Download PDF
ads:
COMUNICAÇÃO EM MÚSICA NA CULTURA TECNOLÓGICA
O ato da escuta e a semântica do entendimento musical
Marcos Vinício Cunha Nogueira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Comunicação e Cultura, da Escola
de Comunicação, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Comunicação e
Cultura
Orientadora: Profª Drª Priscila de Siqueira Kuperman
Rio de Janeiro
Março de 2004
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
COMUNICAÇÃO EM MÚSICA NA CULTURA TECNOLÓGICA
O ato da escuta e a semântica do entendimento musical
Marcos Vinício Cunha Nogueira
Orientadora: Profª Drª Priscila de Siqueira Kuperman
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Comunicação
e Cultura, da Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Cultura.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Profª. Drª. Priscila de Siqueira Kuperman (ECO/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral (ECO/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. José Amaral Argolo (ECO/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Marcos Branda Lacerda (ECA/USP)
_______________________________
Profª. Drª. Marisa Barcellos Rezende (EM/UFRJ)
Rio de Janeiro
Março de 2004
ads:
Nogueira, Marcos Vinício Cunha.
Comunicação em música na cultura tecnológica: o ato
da escuta e a semântica do entendimento musical/ Marcos
Vinício Cunha Nogueira. -Rio de Janeiro: UFRJ/ ECO, 2004.
viii, 213f.: il.; 31 cm.
Orientador: Priscila de Siqueira Kuperman
Tese (doutorado) – UFRJ/ Escola de Comunicação/ Pro-
grama de Pós-graduação em Comunicação e Cultura, 2004.
Referências Bibliográficas: f. 203-213.
1.Comunicação. 2.Música. 3.Ciência cognitiva. 4.Semân-
tica. 5. Metáfora. 6. Pós-modernidade. I. Kuperman, Priscila
de Siqueira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola
de Comunicação, Programa de Pós-graduação em Comuni-
cação e Cultura. III. Título.
COMUNICAÇÃO EM MÚSICA NA CULTURA TECNOLÓGICA
O ato da escuta e a semântica do entendimento musical
Marcos Vinício Cunha Nogueira
Orientadora: Profª Drª Priscila de Siqueira Kuperman
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Cultura, Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Comunicação e Cultura.
Neste trabalho procura-se entender o modo de interação comunicacional em
música, a partir do desenvolvimento de uma teoria da metáfora voltada para o processo
cognitivo musical no contexto das novas tecnologias. O estreitamento da diferença
entre pensamento e conhecimento, na cultura pós-moderna, é a condição que
possibilitou aqui se definir comunicação como interação em que se produz sentido.
O procedimento empregado é a aplicação de uma semântica cognitiva das estruturas
incorporadas e imaginativas do entendimento à formação do sentido em música e ao
seu processo comunicacional. A hipótese central da pesquisa é a existência de uma
estrutura abstrata pré-conceptual, originada de interações sensório-motoras, em torno
da qual o sentido musical é organizado na forma de projeções metafóricas que,
quando regulares, tornam-se comunicáveis. Assim, conclui-se que a música compensa
a sua inabilidade em comunicação para a percepção com a comunicação da percepção
propriamente.
Palavras-chave: 1.Comunicação. 2.Música. 3.Ciência Cognitiva. 4.Semântica.
5.Metáfora. 6.Pós-modernidade.
Rio de Janeiro
Março de 2004
COMMUNICATION IN MUSIC IN TECHNOLOGICAL CULTURE
The act of hearing and semantics of musical understanding
Marcos Vinício Cunha Nogueira
Orientadora: Profª Drª Priscila de Siqueira Kuperman
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Comunicação e Cultura, Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Comunicação e Cultura.
This work aims to understand the communicational interaction in music, from
the development of a metaphor theory about the musical cognitive process in new
technologies context. The reduction of difference between thought and knowledge
in the postmodern culture is the condition enable here to define communication like
a interaction where one produce sense. There was employed a application of cognitive
semantics to embodied, and imaginative structures of understanding to the sense
formation in music and its communicational process. The research central hypothesis
is the existence of an preconceptual abstract structure rised from sensory-motor
interactions, around of which the musical sense is organized in form of metaphoric
projections. When that projections are regular, become a communicable thing. Thus,
one conclude which music compensates its inability in communication for perception
with communication of the perception itself.
Key-words: 1.Communication. 2.Music. 3.Cognitive science. 4.Semantics.
5.Metaphor. 6.Postmodernity.
Rio de Janeiro
Março de 2004
AGRADECIMENTOS
Ainda que estudos acadêmicos dessa natureza se desenrolem,
geralmente, na esfera do isolamento, é precisamente essa
condição que faz tão claros a cooperação e o apoio que
recebemos de familiares, amigos, colegas de trabalho, e que
nos faz tão gratos a todos.
Dois agradecimentos são, entretanto, muito especiais. À minha
orientadora, Priscila Kuperman, pela leveza e confiança com
que sempre se manteve no nosso diálogo, nesses últimos anos,
e ao professor Marcio Tavares d’Amaral, pela confiança e
leveza com que torna possível a transdisciplinaridade. Aos
dois, por me revelarem o viés da minha pesquisa.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: Comunicação e o ato da escuta, 9
EXPERIÊNCIA E METÁFORA
CAPÍTULO 1: Da idéia à experiência, 19
Entre a razão e a sensação, 19
A idéia da música, 29
Uma nova intencionalidade, 36
A mente incorporada, 43
CAPÍTULO 2: O imaginário metafórico, 55
Música como experiência, 55
A identidade do objeto musical, 62
A metáfora indispensável, 71
Sobre uma semântica do entendimento, 87
FENOMENOLOGIA DA ESCUTA
CAPÍTULO 3: A experiência do movimento, 100
Objetos musicais, 100
A espacialização do tempo, 107
Metáforas de evento, 116
Metáforas de tempo, 124
CAPÍTULO 4: A experiência da forma, 136
O formalismo nascente, 136
Escutando uma sintaxe, 144
A memória que forma, 155
Sintaxe e sentido, 168
CAPÍTULO 5: A experiência da emoção, 173
Movimento e emoção, 173
Forma e emoção, 182
Metáfora e emoção, 191
O símbolo não-consumado, 193
CONCLUSÃO, 199
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 203
INTRODUÇÃO
Comunicação e o ato da escuta
A pós-modernidade é um mundo de multiplicidade, diversidade e contradição, mais
do que de uniformidade e de ordem: é antes um discurso de periferia, que de centro.
E as orientações pós-modernas para a música podem ser construídas como um esforço
para salvá-la do sentido de “inútil” criado e perpetuado por noções como objetividade,
sentido absoluto e valor “estético”.
A experiência do contexto
Num movimento de dispersão cada vez mais ampla, a condição pós-moderna
dissemina expressões artísticas que se distanciam de idéias e procedimentos
modernistas. Ela saqueia o vocabulário da modernidade e adiciona-lhe imagens e
motivos randomicamente extraídos da cultura pré-moderna ou de culturas “não-
modernas”. A teoria pós-moderna tenta tirar a música de seu pedestal e trazê-la de
volta ao mundo em que nos movemos e respiramos; e o conceito de música como
fenômeno multicultural desfaz a idéia de uma música unitária e estática. Assim, a
música passa a situar-se dentro de um contexto cultural e perde o seu status de
autonomia universal.
A modernidade criou e manteve uma lacuna entre a “força expressiva” da música
e a forma musical. Para sustentar essa ilusão ela tratou a experiência musical
“incorporada” como subjetiva, inefável e irracional, em favor de uma experiência
normativa da música. Assim, a forma é o agente da coerência e da unidade musical:
um meio de conter seu excesso de fluidez. Ao abolir categorias como as de “forma
e contexto” ou de “música em si e resposta humana”, a teoria pós-moderna reflete
as mudanças nas formas culturais de representação de “texto para imagem”, de
“linearidade para simultaneidade”, de “coerência para ruptura”. Ela acolhe a
10
justaposição incongruente, a fragmentação, a colagem, ao invés de aplicar unidades
organicamente dispostas. Seu interesse não é a essência ou a profundidade, mas o
jogo de superfícies sonoras. E dentre as predileções musicais pós-modernas está a
música que envolve a tecnologia, o popular e o reciclado, a música que justapõe
estilos incongruentes, que desconstrói as linearidades e os movimentos progressivos.
Na modernidade, as vanguardas tentaram levar o projeto de autonomização
estética da arte ao extremo, em razão do que hoje representam um paradigma moder-
no. Esses artistas buscaram, tanto pela via da plena ruptura com a cultura moderna
quanto ao lançar o olhar ao passado e ao popular – mesmo que para fragmentá-los e
desfigurá-los –, enveredar pelo que entendiam ser o último viés de originalidade: “o
descompromisso com o social se tornou, para alguns, sintoma de uma vida estética”.
Em nossa contemporaneidade, porém, essas experiências da arte de vanguarda não
passam muito de tênue herança daquelas tentativas inovadoras do passado moderno.
Sua inserção social é notadamente débil. A questão central aqui é abordada por
Néstor Canclini numa via antropológica: “os gestos de ruptura dos artistas que não
conseguem converter-se em atos (intervenções eficazes em processos sociais) tornam-
se ritos” (1999:45). Ao rever a teoria dos ritos Canclini nos lembra que estes, quase
sempre tomados como práticas de confirmação de relações sociais, também se
destinam a efetuar, mesmo que em cenários simbólicos e ocasionais, transgressões
normalmente impraticáveis. Aquela produção artística de ruptura fixa-se então num
“mito” não coletivizado: a representação de uma exploração individual do artista
que se distancia, assim, do espetáculo e da interação com seu público.
Dessa forma, a realização artística está priorizando a emancipação expressiva
dos sujeitos em detrimento da suposta autonomia do campo da arte, que assim se
dissolve. Mas o projeto das vanguardas, originário das tentativas de dessacralização
do “campo artístico” da modernidade, acabou transformando as experiências de
ruptura também em convenções. Estabeleceu, de certa forma, um inventário de
procedimentos consolidados para essa produção, submetidos a um projeto de
recuperação artificial da antiga ritualidade dos espetáculos agora renovados em
bienais, mostras, exposições, prêmios, etc. Todavia, esse ritual renovado promove
11
permanente descontinuidade entre performance e recepção, uma vez que as novas
convenções estabelecidas fixam-se, de modo geral, nas materialidades envolvidas e
na descontinuidade formal, prescindindo da reciprocidade com o receptor. Desse
modo, propõe-se uma supervalorização estética do imprevisível, do inusitado, do
inaudito – “não se deve oferecer o já compartilhado, já codificado”. A música passa
a experimentar um alto grau de fragmentação, uma espécie de negação da causalidade,
que rompe, por vezes radicalmente, a logicidade estrutural, diluindo as perspectivas
de ordem dos eventos e provocando um sentimento de estranhamento pela suspensão
dos eventos em outra ordem espaço-temporal. Ou seja, a ruptura das cadeias associa-
tivas ocasiona uma profunda mudança no ato da escuta, com sérias conseqüências
estéticas e que levam a uma relativização do espaço e do tempo. Naturalmente,
começa a haver tanto uma predominância da forma sobre a função quanto a conse-
qüente exacerbação da exigência de uma nova “disposição estética” específica do
receptor. E esse novo receptor deverá assim ver na sua atuação como partícipe da
atualização das obras – ao provocar a interação com o estranho da arte, lançando-se
– uma experiência tão inovadora quanto a própria obra de arte.
A autonomia, seja da música como campo artístico, seja da individualidade
expressiva do artista, começa a dissolver-se a partir da imposição mercadológica de
forças extraculturais. Ainda que a interferência no campo artístico de tais forças
sempre tenha mostrado seus resultados desde os primórdios da modernidade, ultima-
mente os espaços que fixam e administram os critérios estéticos da música têm se
pautado pelas novas tecnologias de difusão e de consumo, que encontram um público
que menos valoriza o estético, do que o econômico: a inovação deixa de ser valor
inquestionável. A fonografia e a telemática produzem uma condição que confia ao
ouvido toda a responsabilidade da percepção que usualmente dar-se-ia como
concorrência de diferentes vias sensoriais – elas excluem, parcial ou totalmente, o
corpo do engajamento com a performance. O alto grau de reprodutibilidade dos
textos musicais midializados, alcançado, sobretudo, no decorrer das últimas duas
décadas do século
XX – período da popularização da tecnologia digital –, tornou a
música mais facilmente manipulável e portátil. E isso estabelece uma analogia entre
12
a execução de textos musicais e de textos literais escritos; o traço de similaridade é
sua repetibilidade. Além disso, os procedimentos midiáticos preservam uma espécie
de “presença extratemporal” dos textos sonoros.
Um “culto moderno” contemporâneo envolve diversos produtos resultantes da
reelaboração, pelos novos meios, de obras de arte antes patrimônio distintivo de
elites. Ou seja, a distinção moderna dos estratos sociais e dos campos culturais
fragiliza-se progressivamente, à medida que a confluência do que era culto – na
modernidade – com os gostos populares e as novas tecnologias de circulação dos
bens simbólicos, impõe novos artifícios distintivos para aqueles campos. Entretanto,
em meio a essas recentes e atordoantes alterações mantém-se viva, ainda, uma espécie
de “ideologia da arte” entre os receptores-consumidores. A ideologia do “culto
moderno” subsiste tanto entre os indivíduos pertencentes ao chamado grande público
– antes dela mais distantes – quanto nas classes dominantes, que originaram essas
idéias e que hoje, enquanto “consumidores”, delas também se mantêm relativamente
distantes. Enfim, a música da nossa contemporaneidade já não pode ser admitida
como “inútil”, uma vez que é produzida no seio de um campo contaminado de
dependências mercantis e populares – alguns entendem até que a arte sequer tenha
chegado a ser, outrora, plenamente kantiana.
Contudo, sempre que há ao menos um vislumbre de pregnância da forma em
sacrifício da função, surgem exigências que vão atingir um receptor agora reinventado,
que é instado a dividir com compositores e intérpretes tanto a responsabilidade de
desafiar os limites da funcionalidade quanto a comunicação da experiência musical.
Assim, a experiência do objeto musical tem como condição a recriação de um discur-
so: o “ato da escuta”.
Para a maior parte das pessoas, na maior parte do tempo, som é uma daquelas
ubiqüidades irrelevantes – como também o é o próprio ar através do qual se propagam
as ondas sonoras – que só merece consideração mais significativa quando examinado
para fins de comunicação ou entretenimento. Que influências exerceram a “materia-
lidade” do som, como meio, e a nossa natureza emocional, como impulso primordial,
sobre a forma constituída de comunicação vocal humana? Que caracteres especifica-
13
mente musicais já estão presentes nesse processo de formação de sentido e de
comunicação vocal? De que forma esse nosso impulso habitual para a comunicação
está moldando o nosso comportamento musical, quando nessa comunicação
buscamos um entendimento?
O trabalho
Pretendemos, neste estudo, fazer uma introdução à semântica cognitiva do enten-
dimento musical. Em linhas gerais, isso demanda (1)revisão das práticas discursivas
sobre o sentido da música, (2)discussão das teorias da expressão musical e (3)correla-
ção contextual com a comunicação. A descrição de nossa experiência da música e
daquilo que é por ela comunicado depende, como grande parte dos nossos conceitos
abstratos, de projeções metafóricas. Tem origem no modo particular que experimen-
tamos a vocalização e a ação corporal espaço-temporal como implicações de estrutu-
ras de sentido “pré-conceptuais”, imaginação e sentimentos. Disso advém a neces-
sidade de contarmos com uma teoria da metáfora e, em conseqüência, com uma
teoria da memória. Reivindicamos, portanto, a indispensabilidade da teoria da
metáfora para o estudo da experiência musical, de seu sentido e de sua possibilidade
comunicativa, por duas razões principais: (1)porque sem as metáforas não há como
descrevermos a experiência musical e (2)porque entendemos ser a chave para uma
teoria do entendimento musical e da comunicação de experiências em música.
Algumas convicções embasam este trabalho. Música é uma construção mental
e a mente é inerentemente incorporada. O sentido é sempre uma questão de enten-
dimento. Entendimento é algo composto pelas estruturas imaginativas que surgem
da nossa experiência e que a estruturam. A constituição do objeto musical origina-
se de nossas capacidades imaginativas – tais como esquematizações e projeções
metafóricas. Se a música oferece uma representação, não é uma representação da
experiência objetiva, mas do nosso entendimento dessa experiência. O valor da
música assenta-se na qualidade das experiências do seu entendimento, envolvidas
14
nos atos de criação, execução e recepção. Aquilo que a música pode comunicar não
é, meramente, um pensamento, mas uma experiência.
Distinguimos uma semântica musical de uma semiótica musical como ciências
que tratam de espécies distintas de unidades de sentido: o objeto musical e o signo.
Pensamos que ao entender a música como signo, estamos enfatizando seu caráter
meramente virtual, enquanto o objeto musical é sempre atual e, portanto, o legítimo
acontecimento do “discurso” musical. O objeto musical não é nem o som que o
torna aparente nem um eventual símbolo ao som atribuído arbitrariamente. Em vez
disso, é uma entidade indecomponível, irredutível à soma de suas partes. E mesmo
que constituído por signos que se referem mutuamente, o objeto musical não se
reduz a uma função derivativa desses signos.
Não temos o propósito de fazer uma investigação do repertório musical, nem
um estudo exaustivo dos recursos semânticos musicais – tanto em nível sintático
quanto de expressão emocional –, e nem mesmo uma vasta revisão das teorias que
referenciam o presente estudo. Apenas propomos a confrontação dos termos básicos
de cada uma das visões seminais que apresentamos, a fim de constituir um corpo
teórico representativo da situação geral da pesquisa semântica musical – do passado
recente à nossa atualidade – e de seus comprometimentos e desdobramentos
comunicativos.
O trabalho está dividido em duas partes: (1)a apresentação das referências
teórico-metodológicas principais, que abrange os dois primeiros capítulos, e (2)a
discussão da experiência do objeto musical, que envolve três níveis concomitantes,
com os quais nos ocuparemos nos capítulos seguintes – a experiência do movimento
(capítulo 3), a experiência da forma (capítulo 4) e a experiência da emoção (capítulo
5). Embora uma parte considerável do presente estudo esteja intimamente
comprometida com o ambiente cultural pós-moderno e os usos de seus produtos
tecnológicos, nesse estágio introdutório da pesquisa por uma teoria semântica do
entendimento musical não trataremos, especificamente, da experiência do contexto.
15
O capítulo 1 trata da progressiva passagem dos discursos teóricos modernos
para o âmbito teórico da pós-modernidade. Começa por assinalar que ao racionalismo
iluminista, que afirmava a centralidade radical da mente desincorporada na construção
da realidade opôs-se um empirismo que enfatizou o papel crucial da experiência
sensorial na constituição do conhecimento verdadeiro. Essas duas correntes “pré-
idealistas” confluíam, no entanto, quando se tratava de música: se imaginação,
emoções e sensações, julgadas corpóreas e, portanto, excluídas da racionalidade,
são os efeitos da música, a experiência musical produz um entendimento inexprimível,
é mais corpórea que consciente. A estética idealista, por sua vez, se de um lado
elevou os produtos da sensibilidade ao plano do saber, por outro promoveu uma
profunda contradição a respeito do objeto estético musical. A renúncia da música à
espacialidade e à materialidade foi motivo tanto para o pensamento de sua
incongruência com o entendimento quanto para aproximá-la da interioridade da
mente. Uma definitiva incorporação da mente, promovida pelas fenomenologias do
século
XX, mudou drasticamente o exame das qualidades musicais e da relação de
experiência musical e conhecimento. Se na tradição cartesiana o sentido é uma
relação entre representações simbólicas e realidade objetiva, no contexto cognitivo
contemporâneo o “corpo” é a origem das estruturas imaginativas de um entendimento
incorporado e essencial na formação do sentido e da racionalidade. Assim sendo,
uma semântica cognitiva parece apontar novas perspectivas para o estudo do sentido
musical e da comunicação do seu entendimento.
No capítulo 2, veremos que a “colonização” do domínio sonoro talvez seja a
iniciativa mais distintiva do ser humano como espécie. Nessa hipótese, conceito e
pensamento só se tornaram possíveis em virtude da natureza sonora da vocalização,
esta que é a origem da linguagem e da música, campos estes definitivamente aproxi-
mados pelas ciências cognitivas. O impulso vocal-gestual é a matriz da nossa atividade
musical e, portanto, a base experiencial dos “movimentos” para os quais convertemos
imaginativamente os sons, quando os ouvimos como música. O mecanismo cognitivo
através do qual conceitualizamos nossas experiências subjetivas como vindo de
outros domínios de experiência (sobretudo, sensório-motores) é a metáfora concep-
16
tual. Assim, conceitos abstratos são metaforicamente estruturados como entidades
físicas, e essa projeção figurativa é a função “criativa” da metáfora. Se tais estruturas
são uma questão de imaginação, podemos dizer que não há experiência significativa
sem imaginação. A tradição não reconheceu essa função semântica da imaginação,
porque entendeu o sentido como “modo de apresentação” da referência. Para o
pensamento cognitivista, contudo, o sentido não é apenas proposicional; ao contrário,
permeia a totalidade do nosso entendimento incorporado. A música é significativa,
mas não temos acesso ao seu sentido proposicionalmente; se nós ouvimos “movi-
mento” nos sons, não é porque os sons nos sugerem o pensamento de um mundo
ficcional – em que coisas se movem –, e sim um “conteúdo mental”.
Discutiremos no Capítulo 3 que música é uma atualização da possibilidade de
qualquer som que seja de apresentar a algum ser humano um sentido que ele experi-
menta com o seu corpo. Objeto sonoro é um termo cunhado no esforço de conside-
ração do objeto da experiência musical, a partir do qual desenvolveu-se uma análise
fenomenológica significativamente influente. A presença do objeto apenas aciona e
condiciona, mas não determina o ato da escuta. Como a música suscita um processo
de comunicação, seu esquema formal não pode prescindir da estrutura e da funciona-
lidade da memória. A memória permite-nos distinguir e agrupar os eventos sonoros.
Estruturamos tanto os movimentos dos nossos corpos quanto os eventos no mundo
com uma mesma estrutura de evento. Nosso entendimento fundamental de eventos
e causas vem de duas metáforas: a que conceitualiza evento em termos de localização
e a que o conceitualiza em termos de objeto. E tempo é algo que também conceitua-
lizamos por meio de metáforas, pois tudo que sabemos acerca desse conceito está
relacionado a outros conceitos, tais como espaço, evento, mudança ou movimento.
O capítulo 4 salienta que assim como em lógica, podemos dizer que em música
a forma dá o sentido. Aqui, o sentido reside inteiramente no sensível, em virtude do
sensível estar totalmente penetrado pela forma. Mas se o sentido se formaliza, é
para ser sentido de algo. Entre a estética idealista e a fenomenológica surgiu um
formalismo musical renovador, mas ainda intimamente vinculado ao dualismo
idealista, segundo o qual o entendimento da natureza da música não tem como foco
17
seus efeitos, suas possíveis conexões com os domínios extramusicais. Seu empreen-
dimento visa à descrição do sentido musical em termos estritamente musicais, portanto
sem o concurso da expressão, da representação ou de simbolismos. O estágio mais
recente do formalismo afirma que a experiência musical sempre ocorre em um dado
contexto de normas estilísticas, por isso os eventos musicais são entendidos em
termos de convenções fundadas na natureza da atividade mental humana.
Por fim, o capítulo 5 discute que há uma forte inclinação em pensar a emoção
em termos do seu aspecto “subjetivo”. Porém, tal aspecto não constitui a essência
das emoções, porque elas se manifestam como estados publicamente reconhecíveis
de um organismo, embora não necessitem dessa manifestação externa. Emoções
são identificadas por sua função em um sistema cognitivo: são desejos, crenças,
ações. Emoções são estados intencionais: são emoções de algo ou sobre algo sem
existência material. Uma teoria da expressão musical enfoca como a música pode
ser expressiva das emoções e não uma teoria de como a música pode expressá-las. O
que a música apresenta são características de emoção, uma aparência expressiva em
seu som. Experimentamos o caráter dinâmico da música como ações de uma pessoa,
e por isso o movimento que ouvimos na música nos parece propositado e organizado.
Por outro lado, uma teoria que relaciona estímulo emocional e sentido em música
começou por propor que para entender uma obra musical o ouvinte deve ter suas
emoções provocadas de alguma maneira.
Entendemos, em última instância, o exercício metafórico na experiência musical
como tentativa subliminar de acessar um potencial simbólico da música. É, porém,
o imaginário, como uma dimensão outra de realidade, que se afasta da razão utilitária,
a única via para a indeterminação que há no objeto musical. Nesse sentido, se
encararmos a hipótese de que todos os fenômenos de cultura sejam essencialmente
comunicação, cabe investigar sob o enfoque comunicacional os “fatos” cujo fim
não parece ser uma “comunicação de mensagens”.
EXPERIÊNCIA
E METÁFORA
CAPÍTULO 1
Da idéia à experiência
Música, antes de tudo, é um produto da nossa atividade mental. A confluência dessa
convicção e da proposição de que a mente é central no entendimento do mundo
levou uma modernidade “idealística” a produzir um conjunto notavelmente abran-
gente de trabalhos especulativos sobre música. Para o pensamento filosófico idealista,
a música, enquanto fenômeno cognitivo, estabelece, necessariamente, um vínculo
com alguma outra atividade mental. Supõe-se, portanto, que a música gera algum
tipo de entendimento, de juízo conceptual
1
. Assim, “o que sabemos através da
música?” foi a pergunta inspiradora dos trabalhos dos idealistas modernos, que a
responderam de forma especialmente original. No presente trabalho, temos como
tarefa central a discussão do sentido musical, do seu entendimento e da comunicação
desse entendimento. O passo inicial que damos então neste capítulo é definir que
tipo de atividade cognitiva é a música. E para isso recuperaremos algumas das etapas
pelas quais a modernidade criou o objeto da experiência da música.
Entre a razão e a sensação
Fertilizada pela tradição metafísica – construída sobre o fundamento dualista que
separa o corpo da mente, o material (físico) do mental, o conhecimento do sentimento
– a filosofia moderna esforçou-se para explicar como a música distingue-se da
experiência sensorial na qual se origina. Daquela tradição que se renovava, sobretudo
a partir de Immanuel Kant, podemos depreender, portanto, que a questão subjacente
e invariável é a tensão dualística entre o ideal e o material. Donde a música surge
como problema particularmente crítico, em virtude de sua difícil referencialidade e
de sua imaterialidade – problemas que pretendemos tornar mais claros ao longo dos
capítulos iniciais deste trabalho.
20
O racionalismo e o empirismo iluministas que precederam as Críticas kantianas
estabeleceram, cumulativamente, no viés da sensibilidade – e talvez menos por sua
discordância que por sua patente semelhança –, a base para a fundação de uma
estética filosófica idealista. Buscando uma fronteira determinada entre o “espírito
matemático” e o “espírito filosófico”, os racionalistas, a partir de René Descartes e,
depois, com Gottfried Wilhelm Leibniz, entenderam que, mais do que os dados dos
sentidos, a mente é que julga o conhecimento seguro. Não seriam, pois, os produtos
da experiência sensível, que revelariam a verdade, e sim a clareza das idéias, a
razão. E os racionalistas do Iluminismo estavam certos de que por trás do encanto
da música repousa algum princípio racional acessível à lógica humana. Isto é, a
música seria ordenada – senão matemática – e padronizada, tão somente um resultado
da aplicação de regras sistemáticas.
Assim sendo, o que emergiu da filosofia cartesiana é a sobrelevação da presença
do pensamento (cogito) em relação à presença do mundo e a visão da mente como
representação, em algum domínio “interior”, dos objetos existentes no mundo
“exterior”. Como os objetos na mente não são como os objetos no mundo, a questão
do conhecimento era como poderíamos saber quais idéias internas – representações
– em nossa mente correspondiam, realmente, às “coisas em si”. Algumas das idéias
centrais do método de Descartes são: todo pensamento é consciente; não é necessário
qualquer recurso empírico para estabelecer o conhecimento da mente; a mente é
desincorporada e consiste apenas de substância mental; a essência do ser humano é
sua habilidade para a razão; imaginação e emoção, que são corpóreas, estão excluídas
da razão humana; as representações da realidade externa têm origem na percepção
dos objetos externos, as outras idéias são inatas e não representam nada externo;
Matemática diz respeito à forma, não a conteúdo, por isso o conhecimento matemático
é seguro; o pensamento é formal como a matemática.
Descartes, ainda muito jovem, entregou-se, sobretudo, às Matemáticas – e à
sua relação com a Física –, cujas “certeza e evidência de suas razões” as haviam
tornado o “orgulho da razão humana”, a preocupação essencial de todos os estudiosos
do espírito. Buscavam-se, pois, as vias para uma nova ciência, superando a física
21
qualitativa, contemplativa e classificatória da Escolástica, procedente de Pitágoras
e Aristóteles. O caminho seguido foi em direção a uma física quantitativa e matemá-
tica, que apreendia o mundo como uma máquina
2
. É de 1618 o primeiro tratado de
Descartes, intitulado Compendium Musicae, que circulou apenas em manuscrito ao
longo de sua vida, alcançando a primeira edição somente em 1650, pouco depois de
sua morte. Nele, Descartes descreve, numa análise matemática da música, aquilo
que entende serem os princípios básicos da acústica aplicada à prática musical. Ou
seja, trata-se, antes de tudo, de um estudo matemático; em seu célebre Le discours
de la méthode (1637), diria ele que à época desses seus primeiros empreendimentos
não havia ele ainda percebido o verdadeiro uso das Matemáticas
3
– como linguagem
das ciências da natureza –, “acreditando que serviam somente às artes mecânicas”
(Descartes, 1989:35).
Descartes também desenvolve, em seu Compendium, um incipiente modelo de
afetividade musical. Segundo ele, a música agrada se o “temperamento” do ouvinte
ressoa com ela; movimentos mais lentos despertam emoções de abatimento, tristeza,
temor, enquanto os mais rápidos geram ânimo e alegria. John Neubauer chama-nos
a atenção para trechos de cartas de Descartes para Mersenne, que revelam, entretanto,
que ele não tinha certeza alguma quanto à relação entre harmonia matemática e
afetos:
Quando Mersenne insistiu na questão, Descartes teve que confessar que não tinha
resposta, pois a escolha entre consonâncias era como a preferência entre frutas e
peixe. A simplicidade, a harmonia e a “doçura” de uma consonância distinguia-se
de sua “agradabilidade”, uma vez que “não há um modo absoluto de determinar
que uma consonância é mais agradável que outra”. (...)Como uma carta anterior
explica, a beleza e o prazer não têm critérios objetivos, pois “aquilo que gera em
um o desejo de dançar pode induzir outros a chorar. Isso resulta apenas da excitação
das idéias que existem em nossa memória; naqueles que previamente gostaram de
dançar uma certa canção, o desejo de dançar será reacendido tão logo ouçam algo
similar”. (Neubauer, 1986:48)
Em seu último trabalho, Les passions de l’âme, de 1649, uma análise da física
e da fisiologia dos afetos, Descartes iria analisar as paixões, mas não apura mais a
sua pertinência aos problemas relativos à música. Leibniz, por sua vez, reconheceu
que as sensações da música geram um prazer intelectual confuso e que a beleza
22
musical tinha origem num estado intuitivo ou inconsciente, ainda que a música seja
um produto de regras e princípios. Donde a experiência musical não poderia ser
uma questão estritamente intelectual e lógica, mesmo sendo matematicamente funda-
mentada. Tudo isso fez germinar no meio musical do primeiro barroco a “doutrina
dos afetos”, que propunha a existência de algum tipo de congruência entre padrões
melódico-harmônicos e emocionais, oferecendo ao compositor a possibilidade de
sua exploração sistemática. Tratava-se, portanto, de correlações entre as emoções e
os intervalos melódicos, as configurações rítmicas e harmônicas, os instrumentos e
os outros parâmetros da textura sonora e musical.
“Affectus”, uma tradução original para o pathos grego, designava um dado
estado emocional provocado pelo mundo exterior. Uma teoria descreveria então
como codificar as emoções causadas pela música no sujeito receptor; e se entendemos
que o compositor deseja afetá-lo de algum modo, estamos a um passo da constituição
de uma retórica para a música, um meio de se obter um determinado efeito como
fim. Contudo, essas idéias nunca se consolidaram numa teoria, propriamente. Talvez
porque o conceito de afeto tenha permanecido algo vago, não acolhendo a relativa
precisão que as noções de retórica alcançaram na tradição lingüística. Se por um
lado os teóricos acreditavam que a música provoca emoções específicas, por outro
seria crucial que fundamentassem esse efeito numa relação da música com a
linguagem verbal – ou seja, numa “imitação” da linguagem, que para uma teoria dos
afetos, ao contrário, não seria mais que secundária –, enfim uma retórica que não
despertou grande interesse.
Do período subseqüente e igualmente sob forte influência racionalista é o Traité
de l’harmonie (“Tratado de harmonia: reduzida a seus princípios naturais”), do
compositor e teórico Jean-Philippe Rameau, primeira obra mais densa sobre
sistematização e controle das alturas dos sons – uma espécie de gramática da
harmonia musical. Essa publicação, de 1722, dividida em quatro livros, deu início a
uma série de obras teóricas referenciais de Rameau e refletia claramente sua vocação
racionalista de sistematização de princípios. Ultrapassando consideravelmente o
simplismo de obras anteriores – tais como o Nouveau traité des règles pour la
23
composition de la musique, de Charles Masson, publicado desde 1697 –, no Traité
Rameau reformula as leis da construção e da inversão acordal e os princípios que
regem os padrões de progressão harmônica, como também explica de modo inovador
os conceitos de consonância e estabilidade – como propensões “inatas e comuns a
todo ser humano” – numa teoria da tonalidade harmônica sem precedentes. Assim,
esse novo enfoque persistiria por quase dois séculos, superando ataques ao seu
hipotético tecnicismo que, segundo os críticos, seria acessível somente a especialistas.
Os dois volumes iniciais contêm, propriamente, a teoria de Rameau (os restantes
são manuais de procedimentos práticos de composição e execução) assim prefaciada:
“música é uma ciência que deve ter regras definidas; essas regras devem ser extraídas
de um princípio evidente; e esse princípio não pode realmente ser conhecido por
nós sem a ajuda da matemática” (1971:xxxv). No primeiro livro, dedicado a sumarizar
as relações entre os sons – razões e proporções –, Rameau abusa de uma matemática
“pseudocientífica”, como alegaram seus críticos mais severos – dentre eles ex-
discípulos como Rousseau e d’Alembert –, e cita reiteradamente o Compendium
cartesiano, que conheceu em sua tradução para o francês (Abrégé de musique) –
versão da obra que talvez tenha alcançado maior difusão em toda a Europa.
Jean-Jacques Rousseau, que sumarizou o Traité de Rameau e chegou a propor,
por ele inspirado, um novo sistema de notação musical matemático – segundo o
qual a música deveria ter sua “expressão aritmética”, porquanto é baseada em números
–, rompe, progressivamente, com o mestre e com os princípios pitagóricos por este
defendidos, acusando seu sistema de ingênuo e de ser estabelecido sobre analogias
e adequações frágeis – idéias divulgadas em seu Dictionnaire de musique e em
artigos da Encyclopédie. Em sua crítica mais contundente ao sistema de Rameau,
Rousseau sustenta que não se poderia deduzir uma ciência dos intervalos e da
harmonia, de uma física com exuberância artificialista e um recurso ilusório à natu-
reza. Esse progressivo afastamento do ideário matemático da música pode ser
caracterizado nos escritos do capítulo
XIII do célebre Essai sur l’origine des langues,
intitulado “Da melodia”, no qual Rousseau desenvolve uma analogia acerca do traço
que marca as figuras, seja no trabalho com a superfície da tela, seja com o tempo na
24
música. É a melodia que se compara ao desenho na pintura; é ela que marca os
traços: sons e acordes são apenas cores. E “como a pintura não é a arte de combinar
cores de uma maneira agradável à vista, a música também não é a arte de combinar
sons de uma maneira agradável ao ouvido” (Rousseau, 1998:166). A conclusão de
Rousseau é de que se apenas assim o fossem, pertenceriam, pintura e música, às
ciências naturais. Seria, portanto, o desenho e a melodia, que provêem a pintura e a
música de imitação, daí elevando-as à categoria das belas-artes. Nesse raciocínio, a
harmonia – ao menos em termos matemáticos – seria uma perversão musical que
somente um “etnocentrismo europeu” poderia considerar um princípio universal.
Ela retira a energia e a expressão da música, corrompendo sua força imitativa, qual
seja, a melodia: a “boa forma da música” – aliás, “no princípio não houve outra
música além da melodia”:
uma língua que possui somente articulações e vogais possui, portanto, apenas a
metade de sua riqueza: ela exprime idéias, é verdade, porém para exprimir
sentimentos, imagens, precisa ainda ter ritmo e sons, isto é, uma melodia; eis o que
possuía a língua grega e o que falta à nossa. (Ibid., 161)
Em seu De la Gramatologie, Jacques Derrida salienta a questão da imitação
nos últimos escritos de Rousseau acerca da música, sobretudo o Essai, no qual
dedicou-lhe oito capítulos. Para o Rousseau do Essai não há música antes da
linguagem, pois sua origem é a voz e não, propriamente, o som; as paixões arrancaram
as primeiras vozes. Derrida explica que essa proposição é essencial no sistema de
Rousseau, uma vez que “se a música desperta-se no canto, se ela é inicialmente
proferida, vociferada, é porque, como toda fala, ela nasce na paixão. Isto é, na
transgressão da necessidade pelo desejo e no despertar da piedade pela imaginação”
(Derrida, 1973:239). Quando tenta explicar a “degeneração da música”, Rousseau
lembra que à medida que a língua alcançava seu aperfeiçoamento, a melodia,
necessariamente, perdia algo de sua antiga energia. Com o esquecimento do “começo
de tudo”, pôs-se a harmonia no lugar da melodia, ou seja, a ciência do intervalo no
lugar do calor do acento:
Esquecida a melodia e estando a atenção do músico voltada inteiramente para a
harmonia, tudo se dirigiu pouco a pouco para este novo objeto; os gêneros, os
25
modos, as escalas, tudo recebeu uma nova fisionomia: foram as sucessões harmô-
nicas que regularam a marcha das partes. Tendo essa marcha usurpado o nome de
melodia, não foi possível ignorar, de fato, nessa nova melodia, os traços de sua
mãe; e tendo nosso sistema musical tornado-se assim, gradativamente, puramente
harmônico, não é de espantar que o acento oral tenha sido prejudicado e que a
música tenha perdido para nós quase toda a sua energia. Eis como o canto se
tornou, gradativamente, uma arte inteiramente separada da fala, da qual extrai
sua origem; eis como as harmonias dos sons fizeram esquecer as inflexões da voz
e como, enfim, limitada ao efeito puramente físico do concurso das vibrações, a
música viu-se privada dos efeitos morais que produzia quando era duplamente a
voz da natureza. (Rousseau, 1998:186-7)
Os grifos, sugeridos por Derrida, enfatizam uma determinada subleitura do texto
de Rousseau. O autor do Essai procuraria aqui relacionar o “novo objeto” com seu
devir progressivo a partir do qual produziria, gradativamente, o esquecimento da
voz natural. A operação de “substituição” dessa voz é descrita no texto como uma
perda de energia. Derrida observa, em especial, o emprego de “duplamente”, que
congrega a metáfora da voz da natureza: “é preciso reencontrar o ‘acento oral’ da
fala cantada, retomar a posse de nossa própria voz perdida, essa que, proferindo e
ouvindo, ouvindo-se-significar uma lei melodiosa, era ‘duplamente a voz da natureza”
(Derrida, 1973:244) – Rousseau estaria de fato convicto de que a essência da arte é
a mimesis. E se a imitação reduplica a presença, “nas artes vivas, e por excelência
no canto, o fora imita o dentro. É expressivo. ‘Pinta’ paixões. A metáfora que faz do
canto uma pintura não é possível, não pode arrancar a si e arrastar para fora, no
espaço, a intimidade de sua virtude, senão sob a autoridade comum do conceito de
imitação” (ibid., 248). Assim, imitação e piedade teriam um mesmo fundamento
que tem origem no desejo de transportarmo-nos para fora de si – como definiu
Derrida, uma espécie de “êxtase metafórico”. E se a arte é imitação, uma expressão
da paixão, uma “saída para fora”, estamos diante do estatuto do signo; portanto, a
operação da arte só é possível no sistema de uma cultura e a estética passaria então
por uma ordem semiótica.
Se o racionalismo insistiu numa extremada centralidade da mente e da razão,
que tendia a construir a realidade em termos puramente (ou predominantemente)
mentais – e cujo poder analítico só havia sido experimentado no domínio das grande-
zas –, ao menos desde John Locke, em Essay on human understanding, um
26
pensamento empirista, por sua vez, propagava que não existem conceitos ou idéias
sem a mediação dos sentidos, e que por isso a noção de conhecimentos inatos era
ilusória: a mente humana é, inicialmente, como uma “tela em branco”. Para o empiris-
mo de Locke – uma significativa referência de toda a filosofia da experiência – a
determinação do objeto da experiência deve mesmo preceder o exame da função
experimental; e a experiência empírica é, pois, a única fonte do conhecimento seguro,
constituído somente por idéias cuja validade pode ser verificada pela experiência
sensível. Ao propor como fundamento a experiência sensorial e os dados dos sentidos,
o empirismo estreitava o âmbito do que é filosoficamente relevante, pois excluía,
assim, tudo o que é “mental”, valores humanos entendidos como “estados subjetivos”
irrelevantes na apreensão do mundo “real”. Ou seja, o “mundo empírico” consiste
apenas de dados sensoriais cuja existência independe da experiência humana,
enquanto a consciência consiste de respostas mecânicas a impressões sensórias –
uma analítica agora aplicada no plano do psíquico.
O empirismo assim pretendia purificar o conhecimento, livrando-o de “distorções
subjetivas” inerentes à especulação racionalista. A experiência musical residiria na
resposta a um determinado estímulo, uma reação menos lógica que psicológica. As
emoções provocadas pelo estímulo musical seriam mediadas pela faculdade da
“imaginação”, aqui entendida mais como função do “prazer sensorial” que de uma
racionalidade. Essa ênfase no caráter sensorial da música revelava a disposição dos
empiristas de acreditar – diferente dos racionalistas que viram a música como
experiência intelectual da audição – que o prazer com a música é mais corpóreo que
consciente.
Locke contentou-se em evidenciar o que considerou serem as duas fontes
autônomas e distintas da vida mental: a sensação e a reflexão. A psicologia do
século
XVIII, contudo, avançou mais além das posições de seu mestre. Sucessores
como David Hume procuraram liquidar o que restava de dualismo, a distinção da
experiência “interior” e “exterior”, para reduzirem todo o conhecimento humano a
uma única fonte. Hume aglutina “sensação” e “reflexão” no termo único percepção,
expressão com a qual pretende dizer de tudo aquilo que nos é dado, tanto como
27
“experiência interna” (conteúdo do próprio eu) quanto “experiência externa” (objetos
da natureza). Entretanto, se Hume afirmava que a beleza está na mente que contempla,
embora não seja da ordem do juízo, e sim de predileções particulares sem conceitua-
lização – o que colocava a música não no domínio do racional, mas do emocional e
do sensorial – Alexander Baumgarten, por sua vez, cunhava, em 1750, o termo
“estética” – uma ciência da “cognição sensorial” – para designar o estudo que estaria
para a atividade artística assim com a lógica para a razão
4
.
Somente a partir da extraordinária influência exercida pelo idealismo kantiano,
contudo, é que a estética viria a ser considerada um ramo filosófico essencial. Se
sempre existiram relações estreitas entre os problemas da filosofia especulativa e a
crítica estética, desde a Renascença, o século
XVIII deu outra conotação a essa
reciprocidade. A estética teórica nasce do esforço de afirmar uma unidade natural
entre os dois domínios; procura-se uma correspondência entre o conteúdo da arte e
o da filosofia. Mas antes que essa síntese alcançasse sua forma definitiva na obra de
Kant, deveria superar os conflitos entre “razão” e “imaginação”, a oposição entre
“gênio” e “regras”, a dificuldade de fundamentar o belo numa forma de conhecimento.
Ernst Cassirer explica que os numerosos pensadores que participaram do movimento
de fundação da estética não tinham, de início, consciência de uma linha determinada,
de um problema básico que pouco a pouco, segundo um interesse psicológico, lógico
ou ético, vai se configurando:
em face da lógica e da filosofia moral, da física e da psicologia, estabelece-se
agora uma nova problemática que, no começo, não se distingue nitidamente delas.
Mil vínculos ligam-se ainda a todas essas disciplinas. Entretanto, sem que o pensa-
mento filosófico se esforce verdadeiramente por desfazer esses vínculos, nem por
isso deixou de começar a estirá-los aos poucos até conseguir, enfim, se não de fato
pelo menos num plano puramente conceptual, rompê-los. Dessa ruptura, desse
movimento de libertação intelectual nasce uma disciplina nova, autônoma: a filosofia
estética. (Cassirer, 1997:370)
Profundamente associado às idéias de Leibniz – influência recebida indireta-
mente, através da sistematização empreendida pela escola de Cristian Wolff
5
–,
Baumgarten entendeu que já seria lícito afirmar que uma arte é tanto mais proeminente
quanto maior for a extensão da aplicação de suas regras e quanto mais sólidas e
acuradas estas forem. E adverte que um cuidado deve ser considerado em relação
28
aos assuntos pensados de modo belo: a verdade, mas a verdade estética enquanto
conhecida sensitivamente. Citando do Ensaio de teodicéia (1710), de Leibniz, o
princípio da contradição e da razão, Baumgarten explica que a representação da
verdade metafísica – a verdade lógica – é a harmonia das representações com os
objetos, portanto uma verdade objetiva; enquanto que
a verdade subjetiva poderia ser dita como sendo a representação daquilo que é
objetivamente verdadeiro no interior de uma determinada alma. (...) Com efeito,
desde logo me parece ser evidente que a verdade metafísica, representada numa
determinada alma de tal forma que nela provoque a verdade lógica “lato sensu” –
ainda chamada de espiritual e subjetiva – ora apresenta-se ao intelecto no mais
elevado sentido espiritual, desde que seja distintamente percebida pelo intelecto
nos objetos representados, quando também é chamada de verdade lógica “strito
sensu”, ora apresenta-se como a verdade estética ao pensamento intuitivo e às
faculdades inferiores do conhecimento, tanto excepcional, quanto preponde-
rantemente” (Baumgarten, 1993:121).
Assim, o mesmo Baumgarten que levou a lógica escolástica ao mais alto grau
de perfeição formal também tomou consciência de seus “limites” necessários. Em
virtude disso, formulou os fundamentos filosóficos da Estética, desenvolvendo-a
como disciplina científica a partir da Lógica. A Estética não seria, segundo Baum-
garten, uma ciência caso se limitasse apenas ao fornecimento de regras para a produ-
ção da obra de arte e as observações psicológicas sobre os seus efeitos. O sentido
filosófico de uma ciência está na compreensão daquilo que ela representa na totalidade
do saber, na precisão de sua diferença específica. E ele encontra essa diferença ao
definir a nova disciplina como teoria da sensibilidade, do “conhecimento sensível”.
Porém, o célebre analista não propõe, propriamente, o contra-senso lógico de um
conhecimento sensível, portanto confuso e obscuro, mas um conhecimento do
confuso, do obscuro. A ciência não seria “rebaixada” ao domínio da sensibilidade,
o sensível é que deve ser “elevado” ao status do saber. A questão de Baumgarten é:
se o sensível é obscuro, deverá a forma pela qual o conhecemos permanecer também
obscura? E assim, um Baumgarten “fenomenologista” pôde, enfim, romper, em parte,
com as barreiras da metafísica tradicional e realizar as condições necessárias para a
constituição de um estudo da sensação como disciplina filosófica: uma ontologia do
belo.
29
A idéia da música
Em sua terceira Crítica, dedicada aos juízos estético e teleológico, Kant não se
afasta, em essência, de questões centrais de sua filosofia: o papel da mente na constru-
ção da realidade humana e o argumento de que os indivíduos percebem dados (obje-
tos) do mundo exterior somente através de categorias que são o trabalho espontâneo
de suas mentes. Os objetos da consciência não seriam meros dados sensoriais – ou
coisas como “realmente são” –, mas coisas formadas e estruturadas pela nossa
atividade cognitiva. A partir disso, procurou demonstrar o equívoco da controvérsia
entre um empirismo e um racionalismo dogmáticos, elucidando as limitações tanto
de um conhecimento empírico quanto de uma racionalidade “pura”. Kant realiza
assim uma surpreendente síntese das perspectivas racionalista e empirista, que
ultrapassaria suas diferenças num idealismo “transcendental”.
Os empiristas presumiram que o conhecimento é formado, primariamente, por
seus objetos, numa resposta mecânica a um estímulo objetivo – embora não tenham
explicado como se dá essa resposta. Ao invés, para Kant os objetos são “adaptados”
ao nosso conhecimento, que é fundamentalmente adquirido por atos de imaginação,
e estes formam aquilo que é conhecido. A mente requer uma natureza que se apresente
compreensível e que responda as perguntas que a mente formula. E uma vez que
todo conhecimento é mediado pela mente, a realidade como ela existe “em si” –
independentemente – não é cognoscível. Entretanto, a “realidade” não é mera
invenção mental. O fato de que não podemos conhecer as coisas como são “em si
mesmas” não significa que elas não existem nem torna inválido o conhecimento
sobre elas. Segundo Kant, o conhecimento fundado no ato imaginativo não é um
conhecimento contaminado, pois é, simplesmente, o único conhecimento que temos.
A coisa experimentada é um dado, mas a cognição humana concede a estrutura que
a faz significativa. Se sem a atividade mental de categorização o mundo seria caótico,
a mente constitui a realidade, mas somente num sentido estritamente limitado: o
30
mundo não é senão sua representação. Donde, para Kant, o prazer estético dá-se
como resultado da congruência entre as duas faculdades cognitivas de imaginação e
de entendimento. Para algo se tornar objeto de cognição requer o trabalho de esquemas
da imaginação pura, elementos mediadores que permitem a aplicação dos conceitos
puros (categorias) do entendimento (a razão pura) à experiência, conferindo assim
unidade às imagens apresentadas pela imaginação.
Na Kritik der Urteilskraft (1790), Kant cria com o seu “juízo do belo” um
campo cognitivamente válido, comparável aos juízos lógico e ético. Para tanto, teve
que relegar radicalmente a sensação e a emoção a um nível secundário, atribuindo
às qualidades formais a máxima prioridade. Investigando as perspectivas de particula-
rização do juízo do belo, Kant entende ser sua “qualidade” marcada pelo desinteresse,
isto é, sua avaliação se dá pelo prazer ou pela repulsão, mas livres de qualquer
interesse. Aqui o termo “interesse” é empregado como aquilo que visa a finalidades
– objeto das ações práticas da vida humana –, de um modo tal que o juízo estético
não é. Opondo-se à crença empirista de que o juízo estético é apenas função do
prazer sensorial, Kant procurou distinguir experiência estética de modelo mecânico
de resposta a estímulos. Assim, o prazer estético difere do sensorial por ser este
último “interessado” na satisfação que seu estímulo proporciona – satisfação que se
dissipa tão logo desaparece o estímulo. Trata-se, portanto, de uma experiência com
o agradável e não com o belo. Por outro lado, o desinteresse também distingue juízo
estético de juízo intelectual (lógico). No domínio da razão, a realidade dos objetos
é um fundamento e isso torna os juízos lógicos “interessados”.
Uma outra perspectiva do prazer estético kantiano é sua universalidade, contudo
sem a mediação conceptual. Contrariando a proposição de Hume da estrita
subjetividade do juízo de gosto, Kant postula sua validade universal como nos juízos
da razão: o belo está “lá fora”. Entretanto, no juízo estético a concordância universal
não é regida por normas, é apenas atribuída. O juízo do belo está também baseado,
segundo Kant, na unidade. O prazer com os objetos estéticos dá-se em virtude de
sua “finalidade formal”, em tese um sentido de completação, de fechamento, que
não é, evidentemente, característica exclusiva do juízo estético. O belo agrada por
31
sua forma, de modo subjetivo, e não, objetivo – trata-se de uma satisfação para
captar uma forma dada na faculdade da imaginação. Porém, o objeto estético,
enquanto finalidade formal subjetiva, não envolve qualquer pensamento acerca da
perfeição do objeto. Enfim, para Kant, o prazer sensorial é puramente subjetivo,
mas envolve interesse; o prazer estético é igualmente subjetivo, mas desinteressado
e reflexivo. O prazer com a utilidade de algo implica ter em mente algum conceito
de uso, propósito, fim prático; o belo, ao contrário, simplesmente satisfaz.
Kant liberta a Estética do descaso intelectual, mas com o sacrifício da música,
à qual faltaria a integridade formal necessária para o juízo do belo universalmente
válido. Ele reconhece a natureza “agradável” da música, mas a atribui à sua capaci-
dade de estimular: muito mais uma questão de prazer sensorial que contemplativo –
música, a primordial dentre as “artes do belo jogo das sensações”, ocuparia assim
um dos últimos lugares entre os objetos belos para os quais o juízo estético se
aplica. Embora pareça, à primeira vista, uma virtude da música (e em especial da
música puramente instrumental) sua particular compatibilidade com o critério de
universalidade – ao prescindir de conceitualização –, Kant vê na efemeridade musical
uma dificuldade para a constituição formal, indispensável na experiência estética.
A música seria muito ativa, mutável e invasiva para ser algo propriamente
desinteressado. As “artes da forma”, ao contrário, exigem um trabalho da imaginação
mais congruente com o entendimento; música é mais sensação que intelecto. Por
isso, Kant não entendeu música como um fenômeno puramente estético, mas com
características “estéticas” distintas.
A concepção musical de Georg W. F. Hegel contrastou fortemente com a idéia
kantiana de “arte sensorialmente agradável”. Para ele, o belo que se manifesta nas
artes é essencial para a realização da idéia absoluta, para a compreensão do mundo
como é absolutamente. Arte é idéia absoluta manifesta aos sentidos; é a mente dada
em forma sensível. Por isso, Hegel entende que o valor da arte está em sua capacidade
de oferecer tanto uma forma adequada ao conteúdo ideal quanto à abstração desse
conteúdo. O valor artístico está assim relacionado com a eficácia da arte em elevar
a mente à sua idealidade. Donde as artes de configuração externa (material) mais
32
clara seriam também as mais modestas nesse propósito; e aquelas que compartilham
a interioridade desincorporada da mente, como a música, gozam de maior prestígio
na filosofia de Hegel. Enquanto as artes visuais criam presenças externas, objetos
concretos espaciais, a música tem a capacidade de suprimir a distância entre quem
percebe e aquilo que é percebido. Não consiste, pois, de imagens de coisas externas,
mas de um campo de interioridade cujos padrões de tensão e repouso percebidos
tornam patente a ascensão dialética da “alma” à liberdade da “idéia” absoluta.
Para Hegel, a música é uma arte do tempo, que ao renunciar à espacialidade e à
materialidade livra a consciência das aparências externas e a harmoniza com a
interioridade irrestrita da idealidade. Embora toda arte tenha origem na mente, a
música seria altamente ideal, uma vez que seus “materiais” são predominantemente
mentais e sua experiência mais interior e abstrata. A “vida interior” manifesta-se
tanto no conteúdo quanto na forma musical. Para que o interior possa manifestar-se
como interioridade subjetiva, os materiais envolvidos não devem ser de natureza
permanente, “como se fossem independentes”. Segundo Hegel, “obtém-se assim
um modo de expressão e de comunicação, em que a objetividade não entra como
forma espacial, dotada de permanência, mas que é realizado com materiais sem
resistência e que desaparecem logo após a sua utilização” (1993:493).
Entretanto, é preciso enfatizar que o “interior” referido por Hegel é abstrato, ou
seja, o “sentimento” que a música comunica não é do tipo encontrado na experiência
cotidiana. A música dirige-se a um “eu destituído de externalidade”, à vida interior
e indefinida do sentimento, e não às manifestações particulares deste. A idéia não é,
para Hegel, friamente, um fenômeno intelectual, puramente analítico. Há mais que
o intelecto para a idealidade humana. A consciência não é meramente individual,
mas culturalmente coletiva e a música é um importante modo de ser no mundo que
alarga nossa humanidade ao desafiar a mente a uma melhor autoconsciência.
Enquanto a visão é exterior e analítica, a audição é interior, íntima e sintética. E
assim sendo, a música revela verdades sobre o mundo, que não seriam acessíveis
por meio de nenhuma outra experiência.
33
O ponto mais crítico da estética musical de Hegel é que o conceito de interio-
ridade da música, sua qualidade primordial, conduz diretamente às dicotomias interior
e exterior, subjetividade e objetividade, material e ideal. Em sua “metafísica da
música”, ao fazer emergir a poderosa categoria da Vontade, Arthur Schopenhauer
opõe-se diametralmente a Hegel. De comum entre eles, somente o privilégio que
conferem à música dentre as artes, por ter a capacidade de mediar algo além dela
mesma – embora discordem acerca do que vem a ser este “algo”. Porém, ao discutir
a questão da subjetividade e de seu paradoxo moderno Schopenhauer diz que é
exatamente em sua liberdade, que os indivíduos estão implacavelmente presos. A
subjetividade é algo que não podemos chamar de nosso, de vez que a vontade, o
desejo criou em nós a ilusão da razão, e, assim, nos iludimos que os objetivos da
razão são os nossos objetivos.
Em sua obra principal, Die Welt als Wille und Vorstellung, Schopenhauer começa
por um ataque radical ao idealismo kantiano – embora por ele influenciado: o mundo,
tal como o conhecemos, não é senão uma representação nossa, portanto não tem
realidade “em si”, é uma fantasia da mente. A verdadeira “coisa em si” é a Vontade,
uma experiência interior que nos leva ao autoconhecimento. Mas uma vontade de
tal forma ligada ao corpo, que toda tendência do desejo traduz-se em ação corporal;
o corpo expressa a vontade do modo como é conhecida do exterior, como represen-
tação. Contudo, a vontade, como coisa em si, é absolutamente distinta do seu fenô-
meno. Ela independe de todas as formas fenomenais nas quais penetra para se
manifestar, e, por isso, o fenômeno diz respeito à sua objetividade e é-lhe estranho.
Para Schopenhauer, as representações de ordem abstrata formam apenas uma
classe de representações, que é a dos conceitos, privilégio exclusivo do ser humano:
“esta faculdade, que ele possui, de formar noções abstratas, e que o distingue do
resto dos animais, é aquilo que desde sempre se chamou razão” (Schopenhauer,
2001:12). Para ele, Kant foi o único que obscureceu essa concepção da razão. Todavia,
Kant teria dado uma preciosa contribuição ao mostrar que o tempo e o espaço – as
condições ou formas da experiência – podem não apenas ser pensados de forma
abstrata, mas também apreendidos imediatamente “em si mesmos” – enquanto
34
elementos comuns que são de toda percepção e de toda representação de fenômenos.
Essas representações intuitivas, segundo Schopenhauer, são uma classe de represen-
tações inteiramente distinta dos conceitos: são “esses elementos do tempo e do espaço,
tais como os revela a intuição a priori, que representam as leis de toda experiência
possível” (ibid., 13). Ao contrário, é impossível chegar a um conhecimento intuitivo
e evidente da natureza dos conceitos; a única idéia que deles podemos fazer é ela
própria abstrata e discursiva. O conceito só tem conteúdo e sentido pela sua relação
com a representação intuitiva, sem a qual seria vazio e sem sentido. E se sentimento
opõe-se naturalmente ao saber (conhecimento abstrato), seu conceito tem um conteú-
do absolutamente negativo. Diz simplesmente da existência de algo presente na
consciência. Sendo assim, quando falamos de um conhecimento de que temos apenas
uma consciência intuitiva, dizemos que o sentimos.
Schopenhauer refutou severamente a identificação arbitrária de Hegel do real
com o ideal. A essência da realidade não é, em sua doutrina, ideal ou racional, mas
algo puramente irracional: a Vontade, uma força indestrutível universal e unitária da
qual tudo que existe é uma manifestação, em algum sentido. Se o mundo existe
como Vontade e suas representações, então, em contraste com Hegel, a essência do
universo não é a razão (a idéia), mas a Vontade irracional. Ele nega, portanto, às
idéias a primazia, enfatizando que o pensamento, o entendimento e a razão sempre
respondem à “vontade”. As distinções que ele faz entre “idéia” e “representação” e
entre os dois sentidos do termo “vontade” são, entretanto, fundamentais para a sua
filosofia. A Vontade (nomênica) se manifesta tanto em forças inorgânicas como a
gravidade quanto em seres animados como sua incessante busca pela sobrevivência.
É, pois, uma força inconsciente que conduz e determina todas as coisas no universo,
aquilo que a física moderna denomina “energia”. Num segundo sentido, a vontade
(fenomênica) manifesta-se na experiência humana como desejo, algo que em contraste
com a Vontade sempre tem algum objeto e, portanto, acarreta consciência. A Vontade
nunca é dada à experiência humana, somente sua representação fenomênica.
Haverá um conhecimento especial que se aplica àquilo que no mundo subsiste
fora da relação com o fenômeno, àquilo que é conhecido como uma verdade igual
35
para todos os tempos, enfim às idéias, que constituem a “objetidade imediata e
adequada” da vontade? Tal modo de conhecimento, para Schopenhauer, é a arte: o
essencial de todos os fenômenos, cuja origem única é o conhecimento das idéias e
cujo único fim é a comunicação desse conhecimento. Assim, ele apontou a via esté-
tica como solução para conseguirmos algum descanso na busca insaciável do desejo
– mas no sentido, é verdade, menos de uma preocupação com a arte que de uma
atitude transformadora da realidade. A estética seria uma fuga temporária da prisão
da subjetividade: na experiência estética afastamo-nos de todo o desejo e assim
somos capazes, por alguns instantes, de acessar os fenômenos tal como são. Essa
idéia de rompimento da cadeia teleológica aponta, curiosamente, para um retorno a
Kant. Porém, se para Kant a estética trabalha dentro do registro do imaginário – que
retira o objeto do mundo das funções práticas e o dota de uma certa autonomia
própria do sujeito –, para Schopenhauer a estética se lança para o simbólico, campo
no qual se pode aceitar que os objetos “não precisam de nós”.
O intelecto não pode conhecer a Vontade irracional, mas a relação da música
com ela é direta e imediata. A música, que vai para além das idéias, é completamente
independente do mundo fenomênico; não é, como as outras artes, uma reprodução
das idéias, mas uma reprodução da vontade como as próprias idéias. A música seria
um meio para a comunicação do incomunicável, para a apresentação da essência
mais íntima do universo, que não pode, por definição, ser representada: “é muito
difícil apreender o ponto comum do mundo e da música, a relação de imitação ou de
reprodução que os une. Sempre se fez música sem se suspeitar disso; contentávamo-
nos em compreendê-la imediatamente, sem procurar apreender de uma maneira
abstrata a razão dessa inteligibilidade imediata” (ibid., 270). A alternância de padrões
de tensão e relaxamento musical seria análoga aos padrões de desejo e satisfação
humana, mas o sentido da música nada tem a ver com sentimentos particulares –
fenomênicos. A metáfora de Schopenhauer, despida de sua presunção metafísica,
nos ensina, enfim, que o “movimento” que ouvimos em música é motivado pela
intenção humana, e que mais do que como simples movimento o ouvimos como
ação – de seres humanos se comportando. O sentido da música estaria ligado à
36
essência interior do sentimento, a música apresenta, pois, a forma do sentimento, a
natureza abstrata do sentimento.
Em suma, a demonstração de Kant da impossibilidade de uma pura racionalidade
e de um conhecimento empiricamente puro deu início a uma profunda transformação
da filosofia e com ela das concepções de música. Para o idealismo, a mente humana
é fundamentalmente estruturadora e formadora para transformar o que quer que seja
dado pelos sentidos. Como aquisição da mente, a música deve equivaler a um tipo
de conhecimento, e, como observou Wayne Bowman, “o idealismo está preocupado
em provar que a música é mais do que um objeto afetando os sentidos ou uma mera
questão de diversão e entretenimento. Música é um modo único de cognição ou
consciência cujo sentido estende-se além de sua apresentação material” (Bowman,
1998: 127). Donde a música não é nem conhecimento, no sentido conceptual, nem
uma experiência puramente sensorial.
Uma nova intencionalidade
Como se depreende, uma fenomenologia já está presente desde a primeira Crítica
kantiana, uma vez que nela há a investigação do domínio do aparecer, do “fenômeno”,
quando do estudo da estrutura do sujeito e das funções do espírito. Kant, no entanto,
visa menos ao esclarecimento desse aparecer que à limitação das aspirações do
conhecimento, que atingiria apenas o fenômeno, não sendo jamais conhecimento
do ser (do absoluto). É com a Phänomenologie des Geistes (1807), de Hegel, que o
termo assume definitivamente seu lugar na tradição filosófica. Para Hegel o absoluto,
se cognoscível, é o Espírito, de modo que a fenomenologia é uma filosofia do abso-
luto, este que está presente em cada momento da experiência humana.
Entretanto, os trabalhos de Edmund Husserl, que rejeitam a dissociação dos
sentidos do ser e do fenômeno, é que foram perpetuados sob a forma de pensamento
denominado fenomenologia. E podemos observar que esse esforço filosófico de
Husserl tenta dar solução a uma crise que tem no centro o declínio dos sistemas
37
filosóficos da tradição alemã – tais como os de Hegel ou de Schopenhauer – e o
abalo que começava a sofrer o pensamento positivista que sustentava as ciências.
Sem pretender fazer uma descrição extensiva da fenomenologia husserliana, enten-
demos, no entanto, que alguns de seus conceitos principais não devem ser aqui
omitidos, uma vez que o presente estudo vai referir, sistematicamente, à terminologia
consagrada por Husserl – cuja amplitude tem sido, inclusive, causa de constantes
equívocos e dificuldades de entendimento – e às bases do seu método.
Contra a notável influência do que denominou psicologismo
6
, cujo âmbito ora
se estendia sobre a lógica, a ética e a estética, Husserl propõe um contato direto com
as essências – sobretudo a partir de suas Logische Untersuchungen e do Ideen zu
einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, cujo primeiro
tomo foi publicado em 1913 (Ideen I). De acordo com ele, as leis lógicas não podem
se fundamentar no empirismo da Psicologia, uma ciência que não possui a precisão
das regras da lógica. Todo empirismo baseia-se no postulado que consiste em afirmar
que “a experiência é a única fonte de verdade para todo o conhecimento”. Contudo,
a experiência, que somente pode oferecer o singular, não pode trazer ao conhecimento
princípios universais.
A Fenomenologia nascia como uma filosofia pós-kantiana, que pretendia restituir
ao pensamento filosófico um novo cientificismo que não se interessa, propriamente,
pela descrição empírica dos fatos, e sim que pretende ultrapassá-la. Assim, procurou
manter um lugar central para a capacidade transformativa da mente, fundando-se na
negação da divisão idealística da realidade em subjetivo e objetivo ou em aparente
e real. É nessa convicção de que não há diferença fundamental entre o aparente e o
real, e na possibilidade do conhecimento puramente objetivo, que se deu o surpreen-
dente contraste com a epistemologia tradicional. Desse modo, a Fenomenologia
configurou-se como estudo daquilo que é dado à consciência e sobre o que pensamos
e falamos: uma reflexão sobre o conhecimento do conhecimento, que substitui a
abordagem empírica do psicologismo – este que opera a redução do conceito a um
produto de um ato psicológico. Portanto, entre a especulação metafísica e o raciocínio
38
das ciências positivas, haveria de existir uma terceira via que nos conduziria ao
plano da realidade: ao plano “das coisas mesmas”
7
.
Opondo-se, pois, à afirmação kantiana da inacessibilidade da “coisa em si”, a
Fenomenologia sustentou que seu método possibilita o acesso ao essencial das
aparências – num nível pré-reflexivo –, revelando as coisas como elas são antes de
receberem as interferências distorcivas de hábitos teóricos e categorias pré-
estabelecidas. Husserl tentou estabelecer um método de pergunta que evitaria reduzir
a filosofia à psicologia ou à lógica. Para ele, não há porque se surpreender com o
deslocamento do plano lógico para o plano natural, uma vez que um e outro são
mundanos: o objeto é, em geral, tanto coisa como conceito. Objeto não é, simples-
mente, coisa, mas é a coisa enquanto está presente à consciência: tudo aquilo que
constitui resultado de um ato de consciência e, portanto, pode ser real, ideal, fantás-
tico, entre outros. Fenômeno é a realidade manifesta do objeto, o aspecto aparente
do objeto na consciência: é a aparência, o dado à presença na mente. (Há objetos
que existem como pensamento e como imagem; outros, somente como pensamento,
pois lhes falta a imagem.) Todo o fenômeno e somente o fenômeno se pode dizer. O
logos – o pensamento racional – penetra o fenômeno e só se expõe no fenômeno:
essa é a condição de possibilidade de uma fenomenologia. O fenômeno, portanto,
deve ter o pensamento como lastro; deve ser logos e fenômeno, ao mesmo tempo.
A atitude natural possui uma tese revelada na segunda seção do Ideen I, na
qual Husserl diz que temos consciência de um mundo estendido sem fim, no espaço
e no tempo:
Tenho consciência dele quer dizer, antes de tudo: o encontro diante de mim imediata
e intuitivamente, o experimento. Mediante a vista, o tato, o ouvido, etc., nos diversos
modos da percepção sensível estão as coisas corpóreas, em alguma distribuição
espacial, simplesmente aí para mim, “presentes” em sentido literal ou figurado,
quer eu fixe a atenção especialmente nelas, ocupando-me em considerá-las, pensá-
las, senti-las, querê-las ou não. (...)Para mim, os objetos reais estão aí, como objetos
determinados, mais ou menos conhecidos, ligados aos realmente percebidos, sem
serem eles mesmos percebidos, nem sequer intuitivamente presentes. (...)Mas o
conjunto dos objetos co-presentes à intuição, de maneira clara ou obscura, distinta
ou confusa, que constitui o campo real de percepção não esgota o mundo que para
mim está “presente” de modo consciente, em cada momento em que estou desperto.
Esse mundo estende-se, ao contrário, segundo uma ordem fixa do ser, até o infinito.
O mundo realmente percebido, o mais ou menos claramente co-presente e determi-
39
nado (até certo ponto, ao menos) está em certo sentido atravessado, em certo sentido
rodeado por um horizonte obscuramente consciente de realidade indeterminada.
(...)Esse mundo está persistentemente para mim “presente”, eu mesmo sou membro
dele, mas não está para mim aí como um mero mundo de coisas, e sim do mesmo
caráter imediato, como um mundo de valores e bens, um mundo prático. (1992:64-
6)
A Fenomenologia não se orienta pelos fatos, mas pela realidade da consciência,
para os objetos enquanto intencionados pela e na consciência, esta que é alcançada
por uma intuição, antes de todo juízo: as essências ideais ou fenômenos. A essência
é o conceito universal que se verifica, invariavelmente, em indivíduos distintos. Ou
seja, quando o sujeito entra em relação com o objeto, realiza o processo de redução
até alcançar as essências – ou vivências. Esse ato de pensamento do sujeito (o cogito
cartesiano) não pode estar separado do objeto pensado (cogitatum), pois todo estado
de consciência visa a algo. Por conseguinte, as vivências denominam-se intencionais
e são imanentes à consciência. Em outras palavras, todas as realidades deveriam ser
tratadas por nós como “fenômenos puros”; e para obtermos certezas, deveríamos
reduzir o mundo exterior aos limites de nossa consciência – uma “redução
fenomenológica” prega, portanto, a exclusão de tudo aquilo que não seja imanente
à consciência, ao “sujeito transcendental”.
Além disso, as essências encontram-se dentro da realidade e são apreendidas
pela intuição. A Fenomenologia visa a penetrar na essência, no eidos das coisas. A
essência não é, pois, a coisa, mas somente o ser da coisa. E há tantas essências
quantas significações puderem ser produzidas pela consciência, ou seja, tantas
quantos objetos podem se dar nossa percepção, nossa imaginação, nossa memória.
A idéia de fenomenologia, guardando as distinções e particularidades, foi sempre
uma constante da filosofia alemã, desde o racionalismo seiscentista. Entretanto, o
redescobrimento da intencionalidade de todo fato psicológico, isto é, de que nele há
sempre uma referência à outra coisa, a um conteúdo que não é ele, deve-se à psicologia
de Franz Brentano, de fins do século
XIX (consciência é sempre “consciência de
alguma coisa”)
8
. É nesse período que se define melhor a diferença entre o processo
psicológico de pensar e a idéia que se pensa. Para Husserl, que distingue as ciências
40
empíricas (de fatos) das ciências eidéticas (de essências), a Fenomenologia é, entre
outras coisas: ciência teórica, pois apoiada em fundamentos absolutos; ciência das
significações, estas que fazem os objetos existirem (mas não que estejam nos objetos,
são produzidas pela imaginação que dá o objeto numa imagem); ciência intuitiva,
pois visa à apreensão das essências das coisas; ciência da subjetividade, em virtude
da análise da consciência dirigir-se ao eu, o sujeito das intencionalidades (mas não
parte do eu individual, e sim das próprias coisas).
Se a abstração intelectual busca interpretar sobrepondo à particularidade a gene-
ralidade conceptual, a Fenomenologia procura respeitar a particularidade do “dado”,
entendendo a realidade humana como algo mais complexo do que a teoria abstrata,
inerentemente reducionista, pode comunicar. A idéia de intencionalidade ou
direcionalidade da experiência consciente determina, portanto, uma condição muito
diferente de uma mera subjetividade para os “estados conscientes”, rompendo assim,
definitivamente, com a noção cartesiana da divisão da realidade em sujeito e objeto,
uma consciência diante do mundo e não no mundo – a oposição abstrata “objeto e
sujeito” deixa de definir o mundo. O mundo é um sistema de significações e todo
ser é sentido, este que surge somente no humano e sem o qual não há mundo.
O método fenomenológico (eidético descritivo) propõe-se, portanto, a funcionar
como uma crítica do conhecimento e a descrever as estruturas essenciais da experiên-
cia “universal”, estruturando uma base para todo o conhecimento. Suas três fases
seriam a Intuição, a Redução e a Ideação. A primeira diz do ato de consciên-cia
pelo qual o fenômeno está presente na consciência, ou seja, a intuição atua no imedia-
tamente dado. Todavia, a Fenomenologia estende o conceito de experiência além
dos limites do empírico, pois seu objeto é a intuição das essências. Na Redução,
isola-se o objeto de tudo aquilo que não lhe é próprio, isto é, separam-se as essências
da realidade empírica: suspende-se, pois, o juízo sobre o mundo. Trata-se da célebre
expressão husserliana “pôr entre parênteses” – a realização da epoché fenomenológica
– o mundo em geral (tanto o empírico quanto o ideal), sem que este seja, contudo,
suprimido. Essa operação redutora consiste em “dispensar uma cultura, uma história”,
e isso eleva todo o saber a um “não saber” radical. Em outras palavras, desune-se o
41
fato, que serve de objeto, de toda a realidade exterior, restando o conteúdo da
consciência: o objeto intencional, o sentido intencional do ato de consciência e a
essência intencional. O ato pelo qual conhecemos a essência universal a que pertence
o objeto existente, o ato de significação desse objeto – enfim, a intuição eidética
chama-se Ideação.
Husserl reconduz a subjetividade ao centro da discussão como fonte e origem
de todo significado, e anteviu um método não somente capaz de tratar do conteúdo
da mente, mas da forma da consciência: alcançam-se as “puras aparências” por
meio do ato de suspensão de todas as pressuposições – o que envolve uma abstenção
temporária de juízos, a fim de permitir a atenção total aos objetos e processos de
consciência como eles existem. Desse modo, o tempo vivido, por exemplo, consistiria
de uma sucessão infinita de momentos presentes, de “agoras”, mais do que de passado,
presente e futuro. Fenomenologicamente, tempo é sempre “agora”; passado e futuro
existem apenas na abstração reflexiva.
A redução husserliana é, de fato, possibilitada pela intencionalidade que, por
sua vez, não é apenas um dado psicológico. A epoché revela o objeto enquanto
visado: o fenômeno. Se retirarmos da consciência aquilo de que é consciência, a
consciência não pode ser pensada. Em sua análise do pensamento fenomenológico,
Jean-François Lyotard salienta que é devido ao caráter intencional da consciência
que se pode efetuar a redução sem suprimir o que é reduzido: “reduzir é, no fundo,
transformar todo o dado em face-a-face, em fenômeno, e revelar assim os caracteres
essenciais do Eu: fundamento radical ou absoluto, fonte de toda a significação ou
potência constituinte, nexo de intencionalidade com o objeto” (1999:33).
O trabalho da fenomenologia é analisar as vivências intencionais da consciência,
a fim de perceber como se produz o sentido do fenômeno, o sentido do mundo.
Segundo Husserl, a estrutura da vivência comporta elementos reais e irreais. Um
primeiro elemento real é a abertura da consciência para o objeto – seja uma percepção,
uma imaginação, uma ideação, uma memória. Outro componente real é a matéria,
isto é, o conjunto de sensações, composto em uma forma percebida. Mas do “lado-
objeto” da consciência, seu noema ou correlato, há um componente “irreal”, pois o
42
objeto percebido, cujos componentes estão todos na consciência, não está ele próprio
na consciência. O objeto percebido não existe senão enquanto percebido, enquanto
unidade ideal de todos os momentos sensíveis, de todas as significações sempre
relativizadas ao longo da experiência do objeto. O noema de Husserl é a descrição
dos diversos modos de como o objeto se mostra quando é intencionado; é o aspecto
objetivo da experiência vivida: “todo noema tem um ‘conteúdo’, a saber, seu ‘sentido’,
e se refere a ele como ‘seu’ objeto. (...)A vivência intencional tem assim uma ‘referên-
cia a um objeto’ (Husserl, 1992:308-9). No entanto, o objeto não se dá na consciência
isoladamente, mas num complexo de predicados a partir dos quais se tem consciência
do objeto: seus caracteres noemáticos. Em virtude de o objeto (o mundo, enfim)
depender dessas estruturas, Husserl propôs que é ele constituído e que a Fenome-
nologia é o estudo da constituição do mundo na consciência.
Se Descartes via a mente como uma consciência subjetiva que contém idéias
correspondentes ao que há no mundo – uma mente representando o mundo –, de
certa forma sua visão alcançou a culminância, como discutimos, em Brentano com
a retomada da intencionalidade. Ao desenvolver seus procedimentos de exame da
estrutura da intencionalidade – a estrutura da própria experiência –, Husserl, todavia,
não fez qualquer referência ao mundo factual e empírico. Sua fenomenologia
manteve-se num âmbito puramente interno dos conteúdos intencionais da mente,
isto é, sem reconduzi-los àquilo a que se referiam no mundo. O interesse pela expe-
riência e pelas “coisas em si” manteve-se, reconhecidamente, num plano puramente
teórico, faltando a essa fenomenologia um viés pragmático. Apesar da Fenomeno-
logia ter sido – e é ainda – a filosofia da experiência humana, ainda é filosofia como
reflexão teórica sobre as estruturas essenciais do pensamento. Assumindo que tais
estruturas são inteiramente mentais e acessíveis à consciência num ato de introspecção
abstrata filosófica, Husserl teve grande dificuldade de gerar o mundo intersubjetivo
da experiência humana. Embora afirmasse fazer uma filosofia da experiência, de
certo modo estava ignorando o aspecto consensual e incorporado da experiência –
sobretudo na fase inicial de seu empreendimento. A partir disso, alguns de seus
mais célebres desdobramentos voltaram-se para a descrição da existência humana
43
situada no seu “aqui e agora”, a partir de sua “facticidade”: a relação entre corpo e
experiência. E se não é possível compreender o que é o mundo sem ao mesmo
tempo compreender o que é a existência humana, volta-se para a descrição da existên-
cia do outro e do mundo – a descrição de como na troca de conhecimentos (represen-
tações que o sujeito se faz dos objetos) e de experiência prática descobre-se o mundo
do outro.
A mente incorporada
O sentido musical, divergindo das pretensões metafísicas, é indissociavelmente
perceptivo; não se desvincula de suas presenças sonoras. A superfície musical
percebida, o sentido incorporado, não encontra substituto na análise ou na abstração.
Por essa razão, o programa fenomenológico de Maurice Merleau-Ponty tornou-se
um ponto de partida natural para uma fenomenologia da arte e, em especial, da
música, na medida em que não atribui aos sentidos musicais menos consistência
devido à sua intraduzível corporeidade; afinal, todo o conhecimento repousa num
mesmo fundamento corpóreo e perceptivo. Dessa forma, para a fenomenologia da
arte a obra – especificamente seu texto
9
– deve ser reduzida à condição de “materiali-
zação da consciência” de seu autor, assim manifestada. Essa abordagem resiste, por
exemplo, a explicar o que a música é ou o que simboliza, dedicando-se, ao invés, a
descrever como é ouvida, como é experimentada. Ou seja, trata-se de uma espécie
de “psicologia descritiva” da música. A promessa da fenomenologia aplicada à
música, por conseguinte, é o auxílio na suspensão das tendências a ouvirmos certos
tipos e categorias, com isso objetivando a experiência com a natureza sonora essencial.
Embora Merleau-Ponty não tenha se dedicado diretamente a uma fenomenologia
musical, seu empreendimento fenomenológico gerou um terreno fértil para o exame
das qualidades sensíveis da música e da sua relação com o conhecimento. Duas de
suas teses são especialmente importantes nesse sentido: a instituição de uma teoria
do conhecimento fundada menos no pensamento que na experiência perceptiva e o
44
conceito do corpo como nosso instrumento de comprometimento com o mundo.
Uma vez que o conhecimento é mediado pelo corpo, é situado e carrega as impressões
indeléveis desse corpo, o que dificultaria sua consideração como conhecimento
predominantemente abstrato e cerebral, que se opõe à sensibilidade.
Esse esforço para atribuir status epistemológico à experiência perceptiva não
deve ser confundido, todavia, com a pretensão empirista de que o conhecimento
tem por base a experiência sensível. Para os empiristas, há uma distinção entre o
sentir e o que é sentido, entre a sensação e a sua causa objetiva. A fenomenologia de
Merleau-Ponty sustenta a idéia de uma construção conjunta do ato de sentir com
aquilo que é sentido, numa relação recíproca entre o sujeito que percebe e aquilo
que é percebido. Isso nega a neutralidade da percepção, que passa a ser fortemente
determinada pelo que é percebido. Desaparece a separação entre a consciência e
aquilo de que ela é consciente. Aqui não há divisor entre o fenômeno e a “coisa em
si”, entre o percebido e o conhecido:
A partir do momento em que há consciência, e para que haja consciência, é preciso
que exista um algo do qual ela seja consciência, um objeto intencional, e ela só
pode dirigir-se a este objeto enquanto se “irrealiza” e se lança nele, enquanto está
inteira nesta referência a... algo, enquanto é um puro ato de significação. (Merleau-
Ponty, 1996:172)
Enfim, para Merleau-Ponty, se um ser perde sua condição de produzir signifi-
cação – de ser um “tecido de intenções” –, passa à condição de coisa, que é aquilo
que não conhece a si e o mundo, aquilo que não é “para si”. Trata-se, pois, de uma
filosofia transcendental que coloca em suspenso as afirmações da atitude natural,
para então compreendê-las: as coisas são como aparecem, “o mundo já está sempre
‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável” (ibid., 1). A razão não se-
ria, portanto, somente uma questão de consciência ou de reflexão abstrata, e sim
fundada num domínio pré-racional, pré-reflexivo e pré-objetivo, ou seja, o mundo
vivido pelo corpo, a experiência corpórea. Assim sendo, se todo conhecimento é
uma aquisição pessoal, a objetividade pura é inteiramente impossível.
45
Merleau-Ponty afirma que os objetos são inteiramente constituídos no ato de
percepção e, portanto, não requerem qualquer contribuição de um intelecto “desin-
corporado”. Sendo sempre ligada ao corpo, a percepção é perspectiva e parcial, está
sempre espacialmente situada: é percepção de algum lugar, pois nunca percebemos
de todos os lugares ao mesmo tempo – isto é, de lugar nenhum. Perceber algo é
viver nele, é manter-se ligado a ele; pensar algo é mantê-lo à distância, é manter-se
separado dele. Se a Fenomenologia discute, com freqüência, os prejuízos clássicos
causados pelo empirismo, mostra também sua antítese ao intelectualismo:
Um e outro tomam por objeto de análise o mundo objetivo, que não é primeiro nem
segundo o tempo nem segundo seu sentido; um e outro são incapazes de exprimir
a maneira particular pela qual a consciência perceptiva constitui seu objeto. Ambos
guardam distância a respeito da percepção, em lugar de aderir a ela. (Ibid., 53)
Ao propor a descoberta da estrutura da percepção pela reflexão, o intelectualismo
desenvolve a noção de juízo que é freqüentemente tratado como aquilo que falta à
sensação para tornar possível uma percepção. Isto é, a sensação deixa de ser elemen-
to real da consciência e o sujeito da percepção é ignorado. Na fenomenologia de
Merleau-Ponty, ao contrário, a percepção é sempre corpórea, de modo que o corpo
está sempre saturado com seu objeto ao percebê-lo, e isso contradiz qualquer distinção
entre o ato perceptivo e seu objeto: “ela não se apresenta como um acontecimento
no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a categoria de causalidade, mas a
cada momento como uma re-criação ou uma re-constituição do mundo” (ibid., 279).
Donde emerge o aparente paradoxo de as coisas serem constituídas completa-
mente, mas serem somente parcialmente reveladas na percepção. Segundo Merleau-
Ponty, a explicação para isso é que a aparência de qualquer perfil particular do obje-
to é dependente do esquema. A percepção não consiste da apreensão de um simples
perfil, mas é sempre acompanhada pela consciência de outros perfis potenciais implí-
citos no esquema operativo. E é por isso que a percepção sempre transcende a
particularidade de uma dada perspectiva na direção de seu objeto. O que o ato de
percepção acrescenta à simples sensação, então, é um sentido de profundidade, um
reconhecimento de que seu objeto sempre consiste de mais do que apenas esta única
46
apresentação. E a percepção carrega consigo o sentido de inexauribilidade de modos,
em que seus objetos podem se nos apresentar.
Toda sensação é sensação de algo, caso contrário seria um nada de sensação; e
coisas só se dão num conjunto de impressões coordenado pelo espaço. Todos os
sentidos devem ser, portanto, espaciais, se nos dão acesso a uma forma do ser, ou
seja, se são sentidos. E os sentidos comunicam-se entre si, abrindo-se à estrutura da
coisa. A música não está no espaço visível, todavia, como ensina Merleau-Ponty,
ela o desloca:
Os dois espaços só se distinguem sobre o fundo de um mundo comum, e só podem
entrar em rivalidade porque ambos têm a mesma pretensão ao ser total. Eles se
unem no momento mesmo em que se opõem. (...)A experiência sensorial é instável
e é estranha à percepção natural que se faz com todo o nosso corpo ao mesmo
tempo e abre-se a um mundo intersensorial. (Ibid., 304)
O conhecimento humano está profundamente vinculado à experiência perceptiva-
corpórea que constitui seu fundamento “pré-racional”. Uma consciência pura, não-
corpórea, capaz, simultaneamente, de todos os pontos de vista é, em todo caso, sem
ponto de vista. Quando o pensamento separa qualidades como cor, textura, forma, o
objeto perceptivamente constituído é inevitavelmente reduzido a algo de natureza
essencialmente diferente, pois uma coisa só tem esta cor, porque tem também esta
forma, estas propriedades táteis, esta ressonância, este odor. Um objeto perceptivo
é, enfim, uma integração única promovida não por um sujeito espectador de um
mundo objetivo, mas por um participante indispensável na criação de um mundo
dinâmico, sempre recriado.
O posicionamento de Merleau-Ponty tem direta e indiretamente incontestáveis
implicações para a estética fenomenológica e, especificamente, para filosofia da
música. Ao aceitar a sua noção básica de que a presença física da música é algo
experimentado corporalmente – e, portanto, de modo pré-reflexivo –, Mikel Dufrenne
deu início à elaboração de um estatuto do objeto estético musical – matéria que
viria, contudo, representar somente uma pequena parte de sua estética fenomeno-
lógica. Sua filiação à corrente francesa da Fenomenologia deve-se às divergências
47
com a direção idealista do pensamento de Husserl, preferindo, portanto, salientar os
aspectos existenciais da descrição fenomenológica. Em sua Phénoménologie de l’ex-
périence esthétique (1953), obra que o projetou no cenário internacional, Dufrenne
observa que a experiência estética não pode ser um fenômeno puramente contempla-
tivo, uma vez que seu objeto é algo sensorial que assim se realiza apenas na percepção.
Dufrenne destaca a relevância da experiência perceptiva no âmbito fenomenoló-
gico, afirmando que melhor do que qualquer outra forma de organização da consciên-
cia é a essa experiência que caberia expressar aquilo que de mais essencial se poderia
destacar na intencionalidade. Haveria duas formas distinguíveis de experiência
perceptiva: a comum e a estética. O íntimo vínculo da percepção comum com os
processos imaginativos e intelectuais (reflexivos) tem como conseqüência sua impu-
reza, contaminada que é por serem vividas como meros estágios preparatórios da
práxis: percebe-se e, em seguida, age-se. O ato perceptivo comum dirige-se para o
recolhimento de informações sobre o objeto, à medida que o assimilamos contex-
tualmente. Por sua vez conceitualizada, por Dufrenne, como real, no sentido da
pureza do ato perceptivo, a percepção estética é só percepção: uma forma privilegiada
de apreensão de uma presença. A partir dela não se visa à práxis – estamos aqui
diante do desinteresse kantiano de confrontação com o objeto –, cumprindo, pois, a
própria redução fenomenológica. E quanto ao status do objeto estético, este só se
realiza por força da presença de quem o atualiza. A percepção estética esgota a
aparência para identificar o aparecer com o ser.
Em sua discussão acerca dos valores estéticos – em artigo de Estética e filosofia
–, Dufrenne diz que ao se procurar, o artista procura aquilo que pode encontrar no
mundo:
Mas é necessário, ainda, criar a obra na qual o valor se deponha e o mundo revele
um dos seus sentidos sob a forma de uma qualidade afetiva. Ora, o próprio da arte
é que o sentido nela está totalmente engajado no sensível; e o sensível, longe de se
enfraquecer e apagar ao entregar o sentido, exalta-se e brilha. (...) O artista não
quer inventar um valor, ele quer fazer uma obra. Como o sentido na obra de arte
está totalmente imanente ao sensível, assim a invenção do sentido, no artista, é
totalmente imanente à manipulação do sensível, a espiritualidade totalmente
imanente à tecnicidade. (...)o espectador também é necessário para o advento dos
valores estéticos: é ele quem separa o estético do religioso, do mágico ou do utilitário,
48
quem apreende o valor em sua pureza e que no museu imaginário, compõe o cosmos
sempre inacabado. (Dufrenne, 2002:57-9)
Haveria uma exigência de valor na vida e o valor não é somente o que se procura,
mas o que é encontrado: o valor é ser. O objeto estético é a obra de arte enquanto
percebida esteticamente. Se o objeto for apenas ele mesmo, confirmando sua vocação
estética, será então um objeto de valor.
Segundo Dufrenne, a percepção estética é a percepção real. Ela só quer ser
percepção, não aceitando o convite da imaginação ou da intelecção que procura
reduzir o objeto a determinações conceituais. Enquanto a percepção comum busca
uma “verdade sobre o objeto, que eventualmente dá um arrimo à praxis, e a procura
em torno do objeto, nas relações que o unem aos outros objetos, a percepção estética
procura a verdade do objeto, assim como ele é dado imediatamente no sensível”
(ibid., 80). Dufrenne sustenta, então, que a experiência estética realiza a redução
fenomenológica no instante em que é pura: o único mundo que ainda está presente
no sujeito é o mundo do objeto estético, imanente à aparência.
Essa proximidade do sujeito e do objeto vivida na experiência estética implica,
no entanto, um distanciamento da idéia de sujeito transcendental. Para que o comércio
do sujeito com o percebido se constitua é necessário um poder de estar em ligação
com o objeto, e tal é a função do corpo:
os sentidos não são, primordialmente, aparelhos destinados a captar uma imagem
do mundo nem meios para o sujeito ser sensível ao objeto ou para harmonizar-se
com ele como se harmonizam dois instrumentos musicais; o que o corpo compreende,
isto é, experimenta e toma a seus cuidados é, de algum modo, a intenção mesma
que está na coisa, sua “única maneira de existir”, como diz Merleau-Ponty. O
sujeito como corpo não é um evento ou uma parte do mundo, uma coisa entre as
coisas; ele conduz o mundo em si como o mundo o conduz, ele conhece o mundo no
ato pelo qual ele é corpo e o mundo se conhece nele. E esse pacto da intencionalidade
vital só é rompido quando a dialética da percepção leva à representação, na qual o
sujeito toma consciência de sua relação ao objeto, quando põe em questão a
aparência e distingue o percebido do real. (Ibid., 85)
É, porém, na experiência estética que esse pacto se renova. A intencionalidade,
portanto, põe o indivíduo e o mundo na mesma categoria. Conota uma comunicação
fundada numa comunidade. E a experiência estética não é a experiência da presença,
49
é a experiência da realidade de um objeto que exige que nele estejamos presentes
para ser.
Para a estética fenomenológica de Dufrenne, coisas como música não ocorrem
no espaço e no tempo: espaço e tempo é que ocorrem na música, sendo-lhe internos
e fazendo dela um “quase sujeito” suscetível de um mundo que ela mesma expressa.
E essa quase subjetividade seria então a característica definitiva da experiência
estética musical. Não obstante valer-se, por vezes, de construtos dualísticos – esquema
cognitivo versus presença física, materialidade objetiva versus sensibilidade estética
–, quebrando assim a indissolubilidade do vínculo entre a consciência e seus objetos,
princípio fundamental da Fenomenologia, Dufrenne tem nessa sua noção de música
como “quase sujeito” uma importante indicação para a dimensão da experiência
musical vivida, sobre a qual outros fenomenologistas puderam avançar.
O programa de pesquisa fundado por Merleau-Ponty também inspirou e orientou
grande parte das linhas de trabalho das novas ciências da mente. No contexto das
ciências cognitivas contemporâneas – uma nova matriz interdisciplinar de fronteiras
ainda tênues, fundada em torno dos anos 1970 –, reconhece-se na incorporação do
conhecimento, da cognição e da experiência um sentido duplo para “corpo”: como
estrutura experiencial vivida e como contexto dos mecanismos cognitivos. Por corpo
passa-se a entender então algo que é tanto “externo” quanto “interno”, tanto “bioló-
gico” quanto “fenomenológico” – lados da incorporação, que não são, evidentemente,
opostos. Estamos num mundo inseparável de nós, mas um mundo que nós mesmos
projetamos. Está em jogo a tese central da fragmentação do sujeito cognoscente – o
self –, que vem sendo apresentada por vários filósofos, pela psicologia e pelas ciências
sociais desde Nietzsche, desafiando assim a concepção tradicional do sujeito como
centro do conhecimento, da cognição e da ação.
De fato, o corpo humano e as estruturas da imaginação e do entendimento que
emergem de nossa experiência incorporada foram negligenciados na tradição idealista
sob a alegação de que introduzem elementos subjetivos irrelevantes na reflexão
acerca da natureza objetiva do sentido. Nessa tradição, como já discutimos, a razão
é algo abstrato e transcendente, portanto desligada de qualquer aspecto corporal do
50
entendimento humano; o sentido é uma relação entre as representações simbólicas e
a realidade objetiva, sendo sempre proposicional; e os conceitos são “desincorpo-
rados”, no sentido de que não estão ligados à mente particular que os experimenta –
do modo como as imagens estão. No contexto cognitivo contemporâneo, ao contrário,
“corpo” é entendido como um termo genérico para a origem das estruturas imagina-
tivas do entendimento, e esse entendimento humano incorporado é algo indispensável
para a formação do sentido e da racionalidade. O “entendimento” é considerado,
pois, algo composto pelas estruturas imaginativas que surgem de nossa experiência
enquanto organismos corpóreos que interagem com um meio. Tudo isso fundado na
ampliação do termo “experiência”, que passa a ser entendido num sentido que inclui
as dimensões perceptivas, motoras, emocionais, históricas, sociais e lingüísticas:
tudo aquilo que nos faz humanos.
Entendendo que a ciência tem uma existência fora da teoria, muitos cientistas
cognitivos têm proposto um movimento de volta à experiência, ou seja, discutir o
conhecimento como algo que depende de nossa incorporação: de estarmos em um
mundo inseparável de nossos corpos, de nossa linguagem e de nossa história social
– embora vários segmentos da filosofia ligada às ciências cognitivas continuem a
resistir à noção de cognição como compreensão incorporada e à orientação “não-
objetivista”. Uma mudança radical em nosso entendimento da razão – que tem sido
tomada em toda a tradição como característica definidora dos seres humanos –,
enquanto resultado da pesquisa empírica, é uma mudança radical também em nosso
entendimento de nós mesmos. George Lakoff e Mark Johnson discutiram os
parâmetros desse novo entendimento da razão e os reuniram da seguinte forma:
A razão não é desincorporada, como a tradição largamente afirmou, mas surge da
natureza de nossos cérebros, corpos e experiências corporais. (...)Os mesmos
mecanismos neuronais e cognitivos que nos permite perceber e nos mover por toda
a parte também cria nossos sistemas conceptuais e modos de razão. (...)A razão é
evolutiva (...), não é uma essência que nos separa de outros animais; antes, coloca-
nos num continuum com eles. A razão não é “universal” no sentido transcendente;
isto é, não é parte da estrutura do universo. É universal, entretanto, na medida em
que é compartilhada universalmente por todos os seres humanos. (...)A razão não
é completamente consciente, mas em grande parte inconsciente. Não é puramente
literal, mas altamente metafórica e imaginativa. Não é isenta de paixão, mas
emocionalmente comprometida. (Lakoff e Johnson, 1999:4)
51
A ciência cognitiva assim entendida é, pois, uma disciplina que estuda os sistemas
conceptuais. A partir de seu advento, descobrimos, antes de tudo, que a maior parte
do nosso pensamento é inconsciente, no sentido que opera “abaixo” do nível da
consciência cognitiva e é a esta inacessível. Os cientistas cognitivos têm mostrado
experimentalmente que para entender operamos formas incrivelmente complexas
de pensamento automaticamente e sem qualquer esforço aparente.
O termo cognitivo é aqui empregado para qualquer tipo de operação mental ou
estrutura que pode ser estudada em termos precisos. E grande parte dessas estruturas
é inconsciente: não podemos ser conscientes de cada processo neuronal envolvido
no complexo processamento que dá origem à consciência da experiência auditiva,
por exemplo. Todos os aspectos do pensamento e da linguagem, sejam eles conscien-
tes ou inconscientes, são cognitivos, assim como também têm sido estudados sob
uma perspectiva cognitiva a imagem mental, as emoções e as operações motoras. A
ciência cognitiva retoma o problema mais radical da filosofia: o que é real e, se pos-
sível, como podemos conhecê-lo. Nesse novo contexto, o sentido do que é real
depende decisivamente de nossos corpos e especialmente de nosso aparelho sensório-
motor e das estruturas de nossos cérebros que têm sido formadas pela evolução e
pela experiência. A questão central aqui é o que se pode chamar de cognição experien-
cialista. O termo “experiencial” tem sentido amplo, incluindo experiências sensório-
motoras, emocionais, sociais, além de incluir as capacidades inatas que formam tais
experiências. A experiência é, portanto, a força motivadora do que é significativo
no pensamento humano – e isso remete à “experiência interior” de Schopenhauer,
uma vontade radicalmente ligada ao corpo e na ação corporal traduzida; os conceitos
só têm conteúdo e sentido pela sua relação com a representação intuitiva da
experiência.
Uma das conseqüências de como nossas mentes são incorporadas é a catego-
rização. Todo organismo vivo categoriza em função de seu aparato sensório, de
suas habilidades motoras e do modo como aciona as coisas no mundo. Por conseguin-
te, categorizamos simplesmente por termos os corpos e os cérebros que temos e por
interagirmos no mundo do modo como interagimos. Dizer que as nossas categorias
52
são formadas em virtude da nossa incorporação é dizer que as categorias que forma-
mos são parte de nossa experiência. Reduzimos a enorme quantidade de infor-mação
que vem do meio, selecionando-a por relevância. O mecanismo básico de percepção
e de memória semântica que denominamos “categorização” inclui, pois, a habilidade
para: (a)agrupar características e assim diferenciar objetos, eventos ou qualidades; e
(b)fazer equivalências e associações desses objetos, eventos e qualidades em uma
categoria.
A categorização não é, portanto, um processo puramente intelectual, que ocorre
após o fato da experiência. Somente uma pequena percentagem de nossas categorias
é formada por atos conscientes de categorização; a maior parte é espontânea e incons-
cientemente formada como resultado da nossa ação experiencial no mundo. Quando
pensamos, formamos deliberadamente novas categorias, mas nossas categorias
inconscientes inserem-se, automaticamente, nesse processo. As categorias formam
a conexão entre a percepção e o pensamento, criam uma forma na qual a experiência
pode ser estruturada. Um conceito incorporado é uma estrutura neuronal que faz
parte do sistema sensório-motor dos nossos cérebros e que nos permite fazer a maior
parte das inferências conceptuais.
A opção que fazemos pelo viés da pesquisa cognitiva como principal referência
metodológica do presente trabalho demonstra a assunção de que a música é uma
competência cerebral e corporal. O corpo que experimenta música não é somente
um corpo que ouve, mas o centro corporal que integra toda essa experiência. Os pa-
drões de fluxo e refluxo, de tensão e distensão são estruturas experienciais da música
aprendidas pelo corpo e reconhecidas em outras experiências incorporadas, similar-
mente estruturadas. Essa base corpórea do sentido musical pode nos oferecer, por
exemplo, a explicação de como as emoções – que não são meras associações extra-
musicais – integram a experiência musical. A semântica cognitiva e, particularmente,
a descrição de Johnson das estruturas abstratas de imagem na memória – pelas
quais formamos o sentido de nossos mundos – permitem-nos vislumbrar novas
perspectivas para o estudo do sentido musical. Se a experiência é a fonte daquelas
estruturas e se a experiência humana é fundamentalmente social, nossas experiências
53
compartilhadas são cruciais para o sentido musical e para a sua comunicação: música
é uma forma de discurso social.
A característica particular da música, que faz uma relação especial com o incons-
ciente parecer possível, é sua capacidade de burlar o mundo externo dos objetos:
uma espécie de campo destituído de referência a objetos reais e que prescinde, em
algum grau, de linguagem. Talvez sua maior “pureza expressiva” libere a música de
associações mais fundadas nos objetos do pensamento. A música representaria assim
uma fonte mais profunda de ação do inconsciente, já que mais livre das determinações
restritivas da linguagem. No presente trabalho, entendemos música não simplesmente
como fato ou coisa no mundo, mas como sentido constituído pela mente humana
que combina entendimento, memória e imaginação. Dimensionamos a descrição da
experiência do sentido musical e a comunicação do seu entendimento. Para isso
precisamos de um método.
Notas
1
Em Kant, se a primeira fonte do nosso conhecimento é a sensibilidade, a segunda é o entendimento, que
é um poder de conhecer não-sensível. A faculdade do conhecimento situa-se entre a sensibilidade (lugar
da intuição) e a razão.
2
Cassirer lembra-nos que, por outro lado, “via-se com crescente clareza que o poder inerente às matemáticas
deparava-se com certos limites: elas são, sem dúvida, o exemplo e o modelo da razão, mas sem lograr, no
entanto, dominá-la, esgotar-lhe o conteúdo” (1997:35). O pensamento filosófico pretende, a partir de
então, emancipar-se de um domínio exclusivo das matemáticas, mas tentando não contestar essa autoridade.
3
Os escolásticos distinguiam as “matemáticas puras”, como a aritmética, a álgebra, a geometria, das
“matemáticas mistas”, quais sejam, a música, a mecânica, a ótica, a astronomia, etc.
4
Ao final de “meditações filosóficas”, parte inicial de seu Estética, Baumgarten conclui: “é evidente o
bastante que as coisas sensíveis não equivalem somente aos objetos das sensações, uma vez que também
honramos com este nome as representações sensíveis de objetos ausentes (logo, os objetos da imaginação).
As coisas inteligíveis devem, portanto, ser conhecidas através da faculdade do conhecimento superior, e
se constituírem em objetos da Lógica; as coisas sensíveis são objetos da ciência estética (epistemé aisthetiké),
ou então, da Estética” (1993:53).
5
Em sua metafísica, mas, sobretudo, na elaboração de sua Estética, explica Cassirer, “Baumgarten encontra
o caminho que reconduz até certas fontes das idéias de Leibniz que estavam até então como que soterradas.
A estética alemã e a filosofia da história retornam, por conseguinte, em seu desen-volvimento, à concepção
original e profunda do problema da individualidade que tinha sido inicialmente revelada e aplicada em A
monadologia e no ‘sistema de harmonia preestabelecida’, de Leibniz” (1997:59).
6
O termo é empregado para designar o procedimento de tratar como fatos mentais (experiências conscientes)
objetos que em sua natureza não são mentais.
54
7
Husserl denuncia um “psicologismo das faculdades da alma” em Kant quando este entende a subjetividade
transcendental como simplesmente o conjunto das condições reguladoras do conhecimento de “todo o
objeto possível”, como explica Jean-François Lyotard em sua análise do pensamento fenomenológico. Ao
banir o Eu concreto para o nível do sensível como objeto, Kant deixa “sem resposta a questão de saber
como é que a experiência real entra efetivamente no quadro apriórico de todo o conhecimento possível
para permitir a elaboração das leis científicas particulares” (Lyotard, 1999:23). O que está em questão é a
rejeição de Husserl à disjunção do sujeito do conhecimento e do sujeito concreto. É a partir disso que
surge a inspiração cartesiana, com a tese do mundo percebido ou mundo natural.
8
Freqüentemente referida como a principal descoberta da Fenomenologia, a intencionalidade da consciência
não é nova. Como lembrou Merleau-Ponty no prefácio de Fenomenologia da percepção, “Kant mostrou,
na Refutação do Idealismo, que a percepção interior é impossível sem percepção exterior, que o mundo,
enquanto conexão dos fenômenos, é antecipado na consciência de minha unidade, é o meio para mim de
realizar-me como consciência.” (1996:15) Contudo, Merleau-Ponty salienta que a intencionalidade
fenomenológica distingue-se por reconhecer que a unidade do mundo, antes de ser posta pelo conhecimento,
é vivida como já dada.
9
Na acepção aqui empregada e dependendo do sistema de signos no interior do qual o texto é “formado”,
pode-se dizer da existência de diversas manifestações textuais: um poema, uma fotografia, uma escultura,
uma música é um texto. O texto musical é, pois, um “tecido de signos” resultante das relações estabelecidas
por seu ouvinte-autor com as realidades, no ato da “escuta original”, ou seja, aquela que tem lugar no ato
da sua criação.
CAPÍTULO 2
O imaginário metafórico
Até este ponto, discutimos a migração do conceito de música, do contexto bipolar
iluminista para o da estética filosófica idealista, como ponto de partida para o enten-
dimento de que aquilo que “ouvimos” na música não são as propriedades físicas dos
sons, mas algo que está nos sons e nos é por eles apresentado. Em nossa breve
revisão dos postulados da estética idealista vimos que Schopenhauer, inspirado por
Kant, propôs entendermos uma tensão constitutiva entre a música e sua temporalidade,
de um lado, e a objetivação e sua dimensão espacial, de outro. A música ofereceria
uma tradução do “ser interno”, porquanto é alheia ao mundo do espaço.
Nas seções finais do capítulo anterior, começamos a considerar a superação de
uma visão de mente como consciência subjetiva que opera representações do mundo.
Vimos que o ponto de partida para tal superação foi o entendimento da estrutura da
intencionalidade como estrutura da própria experiência humana. A filosofia da
experiência e seus desdobramentos nas ciências cognitivas contemporâneas têm
afirmado que a realidade é formada pelos padrões da nossa orientação espaço-
temporal e pelas formas da nossa interação com os objetos, assim insistindo no
sentido da incorporação da mente. Isso abre novas perspectivas para a investigação
da natureza da experiência musical e de seus sentidos.
Música como experiência
Enquanto esteve capturado no domínio proposicional, o sentido musical sempre foi
confortavelmente excluído de uma semântica para constituir, exclusivamente, o que
seria uma das sintaxes mais puras já produzidas pelo ser humano – ao menos no
âmbito artístico. Contudo, se é no corpo que têm origem as estruturas imaginativas
56
do entendimento, os sentidos em música perdem o status de inconsistência, já que
nossas operações mentais tais como estruturas conceptuais, de sentido, inferências
e linguagem compartilham com ele as mesmas ações cognitivas altamente incons-
cientes do nosso sistema sensório-motor.
No entanto, a pesquisa por uma semântica cognitiva da experiência musical
pressupõe a pergunta inicial pela natureza da experiência do som, através da qual
experienciamos a música. Em notável exploração da experiência humana do som e
de seus produtos lingüísticos e musicais, David Burrows voltou-se para a hipótese
de um modo de consciência único que constituiria o fundamento de todo pensamento
e da expressão musical. Em Sound, speech, and music (1990), Burrows afirma que
a evolução humana teria relação com a maneira como experimentamos o som, porque
essa experiência nos livra das amarras do mundo material, tornando possível o
surgimento de modos de pensar, expressar e comunicar humanos: o que distinguiria
o ser humano como espécie.
Segundo Burrows, uma apreciação do modo como experienciamos o som é
essencial para entendermos tanto o poder expressivo da música quanto a capacidade
humana para pensar e raciocinar. A vida é, portanto, uma radiação em torno do
corpo humano – como um centro – que sofre influência de forças experienciais.
Esse esquema de centro e periferia manifesta-se em três “campos experienciais” de
ação: o espaço físico (campo 1), o mundo material dado aos sentidos – sobretudo à
visão –, no qual o corpo se encontra; o espaço mental (campo 2), que embora ainda
radicado no corpo abre-se para incluir passado, futuro e outros “espaços”, ou seja,
aquilo que está nesse campo de ação não são dados sensoriais, mas imagens e
conceitos, enfim, as substâncias imateriais das memórias e das expectativas; e o
sentido do eu difuso na consciência (campo 3), um espaço ilimitado cujo centro está
em todos os lugares.
Visão e audição são, como enfatiza Burrows, os meios cruciais pelos quais o
ser humano transmite informação à distância. Ao considerar, entretanto, os contrastes
fenomênicos entre as experiências visuais e auditivas, ele conclui que o som é muito
menos atado ao domínio material do “campo 1” do que os objetos da visão. Estes
57
últimos têm um sentido de solidez, clareza e objetividade, características notavelmente
ausentes na experiência auditiva. Sendo assim, a visão diz mais respeito a coisas e
objetos, enquanto a audição é mais interior e se volta mais para processos que para
coisas. Burrows adverte que se a visão nos oferece fatos, a audição nos oferece
rumores, pois a experiência do som é fundamentalmente equívoca, polivalente e
indeterminada. O som, livre de materialidades, consiste em uma emanação em várias
direções ao mesmo tempo. Enquanto a percepção simultânea de imagens superpostas
é incomum na visão, esse é o papel essencial da audição. Além disso, se a separação
e a distância caracterizam a experiência visual – um processo que envolve uma ação
corporal externa –, a experiência sonora é densa e conectada: “ver é como tocar,
ouvir é como ser tocado. (...)Vemos o mundo como um nome e o ouvimos como um
verbo” (Burrows, 1990:21). Enfim, estamos aqui muito próximos das proposições
hegelianas acerca de uma “idealidade da música”, à medida que seus “materiais”
são, sobretudo, mentais e a experiência do som é mais subjetiva, interna e pessoal
que a visão – o que faz da música uma porta de entrada no domínio mental meta-
sensorial (o “campo 2”). Tudo isso contribui profundamente para o nosso sentido de
estarmos vivos no mundo; sons temporalizam e vivificam a inércia do mundo
inaudível: “o silêncio é uma morte, porque som é movimento e o movimento é um
aspecto inalienável da vida” (ibid., 22).
A experiência sonora nos conta que não estamos sós em nossa transitoriedade e
contingência. A audição nos dá o primeiro sinal de nossa presença no mundo, gerando
um sentimento de singularidade. Sendo assim, para Burrows o silêncio é menos
experienciado como “vazio” do que como uma “presença negativa”. O som de fundo,
aquela ubiqüidade cotidiana que tratamos com aparente negligência, dá ao mundo
uma “textura de microatividade”. Ele constitui
um tipo de protodiscurso cuja mensagem é que não estamos sós, que nosso fluxo
de energia é respondido, confirmado, sustentado por outras energias que fluem em
nosso entorno, que o mundo é um lugar onde pode ser estabelecido um diálogo de
vitalidade. A música, hoje em dia, é usada tanto como objeto da atenção quanto
como som de fundo, provendo uma previsível continuidade de animação para aliviar
a ansiedade do silêncio, uma ansiedade que tem origem no medo da morte. (Ibid.,
23)
58
Donde todos os sons humanos são potencialmente expressivos de vida, e o som
vocal, presumivelmente devido à sua notável variabilidade precisamente controlável
e ao seu caráter altamente pessoal, é, com certeza, o mais importante deles: pode ser
considerado um dos dois principais modos de nos fazermos presentes e interagentes
– complementando a visão de nossa superfície corpórea. Não podemos escolher não
ter aparência visual, mas podemos decidir não ter aparência auditiva, simplesmente
permanecendo em silêncio. Assim sendo, podemos concluir que a voz é sempre
uma performance, uma manifestação de vontade e intenção, o que faz dela um modo
mais intimamente social de nos fazer presentes do que nossa aparência visual.
Tudo que diz respeito à relação do sujeito com o mundo – centro e periferia –
pode ser expresso, segundo afirma Burrows, numa representação vocal. No caso do
grito de dor, por exemplo, a resistência oferecida pela tensão das cordas vocais
“substitui” a dor em si, e a compulsão para livrarmo-nos dela assume a forma de
pressão de ar contra um bloqueio, como se visássemos a expelir a dor. Contudo, o
que de fato é expelido é um sonoro grito: um retrato de sofrimento. Burrows chama
atenção para isto que considera uma “música primitiva” sempre disponível “quando
decidimos usá-la para representar o encontro entre algo que parece sustentar nosso
bem-estar e nossos recursos de resistência vital para com ele relacionarmo-nos”
(ibid., 31-2). Essa “música pré-verbal” de sentimento é uma propensão oculta
constante na fala e pode ser entendida mesmo por aqueles que não dominam o
idioma ora empregado ou por quem ainda não o domina completamente – como é o
caso de crianças com poucos anos de idade. Enfim, instintivamente submetemos a
expressão vocal a uma musicalidade que se revela, sobretudo, na ondulação da
melodia da fala, nas variações de intensidade e timbre dos fonemas vocalizados e no
ritmo gerador dessa performance.
Em sua Semiótica da canção (1994), Luiz Tatit ressalta que os estudos
lingüísticos e semióticos sempre se dedicaram ao chamado “pensamento abstrato”.
Mas para ele há importantes estudos sobre a sonoridade da fala – que enfocam os
59
fenômenos sonoros como traços paralingüísticos e tratam do ritmo, do acento e,
sobretudo, da entonação –, que as teorias da língua tradicionalmente tenderam a
desprezar. Embora tais trabalhos sejam bastante sugestivos quanto ao papel das
modulações contínuas na configuração do sentido, para Tatit os fenômenos sonoros
podem enfatizar e até mesmo suplantar a função intelectiva da linguagem, mas nunca
são empregados como meio eficaz de fixação e perpetuação do discurso do ponto de
vista fônico: “isso, aliás, nem convém, já que o maior índice de eficácia de transmissão
do conteúdo de um texto está exatamente na possibilidade de fazer economia de seu
plano da expressão tão logo se complete a comunicação” (Tatit, 1994:235). Ou seja,
a fixação dos conteúdos abstratos não depende da conservação do som – sua
expressão, em termos hjelmslevianos.
Entretanto, recentemente a lingüística cognitiva tem aproximado a experiência
do discurso verbal da experiência musical, afirmando que a unidade primária da
linguagem falada não é a frase ou a oração, que são unidades mais tipográficas. Em
Discourse, consciousness, and time (1994), Wallace Chafe demonstra que a unidade
da fala seria uma unidade de entonação, uma espécie de contorno melódico vocal
internamente delimitado por cesuras específicas – algum tipo de interrupção da
vocalização, provocado por alguma restrição fisiológica. A identificação de unidades
de entonação coerentes pode envolver algum ou uma convergência dos seguintes
traços: mudanças de freqüência sonora (que percebemos como altura do som),
variações de duração (que percebemos como alongamento ou encurtamento de sílabas
ou palavras), mudanças de amplitude sonora (que percebemos como intensidade do
som), interrupções da vocalização com silêncios (que percebemos como pausas),
variações da qualidade vocal (que percebemos como timbre do som) ou ruídos
diversos. O papel funcional dessas unidades na produção e na compreensão do
“sentido lingüístico” – pretendemos reclamar outros tipos de sentido, no decorrer
deste trabalho – tira da estrutura gramatical o estatuto de suporte da linguagem,
atribuindo-o a algo que se equivale, portanto, à expressividade musical.
Burrows sugeriu que a iniciativa mais distintiva da espécie humana é a sua
“sólida colonização” do território do som, lingüística e musicalmente. O mundo do
60
conceito e do pensamento (o “campo 2”) teria somente se tornado possível devido à
natureza sonora da fala
1
. A experiência sonora na forma de palavras faladas rejeita
a restrição do horizonte do “aqui e agora” para incluir também passado e futuro,
uma vez que o som da fala tem notável poder de fazer o ausente fortemente presente.
A abstração e a generalização podem ser características de símbolos dirigidos a
qualquer um dos sentidos, mas os símbolos formados no som podem ser utilizados
com mais fluidez. Ou seja, geralmente podemos articular e perceber mudanças de
estado no meio sonoro mais rapidamente do que o fazemos em relação aos padrões
de luz: “as experiências de pensar e ouvir têm mais em comum do que as de pensar
e ver” (Burrows, 1990:54). Talvez o distanciamento combinado do campo lingüístico
e do mundo dos objetos permita à música um “acesso direto” ao inconsciente (o
“campo 3”).
Em seu artigo The matter of music, Albrecht Riethmüller lembra que ao afirmar
que “a questão da música é som e movimento corporal”, Aristides Quintilianus usa
a palavra grega phóné, que podia ser entendida tanto como o “som” quanto como a
“voz” de algo vivo. Como vemos, a afirmação de Aristides além de revelar o sentido
fonético que desde sempre teve o som primordial da música, nos põe diante do
problema do movimento e da ação corporal inerentes a toda experiência musical.
Riethmüller salienta que toda ação de produzir som é precedida de movimento.
Sendo assim, ele sugere atentar para a distinção que os antigos, sobretudo Aristóteles,
faziam entre os tipos de movimento. Devemos então distinguir entre os termos gerais
para movimento (kinésis, no latim motio), transferência (metabolé, no latim
transpositio), mudança (alloiósis, no latim alteratio) e locomoção (phorá, no latim,
locomotio), o movimento que um corpo executa. Antes de tudo, podemos constatar
que, de algum modo, todos esses termos foram empregados pela teoria da música
em todas as épocas, e, portanto, Quintilianus estava certo quando optou pela palavra
kinésis em sua afirmação sobre a experiência da música – termo que de certa forma
adquiriu um sentido mais abrangente. Contudo, o que mais nos importa aqui é que
ele frisou a especificidade corporal desse movimento.
61
“Corpo” pode referir, ao menos, a três coisas: (a)todo corpo material que participa
na produção de som; (b)planetas e estrelas, à medida que são um paradigma para o
movimento de todos os corpos e dão forma à “harmonia das esferas”; e (c)o corpo
humano enquanto participante no processo musical ou na produção do fenômeno
sônico
2
:
“para produzir um som necessita-se de várias coisas, isto é, de vários corpos.
Aristóteles sintetiza uma antiga noção (pitagórica) quando afirma que para produzir
som é necessário um golpe de uma coisa contra outra. (...)Um terceiro corpo que
não é sólido é o meio em que ocorre o golpe. Normalmente, é o ar, mas a água
poderia ser uma possibilidade, e encontram-se somente dificuldades em um vácuo.
(...)Esse mesmo esquema foi também usado para certos corpos em movimento,
quais sejam os planetas. (...)a noção de Aristides de movimento corporal seria mal
compreendida se nela não se incluísse esse nível mais alto. (...)Se mais do que um
instrumento corpóreo desempenha uma função na produção do som, sejam eles
corpos inanimados ou partes de um corpo humano, incluindo os órgãos da voz,
então o corpo humano tem um papel particular em música e no seu fundamento
material. A voz humana é reservada pelo gênero humano, entretanto, para dar
forma à questão do som, para fazer dele um transportador para o logos, uma vez
que essa forma pode aparecer tanto como linguagem quanto como música.
(Riethmüller, 1994:153-4)
E se estamos falando de movimento em música, falamos de ritmo. No contexto
que focalizamos, tudo aquilo que é rítmico é, de fato, um elo entre corpo – matéria
– e música. Complementando sua análise da “materialidade” da música, Riethmüller
observou que na teoria musical grega pode-se falar de ritmo como: (a)a eurritmia de
corpos imóveis, isto é, sua boa proporção; (b)tudo que se move eurritmicamente; ou
(c)ritmo na phóné – o uso essencial do termo. Esse último sentido é válido tanto
para a música quanto para a poesia, à medida que a prática musical da Antigüidade
já se baseava num sistema para as alturas, mas não havia ainda um sistema rítmico
musical autônomo – surgido somente no final da Idade Média. Sendo assim, queremos
então enfatizar que se para os gregos o sistema tonal era a única instância de
sistematização musical e ele se atualizava através do melos, música e melos se confun-
diam. E se a totalidade do melos só se verificava com a concorrência de phóné
considerando seus aspectos melódicos e a métrica de sua expressão lingüística – e
movimento corporal, desde os gregos música é a coincidência de dois tipos de
movimento: o da voz e o do corpo.
62
A música da nossa cultura oferece-nos, na quase totalidade de seus estilos, o
sentido de fluxo, um prolongamento no espaço e no tempo do primeiro ao último
som. E a inevitável direcionalidade disso decorrente contribui para a satisfação do
desejo de coerência dos participantes dessa ação – compositores, intérpretes e
ouvintes. Por isso, cumpre, neste ponto, discutir um pouco mais as relações que
estabelecemos entre os movimentos de atualização de uma obra musical – as ações
vocais e gestuais envolvidas na sua performance – e a sucessão de movimentos para
os quais convertemos imaginativamente os sons da obra quando os ouvimos como
música – produtos da nossa atividade cognitiva.
A identidade do objeto musical
Um esforço de aproximação da “superfície musical”, visando à descrição cognitiva
da experiência da música, deve voltar-se, num primeiro momento, para a coisa a
partir da qual, no ato da escuta, constituímos o objeto. A Análise musical, enquanto
disciplina moderna, espelhou-se, desde o seu advento, na separação cartesiana opera-
da sempre que pensamos a obra musical como um objeto específico do “mundo
externo” e, portanto, distinto de nós enquanto sujeitos da percepção e do
conhecimento. Todavia, a partir do arcabouço teórico que os estudos de Husserl –
de quem foi um dos primeiros alunos – lhe proporcionaram, o fenomenologista
Roman Ingarden, que se notabilizou por sua estética da obra literária, mostrou que
o status ontológico do objeto musical é uma questão mais complexa do que se havia
considerado desde o advento da modernidade.
Em seu ensaio sobre o problema da identidade da obra musical, concluído em
1957, mas somente publicado em 1966 – correspondendo a uma parte do segundo
volume dos estudos de estética dedicados a pintura, arquitetura, música e cinema –
, Ingarden põe em questão a idéia da obra musical enquanto objeto determinado: a
obra é a sua performance, a sua partitura, a sua gravação? Onde está a obra musical?
Como pode existir algo que não tem identidade material (física) – a obra é o que
63
ouvimos ou intentamos ouvir em uma seqüência de sons quando a ouvimos como
música – nem é mental (pertencente à consciência) e existe mesmo quando ninguém
manifesta qualquer interesse consciente por ele?
Iniciando sua ontologia do objeto da experiência musical, Ingarden assinala
que uma obra é algo moldado por um compositor num esforço criativo, durante um
certo período de tempo. Por isso, esse objeto não pode ser considerado um objeto
“ideal”, como cogitariam alguns filósofos – talvez tomando como referência os objetos
da investigação matemática. Aquilo que é moldado não existia antes, mas a partir do
momento em que passa a existir, de algum modo existe independente da execução
ou de qualquer interesse de alguém. Além disso, o objeto musical não é parte da
experiência consciente nem do seu criador, nem de seus ouvintes, pois continua a
existir quando o compositor deixa de existir ou quando o ato de escuta cessa.
Tal objeto não se identifica, pois, com as suas execuções. No presente estudo,
daremos ao termo “execução” não apenas o sentido da decodificação e da sonorização
de textos musicais – a ação mediadora dos intérpretes-executantes, que demanda
certas qualidades tais como uma disposição especial no contato com a materialidade
da música e que assim pressupõe uma habilidade técnico-ideativa congênita,
espontânea e desenvolvida –, mas lhe daremos o sentido da ação de fazer com que
textos musicais, sejam eles escritos ou sonoros (estes em suporte ou performance)
produzam, dialogicamente, um efeito real – incluímos, portanto, o ato da escuta
(uma execução “interior”). Assim sendo, como queria Ingarden, a obra é uma coisa,
a execução, outra. Apesar dessa diferença, a performance de intérpretes-executantes
(cantores ou instrumentistas) parece-se com uma obra particular, e é nisso que
repousam, normalmente, os atributos dessa performance – ao apreciarmos
performances distintas de uma determinada obra, e em condições distintas, ouvimos
ainda assim a mesma obra.
Antes de aprofundarmos a discussão acerca da performance musical, lembramos
que Burrows ressaltou que tal como a vocalização a música é experienciada como
emanação de um centro corporal, como algo que nos tira do “aqui e agora” e rejeita
limites espaço-temporais para estabelecer um campo mais dinâmico de engajamento
64
do corpo e de manifestação de si próprio. O som que produzimos por meio de uma
ação sobre uma coisa está “em nossas mãos”, mesmo sendo impalpável: o som
musical já está no gesto que o cria. Mas quando se trata de um som vocal o problema
de sua origem adquire feição especial. Radicaliza-se aí a vinculação entre som e
subjetividade, de onde resulta a oposição “som instrumental e som vocal”, isto é,
entre objetos inanimados e corpos viventes que cantam, que respiram, que sentem.
O nosso corpo só começa a se transformar em “instrumento” quando é percebido
como uma coisa capaz de emitir sons. Daí passa a existir a possibilidade, também
para a voz, de considerarmos a experiência de produzir sons por meio de ações
individuais agora dirigidas ao nosso próprio corpo-instrumento – que além de
instrumento não deixa de ser também uma “voz que diz” – e de exercermos um
controle sobre esses sons para que igualmente estejam “em nossas mãos”.
Se a voz foi metaforicamente estendida para compreender coisas como instru-
mentos musicais, a conversação foi estendida para o engajamento musical coletivo;
nesse caso, a performance pode ser vista como um convite à participação dialógica
de outrem. Tomamos de Paul Zumthor sua acepção do termo “performance”. Esse
termo antropológico relacionado com as condições de apresentação e de experiência
denota, portanto, uma ação comunicativa: “refere-se a um ponto no tempo que é
experienciado como o presente e pela presença concreta de participantes que estão
diretamente incluídos na ação” (Zumthor, 1994:218). Cumpre advertir que conquanto
Ingarden empregue o termo “performance” para referir a ação exclusiva de instru-
mentistas e cantores, no presente estudo daremos ao termo um sentido mais amplo.
Todo texto estético, na medida em que se vise a transmiti-lo a um público, tem sua
criação, transmissão, recepção, conservação e repetição – as “cinco operações que
constituem sua história”, descritas por Zumthor, em seu La lettre e la voix (1987) –
realizadas por via sensorial; quando coincidem transmissão e recepção, assim como
em certos casos também criação, temos uma situação de performance.
Assim, a performance é um ponto privilegiado no tempo no qual um texto é
experienciado – atualizado. Como vemos, tanto Ingarden quanto Zumthor distinguem
“obra” e “texto”. O texto – já observamos no capítulo anterior – é um suporte objetivo,
65
ou seja, a “base ôntica” do objeto estético, cujo sentido global não pode ser reduzido
à soma dos efeitos particulares de sentido evocados por cada uma de suas partes.
Em contraste, “a obra é o que é poeticamente comunicado (texto, sons, ritmos, ele-
mentos óticos). O termo inclui a totalidade das características da performance” (ibid.,
219). Sua origem então está no elo entre as condições textuais e as condições sócio-
corporais.
Refletindo sobre o problema da relação obra-performance, Ingarden observa
que cada performance de uma obra musical é uma ocorrência – um processo acústico
– individual que tem lugar apenas uma única vez:
Este processo é composto de ações físicas complexas (por exemplo, dedos batendo
em teclas de piano, vibração e ressonância de cordas, vibração do ar) e atos mentais
dos executantes (como, por exemplo, sua consciência das ações que executa, seu
controle sobre elas, sua escuta da sua própria performance, ser afetado pela
composição). (Ingarden, 1986:11)
Cada performance, enquanto processo, tem início num dado instante, persiste por
um período de tempo e nos é dada de um determinado ponto no espaço. Nossa expe-
riência dela pode ser restrita à percepção auditiva (de múltiplos aspectos auditivos,
altamente variáveis de ouvinte para ouvinte) ou incluir percepções visuais, e depende
não somente das condições objetivas, mas também das condições subjetivas que
mudam a cada momento. Quando completada, entretanto, não pode se repetir; pode
somente ser seguida de uma outra performance num outro tempo.
Da constatação de que o objeto musical não é um objeto “ideal” não sobrevém
sua condição de objeto “real”, uma vez que os âmbitos desses dois conceitos não
cobrem todos os objetos. Ter duração, por exemplo, não equivale a ser real: “embora
uma obra musical seja um objeto que persiste no tempo, ela não é ‘temporal’ no
mesmo sentido que suas performances específicas. (...)enquanto as performances
são processos, a obra musical como tal não é um processo” (ibid., 16). Segundo
Ingarden, todos os movimentos da obra ela mesma existem conjuntamente em um
todo completo e, ao contrário de suas performances particulares, a obra não possui
uma localização espacial definida. Donde a obra difere de todas as suas possíveis
66
performances, embora sejam as similaridades entre obra e performance, que nos
permitem dizer de uma performance de certa obra.
Uma obra musical é uma seleção de fatos mentais condicionada pelo estímulo
físico e o problema de sua identidade tem origem na dificuldade de sua “tradução”
– nas ilusões produzidas com as imprecisões da linguagem verbal. Quando os teóricos
do psicologismo definem a obra musical como “mental”, parecem entender que ela
é uma experiência humana consciente e, sobretudo, uma experiência auditiva. Para
Ingarden, tal asserção está fundada, no entanto, no conceito de que o mental é
entendido como tudo aquilo que não é nem físico nem existente independente da
experiência consciente, ou seja, aquilo que é “subjetivo”. Então ressalva:
Em um ponto podemos concordar imediatamente: um produto musical não é
existencialmente independente das experiências conscientes de seu compositor. Pode
ser que não seja mesmo de todo existencialmente independente das experiências
conscientes de seus ouvintes. Se por isso concordássemos com o sentido acima do
termo “subjetivo”, então teríamos de reconhecer que nesse sentido uma obra musical
é “subjetiva”. Mas ainda assim não há razão para afirmar que ela é algo mental ou
elemento de alguma experiência consciente. (Ibid., 26)
Todas as experiências são acessíveis à cognição somente em ações da “experiência
interior” –, mas ninguém conhece uma obra musical a partir de uma ação desse tipo.
Além disso, uma obra musical não é um ato de consciência como os atos de escuta
ou de imaginação.
Percepções não são objetos que foram determinados qualitativamente. Sendo
assim, percepções auditivas não são sons, notas, acordes ou melodias, nem mesmo
os atributos qualitativos destes, tais como altura e timbre ou um contorno melódico.
Notas e melodias nos são dadas como objetos de uma performance individual. Quando
percebemos a melodia auditivamente, explica Ingarden, experimentamos uma
multiplicidade de dados e seus aspectos auditivos. Por outro lado, nosso ato perceptivo
contém uma intenção determinada, relacionada à melodia; uma intenção que não é
um conteúdo imediatamente presente do ato de percepção, mas sim algo por nós
designado. Trata-se, portanto, de algo que pertence à consciência, é mental, mas
difere radicalmente da melodia ouvida: essa intenção
67
não tem as propriedades possuídas pela melodia e pode vir a ser conhecida num
modo totalmente diferente de uma melodia: ou seja, ela pode ser dada numa
percepção imanente, reflexiva (não por qualquer definição uma experiência sensível),
enquanto a melodia individual agora ocorrente é dada objetivamente em uma
experiência sensível não-reflexiva, exterior, isto é, naquela que faz uso do conteúdo
ou dos dados que estamos experimentando. (Ibid., 32)
Ingarden rejeita igualmente a confusão da obra musical com a sua notação – a
partitura. Aquilo que torna uma folha de papel impresso a partitura de uma obra
musical particular é tão-somente sua função de simbolizar certos objetos determinados
ou processos. Para ele, qualquer engano nesse sentido é conseqüência do postulado
da redução de todos os objetos a coisas materiais ou a processos mentais.
Primeiramente, um signo musical impresso não é a mancha de tinta no papel; objetos
materiais como esse não possuem, estritamente, propriedades imateriais como a
função de significação, uma vez que esta é intencional, é aplicada ao signo num ato
de consciência subjetivo. Um objeto físico “pode apenas ser uma base ôntica de um
signo, este que é ele próprio o produto de uma operação consciente subjetiva que
lhe concede, exatamente, a função intencional” (ibid., 36). A partitura ela mesma é
uma coisa física, enquanto os signos que criamos por meio de operações subjetivas
são produtos que transcendem tais operações. Assim sendo, se um signo é diferente
do objeto que designa, a partitura não é a obra por ela designada. Sua conexão
ôntica é uma correlação convencionada. Para Ingarden, se plausível, a redução da
obra à notação deveria, ao menos, exigir uma correlação isomórfica que nem mesmo
ocorre. Obra e partitura possuem características próprias e distintas: a obra inclui
aspectos sonoros e é determinada por propriedades rítmicas. Além disso, uma obra
musical pode, simplesmente, ser ouvida sem a ajuda da partitura
3
– muitas vezes, a
obra sequer é constituída no ato de notação; é o caso, por exemplo, das obras
originadas de atos intencionais criativos cujas intenções são realizadas durante a
performance pelo próprio compositor – uma improvisação. Enfim, a notação é um
modo de revelar os desejos (ou parte deles) do compositor de como a obra deve ser.
A partitura foi até as primeiras décadas do século
XX exclusivamente um esquema
prescritivo e incompleto para a performance. Sua elaboração tem como princípio a
68
fixação de certos aspectos sonoros da performance – os “elementos sonoros” –,
enquanto outros, sobretudo os “elementos não-sonoros” são, quando muito, parcial-
mente definidos. Na fenomenologia musical de Ingarden, os fenômenos elementares
constitutivos do objeto musical são certas qualidades sonoras das quais se originam
os “construtos sonoros”. Estes constituem totalidades e são concretos, o que nos
possibilita reconhecê-los, tipificá-los (como, por exemplo, motivos, frases, acordes,
ou outros objetos texturais) e perceber seu encadeamento – ou mesmo sua transfor-
mação gradual – numa lógica de continuidade. A menos que se apresente como algo
proposital ou de ordem estilística, uma lacuna na continuidade é normalmente
percebida como uma falha de composição.
Todavia, a obra musical enquanto objeto estético – e não apenas enquanto “sinal
acústico complexo”, uma aglomeração de fenômenos sonoros – não inclui somente
sua base sonora, mas também elementos cuja natureza não é puramente sonora.
Talvez o elemento não-sonoro mais relevante da obra musical seja o movimento,
algo que se manifesta no desdobramento dos construtos sonoros como um fluxo
musical. Trata-se, no entanto, de um movimento específico, apreendido exclusiva-
mente na escuta, e que se dá no tempo qualitativo da obra musical, constituindo
uma espacialidade especificamente musical – outro elemento não-sonoro. Para
Ingarden, portanto, movimento e espaço fenomênicos estão ligados à identificação
dos construtos sonoros e à questão da continuidade, sobre o que aparecem formas
(elementos não-sonoros heterogêneos e acumulativos, que têm culminância num
ordenamento racional da obra musical), qualidades emocionais (distintas dos
sentimentos que executantes e ouvintes experimentam sob influência da obra que
ouvem
4
) e representações.
Devido à imperfeição dos procedimentos notacionais em música, o texto escrito
da obra musical possui vazios
5
. – ou “áreas de indeterminação” – que só podem ser
preenchidos na execução. Por conseguinte, tal imperfeição não é superada, como
explica Ingarden, por uma gravação da obra musical – um texto sonoro da obra –,
pois o que é gravado não é a obra ela mesma, mas certos efeitos resultantes de ondas
sonoras emitidas pelas fontes sonoras utilizadas na performance. Na reprodução da
69
gravação – uma segunda performance –, aquilo que é realizado é tão-somente um
sistema de ondas sonoras que torna possível a percepção da performance gravada da
obra: uma vez mais, portanto, a base sonora da obra. E somente atos de consciência
apropriados podem fazer com que essa base designe as qualidades de valor estético
da obra. Além disso, por haver vazios no texto elaborado pelo compositor – isto é,
por nele haver aspectos não especificados – as performances de uma mesma obra
variam. A partir de seus atos de consciência – sua execução – o ouvinte, de algum
modo, preenche parte dos “vazios” encontrados na performance (ou gravação) da
obra, num processo de concreção de qualidades que já pertencem idealmente à obra.
É em função da presença de um texto musical, que nos orientamos numa
multiplicidade de “atos de consciência” conexos entre si. A complexidade da cons-
trução textual faz com que tais “atos” sejam de natureza muito variada e se processem
em diferentes combinações possíveis. Uma conseqüência evidente da variação dos
“modos” em que experimentamos, ora certas vivências, ora outras, é que a obra
nunca é apreendida plenamente em todos os seus aspectos, mas sempre só
parcialmente. Trazendo esse enfoque para a esfera da experiência musical, podemos
observar que essas “abreviações perspectivistas” mudam de execução para execução
da obra, bem como ao longo de uma mesma execução, e são menos dependentes do
texto (escrito ou sonoro) em questão, que das condições particulares em que a
execução se realiza. A multiplicidade de aspectos pertencentes a uma e mesma
execução da obra é decisiva para a constituição de uma dada concretização da obra
– conceito fundamental de Ingarden. E a diversidade dessa multiplicidade nos permite,
portanto, reconhecer a diferença entre a obra e cada uma de suas concretizações.
O conceito de “concretização” – a atualização da obra – rompeu com o conceito
tradicional da arte como mera representação. Não visamos à concretização “enquanto
tal”, mas sim à obra ela mesma. Em geral, não tomamos sequer consciência da sua
diversidade em relação a cada concretização. Apesar disso, a obra é essencialmente
distinta de todas as concretizações efetivadas por intérpretes-executantes ou intér-
pretes-ouvintes, e é somente através destas que se manifesta e se explicita: a obra
nunca é, de fato, realizada, mas concretizada. Ingarden vê nisso razão suficiente
70
para considerarmos a obra que é designada por sua base ôntica – uma partitura ou
uma gravação – um objeto puramente intencional. E ao atribuir à obra musical o
caráter de “objeto intencional” da percepção musical – e aceitar a proposição de que
nenhum objeto puramente intencional é real, mas que a existência de objetos
intencionais implica a existência de certos objetos reais –, Ingarden está enfatizando
que a obra musical persiste como algo que podemos criar apenas intencionalmente
e não em realidade: “este objeto, enquanto puramente intencional, não é nem
puramente a experiência perceptiva na qual é dado nem uma experiência que designa
criativamente o objeto e nem mesmo qualquer parte ou elemento dessas experiências.
É somente algo a que essas experiências referem; não é nem mental nem subjetivo”
(ibid., 120-1).
Donde o objeto intencional da experiência da música pode ser identificado
somente por meio de metáforas. Identificá-lo no mundo material é identificar os
aspectos sonoros desejados pelo compositor e atualizados na performance ao se
produzirem os eventos sonoros. A performance é uma tentativa de determinar a
base ôntica do objeto intencional de uma experiência musical ao atualizar os aspectos
mais relevantes de um dado padrão sonoro. As metáforas musicais são, por sua vez,
uma verdadeira descrição de fatos não materiais – que não são sequer fatos sonoros
– e não podem ser simplesmente eliminadas da descrição da música, uma vez que
definem o objeto intencional da experiência musical. Sem as metáforas não há
descrição da experiência musical. Abandonando a experiência de um espaço musical,
por exemplo, eliminaríamos a idéia de orientação em música, notas deixariam de se
mover em direção a outras, nenhum salto melódico seria maior que outros, nem
mesmo haveria saltos. A experiência da música não envolveria nem melodia nem
movimentos texturais. A essencialidade metafórica do discurso sobre a música
reafirma sua condição de estar além do mundo estritamente material dos sons.
As qualidades musicais não são inferidas de uma experiência musical nem mesmo
invocadas na explicação dessa experiência. São elas percebidas através da ativação
de nossa imaginação, que implica a transferência de conceitos de outra ordem para
o “campo de força” musical. A isso Roger Scruton ainda acrescentou que as quali-
71
dades musicais são, “como todo objeto de percepção imaginativa, objetos da vontade”
(1997:94). Podemos então supor a existência de um conteúdo não-conceptual da
experiência, uma vez que é possível que algo se ofereça à percepção sem, contudo,
poder ser conceitualizado por quem o percebe. Atribuímos, assim, estatuto de
conteúdo às coisas da ordem não-conceptual.
Metáforas visam a descrever algo por meio de similaridades, operando-se uma
transferência de contexto – segundo a própria origem grega do termo. Aprendemos
os predicados “angular”, “áspero” ou “alegre” aplicando-os àquilo que é literalmente
angular – segundo, particularmente, a visão –, áspero – segundo, sobretudo, o tato –
, ou alegre – de acordo com nossa percepção de estados psíquicos; então transferimos
os predicados para coisas que não são, e mesmo não podem ser, angulares, ásperas
ou alegres – tais como a música. Que motivação teria esse ato de transferência?
Propomos aqui um pequeno recorte da teoria da metáfora que além de iluminar a
questão da motivação e da indispensabilidade desse ato de transferência na descrição
da experiência musical, deve ajudar-nos a construir aquilo que queremos denominar
“semântica do entendimento musical”.
A metáfora indispensável
Não há fatos metafóricos, uma vez que todas as metáforas são falsas. E se metáfora
é o que ocorre quando um termo é transferido do uso que confere seu sentido, para
um contexto em que não pode ser aplicado, só há metáforas onde há também usos
literais. Todavia, existem contextos em que as metáforas são indispensáveis. É o
caso da situação em que as usamos para descrever algo que não pertence ao mundo
sensível. E, como advertiu Gilbert Durand (1993), essas “coisas ausentes ou
impossíveis de perceber” são os objetos privilegiados da arte, da religião e da
metafísica, domínios em que os signos se referem a sentidos e não a coisas sensíveis,
porquanto para a consciência nada é simplesmente apresentado, mas representado.
72
Não há fatos metafóricos, entretanto quando usamos metáforas estamos interes-
sados em descrever a realidade. Quando usamos metáforas para descrever coisas do
mundo real – da experiência imediata –, estamos empregando atalhos opcionais (e
dispensáveis) para verdades complexas. Todavia, a “metáfora indispensável”, aquela
que empregamos para descrever algo que não pertence ao mundo material, visa à
descrição de um mundo “como se nos parece”, isto é, da perspectiva da imaginação.
Essa metáfora indispensável tem origem, portanto, menos em nosso interesse
cognitivo, que em nosso envolvimento imaginativo com o mundo. Poderíamos
sustentar, como o fez Kant, que toda experiência referida ao mundo material deve
ser conceptual – uma síntese de intuição (seu componente sensorial) e conceito? Se
pensarmos que a intencionalidade requer a aplicação de conceitos que determinam
como o mundo parece em nossa percepção, temos que concordar com a reivindicação
de Scruton de que se devem, ao menos, distinguir duas categorias de dispositivos
conceptuais: juízo e imaginação. “A experiência perceptiva não é uma interpretação
de alguma ‘intuição’ natural: é inspirada e informada pelo pensamento. Por isso,
muitos filósofos dizem da percepção como um tipo de ‘representação’ e buscam
explicar a intencionalidade em termos de representação mental do mundo” (1997:
92). Sendo assim, por mais estreita que seja a conexão entre experiência e conceito,
isso não define inteiramente a intencionalidade de uma experiência.
Na longa história do conceito de metáfora, dos retóricos gregos até o limiar do
século
XX, algumas proposições se mantiveram constantes: metáfora como figura de
discurso ligada à denominação, que representa uma extensão de sentido mediante
desvio dos sentidos literais; a semelhança como razão e fundamentação do desvio,
que justifica a substituição do sentido quando esta não era necessária; em conse-
qüência, a metáfora é traduzível, pois não representa qualquer inovação semântica,
e por não prover novas informações acerca da realidade é-lhe atribuída uma função
emocional. Mas em sua contribuição à ilimitada teoria da metáfora, Paul Ricoeur
rejeita alguns desses pressupostos, fundamentado por teorias semânticas como a de
Max Black
6
.
73
Primeiramente, afirma ele que a metáfora só faz sentido como resultado de dois
termos numa enunciação metafórica, sendo assim um fenômeno de predicação e
não de denominação. Isso implica uma segunda tese: não haveria nenhum desvio do
sentido literal, mas um real funcionamento da operação de predicação. Ou seja, o
que está em questão não é a tensão entre dois termos envolvidos numa enunciação,
e sim entre duas interpretações opostas: “é o conflito entre as duas interpretações
que sustenta a metáfora” (Ricoeur, 1996:62). Outra observação diz respeito ao “traba-
lho” da semelhança que, de fato, congrega o que antes estava distante. Não haveria
uma simples substituição de um termo por outro, mas uma verdadeira produção de
sentido a partir da tensão entre as duas interpretações (a literal e a metafórica).
Nesse caso, o sentido ampliado contribui para a polissemia em questão. Essas
“metáforas de tensão” não seriam traduzíveis, pois criam um sentido próprio (algo
novo sobre a realidade), e assim não podem ser tratadas como ornamentos emocionais.
Ricoeur focaliza um problema que, segundo ele, resulta da delimitação que se
faz entre uma teoria semântica da metáfora – referente a uma análise da faculdade
da metáfora de prover informação indizível, juntamente com sua pretensão de propor
um novo entendimento da realidade – e uma teoria psicológica da imaginação e do
sentimento. A questão central passa a ser verificar se uma teoria da metáfora estaria
completa sem incluir como componente necessário um estágio psicológico habitual-
mente descrito como “imagem” ou “sentimento”. Ricoeur adverte para o que conside-
ra um equívoco pensar que somente em metáforas sem valor informativo é que se
tenta deduzir seu suposto significado a partir das imagens e sentimentos por ela
provocados, nesse caso tomados erroneamente “por informação genuína e por novo
insight da realidade” (Ricoeur, 1992:145). Para ele, aquilo que parece ser apenas
psicológico – imagens e sentimentos – tem função constitutiva. Ou seja, Ricoeur
pretende demonstrar que uma teoria semântica da metáfora não será consistente
sem atribuir função semântica àquilo que parece ser mera característica psicológica:
a imaginação e o sentimento.
Em que direção devemos seguir em busca de uma avaliação correta da função
semântica da imaginação e, conseqüentemente, do sentimento? A retórica clássica
74
afirmava que o momento icônico da metáfora está implicado na busca da similaridade.
Nessa tradição, a metáfora era descrita em termos de desvio, mas atribuído incorre-
tamente apenas à denominação: substitui-se a designação usual da coisa, por outra
emprestada (“estranha”). Ricoeur ensina que tal transferência de nomenclatura foi
entendida como similaridade objetiva entre as coisas envolvidas ou similaridade
subjetiva entre os entendimentos dessas coisas. O problema da similaridade recebe,
entretanto, nova formulação na teoria de Black: uma teoria da interação, oposta a
uma teoria da substituição. O processo semântico não consiste meramente na substi-
tuição de um nome por outro – o que define apenas a metonímia –, mas em uma
interação entre um sujeito e uma estrutura predicativa a qual o desvio se refere.
Portanto, a característica decisiva aqui é a inovação semântica que estabelece uma
nova congruência a partir da qual o enunciado “faz sentido” como um todo.
Nas palavras de Ricoeur, a nova congruência “decorre de uma espécie de
proximidade semântica que de repente se obtém entre termos apesar de seu distancia-
mento. Coisas ou idéias que estavam remotas parecem agora próximas. A similaridade
não é nada mais que essa aproximação que revela um parentesco entre idéias
heterogêneas” (ibid., 148). A transferência de significação é uma mudança na
distância lógica, do distante para o próximo. Segundo Ricoeur, a tarefa primordial
de uma teoria da imaginação é dar conta da inovação ocorrente nessa mudança. Um
primeiro passo é entender a imaginação produtiva como a “visão” ainda atada ao
discurso, que provoca a alteração da distância lógica pela “contemplação de simila-
ridades”. A assimilação predicativa consiste exatamente em tornar semanticamente
próximos os termos reunidos no enunciado metafórico, e a tensão envolvida nessa
assimilação é, sobretudo, entre congruência e incongruência semânticas. Ao imaginar,
produzimos novos tipos por assimilação sem eliminar as diferenças – como ocorre
nos conceitos –, mas, ao contrário, apesar e através delas.
O próximo passo no projeto de Ricoeur será o de incorporar à semântica da
metáfora o segundo aspecto da imaginação, ou seja, a sua dimensão pictórica, um
aspecto delimitado pelo caráter figurativo da metáfora: “se há dois pensamentos em
uma única metáfora, há um que é intencional; o outro é o aspecto concreto sob o
75
qual o primeiro é apresentado” (ibid., 151). Trata-se, portanto, de uma maneira
icônica de significar, sem apresentar o ícone, mas apenas descrevendo-o. Estamos
diante de um processo pelo qual uma certa produção de imagens possibilita a esque-
matização da assimilação predicativa. Formar imagens, ou imaginar, então, é o meio
através do qual vemos similaridades. Nesse sentido, imaginar não é ter uma figura
mental de alguma coisa, mas produzir relações de uma maneira figurativa. Ricoeur
está atento ao fato de que nesse segundo estágio de sua teoria da imaginação estamos
muito próximos da fronteira que separa “uma semântica de imaginação produtiva e
uma psicologia de imaginação reprodutiva”. Todavia, ele adverte que o significado
metafórico é exatamente o tipo de significado que nega a delimitação nítida entre o
verbal e o não-verbal.
O estágio final que completa sua teoria semântica da metáfora diz respeito
àquilo que Ricoeur entende por “momento de negatividade” trazido pela imagem no
processo metafórico. Ele argumenta que uma das funções da imaginação é dar uma
dimensão concreta ao epoché próprio à referência dividida. A imaginação contribui
concretamente com a suspensão da referência usual, e, de alguma maneira, toda
suspensão é o trabalho da imaginação. Imaginação é suspensão. Enfim, o que Ricoeur
quer enfatizar é “a solidariedade entre o epoché e a capacidade de projetar novas
possibilidades. A imagem como ausência é o lado negativo da imagem como ficção.
É nesse aspecto da imagem como ficção que está ligada a força dos sistemas simbó-
licos para ‘refazer’ a realidade” (ibid., 155).
Uma teoria da metáfora não estará completa, no entender de Ricoeur, se não der
conta do lugar e do papel do sentimento no processo metafórico. Uma tradição
psicologista nos leva, naturalmente, a tratar sentimento em termos apropriados à
emoção, quais sejam, afetos concebidos como estados de mente voltados para o
“interior” e experiências mentais intimamente ligadas a distúrbios físicos. Em termos
de emoções podemos dizer que estamos sob o efeito do nosso corpo e entregues a
estados mentais “com pouca intencionalidade”; o sentimento é, contudo, aquilo que
completa a imaginação em sua função de esquematização de uma nova congruência
predicativa, congruência que, segundo Ricoeur, é “sentida”:
76
ao dizer que ela é sentida, enfatizamos o fato de que estamos incluídos no processo
como sujeitos conscientes. (...)Sentir, no sentido emocional da palavra, é tornar
nosso o que foi colocado à distância pelo pensamento em sua fase de objetivação.
Os sentimentos, por isso, têm um tipo muito complexo de intencionalidade. Não
são exatamente estados interiores, mas pensamentos interiorizados. (...)O sentimento
não é contrário ao pensamento. É o pensamento que é legitimado como nosso.”
(ibid., 157).
A função central dos sentimentos – não entendidos como emoções –, segundo
a teoria de Ricoeur, é sua contribuição para a referência dividida do enunciado
metafórico. Sentimentos implicam um tipo de suspensão de nossas emoções
corpóreas, são experiências negativas e suspensivas em relação a essas emoções
literais. Por outro lado, nos inserem no mundo de uma maneira “não-objetivante”.
Para Ricoeur, imaginação e sentimento não são extrínsecos ao surgimento do sentido
metafórico, mas ele reconhece que uma teoria da imaginação e do sentimento é
ainda relativamente inconsistente. As noções de imagem e sentimento precisariam
ser explicadas de acordo com o componente cognitivo, entendido como uma tensão
entre congruência e incongruência, em nível semântico, ou entre suspensão e
comprometimento, em nível referencial.
Experiência e metáfora
Há algumas décadas, e, sobretudo, a partir dos anos 1970, a metáfora tem alcançado
notável destaque como problema para a filosofia, a psicologia, a lingüística e outras
das chamadas ciências cognitivas. Isso contrasta com uma tradição que vê a metáfora
como questão de importância secundária, jamais considerada cognitivamente
fundamental: apenas uma categoria lingüística (um processo semântico e sintático).
Nessa esfera de pensamento o nível básico de descrição da realidade é o dos conceitos
literais e das proposições. Estes corresponderiam corretamente à estrutura do mundo
objetivo, enquanto as projeções metafóricas ultrapassam os limites das categorias e,
com isso, afirmam identidades que não existem objetivamente na realidade. Por
isso, a maior parte das pessoas, de modo geral, pensa que pode passar perfeitamente
77
sem metáforas. Na discussão das ciências cognitivas, ao contrário, o termo “metáfora”
não é empregado no sentido tradicional de mera figura de linguagem, mas identificado
como estrutura indispensável para o entendimento humano, por meio da qual com-
preendemos figurativamente o mundo. Portanto, nosso sistema conceptual – que
desempenha um papel central na definição de nossa realidade em termos de pensa-
mento e ação –, é de natureza fundamentalmente metafórica.
Assim sendo, se por um lado as metáforas são recursos lingüísticos – seu “nível
superficial”, segundo Earl Mac Cormac –, são também estruturas que produzem
intencionalmente “anomalias” semânticas geradoras de novos sentidos que têm
origem num processo cognitivo: uma combinação inusitada de conceitos operada
pela mente humana para formar novos conceitos. Mac Cormac distinguiu, portanto,
três níveis de explanação para a metáfora: (a)o lingüístico, um nível superficial no
qual as metáforas aparecem em forma lingüística; (b)o semântico, um nível mais
profundo de explanação lingüística; e (c)o cognitivo, um nível ainda mais profundo
de atividade cognitiva. Segundo Mac Cormac:
metáforas novas mudam a cultura na qual vivemos, desse modo afetando as maneiras
nas quais o seres humanos interagem com o seu meio. Essas mudanças na cultura
são uma forma de evolução cultural, e a interação do corpo humano (incluindo o
cérebro) com um meio ao seu redor mudado afeta a evolução biológica. (Mac
Cormac, 1985:127-8)
Esse movimento da mente – que emprega a atividade do cérebro – para a cultura
marca um movimento do nível cognitivo para o lingüístico. Em sua teoria cognitiva,
Mac Cormac observa que ao entendermos metáfora como processo cognitivo estamos
incluindo nesse processo a atividade cognitiva da mente, as atividades do cérebro –
das quais a mente depende para as suas operações – e a interação da mente com o
meio. Tudo isso envolve memória, criatividade, imaginação e analogia – questões
que serão cuidadosamente examinadas mais adiante neste trabalho.
Em nossa vida mental fazemos juízos subjetivos sobre coisas abstratas tais como
similaridade, dificuldade, importância, assim como temos experiências subjetivas
de desejo, de afeto. Quanto mais complexas forem essas experiências, mais ricas
serão as maneiras de conceitualizá-las e visualizá-las como vindo de outros domínios
78
de experiência, sobretudo de domínios sensório-motores. Segundo afirmam George
Lakoff e Mark Johnson, em seu estudo seminal Metaphors we live by (1980), o
mecanismo cognitivo que faz essa operação é a metáfora conceptual. Isto é, a metáfora
permite que uma imagem mental convencional de domínios sensório-motores –
domínios-fontes – seja usada por domínios da experiência subjetiva – domínios-
alvos. As experiências subjetivas comuns são assim conceitualizadas em termos de
metáfora e, provavelmente, nenhuma metáfora pode ser compreendida ou
adequadamente representada prescindindo de sua base experiencial. Por exemplo,
“mais é para cima” possui mais tipos diferentes de bases experienciais do que “feliz
é para cima”. Embora o conceito “para cima” seja o mesmo nas duas metáforas, “as
experiências nas quais essas metáforas de ‘para cima’ são baseadas são muito
diferentes. Não é que haja muitos ‘para cima’ diferentes; a verticalidade é que entra
em nossa experiência de muitas maneiras diferentes e assim dá origem a muitas
metáforas diferentes” (Lakoff e Johnson, 2003:19). Correspondências como essas
entre quantidade e verticalidade são resíduos persistentes de correlações de
experiências cotidianas – como pôr mais água num copo e ver o nível subir – que
aprendemos a associar desde muito cedo, “fundindo-as” numa experiência única.
Segundo a “teoria da fusão” (conflation), de Christopher Johnson, para crianças
com pouca idade as experiências subjetivas (não-sensório-motoras) e os juízos, de
um lado, e as experiências sensório-motoras, de outro, são tão regularmente fundidos
– indiferenciados na experiência – que durante um período a criança não distingue
essas experiências quando ocorrem ao mesmo tempo:
por exemplo, para um bebê, a experiência subjetiva de afeição é tipicamente
correlacionada com a experiência sensorial de calor, o calor de ser segurado. Durante
o período de fusão, associações são automaticamente construídas entre os dois
domínios. Mais tarde, durante um período de diferenciação, as crianças tornam-se
então hábeis para separar os domínios, mas as associações de domínios cruzados
persistem. Essas associações persistentes são o mapeamento da metáfora conceptual
que levará o mesmo bebê, mais tarde em sua vida, a falar de “um sorriso caloroso”,
“um grande problema” e “um amigo próximo” (Lakoff e Johnson, 1999:46)
A essas associações Joseph Grady atribuiu o termo metáfora primária, uma estrutura
mínima que surge natural e inconscientemente na experiência cotidiana por meio de
79
fusão – alguns exemplos são “importante é grande”, “mais é para cima”, “similaridade
é proximidade”, “tempo é movimento”, “estados são localizações”, “causa é força
física” ou “ver é tocar”. Metáforas primárias são, assim, parte do inconsciente cogni-
tivo, e o que Grady denominou “metáfora complexa” é formada por combinação
(mistura) conceptual. Enfim, na teoria neuronal as fusões são instâncias de co-ativação
de domínios conceptuais distintos, durante as quais conexões neuronais permanentes
entre domínios se desenvolvem, levando a novas inferências. Isso não quer dizer,
entretanto, que todas as expressões metafóricas lingüísticas sejam aprendidas como
metáforas primárias e nem que todas as metáforas conceptuais sejam manifestadas
lingüisticamente. Esse tipo de metáfora não-lingüística pode ser expressa em gestos,
em formas artísticas ou mesmo em rituais.
Portanto, em virtude de muitos de nossos conceitos, como os sentimentos ou o
tempo, serem abstratos e pouco claros em nossa experiência, tentamos apreendê-los
através de outros conceitos que entendemos em termos mais claros, tais como orienta-
ções espaciais ou objetos. A metáfora desempenha assim um papel crucial no modo
como conceitualizamos nossa experiência e a comunicamos. De fato, a maior
evidência do funcionamento metafórico do nosso sistema conceptual vem da lingua-
gem, mas a questão aqui não é o que significamos com palavras e frases, e sim como
entendemos nossas experiências. A linguagem fornece elementos que conduzem
aos princípios gerais do entendimento, e esses princípios, segundo a lingüística
cognitiva, têm muitas vezes natureza metafórica, envolvendo o entendimento de um
tipo de experiência em termos de outro tipo de experiência. E isso sugere que o
nosso entendimento sucede não em termos de conceitos isolados, mas em termos de
domínios de experiência. Cada domínio é constituído de um conjunto estruturado
dentro de uma experiência humana recorrente; Lakoff e Johnson conceitualizam tal
conjunto como “gestalt experiencial básica”: organizações coerentes de nossas
experiências em termos de dimensões naturais, que assim nos parecem experiências
naturais. São naturais porque são um produto de nossos corpos, de nossas interações
com o meio e de nossas interações com outras pessoas dentro da nossa cultura.
80
Em seu The body in the mind (1987), Mark Johnson demonstrou com detalhes
como é possível às projeções metafóricas desempenharem um papel constitutivo na
estruturação da experiência. Ele lança um argumento notavelmente original que
consiste em uma análise do sentido de equilíbrio, entendido tanto como experiência
quanto como conceito. Sua pretensão é mostrar que os diferentes sentidos do termo
“equilíbrio” estão conectados por extensões metafóricas do “esquema de equilíbrio”.
A experiência de equilíbrio é tão básica para a nossa experiência de coerência e
sobrevivência no mundo, explica Johnson, que raramente estamos atentos para a
sua presença. O equilíbrio é uma atividade que aprendemos com nossos corpos, e
não através da compreensão de um conjunto de regras ou conceitos: é algo que
fazemos. É uma atividade corporal pré-conceptual que por isso não pode ser descrita
com proposições. O sentido de equilíbrio surge a partir de atos de equilíbrio e através
da experiência de processos e estados corporais, portanto está ligado, particularmente,
às estruturas esquemáticas de imagem que tornam aquelas experiências e atividades
coerentes e significativas para nós (isto é, reconhecíveis como presentes ou ausentes,
mesmo se ainda não formamos conceitos ou aprendemos palavras para elas). A
palavra chave aqui é ‘estrutura’, por não ser possível haver sentido sem alguma
forma de estrutura ou padrão que estabeleça relações. (Johnson, 1990:75).
Consideremos o evento da perda de equilíbrio corporal, que nos tira do nosso
estado normal de consciência – no qual não atentamos para o fato de estarmos em
equilíbrio – para nos fazer atentos à nossa experiência e ação. Johnson observa que
quando tropeçamos e caímos, o equilíbrio torna-se notável por sua ausência.
Imediatamente, buscamos retornar à postura “normal”, restabelecendo uma configu-
ração corporal relativa a um “eixo vertical imaginário”. Esse “eixo” não é qualquer
objeto físico, não é uma imagem e nem é uma estrutura proposicional (uma regra),
mas um padrão não-conceptual recorrente na experiência do equilíbrio. Existe, pois,
um esquema – uma estrutura pré-conceptual – que pertence ao equilíbrio em nossos
corpos e ao sentido de “equilíbrio” em um grande número de domínios abstratos de
nossa experiência, tais como, por exemplo, os estados psicológicos ou a experiência
musical.
81
Para Johnson, o mesmo esquema de imagem pode pertencer a muitos tipos
diferentes de domínios, porque a estrutura interna do esquema particular pode ser
metaforicamente entendida – isto é, estados, eventos ou conceitos abstratos são
metaforicamente estruturados como entidades ou eventos físicos. É esta projeção da
estrutura que Johnson e outros teóricos identificam como uma função “criativa” da
metáfora, que se mantém inscrita numa faixa de padrões de entendimento limitada
pelo esquema. Para avançarmos no estudo das projeções metafóricas é preciso, no
entanto, compreender melhor a noção de estrutura pré-conceptual que Johnson
denomina “esquema de imagem”.
A semântica definida como relação entre representações simbólicas e realidade
objetiva (independente da mente) analisa o sentido e a razão sem levar em conta
estruturas não-proposicionais tais como imagens, padrões esquemáticos e projeções
metafóricas, não consideradas essenciais para o sentido, embora sejam componentes
do entendimento. Essas mesmas estruturas antes desconsideradas são, contudo,
centrais para a semântica cognitiva. Ainda que sejam estruturas não-proposicionais,
são atadas a conteúdos proposicionais e desempenham um papel crucial na compreen-
são daquilo que é significativo – para a semântica cognitiva o sentido lingüístico é
apenas um caso especial de significância. Portanto, metáforas podem ser baseadas
tanto em conhecimentos – de conceitos – quanto em imagens. No primeiro caso,
transferimos estruturas de conhecimento básico de um domínio-fonte para um
domínio-alvo – metáforas proposicionais; o outro caso é o das metáforas conceptuais
denominadas “metáforas de esquema de imagem”, nas quais em vez de elementos
conceptuais de conhecimento, transferimos de domínio elementos de esquemas de
imagem – metáforas imagéticas.
O sentido que Johnson atribui ao termo “esquema” – derivado da acepção original
kantiana – é de estrutura não-proposicional de imaginação, enfatizando os padrões
incorporados de experiências significativamente organizadas. Para melhor explicar
o sentido que dá a “esquema” ele analisa o caso da estrutura esquemática de imagem
que tem origem em nossa experiência de retenção física. Estamos familiarizados
com as experiências de manter coisas dentro de nossos corpos (comida, líquidos,
82
ar), entrar e sair de cômodos, de veículos e de todo tipo de espaço restrito, de colocar
objetos dentro de recipientes. Em todos esses casos existe uma organização espacial
e temporal recorrente, que é a base experiencial para a orientação “dentro-fora”: a
delimitação espacial. Trata-se, portanto, da estrutura dos esquemas de imagem para
a orientação “dentro-fora”, que envolve separação, diferenciação e cerco, implicando
restrição e limitação.
Algumas conseqüências da estrutura esquemática para a orientação “dentro-
fora” são: (a)a experiência de retenção envolve a restrição de forças de fora para
dentro e de dentro para fora; (b)os objetos contidos adquirem certa fixidez espacial,
tornando-se por um lado acessíveis e por outro, inacessíveis; (c) experimentamos a
transitoriedade da retenção (se B está em A, então aquilo que estiver em B, também
está em A). Segundo Johnson, tais conseqüências podem ser chamadas de “vínculos”,
porque são implicações da estrutura interna dos esquemas de imagem. Sendo assim,
padrões como os esquemas de imagem, que são pré-conceptuais, podem dar origem
a vínculos racionais que descrevemos proposicionalmente. Por exemplo, a palavra
“fora” está contida em variadas expressões: “ficar fora de si”, “estar fora da afinação”,
“dar o fora”, “dar um fora em”, “estar fora da ordem”, “estar por fora”. Tais expressões
têm a ver com eventos e estados como perda de consciência, falta de atenção, alguma
falha, ausência de algo, todas indicando um estado negativo. Embora não se possa
afirmar que existe um único esquema central para toda orientação “dentro-fora”, as
pesquisas demonstram haver um número bastante reduzido de estruturas esquemáticas
recorrentes que emergem desse tipo de experiência, gerando vínculos e inferências.
Esquemas de imagem (“esquemas incorporados”) não são estruturas abstratas
predicativas, não são imagens mentais “ricas”; em vez disso, são estruturas que
organizam nossas representações em um nível distinto de operações cognitivas, mais
geral e abstrato do que aquele em que formamos imagens mentais particulares. John-
son usa um exemplo simples para distinguir esquema e imagem mental. Ao formar
uma imagem de uma face humana atentamos para inúmeros “detalhes” referentes a
cada um dos traços componentes característicos daquela imagem de face que imagina-
mos. Em contraste com essa imagem “rica”, nosso esquema para uma face, influen-
83
ciado pela generalidade do conhecimento, é um “padrão dinâmico” que tem apenas
alguns traços básicos – como pontos e linhas – e, por isso, pode ser usado como
padrão e encontrado em um vasto número de imagens mentais de faces.
No contexto das ciências da mente, portanto, o real é formado por padrões do
nosso movimento corporal – nossa orientação espacial e temporal – e pelas formas
da nossa interação com os objetos. Tanto o movimento corporal humano quanto o
nosso acionamento de objetos e todo tipo de interação perceptiva envolvem padrões
recorrentes indispensáveis para a compreensibilidade das experiências. Tais padrões
– esquemas de imagem – funcionam, em princípio, como estruturas abstratas de
imagens, que não são proposicionais. E quando tentamos compreender nossa expe-
riência, essas estruturas gestálticas desempenham um papel central. Embora um
dado esquema de imagem possa emergir, primeiramente, como estrutura de interações
corporais, ele pode ser desenvolvido como uma estrutura em torno da qual o sentido
é organizado em níveis de cognição mais abstratos. Johnson explica que essa “exten-
são figurativa” toma a forma típica de projeção metafórica, da esfera das interações
corporais físicas para o chamado processo racional.
Johnson atribui às chamadas “estruturas de força” papel distintivo na compre-
ensão de nossa experiência. Nossa interação com o meio exige o emprego de força
– tanto a que fazemos contra o meio quanto a que o meio exerce sobre nós. Assim
sendo, se toda experiência implica, de algum modo, atividade de força, nossa rede
de sentidos é inelutavelmente conectada por esse tipo de estrutura. Força é mais
uma das ubiqüidades para a qual não atentamos e geralmente ignoramos a ação – a
menos que seus efeitos alcancem um nível incomum de desequilíbrio com as nossas
forças reativas. A experiência de força implica uma “estrutura de gestalt “ – um
entendimento que manifesta um padrão, um esquema – que envolve interação causal,
movimento através do espaço em alguma direção (qualidade de vetor), origem e
potência. Os esquemas de imagem são gestalts irredutíveis, uma vez que qualquer
redução analítica destruiria sua integridade de gestalt, sua unidade significativa.
Alguns dos esquemas que representam as estruturas de força mais comuns em nossa
experiência são: a compulsão contra nós exercida por uma força do meio; o bloqueio
84
do meio contra uma força que nele exercemos; a contraposição de forças equilibradas,
exercidas por nós e pelo meio; a diversão, enquanto mudança de trajetória, nossa e
do objeto, como resultado de uma interação causal de forças; a remoção de um
obstáculo do meio; a habilitação, enquanto possibilidade de exercermos uma força
efetiva, mas não realizada, sobre o meio; e a atração como uma espécie de gravitação
do nosso corpo em direção a um objeto.
Esses padrões são pré-lingüísticos, embora possam ser refinados e elaborados
como resultado da aquisição da linguagem e do sistema conceptual que ela torna
possível. Como Johnson explica, “essas estruturas são parte do sentido e do entendi-
mento. Elas não formam, meramente, o background contra o qual os sentidos emer-
gem; são elas mesmas estruturas de sentido” (ibid., 48). Se no domínio da razão há
forças metaforicamente relacionadas às estruturas de forças que operam em nossa
experiência sociofísica, podemos prever que haja estruturas de força similares
operando na estrutura dos atos de fala. Afinal, atos de fala são ações, e se nossas
ações físicas e sociais estão sujeitas a forças, nossas ações lingüísticas estarão
igualmente sujeitas a forças, metaforicamente entendidas.
Já vimos que nossa complexa rede de sentidos depende da natureza e da relação
das estruturas esquemáticas de imagem. As projeções dessas estruturas dão-se do
domínio físico experiencial – padrões pré-conceptuais – para os domínios dos atos
de fala (conversacional), social e das inferências (epistêmico). Tais projeções são
processos metafóricos e surgem como extensões dos esquemas de imagem – estes
que não são imagens e sim um meio de estruturar, esquematicamente, nossas experiên-
cias particulares e de ordenar nossas percepções e concepções. Do mesmo modo
que certos padrões de inferência abstratos resultam de projeções metafóricas de
esquemas de imagem para “retenção” ou “força” – que, como já enfatizamos, surgem
em experiências corporais –, inferências podem ser também baseadas em nossas
experiências de “equilíbrio”. O esquema de equilíbrio tem uma estrutura interna
definida, que possui três propriedades: a simetria (A equilibra B se e somente se B
equilibra A), que em nossa percepção é relacionada com um eixo, a transitoriedade
(se A equilibra B e B equilibra C, então A equilibra C) e a reflexividade (A equilibra
85
A), que não é experienciada diretamente, mas advém do entendimento de equilíbrio
em termos de simetria. Temos, portanto, uma variedade de experiências organizadas
por um simples esquema. Os três padrões de inferência lógica acima citados dependem
das propriedades e das estruturas do esquema de equilíbrio. Para Johnson, estamos
diante de uma alternativa para a visão de que as estruturas lógicas existem a priori
como essência universal de racionalidade: inferências “não são exatamente estruturas
inexplicáveis de racionalidade (de razão pura). Ao contrário, podem ser vistas como
algo que emerge de nossa experiência incorporada concreta e da nossa resolução de
problema em nossas relações mais mundanas” (ibid., 99).
Assim sendo, os padrões de nossa racionalidade são, em parte, ligados aos
esquemas pré-conceptuais que dão ordem e coerência à nossa experiência. A metáfora
é uma operação esquemática imaginativa que nos permite vislumbrar a criação de
estruturas significativas via projeções de esquemas de imagem. A partir das proprie-
dades da experiência de equilíbrio, por exemplo, estruturamos nosso conceito mate-
mático de “igualdade de grandezas”. Sem aquela base experiencial não poderíamos
compreender tal abstração. Esquemas de imagem para equilíbrio – e outros tais
como para retenção, força, caminho, ciclo, escala, elo – estão envolvidos em todas
as extensões figurativas que dão origem aos nossos conceitos de coerência em música,
como veremos nos capítulos seguintes.
Como vimos, para essa “lingüística cognitiva”: (a)a metáfora é uma propriedade
dos conceitos, e não das palavras; (b)a metáfora não se baseia necessariamente em
similaridades; (c)a metáfora tem a função essencial de proporcionar um melhor
entendimento de certos conceitos, e não uma função estritamente estética; (d)a
metáfora é um processo inevitável do pensamento humano. Assim sendo, metáforas
não descrevem meramente experiências pré-existentes, elas contribuem com o proces-
so de estruturação significativa do nosso entendimento. Conceitos abstratos, eventos
e estados são metaforicamente estruturados como entidades físicas e é a projeção
dessas estruturas – baseadas em esquemas de imagem –, que Johnson identifica
como a função “criativa” da metáfora. Dizer que um dado esquema de imagem
existe é dizer que algo de nossas experiências tem uma estrutura recorrente, em
86
virtude da qual podemos entender as experiências. Por isso, podemos dizer que o
entendimento não é somente uma questão de reflexão, é, antes de tudo, a maneira
pela qual “temos um mundo”, é nosso modo de “ser no mundo”. Esquemas de ima-
gem e extensões metafóricas podem ser proposicionalmente representados, mas isso
não apreende inteiramente sua realidade como estruturas de nosso entendimento
incorporado. Para a semântica cognitiva, o termo “metáfora” é empregado, portanto,
não somente como conexão proposicional de dois domínios de experiência já previa-
mente determinados, mas também como estrutura projetiva por meio da qual muitas
conexões experienciais são originalmente estabelecidas.
Cumpre ainda ressaltar que as projeções metafóricas não são arbitrárias. Para
detalhar um pouco mais essa questão, consideremos o esquema de imagem para
caminho. Em nossa experiência cotidiana estamos envolvidos com uma rede de
caminhos que ligam nosso mundo espacial. Em todos os casos de caminho há um
ponto de partida, um ponto de chegada (objetivo) e uma seqüência de localizações
contíguas conectando esses dois pontos – um percurso. As propriedades do esquema
de imagem para caminho, que compõem a sua estrutura interna, são: (a)ao realizarmos
o percurso passamos por todos os seus pontos intermediários; (b)percorremos um
caminho com um propósito e assim atribuímos ao caminho direção; (c)como ao ter
percorrido o caminho alcançamos o objetivo num momento posterior àquele em que
estávamos ao iniciá-lo, espacializamos linearmente o tempo. Se no esquema de
caminho os “objetivos” forem entendidos como pontos de chegada em direção aos
quais nossas ações físicas são dirigidas, nas projeções metafóricas baseadas nesse
esquema estamos entendendo diversos “propósitos” abstratos em termos de eficácia
de vários atos físicos em alcançar um objetivo espacial. Sendo assim, propósitos
podem ser metáforas de destinações físicas, baseadas no esquema para caminho.
A condição de possibilidade da projeção metafórica a partir de um esquema é,
pois, uma identidade, uma correspondência entre as experiências do domínio-alvo
– por exemplo, “alcançar um propósito” – e do domínio-fonte – por exemplo, “o
movimento ao longo de um caminho”. No caso que estamos enfocando, há uma
correlação entre os “estados da metáfora” no domínio-alvo – estado inicial em que
87
a intenção não está satisfeita, seqüência de ações e estado final em que a intenção é
satisfeita – e as localizações de nossa experiência física no domínio-fonte – localiza-
ção do ponto de partida, movimento em direção ao objetivo e localização do ponto
de chegada. Enfim, o isomorfismo entre a estrutura do emparelhamento e a estrutura
da metáfora permite-nos entender um propósito abstrato nos termos da experiência
física do movimento ao longo de um caminho. Esse entendimento é de tal modo
espontâneo, que não o notamos.
Todas essas estruturas e padrões são uma questão de imaginação. Todavia, se
ainda em nossa atualidade as conotações do termo “imaginação” procedentes da
estética e da teoria da arte do século
XIX – tais como fantasia, criatividade, invenção
– continuam exercendo forte influência sobre o nosso entendimento comum, no
presente trabalho serão tomadas como apenas alguns dos aspectos da imaginação.
Não há experiência significativa sem imaginação e por isso ela desempenha um
papel central em nosso entendimento. Se quisermos nos afastar dos efeitos restritivos
de dicotomias como mente e corpo, razão e imaginação, ciência e arte, devemos
explorar o papel da imaginação na construção do sentido, no entendimento, na razão
e na comunicação – ou seja, aquilo que Ricoeur já apontara, mas não pôde desenvolver
sem um suporte cognitivo mais consistente.
Sobre uma semântica do entendimento
Kant mostrou porque e como não poderia haver experiência significativa sem a
operação da imaginação. Ele entendia o termo “imaginação” como uma capacidade
para organizar representações mentais – sobretudo imagens – em unidades coerentes
e compreensíveis. Segundo ele, há quatro funções da imaginação: a reprodutiva,
que nos dá representações unificadas; a produtiva, que constitui a unidade de nossa
consciência através do tempo; a esquematizadora, por mediar os conceitos abstratos
e os conteúdos da sensação; e a criativa, enquanto atividade não governada por
88
regras, por meio da qual adquirimos novas estruturas em nossa experiência e geramos
novos sentidos.
Contudo, os estudos fenomenológicos apontaram duas áreas de problema na
teoria kantiana. O primeiro problema diz respeito a pouca clareza acerca de uma
imaginação de natureza dupla, posicionada entre a conceitualização e a sensação,
entre o mundo formal e o material. O outro problema é como explicar uma faculdade
que ora parece ser controlada por regras, ora parece estar livre dessa coerção. Ambos
os problemas têm origem na idéia da realidade dividida em dois domínios radical-
mente distintos: o domínio das sensações, das emoções e dos objetos físicos no
espaço, que é determinado pelas “leis naturais”, e o domínio metafísico do entendi-
mento, da razão e da nossa capacidade para a ação espontânea. Enfocando a experiên-
cia da arte, Hans-Georg Gadamer, em sua principal obra, Wahrheit und Methode,
observara que a separação rígida de entendimento, em um termo, e sensação e
imaginação, em outro, excluía o segundo termo do domínio do conhecimento. Dessa
forma, imaginação e sensação não poderiam ser “cognitivas”, de vez que Kant enten-
dia “cognitivo” como conceptual e não há conceito que fundamente o juízo reflexivo:
a fundamentação da estética de Kant sobre o juízo do gosto faz justiça a ambos os
lados do fenômeno, ou seja, sua não-universalidade empírica e a sua reivindicação
apriorística à universalidade. Mas o preço que ele paga por essa justificação da
crítica no terreno do gosto, reside em que nega ao gosto qualquer significado
cognitivo. É um princípio subjetivo ao qual ele reduz o senso comum. (Gadamer,
1997:93-4)
Segundo Gadamer, sob o domínio do preconceito nominalístico só se pode então
compreender o ser estético de uma forma insuficiente e equívoca.
O objeto da semiótica – o signo – é meramente virtual. No domínio do “sentido
lingüístico”, apenas a frase é atual enquanto genuíno acontecimento da fala. Como
lembrou Ricoeur, em sua teoria da interpretação, a frase não é uma palavra mais
ampla ou mais complexa; é uma nova entidade, um todo irredutível à soma das suas
partes. O discurso é o evento da linguagem e é compreendido como significação. E
por significação ou sentido Ricoeur designa aqui o conteúdo proposicional, que
descreve como síntese de duas funções: a identificação e a predicação. Portanto, é
89
na lingüística do discurso que o evento e a significação se articulam. O conceito de
significação admite assim duas interpretações que refletem a dialética entre evento
e sentido. Significar é o que o falante intenta dizer e o que a frase denota, isto é, o
que a conjunção entre a função de identificação e a função predicativa produz. Por
outras palavras, a significação é noética e noemática.
No programa das ciências cognitivas, entretanto, a objetividade das relações de
sentido e das estruturas de inferência racional não está ligada somente a conteúdos
proposicionais objetivistas: “a imaginação é uma atividade de estruturação por meio
da qual adquirimos representações coerentes, padronizadas e unificadas. É indispen-
sável para a nossa capacidade de fazermos sentido de nossa experiência, para fazê-
la significativa” (Johnson, 1990:168). Se a atividade imaginativa foi considerada
“irracional” pela tradição, o foi porque o sentido era a relação entre signos e suas
referências; era, propriamente, o “modo de apresentação” da referência. Sentidos,
conexões conceptuais, padrões de inferência e demais aspectos da racionalidade
eram distinguidos das particularidades da incorporação humana por seu caráter
universal e independente. Portanto, apreender um sentido era um ato de pensamento
e não um ato de imaginação de uma mente individual.
Para o pensamento “não-objetivista” o sentido não está situado apenas em
proposições, ao contrário, ele permeia nosso entendimento incorporado, espacial,
temporal e aculturado. Em sua teoria do sentido, Mark Johnson desenvolve uma
semântica do entendimento que substituiria a “semântica objetivista” da tradição, a
fim de dar conta do conjunto global do fenômeno semântico. Segundo ele, a diferença
central entre a visão objetivista do sentido e a sua semântica cognitiva é que para esta
o sentido é sempre uma questão de entendimento humano, que constitui nossa
experiência de um mundo comum do qual podemos fazer sentido. Uma teoria do
sentido é uma teoria do entendimento. E entendimento envolve esquema de imagem
e suas projeções metafóricas, tanto quanto proposições. Essas estruturas incorpo-
radas e imaginativas de sentido são compartilhadas, públicas e “objetivas”, num
apropriado sentido de objetividade. (1990:174)
Por “objetividade” Johnson entende, simplesmente, haver estruturas de sentido
conectadas a estruturas de experiência corporal que todos podemos partilhar.
90
Vemos nos trabalhos de Lakoff e Johnson em semântica cognitiva um projeto
especialmente promissor em relação à sua aplicação na experiência musical. Neles
a experiência humana comum – que envolve nossos corpos, nossas capacidades
inatas e nossa maneira de funcionar como parte de um mundo real – é a motivadora
daquilo que é significativo no pensamento humano. Essa motivação, contudo, não
“determina” os conceitos; a estrutura subjacente da nossa experiência é que torna
possível o entendimento conceptual. Como já discutimos acima, os pressupostos
básicos dessa teoria são: o sentido é baseado no entendimento; a verdade é baseada
no entendimento e no sentido; mecanismos sensório-motores inatos estruturam a
experiência tanto em nível básico quanto em nível esquemático de imagem; objetos
físicos, ações e estados são, portanto, entendidos em termos de estruturação pré-
conceptual da experiência; capacidades imaginativas inatas – tais como esquema-
tização, metáfora, categorização – constituem os modelos cognitivos (conceitos)
abstratos por projeções de esquemas de imagem e de estruturas de nível básico.
Espaços mentais provêem um meio para o raciocínio usando modelos cognitivos.
Nenhuma descrição de sentido pode ser suficiente, uma vez que uma teoria do
sentido deve incluir aspectos semânticos, emocionais, aspectos de atos de fala, contex-
tuais e culturais. Uma teoria do sentido é uma teoria de como entendemos coisas.
Embora o sentido não se restrinja ao “lingüístico” – e essa hipótese é crucial para que
possamos alcançar uma semântica do entendimento musical –, este é o seu modelo
central. O sentido lingüístico distingue-se por seu uso elaborado de categorias sintá-
ticas, semânticas e de convenções de atos de fala. Palavras não têm sentido nelas
mesmas, elas têm sentido somente para quem as usa para significar algo. Nesse
caso, o sentido é sempre sentido para alguém. E o sentido lingüístico envolve inten-
cionalidade humana, já que pressupõe a capacidade de um estado mental (ou represen-
tação de algum tipo) estar dirigido a algum aspecto da experiência. Nesse caso, o
problema para a teoria do sentido é explicar como um conjunto de sinais sem sentido
ou um conjunto de sons pode vir a ter sentido. A resposta usual é que as “palavras”
tornam-se significativas quando um certo tipo de intencionalidade lhes é imposto.
Isso coloca o sentido na direcionalidade intencional do entendimento humano.
91
Os estudos de John Searle sobre o sentido lingüístico merecem consideração
especial. Para ele, o sentido é, nesses termos, dado no contexto dos “atos de fala”.
Uma teoria da linguagem teria, por isso, que investigar as regras fonéticas, sintáticas,
semânticas e pragmáticas que governam essa forma de comportamento humano.
Assim, o projeto principal dessa teoria é identificar e explicar o funcionamento das
regras pelas quais os falantes emitem sons para significar algo. Em Intentionality,
Searle coloca a teoria do sentido – que entende como parte da filosofia da linguagem
– no campo de uma teoria da mente e da ação: sentido é uma questão de intenciona-
lidade. Sendo assim, o sentido lingüístico é possível porque os seres humanos impõem
a intencionalidade de seus estados mentais nos sons (ou nos sinais em geral),
convertendo-os em palavras e frases. Segundo Searle, há um nível duplo de
intencionalidade nos atos de fala, qual seja, uma “condição de sinceridade” – expressa
por um estado psicológico de crença, de desejo – e uma “intenção de sentido” – o
propósito do ato de fala: “no ato de fala a mente impõe intencionalmente as mesmas
condições de satisfação que o estado mental tem em si na expressão física do estado
mental expresso. A mente impõe intencionalidade à produção de sons, sinais, etc.,
ao impor as condições de satisfação do estado mental na produção do fenômeno
físico” (Searle, 1983:164).
Em sua teoria da intencionalidade, Searle ressalta que a maioria dos estados
intencionais tem conteúdos que especificam condições de satisfação determinadas
em relação a uma Rede contextual de outros estados intencionais e a um Background
de práticas e capacidades pré-intencionais. Em relação à “Rede”, uma crença ou
desejo especificará as condições de satisfação que pressupõem outros estados inten-
cionais tais como outras crenças, desejos, etc. Por exemplo, nossa crença de que
uma dada música que ouvimos foi composta num momento anterior ao da perfor-
mance em questão tem condições de satisfação que dependem de outros estados
intencionais tais como “acreditamos na eficácia de sistemas notacionais em música”
ou “acreditamos na impossibilidade de uma boa congruência entre as ações dos
intérpretes sem sua prévia ordenação e experimento”.
92
Em virtude do nosso engajamento corporal com o mundo, fundamento da Rede
– que consiste apenas de estados mentais intencionais representacionais –, esta se
dissolve em um Background pré-intencional não-representacional de capacidades e
práticas dirigidas aos objetos no mundo. Este “Background “ assim formulado por
Searle é justamente a dimensão do entendimento excluída da semântica objetivista
tradicional. Se os esquemas de imagem descritos por Johnson são estruturas que
emergem de nossas interações perceptivas e de nossos movimentos corporais, então
coincidem exatamente com essa noção de Background. Na teoria de Johnson, esque-
mas podem ser conceitualizados numa Rede representacional quando uma de suas
projeções metafóricas é apreendida abstratamente em uma forma proposicional que
é tanto representacional quanto intencional. Ao contrário, para Searle, embora o
Background seja essencial para o entendimento, não faz parte, propriamente, do
sentido, à medida que é pré-intencional e não-representacional. Como podemos
verificar, na teoria de Searle há um resíduo “objetivista” que só vê sentido onde
podemos distinguir um conteúdo intencional e a forma de sua externalização.
Conquanto esquemas de imagem não possuam uma “condição de satisfação”,
do modo como as proposições possuem, eles dão em substituição suporte a uma
noção que tem relação com as condições de satisfação: “apreendemos uma situação
como exemplificação de certos esquemas. É parte de nossa experiência de significa-
ção a nossa apreensão de padrões recorrentes ou estruturas em uma situação. Assim
também o sentido de uma palavra ou uma frase envolverá tais padrões” (Johnson,
1990:189). Portanto, segundo Johnson uma semântica cognitiva adequada é uma
teoria do entendimento e requer um tratamento de esquemas de imagem e de suas
extensões metafóricas. Essa teoria deve promover o “enriquecimento” do universo
semântico, envolvendo processos imaginativos que formam fenômenos cognitivos
abstratos – categorização, esquemas, agrupamentos, metáforas – e todas as estruturas
imaginativas do entendimento por meio das quais o sentido se faz possível.
Ao pretendermos desenvolver uma teoria do entendimento musical a partir da
aplicação de uma semântica cognitiva, esbarramos na dificuldade de determinação
de algumas noções básicas acerca da experiência da música e da natureza do sentido
93
musical. Talvez o problema mais crucial esteja relacionado com a referencialidade
musical. A música não é, em princípio, representacional, no sentido de que pensa-
mentos sobre algo nunca são essenciais para o entendimento musical. Por outro
lado, como adverte Scruton, não seria correto dizer que sons não podem ser entendidos
como representações. Ele pergunta: “o que é a poesia senão som?” Entretanto, o
próprio Scruton observa que a natureza representacional da poesia é conseqüente
do seu meio lingüístico que lhe provê representação na descrição de coisas, de acordo
com regras semânticas pré-estabelecidas: “se os sons da música fossem igualmente
usados para uso lingüístico – se houvesse, literalmente, uma linguagem musical –
então a música seria, evidentemente, capaz de representação. Mas deixaria assim de
ser música” (Scruton, 1999:138). Nesse caso, teríamos uma modalidade de poesia
criada em linguagem de alturas sonoras absolutas, uma espécie radical de linguagem
tonal.
Portanto, se há um problema acerca do entendimento musical, propriamente,
ele está diretamente ligado ao sentido dos objetos musicais. Sabemos que a música
é significativa, mas também sabemos que não temos acesso ao seu sentido proposi-
cionalmente – apenas expressamos parte dele com proposições. Propondo um novo
exame comparativo e deslocando-nos do domínio das artes da palavra para o das
artes visuais, deparamo-nos com a inequívoca diferença essencial entre aparências
visuais e acústicas. Diante de uma aparência visual atribuímos-lhe, espontaneamente,
uma representação. Parece-nos sempre uma aparência de. O que vemos, por exemplo,
em uma pintura é inevitavelmente uma narrativa de algum mundo ficcional. Ao
contrário, coisas ouvidas não são, necessariamente, atribuídas a um objeto como se
fossem uma de suas propriedades. Coisas ouvidas são objetos. Se ouvimos “movi-
mento” nos sons, não é porque os sons nos transmitem o pensamento de um mundo
ficcional em que coisas estão se movendo. Esse pensamento não é veiculado pelos
sons musicais, que – como discutiremos mais detalhadamente – não estão sequer
vinculados a causas físicas, relacionam-se apenas entre si. Queremos aqui entender
a experiência do movimento com base na teoria cognitiva do sentido, de Johnson,
considerando as estruturas pré-conceptuais denominadas “esquemas de imagem” –
94
tais como os padrões recorrentes para retenção, caminho, força, elo, ciclo, escala,
processo, etc., que pertencem a muitos domínios diferentes – e as “projeções meta-
fóricas” de sua estrutura interna. Na experiência dos sons musicais estruturamos
metaforicamente como um evento físico os esquemas de imagem adequados.
Na metáfora musical há uma dupla intencionalidade. Numa mesma experiência
tomamos como objeto tanto o som que percebemos quanto algo que não é som: um
movimento, uma animação, uma aparência de vida que “ouvimos” no som, situada
num espaço fenomênico. Portanto, a metáfora de movimento musical é uma espécie
de “resíduo fenomênico” de nossa experiência espacial. Devemos, porém, advertir
que recorrer a metáforas para descrever a experiência musical não é determinar que
a música tem origem em projeções metafóricas. Usamos metáforas porque são elas
que descrevem mais precisamente o que ouvimos quando ouvimos sons como música,
quando os imaginamos como forma.
Se a descrição da música é tão dependente de metáforas, podemos concluir que
a música não é, estritamente, uma parte do mundo material do som. Sons não se
movem como a música se move, nem são organizados de um modo espacial como
os ouvimos quando os ouvimos musicalmente. Se o corpo está na mente, está também
na música. Se o real é o mundo incorporado e não é totalmente comunicável proposi-
cionalmente, então podemos pensar uma outra ordem de sentido não-conceptual:
uma “desrealização” que não deve, contudo, ser entendida como ausência de pensa-
mento, mas de significado (sentido conceptual). As pesquisas mais recentes acerca
do sentido têm distinguido o conteúdo “conceptual” de um conteúdo “não-conceptual”
de experiência – podemos perceber um dado objeto mesmo que não possamos
identificá-lo com conceitos. Contudo, a questão que se apresenta não é se deve
existir uma organização pré-conceptual exibida por uma estrutura musical, mas se
seria suficiente escutar essa organização para ouvir e entender música como música.
Recentemente, Zoltán Kövecses propôs classificar as metáforas conceptuais
(não-proposicionais) de acordo com a sua função cognitiva em: estruturais,
ontológicas e orientacionais. Como ele observa, a função cognitiva do primeiro
95
tipo é prover o entendimento do domínio-alvo através da estrutura do domínio-
fonte. O conceito de tempo, por exemplo, é estruturado em termos de movimento e
espaço; a metáfora conceptual “tempo é movimento” existe na forma de: (a)passagem
de tempo é movimento de um objeto; e (b)passagem de tempo é um movimento do
observador através de uma paisagem. Sem essa metáfora é difícil imaginar qual
seria o nosso conceito de tempo, se existisse. Se as metáforas ontológicas provêem
menos estruturação cognitiva, dão, por outro lado, status ontológico aos conceitos
abstratos que fundamenta. As experiências que requerem tal status são as mais
abstratas e essas metáforas nos permitem ver mais precisamente um delineamento
estrutural onde há muito pouco, ou mesmo nada. Por meio da metáfora ontológica
podemos identificar, referir e quantificar aspectos da experiência:
Por exemplo, concebendo o medo como objeto, podemos conceitualizá-lo como
“nossa posse”. Assim, podemos lingüisticamente referir ao medo como meu medo
ou seu medo. (...)Uma vez que uma experiência de “não-coisa” recebe através de
uma metáfora ontológica o status de uma coisa, a experiência assim conceitualizada
pode então ser estruturada por metáforas estruturais. Se conceitualizamos a mente
como um objeto, podemos facilmente prover mais estrutura para ela por meio da
metáfora de “máquina” (como em: “Minha mente está enferrujada nesta manhã”.
(Kövecses, 2002:34).
A personificação de entidades não-humanas é uma forma típica de metáfora
ontológica. Nela usamos o mais central dos domínios-fontes que temos: nós mesmos.
Frases musicais não são humanas, mas dizemos coisas como: “essa frase me
confundiu”. Por fim, o terceiro tipo de metáfora conceptual é o que menos estrutura
conceptual provê ao conceito-alvo; sua função cognitiva é, simplesmente, dar
coerência a um conceito em nosso sistema conceptual. A metáfora orientacional
fundamenta-se em nossas orientações espaciais básicas, tais como “acima-abaixo”,
“à frente-atrás”, “dentro-fora”, etc., por meio das quais chegamos a expressões
lingüísticas como “o ponto culminante da frase musical ainda se encontra na região
média”. Os três tipos de metáfora são imprescindíveis em nossa descrição da música,
como detalharemos no decorrer deste estudo.
O entendimento musical não requer nenhuma recuperação de um mundo
ficcional. Contudo, somente podemos apreender o sentido da música por meio de
96
um ato de entendimento musical, e não por “atribuição de valor” como o faz a
semântica objetivista. Entendemos, como Scruton, que “nunca poderíamos explicar
o entendimento musical em termos do conteúdo expressivo da música, em razão de
necessitarmos de uma teoria do entendimento musical antes de vermos o que a
‘expressão’, num dado contexto, significa” (Scruton, 1999:211).
Antes de tudo, o entendimento musical é inseparável da experiência da música.
Referimo-nos, precisamente, à experiência da escuta, ou seja, da interação entre
uma mente incorporada e os sons. E podemos considerá-la em duas formas: uma
escuta por uma sinalização e uma escuta por ela mesma. A primeira relaciona-se a
uma capacidade perceptiva comum tanto a seres humanos quanto a animais em
geral. As especificidades da imaginação humana, entretanto, nos tornam seres capazes
de voltar a atenção para os sons eles mesmos e de escutá-los com um interesse no
próprio ato da escuta, ou seja, com interesse em como soam os sons. Caso prescin-
damos de uma busca por informação ou tão logo ela se efetive, iniciamos a busca
por padrões, ordem e sentido nos sons que escutamos, prolongando nosso interesse
neles. E essa é a condição para que possamos ouvir música. No instante que passamos
a ouvir sons como música, nossa experiência deixa de ser estruturada em termos de
conteúdo informacional e adquire estruturação mais imaginativa e criativa, passa a
ser organizada por metáforas.
Ao entender música, entendemos o objeto intencional da música: a organização
que pode ser ouvida na experiência musical. Nesse caso, estamos interessados,
sobretudo, em uma aparência, não, necessariamente, em uma informação. E se
podemos formar um sentido estritamente musical, trata-se de um sentido encontrado
apenas por quem, na experiência da música, não está em busca de informação.
O entendimento que está na base desse sentido não é um mero jogo de padrões.
Na experiência musical estamos interessados numa forma musical e num conteúdo
musical. Quando imprimimos, de algum modo, ordem a objetos sonoros, surgem
entre eles inter-relações perceptíveis, traduzidas por agrupamentos e limites formais.
E o entendimento dessas relações é estruturado por esquemas de imagem e projeções
metafóricas originados em nosso domínio físico e comportamental. A capacidade
97
de estender o movimento musical por meio de conexões consecutivas de um grande
número de agrupamentos, sem que se perca a coerência do todo antes do limite final
conclusivo, é um dos traços mais notáveis na música da nossa tradição. Podemos
ainda dizer que ao entendermos a forma musical recuperamos um “conteúdo” mental
– temos um entendimento do entendimento. Tomando, mais uma vez, as palavras de
Scruton:
a transferência de conceitos da vida e do movimento para a música não é meramente
essencial para a nossa escuta musical, mas também adiciona algo ao nosso
entendimento da vida. Em outras palavras, não é uma “assemelhação” gratuita de
uma coisa para a outra, mas uma tentativa de entender uma por meio da outra –
entender a música através do conceito de vida, mas também a vida através de sua
incorporação em música. (Ibid., 235)
Nos capítulos que se seguem pretendemos detalhar essa questão e investigar a
aplicabilidade das teorias cognitivas do sentido num projeto de introdução à semântica
do entendimento musical. Com essa expressão referimo-nos a categorias semânticas
musicais no nível de evento musical, no nível de sintaxe musical e no nível emocional.
Todos os níveis exigem entendimento, que procede da comunicação da experiência.
Notas
1
Em seu O nascimento da tragédia, Nietzsche já propunha que a “canção popular”, introduzida na
literatura por Arquíloco, se nos apresenta como espelho musical do mundo, como melodia primordial
agora à procura de uma aparência onírica simultânea que vai se exprimir na poesia. Dessa forma, a
linguagem imita a música. A palavra, a imagem, o conceito buscam agora uma expressão análoga à
música, sofrendo o poder desta. A poesia do lírico não exprime nada que já não se encontre na sua
música incitadora, e por isso torna-se impossível, com a linguagem, alcançar por completo o simbolis-
mo universal da música (cf. Nietzsche, 1992). Se entendermos essa “canção popular” menos como
expressão musical que como pathos, origem da voz e do canto, estaremos também próximos de
Rousseau.
2
Lembramos aqui que em sua transposição da filosofia grega para a cultura latina, Boecius produziu seu
De institutione musica – um dos volumes de uma série de tratados sobre o quadrivium –, obra que influenciou
a teoria da música por quase toda a Idade Média. Nele Boecius diz de três tipos de música: a Musica
mundana (ou cósmica) que provém das formas e dos movimentos das “esferas” e que é sonora, ainda que
inaudível; a Musica humana que emana de uma combinação inaudível de alma, mente e sentidos corporais
humanos; e a Musica instrumentalis que é a música realmente sonora, dada ao ouvido.
3
No curso da história da notação musical, assistimos a uma permanente desproporção entre o número
limitado de fruidores aptos à leitura fluente do texto musical escrito e a imensa maioria do público potencial-
mente visado pela música. A “leitura” da partitura nunca constituiu uma prática autônoma. Manteve-se
até os nossos dias como esquema operatório – e mesmo incompleto – destinado aos intérpretes-executantes,
98
mas não aos intérpretes-ouvintes. A partitura não é capaz de oferecer uma representação do objeto estético
tal como é percebido na experiência da música, propriamente: trata-se de um simulacro de escritura.
4
Isso mostra que Ingarden rejeita a tese de que as qualidades emocionais manifestam-se na obra musical
tão-somente como uma mera projeção dos próprios sentimentos do ouvinte sobre a obra.
5
Roman Ingarden, em Das literarische Kunstwerk, retoma o quadro de referência fenomenológica de
determinação dos objetos, para descrever o modo como a obra de arte nos é dada. Cada objeto real, diz, é
“total e univocamente determinado” e “no seu modo de ser não assinala qualquer ponto de indeterminação”.
A unidade formada por todas as determinações do objeto somente é desfeita quando da ação discriminatória
de um sujeito cognoscente que apreende e separa intencionalmente as determinações de sua concreção
original. Tais operações cognoscitivas do sujeito são ilimitadas e por muitas que sejam as determinações
captadas de um dado objeto, até certo ponto continuam sempre por apreender ainda outras determinações.
Por conseguinte, “nunca podemos saber por um conhecimento originário realizado numa multiplicidade
finita de atos, como é que determinado objeto é constituído sob todos os aspectos”. (Cf. Ingarden, 1965)
6
Black chama atenção para a questão da criatividade metafórica a partir da afirmação de que há uma
classe de metáforas para a qual seria mais esclarecedor dizer que a metáfora cria a similaridade, em vez
de dizer que ela formula alguma similaridade previamente existente – o que ficou entendido como uma
teoria da “interação” (cf. Black, 1977).
FENOMENOLOGIA
DA ESCUTA
CAPÍTULO 3
A experiência do movimento
A aparência da música é um texto sonoro. Vimos no capítulo anterior que esse texto
se nos apresenta tanto em performance quanto através de uma gravação em suporte
– fonográfico ou vídeo-fonográfico. Trata-se, entretanto, da “base ôntica” do objeto
intencional que denominamos obra musical. A seguir, pretendemos aprofundar um
pouco mais o problema da intencionalidade da escuta musical, a fim de começar a
descortinar a experiência desse objeto, que congrega percepção auditiva, ação
corporal e demais mecanismos cognitivos – de certa forma já denunciada pelos
antigos. E se entendemos que as matrizes da atividade cognitiva musical são as
experiências da voz e do gesto, isso aponta para a questão do movimento em música,
algo que experimentamos consciente e inconscientemente como projeções meta-
fóricas de espaço e tempo.
Objetos musicais
Podemos dizer que os sons existem e que são percebidos em espaços físicos, contudo
não são, propriamente, objetos físicos. Sons não ocupam um lugar nesses espaços,
pois não excluem nada daquele lugar. Contudo, o interesse estético nos sons necessita
atribuir-lhes a qualidade de realidade de um fenômeno, mesmo que não façam parte,
estritamente, da ordem física subjacente. Além disso, os sons eles mesmos não
devem ser entendidos como objetos mentais, uma vez que não são redutíveis somente
à experiência subjetiva e individual deles, nem intencionais, se com esse termo
referimos objetos definidos pelo estado mental que tenciona enfocá-los. Embora
sejam o suporte experiencial das peças musicais, estas não se reduzem aos sons:
som não é música.
101
Não há música sem a presença de um ser humano capaz de converter sons em
música. Palavras podem descrever os objetos musicais e a sua experiência, mas
somente à medida que puderem ter o sentido que a música tem para quem a
experimenta. Os termos “música” e “objeto musical” referem-se a aspectos específicos
do mundo humano. Nesses termos, como lembra Thomas Clifton no início de seu
Music as heard, “música é a atualização da possibilidade de qualquer som que seja
de apresentar a algum ser humano um sentido que ele experimenta com o seu corpo
– isto é, com sua mente, seus sentimentos, seus sentidos, seu desejo e seu
metabolismo” (Clifton, 1983:1). Conseqüentemente, a diferença entre o som que é
música e o som que não é música repousa no uso que fazemos dele na experiência.
Um ouvinte em atitude musical está absorto na significação musical dos sons que
experimenta. Não, necessariamente, numa significação simbólica, mas em algo que
é apresentado nos sons.
No ato da escuta musical estão envolvidos percepção, imaginação, sentimento
e juízo. Mas não são os sons, propriamente, que ouvimos. A música que podemos
experimentar quando alguém usa uma flauta como instrumento musical não é o som
particular que vem da flauta. O conhecimento de que o som ouvido é produzido na
flauta – enquanto fonte sonora – não faz parte, estritamente, da experiência musical.
A associação entre os sons e os objetos nos quais são produzidos é apenas um sinal
de que algo está ocorrendo no mundo físico, mas a música não está factualmente no
mundo, como os objetos físicos estão. Num esforço de consideração do objeto da
experiência musical, Pierre Schaeffer cunhou o termo objeto sonoro, a partir do
qual desenvolveu uma análise fenomenológica que influenciou significativamente
os estudos acerca da experiência com a música, desde então.
Tradicionalmente, não há em artes visuais reivindicações de correspondência
com a Ótica. Não obstante reconhecermos as correlações evidentes implicadas no
processo sensório da luz e das formas visuais, bem como nas artes que as põem em
jogo – como suportes ou estruturas –, não procuramos explicar uma pintura, uma
escultura ou uma obra arquitetônica segundo as leis da Ótica. Contudo, em seu
Traité des objets musicaux (1966), Schaeffer ressaltou que tal confusão é freqüente
102
entre Música e Acústica, mesmo em nossa atualidade. Uma das razões para essa
confusão é estritamente sensorial. Tem a ver com o fato de os “objetos visuais”
serem também, entre outros, objetos táteis ocupantes de espaços. São assinalados,
portanto, por mais de um sentido, afirmados por um conjunto de provas. Sons são,
por sua vez, eventos presentes a uma única modalidade de sentido: são objetos de
audição – como cores são objetos de visão. Um surdo pode reconhecer a presença
de sons por meio da fisicidade tátil das vibrações que resultam nas ondas sonoras,
mas os sons mesmos não estão incluídos nessa experiência. Cores são qualidades
presentes em todas as coisas – podem ser assim entendidas como qualidade secundária
das coisas –, são dependentes das coisas que as possuem. Sons, ao invés, não são
comparáveis a coisas e tampouco comparáveis com propriedades das coisas, pois
não são qualidade de nada. Os objetos não têm sons, do modo como têm qualidade
de cor: eles emitem sons. Assim sendo, podemos entender que o som está na coisa
como virtualidade a ser atualizada, ou seja, existe apenas como conseqüência de
uma ação exercida sobre a coisa.
Objetos são, desse modo, de um ponto de vista metafísico, causa dos sons cujas
qualidades não incluem os efeitos táteis das vibrações, pois tais efeitos pertencem à
outra ordem de perceptos. Devido à exclusividade do processo auditivo em assinalar
os sons, desenvolvemos, de algum modo, padrões perceptivos que se configuram
por correlações diversas entre sons experienciados e coisas da ordem visual, tais
como instrumentos musicais, máquinas, animais e fontes sonoras em geral. Schaeffer
chama-nos, a propósito, a atenção para a diferença entre luz e som na nossa atividade
sensorial. Quando percebemos um objeto iluminado, ou seja, a sua “forma”, a fonte
que fornece os raios luminosos de que se reveste o objeto – isto é, o sol ou um
projetor qualquer – é naturalmente negligenciada em proveito do objeto. “Os sons,
aparentemente, provêm de fontes; e ao que parece, o que interessa ao ouvido, ao
contrário do que ocorre aos olhos, são os raios sonoros” (Schaeffer, 1993:138).
Schaeffer refere-se aqui ao grande apelo que exercem as causas dos sons em
nossa cultura. Ao ouvirmos um enunciado verbal, visamos imediatamente aos
conceitos que nos são por ele transmitidos; ao escutarmos o som de um latido,
103
visamos ao cão – ou seja, é em relação ao cão que escutamos o som como índice
e, nesse caso, não há, propriamente, um “objeto sonoro”: há apenas uma percepção,
uma experiência auditiva, através da qual visamos a um outro objeto. Em outras
palavras, é mais fácil confundir o objeto percebido e a percepção que dele temos.
Durante a maior parte do tempo, a nossa escuta visa à “outra coisa”. Insistimos em
ouvir senão indícios ou sinais: uma escuta que se mantém, de modo geral, num
estágio estritamente referencial. Embora mostremos interesse pelos sons em si
mesmos, num primeiro momento não vamos além de dizer “é o latido de um cão”,
ou até mesmo “é um dó grave de flauta”. E Schaeffer já salientava, em seu Traité,
que quanto mais hábeis nos tornamos para identificar indícios sonoros, maior se
torna nossa dificuldade de entendê-los como objetos: “quanto mais fácil nos é
compreender uma linguagem, tanto mais difícil nos será ouvi-la” (ibid., 246).
Dessa experiência resulta a pergunta: o som não pode ser pensado sem a coisa
a partir da qual foi produzido? De fato, a possibilidade de uma autonomia para a
percepção dos sons esbarra em sua debilidade e sua impermanência, pois os sons
estão sempre na iminência de desaparecer, dada a ausência de vínculos com as
coisas materiais como aqueles que nestas são sinalizados nas operações sensoriais
da visão ou do tato. Todavia, a possibilidade de haver ainda sons cujas fontes (causas)
não sejam identificáveis, isto é, de haver uma desvinculação entre som e causa,
trouxe-nos, nas últimas décadas, uma nova formulação acerca do caráter da expe-
riência do som musical. Se o som sempre esteve associado ao fenômeno energético
que lhe dá origem, até mesmo confundindo-se com ele na prática cotidiana –
incluindo-se aí a musical –, a noção de objeto sonoro era então negligenciada pela
Acústica, que no seu método de remissão dos fatos às respectivas causas reconhecia
como plenamente satisfatória a descrição do fenômeno energético (o sinal físico)
como fonte sonora. Assim sendo, não havia razão para que o ouvido, a partir da
“propagação de radiações mecânicas no ar”, percebesse outra coisa senão a própria
fonte sonora.
Todavia, na experiência do som musical – a forma sonora que denominamos
música – normalmente menos importa como nascem os sons ou qual o mecanismo
104
de sua propagação, que como são percebidos e apreendidos os sons. Como ensinou
Schaeffer, na experiência musical o que escutamos não são nem as fontes nem os
sons, simplesmente, mas sim objetos sonoros, formas sonoras com sentido musical
potencial. Portanto, em algum estágio dessa experiência separamos, espontaneamente,
o som das circunstâncias de sua produção e o ouvimos como é em si. E isto Schaeffer
denominou experiência acusmática do som – renovando o termo grego akousmatikoi
1
,
que diz do som que se escuta sem, contudo, se verem as causas de onde provém.
Donde entendemos que na experiência com os sons, num contexto musical, não
seria preciso identificar suas causas para ouvi-los como devem ser ouvidos – isto é,
não é preciso pensar que ondas sonoras estão alcançando o ouvido na direção em
que localizamos o som, e que esta é a realidade física que explica o que está sendo
ouvido –, pois nos sons como objetos, já há tudo de que necessitamos: eles constituem
o objeto completo de nossa experiência musical. Assim, a situação puramente
acusmática nos priva, simbolicamente, de toda apreensão do que é visível ou tocável
na experiência da música. Se para o músico tradicional – e de certa forma também
para o seu ouvinte – a identificação dos instrumentos musicais que ora produzem os
sons percebidos (e toda a determinação que isso sempre gerou) é um aspecto
importante, essa identificação é em grande parte efetuada com o concurso da visão,
sem o qual o condicionamento de músicos e espectadores fica relativamente
prejudicado. Muitas vezes descobrimos que parte do que acreditávamos ouvir era,
na realidade, apenas visto ou deduzido do contexto – isso remete à tese da
intersensorialidade descrita por Merleau-Ponty.
O projeto de Schaeffer teve como pano de fundo a produção da chamada “música
eletroacústica” nascente – uma música que devido a seu modo de reprodução original-
mente mecânico, prescinde da performance –, e visava, pois, a deslocar a atenção
antes dividida com toda a sorte de “materialidades” – tais como instrumentos e
acessórios, sonoridades, partituras – e procedimentos – a aparência, a respiração, os
gestos dos intérpretes-executantes – envolvidos na performance musical para a
exclusividade do que está no som: o “objeto sonoro”. Trata-se, portanto, de uma
tentativa aparentemente inviável de violar a tese de Merleau-Ponty: uma vez que os
105
diversos canais perceptivos não são passíveis de isolamento, não pode haver,
estritamente, escuta acusmática ou música acusmática. Então Schaeffer procurou
resolver essa dificuldade com o desenvolvimento de uma espécie de “percurso” da
escuta, recorrendo para isso à sinonímia, precisando as variantes lingüísticas do ato
da escuta e especializando seus sentidos.
Para ele, ouvir é, simplesmente, dar-se conta do que é dado à audição. Vivemos
numa “ambiência” permanente, como numa paisagem que não deixa, contudo, de
atingir nossa consciência; mas nos tornamos conscientes do meio sonoro somente
por reflexão: “ouço tocar o relógio de parede. Sei que ele já tocou. Depressa, recons-
tituo pelo pensamento as duas primeiras batidas, que eu tinha ouvido, situo aquela
que ouvi como a terceira antes mesmo que soe a quarta” (ibid., 92). Schaeffer define
aí uma “fronteira”: se apenas identificarmos o som com sua fonte sonora (o relógio)
– o que é a atitude mais espontânea e freqüente (a “escuta natural”) – e não tentarmos
saber as horas, ignoraremos que as duas primeiras batidas chegaram à nossa
consciência. Escutar, propriamente, é então “interessar-se” pelo que é assinalado
pelos sons, não necessariamente pelo som mesmo – que é um interesse excepcional
–, mas por aquilo a que se visa por seu intermédio, ou seja, algo “além dele mesmo”
– em alguns casos até mesmo esquecemo-nos da experiência puramente sonora,
como ocorre na comunicação oral.
Na escuta como entender, Schaeffer vê uma confluência de “intenções” (buscan-
do o sentido mais etimológico do termo). Isto é, essa percepção, relacionada a experiên-
cias prévias e a interesses particulares, enseja uma “seleção” – o que torna a escuta
“qualificada”. Cada ouvinte seleciona e aprecia de um modo diferente, em virtude de
sua escuta se voltar para um ou outro aspecto particular do som, que se torna um “ob-
jeto qualificado”. E se desde o ouvir já avançamos além da pura sensação, é no com-
preender que emergem as determinações do meio, dos hábitos, dos esquemas mentais
ou dos estados emocionais. Não satisfeita com a univocidade das percepções qualifi-
cadas, a consciência abstrai, compara, deduz e relaciona dados diversos para construir
uma significação referencial e extrair muitas outras conseqüentes. O ouvinte, sobre-
106
tudo nesse último nível, alcançaria uma certa lingüisticidade, uma vez que passa a
experimentar o som como um sinal e se interessa pelo seu sentido.
O objeto sonoro jamais se revela tão puramente como na experiência acusmática,
pois ele não é, por exemplo, o instrumento que toca e está livre de toda referência
causal designada por termos tais como corpo sonoro, fonte sonora, suporte sonoro
(mídias) ou sinal acústico. O objeto é “objeto apenas da nossa escuta”, é relativo a
ela. Os escritos de Schaeffer revelam-nos a tendência característica do período de
emergência de uma fenomenologia musical e especificam ainda mais as questões de
Merleau-Ponty, Dufrenne e Ingarden acerca da intencionalidade da escuta musical.
Ainda que não seja possível isolarmos os diferentes modos de escuta, na cultura
midiática as materialidades e os comportamentos comprometidos em uma provável
performance que antecede e determina os objetos “difundidos” vêm se tornando
cada vez mais irrelevantes. Ao escutarmos objetos sonoros cujas causas instrumentais
estão cada vez mais freqüentemente ocultas, tendemos a nos desinteressar por essas
causas e atentar apenas para os objetos eles mesmos.
Cumpre enfatizar que a dissociação da vista e do ouvido – que favorece a escuta
das “formas sonoras” – não seria plena apenas a partir da experiência “acusmática”
de Pitágoras. Somente com a difusão dos novos meios de reprodutibilidade da “base
sonora” dos objetos é que as condições efetivas para promover um desencorajamento
da nossa curiosidade instintiva pelas causas vêm se tornando decisivas. Podemos
observar que a repetição do sinal físico da música, que as tecnologias de gravação
permitiram, nos ajuda na aproximação do objeto sonoro de maneira renovadora.
Antes de tudo, por reduzir, paulatinamente, o interesse pelas fontes, colocando,
pouco a pouco, o objeto sonoro como novo e digno interesse perceptivo. Além dis-
so, em virtude de possibilitar escutas mais completas e refinadas, a “cultura da
repetição” nos revela de maneira mais intensa e consistente a riqueza potencial dos
objetos sonoros da música.
Enfim, com sua incipiente fenomenologia
2
, Schaeffer evidenciou um conceito
– e cunhou um termo – que viria transformar significativamente a pesquisa acerca
107
da experiência musical. Existe propriamente objeto sonoro quando tivermos
completado o que Schaeffer denominou uma “redução” – usando o termo husserliano
– mais rigorosa que a “redução acusmática” da experiência de Pitágoras. Restringimo-
nos, assim, às informações fornecidas pelo nosso ouvido, que dizem respeito apenas
ao evento sonoro em si mesmo. Portanto, não procuramos obter informações sobre
outra coisa. É o próprio som a que visamos – intentamos escutar apenas o objeto
sonoro que se dá “no encontro de uma ação acústica e uma intenção de escuta”: uma
escuta reduzida. Essa nova situação produz novos hábitos na relação com o som
musical. E na experiência midiática da música isso tem levado, cada vez mais
radicalmente, à renúncia da presença e da performance, permanecendo na escuta
apenas objetos sonoros com sentido musical: objetos musicais.
Enquanto ouvimos sons como música, ocorrem simultaneamente três processos:
a realidade física das vibrações e das ondas sonoras; o som que percebemos auditiva-
mente na experiência dessas vibrações; e o objeto musical que escutamos nos sons
como objetos sonoros, isto é, o objeto intencional da escuta musical. E a experiência
do objeto musical envolve, por sua vez, três níveis concorrentes: (a)a percepção dos
traços distintivos dos objetos sonoros e o efeito de animação que a sua variabilidade
produz no nosso sistema conceptual; (b)a produção de formas e sintaxes estilísticas
resultantes da ação do imaginário e da habituação de recorrências; e (c)os efeitos
emocionais gerados na troca comunicativa entre um conteúdo musical e um conteúdo
mental.
Neste capítulo, dedicaremos especial atenção ao primeiro nível, à experiência
do movimento em música e dos mecanismos cognitivos que empregamos para concei-
tualizá-lo e comunicá-lo. Essa experiência resulta da nossa tendência em identificar
eventos sonoros distintos e em agrupá-los em unidades estruturáveis. Na experiência
do movimento musical buscamos referências reais e essa experiência é um reflexo
da nossa experiência de vida corporal. Ao “ouvirmos” movimento, estamos ouvindo
uma espécie de animação: uma “aparência de vida”. Queremos salientar, entretanto,
que neste estudo entendemos como ritmo musical um fenômeno gestáltico que se
assemelha, em alguns aspectos, à percepção dos padrões visuais. Sua constituição
108
exige a ação direta da imaginação e da subjetividade dos desejos, uma vez que
consiste em agrupações não derivadas de relações reais com suportes materiais.
Ritmo musical é movimento estruturado, uma experiência sintática da qual trataremos
no capítulo 4.
A espacialização do tempo
Como já assinalara Merleau-Ponty, nossos órgãos sensoriais não são funcionalmente
independentes um do outro, uma vez que sintetizamos as suas percepções empirica-
mente separadas. Em cada percepção há um eu indivisível para quem cada experiência
constitui um sentido. Com freqüência, dizemos que o som produzido no registro
médio do fagote é rouco e anasalado. Essas palavras são, contudo, descritivas de
nossa própria experiência corporal. O timbre, como fenômeno, não deve ser confun-
dido com um estímulo acústico atingindo o nosso corpo. O nosso corpo é que produz
seus efeitos sobre as qualidades dos objetos sonoros ao ser ele mesmo afetado pelas
propriedades sonoras daqueles eventos. Podemos entender então que o timbre, como
fenômeno – uma textura que ouvimos nos objetos sonoros como sendo sua
propriedade –, não é imanente ao fagote como presença física, mas aos sentidos dos
eventos sonoros nele produzidos.
O mesmo ocorre quando pensamos a música como algo que tem uma dimensão
horizontal e uma vertical
3
. É muito comum aí empregarmos também o termo “textura”,
como uma metáfora de tecelagem, na qual a urdidura – os fios dispostos longitudinal-
mente no tear – representa a dimensão horizontal, os sons sucessivos que formam
melodias; e a trama – os fios transversais –, representa a dimensão vertical, os sons
simultâneos que formam estruturas acordais. Quando falamos em textura dos objetos
musicais, referimo-nos a como esse “tecido” funciona, a quão densas são as linhas
verticais se comparadas às horizontais, a como as linhas horizontais “mudam” no
tempo, movendo-se conjuntamente ou independentemente, e assim por diante. O
emprego da metáfora de tecido implica serem a urdidura e a trama mais que meras
dimensões da música; são organizações que mantêm a música unida do mesmo
109
modo que as fibras mantêm os tecidos. Textura é o que experimentamos quando
ouvimos durações, regiões de altura sonora (registros), distâncias, intensidades
sonoras, profundidades, timbres, direções, enfim, estamos falando de espaço e de
objetos cujas características dependem da nossa percepção de todos aqueles
parâmetros. Quando ouvimos sons como música distinguimos o espaço físico dos
eventos acústicos do espaço fenomênico dos eventos musicais.
No capítulo que dedica ao espaço em sua fenomenologia da percepção, Merleau-
Ponty afirma que: “o espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se
dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível” (1994:328).
O espaço é, antes de tudo, o campo de ação do nosso engajamento corporal no mun-
do e está pressuposto em todo ato perceptivo. Por isso, a generalidade do espaço é
algo que tem origem no ser humano que o experimenta.
4
Além disso, a distinção
entre lugar e ocupante assinala uma importante diferença entre espaço e tempo, pois
o tempo não é preenchido por coisas que nele ocorrem, como são os espaços. Um
evento sonoro, por exemplo, toma “algum tempo”, mas não compete com outros
eventos pelo tempo que requer: os eventos podem ser simultâneos. Portanto, o caráter
topológico do espaço, como sistema de lugares e superfícies, não se reproduz no
domínio acústico musical. Na escuta musical experimentamos não apenas os eventos
no tempo, mas confrontamo-nos com o próprio tempo expandido, espalhado e ofere-
cido à nossa contemplação e apreensão direta e completa, tal como o espaço está
espalhado diante de nós no campo visual. No domínio acústico a ordem temporal é
dissolvida e reconstituída como um espaço fenomênico. E transferimos para esse
espaço nossa familiaridade e os sentidos que formamos em nossas experiências de
ação corporal – parece que podemos nos mover no tempo com a mesma autonomia
que exercemos nossa mobilidade espacial.
Nossos sentidos da visão e da audição abordam de modo semelhante o problema
da fragmentação de figuras. A psicologia da forma observou a nossa tendência de
completar certas formas perceptivas coerentes e “habituais”, tais como círculos.
Tomemos, por exemplo, a figura de um círculo parcialmente ocultada por outra
forma qualquer. Embora o limite exterior do círculo esteja incompleto, o círculo
110
não é, em geral, entendido como incompleto, mas como continuando por trás da ou-
tra forma. Isto é, o círculo “fecha” perceptivamente. Esse princípio de fechamento é
concernente à completação de formas que possuem lacunas. Os psicólogos da Gestalt
afirmaram que sempre que o contorno das formas interrompidas é “forte” ou “claro”
ocorre um fechamento no ponto da interrupção.
Há evidências, segundo Albert Bregman, de que esse princípio de agrupação
tem efeito também em audição, uma vez que na experiência auditiva ocorre algo
muito semelhante ao problema da oclusão em visão. Trata-se do fenômeno do masca-
ramento: “o mascaramento ocorre quando um som forte cobre ou abafa um som
mais suave. Apesar do mascaramento, se o som mais suave for mais longo e puder
ser ouvido tanto antes quanto depois de um breve estouro do som mais forte, ele
pode ser ouvido como tendo continuado atrás do mais forte. (...)mesmo se o som
mais suave for fisicamente removido durante o breve som forte, ele ainda é ouvido
como continuando durante a interrupção” (Bregman, 1999:27). Os sons não suprimem
uns aos outros na audição – do modo como objetos visíveis podem fazê-lo em relação
à visão, por interposição. Um dado som pode “anular” outros sons concorrentes,
mas por saturação da capacidade auditiva. Em outras palavras, se a opacidade do
objeto que se interpõe entre alguém que vê e um outro objeto suprime este último na
visão, ondas sonoras não impedem a passagem de outras ondas sonoras até o nosso
ouvido; entretanto, a metáfora de opacidade pode ser empregada para eventos sonoros
quando um dado som supera um outro por ser muito mais intenso que este,
provocando algum tipo de saturação auditiva.
Os sons como fenômeno são sempre resultantes da percepção auditiva de ondas
sonoras, e são objetos de existência independente; sua realidade objetiva é fenomênica
e intrínseca. A escuta humana transforma a “materialidade” sonora em percepções e
conhecimentos. Das várias escutas dessa materialidade resultam, no domínio lingüís-
tico, as fonéticas, que enfatizam traços distintivos específicos, voltando o ato cognitivo
para a identificação de fonemas e seus agrupamentos na constituição das palavras.
No domínio da experiência da música, resultam os objetos musicais, que operam
num nível ainda mais especializado com a “matéria” sônica. A delimitação dos
111
objetos musicais também é governada por princípios de agrupação – como entenderam
os psicólogos da Gestalt – que fazem com que sons e “fluxos” sonoros concorrentes
de uma peça musical concordem entre si como partes de um todo. Tudo isso pode
ser resumido na idéia de “falta de independência”, porque se os variados eventos
sonoros componentes de um mesmo texto musical fossem totalmente independentes
uns dos outros, não seriam percebidos como partes de um único evento musical –
embora ainda pudessem, mesmo assim, apresentar algum tipo de relação conceptual.
Podemos identificar e individualizar os objetos musicais de maneiras distintas,
de acordo com o nosso interesse. Essa afirmação poderia ser, entretanto, rejeitada
como algo arbitrário, uma vez que não há, precisamente, condições de identidade
para os sons. Suponhamos que a gravação de uma música inicie por um longo som
de clarinete com uma altura determinada (, por exemplo). Repentinamente, perce-
bemos a mudança, sem interrupção, dessa nota () para outra (, por exemplo) –
isto é, o inicial desaparece no exato instante em que o passa a soar – e, no mo-
mento seguinte, a mudança também abrupta do timbre de clarinete para o de flauta
– sem alteração da nota final () –, até que o som desaparece. A questão que se
apresenta é: experimentamos três eventos sonoro-musicais ou apenas um? Em outras
palavras: diríamos que cada um dos dois sons iniciais foi substituído por outro ou
que o único som que ouvimos teve suas propriedades iniciais sucessivamente
alteradas?
A resposta dependerá, evidentemente, do tipo de interesse que mantínhamos
sobre aquele determinado evento sonoro. Se a altura dos sons era em nossa percepção
da experiência musical em questão um parâmetro distintivo daquele objeto sonoro,
e se a instrumentação – e, portanto, o timbre – aí importava, entendemos então ter
havido três sons. Se tais parâmetros não constituírem traços estruturadores dos objetos
sonoros em questão – caso comum no repertório da chamada música eletroacústica,
que manipula objetos sonoros criados (ou recriados) em “processadores de áudio”,
com propriedades acústicas diferentes das encontradas em sons produzidos por ações
sobre instrumentos-objetos –, seria mais adequado falarmos de um único som que
sofre transformações. Condenar tal arbitrariedade em que se radica a condição de
112
individualização dos sons seria desconsiderar o papel essencial do caráter fenomênico
dos sons em nossa experiência e entendimento, que não pode ser efetivado sem o
conceito de identidade numérica.
Parece claro que música é um fazer humano existente num contexto cultural e é
amplamente determinado por este. Contudo, parece também não haver mais dúvidas
de que o sistema nervoso humano está sujeito a princípios cognitivos universais,
alguns dos quais poderosamente influentes sobre nossos processos cognitivos como
as estruturas musicais. A escuta introduz no espaço e no tempo pontos referenciais
funcionalmente relevantes e continuamente reconfigurados, introduzindo assim uma
atividade mnemônica específica. Esse processamento atualizador é, portanto, conse-
qüente das condições e possibilidades do nosso ato da escuta, das circunstâncias
acústicas do espaço físico em que se dá a nossa experiência, dos nossos conheci-
mentos acerca dos sujeitos que estão “atrás” do texto-objeto experimentado ou acerca
do próprio texto (seu histórico, estilo, etc.), dos nossos condicionamentos emocionais,
entre outras. A presença do objeto apenas aciona e condiciona, mas não determina o
ato da escuta – a experiência estética e o processo cognitivo. Estamos falando da
música que suscita, de algum modo, um processo de comunicação e, para isso, seu
esquema formal não pode prescindir da estrutura e da funcionalidade da memória.
Um modelo corrente da psicologia cognitiva para a memória, revisado recente-
mente por Harold Pashler, em The psychology of attention, consiste de três processos
mais funcionais que estruturais: a memória sensorial – imitativa, repetidora –, que
é um processamento primário de extração de caracteres, abrangendo diferentes proces-
sos (incluindo o mais puramente reacional), e em que uma grande quantidade de
informação auditiva persiste por tempo muito reduzido; a memória de curto-prazo;
e a memória de longo-prazo. Segundo ele, o primeiro processo produz uma espécie
de “imagem” auditiva pré-conceptual (a persistência sensorial de um som como
memória “ecóica”, pois desaparece – a menos que seja prolongada por outro processo
– em um ou dois segundos, como um eco), enquanto os demais são memórias concep-
tuais categorizadas. Enfocando a memória auditiva estritamente musical, podemos
entender que cada um desses três processos funciona em diferentes “escalas de
113
tempo” que Bob Snyder relacionou com diferentes “níveis de tempo da experiência
musical” – conceito introduzido pelo compositor Karlheinz Stockhausen, embora
não o tenha relacionado, propriamente, com modelos de memória. Ou seja, cada
escala de tempo é relacionada com um nível temporal da organização musical: o
nível de fusão de evento, o nível rítmico e melódico e o nível formal, respectivamente.
Cumpre advertir, no entanto, que as escalas de tempo – em que se processa a memória
– e os níveis de tempo – em que se dá a organização musical – são correlacionados
apenas para efeito de simplificação da apresentação, uma vez que os três processos
acima citados não funcionam, de fato, independentes um do outro. Trataremos agora
somente do estado inicial da memória, que nos ajudará a compreender o nosso
processo de individualização dos objetos sonoros.
Na memória sensorial, o ouvido interno converte as ondas sonoras que lhe
chegam, em cadeias de impulsos nervosos que representam as propriedades daquelas
vibrações acústicas individuais. Portanto, na sensação auditiva original essas inúmeras
cadeias de impulsos separadas representam cada qual, uma freqüência de vibração
(a taxa de vibração mecânica de um corpo, que será percebida como a altura do
som), uma amplitude de vibração (o nível da pressão do ar causada pela vibração,
que será percebida como a intensidade do som) ou mesmo variações progressivas
orientadas de freqüências e amplitudes particulares (tais como portamentos e glis-
sandos) presentes no meio acústico em questão. As pesquisas empreendidas nos
últimos anos levam a crer que existem, inclusive, grupos de neurônios especialmente
sensíveis a cada uma dessas características sonoras, isto é, que estão “ajustados”
para reagir a cada aspecto dos sons que o ser humano pode codificar.
É, entretanto, necessário observar que em função da limitação imposta pela
velocidade dos neurônios em processar as informações (estímulos) a recorrência
dos ciclos vibratórios deve ter freqüência superior a cerca de vinte em cada segundo
para que se formem “unidades”: eventos auditivos básicos, o primeiro estágio da
memória sensorial. Nesse nível da experiência acústica (sobretudo musical) os ciclos
vibratórios individuais não são, portanto, perceptíveis diretamente. Tais ciclos –
que serão fundidos em unidades para formar caracteres como altura e intensidade –
114
não são acessíveis à consciência, uma vez que ocorrem em intervalos de tempo
inferiores ao exigido pelo processamento neuronal. Assim, podemos descrever como
resultado do processamento inicial dos eventos básicos com alta freqüência uma
espécie de “mancha temporal”, pois não percebemos intermitência.
Esse processo de acoplagem de extrações de dados (simultâneas ou muito próxi-
mas temporalmente) dá-se, portanto, em níveis diversos de complexidade, e já consti-
tuem tipos rudimentares de associação, como salientou Gerald Edelman em sua
teoria biológica da consciência. Correntemente, entende-se que quando caracteres
particulares afins ocorrem simultaneamente ou quase, seus extratores – que consistem
em grupos neuronais específicos – “comunicam-se” entre si e esses caracteres já
conectados tornam-se uma representação de algum tipo de evento: uma categoria
perceptiva. Contudo, as simples sensações originadas nesse processamento inicial
não são ainda propriamente categorizadas, persistem apenas como dados sensoriais
brutos e contínuos. Grupos especiais de neurônios extraem desse continuum de
dados da memória sensorial diversas propriedades que então serão atadas em conjun-
tos, constituindo eventos auditivos individuais, complexos e coerentes, possuidores
de diferentes características concomitantes. Somente a partir desse ponto – no qual
a informação deixa de ser contínua (embora possa haver ainda resíduos de informação
contínua) e a quantidade de dados é drasticamente reduzida – é que os eventos são
de fato codificados ou mesmo categorizados. Essa é, pois, a ação mais crítica da
audição humana: receber uma variação de pressão do ar (vibração), contínua e simples,
e formar representações concomitantes de todos os recursos sonoros aí presentes.
Estamos discutindo o que Snyder denomina “nível de fusão de evento” da expe-
riência musical. As cadeias de impulsos nervosos são continuamente variadas e, em
geral, não mantêm relações reconhecíveis entre si. Porém quando esses impulsos
apresentam um aspecto mais definido e constante – uma configuração espectral
relativamente homogênea – produzem na memória ecóica um evento sonoro particular
com altura, intensidade e timbre determinados (características extraídas cada qual
de um grupo especializado de neurônios); nas palavras de Snyder, “a memória ecóica
e o processamento inicial provêem nossa experiência imediata do momento presente
115
da música no foco da consciência, e ajuda a segmentá-la em unidades manejáveis”
(2000:15). O evento auditivo produzido nessa experiência é equivalente a um evento
visual formado pela acoplagem de características separadas tais como contorno,
forma, cor e textura. Mudanças no meio acústico experimentado acarretam descon-
tinuações e novas acoplagens, novas fusões de novos eventos coerentes; elas são,
portanto, detectadas nesse estágio sensorial da memória e descritas com metáforas
espaciais, como veremos detalhadamente mais adiante. Enfim, mudanças em freqüên-
cia, por exemplo, formam os limites dos eventos de altura individuais, o que é
experienciado como mudança de altura, um “movimento” num eixo vertical.
Agrupação é o termo empregado para a tendência natural do sistema nervoso
humano de segmentar a informação acústica do meio em unidades, isto é, em objetos
sonoros identificáveis, uma vez que os componentes dessas unidades são experimen-
tados como algum tipo de todo – uma entidade coerente e delimitada. Assim, quando
algum aspecto do meio sofre uma mudança significativa, um limite é criado e os
limites dos eventos auditivos são definidos por vários graus de mudança: caracteres
sonoros simultâneos ou muito próximos podem ser agrupados ou fundidos em even-
tos, e os eventos, propriamente, podem ser agrupados no decorrer do tempo em
seqüências de eventos. Esses limites definem, portanto, onde começam e terminam
agrupamentos em todos os níveis temporais da organização musical, descritos por
Snyder – nível de fusão de evento, nível rítmico e melódico e nível formal. Discutimos
até este ponto apenas a agrupação no nível de fusão de evento, uma vez que o nosso
interesse específico nesta seção é a identificação dos eventos sonoros individuais. E
gostaríamos de detalhar ainda mais um pouco dois conceitos musicais originados
nesse nível de agrupação: a nota – evento identificado com uma altura sonora
determinada, já que muitos não a têm (sons “inarmônicos”) – e o intervalo – relação
de alturas entre notas distintas.
A nota é a menor unidade de organização na dimensão melódica, que se forma
no nível de fusão de evento, quando uma certa quantidade de ciclos vibratórios
similares ocorre de modo suficientemente rápido – no mínimo vinte ciclos por segun-
do – para que se dê a fusão (agrupação) em uma percepção unificada da altura da
116
nota como evento. Portanto, a regularidade e a proximidade temporal da repetição
de uma forma de onda sonora são cruciais para nossa sensação de altura, enquanto
a similaridade dos ciclos vibratórios é crucial para a coerência de um evento como
uma unidade. Podemos discriminar a altura de duas notas imediatamente sucessivas,
reconhecendo a diferença entre suas freqüências vibratórias constitutivas – quanto
maior a freqüência, mais “alta” a nota. Para isso, usamos apenas a memória ecóica
que é capaz de manter representações de eventos adjacentes por um curto intervalo
de tempo. Comparações de alturas de notas não consecutivas numa seqüência exigi-
riam, em geral, a ação das memórias de curto-prazo e de longo-prazo, que possibilitam
agrupações na forma de padrões melódicos – como veremos no próximo capítulo. O
movimento metafórico entre duas notas de alturas distintas é o efeito, portanto, do
intervalo existente entre elas. Um movimento conjunto (um grau) é um intervalo
pequeno; um salto é um intervalo maior. Intervalo é uma metáfora para conceitualizar
um tipo de ligação entre duas notas, e são as seqüências organizadas de intervalos e
não de notas, propriamente, que reconhecemos como melodias.
Como vimos, na experiência da música a memória sensorial é a persistência de
uma grande quantidade de informação auditiva por um intervalo de tempo muito
pequeno, entretanto suficiente para possibilitar o reconhecimento das características
básicas da informação e a sua fusão em eventos. O que se forma nesse estágio da
memória são representações básicas do mundo, e essas representações não são outra
coisa senão “imagens”. Em termos de experiência musical, estamos falando de abstra-
ções de modo geral intraduzíveis, o que explica, ao menos em parte, porque uma
considerável porção do sentido musical resiste à expressão lingüística. Contudo, se
podemos entender as metáforas como relações entre duas estruturas de memória,
entre dois esquemas de imagem, como propôs Johnson, investigar esse mecanismo
no nível mais superficial da forma musical é estudar como se formam os sentidos
mais imediatos da nossa experiência do tempo espacializado da música.
117
Metáforas de evento
A especificidade fenomênica dos sons levou Roger Scruton a discutir o caráter de
evento e de processo que possui o som. Diz ele que tanto eventos como processos
“ocorrem”, mas na linguagem coloquial somente os processos “duram”: eventos
acontecem num dado momento, processos persistem no tempo. Se nosso mundo é
um mundo de substâncias (coisas, organismos e pessoas), eventos e processos são o
que acontece àquelas substâncias. E se eventos constituem mudanças no mundo, o
início e o fim de um processo são eventos. No entanto, Scruton adverte que pode ser
difícil decidir se algo é um evento ou um processo: “talvez eventos e processos
pertençam a uma única categoria metafísica – a categoria dos acontecimentos ou
coisas que ocorrem” (Scruton, 1999:9). Assim, ele propõe usar indiscriminadamente
o termo evento para sons, uma vez que todos o são, embora advirta que alguns sejam
percebidos também como processos.
A experiência do objeto sonoro começa, como vimos, no reconhecimento de
eventos sonoros. E se é na “sucessão” temporal dos eventos sonoros, que ouvimos
“movimento”, precisamos estudar mais cuidadosamente as questões relativas a
causas, eventos e tempo. E, como Schaeffer observou, se na escuta dos objetos
sonoros devemos nos desinteressar pelas causas dos sons, ao contrário eventos e
causas musicais – como também estados e ações envolvidos – exigem a atenção de
quem experimenta os sons como objetos musicais. O espaço acusmático está sempre
associado a uma causalidade virtual; na escuta musical os objetos sonoros agem uns
sobre os outros e essa causalidade é experimentada tanto como algo de ordem pré-
conceptual – um fluxo vital – quanto conceptual e proposicional – resultante de um
alto grau de convencionalidade estilística. Quando a causalidade é experimentada
como produto de formas estereotipadas, é percebida como inevitável. Nesse caso,
parece-nos que um objeto sonoro não dá, meramente, origem ao objeto seguinte,
mas que cria uma tal situação que faz seu sucessor significar uma resposta correta e,
muitas vezes, previsível.
118
Os filósofos dedicaram-se, no curso da história, a uma variedade de teorias da
causação – envolvendo conceitos tais como forma, propósito, força, condição, relação
– cada qual com a sua própria lógica; e ainda assim todas essas teorias são reconhe-
cidamente teorias da mesma coisa. O conceito literal esquemático dos raciocínios
causais é: “causa é um fator determinante para uma situação”, seja a situação um
estado, uma mudança, um processo ou uma ação. Lakoff e Johnson observaram que
toda a riqueza de formas de raciocínio causal surge de duas fontes: um protótipo
causal e uma grande variedade de metáforas para causação. Assim, o centro do
nosso conceito de causação é o uso volicional que fazemos de nossa força corporal
para mudar algo fisicamente: uma causação prototípica. Extensões desse protótipo
dão origem aos casos em que uma causa abstrata é conceitualizada metaforicamente
em termos de força física através da metáfora primária “causas são forças”. E em
virtude da causa ocorrer antes do efeito no caso prototípico, surgem ainda metáforas
como “precedência causal é precedência temporal”, “causas são correlações” ou
“causas são fontes”.
Estruturamos tanto os movimentos dos nossos corpos quanto os eventos no
mundo com uma mesma estrutura de evento que consiste, basicamente, de: estado
inicial, início do evento, processo (aspecto central do evento) e estado final (resultante
do processo). Algumas metáforas primárias são constituídas a partir desse modelo
geral como estruturas inferenciais. Por exemplo, os estados são conceitualizados
como “limites” no espaço; mudanças são conceitualizadas como “movimentos” entre
localizações espaciais. Donde podemos concluir que nosso entendimento fundamental
de eventos e causas vem de duas metáforas: a que conceitualiza evento em termos
de localização e a que o conceitualiza em termos de objeto. Ambas têm como base
as metáforas primárias “causas são forças” e “mudanças são movimentos”, que possu-
em um alto grau de convencionalidade em nossa experiência. Lakoff e Johnson
fizeram o seguinte mapeamento do que denominaram “metáfora de estrutura de
evento” em termos de localização:
Estados são localizações (interiores de regiões limitadas no espaço).
Mudanças são movimentos (para dentro ou para fora de regiões limitadas).
Causas são forças.
119
Causação é movimento forçado (de uma localização para outra).
Ações são movimentos auto-ativados.
Dificuldades são impedimentos para mover.
Liberdade de ação é ausência de impedimentos para mover.
Propósitos são localizações desejadas (destinações).
Meios são caminhos (para destinações).
Eventos externos são objetos que exercem força.
Atividades propositadas de longo-prazo são jornadas.
(1999:179)
Seu domínio-fonte é a nossa experiência cotidiana de “movimento no espaço”; o
domínio-alvo é o domínio dos eventos. O mapeamento acima apresenta, pois, o
nosso entendimento comum da estrutura interna dos eventos e mostra o uso que
fazemos do nosso conhecimento de movimento no espaço, proveniente da experiência
de movimento do nosso próprio corpo e das percepções de outros movimentos no
mundo físico.
A fim de demonstrar a abrangência desse mapeamento na sua aplicação à
experiência musical, propomos a escuta de alguns trechos musicais extraídos de
Akira
6
(2001) – obra para flauta e piano, cuja gravação integral encontra-se na FAIXA
1 do CD anexo, que doravante será referido apenas pelo número da faixa correspon-
dente aos trechos examinados –, seguindo cada um dos quatro primeiros itens
(metáfora por metáfora) do mapeamento apresentado – os demais itens serão objeto
dos capítulos seguintes.
1.Estados são localizações. Por “localização” entendemos o interior de região
limitada no espaço – portanto separado do exterior –, com extensões e dimensões
diversas. Não podemos conceitualizar estados sem as características de interior, de
exterior e de delimitação de uma região no espaço. Essa metáfora conceptual é,
portanto, central para o conceito de estado. Cada uma das expressões metafóricas
aqui empregadas contém um sentido espacial e um sentido relacionado a estados. A
evidência de polissemia envolve substantivos geométricos como ponto, linha;
adjetivos como alto, grande, maior, denso; e advérbios como acima, aqui, atrás,
fora, perto, através. Exemplos de expressões lingüísticas podem ser: “ela está em
profunda melancolia”, “todos reconhecem que é um grande problema” ou “estamos
longe do acordo”.
120
Apresentaremos a seguir uma possível expressão lingüística para um trecho
musical, procurando enfatizar as evidências de polissemia em questão. Evitamos
por ora ressaltar os elementos referentes à dimensão temporal da experiência musical,
destacando somente as metáforas de localização vertical (o eixo grave-agudo) e de
camadas sobrepostas (o eixo à frente-atrás). Somos seres físicos e não escapamos
da influência da gravidade que fundamenta as palavras “cima” e “baixo”. A metáfora
“agudo é para cima” compartilha as organizações espaço-temporais recorrentes –
ou seja, as bases experienciais (resíduos persistentes de experiência) – da metáfora
conceptual “mais é para cima”, que correlaciona quantidade e verticalidade. Por
exemplo, vibrações mais intensas produzem sons mais “agudos”, e para produzirmos
com nossos corpos sons mais “agudos” fazemos mais esforço; sendo assim, “agudos
são altos, graves são baixos”. Por isso, a principal propriedade sonora envolvida na
metáfora de localização vertical é a altura. Nosso conceito de objetos sonoros mais
à frente ou mais atrás utiliza ainda uma outra projeção metafórica do domínio visual:
a metáfora primária “claro é à frente” – que fundamenta o sistema figura-fundo. Na
experiência musical correlacionamos, portanto, clareza e proximidade; e as principais
propriedades sonoras envolvidas na metáfora de camadas sobrepostas são a
intensidade (“mais forte é à frente”) e o timbre (que contribui para a separação de
eventos). Cumpre ainda chamar atenção para o uso freqüente da metonímia
7
na
descrição da música. Habitualmente, falamos da música de instrumentos – incluindo-
se nesses a voz humana –, tomando o próprio instrumento pelos objetos sonoros e
agrupações produzidos (“o produtor pelo produto”) ou pelas ações executivas do
intérprete que o utiliza na performance (“o objeto por seu usuário”) – a flauta subiu,
a flauta parou, a flauta atacou firmemente. Eis uma expressão para o trecho musical
da
FAIXA 2:
No segmento inicial, a flauta parte da região média para alcançar o ponto mais
alto e nele permanecer até ser interrompida pelo profundo ataque do piano. tem
início um segmento mais denso, composto desses mesmos golpes de piano na região
grave (baixa) e de um bloco iterativo, também do piano, que persiste no registro
médio e no fundo, sobre o qual duas linhas concorrentes, uma no piano e outra na
flauta, atingem, pouco a pouco, o ponto culminante, perto do final do segmento. A
partir daí, a textura rarefaz-se e um último segmento tem uma nova apresentação
da flauta, que atinge agora seu limite grave.
121
2.Mudanças são movimentos. Nessa projeção metafórica construída sobre a
metáfora anterior conceitualizamos “mudanças de estado” como um movimento de
uma região limitada no espaço para outra – ou mesmo para dentro ou para fora de
uma região. Ou seja, se algo se move da localização A para a localização B, está
antes no estado A e depois no estado B, e está ainda, em algum momento, entre as
localizações-estados A e B. Processos, por sua vez, são conceitualizados em termos
de movimento por uma seqüência linear de estados. Aqui a evidência de polissemia
envolve verbos como ir, sair, subir; adjetivos como móvel, estático; e preposições
como de, para, em, entre. Cada um desses termos tem assim um sentido no domínio
de movimento espacial e outro sentido no domínio de mudança de estado. Alguns
exemplos de expressões lingüísticas: “ela entrou em desespero”, “passamos do limite
da tolerância” ou “ele veio de uma depressão”.
No curso da história do conceito de movimento em música já se supôs que ele
fosse algo ideal (um movimento cuja única realidade está na esfera mental); outros
argumentaram que o movimento musical é um movimento puro, um movimento no
qual nada se move, sendo por isso o movimento mais real, manifesto como é em si.
Um outro argumento é de que a espacialidade musical é mera aparência e não se
assemelha à espacialidade visual. Tudo que constitui espaço como uma moldura na
qual objetos são situados como ocupantes está ausente do continuum sonoro musical.
Por isso, a idéia de movimento em música tornava-se paradoxal: como podemos
falar de movimento quando nada se move? Espaço musical e movimento musical
não são análogos de espaço e movimento do mundo físico. Mas quando experimen-
tamos, por exemplo, o “subir” e o “descer” em música, podemos pensar em metáforas
espaciais necessárias: podemos dizer até mesmo que se estamos ouvindo sons como
música torna-se necessário que “ouçamos” movimento. Não há espaço real para
sons, mas há um espaço fenomênico de sons musicais, mesmo que não possamos
avançar desse espaço fenomênico para uma ordem espacial objetiva.
122
Propomos então uma outra expressão lingüística para o mesmo trecho musical
acima discutido, e ressaltaremos as evidências de polissemia da metáfora “mudanças
são movimentos” – que combinada com a metáfora “mais é para cima” produz
movimentos ascendentes e descendentes. Chamamos atenção, entretanto, para a
qualidade motora especial que têm as sucessões (pulsações) regulares de um “mesmo”
evento sonoro, ou sejam, ostinatos são conceitualizados como movimento não por
contraste qualitativo (mudanças de estado), mas por seu iterativo reaparecer. Por
isso, se são entendidos especificamente neste mapeamento metafórico como ausência
de movimento, eles recebem outro enfoque no mapeamento da metáfora de orientação
de tempo, como veremos mais adiante neste estudo.
No segmento inicial, a flauta parte da região média para chegar à nota mais alta,
e nela permanece até a entrada de um golpe do piano no registro subgrave, que
inicia outra seção. Esse segundo segmento é atravessado pela repetição de um
bloco (um ostinato), no piano, que vai até a última seção. Duas linhas caminham
juntas e progridem ascendentemente para atingirem o clímax, após o qual a flauta
sai. No segmento final, entra um novo fragmento linear da flauta, que desce até
sua nota mais grave.
3.Causas são forças e causação é movimento forçado. Se “mudanças de estado”
são entendidas como movimentos de uma região limitada para outra, “mudanças de
estado causadas” são entendidas como “movimentos forçados” de um estado para
outro. Diversas causações abstratas são expressas por verbos de movimento forçado
como trazer, puxar, levantar, conduzir, atirar, cada qual com a sua lógica relativa a
uma forma particular de movimento forçado. A evidência de polissemia reside no
fato de que cada verbo tem tanto um sentido no domínio de movimento forçado
quanto um sentido causal. É, portanto, a relação sistemática entre as lógicas de
movimento forçado e de causação, que provê a evidência inferencial: um movimento
forçado é precedido ou acompanhado de uma força, sem a qual não teria ocorrido;
uma mudança de estado é precedida ou acompanhada pela ocorrência de uma causa,
sem a qual não teria ocorrido; então a lógica da causação “é” a lógica do movimento
forçado, nos termos das metáforas em questão. Exemplos comuns de expressões
lingüísticas: “a conversa os conduziu a um acordo” ou “o incidente mexeu com a sua
vaidade”.
123
Na experiência da música reconhecemos as duas formas gerais de causação,
quais sejam, o movimento forçado precedido pela força ou acompanhado da força
sem a qual não teria ocorrido. Há uma organização fisiológica recorrente, que é uma
base experiencial comum aos esquemas de imagem para as orientações “dentro-
fora” e “acima-abaixo”: a alternância respiratória. A estruturação desses esquemas
de imagem assim constituídos envolve, além de separação e diferenciação, também
causação, implicando restrição e alternância. Essa projeção metafórica está na base
da nossa conceitualização de movimento forçado precedido pela força que o
determina. É comum entendermos um evento musical que contraria um outro anterior
– oposição efetivada por qualquer atributo sonoro, seja de altura, intensidade, timbre,
densidade, etc. –, como tendo nesse evento anterior a sua causa. Além disso, devemos
observar que na nossa experiência da orientação gravitacional, movimentos descen-
dentes são, normalmente, mais fáceis; isso combinado com a metáfora “mais é para
cima” produz o conceito de que os níveis mais “altos” de parâmetros particulares –
sobretudo (porém não apenas), da altura – estão relacionados com os pontos de
“maior tensão” das obras musicais, tensões que devem ser “resolvidas” com o
“abaixamento” dos valores paramétricos envolvidos.
O segundo caso de movimento forçado (acompanhado da força) é encontrado
tanto na experiência da “sintaxe musical” – quando entram em ação os princípios de
proximidade e similaridade, assunto do quarto capítulo deste trabalho – quanto na
metáfora de camadas sobrepostas (o eixo à frente-atrás). Como vimos, nossa
conceitualização de distância de eventos sonoros pode empregar a metáfora
conceptual “claro é à frente”. Assim, se uma mudança de estado no evento musical
é entendida como movimento e esse movimento é forçado “para frente” ou “para
trás” por uma força contínua, há uma causa que é outro evento sonoro. Propomos
abaixo uma nova expressão lingüística para o trecho da
FAIXA 2:
No segmento inicial, a idéia da flauta tem um caráter altamente suspensivo,
resultante da combinação de movimento em direção ao extremo agudo, de reforço
progressivo de intensidade sonora e de retenção de fluxo nas notas finais. O ataque
subseqüente do piano, no registro subgrave, responde a esse acúmulo de expectativa
gerado pela flauta, com um contraste de registro equivalentemente incisivo. O
novo segmento aí iniciado apresenta um elemento repetitivo que o atravessa
124
inteiramente, e a incidência de células melódicas do piano e da flauta mantém esse
ostinato em segundo plano, enquanto persistem.
A metáfora de estrutura de evento em termos de localização é uma das mais
usadas em nosso sistema conceptual, uma vez que dispõe os meios fundamentais de
conceitualização de nossos conceitos básicos, como os de causa, estado, mudança,
ação, propósito, etc. Vimos que a nossa experiência de movimento através do espaço
é a base para vários sistemas de metáforas, que definem diversas lógicas de causação
e por meio dos quais entendemos eventos, causas e ações propositadas. Todavia,
Lakoff e Johnson alertam para uma dualidade metafórica existente na estrutura de
evento. Se até agora conceitualizamos estados como localizações, essa metáfora tem
um duplo: “atributos são posses”, metáfora na qual atributos são entendidos como
objetos que se possui. E essa nova metáfora combina com “mudanças são movimentos”
e “causas são forças” para formar um outro sistema de estrutura de evento:
Atributos são posses.
Mudanças são movimentos de posses (aquisições ou perdas).
Causação é transferência de posses (dando ou tirando).
Propósitos são objetos desejados.
Alcançar um propósito é adquirir um objeto desejado.
(ibid., 198)
Se um atributo é conceitualizado como um objeto que se pode ter, então com o
emprego de “mudanças são movimentos” efetuamos mudanças metaforicamente
para adquirir (movimento do objeto em nossa direção) ou perder (movimento do
objeto para longe) o objeto. Alguns exemplos são: “eu tenho uma dor de cabeça que
não passa” ou “minha dor de cabeça foi embora”. O paralelismo entre locação e
objeto se desdobra da metáfora de estrutura de evento. Onde propósitos são conceitu-
alizados como localizações (destinações) desejadas, propósitos são conceitualizados
como objetos desejados: “Agarre essa oportunidade!” As descrições musicais correla-
tivas são inúmeras e citamos aqui, por exemplo, uma expressão de reconhecimento
de material temático recorrente, ora numa parte textural ora noutra ou mesmo num
e noutro instrumento participante: “a flauta tomou o motivo principal, mas, em
seguida, ele passou para o piano”.
125
Metáforas de tempo
Diz-se que em nossa tradição, desde a Física, de Aristóteles – passando pelas
Confissões, de Santo Agostinho, as Críticas, de Kant (e seus consecutivos exames),
a Fenomenologia, o Ser e tempo, de Heidegger ou as teses de Bergson e Bachelard
–, as filosofias do “tempo” nunca puderam de fato livrar-se das aporias. A especulação
metafísica tradicional quis saber o que o tempo é em si – se é delimitado, contínuo,
direcional, se é motivado por mudanças. A pergunta “o que é tempo?” busca os
predicados do tempo. Como salientou Herman Parret, “a física do tempo parece
estar em busca da lógica do tempo e de suas aporias. (...) Na verdade, o sujeito da
enunciação é constituído pela predicação” (Parret, 1997:58). Ele denuncia uma
especificidade sintática no discurso sobre o tempo, uma vez que suas proposições
não implicam um sujeito real. Desse modo, defrontamo-nos com uma notável fragili-
dade do sujeito lógico. E quando dizemos do instante, este que coloca o “agora”
como sujeito, recaímos em proposições sofísticas.
A questão central da experiência do tempo em música é o entendimento do
tempo como uma nossa experiência no contato com a mudança que é “movimento”.
Se as representações do tempo só podem considerá-lo como ordem serial, como
sucessão transitiva de agoras, o tempo representacional refere-se a eventos “pas-
sados”, tais como o tempo que uma música durou. Contudo, não é essa a experiência
imediata do tempo, mas a de uma apresentação de eventos “presentes” tornando-se
“passados” e de eventos “futuros” tornando-se “presentes”.
Em seu comentário acerca da concepção aristotélica de tempo, Parret destaca
uma questão central: se o tempo envolve o antes e o depois do movimento, o agora
mede o tempo. O instante é o “antes-depois” do movimento, é sempre o mesmo,
embora em sua essência seja sempre diferente. Portanto, a estrutura “antes-depois”
não é movimento, está em movimento. A cada momento, o movimento relaciona
um antes e um depois, sem que a estrutura ela mesma seja movimento. E é precisa-
mente essa estrutura “antes-depois” que desempenha o papel de sujeito nas proposi-
126
ções que predicam o tempo. Além disso, Parret assinala ainda a noção aritmética de
tempo aí pressuposta, à medida que o tempo é entendido como uma espécie de
número, não enquanto um meio para numerar, mas como algo numerado, ou seja, a
“coisa contada”: “o ato de contar é a reprodução dessa relação antes-depois, que
forma o semantismo do instante e do agora. Deve-se insistir neste ponto: para
Aristóteles, a relação antes-depois não é um número senão um dispositivo não
definível numericamente, mas numericamente exprimível “ (ibid., 60).
Santo Agostinho pôs uma outra questão: se o passado não existe, pois já não é,
e o futuro igualmente, por ainda não ser, como fica o presente, que caso não se
divida em um passado e um futuro – que não existem – só lhe resta ser um “tempo
pontual”, algo sem duração, portanto algo que já não é tempo? O tempo seria assim
uma conversão de tudo em nada? Na reflexão agostiniana, se o presente não se
juntasse ao passado, não seria tempo: seria, simplesmente, a eternidade. Mas o
presente, para ser tempo, juntando-se ao passado não deixaria de existir? Ele só
existe deixando de ser? O tempo abole a si mesmo? Desse modo, um agora parece
separar e unir passado e futuro; e esse lapso de tempo, que não é nada, uma vez que
não é duração, é o que somente nos é dado e não cessa de nos escapar.
Se assim é, talvez seja inadequado dizer da existência de três tempos. Santo
Agostinho já chamara a atenção para a possibilidade de entender-se um presente do
passado (memória), um presente do presente (intuição) e um presente do futuro
(expectativa), todos existentes em nosso espírito: um “tempo do espírito”, uma
temporalidade da consciência – uma unidade de tempos, que não é o tempo do
mundo, da natureza. Contudo, essa temporalidade, fazendo existir conjuntamente o
que em verdade não poderia coexistir, está fundindo o que o “tempo real”, de fato,
não deixa de separar. Ou seja, essa temporalidade da consciência retém o que o
tempo faz escapar e inclui o que ele exclui: a temporalidade nega o tempo.
A ligação entre pensamento e corpo dá-se no espaço, dimensão da experiência
atual. Quando queremos mudar a configuração fenomênica das “coisas” nessa
dimensão usamos movimentos do nosso corpo, que, por sua vez, exigem tempo.
Assim, a Fenomenologia entendeu movimento como “objeto temporal”. Incluímos
127
espaço e tempo no corpo: associamos a dimensão espacial à ação física corporal e a
dimensão temporal à consciência. Hans Ulrich Gumbrecht assinala que Husserl
procurou apreender essa última correlação:
Cada ponto de uma vivência presente está cercado, no fluxo de consciência, por
um duplo horizonte: de um lado, pela retenção, o eco que recorda a vivência
imediatamente anterior; de outro, pela protenção, a antecipação do presente
imediatamente ulterior com a implicação de que a vivência que dela sairá ainda
permanece igual frente à vivência no presente ainda presente. (Gumbrecht,
1998:277)
Husserl entendeu, portanto, “retenção” como um tipo de “memória primária” que se
articula com o presente e com ele interage. A retenção vincula-se aos eventos do
agora, dando a esse agora um caráter fenomênico. Enquanto as memórias são
invocadas, as retenções duram. Na memória primária vemos o que é passado, é nela
que o passado está constituído: não representado – como fazem as memórias que
mantêm os eventos experiencialmente no passado –, mas sim apresentado. A relação
de “protenção” e presente é, de certa forma, similar. Protenção é o termo fenomeno-
lógico para um futuro que antecipamos, e não apenas aguardamos. Donde os três
modos temporais são permeados com diversos níveis de atualidades, de maneira
que o passado nunca é completamente o que não se pode recuperar e o futuro nunca
é completamente o que não se pode predeterminar. Enfim, o domínio do presente é
flexível, dilatado e permeável, o que permite sua integração aos futuros e aos passados
com os quais está sempre fenomenologicamente atado.
O conceito de temporalidade como algo que há somente por nos lembrarmos do
passado, por anteciparmos, imaginativamente, o futuro, por escaparmos, enfim, da
fluidez do passar do tempo real – que exclui o que já foi e o que ainda não é –, tem
origem, como esclarece André Comte-Sponville, quando tomamos consciência do
tempo (temporalidade) por apreendermos, num mesmo ato, dois instantes sucessivos
(no tempo), produzindo assim uma aparência de existência simultânea desses
instantes. Ele nos diz:
A temporalidade não é o tempo tal como ele é, ou seja, tal como passa; é o tempo
tal como dele nos lembramos ou como o imaginamos, é o tempo tal como o percebe-
mos e o negamos (já que retemos o que não existe mais, já que nos projetamos em
direção ao que ainda não existe), (...), é o tempo que cremos ilusoriamente composto,
128
sobretudo, de passado e de futuro, quando, ao contrário, ele não pára de excluí-los
em benefício exclusivo do que é, do que ele é: o irresistível e irreversível apareci-
mento-desaparecimento da sua presença. A temporalidade é sempre distendida
entre o passado e o futuro; o tempo, sempre concentrado no presente. A tempora-
lidade só existe em nós; nós só existimos no tempo. Nós a carregamos; ele nos
arrasta. (Comte-Sponville, 2000:32)
Disso advém que a temporalidade, que é na consciência, ou mesmo é a própria
consciência, aparece no tempo, não podendo, pois, constituí-lo inteiramente – por
conter a consciência o tempo não poderia ser sua distensão. O caráter temporalizante
da consciência já é descrito pela fenomenologia de Merleau-Ponty como uma espécie
de rede de intencionalidades que unem o presente ao passado e ao futuro, liberando
a consciência de uma fixação no presente:
O tempo enquanto objeto imanente de uma consciência é um tempo nivelado, em
outros termos ele não é mais tempo. Só pode haver tempo se ele não está completa-
mente desdobrado, se passado, presente e porvir não são no mesmo sentido. É
essencial ao tempo fazer-se e não ser, nunca estar completamente constituído. O
tempo constituído, a série das relações possíveis segundo o antes e o depois não é
o próprio tempo, é seu registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento
objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender. Ele é espaço, já que seus
momentos coexistem diante do pensamento, é presente, já que a consciência é
contemporânea de todos os tempos. (Merleau-Ponty, 1994:556)
Donde parece claro que o presente da consciência distende-se entre um passado
e um futuro, pois não haveria consciência sem memória e sem antecipação; mas isso
ainda não diz do tempo (o que separa passado e futuro, e suprime o presente), pro-
priamente, uma vez que a temporalidade pode ser entendida como o contrário do
tempo, se a entendermos como coexistência, e tempo, como sucessão. No entanto, o
que poderíamos saber sobre o tempo e a sua verdade, sem o conceito de tempora-
lidade? O que até aqui enfatizamos é que para a Fenomenologia, assim como, de
certa forma, para santo Agostinho, o tempo não existe “no mundo”, mas na consciên-
cia: o que chamamos de tempo não seria outra coisa senão uma objetivação da
temporalidade como dimensão da consciência. O tempo não nos precederia, nós é
que o constituiríamos distendendo-o.
Para Comte-Sponville, falta-nos a experiência da não existência do presente,
como sugerem, de um modo ou de outro, tanto as teses de santo Agostinho quanto
as de Kant, de Husserl ou de Merleau-Ponty. O presente é o que nunca cessa, nunca
129
desaparece, mas apenas dura, continua; é como se nunca saíssemos do presente: ele
é o único tempo disponível. Comte-Sponville sugere, pois, ser necessário inverter a
proposição de santo Agostinho de que “o presente só pode ser deixando de ser”,
uma vez que o que a experiência nos ensina é que o presente nunca se interrompe e
que por isso o tempo é. “O instante presente, como instante real, é antes ‘a conti-
nuidade do tempo’, como Aristóteles viu, e como tal ‘sempre o mesmo’. Não é um
ponto, ou, se for um ponto, é móvel: há um só tempo, desde o início, e esse tempo é
o presente” (Comte-Sponville, 2000:47-8).
Em O ser-tempo, ele apresenta seis proposições acerca do tempo, das quais a
tese o tempo é o presente é a primeira e geradora das demais. Assim, só haveria o
presente, o único tempo real. Se não houvesse consciência, haveria apenas um
presente sem memória e sem antecipação. Passado e futuro, não existindo, subsistem
unicamente no presente existente, como dimensões retrospectiva e prospectiva da
consciência. Se somente há o presente e este dura, continua a ser presente e constitui
eternidade: o tempo é a eternidade, presente que permanece presente. Ele ressalta,
contudo, que eternidade não se confunde com intemporalidade, mas é a verdade do
tempo. O tempo é o ser: o que poderia durar se nada existisse? “Cumpre dizer, de
um ponto de vista ontológico, que o tempo não tem existência independentemente
da duração, como tampouco a duração independentemente do que dura. Nada existe,
salvo o ser, que dura e que muda” (ibid., 90). Portanto, se o tempo é o presente, o
presente é o ser, ou seja, presença de algo é ser – primado do tempo e não da
temporalidade –, e ser é permanecer presente durante certo tempo. Se tudo isso é
presente, tudo muda, uma vez que o presente é sempre novo. Enfim, o sujeito do
tempo, sua única realidade, seria, portanto, o ser. O tempo é o ser em devir, é a
mudança contínua do ser: mudança e continuação.
Portanto, tempo é algo que conceitualizamos por meio de metáforas, pois tudo
que sabemos acerca desse conceito está relacionado a outros conceitos, tais como
espaço, evento, mudança ou movimento. Contudo, o conceito de tempo é o que
tradicionalmente foi desconsiderado na pergunta “o que é tempo?” Segundo a
pesquisa semântica cognitiva, pensamos com nossos sistemas conceptuais e usamos
130
a linguagem para expressar conceitos nesses sistemas. Quando fazemos a pergunta
“o que é tempo?”, a palavra “tempo” já tem um sentido para nós, isto é, o tempo já
está conceitualizado em nosso sistema conceptual. Portanto, o sentido da questão
depende de qual sistema conceptual estamos usando para compreendê-la. E essa é,
particularmente, uma questão para a semântica cognitiva.
A reflexão acerca da natureza do tempo é um valioso contraponto para a investi-
gação dos mecanismos cognitivos – parte do inconsciente cognitivo – que usamos
para conceitualizar o tempo e para falar dele. A pesquisa desses mecanismos deve
completar o nosso estudo inicial da natureza experiencial do movimento em música.
Consideremos a escuta musical. Quando desejamos medir o tempo que uma música
toma, normalmente o fazemos comparando eventos: início e fim da música (seus
estados inicial e final), com os correspondentes estados de um instrumento de
“medição de tempo” – baseado na periodicidade de eventos cujas repetições suces-
sivas definem o “mesmo” intervalo de tempo. Portanto, eventos físicos de um mesmo
tipo – dentre eles, inclusive, os eventos internos iterativos do nosso corpo – estão na
base da definição de intervalo de tempo
8
. (Dizemos que a música tomou uma determi-
nada “quantidade” de tempo, ao comparar seu evento com alguma repetição de eventos,
tal como o movimento circular do ponteiro de um relógio.)
Se o tempo existe como uma “coisa em si”, não podemos observá-lo. Podemos
observar apenas eventos e compará-los. Lakoff e Johnson demonstraram que defini-
mos tempo por metonímia quando representamos intervalos de “tempo” por repetições
sucessivas de um mesmo tipo de evento. Não é surpresa, portanto, que as propriedades
literais básicas do nosso conceito de tempo sejam conseqüentes de propriedades de
eventos:
Tempo é direcional e irreversível, porque eventos são direcionais e irreversíveis;
eventos não podem “desacontecer”. Tempo é contínuo, porque experimentamos
eventos como contínuos. Tempo é segmentável, porque eventos periódicos têm
inícios e fins. Tempo pode ser medido, porque iterações de eventos podem ser
contadas. (Lakoff e Johnson, 1999:138)
Por conseguinte, no contexto cognitivo tempo é um domínio conceptual que usamos
para interrogarmo-nos acerca de algum evento através de sua comparação com outros
131
eventos. Eis o que é inerente ao conceito de tempo: a comparação de eventos. Nossa
experiência do tempo é sempre relativa à nossa experiência dos eventos: “nossa
experiência do tempo é dependente da nossa conceitualização incor-porada do tempo
em termos de eventos. Isto é uma questão maior: a experiência nem sempre precede a
conceitualização, porque esta é ela mesma incorporada” (ibid., 139). Isto é, nossa
experiência do tempo é fundada em outras experiências: as expe-riências dos eventos;
e a maior parte do nosso entendimento de tempo é uma versão metafórica do nosso
entendimento de movimento no espaço. Donde para conceitua-lizar tempo precisamos,
necessariamente, encontrar metáforas conceptuais. Lakoff e Johnson ressaltam que se
para a Física “tempo” é um conceito mais primitivo do que “movimento”, cognitiva-
mente a situação se inverte: “o movimento parece ser primário e o tempo é conceitua-
lizado metaforicamente em termos de movimento. Há uma área no sistema visual dos
nossos cérebros dedicada à detecção de movi-mento. Não há tal área para a detecção
de tempo global. Assim, movimento é algo diretamente percebido e está disponível
para uso como domínio-fonte por nossos sistemas de metáfora” (ibid., 140).
Nossa metáfora mais básica para orientação de tempo – embora haja outras em
culturas distintas – toma a nossa localização como presente, o espaço à nossa frente
como futuro e o espaço atrás de nós como passado. São comuns expressões lingüís-
ticas como: “temos muito trabalho pela frente” ou “os problemas foram deixados
para trás”. Se essa metáfora de orientação de tempo tem, por um lado, um domínio-
fonte espacial, por outro nada refere a movimento. Contudo, Lakoff e Johnson
chamam-nos atenção para duas outras metáforas de tempo, freqüentemente combina-
das com a metáfora de orientação temporal. O movimento está presente em ambas,
mas em uma delas estamos imóveis e o tempo está em movimento, enquanto na
outra estamos em movimento e o tempo, imóvel. A metáfora de tempo em movi-
mento aplica-se então a um esquema espacial específico: (a)há um observador imóvel
voltado para uma direção fixa; (b)há uma seqüência indefinidamente longa de objetos,
movendo-se em direção e para além do observador, da frente para trás; (c)os objetos
moventes são conceitualizados como tendo frentes e estando “de frente” para sua
direção de movimento. Essa é, portanto, a base para o mapeamento metafórico a
132
partir do qual as estruturas do esquema espacial são conceitualizadas no domínio-
alvo de tempo. O mapeamento proposto por Lakoff e Johnson fica:
A localização do observador é o presente.
O espaço à frente do observador é o futuro.
O espaço atrás do observador é o passado.
Objetos são tempos.
O movimento dos objetos para além do observador é a “passagem” do tempo.
(Ibid., 142)
Visando a demonstrar as aplicações desse mapeamento na experiência do tempo
musical, propomos uma nova descrição musical. Queremos antes salientar que nessa
metáfora os tempos, como é típico dos objetos em movimento, são conceitualizados
como algo voltado – de frente – para a sua direção de movimento, isto é, “tempos
futuros” estão voltados em nossa direção no presente. Na metáfora do tempo em
movimento, portanto, tempos têm “frente” e “costas” metafóricos: tempos futuros
estão seguindo um tempo, tempos passados estão sendo seguidos por um tempo, e a
localização do observador é o ponto de referência para tempos seguintes e preceden-
tes. A esse respeito devemos trazer à discussão um conceito da maior relevância nos
textos teóricos sobre ritmo musical: a unidade métrica denominada tempo. Conceitua-
lizado a partir da metáfora de tempo em movimento, os tempos métricos são entendi-
dos, de fato, como objetos – com início e fim – que vêm e que passam, dando maior
concretude à nossa experiência de passagem de tempo musical. Enfim, da mesma
forma que dizemos cotidianamente “virá o tempo em que não haverá mais discos”,
“o tempo de agir chegou” ou “o fim-de-semana passou voando”, usamos também
expressões lingüísticas como a que se segue, para descrever, mais uma vez, o trecho
musical da
FAIXA 2:
No segmento inicial, a linha ascendente da flauta apresenta um movimento regular,
interrompido somente no ponto culminante, quando há uma paralisação do fluxo
até vir, no piano, o ataque que inicia o segundo segmento. Agora uma figura insisten-
temente repetida conduz o tempo e sobre esse continuum vão aparecendo, imprevi-
sivelmente, fragmentos no piano e na flauta, sem regularidade ou vínculo com o
movimento contínuo da figura. Quando se aproxima o segmento final, a figura
repetida torna-se novamente proeminente, mas vai perdendo aos poucos a
continuidade. A última entrada da flauta leva o conjunto à desmobilização final.
133
Como já assinalamos no estudo da metáfora de estrutura de evento, os eventos
musicais iterativos com regularidade explícita – ostinatos – são adirecionais e não
têm sequer movimento. Entretanto, seu caráter de continuidade confere-lhe uma
qualidade motora específica. Ostinatos não apresentam, por essência, contrastes
qualitativos (mudanças de estado), mas adquirem qualidade temporal enquanto
sucessão de coisas que “vêm” do futuro e “passam” por nós em direção ao passado.
Uma variação da metáfora de tempo em movimento – cuja aplicação muito
interessa ao estudo da metáfora musical – foi observada por Lakoff e Johnson. Nela
o tempo é conceitualizado como “substância fluindo”, e é essa metáfora que nos
permite falar mais apropriadamente de “fluxo de tempo” e conceitualizar esse fluxo
em termos de substância com movimento linear – como um rio ou o sangue arterial.
Além disso, a mensurabilidade das substâncias nos leva à metáfora de tempo como
duração, ou seja, podemos falar de uma quantidade de tempo. Seu mapeamento é:
Substância é tempo.
Quantidade de substância é duração de tempo.
O tamanho da quantidade é a extensão da duração.
O movimento da substância que passa pelo observador é a “passagem” de tempo.
A partir disso, o nosso conhecimento sobre quantidades de substâncias torna-se
o domínio-fonte para nossos conceitos de durações de tempo: quando adicionamos
uma quantidade de substância à outra quantidade de substância, produzimos uma
quantidade maior de substância; durações de tempo adicionadas formam durações
de tempo maiores. O conceito de duração é crucial na experiência da música. Não
que os compositores tratem a “quantidade” de tempo, que reservam para esta ou
aquela seção, de maneira absoluta. O efeito que tem uma duração musical na expe-
riência do ouvinte é função de inúmeras qualidades circunstanciais, mas o compositor,
que normalmente deseja controlar essas durações e seus efeitos, só tem a si próprio
como ouvinte para regular essas medidas, de acordo com a experiência que pretende
oferecer aos seus ouvintes. Propomos, a seguir, a experiência de três trechos distintos
da mesma obra (
FAIXAS 3, 4 e 5), todos com a mesma duração cronométrica aproxima-
da. A “densidade substancial”, do primeiro ao terceiro trecho, aumenta progressiva-
134
mente, e constatamos que, de modo geral, quanto maior a densidade do trecho,
maior seu efeito duracional. Portanto, descrições de experiências do tempo musical,
conceitualizadas a partir da metáfora “substância é tempo”, são notavelmente
determinadas pelo efeito da duração de tempo (quantidade) sobre a extensão da
duração (tamanho).
O outro tipo de metáfora de tempo que Lakoff e Johnson estudaram é a metáfora
do observador em movimento. Aqui cada localização no caminho do observador, que
está em movimento, é um tempo, e a localização do observador é sempre o presente:
Localizações no caminho do observador são tempos.
O movimento do observador é a “passagem” de tempo.
A distância percorrida pelo observador é a quantidade de tempo “passado”.
Esse mapeamento é muito freqüente na experiência musical. Principalmente, na
experiência do ouvinte que “acompanha” a música que já conhece por memória.
Desse modo, ele vai percorrendo cada seção da obra, antecipando seu desenvol-
vimento e observando os eventos pelos quais passa, enquanto escuta. Esse ouvinte
pode assim avaliar a duração de cada trecho pelo qual passa – como também imaginar
aqueles pelos quais ainda passará –, em função do “tempo vivido” em cada um
deles; poderá também comparar essas durações, sobretudo as de trechos consecutivos.
Uma experiência que demonstra que só experimentamos o presente; temos que
conceitualizar passado e futuro.
A dimensão acústica é o background contra o qual o sentido musical é adquirido.
O espaço fenomênico estrutural e o tempo fenomênico funcional da música são
contrapostos pela causalidade fenomênica que ordena a obra musical. E a principal
manifestação dessa causalidade está no mundo das ações humanas. Os sons em
música seguem outros como movimentos corporais sincronizados, com uma
causalidade que faz imediato sentido para nós – mesmo que seu como esteja tão
mergulhado na natureza das coisas, que se esconda da nossa apreensão. Um som
musical é ouvido como resposta ao seu predecessor, tanto quanto tende ao seu
sucessor, continuando uma ação que faz sentido como um todo.
135
Parece que parte do nosso entendimento musical depende da nossa habilidade
para descrever coerente e convincentemente os objetos musicais enquanto objetos
animados ocupantes de um espaço fenomênico temporalizado. Contudo, propomos
agora o deslocamento da ordem mais puramente icônica do sentido musical, para a
esfera da sintaxe, e assim aprofundar a pesquisa acerca da nossa experiência da
forma em música, em seus diferentes níveis de apreensão.
Notas
1
Acusmáticos, dizia-se dos discípulos de Pitágoras, que durante anos ouviam as lições do mestre por
detrás de uma cortina, observando silêncio absoluto, desse modo ouvindo apenas a voz que a eles chegava
livre da distração dos olhos.
2
O próprio Schaeffer assim o reconhece: “durante anos exercemos a fenomenologia sem sabê-lo (...).
Apenas tardiamente pudemos reconhecer uma concepção do objeto que a nossa pesquisa postulava, cercada
por Edmund Husserl de uma exigência heróica de precisão que estamos longe de pretender ter” (Schaeffer,
1993:237).
3
O grande apelo desse sistema plano de coordenadas em nosso discurso da música deve-se, muito provavel-
mente, à disseminação da prática notacional tradicional da nossa cultura. Essa técnica, tal qual a espacia-
lização produzida pela escrita literal, atribui à dimensão horizontal a sinalização da sucessão temporal de
eventos, mas sobrepõe verticalmente as várias ocorrências lineares concorrentes. Entretanto, cumpre aqui
salientar que nossa experiência da música envolve outra dimensão espacial, por meio da qual localizamos
objetos em níveis distintos de profundidade, o que dá à textura plana ao menos o caráter de rugosidade.
4
Quanto a isso, Lakoff e Johnson fazem uma observação especialmente pertinente: a nossa fala apresenta
uma ordem linear, dizemos algumas palavras antes e outras depois; como a fala mantém uma correlação
com o tempo e o tempo é conceitualizado em termos de espaço, é natural também que conceitualizemos a
linguagem metaforicamente em termos de espaço – e os nossos sistemas de escrita reforçam essa conceitua-
lização. “Em virtude de conceitualizarmos a forma lingüística em termos espaciais, é possível a certas
metáforas espaciais referirem-se diretamente à forma de uma frase como a concebemos espacialmente”
(2003:126)
5
As mudanças químicas que ocorrem nas conexões entre neurônios são denominadas “potenciação de
longo-prazo”. Acredita-se que elas constituem a base para a memória de longo-prazo, que abordaremos
no capítulo seguinte. (Cf. LeDoux, 1996: 213-218)
6
Obra composta pelo autor do presente trabalho e gravada, em julho de 2003, por Pauxy Gentil-Nunes
(flauta) e Sara Cohen (piano).
7
Podemos dizer que uma metáfora é, antes de tudo, uma maneira de conceber uma coisa em termos de
outra, com a função primária do entendimento. Há na metáfora dois domínios: o domínio-alvo, constituído
pelo assunto imediato, e o domínio-fonte, no qual ocorre o raciocínio metafórico e que provê os conceitos-
fonte usados nesse raciocínio. Uma metonímia, por outro lado, tem primeiramente uma função referencial,
pois nos permite usar uma entidade para representar outra – há, pois, somente um domínio: o assunto
imediato. Entretanto, a metonímia também provê entendimento porque nos permite enfocar mais precisa-
mente um dos aspectos daquilo que está sendo referido.
8
A neurociência demonstra que quarenta vezes por segundo um pulso elétrico atravessa o cérebro, e as
pesquisas têm encontrado indícios de que esses pulsos regulam a ativação neuronal e podem ser a base de
vários dos ritmos corporais. Esse “relógio” interno nos daria, portanto, a nossa intuição de temporalização.
CAPÍTULO 4
A experiência da forma
A música é baseada na capacidade humana de ouvir seqüências de meros sons de
maneiras bem variadas, por exemplo: ouvir um ritmo, ouvir dois ritmos simultâneos,
ouvir uma melodia, ouvir uma melodia como uma repetição variada de uma outra já
ouvida, ouvir acordes como agregados de sons, ouvir um tipo de confluência como
conclusão, etc. Antes de constituírem conteúdos, propriamente, esses modos de
escuta são entendimentos de uma forma nos sons. Podemos alegar que o apelo
essencial de uma obra musical é ser uma “estrutura de sons”, a partir da qual tem
lugar uma experiência – antes de tudo, não-proposicional e não-representacional –
que atualiza seu valor musical.
O formalismo nascente
Em artigo de Estética e filosofia, Dufrenne observou que uma confrontação de
formalismo lógico e formalismo estético pode parecer um projeto insólito. Entretanto,
há algum tempo fazem-se também comparações entre “arte formal” e “arte informal”.
O abismo que sempre se viu entre lógica e arte, entre um objeto que solicita o
pensamento e um objeto que solicita a percepção, vem, desde a segunda metade do
século
XIX, ao menos se embaçando, à medida que se começa a entender ambos os
objetos como algo que está para ser construído.
Segundo ele, “em lógica, as regras que realizam a formalização (...)são interiores
ao sistema, portanto a lógica é, para si mesma, o seu próprio fundamento e se produz
a si mesma, enquanto que em arte as regras são exteriores ao objeto: servem para
produzir uma forma que não se basta a si mesma” (Dufrenne, 2002:151). Para a
psicologia da forma, forma é uma configuração que distingue um objeto – ou um
137
complexo de objetos – ao separá-lo de um fundo indiferenciado. Mas se o fundo é o
horizonte do sentido, é a figura que o dá. A forma está atada, pois, a um conteúdo de
sentido. Com a emergência das teorias da informação, diz-se que a forma traz uma
informação, em relação à qual o fundo é o ruído. Se de um lado poderíamos dar ao
termo “forma” um sentido aristotélico – como essência do ser –, de outro o pensa-
mento moderno privilegia, como adverte Dufrenne, um outro sentido: aquilo que
situa o ser “em relação a um conjunto de entidades ligadas por alguma relação
constante” (ibid., 153). Tais entidades são, portanto, semânticas, portadoras de sentido
menos por natureza que por artifício.
Em lógica, a forma é forma de um discurso e não de um objeto; em arte, a forma
é a forma do objeto estético que se atualiza na experiência. Nesse caso, poderíamos
então dizer que em arte a forma é ainda solidária de uma matéria. E, sobretudo, em
música é sempre melhor tratar essa matéria como conteúdo. O sentido reside na
forma, é-lhe imanente. Assim como em lógica, podemos dizer que em música a
forma dá o sentido, uma vez que o objeto musical não é um signo cuja função pri-
meira seria representar outra coisa. Aqui o sentido reside inteiramente no sensível,
em virtude do sensível estar totalmente penetrado pela forma. Mas se o sentido se
formaliza, é para ser sentido de algo. Porém, se de certo modo o pensamento moderno
idealista adiava o surgimento de um formalismo musical, em virtude da incômoda
“imateriali-dade” do evento musical, quanto mais a música da modernidade adquiria
autonomia, mais resistia a tomar emprestada sua forma a algum objeto exterior para
dele extrair seu sentido. A forma musical exigia assim ser pensada não em relação à
matéria, mas em relação ao sentido. Mas se toda forma é apreendida no espaço
visual, permitindo-nos vê-la, deve haver um espaço musical, mesmo que invisível,
que é preenchido por “materiais” musicais, isto é, por objetos sonoros com sentido
musical.
Se os objetos estéticos das artes plásticas tornam, de diversos modos, visível o
espaço, em música o “espelho do mundo” – a realidade tangível –, desaparece desse
espaço. Entretanto, como Susanne Langer descreveu, a esfera da experiência continua
inteiramente preenchida:
138
Existem formas nela, grandes e pequenas, formas em movimento, algumas vezes
convergindo para dar uma impressão de completa realização e repouso a partir de
seus próprios movimentos; há imensa agitação, ou vasta solidez e, mais uma vez,
tudo é ar; tudo isso num universo de puro som, um mundo audível, uma beleza
sonora apoderando-se de toda a nossa consciência. (Langer, 1980:111).
A pesquisa dessas “formas em movimento”, próprias da nossa experiência da música,
iluminou o sentido musical que o primado de uma sintaxe da música passou a fixar
a partir das últimas décadas do século
XIX: um sentido exclusivamente presente em
nossa construção de uma estrutura intrínseca do objeto musical. A precedência desse
formalismo musical – mesmo que relativamente incipiente – em relação ao
estruturalismo do século
XX é um indício claro de que não havia mais possibilidade
de resignação com a ausência da pergunta pela estrutura da música e por seu sentido.
Enfocaremos a seguir seu percurso.
A recorrente associação de música e linguagem, extremada na palavra cantada
– na canção –, foi em todos os tempos objeto dos mais variados estudos. Para os
Gregos, mousike não conotava mera concatenação agradável de sons musicais, mas
todo e qualquer uso poético e imaginativo da “linguagem”. Por toda a Idade Média
e a Renascença, filósofos e teóricos da música discutiram exaustivamente as relações
entre palavras e música, problemas que satisfizeram amplamente o fórum de debates
estético-musicais enquanto a música vocal manteve o status de único gênero musical
digno de consideração. Todavia, ao longo do século
XVIII, com a emergência de
inúmeros gêneros musicais instrumentais – tais como o concerto, a sonata, a suíte
para teclados e, mais adiante, o quarteto e a sinfonia –, que progressivamente alcança-
vam projeção e prestígio, as questões acerca de uma autonomia “lingüística” para a
música começavam a ser cogitadas.
Esses gêneros “abstratos” começavam a encontrar sua justificação estética em
idéias como “a música é a linguagem do coração” – Charles Batteux, 1746 –, ou as
de um Rousseau que acreditava num canto original que confundia pensamento e
sentimento numa única expressão, e que somente mais tarde teria se repartido em
fala e música “pura” (de instrumentos). Por conseguinte, a “música instrumental”
139
passava a ser considerada uma retórica particular que como toda retórica tencionava,
de algum modo, persuadir seus ouvintes.
Eduard Hanslick, um dos mais influentes críticos de música de sua época,
primeira voz a se insurgir contra esse predomínio retórico, denuncia, em seu modesto
tratado Vom Musikalisch-Schönem (1854) – o “manifesto” de uma primeira estética
musical fundada exclusivamente em princípios formais – que as teorias vigentes são
menos o resultado de convicções pessoais que a expressão de um pensamento que
se tornara comum. E faz algumas citações a título de ilustrar esse domínio: Marburg,
em 1750, diz que “o objetivo que o compositor deve antepor a seu trabalho é o (...)
de descrever os movimentos da alma, as inclinações do coração, segundo a vida”;
Engel, em 1780, afirma que “uma sinfonia deve conter a apresentação de uma paixão
que, no entanto, se reflita em múltiplos sentimentos”; Michaelis, em 1800, declara
que “música é a arte de exprimir sentimentos através da modulação dos sons. É a
linguagem das paixões”; Hand, em 1837, sustenta que “a música representa sentimen-
tos. Cada sentimento e cada estado de espírito têm em si, e igualmente na música,
seu som e seu ritmo especiais”; Thiersch, em 1846, de modo semelhante, reafirma
que “a música é a arte de exprimir ou provocar sentimentos e estados de espírito por
meio da escolha e da união de sons”. (Hanslick, 1989:26-9)
No prefácio da oitava edição (1891) de sua obra mais conhecida, dirigindo-se
aos “adversários passionais” que nele teriam vislumbrado um inimigo do sentimento,
Hanslick explica que apenas se voltara, antes de tudo e sobretudo, contra
a opinião generalizadamente propalada de que a música deva “representar
sentimentos”. É inconcebível que queiram deduzir disso a “exigência de uma
absoluta falta de sentimento na música”. A rosa exala perfume, mas seu “conteúdo”
não é “a representação do perfume” (...). Não se trata de uma discussão ociosa
opormo-nos expressamente ao conceito de “representar”, pois é dele que se derivam
os maiores erros da estética musical. “Representar” algo envolve sempre a idéia de
duas coisas distintas e separadas, em que uma só está relacionada à outra através
de um ato particular e expresso. (Ibid., 9)
A essa sua proposição fundamental negativa Hanslick contrapôs, entretanto, uma
outra positiva. Para ele a beleza da música é especificamente musical, inerente aos
sons e sem qualquer relação com pensamentos extramusicais. E se a proposição
140
inicial, negativa, preponderou, sendo duramente repelida pela crítica de sua época,
isso se deveu, entre outros fatores, ao prestígio que começavam a usufruir os novos
gêneros românticos que intensificavam, cada vez mais, as influências da estética
kantiana. Entre esses gêneros estão o poema sinfônico, que chegava a um nível de
excelência com Franz Liszt, rejeitando, mais do que nunca, a autonomia da música
– uma vez que se apresentava como um poderoso artifício musical de evocação de
imagens –, e a “música do futuro”, título de uma corrente estética que surgia como
homônima de uma obra teórica de Richard Wagner, de 1860, e que teve como princi-
pais produtos artísticos Tristão e Isolda e a famosa tetralogia operística wagneriana.
Enfim, entre a estética idealista e a fenomenológica surge um formalismo musical
renovador, mas ainda intimamente vinculado ao dualismo idealista. De acordo com
essa nova face da estética musical idealista, portanto, o entendimento da natureza
da música não tem como foco seus efeitos, suas possíveis conexões com os domínios
extramusicais. Ao contrário, o valor da música é intrínseco e os únicos efeitos
musicalmente relevantes são aqueles que resultam da percepção das qualidades
estritamente objetivas da estrutura musical – qualidades, entretanto, relativamente
despidas de uma numeração cartesiana. O projeto inicial de uma “escuta estrutural”
manteve assim a mútua exclusividade dos domínios subjetivo e objetivo.
Hanslick tentou juntar forma musical e conteúdo musical numa única expressão:
“formas que se movem no som”. Ele viu a essência da música como algo virtual, um
movimento de formas invisíveis, dadas ao ouvido em vez de à visão. Não são objetos
do mundo real; são elementos numa ilusão puramente auditiva. A esfera em que os
sons musicais “se movem” é uma esfera de pura duração, esta que não é um fenômeno
real, pois é radicalmente diferente do tempo em que decorre nossa vida prática. A
duração musical é uma imagem daquilo que poderia ser denominado “tempo experien-
ciado” – a passagem da vida que sentimos à medida em que as expectativas se
tornam agora e agora. E esses movimentos são propriamente o conteúdo da música.
Hanslick vê então num engajamento puramente emocional com a música uma atitude
ingênua, uma vez que a música não representa ou expressa sentimentos; tese que o
leva a propor uma beleza musical objetiva. Para ele, o que rege a contemplação
141
musical pura é a imaginação, mas não uma imaginação reduzida a entendimento e
sentimento; seu lugar está entre os domínios “lógico” e “patológico”. Enfim, aquilo
que o Hanslick objetivista quer enfatizar é que a natureza própria da música e os
sentimentos que ela pode provocar no ouvinte são coisas distintas. Sentimentos são
atributos das pessoas e não da música, e mesmo que esta os possuísse não significa
que desse modo representaria sentimentos: a beleza musical é ouvida, não conceptual.
Em seu The power of sound (1880), Edmund Gurney tentou preencher algumas
das lacunas deixadas pelos argumentos de Hanslick, sobretudo aquelas que dizem
respeito à hipótese de uma significação musical “puramente intrínseca”. Segundo
Gurney, os “altos” sentidos, visão e audição, diferem-se por sua capacidade de perceber
a forma, agrupando e combinando dados sensoriais. Haveria dois tipos de experiência
humana perceptiva: a “discriminação de caráter”, de natureza qualitativa diferencial, e
a “discriminação de posição”, que envolve localizações espaciais e temporais. Quando
os sons dados formam música, deixam o domínio meramente sensorial para alcançar
o domínio da beleza; e o “mundo da beleza” é o “mundo da forma”. Se a forma é a
experiência comum na visão, a audição só encontra beleza na forma musical.
Gurney declara que ao contrário das “artes representacionais” – as artes da
palavra e as artes visuais –, cujo sentido existe independente da obra em si e a impli-
ca, na música o sentido não lhe é externo, e sim constituído na forma musical. Por
isso, ele entende que o uso de metáforas visuais para descrever os elementos da
música, embora conveniente, gera consideráveis distorções, porquanto aquilo que
termos como “linha”, “cor” e “simetria” significam no contexto musical é profunda-
mente diferente do que significam visualmente. Essa dificuldade em aceitar as metáfo-
ras do domínio espacial como via para o entendimento musical foi a razão para a
resistência de Gurney ao conceito de “movimento”, idéia central da estética de Hanslick.
Sua visão objetivista da experiência o levou a cunhar o termo “movimento ideal”.
Nem as semelhanças da música com o movimento físico, nem o seu impulso para
mover concorreriam para a sua beleza. Gurney enfatiza que o movimento da música
não é literal, mas estritamente musical: por compartilhar mente e sentido a experiência
musical é “ideal”. Assim, o “movimento ideal” é uma beleza absolutamente única,
142
sem paralelos extramusicais. Segundo ele, a forma musical é a forma melódica, e a
melodia não pode ser reduzida aos seus componentes “lineares” (espaciais) ou
rítmicos (temporais); consiste de uma unidade indissolúvel de ritmo e altura sonora.
A tendência de considerar forma e movimento como coisas distintas impede, explica
Gurney, que entendamos o “movimento” em música no sentido de produtor de uma
forma: o movimento ideal é uma forma que cria um sentido de contínuas antecipação
e expectativa. O fenômeno da melodia é uma seqüência de impressões auditivas
sucessivas que de algum modo eleva-se a uma simples impressão que compreende
todas elas. Aí está o ponto mais relevante para Gurney, ao examinar as características
da forma melódica: a coerência mínima entre as notas componentes. Ele diz:
cada elemento recai definitivamente em seu lugar certo como uma parte obviamente
essencial do conjunto tal como ele é; risque ou altere uma nota aqui ou ali e o que
era um conjunto orgânico é então quebrado em fragmentos mais ou menos incoe-
rentes; ou se em algum caso excepcional ele mantém uma coerência satisfatória,
por se tornar uma outra coisa é reconhecido como outro conjunto. Se notas menos
distinguidas são escolhidas para omissão, a melodia pode realmente reter uma coe-
rência como um fantasma do seu caráter [self ] inicial; mas usualmente falharia em
dar uma noção de seu verdadeiro caráter a uma pessoa que a tenha ouvido primeiro
na forma mutilada. (Gurney, 1966:92-3)
O que é requerido para a impressão de conectividade melódica é o que Gurney
denomina convicção de seqüência: o único critério para a forma musical efetiva. O
termo significa cada parte – seja uma pequena célula, ou frase ou melodia – condu-
zindo, convincentemente, à seguinte, que, por sua vez, parece ser a continuação
natural e mesmo inevitável da antecedente. Segundo Gurney, entretanto, esse atributo
é uma questão puramente intuitiva e não pode ser demonstrada por meios racionais.
Não há, portanto, regras formuláveis para a repetição, o contraste, o equilíbrio ou
qualquer outra propriedade que garanta a presença de uma unidade orgânica na
música.
Outra importante questão na teoria de Gurney diz respeito à relação de expressão
e impressão musicais. O termo “expressão” é empregado, geralmente, com dois
sentidos: para dizer que a música é expressiva – isto é, que ela tem expressividade –
ou para dizer que a música (um compositor ou um intérprete) expressa algo. Entre-
143
tanto, para Gurney o segundo caso não é uma questão de “expressão”, propriamente,
já que expressão envolve uma relação transitiva entre duas coisas separadas. Uma
coisa não expressa, portanto, seus próprios atributos; a coisa os tem. A expressão
musical tem lugar quando “um sentimento particular em nós mesmos é identificado
com um caráter particular em um trecho particular da música” (ibid., 313). Se os
nossos sentimentos são atributos exclusivamente humanos, a expressão musical
provoca alguma relação entre a música – que não “possui” sentimentos – e os senti-
mentos humanos. A música pode, pois, expressar algo que está fora dela, mas não
suas próprias qualidades. No exemplo de Gurney, a música pode possuir a qualidade
de “simplicidade”, porém nem a expressa, nem isso tem a ver com um sentimento
de simplicidade do ouvinte.
No outro sentido do termo “expressão”, a música é expressiva se primeiramente
for impressiva. Segundo Gurney, o belo musical tem sempre como traço característico
a impressividade, não a expressividade. Se Hanslick negou à música um “conteúdo
emocional” específico, Gurney aceitou que a música possua uma “expressão emo-
cional” razoavelmente definida – conexões entre partes da forma musical e estados
emocionais extramusicais –, mas isso não teria relação com a beleza musical. Sua
preocupação é, portanto, negar que a beleza musical – sua impressividade – seja a
mesma coisa ou dependa da expressão da emoção. Se Gurney já era tributário de
Kant quando descreveu as “artes da apresentação” – inspirado na descrição kantiana
da imaginação como “faculdade da apresentação” –, está novamente muito próximo
da afirmação kantiana de que a beleza incorpora regras que não podem ser articuladas.
Além disso, a “beleza” para Gurney é, como também diz a Crítica do juízo, uma
questão de prazer menos com a sensação do que com a forma.
Uma teoria formalista do sentido musical que se seguisse aos estudos idealistas
de Hanslick e Gurney teria, inevitavelmente, que ultrapassar o quase-conceito do
belo kantiano e enfrentar o problema da inconsistência do conceito de emoção.
Seguindo Hanslick, Gurney rejeitou uma expressão para a música, uma vez que ela
não pode definir representação. Ambos entenderam também que sentimentos são
apenas efeitos secundários da música e não podem ser confundidos com o que a
144
música é, propriamente. Portanto, reconheceram que a beleza da música, seu
conteúdo, era a sua forma – que não é mera estrutura abstrata, mas uma coisa em
movimento, talvez um simulacro de vida. Entretanto, o desejo de entender a organici-
dade musical e de alcançar a “essência” que repousa na força de unidade da forma
os levou – sobretudo Gurney – a um impasse no seu compromisso com a estética
idealista. A questão é saber como a forma musical dá origem e orienta os sentidos
distintamente musicais. E isso envolve, inelutavelmente, uma faixa de sentimentos
genuinamente musicais, de certo modo apontada por Gurney que, no entanto, não a
pôde investigar.
Escutando uma sintaxe
Em seu Barulho, poema publicado em 1987, Ferreira Gullar diz da imaterialidade
dos poemas: “Todo poema é feito de ar (...)é sem matéria palpável (...)”. Sendo
assim, somente se nos oferecem no ato da vocalização, quando o som de uma voz
nos revela seu barulho: “(...)tudo o que há nele é barulho quando rumoreja ao sopro
da leitura.” (Gullar, 2001: 373). Estamos, portanto, diante da experiência da conversão
de som em palavras, promovida pela gramática de uma língua, que mobiliza o som
e o transforma em vocábulos com papéis específicos. Ao ouvirmos tais sons como
palavras, ouvimos um “campo de força” provido pela gramática: temos uma experiên-
cia de sentido. A ordem da música é uma ordem “percebida”. Quando ouvimos
música, ouvimos suas implicações musicais. Mas o ouvinte, comumente, conhecendo
ou não a teoria da organização musical (uma quase-gramática), tem dificuldades de
explicar em palavras o que acontece quando os sons de uma peça musical, como
num campo de força, soam-lhes coerentes e lógicos. Haveria uma teoria para esse
“campo de força”, determinante de suas relações formais, um modo de comunicação
tal como o provido pelos “barulhos” que a voz rumoreja ao dizer os poemas?
Qualquer pessoa pode identificar erros na performance musical mesmo quando
está ouvindo uma música pela primeira vez. Todavia, desvios como “notas erradas”,
145
por exemplo, parecem mais flagrantes em estilos musicais mais concisos, habituados
ou estereotipados – tais como o estilo clássico para música de teclados, as árias
operísticas românticas, o choro de Pixinguinha. Aquilo que nos torna capazes de
detectar um erro de composição ou de performance não é algo da ordem da sono-
ridade, isto é, não é um efeito qualquer provocado por uma determinada combinação
mais ou menos estranha de sons. O que torna possível o juízo tão preciso de que
algum evento musical em meio a tantos outros é um fenômeno incorreto é a sintaxe,
um conceito lingüístico metaforizado.
Se o recorrente cotejo das propriedades da linguagem e da música tem escasseado
nas últimas décadas do século
XX, o emprego de “sintaxe” como termo técnico musical
tem progressivamente aumentado, desde o Musikalische Syntaxis (1877), de Hugo
Riemann – uma espécie de atualização dos textos de Rameau – até os tratados mais
recentes baseados na gramática gerativa de Chomsky. Em grande parte o termo
mantém o sentido geral de conjunto de relações entre elementos na cadeia sonora –
notas, acordes, células melódicas, frases –, ou seja, retém o sentido original grego
de “ordem”, “arranjo”. Recentemente, porém, seu sentido vem sendo ampliado para
dizer daquilo que rege a coerência das conexões a cada articulação da forma musical
– como Gurney já desejara –, deixando para o termo mais tradicional “estrutura”
apenas a referência a organizações musicais mais globais.
A distinção entre sintaxe e semântica nem sempre é clara; uma teoria gerativa
da sintaxe, por exemplo, certamente depende, em algum nível, de uma teoria da
estrutura semântica. Podemos distinguir, superficialmente, intuições sintáticas de
intuições semânticas e é nesse nível que se deu tradicionalmente a comparação
entre linguagem e música. Intuições sintáticas nos contam se uma determinada frase
é uma frase possível de uma determinada língua; intuições semânticas nos contam
se uma frase tem sentido e qual é esse sentido. Assim sendo, uma teoria da sintaxe
deve explicar nossas intuições sintáticas, demonstrando como formulamos frases
em uma determinada língua, por regras de transformação de um repertório de
estruturas – os modos de agrupação de palavras numa frase e os modos de escuta
das frases. Se nós ouvimos uma frase como “errada”, pode ser tanto porque não há
146
um sentido evidente, mesmo estando correta sintaticamente, quanto porque ela viola
uma regra de sintaxe, mesmo que lhe atribuamos um sentido.
Nossas intuições do que em música está “certo” ou “errado” operam em duas
dimensões que descreveremos como sintática e semântica; no primeiro caso, referimo-
nos, especialmente, a estilo. Leonard Meyer propôs adotar-se uma definição geral
para estilo: “estilo é uma reprodução de padrões, se no comportamento humano ou
nos artefatos produzidos por esse comportamento, que resulta de uma série de escolhas
feitas no âmbito de algum conjunto de coerções” (1989:3). Ele nos convida, entre-
tanto, a examinar o emprego da palavra “escolha”, que tende a ser entendida como
propósito deliberado e consciente. Meyer adverte que somente uma pequena fração
das escolhas que fazemos é desse tipo. A maior parte do comportamento humano
consiste de uma sucessão ininterrupta de ações habituais e virtualmente automáticas
– não haveria tempo nem energia psíquica para considerarmos cada alternativa em
cada ação que executamos. Entretanto, mesmo quando o nosso comportamento não
é deliberado, nossas ações são, em geral, consideradas um resultado de escolha.
Meyer atentou para o fato de que se os compositores pós-modernos produzem
menos obras que os compositores do passado moderno, isso se deve aos estilos ora
empregados, que exigem desses compositores um volume significativamente maior
de decisões deliberadas dentre as possíveis alternativas que se apresentam em cada
dimensão da forma. A razão da enorme fluência de um compositor como Mozart,
por exemplo, está justamente na reduzida parcela de escolhas que lhe exigiam decisões
mais puramente deliberadas, tal a coerção imposta pelo estilo de sua época, um
estilo radicalmente coerente, estável e compartilhado por todos – o chamado estilo
Clássico.
O nosso comportamento está sujeito a coerções de ordem física (como a
gravidade), biológica (com a necessidade de repouso), psicológica (como o impulso
para comunicar) e, sobretudo, cultural. As coerções de um estilo são aprendidas por
todos, compositores, intérpretes e ouvintes – mesmo coerções aparentemente inatas,
mas que são, como vimos no capítulo 2, produtos da operação dos mecanismos
147
cognitivos denominados metáfora conceptual. E este aprendizado é, simplesmente,
o resultado da repetição de experiências afins de execução e escuta musicais, mais
do que de qualquer tipo de formação teórica em música: trata-se de um conhecimento
“tácito” e de uma questão de hábitos:
Mesmo quando um compositor inventa uma nova regra ou, mais comumente,
descobre uma nova estratégia para efetuar alguma regra existente, a invenção ou
descoberta pode ser em grande parte tácita. Ele descobre uma relação que funciona,
mas pode não ser capaz de explicar o porquê – como ela se relaciona com outros
traços e outras coerções do estilo. (Ibid., 10)
Há um tipo de hierarquia entre as coerções que governam um estilo. Em relação
a isso gostaríamos ainda de fazer aqui alguns comentários acerca do que Meyer
considerou as três classes de coerções envolvidas nessa hierarquia: leis, regras e
estratégias. Para ele, leis são coerções transculturais e universais, e podem ser físicas
ou fisiológicas, ou seja, trata-se dos princípios que governam a percepção e a cognição
dos padrões musicais. Estamos aqui diante das bases experienciais que conceitua-
lizamos metaforicamente. Alguns exemplos são: (a)proximidade tende a produzir
conexão; (b)processos regulares implicam continuação e destinação; (c)retorno a
um padrão já apresentado tende a produzir limite e completação; (d)padrões mais
regulares são mais assimiláveis; (e)limitações da memória exigem considerável grau
de repetição.
Duas categorias de parâmetros musicais, mais e menos envolvidas nesses
processos cognitivos, são normalmente denominadas: parâmetros primários e secun-
dários. Para que exista uma sintaxe, eventos sucessivos devem manter uma relação
recíproca que estabeleça algum critério de mobilidade e fechamento. Entretanto,
esse critério só pode ser estabelecido se os elementos que constituem o parâmetro
podem ser isolados, definidos e qualificados segundo similaridades, diferenças e
proporcionalidades. Dada a natureza das capacidades cognitivas do nosso sistema
nervoso, alguns dos recursos materiais do meio sonoro-musical podem ser
prontamente desuniformizados. Esse é o caso dos parâmetros musicais que resultam
das organizações de alturas e durações, tais como movimentos melódicos, ritmo e
harmonia. Assim, quando as relações internas de um parâmetro são governadas por
148
coerções sintáticas, trata-se de um parâmetro primário. Parâmetros secundários,
portanto, são aqueles cujos meios materiais não podem ser relativamente segmentados
em relações proporcionais. Estamos falando dos domínios da agógica (as variações
contínuas de tempo, de andamento), da dinâmica (as variações contínuas da intensi-
dade sonora), do timbre (a composição harmônica do som, sua “sonoridade”) e da
densidade (o parâmetro quantitativo da textura musical), que não podem, devido à
impossibilidade de segmentação proporcional, estabelecer mais precisamente limites
formais e estados conclusivos. Enfim, é a presença de sintaxe, que distingue parâme-
tros primários e secundários.
Segundo Meyer, regras não são universais, formam uma classe de coerções
sintáticas intraculturais e mutáveis, e constituem o nível mais alto de coerções estilís-
ticas. As regras especificam os meios materiais permitidos em um estilo, tais como
o conjunto de alturas possíveis, o repertório de configurações duracionais, a faixa
dinâmica ou os timbres aceitáveis. Estratégias são o que Meyer entende por escolhas
composicionais dentre as possibilidades estabelecidas pelas regras do estilo. Sendo
assim, podemos dizer que para um número finito de regras há sempre inumeráveis
estratégias ainda por serem empregadas: “as relações entre regras e estratégias é
enormemente complexa, porque envolve não apenas as interações entre as coerções
que governam os vários parâmetros musicais de um estilo, mas também a influência
de parâmetros externos à música” (ibid., 20). A distinção entre regras e estratégias
nos ajuda também a definir o conceito de originalidade e, daí, o de criatividade. O
primeiro tipo de originalidade envolve, segundo Meyer, a invenção de novas regras,
e o segundo tipo, no nível da estratégia, é o discernimento de novas estratégias de
efetuação das regras.
Em música, de algum modo, sintaxe e estilo confundem-se, uma vez que só
temos acesso a um “repertório de estruturas” através do modo como ele nos é apresen-
tado. Quando um estilo se torna excessivamente estereotipado, o entendemos em
termos de uma sintaxe “pura”, prévia a obra. Contudo, a música de arte pós-moderna
efetivou o predomínio dos estilos sobre as formas sintáticas cristalizadas, e isso nos
põe na condição de ouvintes que não podem mais usar invariavelmente – como
149
outrora – uma sintaxe aprendida para entender música. Não dispomos ainda de uma
teoria mais consistente da forma e do sentido musicais que torne possível a nomeação
precisa do que ocorre quando os sons musicais nos parecem inteligíveis, e é possível
que não haja mesmo uma “gramática” geradora de um campo de força musical que
reja nossa conversão de sons em música. Contudo, poderíamos alegar também que
não é preciso conhecer a gramática de uma língua para identificar um poema como
um produto inteligível dessa língua. Talvez, como Noam Chomsky propôs, tenhamos
um conhecimento tácito da língua, e nesse sentido podemos dizer também que temos
um conhecimento tácito de música, expresso não em teorias, mas em atos de
reconhecimento – de seres humanos se comportando coerentemente.
Podemos considerar, todavia, algumas intuições musicais: as agrupações de
elementos musicais, tanto horizontais (como frases e melodias) quanto verticais
(como acordes ou blocos mais complexos); as intuições métricas, uma espécie de
contexto rítmico no qual as agrupações ocorrem; as estruturas que constituem elabo-
rações, complementações e continuações melódicas; as tensões em uma seqüência,
que indicam tendências e completações; e a relação parte-todo. Se nós somos capazes
de fazer delas sentido, como fazemos das nossas intuições gramaticais, então devemos
requerer uma teoria que explique nossas intuições musicais: uma teoria para o
entendimento musical que demonstraria como entendemos e o que há para ser
entendido. Isso nos levaria na direção de uma teoria cognitiva da música, com
estruturas que funcionam como modelo das operações mentais que realizamos na
escuta musical, quando organizamos uma peça musical em uma gestalt auditiva. A
pesquisa por uma teoria gerativa resultou, por exemplo, nos trabalhos seminais de
Fred Lerdahl e Ray Jackendoff – A generative theory of tonal music (1983) – e de
John Sloboda – The musical mind (1985).
Há notáveis paralelos entre a gramática gerativa transformacional dos trabalhos
de Chomsky e a teoria da estrutura musical de Heinrich Schenker. Para este, haveria
um único tipo de estrutura fundamental comum a todas as obras musicais “corretas”,
que de certa forma nos revela algo sobre a natureza da nossa intuição musical.
Como não há indícios de que Chomsky conheceu o trabalho que Schenker desenvol-
150
veu algumas décadas antes de sua teoria gerativa descrever a estrutura da linguagem,
parece que essas teorias sintáticas surgiram de maneira similar, mas independentes,
e exerceram forte influência nas pesquisas mais recentes sobre sintaxe musical.
Ao adotarem uma posição análoga à tomada por Chomsky em seus estudos da
linguagem, Lerdahl e Jackendoff tentaram caracterizar o que um ser humano sabe
quando sabe como entender a música que ouve. Eles distinguiram, em seu célebre
trabalho, dois tipos de regra gramatical: as que especificam quando um dado complexo
é “bem formado”, e aquelas que especificam as estruturas musicais “preferidas”, ou
seja, as estruturas que o ouvinte prefere ouvir e que por isso se esforça para ouvir na
“superfície” da música. A teoria da Gestalt está, portanto, na base desse sistema de
regras (sobretudo, os estudos de Wertheimer, Köhler e Koffka, das primeiras décadas
do século
XX). A música, entretanto, não é densa como a pintura, por exemplo, mas
desconjunta como a linguagem; a boa Gestalt em música é uma ordem entre compo-
nentes disjuntos, mais do que uma forma percebida em um campo contínuo. Aí está
o fato fundamental que levou Lerdahl e Jackendoff a pensarem que a música tem
uma sintaxe. Tomaram, contudo, especificamente o repertório de música harmônica
da tradição clássico-romântica ocidental – cujo fundamento sintático é o sistema de
alturas que começou a ser organizado nos tratados de Rameau – e propuseram quatro
estruturas paralelas e interagentes em música tonal: a agrupação, a métrica, a
organização harmônica de acordo com a importância estrutural das alturas
componentes e a ordem de tensão e relaxamento (o movimento “respiratório” da
música).
A partir disso, a forma analítica proposta por Lerdahl e Jackendoff tem as
seguintes camadas: (a)a estrutura de agrupação, que segmenta a peça em células,
incisos, frases e seções, derivados hierarquicamente como em um diagrama de árvore;
(b)a estrutura métrica, que estabelece uma alternação regular (cíclica) de pulsos
rítmicos mais fortes e mais fracos, em vários níveis, em uma estrutura de agrupação;
(c)a redução de período de tempo, que designa às alturas uma hierarquia de impor-
tância estrutural; e (4)a redução prolongacional, que deriva a hierarquia de tensão e
relaxamento dos elementos melódicos e harmônicos de uma estrutura subjacente,
151
como na teoria schenkeriana. Cada estrutura sofre forte influência de regras de
preferência, que nos leva, por exemplo, a escolher como evento mais importante
aquele que dá mais estabilidade à ordem métrica. Mas devemos atentar para o fato
de que mesmo coincidindo com algumas de nossas intuições musicais, essa teoria
não deve ser entendida como uma sintaxe, propriamente. Antes de tudo, essas regras
não estão determinando a superfície musical e nem poderiam; e, além disso, as
regras de preferência podem ser transgredidas, de um modo como as regras da boa
formação não o são.
Lerdahl e Jackendoff reconhecem que as regras de preferência não têm paralelo
na linguagem verbal, pois enquanto a teoria lingüística é altamente voltada para a
gramaticalidade, “a teoria da música está muito mais preocupada com a preferência
em um número considerável de estruturas bem-formadas que competem. A analogia
mais próxima da gramaticalidade lingüística em música é a aderência às regras de
boa formação” (1996:308). Isto é, as regras lingüísticas não generalizam meramente
a partir do comportamento dos falantes, elas também são obedecidas por esses
falantes. Na linguagem, as regras funcionam como regras de um jogo cujo objetivo
é a comunicação. Porém, Lerdahl e Jackendoff entendem que uma teoria sintática
como a que propõem é parte da “ciência cognitiva”, porque nos conta como a música
é organizada na mente do ouvinte. Segundo eles, ao demonstrarem que cada obra
pode ser derivada de certas estruturas musicais básicas – a aplicação iterativa de um
conjunto finito de regras –, estão demonstrando o mecanismo cognitivo que empre-
gamos na experiência da música quando acusamos um evento “errado” numa música
que ouvimos pela primeira vez. Enfim, os autores dessa primeira teoria gerativa da
música admitem que a notação chomskyana de árvore que utilizam é infiel, porque
as árvores sintáticas lingüísticas relatam categorias gramaticais que estão, decidida-
mente, ausentes em música – na experiência da música, os eventos individuais é que
são hierarquicamente relacionados. Entretanto, eles sustentam que a estrutura de
superfície de qualquer obra musical tonal coerente pode ser governada por regras e
que isso ajuda a entendermos a natureza das nossas representações mentais da música:
uma teoria inscrita no programa de pesquisa das ciências cognitivas.
152
Em virtude de a música ser um produto humano, podemos legitimamente supor
que a estrutura da música deve nos contar algo sobre a natureza da mente humana
que a produz. Todavia, não é possível tratar uma sintaxe musical como o processo
psicológico exato que alguém usa para gerar música, visto que, primeiramente, não
há uma tal coisa que podemos considerar a única gramática para um dado conjunto
de eventos musicais. Regras diferentes, configuradas de diferentes modos podem
produzir corpos semelhantes de seqüências musicais. Portanto, a descoberta de uma
determinada sintaxe viável para um texto musical observado não garante que esta
sintaxe é a que melhor descreverá o processo psicológico da geração da obra em
questão. Além disso, como Sloboda observou, os indivíduos freqüentemente violam
as regras, as convenções formais que pareciam antes considerar. A geração psicológica
das linguagens, ao contrário dos esquemas fechados gramaticais, é um processo
mais amplo. A intenção de comunicar uma dada proposição é a motivação psicológica
oculta na maior parte das expressões. Sendo assim, se o emissor “tiver boas razões
para supor que será entendido mesmo sem usar uma gramática correta, ele poderá
desconsiderar as convenções gramaticais. Em música, a intenção de transgredir as
expectativas do ouvinte pode levar a uma comparável liberdade com a gramática”
(Sloboda, 1999:32).
A discussão em torno de uma sintaxe para a música nos leva a perguntar sobre o
que em música nos faz buscar uma sintaxe. A virtualidade de uma linguagem verbal –
cuja gramática se mantém estável por um longo período de tempo – implica a possibi-
lidade de construção de todas as expressões necessárias, aceitáveis e significativas,
assim entendidas pela maioria de seus praticantes – que, em geral, dominam uma
única gramática referencial. Ao invés, ouvintes de música podem estar familiarizados
com uma notável diversidade de formas e estilos musicais, mesmo que mais habitua-
dos com uma ou outra orientação. Formas e estilos musicais mudam rapidamente
sua inserção e seu papel na cultura musical, a partir do que são mais ou menos
aceitáveis e significativos. De um modo ou de outro, esse contraste se deve à específica
função comunicativa da linguagem verbal, que favorece sua unidade e estabilidade.
Não há dúvida, como salienta Sloboda, que
153
a sintaxe é um veículo para a comunicação de conhecimento pelo mundo, e dado
que o mundo permanece o mesmo tipo de lugar e o ser humano ocupante permanece
o mesmo, ao que parece há pouco a ganhar e muito a perder com a diversidade e a
rápida evolução da sintaxe. A música de arte, ao contrario, não tem essa função
assim claramente definida. A sintaxe se torna, em si, um objeto da consciência
estética, e a imposição por novidades convida à diversidade e à mudança. (Ibid.,
38).
Ao converter a própria sintaxe, isto é, o processo de construção do texto musical,
em objeto de apreciação estética, o sujeito instaura uma escuta especial. Se na prática
comunicativa da linguagem verbal – ou seja, na escuta lingüística – os elementos
materiais, como os sons, são descartados pelo receptor tão logo cumprem a função
de suporte da mensagem, na escuta musical estabelece-se, antes de tudo, uma ordem
icônica. No processo perceptivo da música, o próprio som assume, inicialmente, o
estatuto de “mensagem”, assim como as formas sonoras advindas. Isso traz, de
certo modo, para o âmbito da experiência da música artifícios de orientação, coerência
e logicidade discursivas análogos aos de uma sintaxe lingüística. Mas na experiência
da música geramos, sobretudo, imagens mentais incomunicáveis e altamente fugazes,
sentimentos, memórias e expectativas, tudo isso muitas vezes acompanhado de ação
motora corporal mais ou menos voluntária. O problema central aqui é como penetrar
no passo a passo do envolvimento mental com a música.
A organização que ouvimos em música pode ser semelhante a uma sintaxe, mas
ela não é verdadeiramente sintática. Mesmo os estilos mais cristalizados têm uma
sintaxe metafórica. As regras “sintáticas” em música não são, exatamente, prescritivas;
podemos afirmar que elas são, de fato, generalizações e categorizações de procedi-
mentos habituais. Devemos também lembrar que na prática lingüística falantes e
ouvintes compartilham as mesmas competências e usam as mesmas regras para
expressar e compreender; isso não ocorre entre compositores, intérpretes e ouvintes.
Além disso, ao contrário da linguagem, quanto mais determinada por regras aprendi-
das e mais previsível, menos interessante é a música. Todavia, a música é inquestio-
navelmente significativa e sua “sintaxe” é, de algum modo, expressiva, constituindo
uma parcela essencial do sentido musical.
154
A música é estruturada de modo que parte dos seus aspectos sonoros mantém
suas configurações numa faixa de similaridade por algum tempo, até que em um
dado momento alguns desses parâmetros mudam mais sensivelmente. Essas mudanças
podem ter abrangência maior ou menor, dependendo do que é estabelecido no decorrer
da própria obra como o “normal” do estilo vigente. Esses pontos de mudança comu-
mente multiparamétrica são limites formais, constituídos basicamente em dois níveis
de experiência musical relacionados aos processos da memória de curto-prazo e da
memória de longo-prazo. É necessário, entretanto, observar que como qualquer outro
tipo de limite o seccionamento formal da música apresenta graus diferentes de
precisão. Ou seja, como os limites entre seções e subseções das peças correspondem
a mudanças, o que estabelece a coerência interna dos segmentos é a sua relativa
constância paramétrica. Por isso, enquanto a configuração de uma seção ou segmento
particular de uma música se mantém, segundo o estilo, num relativo grau de
constância, o limite é adiado.
Se entendermos que a sintaxe lingüística tem como funções básicas o controle
da carga informativa e a mediação das relações expressas, a analogia com uma
sintaxe da música emerge mais facilmente, uma vez que o propósito principal de
uma organização musical é controlar e ordenar o fluxo de eventos sonoros. Os eventos
sonoros individuais podem ser organizados em hierarquias, e as organizações hierár-
quicas (sistemas) são modelos musicais convincentes, porque provêem um mecanis-
mo pronto para controlar o fluxo de eventos, contribuindo para a constituição de
uma sintaxe. No presente trabalho, então, definiremos sintaxe como conjuntos de
relações entre padrões identificáveis. Essa é uma definição bastante ampla e inclui
tanto a tradição de regras para o uso de padrões funcionais em estilos musicais
particulares quanto as relações entre padrões desenvolvidos unicamente nas obras
individuais – a essência estilística do repertório artístico musical da pós-modernidade.
Os parâmetros da textura musical, tais como a altura (e suas extensões harmônicas),
o ritmo e os variados elementos de densidade, são aspectos por meio dos quais os
padrões são identificados e relacionados entre si. A nossa habilidade para identificar
um padrão como similar a outro, ainda que ocorram em momentos distintos é a
155
essência da sintaxe musical. Como observa Bob Snyder, é, portanto, com catego-
rização e memória que criamos uma sintaxe, e isso é a condição de muitas formas
de comunicação.
A memória que forma
Para Henri Bergson, a memória sustém o tempo, é-lhe essencial. O tempo musical
não é, portanto, dado a priori: realiza-se na experiência da música. Enquanto
escutamos a música, ela dura, mas quando cessa, não deixa de existir como objeto
musical em nossa consciência. Há apenas uma transferência de foco, que antes
parecia exterior – quando da “duração” da música fisicamente – para um processo
puramente mental. Todavia, o que muitas vezes desconsideramos é que esse processo
não se dá somente quando clareado pelo cessamento da estimulação dos eventos
sonoros. Isso ocorre por todo o decorrer da experiência da música, é o que possibilita
o reconhecimento da forma e da sintaxe musical, a lingüisticidade da música. E
tudo promovido pela ação da memória que media a nossa interação com a obra. Por
meio do processo de semantização do que está presente na memória – e que, portanto,
não é passado –, aquilo que está soando adquire sentido por contraposição ao oculto
na memória, e o produto dessa confrontação presente antecipa, por uma espécie de
lógica do sentido, o que virá e que atua, também, presentemente. Sendo assim, o
que se denomina forma musical é um processo de síntese contínua, promovido pela
consciência e que se dá como experiência da espacialização do tempo.
Se há forma, há partes. É o entendimento que as articula, isto é, age no sentido
de efetuar as junções entre as partes de um todo, a fim de que se estabeleçam tempo
e forma, numa continuidade ininterrupta: a durée bersoniana. A questão da presença
do passado ocupou um lugar central nas reflexões de Bergson, que não discutiu,
propriamente, a nossa expectativa criadora, a antecipação de um futuro no presente.
Em sua crítica à filosofia da duração de Bergson, Gaston Bachelard afirma que a
descontinuidade e a lacuna é que dão sentido à ação da consciência. Não seriam,
156
portanto, o fluxo e a continuidade dados imediatos da consciência, mas uma constru-
ção, uma ordenação que não se dá, precisamente, “no tempo”, mas, ao invés, gera
um tempo construído internamente. A sucessão temporal passa a ser uma construção
intencionada, promovida pela consciência; um produto de um desejo de ordenação.
Para Bachelard, a experiência de nossa duração passada fundamenta-se num eixo
racional, sem o qual “nossa duração se desmancharia”. A memória, assim, não revela
a ordem temporal, que tem de se basear em outros princípios de ordenação: a lembrança
de nosso passado é uma coisa, a lembrança de nossa duração, outra. Ou seja, mais
importante do que a duração dos eventos é a sua ordenação. E toda intuição do futuro
“é uma promessa de ações que não leva em conta a duração dessas ações; essa intuição
se limita a imaginar a sucessão e a ordem dos instantes ativos” (Bachelard, 1994:39).
A discussão mais importante que podemos destacar do diálogo entre Bergson e
Bachelard, no que tange a experiência musical, diz respeito, num primeiro momento,
à sintaxe. Para Bergson, percebemos uma melodia como indivisível, como um
presente persistente. Bachelard, ao contrário, nos diz que a música não nos dá essa
impressão de plenitude e de continuidade: sua ritmicidade generalizada dá a sua
forma. Se o tempo é, sobretudo, um produto da nossa vontade de ordenação,
Bachelard conclui que a duração é, estritamente falando, uma metáfora. Para ele,
nenhuma experiência temporal é verdadeiramente pura:
Basta examinar de perto qualquer das imagens da continuidade, para ver sempre
as hachuras do descontínuo. (...)No plano musical, por exemplo, será necessário
mostrar que aquilo que faz a continuidade é sempre uma dialética obscura que
evoca sentimentos a propósito de impressões, recordações a propósito de sensações.
Em outras palavras, será necessário provar que o contínuo da melodia, que o
contínuo da poesia, são reconstruções sentimentais que se aglomeram para além
da sensação real (...). Assinalemos antes de mais nada esse refluxo da impressão
que vai do presente ao passado e que vem trazer ao ritmo, à melodia, à poesia, a
continuidade e a vida que lhe faltavam em sua primeira produção. (...)A continuidade
do tecido sonoro é tão frágil que um corte num local determina por vezes uma
ruptura em outro local. Dito de outra forma, a ligação gradual não é suficiente;
essa ligação parcial está condicionada por uma rede ampla de solidariedades, por
uma continuidade de conjunto. Na verdade é preciso aprender a continuidade de
uma melodia. Não a ouvimos num primeiro momento; é muitas vezes o
reconhecimento de um tema que traz a consciência de uma continuidade melódica.
Aqui como alhures o reconhecimento se dá antes do conhecimento. (...)E é assim
que a poesia, ou mais genericamente a melodia, dura porque retoma. A melodia
joga dialeticamente consigo mesma; ela se perde para se reencontrar; sabe que se
reabsorverá em seu tema inicial. (Ibid., 105-6)
157
Assim sendo, a repetição não pode ser entendida somente como uma presença de
ocorrências similares do passado. Desde Bachelard, a repetição adquire o sentido
mais amplo de retomada e reconstrução.
Citamos aqui a iteração do evento em ostinato, da
FAIXA 2, a partir da qual
estabelecemos, já na segunda ocorrência do evento, uma organização. Mesmo que o
evento seja virtualmente o mesmo evento a cada nova ocorrência, quando o
experimentamos pela segunda vez o confrontamos com a memória presente que
dele temos. Assim, o conteúdo do evento não é mais o mesmo, porque nós o
articulamos com a sua memória e disso fazemos um novo sentido – antes de tudo,
estamos produzindo um sentido formal.
Uma situação mais dramática envolve nossos recursos de memória de longo-
prazo para produzirmos o sentido da forma musical. A
FAIXA 1 apresenta uma obra
dividida em cinco seções principais, secionadas por seus artifícios de delimitação
mais evidentes. Entretanto, o efeito semântico da nossa memória pode criar uma
sexta seção. Trata-se de uma seção imediatamente anterior à última, que só emerge
como seção autônoma graças ao nosso entendimento da sua similaridade à segunda
seção. A memória não apresenta todas as características dos eventos e dos
agrupamentos, mas quando as características apresentadas são suficientes para
inferirmos a repetição, formamos. A
FAIXA 6 contém dois pequenos extratos: a
passagem da primeira para a segunda seção da obra e a passagem da quarta seção
para a seção que criamos no nível formal da memória – nível este que será melhor
detalhado mais adiante.
Aceitamos o ponto de vista de Gerald Edelman, segundo o qual o que chamamos
de consciência não existiria sem memória. Contudo, o termo “memória” tem sido
empregado em contextos muito diversos chegando até mesmo a ter sua significação
operacional ameaçada. Na perspectiva neurofisiológica atual, a memória é um atributo
dos neurônios capaz de alterar o poder da atividade conectiva (sináptica) que estes
mantêm entre si, aumentando o número de conexões e desdobrando-as no tempo.
158
Isso porque nessas conexões ocorrem, como discutimos no terceiro capítulo, mudan-
ças químicas que provêem uma sobrevida à atividade em si. Assim sendo, diz-se
que a memória pode ser entendida como uma característica virtual de toda célula
nervosa.
Todavia, no presente estudo não entendemos memória como simples armazena-
mento reprodutivo, pois o cérebro não funciona como um computador. Segundo a
teoria de Edelman (uma teoria da “categorização perceptiva”), em nosso sistema
nervoso memória é a intensificação de uma habilidade processual para “categorizar”,
que emerge de mudanças sinápticas dinâmicas e contínuas. E a categorização de
objetos e eventos é relativa, dependendo de sinais, do contexto e de proeminências.
Categorias não são, portanto, algo imutável; podem ser alteradas pelas contingências
do estado do indivíduo. O termo é aqui empregado como coleção de representações
perceptivas ou conceitos que parecem de alguma forma relacionados. Algumas cate-
gorias, sobretudo perceptivas, são inatas, mas a maior parte dessas representações
são aprendidas.
Os animais, em geral, possuem uma extraordinária capacidade para perceber
categorizando, para aprender generalizando: após conhecerem alguns exemplares
de uma mesma categoria, podem reconhecer um grande número de exemplares
àqueles relacionados, mesmo que novos. Quando mudanças de eficácia sináptica
ocorrem no sistema nervoso, tais como acoplagens de classificações distintas,
possibilitam tanto o aperfeiçoamento quanto alterações de uma dada categoria
perceptiva – Edelman se refere a tal processo como “recategorização”. Disso resulta
uma forma de memória não-reprodutiva que depende da dinâmica das redes
associativas: “a evocação de produtos que eram originalmente resultantes de uma
categorização pode ser facilitada pela ação dessa memória dinâmica” (Edelman,
1989: 110). As associações daí advindas – tanto quanto a dependência contextual
desse tipo de memória – agilizam o processo de recordação e possibilitam uma
maior variedade de respostas.
159
A memória assim definida é, pois, associativa, inexata e capaz de uma notável
generalização – tudo o que o armazenamento replicativo de um computador não é.
Em geral, aceita-se a idéia de que o cérebro, ao menos em suas funções cognitivas,
está fundamentalmente preocupado com representações e que aquilo que é mantido
na memória é também algum tipo de representação. Assim sendo, a memória pode
ser considerada depositária de mudanças que podem, se devidamente acessadas,
recapturar uma representação e agir sobre ela. Desse modo, atos aprendidos são
conseqüências de representações que armazenam procedimentos definidos ou
códigos.
Para Edelman, a analogia que se faz da memória representacional com transações
informático-computacionais apresenta mais problemas que soluções. Quando usamos
computadores, as operações semânticas ocorrentes no cérebro humano – e que não
ocorrem no computador – são necessárias para fazer com que as cadeias sintáticas
codificadas, que são armazenadas fisicamente no computador, façam sentido para
nós. A coerência do código, ou seja, a ausência de ambigüidade, deve ser preservada
e a capacidade de memória do sistema é expressa em termos de limites de armazena-
mento. Todavia, os sinais que recebemos do mundo ao passarem pela vias sensoriais
não representam, geralmente, dados codificados. Ao invés, são potencialmente
ambíguos, contingenciais e circunstanciais, e mesmo podendo combiná-los de incon-
táveis maneiras, os categorizamos e associamos essa categorização, de algum modo,
com experiências prévias dos mesmos tipos.
Representação implica atividade simbólica, um tipo de atividade que se encontra
no centro de nossas experiências lingüísticas semânticas e sintáticas. Por isso, é
fácil pensar que se o cérebro pode repetir uma performance, então representa. No
entanto, em seu A universe of consciousness, Edelman e Tononi advertem que não
há mensagem pré-codificada no sinal e que por essa razão – entre outras – a memória
no cérebro não pode ser representacional. É, de outro modo, um reflexo de como o
cérebro mudou sua dinâmica de modo a permitir a repetição de uma performance.
Assim, a memória não-representacional resulta do jogo seletivo que ocorre entre as
atividades neuronais, os vários sinais recebidos do mundo, o corpo e o cérebro em
160
si. As alterações sinápticas que se seguem afetam as futuras respostas do cérebro
particular para sinais semelhantes ou distintos. Essas mudanças, enfim, “refletem-
se na habilidade para repetir um ato mental depois de algum tempo, apesar de uma
mudança de contexto, por exemplo, ao ‘recuperar’ uma imagem” (Edelman e Tononi,
2000: 95). A ênfase dada aqui à repetição “depois de algum tempo” está relacionada
à habilidade característica da memória em recriar um ato separado por uma certa
duração do sinal original. E ao sublinharem a “mudança de contexto” os autores
demonstram estar atentos para uma propriedade essencial da memória no cérebro: a
recategorização construtiva empreendida durante a experiência, mais do que a pura
replicação de uma prévia seqüência de eventos.
Depois do processamento (fusão) de caracteres de um continuum sonoro em
eventos sonoros individuais, efetuado no âmbito da memória sensorial – como vimos
no capítulo 3 –, esses eventos são organizados em agrupamentos. Ouvimos muitos
níveis de organização no meio sonoro, mas ao invés de ouvirmos sons isolados ou um
continuum indiferenciado, ouvimos fonemas, palavras, frases, ouvimos notas, acordes,
figuras, melodias, ritmos, tudo isso consistindo de componentes (eventos) que parecem
se relacionar reciprocamente – apesar de suas diferenças de estado e de ocorrerem em
tempos distintos. Esse processo de agrupação pode revelar uma tendência natural do
sistema nervoso humano de segmentar a informação acústica em unidades cujos
componentes parecem formar um todo. E os eventos podem ser agrupados, ao longo
do tempo, em seqüências de eventos que podem ser armazenadas e depois
relembradas. Tais agrupamentos seqüenciais têm lugar dentro dos limites da memória
de curto-prazo, embora a formação de limites ocorra desde o estágio da memória
sensorial, antes, portanto, da informação persistir como memória de curto-prazo.
Essa memória é mais imediata e menos permanente que a memória de longo-
prazo, e difere desta por não causar mudanças químicas ou anatômicas permanentes
nas conexões neuronais. Além disso, a memória de curto-prazo distingue-se da memó-
ria ecóica, antes de tudo, por seu conteúdo não ser apenas sensações brutas identifica-
das, mas memórias categorizadas. Agrupamentos de eventos individualmente
discrimináveis, que não excedam o tempo limite da memória de curto-prazo – em
161
torno de 3 a 5 segundos por agrupamento – constituem o que Snyder denominou
“nível melódico e rítmico” da experiência musical. Nesse nível, portanto, os eventos
são agrupados “no presente” e tais agrupações têm duas dimensões na experiência
musical: a agrupação melódica por alturas e a agrupação rítmica por durações e
intensidades – ambas as dimensões são regidas por princípios de similaridade e
proximidade.
Snyder explica que o modo como estruturamos grande parte dos processos de
comunicação é conseqüência das limitações da memória de curto-prazo, ínfima se
comparada à memória de longo-prazo, tanto em relação a seu limite de tempo – que
pode variar conforme a quantidade e a qualidade da informação que está processando
– quanto em relação ao que parece ser a sua capacidade de informação. Dessa forma,
não é difícil atentar para as conseqüências disso nos processos de comunicação. Por
exemplo, esse limite médio de tempo é a média de duração da maior partes das fra-
ses verbais ou dos incisos melódicos – termo da sintaxe musical que designa o
menor agrupamento sintático. Devido à limitada capacidade da memória de curto-
prazo, nossos atos de comunicação não são perfeitamente contínuos, mas executados
em “pulsos de energia modulada” cujo comprimento e conteúdo de informação não
excedem essa capacidade.
As células (incisos) melódicas, devidamente delimitadas por cesuras (todo tipo
de elemento de separação, de divisão) não podem exceder o tempo limite da memória
de curto-prazo sem perder seu caráter unificado, e se tornarem indisponíveis, como
um todo coerente, à consciência. Entretanto, se podemos perceber o contorno de
uma célula melódica, devemos, de alguma forma, ser aptos a acessar, individualmente,
todos os eventos (nesse caso percebidos, sobretudo, como notas musicais) nela
compreendidos. Esses elementos retidos pela memória estão todos ainda ativados e
disponíveis: estão presentes. Agrupamentos mais extensos, que ultrapassam os limites
da memória de curto-prazo, constituiriam então o “nível formal”, propriamente, da
experiência musical. As unidades constituídas nesse nível formal podem consistir de
estruturas frásicas mais extensas até seções inteiras de uma peça musical, e é o caráter
e a distribuição dessas unidades formais que definirão a forma da obra como um todo.
162
Os limites dos agrupamentos melódicos primários são estabelecidos por mudan-
ças significativas de altura – sobretudo pela ocorrência de intervalos variantes e
pela mudança de direção de movimento –, enquanto os limites dos agrupamentos
rítmicos primários são estabelecidos por mudanças de duração – ocorrência de
durações variantes – ou por algum tipo de acentuação. Entretanto, devemos salientar
que se a agrupação se baseia em princípios perceptivos, nossa percepção dos agrupa-
mentos podem ser discordantes em relação às posições de ocorrência de limites.
Isto é, nem sempre os procedimentos de agrupação (interpretações) são consensuais,
mostrando que não devemos vê-los como algo absoluto, e sim como produtos de
preferências como já advertiram Lerdahl e Jackendoff. Enfim, nas situações em que
confluem diversos princípios de agrupação, é muito freqüente haver percepções
conflitantes. Devemos frisar, contudo, que no nível frásico da agrupação rítmico-
melódica – que forma figuras sintáticas mais completas e coerentes, como são incisos
e frases – os limites são mais precisos e concordantes, estabelecidos de modo mais
coerente.
A coerência, tanto nos agrupamentos mais rudimentares, como eventos simples
e pequenas células, quanto nos agrupamentos frásicos – com valor sintático mais
definido –, é estabelecida, já discutimos, com notável influência dos fatores de
agrupação descobertos pelos psicólogos da Gestalt. O primeiro deles, o princípio
de proximidade exprime que eventos próximos no tempo, dentro dos limites da
memória de curto-prazo, tenderão a ser agrupados. Em seu Auditory scene analysis,
Albert Bregman observa, no entanto, que não é a proximidade absoluta que conta,
mas as proximidades relativas. O segundo fator, o princípio de similaridade, estabe-
lece que o reconhecimento de semelhanças entre os eventos sonoros leva à sua
agrupação. Podemos ouvir similaridades em quaisquer dos parâmetros sonoros, pois
o que constitui similaridade é algo muito diverso e pode incluir altura, intervalos de
altura, intensidade, timbre, duração, articulação (tipo de ataque), etc. Bregman
observou que a proximidade refere ao domínio espacial e quando dizemos que duas
alturas são próximas, estamos empregando uma metáfora espacial.
163
Além disso, o fator de proximidade é especialmente “linear”, enquanto a simila-
ridade pode criar agrupamentos simultaneamente nas dimensões vertical e horizontal
da textura musical. As técnicas de orquestração, por exemplo, têm como um de seus
fundamentos a similaridade, com a qual podemos separar ou fundir os vários elemen-
tos texturais. Quanto a isso, há dois tipos distintos de agrupação vertical. O primeiro
é a fusão real de sons para criar timbres conjuntos. O outro tipo, uma integração não
tão radical, é experienciado como partes (vozes independentes) de uma única textura
musical. Este último tipo de agrupação não surge meramente devido à simultaneidade
dos eventos. Quando escutamos, a um mesmo tempo, duas peças musicais distintas,
não formamos o sentido de um único objeto musical. Por isso, numa peça musical,
que é experimentada como um objeto musical único, a disjunção dos agrupamentos
concorrentes não pode ser tão extrema quanto a disjunção entre os agrupamentos de
uma e de outra peça, ou mesmo como a disjunção entre os agrupamentos formados
pelos sons de flauta que compõem uma peça e os da buzina de um carro que passa
na rua.
Por fim, o terceiro fator de agrupação é o princípio de continuidade, uma extensão
dos princípios anteriores. A continuidade estabelece que quando uma série de eventos
tem os valores significativa e continuamente alterados em uma direção particular e
em graus equivalentes, os eventos tenderão a formar agrupamentos. Ou seja, um
movimento consistente em uma única direção tende a perpetuar-se nessa direção, o
que não deixa de ser uma projeção da idéia de similaridade. Assim sendo, um conjunto
de notas tenderá a formar um agrupamento melódico (sobretudo, incisos) no âmbito
da memória de curto-prazo, se os movimentos consecutivos (ao menos a maior
parte deles) de uma para outra nota apresentarem a mesma direção e intervalos de
tamanhos compatíveis, e se os eventos rítmicos (cada nota articulada) correspondentes
forem separados por um intervalo de tempo relativamente uniforme.
A forma, em música, já pode ser conhecida em qualquer agrupamento no âmbito
da memória de curto-prazo, mas só se realiza estruturalmente a partir das agrupações
com duração superior ao tempo limite desse estágio de memória. Na base de seu
conceito estaria a impossibilidade de ser percebida imediatamente por não se
164
encontrar encerrada num presente consciente; requer sempre a mediação de eventos
simples, agrupamentos e figurações frásicas, para então se constituir de representações
na memória de longo-prazo. E somente a confrontação de diferentes materiais no
nível formal da experiência musical, sobretudo auxiliada por certo grau de repetição
(redundância) através da memória de longo-prazo, é que conduz ao reconhecimento
da forma musical. Assim, ao ouvirmos uma peça musical inteira somos aptos a
compreender as relações entre suas diferentes partes, fazendo com que os eventos
retornem à consciência da memória de longo-prazo que é inconsciente. “Nossas
memórias de longo-prazo precisam ser inconscientes: se estivessem todas em nossa
consciência, não haveria lugar para o presente” (ibid., 69).
O nível formal e a sua articulação são associados, portanto, com a estrutura e os
limites da memória de longo-prazo, uma vez que essas novas unidades existem
numa escala de tempo ampla demais para que tudo fosse compreendido no presente.
Se a memória de curto-prazo estabelece a continuidade e a descontinuidade de um
instante com o passado imediato, a memória de longo-prazo provê o contexto no
qual construiremos, propriamente, o sentido do discurso musical. Nela, o ouvinte
relaciona cada momento tanto com a experiência progressiva do todo da obra, que
vai, a cada instante, se reconfigurando, quanto com as suas experiências prévias. Os
agrupamentos de eventos no nível formal descrevem os lugares “em” um texto
musical. É esse o nível da experiência musical que nos suscita o emprego mais
complexo de metáforas de movimento no espaço.
Sintaxe depende da percepção de identidades. Regras de sintaxe podem repre-
sentar a cristalização de um estilo tradicional, mas também podem ser estabelecidas
no contexto e na experiência de uma única música. Os padrões que controlam e
ordenam os eventos musicais numa forma temporal inteligível são regidos por nossa
habilidade em reconhecer identidades e inferir constância. Nossa percepção da
repetição de parâmetros em música – sejam eles simplesmente sonoros (“materiais”)
ou com desdobramentos sintáticos – baseia-se em vários níveis de experiência, tais
como: (a)as repetições que constituem nossas bases experienciais (domínios-fontes)
sobre as quais metaforizamos, generalizadamente, nossa experiência no domínio
165
musical; (b)os processos de estereotipagem de estilos musicais, que efetivam as
sintaxes mais familiares; e (c)o efeito unificador e estabilizador das modalidades de
repetição, reiteração e recorrência experimentadas numa única obra musical.
Em todos os tempos a música valeu-se de um célebre rudimento psicológico: a
associação de idéias por justaposição reiterada, ou seja, na experiência da música
apelamos para uma espécie de cinética da reiteração, como bem denominou Edmond
Costère. Segundo ele, graças a essa cinética uma figura musical se insere na consciên-
cia por sua repetição sistemática, como um todo que evolui para seu desfecho. Por
conseguinte, todo tema melódico, todo motivo rítmico, toda figura temática, enfim,
“se impõe, pouco a pouco, por sua repetição como uma entidade que tende ao seu
fim natural” (Costère, 1962:43). A obra musical pode então se beneficiar ao mesmo
tempo das possibilidades construtivas e unificadoras das figuras reiteradas e da
cinética por repetição a partir das quais impingimo-nos as propriedades sintáticas e
semânticas daquelas figuras sonoras que estabelecem uma lógica própria. Assim, de
modo geral, a relativa invariância de parâmetros é entendida como reiteração sonora
– tanto de eventos sonoros simples como de agrupamentos mais complexos com
alguma forma definida – ou recorrência de eventos vinculados a experiências ante-
riores – tanto semânticas como emocionais. Ao identificar os traços de similaridade
entre o evento sonoro que está sendo percebido e aquele já experienciado que se
mantém na memória, inferimos repetição.
O conceito de constância é, portanto, fundamental para a definição das unidades
formais, unidades estas que são categorizadas em diversos níveis formais. E essa
categorização ocorre tanto no âmbito da chamada memória de curto-prazo quanto
quando acessamos os recursos da memória de longo-prazo – no caso de unidades
formais que excedem em duração a capacidade da memória de curto-prazo. Constân-
cia é um conceito abstrato que na nossa experiência da música explica como a
mente reconstrói a estabilidade num objeto musical que, ao invés, tem a sua aparência
permanentemente em mudança. Isto é, constância é o estabelecimento de invariâncias
em nossa percepção do meio. E tudo isso só é possível através da ação da memória.
166
Quando algum aspecto do meio acústico muda consideravelmente, uma cesura
(um limite) é criada e define onde um agrupamento começa ou termina. É claro que
agrupamentos podem apresentar vários níveis de cesuras, o que vai possibilitar até
mesmo a formação de “agrupamentos de agrupamentos”. Como o sistema nervoso
tende a construir imagens acústicas do mundo, enfatizando os traços de coerência
das fontes sonoras, a constância é um fator central. Assim, uma mudança brusca de
intensidade, por exemplo, usualmente assinala um novo evento ou o início de uma
nova unidade, já que as mudanças esperadas no interior de uma única unidade tendem,
a priori, a ser progressivas e indefinidas – já que compatíveis com os graus de
proximidade e coesão que distinguem uma unidade.
Os padrões com os quais significamos limites formais podem ser relativamente
arbitrários, mas significam limites por meio de recursos que, de algum modo, estão
relacionados a invariância. Se todos os parâmetros sonoros variassem a todo instante,
isso produziria um contexto de complexidade improcessável. Então, de modo geral,
no fluxo musical alguns parâmetros permanecem relativamente estáveis, enquanto
outros mudam. Essa manutenção da constância de alguns parâmetros durante um
certo tempo é o que possibilita a criação de uma ordem, de uma estrutura. Quando
as mudanças superam um determinado nível de constância estabelecido pelo estilo,
surge um limite. E os procedimentos mais radicais de delimitação têm por finalidade
o seccionamento principal da forma. Exemplos mais usuais desse tipo de delimitação
são os padrões estereotipados da prática harmônica – ou seja, de controle e ordenação
de alturas – no repertório tradicional do Ocidente. Nessa tradição musical, o termo
cadência está relacionado a um tipo de desmobilização do fluxo, em grande parte
efetuada com recursos puramente harmônicos. Haverá instabilização harmônica,
portanto potencial de motricidade, sempre que os sons de um determinado padrão
tenderem aos sons de outro padrão seguinte; haverá estabilização, e assim
desmobilização, sempre que os sons de um padrão tenderem uns aos outros como
num circuito fechado. O problema da estabilidade e da instabilidade harmônica
relativa de um padrão sonoro está assim ligado ao potencial de afinidade de seus
sons constitutivos, conforme a tendência
1
a eles mesmos ou aos sons extrínsecos.
167
Nesse caso, a harmonia consiste sempre de um problema de cinética de tensão-
distensão, de um termo ao outro da cadência: da tensão à distensão, do instável ao
estável.
Os objetos musicais possuem trechos com textura considerada principalmente
horizontal ou polifônica quando predomina a percepção de movimentos melódicos
simultâneos e independentes; outros têm textura essencialmente vertical – homofônica
–, à medida que apresentam a predominância inversa: a falta de independência dos
elementos simultâneos texturais enfatiza a unidade e a estabilidade formal. Por exem-
plo, nas cadências a independência das linhas horizontais é reduzida e a separação
dos movimentos melódicos é atenuada. Nesse caso, o efeito é de uma sinalização de
unidade, uma vez que os componentes da textura são mais facilmente percebidos
como partes de uma mesma música. Existem graus de conclusividade correspondentes
à relevância da pontuação que está sendo alcançada. Quanto maior o grau de
conclusividade da pontuação em questão, maior o grau de anulação da separação
dos movimentos.
Na música tradicional o padrão sonoro de desmobilização – portanto, de
delimitação formal –, diversas vezes repetido ao longo da obra, mantinha-se sempre
o mesmo a cada novo limite formal, determinando assim uma centralidade metafórica.
Ao contrário, na música de arte da nossa contemporaneidade esse sentido sintático
– essa semântica de reiteração como queria Costère – é produzido quando da
reincidência não de um padrão determinado, mas de algum processo estabilizador
variável, conferindo valor de conclusão de um todo que se encaminha para o seu
desfecho. Desse modo, nos estilos musicais pós-modernos a ausência de padrões
harmônicos mais estereotipados – e, portanto, mais imediatamente categorizáveis –
e a variação permanente de recursos de desmobilização fazem resultar cesuras menos
evidentes e reconhecíveis, exigindo assim a combinação de outros recursos de
estabilização – além da centralidade clássica –, conceitualizados, por exemplo, a
partir de esquemas de imagem de gravidade: “menos é para baixo”.
Entretanto, nenhum esquema é tão sistematizável sintaticamente quanto o de
centralidade, em virtude de sua vinculação aos chamados parâmetros primários dos
168
eventos musicais. Donde os recursos de desmobilização advindos, simplesmente,
de descensos paramétricos são mais vagos. Só a sintaxe, portanto, pode tornar possível
experimentarmos o sentido de fechamento, mesmo num padrão que se move ascen-
dentemente em um ou mais de seus aspectos. Quando ouvimos uma série descendente
de valores em algum aspecto sonoro, não estamos certos da destinação desse movi-
mento – ou seja, do valor final da série; só conhecemos seu ponto final depois de
ouvi-lo. Se, ao contrário, estamos experimentando um limite formal decorrente de
uma estabilização de ordem mais puramente sintática, antes mesmo de ele ser alcan-
çado, e enquanto soa, já o reconhecemos. Podemos então concluir com Costère, que
quando a sintaxe exerce maior influência na nossa escuta, os limites se reproduzem;
quando os recursos de delimitação são menos sintáticos, os limites apenas se revelam.
Sintaxe e sentido
Um conceito fundamental de memória para a experiência musical é o de associação.
Segundo a psicologia cognitiva, grupos de neurônios ativados simultaneamente
conectam-se em vários níveis da memória de longo-prazo, formando associações.
Qualquer coisa que ative uma dessas memórias associadas pode também ativar a
outra memória. Nesse processo, uma memória sugere outra memória com a qual
formou uma associação. Um dado trecho de uma obra musical, por exemplo, pode
levar o ouvinte a pensar em outra passagem já experienciada da mesma obra; e isso
pode gerar no ouvinte a expectativa de uma nova ocorrência daquela passagem.
Donde podemos concluir que associações prévias formam o contexto no interior do
qual formamos nossas expectativas. Com freqüência, associações ocorrem entre
memórias de eventos próximos espacialmente, temporalmente ou ambos.
Associações podem se formar entre memórias correlacionadas de várias
maneiras. Segundo Snyder, há três processos básicos de acesso às memórias de
longo-prazo, ou seja, três tipos de sugestão: o primeiro – recollection – tem lugar
quando intencionalmente tentamos acessar uma memória, ou seja, recuperar algo na
169
memória de longo-prazo; um outro, este espontâneo – recognition – é o reconhe-
cimento que ocorre quando um evento no meio musical atua, automaticamente, como
sua própria sugestão, ou ativa algum conteúdo particular da memória de longo-prazo
que possui uma associação com a percepção corrente, isto é, sempre que algo ouvido
nos parece familiar, temos um reconhecimento; e por fim uma recordação – reminding
– ocorre quando não somente reconhecemos um dado evento, mas o conectamos
com outras memórias associadas ao seu conceito. Donde o principal desafio da
memória de longo-prazo é reter ao longo do tempo a associação entre uma sugestão
específica e uma memória específica. Snyder adverte ainda que “isso funciona
usualmente bem, mas o processo pode ser descarrilado por sugestões irrelevantes
similares à sugestão correta, produzindo vários tipos de interferência” (ibid., 70).
Na experiência da música, a expectativa de que algo novo, distinto, portanto,
do que está soando, ocorrerá é uma projeção da expectativa do futuro a partir de
ocorrências presentes. Mas quando a constância, e mesmo a redundância, domina o
presente nos força a percebê-lo mais como vivência do passado. No momento em
que o grau de expectativa do futuro como diferença diminui, o tempo parece perder
consistência, como se não “passasse”. Donde enquanto a nossa experiência da música
é regida pela expectativa, há tempo e impressão de passagem de tempo. O instante
crítico e, muitas vezes, relativamente distinguível situado na elisão do esvair da
impressão de tempo e o limiar da pura redundância, da repetição apenas como refluxo
do passado, é uma linha divisória crucial para as decisões composicionais: é o instante
fundamental que concentra a própria essência temporal e artística musical. Não
podemos, contudo, desconsiderar a experiência prévia dos ouvintes – seus resíduos
de outras sintaxes –, que gera suas expectativas habituais com as quais os próprios
compositores criam as condições de maior ou menor comunicabilidade nas peças.
Quanto menos a idéia musical é regida por padrões sintáticos cristalizados, e quanto
mais se organiza por meio de um “discurso” indeterminado, lacunar e ambíguo,
mais afirma a espacialização do tempo, que se torna algo mais maleável, que a qual-
quer momento pode dar a impressão de ter sido suspenso, deslocado ou comprimido.
170
A partir da teoria cognitiva da memória Snyder propõe uma explicação para o
processo de geração de expectativa, que se dá no ato da escuta musical, com o qual
podemos, enfim, construir sempre e sempre a forma do objeto musical. Ele observa
que embora grande parte do conteúdo da memória de curto-prazo seja memória de
longo-prazo ativada, nem toda memória de longo-prazo que uma determinada
experiência evoca torna-se inteiramente ativada na consciência:
Por exemplo, ouvindo uma peça musical, podemos ter um sentimento de que a
seção que se aproxima está em um registro de alturas mais elevado, mas não
lembramos nada mais sobre ela: podemos lembrar somente uma simples caracte-
rística dela. Isto é um exemplo de expectativa, uma memória sugerida pela experiên-
cia presente, mas não inteiramente consciente. Com expectativas podemos “sentir”
o futuro no presente. Entretanto, em virtude de esta imaginação do futuro ser apenas
semiativada, ela não interfere em nossa percepção do presente: nós a ouvimos
“distante de nosso ouvido mental”. (Snyder, 2000:49)
Como vimos na seção anterior, a música é estruturada de tal maneira que alguns
de seus aspectos – parâmetros sonoros – mantêm relativamente inalteradas suas
configurações de padrões por algum tempo. Em algum momento, porém, um ou
mais desses parâmetros podem mudar mais sensivelmente e até mesmo transformar-
se numa nova configuração comparativamente estável. Esses pontos de mudanças
multiparamétricas são, portanto, limites seccionais mais ou menos precisos. Se os
limites mais bem definidos na escuta determinam as separações das seções mais
significativas da música, a coerência interna em uma dessas seções depende da
relativa constância paramétrica. A graduação da constância e da variância multiplica
as propriedades significantes dos agrupamentos e dos agrupamentos de agrupamentos
distinguíveis no meio musical. Concorrem para expressar uma forma musical lógica
e apreensível, manifesta por “funções formais” que tradicionalmente denominamos:
introdução (função formal freqüentemente fundamentada em adiamentos e
prolongações que provocam expectativa), exposição (função formal de estabele-
cimento de figuras temáticas, normalmente expressa por repetição e estabilidade),
transição (função formal de flutuação e instabilização, com alto grau de
provisoriedade), transformação (função formal de reiteração e desenvolvimento de
idéias previamente estabelecidas), interpolação (função de desestabilização, processo
171
geralmente empregado com o fim de gerar incoerência momentânea) e conclusão
(função formal de desmobilização, de pontuação).
Recuperemos aqui algumas metáforas diretamente envolvidas na experiência
do nível formal da memória. Dificuldades são impedimentos para mover e liberdade
de ação é ausência de impedimentos para mover. Uma vez que ação é conceitualizada
como movimento auto-ativado, dificuldades para agir são conceitualizadas como
coisas que podem impedir o movimento, tais como bloqueios, contraposições, sobre-
cargas ou falta de fontes de energia. Quando pensamos em liberdade como desejo,
baseamo-nos na noção primária de liberdade de ação. Portanto, se ação é conceitua-
lizada nesse mapeamento de metáfora de estrutura de evento como movimento auto-
ativado, adquirir liberdade de ação é eliminar os impedimentos para esse movimento.
Poderíamos agora citar, a título de exemplo, o trecho musical apresentado na
FAIXA
7. Esse trecho possui uma delimitação interna principal (a mais claramente definida),
provocada por uma abrupta suspensão do pulso que vinha sendo executado na região
grave do piano, e que produzia uma “descontinuidade contínua” retentora. Assim, o
conjunto ganha “liberdade” quando o piano reduz radicalmente aquele efeito
restritivo; e qualquer descrição dessa dimensão da experiência, de um modo ou de
outro empregará a metáfora “liberdade de ação é ausência de impedimento para
mover”.
Por fim, a metáfora atividades propositadas de longo-prazo são jornadas é a
que mais diretamente assinala a experiência da forma. Uma jornada toma um longo
período de tempo e, usualmente, envolve paradas (propósitos intermediários) em
uma certa quantidade de destinações, durante o percurso, antes de alcançar a destina-
ção final, se houver alguma – já que algumas jornadas não têm, exatamente, uma
destinação final, são errantes. As ações realizadas são movimentos, progresso é
movimento em direção a uma destinação, o estado inicial é a localização inicial e
alcançar o propósito é alcançar a destinação definitiva.
De fato, a lingüística contemporânea aproximou, consideravelmente, a noção
de sintaxe do domínio musical. Sua corrente gerativa, por exemplo, oferece uma
explicação para o fenômeno da “nota errada”: o ouvinte pode perceber intuitivamente
172
uma violação da “gramática” da música, da mesma maneira que detecta um erro
gramatical num enunciado que nunca ouviu antes. Todavia, a corrente funcionalista
alegaria que essa independência radical dos outros aspectos da experiência exclui,
inadequadamente, as referências extramusicais, os conteúdos emocionais, os hábitos
sociais e vários outros possíveis aspectos semânticos da música.
Se a experiência do objeto intencional da escuta musical envolve, em nosso
sistema conceptual, efeitos de animação (“movimentos”) e produção de sintaxes
estilísticas (formas), por outro lado também implica outro tipo de troca comunicativa
entre conteúdo musical e conteúdo mental: os estados intencionais que denominamos
emoções. Passaremos, a seguir, a enfocar os efeitos emocionais da experiência do
objeto musical, que encontramos em certos pensamentos e que por incluírem sentimen-
tos completam a teoria da metáfora, segundo o projeto de Ricoeur. Enfim, a semântica
do entendimento musical aqui proposta depende do estudo das emoções, em razão
de os sentimentos completarem a imaginação em sua função esquematizadora.
Nota
1
Costère defendeu em seus dois textos principais – Lois et styles e Mort ou transfigurations de l’harmonie
– uma “dialética das alturas”, ou seja, uma cinética fundamentada em dois tipos de movimentos harmônicos
“naturais”: o determinado pela ressonância harmônica (fenômeno natural que privilegia as relações mais
simples e estáveis entre as alturas sonoras) e o determinado pelo portamento (fenômeno que ocorre quando
a fonte sonora está em movimento, fazendo nascer uma ligação entre alturas muito “próximas”). Os
intervalos harmônicos daí resultantes – denominados 5ª justa e semitom – constituem-se, portanto, de
alturas com o maior potencial de afinidade entre si (há forte tendência de movimento de uma para a outra)
e assim formam a base do que podemos aqui definir como o domínio-alvo que conceitualizamos com os
esquemas de gravidade, centralidade, causação ou retenção.
CAPÍTULO 5
A experiência da emoção
Se nós podemos relacionar uma música a uma emoção, essa emoção é a emoção de
alguém ou é um certo tipo geral de emoção do qual aquela é um exemplo. Assim,
uma composição ou sua “base ôntica” – esta uma performance ou gravação – pode
ser conectada à emoção que o compositor experimentava ao compô-la, à emoção
que um ou mais intérpretes experimentaram ao tocá-la, ou à emoção sentida pelos
ouvintes em seu ato de escuta – ou memórias desse ato. Os dois primeiros casos de
emoção são irrelevantes do ponto de vista da música enquanto algo que existe, antes
de tudo, para ser ouvido pelo que é. Desse modo, quando ouvimos música, não há
razão para nos preocuparmos se o compositor sentia uma emoção particular nesse
ou naquele momento ou se o intérprete está sentindo ou sentiu uma certa emoção ao
tocar a música. Entretanto, a música que é composta, e mais ainda, a música que se
atualizada com ações corporais de seres humanos se comportando encontra um
ouvinte altamente inclinado a inferir, do caráter despertado pela composição ou por
sua performance, a experiência de uma emoção particular. Mas cumpre enfatizar
que isso é uma inferência do caráter do objeto musical, e não um aspecto desse
caráter particular.
Movimento e emoção
Geralmente, as obras musicais são consideradas expressivas de certas condições
emocionais, mas se é assim – e as obras não podem “possuir” emoções –, pouco
importa a emoção particular do compositor quando do ato de composição de uma
determinada obra, mesmo que essa condição emocional tenha, de certo modo,
determinado parte das decisões composicionais dessa obra. As emoções sentidas
174
pelo compositor ou as emoções que ele deseja que sua obra expresse não determinarão
a experiência do ouvinte ou o caráter do objeto musical experimentado. O ouvinte
pode atribuir a uma música a expressão de um tipo de emoção sem precisar relacionar
a música a uma possível ocorrência dessa emoção no ato da composição. O mesmo
pode ser dito da emoção do intérprete. Se a música que ele toca expressa uma emoção
particular, esta não é gerada por uma ocorrência particular dessa emoção que o
intérprete sente; uma dramatização mais intensa dos atos de execução, em performan-
ces ao vivo ou em vídeo, pode até mesmo sugerir – em gestos de comunicação não-
verbal – emoções particulares, mas não determinar a experiência emocional do
espectador.
Hanslick tentou estabelecer três proposições negativas acerca da relação entre
música e as emoções: (a)é impossível uma obra musical representar uma emoção
definida; (b)emoções e sentimentos implicados não podem ser usados para caracte-
rizar uma obra musical; (c)o objetivo da música não é evocar emoções no ouvinte.
Pretendemos problematizar essas teses formalistas e tentar a inclusão da emoção na
esfera semântica musical. Para isso, devemos antes determinar os termos envolvidos
em nossa conceitualização da emoção e do sentimento.
Há uma forte inclinação em pensar a emoção em termos do seu aspecto “subje-
tivo”. Porém, tal aspecto não constitui a essência das emoções, porque elas se manifes-
tam como estados publicamente reconhecíveis de um organismo – embora não
necessitem dessa manifestação externa. Emoções são identificadas por sua função
em um sistema cognitivo: são desejos, crenças, ações. Emoções são estados intencio-
nais: são emoções de algo ou sobre algo sem existência material. Cada emoção
responde a um pensamento e é encontrada em certo pensamento que define seu
“objeto formal”: é, pois, o objeto intencional daquela emoção. Cada emoção envolve
um tipo particular de pensamento que é seu constituinte e que é diferente do
pensamento envolvido em qualquer outra emoção. E cada emoção envolve não
somente um tipo particular de pensamento, mas uma reação positiva ou negativa ao
conteúdo desse pensamento: uma forma de prazer ou dor. O prazer ou desprazer
com o qual um pensamento é experimentado pode ser mais ou menos intenso. E
175
como os pensamentos podem ser compostos e múltiplos, possuindo conjuntamente
elementos de prazer e de dor, nossas emoções podem ser misturadas.
No presente trabalho, entendemos que emoções incluem sentimentos; uma emo-
ção é experimentada corporalmente: é um sentimento incorporado. Contudo, tipos
particulares de sentimentos incorporados não são nem específicos nem essenciais
para uma emoção. Ricoeur advertira – como citamos no capítulo 2 – que uma tradição
negligencia a diferença conceptual, tratando sentimento em termos apropriados à
emoção. Mas em termos de emoções, estamos sob o efeito da ação corporal e dos
estados mentais pouco intencionais; o sentimento é aquilo que completa a imaginação
esquemática, interiorizando o pensamento. Seres humanos têm emoções humanas,
porque elas correspondem a pensamentos imaginativos dos seres humanos que, além
de conscientes do objeto da emoção, colocam-se em sua própria emoção e se expres-
sam por meio dela: emoções são motivos para a ação. E a expressão da emoção é
também uma criação de emoção.
Hanslick não diferencia emoção de sentimento, e defende a impossibilidade de
representação de emoções ou sentimentos por recursos estritamente musicais. Em
seu comentário acerca dessa hipótese, Malcolm Budd a reconfigura na seguinte
forma: a música não pode representar pensamentos; sentimentos e emoções definidos
envolvem ou contêm pensamentos; por isso a música não pode representar sentimen-
tos ou emoções definidos. Budd observa que a validade formal desse argumento
depende da validade do princípio que se uma coisa envolve outra coisa, então para
que algo represente a primeira coisa deve representar a segunda. Hanslick afirma,
entretanto, que embora não seja uma representação dos sentimentos, o movimento é
o que a música tem em comum com os estados emocionais. Ela pode assim representar
as “propriedades” dinâmicas dos sentimentos, ainda que exemplos específicos dessas
propriedades possam pertencer a sentimentos particulares diversos.
Se a única maneira de ser uma representação não-verbal de algo é ser uma
réplica da coisa representada, para representar uma emoção, a emoção teria que ser
ouvida na música. Porém, “somente as expressões da emoção podem ser ouvidas,
não a própria emoção; (...)algo pode, no sentido requerido, ser ouvido em algo mais,
176
somente se ele próprio pode ser ouvido” (Budd, 1992:23). Budd está reivindicando
para a música um paralelo com a expressão da emoção nas artes visuais. Se algo só
pode ser visto em algo mais, explica Budd, se puder ele próprio ser visto, não poderia
haver uma pintura de uma emoção, mas somente de uma pessoa emocionalmente
afetada: “de vez que uma emoção não pode ser mais vista que ouvida, não poderia
haver uma representação musical – um correlato musical de uma simples represen-
tação visual – de uma emoção, mas apenas de uma expressão da emoção na voz
1
de
uma pessoa” (ibidem).
Não podemos negar que apesar de todo o esforço de um Hanslick – como de
outros formalistas – para repudiar uma representação de sentimentos pela música, a
atribuição de emoção à música é algo insistente e espontâneo, em nossa cultura.
Talvez, como observou Budd, a descrição emocional da música seja meramente
uma maneira fantasiosa de falar, na qual “a emoção aparentemente atribuída à música
deve ser entendida como sentida pelo ouvinte, de modo que aquilo que o ouvinte
quer dizer pode ser verdade, embora ele se expresse de maneira enganosa” (ibid.,
38). Todavia, como tudo isso é, em última análise, desnecessário para experimen-
tarmos a música, devemos perguntar pelo sentido dessas atribuições emocionais. As
primeiras respostas para essa questão vieram da própria formulação de Hanslick,
das “formas em movimento nos sons”.
Para Gurney, as diferenças de altura sonora não são experimentadas pelos ouvin-
tes como diferenças de qualidade – como entre cores –, mas diferenças de distância
e direção, assim claramente sentidas. O sentido de que diferenças de altura são
diferenças de “distância e direção” faz com que ordenemos os sons (segundo suas
alturas) e os “posicionemos” em um “espaço” musical. Essas constatações levaram
às primeiras soluções de entendimento para as descrições emocionais da música,
relacionadas a movimento no espaço – que começam a surgir a partir dos estudos
fenomenológicos e da psicologia da Gestalt. Em seus estudos de “estética
psicológica”, Carroll Pratt começou por salientar que há movimentos do e no corpo.
O fato de podermos visualizar movimentos de coisas no espaço e sentir movimentos
corporais é a principal causa de muitos dos termos que, quando usados para descrever
177
como sentimos, significam o caráter dinâmico do movimento. Ou seja, empregamos
as mesmas palavras para descrever, igualmente, qualidades de movimentos corporais
que experimentamos – agitado, hesitante, delicado – e para caracterizar como
sentimos. Pratt refere-se, portanto, ao uso de metáforas de nossa vida corporal,
como as que vimos no capítulo 3.
A conexão que a partir disso pode ser feita entre emoção e música baseia-se na
proposição que quando experimentamos uma emoção, o que sentimos organicamente
são processos que envolvem movimentos do ou dentro do corpo. Quando um dado
movimento – ou tendência para um movimento – está envolvido num certo estado
psicológico, atribuímos ao movimento um caráter particular, se estamos nesse estado.
E, comumente, dizemos “sentir” tal caráter, porque ele é aquilo que sentimos quando
estamos naquele estado psicológico. Esse caráter é, portanto, o que é compartilhado
por uma obra musical, quando com ele a caracterizamos. E nossa caracterização,
isto é, nossa conceitualização da música em termos de um determinado caráter é
literal. Assim sendo, um estado psicológico particular derivaria seu nome de uma
qualidade de movimento que é comum ao movimento corporal e ao musical: estaría-
mos e sentiríamos um caráter particular, e a música seria meramente esse caráter. A
música então não incorpora as condições psicológicas, mas os caracteres dos
movimentos corporais que estão incluídos ou compõem essas condições psicológicas.
Em The corded shell, Peter Kivy propôs discutir uma questão especialmente
importante para o desenvolvimento de uma teoria da expressão musical: a diferença
entre expressar e ser expressivo. Ele explica que quando somos levados a determi-
nadas ações em conseqüência de alguma emoção, podemos dizer que expressamos
a nossa emoção e as nossas ações são expressões daquela emoção. Ou seja, a condição
para termos agido como agimos é estarmos emocionados; e só seria correto afirmar
que expressamos aquela emoção particular, se realmente sentimos tal emoção. Kivy
entendeu isso como o paradigma da expressão emocional. Outra situação é: alguma
coisa nos parece triste; mas isso não significa dizer que a coisa expressa tristeza.
Quando descrevemos algo como triste, não estamos dizendo que ele expressa tristeza
– mesmo que seja uma pessoa, pois se de fato ela está triste, provavelmente não está
178
sempre triste –, mas que é expressivo de tristeza. Eis, portanto, o paradigma de ser
expressivo de algo, onde “algo” é o nome de uma emoção.
Quando dizemos que uma melodia é triste, estamos dizendo que ela expressa
tristeza ou que é expressiva dessa emoção? Segundo Kivy, há uma boa razão para
rejeitarmos a primeira alternativa. Se a música expressa tristeza, então ela deve ter
relação com a tristeza de alguém, e o candidato óbvio é o compositor, cuja tristeza
supõe-se ser expressa por sua música. Todavia, a teoria da expressão musical
desenvolvida por Kivy enfoca como a música pode ser expressiva das emoções e
não uma teoria de como a música pode expressá-las. Sua preocupação é “apresentar
uma teoria do que acontece quando descrevemos a música em termos emocionais,
na ausência de qualquer sugestão que esteja expressando as emoções do compositor
ou de mais alguém” (1980:14). Ou seja, sua teoria explica como descrevemos música
emocionalmente, mesmo quando é evidente que ela não está expressando as emoções
que lhe atribuímos, ou quando não temos como saber se expressa tais emoções, de
vez que não temos como saber em que estado emocional o compositor se encontrava
quando a compôs. Enfim, a maior parte de nossas descrições emocionais da música
são inteiramente independentes de estados de mente de outrem, mesmo que sejam
os compositores ou os intérpretes que nos possibilitam a experiência com os objetos
musicais.
Kivy adverte que podemos pensar que compositores tristes tendem a compor
música triste, mas eles não poderiam fazer de sua música a expressão de sua tristeza.
Outra questão é que a música pode expressar e ser expressiva de outras coisas que
não, necessariamente, emoções – idéias, por exemplo. Kivy também não desejou
afirmar que a música não expressa emoções, embora tenha como preocupação central
os modos como ela pode ser expressiva das emoções. Essa atenção especial deve-
se, entre outros, ao fato psicológico que tendemos a “animar” aquilo que percebemos,
e isso não é algo que escolhemos fazer. Segundo Kivy, mesmo quando desenhamos
algo numa folha de papel, tendemos a ver figuras “animadas”, sobretudo figuras
humanizadas, mesmo quando também se parecem com outras coisas. Enfim, tende-
mos a “animar” sons da mesma forma que o fazemos com as coisas visíveis. Música
179
pode parecer com muitas outras coisas além de expressões humanas, mas exatamente
como vemos figuras e traços humanos nas coisas, ouvimos gestos e expressões na
música, e não outra coisa: “um tema musical é freqüentemente descrito com um
‘gesto’. Um sujeito de uma fuga é uma ‘afirmação’ de um tema. Uma voz é como os
músicos chamam uma parte em uma composição polifônica, mesmo se a parte deve
ser tocada em um instrumento e não cantada por uma voz” (ibid., 58).
Há, porém, outros tipos de atribuição de emoção. Kivy cita o cromatismo e o
intervalo de terça menor como expressivos de tristeza, mas não em virtude de se
parecerem com o comportamento expressivo humano. Trata-se, portanto, de outra
teoria da expressividade musical, inteiramente diferente da primeira, e que explica a
expressividade musical, de um lado, pela congruência de um “contorno” com a
estrutura dos traços expressivos e do comportamento, e de outro, como função da
associação habitual de certas práticas musicais com certas características emotivas
em contextos expressivos, mesmo não havendo qualquer analogia estrutural entre
elas. Isto é, elementos que têm se convencionalizado em sua expressividade podem
ter essa expressividade derivada de sua contribuição original a um dado “contorno”
sintático expressivo – que pode ter sido o caso do intervalo de terça menor,
experimentado por muito tempo como discordante e instável.
Stephen Davies afirmou, por sua vez, que ouvimos a expressividade da música
como resultado do reconhecimento de uma semelhança entre ela e aspectos do
comportamento humano – conduta, voz, fisionomia. Referindo-se à teoria de Kivy,
ele comenta que a música também se assemelha a outras coisas ou processos, mas
em geral essa semelhança não chama a nossa atenção. Haveria uma forte conexão
entre música e aparências de emoção, mas não entre música e outras coisas, “porque
estamos psicologicamente dispostos a fazer a conexão (e dar-lhe uma direção)
somente no primeiro caso” (Davies, 1994:241).
Davies introduz, todavia, um certo refinamento à teoria da expressão musical,
distinguindo tipos diferentes de expressividade emocional. Algumas emoções teriam
formas características de expressão que ele denomina primária: expressões não
intencionais. Tais formas de expressão são usualmente vistas como algo meramente
180
pretendido e não expressivo de emoções genuínas; não são adotadas conscientemente.
Alguém que está triste, diz ele, “não precisa chorar e nem sempre precisa se sentir
como se estivesse chorando quando está triste, mas às vezes deve se sentir como se
estivesse chorando quando está triste, e se não está, é porque controla o impulso
para chorar” (ibid., 174). Portanto, o controle e a supressão das expressões primárias
podem ser intencionais, embora sua tendência e impulso não o sejam. Para Davies,
essas expressões não são, por isso, expressivas de alguém, mas apenas das próprias
emoções das quais são expressões.
Uma expressão secundária da emoção seria o comportamento que surge a partir
da emoção sentida, embora não possa ser entendido como expressivo por alguém
que não conhece as intenções de quem se comporta ou as circunstâncias que levaram
ao comportamento. Essas expressões são usualmente intencionais, mas não necessa-
riamente, e se distinguem das expressões primárias, sobretudo por não serem constitu-
tivas das emoções para as quais dão expressão. Davies explica que a conexão entre
uma emoção e suas expressões secundárias é contingente. Propomos para isso um
exemplo: um compositor sofre uma grande desilusão amorosa e então se lança na
composição de uma nova obra musical em resposta à dor que sente. Alguém que
conhece as intenções e circunstâncias do compositor deve descrever o ato da compo-
sição como uma expressão de seu sofrimento e como se essa ação dissipasse a
intensidade de sua dor. Embora o ato da composição e a composição resultante
sejam expressões da dor para quem entende sua motivação, devemos reconhecer
que tanto ato quanto composição são expressivos apenas se vistos como resultantes
de certas intenções e circunstâncias.
Uma última forma de expressão da emoção, que Davies denominou terciária,
distingue-se da anterior por apoiar-se em convenções e rituais: “as convenções
revelam as intenções do agente quanto à expressividade de suas ações ou seus produ-
tos. É condição para a expressividade terciária que o uso das convenções seja
intencional e sincero” (ibid., 176). Por exemplo, se o compositor que passou pela
desilusão amorosa intitula sua obra com uma referência evidente à sua dor, a obra
passa a ser uma expressão terciária de sua dor – caso ele tenha sido realmente
181
sincero ao expressar seus sentimentos dessa forma –, uma vez que esse ato é uma
expressão convencional de dor.
A música não parece ser uma expressão primária da emoção de alguém. A
expressividade das obras musicais é, em geral, conscientemente criada por seus
autores, sugerindo que tais obras sejam expressões secundárias e terciárias de seus
sentimentos. Os compositores às vezes dão uma expressão terciária às suas emoções,
criando obras musicais, mas esse fato, como lembra Davies, não explica nem como
sua música é propriamente expressiva, nem por que tal expressão da emoção do
compositor deve ser pertinente à experiência da obra. Segundo ele, a expressão
musical pode não ser menos convencional do que é o uso da linguagem, cujo fim é
a comunicação: “mas as convenções da música, ao contrário das que regulam a
comunicação, servem para revelar o sentido contextual dos elementos, não para
revelar as intenções que motivaram seu arranjo” (ibid., 180).
Ao discutir o que entende ser, precisamente, a expressão da emoção em música,
Davies observa que as características da emoção na aparência são atribuídas sem
considerar os sentimentos ou os pensamentos dos quais elas são o predicado. Segundo
ele, essas aparências expressivas não são emoções que são sentidas; envolvem desejos
e crenças. Não são, propriamente, emoções ocorrentes:
são propriedades emergentes das coisas para as quais elas são atribuídas. Essas
propriedades são públicas em caráter e são fundadas em características públicas.
A tristeza da música é uma propriedade dos sons da obra musical. A tristeza é
apresentada na obra musical. Não há necessidade de descrever ou representar ou
simbolizar ou outros tipos de denotação que conectem a expressividade musical às
emoções ocorrentes, uma vez que o caráter da música reside em sua própria natureza.
(Ibid., 228)
Para Davies, enfim, a expressividade reside na aparência apresentada na música,
sem qualquer conexão com emoções ocorrentes. Nesse sentido, a emoção é imediata-
mente (e não mediatamente) apresentada em música.
A música pode ser usada pelo compositor para expressar seus sentimentos, mas
as evidências sugerem que isso não é o que normalmente ocorre. E se o compositor
assim o deseja, a composição deve ser entendida como expressão secundária ou
182
terciária de seus sentimentos. Concordamos com Davies, que a expressividade seja,
de fato, uma propriedade objetiva das obras musicais, ainda que as emoções expressas
não sejam sentidas pela música. O que a música apresenta são características de
emoção, uma aparência expressiva em seu som. Experimentamos o caráter dinâmico
da música como ações de uma pessoa, e por isso o movimento que ouvimos na música
nos parece propositado e organizado. Os estilos musicais, por sua vez, estruturam
por convenções essas propensões “naturais” para a expressividade, de tal modo que
a expressividade assim constituída torna-se aparente apenas para alguém familiarizado
com as convenções do estilo em questão. Além disso, a música é expressiva sem
que para isso seu compositor tenha designado um determinado caráter expressivo
para ela. Se seu compositor imagina e tenta controlar a expressividade de sua obra,
é porque ela pode ser entendida como algo que refere aos sentimentos humanos.
Forma e emoção
Discutimos acima algumas questões centrais das principais teorias da expressão
emocional em música, que de um modo ou de outro estão relacionadas com a nossa
experiência animista dos sons. De fato, a música é especialmente expressiva das
qualidades emocionais humanas, mas podemos também entendê-la como algo que
freqüentemente nos afeta emocionalmente: ela evoca emoções em nós. Talvez haja
uma conexão entre esses dois fatos: a música seria expressiva das emoções, em
virtude de provocá-las? As teorias da expressão não reconhecem qualquer elo entre
expressão e estímulo. Para Kivy, como já vimos, um elemento da forma musical –
uma melodia, uma configuração rítmica, um acorde – é expressivo de alguma emoção,
não porque desperta essa emoção em alguém, mas por duas razões bem diferentes:
(a)porque tem o mesmo “contorno” de algum comportamento humano expressivo e
assim é ouvido como expressivo de algo; ou (b)porque é correlacionado a um hábito
ou convenção estilística conectada a algum “contorno” expressivo.
183
Uma teoria que relaciona estímulo emocional e sentido em música começou
por propor que para entender uma obra musical o ouvinte deve ter suas emoções
provocadas de alguma maneira. Assim, apoiado inicialmente em uma teoria psicoló-
gica das emoções, Leonard Meyer resolveu pesquisar o sentido do objeto musical,
por meio de uma versão altamente sofisticada de formalismo, cujos primeiros resulta-
dos foram publicados em sua obra mais conhecida: Emotion and meaning in music
(1956). Assim como os precursores do formalismo musical, Meyer acredita que há
uma resposta especificamente musical ao estímulo musical, razão pela qual, ao contrá-
rio de Hanslick e Gurney, ele se esforça para reconciliar sentimento e forma. Seu
empreendimento visa à descrição do sentido musical em termos estritamente musicais,
portanto sem o concurso de expressão, de representação ou de símbolos. A tese
central de Meyer é de que a experiência musical sempre ocorre em um dado contexto
de normas estilísticas, por isso os eventos musicais são entendidos em termos de
convenções fundadas na natureza da atividade mental humana. A tendência do ser
humano de ordenar e estruturar a sua experiência daria origem aos estilos musicais,
que consistem de conjuntos de padrões habituados, com base nos quais o ouvinte
pode estimar o prosseguimento de uma dada seqüência iniciada. E como a experiência
da música é em grande parte determinada por esses moldes estilísticos – esquemas
– as convergências e as divergências do padrão geram emoção ou, melhor, “afeto”.
Nesse caso, Meyer está desconsiderando qualquer semântica para a música,
propriamente: música seria um sistema fechado de natureza sintática e formal. Sua
primeira tarefa foi, portanto, superar os problemas da dicotomia idealista de senti-
mento e forma, assim fazendo convergir emoção e cognição na construção do sentido
musical. Sua teoria enfoca, mais precisamente, o que entende por qualidade “sentida”
da emoção, e por isso ele prefere o termo “afeto”, que lhe parece menos contaminado
pela significação. Meyer explica que numa experiência pode haver uma variabilidade
da intensidade afetiva, mas o afeto mesmo é qualitativamente invariável. Experiências
emocionais distinguem-se entre si e tornam-se descritíveis somente em termos dos
eventos nos quais elas são implicadas. Essa concomitância é a condição para que os
sentimentos – angústia, amor, medo – se tornem emoções distintas. Não há sentimento
184
sem um evento ao qual se liga. Não há emoção agradável ou desagradável, e sim
experiências emocionais agradáveis ou desagradáveis. Donde a emoção como afeto
é pré-conceptual, enquanto a emoção como experiência afetiva é conceptual e
diferenciada.
Estabelecer a distinção entre o afeto e as emoções foi a maneira que Meyer
encontrou para demonstrar a existência de uma faixa de experiência afetiva
genuinamente musical – que Hanslick e Gurney já haviam sugerido. Na medida que
experimentamos o objeto musical, os “sentimentos” aí envolvidos são especificamente
musicais, surgidos apenas na contemplação do objeto musical. A fim de explicar a
conexão entre esses sentimentos específicos e a música, Meyer refere a uma tese da
teoria psicológica da emoção:
o estímulo produz uma tendência no organismo para pensar ou agir de um modo
particular. Um objeto ou situação que não evoca nenhuma tendência, para o que o
organismo é indiferente, só pode ter como resultado um estado não-emocional da
mente. Porém, mesmo quando uma tendência surge, a emoção pode não resultar.
Se, por exemplo, um fumante habitual deseja um cigarro e, procurando no bolso,
encontra um, não haverá resposta afetiva. Se a tendência é satisfeita sem demora,
nenhuma resposta emocional ocorrerá. Se, entretanto, a pessoa não encontra nenhum
cigarro em seu bolso, descobre que não há nenhum outro em casa e então se lembra
que as lojas estão fechadas e, portanto, não pode comprá-los, ele muito provavel-
mente começará a responder de uma maneira emocional. Ela se sentirá agitada,
excitada, então irritada e, finalmente, furiosa. Isso traz-nos a tese central da teoria
psicológica das emoções: emoção ou afeto surge quando uma tendência a responder
é detida ou inibida. (Meyer, 1956:3-4)
O trabalho inicial de Meyer então é transpor o conceito de tendência para a
experiência musical. Isto é, em virtude do conjunto de hábitos estilísticos previamente
experienciados pelo ouvinte, um dado evento (um estímulo musical) é percebido
como algo que traz consigo determinadas possibilidades de continuação e resolução,
cada qual com sua probabilidade de ocorrência. Quanto maior a especificidade do
evento no interior do estilo, tanto maior a implicação de uma dada continuação.
Onde a situação é ambígua e um número maior de possíveis eventos de continuação
se apresenta, ocorre uma tensão que só se dissipa quando uma eventual resolução
satisfaz a tendência. Enfim, para Meyer, em música, como em qualquer atividade
cognitiva, uma dada progressão habitual de eventos sonoros “pode ser considerada
185
um padrão, que de um ponto de vista estilístico ela é; e a alteração na progressão
esperada pode ser considerada um desvio. Por isso, desvios podem ser considerados
estímulos emocionais ou afetivos” (ibid., 32). Expectativas são, portanto, conseqüên-
cias da nossa familiaridade com um determinado estilo. E a estrutura da experiência
afetiva da música é análoga à estrutura dos eventos musicais experimentados. A tese
central é: uma emoção ou afeto é provocado quando uma tendência é adiada ou inibida,
e isso ocorre se, por alguma razão, a tendência é impedida de alcançar sua completação.
Meyer entendeu que a experiência musical envolve dois tipos de sentido: um
sentido designativo, extramusical, não diretamente implicado nos padrões da música,
e um sentido absoluto, intramusical (incorporado). Para ele, o uso indiscriminado
de um mesmo termo – sentido – para descrever um e outro tipo de sentido musical
embaça a imprescindível diferença entre as funções semântica e sintática da música.
Na experiência da música, o sentido designativo – semântico e referencial, modelo
normalmente experimentado em nossa vida prática – pressupõe, necessariamente,
associações com coisas extramusicais, algo, portanto, indefinido e indireto. O sentido
intramusical, ao contrário, diz de uma música internamente coerente inteligível e
propositada: é um produto da nossa expectativa em relação a padrões e relações
estabelecidas na obra. Assim, segundo Meyer, o padrão musical que não provoca a
expectativa de algum outro padrão subseqüente é algo sem sentido. Como a
expectativa é em grande parte um produto da experiência estilística, a música cujo
estilo é menos familiar torna-se menos significativa.
Portanto, a teoria das condições de sentido musical, que advém das teses de
Meyer, vê a música como algo interessante e provocante, só assim a música seria
significativa. E, segundo Meyer, para que a música seja significativa, deve provocar
emoção no ouvinte – caso em que é experienciada emocionalmente – ou provocar
seu intelecto – quando é experienciada conceitualmente, a partir de seu sentido
intramusical. Nos dois casos, porém, o sentido surge quando a expectativa do ouvinte
por um certo desenvolvimento da música não é confirmada pela música. É nesse
momento que ele é afetado ou se interessa intelectualmente pela obra.
186
Seguindo os termos de sua teoria formalista, ele reconheceu três estágios de
sentido sintático: o hipotético, o evidente e o determinado. Os “sentidos hipotéticos”
surgem durante o ato de expectativa, são prognósticos, previsões musicais intuitivas
de um padrão, dentre as inúmeras alternativas, que dará continuação ao padrão
presente. Os “sentidos evidentes” são aqueles que atribuímos aos padrões anteriores,
na sua relação com os padrões subseqüentes, quando estes se tornam aparentes. Por
fim, os “sentidos determinados” são os que inferimos, retrospectivamente, da obra
como um todo – englobando, portanto, as experiências dos anteriores –, quando a
obra já se encontra em nossa memória semântica (de longo-prazo), apreendida
integralmente.
Visto dessa forma, o estilo é um sistema complexo de probabilidades de relações
e o sentido especificamente musical é função do estilo. A música é significativa à
medida que surgem “desvios” em alguns aspectos do procedimento estilístico em
vigor, promovendo conflito, inibição de tendências e, assim, afeto. Esse processo é,
em grande parte, inconsciente, resultante de hábitos estilísticos e recorrências dos
mesmos modos de organização mental. Contudo, Meyer acredita que para as pessoas
que possuem um treinamento musical mais extensivo o entendimento acerca da
continuação e dos desvios dos padrões pode ser uma atividade cognitiva consciente,
intelectualmente mediada. Assim, as experiências conceptuais e sentimentais não
seriam “processos diferentes, mas maneiras diferentes de experimentar o mesmo
processo” (ibid., 40).
A teoria de Meyer é uma tentativa de caracterizar o tipo de experiência comuni-
cada pela música e, assim, revelar a natureza do valor da música para nós. Para ele
a música é significativa e o seu sentido é comunicado tanto para intérpretes quanto
para ouvintes. Uma tendência a responder é um padrão de resposta automática, um
conjunto de reações a um estímulo, que sucedem umas as outras automaticamente,
a menos que bloqueadas de alguma forma. Para Meyer, um padrão pode ser “natural”
ou aprendido, consciente ou inconsciente. Em última análise, uma tendência a respon-
der é uma expectativa, e ao longo de uma obra musical as expectativas são constante-
mente provocadas. No âmbito de um determinado estilo, algumas soluções de conti-
187
nuação são mais prováveis que outras, e é isso que gera a expectativa do ouvinte
pelas soluções que lhe parecem mais familiares e satisfatórias – segundo sua fluência
naquele estilo.
Desde a publicação dessa primeira versão da teoria de Meyer, a idéia de um
“afeto indiferenciado em termos de intensidade” tornou-se controversa. As pesquisas
da psicologia contemporânea têm demonstrado que a emoção é diferenciada e
multidimensional. Outra dificuldade encontrada em sua teoria é que o afeto indiferen-
ciado reduz a emoção a conseqüência de uma tendência de resposta inibida. Ou
seja, onde não há distúrbio ou novidade, não pode haver afeto. Entretanto, contra
essa posição está a de que o afeto seria um estado contínuo de consciência. Em seu
comentário sobre essa teoria da emoção provocada, Budd salienta que Meyer parece
tratar o impedimento de uma tendência, de uma maneira particular: como condição
“necessária” e como condição “suficiente” para o estímulo da emoção. Para Budd,
“se a inibição de uma tendência para pensar ou agir, de alguma maneira resulta em
emoção, isso depende da natureza da tendência e do que é gerado por ela” (1992:155).
O argumento é que há muitas ocasiões em que a inibição de uma tendência para
responder de alguma maneira pode não resultar em emoção. Como também há muitas
emoções que não surgem como conseqüência do impedimento de uma tendência à
resposta: “alegria e orgulho podem constituir a resposta a uma situação, e não
dependem da existência de uma tendência para alguma outra resposta que é impedida
de alcançar o desfecho” (ibidem).
Além disso, quando Meyer compara a experiência emocional (afetiva) da música
com a experiência emocional não-musical – e mesmo não-estética – a noção de
tensão acaba suplantando a noção de emoção. Isto é, a inibição de uma tendência
para responder cria tensão, e é justamente essa criação de tensão musical que ele
contrasta com os modos como a tensão surge e desaparece na experiência cotidiana.
Porém, na experiência comum os fatores que impedem uma certa tendência a respon-
der de alcançar um determinado fechamento podem ser de tipos diferentes daqueles
fatores que dão origem à tendência; e as tensões criadas podem ser dissipadas devido
a ocorrências irrelevantes, e não relacionadas com a tendência antes inibida. Em
188
música, ao contrário, as tendências para uma resposta são ativadas e inibidas pelo
mesmo estímulo – o objeto musical –, que cria – pela inibição da tendência – e dis-
solve as tensões de uma maneira sempre significativa. Além disso, embora seja
verdadeiro que o adiamento da satisfação de uma expectativa pode criar tensão,
tensão não é o mesmo que emoção. Uma tensão não está incluída em cada emoção,
nem gera, necessariamente, emoção.
A teoria de Meyer, como vemos, sofre forte influência da teoria da informação.
Explora, por exemplo, o conceito de quantidade mensurável de informação. Nesse
campo teórico, uma mensagem é um conjunto estruturado de elementos tirados de
um repertório, cuja quantidade de “informação” pode ser medida. A ocorrência do
elemento mais provável gera menos informação, ou seja, quanto maior a probabilidade
de um dado elemento em uma mensagem, menos informação ele transmite. Assim,
o grau de redundância de um elemento em uma mensagem é diretamente proporcional
à sua probabilidade: quanto mais provável for o preenchimento de uma posição em
uma mensagem por um elemento particular, menos necessário é transmiti-lo. Adições
indesejáveis em uma mensagem, ocorrentes na transmissão, que tornam seu entendi-
mento dificultado, são denominadas “ruído”. A redundância combate o ruído, mas
quanto maior o grau de redundância, menos informação é gerada.
Assim podemos entender a tese de Meyer: o sentido musical surge quando a
música torna o ouvinte indeciso sobre o seu desenvolvimento imediato, forçando
esse ouvinte a prever consciente ou inconscientemente as probabilidades de continu-
ação da obra, a partir do ponto de incerteza. A música só faz sentido para o ouvinte
quando algo menos esperado, ou mesmo improvável, acontece. A conclusão de Meyer
é, portanto, que as condições que dão origem ao sentido musical são as mesmas que
comunicam informação: quanto mais significativa a música, mais é informativa.
A razão que nos leva em grande parte à experiência cotidiana da música é sua
capacidade de despertar em nós emoções profundas e significativas, que se estendem
do prazer estético mais “puro” ao entretenimento e ao alívio da monotonia. Visto da
ótica da física, um evento musical é somente uma coleção de objetos sonoros com
determinados atributos. Entretanto, de algum modo a mente humana atribui sentido
189
a esses sons, que se tornam, assim, símbolos de outros sons e de outras coisas que
não são sons; algo que nos leva a reagir emocionalmente, a gostar ou a desgostar, ao
afeto ou à indiferença. Podemos considerar, como John Sloboda, duas razões segundo
as quais isso nos leva ao domínio da psicologia cognitiva. A primeira delas é o fato
de nossas reações à música serem, em geral, aprendidas. Isso, claro, sem negar a
possível existência de algumas respostas inatas, tais como: música rápida e muito
ruidosa é excitante, enquanto lenta e suave é relaxante; certas faixas de altura sonora,
tanto quanto certos timbres agradam, particularmente, as crianças.
A outra razão que aponta para o componente cognitivo é que nossas reações
emocionais não podem ser explicadas simplesmente como condicionamentos, embora
estes possam ocorrer em certas circunstâncias – na teoria do condicionamento supõe-
se que uma peça musical adquire o significado emocional das circunstâncias na
qual é conhecida. Se assim fosse, a forma e o conteúdo da música seriam irrelevantes,
pois somente o contexto de sua ocorrência importaria. Sloboda (1999) observa que:
(1)ouvintes numa mesma cultura musical geralmente compartilham do reconhe-
cimento do caráter emocional de uma dada peça musical, mesmo quando nunca
ouviram-na antes – a teoria do condicionamento, ao contrário, vai afirmar que haverá
diferenças significativas de respostas de acordo com as circunstâncias da audição;
(2)o caráter emocional de uma peça não é imutável, pois os ouvintes podem identificar
uma rede de diferentes emoções evocadas pelo evento musical, que se revelam confor-
me a música é mais e mais conhecida – para a teoria do condicionamento uma peça
musical seria sempre dominada por um simples caráter emocional geral, adquirido
do contexto de condicionamento; (3)nossa resposta emocional a uma mesma obra
pode variar consideravelmente de uma escuta à outra.
Estamos falando, portanto, de um estágio cognitivo e de um estágio afetivo na
experiência emocional da música. O primeiro é, de algum modo, um precursor do
segundo. Uma pessoa pode entender a música que ouve sem ser afetada por ela.
Quando é afetada pela música, então deve ter passado pelo estágio cognitivo que
envolve uma representação interna abstrata ou simbólica do texto musical experien-
ciado. E entende-se que o modo com o qual compositores, intérpretes e ouvintes
190
representam a música ao percebê-la determina como podem lembrá-la, executá-la e
apreciá-la. Mas as representações mentais e os processos que as criam não são
diretamente observáveis. Devemos inferir sua natureza das observações sobre a
maneira como as pessoas criam, memorizam e reagem à música. Todos somos capazes
de identificar uma melodia ou uma ação melódica habitual. Contudo, as notas
musicais específicas que a constituem, seu andamento (sua velocidade) ou a textura
sonora original que suporta essa ação melódica, propriamente, não são decisivos
para a identificação. Os ouvintes memorizam padrões e relações; eles criam abstra-
ções dos eventos musicais e, assim, os lembram e os reproduzem, em geral, apenas
em termos essenciais – esquemas. Por conseguinte, a música que não contém padrões
e estrutura habituais e familiares não pode ser facilmente representada na memória
do ouvinte.
A produção do ouvinte, que não demanda nenhuma ação física, caracteriza-se
por um conjunto de atividades perceptivas, intelectuais e emocionais que resultam
em memórias, em imagens mentais fugazes e altamente incomunicáveis e em
expectativas (antecipações). Quanto maior for a familiaridade do ouvinte com os
padrões envolvidos na elaboração e na execução musicais, quanto mais restritos
forem, portanto, os limites para a sua interpretação, mais forte será a impressão de
comunicação: de que algo passa, no ato da escuta. Isso se dá sempre que uma certa
maneira de perceber e interpretar um determinado objeto musical torna-se dominante.
Quando a cristalização de um padrão musical é excessiva e os estereótipos se tornam
amplamente compartilhados, a diversidade de interpretações é drasticamente
reduzida. Desse modo, tem-se a ilusão de que a música significa a mesma coisa para
ouvintes distintos, e de que ela comunica assim um sentido único. Por outro lado, na
experiência com a “música de arte”, produção que se mantém relativamente mais
desvinculada de condicionamentos, estereótipos e funcionalidades, o intérprete é
levado ao limite de sua disposição e competência mnemônicas e imaginativas diante
de um texto que lhe exige a solução de um problema de experiência estética.
191
Metáfora e emoção
O entendimento musical é, em termos globais, uma atividade cognitiva inseparável
da experiência da música. O conteúdo de uma obra musical é dado somente na
experiência estética e seu sentido é o que entendemos quando a entendemos como
música. Não se atribuem qualidades expressivas à música meramente inventando
algum código ou convenção para usá-la como meio de comunicação. O uso do
termo “expressão” para descrever o conteúdo da música reflete uma idéia bastante
difundida de que a música tem sentido porque se conecta, de algum modo, com
nossos estados mentais. A expressão lingüística da emoção musical é o ponto de
partida do processo de descoberta do sentido emocional dessa descrição em nossa
conceitualização. A questão que se apresenta é: o que constitui o sentido dessas
expressões emocionais?
Em virtude de conceitos como os sentimentos serem abstratos e pouco claros
em nossa experiência, tentamos apreendê-los através de outros conceitos que
entendemos em termos mais claros – tais como orientações espaciais ou objetos. A
metáfora desempenha assim, como já tratamos, um papel crucial no modo como
conceitualizamos nossa experiência e a dispomos comunicativamente. Donde o nosso
entendimento sucede não em termos de conceitos isolados, mas em termos de
domínios de experiência. Já discutimos, desde o capítulo 2, que o emprego da
metáfora em música é bastante extensivo. Todavia, podemos aceitar a existência de
dois tipos de descrições metafóricas em música: as indispensáveis e as gratuitas
(puramente retóricas). Se ambas são metafóricas, então seria razoável advogar um
exame mais cuidadoso das expressões lingüísticas da emoção em música,
considerando aquilo que fundamenta as metáforas relevantes e indispensáveis, ou
seja, as expressões informativas, e rejeitando os excessos poéticos.
Gostaríamos aqui de discutir um último conceito teórico sobre metáforas. Diz-
se que entender uma metáfora é apreender seu ponto, este que pode ser revelado em
uma paráfrase dela. E alguém que entende uma metáfora deve ser capaz de parafraseá-
192
la. Podemos entender que uma paráfrase elimina a metáfora, expressando o sentido
que estava contido na metáfora. Ou seja, uma expressão que não pode ser parafraseada
não pode ser uma metáfora. Contudo, uma declaração tal como “a música é triste”
não pode ser parafraseada como a regra requer. Seu ponto não pode ser apreendido
sem referência ao caráter emocional da expressividade da música; enfim, a “tristeza”
não pode ser eliminada da descrição, se desejamos dizer de outro modo a mesma
coisa sobre a música. Isso poderia levar à negação de conteúdo metafórico nas
atribuições de emoção à música.
Esse problema mereceu bastante atenção de Davies, em seu Musical meaning
and expression. Diz ele que se um determinado termo de emoção puder ser eliminado
sem perda de sentido em uma paráfrase da expressão metafórica que o contém, as
paráfrases mais usuais seriam aquelas que descrevem a música em termos de
características puramente sensíveis ou em termos técnicos abstratos. Por exemplo,
ao invés de “a música é triste” poderíamos ter “a música é lenta”, “a música é
sossegada”, “a música é grave” ou “a música é em modo menor”. Parece-nos que
nenhuma das novas expressões substitui a original com sucesso. Para Davies, “as
descrições técnicas provêem a causa das propriedades expressivas e considerar a
causa não o mesmo que considerar o efeito, assim a descrição técnica falha ao
capturar o ponto da descrição expressiva da obra musical” (1994:154).
A questão que se coloca então é a validade da regra de paráfrase. Como vimos
no capítulo 2, existem contextos em que as metáforas são indispensáveis, pois as
usamos para descrever algo que não pertence ao mundo sensível, ou seja, os domínios
em que os signos se referem a sentidos. O que essas metáforas dizem está além do
domínio do que é literalmente afirmável. As pessoas com freqüência sentem que a
música “diz” mais do que podemos adequadamente relatar, como se qualquer
expressão literal fosse apenas uma aproximação grosseira do que “está” na música.
E na experiência da música, mais do que em qualquer outra experiência artística, a
expressão metafórica parece-nos ser a única possibilidade de acesso mais satisfatório
à “verdade expressiva” da música.
193
No entanto, surge daí a questão da inefabilidade da música. Se aceitarmos que
o valor da música reside, sobretudo, em seu poder expressivo e que, por outro lado,
obras que expressam, reconhecidamente, uma mesma emoção podem ter valores
distintos, então a descrição do que a música expressa pode ser inadequada. Aqui
apenas lembramos a diferenciação proposta por Budd e sugerimos substituir o termo
“expressar” por “ser expressiva de”. Assim, pensamos que a questão desaparece, já
que obras distintas podem perfeitamente ser expressivas de uma mesma emoção,
isto é, podem ter aparências expressivas similares.
O símbolo não-consumado
Se a atividade cognitiva envolve percepção, memória e associação de informações,
o pensamento implica, sobretudo, a habilidade para representar mentalmente situações
ausentes e hipotéticas, para projetar-se numa cadeia especulativa que ultrapassa o
presente imediato, produzindo o provável e o improvável, criando mundos possíveis
e impossíveis. Essa é a esfera do pensamento simbólico. É evidente que na escuta o
objeto que o ouvinte reproduz para si mesmo, o objeto imaginado – uma produção
do receptor como ato criativo – não é mais o mesmo objeto. E ao converter o objeto
sonoro, de seu estado “material” para a imagem mental, o ouvinte se transforma
junto com o objeto. Desse modo, no ato da escuta dão-se, conjuntamente, a reprodução
do objeto sonoro no pensamento do ouvinte e a reprodução do próprio pensamento
musical que se renova em virtude da originalidade de cada novo ato de escuta.
Para a tradição psicológica, no processo de percepção reunimos informações
acerca do mundo e buscamos intencionalmente a operação mental, o constructo, de
uma proposição do mundo percebido. Humberto Maturana, no entanto, adverte que
esse processo consiste mais numa interação fluente com o meio do que num simples
processo de captação de informações pelos órgãos sensoriais. Implica um “fluir
estrutural” do sujeito numa contínua adaptação com o fluir estrutural do meio, mas
nessa interação só se desencadeiam no sujeito mudanças estruturais nele próprio
194
determinadas. Disso é possível inferir que as proposições sobre o mundo percebido
podem ser alimentadas sem ser afirmadas; a imaginação é a faculdade que nos permite
fazê-lo e isso não significa que temos uma liberdade imaginativa total. Antes de
tudo, nossa percepção é conduzida numa interação com os objetos do mundo.
O que é experienciado por alguém não se pode transferir totalmente para mais
ninguém. No entanto, algo pode transferir-se de uma esfera de vida para outra. Este
algo não é a experiência enquanto experienciada, mas o seu sentido. A experiência,
como vivida, permanece privada, mas o seu sentido torna-se público. Segundo
Ricoeur, a comunicação é uma superação da não comunicabilidade radical da expe-
riência enquanto experienciada, porém “o que se pode comunicar é, antes de mais,
o conteúdo proposicional do discurso” (Ricoeur, 1976:28). O próprio Ricoeur recla-
ma, entretanto, um sentido que vai além do signo lingüístico. Parece-lhe que no
interior do símbolo haveria algo de não semântico e também algo de semântico.
Seria o símbolo uma estrutura de duplo sentido, que não é uma estrutura puramente
semântica – é o que ocorre com a metáfora.
Entendemos, em última instância, o exercício metafórico na experiência musical
como tentativa subliminar de acessar um potencial simbólico da música. É, porém,
o imaginário, como uma dimensão outra de realidade que se afasta da razão utilitária,
a única via para a indeterminação que há no objeto musical. E na experiência da
música talvez nos dirijamos a uma ordem interior, o inverso, portanto, da operação
do paradigma moderno de comunicação. Ninguém discute a intenção de uma
comunicação lingüística, uma placa de trânsito ou de um texto em Morse veicular
“mensagens”. Contudo, demais fatos culturais
2
como, entre outros, as artes –
“comunicações” aparentemente imotivadas e espontâneas –, vêm cada vez mais
desafiando a pesquisa semântica. Nesse sentido, se encararmos a hipótese de que
todos os fenômenos de cultura sejam essencialmente comunicação, devemos inves-
tigar os “fatos” cujo fim não parece ser uma “comunicação de mensagens”.
Algumas ou mesmo todas as obras musicais têm sido pensadas como símbolos
de estados mentais e de vida emocional – ou outros tipos de fenômenos extramusicais
–, e, muitas vezes, adquirem relevância por esse tipo de atribuição, por sua função
195
simbólica. Devemos então discutir o conceito de símbolo aqui empregado, uma vez
que a idéia de símbolo é, por vezes, um conceito incerto e flutuante. É essencial que
a natureza da suposta função simbólica da música seja esclarecida, e para isso
começaremos por citar a iniciativa de Susanne Langer (1942). Algumas proposições
reúnem as suas idéias principais: (a)cada obra musical significativa é um símbolo,
mas não um símbolo discursivo; (b)trata-se de um símbolo de apresentação, porém
não-consumado; e (c)ele simboliza a forma de um sentimento.
Segundo Langer, para uma coisa ser símbolo de outra, ambas devem ter uma
estrutura similar. E o que distingue um símbolo de seu objeto é o estado mental da
pessoa para quem o símbolo é um símbolo daquele objeto. Achamos um item – o
objeto – mais interessante do que o outro – o símbolo, mas também achamos o
segundo item mais fácil de usar, pois o símbolo facilita o conhecimento que a pessoa
requer do objeto simbolizado. É com o símbolo que pensamos o objeto. Langer
observa, entretanto, que há dois tipos de símbolo: o lingüístico (discursivo) e o não-
lingüístico (apresentativo). Uma linguagem é, antes de tudo, um sistema simbólico
que, portanto, funciona simbolicamente de um modo particular, e o símbolo discursivo
tem uma função simbólica determinada da mesma forma que a da linguagem. Um
símbolo não-discursivo, por outro lado, não simboliza por meio de unidades fixas
de sentido; seus elementos são entendidos apenas através do sentido do símbolo
como um todo. Ou seja, uma seqüência de eventos sonoros que compõem um objeto
musical não é um item independente com sentido fixado e provavelmente equivalente
ao sentido de outro conjunto de eventos elementares.
A função crucial da música, para Langer, é simbolizar sentimentos: emoções e
todo tipo de estados mentais. Não é, portanto, expressar as emoções do compositor,
nem evocar emoções nos ouvintes. A música formula concepções de sentimentos,
revelando-nos qualidades importantes da vida interior. Langer entende que em música
os sentimentos tornam-se concebíveis e, assim, podem ser entendidos. Mas se a
música é um símbolo, deve possuir uma analogia estrutural com o fenômeno que
simboliza: “como tal, precisa ter, antes de tudo, características formais análogas ao
que quer que pretenda simbolizar; (...)tem de exibir uma forma lógica que o objeto
196
também possa assumir” (1989:224). E de acordo com Langer, a maneira pela qual
uma obra musical pode ter alguma semelhança com a estrutura da vida emocional é
possuir a mesma estrutura temporal: padrões de movimento e repouso, tensão e
relaxamento, concordância e discordância, preparação e subtaneidade. Mas, uma
forma definida é o que as emoções não têm. Cada experiência de um mesmo tipo de
emoção apresentará uma forma particular, além de tipos diferentes de emoções
poderem apresentar uma mesma forma.
No entanto, Langer diz que as formas dos sentimentos que a música simboliza
não têm representações lingüísticas adequadas, devido à natureza discursiva da
linguagem – não há congruência simbólica entre tais sentimentos e a linguagem. As
referências lingüísticas de nossa vida emocional seriam, portanto, altamente gerais,
vagas e superficiais. Ela diz ainda que da mesma maneira que sentimentos diferentes
podem compartilhar a mesma forma, algumas formas musicais podem simbolizar
alegria e tristeza igualmente bem. Isso significa que a música, embora seja uma
forma simbólica do sentimento, não simboliza diferentes sentimentos. Assim sendo,
o que a música faz é traduzir imagens vitais extraordinariamente evasivas para a
consciência humana, imagens de vitalidade que nos revelam uma verdade oculta
sobre como sentimos os sentimentos. Por isso, a música tem “feição de organismo”.
A música é um símbolo apresentativo que representa apenas a morfologia do
sentimento, e não sua natureza completa. É, pois, um “símbolo não-consumado”.
O primeiro ponto de controvérsia na teoria de Langer é que ela tende a considerar
apenas como concomitâncias contingenciais da emoção coisas que estão envolvidas
em grande parte das emoções, tais como sentimentos com forma e caráter dinâmicos,
objetos aos quais esses sentimentos são direcionados, certos tipos de crenças sobre
a natureza dos objetos, expressões comportamentais e contextos causais. Poderia-se
alegar então que as emoções são muito mais ricas do que Langer admite.
Por outro lado, sua teoria do simbolismo discursivo pode ser rejeitada, uma vez
que os sentidos lingüísticos dependem mais dos contextos do que de sua forma.
Langer nega que símbolos apresentativos sejam exatamente referenciais e, por isso,
caracteriza-os como não-consumados. Aparentemente há um contra-senso nessa
197
afirmação, porquanto Langer insiste que a música envolve um tipo de simbolismo,
mas nega que ela seja referencial. Podemos argumentar, no entanto, que a intenção
de fazer uma obra expressiva não necessita incluir uma “intenção referencial”. A
análise da expressividade musical deve ser uma análise de como a música possui
um certo sentido, mais do que de seu potencial para o uso referencial. A questão,
como Langer parece reconhecer, não é a possibilidade de um uso referencial como
tal, e sim a consideração de como a música possui um sentido que deve ser empregado
pelo compositor para criar uma referência geral, na ausência das convenções que
caracterizam um sistema simbólico.
Como discutimos ao longo do trabalho, a escuta designa um estado com um
conteúdo imagético, um estado que representa o objeto musical como sendo de um
certo modo. Podemos colocar a questão de como esses estados psicológicos dialogam
com a crença e o pensamento. Conceitos são habilidades psicológicas para termos
crenças e pensamentos nos quais compreendemos um modo particular de
apresentação. O modo de apresentação individualiza o conceito. Nosso sistema de
conceitualização desempenha um papel central na definição de nossa realidade em
termos de pensamento e ação. Entretanto, se entendemos uma obra musical, temos
um conhecimento dela, e mais do que um conhecimento proposicional, temos um
conhecimento prático da obra: sabemos como conhecê-la, sem necessariamente saber
o que conhecemos dela. Assim sendo, se na escuta musical não discriminamos os
eventos que representamos de algum modo e os eventos que não representamos de
modo algum, realizamos, antes de mais, uma escuta não-conceptual que pode ou
não avançar para um nível conceptual.
Pode-se construir uma teoria da significação dos símbolos, isto é, uma teoria
que explica a sua estrutura em termos de significado – o caráter lingüístico dos
símbolos. Entretanto, o imaginário metafórico permite-nos isolar o nível não-
lingüístico dos símbolos. A atividade simbólica carece de autonomia. Se a metáfora
ocorre no universo já purificado do logos, o símbolo hesita na linha divisória entre
a vida e o pensamento. A experiência simbólica parece exigir um trabalho do sentido,
a partir da metáfora, e o símbolo permanece um fenômeno bidimensional na medida
198
em que a face sígnica se refere à não-sígnica. Portanto, as metáforas são precisamente
a superfície lingüística dos símbolos e devem o seu poder de relacionar a superfície
conceptual com a superfície pré-conceptual, nas profundidades da experiência
humana, à estrutura bidimensional do símbolo.
Como já afirmamos, a intenção de fazer com que uma obra seja expressiva não
inclui, necessariamente, intenções referenciais precisas. A questão da composição
musical é como a música possui um certo sentido, e não acerca do seu potencial de
uso referencial. A imaginação opera uma suspensão a partir da qual nosso sistema
conceptual cria realidades, e é à possibilidade de haver uma ordem esquemática de
sentido não-conceptual, incluída na experiência da música, que está imediatamente
ligado o entendimento musical.
Notas
1
Embora a voz humana tenha sido estendida metaforicamente para incluir instrumentos musicais, a
música vocal foi considerada por Hanslick e outros como a que poderia expressar as emoções de forma
mais precisa. Sobre isso ele afirma que: (a)a música instrumental não pode representar emoções definidas;
(b)as descrições da música pura, empregando termos para emoções, sempre podem ser eliminadas em
favor de outras descrições, usando outros termos (figurativos); e (c)o propósito da música instrumental
não é a evocação de uma resposta emocional.
2
O fazer humano está intimamente ligado a uma atitude e cada atitude a um agir operativo. Manuel Antô-
nio de Castro lembra que todo agir está centrado no homem, primeiramente, e que esse agir, nessa instância,
“nos mostra o homem numa infinidade de atividades, que recebem o nome genérico de cultura. (...)Temos,
portanto, que todo e qualquer fazer humano antes de ser um fazer específico é um fazer cultural.” (Castro,
1982:16)
CONCLUSÃO
Segundo Niklas Luhmann, convencionou-se presumir que os seres humanos podem
comunicar; isso seria uma convenção necessária, porque a comunicação dirige,
necessariamente, suas operações àqueles que deverão continuar a comunicação.
Contudo, diz ele, nós mesmos não podemos comunicar, porquanto só a comunicação
pode comunicar. Aquilo que experienciamos como nossas próprias mentes opera
como um sistema autopoiético isolado. Não há, pois, ligação consciente entre uma
mente e outra. As unidades operacionais não têm mais de uma mente como sistema;
e as operações mentais são baseadas no isolamento do sistema, condição
indispensável de sua autonomia. Por conseguinte, Luhmann acredita que a mente
não pode conscientemente comunicar; ela pode imaginar que está comunicando,
mas isso é apenas uma de suas operações internas, que possibilita a continuidade do
processo de pensamento.
A comunicação, por outro lado, dificilmente pode ocorrer sem a participação
da mente. Não há comunicação sem mente. A mente – sistema físico – participa da
comunicação – sistema social – como sistema determinado estruturalmente e como
meio. E isso só é possível, porque mente e comunicação são sistemas completamente
separados e auto-referentes. Luhmann também destacou que como só a mente é
capaz de perceber e nisso inclui-se a percepção da comunicação. Mas as percepções
da mente, nela permanecem restritas e incomunicáveis. O que fazemos são descrições
– que não são percepções – de percepções e, desse modo, as percepções podem
sugerir motivos para a comunicação sem se tornar comunicação. Enfim o papel da
mente na comunicação é estimulá-la, e isso é uma condição exclusiva da mente,
uma vez que nenhuma outra operação, seja física, química ou neurofisiológica, pode
fazê-lo.
200
A essa formulação gostaríamos de juntar uma outra, relativa à nossa condição
de consumidores de sentidos conceptuais e não-conceptuais. Desde Kant, há um
pensamento sobre arte que diz respeito à comunicação não-conceptual. Entretanto,
poderíamos, hoje, colocar a questão de como uma comunicação sem conceito pode
existir quando os produtos pós-modernos das tecnologias aplicadas à arte não podem
existir sem a intervenção hegemônica do conceito. Na estética moderna, o termo
“comunicação” esteve ligado a uma comunicabilidade enquanto exigência e não
como ato, o que criava uma ilusão de atividade comunicativa. Para Dirk Baecker,
arte é a realização de um tipo especial de comunicação e se desenvolve problemati-
zando a auto-referencialidade sistemática da comunicação. Nessa hipótese, a arte é
uma resposta a um problema que surge quando descobrimos que nossas mentes
podem participar da comunicação, mas não podem perceber aquilo que é comunicado.
Nesse sentido, a arte compensaria a nossa inabilidade de perceber participando da
comunicação, sugerindo a comunicação de percepções, propriamente. Se de um
lado um discurso implica comunicação, de outro um “discurso da percepção” também
implica uma dimensão comunicativa, à medida que enquanto percepção, deve ser
comunicável.
A música apresenta a percepção ao estimular, primeiramente, nossa sensoria-
lidade auditiva e, a partir disso, nossos recursos cognitivos: ela sugere a “comuni-
cação” dessa apresentação. Assim sendo, podemos propor que o objeto musical, em
especial, intensifica o desdobramento do domínio das referências para a comunicação
(pragmática), no domínio das referências para a percepção (entendimento). Enquanto
ouvimos sons como música temos tanto a realidade física das vibrações e os sons,
propriamente, que percebemos na experiência dessas vibrações, quanto um objeto
musical que escutamos nos sons enquanto “objetos sonoros”, que envolve efeitos
animísticos, produção imaginativa de formas e efeitos emocionais. A música é,
portanto, uma apresentação sem apelos estritamente comunicacionais, e isso favorece
um entendimento que prescinde da recuperação de um mundo ficcional oculto na
música. Podemos dizer que só apreendemos o sentido da música por meio de um ato
de entendimento musical, e não por mera atribuição de valor. Por isso, na experiência
201
da música estamos na presença indubitável de um objeto de percepção que referencia
as circunstâncias de sua comunicação, e não hesitamos quanto ao modo de experimen-
tarmos as percepções que ele “comunica”.
Vimos que a imaginação, por sua vez, contribui concretamente com a suspensão
da referência usual (comunicacional). Toda suspensão, pode-se dizer, é o trabalho
da imaginação, e a imagem como ausência é o aspecto negativo da imagem como
ficção. A esse aspecto está ligada a força do nosso sistema conceptual para criar
realidades. Se considerarmos que o real é o mundo incorporado e não é totalmente
descritível proposicionalmente, então podemos pensar uma ordem de sentido não-
conceptual: uma “desrealização” – sem, contudo, entendermos o termo como ausência
de pensamento, e sim de conceito. A questão que se apresenta não é, pois, se deve
existir uma organização não-conceptual – esquemas – apresentada pelo objeto
musical, mas se seria suficiente escutar essa organização para ouvir e entender
música como música – não podemos esquecer que há também sentidos conceptuais
na experiência musical.
No presente estudo, entendimento é algo composto pelas estruturas imaginativas
que surgem de nossa experiência enquanto organismos corpóreos que interagem
com um meio. Portanto, é um conceito fundado na ampliação do termo “experiência”,
que adquire as dimensões perceptivas, motoras, emocionais, históricas, sociais e
lingüísticas. Uma teoria do entendimento musical deve ser o núcleo de uma teoria
do valor musical. Quando ouvimos e não entendemos uma música, normalmente
não estamos em condição de fazer nossa própria estimativa de seu valor musical.
Ainda que consideremos gratificante a nossa experiência com uma obra musical,
entendendo ou não essa obra, somente quando ouvimos e entendemos é que o valor
da música pode ser atualizado em nossa experiência. Assim, acreditamos que o
valor da música é função da experiência de entendimento do ouvinte. E se uma
música é algo que pode ser entendido, então deve ser possível para muitos ouvintes
compartilhar seu entendimento.
202
De fato, o compositor pode imaginar – e assim o faz – como a sua obra soará e
pode pretender que ela seja ouvida de uma certa maneira. Se isso é possível, há uma
possibilidade de comunicação musical: o compositor – e, de outro modo, o intérprete
– participa da comunicação de uma experiência particular para o ouvinte. A experiên-
cia que o compositor quer que esteja em comunicação consiste em ouvir a composição
de uma certa maneira. Se um modo de ouvir uma composição é válido e o valor
reside precisamente em ouvir a composição de uma certa maneira, o valor não é
destacável da experiência da composição. Ou seja, o valor musical de uma obra
pode estar em uma experiência que o compositor quis que fosse comunicada ao
ouvinte, mas apenas se o que é comunicado não é outra coisa senão uma experiência
que envolve a escuta do objeto musical. A composição musical é crucialmente deter-
minada pela maneira como participamos de sua comunicação, como a tornamos
expressiva e como ela faz sentido para nós. Portanto, entender uma música é ter a
experiência que foi comunicada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução Artur Morão. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
______. Filosofia da nova música. Tradução Magda França. São Paulo: Perspectiva,
1989.
AMARAL, Marcio T. d’. O homem sem fundamentos: sobre linguagem, sujeito e
tempo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ (Tempo Brasileiro), 1995.
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. Tradução Marcelo Coelho. São
Paulo: Ática, 1994.
______. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
BAECKER, Dirk. The unique appearance of distance. In: Gumbrecht, Hans U. &
Marrinan, Michael. Mapping Benjamin: the work of art in the digital age. Stanford:
Stanford University Press, 2003, pp. 9-23.
BALLSTAEDT, Andréas. “Dissonance” in music. In: Gumbrecht, Hans U. & Pfeiffer,
K. Ludwig (ed). Materialities of communication. Stanford: Stanford University Press,
1994, pp. 157-169.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Pers-
pectiva, 3ª ed., 1993.
______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução Léa Novaes. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama e
Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
______. Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1999.
BAUMGARTEN, A. G. Estética: a lógica da arte e do poema. Tradução Miriam
Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes, 1993.
204
BERENSON, F. M. Interpreting the emotional content of music. In: Krausz, Michael
(ed). The interpretation of music: philosophical essays. New York: Oxford University
Press, 1995, pp. 61-72.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
______. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução
Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BERRY, Wallace. Structural functions in music. New York: Dover, 1987.
BLACK, Max. More about metaphor. In: A. Ortony (ed.). Metaphor and thought.
Cambridge, 1993.
BLACKING, John. Music, culture, experience: selected papers of John Blacking.
Chicago: University of Chicago Press, 1995.
BOUGNOUX, Daniel. Introdução às ciências da informação e da comunicação.
Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1994.
BOULEZ, Pierre. A Música hoje. Tradução Reginaldo de Carvalho e Mary Amazonas
Leite. São Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1981.
BOWMAN, Wayne D. Philosophical perspectives on music. New York: Oxford
University Press, 1998.
BREGMAN, Albert S. Auditory scene analysis: the perceptual organization of sound.
Cambridge, MA: MIT Press, 1999.
BUDD, Malcolm. Music and the emotions: the philosophical theories. London e
New York: Routledge, 1992.
BURROWS, David. Sound, speech, and music. Amherst: The University of Massa-
chusetts Press, 1990.
CANCLINI, Nestor G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globali-
zação. Tradução Maurício Santana Dias e Javier Rapp. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1999.
CASEY, Edward S. Imagining: a phenomenological study. Indianapolis: Indiana
University Press, 2000.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Tradução Álvaro Cabral. Campinas:
Editora da Unicamp, 1997.
205
CASTRO, Manuel A. de. O acontecer poético: a história literária. Rio de Janeiro:
Antares, 4ª ed., 1982.
CHAFE, Wallace. Discourse, consciousness, and time: the flow and displacement
of conscious experience in speaking and writing. Chicago: The University of Chicago
Press, 1994.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Tradução Mary Del Priore. Brasília: Udunb,
1994.
CHOMSKY, Noam. Aspectos da teoria da sintaxe. Tradução José António Meireles
e Eduardo Paiva Raposo. Coimbra: Arménio Amado, 1978.
CLIFTON, Thomas. Music as heard: a study in applied phenomenology. New Haven
and London: Yale University Press, 1983.
COMTE-SPONVILLE, André. O ser-tempo: algumas reflexões sobre o tempo da
consciência. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
COOK, Nicholas. Music, imagination, and culture. New York: Oxford University
Press, 1992.
COOKE, Deryck. The language of music. New York: Oxford University Press, 1989.
COSTÈRE, Edmond. Mort ou transfiguration de l’harmonie. Paris: Presses
Universitaires de France, 1962.
DAVIES, Stephen. Musical meaning and expression. Ithaca: Cornell University Press,
1994.
______. Why listen to sad music if it makes one feel sad? In: Robinson, Jenefer
(ed). Music and meaning. Ithaca and London: Cornell University Press, 1997, pp.
242-253.
DEBELLIS, Mark. Music and conceptualization. Cambridge: Press Syndicate of
the University of Cambridge, 1995.
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução Elza Moreira Marcelina.
Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Ática, 1989.
DELEUZE, Gilles. Différence et répétition. Paris: Presses Universitaires de France,
10ª Ed., 2000.
206
DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
São Paulo: Editora 34, 1997.
DERRIDA, Jacques. L’écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967.
______. Gramatologia. Tradução Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro.
São Paulo: Perspectiva e Edusp, 1973.
DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2002.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Tradução Carlos Aboim de Brito. Lis-
boa: Edições 70, 1993.
______. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução
René Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 1998.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Tradução Mauro Sá Rego Costa. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
EDELMAN, Gerald. The remembered present: a biological theory of consciousness.
New York: Basic Books, 1989.
______. Bright air, brilliant fire: on the matter of the mind. New York: Basic Books,
1992.
EDELMAN, Gerald. & TONONI, Giulio. A universe of consciousness: how matter
becomes imagination. New York: Basci Books, 2000.
FISKE. Introduction to communication studies. New York: Routledge, 1990.
GADAMER, Hans-Georg. A Razão na época da ciência. Tradução Ângela Dias.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
______. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.
GOODMAN, Nelson. Languages of art: an approach to a theory of symbols.
Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1976.
GRADY, Joseph. The conduit metaphor: a reassessment of metaphor for communi-
cations. In: Koenig, J-P. Discourse and cognition: bridging the gap. Cambridge:
Cambridge University Press.
GRANGER, Gilles.G. Essai d’une philosophie du style. Paris: Colin, 1968.
207
GROUT, Donald & PALISCA, Claude. História da música ocidental. Tradução Ana
Luísa Faria. Lisboa: Gradiva, 1994.
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. O campo não-hermenêutico. In: Cadernos da Pós/
Letras nº5. Transcrição e tradução João Cezar de C. Rocha. Rio de Janeiro: UERJ,
1992, pp.9-33.
______. Rhythm and Meaning. In: Gumbrecht, H. U. (org). Materialities of
Communication. Stanford: Stanford University Press, 1994a, pp.170-182.
______. A Farewell to Interpretation. In: Gumbrecht, H. U. (org). Materialities of
Communication. Stanford: Stanford University Press, 1994b, pp.389-402.
______. Modernização dos sentidos. Tradução Lawrence Flores Pereira. São Paulo:
Editora 34, 1998.
GURNEY, Edmund. The power of sound. New York: Basic Books, 1966.
HANSLICK, Eduard. Do belo musical: uma contribuição para a revisão da estética
musical. Tradução Nicolino Simone Neto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
______. Music criticisms. (Pleasants, Henry: ed.). New York: Dover Publications,
1988.
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução: Paulo Meneses. Petró-
polis: Vozes, 1992.
______. Estética. Tradução Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães
Editores, 1993.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis:
Vozes, parte i, 5ª ed., 1995, parte ii, 3ª ed., 1993.
______. A Origem da obra de arte. Tradução Maria da Conceição Costa. Lisboa:
Edições 70, 1992.
HUSSERL, Edmund. Ideas relativas a uma fenomenologia pura y uma filosofia
fenomenológica. Tradução José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.
INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. Tradução Albin E. Beau, Maria da
Conceição Puga e João F. Barrento. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
208
______. The work of music and the problem of its identity. Berkeley: University of
California Press, 1986.
ISER, Wolfgang. The Fictive and the imaginary. Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1993.
______. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução Johannes Krets-
chmer. São Paulo: Ed. 34, 1996.
JACKENDOFF, Ray. Conceptual semantics. In: Eco, Umberto, Santambrogio, Marco
& Violi, Patrizia (ed.). Meaning and mental representations. Bloomington and India-
napolis: Indiana University Press, 1988.
JAUSS, Hans Robert. Toward an aesthetic of reception. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1982.
JOHNSON, Mark. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination,
and reason. Chicago: University of Chicago Press, 1990.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valério Rohden e Atónio
Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2ª ed., 1995.
KIVY, Peter. The corded Shell: reflections on musical representation. New York,
Ithaca, 1991.
______. Music alone: philosophical reflections on the purely musical experience.
New York, Ithaca, 1990.
______. Sound and semblance: reflections on musical representation. New York,
Ithaca, 1991.
______. Authenticities: philosophical reflections on musical performance. New York,
Ithaca, 1995.
KÖVECSES, Zoltán. Metaphor: a practical introduction. Oxford: Oxford University
Press, 2002.
______. Metaphor and emotion: language, culture, and body in human feeling.
Cambidge: Cambridge University Press, 2003.
KRUMHANSL, Carol L. Cognitive foundations of musical pitch. New York: Oxford
University Press, 2001.
209
KUPERMAN, Priscila. Comunicação e imaginário. In: Lumina – Facom/UFJF v.3,
n.2, p.93-107, jul/dez., 2000.
______. Comunicação, consciência estética e natureza. In: e.Pós – Revista da Pós-
Graduação - Eco/UFRJ, ano 2, n.4, 2003.
LAKOFF, George. Cognitive semantics. In: Eco, Umberto, Santambrogio, Marco &
Violi, Patrizia (ed.). Meaning and mental representations. Bloomington and India-
napolis: Indiana University Press, 1988.
LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago and London:
University of Chicago Press, 1980.
______. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western
thought. New York: Basic Books, 1999.
LANGER, Susanne K. Sentimento e forma. Tradução Ana M. Goldberger Coelho e
J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1980.
______. Filosofia em nova chave. Tradução Janete Meiches e J. Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1989.
LEÃO, E. Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1977.
LEDOUX, Joseph. The emotional brain: the mysterious underpinnings of emotional
life. New York: Touchstone Book, 1998.
LERDAHL, Fred & JACKENDOFF, Ray. A generative theory of tonal music.
Cambridge: The Massachusetts Institute of Technology Press, 1996.
LEVINSON, Jerrold. Music in the moment. Itacha: Cornell University Press, 1997a.
______. Music and negative emotion. In: Robinson, Jenefer (ed). Music and meaning.
Ithaca and London: Cornell University Press, pp. 215-241, 1997b.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da
informática. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
______. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1999.
LYOTARD, Jean-François. The inhuman: reflections on time. Tradução Geoffrey
Bennington e Rachel Bowlby. Stanford: Stanford University Press, 1991.
______. A Fenomenologia. Tradução Armindo Rodrigues. Lisboa: Edições 70, 1999.
210
LUHMANN, Niklas. How can the mind participate in communication? In: Gumbre-
cht, Hans U. & Pfeiffer, K. Ludwig (ed). Materialities of communication. Stanford:
Stanford University Press, 1994, pp. 371-387.
MAC-CORMAC, Earl R. A cognitive theory of metaphor. Cambridge: The Massa-
chusetts Institute of Technology Press, 1985.
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. (Cristina Magro, Miriam
Graciano e Nelson Vaz: organizadores). Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
MCGAUGHEY, William. Rhythm and self-consciousness: new ideals for an electro-
nic civilization. Minneapolis: Thistlerose Publications, 2001.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O primado da percepção e suas conseqüências filo-
sóficas. Tradução de Constança Marcondes César. Campinas: Papirus, 1990.
______. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
MEYER, L. Emotion and Meaning in Music. Chicago: University Chicago Press,
1956.
______. Style and music. Philadelphia: University of Pennsylvania, 1989.
______. Music, the arts, and ideas: patterns na predictions in twentieth-century
culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
MOLES, Abraham. Teoria da informação e percepção estética. Tradução Helena
Parente Cunha. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
NATTIEZ, J-J. Fondements d’une sémiologie de la musique. Paris: Union générale
d’éditions, 1975.
______. Music and Discourse: toward a semiology of music. Tradução Carolyn
Abbate. Princeton: Princeton University Press,
NEF, Frédéric. A linguagem: uma abordagem filosófica. Tradução Lucy Magalhães.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
NEUBAUER, John. The Emancipation of music from language. New Haven/
London: Yale University Press, 1986.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e pessimismo.
Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
211
NOGUEIRA, Marcos. Música e ficção: uma introdução à estética da recepção musi-
cal. (Dissertação de mestrado). Rio de Janeiro: UNI-Rio, 1996.
______. Condições de interpretação musical. In: Debates: cadernos do programa de
pós-graduação em música, nº3. Rio de Janeiro: UNI-Rio, 1999, pp. 57-80.
______. Música como desrealização: sobre o real, o imaginário e o ato da composição.
In: Revista Brasileira de Música, v.2/1. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002, pp. 51-67.
______. Dos sons à imagem da música. In: Brasiliana, nº15. Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Música, 2003, pp. 2-9.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São
Paulo: Ática, 1992.
ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. Tradução Ricardo Araújo.
São Paulo: Cortez, 1991.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. Tradução Maria Helena Nery Garcez.
São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1989.
PARRET, Herman. A estética da comunicação: além da pragmática. Tradução Roberta
Pires de Oliveira. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
PASHLER, Harold E. The psychology of attention. Cambridge, MA: MIT Press.,
1999.
PEIRCE, Charles S. Semiótica. Tradução José Teixeira Coelho Neto. São Paulo:
Perspectiva, 2ª ed., 1995.
PRATT, Carroll. The meaning of music. a study in psychological aesthetics. New
York: McGraw-Hill, 1931.
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, I. Entre o tempo e a eternidade. Lisboa: Gradiva,
1990.
RAMEAU, Jean-Philippe. Treatise on harmony. Tradução Philip Gossett. New York:
Dover Publications, Inc., 1971.
RICOEUR, Paul. The rule of metaphor. Toronto: University of Toronto Press, 1977.
______. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. In: Sacks,
Sheldon (org.). Da metáfora. Tradução Franciscus W. A. M. van de Wiel. São Paulo:
EDUC/Pontes, 1992, pp.145-160.
212
______. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Tradução
Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1996.
RIETHMÜLLER, Albrecht. The matter of music is sound and body-motion. In:
Gumbrecht, Hans U. & Pfeiffer, K. Ludwig (ed). Materialities of communication.
Stanford: Stanford University Press, 1994, pp. 147-156.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução Fulvia M.
L. Moretto. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. Rio de
Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 8ª ed., 1989.
______. O imaginário. Tradução Duda Machado. São Paulo: Ática, 1996.
SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux: essai interdisciplines. Paris: Seuil,
1966.
SCHENKER, Heinrich. Free Composition. Tradução Ernst Oster. New York:
Longman, 1979.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tradução M.
F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
SCRUTON, Roger. Art and imagination. London: Methuen & Co, 1974.
______. The aesthetics of music. New York: Oxford University Press, 1997.
SEARLE, John. Expression and meaning. Cambridge: Cambridge University Press,
1979.
______. Intentionality: na essay in the philosophy of mind. Cambridge: Cambridge
University Press, 1983.
______. The rediscovery of the mind. Massachusetts: The Massachusetts Institute
of Technology Press, 1992.
SHEPHERD, John & WICKE, Peter. Music and Cultural theory. Cambridge: Polity
Press, 1997.
SIEGERT, Bernhard. There are no mass media. In: Gumbrecht, Hans U. & Marrinan,
Michael. Mapping Benjamim: the work of art in the digital age. Stanford: Stanford
University Press, 2003, pp. 30-38.
213
SLOBODA, John A. The musical mind: the cognitive psychology of music. New
York: Oxford University Press, 2000.
SMITH, F. Joseph. The experiencing of musical sound: Prelude to a phenomenology
of music. New York: Gordon and Breach Science Publishers, 1979.
SNYDER, Bob. Music and memory: uma introdução. Massachusetts: The Massa-
chusetts Institute of Technology Press, 2000.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
SWAIN, Joseph P. Musical languages. New York: W. W. Norton & Company, 1997.
TATIT, Luiz. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994.
VARELA, Francisco, THOMPSON, Evan & ROSCH, Eleanor. The embodied mind:
cognitive science and human experience. London: Massachusetts Institute of
Tecnology Press, 1993.
WALTON, Kendall. Listening with imagination: is music representational? In:
Robinson, Jenefer (ed). Ithaca and London: Cornell University Press, 1997, pp. 57-
82.
WINN, James Anderson. Unsuspected Eloquence: a history of the relations between
poetry and music. New Haven/ London: Yale University Press, 1981.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz: a “literatura medieval”. Tradução Amálio Pinheiro
e Jerusa P. Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
______. Body and Performance. In: Gumbrecht, Hans U. & Pfeiffer, K. Ludwig
(ed). Materialities of communication. Stanford: Stanford University Press, 1994,
pp. 217-226.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo