das casas das famílias brasileiras estejam abertas para qualquer um.
Quanto à percepção, o brasileiro tem claramente em sua cabeça a diferea entre casa e
morada, pdio e lar, mesmo que se more numa vila onde a arquitetura dos pdios seja igual.
É no afã de tentar evidenciar estas diferenciões que afloram as identidades quando vemos
cores diferenciadas em portas e janelas, flores e jardins diferentes, azulejos que identificam o
lar, etc. e que reafirmam as diferenças entre a morada e o lar.
Segundo a alise de DaMatta, a casa demarca um espo definitivamente amoroso
onde a harmonia deve reinar sobre a confusão, a competão e a desordem. É um espo em
que não se pode, ou pelo menos se deve evitar, que sejam feitos comércios de compra, venda
ou troca e que as discussões sobre ideologias políticas sejam “ banidas das mesas e das salas
íntimas e, sobretudo, dos quartos. Quando inevitáveis, que estejam em áreas externas da casa
como varandas e quintais. Assim, em casa, os discursos são sempre conservadores e a moral,
tradicional, é defendida pelos mais velhos e pelos homens fazendo com que haja um
supremo reconhecimento pessoal dos membros constituintes da família.
Como conseqüência disto, uma espécie de supercidadania que contrasta
terrivelmente com a ausência total de reconhecimento que existe na rua. Se por um lado, a
casa tem toda esta representação simbólica, a “ rua, conforme citado anteriormente, possui
caractesticas diferenciadas. As pessoas são chamadas de “ povo” ou massa, é vista como
um local de luta e de batalha e onde o tempo, medido pelo relógio, corre em sentido
contrio ao desejo das pessoas.
Segundo DaMatta, casa e rua “ são como os dois lados de uma mesma moeda”. O que
se perde do lado da casa - sexo e trabalho - ganha-se do outro, na rua. Assim, a rua permite a
medião pelo trabalho que, para o brasileiro, é visto como um castigo. Neste sentido,
DaMatta remete este sentimento do brasileiro para o sistema escravocrata que vigorou no ps
por mais de trezentos anos, no qual a relação patrão e empregado perdura, até hoje, no sentido
da exploração do trabalho e sendo o patrão, o dono e até mesmo o responsável moral pelo
escravo/trabalhador”. Diferentemente do que acontece na sociedade americana onde a reforma
Calvinista transformou o trabalho numaão “ destinada à salvação” eo ao castigo.
Por fim, sobre as relações do brasileiro com a casa, a rua e o trabalho podem ser
sintetizadas pela citação de DaMatta:
60
Casa e rua são mais que locais sicos. São também
espaços de onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar e decidir
sobre ões, pessoas, relações e moralidades. Compensando-se
mutuamente e sendo ambas complementadas pelo espaço do outro
mundo’, onde residem deuses e espíritos, casa e rua formam os
espaços básicos através dos quais circulamos na nossa
sociabilidade. (p.33)
Outro espaço em que a questão do nacional é explicitada refere-se às raças. No Brasil,
esta discussão, que está presente na mídia constantemente a partir das ões afirmativas
empreendidas pelo poder público, se na valoração negativa ou positiva da miscigenação
das raças e no mito da democracia racial brasileira. Tal aspecto será bastante explorado no
nosso estudo de caso na medida em que, de todas as ações que foram empreendidas pela Rede
Globo de 1998 até abril de 2000, por ocasião das celebrações de 500 anos do descobrimento
do Brasil, em apenas duas das ações observamos a presença do índio e, nestes dois casos,
também com a presença do negro. Vale lembrar, que o negro protagoniza quatro outras ações.
Por esta razão, nos deteremos no aprofundamento da questão racial, no que tange o negro, a
sua representação social e as formas com que nos deparamos com o racismo, principalmente
quando estamos nos referindo ao aparecimento do negro na mídia, a fim de encontrarmos
fundamentão teórica que nos permita analisar as representações simbólicas desta raça no
contexto destas ões. Isto porque, tende-se a pensar e a generalizar a questão racial brasileira
a partir da relação brancos e negros, esquecendo-se, não raro, do índio.
3.2. As representações do Negro
Nunca a mídia destinou tanto destaque e espo para a questão racial como na
atualidade. Diariamente somos impactados com um sem número de matérias e artigos
jornalísticos que abordam a questão dos programas de ão afirmativa implementados pelo
poder político brasileiro. Todo esse discurso vem ao encontro da necessidade de inserção do
negro enquanto representante da cultura e da identidade nacional e, portanto, da necessidade
ou não, da implementação de legislação capaz de balizar as condições necessárias para que
essa inserção ocorra. Em recente matéria jornalística veiculada no jornal O Globo, em 8 de
abril de 2004 (p.13) , mais de 50% da população brasileira é constituída de negros ou
descendentes. Diante disso, pretendemos aqui, a partir da extração do pensamento sobre a
61
questão do racismo de alguns autores como Stuart Hall, de Roberto DaMatta, Homi Bhabha e
Miriam Chnaidermam buscar elementos teóricos, no âmbito da etnicidade, que nos permita
fazer uma análise das ações empreendidas pela Rede Globo e veiculadas por ocasião das
comemorações do aniversário de 500 anos de Brasil. Pretendemos mostrar que, apesar da
preocupão do poder público com a inserção do negro em espos ocupados pelos brancos e
o índio ter sido apresentado como ícone das comemorações de 500 anos de descobrimento,
nas ões empreendidas pela Rede Globo foi o negro que foi apresentado como representante
da identidade nacional brasileira.
Para que possamos entender e analisar a identidade nacional no campo das etnicidades
e, em especial, nas ões empreendidas pela Rede Globo por ocasião das comemorações do
aniversário de 500 anos de Brasil, é necessário que recorramos a alguns conceitos que
precederão à sua compreensão. Assim, neste capítulo, nossa proposta é a de examinar aquilo
que vamos chamar de “ identidade negra moderna devido ao fato do termo “ racismo” só ter
entrado no dicionário francês depois da ocorrência do nazismo
21
- e sua inserção no contexto
brasileiro. Vale lembrar, que no dicionário brasileiro Houaiss a expressão “ racismo” é
traduzida como o “ sistema que afirma a superioridade de um grupo racial relativamente aos
outros, preconizando, em particular, o isolamento destes no interior de um ps (segregação
racial) ou até visando ao extermínio de uma minoria (racismo anti-semita dos nazistas)”. O
que nos leva a crer que tal expressão deva ter sido incluída em nosso dicionário a partir do
nazismo e, portanto, tamm na modernidade. Em outras palavras, iremos partir da terceira
coordenada de apresentação de uma genealogia do momento presente, proposta por Cornel
West e descrita por Stuart Hall e que é caracterizada pela descolonização do Terceiro Mundo
a partir daquilo que propõe Franz Fanon quando inclui, aí, “ o impacto de direitos civis e lutas
negras na descolonizão de mentes de povos da diáspora negra
22
. Assim, esse estudo pode
nos permitir, tamm, analisar o discurso utilizado pela mídia, que inclui o negro e a sua
inseão como representante da cultura brasileira e da identidade nacional, estabelecendo
possíveis linhas de fuga com a recente legislação que obriga a inclusão, na publicidade e nos
programas de TV, de um percentual de representantes da raça negra.
21
Miriam Chnaidermam in Raça e Diversidade, Edusp, São Paulo, 1996 – p. 90-91)
22
HALL, Stuart. “What is thisblack in black popular culture ?
62
Inicialmente, e que veremos a seguir quando conceituarmos o racismo, parece
necessário problematizar a questão do negro e das difereas como uma marca dos tempos
atuais e que vem ao encontro da necessidade de preservação das identidades.
Inacreditavelmente, estamos vivenciando um período da história onde, apesar dos grandes
avaos tecnológicos, e portanto do desenvolvimento intelectual humano, estamos diante de
situações discriminatórias e que envolvem as etnicidades, como se estivéssemos retornando
ao período da inquisição e das perseguições só que num novo formato, camuflado, mas que
obedece a mesma lógica. E é nessa mesma vertente que o teórico Ciro Marcondes Filho
pensa, quando afirma que:
(...) numa época de civilização tecnológica altamente
desenvolvida, sobrevivem processos e fórmulas de barbáries (...).
Talvez estejamos hoje convivendo com novos processos e situações de
barbáries não catalogados na forma clássica (...) (p.8).
Ao pensarmos a questão da intolerância e do racismo no Brasil podemos concluir que
seus níveis são muito inferiores em relação aos observados em outras sociedades,
principalmente às sociedades européia e americana. Não obstante isso, uma diferença clara
na compreensão do que é lei. Parafraseando Roberto DaMatta, o Brasil é o País do não pode.
Aqui se legisla para tudo. São observadas uma infinidade de regras a serem seguidas e
nenhuma delas é respeitada. Nessa vertente e citando o livro Hello Brazil de Contardo
Caligaris, a pesquisadora Mirian Chnaiderman se remete à questão da aplicão da lei no
Brasil quando afirma que:
(...) no Brasil não lei, mas sempre uma ordem de
gozar, uma impossibilidade de limitação, e esse seria o destino do
Brasil por causa do lugar ocupado pelo País diante da Europa e dos
colonizadores” . (p.9)
Continuando seu pensamento, a autora cita Ls Cláudio Figueiredo, cujo texto foi
publicado em um Boletim de Novidades Pulsional e se referia, tamm, à questão legal, e
reafirma que:
Constrói-se a lei pela lei em vez de se voltar para o
real e o que se está precisando. As iias de Não e Estado passam a
ser fictícias e a transgressão pode ser um jeito de se apropriar de
63
algo que sempre veio de fora, uma tentativa de introduzir um rasgo
nesse legalismo e deixar de ocupar sempre o lugar do impróprio.
sempre uma lei feita para construir um real, mas as pessoas nunca
sabem muito bem onde estão; elas tentam ‘estar mesmo que seja via
transgressões. (p.10)
Enfim, com esse estudo procuraremos investigar se ou o razão para a
implementação de leis, no Brasil, que possam legitimar a participão de negros na mídia
brasileira ou se, em especial, nasões empreendidas pela Rede Globo por ocaso das
celebrações do aniversário de 500 anos do Brasil, o negro foi usado apenas de forma
caricatural e com o objetivo de (re)afirmar o discurso oficial que preconiza a “ democarcia
racial brasileira.
3.3. CONCEITUANDO O RACISMO - A leitura psicanalítica e a leitura do estereótipo
de Homi Bhabha.
Antes de abordarmos a questão da aplicabilidade da legislação brasileira no que tange
a utilização de negros na dia e, principalmente na TV, seria interessante partir da leitura do
senso comum e que aponta para o significado da palavra racismo como à discriminação dos
indiduos por raça. Em geral, a maior parte das pessoas tendem a associar essa expressão à
questões relacionadas às diferenças. Assim, o racismo é traduzido como se fosse ao
possibilidade de convivência com aquilo que nos parece diferente. É contra esse sentido que a
psicanalista Miriam Chnaidermam se posiciona quando afirma que o racismo só passa a
existir quando a aproximão entre o diferente e o mesmo. Ou seja, é ver o outro como
muito parecido e, por isso, sentir-se ameaçado na sua identidade
23
Assim, a autora afirma que a tranqüilidade por parte do sujeito quando as
diferenças são claramente evidenciadas e que o racismo se insere no contexto da perda da
identidade. É nessa vertente que a teórica Chnaidermam complementa:
É no momento que se tem medo de perder a identidade,
de uma perda de contorno próprio, que se precisa definir algo de
diferente no outro. É a união do diferente no mesmo que leva a
suportar mal o fato de ser o mesmo que se mostra em diferentes
estados. O que acontece é que se fabrica do modo mais arbitrário,
com os meios que se têm à mão um outro. Na marra. ( p.85-86).
23 Raça e Diversidade, EDUSP, São Paulo, 1996 – pág. 85.
64
Com efeito. Todas as vezes que lemos ou presenciamos algum fato relacionado ao
racismo percebemos que o motivo dessa manifestação se a partir da possibilidade de
igualdade social entre as partes envolvidas. Exemplo claro disso pode ser observado quando
algm, no Brasil, chama de “ criolo” ou de “ negão” um representante da raça negra. Não raro,
isso só acontece quando esse representante da raça negra reivindica seu lugar,
pressupostamente igualitário, na sociedade. Essa mesma lógica pode ser aplicada a todas as
outras formas de discriminação a partir das diferenças religiosas, sexuais, culturais e,
sobretudo étnicas.
É a partir desses tipos de reões que a autora se apropria da expressão
Estranhamente Familiar”, advinda da tradução para o francês da palavra “ unheimlich”
descrita num texto de Freud escrito em 1919
24
, para se referir a um “ estranho que é familiar, a
um mesmo que eu torno outro. É isso que está em mim, mas que vejo no outro como um outro
e que passa a ser estranho” e que está presente em todos nós e que se apresenta toda vez em
que temos a sensação de estarmos perdendo a identidade.
Outra leitura possível e que é feita acerca da discriminação/racismo é a que Homi
Bhabha faz em seu texto O Local da Cultura” onde, a partir do fetiche, da construção de
estereótipos sobre a raça negra, ele constrói sua perspectiva sobre a teoria do discurso
colonial.
Fundamentalmente, Bhabha evidencia como especificações e condições mínimas do
discurso colonial, enquanto aparato de poder, o fato de haver o reconhecimento e o repúdio de
diferenças raciais/culturais/históricas com o objetivo de “ apresentar o colonizado como uma
população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administração e instrução.”
25
Para Bhabha, dentro do aparato de poder colonial, um processo de
sobredeterminação funcional” onde estão relacionados os discursos da sexualidade e da raça
e onde se pode justificar tanto de forma estrutural como de forma funcional a leitura do
estereótipo racial do discurso colonial, no que tange o fetichismo. Como elo estrutural, o autor
afirma que:
24 ( FREUD, s.d.; 1973)
25 (p.111 – O Local da Cultura – Ed. UFMG – Belo Horizonte – 1998).
65
O fetichismo, como a recusa da diferea, é aquela
cena repetitiva em torno do problema da castração. O
reconhecimento da diferença sexual como pré condição para a
circulação da cadeia de ausência e presea no campo simbólico - é
recusado pela fixão em um objeto que mascara aquela diferea e
restaura uma presea original .(p. 116 )
Quanto ao elo funcional entre a fixação do fetiche e o estereótipo (ou o estereótipo
como fetiche), Bhabha o considera mais relevante que o elo estrutural porque:
O fetichismo é sempre um’ jogo’ ou vacilação entre a
afirmação arcaica de totalidade/similaridade em termos freudianos:
Todos os homens têm nis’; em nossos termos: Todos os homens
têm a mesma pele / raça/cultura’- e a ansiedade associada com a falta
e a diferença ainda para Freud: ‘Alguns não têm nis; para nós:
Alguns não têm a mesma pele/ra/cultura’. Dentro do discurso, o
fetiche representa o jogo simultâneo entre a metáfora como
substituição (mascarando a ausência e a diferea) e a metonímia
(que registra contiguamente a falta percebida) (p.116)
Assim, o fetiche ou o estereótipo permitem a formação de uma identidade que se
baseia tanto na dominação e no prazer quanto na ansiedade e na defesa” visto que é “ uma
forma de crença múltipla e contraditória em seu reconhecimento da diferença e recusa da
mesma. Diante disso, o estereótipo seria, no discurso colonial tanto para o colonizador
quanto para o colonizado, o desejo do sujeito de ter uma origem pura e até certo ponto
impossível e que é ameaçada pelas diferenças de raça, cor e cultura. Nesse sentido,
complementa o autor:
Minha afirmativa está contida de forma esplêndida no
tulo de Fanon: ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, onde a recusa da
diferea transforma o sujeito colonial em um desajustado – uma
mímica grotesca ou uma duplicão’que ameaça dividir a alma e a
pele não diferenciada, completa, do ego. O estereótipo não é uma
simplificação porque é uma falsa representação de uma dada
realidade. É uma simplificão porque é uma forma presa, fixa, de
representação que, ao negar o jogo da diferea (que a negação
através do Outro permite), constitui um problema para a
representação do sujeito em significões de relações psíquicas e
sociais” . (p.117)
Assim, complementa o autor ao citar, mais uma vez, Fanon: onde quer que vá, o
negro permanece um negro” (p.117) e possui todos os estereótipos que de antemão nós
66
sabemos e temos em mente. O fato deste estereótipo possuir a fixidez
26
e ter uma qualidade
fantasmática onde sempre se repetirão as mesmas histórias sobre, por exemplo, a
animalidade do negro”, a licenciosidade do negro”, etc.- é que levará à reafirmação da
discriminação enquanto efeito político do discurso colonial.
3.4. AFINAL, O QUE É IDENTIDADE E QUEM PRECISA DELA ? - A perspectiva de
Stuart Hall.
Em tendo conceituado a expressão “ racismo” e devido a polêmica e a dificuldade dos
teóricos na convergência de um conceito aceitável por todos, nos parece interessante avaliar o
conceito de identidade a partir do viés desenvolvido por Stuart Hall em seu texto “ Quem
precisa de identidade ? Publicado no livro “ Identidade e Diferença,
27
o autor critica a
diversidade de concepções teóricas que giram em torno dos conceitos de subjetividade e
identidade.
Nesse sentido, Hall citando e concordando com a posão assumida por Foucault
propõe pensar o sujeito por uma nova perspectiva “ deslocada ou descentrada no interior
do paradigma. Em outras palavras, é na busca de uma rearticulão entre sujeito e pticas
discursivas que a identidade/identificão deve ressurgir.
Para Hall, diante dessa falta de articulação, o conceito de identificação acaba por ser
pouco desenvolvido pela teoria social e cultural tal como o conceito de “ identidade. E é a
partir da linguagem do senso comum, que atribui à identificão a idéia de algo construído “ a
partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de caractesticas que são partilhadas
com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal.”(p.106), que Hall
apresenta um contraponto, a partir da abordagem discursiva a esse conceito do senso comum,
alertando para o “ naturalismo” dessa conceituação, que “ a identificação como uma
construção, como um processo nunca completado – como algo que está sempre em processo.
26 Para o autor o conceito de fixidez, enquanto signo da diferença cultural/hisrica/racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação
paradoxal, ou seja, ao mesmo tempo que conota rigidez e ordem imutável, tamm possui a conotação de desordem, degeneração, e repetição demoníaca.)
27 Tomaz Tadeu da Silva (org) Ed. Vozes, Petrópolis – 2000
67
Por esse viés, o autor define a identificação como “ um processo de articulação, uma
suturação, uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma
totalidade (p.106).
Continuando seu pensamento, o teórico laa mão do conceito do “ jogo da différance
e afirma que a identificão
... obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que,
como num processo, a identificão opera por meio da différance, ela
envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcão de
fronteiras simbólicas, a produção de ‘efeitos de fronteiras’. Para
consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora o
exterior que a constitui . ( p.106)
Assim, para Hall, toda vez que pensamos a identidade devemos ter em mente o cater
externo que interfere em sua formação e, portanto, devemos vinculá-la a um passado
histórico, “ aos recursos da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós
somos, mas daquilo no qual nos tornamos.(p.109)
Complementando sua posição e citando Gilroy
28
, Hall estabelece que a identidade está
vinculada à inveão das tradições tal qual preconiza Eric Hobsbaum da mesma forma
que com a própria tradição. A identidade, portanto, deveria ser lida não como uma ratificão
das tradições, mas sim como “ o mesmo que se transforma: não o assim chamado ‘retorno às
raízes mas uma negocião com nossas ‘rotas’ .
É dessa forma que se justifica o fato das identidades serem construídas. E nessa
vertente complementa o autor:
(...) as identidades são construídas dentro e não fora
do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em
locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações
e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas
específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de
modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da
marcão da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade
idêntica, naturalmente constituída, de uma identidade’ em seu
significado tradicional (...) (p.109)
É a partir dessa conceituação que podemos explicar o caso brasileiro no que tange a
questão da democracia racial. Trata-se de um discurso construído pelas esferas do poder
28 GILROY,P. – The black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. Londres: Verso,1994
68
público visando fazer-nos acreditar que não discriminação racial na sociedade brasileira.
Que podemos conviver pacificamente com todas as raças. Tal discurso leva à crença de que a
verdadeira identidade nacional inclui todas as etnias e, principalmente, a miscigenação de
todas elas.
3.5. O BRASIL E A CRENÇA DAS IDEOLOGIAS RACIAIS. - A leitura de Thomas E.
Skidmore
Não restam dúvidas que quando somos levados a pensar a questão do racismo no
Brasil tendemos a despotencializá-lo diante das informões que temos sobre a mesma
questão nos EUA e na África do Sul. Diante disso, julgamos que seja importante
estabelecermos uma comparação com os EUA, até pelo seu modelo hegemônico de cultura.
Assim, inicialmente procuraremos pensar a identidade nacional para que, mais a diante,
possamos estabelecer os pontos diferenciais do Brasil e dos EUA. E nesse viés, pensar a
identidade nacional sem citar a ideologia racial brasileira é algo que nos parece sem sentido.
Em seu texto “ O Brasil visto de fora”, o brasilianista Thomas E. Skidmore
29
aponta
para uma divergência radical entre as ideologias raciais no Brasil e nos EUA, por parte dos
acadêmicos, até mais ou menos 1920. Primeiramente, ressalta o autor, a crença no
branqueamento” levou os brasileiros brancos a permitir e até “ encorajar” a miscigenação, de
forma controlada, como forma de se obter uma sociedade mais branca. Tal comportamento,
continua o autor, diferia do comportamento americano que acreditava na ideologia de “ pureza
racial e que classificava os indiduos de brancos eo brancos.
Diante disso, Skidmore ressalta a dificuldade de, no Brasil, se estabelecer uma
ideologia racial e complementa:
(...) exceto por interfencia de seus comportamentos
institucionalizados.(...) não podemos tentar comparar aqui, nem ao
menos de forma superficial, as ideologias raciais populares
expressas, por exemplo, no folclore. (p.113)
29 SKIDMORE, Thomas E. – “O Brasil visto de fora”- Rio de Janeiro – Ed. Paz e Terra – 1994)
69
Em verdade, o autor ressalta, fundamentalmente, que enquanto a ideologia americana
previa, na cada de 20, a crea em diferenças biológicas raciais e, portanto, assumia uma
postura birracial, os brasileiros, em oposão, enfatizavam as diferenças culturais e, portanto
assumiam uma postura multirracial. Em verdade, todas essas doutrinas ‘científicas’ de
inferioridade racial, biológica e cultural foram, com o passar dos anos, rejeitadas pela maioria
dos cientistas nos dois países, embora continuassem sendo aceitas por longo tempo por
intelectuais e líderes políticos”. (p.115)
3.5.1- A crença da democracia racial brasileira. - a perspectiva de Thomas E. Skidmore
O ideal racial operado pela elite e que apresenta o Brasil como uma democracia
racial pode ser datado a partir de 1920 (p.133). A ausência de uma linha nítida de separação
entre brancos e o brancos a partir dos contrastes com a sociedade americana -, somada às
doutrinas do racismo científico desacreditadas no âmbito acamico – que vinham do
estrangeiro e a associão da idéia do processo de branqueamento” brasileiro, am do
reconhecimento internacional da falta de segregação no Brasil, levaram às elites ao discurso e
a crea da “ democracia racial”, conforme pode ser ilustrado a partir do discurso político do
presidente do Congresso Nacional, Senador Petrônio Portella, publicado no jornal O Globo,
de 6 de abril de 1977:
No Brasil, a ascensão na sociedade depende do
esforço individual, capacidade intelectual e rito ... Todos herdamos
atributos comuns e o que estamos construindo social, econômica e
politicamente prova a correção de nossa rejeão dos mitos de
superioridade racial. (p.132)
O discurso, acima, associado a própria ditadura militar vivenciada no peodo afirmava
e acalmava qualquer ato de subversão dessa ordem. Ninguém, além dos próprios acamicos-
muitas vezes perseguidos- ousava comentar algo diferente dessa possível “ democracia racial.
Entretanto, pós regime militar, a sociedade brasileira e visitantes atentos comaram a
perceber que os critérios raciais brasileiros não eram claramente definidos em nossa
sociedade. O legado multirracial com a inclusão mulatos, mestos, pardos, etc. passou a
70
encobrir a diferea e a classificar, atras de um sistema de “ estratificação social onde a
ideologia do branqueamento poderia levar à aspiração de uma maior mobilidade social, os
brancos e os o brancos.
Em suma, complementa o autor, o espectro de cores existentes no Brasil levou toda e
qualquer discussão sobre as relões raciais a uma leitura soft e como demonstração disso o
teórico complementa:
... o Brasil é multirracial, não birracial. Isso torna as
relações raciais mais complexas do que nos Estados Unidos, e mais
complexas do que a maioria dos europeus imagina. Do ponto de vista
dos que desejam estudar essa sociedade multirracial, o fato mais
importante é que, até quinze anos atrás, não havia virtualmente dado
quantitativo algum para analisá-la” . (p.152)
30
3.6. O PRECONCEITO NA MÍDIA – ONDE ES O NEGRO ? SÓ LEGISLANDO ?
3.6.1. A ESTICA DO BRANQUEAMENTO NADIA E, EM ESPECIAL, NA TV
É através de um terrorismo estético que, cada vez mais, os discursos afirmam que a
beleza é branca. O lado mais evidente desse terrorismo que ataca na surdina é a exclusão da
estética negra nos setores mais influentes da sociedade, incluindo-se aí, e principalmente, a
mídia televisiva que, devido à ausência na quase totalidade dos casos, despreza aqueles que
coincidentementeo possuem a pele branca.
Eventualmente, podemos ter a sensação de que o que foi dito anteriormente não é
verdade. Isso se pelo fato de vermos, principalmente na TV, momentos esporádicos com
algumas personalidade negras que talvez, com muito sacrifício, tenham conseguido um
espo de destaque no mundo midiático. Refiro-me aqui, a personalidades como a jornalista
Glória Maria, a modelo Naomi Campbell e, talvez, a outros cuja dificuldade para se elencar
nos foge momentaneamente à memória mas que, de uma forma ou outra, conseguiram driblar
a surda ditadura do branqueamento.
Propositalmente, se forem excldos os atores negros que, não raro e via de regra, ao
aparecerem na TV, estão representando papéis de empregados, escravos, etc. e, portanto,
estão representando papéis de negros, e excluirmos também os representantes da música e
dos esportes, áreas em que os negros se apresentaram nas ações da Rede Globo, até porque é
71
nesses dois aspectos e pelo fato da inserção do negro ser vista pela sociedade a partir de sua
expressividade/musicalidade e suas tradições no âmbito esportivo, veremos que muito pouco
se observa a presea da raça negra na mídia televisiva. Vale lembrar que é permitida a
asceão deste negro na sociedade apenas nessas duas situações: música e esportes. E é nesse
sentido que Stuart Hall em seu texto “ What is this ‘black’ in black popular culture?,
corrobora com essa iia no que tange a música e salienta:
Embora os negros e as tradições e comunidades
negras apareçam e sejam representados na cultura popular sob a
forma de deformados, incorporados e inautênticos, continuaremos a
ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre,
as experiências que ficam por trás deles. Em sua expressividade, sua
musicalidade, sua oralidade e na sua ateão rica, profunda e
variada à fala; em suas inflexões para o vernacular e o local; em sua
rica produção de contras-narrativas; e, sobretudo, em seu uso
metafórico do vocabulário musical, a cultura negra popular tem
permitido vir à tona, dentro de modos mistos e contraditórios, até da
cultura popular mais comercial, os elementos de um discurso que é
diferente outras formas de vida, outras tradições de representação.
(p. 7)
Com a extração das situações descritas acima, teremos um outro momento em que o
negro irá ter evidência na mídia. Refiro-me, aí, ao carnaval, à alegoria. Entretanto, se
observarmos a forma de sua inserção poderemos, tamm, enquadrar esta aparição na
categoria musical/tradições. Assim, podemos afirmar, sem medo, que na TV brasileira a
vitória, no sentido figurado, é sempre da estética/ideologia do branqueamento am da
afirmão da dita “ democracia racial que, com a pulverização de alguns momentos de
inseão de negros, nos causam a sensão de estarmos diante de um meio de comunicão,
onde qualquer um, independentemente de raça, pode ocupar um lugar de destaque em sua
programação.
É importante ressaltar, tamm, que a mídia televisiva o pode ser vista como o
vilão” da estória. Em verdade, ela apenas obedece a mesma lógica que reflete a rejeão da
negritude e a promão da negritude e dos seus modelos de estética e bom gosto alicerçados
pelo discurso hegemônico de superioridade branca. Para se ter uma idéia do que acontece fora
do espo midiático, mas dentro das relações sociais, como no mercado de trabalho, os
homens brancos ganham, em média, quatro vezes mais do que as mulheres negras, e 20,56%
30 Este livro é datado de 1994.
72
das crianças negras de 10 e 14 anos estão precocemente trabalhando. Esse índice é cerca de
50% superior ao das crianças brancas.
31
Evidentemente que, ao despontecializar o caráter discriminatório da TV brasileira,
como foi feito acima, em momento algum retiramos a iia e a constatação do seu caráter
elitista. Sabemos que desde sua origem, as classes dominantes é que controlam a programão
e, portanto, apresentam apenas aquilo que é do seu interesse; sem qualquer possibilidade de
estímulo à alise, à crítica e à reflexão dos telespectadores. Some-se a isso, o discurso
televisivo que, portanto, enveredará para a negação das diversas nuances étnicas brasileiras e
para o adestramento” do telespectador no sentido de criar uma mentalidade que obedece aos
parâmetros do discurso europeu que, fundamentalmente, preconiza a leitura do branco sobre o
negro. Além disso, é importante que se destaque o alto poder de sedução midiático, no sentido
de incutir comportamentos e idéias no seu target, que considera que todos os temas
apresentados pelos meios de comunicão são relevantes, importantes e desprovidos de
qualquer carga ideológica tendenciosa. o raro, presenciamos cenas que atestam e
(re)afirmam tal assertiva quando ouvimos algm comentar algo e se posicionar do mesmo
modo que o veículo de comunicão se posicionou. Como exemplo, algo do tipo: “ estou
falando isso porque eu vi isso na novela ou no Jornal Nacional”. A dia é, para o brasileiro,
a boca de Deus.
Assim, se é notória a influência dos meios de comunicão na formação do ideário das
massas, o discurso que preconiza a branquitude sobre a negritude, transmitido por tais meios
é, cada vez mais, cristalizado na sociedade de massa.
Se, por um lado, a TV se utiliza predominantemente da estética do branqueamento em
sua programão, por que a Rede Globo de Televisão, nas ações empreendidas no Brasil 500
e que se utilizavam do meio TV, teria se utilizado de programas com a participação maca de
negros? Neste ponto, estamos nos referindo às ões: “ Primeiro Mega-Show em São Paulo
(laamento do Projeto), ao Show “ Coração Brasileiro” (realizado em Paris), e ao Show
31 Dados retirados da matéria Renda média de brancos é quatro vezes a de negros e do quadro ilustrativo da matéria Situação social dos negros no
Brasil hoje” da Folha de São Paulo, 8 de abril. 1995, p. 3 – 4.)
73
Mama África” ocorrido em Salvador/BA, todos transmitidos em cadeia nacional e com a
presença maciça de cantores e personalidades negras.
32
3.6.2. A ESTICA DO BRANQUEAMENTO NA PUBLICIDADE
Pela onipresença da publicidade no cotidiano brasileiro julgamos necessário destacar a
quase inexistência da representão do negro, visto que a publicidade se apresenta como
modelo de projeção e identificão da sociedade. Diante disto, o fato de estarmos diariamente
em contato com os comerciais publicitários e não vermos cidadãos negros, nos leva a afirmar
que a publicidade contribui/potencializa, e em muito, a discriminação do negro na dia. E,
no caso do objeto deste trabalho, a presença do negro nas ações empreendidas, mesmo que de
forma discreta, será muito observada. Diante disto, discorreremos sobre a presea do negro
na publicidade brasileira.
Assim, se a discriminação do negro na mídia o torna praticavelmente invisível, na
publicidade isto é mais assustador. A lógica da sociedade, dos empresários e dos publicitários
e que aponta para o fato do negro ser sinônimo de pobre e que, portanto, é igual a consumo
de subsistência -, é arraigada no pensamento destes, em toda a sua extensão. A norma seguida,
na maior parte dos casos, e em vigência determina a opção pelo grupo racial branco tanto
quando o assunto é o consumo, quanto nos processos de escolha de modelos que
protagonizarão a campanha e, até mesmo, da opção pela estética branca da própria
publicidade. Entenda-se como estética branca o uso de motivos/approaches que estão
vinculados à cultura branca e que são utilizados nas campanhas publicitárias. Além disso, não
se cogita, na maior parte dos momentos, a possibilidade do negro poder ser considerado como
uma força econômica e, consequentemente, ser visto como consumidor de produtos em
potencial (heavy-user).
A postura dos produtos da publicidade descrita cima pode, até certo ponto, parecer um
contra-senso quando constatamos que, segundo o IBGE, sessenta por cento da população
32 Todas estas ações serão detalhadas e analisadas no capítulo 4.
74
brasileira é constitda por negros
33
. Para se ter uma iia desse cenário, em 1991, o
pesquisador Frederico Subervis publicou o relatório de um levantamento sistemático que foi
realizado por ele em 1500 comerciais (incluindo repetões) levados ao ar em 59 horas de
programação do horário nobre das três maiores Redes de TV, nas capitais do Rio de Janeiro e
Minas Gerais, em 1998, e chegou às seguintes conclusões:
1) os negros só aprecem em 39 comerciais (excluindo as repetições) e os índios brasileiros
foram encontrados em apenas dois comerciais;
2) Dos 39 comerciais em que os negros apareciam, em nove comerciais os negros apareciam
em papéis com fala;
3) Nesses comerciais com fala, a maior parte, cinco, negros representavam papéis
secundários;
4) Portanto, em quatro comerciais eles representavam papéis proeminentes, sendo um deles
celebrando os 100 anos da Abolição da Escravatura e nos outros três, anunciando produtos
da indústria da música.,
Os papéis positivos só existiam, portanto, em publicidade do governo e da indústria de
entretenimento.
34
Esse exemplo de alise quantitativa dos comerciais veiculados na TV
brasileira apenas reforçam a idéia de que é muito pequena a participão de negros na
publicidade, principalmente a partir da constituição racial da população.
Entretanto, ao realizarmos uma enquete com alguns dos mais renomados publicitários
cariocas sobre a justificativa para tal cerio, a maior parte desses profissionais afirmam que
hoje essa situação já melhorou muito quando comparamos com os comerciais veiculados nas
cadas anteriores à década de 90. Para a publicitária e Diretora de Contas Publicitárias Laís
Chamma (MPM, Publicitá &Esquire/Alliance, Propeg, Telemar, W/Brasil), a “ descoberta do
poder de consumo das classes CD e, por conseqüência o investimento das empresas
anunciantes no desenvolvimento de produtos apropriados para a raça negra, principalmente
aqueles vinculados à categoria higiene pessoal e beleza (personal wash & beauty), elevaram a
33 Dados do IBGE/1995)
75
utilizão de personagens negros na publicidade nacional”. Para a publicitária, o uso de
negros se faz obrigatória ao anunciarmos, por exemplo, xampús, cremes ou hidratantes para
mãos da marca Vasenol, destinados aos cabelos encaracolados, à massagem em cabelos
crespos ou para hidratação de mãos negras, respectivamente. O Diretor de Criação Eduardo
Correa (MPM, Ogilvy & Mader, Publicitá & Esquire/Alliance, Propeg) concorda com a
opinião de Laís e salienta que a estética do branqueamento ainda é uma realidade, apesar de
em menor escala nos dias atuais, e relembra um “ case” da loja de roupas C&A que inovou
colocando como âncora de sua comunicão um modelo negro (Sebastian). Para confirmar
sua opinião acerca da ditadura da estética do branqueamento, Eduardo comenta que o uso do
modelo negro levou à decodificação, por parte do público receptor da mensagem publicitária,
de que a loja vendia roupas para as camadas mais pobres da população (down grade de
marca), obrigando-os à necessidade de fazer um up-grade de imagem a partir da contratão
de um outro protagonista. No caso, a modelo internacional Gisele Buenchem.
O publicitário e vice-presidente de Atendimento e Planejamento da Propeg/Rio,
Ronaldo Conde, vai mais além. Ele ressalta que não obstante o aumento do poder de consumo
das classes CD e do lançamento de produtos para negros, o aumento da participação de negros
na publicidade é, também, reflexo da organização dos grupos afro-brasileiros (ONG s) que
tentam criar, muitas vezes com sucesso, a afirmação e a conscientização da raça negra no
sentido de assumir a cor da sua pele e, com isso, a publicidade, por estar a reboque e buscar
retratar a realidade da sociedade, se apropria da idéia que o negro faz parte da identidade
nacional brasileira e, portanto, deve estar representado, tamm, nas pas publicitárias,
principalmente naquelas que são solicitadas pelos governos municipal, estadual e federal.
Com efeito. A pressão exercida pelas ONG s junto ao poder político nos últimos dois
anos, associada ao discurso da democracia racial e da formação da identidade nacional, levou
o governo a estabelecer a criação de uma série de leis de ão afirmativa que garantiriam a
participão e a inserção do negro na sociedade brasileira, conforme veremos a seguir.
34 Frederico Subervis – Velez & Omar – “Negros ( e outras etnias) em comerciais da televisão brasileira – uma investigação aleatória, Comunicação e
Sociedade, ano X, São Paulo, 17 de ago, 1991.
76
3.6.3. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SE CURVA À NECESSIDADE DE INCLUSÃO
DO NEGRO. MAS AFINAL, ONDE ES O NEGRO NA PUBLICIDADE?
Apesar de todos os publicitários entrevistados sobre a questão da inserção do negro na
publicidade concordarem com o aumento da participação da raça negra enquanto modelo
simbólico em comerciais e admitirem que, atualmente, algumas empresas parecem estar
esquecendo os preconceitos e tudo que envolve a discriminação racial em função do
crescimento da participação do negro na economia e, portanto, na geração de lucros para as
empresas, onde está o negro, se excluirmos a categoria de produtos esportivos e de grupos
musicais?
A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República tem a
orientação de evitar quaisquer atos discriminatórios nas ações de publicidade, no âmbito de
órgãos, entidades e sociedades controladas pelo Poder Executivo.
35
E é a partir desse discurso
político, focado na identidade nacional e no populismo, que podemos responder o porque das
campanhas governamentais possrem negros como modelos.
Entretanto, no ano de 2001, o mercado publicitário foi impactado com uma polêmica
lei que obriga as TV s, agências de publicidade e produtoras de cinema a escalar os afro-
descendentes, em suas produções. Essa lei foi idealizada pelo Deputado Paulo Paim (PT-RS),
que criou uma cota de 25% para atores negros ou mulatos no elenco de filmes, programas de
TV, pas de teatro e telenovelas. Já nos filmes publicitários, a porcentagem sobe para 40%
do total de atores, modelos e figurantes. Ou seja, pelo projeto, se uma pa teatral, por
exemplo, tiver quatro atores, um deles deve ser negro.
Segundo o autor do projeto, o sistema de cotas pode ajudar a corrigir distorções
existentes no mundo artístico. Para ele, a proposta tem o objetivo de fazer justa aos
discriminados, criando um espaço compensatório e, tamm, pode levar a uma ampliação do
mercado de trabalho.
36
A Comissão de Ciência e Tecnologia da mara dos Deputados aprovou, no dia 28 de
mao de 2001, o projeto do deputado gaúcho.
35 Site da Presidência da República – www.planalto.com.br
77
As cotas vão vigorar por um prazo determinado. Devem durar o tempo necessário para
que se crie uma cultura de valorização do negro na sociedade brasileira. Caso a lei o venha
a ser cumprida, a emissora, produtora ou agência de publicidade será condenada a pagar a
multa e a prestar serviços comunitários de combate ao racismo. A multa comaria em R$5
mil reais e aumentaria conforme a freqüência das infrações.
O lado desfavorável da implementação dessa lei é a questão da obrigatoriedade. A
maior parte dos autores de novela, produtoras de cinema, publicitários, ainda se encontram
confusos quanto à aplicabilidade dessa lei. Eles alegam ser muito desagravel uma lei definir
o elenco e acreditam que esta deveria ser uma descoberta da sociedade e não uma imposição
da justiça.
Como vimos na introdução deste capítulo, a questão legal no Brasil é algo que nem
sempre é respeitada. Apesar da lei Paim já estar em vigor, continuamos a procurar o negro na
publicidade, pelo menos na mesma proporção da composição étnica brasileira. E, ao
consultarmos aqueles publicitários sobre a questão legal, todos informam que, no processo de
produção de campanhas publicitárias, o cogitam e não se preocupam com a aplicabilidade
da lei de cotas. Tal atitude vem ao encontro de nossa percepção sobre a não aplicabilidade da
lei. Esse cerio de não controle da aplicão da lei por parte do governo, associado à postura
de não cumprimento das leis, por parte dos brasileiros, nos leva a crer que tal ação não tenha
passado de um discurso populista no sentido de se angariar votos dessa numerosa classe racial
de eleitores. Mas, até que ponto a lei que regulamenta o uso da imagem do negro na
publicidade e interfere no processo de produção publicitária élida, se a ascensão das classes
CD, no que tange ao consumo e à proliferação do número de produtos destinados ao negro, já
está fazendo com que, naturalmente, haja o aumento da participação do negro na publicidade?
Creio que a resposta para essa questão esteja exatamente na vocação eleitoreira dessa
lei. Até porque outras leis de ão afirmativa deveriam ser criadas, aplicadas e controladas a
fim de que pudéssemos, desta forma, garantir o aumento do poder de consumo das classes
menos favorecidas e, como conseqüência, proporcionarmos o aumento gradual da
participão do negro na publicidade brasileira.
36 Jornal O Globo, 29 de março de 2001 – 2a edição
78
Entretanto, como haamos comentado anteriormente, as campanhas institucionais
governamentais, até pelo fato de estimularem o discurso da democracia racial, se utilizam do
negro como forma de afirmação da identidade nacional. E nesse sentido, a fim de avaliar a
inseão do negro nas ações empreendidas no Projeto Brasil 500 executado pela Rede Globo
em comemoração ao aniversário de 500 anos de Brasil e de verificar a importância do uso da
imagem do negro, enquanto representante da identidade nacional, é que faremos, a seguir,
algumas considerações de cunho mais teórico, a partir da leitura de Renato Ortiz e Roberto
DaMatta, sobre a democracia racial brasileira e outros aspectos que constituem a nossa
cultura.
79
3.6.4. A Democracia Racial Brasileira
Segundo Renato Ortiz, as relões raciais no Brasil, são “ obscurecidas pela ideologia
da democracia racial. Em realidade, este autor discorda quanto à existência de uma
democracia racial brasileira, apesar de admitir a possibilidade de haver uma ideologia de
miscigenação democrática na história brasileira mais recente.
É com base nesse viés que Ortiz, em seu livro “ Cultura Brasileira e Identidade
Nacional” justifica seu pensamento e o sustenta a partir das ideologias que exprimem a
realidade social, em nível simbólico, desde o final do século XIX. Naquele momento, a busca
da identidade começa a aparecer no movimento romântico que buscava construir um
modelo de ser nacional.
Neste sentido, Ortiz exemplifica com o romance O Guarani” ao mostrar que a
miscigenação do índio com o branco exclui o negro, cuja identificão se restringia, apenas, à
força de trabalho, destitdo, assim, de qualquer forma de cidadania. Ortiz cita, ainda, que até
mesmo as análises do folclore escritas na década de 70 exclam a figura do negro e
acrescenta:
A escravidão colocava limites epistemológicos para o
desenvolvimento pleno da atividade intelectual. Somente com o
movimento abolicionista e as transformações profundas por que passa
a sociedade é que o negro é integrado às preocupações nacionais.
Pela primeira vez pode-se afirmar, o que hoje se constitui num
trsmo, que o Brasil é o produto da mestiçagem de três raças: a
branca, a negra e a índia. (p.38)
É neste sentido que Roberto DaMatta se refere em seu livro “ Relativizando”, à “ bula
das ts raças” como mito constituinte da nacionalidade brasileira. Ele estabelece como marco
da sua existência o peodo de transição que o Brasil vivia na virada do século XIX, que a
título de ilustração,refere-se à mudança do sistema econômico –de escravista para capitalista-,
da forma de organização de monárquica para republicana -, e a busca de uma solução para o
problema da mão-de-obra, incentivando a imigração européia.
80
Roberto DaMatta coloca, também, que se tivermos como crea o fato de que o Brasil
foi feito por este “ triângulo racial” estaremos imaginando que estes “ contingentes humanos se
encontraram numa espécie de carnaval social biológico”, o que o parece ser verdade. Em
realidade, DaMatta sintetiza como o Brasil foi feito:
... por portugueses brancos e aristocráticos, uma
sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro
gido de valores discriminatórios. Os portugueses já tinham uma
legislão discriminatória contra os judeus, mouros e negros, muito
antes de terem chegado ao Brasil; e quando aqui chegaram apenas
ampliaram estas formas de preconceito. A mistura de ras foi um
modo de esconder a profunda injustiça social contra negros, índios e
mulatos, pois, situando no biológico uma questão profundamente
social, econômica e política, deixava-se de lado a problemática mais
básica da sociedade. (p.46)
DaMatta continua afirmando que, de fato, é mais cil dizer que o Brasil foi formado
por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que
somos uma sociedade hierarquizada. Sociedade que, segundo o autor, “ opera por meio de
gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro, pobre e
inferior, uma série de critérios de classificação”. (p.47)
Num ponto, Ortiz e DaMatta concordam. Há a possibilidade de existir uma
democracia racial no Brasil se estiver alicerçada em bases jurídicas e não apenas na crea
mítica da democracia racial. Caso contrário, usaremos as misturas raciais positivadas, os
mulatos e mestiços, como forma de legitimar desigualdade em relão aos negros. Neste
caso, podemos nos referir a algumas leis que foram aprovadas para coibir o preconceito:
empregados negros e domésticos podem subir por elevadores sociais, um terço dos atores de
propaganda na Bahia devem ser negros, as cotas para negros em Instituições de Ensino
Universitários Públicos, além das legislações de protão aos índios.
Por fim, o “ mito das ts raças”, por suas caractesticas enquanto mito, tende a se
apresentar como eterno e imutável, além de retratar, de certa forma, a sociedade em que foram
criados.
81
3.7. A Identidade Nacional Brasileira a Partir da Comida e das Mulheres
Se observarmos a culiria brasileira, pela ótica do brasileiro, chegaremos à
constatão de que o Brasil tem a melhor comida do mundo, assim como a melhor mulher e o
melhor futebol. Com efeito. Na sociedade brasileira a comida nos remete a algo relacionado
ao prazer, ao relacionamento entre amigos, familiares e pessoas que compartilham de nossa
intimidade. Em geral, o sabemos comer sozinhos e estas relões sociais devem ser
degustadas e prazerosamente desfrutadas como as comidas que elas estão saboreando”.
É assim que DaMatta se refere ao jeito brasileiro de comer que inclui uma mesa
bastante farta, composta pelo maior mero possível de pessoas, que devem conversar
assuntos que sejam alegres e é o local onde a harmonia deve reinar. Para o autor, a
compreensão do significado da comida, para o brasileiro, deve passar pelo conceito do
antropólogo Claude Lévi-Strauss quando se refere ao “ cru e ao cozido”, não como processos
naturais, mas sim, como modalidades que ajudam a classificar coisas, pessoas e, até mesmo,
ações morais importantes especialmente quando se relaciona, simbolicamente, a mulher com
a comida e o “ doce com o feminino”.
Numa leitura mais filosófica e universal, o autor relaciona o cru a um estado de
selvageria, a própria natureza, enquanto que o cozido se relaciona ao “ universo socialmente
elaborado” onde a sociedade humana o define como parte de sua cultura e ideologia. Em
outras palavras, o ato de cozer os alimentos permite que os pratos sejam elaborados a partir
de caractesticas particulares de cada sociedade. Assim, a iguaria que denominamos cozido
rios vegetais, legumes e carnes misturados -, o churrasco- que é servido com diversos
acompanhamentos cozidos, o feio com arroz, o bife com batatas fritas, a feijoada
caracterizam, junto com outros pratos emblemáticos da culinária brasileira também cozidos, a
identidade cultural, até porque, é ideologicamente compartilhada por todos os brasileiros.
Nesta perspectiva, DaMatta afirma que os brasileiros têm a percepção e fazem
distinções entre o que é alimento e o que é comida. Segundo ele, o alimento é percebido como
tudo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva” enquanto que a comida é “ tudo que
82
se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade”.
Assim, os alimentos pertencem a todos os seres vivos de forma universal. Já a comida define
um domínio e ajuda a estabelecer uma identidade, seja pessoal ou grupal e, por conseguinte,
define um grupo, uma classe social indicando, inclusive, estilos regionais e nacionais “ de ser,
fazer, estar e viver”.
Ainda sobre o tema comida, DaMatta, numa abordagem mais geral, a associa ao sexo
e apresenta uma iia que é bastante valorizada na cultura brasileira. Segundo ele, é o homem
que, simbolicamente, “ come a mulher. Sua justificativa para esta expressão advém do
conceito, socialmente aceito, de que é a mulher quem cozinha, dá os alimentos, faz a comida e
que, portanto e a partir destes conceitos, permite a hierarquização do sexo. Neste sentido,
DaMatta vai am e acrescenta:
A comida, como a mulher ( ou homem em certas
situações), desaparece dentro do ‘comedor ou do ‘comilão’. Essa é
a base da metáfora para o sexo, indicando que o ‘comido’ é
totalmente abrado pelo ‘comedor. A relação sexual e o ato de
comer, portanto, aproximam-se num sentido tal que indica de que
modo nós, brasileiros, concebemos a sexualidade e a vemos, não
como um encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que
seriam indivíduos donos de si mesmo), mas como um modo de
resolver esta igualdade pela absorção, simbolicamente consentida em
termos sociais, de um pelo outro” . (p.60)
3.8. Carnaval: O Império de Eros - A Expressão Máxima do Profano Brasileiro
O nacional se expressa ainda na relação com a festa e com a cultura popular. O
carnaval é visto e definido pelo povo brasileiro como sinônimo de “ liberdade e de uma forma
utópica de inexistência de “ miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Trata-se de um
momento em que a vida deixa de ser vista e vivida como um peso e passa a ter uma nova
perspectiva que consiste, fundamentalmente, em viver o excesso, a expressão máxima do
prazer e da riqueza.
Roberto DaMatta adjetiva o carnaval como catástrofe/inversão do mundo” a partir da
premissa de que a sensação, por parte do povo brasileiro, de que todos são iguais ou, pelo
83
menos, poderiam ser iguais quando o assunto é a distribuição do prazer e o uso do corpo
como instrumento máximo de prazer e alegria.
É no carnaval que o brasileiro substitui os trajes do cotidiano, que uniformizam eo a
sensão de ordem, e passam a usar a fantasia que liberta, “ des-constrói”, abre todas as portas
e acessos e permite a passagem para outros lugares e espos sociais.
Imaginar estas possibilidades de trânsito na esfera do social numa sociedade
hierarquizada como a nossa é, no nimo, experimentar uma sensação que o cotidiano o
oferece como possibilidade. Assim, DaMatta escreve e acrescenta:
Se no mundo diário estamos todos limitados pelo
dinheiro que se ganha (ou não se ganha...), pelas leis da sociedade,
do mercado, da casa e da família, no carnaval e na fantasia temos a
possibilidade de virar onipotente e ser tudo o que se tem vontade...
por estar vivendo num mundo assim constitdo, onde as regras do
mundo diário estão temporariamente de cabeça para baixo, que posso
ganhar e realmente sentir uma incvel sensação de liberdade. (p.75)
Assim, o carnaval, de forma utópica, permite um movimento social numa sociedade
engessada e que não admite a mudança de lugar ou a troca de posição em sua estrutura. É o
lugar de inversão do mundo, onde o povo brasileiro num período específico do ano, busca a
felicidade, a riqueza, a liberdade e, sobretudo, o sentimento de igualdade diante de toda a
sociedade.
3.9. As Festas da Ordem - O Povo Brasileiro Bem Comportado
Em sentido oposto e diferentemente ao descrito anteriormente quando abordamos o
carnaval, as Festas da Ordem, que por excelência se referem aos ritos vicos e religiosos,
visam celebrar a própria ordem social, “ com suas diferenças e gradações, seus poderes e
hierarquias”, promovendo a distância entre o sagrado e o profano, entre a estratificação social
e o respeito às instituições e símbolos nacionais.
Assim, as festas religiosas são organizadas e comandadas por igrejas das mais diversas
ordens, a partir de valores que são sempre estabelecidos e institucionalizados de cima para
baixo e/ou de baixo para cima, de forma verticalizada. Em meio aos participantes desses
rituais a mistura entre o sagrado e o profano. O povo sabe, apenas, que o que é sagrado
84
atua nos us e, no caso da Igreja Católica, seus santos ajudarão e agraciarão a todos os que se
fizerem merecedores de suas graças.
Segundo DaMatta, o espo religioso permite o que ele denomina como carnaval
devoto”, isto é, assim como o carnaval tradicional permite a mistura e o tnsito em todas as
escalas sociais, a Igreja tamm o permite. Por isso, vemos juntos o rico e o pobre, o poderoso
e o fraco, o sadio e o doente, o homem e a mulher, o santo e o pecador, a criança e o adulto, o
crente e o freqüentador esporádico. Entretanto, o que fundamentalmente diferencia as festas
da ordem e o carnaval é que todas essas misturas são “ hierarquicamente ordenadas, de forma
que o comportamento seja caracterizado pela contrição e pela solenidade, que é
materializado a partir do controle rígido do gestual, corporal e verbal no sentido de se
promover a uniformidade e a obediência dos fiéis ou servidores, próprias de situações onde a
formalidade é um imperativo.
Quanto ao poder do sagrado, festas e dias religiosos em que se deve seguir um ritual
predeterminado, DaMatta recorre ao sociólogo francês Émile Durkheim e acrescenta que
este poder é que permite, às pessoas, a percepção entre o mundo diário, suas rotinas e
tendências à inércia e a ‘indiferenciação’ e a distância, deste cotidiano, em relação a tudo que
vem dos us (p. 84). Assim, a limitação dos atos físicos como: falar baixinho, andar sem
arrastar os pés, usar uma linguagem mais rebuscada, vestir as “ melhores” roupas, etc., levam
ao respeito e a ordem e deixam bem claras as diferenças entre u e terra e acentuam o temor
a tudo que cerca as divindades.
Os ritos da ordem o se esgotam nos eventos religiosos. Eles se referem, tamm, aos
ritos vicos, promovidos pelo Estado, e aos ritos de passagem que se encontram no mundo
social como, por exemplo, as festas de formatura, funerais, nascimentos, casamentos,
batizados, posses de cargos públicos ou privados, crismas, etc.
Quanto às comemorações militares, como as paradas que são realizadas em datas
comemorativas nacionais, DaMatta chama a atenção para a expressão “ bater contincia que,
já de icio, denota como significado o ato de “ conter-se, “ controlar-se”, “ dominar-se. A
ênfase destas comemorações, diz ele, recai sobre a ordem, a regularidade, a repetição, a
marcha ordeira, no ntico cadenciado, o controle do corpo” e nos remete à iia de
sacricio e disciplina”, onde as diferenciações sociais são rigorosa e hierarquicamente
85
expressas durante todo tempo. Em outras palavras, a separação nítida a partir da posição
geográfica ocupada pelas autoridades em relação à posição ocupada pelo que denominamos,
genericamente, de povo. Sabe-se, exatamente, quem é ator e quem é expectador e não a
menor possibilidade de mobilidade, exceto se houver a quebra de protocolo.
Já as comemorações dos ritos de passagem seguem, fundamentalmente, a mesma
lógica. Há sempre um centro das atenções, o uso de uma roupa diferenciada daquela usada no
cotidiano, a conteão dos gestos e do comportamento e, por fim, algo simbólico e que
legitima o evento: seja um bolo de aniversário, um anel de formatura, um banho na cabeça de
uma criaa ou qualquer outro simbolismo, que venha a reafirmar e a solidificar os elos
sociais entre o ator principal e seus convidados e o sentido de fraternidade e união, peculiares
da sociedade brasileira.
3.10. O Indivíduo e a Pessoa no Brasil - O Jeitinho Brasileiro Permeando as Relações
Sociais
Outra caractestica do nacional passa pelo famoso jeitinho brasileiro”. Tal noção
também se analisada quando entrarmos no estudo de casos. Assim, em seu livro,
Carnavais, malandros e heróis”, Roberto DaMatta sugere que o brasileiro possui um dilema
que consiste, essencialmente, na dualidade de posões em que é obrigado a transitar. Em
outras palavras, trata das oscilações entre o indiduo – sujeito que deve seguir as leis
universais impostas - e a pessoa, que refere-se às situações onde cada um tenta se defender
como pode utilizando seu sistema de relões pessoais.
Em meio a estes dois pólos, o autor inclui a “ malandragem, o jeitinho e o famoso e
antipático sabe com quem está falando?. Mostra como o brasileiro pensa a lei e de que forma
ele busca a sua desmoralização e desqualificação em contraponto a outras sociedades,
especialmente a americana, a francesa e a inglesa, onde as leis são feitas de forma a o
contrariar ou aviltar o bom senso destas comunidades e, por isso, são seguidas sem que haja
chance para a corrupção buroctica e a ampliação da desconfiança do poder público.
86
DaMatta diz que o brasileiro fica fascinado ao ver o comportamento dos cidaos dos
pses de primeiro mundo em relão à obediência e respeito às leis. Ao admirar este
comportamento, o interpreta/traduz como sinal de “ civilização e disciplina, educação e
ordem. Segundo DaMatta, a leitura que se faz daquelas sociedades desenvolvidas é a de que
as leis o são feitas para explorar ou submeter o cidao e nem servem como instrumento
para corrigir e reinventar a sociedade” como acontece no Brasil. Aqui, a legislação diária é
regida pelo “ não pode e estabelece uma relão de submissão do cidao em relação ao
Estado. Desta forma, o restam opções que não sejam a busca de um modo ou “ jeito” para
que se saia do “ não pode” para o “ pode”, e é neste sentido, que o brasileiro desenvolve o seu
jeito, peculiarmente, pacífico e até mesmo legítimo, de conseguir resolver os seus problemas.
Sobre este ponto, o autor destaca, como exemplo da noção de “ malandragem”, a figura do
despachante, um mediador entre o Estado e o cidadão.
O “ malandro” seria o profissional do “ jeitinho” e da arte de sobreviver nas situações
mais adversas e hostis possíveis onde, o uso de expedientes”, de histórias e de “ contos do
vigário” que nada mais são do que modos engenhosos de tirar partido de certas situações”
levam a umaão concreta que se posiciona entre a lei e a desonestidade, num “ modo
amguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais”.
Outra caractestica que DaMatta descreve quando pensa o malandro remete para o
fato de ele se sentir bem e se entrosar em todos os lugares por onde circula. Entretanto, possui
uma área onde é, particularmente, privilegiado. Trata-se da região do prazer e da
sensualidade, zona que o malandro é o concretizador da boemia e o sujeito especial da boa
vida. Em outras palavras, o malandro busca o máximo do prazer e do bem-estar com o
menor nível de trabalho possível. Para o autor, o malandro é um “ personagem nacional”,
disseminado em todo território brasileiro, mas que tem uma razão de ser, conforme comenta
no período abaixo:
A malandragem, assim, não é simplesmente uma
singularidade inconseqüente de todos nós, brasileiros. Ou uma
revelação de cinismo e gosto pelo grosseiro e pelo desonesto. É muito
mais que isso. De fato, trata-se mesmo de um modo jeito ou estilo
profundamente original e brasileiro de viver, e às vezes sobreviver,
num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis
formais da vida pública nada têm a ver com as boas regras da
moralidade costumeira que governam a nossa honra, o respeito e,
87
sobretudo, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e aos
compadres. Num mundo tão profundamente dividido, a malandragem
e o ‘jeitinho’ promovem uma esperança de tudo juntar numa
totalidade harmoniosa e concreta. Essa é a sua importância, esse é o
seu aceno. está a sua razão de existir como valor social. (pp. 104-
5)
3.11. O Sagrado Para o Brasileiro
A religião é, com certeza, algo que tamm está arraigado à cultura brasileira e à iia
de nação. Somos, sem dúvida, um povo bastante religioso. DaMatta distingue os espos entre
os quais os brasileiros transitam: a casa, a rua e um terceiro, o outro mundo”, ligado à
experiência religiosa. Há o espo da “ rua onde conseguimos as formas de sustento da
família. O da casa, onde são estabelecidas as relões morais e, como veremos a seguir, o
espo do “ outro mundo”, que refere-se àquele mundo que é habitado pelos mortos, deuses,
orixás, anjos, santos, almas, Deus, Virgem Maria e Jesus Cristo. Enfim, mundos que,
geograficamente, estão inscritos em espos como os das igrejas, capelas, ermidas, terreiros,
centros espíritas, sinagogas, templos, cemitérios e demais espos que claramente nos
separam da vida terrena e da vida dos “ céus.
No universo da religião, a forma de se comunicar com o além e seus habitantes se
atras da súplica. É a partir das rezas, preces e discursos, realizadas através das cantorias,
que são levados, de forma coletiva, os pedidos para o u e para as instâncias superiores que,
estabelecendo e reafirmando as hierarquias, distinguem o que é mais nobre e poderoso do que
é mundano e material.
A análise de DaMatta vai mais além. Segundo ele, o brasileiro quando pensa em agir
individualmente atrela suas súplicas a objetos (velas, presentes, oferendas), dando origem às
promessas que, a partir dos sacrifícios impostos para sua realização, levariam a uma ação
mais positiva por parte do sagrado, no que tange à solão de algum problema terreno. Na
dimensão do sagrado que aparecem as explicações para a justificativa da fatalidade: do por
que uma pessoa da família ficou doente, sofreu um grave acidente, muitas vezes fatal, ou por
que se passa uma situação aflitiva e desesperadora em vel material. Não raro, podemos
88
confirmar este fato quando assistimos, por exemplo, reportagens sobre acidentes ou tragédias
em qualquer telejornal e astimas creditam à Deus todas as agruras sofridas.
Todos esses elementos que caracterizam as representações do nacional brasileiro: a
relação com a casa, a rua, o trabalho; o mito a democracia racial; a relão com a comida e
com as mulheres, as festas profanas e sagradas, a malandragem, o jeitinho e a relão com o
sagrado, descritos anteriormente, servirão de base para nossas alises pontuais do nacional
no Projeto Brasil 500 anos, empreendido pela Rede Globo de Televisão, por ocaso da
celebração dos 500 anos de descobrimento do Brasil.
89
4. A Construção de identidades na publicidade – A abordagem de
John B. Thompson
Em seu livro, A Mídia e a Modernidade, Thompson propõe que a publicidade seja
reinventada. Publicidade pensada aqui como tornar públicas as decisões da esfera política.
Para isto, o autor recorre aos dois sentidos da dicotomia existente entre o público e o privado
e remete à origem de tais conceitos ao século XVI, onde a iia de público significava a
atividade ou autoridade relativa ao estado e dele derivada” enquanto que privado se
associava às “ atividades ou esferas da vida que eram excluídas ou separadas daquela”. A
partir destes dois conceitos surgiu, nos séculos XVIII e XIX, a iia de sociedade civil como
sendo “ constituída da esfera de indivíduos privados, organizações e classes reguladas pelo
direito civil e formalmente distintas do estado”. Assim, o privado o só incluiria a sociedade
civil, mas tamm a esfera das relações pessoais “ centradas principalmente, embora não
exclusivamente, na falia. Sintetizando estes conceitos, Thompson acrescenta:
O domínio privado inclui organizões econômicas
privadas operando num mercado econômico e visando, de alguma
maneira, fins lucrativos, como também uma vasta gama de relações
pessoais e familiares que podem ser informais ou formalmente
sancionadas por lei (por exemplo, o matrimônio). O domínio público
inclui uma rie de instituições estatais e paraestatais: das
corporações legislativas, judiciais à polícia, serviços militares e
secretos, dos serviços sociais a uma variedade de organizações
econômicas de propriedade do estado, como as indústrias
nacionalizadas e as empresas de utilidade pública. (p. 111)
37
Apesar de aceitos, estes dois conceitos, por parte dos teóricos, Thompson relata uma
nova distião que emergiu a partir do discurso sócio-político ocidental. Trata-se de dar
sentido ao “ público” como “ aberto” ou “ acessível ao público”. Em outras palavras, o que
pode ser visto e percebido pelas pessoas, o que é “ realizado na frente dos espectadores” e o
que é permitido que seja visto ou ouvido pelas pessoas. Privado, ao contrário, é o que se
esconde dos olhos dos outros, o que é falado ou feito em sigilo ou privativamente num grupo
restrito de pessoas. Neste sentido, argumenta Thompson, a dicotomia entre os dois primeiros
37
Entre o domínio do público e do privado surgiram organizações que não pertencem ao Estado, nem
se situam inteiramente no domínio do privado. São associações não lucrativas de benefincia e
caridade, associações de benefício mútuo, organizações econômicas administradas por cooperativa,
etc.
90
Conceitos apresentados e e estes dois últimos conceitos têm a ver com publicidade
versus privacidade”, com abertura versus segredo”, com visibilidade versus invisibilidade.
Neste sentido, Thompson explica que na Grécia Clássica, os cidaos se reuniam para
tomar decisões políticas e debater questões em lugares públicos, como praças, onde as pessoas
que estivessem presentes naquele local e naquela hora, tinham a possibilidade de ver, de ouvir
e, até mesmo de interferir, nas decisões (desde que fossem cidadãos de Atenas, maiores de 20
anos excluiam-se aí, mulheres, escravos e estrangeiros). Thompson considera que estas
assembléias constituíam um tipo distinto de esfera pública na qual a publicidade (ou
visibilidade) do poder se baseava na capacidade dos indiduos de se ocuparem num debate
uns com os outros num lugar comum e de chegarem a decisões coletivas atras de um
consenso da maioria.(p.112).
O desenvolvimento da mídia criou novas maneiras de se pensar a publicidade e a
disponibilidade oferecida peladia faz com que a publicidade de indivíduos, ações ou
eventos, não esteja mais limitada à partilha de um lugar comum.
Surgem, assim, as novas formas de “ publicidade mediada e que, originalmente, têm
no surgimento da imprensa, o início de sua trajetória, onde o ato de se tornar algo público saía
da limitação dialógica, observada nas relações face-a-face, e dependia cada vez mais do
acesso aos meios de produção e transmissão da palavra escrita. Assim, conhecer ou participar
dos eventos públicos independia da interação face-a-face e, através da leitura que não permitia
nenhuma interação e incursão direta, a ligação entre a produção de matérias escritas e seus
receptores se dava, fundamentalmente, numa relação de “ interação quase mediada, e o tipo de
publicidade criada pela palavra impressa era definida em parte por esta relação”.
Diante disto, Thompson estende seu raciocínio, que começou pela imprensa, até as
mais recentes formas de comunicação eletrônica inclui-se aí o dio e a televisão onde o
fenômeno da publicidade também se separou da idéia de conversação dialógica em espos
compartilhados e “ ligou-se de forma cada vez mais crescente ao tipo de visibilidade produzida
e alcançada pela mídia”. Indo mais além, o teórico enfatiza que a publicidade feita na
televisão permitiu um campo de visão completamente diferente do campo de visão observado
nas relões face-a-face. Apesar de depender do foco da câmera o que na relação face-a-
91
face me permite olhar para onde eu quero o campo televisivo permite mais alcance e faz
com que indiduos assistam a fenômenos que acontecem “ em contextos muito distantes”.
Após a contextualização do surgimento da publicidade como forma de divulgação das
informações da esfera pública e retomando a dicotomia existente entre o público e o privado,
Thompson estabelece que para que se reinvente a publicidade sejam observadas duas
vertentes: a primeira em vel institucional, onde a publicidade implica a crião de novas
formas de vida pública que estão fora da alçada do estado” e a segunda que se refere a questão
da visibilidade versus a invisibilidade, onde a publicidade exigi que se supere a noção de
estar presente ao evento ou fato.
Nesta primeira vertente, o autor propõe que haja um “ pluralismo regulado” dos meios
de comunicação. Trata-se, segundo ele, de estabelecer:
... uma estrutura institucional que abriga e garante a
existência de uma pluralidade de independentes organizões da
mídia. É um princípio que leva a rio a tradicional ênfase liberal na
liberdade de expressão e na importância de sustentar as instituições
da mídia independentemente do poder do estado. Mas é um princípio
que também reconhece que o mercado deixado a si mesmo não pode
garantir, necessariamente, as condições de liberdade de expressão e
promover a diversidade e o pluralismo na esfera da comunicação.
Para garantir estas condições e promover estes objetivos, podem ser
necessárias a interveão no mercado e a regulamentão dos
processos mercadológicos, de tal forma que não se enfraqueçam a
diversidade e o pluralismo pela concentração de poder econômico e
simbólico” . (p.209)
Para explicar sua posição, o autor recorre a Habermas quando mostrou que o
desenvolvimento dos meios impressos de comunicão tiveram um papel importante no
aparecimento de novas formas de vida pública (advindas de organizões que incluíam desde
classes trabalhadoras até a vida social burguesa dos salões, cafés e “ clubes”) e no
aparecimento de um novo tipo de opinião pública” que era diferente das opiniões do estado e
que exercia um forte poder crítico contra elas, dando origem a diversos meios impressos que
puderam controlar os abusos do poder corrupto e tinico dos governos do século XIX.
Esta liberdade da imprensa, de manifestar opiniões e pensamentos que muitas vezes
vai de encontro com os regimes vigentes, para o autor, “ é um aspecto vital da ordem
democrática moderna e que ainda não é uma caractestica unânime, nos dias de hoje em
muitos Estados-Nação.
92
Complementando sua citão, o autor reconhece e critica o fato de haver uma
concentração de recursos na indústria da mídia o que acarreta a formação de grandes
monopólios de comunicão global, que atuam num diversificado ramo de atividades de
entretenimento e que ameaçam a liberdade de expressão, não pelo exercício do poder do
Estado, mas em função dos interesses comerciais mercadológicos que tem, na receita
publicitária, um forte aliado.
A segunda vertente de sua análise recai nas novas formas de publicidade mediada que
têm como principal caractestica o fato de o estarem mais localizadas no espaço e tempo:
elas subtraíram a visibilidade de ões e eventos do compartilhamento de um local comum”.
A publicidade mediada tem um caráter não dialógico, onde produtor e receptor assumem
papéis diferenciados e o processo de intercâmbio simbólico atras da dia possui
caractesticas que o distinguem de uma interação dialógica.
Sobre esta segunda vertente, Thompson estabelece uma ctica que vai de encontro ao
pensamento de alguns teóricos que consideram que o modelo tradicional de encarar a vida
pública é a única e legítima forma de ver a vida pública em relão as novas formas de
publicidade. Thompson sugere que tal hipótese pode ser verdadeira em alguns poucos casos
neste século XX e, neste sentido, restringe sua consideração a alguns contextos da vida social
e política, tais como, “ reuniões e encontros públicos de vários tipos que se assemelham com
as assembléias clássicas da Gcia Antiga.
Quanto ao fato da comunicão mediada ser uma extensão do modelo tradicional,
Thompson tamm se posiciona de forma refratária a esta iia. Segundo este autor, não é
possível supor que a comunicão mediada que é estabelecida pelo dio, televisão, livros e
jornais possa ser considerada, como propõem alguns teóricos, como uma simples conversação
e que só difira da conversação ordiria na situação face-a-face, e em termos de escala: a
conversação mediada envolve milhões eo dois ou três. Thompson reconhece que a
comunicação telefônica que se resume numa conversa. Entretanto, ele rebate a posão destes
teóricos, alegando que não nenhuma forma de diálogo na comunicação mediada de massa.
Os ouvintes ou telespectadores ou leitores se posicionam como receptores de mensagens
produzidas e transmitidas independentemente de sua capacidade potencial de resposta.
93
Para Thompson, a única forma de encarar a publicidade mediada seria colocando de
lado o modelo tradicional face-a-face, com ênfase na comunicação dialógica partilhada em
lugares comuns e tentar nossa maneira de ver a vida pública do enfoque tradicional. Assim,
o autor propõe a alise das caractesticas da publicidade mediada, tais como, “ sua força e
sua fraqueza, as oportunidades abertas por ela e os riscos a ela associados.
Diante disto, o autor, concentrando-se fundamentalmente no tipo de publicidade criada
pelos materiais impressos, como livros e jornais, e pela mídia eletrônica, rádio e televisão,
afirma que existe um novo tipo de publicidade que ele descreve como o espo do visível”
que é traduzido como: um espaço o localizado, não dialógico e aberto, no qual as formas
simbólicas mediadas podem ser produzidas e recebidas por uma pluralidade de outros não
presentes.(p. 213)
Espo o localizado, porque o se refere a locais espaciais ou temporais
particulares. É um espo” porque é uma esfera aberta de possibilidades “ na qual formas
simbólicas mediadas podem aparecer”. Não podemos denominar de “ lugar”, porque não se
refere a um local determinado onde os indiduos possam agir e interagir. Complementando
seu pensamento, o autor acrescenta:
Assim como o desenvolvimento dos meios de
comunicação permite que formas simbólicas circulem além dos
contextos de sua produção, assim também ele subtrai o fenômeno da
publicidade do local comum compartilhado: a esfera da publicidade
mediada se estende no tempo e no espaço, e é potencialmente global
em abrangência” . (p.213).
Quanto aos programas que permitem a interação entre produtor do programa e
receptor de mensagem, que caracterizaria a leitura dialógica da publicidade mediada e que
poderiam colocar em risco a tese do autor, Thompson se defende afirmando que, apesar de
haver este diálogo, este acontece entre um, dois ou um pequeno grupo de espectadores e/ou
ouvintes. A grande massa da audiência permanecerá em estado de recepção sem que haja,
nenhum tipo de interfencia da parte delas.
Continuando seu pensamento sobre a publicidade mediada, Thompson se refere a ela
como sendo um espo aberto”, a partir do momento em que a permissão para que seja
criativa e incontrolável. O autor, caracteriza a publicidade mediada por “ espo” porque
94
permite a manifestação de novas formas simbólicas, novas palavras e imagens podem
aparecer de forma repentina (expressando informões antes ocultadas) e, por fim, onde “ as
conseqüências da visibilidade o podem ser prevenidas nem controladas. Thompson
acrescenta:
A publicidade mediada é aberta no sentido de que os
conteúdos dos materiais simbólicos não podem ser inteiramente
demarcados com antecencia embora o grau de controle dependa
do tipo de organizão das instituições da mídia e de suas relações
com os poderes econômico e político. E quando os materiais
simbólicos se tornam disponíveis na mídia, suas conseqüências são
indeterminadas. Umas poucas frases que aparecem inicialmente na
última página de um jornal local podem ser transferidas para a
imprensa nacional e divulgadas como uma grande história; uma
imagem filmada por um fotógrafo amador pode ser comprada pelas
redes de televisão e transmitida ao mundo todo; e as conseqüências
destes e de outros procedimentos semelhantes não se podem
determinar com antecencia. (p. 214)
Apesar das reflexões de Thompson estarem associadas a publicidade mediada no que
se refere às informões que são divulgadas pela mídia e que tornam públicas as questões
institucionais, podemos aproveitar seus conceitos, adequando-os ao objeto de estudo deste
trabalho. Achamos, portanto, oportuno lembrar algumas das mensagens mediadas e que nos
levam a ter o sentimento de pertencimento à nação brasileira e que servio, oportunamente,
como pano de fundo para a análise das ações empreendidas pela Rede Globo, por ocaso da
celebração de 500 anos do descobrimento do Brasil.
Assim, partindo-se do pressuposto que os meios de comunicão passaram a dar uma
dimensão o dialógica às mensagens veiculadas e que os meios massivos, no caso brasileiro,
representam a “ boca de Deus e, portanto, são formadores/disseminadores das representões
sociais descreveremos, a seguir, como a dia constrói/desconstrói ou atualiza/produzem uma
iia e um sentido de história/memória e de que forma, esta própria mídia constitui/aumenta o
sentimento do nacional.
Nesta perspectiva, julgamos importante recorrer, em uma primeira análise, ao ponto de
vista do filósofo Gianni Vattimo quando ele aponta a história enquanto interpretão e que,
em verdade, o que existe é possibilidade de construção de uma narrativa histórica e o a
história. Mais do que isso e no caso da celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil,
trabalharemos aqui com a dia como construtora/proponente/agente/articuladora de uma
95
narrativa de mudança ou construção de uma nova história, a partir da proposta da Rede Globo
de articular o rompimento do momento presente com o momento passado e a sugestão de
construção do futuro histórico brasileiro. Na realidade e conforme veremos no capítulo 6, a
proposta desta emissora foi a de, se utilizando do público como agentes, celebrar o início de
um novo futuro para o Brasil.
96
5 – A visão hermenêutica da história – A perspectiva de Gianni
Vattimo.
Compreendemos a hermenêutica como a filosofia que, em essência, pode ser traduzida
pelo fenômeno da interpretão. Para Vattimo, quer dizer “ de um conhecimento do real que
o se pensa como espelho objetivo das coisas ‘lá for a , mas como preensão que traz consigo
a marca de quem ‘conhece’.
38
Num mundo regido pela dia, o podeamos nos furtar de analisar o Projeto Brasil
500 anos empreendido pela Rede Globo de Televisão a partir da perspectiva do filósofo
itlaiano Gianni Vattimo e a sua proposta de colocar a hermenêutica como a filosofia do
mundo atual. Com efeito, a partir do que Nietzche profetizava no século XIX quando dizia
que “ não existe fatos, somente interpretões”
39
é que Vattimo, ao dialogar com outros
teóricos como Heidegger e Richard Rorty, defende seu pensamento.
Diante disso, nos parece bastante acertado que nos tempos atuais e a partir do processo
de dissolução da história, recorramos a uma perspectiva intepretativa dos fatos que marcaram
as comemorações e a tentativa da espetacularização do aniversário de 500 anos e a sua relação
com o reforço identitário do nacional brasileiro.
Para que tais reflexões possam se realizar, iremos recorrer a alguns conceitos que
foram lançados por Vattimo por ocaso da exposão do seu pensamento. Trabalharemos
com a iia do “ pensiero debole, do enfraquecimento da metasica e a nossa tentativa pela
busca do mundo do real, da formação de um mundo das mercadorias, das imagens e, em
suma, de um mundo fantasmagórico dos mass média e, por fim, da sua posão quanto à pós-
modernidade e a dissolão dos pontos de vista centrais, os quais, para Jean François Lyotard,
citado por Vattimo, são denominados como a dissolão das grandes narrativas” históricas.
38
VATTIMO, Gianni. A Tentação do Realismo. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2001.
39
Idem p. 17.
97
5.1 - Mas afinal, o que é o pensiero debole (pensamento fraco) na pós-modernidade e por
que ele se opõe, na modernidade, ao pensamento forte da metafísica clássica? — a leitura
de Gianni Vattimo.
Vattimo, ao falar em pensamento debole tem em mente o enfraquecimento do
pensamento metasico, cartesiano. Por debole ele entende algo pluralístico e imcompleto,
algo não finito. Trata-se de um pensamento que não tem como proposta a síntese, apesar de
ser dialético. Em verdade, há a investigão da tese e da hipótese sem que haja nenhum
comprometimento em se chegar a síntese.
Para esse filósofo italiano, as certezas absolutas obtidas a partir de um fundamento
único da realidade, tal qual se fazia na modernidade, devem ser revistas e, hoje, são
necessárias leituras mais amplas e mais largas de interpretão e de reflexão sobre a realidade
e o ser.
Assim, a partir dos marcos que caracterizam a entrada da sociedade na era pós-
moderna, qualquer pensamento ao nascer já seria debole por essência. Para Vattimo, o
existe uma única forma de se ver a realidade, tal qual propõe a metasica e, se o moderno
possui um pensamento objetivo, o pós-moderno teria um pensamento subjetivo e, portanto,
debole. Em outras palavras, tentar ver alguma coisa por uma única perspectiva é, no mínimo,
uma miopia na contemporaneidade e é, por isso, que Vattimo vai operar pelo viés da
hermenêutica.
Ao conceituarmos o pensamento debole, nos parece importante pontuar a pós-
modernidade e a possibilidade do conceito de uma sociedade transparente, questionado por
Vatttimo, até porque a hermenêutica surge com destaque nesse contexto.
Assim, baseado nas proposições feitas em seu texto A Sociedade Transparente,
pretendemos apresentar suas convicções acerca do pós-moderno.
98
5.2 - Teamos uma sociedade transparente pós-moderna? O pensamento de Gianni
Vattimo sobre a pós-modernidade.
Apesar da grande maioria dos autores ainda estar discutindo a inserção ou ao
inseão da sociedade na Pós-modernidade, para Vattimo, o conceito de pós-moderno faz
sentido quando o associamos ao fato de vivermos em uma “ sociedade generalizada, a
sociedade dos mass media
40
e que isso, por si só, já seria um motivo para o fim da
modernidade.
Entretanto, o autor elenca como essenciais outros fatores que tamm apontariam para
o fim da modernidade. Para ele, ser moderno é o ser reacionário. Isto é, não ser “ agarrado
aos valores do passado, à tradição,`as formas de pensamento ‘superadas’ . Ser moderno é o
que caracteriza toda a cultura moderna (p.7).
Remontando o icio da Idade Moderna (século XV), Vattimo salienta que, com o
desenvolvimento das artes e, portanto, do artista enquanto “ gênio criador, “ abriu-se um
caminho para o culto pelo novo, pelo original e, com o passar dos séculos, a evidência deste
culto ao novo e ao original, na arte, se liga à perspectiva pós-iluminista que considerava a
história humana como um progressivo processo de emancipação, como a cada vez mais
perfeita realizão do homem ideal (p.8).
Nessa vertente, Vattimo exercita seu pensamento e faz meão a uma história de
cater unitário, observada na modernidade e questiona esse viés unitário quando descreve:
Se a história tem esse sentido progressivo, é evidente
que te mais valor aquilo que é mais avançado em termos de
conclusão, aquilo que está mais perto do final do processo. No
entanto, a condição para conceber a história como realizão
progressiva da humanidade autêntica, é que se possa vê-la como um
processo unitário. Só se existe a história é que se pode falar de
progresso. Pois bem, a modernidade, na hipótese que proponho,
termina quando múltiplas razões não parece possível falar de
história quando como qualquer coisa de unitário” . (p. 8)
40
VATTIMO, Gianni. A Sociedade Transparente. Portugal: Ed. Relógio D’Água, 1992, p. 7.
99
Com efeito. O que vemos hoje na história é exatamente o seu desmoronamento em
relação ao seu caráter unitário. A cada dia novas leituras são feitas e mudam o curso da
história, como por exemplo, a recente descoberta de sucatas de um submarino japonês que foi
bombardeado pelos americanos, duas horas antes do ataque japonês à Pearl Harbor. O que se
conhecia da narrativa histórica apontava para um ataque súbito e que teria pego os americanos
de surpresa. As evincias descobertas e amplamente divulgadas pela mídia podem apontar
para o conhecimento, por parte dos americanos, de que os japoneses se encontravam na costa
americana e que, talvez, o ataque a Pearl Habor possa ter sido uma forma de retaliação ou
resposta do governo japonês ao ataque do seu submarino.
Voltando-se para entender a questão da impossibilidade de um caráter único na
história e parafraseando Benjamin, Vattimo acrescenta que o curso unitário da história é uma
representão do passado e é construída pelas classes sociais dominantes. Portanto, é, sem
sombras de dúvidas, uma narrativa: “ não uma história única, há imagens do passado
propostas por pontos de vista diversos, e é ilusório pensar que existe um ponto de vista
supremo, global, capaz de unificar todos os outros(p. 9).
Continuando seu pensamento, o filósofo italiano afirma que há, hoje, um, processo de
dissolão da história e reflete:
(…) a crise da iia de história traz consigo a da idéia
de progresso: se não um curso unitário dos acontecimentos
humanos, também não se poderá sustentar que eles avançam para um
fim, que realizam um plano racional de melhoramento, educão,
emancipação” (p. 9).
Tal reflexão é justificada até porque os acontecimentos históricos seriam narrados, não
só por uma classe dominante, como citamos anteriormente, mas, tamm, a partir da
perspectiva de um certo ideal de homem o homem europeu moderno, que se percebia
como a mais evoluída e a melhor forma da humanidade. Essa colonização dos povos
primitivos pelos europeus “ em nome do bom direito da civilização superior” foi suplantada e
passou a o mais sintetizar a verdadeira essência do homem. “ De qualquer homem. O ideal
europeu de humanidade passou a ser mais de um ideal de humanidade diante de diversos
outros ideais.
100
Assim, prossegue o autor em seu raciocínio, além do fim da crise do colonialismo e do
imperialismo europeus, outro fator determinante para a dissolão da idéia de história e,
portanto, da modernidade, foi o advento da sociedade de comunicação.
Nessa vertente, Vattimo surge com o conceito, em termos interrogativos, de uma
Sociedade Transparente, o que para nosso trabalho de análise hermenêutica do discurso
observado nas ões do Projeto Brasil 500 anos empreendido pela Rede Globo de Televisão,
nos parece fundamental, e afirma:
1) “ que no nascimento de uma sociedade pós-moderna um papel determinante é
desempenhado pelos mass media. (p. 10)
2) “ que os mass media caracterizam esta sociedade o como uma sociedade mais
‘transparente, mais consciente de si, mais ‘iluminada’, mas como uma sociedade
mais complexa, até mais caótica”(p. 10).
3) “ que é precisamente neste relativo ‘caos’ que residem as nossas esperaas de
emancipão” (p. 10).
Para o filósofo, mais importante que pensar a história como curso não unitário a partir
da crise do colonialismo e do imperialismo europeu e, consequentemente, se estabelecer o
final da modernidade, é reputar ao nascimemento dos meios de comunicão de massa o fato
de servirem como marco de passagem de nossa sociedade para a pós-modernidade.
Por esse viés, Vattimo defende a iia de que o final da modernidade se ,
principalmente, pelo advento dos meios de comunicação de massa e a conseqüente dissolão
dos pontos de vista centrais os quais, citando Lyotard, os chama de as grandes narrativas”.
41
É nesse momento de disseminação dos meios de comunicação de massa que Vattimo
afirma ter havido a explosão e multiplicação das “ visões do mundo”. Em outras palavras, a
possibilidade de se mostrar/apresentar diversas formas e discursos das culturas, modus
vivendi, etc.
41
Jean François Lyotard designa como as grandes narrativas o discurso iluministaque pressupõe
a hisria da humanidade buscando clarear ao conhecimento além do domínio do homem sobre a
natureza e o discurso idealístico onde havia a progressiva intensificação da compreensão do
espírito do homem, no qual o homem se tornaquase idêntico a Deus. Para Lyotard esses dois
discursos se enfraquecem em rao do desenvolvimento da ciência e da cnica.
101
Estabelecendo uma crítica a Theodor Adorno que previa que o dio, e depois a
televisão, pudesse permitir um efeito, até certo ponto demoníaco, de “ formão de ditaduras e
de governos totalitários capazes de exercer um controle minucioso sobre os cidadãos, (…)
atras de visões do mundo esteriotipadas(p. 11), Vattimo constata que mesmo nos Estados
Unidos, onde monopólios e concentração de centrais capitalistas se observa, nas últimas
cadas, a emergência das vozes de diversas minorias, culturas e subculturas de todas as
formas.
Essa polifonia dos discursos das minorias e a emergência das subculturas é o efeito
mais evidente dos mass media que, associadas às transformações radicais do imperialismo
europeu, determinam a passagem da nossa sociedade à pós-modernidade. (p. 12)
Continuando o seu pensamento, o autor afirma que apesar da pluralidade dos discursos
culturais permitidas pelos mass media, o chegamos precisamente ao ideal de uma socidade
transparente. Isso porque vivemos em um mundo em que a norma é a reprodução exata da
realidade, da perfeita objetividade e da total identificão do mapa como território. Diante
disso, “ a intensificação das possibilidade de informão sobre uma mesma realidade, nos seus
mais variados aspectos, torna cada vez menos concebível a própria idéia de uma realidade( p.
13).
Em outras palavras, as diversas narrativas observadas nos diferentes meios e veículos
de comunicão nos faz pensar que não se pode existir a iia de uma realidade. Como foi
dito por Nietzche, “ no fim, o mundo verdadeiro se transforma em fábula (p.13)
Com efeito. Se observarmos comparativamente as notícias jornalísticas por ocasião
das comemorações do aniversário de 500 anos do Brasil podemos observar que alguns meios
e veículos desqualificam, o tempo todo, qualquer forma de comemoração. Seus discursos
apontavam para Comemorar o quê?. Já outros veículos enalteciam o fato do Brasil estar
completando seus 500 anos e estabeleciam, inclusive, comparações que envolviam os ganhos
acumulados com o passar dos 500 anos.
Vattimo, em sua alise, não se prende, apenas, à questão dos discursos midiáticos da
realidade. O autor propõe que na sociedade midiatizada ao invés de termos um ideal de
102
emancipão
42
modelado pela alta consciência completamente definida (metasica),
deveamos ter um ideal de emancipação que tem antes, na sua base, “ a oscilação, a
pluralidade e que, desta forma, colocaríamos fim ao desgaste do próprio “ princípio da
realidade.
Nesse sentido, o autor complementa:
O homem, hoje, pode finalmente tornar-se consciente
de que a perfeita liberdade não é a de Espinosa, não é como
sempre sonhou a metafísica conhecer a estrutura necessária do
real e adequar-se a ela (…) Nietzche mostrou que a imagem de uma
realidade ordenada racionalmente com base num fundamento (a
imagem que a metafísica teve sempre do mundo) é apenas um mito
traqüilizador’ próprio de uma humanidade ainda primitiva e
bárbara. (p. 13 e 14)
Assim, o mundo real tornou-se para nós o mundo das mercadorias, das imagens e, em
suma, o mundo fantasmagórico dos mass media (p. 14) e é nesse hiato que podemos criar o
espo para as campanhas publicitárias e para o próprio discurso jornalístico. No caso
específico e objeto desse estudo, o projeto empreendido pela Rede Globo de Televisão por
ocasião das comemorações pelo aniversário de 500 anos de Brasil, foi espetacularizado e os
eventos, talvez, devam ter contribuído, junto ao público, para o (re)construir ou para o
(re)atualizar o ideário de uma identidade nacional. Até porque, todas as ações empreendidas e
capitaneadas pela Rede Globo no campo do entretenimento, estavam com seus objetivos
direcionados para o espetáculo. Shows de música com símbolos emblemáticos da música
popular brasileira (Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Chitãozinho e Xororó, entre outros) e que
nos forçavam a acreditar que a identidade nacional brasileira se resumia às festas, ao carnaval,
à alegoria. No caso das ões educativas, todas estavam vocacionadas para o início de uma
nova era. Para a construção de um futuro do Brasil. Seriam essas situações uma tentativa de se
(re)construir uma história a partir de um novo discurso já que a história é uma narrativa,
portanto não necessariamente real ? De certo que sim. Taalvez esta tenha sido uma das
propostas desta emissora de televisão.
O questionamento formulado acima advém da percepção de Vattimo quando explica
que um processo de ‘desenraizamento’ que é, também e ao mesmo tempo, a libertação das
42
Entende-se por ideal de emancipação a necessidade de afirmação da crença que a rao se
103
diferenças dos elementos locais daquilo que podeamos chamar, globalmente, como dialeto.
Ao derrubarmos a idéia de uma realidade central da história, o mundo da comunicação
generalizada explode como uma multiplicidade de racionalidades locais: minorias étnicas,
sexuais, religiosas, culturais ou estéticas que tomam a palavra finalmente já não silenciadas
pela iia de que só existe uma única forma de verdadeira humanidade a realizar, com
prejuízo de todas as peculiaridades, de todas as caracterizações limitadas, emeras,
contingentes.
Ora, conforme vimos anteriormente, se tudo que se na história é uma narrativa, o
que seria, então, a realidade?
É nessa perspectiva que discorremos a seguir, a fim de termos parâmetros para pensar
sobre a possibilidade de (re)construção da narrativa histórica visando o reforço da identidade
nacional a partir da memória coletiva.
sobrepõe à emoção.
104
6 - Mídia e Construção da Memória Coletiva Nacional O que
pensa Marialva Barbosa e Ana Paula Goulart
Vivemos em uma sociedade em que uma das suas caractesticas é a valorizão do
futuro. A título de ilustração, um dos exemplos mais marcantes em nosso cotidiano pode ser
observado a partir do uso da medicina, o mais vista como algo curativo e sim, como a
possibilidade de algo preventivo. O tempo todo, estamos buscando em relão a nossa saúde,
formas de antecipação do futuro que, a partir do desenvolvimento dos aparatos tecnológicos
que nos permite fazer diversos exames laboratoriais, nos condições de antever possíveis
problemas.
Não diferente da medicina, em nosso cotidiano está a onipresea dos meios de
comunicação e é, nesta vertente, que eles assumem um lugar altamente relevante, se
posicionando como um espo de documentão, registro e memória do presente, além de
serem detentores de uma espetacular capacidade de imbricão entre o presente e o passado.
A fim de que possamos avaliar a importância da Rede Globo de Televisão maior
emissora de TV brasileira como partícipe do processo de construção da identidade nacional
por ocasião da implementação do seu Projeto Brasil 500, se faz necessário buscar elementos
teóricos que apontem para os meios de comunicão enquanto lugar de (re)construção e/ou
atualização da memória.
Neste sentido, recorreremos ao texto Meios de Comunicação, Memória e Tempo: a
construção da ‘redescoberta do Brasil, da teórica Marialva Barbosa
43
e ao texto A dia e
o lugar da história, da historiadora Ana Paula Goulart Ribeiro, ambos publicados no livro
Mídia, Memória e Celebridades
44
Com o intuito de identificar o objeto de estudo da história, a historiadora Ana Paula
Goulart salienta que grande parte dos dicionários, alguns livros didáticos e, também, o senso
comum, atribuem à história o papel de estudar os fatos do passado. Porém, a autora observa
43
BARBOSA, Marialva. Meios de Comunicação, memória e tempo: a construção da Redescoberta
do Brasil. p. 112 IN: HERSCHMAN, Michael e MESSEDER, Carlos Alberto. (orgs). Mídia, Memória e
Celebridades. Rio de Janeiro: E-papers, 2003.
44
GOULART, Ana Paula. A Mídia e o lugar da hisria. p. 87 IN: HERSCHMAN, Michael e
MESSEDER, Carlos Alberto. (orgs). Mídia, Memória e Celebridades. Rio de Janeiro: E-papers, 2003.
105
que a história o estuda “ todos os fatos ocorridos no passado, mas, apenas os fatos
históricos(p.87).
Partindo desta concepção, a historiadora conceitua o fato histórico como sendo aquele
episódio que, com o investimento de algum sentido, são estabelecidas as ligações com outros
acontecimentos ou fatos que foram passados, numa relão de causa e conseqüência.
Assim, complementa a autora, a idéia de processualidade e a de totalidade são, nesta
perspectiva, fundamentais” (p.88)
Nos parece importante evidenciar o pensamento da autora no que tange aos conceitos
de passado-presente-futuro, a fim de que possamos estabelecer os tênues limites entre um e
outro. Para Goulart, o presenteo pode ser limitado por um momento ou instante. O presente
se estabelece a partir da “ operação histórica” e é definido como atualidade. Esta atualidade
toma forma quando se distingue do seu outro (o passado) em relação ao qual marca uma
certa distância, o meramente cronológica. E o que possibilita isso é a noção de mudança, de
transformação”(p.93)
Assim, conclui a autora, a história o é apenas a ciência que estuda os fatos
históricos. A História tem que ser vista como “ a ciência que estuda o processo de
transformação da realidade social. Em verdade, é a história que deve delimitar aquilo que foi,
aquilo que é e aquilo que será.
Diante disto, o conceito de passado-presente-futuro é flexível e o que o define não é o
tempo e sim, o ponto de vista sobre ele. A possibilidade de interpretação, por parte dos
historiadores, de que houve uma mudança entre o que foi, o que é e o que se.
Na medida em que a História pontua o tempo a partir da relação causal, surgem
diversas ões passadas e presentes. É nessa quantidade de conteúdos que ocorrem durante o
tempo que se estabelece o conceito de memória individual e que insere os indivíduos naquilo
que a autora denomina de “ memória da coletividade a que pertencem(p.94).
Goulart ressalta que a memória, por estar ligada às representões coletivas, serve
como instrumento de poder. Em outras palavras, a memória pode produzir sentidos que
permitem choques e confrontos entre os diversos grupos sociais. Se, por um lado, existe a
memória oficial que evidencia os fatos e os ordena de acordo com o seu interesse muitas
vezes deixando de incluir a totalidade deles -, por outro lado, grupos sociais, especialmente
106
étnicos, políticos e culturais, podem se opor e contaminar a esta versão oficial fazendo vir a
tona fatos que podem ter sido ignorados pela leitura dominante, do poder e, no caso, oficial.
Com o desenvolvimento dos aparatos tecnológicos no campo da comunicação, a
construção da memória oficial se deslocou da História e passou a ser legitimada pelos meios
de comunicão na medida em que são esses que trabalham com as representações sociais.
Hoje, portanto, a mídia é, sem sombra de dúvidas, o principal lugar de memória e/ou de
história das sociedades contemporâneas”(p.97).
O que é apresentado pela mídia, principalmente a partir do jornalismo informativo que
detém um alto percentual de credibilidade na opinião da sociedade brasileira, possui
relevância e é aceito pelo público como verdade. Em última análise, os mass media “ detêm o
poder de elevar os acontecimentos à condição de históricos(p.97) e, o que não é veiculado
pela mídia, ou não aconteceu ou, caso tenha ocorrido, o é visto pela sociedade como algo
importante ou merecedor de alguma atenção. O jornalismo, portanto, retrata a realidade e
registra os fatos. E, mais que isso, deixa seus registros como fonte de consulta histórica para
as sociedades futuras. A título de ilustração, podemos recordar o slogan do Repórter Esso que
apontava sua vocão como “ testemunha ocular da história.
A fim de avaliar a importância dos meios de comunicação no processo de
(re)construção ou (re)atualização da memória por ocaso das comemorações dos 500 anos de
descobrimento, a teórica Marialva Barbosa, tal qual a historiadora Ana Paula Goulart quando
estabelece a relação entre a História e os meios de comunicão, recorre aos conceitos de
temporalidade na sociedade contemporânea.
Citando Italo Calvino
45
, a autora destaca o papel desempenhado pela mídia em relação
a temporalidade, quando enfatiza que os marcos deste final de milênio são a rapidez,
exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência(p.113) e, complementando o
pensamento de Calvino, acrescenta que adia nos apresenta uma sucessão de imagens
ininterruptas e que se desmancha da mesma forma que os sonhos, não deixando nenhum
vestígio na memória. Apenas, “ a sensação de estranheza e mal-estar”(p.113).
45
Apud CALVINO, Italo. Leçons américaines. Aide-mémoire pour le prochain millénaire. Paris:
Gallimard, 1989, p. 99-100.
107
Recorrendo a gis Debray
46
quando este reflete sobre a compressão espo temporal
que eliminou a distância entre os continentes e alterou a relão das sociedades com a cultura
e com os objetos de conhecimento, Barbosa salienta que o homem contemporâneo quer se
formar culturalmente na mesma rapidez com que ele faz uma refeição em um fast food e que a
mídia, a partir deste sentimento humano, incrementa esta aceleração quando, cada vez mais,
transmite um fato jornalístico em tempo real. Em verdade, antes do desenvolvimento das
tecnologias da comunicão, a dia se preocupava em informar o mais rapidamente possível
e hoje, sua preocupão é a de transmitir os fatos enquanto estes se desenrolam. Esta
aceleração do tempo mediatizado, quando os meios de comunicão se apropriam da
simultaneidade, traz a reboque os efeitos da virtualidade e da interatividade que contribuem,
sem dúvida, para a inflncia na visão de mundo e da temporalidade pela sociedade. Assim,
complementa a autora:
O real pode ser, pela ação do indivíduo, mesmo à
distância, objeto de mudança, o que dá ao presente uma visão de
transitoriedade absoluta. O presente não maisemerge do tempo’,
mas é construído na interatividade virtual. Ele passa a ser, sobretudo,
o fato no momento de sua transformação em acontecimento, dando ao
espectador a impressão de estar diante da realidade e da vida e
permitindo-lhe, também, ter a sensação de participar mais
intensamente, ao lado de um vasto auditório, da constituição do
próprio acontecimento” (p.114)
Tal citação, legitima o raciocínio de Goulart quando esta autora afirma que a
temporalidade na História se a partir das transformações sociais observadas pelos
historiadores e transformadas em acontecimentos pela dia e que, a partir disso, são
determinados os espaços passado-presente-futuro.
Continuando seu pensamento, Marialva Barbosa apresenta um outro aspecto que
justifica e explica o afã, por parte do público, nas transmissões em tempo real. Trata-se da
possibilidade que tal tipo de transmissão oferece, no que tange a ocorrência de situações
imprevistas e que i conferir à dia, o espo de testemunha da autenticidade e veracidade
dos fatos e, consequentemente, da história.
É nesta vertente, que complementa a autora:
46
Apud DEBRAY, Regis. Cours de mediologie générale. Paris: Gallimard, 1991. P. 242.
108
Os meios de comunicão transformam-se não apenas
em arquivos para o futuro, mas em arquivos permanentes do presente.
E a narrativa que produzem não é mais a mescla de ficcional com
informacional; é a narrativa histórica do imediato. (...) Se o passado
pode ser reconstrdo e o presente se constitui de instantes que são
substitdos sem cessar, a idéia de futuro se dilui dentro do próprio
presente. A aceleração do tempo da contemporaneidade, portanto,
longe de ser apenas uma categoria utilizada pela mídia, se constitui
mesmo numa constrão empreendida pelos meios de
comunicação” (p.115/116).
Em tendo estudado de que forma que a dia (re)constrói ou (re)atualiza a memória
coletiva, achamos por bem buscar subsídios teóricos que nos capacite a entender um outro
aspecto bastante utilizado nas ões empreendidas pela Rede Globo, por ocasião das
comemorações de 500 anos do descobrimento. Trata-se do uso de celebridades capitaneando
grande parte dos esforços. Para isto, se faz necessário este estudo, na medida em que
precisamos compreender as formas com que a sociedade se relaciona com seus ídolos e até
que ponto estes ídolos são capazes de credibilizar, ou não, as mensagens transmitidas.
109
7. O uso de celebridades e do mundo mítico da fama na mídia
No Brasil, a indústria da celebridade e da fama vem assumindo um espaço cada vez
mais crescente no cotidiano dos indivíduos. A cada dia, vemos aumentar o número de
periódicos, programas televisivos e radiofônicos que alimentam os seus leitores, espectadores
e ouvintes sequiosos com as informações acerca da vida pública e privada das pessoas que,
com graus maiores ou menores de visibilidade midiática, se apresentam como modelos de
projeção e/ou entretenimento e que passam a fazer parte da agenda diária da sociedade,
podendo interferir, sobremaneira, na formão identitária dos sujeitos sociais.
É a partir dos conceitos de fama, celebridade, mídia, formação identitária, modelos de
projeção e entretenimento que este capítulo se baseará para justificar o uso indiscriminado de
personalidades midiáticas na (re)afirmação/(re)construção da identidade nacional, por ocaso
das ações empreendidas pela Rede Globo detentora da imagem das maiores celebridades
nacionais – nas comemorações de 500 anos de descobrimento.
A primeira consideração importante para a compreensão da origem da necessidade da
construção de celebridades permeia o conceito de vida cotidiana e a busca incessante, por
parte do cidadão comum, da sua exclusão do anonimato. De certo que o conceito de “ vida
cotidiana é cercado de uma série de contra-conceitos discutidos pelos teóricos, a partir do
momento em que o aspecto da vida possui características intrínsecas e que são desprovidas,
pelo menos numa primeira leitura, de um todo e uma categorizão racional. Entretanto,
seo apropriadas as iias de Featherstone
47
, como ponto de partida para a reflexão do
conceito de vida cotidiana.
Inicialmente, e no a de conceituar a vida cotidiana, este teórico delineia as
caractesticas mais freqüentemente observadas na vida cotidiana e as identifica em cinco
aspectos. A primeira categoria se refere à ênfase em tudo o que acontece diariamente, “ na
rotina, nas experiências repetitivas que não são mais percebidas, nas creas e práticas. É o
universo mundano, ordirio, intocado por grandes acontecimentos e pelo extraordirio”
(p.83).
47
FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura. São Paulo: Nobel, 1997.
110
Em segundo lugar, se coloca o cotidiano como a esfera da reprodução e da
manuteão, zona pré-institucional na qual as atividades básicas que sustentam outros
mundos são executadas, em grande parte, pelas mulheres” (p.83). A terceira caractestica
aponta para a não reflexão das experiências cotidianas enquanto cotidianas e usuais no dia-a-
dia. O quarto aspecto remete ao sentido “ o-individual de se estar junto em atividades
comuns, espontâneas, que se o fora ou nos interstícios dos campos institucionais; uma
ênfase na sensualidade comum, em estar com os outros em uma sociabilidade frívola, lúdica”
(p.83). O quinto lugar se remete a questão auditiva, onde o que é mais valorizado é o que se
ouve eo aquilo que obedece à linearidade da escrita.
Para ilustrar este último aspecto, o autor cita Agnes Heller e sua discussão sobre o
contraste estabelecido por Platão entre dóxa (opinião geral baseadas nas rotinas diárias) e
epistéme (conhecimento científico que objetiva proporcionar verdades mais duradouras) o que
gerou a visão relacional entre o pensamento cotidiano heterogêneo e sinctico e o
pensamento científico – “ filosófico, sistêmico, reflexivo e desantropomorfizante.
48
Featherstone também recorre a Alfred Schutz (1962) para se referir ao mundo
cotidiano e, para tal, laa mão da expressão “ Senso Comum, como sendo uma “ realidade
predominante que se pode distinguir de uma série de ‘realidades múltiplas ou de ‘províncias
finitas do significado’.
49
É neste contexto, que o autor sublinha, portanto, a existência de dois
mundos: o dos sonhos, fantasias, devaneios, jogo, ficção, teatro e o mundo mais formalizado
da ciência, da filosofia e da arte. Mundos estes, que podem se misturar, como é o caso da
fantasia com a vida cotidiana, e onde, enfaticamente, o autor descreve:
Existem, é claro, algumas ocasiões socialmente
sancionadas nas quais esta mescla é encorajada, em que o mundo da
fantasia passa a ser vivido em meio à vida cotidiana, tal qual nos
festivais e nos momentos do carnaval. Esses momentos liminares em
geral são bem circunscritos; no entanto, pode-se argumentar que a
natureza sinctica e heterogênea da vida cotidiana indica que as
perceões do código duplo, do lúdico, dos desejos e fantasias
movem-se furtivamente nos interstícios da vida cotidiana e ameam
nela irrompe
r .
(p.84)
48
apud Heller, 1984: 49ss.
49
apud O Desmanche da Cultura p.83 1997.
111
Feitas as considerações acerca do conceito de vida cotidiana, nos parece importante
rever alguns aspectos da comunicão de massa que contribuem ou servem de mediação para
que haja a imbricão entre a fantasia e a vida cotidiana de cada um dos personagens sociais.
Para isto, é necessário que façamos algumas considerações sobre a Indústria Cultural e o
papel que ela desempenha na sociedade pós moderna, quando o assunto é a construção de
celebridades.
Partiremos da constatação que do mesmo modo que a indústria cultural e, portanto, a
comunicação de massa, se posiciona como espo de produção dos mitos contemporâneos
ela, por outro lado, se coloca como verdadeira invasora da privacidade destes mitos obtendo,
assim, uma nova fonte para a sua produção. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a
comunicação de massa produz ídolos, ela tem predileção e se alimenta das informações que
deles se originam. É nesta vertente que Maria Cláudia Coelho em seu livro “ A experiência da
fama, FGV RJ - 2000, vai mais além e sublinha:
É como se, ao mesmo tempo em que permitisse a
existência da fama, a indústria cultural fornecesse um manual’ para
compreendê-la, uma chave para a sua interpretação. Tematizando-a
incessantemente, a comunicação de massa sugere formas de
interpretação da experiência da fama sob múltiplos pontos de vista: o
fã, o ídolo, o aspirante a ídolo, etc. (p.39)
E é a partir daí que o mito da fama se instaura, principalmente nas sociedades
igualitárias, onde a fama pode servir como elemento de diferencião a partir de qualidades
intnsecas do personagem - sem, contudo, haver a hierarquização. Maria Cláudia Coelho
entende a fama como:
... um dos nichos resguardados por esse sistema
baseado em um credo fundamentalmente igualitário para produzir
diferencião, ao mesmo tempo operando, juntamente com a riqueza
e o poder, como posveis estratégias de mobilidade social . ( p.32)
Seja qual for a estratégia utilizada para obteão da fama o ato heróico, a
predestinação, etc -, num ponto a convergência de objetivos: a busca por um lugar
diferente do comum, do banal, do cotidiano, que se potencializa a partir dos meios massivos
112
de comunicão e que se constituem no espaço produtor de mitos, na medida em que contam
e recontam sua histórias.
É neste sentido que a insistência da mídia em recontar a experiência da fama leva a
uma busca desesperada, por parte dos anônimos, da diferenciação atras da fama como
forma atraente de se destacar da massa. Entretanto, o mito da fama é triste, conforme salienta
Maria Cláudia:
Fala de loucura e morte quando retrata os s, de esquecimento e solidão ao
apresentar os ídolos; é só ao mostrar o desejo da fama que se permite ser alegre no justo
momento em que a fama não existe.(p.39)
Com efeito. Não raras vezes, ao assistirmos um programa de entrevistas com
celebridades ou lermos alguma matéria jornalística sobre uma personalidade, podemos
perceber que nos seus discursos todos se consideram mais felizes na época em que a fama não
existia. Todos se lamentam da falta de liberdade e dos pidos lampejos de uma felicidade
idealizada, sempre ressalvada pela sombra da obscuridade”. (p.39)
Se por um lado temos o ídolo, por outro temos o . Não existem ídolos sems. E os
s desejam seus ídolos em todos os aspectos: sua pessoa, sua imagem, seu trabalho. Maria
Cláudia ressalta, ainda, que “ quando do mesmo sexo, o quer ser o ídolo; quando de sexos
opostos, o quer ter o ídolo” (p.40). O deseja tanto o seu ídolo que não mede esforços
para conseguir tê-lo. Inclusive matar, se for o caso, quando não encontra reciprocidade ou
quando se impedido de se aproximar de seu ídolo. Há neste caso, uma confusão na cabeça
do fã, onde ele o distingue o que é ficção e o que é realidade. É uma loucura onde o
expressa o seu desejo de ser famoso, sair do anonimato e onde o ídolo serve de modelo a ser
seguido. Principalmente porque, estar ao lado do ídolo, pode servir de estratégia para que o fã
consiga seu intento: se destacar da massa.
Maria Cláudia Coelho aponta para dois tipos de possibilidades quando o assunto é a
busca da fama pelos fãs atras dos ídolos: o fracasso (com sua associação à loucura e à
violência), que leva à morte, e o sucesso (com sua associação à hipocrisia e à maldade ), que
leva à solio.
Entretanto, o é necessário ser para que um ídolo sirva de modelo de projeção a ser
seguido pelo público. No Brasil, independentemente de uma celebridade ter ou não ter méritos
113
ou talento, ela pode alcaar, sem problemas, a fama, e servir de modelo de projeção. É a
partir desta lógica que vemos, a reboque deste processo, uma enxurrada de produções
biogficas. Em outras palavras, basta alcançar a fama que a celebridade já tem motivos para
escrever uma biografia que virá predestinada ao sucesso.
Neal Gabler, em seu livro Vida, o filme50, citando o historiador Daniel Boorstin,
em seu estudo intitulado “ The Image: A guide to Pseudo-Events in America, ressalta que por
todos os lados o fabricado, o inautêntico e o teatral estavam expulsando da vida o natural, o
genuíno e o espontâneo, a tal ponto que a própria realidade se convertera em
encenação”.(p.11). Em outras palavras, Gabler, ao citar Boorstin, faz meão à questão que se
refere à alteração da realidade das biografias no sentido de transformar e/ou manipular a vida
das pessoas e/ou celebridades a ponto de torná-la um melodrama interessante para o público
que i consumi-la ou vivenciá-la na forma de texto ou filme.
No sentido do público/platéia viver a vida real das outras pessoas e/ou celebridades,
Gabler acrescenta:
... a própria vida estava aos poucos se tornando um
veículo de comunicação por direito próprio, como a televisão, o
rádio, a imprensa e o cinema, e que todos nós estávamos nos
tornando ao mesmo tempo atores e platéias de um grandioso e
ininterrupto espetáculo - ... mais rico, mais complexo e mais
fascinante que qualquer outra coisa concebida para os veículos de
comunicação convencionais. Em suma, a vida estava se
transformando num filme (p.12)
Ao comparar a vida a um filme, Gabler não que dizer que a “ vida imita a arte”
apesar de ser também verdade nem que a arte imita a vida. O que ele quer ressaltar é que
a vida ‘virou’ arte, de tal forma que as duas são agora indistintas uma da outra”(p.12).
A prova cabal desta afirmativa pode ser observada nos noticiários e nos programas de
TV onde aquilo que Gabler chama de lifies ( fusão de life + movie ), estão inseridos no
veículo vida, projetados na tela da vida e exibidos pela mídia tradicional, cada vez mais
dependente do veículo vida”(p.12) .
Gabler se refere aos lifies como os novos sucessos de bilheteria” e afirma que muitas
das vezes os lifies podem ocupar o espo das conversas diárias entre às pessoas por semanas,
50
GABLER, Neal. Vida, o filme. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
114
meses e anos enquanto que os programas de entretenimento comuns podem desaparecer de
cena, rapidamente.
Entretanto, ressalta Gabler, o são apenas “ os lifies que fazem da vida um filme. Ele
inclui, aí, a cultura do espetáculo observada na política, religião, educão, literatura,
comércio, guerra e crime. Enfim, em tudo que foi e é transformado em gênero de
entretenimento onde o lucro, advindo dos níveis de satisfação da audiência, determinam os
graus de oscilação da espetacularidade. Nesta vertente, Gabler complementa quando comenta
sobre a rapidez e o espectro com que a espetacularização é feita pela mídia: “ Agindo como
um rus Ebola cultural, o entretenimento invadiu organismos que até havia pouco ninguém
imaginava que fossem capazes de fornecer divertimento.(p.13)
Se por um lado os lifies servem como entretenimento, por outro se apresentam como
modelos de projeção e, por conseqüência, partícipes da formação identitária do indivíduo,
indo ao encontro de uma necessidade social.
Neste sentido, Micael Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira no artigo “ Isso
o é um filme ? Ídolos do Brasil Contemporâneo”, veiculado na Revista Lugar Comum,
11 p.45-59, ressaltam a função pedagógica das narrativas biogficas e acrescentam que
algumas delas têm o caráter exemplar e/ou heróico”, enquanto que outras sugerem estilos
de vida ou, até mesmo, experiências no que tange a alteridade. Entretanto, ressaltam estes
autores que:
...os significados que são associados às trajetórias de
vida pública são também em grande medida determinados pelo
agenciamento do público, isto é, pelo que cada um elabora a partir
das narrativas biográficas. Assim, o que para muitos é uma trajetória
heróica, para outros sugere estilos de vida ou mesmo a possibilidade
de contato com o outro. Aliás, com a crise de identidade
contemporânea, nada impede que o mesmo indivíduo atribua sentidos
diferentes a uma mesma trajetória de vida pública” . (p.48)
Em outras palavras, um dos efeitos da globalizão e da disseminação das formas
mediadas de comunicão foi, sem dúvida, a fragmentão da identidade e, neste contexto, a
identidade não pode mais ser pensada como algo imutável. Devemos ter em mente que todas
as formas mediadas de comunicão contribuem para novas referências identitárias que,
muitas das vezes, podem competir entre si. Neste momento, a Internet assume um lugar de
115
destaque na construção e desconstrução do self a partir do instante em que podemos nos
desapropriar do nosso corpo biológico e assumir um cibercorpo e uma ciberidentidade.
Sherry Turkle em seu clássico “ Life on the screen. Identity in the Age of the Internet
já apresentava tais reflexões conforme pode ser observado na citação abaixo:
A internet converteu-se num laboratório social
significativo para a realização de experiências com as construções e
reconstruções do eu que caracterizam a vida pós-moderna . Na sua
realidade virtual, moldamo-nos e criamo-nos a nós mesmos. (...) os
MUDs – um novo tipo de realidade virtual social proporcionam
mundos para uma interação social anônima, nos quais cada pessoa
pode interpretar um papel tão próximo ou tão distante da sua
identidade real quanto o desejar . (p.265-271)
Embora a Internet permita a construção e/ou desconstrução do self a partir da
experiência de uma interação social anônima, outras formas mediadaso precisam desta
interação social anônima mas, nem por isto deixam de se constituir numa fonte
incomensurável de formação identitária.
É neste sentido que John B. Thompson, conforme vimos em capítulos anteriores e que
vale a pena ser citado novamente, contribui em seu clássico A mídia e a Modernidade Ed.
Vozes Petrópolis 1998, quando apresenta a natureza do eu (self) e a experiência cotidiana
num mundo mediado e parte do princípio que:
(...) os indivíduos dependem cada vez mais dos
próprios recursos para construir uma identidade coerente para si
mesmos. (...) o processo de formação do self é cada vez mais
alimentado por materiais simbólicos mediados, que se expandem num
leque de opções disponíveis aos indivíduos e enfraquecem – sem
destruir – a conexão entre a formação e o local compartilhado” .
(p.181)
Segundo o autor, o desenvolvimento da mídia e a possibilidade que o indivíduo tem de
ter acesso às informações que m de longe e que, por conseqüência, podem enriquecer e
transformar o processo de formação do self, produzem “ um novo tipo de intimidade.
Intimidade esta, diferente daquela observada na interação face a face.
A esta nova intimidade advinda da mediação dos meios de comunicação, Thompson
denomina de “ interação quase mediada”, visto que os indiduos estabelecem esta relação sem
que haja, necessariamente, a reciprocidade.
116
Neste sentido, este teórico recorre à relão estabelecida entres e ídolos para
explicar como se esta “ interação quase mediada” e de que forma tal relão pode interferir
na formação do self e no cotidiano do indivíduo. Tais explicações podeo justificar o uso de
tantos ídolos na campanha desenvolvida pela Rede Globo de Televisão, quando do aniversário
de 500 anos de Brasil e, por esta razão, faremos um estudo mais acurado deste autor.
Thompson enumera quatro aspectos negativos trazidos pelo crescente papel dos
produtos da mídia. O primeiro deles se refere à inculcação de mensagens ideológicas que,
dependendo de como serão recebidas pelos indivíduos e aplicadas no contexto ptico de suas
vidas diárias, podem ser “ incorporadas reflexivamente aos projetos de formação do self”.
Ilustrando seus argumentos, o autor acrescenta:
(...) por exemplo, as concepções de masculinidade e
feminilidade, de identidade étnica, etc. então as mensagens da mídia
podem assumir um papel ideológico bastante poderoso. Elas se
tornam profundamente internalizadas no self e são expressas menos
em creas e opiniões explícitas, do que no modo como o indivíduo se
porta no mundo, no modo como se relaciona consigo mesmo e com os
outros e, em geral, no modo como entende os contornos e os limites
de si mesmo” .( p.187)
O segundo aspecto que o autor ressalta se refere “ a dupla dependência mediada.
Trata-se da relação existente entre o indivíduo e os produtos oferecidos pela dia onde, da
mesma forma que tais produtos acentuam a organização reflexiva do self a partir das formas
simbólicas mediadas, mais o indiduo fica dependente dos sistemas da mídia sobre os
quais, ele não possui o controle. Ilustrando este argumento, o autor cita:
A entrada no sistema educacional, no mercado de
trabalho, no sistema de assistência social, etc. são posveis
movimentos no projeto de vida a que um indivíduo pode aspirar, mas
as possibilidades de fazer estes movimentos são diversamente
distribuídas e dependentes de decisões alheias. O acesso a estes e a
outros sistemas é governado por agências e processos que muitos
indivíduos dificilmente podem de alguma maneira
influenciar. (p.187)
O terceiro aspecto negativo trazido pelo crescente papel dos produtos da dia com
reflexos negativos na formação do self se refere ao “ efeito desorientador da sobrecarga
simbólica. Trata-se do excesso de materiais simbólicos disponíveis o que acarrreta a
necessidade de uma fonte de orientação. Sejam os críticos de cinema, por exemplo, ou
117
indiduos que orientam, com suas opiniões pessoais conselhos outros indivíduos e que os
leva a decidir que materiais simbólicos “ devem ser assimilados ou rejeitados.
Por fim, o quarto aspecto se refere a “ absorção do self na interação quase mediada”.
Neste caso, o autor reafirma a existência de um novo tipo de situação interativa a qual ele
denomina de “ interação quase mediada” e sobre a qual ele reconhece ser um recurso
importante na formação do self sem, contudo, ser a única ou a mais importante – outras fontes
devem ser consideradas como, por exemplo, família, amigos, escola, religião, trabalho, etc.
Os materiais simbólicos mediados atraem e se incluem no cotidiano dos indiduos em
vel de intimidade pessoal. Neste sentido, Thompson analisa um aspecto da interação quase
mediada que tem importância para estes relacionamentos pessoais que surgem atras da
mídia. O primeiro deles se refere à intimidade com outros indiduos que não compartilham o
mesmo espo-temporal. Ou seja, a intimidade do indivíduo com o personagem (atores,
atrizes, astros, estrelas e outras celebridades da mídia) mas não o cater recíproco desta
relação, como existiria na interação face a face. Neste caso, esta interação serviria, apenas,
como assunto para conversas rotineiras no cotidiano se não fosse uma outra possibilidade
apresentada por este teórico: o fato dessas relações não recíprocas de intimidade poderem
assumir um grau de importância maior em alguns indiduos de forma a redefinir outras
formas de interação diária. É nesta vertente que o autor retoma a questão do , cuja origem
do termo advém da abreviatura da palavra “ fatico”, e conclui:
Ao proporcionar aos indivíduos meios de reconstituir
um relacionamento ou criar los, a tietagem tem muito a oferecer.
aos indivíduos meios de drenar uma rica fonte de materiais
simbólicos que podem ser usados para desenvolver uma relão de
intimidade não recíproca ou cultivar laços, e que podem desse modo
ser incorporados reflexivamente no projeto de formação do próprio
self. (...) Com esta fusão do self com o outro, do mundo do fã com o
mundo da vida cotidiana, o indivíduo pode comar a sentir que está
perdendo o controle de sua vida” . (p.194-195)
Sem medo de errar, é por isso que a publicidade produzida e em grande parte das
ações que foram empreendidas pela Rede Globo por ocaso das comemorações do
aniversário de 500 anos do descobrimento do Brasil, foram utilizadas as imagens de
celebridades no sentido de se buscar uma maior identificação do público com a ideologia
pretendida pelos emissores/produtores dos materiais de divulgação.
118
A formação identitária ou do self, como alguns autores preferem, está cada vez mais
dependente dos meios de comunicação do que do próprio cotidiano dos indiduos. É claro
que as mediões da família, amigos, do bairro, da escola, do trabalho, etc, também têm
importância e que adia não é vi, por si e em si, como querem nos fazer crer alguns
teóricos.
Entretanto, abre-se um caminho para uma nova discussão: até que ponto a
imbricação entre dia e sociedade ? Em outras palavras, os produtos simbólicos oferecidos
pela mídia não são exatamente os mesmos que a sociedade deseja ter ?
Estamos certos que sim. Só existem ídolos e celebridades porque existem indiduos
que desejam consumi-los.
As diversas formas de relão entre fãs e celebridades vistas anteriormente nos
remetem à justificativa do uso de celebridades no sentido de capitanear esforços que tratam,
de perto, o sentido de cidadania e identidade nacional. E foi neste sentido, que a Rede Globo,
na sua comunicação por ocasião das comemorações do aniversário de 500 anos de Brasil,
trabalhou, com toda a sua força na construção de celebridades, com a imagem dos principais
ídolos brasileiros, fossem eles atores, atrizes, cantores, apresentadores de telejornais,
repórteres, etc.
119
8 - A Identidade Nacional na celebração dos 500 anos do
descobrimento do Brasil: O cenário jornalístico apresentado pela
mídia.
Todas as comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil nos pareceram um
campo fértil para se analisar os discursos no vel da produção de sentidos, no que tange a
iia de brasilidade e identidade nacional. Diversas atividades pontuaram as comemorações: a
exposição itinerante Brasil + 500, festas em diversos pontos do Ps, seminários para a
discussão dos caminhos a serem trilhados pelo Brasil, passeatas, missas, manifestações, etc.
Entretanto, nossa alise recaisobre uma dessas ões as quais, pela força do uso da
máquina midiática, nos pareceu mais relevante, principalmente por sua duração. Destacamos,
nesse momento, o Projeto Brasil 500 anos empreendido pela Rede Globo de Televisão, que
teve duração desde o primeiro dia de 1998 e foi até o dia 26 de abril de 2000 e que a diretora
geral da Rede Globo Marluce Dias da Silva declarou, ingenuamente, que ousava pensar
que sem esse trabalho os nossos 500 anos pouco teriam sido lembrados”(p.3). Prepotências à
parte, conforme pudemos inferir, paralelamente às ações da Rede Globo vimos diversas ações
e manifestações que ocuparam um grande espaço da dia nacional, seja de forma elogiosa ou
no formato de duras críticas por parte dos jornalistas e da sociedade brasileira em geral.
Consideramos prudente, antes de fazer a análise dessas ações do Projeto Brasil 500 da
Rede Globo, apresentar o cenário em que tais ões se desenrolavam. Diante disto e a fim de
contextualizar a inserção desse projeto da Rede Globo como parte integrante, não oficial, de
uma série de outras atividades que, notadamente, aconteceram no mesmo período,
recorreremos às reflexões feitas pelos teóricos Micael Herschmann e Carlos Alberto Messeder
Pereira em seu texto E la nave va... As celebrações dos 500 anos do Brasil. Afirmões e
disputas no espo simbólico”
51
Segundo a análise destes autores, a festa em comemoração aos 500 anos de
descobrimento do Brasil que deveria se transformar em algo que reafirmasse/(re)construísse
uma imagem de “ nação brasileira acabou por não ter tido o resultado esperado pelo Governo.
51
HERSCHMAN, Michael e MESSEDER, Carlos Alberto (orgs). Mídia, Memória e Celebridades. Rio
de Janeiro: E-papers, 2003. p135.
120
Foi feita uma comemoração a partir da leitura do poder público e não um festa que
pudesse compreender/incluir todos os segmentos da população brasileira. Assim, os autores
relembram que a festa foi marcada pela reação de diversos movimentos sociais. Incluem-se aí,
as críticas e disputas de grupos sociais minoritários, como por exemplo, índios, sem-terra e
representantes do movimento negro que, com razão, aproveitaram-se da oportunidade e da
possibilidade de ter “ voz para elencar e colocar em discussão a violência e as desigualdades
sociais produzidas ao longo desses 500 anos”(p.136). Diante disto e neste peodo, a palavra
exclusão foi a mais utilizada pela mídia e tomou conta da festa, programada, ao contrio,
para ser um evento de exaltação da unidade e identidade nacionais(p.136)
Citando o historiador José Murilo de Carvalho quando este se refere ao fato de que as
comemorações oficiais dos 500 anos guardam muita semelhança com as ocorridas em 1922
por ocasião do centerio da independência, os autores entendem que a inteão do governo
foi a de reproduzir uma fórmula semelhante às celebrações nacionais” ocorridas no passado
histórico brasileiro. Em outras palavras, com pouca participação popular, de grande
repercussão no plano simbólico e durante as quais os conflitoso se evidenciariam com tanta
intensidade.(p.137). E foi essa última característica que diferiu as outras celebrações das
comemorações de 500 anos.
A partir da contestão das “ minorias evidenciadas durante a comemoração oficial é
que Herschmann e Messeder indicam que, de alguma forma, pode estar existindo uma crise na
iia de “ nação brasileira e, quem sabe, a idéia de nação como um todo, conforme descreve o
texto abaixo:
Mais uma vez, foi possível observar a intensa
controvérsia gerada por iniciativas que tentam afirmar e/ou veicular
imagens de Brasil produzidas com o objetivo de recobrir o ‘conjunto
da nação’ bem como o quanto a identificão com essas imagens é
um processo complexo tanto do ponto de vista da dinâmica social dos
diferentes segmentos sociais quanto de seus universos
simbólicos” .(p.137)
Assim, para os autores, as retóricas nacionais não são mais aceitas pela sociedade
brasileira como, talvez, seriam aceitas no passado. Hoje, a cada dia que passa, a sociedade se
organizar mais e surgem outras minorias além das étnicas, sexuais, políticas, etc. que, ao o
121
se identificarem com o discurso hegemônico sobre o nacional, começam a evidenciar suas
causas.
Na contramão desta realidade descrita acima, todas as ações oficiais empreendidas
pelo Estado para a celebração se dirigiam à antigas retóricas como ideais de unificação, de
construção da idéia de nação e etc., e apontavam para palavras como “ liberdade, fraternidade
e igualdade e que hoje, a partir dos movimentos separatistas, das questões nevrálgicas dos
conflitos e injustiças sociais, não são mais aceitas, pelo menos no plano simbólico. Em suma,
a celebração oficial privilegiou o “ legado europeu”, esqueceu de incluir os excluídos (negros,
índios e pobres) e o que deveria ser uma festa de reforço dos mitos de fundação da nação” e
da sociedade brasileira, como a democracia racial, a cordialidade do povo brasileiro, sermos
abeoados por Deus, etc., se transformou em um verdadeiro fracasso.
Finalizando seu pensamento, os autores recorrem a Gerard Namer, em seu livro
moire et Societé, para evidenciar a principal questão que surgiu após todos os conflitos que
envolveram as celebrações: trata-se da construção da memória nacional.
Nesta vertente, os autores salientam que ao pensarmos a memória não podemos nos
limitar às “ práticas individuais ou grupos de recordação”. Deveremos pensar, também, na
memória coletiva que, a partir da construção de grandes narrativas e que se encontram
alicerçadas no passado, são elevadas à condição de memória nacional.
Diante disso e recorrendo mais uma vez a Namer, os autores destacam que criticar de
forma negativa ou celebrar a festa dos 500 anos pode se traduzir, para diferentes grupos
sociais e instituições construir uma memória-mensagem que pode ser caracterizada como a
vontade de difundir, conservar, manter ou renovar uma memória, costumes ou
tradições(p.149).
Assim, concluem os autores, “ as autoridades perderam a oportunidade de reinventar a
tradição de celebrar a ‘nação brasileira’ por o terem incluído a participação mais efetiva do
povo brasileiro.
Se, por um lado, a celebração oficial do governo pode ser considerada como vexatória,
pode a Rede Globo de Televisão ter contribuído, de alguma forma, para a (re)afirmão do
ideário de identidade nacional e para o reforço do sentimento de pertencimento do povo
122
brasileiro a esta nação que denominamos de Brasil, a partir das ações empreendidas por
ocasião da celebração de 500 anos de descobrimento?
É nesta vertente que estaremos, a partir de agora e já devidamente fundamentados
teoricamente, nos remetendo à análise das ações empreendidas pela maior rede de televisão
brasileira.
123
9. O Projeto Brasil 500 anos da Rede Globo de Televisão
No peodo compreendido entre os anos de 1998 e 2000, a Rede Globo iniciou uma
série de ões, que incluíram shows, debates, seminários, etc., que visavam chamar a ateão
do público para uma data/marco importantíssimo e representativo da construção da identidade
nacional. Tratava-se dos 500 anos de descobrimento do Brasil que, curiosamente, levou esta
emissora a capitanear/desenvolver uma série de eventos e permitir a visibilidade desta data em
todo território nacional.
Vale lembrar, que a identidade nacional foi transformada, a partir da comercialização
das cotas de patrocínio do Projeto Brasil 500, em mercadoria altamente rentável e ao gosto do
fregs. Cabe ressaltar que todo o Projeto foi patrocinado pelas empresas Itaú, Parmalat,
Telemar, Petrobrás e pelo Governo do Estado da Bahia, que tomou para si a responsabilidade
desta festa pelo fato de os colonizadores portugueses terem desembarcado em suas terras.
Diante disto, uma série de ações foram empreendidas no sentido de não deixar que a
memória do brasileiro esquecesse que o dia 22 de abril de 2000 era uma grande data a ser
comemorada. E, evidentemente, neste dia a Rede Globo culminaria suas ações com um
grande espetáculo, tentando deixar registrado na memória coletiva a sua importância enquanto
veículo de cobertura nacional. Devemos recordar que o ano de comemoração dos 500 anos de
descobrimento do Brasil trazia com si uma outra questão: a virada do século que,
simbolicamente, poderia representar o início de uma nova era. De um (re)descobrimento. De
um novo Brasil.
Assim, o calendário desenvolvido pela emissora previu ações atingindo três focos
principais: a festa, a (re)atualização da história e ão educacional Amigos da Escola, que
se desdobrava em uma série de outras pequenas ações dentro do campo da educão.
A primeira ação apresentada pela Rede Globo foi, na passagem do ano de 1997 para
1998, colocação em funcionamento de um relógio, na cidade de Porto Seguro, que contava
regressivamente os dias até 22 de abril de 2000. No momento em que foi acionado faltavam
843 dias para a data da comemoração. Em seguida a esse primeiro relógio, s a s foram
instalados 28 relógios em cada capital do Brasil e em Brasília. Ao empreender essa ão, a
124
inteão da Rede Globo foi a de marcar, com esses relógios, o símbolo da unidade nacional,
para selar o compromisso de todos com um País melhor”.
52
Esta ão nos remete à questão da temporalidade, conforme visto em capítulo anterior.
Trata-se da aceleração do tempo, em que o presente buscou a reconstituição do passado, de
forma a produzir um sentido de construção de um novo Brasil e atualizar a memória do povo
brasileiro para que não se esquecessem de que no dia 22 de abril de 2000 seria uma data que
deveria estar na lembrança de todos. Em suma, esta data representaria no presente o icio da
(re)construção do Brasil, portanto futuro e, evidentemente, alicerçado a partir do passado.
Assim, a colocação dos relógios continha uma forte carga ideológica que apontava
para o futuro e não mais para o passado. Em verdade, não estávamos comemorando uma data
passada e sim, um marco para o futuro do Brasil. Comemoramos, em última hipótese, o futuro
do Brasil e não os 500 anos de descobrimento. Somou-se a isso, a carga simbólica contida na
chegada de um novo minio que ratificou a expectativa de um futuro promissor para o Brasil.
Talvez a virada do milênio tenha tido uma carga simbólica maior para a população do que as
próprias ações comemorativas dos 500 anos de descobrimento.
A segunda ão empreendida foi o encarte, nos principais jornais do País nos dias 19 e
20 de mao de 1998, de um formulário que deveria ser respondido pela população e que,
além de conter informações sobre o Projeto Brasil 500, continha a pergunta “ Como se muda o
País através da educação?”. Como retorno, 40 mil pessoas responderam com suas sugestões
de como melhorar o ensino fundamental e a pesquisa, segundo a Rede Globo, revelou o
desejo de mudaa e de participação da sociedade na (re)construção do Brasil atras da
educação.
Neste caso, podemos afirmar que muitos anos a Rede Globo vem se colocando
como marco de mudaas do País, especialmente, no que tange a educão. Exemplo claro
disso, foi o laamento de programas como o Telecurso de primeiro e segundo graus, o Globo
Ecologia e outros, onde esta emissora comou a construir a idéia de que só se muda um ps
a partir da educão. A pergunta formulada ainda induz/reafirma esta perspectiva de que o
ps só mudaria “ atras da educação”. O conceito “ educação” hoje, faz parte do senso
52
Revista Memórias Projeto Brasil 500 anos
125
comum. Não raro, quando nos são apresentadas pesquisas de opinião pública que apontam o
futuro do País, a educação sempre ocupa lugar de destaque. Assim, solicitar a participação de
todos nesta área é, sobremaneira, tornar o público cúmplice engajado na causa abraçada pela
Rede Globo. Entretanto, se observarmos o retorno informado pela emissora, o que
representam 40.000 respostas em um universo populacional de 180 milhões de brasileiros?
Que desejo de participação da sociedade, conforme preconizou a emissora, é este? Esta ação,
talvez tenha sido proposta como forma de servir de discurso da mesma no engajamento da
sociedade. De afirmar que a sociedade estava toda mobilizada no sentimento de mudança da
nação, a partir da educão.
Continuando suas ações, durante os meses de abril e maio de 1998 foram organizados
cinqüenta e quatro seminários regionais e que pontuaram a terceira ação empreendida. Tais
semirios objetivaram levantar os problemas e as necessidades da área educacional em todas
as regiões do País e contou com a participação de dez mil educadores, universitários,
empresários e especialistas. Podemos imaginar a dia de cento e oitenta e seis pessoas por
semirio, número muito baixo para um evento promovido pela Rede Globo e com a
envergadura de um projeto de mudança educacional brasileira. Simultaneamente aos
Seminários Regionais e no mês de abril de 1998, foram apresentadas outras ações:
nos dias 14 e 15 ocorreu o Semirio Internacional “ Como se muda um País atras da
educação”. Tal semirio aconteceu no Parlatino do Memorial da América Latina, em
São Paulo, e contou com a discussão, reflexão e debates de especialistas do Brasil e do
Exterior. Tal seminário foi aberto à população e contou com um público de mais de
duas mil pessoas.
No dia 25, foi realizado em São Paulo, na área de concentração do Sambódromo do
Anhembi, o primeiro mega-show para simbolizar o icio do Projeto. A cenografia
homenageava negros, índios e brancos, as etnias que formaram o povo brasileiro e
esse show foi transmitido em rede de televisão para todo o Brasil. Esse espetáculo teve
um público de cinqüenta mil pessoas e, pela primeira vez, foram utilizados efeitos em
computão gráfica gerando imagens como a da bandeira brasileira cobrindo a platéia.
126
Ao final do show, que contou com cantores do porte de Daniela Mercury, todo o
elenco cantou, junto com o público, o Hino Nacional.
A partir do s de abril, foi empreendida a campanha Reforma das Escolas onde, com
o estímulo às comunidades de todo o Brasil, 33 escolas foram reformadas atras de
mutirões, beneficiando trinta e cinco mil estudantes. Esta campanha contou com a
adesão de centenas de Instituições, entre empresas, ONG s, órgãos públicos e
associões comunitárias.
Não restam dúvidas de que, nesta fase do projeto Brasil 500 anos, a ação de maior
repercussão e que conseguiu sensibilizar a maior parte da sociedade foi o megashow em São
Paulo. A participação foi expressiva: cinqüenta mil pessoas. Ainda analisando
quantitativamente, a reforma de trinta e três escolas e o benecio de trinta e cinco mil
estudantes não tem nenhuma representatividade na medida em que, somente no munipio do
Rio de Janeiro, possmos mais de 1.100 escolas públicas de primeiro grau e com mais de
setecentos mil estudantes, dados referentes a 2004. Cabe observar que todas as metas
estabelecidas pela emissora dependem, visceralmente, de uma atitude/resposta da sociedade.
De um atendimento a um comando. Em verdade, os compromissos o são da Rede Globo e
sim, da sociedade.
Com relação ao Megashow, é isso que a Rede Globo sabe fazer de melhor:
espetacularizar os eventos reafirmando sua posição de excelência na organização e no uso da
tecnologia de ponta. Como vimos anteriormente e, por esta razão, nos detivemos no estudo da
democracia racial brasileira especialmente no que tange a raça negra, este show, apesar de
seu cenário alusivo às três raças, apresentou um Brasil bicolor, em relação as suas atrações
artísticas: branco e negro, com predominância negra. Constando que a maioria da população
brasileira é constituída de negros/mestiços.
Tal evento visou, além de marcar o icio para o grande público do envolvimento, do
compromisso social da Rede Globo, reafirmar o mito de que somos um Ps sem
discriminação racial e que, em última análise e a partir da miscigenação racial, somos um País
negro”.
127
O uso dos efeitos especiais e que possibilitaram a colocação da bandeira nacional
sobre a platéia e que só podia ser percebido pelo telespectador que assistia ao evento em seu
aparelho de televisão, levou a dois pensamentos. O primeiro deles, a surpresa do uso da
tecnologia e que “ só podia ser a Globo” tamm emissora nacional -, reafirmando sua
posão de lideraa na mente do público e o segundo deles e a partir do uso de um símbolo
emblemático da identidade nacional a bandeira nacional -, reforçar o sentimento de
pertencimento à nação brasileira.
Culminado o evento, outro símbolo emblemático e causador de comoção, foi cantado
o hino nacional por todos os artistas, reafirmando que apesar de suas cores diferentes, todos
são brasileiros eo fazem nenhuma discriminação racial. O uso de suas imagens como
celebridades brasileiras serviam de modelo de projeção para milhões de brasileiros que, em
estando em suas casas, podiam acompanhar este show transmitido por 20 câmeras e em som
estéreo surround.
Ainda no ano de 1998, foi realizado no dia primeiro de julho o laamento do Projeto
no exterior. A partir da cessão, por parte da FIFA, da utilizão do estádio “ Parc de Prices”,
onde estavam sendo realizados os jogos da Copa do Mundo, foi realizado o show “ Coração
Brasileiro” que reuniu mais de 50 artistas brasileiros e contou com a co-produção do clube
francês Paris St. Germain. Várias personalidades do futebol estiveram presentes, como Pelé e
Jo Havelange que, nesta ocasião, receberam o troféu “ Coração Brasileiro”. Entre os artistas
participantes, estavam Gilberto Gil e Daniela Mercury.
Neste caso, mais um espetáculo da Rede Globo: um show realizado em um estádio de
futebol no local onde o jogo da final da Copa do Mundo de Futebol tinha acabado de ser
realizado: o estádio Parc de Princes, em Paris. Neste momento, duas caractesticas do
nacional estavam se imbricando: música e futebol. A utilizão de celebridades dos dois
universos reafirmavam o poderio/supremacia brasileira, no contexto mundial, constituindo
uma idéia de nação forte e soberana.
Continuando o Projeto, nos meses de setembro e outubro de 1998 foram realizados
sete workshops, em locais onde estavam sendo desenvolvidos projetos voltados para a
educação, apresentados pela jornalista Mônica Waldvogel e que foram transmitidos pelo
Canal Futura para que um público maior pudesse participar. Nestes workshops, professores,
128
especialistas e empresários discutiram as prioridades do ensino com a presea dos pais,
alunos e representantes comunitários. Foram abordados sete questões prioritárias: gestão
escolar, aceleração escolar, valorização do professor, educação para valores, empresas e
educação, voluntariado e, por fim, a participação da família. Os workshps obedeceram ao
cronograma abaixo:
04 de setembro, Belo Horizonte – MG
11 de setembro, São Ls MA
18 de setembro, Curitiba PR
25 de setembro, São Paulo – SP
02 de outubro, Rio de Janeiro – RJ
09 de outubro, Porto Alegre RS
16 de outubro, Campinas – SP
Enquanto ocorriam os workshops, uma campanha foi ao ar com artistas da Rede Globo
divulgando as sete questões abordadas nos workshops. Os artistas que protagonizaram a
campanha foram: Xuxa, Edson Celulari e Cláudia Raia, Toni Ramos, Angélica, Paulo José,
Suzana Vieira e Fábio Assumpção.
De certo que nesta ação o que pode ter tido visibilidade foi, sem sombra de dúvidas, a
campanha publicitária veiculada na Rede Globo e protagonizada por celebridades da própria
emissora. A transmissão dos eventos pelo Canal Futura em pouco deve ter contribuído para a
visibilidade do projeto. No Brasil, as televisões por assinatura possuem uma baixa audiência,
quando comparadas com os canais abertos. Assim, uma série de comerciais protagonizados
por ídolos da massa brasileira reafirmava que todos, sem exceções e inclusive os artistas,
estavam/ou deveriam estar envolvidos com a questão da educação e com a construção de um
novo Ps, desta vez, mais igualitário e sem grandes distiões de oportunidades.
No mês de novembro de 1998 foi laada a campanha Professor do s” onde,
durante um ano e meio e todos os domingos no programa Fantástico, o público pôde
acompanhar a Homenagem do Brasil 500 anos a mais de um milhão e seiscentos mil
professores que lecionam no ensino fundamental. O quadro, nesse programa, valorizava o
trabalho desses profissionais apresentando casos em que o professor superava as dificuldades
129
da sala de aula com criatividade, amor e determinação. No total, 17 professores foram
homenageados e receberam, como pmio, uma caderneta de poupaa com R$ 5.000,00
(cinco mil reais) e um computador.
Esta ão foi a primeira que envolveu protagonistas ou personagens que vinham do
povo. Eram cidadãos como qualquer um poderia ser e que criavam a sensação de que a
campanha estava valorizando “ gente comum” e cujo apelo emocional, o professor pobre e que
vence dificuldades para realizar o seu trabalho, valorizava aquele personagem que todos
reconheciam sua vocação altruísta, apesar do poder público o se fazer presente. Para a
maior parte da população brasileira, uma caderneta de poupança” ideal de todos no valor
de R$ 5 mil reais, se traduzia em um grande reconhecimento por vários anos dedicados à
atividade da educão. Era, portanto, a Rede Globo valorizando os brasileiros em um lugar
que deveria ser ocupado pelo Estado.
Em dezembro de 1998, a apresentadora Angélica comandou uma campanha de
estímulo à leitura onde, com o apoio de cinco mil voluntários em 800 cidades brasileiras,
foram arrecadados mais de dois milhões de livros que foram encaminhados para escolas e
instituições carentes. O ponto alto dessa campanha foi o show da apresentadora que, em 48
horas gerou o resultado descrito acima.
Nesta ação, mais um show, desta vez comandado por um ídolo de programas infantis,
que visava arrecadar livros para escolas. Conforme alise anterior quando pontuava que o
que a Rede Globo fazia de melhor eram suas produções e se utilizando de sua força enquanto
rede midiática, o uso da celebridade foi o que sensibilizou o público para a obtenção dos
resultados alcançados. Resultados esses que, diga-se de passagem, o podem ser
considerados expressivos, visto que estavam envolvidos cinco mil voluntários em 800
cidades. Pela dia, podemos considerar que cada cidade doou, aproximadamente, 3 livros.
Algo bastante inexpressivo.
O Projeto Brasil 500 tamm esteve presente na passagem do ano de 98 para 99.
Houve a participação da Rede Globo no espetáculo da queima de fogos em Copacabana.
Apesar de a emissora incluir esta ação em seu Projeto Brasil 500 anos, em nada tal
ação se vinculou a isso, se o pelo uso da força midiática que, ao associar sua participação a
130
um evento tradicional da Cidade do Rio de Janeiro, divulgou/reafirmou sua posão como
uma emissora situada nesta cidade.
Em janeiro e fevereiro de 1999, portanto durante o recesso escolar, a Rede Globo
exibiu mensagens publicitárias de incentivo à leitura na sua programação. A campanha
Leitura nas Férias divulgou a importância da participação da família e da escola no despertar
da leitura em crianças e adolescentes. Nessa campanha, também foi utilizada a apresentadora
Angélica.
Neste caso, mais uma mostra da responsabilidade social da Rede Globo com a
(re)construção do Brasil, sem que guardasse, pela compreensão do público, nenhuma relão
com os 500 anos de descobrimento. Tal campanha poderia ser produzida a qualquer pretexto,
principalmente, em um período de baixa no número de anunciantes da emissora e de recesso
escolar. E, novamente, a emissora se apropria da imagem de um ícone da sua programão
infantil para reafirmar/dar credibilidade quanto a importância da leitura.
Durante a IX Bienal Internacional do Livro, e mais precisamente no dia 21 de abril de
1999, foi realizado o seminário A Importância da Leitura na Educação”, promovido pelo
Projeto Brasil 500, e reuniu professores, escritores de literatura infanto-juvenil e editores para
debater métodos de incentivo à leitura. Mais de 700 professores de ensino fundamental da
Rede Pública do Rio de Janeiro participaram desse evento.
Mais uma ão que não permitia a visibilidade para o grande público e, portanto, não
contribuiu para o reforço da identidade nacional.
No dia 22 de abril de 1999 foi dado o início a uma campanha que foi ao ar até o dia 22
de abril de 2000 e que era composta de 366 vinhetas que eram exibidas, diariamente, antes
dos principais telejornais da Rede Globo. Foram mensagens protagonizadas por
personalidades, artistas e cidadãos comuns que faziam a contagem regressiva para o dia do
aniversário de 500 anos de Brasil e levavam uma mensagem de otimismo e esperança para o
público. No dia do aniversário, a cantora Nana Caymmi fechou a série, cantando um trecho da
letra do Hino Nacional na melodia do “ Parans pra você”.
Nesta ação, a temporalidade volta à cena e, com ela, a atualizão da memória quanto
ao fato de que o futuro está chegando. Talão reafirmava, ainda, o compromisso de todos os
brasileiros com o futuro, visto que foram utilizadas mais de 300 pessoas protagonizando este
131
esforço de comunicão. De pessoas famosas a anônimos, e portanto, uma campanha que
incluía os excldos sociais, todos comunicavam mensagens que, por serem de otimismo e
esperança, se remetiam ao futuro do Brasil. Implicitamente, estávamos prestes a comemorar o
futuro e não a comemoração, no presente, de algo do passado.
Novamente, o hino nacional foi utilizado no a de aumentar o sentimento de
brasilidade, visto que foi ao ar no dia 22 de abril de 2000 e, portanto, na data em que se
comemorou os 500 nos de descobrimento.
Em abril de 1999 também foi lançada a série “ Momento 500 anos onde, durante doze
meses, o telespectador podia ver a origem histórica de vários aspectos da vida brasileira. Esta
série de 52 episódios visou despertar no público o sentimento de fazer parte desta grande
nação e transmitiu a mensagem de que todos podem ajudar na construção de um futuro
melhor para o nosso Ps. Todo o conteúdo dos programas foi, tamm, disponibilizado ao
público no site do Brasil 500 anos, colocado no ar, pela Rede Globo (www.brasil500.com.br).
A partir do dia 22 de abril a página da internet destinada ao Brasil 500 passou a ser atualizada
semanalmente. Este site continha temas ligados à educão e o usuário podia tirar dúvidas e
encontrar informações detalhadas das ões que foram empreendidas pelo Projeto Brasil 500
além, evidentemente, de poder consultar documentos e imagens históricas. Adia mensal de
acessos foi de 15 mil.
Novamente, a máquina midiática esteve a disposição no sentido de atualizar a
memória da sociedade em relação aos fatos ocorridos no passado. A disponibilização de tais
programetes pela web, ainda criou o sentido de atualidade, a partir do momento em que fatos
ocorridos no passado estavam disponíveis para o acesso, a partir do uso de uma ferramenta
altamente comprometida com o presente e o futuro. Era a história do Brasil reeditada para as
novas tecnologias da comunicão. Estes programas foram apresentados pela jornalista
Mônica Waldvoguel o que os conferia credibilidade a partir do tom jornalístico, e portanto
factual, empreendido.
No período de 10 a 14 de maio, portanto na semana em que é comemorada a abolição
da escravatura, foi realizado o Festival de Cultura Afro-brasileira que promoveu exposões,
encontros acadêmicos e debates sobre a heraa cultural africana. Durante uma semana,
escolas públicas, universidades, ruas e centros comunitários de Salvador/BA vivenciaram a
132
cultura negra, observando a sua importância na formação do povo brasileiro. O conteúdo dos
encontros visou a amplião da consciência de cidadania e a reflexão sobre as origens do
povo brasileiro. O Festival gerou a implantação de diversas ões nas escolas públicas do
Estado da Bahia.
Este Festival de Cultura vem ao encontro do discurso oficial do governo brasileiro
que, durante todo o período das celebrações, buscava evidenciar a mestiçagem da população
brasileira principalmente no que tange o branco e o negro sem, contudo, considerar a
emergência das novas gerações de brasileiros que são os filhos de imigrantes alemães,
italianos, japoneses, entre outras nacionalidades. Em verdade, era a Rede Globo (re)afirmando
o discurso político oficial e inculcando na memória a idéia de nação “ imaginada sobre o pilar
do chamado “ mito das três raças. Sem, contudo, apresentar uma das ts raças, o índio, que
afinal de contas e como a história registra, era o habitante destas terras na ocasião do
descobrimento.
No dia 15 de maio, portanto após o fechamento dos trabalhos do Festival de Cultura
Afro-brasileira, a Rede Globo promoveu e produziu o primeiro show temático, intitulado
Mama África, que contou com a participação de artistas nacionais, como por exemplo
Carlinhos Brown e Jorge Benjor, e estrangeiros, além de alguns grupos culturais da Bahia.
O show aconteceu no Farol da Barra, em Salvador, teve um público estimado em 100
mil pessoas e foi televisionado para todo o Brasil. O objetivo da Rede Globo na produção de
um grand finale para o Festival de Cultura Afro-brasileira foi o de estimular a celebração
das raízes negras na constituição da população brasileira.
Tal evento, mais um show de entretenimento para o grande público, apenas ratificou o
que havia acontecido no Festival de Cultura Negra, se o fosse pela fantasia estereotipada
que o cantor baiano Carlinhos Brown estava usando: um cocar de índio, simbolizando a
participão deste na composão da sociedade brasileira. Vale lembrar, que este show
ocorreu no Estado da Bahia, terra esta onde os portugueses desembarcaram por ocasião do
descobrimento e onde o Brasil é conhecido como negro. Onde o discurso oficial dominante
aponta para o fato de que todos na Bahia ou são negros ou possuem sangue negro”
advindo da miscigenação das duas raças branca e negra. Foi mais uma ação que visou criar
a identidade racial brasileira como negra.
133
No dia 8 de agosto de 1999 foi lançada no programa Fantástico, pelo ator Toni Ramos,
a música-tema do Brasil 500. Essa canção, foi interpretada pelo cantor Milton Nascimento e
contou com a performance de 80 crianças. A intenção da Rede Globo em criar uma música-
tema para o Projeto foi a de tentar popularizar as mensagens em prol da educação. Vale
lembrar que em nenhum momento a letra da música sugere algo relacionado à educação,
apesar dos grandes investimentos feitos nesta área, no que tange as ações do Projeto Brasil
500.
A letra da música dizia:
Caravelas ao mar,
Velas ao vento.
500 anos,
Nosso momento.
Brasil, Brasil.
Descobrir que o Brasil parece um coração.
Descobrir que o Brasil é uma grande nação.
O melhor lugar para viver é aqui,
Mas não foi Cabral,
Fui eu que descobri.
Brasil, você é lindo,
500 anos te descobrindo.
Brasil.
Tal caão não foi utilizada mais, se não no dia do lançamento no programa dominical
da emissora. Chamamos a ateão para o cantor escolhido para interpretar a música: Milton
Nascimento que, além de ser negro, o que o destacava em um cerio tomado pela cor branca,
atinge, apenas, as elites dominantes e não se insere no gosto popular. O ritmo da música,
também, o se inscrevia naquilo que podeamos denominar de gosto das massas. Portanto,
talvez sejam essas as razões que tenham levado a canção ao absoluto fracasso.
134
Também no dia 8 de agosto e no mesmo programa, foi lançada a campanha “ Crianças
na Educão” visando reforçar os objetivos do Projeto Brasil 500 Anos. Ao todo, foram
produzidas 12 vinhetas com mensagens de estímulo a um comportamento pró-ativo da
população com relação à educão. Todas as vinhetas foram protagonizadas por crianças que
diziam frases como: “ Eu o sei o que vou ser, mas vou ajudar o Brasil , “ O Brasil tem que
fazer bonito na educação” ou “ Mamãe tem razão, estudar é a solução”.
Esta ão novamente reafirma o “ mito da democracia racial brasileira, na medida em
que se utilizava de criaas de todas as etnias: japonesas, negras, brancas, etc., reafirmando
que o Brasil é um Ps de origem mesta, multirracial e multicultural. Além disso, o uso de
crianças protagonizando esta campanha criou uma identificação imediata com outras crianças
sedimentando, assim, a opinião/discurso da Rede Globo quanto ao futuro do País estar
vinculado, diretamente à questão da educão.
No dia 16 de outubro de 1999 e durante a 14ª edição do programa Criança Esperaa
foi lançada a campanha Amigos da Escola. Esta Campanha , que ainda se encontra em
andamento nos dias de hoje, foi implementada visando contribuir para a melhoria do
desempenho dos alunos nas escolas públicas brasileiras, atras de parcerias e do trabalho
voluntário dos cidadãos. Com o apoio do Comunidade Soliria”, esta campanha interage
com as escolas de ensino fundamental, incentivando iniciativas complementares às atividades
pedagógicas. Seu foco de atuação pre: a gestão escolar, reforço e estímulo à leitura, artes e
esportes, saúde e qualidade de vida e, por fim, instalões e equipamentos. Como primeiro
passo na estratégia de sua implantação, a Campanha travou contato com as 60 mil escolas do
País que possuem associação de pais e mestres. Em seguida e depois de preparar as
Instituições de ensino, foi laada a campanha de mobilização dos voluntários. Durante o seu
laamento no programa “ Criança Esperança foram exibidas mensagens incentivando a
população a “ o ficar de olhos fechados para a educação – todos têm que participar”.
A Campanha “ Amigos da Escola contou com o apoio, no que tange `as ões locais,
das afiliadas da Rede Globo. Tal apoio permitiu a crião das condições necessárias para a
participão permanente dos voluntários e parceiros. Foi criada uma central de atendimento
visando tornar a comunicação mais direta da Rede Globo e o público e um site,
www.amigosdaescola.com.br, foi disponibilizado no sentido de permitir: downloads das
135
publicações, informações de como participar, cadastro das escolas já inscritas, exemplos de
sucesso no Ps inteiro, fóruns de interatividade e canais de e-mail.
Como resultado, em oito meses de laamento, vinte e ts mil escolas se cadastraram
e doze milhões de estudantes foram beneficiados. Vale reafirmar que este projeto continua em
execão.
Sem sombras de dúvidas, esta foi a ão mais marcante de todo o Projeto Brasil 500
anos. Entretanto, vale lembrar, que talvez esta ação não esteja vinculada, por parte dos
receptores da informação, ao Projeto Brasil 500. Isto porque, foi a únicaão que permaneceu
acontecendo até os dias de hoje. Portanto, quatro anos após as comemorações. Trata-se,
também, da substituição do Estado pela mídia. Já que o Estado não cuida das questões ligadas
à educão, a Rede Globo acaba por assumir este papel e, consequentemente, transmite a
imagem de reconstrutora do País e, com isso, transmite a iia de nação brasileira.
Nos meses de novembro e dezembro de 1999 foi lançado o Projeto “ Pinte seus
sonhos. O projeto consistiu em estimular os alunos, das escolas cadastradas no projeto
Amigos da Escola”, a pintar, em dois mil estandartes de pano, mensagens que traduziam os
sonhos, anseios e esperanças da população por um futuro melhor. Esse projeto contou com a
adesão de 50 mil moradores de rios bairros da Cidade do Rio de Janeiro que se
mobilizaram para pintar 15 mil pipas que enfeitaram escolas, ruas e praças. Segundo a Rede
Globo, outras cidades do Ps aderiram espontaneamente ao projeto, incentivando alunos e
moradores a tamm criar e pintar estandartes de pano.
Esta ão o apresenta visibilidade nacional e o contribui para o reforço de uma
identidade nacional, visto que foi umaão restrita às escolas e sem visibilidade midiática.
Simultaneamente a essa ação, a Rede Globo empreendeu A União das Três Raças.
Tratou-se de uma homenagem do Brasil 500 às raças que formaram a nação brasileira e que,
simbolicamente, seria representada pela “ Chama do Conhecimento”. Assim, O “ Fogo do
Índio” foi aceso em 26 de novembro, na Serra da Capivara, no Pia; o “ Fogo Negro”, em 02
de dezembro, na Terra do Ronca, em Goiás; e o “ Fogo Branco”, no dia 11 de dezembro, em
Lisboa, Portugal. Da soma desses três fogos nasceu a “ Chama do Conhecimento”, acesa pelo
Presidente Fernando Henrique Cardoso e pela Primeira Dama, D. Ruth Cardoso, em 31 de
dezembro.
136
Nesta ação, observamos o discurso colonial e a reafirmão da chamada “ democracia
racial brasileira observada no discurso oficial. Há a (re)atualizão da memória de que fomos
colonizados pelo portugueses e hoje, somos um país mestiço.
Após ter sido acesa a “ Chama do Conhecimento”, o Reveillon do ano de 2000, na
Praia de Copacabana no Rio de Janeiro, também teve a participação do Projeto Brasil 500. A
festa, que foi transmitida pela Rede Globo ao vivo para todo o Brasil, foi destaque no canal
internacional da Globo e pôde ser vista durante quinze minutos, no Times Square em Nova
York. No evento, a Rede Globo montou quatro grandes palcos na Praia de Copacabana, onde
alguns dos principais artistas brasileiros se apresentaram. Foi montado, tamm, um sistema
interativo de comunicação a TV Copacabana em que duzentos e quarenta monitores de
TV foram colocados em vinte pontos na praia e, transmitidos por eles, eram veiculadas
informações de serviço, mensagens e reportagens ao vivo. Vale lembrar que a decoração do
evento em Copacabana, Recife e Salvador foi toda feita por profissionais da Rede Globo de
Televisão.
Mais um evento foi realizado utilizando-se toda a tecnologia disponível, denotando a
força da emissora na produção de eventos. O sentido de valorizão do nacional pôde ser
observado a partir da transmissão do evento no lugar mais importante, em termos de
visibilidade de eventos, dos Estados Unidos.
As imagens do povo brasileiro” residente em Nova York e que foram transmitidas
para o Brasil, reafirmava esta identidade nacional e que só era possível ser vista, porque a
Rede Globo estava proporcionando estas imagens espetaculares. Houve, mais uma vez, a
espetacularização da tecnologia da Rede Globo e do evento em Copacabana. Local este,
refencia das comemorações de final de ano.
No s de janeiro de 2000 a Chama do Conhecimento” percorreu virtualmenterias
regiões, “ iluminando” experiências de sucesso baseadas no trabalho voluntário dos cidaos,
especialmente vocacionados para a formação das criaas brasileiras. As reportagens
desenvolvidas a partir dessa ação foram exibidas duas vezes por mês no programa Fantástico
e, aos sábados, no Programa Ação.
A inclusão do povo brasileiro” nas comemorações podem ser observadas nesta ão.
Mais uma vez, a Rede Globo mostrou anônimos que tiveram algum projeto empreendedor e,
137
consequentemente, passaram a ter visibilidade. Ao apresentar pessoas de todas as regiões do
País, passou-se a iia de que o povo brasileiro estava engajado nas comemorações dos 500
anos de descobrimento. Novamente, foi dada a idéia de integração nacional e, com isso e pelo
processo de identificão, o telespectador se via como parte integrante deste Projeto de
construção de um novo nacional.
Foi também a partir do mês de janeiro que a ação Amigos da Escola” ganhou a
participão do ator Toni Ramos que, simbolizando a adesão de todos os artistas da Globo ao
Projeto Brasil 500, participou, e ainda participa, derios institucionais do “ Amigos da
Escola paradio e TV, e apresentou, no Canal Futura (pertencente ao grupo Roberto
Marinho), duas séries destacando escolas públicas brasileiras que abriram suas portas à
participão da sociedade.
Nesta ação, o uso de uma celebridade capitaneava os esforços de reafirmação do
programa “ Amigos da Escola e a credibilidade que o ator transmitia ao público ratificava a
importância do Projeto.
No dia 16 de fevereiro de 2000 foi exibido, pela Rede Globo, o programa “ Brasil por
Natureza”. Tratava-se de uma mistura de documentário e musical com a apresentão
protagonizada pelo ator Lima Duarte e com a participação de artistas da música popular
brasileira como, por exemplo, Elba Ramalho, Gabriel o Pensador, Almir Sater, Karametade e
Cidade Negra. Am de cantar, os artistas atuaram como repórteres guiando o público atras
das belas paisagens brasileiras e destacando a riqueza e a diversidade de nossas culturas
regionais. O Programa, com uma hora de duração, veiculou imagens “ raras do Pantanal
matogrossense, dos canyons do Rio Grande do Sul e da Ilha de Marajó, na Amazônia. A
proposta para a realização do “ Brasil por Natureza” objetivava o “ despertar no público o
orgulho de ser brasileiro”.
Nesta ação, podemos observar que a Rede Globo buscou (re)descobrir o Brasil no que
tange a cultura e a geografia. Apresentar o interior do País aos brasileiros e dar-lhes a noção
da extensão territorial ainda por ser descoberta é, na realidade, uma tentativa de construir a
iia de nação, a partir das belezas e o orgulho de ter em suas terras, paisagens tão exóticas e
diferentes. Algo como: “ o Brasil possui riquezas naturais como estas”. No campo da
138
musicalidade, cantores com ritmos tão diferentes, mas ao gosto popular, reafirmavam a
posão multicultural brasileira.
No s de abril, portanto no s em que se comemorou os 500 anos de descoberta do
Brasil, a Rede Globo empreendeu três ações. No dia 11, lançou o livro “ O Sítio no
Descobrimento que foi escrito pela escritora Luciana Sandroni que, se apropriando dos
personagens criados por Monteiro Lobato na série “ Sítio do Pica-Pau Amarelo”, contou, de
forma bem-humorada, os primeiros episódios do descobrimento do Brasil. Esse livro, com
tiragem de 40 mil exemplares, foi distribuído para todas as escolas inscritas no projeto
Amigos da Escola”.
Nesta ação, houve a (re)atualizão da história para as crianças, a partir de
personagens familiares a elas. Não foi uma ação de visibilidade midiática. Tratou-se de uma
ação que diretamente se liga à questão da temporalidade: o passado contato com personagens
do presente e sugerindo sugestões para o futuro da nação.
No dia 22 de abril de 2000 a Rede Globo encerra o Projeto Brasil 500 com um
megashow na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, Capital do Brasil. Na abertura do
evento, o ator Lima Duarte lê o texto abaixo:
Índio, branco, negro. Não foi um encontro fácil.
Nossa história fala de massacres, guerras e escravidão. Mas do
encontro dessas três raças surgiu um novo povo, uma gente que tem
nas veias o sangue mestiço. Brasil! O futuro começa agora! .
53
Cerca de quatrocentas mil pessoas estavam presentes no local do show para celebrar
os 500 anos do Brasil e a Rede Globo, para tal, montou o maior palco em via pública: 100
metros de boca de cena divididos em cinco ambientes. Para se ter idéia da grandiosidade do
evento, uma subestão de energia teve que ser construída exclusivamente para suprir o
consumo de eletricidade necessário para a realização do show.
Na abertura do evento, o ator Matheus Nachtergaele gravou uma participação especial
interpretando o Mestre Jo Faras, astrônomo da Esquadra de Pedro Álvares Cabral.
Com a participação dos grandes nomes da música popular brasileira, como Elza
Soares, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Chitãozinho & Xororó, Alcione, Fat Family, Sandy e
5353
Revista Memórias: Brasil 500 anos. p. 46.
139
Junior, Daniel, Zeca Pagodinho, Ivan Lins, Simone, entre outros e de diversos artistas das
novelas da Globo, como Ana Paula Arósio, Maria Fernandandido, entre outros, o show de
encerramento do Projeto, com duas horas e meia de duração, foi transmitido para todo o
Brasil. Efeitos de computão gráfica estampavam, sobre o público presente, a bandeira do
Brasil. O cerio, assinado por Mauro Monteiro, fez uma homenagem ao arquiteto Oscar
Niemeyer, lembrando a Capital do Brasil. Outras homenagens também foram promovidas.
Dentre os escolhidos para serem homenageados, foram incluídos os artistas Dorival Caymmi,
Cazuza e Tim Maia, onde os cantores presentes excecutaram algumas de suas composões.
Ao final do show, 11 líderes religiosos do Brasil fizeram uma confraternização.
Mais uma vez, a espetacularização dos 500 anos de descobrimento se fez presente.
Neste momento, misturaram-se todos os ingredientes para a construção da idéia de nação: a
chamada democracia racial brasileira” a sociedade multirracial, o uso de celebridades
capitaneando esforços, símbolos emblemáticos do nacional a bandeira do Brasil , a
temporalidade com a mistura do passado, representado pelo ator Matheus Nachtergaele
quando interpretou o Mestre Jo Faras, com as imagens da Capital do Brasil Brasília que
pertence a um passado recente e completamente distante da temporalidade do astrônomo da
esquadra de Pedro Alvares Cabral, e a (re)construção do futuro do Brasil. Por fim, mais um
ingrediente: a possibilidade dos deres religiosos se apresentarem juntos, comprovando que
o discriminação em relação à diversidade de credos observados em nosso Ps. Soma-se
a isso, a transmissão feita do evento, em rede nacional, por uma emissora detentora de uma
audiência acima dos 40 pontos. Foi o nacional expresso em toda a sua extensão.
No dia 26 de abril, última ação em que a Rede Globo teve participão, foi celebrada
uma missa, em Santa Cruz de Cabrália, simbolizando um novo como. Tal evento, que foi
realizado em parceria com a CNBB, reuniu 20.000 pessoas e teve como cenário a reprodução
da primeira missa no Brasil. A missa foi celebrada pelo legado papal, incluindo o Monsenhor
Soldano, segundo na hierarquia do Vaticano, teve duração de duas horas e foi transmitida, ao
vivo, para todo o Brasil.
140
Nesta ação, o ingrediente final da cultura brasileira. O sagrado representado por uma
missa que, ocorrendo no presente, atualizava a memória quanto ao passado e, ao mesmo
tempo, inaugurando um novo futuro para o Brasil.
Após a alise da produção que envolveu o Projeto Brasil 500 da Rede Globo de
Televisão por ocasião das comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil, julgamos
necessário fazer uma alise da recepção de todas estas ações.
Para isso, selecionamos duas grandes publicações nacionais da mídia brasileira. As
revistas Veja e Istque, a partir da leitura das cartas de leitores enviadas para as editoras no
período compreendido entre os meses de janeiro de 1998 e dezembro de 2000, por terem uma
circulação nacional e atingirem a um público formador de opinião e que, portanto, pensa
sobre os fatos ocorridos no Brasil - , nos pareceu representativas e satisfatórias enquanto
termômetro para a avaliação dosveis de recepção, não só do Projeto Brasil 500 mas,
também, dos comentários destes leitores sobre todo o período em que as ações da Rede Globo
começaram a ser implementadas e que as comemorações oficiais ocorriam, paralelamente, a
este Projeto e que serviram de fonte/palco para diversas matérias jornalísticas destes dois
veículos de comunicão.
141
10 - A Recepção do projeto Brasil 500 Anos - uma grande pátria
“Desimportante”.
A base metodológica usada nesta etapa do trabalho está alicerçada na perspectiva de
uma articulação transdisciplinar, conforme descrito na introdução deste trabalho, onde alguns
dos conceitos teóricos apresentados nos capítulos anteriores fundamentam a pertincia da
alise das cartas dos leitores das revistas Veja e IstoÉ. Em outras palavras, ao dialogarmos
com alguns autores tais como: o conceito de mediões (Martin-Barbero), a relencia dos
leitores (consumidores) no exercício da sua cidadania (Canclini), o pertencimento a uma
comunidade imaginada (Benedict Anderson), a construção da identidade (John B. Thompson,
Stuart Hall, Manuel Castells), a construção/atualização da memória coletiva e sua articulação
com a dia (Ana Paula Goulart e Marialva Barbosa), a cultura e a identidade nacional
(DaMatta e Ortiz) entre outros, estaremos ratificando a aplicabilidade ou não destes conceitos.
Assim, esta articulão transdisciplinar nos levará à verificão da visibilidade de um
processo interacional entre os atores envolvidos na produção e na recepção.
Antes, porém, gostaamos de fazer referência a uma reportagem veiculada na revista
ISTOÉ, em sua edição número 1.534, de 24 de fevereiro de 1999, cujo título foi: Eu sei que
vou te amar”, onde sua proposta era a de apresentar, a partir da entrevista com diversos
personagens sociais, alguns depoimentos que continham a percepção de alguns cidaos sobre
o orgulho, ou não, de serem brasileiros.
Consideramos importante destacar/chamar tal reportagem, antes de fazermos a análise
da recepção do Projeto Brasil 500, na medida em que esta matéria pode consubstanciar e vir
ao encontro de nossas necessidades ao servir como reforço para a análise da recepção das
ações empreendidas por ocaso das comemorações de 500 anos de descobrimento, além de
justificar o título deste capítulo: Uma pátria desimportante.
Se utilizando da internet como ferramenta para a elaboração de uma enquete com seus
leitores, a revista IstoÉ formulou a seguinte pergunta: Você tem orgulho de ser brasileiro?
Seis mil deles responderam a este estímulo e o resultado foi, até certo ponto,
surpreendente: 46,8% dos entrevistados responderam que sim. 53,2% responderam que não.
Na tentativa de se buscar uma explicação, a revista identificou que o número de leitores
142
votantes da opção “ o sinto orgulho” aumentava, significativamente, no horário em que
estava no ar o programa “ Jornal Nacional veiculado pela Rede Globo de Televisão.
Tal dado nos leva a reafirmar, conforme observamos no capítulo deste estudo
destinado ao estudo da memória coletiva, a interferência da dia enquanto construtora, no
nosso caso, do sentimento do nacional. Tal afirmação é suportada na medida em que, não raro
em todos os telejornais brasileiros, o volume de notícias que versam sobre a violência, a alta
dos preços e da inflão, o desemprego, a corrupção, a impunidade, a absoluta ausência do
poder do Estado em áreas como saúde, educão, transportes, habitão, entre outras é,
absolutamente maior do que matérias que apresentam um Brasil em vias acertadas para se
transformar numa nação capaz de figurar entre as grandes potências mundiais.
Diante deste amontoado de informações negativas em relação ao volume tímido de
informações positivas sobre nosso Ps, podemos, sem medo de errar, afirmar que a memória
coletiva aponta para uma vertente de “ envergonhamento”, por parte da população, de ter o
sentimento de pertencimento à nação brasileira.
Vale ressaltar e conforme haamos exemplificado anteriormente, que tal sentimento
de pertencimento à nação brasileira aumenta ou diminuiu de acordo com o que é pautado na
agenda midiática. Em outras palavras, observamos que o brasileiro aflora o seu sentimento do
nacional em diversas ocasiões, principalmente quando a mídia evidencia a performance de
alguma equipe esportiva brasileira em campeonatos no exterior, quando algum brasileiro é
reconhecido e aclamado no estrangeiro e em outras situações congêneres.
Curiosamente e como ressalta a reportagem da jornalista Marta Góes, o brasileiro
tende a sentir orgulho de pertencer à nação brasileira somente quando exposto ao olhar
estrangeiro”. Em outras palavras, quando o estrangeiro nos credita algum valor. Isto pode ser
confirmado no depoimento de um dos personagens da matéria jornalística, o feirante Ricardo
Serra de 17 anos, quando ele sentencia:
Tem que conservar os preços baixos, não sujar a
cidade e trabalhar muito, senão a crise piora. Tenho vergonha da
distribuição de renda. (…) Os gringos não acreditam nas minhas
bananas. As nossas frutas são excepcionais” .
143
Sim. O personagem tem a noção de cidadania. Sabe que não pode sujar a cidade, por
exemplo. Ele tem vergonha, ao interpretarmos o seu depoimento, de ser brasileiro quando
convive com a dicotomia da pobreza e da riqueza. Entretanto, quando expõe seu sentimento a
partir da admiração do estrangeiro pelo seu produto, Ricardo aflora o seu sentimento de
orgulho de conseguir comercializar algo tão maravilhoso que é produzido em terras
brasileiras. E que somente o Brasil consegue tal façanha. Em suma, o seu orgulho de ser
brasileiro.
Complementando esta análise, podemos nos apropriar da parte desta reportagem onde
o psicanalista Jorge Forbes, presidente da Escola Brasileira de Psicanálise, sentencia: “ Temos
uma posão passiva de atribuir ao outro o julgamento a nosso respeito”.(p.82). É isso que
ocorre. O julgamento do estrangeiro é mais importante, para nós, que o nosso próprio
julgamento sobre nós mesmos.
Outra curiosidade que a reportagem apresenta e que nos chamou a ateão, ainda no
contexto da valorização do estrangeiro em relação a cor local, se refere a uma cidade chamada
Salitre, no Cea, cuja população é de cinco mil habitantes. Trata-se da questão da população
ter ficado espantada ao receber os membros de uma comissão da “ Universidade Soliria”
pelo fato dos componentes da missão terem nomes como: Antônio, Paulo, Fancisco e José
Vicente. Tal espanto se deu, pelo número de Michael Jacksons, Jordan Kennedy, John Kevin
e Djullyanny que são encontrados na cidade.
Neste relato, é interessante observar como a cultura americana interfere e, muitas
vezes, se sobrepõe ao nacional, mesmo em uma cidade cuja pressão dos “ mass mediao se
faz tão presente como nos grandes centros urbanos. Onde as raízes, o folclore, o artesanato,
ainda são valorizados e praticados. Onde as tradições são constantemente realimentadas.
Ainda nesta reportagem, mais duas observações nos chamaram a ateão. A primeira
delas, diz respeito à questão da nossa formação histórica. Nesta vertente, a repórter, ao
entrevistar e citar o historiador Jaime Pinsky, escreve que o eleitor nada tem a ver com seus
representantes e que tal atitude se justifica “ pelo fato de o Brasil ter virado Estado antes de ser
nação”(p.85).
Para consubstanciar tal pensamento, a repórter se apropria do depoimento do
historiador e acrescenta:
144
Quando se criou a monarquia ela foi comemorada
por um pequeno grupo político, e isso gerou um processo acéfalo no
Brasil. A culpa é sempre ‘deles’. Não conheço ninguém que diga nós’
quando fala do governo” .(p.85)
Com efeito. Neste depoimento observamos alguma semelhanças com o ocorrido com
as comemorações oficiais por ocasião do aniversário de 500 anos do descobrimento do Brasil.
A primeira delas se refere ao fato do eleitor não ter vínculos com os seus escolhidos como
representantes políticos. Não raro, ouvimos as pessoas relatarem que não se lembram mais em
quem votaram para cargos como vereadores, deputados estaduais ou federais e, em casos
extremos, já se esqueceram em quem votaram para prefeito, governador e/ou presidente da
república. Devemos acrescentar a esta falta de compromisso de alguns brasileiros com o seu
voto, algumas reportagens televisivas que, por estímulo dos repórteres, vemos algumas
pessoas que desconhecem o nome e/ou os feitos do presidente da república, de vereadores,
deputados, etc.
É, com certeza, uma prova cabal do descompromisso do cidao com os políticos que
dirigem e orientam o desenvolvimento da nação brasileira.
Ainda analisando a citão descrita acima, nos deparamos com outra coincidência: as
comemorações da crião da monarquia também envolviam, apenas, as elites dominantes, tal
qual as comemorações pelos 500 anos de descobrimento do Brasil. Se esta última pode ser
considerada como a festa dos “ excluídos sociais”, como vimos anteriormente, a festa de
criação da monarquia tamm. Não houve nenhum envolvimento da sociedade, como um
todo. E o mesmo pôde ser observado em todas as comemorações das grandes datas nacionais.
O outro ponto desta reportagem e que nos chamou a ateão se refere a busca da dupla
nacionalidade por aqueles que podem desfrutar desta possibilidade. Neste sentido, a
reportagem apresenta mais uma personagem. A jornalista brasileira Cristiane Bensen, que tem
dupla cidadania: brasileira e italiana. Segundo a reportagem, a jornalista evita a sua
identificão como brasileira. Em seu depoimento, ela relata:
Lá fora prefiro ficar quieta a dizer que sou brasileira,
e passo longe daqueles grupos barulhentos. mostro o passaporte
italiano, pois o brasileiro tem fama de malandro e eu sou quase
inglesa. Respeito fila e chego no horário” .(p.84)
145
Este relato novamente apresenta a importância dada, pelo brasileiro, ao olhar
estrangeiro. A percepção do exercício de cidadania dos povos situados no hemisrio norte
levam esta jornalista a se envergonhar de ser brasileira. Por que isto aconteceria se o povo
italiano também guarda caractesticas semelhantes às caractesticas brasileiras? Talvez esta
reação se justifique, na medida em que esta personagem gostaria de fazer parte do mundo
dos grandes e, a possibilidade da dupla cidadania, lhe permite isso: deslocar sua dupla
identidade ao seu bel-prazer.
Vale ressaltar que a revista Ist, na edição subseqüente a esta, recebeu diversas cartas
de repúdio aos depoimentos fornecidos pelos personagens. Das cartas publicadas sobre este
assunto, sete eram de cidaos brasileiros e que residiam em outros países do mundo.
A partir do nosso comentário sobre alguns dos pontos da reportagem citada, pensamos
que poderemos proceder à análise da recepção das ações empreendidas por ocasião das
comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil.
Para tal, conforme adiantamos anteriormente e que agora aprofundaremos os dados,
foram utilizadas, para o estudo de recepção, as cartas dos leitores das duas maiores revistas
semanais brasileiras de interesse geral, no peodo de janeiro de 1998 a dezembro de 2000
(vide anexos).
A fim de oferecermos ao leitor uma noção da amplitude e penetração destes veículos
de comunicão em nosso Ps, forneceremos, a seguir, alguns dados técnicos de circulação e
públicos atingidos.
No que tange o item cobertura, o total de leitores no Brasil da Revista Veja é de oito
milhões oitocentos e vinte e quatro mil quinhentos e onze, enquanto que na Revista IstoÉ esse
total é mais reduzido e atinge 3.353.720 leitores.
Em relação à circulação, a Revista Veja tem em dia uma tiragem total de 1.093.062
exemplares, distribuídos da seguinte maneira: 898 mil 134 em assinaturas; 190 mil 208 em
vendas avulsas e a diferença fica para cortesias, exterior e etc.
Quanto a circulação da Revista IstoÉ, a circulão total é 419 mil 215 exemplares,
sendo que ela possui 277 mil 263 assinantes e 52 mil 134 exemplares sendo vendidos de
forma avulsa. A distribuição da circulão pelas regiões do ps são muito semelhantes para
ambas as revistas. Da tiragem total dos exemplares das Revistas Veja e IstoÉ, quatro por
14
6
cento são destinados a Região Norte do Brasil. Dezesseis por cento para a Região Nordeste,
nove por cento para a Rego Centro-Oeste, cinqüenta e sete por cento para a Região Sudeste
e, por fim, quatorze por cento para a Região Sul.
A distribuição por unidades federativas pode ser observada conforme disposto nas
tabelas a seguir:
Veja IstoÉ Percentual
Rego Norte
46.570 27.069
AC 2.611 1.173
AP 2.135 1.840
AM 8.672 7.053
PA 15.598 12.017
RO 7.996 2.594
RR 2.395 1.152
TO 7.163 1.290
4%
Veja IstoÉ Percentual
Rego Nordeste
170.171 69.156
AL 8.485 5.794
BA 54.55 27.723
CE 23.558 8.417
MA 12.632 4.769
PB 12.3289 3.426
PE 30.447 12.924
PI 8.316 3.208
RN 13.008 4.252
SE 6.836 2.646
16%
Veja IstoÉ Percentual
Rego Centro-Oeste
99.440 33.788
DF 33.018 11.599
GO 29.503 11.648
MT 20.472 11.648
MS 5.178 5.363
9%
147
Veja IstoÉ Percentual
Rego Sudeste
623.351 163.014
ES 18.466 6.821
MG 89.676 54.635
RJ 103.810 35.599
SP 411.839 64.959
57%
Veja IstoÉ Percentual
Rego Sul
148.810 66.267
PR 59.156 20.061
SC 46.558 15.415
RS 43.096 30.790
14%
Quanto ao perfil do leitor da revista VEJA apresentamos os dados abaixo, a partir do
relatório Marplan publicado no ano de 2002 e pesquisados nove mercados, com um universo
de leitores de 4.670.000.
Classe econômica dos leitores Critério ABA/ABIPEME
Classe AB – 67%, representando 3.141.000 leitores
Classe C – 23%, representando 1.061.000 leitores
Classe D/E 10%, representando 468.000 leitores
Totalizando 100%, representando 4.670.000 leitores
Com relão a faixa etária a Revista Veja se apresenta como:
10 a 19 anos - 22% , representando 1.002.000 leitores
20 a 39 anos – 45% , representando 2.110.000 leitores
40 a 49 anos – 16% , representando 737.000 leitores
Mais de 50 - 17% , representando 801.000 leitores
Com relação ao sexo, dos leitores de Veja 49% são do sexo masculino e 51% são do sexo
feminino. Destes, 52% são solteiros e 39% casados.
148
Quanto ao grau de escolaridade, 38% ou 1.767.000 leitores possuem o curso colegial
completo e 35 % dos leitores têm vel superior completo. Este índice é quase ts vezes
maior que a média da população.
Quanto ao perfil do leitor da revista ISTOÉ, apresentamos os dados abaixo, obtidos pelo
relatório Marplan publicado em 2002.
Classe econômica dos leitores Critério ABA/ABIPEME.
Classe AB – 68,2% representando 2.280.530 leitores
Classe C - 24,0% representando 804.892 leitores
Classe DE - 8,0% representando 268.298 leitores
Com relão a faixa etária, a Revista ISTOÉ se apresenta como:
10 a 19 anos – 21% representando 704.281 leitores
20 a 39 anos – 48% representando 1.609.785 leitores
40 a 49 anos – 17% representando 570.132 leitores
Mais de 50 - 14% representando 469.522 leitores
Com relação ao sexo dos leitores, 47% são do sexo masculino e 53% são do sexo feminino.
Destes, 49% são solteiros e 36% são casados. Quanto ao grau de escolaridade, 46% possuem
o colegial completo e 31% possuemvel superior completo.
A partir dos dados apresentados e imaginando uma população brasileira estimada em,
aproximadamente, 180 milhões de brasileiros, ao nos utilizar destas duas publicações
semanais para proceder à alise das cartas dos leitores estamos tendo acesso à recepção de
mais de 6,76% da população brasileira em geral. Neste contexto, se estratificarmos por classe
social e, em sabendo que o Brasil possui 24% da população incldas na classe AB dados
ABA/ABIPEME/96, mais de 12% da população de classe AB foi impactada pelas matérias
das revistas VEJA e ISTOÉ e, portanto, susceptível a dar suas impressões sobre o Projeto
Brasil 500 anos e sobre as matérias pertinentes ao assunto.
149
10.1 A ANÁLISE DAS CARTAS DOS LEITORES DA REVISTA VEJA
Inicialmente, analisaremos as cartas dos leitores recebidas pela Revista Veja sobre
tudo que permeou as celebrações dos 500 anos de descobrimento do Brasil. As cartas se
referem a diversas ões que foram empreendidas, oficiais ou não oficiais, independentemente
de se referirem ao Projeto Brasil 500
anos empreendido pela Rede Globo de Televisão.
Cabe observar, que a Revista Veja publicou diversas matérias jornasticas sobre todas
as ões oficiais e que dominaram a dia nacional como um todo. Em outras palavras, assim
como os jornais publicaram matérias jornasticas sobre as manifestações dos sem-terra, dos
índios, sobre a Nau Capitânia, etc., as revistas, também, acompanharam este movimento.
Feitas estas observações, começaremos às análises.
Surpreendentemente, no período compreendido entre os anos de 1998 e 2000,
localizamos cartas de leitores pertinentes ao tema desse trabalho em apenas 4 edições na
Revista Veja, perfazendo um total de, apenas, 10 cartas de leitores publicadas alusivas ao
Brasil 500 anos. Nenhuma se referia ao Projeto Brasil 500 anos da Rede Globo. Entretanto,
pelo sentimento demonstrado pelos leitores continuamos a analisar as cartas com o objetivo
de aproximá-las para a nossa alise do objeto deste trabalho o projeto da Rede Globo.
Gostaria de chamar a ateão para o fato de que, outros assuntos como a transmissão do parto
da apresentadora Xuxa, uma entrevista com Hebe Camargo, e etc, tiveram, pelo menos, um
número superior a 30 cartas publicadas. O que, em uma primeira alise, denota a total
desimportância do acontecimento para os leitores desta publicão.
Encontramos uma primeira manifestão que tangenciava as comemorações de 500
anos de descobrimento do Brasil no dia 27 de janeiro de 1999, quando um leitor da cidade de
Ilus/BA faz referência a uma entrevista, veiculada nas páginas amarelas do dia 20 de
janeiro de 1999, com o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado onde ele faz refencias à
necessidade de conservação de alguns dos patrimônios brasileiros.
Neste momento, o autor da carta, sr. Fvio Leopoldino, faz a observação abaixo:
São lováveis as iniciativas conservacionistas de
Sebastião Salgado; não se percebem nas agitadas comemorações dos
500 anos reflexões sobre o genocídio das culturas indígenas e a
devastação da Mata Atlântica. Há um ano, o equivalente a vinte
150
campos de futebol por dia era devastado por madereiros do sul da
Bahia. Por falta de uma política ambiental ria, o risco é iminente” .
Nesta carta, percebemos claramente o desapontamento do leitor no tocante às
comemorações oficiais do aniversário do descobrimento do Brasil. O leitor considera que
assuntos pertinentes como a questão indígena e a preservação do patrimônio natural brasileiro
devessem ser motivo de discussão e reflexão por parte dos dirigentes políticos brasileiros e
o, serem renegados a um segundo plano, como se tais fatos o tivessem importância e
devessem ser excluídos da pauta das comemorações pelo aniversário do descobrimento.
Pode-se perceber, pela expressão “ agitadas comemorações dos 500 anos…” que o
leitor, tamm, se referia às reações dos grupos sociais minoritários em relação aos eventos
oficiais programados, onde diversas manifestões ocorreram em paralelo às ões oficiais de
cater, eminentemente, elitistas e excludentes.
A segunda data que continha alguma refencia ao assunto foi localizada no dia 03 de
maio de 2000, portanto após o dia do aniversário de 500 anos de descobrimento do Brasil, e
continham publicadas quatro cartas, apesar de, sobre a edição especial “ A Aventura do
Descobrimento produzida e veiculada pela revista, terem sido recebidas, por Veja, 35
correspondências no total. Vale lembrar, que a reportagem sobre o Movimento dos Sem-
Terra, a entrevista com a psicóloga Ana Bock e que a matéria sobre Ioga obtiveram,
respectivamente, 65, 61 e 58 cartas. Ainda na alise quantitativa, do total de
correspondências recebidas durante esta semana (1561), apenas 0,02%, ou 35 unidades, se
referiam ao nosso tema. Este percentual denota, claramente, o grau de importância que os
leitores da revista deram a um evento que deveria pontuar este peodo do ano. Pior que isso,
conforme veremos a seguir, nenhuma das cartas publicadas se referem a data ou aos eventos
promovidos, sejam oficiais ou não. Tratam-se de correspondências alusivas à edição especial
veiculada principalmente, como atualização da memória coletiva.
Uma das cartas, do leitor Sinvaldo do Nascimento Souza de Santa Cruz no munipio
do Rio de Janeiro, se apresenta com o seguinte conteúdo:
Veja mais uma vez presenteia seus leitores com uma
Edição Especial que, além de contribuir para demarcar em termos
editoriais os 500 anos do achamento do Brasil, nos convida a brincar
com o tempo histórico sugerindo uma lúdica viagem no túnel do
151
tempo para acompanhar de perto a epopéia dos descobrimentos.
Trata-se de uma edição primorosa, elaborada por uma competente
equipe de jornalistas e pesquisadores que fizeram a proeza de
transformar textos acadêmicos e escolásticos em reportagens
jornalísticas de fácil assimilão.
Esta carta nos remete, claramente, para a questão da mídia estar
(re)construindo/atualizando a memória coletiva e, ao mesmo tempo, servindo como
documento histórico. A temporalidade se faz presente no momento em que o leitor descreve
nos convida a brincar com o tempo histórico sugerindo uma lúdica viagem no túnel do
tempo…”. Em outras palavras, o presente se confunde com o passado e reafirma a tradição
construída pela história como garantia para as gerações futuras. Quando o leitor se refere ao
achamento do Brasil e o ao descobrimento do Brasil, como preconiza o jargão da história,
percebemos claramente o descrédito, o “ pouco caso”, ou mesmo o envergonhamento do
evento que marca (ou que pontua) as nossas origens, como fosse ele, apenas, um mero acaso
em meio uma a rota à Índia, uma “ desinteligência” portuguesa que, “ perdida”, apareceu por
aqui, como um pedaço de terra indigente, desinteressante e desimportante, que teria sido
digna apenas de um achamento”. Se é esta a forma que um cidadão pensa acerca de nosso
descobrimento, podemos imaginar que é este o discurso que ele transmiti aos seus
descendentes, futuras gerações de brasileiros, sobre nossas origens. E neste ciclo de
transmissão de nossa história, novos brasileiros terão o mesmo sentimento de vergonha do
passado brasileiro. Talvez seja também e por isso, que todas as ações empreendidas pela Rede
Globo por ocasião das comemorações dos 500 anos de descobrimento se remetiam `a
construção de um futuro para o Brasil. Como se o passado fosse apenas apropriado para
pontuar o início de uma nova era para o Brasil. De outros quinhentos anos”, já que este
passado, talvez, seja abominado pela população e, portanto, não merecedor (ou digno) de sua
ateão, lembraa ou comemoração.
Outra carta, desta vez do leitor Valter Francisco, por e-mail, descreve suas impressões
sobre esta edição especial, conforme descrito abaixo:
Criatividade e genilidade combinadas numa iia
incrível. É impressionante como somos conduzidos num piscar de
olhos ao culo XVI .
152
Numa primeira leitura, podemos nos remeter à questão da temporalidade. Isso se faz
presente, no momento em que o leitor se refere à expressão:… somos conduzidos num piscar
de olhos ao século XVI”. É como se passado e presente fossem uma coisa só. Não obstante
isso, sua impressão sobre o estudo da história, enquanto algo maçante e sem graça, adquire
uma leveza e uma nova roupagem, a partir da edição proposta por Veja.
Entretanto, analisando o discurso contido em seu escrito, podemos observar que,
curiosamente, ele fornece à história caractesticas humanas de construção/narrativa. O leitor
considera que a narrativa histórica foi criativa e genial. Como se a revista tivesse
(re)contado/(re)criado a nossa história em um tom mais glamouroso ou, no mínimo, fictício
em relação à realidade dos fatos. Pior. O leitor reconhece que a história relatada na Revista
Veja é melhor/tem mais valor que a história, formal, aprendida nas escolas.
A outra carta recebida pela revista Veja foi a do sr. Asio de Sousa Meneses Filho, de
Fortaleza/CE, e que dizia: “ A riqueza de informões da época nos é passada com grande
leveza, num tom quase lúdico; impossível interromper a leitura”.
A análise desta carta aponta para uma questão importante. No trecho “ a riqueza de
informações da época…” o leitor se apresenta como um desconhecedor da história de seu
País. É impossível que uma Edição Especial de uma revista contenha dados inéditos como um
furo jornalístico” da história do Brasil. Informações que jamais tivessem sido conhecidas
pelos historiadores, pesquisadores, e que, somente por Veja, pudessem ser desvendadas.
Portanto, novamente reafirmamos o sentimento do brasileiro que aponta para a
desimportância de se conhecer o passado nacional.
É a dia, neste caso, que se apresenta como a registradora e a refencia da história
brasileira. Talvez, uma das “ poucas referências que o leitor tenha tido sobre o passado
nacional. Portanto, comemorar o q? Que personagens históricos pontuaram o passado deste
leitor? Que sentimento de pertencimento à nação pode se apresentar?
Continuando nossa alise, aparece, também, a idéia de que a forma de transmissão do
conhecimento histórico, pelas escolas, é maçante e desinteressante e que o método “ lúdico” e
leve de narrá-la, pela revista, permite se aprender com mais facilidade. É a história do Brasil,
portanto, narrada sem o requinte de detalhes e de informões. Uma história não marcada por
alguma complexidade. É uma história leve, como a leitura de um “ digest.
153
Por fim, a última carta publicada nesta edição. Trata-se da correspondência enviada
pelo sr. Luiz Alberto Ferreira Jardim, de Aracajú/SE, e que diz:
Hoje tive uma deliciosa aventura, viajando no tempo. Li o maravilhoso suplemento
em um só fôlego. Nada me faria parar. O intrigante é que as conquistas, vitórias, certezas e
derrotas, vislumbradas em todos os artigos, podem, tranqüilamente, ser trazidas para nossos
dias, apenas com as arestas mais arredondadas, (gastas?) pelo tempo que, apesar de tudo, não
mudou muito a humanidade. É gratificante ver a história longe do rao dos livros “ oficiais” e
com esse tempero saboroso. E, diga-se de passagem, diferentemente das especiarias, esse
tempero apenas realça o sabor, o havendo o gosto ruim ou de estragado que necessitem
disfarce.
Neste caso, já que o leitor compara a história do Brasil a uma iguaria, cremos ter um
prato cheio” para a análise da recepção e do discurso desta carta. A primeira alise que
podemos apresentar se refere a viagem do leitor no tempo. Trata-se de ver e perceber a
história como algo ficcional e não factual. O leitor coloca a leitura como a de um livro tal qual
Volta ao mundo em oitenta dias”, de Júlio Verne. Passado e presente se confundem, como se
fosse um conto literio. Ele estabelece relões entre passado e presente como se a história
fosse algo repetitivo eo, com estabelecimento da relação de causa e efeito, como um
processo, e que justifica a existência de um fato histórico – conforme visto em capítulo
anterior.
Ao comparar a história passada do Brasil com a de nossos dias a partir das
conquistas, vitórias, certezas e derrotas, o leitor estabelece uma relação com o que a mídia
noticia diariamente nos periódicos impressos, radiofônicos e televisados. Um País com altos e
baixos e que nos faz alternar o sentimento de orgulho e de desprezo pela nação brasileira.
Orgulho pela conquista, por exemplo, de um campeonato mundial de futebol. Vergonha, pela
corrupção, desemprego, entre outros, também apresentados pela dia. Depoimento que vai
ao encontro daquele que retratamos quando apresentamos o resultado da enquete realizada
pela revista Isto É, com seus leitores, sobre ter orgulho ou não de ser brasileiro. Enquete esta,
em que aumentavam os índices de desagrado com a nação brasileira no horário do Jornal
Nacional, transmitido pela Rede Globo de Televisão.
154
Ao final de sua carta, o leitor faz a seguinte referência: “ … longe do rao dos livros
oficiais e com esse tempero saboroso. (… ) esse tempero reaa o sabor, não havendo gosto
ruim ou de estragado que necessitem disfarce. Neste texto, percebemos que o leitor credita à
revista Veja a (re)crião da história brasileira a partir de uma nova perspectiva que o a
oficial. Uma história “ temperada”, medida, não necessariamente verdadeira. A forma de dizer
da revista “ realça o sabor” de ler. Se apresenta travestida de uma roupagem tal qual um filme.
E a imagem guardada na memória do leitor despotencializa o efeito e a importância de cada
um dos fatos. Não deixa um “ gosto ruim ou de estragado”.
Continuando nossa pesquisa de campo, no dia 10 de maio de 2000, portanto uma
edição posterior a das cartas descritas acima, encontramos mais 14 cartas de leitores alusivas
às festividades/comemorações do aniversário de 500 anos do descobrimento do Brasil. Vale
ressaltar que foram as primeiras cartas que se referiram, propriamente, ao evento e o, às
edições especiais propostas pela revista Veja.
A primeira delas, e que assumiu lugar de destaque por decisão da editoria da revista,
foi a do sr. Leopoldo Viana, da cidade de João Pessoa/PB. A carta dizia:
muito não via um retrato tão fiel e hilariante do
Brasil quanto o mostrado pela capa desta semana.
54
Nesta carta, o leitor apresenta a imagem que faz da nação a qual ele pertence. Algo
desimportante, debochado e, o mais importante, algo o qual ele se posiciona como excluído.
Como um observador que não tem a menor responsabilidade, nem compromisso, com o fiasco
das comemorações oficiais. Como se ele não tivesse participado da escolha – atras do voto -
dos representantes políticos que assumiram o poder e, portanto, os organizadores da festa
oficial, o leitor não lamenta que a tentativa de (re)atualizar a memória coletiva do passado do
Brasil, representado pela nau Capitânia, tenha sido um fiasco. Ao contrio, ele percebe como
algo divertido, tal qual todo o passado histórico brasileiro. Da mesma forma que os meios de
comunicação, principalmente a televisão e o cinema, ridicularizam os personagens e a história
do Brasil, vide o filme Carlota Joaquina, a minissérie “ O quinto dos Infernos, entre outros, a
54
A capa da Revista continha a manchete: Fiasco Maravilhoso. As comemorações dos 500 anos
naufragam em ritmo de samba-enredo. Como imagem, caricaturas de políticos, índios e outros
envolvidos nas comemorações oficiais.
155
Revista Veja satirizou o evento e, em um comportamento sádico e bem humorado, o leitor
extravasa o seu sentimento de vergonha de ser brasileiro. Ao mesmo tempo, quando o leitor
diz que “ Há muito o via um retrato tão fiel … ”, ele denota um alto grau de complancia e
tolerância para com a nação brasileira. Isto porque, diariamente somos impactados pela mídia
com mensagens/notícias que envergonham a maior parte dos brasileiros e o leitor, afirma que
muito tempo não vê um retrato fiel do Brasil.
Outra carta veiculada nesta mesma edição foi a do sr. Paulo Sérgio Cândido, de São
Paulo/SP, que dizia:
Teria sido mais inteligente deixar a nau navegando
apenas na internet, ou fazer a tropa de choque trocar umas idéias
com a tropa portuguesa por e-mail, ou deixar o engenheiro consultar
a home page de Cabral atrás de algumas dicase não teamos pago
um mico de 500 anos.
55
Neste caso, o leitor faz uma alusão, de forma “ debochada”, ao fato de que hoje temos
muito mais tecnologia disponível e que o fomos capazes de construir, com eficiência, um
navio que conseguisse sair de Salvador e chegar a Santa Cruz Cabrália, ambas cidades no
estado da Bahia, enquanto que Cabral, 500 anos, portanto com “ know how tecnológico
precário, conseguiu cruzar o Oceano Atlântico e descobrir o Brasil. A carta sugere, também,
que a diferença tecnológica existente entre o passado e o presente o é, apenas, o tempo
cronológico de 500 anos. Inclui-se aí, a tecnologia mais avaada que os portugueses já
dominavam 500 anos, pois Cabral detinha uma home page, tal qual as empresas e pessoas
possuem hoje. Novamente, o sentimento de vergonha da nação brasileira se manifesta. A
ridicularização do Brasil volta à cena. A identidade nacional fica, por fim, submissa aos
colonizadores portugueses, do mesmo modo que o Ps era subordinado no tempo do Brasil
Colônia.
Outra reflexão que podemos perceber a partir da leitura desta carta nos remete aos
fatos históricos. Apesar de nunca terem convivido com índios, os portugueses ao
desembarcarem no Brasil buscaram, em um primeiro momento, a aproximação com os
55
Referente a reportagemDe nau a pior” edição de 3 de maio de 2000.
156
indígenas nativos. Na festa em Cabrália, um contingente de 5000 policiais trabalharam (com
cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo) para afastar a presença dos índios. Sua crítica se,
na medida em que os policiais brasileiros deveriam ter aprendido (trocado e-mails) com os
portugueses. Mais um ponto de envergonhamento para este brasileiro e, com isso, não se
identificando com o nacional e com a nação.
Outra carta que foi publicada nesta mesma edição, pertence ao sr. Silvio Sam, tamm
de São Paulo, capital. A carta dizia:
A nau Capitânia custou 3,5 milhões de reais e não
saiu do lugar. A Boa Esperança, construída em Potugal, custou
menos de 2 milhões e cruzou o Atlântico. Não entendi. se isso for
mesmo uma piada. Mas, , nas piadas de português os gozados
não eram eles?
Nesta carta, o leitor fica indignado com o ocorrido. Principalmente porque na cultura
popular brasileira os portugueses são sempre motivo de chacota pelo fato do brasileiro
conside-lo menos capaz intelectualmente. Neste momento, o leitor desqualifica o Brasil e os
brasileiros, no momento em que dinheiro público foi “ jogado no lixo” e que, como a festa foi
notícia em grande parte do mundo, nos tornamos protagonistas das piadas sobre portugueses
e brasileiros.
Por fim, a última carta publicada nesta edição pertence ao sr. Silvio Castilho das
Oliveiras, de Brasília/DF, que diz:
Esqueceram de avisar ao ex-ministro Rafael Greca
que a réplica era da nau de Pedro Álvares Cabral e não do Titanic
O sentimento que esta carta apresenta, denota a percepção do leitor em relação às
confusões que foram feitas pelo principal responsável oficial de todas as ões do governo
durante as comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil. Este brasileiro o fica
indignado com isso. Talvez ele esteja acostumado com a truculência da política brasileira.
Utiliza-se da expressão esqueceram de avisar”, que adquire a condição de expressão
idiomática, para ser usada como motivo de chacota. De deboche, de envergonhamento.
Continuando nossa pesquisa, a próxima data em que foi feita alguma refencia às
comemorações de 500 anos do descobrimento do Brasil se apresenta em 11 de outubro de
157
2000. Trata-se de uma carta, apenas, do sr. Lawrence M. Small, da Instituição Smithsonian,
de Washington, DC, EUA, e que se referia a uma matéria publicada na revista Veja, na edição
de 13 de setembro de 2.000, na seção Ponto de Vista. A carta dizia:
Como secretário da Instituição Smithsonian, permita-
me fazer algumas observões sobre o artigo Smithsonian ou
Ibirapuera” . Existem hoje nos Estados Unidos mais de 500 tribos
indígenas com uma populão de aproximadamente 2 milhões de
indivíduos. Quanto a sua herança, está sendo construído em frente do
prédio do Congresso americano o novo Museu Nacional do Índio, um
edifício de 25.000 metros quadrados. Nesse museu estarão em
exibição muitos dos mais de 4 milhões de objetos indígenas que fazem
parte das coleções do Smithsonian. Não pode passar despercebido o
papel da cultura negra na vida americana. Dos prefeitos negros em
Washington, San Francisco e Kansas City, a membros do ministério,
passando por presidentes de grandes companhias sem se esquecer
das populares figuras do esporte e das artes. Todos são herdeiros e
guardiões de uma importante tradição cultural que foi e continuará
sendo fundamental na formação do que chamamos cultura
americana” .
Esta carta, apesar de publicada pela revista com a retranca Brasil 500 anos, se refere
aos comentários do economista Cláudio de Moura Castro que ao voltar para Washington
pretendia visitar algum museu da Smithsonian Institution. Entretanto, como o vôo atrasou, só
conseguia ir ao Ibirapuera para ver a exposição Mostra do Redescobrimento Brasil +500.
Ao ver que o Brasil tinha muito a mostrar, devido ao tamanho da exposão, ele estabeleceu
uma comparação das relíquias dos indígenas do Brasil com as dos indígenas americanos e
sugeriu que os índios americanos foram dizimados. Trata-se de uma carta retificadora, sem
contudo, contribuir para o tema deste trabalho.
10.2 - A análise das cartas dos leitores da revista IstoÉ. – anexo II
Durante o período determinado por este estudo para a análise das cartas dos leitores
que foram publicadas pela Editora, foram localizadas/analisadas 25 correspondências na
revista IstoÉ. Este número, também o significativo em relação a quantidade de cartas
publicadas sobre outras matérias jornalísticas veiculadas na revista, ainda é muito superior
quando comparamos com a revista Veja. Vale notar que, assim como a Veja, a revista Ist
também veiculou diversas matérias e Edições Especiais sobre as comemorações dos 500 anos
de descobrimento do Brasil.
158
Outra caractestica diferenciadora destas duas publicões se refere ao número de
edições em que os editores apresentavam cartas sobre o assunto deste estudo. Enquanto que
na revista Veja só foram observadas cartas de leitores em quatro edições dia 27 de janeiro
de 1999, dia 3 de maio de 2.000, dia 10 de maio de 2.000 e dia 11 de outubro de 2.000 na
revista IstoÉ o número destas edições foi, substancialmente, maior: 16.
Também nos chamou a ateão a diversidade dos temas abordados nas cartas de
leitores da revista Ist. Várias das ações oficiais empreendidas foram motivo de comentários
por parte dos leitores de IstoÉ, enquanto que os leitores de Veja não apresentaram nenhuma
reação ou, então, a editoria da revista não forneceu espo para que os leitores pudessem
esboçá-las. A título de ilustração, o hino dos 500 anos encomendado à dupla sertaneja
Chitãozinho e Xororó foi comentado pelo leitor da IstoÉ e passou desapercebido pelo leitor de
Veja ou pela própria revista.
Uma outra observação se refere ao gênero dos leitores que tiveram suas cartas,
alusivas ao Brasil 500 anos, publicadas. Em Veja, todas as cartas eram de homens, enquanto
que em IstoÉ, apesar da predominância masculina, algumas das cartas publicadas eram do
público feminino. Talvez esse dado possa nos levar a reflexão de que os homens manifestam
seu sentimento sobre o nacional, de forma indignada ou não, com mais facilidade. Os leitores
masculinos destas revistas parecem ser mais politizados que as mulheres, algo observado a
partir do senso comum.
Por fim, como última observação antes de procedermos as alises, nenhuma das duas
revistas apresentou cartas sobre as ões empreendidas pela Rede Globo de Televisão, por
ocasião das comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil.
No dia 25 de mao de 1998, foram observadas as três primeiras cartas publicadas
alusivas, ou com alguma refencia, ao aniversário de 500 anos do descobrimento do Brasil.
Nesta ocasião, a revista IstoÉ editou um atlas histórico denominado “ ISTOÉ Brasil, 500 anos
e, todas as cartas se referiam a este Atlas.
A primeira que elencaremos foi enviada pelo sr. Paulo Magalhães, da cidade de
Salvador/BA, e dizia:
Ao tempo que tenho a satisfação de estar escrevendo
para esta grandiosa revista, quero parabenizar todos que
159
participaram do Atlas Histórico IST Brasil, 500 anos. Estou sem
muitas palavras para demonstrar minha total alegria em recebê-lo” .
Esta carta denota a pouca intimidade que talvez o leitor tenha com a ngua
portuguesa. Ele o faz refencia alguma ao conteúdo do Atlas. Assim sendo, a história do
Brasil perde a sua importância diante do fato do leitor ter recebido o Atlas como um presente.
O leitor demonstra, ainda, sua “ total alegria em rece-lo”. Talvez irá guardá-lo como uma
relíquia, sem jamais tê-lo lido. Novamente, a desimportância da história do Brasil se faz
presente.
Outra carta presente nesta mesma edição foi enviada pelo sr. Paulo C. de Miranda, de
Washington, EUA, que evidenciava:
É realmente uma tarefa de muito valor para os
leitores da revista e também para o público em geral ter a
oportunidade de tomar conhecimento da história que construiu o
nosso País” .
Nesta carta o leitor evidencia o conteúdo histórico do exemplar. Entretanto, considera
que os brasileiroso têm informões sólidas sobre a história do Brasil. Portanto, essa
Edição Especial vai oferecer, aos brasileiros, a “ oportunidade de tomar conhecimento da
história… ”. É, em verdade, adia assumindo o papel de responsabilidade pela memória
histórica e pela disseminação da informão histórica para os cidadãos quando, tal papel,
deveria ser das escolas e dos livros.
A última carta desta edição, foi enviada pela sra. Mariana V. Meirelles, de
Campinas/SP, e dizia:
Gostaria de elogiá-los e dizer que o Atlas está sendo
muito útil para o meu quadro sinóptico do período colonial .
Neste caso, o Atlas e seu conteúdo serviram, apenas, como agentes de síntese da
própria história. Apesar da leitora reconhecer que o exemplar é denso e detalhado em seu
conteúdo “ Gostaria de elogiá-los… ”-, ela preferiu resumir a história do Brasil Colônia em
um quadro sinóptico. Portanto, pobre de informações e com alguns pontos elencados, apenas.
É a mídia (re)construindo a história.
160
Continuando nossa análise das cartas dos leitores, a próxima edição em que se
observou algo relacionado com Brasil 500 anos também fazia refencia ao Atlas Histórico.
Trata-se de apenas uma carta, mas com muita representatividade. Seu emitente foi o Sr.
Marco Maciel, Vice-presidente da República Federativa do Brasil, e dizia:
Louvo a oportuna iniciativa de ISTem editar o
atlas histórico ISTOÉ Brasil, 500 anos. Trata-se de uma excelente
contribuição para melhor conhecimento do nosso País e de sua
expectativa de futuro” .
Esta carta contém um rico material para a análise da recepção, até pelo fato do sr.
Marco Maciel ser um representante oficial do governo. Em primeiro lugar, a disseminação das
tradições históricas do Brasil deveriam competir ao Estado que, através de livros, cartilhas,
e/ou outros recursos didáticos deveria ensinar aos brasileiros como foi construída a sua
história e o, ser da competência dos mass media. Quando o leitor se refere “ para melhor
conhecimento do nosso País”, ou ele credita à revista a densidade do conteúdo do Atlas e a
insuficiência de conteúdo de nossos registros bibliográficos ou ele se refere a possibilidade da
mídia de (re)atualizar a memória dos brasileiros em relão ao seu passado. Ao se referir a
expressão “ expectativa de futuro” percebemos claramente a inteão do discurso oficial de
aproveitar-se da ocasião das celebrações do passado o descobrimento para inaugurar uma
nova perspectiva para o futuro. Em outras palavras, o registro do passado está feito no Atlas
Histórico ISTOÉ Brasil, 500 anos. Esqueçamos, pois, tudo e pensemos nas perspectivas de
futuro. Discurso este presente em todas as ações empreendidas pela Rede Globo de Televisão,
por ocasião das celebrações dos 500 anos de descobrimento do Brasil.
Continuando nossa pesquisa, ainda no s de abril encontramos mais uma carta sobre
o Atlas Histórico ISTOÉ Brasil, 500 anos. Desta vez, foi no dia 15 e, quem enviou a carta foi
o tetraneto do Visconde de Ma, sr. Eduardo And Chaves Nedehf, do Rio de Janeiro/RJ.
Esta carta dizia:
Agradeço em meu nome, de minha família, e do
Memorial Visconde de Mauá, à Editora Três e à revista Istoé pela
iniciativa de divulgar a história do Brasil à juventude brasileira. Após
o lançamento do livro Barão de Mauá, pela revista IST
DINHEIRO, agora temos pelo atlas histórico IST Brasil, 500 anos,
no fascículo 4, novamente a lembrança do grande pioneiro brasileiro
161
Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá, que
promoveu o desenvolvimento econômico e industrial do Império do
Brasil.
Nesta carta observamos o agradecimento do sr. Eduardo André no que tange a dia
estar assumindo o papel de atualizadora da memória coletiva da sociedade brasileira. A
(re)afirmação das personalidades que contribuíram para a construção da nação e a
(re)atualização da memória social é, definitivamente e nos dias atuais, uma responsabilidade
dos mass media. Isto pode ser confirmado pelo “ lançamento do livro Bao de Mauá e pela
citação do Visconde de Ma no atlas histórico, cujas publicações foram feitas pela Editora
Três e evidenciadas pelo leitor.
Continuando nossa pesquisa encontramos, no dia 22 de julho de 1998 mais uma carta
de leitores sobre a publicão do atlas histórico. Desta vez, foi a Sra. Anissa Daliry, de Recife,
PE, quem enviou e que dizia:
Já chegamos ao fim do Atlas IST Brasil, 500 anos,
quero parabenizá-los pelo maravilhoso desempenho durante 18
semanas. O atlas surpreendeu os limites de qualidade, tanto em
matéria como em composição. Afinal, é isso que todo consumidor
espera de sua mercadoria.
Em uma primeira alise, nos remetemos a pensar que, se trocássemos a expressão
limites de qualidade, tanto em matéria como em composição.” pela expressão “ limites de
qualidade, tanto em conteúdo como no quesito embalagem, o estaríamos errando. A leitora
coisifica a história. Transforma-a em mercadoria, onde o que vale é o conteúdo e uma bela
embalagem, capaz de nos seduzir a levar este produto para casa. Isto pode ser confirmado
quando a leitora conclui seu pensamento: é isso que todo consumidor espera de sua
mercadoria.
Depois desta carta, somente no dia 31 de março de 1999 é que localizamos outra carta
de leitor, cujo o tema, também se referia ao Atlas Histórico. Como remetente, a sra. Catarina
Santos, de Lisboa/Portugal, que dizia:
Sou portuguesa, moro em Lisboa, e leitora de Istoé.
Aprecio muito a vossa revista e considero-a o melhor espelho” da
sociedade brasileira para quem, como eu, gosta de seguir de perto os
passos dos nossos irmãos do outro lado do charco” . Não queria
deixar de vos escrever para felicitar-vos pelo magnífico Atlas
162
Histórico IST Brasil, 500 anos” . Adorei o número 1 e estou
ansiosa para ter nas mãos os seguintes. Os mapas são excelentes, a
estrutura é de fácil acesso e achei os textos muito completos. Este
atlas deveria chegar ao conhecimento de todas as organizações em
Portugal e no Brasil relacionadas com temas lusófonos ou com a
comemoração dos 500 anos do Brasil. Parabéns.
Esta carta aponta para o fato da dia ser o espelho’ da sociedade brasileira”. Na
visão acertada da leitora são os meios de comunicão que pautam os acontecimentos
importantes e que pontuam a história do País e constroem a memória. Soma-se a isto, o fato
da leitora possuir o sentimento de pertencimento, não exatamente à nação brasileira, mas pelo
fato dos portugueses terem colonizado o Brasil seu sentimento é de irmandade. O brasileiro,
para ela, é familiar. Por isso, ela acompanha “ de perto os passos de nossos irmãos… ”, como
se Brasil e Portugal fossem uma única nação. Em verdade, a leitora portuguesa comemora os
500 anos da entrada dos portugueses no Brasil, numa perspectiva de colonizadora.
Ao contrio das demais, esta carta aprofunda o conteúdo do Atlas e talvez
pudéssemos afirmar que esta portuguesa “ dissecou” este primeiro fascículo, (re)atualizando
sua memória quanto à história do Brasil e de Portugal. Por fim, a leitora ainda sugere que o
conhecimento da história dos dois pses devesse chegar às elites, talvez com a intenção de
criar laços mais próximos com os países lusófonos, a fim de se disseminar/intercambiar os
laços culturais dos dois povos.
Continuando nossa pesquisa, no dia 28 de julho de 1999 encontramos duas cartas de
leitores que se referiam aos 500 anos, mas não diretamente às comemorações. A primeira
delas, da leitora Katia Rodrigues, dizia:
Gostaria de parabenizá-los pela entrevista 500 anos
de desencontros” (Istoé 1555), com Kaká Jecupe. Conhecer a
realidade indígena é conhecer nossa raiz
Esta carta se refere à matéria jornalística veiculada sobre os índios brasileiros,
enquanto a (re)atualização da memória coletiva e a (re)afirmação do discurso oficial que
coloca o índio como origem do povo brasileiro. Há de se perceber que quando os portugueses
chegaram ao Brasil, a terra já estava ocupada pelos índios. Entretanto, em muito pouco os
índios contribuíram para a formação da cultura nacional e do povo brasileiro. Os índios foram
dizimados e/ou subjulgados pelos portugueses e, com a vinda de escravos negros e outros
163
europeus, é que a cultura nacional começou a se formar assim como o povo brasileiro. Em
recente reportagem veiculada no jornal O Globo de 08 de abril de 2004, menos de um
porcento da população é indígena.
A leitora se refere a “ realidade indígena mostrada pela revista como se o conceito de
realidade indígena tivesse obrigatoriamente o compromisso com a verdade. Este conceito já
pressupõe uma narrativa histórica a partir de um determinado ponto de vista que, com certeza,
é feito com o olhar do branco sobre os índios brasileiros. O que, o necessariamente, se
traduz como verdade. Há, portanto, a dissolão da história conforme preconiza Vattimo. E
esta “ verdade” informada pela revista foi a única que a leitora obteve para “ conhecer nossa
raiz. A única fonte de atualização do passado.
Nesta mesma edição uma outra carta se refere a mesma matéria jornastica. Trata-se
da carta do sr. Henrique Cavalleiro da cidade do Rio de Janeiro/RJ, que diz:
A entrevista é bem-intencionada, mas comete alguns
erros e generalizões que colaboram para a desinformação e o
preconceito que existem sobre esses povos: tapuia e txucarramãe são
povos diferentes, sendo que estes últimos na verdade se chamam
mekrãngnoti e pertencem ao grupo caiapó e falam uma língua do
tronco macro- que nada tem a ver com o tupi-guarani”.
Conforme haamos nos referido na alise da carta anterior quando fizemos
considerações sobre a narrativa histórica, esta carta se refere a “ desinformão e o
preconceito” que existem sobre os povos indígenas abordados na reportagem. Tal afirmativa
pressupõe que o leitor tenha uma outra versão/narrativa para a história destes índios,
diferentemente da apresentada pela revista que, a partir da expressão “ preconceito”, nos leva a
crer que a matéria da revista foi publicada com a narrativa oficial. Isto porque, se houve
preconceito é porque já existe algum conceito e, portanto, uma contra-narrativa. Neste caso, o
leitor chama a atenção para os erros cometidos pela revista e que, estarão arquivados como
fonte documental do presente, no futuro.
Nesta mesma edição, mais duas cartas referindo-se aos 500 anos de descobrimento do
Brasil se apresentam. Desta vez, leitores fazendo meão ao “ hino dos 500 anos”
encomendado, pelo então ministro de estado Rafael Greca, à dupla sertaneja Chitãozinho e
164
Xororó para ser amplamente divulgado pela mídia por ocaso das comemorações de 500 anos
de descoberta do Brasil. Vale lembrar que nenhum leitor de Veja se manifestou sobre isso.
A primeira carta pertence ao sr. Lenilton Cardoso, de Ponta Grossa/PR e diz:
Orgulho-me de pertencer ao mesmo estado de Rafael Greca, homem íntegro,
sensível, que incomoda muita gente e que tem amor por seu Estado e seu País. A música de
Xitãozinho é mesmo bonita e chega a nos arrepiar”.
Trata-se de um leitor que manifesta seu orgulho e seu pertencimento ao local e ao
Brasil. Ao se referir que a música “ é mesmo bonita e chega a nos arrepiar, o leitor denota,
claramente, sua identificão com as tradições brasileiras, até porque esta caão faz um
passeio por alguns fatos que pontuaram a história oficial do Brasil, além de transmitir a idéia
de nação.
Outra carta que se apresenta pertence ao sr. Antônio Moacir Furlan Filho, da cidade de
São Paulo/SP, e diz:
Não vislumbro razão para as reões iradas de
outros compositores. Tais manifestões apenas demonstram o
preconceito em relação a música sertaneja” .
Esta carta apresenta a afirmação de uma das caractesticas que compõem o nacional
brasileiro: a música sertaneja. O leitor se refere à manifestação de outros cantores quanto ao
preconceito com a música sertaneja, amplamente divulgada enquanto produto cultural de
massa e, ao mesmo tempo, altamente criticada por pertencer ao segmento daquilo que
podemos denominar de baixa cultura.
Outra carta recebida por Ist e que se refere ao Hino, pertence ao sr. Edgard J.
Dempsey, da cidade de Mairiporã/SP e diz:
Data vênia, para presidente da República que toma
refeição em companhia do ‘sábio douto’ Ratinho, buscando
popularidade, está de bom tamanho ter um ministro em Esporte e
Turismo, Rafael Greca, emocionado fã de Chitãozinho e Xororó” .
Analisando esta carta, observamos que o leitor desqualifica o dirigente da nação e a
classe política e, por extensão, nega a música sertaneja e o apresentador Ratinho enquanto
componentes/representantes do popular na cultura de massa.
165
Na edição de 29 de setembro de 1999, o leitor Rubens Marques de Sousa, do
município de Estância/SE, envia a carta abaixo:
A revista ISTestá de parabéns pela matéria Como
500 anos (Istoé 1563). No limiar das comemorações dos 500 anos
de invasão portuguesa no Brasil, a matéria revela que europeus,
latifundiários e a omissão dos governos não conseguiram aculturar
nem exterminar totalmente nossos irmãos indígenas” .
Esta carta contém um rico conteúdo para a análise da recepção por parte do leitor. A
primeira questão se refere `a palavra “ invasão”. Para o leitor, o início da história do Brasil é
pontuado de forma nefasta e violenta e, talvez seja nesta vertente que ele pense o passado do
Brasil. Algo, a chegada dos portugueses, que nunca deveria ter ocorrido ou que devesse ser
esquecido. Quanto ao presente, o sentimento não se modifica. É de indignação. Ao mesmo
tempo, o leitor coloca o índio como símbolo emblemático da resistência nacional ao dizer que
no passado europeus e latifundiários e no presente, latifundiários e poder público não
conseguiram aculturar” nem exterminar” os índios. O leitor valoriza a cultura e as tradições
indígenas e denota o sentimento de pertencimento `a nação brasileira, quando se refere aos
nossos irmãos indígenas.
Continuando nossa pesquisa, a próxima edição que continha carta dos leitores alusiva
aos 500 anos, foi a do dia 26 de janeiro de 2000 e pertence ao sr. Liz Abad Maximiano, de
Curitiba/PR, e diz:
Parabéns aos wapixanas que estão se defendendo da
exploração e ganância de pesquisadores e laboratórios sobre os
conhecimentos e recursos do hábitat indígena. Já era tempo de
alguém fazer algo, que no caso do Brasil, o projeto da senadora
Marina Silva parece estar encalhado e ninguém tem interesse em
aprová-lo. Enquanto isso, o País é saqueado há 500 anos em seu
recurso mais valioso: a biodiversidade. Deus abeoe os wapixanas e
lhes vitória na busca pela justiça” . ( Índio quer patente 1581).
Percebemos que o leitor manifesta o seu sentimento do nacional no momento em que
parabeniza os índios por estarem defendendo o Brasil dos estrangeiros (laboratórios
farmauticos). Critica o Estado por o tomar nenhuma iniciativa e a própria história
nacional que, para o leitor, se caracteriza pelos saques e pela usurpão do Brasil e dos
166
brasileiros. O sagrado entra em cena com o “ Deus abençoe visto que, se a lasse política não
toma atitudes, somente Deus pode ajudar.
A próxima carta encontrada foi a do sr. Luiz M. de Siqueira, da cidade do Rio de
Janeiro/RJ, no dia 22 de março de 2000, e diz:
O Brasil vai comemorar 500 anos com festa e tudo. No
entanto, vai ficar faltando o motivo de orgulho para comemorar. De
que nos adianta viver essa ilusão utópica de que somos um País em
desenvolvimento, quando sabemos que na verdade isso não passa de
pura pretensão. Somos subdesenvolvidos sim, basta olharmos a nossa
volta e observar a total falta de respeito daqueles que deveriam
representar os interesses da sociedade .
Esta carta apresenta um sentimento de descdito quanto às comemorações previstas
para a celebração dos 500 anos. Apresenta, claramente, a falta de orgulho de pertencer ao
Brasil e ser brasileiro. Critica o discurso oficial que eleva o nome do Brasil ao rol dos pses
em desenvolvimento e (re)afirma a condição brasileira de país atrasado em vel, no mínimo,
de cidadania: total falta de respeito”. Am disso, o leitor critica o poder público e manifesta,
também, o sentimento de não ter o que comemorar.
Nesta mesma edição da revista, encontramos mais duas cartas que se referiam às
celebrações dos 500 anos. Uma delas, a do sr. Alexandre de A.S.P. Carvalho, da cidade de
Salvador/BA, dizia:
Em relão a matéria Na realidade são outros 500”
(1589), pude observar que a situação dos índios tem a contribuição
na falta de interesse do grande número de turistas, sejam brasileiros
ou estrangeiros, em conhecer um pouco mais sobre a cultura milenar
deste povo. Em sua maioria, a programação dos roteiros turísticos
oferecidos consiste, apenas, em passeios de escuna e às casas de
eventos, o que,infelizmente, satisfaz os visitantes” .
Nesta carta o leitor acusa e responsabiliza, em parte, o turismo como forma de
contribuição para a situação depauperada em que vivem os índios brasileiros. Em momento
algum o leitor se refere ao passado histórico do Brasil, no tocante aos índios. Ele denota que
o pertence ou se inclui ao mesmo “ povo” que os indígenas, quando diz conhecer um pouco
mais sobre a cultura milenar deste povo”. Exclui, portanto, o indígena do rol dos brasileiros.
167
A outra carta presente nesta edição pertence ao sr. Sócrates M. Abdalla, de Belo
Horizonte/MG e diz:
Somente através de reportagens como esta é possível
que um jovem de classe dia possa realmente descobrir o Brasil
Analisando esta carta, observamos que o leitor credita à dia a função construir e/ou
atualizar a memória dos brasileiros sobre o Brasil e, no momento em que ele reputa à dia
esta função, ele encerra qualquer possibilidade de uso de outros mecanismos formais de
aprendizado como, por exemplo, a educão.
Continuando nossa pesquisa, no dia 03 de maio de 2000, encontramos mais 4 cartas
alusivas aos 500 anos de Brasil.
A primeira delas pertence ao sr. José Ubireval Delgado, de Jo Pessoa/PB, e diz :
ISTproporcionou aos seus leitores a possibilidade
de se repensar o Brasil depois de 500 anos. Foi uma verdadeira
radiografia da história dos que fazem o Brasil oficial
(poder,arrogância e truculência), do outro lado os que sofrem
tentando fazer um Brasil real, redescobrindo um ilustre desconhecido
deste Brasil oficial, o nosso mestre Paulo Freire. Parabéns” . (1595)
Esta carta denota, claramente, que a responsabilidade da (re)atualização da memória
histórica pertence à dia. O leitor admite que haja diversas narrativas históricas. A oficial e
as outras. Estabelece a relão do governo com os cidadãos como “ opressor/oprimido”.
Critica o governo, entretanto, se orgulha de fazer parte do Brasil quando reconhece pessoas
que lutam para a construção de um Ps melhor. Sua noção de passado é muito próxima do
presente. Ele evidencia Paulo Freire, esquecendo-se de outros brasileiros ilustres do passado.
A outra carta, desta mesma edição, pertence ao sr. Gilton Sampaio de Souza, da cidade
de Natal/RN, e diz:
Foi com enorme alívio que pude ver quase sem
tempo – a reportagem “ O esquecido” , em comemoração aos 500
anos de descobrimento” do Brasil. , com uma justa homenagem ao
nosso brasileiríssimo Paulo Freire. Parabéns! Talvez a nossa
submissão científica não nos deixe ver que as propostas teórico-
metodológicas para a solão de um dos nossos maiores problemas (o
analfabetismo) já estejam entre nós. Que tal FHC utilizar um PF,
doméstico, na alfabetização dos milhões de jovens brasileiros que
buscam a sua cidadania? Uma correção a fazer: o município de
168
Angicos pertence aos potiguares, localizando-se no sertão do Rio
Grande do Norte; e não em Pernambuco, como mencionou a
reportagem. Não tire dos potiguares o orgulho de terem colaborado
para a constrão da Pedagogia do Oprimido, como também de
terem sido os primeiros a ser beneficiados por ela” .
Esta carta se apresenta com algumas caractesticas. Primeiramente, o leitor coloca
entre aspas a palavra descobrimento. Tal observação nos remete a pensar que ele
descredibiliza a chegada dos portugueses, colocando em cheque se houve ou o um
descobrimento. Não acredita, portanto, na versão histórica oficial. Observamos, também, que
o leitor se refere a “ nossa submissão” entendendo que o Brasil costuma dar mais valor ao
estrangeiro do que ao nacional. Isto pode ser observado quando ele sugere, ao então
presidente Fernando Henrique Cardoso, que se utilize de um Paulo Freire, produto doméstico,
produto do Brasil. Neste momento, o leitor se orgulha de pertencer ao Brasil, até porque, faz
questão de afirmar seu orgulho e, por extensão o orgulho do potiguares, de ter “ colaborado
para a construção da Pedagogia dos Oprimidos”.
Outra carta enviada para a revista foi a da sra. Daniela Marques Batista Santos, da
cidade de Belo Horizonte/MG, e diz:
O país realmente está crescendo e não podemos
perder a esperança de que podemos resolver nossos problemas.
Espero que consigamos redescobrir o Brasil e construir um País
melhor para todos nós . Ed. 500 anos de Brasil (1595)
Esta carta pontua, exatamente, a celebração do icio de um futuro para o Brasil. O
discurso da leitora vai ao encontro do discurso empreendido pela Rede Globo no Projeto
Brasil 500 anos: “ redescobrir o Brasil e construir um País melhor… ”. O uso do pronome nós
denota o sentimento de pertencimento a nação brasileira e coloca a leitora como partícipe do
projeto de futuro da Brasil.
A última carta encontrata nesta edição e em todo o período pesquisado, até dezembro
de 2000, pertence ao sr. Marco Túlio Rodrigues Pires, de Belo Horizonte/MG, e diz:
Quem diria. Em pleno ano 2000, à beira do século XXI
e o que é melhor: às vésperas dos 500 anos do Brasil recebemos esta
ótima notícia. O Brasil foi descoberto 500 anos e até hoje provoca
interesse no mundo para que ele seja pesquisado e apreciado, como é
o caso do pesquisador holandês, naturalizado brasileiro, Marc van
Roosmalen, que descobriu esses dois novos conterrâneos . Um
169
grande presente para nós, brasileiros, e, quem sabe, muitos ainda
virão. Os mais novos brasileiros” . (1595)
Esta carta apresenta o orgulho deste brasileiro em pertencer ao Brasil a partir do
interesse dos estrangeiros na pesquisa no campo da ecologia. Apresenta a “ cordialidade” e a
hospitalidade apontadas no discurso que descreve o brasileiro, quando o leitor expressa a
frase: Um grande presente para nós, brasileiros, e, quem sabe, muitos ainda virão”.
Conforme podemos observar, a maior parte das cartas versaram sobre a questão
indígena brasileira. Em verdade, o índio foi percebido pelos leitores como um grande herói,
um símbolo da resistência nacional e que deveria receber mais ateão do governo brasileiro.
A maior parte dos leitores de IstoÉ criticam, duramente, a política e os políticos
brasileiros. Reputam à mídia, a (re)construção e a (re)atualização da memória e não fizeram
nenhuma refencia ao Projeto Brasil 500 empreendido pela Rede Globo de Televisão, por
ocasião das comemorações de 500 anos de descobrimento do Brasil.
170
CONCLUO
Podemos perceber que as ões promovidas pela Rede Globo por ocaso da
celebração do aniversário de 500 anos de descobrimento do Brasil dividem-se em duas
grandes categorias: entretenimento, no que tange às festividades e comemorações e ações
educativas, como proposta de mudaa da história, como preconizou a ação que propunha
levantar a questão de como se muda o País atras da educão”.
Entretanto, estas categorias se referiam a uma estratégia mercadológica que aponta
para uma vertente: a propaganda institucional, de forma apresentar a Rede Globo enquanto
agente de transformação social, cultural e histórica. Portanto, o Projeto Brasil 500 anos fala da
própria instituição Rede Globo como agenciadora da história do Brasil em detrimento das
histórias do Brasil. Assim, o Projeto Brasil 500 anos aposta na construção de uma história
da própria interveão dos meios de comunicão nas “ histórias do Brasil.
Podemos perceber que as ões empreendidas pela emissora se constróem de forma
contundente no processo de emissão, maso possuem a mesma dimensão no campo da
recepção.
As ações educativas chamam nossa ateão porque retomam um projeto moderno de
construção da cidadania pela institucionalizão da educão, entretanto, essa
institucionalização não se restringe mais à escola como ambiente disciplinar. Os meios de
comunicação passam, então, a assumir, também e mais do que nunca, uma função educativa,
uma pedagogia da história.
Asões de entretenimento se desdobram em espetáculos como, shows de música,
daa, minisséries, programas de TV, onde a presea do público o se resume só no estar
nos eventos. É também representada a partir dos números da audiência. A exemplo dos shows
de música, podemos perceber que se por um lado o objetivo de celebrar os 500 anos de
descobrimento do Brasil, por outro, por sua operação espetacular, acabam por dissolver o seu
próprio propósito. A presea do público o endossa a campanha Brasil 500 anos mas é a
adesão do espetáculo em si mesmo.
Diante do exposto, o Projeto Brasil 500 desenvolvido pela Rede Globo de Televisão só
aconteceu porque foi transformado em mercadoria. E, neste sentido, banaliza a própria
construção da história. O espetáculo não é um ritual histórico. O espetáculo acaba por negar a
171
própria história. A presença numérica nos espetáculos o se refere a adesão às
comemorações do Brasil 500 anos. Refere-se, apenas, a adesão à festa e não, à consciência
histórica. Em momento algum tal projeto, apesar de objetivar comemorar os 500 anos de
descobrimento, foi concretizado. A Campanha aconteceu, mas a mobilização do público para
o objetivo maior de promover uma consciência histórica a partir da comemoração, não.
Durante todo este trabalho, pontuamos duas questões em relão a dia e a história. A
primeira delas se refere a dia enquanto construtora e atualizadora da memória coletiva, a
partir das ações de entretenimento. A outra, se refere a mídia enquanto agente de rompimento
da história passada e a construção de um futuro histórico, através da educação. Portanto, a
tentativa de (re)construir uma memória coletiva foi dissolvida no próprio espetáculo. As ações
de entretenimento não puderam ser vistas como um registro de sentido na memória e sim, esta
memória foi percebida enquanto arquivo dos acontecimentos. A Rede Globo no projeto Brasil
500 anoso foi capaz de dar sentido ao passado histórico e, muito menos, produzir o
rompimento com este passado para construir um futuro, na medida em que se elao
conseguiu reconstruir, junto aos brasileiros, um sentido compartilhado da história dos 500
anos de descobrimento, as ações que atualizavam o passado foram percebidas/encerradas
enquanto presente, como a Rede Globo consegui tornar inviável a mudança desta história
pelas ações educativas?
Sem passado (re)construído e sem futuro para construir, os espetáculos se diluem no
presente e não podem estabelecer a conexão esperada entre a história que passou e a história
que vi.
Os espetáculos foram programados para promover o encontro entre passado e
presente. O espetáculo significou mais, uma descontinuidade no presente do que uma
continuidade da história. O Projeto Brasil 500 anos, não só o foi capaz de estabelecer esta
continuidade da história como, também, o acontece como marco para uma nova história, o
que desarticula a proposta original das ações do Projeto Brasil 500 anos.
Tal data foi apenas um marco para que fosse desenvolvido um Projeto que objetivasse
lucros claros para a emissora que o empreendeu, am da propaganda institucional desta
emissora no Brasil.
172
Em verdade, as ões empreendidas no Projeto Brasil 500 produziram um arquivo dos
acontecimentos atras de uma interveão midiática no presente. Isto se apresenta em
oposão a uma memória coletiva compartilhada pela sociedade brasileira. Neste contexto,
atualizamos informações a partir da (re)afirmão de discursos oficiais como: o “ mito das três
raças, com predominância da raça negra, o fato do Brasil ser multicultural, etc.
Apesar de extrapolar o objeto de estudo deste trabalho, não podeamos deixar de fazer
algumas considerações sobre as ações empreendidas pelo poder público. Isto porque, o
Projeto Brasil 500 anos não ocorreu de forma isolada. Inclusive, algumas destas ações se
encontraram com as do Projeto Brasil 500 anos. Em algumas delas houve a participação do
poder público e, em algumas das comemorações oficiais, houve a participação da Rede
Globo. Assim, se as comemorações oficiais não incluíam os excldos sociais”, algumas das
ações empreendidas pela Rede Globo previram, de forma tímida, esta inclusão. Incluímos ,
uma das ações que apresentava crianças derias etnias e outras que se apropriaram de
pessoas do “ povo”. Porém, as minorias organizadas nem de longe foram incluídas. Nos
referimos nesse momento aos representantes do MST, alguns pequenos partidos políticos,
anarco-punks e, inclusive o índio, que foi limitado, apenas, a condição de cerio em alguns
dos espetáculos produzidos pela emissora. Apenas o negro e a cultura afro-brasileira tiveram
espo contundente nas ações.
Apesar de todos os esforços e que envolveram dois anos de celebração por parte da
Rede Globo, muito pouco ficou registrado e permaneceu na memória dos brasileiros, no que
tange o reforço do sentimento do nacional. A exemplo do projeto Amigos da Escola”, há um
desconhecimento, por parte da população, que ele está vinculado às comemorações dos 500
anos de descobrimento do Brasil. Todos projetos aconteceram em si e por si. Tiveram êxito.
Mas o foram capazes de construir uma memória histórica coletiva e, com isso, reforçar o
sentimento do nacional e de pertencimento à nação brasileira. Retornando ao Projeto Amigos
da Escola”, ele é visto como um projeto de responsabilidade social da emissora. Este
sentimento pode ser potencializado pelo fato de, até nos dias de hoje, o projeto estar em
vigência e portanto, desvinculado das comemorações, apesar do compromisso de construção
de um Brasil mais igualitário.
173
Enfim, o Projeto Brasil 500 anos, que depende fundamentalmente do público cidadão” para se
concretizar de forma plena, constrói uma narrativa de mídia, sobre a própria dia e para o coletivo e que se
dissolve na recepção, o encontrando respaldo da sociedade brasileira, conforme pudemos inferir na alise das
cartas de leitores das revistas Veja e Istoé onde nenhuma meão foi feita ao Projeto 500 anos ,ou qualquer uma
de suas ações, apesar de termos encontrado diversas cartas de leitores que se referiam a marias jornalísticas
veiculadas sobre a programação ou personalidades da Rede Globo.
174
BIBLIOGRAFIA
ANDERSON, Benedict. Não e consciência nacional. Rio de Janeiro: Ática, 1989.56
Atrator Estranho. Nº 34 – ano IV. Revista do NTC da ECA/USP.
BARBERO, Jesús-Martin. Dos Meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
BAUMAN, Zigmunt. Globalizão: as conseqüencias. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BHABHA, Homi. Disseminação: tempo, narrativa e as margens da moderna nação in: O local
da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
BRAGA, José Luiz, PORTO, Sérgio Dayrell e FAUSTO NETO, Antônio. A encenação dos
sentidos: mídia, cultura e política. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995.
CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos: Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.
______________________. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 1997.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
CHNAIDERMAN, Miriam. Raça e Diversidade. São Paulo: EDUSP, 1996.
COELHO, Maria Cláudia – A Experiência da Fama . Rio de Janeiro: FGV, 1999.
DIAS, Ângela Maria. A missão e o grande show. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1999.
DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus O sistema das castas e suas implicões. São Paulo:
Edusp, 1997.
FAUSTO NETO, Antônio e PINTO, Milton José. O indiduo e as mídias. Rio de Janeiro:
Diadorim, 1996.
FEATHERSTONE, Mike O desmanche da Cultura. São Paulo: Ed. Nobel, 1997.
GABLER, Neil. Vida, o filme. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
___________ O que é esse “ negro” na cultura negra de massa? In: MORLEY, David et
CHFN, Kuan-Hsing (orgs). Stuart Hall: Critical dialogues in cultural studies. London-New
York: Routledge, 1996. Tradução: Sayonara Amaral. Revisão: Liv Sovik.
___________ Quem Precisa de identidade? Petrópolis: Vozes, 2000.
HERSCHMANN, Micael e PEREIRA, Carlos Alberto Messeder – Isso não é um filme?
Ídolos do Brasil Contemporâneo – Revista Lugar Comum- nº.11 – Ed. UFRJ.
______________ Mídia, memória e celebridades estratégias narrativas de alta visibilidade.
Rio de Janeiro: E-papers, 2003.
HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro. Paz e
Terra, 1984.
175
HOHLFELDT, Antônio e BARBOSA, Marialva. Jornalismo no século XXI: a cidadania.
Porto Alegre: Mercado aberto, 2002.
HOLLANDA, Helsa Buarque; RESENDE, Beatriz (org). Artelatina. Rio de Janeiro:
Aeroplano Editora, 2000.
LAPLATINE, Fraois. Aprender antropologia: São Paulo: Brasiliense, 2000.
MARTINEZ, Paulo. Os nacionalismos. São Paulo: Scipione, 1996.
MATTA, Roberto da. A casa e a rua: espo, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª ed. Rio
de Janeiro: Rocco, 1997.
_________________. O que faz o brasil, Brasil ? Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
_________________. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro:
Vozes, 1ª ed., 1981.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
________________. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
________________. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.
REDE GLOBO DE TELEVISÃO. memórias. Projeto Brasil 500 Anos 1998, 1999 e 2000.
Rio de Janeiro, 1998.
SKIDMORE, Thomas E., O Brasil visto de fora. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
SOARES, Luiz E. Cultural pluralism, identity, and globalization: org. Mendes, Cândido. Rio
de Janeiro: Unesco/Educam, 1996.
SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. ed. Petrópolis:
Ed. Vozes, 1996.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros dia, identidade e povo no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1999.
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: ed.
Loyola, 1997.
THOMPSON, John B. – Adia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social ctica na era dos meios de
comunicação de massa.. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.
TURKLE, Sherry A vida no ec. A identidade na era da internet. Lisboa: Relógio D Água
Editores, 1997.
VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D Água ed., 1992.
________________. A tentação do realismo. Trad. de Reginaldo Piero. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguillar, 2001.
176
________________. . Para além da interpretão: o significado da hermenêutica para a
filosofia. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1999.
VELHO, Gilberto. Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar,
1977.
_______________. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
VIEIRA, Roberto Fonseca. Relações públicas: opção pelo cidadão. Rio de Janeiro: Mauad,
2002.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo