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CARMENROSA VARGAS CÉSPEDES
“A LINGUAGEM DA LUZ
Naturalismo e expressionismo na fotografia cinematográfica.
Tese de Mestrado
Tese apresentada à Escola de Comunicação Social da
Universidade Federal de Rio de Janeiro, como exigência
para obtenção do grau de Mestre em Ciências da
Comunicação, dentro do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Henrique Auton.
Escola de Comunicação Social
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RIO DE JANEIRO
Rio de Janeiro - 2004
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2
Escola de Comunicação Social
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RIO DE JANEIRO
BANCA EXAMINADORA
Titulares:
___________________________________
Prof. Dr. Arlindo Machado
___________________________________
Prof. Dr. Henrique Antoun
___________________________________
Prof. Dr. Marcio D´Amaral
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3
Agradecimentos
______________________________________________________________
Aos meus Pais pela luz. Ao Mario pelo amor inteligente. Aos meus Irmãos pela
força. Aos meus Sobrinhos pelo riso. Ao Marcio D´Amaral pela fé. Ao Muniz Sodré
pelo bios. Ao Henrique Aunton pela tese. Ao Pierre Lévy pela coragem. Aos
professores: Julio Hevia, Oscar Luna-Victoria, Fernando Ruiz e Oscar Quezada
pela torcida. À Raquel Paiva pela liberdade. Ao Emanuel Carneiro Leão por aquele
passeio. Ao Arlindo Machado pelo seu tempo. Aos meus amigos peruanos pela
amizade. Aos meus amigos brasileiros pela saudade. Ao Estado Federal de Rio de
Janeiro, à UFRJ e à ECO pela oportunidade, à CAPES pela bolsa. Ao Fernando, ao
Laércio e à Mariene pela parceria. Aos diretores de fotografia: Edgar Moura e
Paolo Jacinto pelas portas abertas. Ao meu Perú pelo nascimento. Ao vosso Brasil
pelo re-nascimento. Ao Cinema pelos sonhos, à Filosofia pelo sonhar, à Photo-
grafia por me encontrar, ao Devir porque é belo e a Deus porque é bom...
Muito Obrigada
4
Resumo
_______________________________________________________________
-“E que objeto se coloca entre dois?”
O teu olhar...
da mesma maneira que o mundo material.
1
Esta pesquisa versa sobre as formas de representação da imagem definidas pelo
naturalismo e pelo expressionismo, a partir do manejo significante da iluminação.
Para tanto aborda-se o conceito de estética para se adotar o método
fenomenológico de interpretação das percepções como forma de entender a
fotografia cinematográfica. Parte-se então para a analise da obra de dois diretores
de fotografia cinematográfica contemporâneos: Nestor Almendros e Vittorio
Storaro. Através dela busca-se a resposta de três questões do cinema a partir de
seu dilema essencial entre ser um meio de comunicação de massa e uma forma de
expressão artística: como transmitir através das imagens da câmera a experiência
de uma visão de mundo? Como manter a experiência estética da imagem em meio
ao barroco tecnológico? Como converter a luminosidade fotográfica em uma
representação capaz de fazer alguém acreditar no mundo em que vive? Entender
estas questões foi o objetivo desta dissertação.
1
ethe. “Pensamentos Philosoficos” . Col. Benjamin Costallat. Rio de Janeiro. 1932. Pág 11.
5
Resumen
_______________________________________________________________
La presente investigación trata sobre las formas de representación de la
imagen definas por el estilo naturalista y expresionista, a partir del manejo
significante de la iluminación. Para eso se adopta el método fenomenológico
de investigación de las percepciones como forma de valorar la conciencia del
fenómeno, la experiencia de vida y la intuición en el arte de la fotografía
cinematográfica. Se parte entonces hacia el análisis de la obra de dos
directores de fotografía cinematográfica contemporáneos: Nestor Almendros
y Vittorio Storaro. A partir del dilema esencial del cine, es decir, entre ser un
medio de comunicación masivo y una forma de expresión artística se busca
la respuesta a ciertas preguntas: cómo transmitir a través de la imagen de la
cámara la experiencia de una visión del mundo?, como entender la
experiencia estética de la imagen en medio del barroco tecnológico?, cómo
convertir la luz de la fotografía en una representación capaz de hacer que
alguien crea en el mundo en que vive?. Entender estas cuestiones es el
objetivo de esta disertación.
6
Abstract
_______________________________________________________________
This investigation tries to determine the survival and transformation of classic
aesthetic forms of representing image defined by naturalism and expressionism,
also their new forms of relationship in the significant handling of the light as the
prime “raw material” of illumination. For this, we approach in the first chapters,
the aesthetic concept that inevitably remits us to a metaphysics, which altogether
leads us to a “philosophy of knowledge”, tool that was later used to analyze the
work of two great motion photography directors Almendros and Storaro -.
Under a phenomenological method based so much on the language of perception
as in the value of conscience phenomena, life experience and intuition. Finally in
front of this challenge thrown by virtual digital technologies, we confirm that we
are affected by images as sensations and as vehicles of sensibility and these turns
us on active beings rather than passive ones. How can we change sight into vision?
How can iconic aesthetics survive in the middle of hybrid opacity and
technological baroque? How the light and her luminosity becomes the
representation and synthesis that makes us believe in the world we live? We will
try to respond this and other issues all through this investigation.
7
A los que ya no están como materia,
a la alegría de su luz…
8
Índice
______________________________________________________________
Introdução 10
Capitulo I
A luz 17
I,1.- À luz da realidade. 24
I,2.- À luz da arte. 28
I,3.- À luz da linguagem. 35
I,4.- À luz do cinema 42
Capitulo II
A imagem 50
II,1.- À imagem da realidade. 55
II,2.- À imagem da linguagem. 60
II,3.- À imagem da arte. 66
II,4.- À imagem do cinema. 71
Capitulo III
A luz como bios
III,1.- A luz como bios da vida. 77
III,2.- A luz como bios do cinema. 82
III,3.- O cinema como atmosfera de luz. 84
III,4.- O Natural.
4,1.- O Naturalismo. 90
4,2.- A imitação da natureza. 98
4,3.- Natureza e Espírito. 104
4,4.- O jogo estético. 110
III,5.- O Aritificial.
5,1.- O Artifício. 115
5,2.- O Expressionismo. 119
5,3.- O Expressionismo na imagem. 126
5,4.- Simbolismo e expressão da luz. 130
9
5,5.- Aparência e Transparência. 138
Capitulo IV
A analise da amostra 145
IV,1.- Os fotógrafos.
1,1.- Néstor Almendros. 152
1,2.- Vittorio Storaro. 162
IV,2.- As fotografias.
2,1.- Sobre o filme “Contos de Nova York”. 171
2,2.- Análise foto-grafico do filme “Lições de vida”(Néstor
Almendros). 172
2,3.- Análise foto-grafico do filme ”A vida sem Zoe” (Vittorio
Storaro) 187
IV,3.- A Síntese. 198
Capitulo V
Conclusões à luz da tecno-logia. 202
Bibliografia. 222
10
Introdução.
Um espanto: A verdade, dizem-nos, não há mais”.
2
Pois a terra, totalmente
esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal: as câmeras de
extermínio em massa e as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki. O saber que
é poder não conhece nenhuma barreira e a técnica é a essência desse saber. “Tudo
agora (Tudo: Panta) está informacionalmente virtualizado na tecno-logia, este saber-fazer
que faz saber.
3
Nada mais importa, só o procedimento eficaz, num instante o
pensamento torna-se uma violência para si mesmo e destrói, um a um, os mitos.
Homens e mulheres renunciamos ao sentido e substituímos o conceito pela
fórmula, a causa pela regra, pela probabilidade.
A partir daí, a filosofia busca comunicar e a comunicação busca filosofar, mas não
se re-encontra uma definição de substância e qualidade, de ação e paixão, do ser e
da existência; a ciência, porém, já pode passar sem semelhantes categorias. Quem
almeja a verdade?... Ela é pura superstição. Eis a bela herança da modernidade: a
banalização da fé. Fé, para quê? A ciência já não precisa dela e o ultimo laço que
nos re-ligava ao real foi assassinado por um de vocês, filósofos. Filhos dos
modernos, os pós-modernos pelo Acaso e pelo Tempo, recebem mitos destruídos,
2
Tavares D´Amaral, Márcio. “Filosofia, História, Religião: para um novo olhar sobre a verdade” .
Em Tempo Brasileiro 151. Rio de Janeiro, outubro/dezembro 2002, p. 75.
3
Ibid.
11
religiões sem sentido, perguntas sem respostas. Para os pais, o ser como única
realidade se esgotou; os filhos, porém, olham para o sempre bom devir, e o “não-
ser” aparece como um “ser em potência”.
O novo “não-ser” aparenta ser e se dilui na atmosfera, poucos entendem o que está
acontecendo, mas ninguém se preocupa. A ciência só faz, desestrutura para
estruturar mais uma vez. A velocidade e a eficácia são o dogma. Não interessa o
porquê. Só o consumo. E então, o que fica para a filosofia, aliás, para a filosofia
pós-moderna? Nada menos que recuperar a , posto que pretendemos pensar
(entendendo-se ‘pensar’ como “estar atento e curvar-se àquilo de que se trata, a coisa
4
)
e para pensar é necessário um sistema de pensamento em que “a funcionalidade do
sistema depende de um ato de dos seus praticantes e receptores
5
. E é a dúvida a que
move o pensamento, portanto duvidamos do absoluto, do absoluto como
realmente absoluto e acreditamos na possibilidade da real existência de um
absoluto-relativo. Diz Aristóteles na Metafísica I, 983b/15: De fato deve haver
alguma realidade natural (uma só ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas,
enquanto ela continua a existir sem mudança.” Uma causa primeira. Uma substancia
(eterna e imutável) que é substancia e forma separada das coisas sensíveis, mas ao
mesmo tempo imanente a elas.
4
Idem, p. 82.
5
Idem, p. 83.
12
Para Empédocles, no dizer de Aristóteles, a causa primeira era a “amizade e a
discórdia”, para Leucipo e Demócrito eram os “elementos” do “vazio” e do
“cheio”, para Tales era a “água”, para Anaxímenes e Diógenes era o “ar”, para
Hipaso de Metaponto e Heráclito de Éfeso era o “fogo”, para Empédocles era a
“terra” (mais outros três elementos), para Anaxágoras de Clazômenas os princípios
eram infinitos, para Hesíodo e Parmênides o principio era o “amor” e o “desejo”,
para Pitágoras era o “número” e, é claro, para Platão o principio primeiro era a
“idéia” (para Sócrates o principio era a “ética”, mas ela não é material. “Sócrates se
ocupava mais das questões éticas e não da natureza em sua totalidade, mas buscava o
universal no âmbito daquelas questões
6
). Todas estas teorias levam à mesma coisa:
com base nesses raciocínios, poder-se-ia crer que exista uma causa única: a chamada Causa
Material
7
.
Na sua Metafísica, Aristóteles, mediante a indução lógica, demonstra que nem o
“número”, nem a “idéia” poderiam ser a causa primeira de todas as coisas. Na
procura pela verdade, diz Aristóteles (IV, 1005b/5), “em qualquer gênero de coisas,
quem possui o conhecimento mais elevado deve ser capaz de dizer quais são os princípios
mais seguros do objeto sobre o qual investiga; por conseqüência, quem possui o
conhecimento dos seres enquanto seres deve poder dizer quais são os princípios mais
6
Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2002, I, 987a/30.
7
Idem, 984a/15.
13
seguros de todos os seres. Este é o filósofo. E o principio mais seguro de todos é aquele sobre
o qual é impossível errar: esse princípio deve ser o mais conhecido e deve ser um princípio
não-hipotético”.
Então, seguindo-se o método aristotélico para um sistema de pensamento é preciso
estabelecer uma ordem e um ponto de partida, ou seja, um princípio. Mas, o que é
um princípio? Diz Aristóteles na Metafísica (V,1012b/35): “um principio é alguma
coisa de onde se pode começar a mover-se, é o melhor ponto de partida para cada coisa. É a
parte originária e inerente à coisa a partir da qual ela deriva...”. Para o próprio
Aristóteles o princípio era “o bom e o belo”; para esta pesquisa, o princípio, a causa
primeira, única e material, o ponto de partida é: a luz. A luz quando ela é boa e
bela.
Nesta pesquisa se falará sobre a luz como fenômeno e como essência da imagem
visual e da sua relação com a realidade, com a linguagem, com a arte, com o
cinema e com a tecno-logia. Queremos entender as formas da expressão visual do
homem contemporâneo, que não é mais que o encontro da experiência humana. “O
gênero humano vive também da arte e de raciocínios. A experiência parece um pouco
semelhante à ciência e à arte. Com efeito, os homens adquirem ciência e arte por meio da
experiência. A experiência, como diz Pólo, produz a arte, enquanto a inexperiência produz o
14
puro acaso. A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um
juízo geral e único passível de ser referido a todos os casos semelhantes.”
8
O cinema é a nossa arte-referente, pois é nele que todas as artes pré-
cinematográficas se conjugam e a quem todas as artes pós-cinematográficas devem
a sua origem, entendendo-se origem como “aquilo de onde emerge tudo o que vem à
presença para mostrar ou ocultar, o que acompanha todo o percurso da história
9
. Deleuze
diz que estamos diante de uma nova crise da imagem, reconhece que esta é “o
estado constante do cinema” e assim ele menciona alguns caracteres da nova
imagem que surge dessa crise: a imagem não remete mais a uma situação sintética,
mas sim dispersiva, a imagem hoje rompe com a linha de universo que prolongava
uns acontecimentos em outros e assegurava concordância de espaço-tempo, a ação
e a situação sensório-motora tem sido transformada pelo passeio, o vagabundear,
pelo ir e vir contínuo. Se estamos diante de uma crise da imagem e consideramos o
cinema como um “universo de imagens”, ele mesmo pode ser concebido em estado
de crise e, ao mesmo tempo, descrito em termos de “fenômeno cultural”. Um
cinema que, enquanto fenômeno, define-se a partir da decorrência de um estágio
dos condicionamentos sociais, econômicos e políticos, assim como na
diversificação das demandas do imaginário estético no meio do acelerado
8
Idem, 981a.
9
D’Amaral, Márcio. Notas de aula. Mestrado da ECO-UFRJ (03-07-2002).
15
desenvolvimento das tecnologias e dos meios de expressão. É por isso que nos
preocupa evidenciar a importância ético-estética da imagem cinematográfica
contemporânea como referente das relações entre cultura e tecnologia, como
fundamento do local dentro do global e como referente na criação do espaço e do
tempo, a partir da posição do artista fotográfico como criador-realizador, diante
das conseqüências culturais de uma imagem real-virtual. Esta pesquisa procura,
justamente, determinar quais são as relações e mudanças que se estabelecem entre
as tradicionais formas estéticas de representação da luz e a percepção da imagem.
A luz é gerada pela natureza e a arte tenta representá-la em imagens. Para isso
propomos que existem duas formas: aquela que tenta representar a natureza “de
fora” e aquela que transmite a natureza “de dentro”. A natureza de fora vamos
chamar de “natureza”, a de dentro será nomeada agora como “artifício”. “Por obra
da arte são produzidas todas as coisas cuja Forma está presente no pensamento do
artífice.
10
Assim, “artifício” será considerado como a tensão entre a sensibilidade e
o pensamento do homem, as suas idéias, os seus desejos, o que ele é em ato e o que
pode ser em potência, a sua história, a sua fé. “Natureza” será entendida como o
que é: o natural, a natureza. Essas duas formas em que a luz se apresenta na
imagem contemporânea têm formado uma síntese e ambas, felizmente, convivem
10
Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2a/15.
16
na arte. E é na arte do cinema que melhor podemos reconhecer esta síntese. A luz
no cinema é análoga à vida, ela se transforma, se hibridiza, se altera, se mistura,
tem um começo e um goza de um final. Com os irmãos Lumière o cinema era
apresentação da Natureza, com Meliés o cinema tornou-se um fazedor do Artifício.
Para reconhecer ambas formas é necessário ter um referente específico que seja
conseqüente com os objetivos desta pesquisa. É por isso que, a fim de entender a
luz nas suas duas formas (a forma da natureza e a forma do artifício), analisaremos
aqui o trabalho de dois artistas cinematográficos que, graças aos seus estilos,
definidos, inerentes porém pensados, estudados e utilizados com conhecimento de
causa, se convertem no melhor exemplo para explicar a proposta desta pesquisa.
Por fim, tentaremos demonstrar que neste novo milênio o convívio da natureza
com o artifício da luz na imagem contemporânea, que é também produto do
advento da tecnologia, têm se convertido na forma de expressão mais transparente
da linguagem humana. O digital é realidade virtual que, para ingressar em uma
nova dimensão, nos convida a compartilhar o nosso mundo com zeros e uns que
imitam a luz. Será?
17
Capítulo I
A luz
E o que é a luz? “Esta aqui é uma pergunta lógica à qual nos limitamos, porém, a dar esta
resposta breve e sincera: uma vez que já se tem dito tanto sobre a luz, parece improcedente
repetir o já dito ou tantas vezes repetido. Posto que em síntese tentamos em vão expressar a
essência de uma coisa.
11
Para conhecer a coisa, dizia Goethe, é melhor entender
primeiro os seus fenômenos. Ainda não pretendemos conhecer a coisa, mas sim a
sua essência, na forma de seu fenômeno. Os fenômenos se percebem graças às
sensações e aos sentidos e se entendem graças ao conhecimento e à razão; então,
seguindo-se o método aristotélico de pesquisa no qual: “...todos os homens, por
natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as
sensações por si mesmas, independentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a
sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma
intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o
motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimentos do que todas as
outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas
12
.
Utilizaremos a sensação e o sentido da visão para perceber o fenômeno da luz. A
luz é considerada o fenômeno, portanto será a análise fenomenológica que dirigirá
11
Goethe. Teoria das cores. México, Siglo XXI, 1977, pag 45.
12
Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2002, I, 980a.
18
esta pesquisa. Sui generis, a luz é fenômeno, mas também é essência, que por sua
vez produz fenômenos. Um deles pode ser visto e está feito inteiramente de luz: A
imagem. A imagem é um fenômeno que podemos ver e que está feito
essencialmente de luz. A luz é a essência da imagem, pois todo objeto percebido é
visto com luz (seja por ele emitida, seja dele refletida).
Os antigos gregos examinaram a luz meticulosamente e chegaram a diversas
conclusões. A escola pitagórica presumia que todo objeto visível emite uma
torrente constante de partículas. Aristóteles, por outro lado, concluiu que a luz se
propaga em forma de ondas. Ainda que essas idéias tenham aos poucos sido
modificadas à medida que o homem começou a estudar a luz com equipamento
mais complexo, 20 séculos mais tarde a essência da controvérsia, estabelecida pelos
gregos, continuava. Uma teoria sustentava que a luz é realmente ondulatória, que é
energia que se propaga pelo éter como ondas que se difundem pela superfície de
um lago parado. Outra argumentava que a luz devia ser um vôo de partículas. Ora
predominava uma teoria, ora outra. Somente na primeira metade do século XX foi
que se descobriu uma resposta que parecia ser correta e coisa curiosa ambas as
teorias revelaram-se certas.
19
Os cientistas, para identificar qualquer coisa, sólido, líquido, gás ou pura energia,
estudam suas propriedades. Adotando esse método, os antigos gregos
descobririam que a luz se propaga em linhas retas. Heron de Alexandria fez a
segunda descoberta importante sobre a luz. Fazendo experiências com espelhos,
Heron observou que todo feixe luminoso que incidia em ângulo num espelho
retornaria em ângulo igual. Essa observação levou à seguinte lei básica: o ângulo
de incidência (ou colisão) e o ângulo de reflexão (retorno) são sempre iguais.
Conquanto muitos sábios continuassem a meditar sobre a natureza da luz, até o
inicio do século XVII o progresso nesse campo foi lento. Segundo a história,
Newton, passou um estreito feixe de luz por um prisma numa sala escura, projetou
os raios emergentes num painel e obteve a imagem radiante que conhecemos por
espectro (uma série de cores que começa numa extremidade, com o vermelho e,
passando pelo alaranjado, amarelo, verde, azul e anil, vai até o violeta, no outro
extremo). Depois dirigiu os raios coloridos para um outro prisma e os recombinou,
obtendo assim de volta a luz branca original. Isso provou que a luz é uma
combinação de todas as cores e que ela pode ser decomposta e recomposta à
vontade.
Nessa época, o velho debate, iniciado pelos gregos, sobre se a luz era uma onda ou
uma torrente de partículas atingira o seu clímax, numa acirrada disputa que
20
dividia os cientistas em dois campos. Newton, embora algo indeciso, tendia a
considerar a luz como uma precipitação de partículas emitidas por um objeto
luminoso, sendo que cada partícula seguia uma trajetória reta até que fosse
refratada, absorvida, refletida ou então modificada de outra maneira. Embora
houvesse certas indicações de que a luz podia ser uma onda (energia transmitida à
maneira de uma série de ondas que se propagam devido a uma pedra atirada na
água), dava mais a impressão de ser composta de partículas que se moviam a
grande velocidade. A teoria corpuscular reinou absoluta até que foi destronada por
uma série de descobertas no começo do século XIX.
Nesse ínterim, apesar do prestígio de Newton, nem todos os cientistas
concordavam com suas conclusões, e na metade do século XIX os pesquisadores
deduziram as leis físicas que controlavam o comportamento da luz e decretaram
seu caráter ondulatório. Com o pleno conhecimento da polarização
13
, a teoria
ondulatória ganhou nítida vantagem sobre a outra. James Clerk Maxwell
identificou a luz como parte de um imenso e contínuo espectro de radiação
eletromagnética e o seu trabalho determinou o triunfo completo desta teoria. Em
1905, porém, Albert Einstein, aplicando a teoria quântica de Max Planck, postulou
que a teoria ondulatória da luz podia estar incompleta e que, afinal, a luz podia ter
13
Fenômeno apresentado por uma radiação eletromagnética em que o plano de vibração
permanece constante.
21
algumas das características de uma partícula. Einstein demonstrou
matematicamente como um elétron emitido por um metal podia absorver uma
partícula de energia radiante, que ele chamou de quantum de luz (posteriormente
denominado fóton), e, deste modo, ter energia para se desprender. Seguiram-se
outras experiências demonstrando que quando a luz atua sobre a matéria ocorrem
muitos fenômenos que só podem ser explicados quando se considera a luz como
partículas de energia individualmente agrupadas. Esses desenvolvimentos
revolucionaram a física teórica. A teoria ondulatória conseguira pleno êxito ao
explicar uma variedade de fenômenos (interferência, difração e outros) que não
podiam ser explicados pela teoria corpuscular. Entretanto, muitos fenômenos
recém-descobertos podiam ser explicados apenas em relação aos fótons. Qual era a
resposta certa? Esta surgiu de uma complexa teoria física chamada mecânica dos
quanta, desenvolvida pelos esforços conjuntos de alguns dos maiores homens da
física moderna: Max Planck, Niels Bohr, Louis de Broglie, Werner Heisenberg,
Erwin Schrödinger, Max Born e outros. De modo geral, a teoria mostra como a
radiação eletromagnética pode ter ambas características: ondulatória e corpuscular.
Deste modo, a luz (essa coisa comum, mas misteriosa, que enche o universo) é
apenas um pequeno segmento visível do espectro eletromagnético. É ao mesmo
tempo onda e partícula e essas duas qualidades são aspectos complementares de
uma única realidade. “Ela é um conjunto infinito de partículas energéticas chamadas
22
‘quanta’; aquelas que quando nascem não entendemos de onde é que vêm e que, quando se
refletem, não sabemos aonde é que vão... Durante o resto da minha vida me perguntarei... o
que será a luz?” (Einstein).
14
Isso é o que sabemos fisicamente da luz.
Meta - fisicamente se propõe que “a luz é uma ilusão óptica pela nossa experiência
exterior, mas também uma realidade sensível pela nossa natureza interior (Goethe)
15
.
Também é possível dizer que a luz, na verdade, são duas; duas luzes que iluminam
o mundo. Uma, fornecida pelo sol, e outra que lhe responde, a luz do olho. Só
poderemos “ver” graças à tensão entre ambas, ao seu entrelaçamento; se uma delas
falta, ficamos cegos. O que é será luz? No curso dos séculos, não há outra pergunta
que tenha fascinado, intrigado e cativado mais a imaginação humana do que os
portentosos poderes da luz. “Desde os templos das antigas culturas, até as experiências
místicas mais modernas, desde as teorias artísticas do renascimento, até as luminosidades
de Kandinski, desde as concepções físicas de Newton e Faraday, passando pelas idéias
revolucionárias de pensadores como Einstein, Planck e Bohr, até as luzes poéticas de
Goethe, sempre existiram vitais conexões entre a luz exterior que vem da natureza e a luz
interior que nasce no espírito”.
16
Trata-se de uma ligação que desafia a nossa
inteligência e a nossa imaginação. Uma provocação eterna para percorrer caminhos
14
Zanjonc, Arthur. Atrapando la Luz - Historia de la luz y de la mente. Santiago de Chile, Andrés
Bello, 1994, p. 15.
15
Idem, p. 31.
16
Ibid.
23
além de nós mesmos. Uma viagem onde apenas a luz pode nos guiar através das
diferentes e surpreendentes maneiras que temos de perceber o mundo.
Pela sua percepção natural afirma-se que a luz é inteligível, pelo seu registro
material prova-se a sua ancoragem no mundo, como matéria e como sensibilidade.
Essa luz não é apenas alguma coisa que revela, ela é a própria revelação. No
percurso dos milênios, as culturas têm abraçado e desfeito incontáveis imagens da
luz. No espaço de nossas vidas temos apenas aceitado e rejeitado sucessivas
interpretações da luz. Através da pesquisa, da práxis artística e da serena
contemplação, ela, o seu ser em ato e em potência, se recria continuamente no olho da
mente, oferecendo novas epifanias a cada geração. Ver a luz é uma metáfora para
se ver o invisível no visível, para detectar o frágil elemento quase imaginário que
sustenta e religa nosso planeta e nossa existência. Quando tenhamos aprendido a
ver a luz, com certeza tudo o mais chegará por acréscimo...
24
I,1. À luz da realidade
A luz é Natureza e Artifício. Para explicarmo-nos melhor, imaginemos juntos um
pôr do sol...(pausa). Por um lado, de um certo ângulo, no plano físico, pode-se
obter um pôr do sol que se exprime segundo a ordem natural das coisas, num certo
número de massas e volumes (as montanhas, o sol, as nuvens, a praia ao pôr do
sol), todos casualmente dispostos. A impressão que recebemos é uma soma de
sensações filtradas e integradas através do mundo que é, do mundo que está ao
nosso redor, do mundo da Natureza e suas leis, da “physis” dos gregos. Heidegger
nos diz que a physis, entendida como sair e brotar é passível de ser experimentada
em toda parte. Physis, diz ele, é “‘o vigor dominante’ que evoca o que sai ou brota fora e
dentro de si mesmo, é o desabrochar que se abre, o que nesse despregar-se se manifesta e nele
se retém e permanece em síntese. Physis é o surgir, o ex-trair-se a si mesmo do escondido e
assim conservar-se”.
17
Por outro lado, consideremos que o pôr do sol imaginado não
é um pôr do sol qualquer, mas sim aquele pôr do sol. Isso sugere-nos vários
pensamentos e diversas emoções, sentimentos e lembranças, penas ou alegrias,
nostalgias ou euforias que nos fazem reconhecer que aquele pôr do sol é belo, é
justo, é verdadeiro e é bom ou então que não é nada disso. Essa impressão que
recebemos ao assistir o pôr do sol será então uma soma de sensibilidades filtradas
e integradas através do mundo tal como é visto por nós, pelo Artifício da nossa
17
Heidegger, Martin. “Introdução à Metafísica”. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 44.
25
mente, do mundo “de dentro”, que junta nossas percepções sensoriais com o nosso
pensamento, mostrando-nos o logos”. O mundo como é, “a unidade de reunião
constante em si mesma, imperante, que é a que reúne em sentido originário”
18
. Logos vem
das palavras legein, legere, lesen, que segundo Heidegger significam, além de ler,
“pôr uma coisa ao lado de outra, juntá-las num conjunto, numa síntese”.
Aristóteles diz na Física VII 1, 252a/13: toda ordem, porém, possui o caráter de
reunião
19
. A imagem do “mundo”, então, forma-se de modo complexo no
indivíduo mediante a “physis”, o “logos”, e o espaço e o tempo em que a sua
experiência se desenvolve. Segundo a Metafísica, a percepção da physis e a reunião
do logos constituem o exercício que abre e que manifesta a re-velação para o ente.
Vamos a formular a seguinte proposição:
PHYSIS ^ LOGOS = ENTE
Assim, para fins desta pesquisa a physis será “o que a luz mostra para nós”. O logos
será entendido como “a luz que olhamos” e, finalmente, o ente será “a luz”, “a
linguagem do transcendente”.
18
Idem, p, 153.
19
Idem, p. 149,150.
26
Constata-se facilmente que os estímulos e sensações que a luz nos mostra da physis,
podem ser submetidos a uma avaliação instrumental, assim como algumas das
sensibilidades e emoções provocadas pelo logos. Porém no ente (na luz), parece à
primeira vista que não são possíveis essas avaliações e a impossibilidade de medir
leva facilmente a concluir que a única medida das emoções transcendentes será
justamente a linguagem pela qual aquele ente é.
Sim falamos de linguagem, coloquemos agora então a um artista diante desse pôr
do sol. Ele fará o mesmo pôr do sol. Intuitivamente seu bios resistirá e passará a
impor à physis, com base numa emoção estética, as leis do seu logos. A relação
constante entre a physis e o logos, se chama de bios. Bios é o motor da alma humana
que se representa da melhor e mais bela maneira na poiesis. A obra de arte será
então a objetivação da “alma”, intuída no artista. O artista expressará assim, numa
representação, sua própria tensão entre a physis e o logos; tensão que se fundamenta
na linguagem da arte. “A sua sensibilidade (do artista) reagirá com maior violência a
certa disposição de forma ou de cor; não verá aquele vermelho evidente e se sentirá sufocado
por um verde dominante que outros não vêem”.
20
20
May, Renato. A aventura do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 18.
27
Esta pesquisa tem separado à representação artística do bios em dois grandes sub-
gêneros: o bios x e o bios y. A proposta é que na arte do cinema o bios x (que
representa a physis) se transmite através do estilo naturalista de cinegrafía e o bios y
(que se refere ao logos) o faz graças ao estilo expressionista da linguagem
fotográfica desta arte. O bios x seria como a luz natural que tudo o ilumina graças ao
poder dominante que brota e vigora, e o bios y se traduziria como a luz artificial que
reúne a verdade e a transforma. A nossa preocupação é por entender estes estilos
fenomenologicamente. Por que é agora, nestes tempos sem espaços quando a luz
artificial e a luz natural convivem juntas nas telas do cinema num mesmo bios,
quando algoritmos adquirem pessoalidade e compartem cena com atores humanos
parecendo o artifício mais natural, quando se precisa entender as linguagens como
fenômenos da mente e da alma humanas que uma vez mais são postas em questão,
perguntando se de novo pela verdade. E é em busca dessa luz que esta tese se
dirige, procurando no mais profundo da arte até achar as suas origens de
representação e desde aí sair airosos. Dissemos anteriormente que a luz era a
essência da imagem, agora entendamos imagem como o que “nomeava no cotidiano
grego cada obra produzida pelo pintor e escultor
21
.
21
Aquino Bocayuva, Izabela. “Linguagem e imagem em Platão”, em Ensaios de Filosofia:
Homenagem a Emmanuel Carneiro Leão. Org. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, Vozes,
1999.
28
I,2. À luz da arte
Na linguagem da arte as imagens são expressões, para entendê-las científica e
filosoficamente é preciso estudar o mais digno delas. E o que é o mais digno na
qualidade dos seres? Diz São Boaventura: a luz. A luz no seu estado mais puro; na
arte. “A arte é o intérprete do inexprimível: é por isso que parece ser uma loucura querer
interpretá-la, ela própria, pela linguagem. Entretanto, os esforços que se fazem com esse fim
trazem ao espírito diversas vantagens, as quais o talento prático aproveita a seu turno.
22
De Kant a Merleau-Ponty, uma questão não cessa de ressurgir: como levar a arte a
sério? Como evitar duas reduções paralelas: a que define a obra de arte unicamente
pelo prazer subjetivo que ela suscita num indivíduo e a que proíbe todo e qualquer
juízo de valor, para ver apenas na obra um objeto histórico e “cultural” que se
pode explicar pelo “espírito do tempo”, as condições sociais e econômicas, as
influências, a moda, o mercado ou a psicologia dos artistas.
Diz Aristóteles: “por obra da arte são produzidas todas as coisas cuja Forma está presente
no pensamento do artífice. Por Forma entendo a essência de cada coisa e sua substância
primeira
23
. Entendendo-se como substância “o que é substrato último, o qual não é
predicado de outra coisa e aquilo que, sendo algo determinado, pode também ser separável,
22
Goethe. Pensamentos Philosoficos. Rio de Janeiro, Col. Benjamin Costallat, 1932, p. 97.
23
Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2002, VII, 1031a/15.
29
como a estrutura e a forma de cada coisa
24
. Nós somos a experiência, que
individualmente é uma forma especial e diferente, mas a Forma comum da luz,
efetivamente, coexiste em cada um, com a forma própria desse mesmo corpo
25
.
Graças à ciência conhecemos que a luz é partícula e onda, matéria e energia. Como
somos comunicólogos, traduziremos o termo energia por forma. “Chamo matéria do
fenômeno aquilo que nele corresponde à sensação, e forma do mesmo, ao que faz com que o
que há nele de diverso, possa ser ordenado em certas relações.”
26
Assim, a luz é a única
matéria, que é matéria e forma e que, aliás, é puramente Forma. Segundo São
Boaventura: “A luz não é [só] um corpo, mas a Forma de todos os corpos. Se fosse [só] um
corpo, dado que é próprio dela multiplicar-se por si mesma, seria necessário admitir que
fosse possível a um corpo multiplicar-se sem adjunção de matéria, o que é impossível.
27
Pensando na Forma especial que é a luz, São Boaventura diz mais uma vez: “A luz é
a Forma substancial de qualquer corpo natural. Todos os corpos dela participam em maior
ou menor quantidade, e conforme a sua participação, assim é maior ou menor a sua
dignidade ou valor na hierarquia dos seres. A luz é o princípio da formação geral dos
próprios corpos; a sua formação especial é devida à adição de outras formas, elementares ou
24
Idem, V, 1017a/25.
25
São Boaventura. Em Abbagnano, Nicola. História da Filosofia. Lisboa, Presença, 1984, Vol. III, p.
226.
26
Kant, Immanuel. Crítica de la razón pura. Buenos Aires, Losada, 1960, p. 169.
27
São Boaventura. Em: Abbagnano, Nicola. História da Filosofia. Lisboa, Presença, 1984, Vol. III p.
225.
30
mistas.
28
Isto implica, segundo ele, que na constituição dum corpo são várias as
formas que coexistem no próprio corpo. “Mas, então, segue-se daí que a Forma de
muitas coisas, que parecem claramente ter formas diversas, é única. E segue-se também que
se pode afirmar uma única Forma como a Forma de todas as formas....
29
Nesta pesquisa, tenta-se comprovar que as múltiplas variedades de formas de
representação da luz na arte do cinema podem ser “qualificadas” em duas grandes
categorias. Duas formas, opostas e complementares, particulares e universais, que
denominamos: a forma da natureza e a forma do artifício. Contidas numa grande
Forma, única: a luz. Ambas as formas se expressam na obra de arte. No mundo da
natureza e do artifício, que é o mundo de todas as formas de linguagem, a
revelação da Forma não pode ser facilmente destacada dos seus próprios atributos;
se isto ocorre, é dentro dos limites das convenções técnicas originadas pelas
necessidades estruturais, características da linguagem e inerentes ao meio através
do qual se dá a revelação.
Onde está a verdade da obra de arte? Diz Heidegger: “a obra de arte é criação, a
criação é a verdade, a verdade é a poesia, a poesia é...a verdade
30
. Portanto, na poesia. E
como fazer para chegar a essa verdade? Conhecendo as suas origens. E onde fica a
28
Idem, nota 7, p. 266.
29
Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2002, VII, 1036b/15.
30
Heidegger, Martin. Arte y Poesía. México, Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 24.
31
origem da arte? “Origem significa aqui aquilo de onde uma coisa procede e por cujo meio
é o que é e como é. O que é algo, como é, chamamo-lo de essência. A origem de algo é a fonte
da sua essência. A obra surge segundo a representação habitual da atividade do artista e por
meio dela. Mas como e de onde o artista é o que é? Por meio da obra. O artista é a origem da
obra e a obra a origem do artista.
31
Portanto é aos artistas que nos remeteremos e às
suas obras. Tentando mais que entender estéticas, entender estilos. Estilos que na
nova forma da arte, na arte audiovisual, marcam tendências, criam modas,
estabelecem paradigmas e confrontam o novo. Quando consideramos os estilos
vemos que a atividade artística se condensa em formas essenciais dotadas de um
dinamismo próprio, desenrolando seu curso temporal efetivo como um segundo
processo histórico que intercepta as linhas da história social e cultural, sem com
elas se confundir.
Baseando-nos em dois estilos, em duas formas particulares, tentaremos chegar à
forma geral. “Pois o que estas formas diversas têm em comum é a liberdade (...) com que a
linguagem mostra ser capaz de receber o que pode acontecer no meio e de ser acessível ao
acontecimento... A proposta de Lyotard é que no acontecimento possa dar-se a presença de
algo que é mais do que o espírito, onde o sujeito não é o do controle, mas o do trânsito, do
31
Ibid.
32
trâmite, da mediação”.
32
O sujeito como mediação material da essência da obra
artística. O sujeito como uma forma que é e que existe antes e depois da obra, mas
que se expressa melhor na própria obra, liberando a mais bela energia, e chegando
ao clímax do seu processo de comunicação. Depois dela (da obra), ele (o artista)
repousa, contempla e espera, até uma próxima vez.
Tenta-se não abrir mão do real, e o que há de mais real que a luz no trabalho de
dois artistas, olhado pelo meu olho e pensado pelo meu cérebro? Embora esta
análise possa ter uma postura fenomenológica, entendemos a fenomenologia não
só como a ciência que estuda os fenômenos e que, segundo Goethe, “bem vistos, se
converteram em teoria
33
, mas sim como o ponto de vista que considera a arte não
como outro produto das condições determinadas da situação humana, mas como
um modo de se olhar para além dessa situação, para um mundo de possibilidades
desconhecidas e incompreensíveis. Neste século, a fenomenologia de Heidegger,
Sartre, Merleu-Ponty e Dufrenne foram as que melhor exprimiram esse ponto de
vista da “arte como liberdade”, e foi contra sua filosofia que o materialismo e o
anti-humanismo do estruturalismo e da semiótica se revoltaram. Apesar de ainda
exercer enorme influência em muitos campos, a fenomenologia dificilmente é
32
Villaça, Nízia. Em Pauta. Rio de Janeiro, Ed. Mauad - Cnpq, 1999, p. 109.
33
Goethe. Pensamentos Philosoficos. Rio de Janeiro, Col. Benjamin Costallat, 1932.
33
visível na atual teoria da arte em virtude da morte prematura de seus dois
partidários mais brilhantes, André Bazin, em 1958, e Amédée Ayfre, em 1963.
Recentemente Henri Agel tentou rejuvenescer o pensamento de Ayfre. A
fenomenologia adverte-nos contra o poder abrangente que atribuímos à razão em
nossa sociedade, razão essa que tão freqüentemente se apodera e desfigura os
processos primários que afirma entender. Para Merleu-Ponty, Ayfre e Agel, esse é
o resultado direto de um racionalismo desenfreado que devora todas as
experiências ou, melhor dizendo, que as decompõe, disseca e organiza
minuciosamente. “Mas a racionalidade é apenas um modo de comportamento, uma forma
de se aproximar da realidade, de entender e responder a ela. Nós nos tornamos os autômatos
de Foucault, determinados, não por nossos instintos e nossa ideologia, mas por nossa
razão.
34
Merleu-Ponty acredita que a arte é uma passagem que nos leva para fora
dos labirintos inúteis da lógica e para dentro das riquezas da experiência. Essas
atividades deixam a natureza realizar-se na imaginação do homem; deixam o
homem tirar suas próprias conclusões na natureza. A arte é um gesto formal que
organiza nossos corpos e nossas imaginações em resposta à experiência básica. A
razão nunca pode substituir esse gesto, apesar de poder descrevê-lo e falar dele.
Bazin diz: “Podemos friamente isolar os padrões na música ou a lógica dos sonhos, como
34
Andrew, J Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Uma Introdução. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1989.
34
faz o psicanalista, mas com maior entusiasmo, podemos começar a viver o ritmo da música
como um convite à dança e à vibração; e podemos perceber nela um sentido, como um
desvendamento do mundo expresso na epifania do sensível
35
. Em outras palavras, as
profundezas ocultas do mundo são sugeridas pela visão que a arte nos dá de sua
verdadeira superfície sensual. Mikel Dufrenne chamou todo o empreendimento da
arte de “a progressiva consistência de uma superfície” através da qual experimentamos
a expressão de um mundo pleno e vibrante, ou um modo de estar no mundo.
35
Agel, Henri. Poétique du cinema. Paris, Signe, 1973, p. 9.
35
I,3. À luz da linguagem
Neste sentido, esta análise se concentrará na linguagem da arte, nas formas de
significação e nas estratégias éticas, estéticas e comunicativas. Por isso, propomos
realizar uma análise que integre tanto a filosofia da arte, a ciência da percepção e
os fenômenos da consciência, quanto a análise do discurso das vivências e
intuições dos artistas-poetas da mídia, daqueles que pintam os quadros que vemos
nas telas do cinema; daquele olho que nunca olhamos, mas que faz com que
olhemos só o que ele olha. Nos referirmos aos “diretores de fotografia” aqueles
artistas teórico práticos que produzem as imagens dum filme.
Temos certeza que a cultura contemporânea não pode ser mais pensada sem as
referências e parâmetros oferecidos pela produção midiática, processo que mantém
um constante diálogo com as manifestações culturais mais diversas. A relação
entre mídia e cultura, estruturada pelo mercado e a indústria, envolve cada vez
mais as atividades sócio-produtivas como uma unidade. O cinema, sendo uma
produção midiática, transforma-se numa manifestação cultural, num elemento
sócio-produtivo e também numa arte. Para São Tomás, “arte é o que agrada à vista
36
,
vista entendida como sensibilidade moral, moral no seu sentido mais puro. Pois
bem, o cinema atinge tais objetivos e mais ainda, a grandeza do espetáculo fílmico
36
Menezes, José Rafael de. Caminhos do Cinema. Rio de Janeiro, Agir, 1958, p. 74.
36
está no seu poder transfigurativo, nessa capacidade de recolher a vida na sua
expressão natural através de símbolos que a espiritualizam. Henri Agel deu-se
conta do paradoxo do cinema em tudo encarnar, e simultaneamente, tudo
desmaterializar...
37
. Para que isto acontecesse foi necessário o encontro entre a
captação da imagem e a sua mobilidade em acentos rítmicos no mesmo espaço e ao
mesmo tempo, através de um meio só: o cinema.
A arte na pintura, na escultura, na arquitetura ou na fotografia já tinha alcançado a
primeira expressão, ou seja, a expressão plástica. Na música, ela já representava a
mobilidade rítmica há muitos séculos. É no cinema, na arte cinematográfica, que se
produz aquele encontro entre as duas expressões como uma síntese de efeitos
grandiloqüentes. Ele é uma “arte impura” que, justificando a sua necessidade de
um conhecimento íntimo dos jogos da distância com as formas de composição
áudio-visuais, para que um espectador permaneça o tempo todo em relação ao seu
espetáculo, intensifica sempre um diálogo entre as diversas mídias audiovisuais
contemporâneas: a televisão e o televisivo, o vídeo e o seu ritmo, a publicidade e o
seu look, a internet e a sua percepção, os video games e a sua interatividade e a
realidade virtual e o ser-estar nela. Portanto, o cinema é síntese e paradigma da
imagem audiovisual contemporânea. O cinema tem as dificuldades de ser uma arte
37
Ibid.
37
visionária, a sua história situa-nos no interior das novas imagens, a sua forma
situa-nos além delas. Para Serge Daney, critico e filósofo francês, depois do cinema
mudo branco e preto e do cinema sonoro a cores, nos encontramos hoje num
terceiro estado da imagem. Ele verifica um terceiro momento dentro das
transformações históricas, econômicas e estéticas do cinema contemporâneo, que
nomeia como: cinema da publicidade. Um estado de espírito da imagem, onde nada
mais acontece aos humanos, pois é na imagem que tudo acontece... onde mais uma
vez o estatuto do espectador sofre mudanças radicais. Trata-se, segundo ele, de um
espectador feito de “informações fragmentárias dum mundo des-solidarizado”,
onde a tela é apenas uma mesa de informação. A imagem neste terceiro momento é
marcada, não apenas pela ruptura cada vez maior nas relações do homem com o
mundo, mas pela perda do próprio mundo. “As imagens agora, remetem a apenas
uma, a de meu olho vazio em contato com a imagem, mais ainda...inserido nela. Não há
nada para ver atrás nem no interior dela, só um fundo indeterminado, um suporte neutro
onde tudo se apresenta e se apaga, como numa tela de cinema, de televisão, de vídeo, de
computador, dos jogos icônicos.” (Daney: 1987, Web).
Hoje a produção imagética da linguagem cinematográfica caracteriza-se pelo
espírito ativo de descoberta, de experimentação e de inventividade na procura de
fugir dos condicionamentos do mercado global. As novas imagens produzidas na
38
contemporaneidade implicam uma outra forma de encadeamento do sujeito com o
mundo material e humano, num outro espaço -tempo, simultaneamente real e
simulado. Será? Será que a relação entre a natureza e o artifício influencia nos
modos de visibilidade, na gestão do espaço-tempo, nas relações do sujeito consigo
mesmo e com os outros, nas transformações da percepção, dos sentimentos e do
pensamento? O estado da imagem contemporânea é apenas um sintoma, entre
muitos, de um determinado estado da cultura em que a prevalência da imagem,
resultado da sua importância cognitiva, em especial na arte e na comunicação,
revela uma tradição problematizadora em toda a história da nossa civilização.
Temos que reconhecer que existe pouca ou nenhuma bibliografia sobre o trabalho
fotográfico da luz dentro da imagem em movimento que o cinema exprime. O
pensamento de Deleuse que entende o cinema como luz e movimento, e a pesquisa
de Arlindo Machado baseada na fotografia e no vídeo, são os principais
parâmetros. Desde o momento em que o som entrou para o cinema, este foi
deixado de lado pela maioria de pensadores por se tratar de um puro simulacro de
realidade. Não mais arte. Porém, o cinema é arte sim, a sétima; e é isso que
tentamos resgatar. A nossa divergência de pensamento com Deleuze é que a sua
gênese estruturalista o leva até a exageração da linguagem. Posto que não se trata
de fazer do cinema um corpo material, mas sim um corpo formal.
39
Uma análise da forma implica lançar mão, entre outras ferramentas, da análise do
discurso. Não o discurso entendido como texto material, mas sim como forma
social-cultural, geradora de arte. “A obra de arte não é completa por si mesma, tomada
separadamente, senão só dentro dum conjunto de relações que transcendem a sua entidade
concreta, para integrá-la ao mundo que a rodeia.
38
Isso é o que interessa a nós, é lógico
que o cinema não é feito apenas de luz, há muita coisa por trás e por dentro. Mas
ao final, para nós (espectadores), termina sendo só luz. É aquela linguagem que
tentamos entender. Deixando o conteúdo textual-gramatical repousar e
contemplar-nos, e pensando na sua forma. Lendo o texto e o contexto, entendendo
a situação e sentindo a intuição e o corpo, deixando que eles sejam enquanto nós
vivenciamos e pensamos na forma que aparece e se oculta, deixando só a
linguagem e suas imagens como manifesto de existência. Portanto, a luz é também
um discurso em que “...o contexto força o texto (o meio-mensagem) resultante a ter
determinadas características formais e conteudísticas, mais ou menos rígidas, conforme o
grau de ritualização do processo comunicacional
39
. No nosso caso, a linguagem é o
cinema; a Forma geral é a luz e as formas particulares são os estilos. E é a partir dos
estilos naturalista e expressionista que se começará a entender os pontos de vista
opostos, mas complementares, diante do trabalho com a luz. Os semiólogos
tendem a valorizar apenas uma corrente de cinema, um cinema de “significado”,
38
Ibid.
39
Pinto, Milton José. Comunicação e Discurso. São Paulo, Hacker, 1999, p.47.
40
cujo maior expoente é Eisenstein. Seus filmes baseiam-se numa sintaxe dos
choques e saltos significativos que se desenvolvem através da poderosa declaração
humana. Mas há outro tipo de cinema, geralmente negligenciado: o cinema de
contemplação. Esse tipo de cinema recusa-se a se apoderar do espectador com o
seu significado, preferindo deixar o sentido do mundo aparecer lentamente. A
fenomenologia, bem entendida, nos oferece uma poética que valoriza os grandes
filmes sobre a vida, a unidade, o acordo e a síntese. Apenas esses últimos podem
nos proporcionar uma rápida percepção das leis transcendentes que
silenciosamente organizam nossa visão cotidiana, nossa experiência cotidiana.
Mas a fenomenologia deve ter sempre claro que a experiência não é estática, ela é
dinâmica e conformada de opostos. Agel afirma que os grandes cineastas lêem o
significado do mundo, não mecanicamente, mas como se lêem as palmas das mãos.
Esse cinema é a écriture da natureza isolada pelo cineasta para exame e
contemplação. Sua teoria é, assim, uma espécie de ética da forma dos filmes e do
modo de assisti-los, baseada na visão estética “moralmente correta” de
determinados realizadores. A idéia é tentar descrever o processo do cinema pelo
qual um trabalho se desengaja de tudo mais e se torna uma imagem autêntica
através da qual podemos reorganizar nossa percepção e nosso comportamento.
Para isto a imaginação tem um papel essencial a desempenhar em nossa vida no
mundo. A arte não é apenas um refúgio da realidade; é um produto formal da
41
imaginação, é a própria imagem estruturada e terminada. Existe uma
reciprocidade entre a imaginação e a razão, ela é o diálogo. Forma de comunicação
que nos permite ampliar nosso conhecimento da vida e nossa capacidade de
expressar o mundo.
42
I,4. À luz do cinema
Consideraremos ao cinema como um sentimento do mundo. Um estado da história
que permite estabelecer passagens entre obra e público, cinema e vida, imaginário
coletivo e individualidade do espectador. Segundo Serge Daney; “O cinema é talvez
o único meio de conectar o espaço público e o mundo no cotidiano da vida.... (Daney.
1987:web). O cineasta deve gerar imagens que caminhem em direção ao diálogo, à
abstração de idéias e sentimentos, sem serem substitutos alegóricos dos mesmos.
Se a imagem é bloqueada no início e é incapaz de vir à claridade, então
permanecerá no nível do mero brinquedo, proliferando loucamente sem
capacidade de direção. Se a imagem, por outro lado, é envolvida pela idéia, torna-
se nada além de um instrumento, perdendo sua capacidade de dirigir os
pensamentos, pois já está dirigida pelo pensamento. Imagens apropriadas,
especialmente como aquelas que são refinadas nos trabalhos de arte, surpreendem-
nos por seu imediatismo e intensidade e pela sua capacidade de iniciar novas
idéias e sentimentos no espectador. Ele elabora o mundo latente no trabalho do
artista e o conecta à grande cadeia de idéias e experiências que chamamos de
conhecimento. Entende-se aqui o cinema segundo a noção elaborada por Bazin
(1966), como “uma arte radicalmente impura”, aberta não apenas às artes e
tecnologias, mas à história e ao mundo, de maneira que possamos pensar e
compreender as relações entre imagem cinematográfica, vídeo, televisão e
43
publicidade. Relações que hoje se transformam na metáfora por excelência das
reflexões sobre outras dimensões da imagem. Mais do que qualquer outra arte
audiovisual, o cinema sabe acolher e organizar o devir das imagens. Articular a
passagem de um plano a outro, modular o tempo e o espaço e ser consciente da
metamorfose de uma imagem na outra, de modo a formular, através de
associações de imagens, novos pontos de vista sobre o mundo capazes de fazer
exprimir novas visões, novas formas de saber-fazer nosso mundo.
Cada gênero e, dentro dele, cada espécie, requerem um tratamento especial. Na
arte do cinema os tipos de iluminação dependem basicamente das necessidades do
roteiro e da sensibilidade do diretor. Através da narrativa conteudística do roteiro,
a luz se expressa. O que tentamos resgatar nesta pesquisa é a narratividade formal
(cheia de conteúdo simbólico) que a luz tem no cinema contemporâneo.
Parafraseando um pouco F. Lyotard (1973, 171), pode-se dizer que, “para o senso
comum, há inicialmente uma história que é entendida como referência da narrativa
40
. A
referência narrativa da luz dentro do filme é o roteiro e o próprio diretor; diretor
que tem a sua própria narrativa. Mas o diretor não é aquele que se expressa por
meio da luz, para isso existem os “diretores de fotografia”. E são eles os nossos
artistas. Para que o filme se expresse o melhor possível, entendendo o melhor
40
Pinto, Milton José: “Comunicação e Discurso”. Em: As virtudes explicativas da narrativa
midiática. Nupec - Núcleo de Estudos em Estratégias de Comunicação.
44
possível como o mais “belo”, o diretor do filme deve se comunicar com o diretor
de fotografia e fazê-lo sentir o objetivo da sua realização. Para efeitos narrativos
poderíamos dizer que a arte da fotografia cinematográfica se expressa de duas
formas: uma luz que acompanha a narração e uma luz que narra. A luz que
acompanha a narração é aquela que respeita as fontes naturais de luz, sendo estas
não apenas a do sol ou da lua. Falamos da natureza humana também; natureza que
tem lâmpadas, velas, fogos de artifício e tudo o mais. A luz que acompanha a
narração é aquela luz onipotente, a luz do acaso. Luz que “fala”, mas de maneira
muito sutil, sem que ninguém a perceba, porém está lá, está aí. Sem ela, nada. Por
outro lado, a luz que narra é aquela expressiva, que pode ou não respeitar nada
além do artista. É o artista e o seu mundo. Mundo que é feito por opostos que
lutam e se amam.
Vale dizer que tomamos como referência a luz do cinema-arte. A qualidade do
cinema, é lógico, depende de muitos fatores externos que alteram a pré-produção,
a produção, a realização e a pós-produção do filme. Tais fatores podem ser
internos ou externos, ideológicos, psicológicos, sociais, econômicos, passionais e
outros mais. Levamos isso em conta, sim, mas não é o elemento transcendental.
Trabalharemos com o produto final, cujo “exprimir-se totalmente como obra de
arte” foi converter-se em luz projetada para uma sala lotada de espectadores.
45
Portanto, o cinema-arte, além de ser arte e luz, é um meio de comunicação massivo
que também é linguagem e imagem. Um meio de comunicação que narra de
muitas formas, uma das quais é com a luz. Onde a narração é um dispositivo
instrumental de distribuição de afetos a serviço da sedução e cooptação ou, como diz o
mesmo F. Lyotard (1973,173) “toda narrativa não somente é o efeito de uma metamorfose
de afetos, mas também produz um outro, a história, o referente enfim
41
. Feita imagem, a
luz torna-se linguagem porque para ser imagem ela adotou um meio, um código e
certas convenções pelas quais se expressar. Isso faz com que seja uma linguagem.
Citando Sartre: “A imagem é pensamento que compreende um saber, intenções.
42
Isso já
faz com que a imagem da luz no cinema (que é o meio escolhido) seja como uma
espécie de escrita visual com elementos de associação, dissociação e relação de
causalidade, em fim, um discurso. Porém nós não escolhemos qualquer cinema,
mas sim o cinema que é arte, cuja linguagem é a poesia: a linguagem da arte está
feita segundo Heidegger,“para tornar patente na obra o ente como tal, e custodiá-lo”.
43
A história do cinema tem sido, em grande medida, uma luta pelo domínio da luz.
O cinema é luz e dela depende boa parte do significado suposto de determinadas
seqüências. Desde 1910 se utiliza luz artificial e desde poucos anos depois se
considera que a iluminação tem um valor expressivo. O diretor de fotografia tem
41
Ibid.
42
Strathern, Paul. SARTRE. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
43
Heidegger, Martin. Arte y Poesía. México, Fondo de Cultura Económica, 1992.
46
que tomar decisões no momento de filmar cada seqüência, procurando uma luz
suave que acaricie as formas, ou uma luz forte capaz de contrastá-las, iluminando
o quadro todo por igual ou situando sombras. Tem que determinar se o fundo
deve ser visto em detalhe ou, pelo contrário, basta que apareça como moldura. Às
vezes a luz vai potenciar a significação da maquiagem ou da decoração,
dissimulando imperfeições ou criando um efeito dramático. O resultado no
fotograma depende de múltiplos fatores: projetores e fontes luminosas, telas
difusoras e refletoras, filtros diante dos projetores e da câmera, cor e textura da
decoração e do vestuário, sensibilidade do filme, qualidade das lentes, abertura do
diafragma e condições da revelação ou transfer. A técnica tem permitido criar
filmes com maior sensibilidade à exposição e, portanto, com menor necessidade de
iluminação (as atuais câmeras digitais permitem rodar praticamente com luz
natural) o que se aprecia, sobretudo, nas seqüências noturnas, um dos pontos
tradicionalmente fracos. O estilo de iluminação tem variado ao longo da história
do cinema e em determinadas estéticas e gêneros tem alcançado um
desenvolvimento notável. Em princípio, a luz deve estar justificada pelos
elementos da decoração (janelas, lâmpadas de teto ou de pé, superfícies
absorventes ou luminosas), pelo espaço (interior ou exterior) e pelo momento da
ação dramática (inverno, verão etc). Mas esta justificativa realista não é necessária
em filmes de determinados gêneros que, graças a um uso criativo da iluminação,
47
são capazes de criar sugestivos e surpreendentes mundos de ficção. O que sempre
se deverá pedir à iluminação é que seja coerente ao longo do filme e que tenha
criatividade na resolução de cada plano. Contra a opinião popular, uma boa
fotografia num filme não é aquela que tem paisagens bonitas, ou pores do sol de
sonhos, pois a fotografia cinematográfica não é a realidade fotografada. A melhor
fotografia é aquela capaz de criar uma atmosfera (um clima) e transmitir uma
mensagem através do cromatismo e da luz. Como já dissemos antes, o cinema tem
elementos comuns a outras disciplinas artísticas: parte-se de um texto, conta-se
com atores, cenógrafos etc., mas o que diferencia o cinema da pintura ou do teatro
é quando esse estado ideal do roteiro se transforma em imagens por meio do filme,
da câmera e da luz; sem estes meios que permitem traduzir aquele estado, não
existe a possibilidade do cinema. O mais importante para o fotógrafo é transformar
o texto em emoção. A luz não está somente para ver, a luz é parte das pessoas.
No domínio do que se pode chamar estilo, existiriam também duas possibilidades
extremas: a do estilo que poderia denominar-se “naturalista”, posto que toma
como referência a luz “natural”, procura acomodar-se às fontes dessa luz natural e
respeitar as relações entre as diferentes fontes; e a do outro estilo, que se poderia
chamar “expressionista”, que se despreocupa de toda referência à luz natural, que
constrói um esquema próprio de luz, particular, fabricado, arbitrário. É a luz do
48
artifício. Escolhemos para esta pesquisa o trabalho de dois fotógrafos de cinema
que falam com a linguagem da luz. Fotógrafos-artistas, artistas-fotógrafos que vêm
sendo paradigmas da forma do trabalho com a luz na imagem contemporânea.
Eles são Néstor Almendros (Espanha) e Vittorio Storaro (Itália). Ambos artistas são
paradigmas do trabalho fotográfico no cinema contemporâneo e cumprem com os
requisitos necessários a esta pesquisa. Eles representam da melhor e mais bela
maneira os estilos que tentamos descrever: o estilo da natureza e o estilo do
artifício.
Néstor Almendros, diretor de fotografia de filmes como: Dias de Céu, A Lagoa Azul,
Kramer vs. Kramer, O Último Metrô, Camino del Sur, Amor em fuga, A decisão de Sophie,
Apuntes al Natural (de Contos de Nova York) entre muitos outros, parte do
naturalismo, estética que na arte do cinema passou a se sentir em parte como
realismo; ele diz que a sua forma de iluminar e de ver é realista. Ele não utiliza a
imaginação, utiliza a observação. Vou para o local e observo onde cai a luz
normalmente; limito-me a captá-la tal e como é, ou a reforçá-la se é insuficiente; isso no que
se refere aos interiores naturais. Num cenário artificial, suponho que o sol está fora da casa
e em seguida vejo como entraria a luz pelas janelas e a reproduzo. A fonte de luz sempre
49
tem que ter alguma justificativa.
44
Por outro lado, Storaro, autor das atmosferas de
filmes como: O Conformista, O Último Tango em Paris, Novecento, Apocalypse Now, A
Vida sem Zoe (de Contos de Nova York) etc., escreve com a luz, pois tenta expressar
algo que está dentro de si. A partir da sua sensibilidade, da sua estrutura e da sua
bagagem cultural, ele expressa o seu ser. Ele é um expressionista que aproveita
tudo o que o artifício da mente e do coração do homem pode lhe presentear. “Tento
descrever a história do filme através da luz. Tento criar uma história paralela à principal, de
forma que, através da luz e a cor, qualquer um possa sentir e compreender mais claramente,
de forma consciente e inconsciente, muitas coisas mais sobre a história do filme.”
45
Serão
estes dois estilos os paradigmas da nossa pesquisa, pois são eles os limites
extremos na arte da fotografia cinematográfica. Toda a linguagem da luz no
cinema contemporâneo não pode fugir de tais limites, ainda que ambos estilos se
misturem numa mesma obra.
44
Almendros, Nestor. Em: Maestros de la Luz. Org. Schaefer Dennis e Salvato Larry. Madrid, Ed.
Plot, 1998, p.15.
45
Storaro, Vittorio. Em: idem, p.191.
50
Capitulo II
A imagem
Contava o filosofo Plínio que há muito tempo, nas terras de Corinto, um casal
apaixonado dava-se o ultimo beijo antes que ele partisse para voltar quem saberia
quando.
- Como eu faço para que ele fique?...pensava ela.
No momento em que ele abriu a porta, o último raio de sol da tarde entrou na
caverna e ela, como hipnotizada, descobriu a sombra do seu amado projetada na
parede.
- Eu poderia contornar aquela sombra com um sulco... sonhou ela.
E assim ela fez.
Dias depois o pai dela que era oleiro chegou à casa, e para matar a saudade que a
filha tinha pelo rapaz, tomou esse contorno como base e traçou a figura do jovem
viajante.
“Aqui nasceu a imagem”.
46
46
Maltese, Corrado. “Linguagem analógica e linguagem digital”. Em: Maltese, Corrado. O novo
mundo das imagens eletrônicas. Lisboa, Ed. 70, p. 37.
51
Metaforicamente, esse foi o primeiro fenômeno preciso de projeção de luz sobre
uma superfície plana. Projeção de luz que produz sombras. A criação de formas
pela projeção de luz e de sombras. Formas que fazem da imagem uma coisa
autônoma. Ela nos parece pura e evidente, ainda que, de fato, as luzes e as sombras
sejam as que determinam a aparência dos objetos. A veracidade da imagem é ela
mesma, pois as modificações constantes de luz e sombra impossibilitam a réplica
do fato a ser representado. No máximo ela será uma transposição, nunca uma
cópia. Os seres humanos conhecem o mundo através da sua tradução em sólidos,
luzes e cores que ocupam uma superfície onde as extensões se dão por meio de um
processo que se apresenta como estritamente natural. Portanto, para que uma
imagem seja visível é preciso que três etapas sejam cumpridas:
a) que a luz espalhe-se diferencialmente pelas superfícies a serem percebidas,
b) que a luz seja transmitida para o olho e
c) que a luz componha-se num foco, formando-se, então, a imagem.
Se diz que “o mundo é uma imagem
47
. A imagem é uma produção material quase
automática de reflexos, de espelhamentos, de qualquer coisa que permanece
semelhante àquilo que é o objeto do qual se parte, um “significante” que mantém
47
Neiva, Eduardo. A imagem. São Paulo, Ática, 1994, p. 15.
52
extrema semelhança com o “significado”. Semelhança no sentido de conservar as
projeções; por conseguinte trata-se de um significante analógico, de uma imagem
analógica. Sartre diz: “Temos definido a imagem como um ato que na sua corporeidade
tenta apreender um objeto ausente ou inexistente através dum conteúdo físico ou psíquico
que não se dá por si, senão a título de representante analógico do objeto que se trata de
apreender
48
. Ainda assim as imagens são autônomas em relação aos objetos, pois
deles não provêm. Qualquer forma de expressão das projeções de luz e de
sombras, de imagens, implica a adoção de um código flexível, de uma linguagem:
a pintura, a escultura, a arquitetura, a fotografia. Desse modo nasceram as técnicas,
as artes
49
. A fotografia caracterizou a mecanização do mundo e se propôs como
uma experiência radical “do momento” ou melhor, “do instante”. Mas o mundo
flui e muito rápido gira, até chegarmos à altura em que as imagens foram não só
fixadas em movimento, mas também projetadas no seu movimento, criando novas
linguagens: o cinema, a televisão, o vídeo. O vertiginoso desenvolvimento do
progresso tecnológico do século XX provocou a abertura das perspectivas espaciais
e temporais, assim como a imperiosa busca de novas estruturas sociais, gerando
uma revolução silenciosa em que a imagem adquiriu um lugar de destaque.
Enviaram-se satélites e aparelhos capazes de explorar automaticamente a
superfície de planetas e astros distantes e foi necessário arranjar uma forma das
48
Villafañe, Justo. Introducción a la teoría de la imagen. Madrid, Pirámide, 1985.
49
O termo grego para designar a arte era “techné”. Isto quer dizer que a criação é técnica artística
ou pelo menos uma dimensão estética da techné.
53
imagens captadas por esses aparelhos poderem ser reconstruídas sem ser
significativamente alteradas ou deformadas. Foi preciso então passar dos métodos
analógicos de captura das ondas eletromagnéticas (que tem a ver com o contínuo)
para métodos digitais de capturar as mesmas (que tem a ver com o descontínuo).
Assim, em fins do século XX aparece um novo tipo de imagem: "a imagem digital",
feita de uma série de números, de zeros e uns, binômios tratados por algoritmos
numa linguagem digital capaz de substituir a luz e as sombras por números, os
quais só depois do trâmite algorítmico conseguem fazer uma imagem
aparentemente analógica. Com a linguagem digital a velocidade acelerou e a
distância começou a perder o seu significado. Aparecem novas formas de
expressão: os video games, a internet, a realidade virtual.
No começo do século XXI, a maneira de comunicar e perceber o mundo mudou. A
imagem é hoje o meio que exprime com maior poder de sugestão e imediação essa
virada crucial da sociedade humana. E a convivência natural com o artifício da luz
é “representada” de forma cotidiana nos meios icônicos contemporâneos, onde
filmes como “O senhor dos anéis”, para citar o melhor e mais belo exemplo, fazem
com que sintamos a imagem tanto como produto natural de uma técnica, quanto
como meio expressivo; como o resultado de uma demanda e de uma condição
interior do homem. Assim, o homem, com sua carga de sentimentos e de paixões,
54
os mesmos que fizeram a moça desenhar o seu amado lá na caverna, volta a se
propor a si mesmo como um universo a explorar, não menos misterioso e
fascinante do que o que vibra no espaço cósmico.
55
II,1. À imagem da realidade.
A imagem tem inúmeras atualizações potenciais, algumas se dirigem aos sentidos, outras
ao intelecto, como quando se fala do poder que certas palavras têm de ‘produzir imagem’,
por uso metafórico, por exemplo
50
. Esta pesquisa trata sobre a imagem visual como
modalidade particular da imagem em geral. A percepção visual é, de todos os
modos de relação entre o homem e o mundo que o cerca, um dos mais bem
conhecidos. Sobre isto há um vasto corpus de observações empíricas, de
experimentos e de teorias que começaram a constituir-se desde a Antiguidade. O
pai da geometria, Euclides, foi em torno de 300 a. C. um dos fundadores da óptica
(ciência da propagação dos raios luminosos) e um dos primeiros teóricos da visão.
Na era moderna, artistas e teóricos (Alberti, Dürer, Leonardo da Vinci), filósofos
(Descartes, Berkeley, Newton, Goethe) e, é claro, físicos, empenharam-se nessa
exploração. É no século XIX que começa verdadeiramente a teoria da percepção
visual, com Helmholtz e Fechner. Em data recente (desde a última Grande Guerra)
os laboratórios de psicofísica desenvolveram-se e a quantidade de observações e de
experiências tornou-se considerável. Simultaneamente, tornou-se mais evidente a
preocupação em estabelecer teorias da percepção visual que integrem e ordenem
os resultados dessas experiências, ao mesmo tempo em que sugerem outras. Em
resumo, o estudo da percepção visual tornou-se científico. E assim sabemos o que a
50
Aumont, Jacques. A Imagem, São Paulo, Papirus, 2001, p.13.
56
experiência cotidiana e a linguagem corrente nos dizem: que vemos com os olhos.
Isso é verdadeiro: os olhos são os instrumentos da visão.
Entretanto a visão é, de fato, um processo que emprega diversos órgãos
especializados. A visão resulta de três operações distintas e sucessivas: operações
ópticas, químicas e nervosas. O processo é o seguinte: o olho é um globo
aproximadamente esférico, de dois centímetros e meio de diâmetro, revestido por
uma camada com uma parte opaca que se chama esclerótica, e outra parte
transparente que se chama córnea. Esta é que garante a maior parte de
convergência dos raios luminosos. Atrás da córnea encontra-se a íris, músculo
esfíncter comandado de modo reflexo que delimita em seu centro uma abertura: a
pupila, (cujo diâmetro vai de 2 a 8 milímetros aproximadamente). A luz que
atravessa por aí deve ainda atravessar uma lente biconvexa que se conhece como o
cristalino, que faz a luz convergir na medida em que se acomoda em função da
distância da fonte de luz. Isso acontece quando há incidência de luz, mas o
processo da visão também é um processo reflexo. O fundo do olho tem uma
membrana, a retina, e é aqui que se processa a luz em forma química. A imagem
retiniana é a projeção óptica obtida sobre o fundo do olho graças ao sistema físico e
que, tratada pelo sistema químico retiniano, se transforma numa informação de
natureza totalmente diferente. Neste sistema, cada receptor retiniano está ligado a
57
uma célula nervosa por uma espécie de relé que se chama sinapse, cada uma
dessas células está, por meio de outras sinapses, ligada por sua vez a células que
constituem as fibras do nervo óptico. O nervo óptico parte do olho e chega a uma
região lateral do cérebro, de onde novas conexões nervosas saem em direção à
parte posterior do cérebro, para então chegarem ao córtex estriado. Depois disso,
ninguém sabe de ciência certa, onde é que a imagem vai parar. Seja como for, o
sistema visual não se contenta em copiar a informação; processa-a em cada estágio.
Esta parte do sistema perceptivo é a mais importante, mas também a menos
conhecida, pois só se começou a ter idéias um pouco exatas sobre sua estrutura e
seu funcionamento há apenas trinta anos. Em particular, ainda não se sabe com
exatidão como a informação passa do estágio químico ao estágio nervoso e a
própria natureza do sinal nervoso (que é apenas metaforicamente comparável a
um sinal elétrico) não é totalmente clara. Assim, a percepção visual é o
processamento, em etapas sucessivas, de uma informação que nos chega por
intermédio da luz que entra por nossos olhos. Como toda informação, esta é
codificada. O olho não é olhar; falar de informação visual ou de algoritmos é
interessante, mas deixa em suspenso a questão de saber quem constrói esses
algoritmos, quem aproveita essa informação e por quê. O olhar é o que define a
intencionalidade e a finalidade da visão. É a dimensão propriamente humana da
visão. Consciente ou inconscientemente possuímos uma informação aproximada
58
sobre o mundo como ele é, com base na realidade objetiva. Mas esta realidade
inevitavelmente vai ser reduzida pela percepção sensorial específica e integrada
por vários fatores da ordem subjetiva. Ou seja, juntam-se à nossa percepção, que é
limitada, conceitos abstratos que a integram. Portanto o mundo tal como é não é o
mundo como é visto por nós. Sartre notava que “a imagem não é nem ilustração, nem
suporte do pensamento, mas é ela própria pensamento e por isso compreende um saber,
intenções
51
. A noção física ou científica do mundo “real” complica-se e se modifica
quando começamos a considerar a relação que se estabelece entre o mundo
exterior a nós e a imagem que dele formamos dentro de nós mediante a experiência
sensorial. Por enquanto a imagem é uma verdade que se expressa a nós, e para
expressarmos essa imagem sempre tenderemos a recorrer às técnicas e aos
suportes e assim materializá-la, portanto não é possível dissociar a imagem da
técnica nem dos fenômenos estéticos.
Na contemporaneidade, toda expressão está associada a um “know-how” específico,
a um conhecimento, a uma experiência e essa é a condição para a criatividade. A
imagem, em suas possibilidades, é metamorfose, metáfora purificada do real, por
vezes inconfortável e mutante. Já que agora a imagem pode até atingir o
incorpóreo e ainda continuar sendo legítima, aspira-se à apresentação imagética
51
Levy, Pierre. A ideografia dinâmica: rumo a uma imaginação artificial?. São Paulo, Loyola, 1998,
p. 105.
59
dos processos mentais, para nunca mais esquecer, pois esquecer significa o vazio
de não produzir imagens. A capacidade de produzir imagens, a imaginação, é filha
dependente da memória e a experiência pode ser total ou parcialmente modelada
pela imaginação. Progressivamente rejeitadas no domínio do idealismo ou do
subjetivismo, talvez até do irracional, as imagens mentais escaparam, durante muito tempo
à consideração cientifica e isso no exato momento em que a cinematografia alcançava uma
proliferação sem precedentes de imagens novas entrando em concorrência com nosso
imaginário habitual.
52
52
Virilio, Paul. A Máquina de Visão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994, p. 88.
60
II,2. À imagem da linguagem.
Tendo recebido as imagens do mundo externo (como ele é) e elaborado tais
imagens no mundo interno (como é visto por nós), o homem tenta comunicar aos
outros homens as sensações e sensibilidades que tirou daquelas imagens. Para que
esta comunicação seja possível se faz necessária a referência constante a estímulos
comuns e o reconhecimento comunitário de um certo numero de convenções. O
vocabulário é a mais eloqüente dessas convenções. Chamar as coisas pelo mesmo
nome constitui a base de toda linguagem. Enquanto nos referimos ao mundo
externo, os termos da linguagem são claros e compreensíveis (uma forma
geométrica ou a freqüência de uma onda são sempre as mesmas, qualquer que seja
a linguagem que se adote para exprimi-las). Mas, quando se apresenta a exigência
de comunicar uma sensação ou simplesmente um conceito abstrato, as
possibilidades de interpretação diferentes de um mesmo termo da linguagem
tornam-se inúmeras. Quando isto acontece, a própria linguagem recorre à ajuda
das convenções e todo um novo complexo de convenções (a gramática, por
exemplo) especifica ou tenta especificar, tanto quanto possível, o sentido preciso
que se queira dar a uma palavra relacionada com a frase, ou com os matizes, ou
com o contexto etc. Assim a linguagem organizada logra exprimir
convencionalmente o mundo das idéias, para além do mundo das sensações. Uma
das linguagens, certamente a mais bem estudada, é "a palavra", mas temos muitas
61
outras: a linguagem do desenho, a linguagem dos sons, a linguagem dos sinais, a
linguagem da cor, entre outras. Na linguagem da luz, a imagem é basicamente
uma síntese que oferece traços, cores e outros elementos visuais em
simultaneidade. Portanto ela é também uma linguagem, talvez mais expressiva,
mais fiel aos fatos do que nosso discurso falado. Após contemplar a síntese é
possível explorá-la aos poucos e só então emerge novamente a totalidade da
imagem.
Do nosso ponto de vista, privilegiamos as imagens produzidas na esfera da arte,
porque “a imagem artística tem uma inventividade nitidamente superior à de qualquer
imagem
53
. Se bem que a extensão da esfera artística, seus limites e sua definição
mudaram muitíssimo de 100 anos pra cá, e até mesmo nos últimos 30 anos, ela
permanece, no mínimo, como a esfera da invenção, da descoberta. Assim, a
imagem se define como um objeto produzido pelo homem num determinado
dispositivo e sempre para transmitir a seu espectador, sob forma simbolizada, um
discurso sobre o mundo quando é. A parte da arte na imagem não pára de repetir
que só há imagem vista, consumida, apreciada e apropriada por um espectador em
determinado contexto institucional. Este processo da imagem não se realiza sem
prazer. O que a imagem artística sugere é a indissociabilidade entre o prazer da
53
Aumont, Jaques. A Imagem, São Paulo, Papirus, 2001, p. 259.
62
imagem e um estilo, mesmo rudimentar, ou seja, um saber sobre a arte, sua
produção, seu objetivo. “Pode-se dizer o que quiser sobre a alegria de viver que emana
dos desenhos de Picasso, das séries vertiginosas e inumeráveis de seus últimos anos, mas é
evidente que o prazer experimentado nessas imagens é inseparável de outra imagem: a do
próprio Picasso desenhando e exprimindo seu júbilo de criador.
54
Em resumo, o prazer
da imagem (entenda-se o prazer do espectador da imagem) é sem dúvida
inseparável do prazer do criador da imagem. Esse prazer tem assumido as mais
diversas formas. Mas seja como for, o fascínio da obra de arte reside em que nela
sente-se o desejo de um indivíduo. A linguagem que o artista utiliza para exprimir-
se é uma linguagem imediata, nascida no próprio ato em que nasce a intuição. Na
obra expressa, a técnica de nenhum modo se anula, mas permanece presente como
termo de linguagem. E esta observação possui tal valor prático que, amiúde, o
elemento último e determinante para atribuição de um quadro a um pintor é
justamente constituído pela técnica: a orientação, o sentido, o vigor de uma
pincelada. “Parece adequado, em relação ao que se disse, delimitar as linguagens à base das
relações que a originam.
55
Assim, a concepção pictórica poderia consistir na
associação de formas e cores, a arquitetônica na associação de massas e volumes, a
da escultura na associação de perspectivas plásticas, a literária ou narrativa na
associação de fatos ou na sua sucessão. Neste contexto, o cinema é uma forma de
54
Idem, p. 313.
55
May, Renato. A aventura do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 37.
63
arte dinâmica que dispõe e associa os seus elementos no espaço, mas que se
exprime, de modo mais particular e específico, através de uma linguagem
totalmente original: a linguagem do movimento dinâmico dos elementos
escolhidos pelo artista. Temos denominado prazer aquela emoção transcendente
(mais transcendente do que estética) que acontece no espectador ao assistir uma
imagem bela e boa. Nesse prazer do indivíduo compendiam-se idéias e emoções
que serão seguramente múltiplas e talvez estejam em dialética oposição, para
depois, muito provavelmente, se resolverem numa unidade. A linguagem que um
artista adota por temperamento para exprimir as suas emoções transcendentes
deve, pois, necessariamente, encerrar na expressão a constante liberdade de
escolha, de disposição e de tempo.
A partir de 1895, às formas de linguagem imagética que lembramos e que podemos
chamar de tradicionais, juntou-se uma nova forma de expressão: a linguagem do
cinema. Na época do cinema mudo muitos teóricos, dentre eles Einstein,
concebiam o cinema como língua ou escrita visual. Enquanto escrita, a montagem
distinguia o cinema da pura e simples gravação de um espetáculo. Enquanto
língua, a imagem era assimilada à palavra e a seqüência à frase; “uma seqüência
64
seria construída por imagens, tal como uma frase por palavras”
56
. A linguagem do
cinema organiza-se convencionalmente sobre as conhecidas leis que presidem a
formação de toda linguagem: associação, dissociação, relação de causalidade etc.
Em sua evolução histórica, a linguagem do cinema mostra-se evidentemente
sugestiva; tal como nas antigas escrituras, “nela é possível distinguir a força sugestiva
do ideograma ao lado da clara simplicidade da convenção alfabética
57
. Pelo fato de as
imagens serem compreendidas por todos, certo tipo de cinema se pensou como
uma língua universal, já que todos os elementos da imagem cinematográfica
remetem a um significado. Porém, por razões semiológicas, temos que afirmar que
o cinema não é uma língua, e sim uma linguagem.
A representação mecânica do mundo mediante a técnica do cinema leva-nos a uma
seleção automática dos elementos que ficam dentro e fora do quadro. O quadro é o
primeiro elemento da linguagem cinematográfica. O quadro é a imagem, é o limite
do artista. Com a escolha do quadro o artista cinematográfico estabelece o que quer
e o que não quer fazer ver, bem como o como deve ser visto aquilo que quer fazer ver.
O quadro, como uma palavra na linguagem falada, pode ter um significado próprio
(isto é, o seu significado é contido e exaurido dentro dos limites do quadro), ou um
significado alusivo (o que está contido nos limites do quadro exprime o que está
56
Levy, Pierre. A ideografia dinâmica: rumo a uma imaginação artificial?. São Paulo, Loyola, 1998,
p. 55.
57
May, Renato. A aventura do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 13.
65
fora de tais limites (na cena o da história). “Recorrendo à analogia da linguagem falada
poderemos dizer que o enquadramento, entendido do primeiro modo, torna-se linguagem
alfabética. Enquanto que potencializado do segundo modo torna a ser
anticonvencionalmente linguagem simbólica”.
58
O quadro não isola apenas as figuras,
mas também o movimento e a expressão destas. Os limites de um enquadramento
não são apenas espaciais, mas também temporais. Em torno de um personagem em
movimento os cortes de um quadro, conservando do mesmo modo a figura
talhada, porém vista sob perspectiva diferente, são infinitos. Na ordem poética do
artista, apenas um corte satisfaz a representação do seu mundo e essa escolha na
ordem poética não depende de considerações gramaticais. De um ponto de vista
gramatical, a figura ou o movimento seriam escolhidos da maneira mais oportuna,
quando satisfizessem a exigência de representar figura e movimento do modo mais
evidente (ou mais natural). Mas nem sempre o mais natural é também o mais
expressivo. No sentido expressivo são obviamente determinantes os critérios de
escolha, por parte do artista, dos elementos de seu mundo. Da combinação de
exigências opostas (por exemplo, o artifício do digital diante da natureza do real)
nascem novas possibilidades de linguagem.
58
Idem, p. 50.
66
II,3. À imagem da arte
O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. Porém,
nenhum dos dois por si só é o que mantém o outro, posto que o artista e a obra são cada um
em si e na sua recíproca relação, por virtude de um terceiro que é o primordial: a arte, à qual
o artista e a sua obra devem seu nome”.
59
A arte excede, de muito, os limites das
avaliações estéticas. Como modo de ação produtiva do homem, ela é fenômeno
social e parte da cultura. Está relacionada com a totalidade da existência humana e
mantém íntimas conexões com o processo histórico. Possui a sua própria história
dirigida por tendências que nascem, desenvolvem-se e morrem, às quais
correspondem estilos e formas definidos. Foco de convergência de valores
religiosos, éticos, sociais e políticos, a arte vincula-se à religião, à moral e à
sociedade como um todo, suscitando problemas de valor, tanto no âmbito da vida
coletiva como no da existência individual, seja esta a do artista que cria a obra de
arte, seja a do contemplador que sente os seus efeitos. Isso nos permite sugerir que
uma maior quantidade de fé, ou uma qualidade moral mais vasta poderiam ser
determinantes do maior valor da obra de arte. A arte que é techné, no sentindo lato,
é meio de fazer, de produzir. Mas os gregos entenderam a arte não apenas como
techné, mas também como poiésis. Poiésis é produção, fabricação, criação. Significa
um produzir que dá forma, um fabricar que engendra, uma criação que organiza,
59
Heidegger, Martin. Arte y Poesía. México, Fondo de Cultura Económica,1995.
67
ordena e instaura uma realidade nova, um novo ente. Criação não no sentido
hebraico de se fazer algo do nada, mas na acepção grega de gerar e produzir dando
forma à matéria bruta preexistente, ainda indeterminada, em estado de mera
potência. A origem do universo, do cosmos, que é um conjunto ordenado de seres,
cada qual com a sua essência, ou melhor, com sua forma definida, deve-se, dizem
os gregos, a um ato poético. É sob estes conceitos que Aristóteles entende as artes:
como poiésis (certamente a poiésis não está separada da tecnhé; são parte “do
mesmo”). O gênero da póiesis é a mímesis, que é a imitação representação da
natureza e/ou do artifício. Utilizando os termos de Heidegger, do mundo e/ou da
terra. “A mímesis não existe em si mesma, mas nas suas espécies ou formas específicas.
60
Na Poética, Aristóteles fala, como ele mesmo diz, “sobre a poética em si mesma e sobre
as suas espécies, de qual é a potência de cada uma delas, de como se devem construir as
tramas se se quer um produto poético bom, também de quantas e quais são as suas partes,
assim como das outras questões que têm a ver com este mesmo campo de pesquisa...
61
. E
embora ele leve em conta artes como a pintura e a escultura, é à obra do “poeta”,
aquele que narra mythos através da palavra, que ele dá maior atenção. Isso não é à
toa, pois para Platão, de todas as artes, era a do poeta que maior afinidade tinha
com a inteligência e a que mais se aproximava do objeto da atividade teórica do
60
Aristóteles. Poética. Madrid, Biblioteca Nueva, 2002, p. 63.
61
Idem. I, 1447a
68
espírito. Sem dúvida devia ser o poeta da palavra aquele que mais claramente
expressava as suas idéias a um público carregado de emoções. E é às emoções que
Aristóteles se remete, às sensações e sensibilidades, que filtradas através dum
artista formam linguagens poéticas que originam seres e inventam realidades
naturais e/ou artificiais; epopéias, tragédias, comédias e demais gêneros...
Entretanto, a filosofia da arte teve maior respeito pela doutrina platônica que a
qualquer outra, e é assim que a Idéia de arte adotou três princípios: o da imitação,
para definir a natureza da arte, o estético, para estabelecer as condições necessárias
de sua existência e o moral para julgar seu valor. Quanto à natureza, a arte, como
mimese do real, produz e apresenta os aspectos essenciais das coisas. As condições
necessárias da existência da arte decorrem de seus fundamentos estéticos, que são
os elementos sensíveis, organizados e dispostos de acordo com os princípios
formais da beleza estética: o equilíbrio e a simetria, o respeito às proporções etc. O
valor da arte é aferido pelos efeitos que ela produz, efeitos esses que dependem da
qualidade e da quantidade do que ela é. Em geral devem as artes ser o que é belo,
tanto no sentido estético quanto no moral (os belos corpos e as belas ações), para
que o espírito, estimulado pelo prazer derivado da contemplação do que é perfeito
e excelente, sinta-se inclinado à prática das virtudes e ao conhecimento da verdade.
Desse modo, o principio da mímesis, invocado para explicar a natureza da arte,
69
define igualmente a função ética e espiritual que ela desempenha, função que
consiste em induzir a alma a imitar o que é bom e digno de ser imitado. Mas é
muito grande a distância que vai da idéia de arte, como póiesis (atividade
formadora que tem por fim a realização de uma obra) à idéia do Belo, objeto de
contemplação pura na filosofia platônica. Essa distância diminui na doutrina de
Aristóteles, onde o caráter contemplativo do Belo tende a ajustar-se ao caráter
prático da obra de arte. Enquanto Plotino vê na arte um dos meios pelos quais o
espírito humano se relaciona diretamente com a Beleza da qual Platão falou, os
filósofos cristãos, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino principalmente,
consideram separadamente essas duas idéias, que estarão unidas de maneira
essencial no conceito de Belas-Artes.
Segundo Aristóteles, os seres naturais originam-se de causas necessárias que
independem da nossa vontade. Os produtos da arte, decorrentes da atividade
prática, são contingentes, dependendo de nós para existir. Sob esse aspecto,
natureza e arte ocupam pólos opostos. A primeira possui movimento próprio,
como no-lo demonstram a geração e a corrupção das coisas determinadas pela ação
de duas causas principais: matéria e forma. A segunda, que tem na atividade
prática o seu princípio produtivo, acrescenta à natureza uma dimensão puramente
humana, artificial. Pelo que se infere do pensamento de Aristóteles, a natureza
70
seria uma espécie de arte da inteligência divina e a arte, o prolongamento da
natureza na atividade humana, na medida em que esta, a seu modo, dá nascimento
a objetos que, pela composição de matéria e forma, assemelham-se a seres vivos,
orgânicos, dotados de alma.
71
II,4. À imagem do cinema
É no cinema, a sétima arte, que se uniram as artes plásticas e rítmicas. A escultura,
a arquitetura, a pintura compõem o todo de cada filme; a literatura é o ponto de
partida para o cenário, roteiro ou estrutura técnica do enredo ou argumento, a
palavra vai ajudar a imagem através dos diálogos e as cores e a música estão
presentes na realização cinematográfica, como uma atmosfera espiritual.
Necessitando de tais colaboradores, o cinema foi acusado de parasita. Porém
utilizando as demais artes, como uma arte de síntese, o cinema transforma-se
numa categoria estética superior. O cinema é o mais maravilhoso meio de
representação do drama e do espetáculo que o mundo jamais conheceu.
62
Dir-se-ia que é a
expressão humana mais próxima de deus, nesse sentido demiúrgico e criador.
Necessitamos do Cinema para criar a arte total ao que, desde sempre, tenderam todas as
artes
63
O cinema é possível graças à união de quatro fatores: a) a fotografia ou
impressão de imagens da realidade num suporte estável, b) o movimento ou
animação da imagem obtido graças ao fenômeno da persistência retiniana e ao
mecanismo de sucessão de imagens, c) a projeção numa tela e, eventualmente, d) o
som. Dentre os muitos inventores que se atribuem a paternidade do cinema, cabe
destacar Thomas A. Edison e Louis Lumière. Edison inventou o kinetoscópio, um
62
De Menezes, José R. Caminhos do Cinema. Rio de Janeiro, Agir, 1958, p. 77.
63
Ricciotto Canudo. “Manifesto das Sete Artes” (1914). Em: Noriega, José L Sanchez. Historia del
Cine. Madrid, Ed. Alianza, 2002.
72
sistema de visão individual de imagens a 40 ou 46 fotogramas por segundo,
fabricado em série desde 1894. Consistia numa caixa de madeira que continha uma
série de bobinas pelas quais corria um filme de 14 metros em movimento
constante, passava entre uma lâmpada elétrica e uma lente de aumento. Um
obturador de disco rotatório iluminava brevemente cada fotograma e congelava o
movimento de forma regular. Fizeram-se centenas de filmes de 20 segundos para
ser projetados nesta máquina quando se jogava uma moeda. O princípio e o final
estavam unidos e a visão dos filmes, que mostravam danças, atos de palhaços etc.,
começava em qualquer momento, porém não conseguia de todo o movimento
intermitente e, em virtude disso, os filmes rompiam-se.
Na França, os irmãos Lumière eram donos duma industria fotográfica em Lyon, e
trabalhando a partir do kinetoscópio de Edison, desenvolveram o cinematógrafo.
Com a invenção dos irmãos Lumière a experiência, já reproduzida por diversos
sistemas, torna-se coletiva mediante a projeção sobre a tela de imagens em
movimento que podem ser vistas ao mesmo tempo por um certo número de
espectadores. O cinema forneceu material para uma recepção coletiva simultânea;
o material fornecido e recebido de maneira coletiva e simultânea pelos
espectadores é luz. “Sobre o cinema podemos falar mais ainda do que de uma imagem
pública, de uma iluminação pública de um tipo tal ainda não oferecido por nenhuma obra de
73
arte, com exceção da arquitetura”.
64
O cinematógrafo não é a arte do cinema e o
aparelho de Lumière não é, de fato, nada mais que um instrumento cientifico que
reproduz o mundo físico até o momento em que seja usado a serviço do mundo
poético de um artista. Os irmãos Lumière desenvolveram, a partir das sessões de
1895, uma poderosa ainda que efêmera indústria cinematográfica. Louis e Antoine
gerenciam em Lyon a maior fábrica de fotografia de Europa. Contratam
operadores ambulantes que filmam “vistas” por todo o continente e estabelecem
uma rede de concessionários e representantes a quem proporcionam aparelhos e
filmes em troca da metade do total dos ingressos. Nos Estados Unidos, sofrem as
hostilidades de Edison e as portas se fecham para os irmãos franceses; com a
presença nacionalista de McKinley, uma lei proíbe a importação de material
cinematográfico em 1897. Os Lumière diminuem a sua atividade, deixam de
produzir filmes e, no ano de 1900, se limitam a explorar o catálogo de 1000 títulos.
Provavelmente não estavam preparados para o cinema narrativo. Como diz o
próprio Louis Lumière a Sadoul: “A partir do 1900, ao se orientar cada vez mais as
aplicações do cinematógrafo em direção ao teatro e ao se basear sobretudo na encenação,
fomos obrigados a abandonar uma exploração para a qual não estávamos preparados”.
65
Mas o cinema dos Lumière como semente merece ser considerado, sobretudo em
aspectos como: a vocação documental (própria do cinema, onde não se trata tanto
64
Virilio, Paul. A Máquina de Visão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994, p. 21.
65
Noriega, José L Sánchez. Historia del Cine. Ed. Alianza. Madrid, 2002, p. 332
74
de representar um acontecimento quanto de captar o fluxo da vida cotidiana), o
efeito real, o gosto pela experimentação, a atenção ao movimento, a câmera como
testemunha e o controle da duração (pela quantidade e qualidade do filme).
A primeira sessão dos Lumière, no Grand Café, foi assistida por um homem do
espetáculo, da magia e do ilusionismo, do jogo, do maravilhoso e do trompe-l’oeil,
chamado Georges Méliès (1861-1938). Ele achou no cinema um meio de enriquecer
os seus truques e conseguir novos recursos para os seus espetáculos. Assim, Méliès
construiu em Montreuil um estúdio para levar ao cinema o seu repertorio teatral.
Lá filmou o primeiro grande filme de 15 minutos de duração: L’affaire Dreyfuss
(1899). O estúdio possuía filtros e telas para evitar que a luz solar projetasse
sombras sobre o cenário. Assim ele experimentou com distintos truques a sua
concepção fantástica do cinema: substituição de uma pessoa por outra, rodagem
através dum aquário para fazer uma foto pseudo-submarina, maquetes, sobre-
impressões, duplas exposições, fundidos, dissolvências etc., tudo isso unido ao
truques próprios do Teatro Robert Houdin, onde tinha trabalhado com uma
combinação de quadros teatrais e números de mágica. Foi ele quem mostrou as
possibilidades artificiosas da “mágica” do cinema. “A arte cinematográfica oferece tal
variedade de investigações, exige uma quantidade tão enorme de trabalhos de todo tipo e
reclama uma atenção tão permanente, que não duvido sinceramente em proclamá-la a mais
75
atrativa e a mais interessante de todas as artes, pois praticamente utiliza todas. Arte
dramática, desenho, pintura, escultura, arquitetura, mecânica, trabalhos manuais de todo
tipo, tudo se utiliza em doses iguais nesta estranha profissão; e a surpresa de quem teve, por
casualidade, a oportunidade de assistir a uma parte dos nossos trabalhos sempre me produz
uma diversão e um prazer extremos”.
66
Tal como ocorrera quando o cinema estendeu suas conquistas do mundo das
imagens ao mundo dos sons, e depois ao da cor, também a aventura das novas
técnicas origina-se de circunstâncias de caráter essencialmente prático. Assim, por
exemplo, certos processos novos tendem somente à superação de uma técnica
tradicional e são na verdade aplicáveis em qualquer caso, seja qual for o caminho
que a linguagem do filme venha a escolher, por sua própria evolução natural. Todo
processo técnico, em sentido lato, só poderá ser aperfeiçoado dentro das margens
de dois limites específicos, dificilmente comparáveis, mas quase sempre
interdependentes: um limite intrínseco (devido às características do material
empregado no processo) e um segundo limite, que podemos chamar limite de
utilidade, talvez menos preciso que o primeiro, mas não menos determinante e que
engloba tanto o material quanto o próprio processo. No campo da cinematografia,
as pesquisas tendentes ao estudo do comportamento dos novos materiais ou dos
66
Georges Méliès, citado em: Idem, p. 336.
76
novos processos de elaboração têm como objetivo prefixado melhorar os limites
intrínsecos do material e dos próprios processos; por outro lado aqueles que
satisfazem as novas exigências no plano da linguagem têm como objetivo, pelo
contrário, mudar os limites de utilidade ou responder a uma mudança ocorrida
nestes limites. Porém, seja como for, as imagens de um filme são e irão ser sempre
destinadas à projeção de luz em qualquer das suas formas; assim, a luz, que num
primeiro momento parecia ter apenas uma função técnica (ou física) de revelação
dos objetos e das pessoas incluídos no quadro, e que num segundo momento é
posta a serviço da representação psicológica como instrumento para a integração
da dimensão profundidade, torna-se, finalmente, o elemento de linguagem,
oferecendo ao artista novas possibilidades de escolha. O artista do cinema tem,
pois, a possibilidade de dar mediante a luz (seja esta natural ou artificial) diferente
relevo aos elementos de seu quadro. Neste sentido o artista poderá inventar no
quadro movimentos que, nos limites dele, conduzam justamente às variações das
relações expressivas determinadas pelas exigências do seu ordenamento poético.
77
Capítulo III
A luz como bios
Já no prefácio, em que Richard Wagner é convidado como que para um diálogo, aparece
esta profissão de fé, este evangelho de artista: ‘A arte como a tarefa própria da vida, a arte
como sua atividade metafísica’ (...)”
Vontade de Potência, p. 853.
Friedrich Wilhelm Nietzsche.
III,1. A luz como bios da vida
Segundo a famosa alegoria platônica da caverna, vivemos diante de um
evanescente espetáculo de sombras projetadas por marionetes situadas às nossas
costas, que dançam diante de um fogo que não conseguimos ver. Só o filósofo pode
desviar o seu olhar desse espetáculo e ser conduzido lentamente ao exterior da
caverna, à brilhante luz do mundo real que, a princípio, deslumbra os seus olhos.
Para Platão, as sombras são os “phantasmata” do mundo diário, as marionetes são
as formas “reais”, as quais apreendemos somente mediante esses “phantasmata”, e
a luz do dia é a claridade e a auto-evidência do inteligível, “olhado” apenas com
grande dificuldade. Já para Aristóteles as coisas são muito diferentes: a
78
humanidade encontra-se desde o princípio na luz do mundo físico, no qual
mantém uma incessante atividade e ao qual está devidamente adaptada. Esta
adaptação começa a dar-se na mesma base da nossa apreensão do mundo, no nível
da sensação. A relação entre o intelecto e o mundo origina-se, pois, no nível da
sensibilidade e é, ao mesmo tempo, de semelhança e de diferença, como a relação
entre o convexo e o côncavo, ou entre um anel e o seu selo na cera, utilizando-se a
metáfora do próprio Aristóteles. Segundo ele, “a alma humana não esquece as suas
origens celestiais; ao contrário, ela é a potência para perceber e conhecer tudo o que é
suscetível de percepção e conhecimento
67
. A concepção aristotélica da alma humana é
muito mais ativa e prática. O desenvolvimento da arte baseado no “ponto de vista”
não pode se desligar da noção aristotélica da alma humana, pela qual a alma acha-
se adaptada ao seu mundo já desde a sensação. Nem também pode se desligar da
idéia pela qual a virtude do belo, ao mesmo tempo em que é evidência de valor
transcendental, é também conformidade com a sensibilidade humana.
Sob a premissa aristotélica, então, poder-se-ia dizer que o nosso olho é como uma
câmera de cinema e a nossa mente como o telão da sala de projeção. O primeiro
recebe e captura as imagens do mundo e a outra as projeta através de uma
linguagem. A linguagem que comunica essas imagens depende sempre do “ponto
67
Summers, David. El juicio de la sensibilidad. Renacimiento, naturalismo y emergencia de la
estética. Madrid, Tecnos,1993.
79
de vista” e quanto mais bela for a exposição das imagens que queremos comunicar,
melhor serão percebidas essas imagens por algum outro que as assista. Para que a
captura e a projeção das imagens seja possível, duas coisas são indispensáveis: a
luz e o olho. Sem luz, nada seria visto, sem olho, nada se pode ver. A luz, ao
refletir nos objetos, dá os volumes, as cores, as sombras e os espaços do mundo que
está fora de nós. Graças ao olho, conseguirmos capturar essas imagens que logo
depois chegam ao cérebro e são processadas, permanecendo estas, esquecendo-se
aquelas e, por que não, submergindo outras no mundo dos sonhos. “Deve o olho a
sua existência à luz. De subalternos órgãos auxiliares animais, a luz desenvolve um órgão
adequado a ela; assim o olho se adapta graças à luz, para a luz, para que à luz exterior
corresponda outra interior.”
68
As imagens podem ser de dois tipos, segundo Deleuze:
imagens-tempo e imagens-movimento (termos de Bergson).
69
A imagem-tempo
seria aquela fixada num tempo e num espaço, enquanto que a imagem-movimento
é aquela que devém, e que não pára até o seu final. Embora as imagens fixas
também façam parte da vida, a imagem análoga à vida é a imagem em movimento.
Tudo flui”.
70
O cinema tem a qualidade de ser a arte que nos dá a melhor impressão de
realidade, restituindo fielmente as suas aparências. O cinema é, com maior
68
Goethe. Teoría de los Colores. Madrid, Celeste, 1999.
69
Deleuze, Gilles. La imagen movimiento.Barcelona, Paidós, 1994.
70
Heráclito, citado por Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2002, XIII1078b.
80
propriedade que qualquer outro meio de expressão artística, a linguagem do ser, aliás, a
linguagem por excelência e com evidência ainda maior, é um ser”.
71
Quando os irmãos
Lumière projetaram pela primeira vez aquela chegada do trem em Paris, alguns
dos espectadores da sala saíram fugindo desesperados, achando que o trem iria
atropelá-los; essa é a verdade do cinema. “Quando o cinema reconstrói o movimento
com cortes imóveis, não faz senão o que fazia já o pensamento mais antigo (os paradoxos de
Zenon), ou o que faz a percepção natural”, sinala Bergson
72
. Entretanto, na medida em
que o cinema serve para transmitir idéias e sentimentos, é um meio de
comunicação, um meio de expressão e uma linguagem. Uma linguagem que é ser.
Não são as imagens que fazem um filme, mas a alma das imagens”, diz Abel Gance, ao
que Epstein agrega: “O cinema é o mais poderoso meio de poesia, o meio mais real do
irreal.”
73
O fenômeno do cinema se produz quando muitos quadros, fixados numa
linha reta, viajam a 24 quadros por segundo através da luz e são projetados numa
tela a um grupo de pessoas. Assim podemos entender que o cinema é, em termos
de Bergson, uma tensão constante entre várias imagens-tempo e uma grande
imagem-movimento. É uma mistura das duas, quase como a vida. Mas o cinema
não é a vida; é uma arte feita para um público, portanto uma representação. Uma
ficção, um artifício feito pelo homem e pela mulher.
71
Martin, Marcel. La estética de la expresión cinematográfica. Madrid, Rialp, 1962, p. 31.
72
Idem, p. 14.
73
Idem, p. 33.
81
À diferença da vida, no cinema a imagem não se dá por acaso. Ela está situada
num marco referencial que possibilita a visão para outros. Isso é o “quadro”. Ele é,
como já dissemos, o limite do realizador. “A natureza, os objetos, as pessoas não
oferecem, em seu aspecto genérico, nenhuma característica expressiva particular, mas a
adquirem quando são vistas sob um ângulo determinado, e são limitadas também, de uma
certa maneira, pelas margens do quadro”.
74
Assim como sobre uma tela o pintor afasta,
por determinação rigorosa, uma parte da cena. Num filme, a imagem do quadro e
a sucessão de imagens em movimento ou de planos devem também ser
enquadradas com precisão. Se da percepção cotidiana o cinema retém e guarda o
movimento, podemos dizer que toma da pintura um empréstimo, o quadro.”
75
Um quadro
meditado confere a uma cena o seu mais alto grau de eficácia dramática, estética
ou moral. A atenção centra-se. Todo o nosso interesse converge para a tela e esta se
converte num mundo profundo, im erso, no qual o espírito se dilata e se torna
permeável. O “enquadramento” é a arte de mobiliar o espaço e dele extrair
harmonias que encantarão os sentidos. “O enquadramento determina a eleição espacial
dos elementos a representar no quadro ou a dele excluir, assim como também determina
temporalmente os limites do devir expressivo de um movimento.”
76
Na vida, nós mesmos
e o acaso escolhemos o quadro que vemos. No cinema, ao contrário, por ser este
uma arte que se faz em conjunto, aquele quadro que nós espectadores assistimos
74
Idem, p. 53.
75
Agel, Henri. El Cine, Madrid, Rialp, 1996, p. 55-56.
76
May, Renato. El lenguaje del film. Madrid, Rialp, 1962, p. 27.
82
diante da tela existe graças ao trabalho de uma equipe, dirigido pelos realizadores
e assinado por um diretor. Nesta tese se tentará entender a sensibilidade do
sistema e a estrutura visual da imagem do cinema a partir do fenômeno da luz,
portanto estabelecemos já uma ruptura epistemológica e concordamos em tratar
apenas do que diz respeito à imagem visual do filme. Na criação desta imagem,
participam desde a equipe de roteiro até a equipe de arte (cenografia), a equipe de
figurino, a equipe de produção, maquilagem etc., mas o responsável direto pela
imagem final num filme é o “diretor de fotografia”.
III,2. A luz como bios no cinema
O diretor de fotografia é aquele que photo (luz) grapha (escreve), “é o responsável pela
imagem do filme, inteira, luz e câmera
77
. Ele pinta o quadro, é o arquiteto da imagem,
poeta da luz que faz com que as idéias do diretor se plasmem na tela. O quadro é a
sua tela, a câmera o seu pincel e a luz seu material. Por agora temos tão só
movimentos, chamados imagens para distingui-los de tudo o que ainda não são. Porém, esta
razão negativa não é suficiente. A razão positiva é que o plano de imanência é inteiramente
luz. O conjunto dos movimentos, das ações e reações, é luz que se difunde, que se propaga
‘sem resistência e sem perda’.
78
A identidade da imagem e o movimento têm por razão a
77
Moura, Edgar. 50 anos, luz, câmera, ação. São Paulo, Senac, 1999, p. 211.
78
“De matéria e memória”, p. 188.Bérgson citado por Deleuze. Em: Deleuze, Gilles. La imagen
movimiento.Barcelona, Paidós, 1994.
83
identidade da matéria e a luz. A imagem é movimento, como a matéria é luz.
79
Se no
cinema a imagem é movimento e a sua matéria é a luz, fazemos uma pergunta: por
que não pensar também na photo-graphia para entender a sua linguagem? A maior
parte dos teóricos do cinema vêm analisando principalmente a montagem do filme
para tentar interpretar as sensações totais. E talvez a montagem, que segundo
Pudovnik é a verdadeira essência do cinema
80
, seja só uma parte do processo,
nascida graças ao acaso. Um dia George Meliès, filmando em Paris, teve uma
surpresa, como ele conta: “(...) enquanto filmava na Praça da Opera, o aparelho (a
câmera) pára. Suspendo o trabalho para dar lugar à reparação e depois continuo. E o que
aparece na projeção? (...) Ali onde passavam homens, de pronto vêem-se mulheres; um trem
se converte numa carroça fúnebre (...) Sem querer tinha descoberto o truque chamado
‘montagem’”.
81
A montagem cinematográfica nasceu, pois, naquele mesmo instante.
E dá ao cinema a possibilidade de unir, sem perder a continuidade, partes tomadas
em diferentes tempos e em distintas condições. Assim, a narratividade do cinema
se faz maior e a sua capacidade de relatar rompe os seus limites. Com o som, as
cores e até a tecnologia digital, ou seja, com a técnica (thecné) o meio se complica,
torna-se mais interessante, ampliando a imaginação humana e a sua linguagem.
79
Deleuze, Gilles. La imagen movimiento. Barcelona, Paidós, 1994, p. 92.
80
Martínez Abadía, José. Manual básico de técnica cinematográfica y dirección de fotografía.
Barcelona, Paidós, 2000, p. 22.
81
May, Renato. El lenguaje del film. Madrid, Rialp, 1962, p. 45.
84
Não se trata aqui de tirar da montagem o que a ela pertence, mas sim tentar pensar
o cinema a partir de uma perspectiva que transcenda a narratividade linear do
filme, em direção a uma narratividade global, mais propriamente atmosférica. É
por isso que nos dispomos aqui a estudar a fotografia, que, mais que uma técnica
narrativa, é a necessidade básica para se fazer cinema. Ela é a criadora da
expressividade da imagem. A fotografia no cinema não trata só de “iluminar” a
cena. Junto com a câmera, a sua importância é transcendental na criação das
atmosferas adequadas para o desenvolvimento de cada cena do filme e do filme em
geral. É um trabalho que requer um conhecimento teórico-prático na arte da
criação da imagem. Inspirado na pintura, fotografia fixa, escultura e arquitetura, o
trabalho do diretor de fotografia num filme é tão importante quanto o trabalho do
diretor, mas infelizmente costuma-se entender o primeiro como algo sem
transcendência. Terrível erro.
III,3. O cinema como atmosfera de luz
Ao falar de atmosfera estamos nos referindo àquela “qualidade substancial do quadro,
para utilizar termos do Arnheim. A atmosfera pode ser entendida como aquela
“substância qualidade em relação” que rodeia o tempo todo. A criação e a
transmissão da atmosfera do filme é o real trabalho do diretor de fotografia, sempre
e quando ele esteja fazendo arte. Fazendo cinema-arte. Uma das considerações que
85
devemos ter em conta é que esta pesquisa tratará somente do cinema que é arte,
aquele que é feito por artistas, cada um no seu próprio gênero. O cinema, sendo
uma industria, é propenso a fabricar filmes em quantidades industriais,
sacrificando muitas vezes o valor artístico do produto. Esse cinema existe e não se
trata aqui de propor o contrário. Entretanto, para fins filosóficos esse tipo de
cinema (que tristemente poder-se-ia também qualificar como arte por pertencer a
uma, à sétima) não interessa. Feita essa ressalva, nos referirmos novamente ao
termo atmosfera, o qual é um elemento dificilmente analisável se não se parte de
uma postura fenomenológica de pesquisa. Mas o que é fenomenologia? É possível
dizer, sem sermos atrevidos, que a fenomenologia é um método científico que
considera o processo criativo artístico não só como algo racional, mas também
como algo intuitivo. A fenomenologia entende a “arte como liberdade”, pois não
existem fórmulas para produzir uma obra de arte. Porém, pode-se considerar
teoricamente o fato de que entre a intuição do artista e a obra em si existe uma
ponte necessária, constituída pela linguagem que adota o artista para expressar o
seu mundo poético. A linguagem depende da intuitiva eleição dos elementos que o
artista julga expressivos; mas a própria linguagem se restringe aos meios
expressivos que estão dentro da esfera das sensações, tanto do mundo de quem
realiza a obra como de quem dela goza. A linguagem, como livre eleição de elementos
expressivos, forma parte, sem dúvida alguma, do processo criativo. Como veículo das
86
emoções estéticas do artista, está constituída, ao contrário, por um conjunto de convenções
que o próprio artista estabelece de antemão em dependência da sua própria necessidade de se
expressar através da sua própria linguagem, mas se observamos criticamente várias obras
expressas com uma mesma forma de arte é possível reconhecer nelas uma certa semelhança
de estrutura que oferece material abundante para uma teorização.
82
Um dos pontos que Deleuze critica na fenomenologia é que esta propõe o
fenômeno a partir de fora e não a partir de dentro, como faz, por exemplo, a
psicanálise. Achamos que isso não corresponde inteiramente à verdade. A
fenomenologia, entendendo-a desde Aristóteles, Kant, Goethe, Hegel, Husserl,
Nietzsche, Heidegger, Ayfre, Agel até Merleau-Ponty, não se apresenta como um
método dialético de pesquisa, mas sim relativo, onde o fenômeno pode ter muitos
tipos de verdade, mas o trabalho do teórico fenomenologista é tentar desvendar o
tipo de verdade que não pode ser reduzida apenas à lógica. Quer dizer, procurar
achar a verdade transcendente. A arte é um gesto formal que organiza nossos
corpos e nossas imaginações em resposta à experiência básica. A razão nunca pode
substituir esse gesto, apesar de poder descrevê-lo e falar dele. Pelo vocabulário de
Merlau-Ponty, a fenomenologia “entende a arte como uma atividade primária, um modo
82
Idem, p. 38.
87
natural, imediato e intuitivo de compreender a vida.”
83
Assim, a fenomenologia parte da
aceitação de uma “filosofia alegre” que considera na sua justa e real proporção de
estrutura os problemas do ser e do não ser, da realidade exterior e do mundo
interior de cada um de nós, no nosso existir concreto e sem recorrer à dialética do
idealismo e do materialismo. Como assinalamos antes, para fins desta pesquisa,
achamos possível distinguir teoricamente e dentro dos suficientes limites racionais
a existência duma atmosfera do filme cinematográfico que se transmite ao
espectador. O que é atmosfera? Segundo o Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, significa: “envoltório gasoso dos astros em geral; camada de ar que envolve a
Terra; o estado atmosférico, o tempo, o céu e/ou o ambiente moral
84
. Aplicando-se estes
termos naturais a uma arte como o cinema, resultaria de validade comum entender
a atmosfera como a representação de uma forma-matéria de vida que envolve. A
atmosfera seria a representação do bios. Diz Muniz Sodré: “Em sua Ética a Nicômaco,
Aristóteles concebe três formas de existência humana (bios) na Polis: bios theoretikos (vida
contemplativa), bios politikos (vida política) e bios apolaustikos (vida prazerosa)”.
85
Todas
as faculdades da alma ou capacidades podem se reduzir a três: a faculdade de conhecer [bios
teoretikos], o sentimento de prazer e dor [bios apolaustikos] e a faculdade de desejar [bios
83
Dudley, Andrew J. As principais teorias do cinema, uma introdução. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1989, p. 242.
84
Ferreira, Aurélio B. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo, Nova Fronteira, 1995.
85
www.eca.usp.br/associa/alaic/chile2000/17%20GT%202000Teorias%20e%20Metodologias/MunizSodre.doc
88
politikos].”
86
Bíos é a unidade da atividade vital humana. A forma e a matéria do bios
se apresentam numa atmosfera. O bios desta pesquisa é a luz, e a atmosfera é o
cinema. “Haverá que começar, portanto, dizendo o que é a luz. Há pois algo que é
transparente(...) A luz é o ato disto, do transparente enquanto transparente”.
87
A hipótese central desta tese é que o bios (a luz no cinema) é uma relação em
tensão constante entre a substância e a qualidade, que geram dois sub-gêneros de
bioi: o bios x, a natureza, o mundo externo, o “que se apresenta além da nossa
vontade, a physis dos gregos. E o bios y, o mundo interno, o “comose apresenta a
partir do nosso ponto de vista, o logos dos gregos. O bios (a luz) seria assim, o ente
filosófico material-formal gerado da relação permanente entre a physis e o logos. A
forma escolhida nesta pesquisa para analisar a luz e os seus bioi é através da arte.
Do bios apolaustikos, segundo Aristóteles, ou do sentimento de prazer e dor,
segundo Kant, vem a faculdade de julgar, cuja finalidade como princípio a priori se
aplica na arte. Consideramos a arte como um mundo transcendente (não só
racional, que re-elabora as emoções transcendentes) representado da maneira mais
feliz na poeisis. Da poeisis, nasce a obra de arte. “Aristóteles entende a arte como uma
continuação da natureza através da criação humana, explicitando, na Poética, que a obra de
arte, ao recriar numa outra realidade as essências universais, não está imitando a Natureza
86
Kant, Imanuel. Crítica del Juicio. Madrid, Victoriano Suarez, 1958, p. 119.
87
Aristóteles. Acerca del Alma. Madrid, Gredos, 1994, 418b/5-10.
89
no seu aspecto particular ou contingente, mas no aspecto essencial e necessário. Assim, a
arte enquanto poeisis aponta para a relação entre a contingência da vida (bios) e a
representação da vida”.
88
Levando em conta estas premissas, tentaremos fazer uma
síntese da estrutura e uma análise dos efeitos do fenômeno da luz no cinema, onde
a estrutura seria a linguagem, e a linguagem, para se converter em língua, deve estar
necessariamente a serviço de uma intuição poética. É a síntese da linguagem que expressa o
mundo poético do artista, e é esta intuição que constituiu a origem da obra de arte”.
89
Será
pois, função do pesquisador a análise dos efeitos para a reconstrução do fenômeno.
Na representação de atmosferas que é o cinema, e na arte, sua melhor e mais bela
forma, temos reconhecido um fenômeno, particular e universal ao mesmo tempo,
que é a luz. A matéria daquela luz, entendida como physis, denominamos bios x, e a
forma, o logos, chamamos de bios y. Mas perguntamos: como é que esses bioi são
re-presentados na arte do cinema? Precisamente quanto a isto, a segunda hipótese
desta pesquisa é que: a forma artística que re-presenta o bios x poderia ser
entendida como o estilo naturalista, enquanto que o bios y encontraria a sua melhor
forma no estilo expressionista de representação.
88
http://www.pucrs.br/fale/pos/historiadaliteratura/gt/marialuiza.htm
89
Dudley, Andrew J. As principais teorias do cinema, uma introdução. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1989, p.23.
90
III, 4. O Natural
4.1.- O Naturalismo
O natural é o referente à natureza
90
. A natureza é a força ativa que estabeleceu e
conserva a ordem natural de tudo quanto existe. O homem encontra-se
determinado pela natureza. Esta compreende tanto seu próprio corpo como o
mundo exterior. Justamente a disposição do próprio corpo, e os enérgicos impulsos
animais que o dominam, determinam seu sentimento da vida. Assim, tão antigo
quanto a própria humanidade, o naturalismo é um modo de ver e tratar a vida que
fecha o seu ciclo na satisfação dos instintos e na submissão ao mundo exterior. Eis
a natureza. O naturalismo é permanente, não houve época nenhuma na qual ele
não dominasse uma parte dos homens. Convém refletir sobre o enunciado da
poética naturalista de Zola em seu ensaio sobre “Le roman expérimental”, sobre seu
elogio do puro “documento humano” e seu ideal de absoluta objetividade. Diz
Deleuze: “Quando as qualidades e potências se captam como atualizadas em estados de
coisas, em meios geográfica e historicamente determináveis, entramos no âmbito da
imagem-ação
91
. É assim que ele descreve o naturalismo na imagem-linguagem
cinematográfica. O naturalismo como imagem-pulsão se estenderia pelas
coordenadas: mundos originários pulsões elementares” e meios determinados
comportamentos”.
90
Ferreira, Aurélio B. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo, Nova Fronteira, 1995.
91
Deleuze, Gilles. La imagen movimiento. Barcelona, Paidós, 1994, p. 179.
91
Em todas as partes esta concepção do mundo funda-se na mesma atitude, a
subordinação da vontade à vida instintiva animal que domina o corpo e as suas
relações com o mundo exterior; o pensamento e a atividade orientada por ele estão
aqui a serviço dessa animalidade, esgotando-se em procurar a sua satisfação. Esta
concepção da vida encontra a sua expressão numa considerável porção da
literatura de todos os povos. O seu grito de guerra é a emancipação da carne.
Nessa oposição à disciplina (necessária e, porém, temível) da humanidade por
meio da religiosidade funda-se a justificativa histórica, relativa, dessa reação de
uma afirmação da vida natural que sempre re-nasce e manifesta-se de novo
(physis). Quando esta concepção da vida converte-se em filosofia, surge o
naturalismo. Este afirma teoricamente o que nele é vida; o processo da natureza é a
realidade única e inteira, fora dela nada existe. Mas a vida espiritual só se
distingue formalmente da natureza física como consciência, segundo as
propriedades inerentes a esta, e esta determinação da consciência, vazia de
conteúdo, procede da realidade física segundo a causalidade natural.
A estrutura do naturalismo é análoga, de Demócrito a Hobbes, e dele até o “Sistema
da Natureza
92
: sensualismo como teoria do conhecimento; materialismo como
metafísica e uma conduta prática dupla: a vontade de gozo e a reconciliação com o
92
O “Système de la nature”, do Barão de Holbach, publicado em 1766. Em “Los tipos de visión del
mundo”. Barcelona, Seix Barral, 1992. Pag 74.
92
curso prepotente e estranho do universo mediante a submissão a ele na
observação. A justificativa filosófica do naturalismo reside na extensão e na energia
das massas físicas. Elas envolvem, como algo imenso e que se estende
continuamente, os escassos fenômenos espirituais. Considerados assim, estes
parecem como interpolações no grande texto da ordem física. Por isso o homem
natural, na consideração teórica de tal situação, tem que se encontrar totalmente
submetido a essa ordem. Ao mesmo tempo, a natureza é o lugar originário de todo
conhecimento de semelhanças. As mesmas experiências da vida diária ensinam a
estabelecer essas semelhanças e contar com elas; assim realizam um ideal do
conhecimento, que é inacessível às ciências do espírito, fundadas na vivência e na
compreensão. A natureza é, em princípio, o uniforme e o permanente. Lembre-se a
expressão leibniziana: a natureza é costume de Deus”. Por isso a forma de
conhecimento própria dos fenômenos naturais é a explicação causal e a lei que os
unifica. As ciências do espírito, em vez disto, utilizam outro modo de saber, sobre
o qual Dilthey insistirá largamente: vivência e compreensão, que conduzirá à
“hermenêutica”. Entretanto, as dificuldades que este ponto de vista encerra
impulsam o naturalismo, numa dialética incessante, a fórmulas sempre novas de
atitude frente ao mundo e à vida. A matéria da qual ele parte é um fenômeno da
consciência, caindo assim num círculo vicioso: do que só é dado como fenômeno
para a consciência, querer derivar esta mesma. Aliás, é impossível derivar o
93
movimento, que é dado como fenômeno de consciência, a sensação e o
pensamento. Eis aí a correlação positivista do físico e do espiritual. Finalmente, a
moral do naturalismo primitivo aparece como insuficiente para fazer
compreensível a evolução da sociedade. O naturalismo tem seus fundamentos
epistemológicos no sensualismo. Por sensualismo entendemos aqui a redução do
processo de conhecimento ou dos seus resultados à experiência sensível externa.
Deste modo, o sensualismo é a expressão filosófica direta da concepção naturalista
da alma. O naturalismo deriva de impressões particulares, a unidade da vida
psíquica é proposta como uma “unitas compositionis”. O sensualista não nega nem o
fato da experiência interna nem o da concatenação mental do dado, mas encontra
na ordem física o fundamento de todo conhecimento da conexão legal do real e das
propriedades do pensamento, que resultam para ele, evidentemente ou mediante
uma teoria, como parte da experiência sensível.
A primeira teoria do sensualismo foi criada por Protágoras. Para ele, na
cooperação de dois movimentos, um exterior e outro orgânico, que transcorre no
homem, se produz a percepção, e como segundo ele a percepção e o pensamento
não estavam separados, deduzia das percepções assim originadas a vida psíquica
inteira. A realidade meramente empírica da organização sensível, a sujeição de
todo o pensar a ela e a inclusão dessa organização no complexo físico constituem o
94
fundamento de todas as doutrinas relativistas da Antiguidade. Somente quando a
grande época da fundamentação da ciência matemática da natureza no século XVII
reconheceu uma ordem da natureza conforme leis, entrou o sensualismo no seu
último e decisivo período. A ciência natural tinha se constituído então como o
saber de experiência inatacável, e o sensualismo tinha que reconhecer este fato
para tomar posição frente a ele e superar as conclusões da época anterior. Este foi o
grande trabalho de David Hume. Ele postulava que das regularidades do
acontecer nascem hábitos em relação a certos efeitos; na potência associativa
inerente a eles se encontra o único fundamento dos conceitos de sustância e
causalidade. Deste modo originam-se conclusões que formaram depois as bases do
positivismo.
O ideal de vida do naturalismo tinha que ser duplo; por um lado, o homem é
escravo do curso da natureza pela sua paixão e, por outro, está acima dele graças
ao poder do pensamento. O ideal do naturalismo na Antiguidade se constrói sobre
o sensualismo de Protágoras e as condições do hedonismo de Aristipo. Mas só a
época moderna aportou recursos cientificamente válidos para a explicação
naturalista da evolução espiritual. Assim, na esteira de uma longa evolução
cultural, Ludwig Feuerbach propunha que o ideal do naturalismo considera um
homem livre, que reconhece em Deus a imortalidade e a ordem invisível das coisas
95
e dos fantasmas dos seus desejos. Esta definição tem exercido um poderoso influxo
sobre as idéias políticas, a literatura e a poesia. Assim, no campo da arte, o
naturalismo faz referência àquela (arte) na qual os seus elementos presumivelmente
coincidem com os da experiência ótica. Há ocasiões em que os termos naturalismo e
realismo se utilizam indistintamente; façamos então um esclarecimento. Realismo é
basicamente uma categoria temática atribuível à arte com referências históricas
concretas, reais ou aparentes. Um dos debates constantes ao longo de toda a
história do cinema tem sido a relação entre o cinema e a realidade. De fato, não
poucos movimentos de renovação surgiram a partir de distintos tipos de chamadas
a uma volta à realidade, a partir da reivindicação do realismo. Freqüentemente, a
apelação à realidade se realiza em função da verdade que deve presidir toda obra
de arte e da ética de compromisso com a realidade-história. O mais significativo
destes movimentos foi o neo-realismo, que é teorizado de distintas posições por
teóricos que reivindicam a necessidade de um cinema de memória histórica da
guerra e a posterior luta pela sobrevivência. Um cinema que nega o espetáculo e a
pura ficção e aposta em documentar a realidade partindo de uma razão moral que
alenta o compromisso do cineasta com o presente histórico. Um cinema que
alcança a sua identidade e singularidade artísticas graças à fidelidade do
fundamento fotográfico. E ainda que aposte pela narração, vai fazê-lo a partir um
realismo crítico e comprometido. Dentre os teóricos que têm refletido sobre o
96
cinema em chave “realista”, André Bazin e Siegfried Kracauer são os mais
significativos, posto que, apesar das diferenças, ambos têm em comum a sua
reivindicação do realismo existencial em função do realismo técnico.
Eis aqui a diferença substancial entre ambos conceitos, portanto o naturalismo não
pode ser analisado cinematograficamente como uma corrente artística de conteúdo
puro, como se faz com o realismo, posto que, no momento em que aparece a
montagem, o naturalismo como corrente estética de conteúdo perde a sua razão de
ser. Como poderia ser natural algo que não o é? Com a montagem fica claro que o
cinema não é uma simples cópia ou reprodução fiel da realidade. O cinema é um
artifício, que graças à montagem acentua o seu caráter artístico como meio de
representação. O naturalismo no cinema é, pois, um estilo formal, cheio de
conteúdo simbólico, real e natural. O naturalismo no cinema respeita a ordem da
physis: “Physis se restringe a partir de sua oposição a techné, que não significa nem arte
nem técnica e sim um saber, a disposição competente de instituições e planejamentos, bem
como o domínio dos mesmos. A techné é criação e construção, enquanto produção sapiente.
O ente como tal, em sua totalidade, é physis. Isso quer dizer que sua Essencialização e seu
caráter consistem em ser o vigor dominante, que brota e permanece”.
93
Também o termo
naturalismo deve se distinguir do termo “imitação”, categoria mais ampla que faz
93
Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 47.
97
referência à arte que constrói analogias artificiais das coisas. As formas imitadas
podem remeter a formas naturais, ainda que não necessariamente as reduzam aos
seus elementos óticos. Assim, o naturalismo constitui de fato um tipo de imitação,
um tipo no qual a analogia artificial representa uma relação virtual de luz,
obscuridade e cor determinada pela ótica e pela geometria da nossa visão. O meio
decisivo pelo qual se efetua esta transformação na significação da linha é, claro
está, a luz. O primeiro elemento do ótico é, pois, a luz virtual, visível na pintura
como contraste claro-obscuro. A linguagem da ótica, ciência que versa sobre a
relação física entre a visão e o seu objeto, fica formulada em termos de luz. A
culminação do sistema do naturalismo, com a invenção da perspectiva, converteu o
ponto de vista do espectador em parte integral da estrutura básica da pintura.
Como reflete Panofsky no seu artigo A perspectiva como forma simbólica”, a
definição do ponto de vista deu origem a um paradoxo: o mundo “objetivo” só é
visível do ponto de vista de um sujeito, só podemos ver as coisas “tal como
realmente são” a partir de um ponto de vista
94
. Todas estas relações são estéticas
num sentido pouco problemático, mas importante, são estéticas na medida em que
ficam determinadas pela sensibilidade, pelo juízo da sensibilidade. A determinação
estética das relações é uma nova possibilidade que nasce com o naturalismo,
possibilidade que foi se adentrando no período moderno, continuando com uma
94
Panofsky, E. La prospettiva come forma simbolicae altri scritti. Milan,1966.
98
tradição iniciada no Renascimento e que acabaria por transformar e revogar o
próprio naturalismo. Assim, a emergência do naturalismo não deve se entender
como uma conseqüência inevitável do progresso nas artes, mas como um
complexo conjunto de invenções pictóricas que nascem dentro dum horizonte de
significado que, imediatamente elas (as próprias invenções) ampliam e
transformam.
4.2.- A imitação da natureza
O desenvolvimento do naturalismo na arte desde o final da Idade Média e começo
do Renascimento não pôde se dar de forma independente, levando em conta o que
o naturalismo significava ou supunha. Imitar as aparências, quer dizer, formar
imagens semelhantes a phantasmata, podia ser entendido como tudo aquilo que a
sensação comum implicava. Não apenas uma espécie de vivacidade e concreção e
determinado tratamento da temática, também implicava a universalidade da
audiência, baseada na pré-suposta universalidade da estrutura da percepção. A
sensação comum também levava junto elementos óticos e, em termos mais gerais,
elementos físicos. A imitação das aparências pode ter começado sob a forma de
demonstrações de habilidade de caráter marginal ou como parte de uma nova
estratégia didática. Porém, o naturalismo não é simplesmente um desenvolvimento
orgânico a partir desses começos, mas sim forma-se e cresce graças ao que
99
significava para essa tradição e nessa situação. O naturalismo também supõe uma
nova definição sistemática do espectador. Em geral, naturalismo implica “ponto de
vista”. As coisas parecem reais a partir do espaço e do tempo que ocupa qualquer
um que as contemple ou que contemple a própria imagem. Nossa melhor definição
de ponto de vista remete à perspectiva, mas ela só representa o ponto de vista na
sua forma mais geral e abstrata, a forma matemática que todos os espectadores
compartilham, ao menos em princípio. Ponto de vista tem outras conotações;
implica também subjetividade, individualidade e juízo próprio. Juízo significa
discernir ou distinguir seguindo as premissas de um meio ou uma norma. Meio
poderia se definir como o ponto situado entre dois extremos dum continuum, norma
como aquilo cujo nível supera o de toda coisa concreta, cuja verdade ou validez
pode, por sua vez, ser determinada relativamente a essa norma. A relação entre
meios e normas representa já por si só um problema difícil. Enquanto que a
máxima preocupação de Platão eram as normas, Aristóteles estava interessado
também nos meios. Aristóteles preserva em numerosos pontos uma acentuada
distinção platônica entre pensar e sentir, aos quais ele associa repouso e
movimento, respectivamente. A distinção entre pensamento e sentidos gerava
problemas no que dizia respeito à sua interação, problemas que nunca se
resolveram satisfatoriamente e que foram um perene pomo da discórdia ao longo
de uma tradição da qual falaremos a seguir. A sensação lança as imagens internas,
100
das quais parte o pensamento, que irá voltar a elas para atuar. Mas Aristóteles
também considera o pensamento como uma transição entre sentidos e razão, como
uma Ascensão no qual o sensorial vai se assemelhando ao racional. Na sua
capacidade de fazer distinções a alma humana é uma por natureza, do nível da
sensação em diante. A atividade da alma é concebida como uma sucessão de
juízos. A alma animal não é só uma faculdade produtora de movimento local, mas
também a capacidade de julgar, atividade esta que corresponde ao pensamento e à
percepção” (De anima, 432a-15). Para Aristóteles, a imaginação é passiva, padece a
partir de baixo a ação da sensação, de dentro a dos sonhos e alucinações, de cima a
de formas e diagramas mentais de artes e ciências, ou a das noções de reta conduta.
Pensamento e sentidos se enfrentam e se escondem na imaginação. A imaginação,
o pensamento e a mente são “kriticon”, capacidade de juízo. A “capacidade de
julgar, função do pensamento e da percepção” é comum a ambas faculdades. Por
conseguinte, é difícil classificar o sensorial como racional ou irracional. A
acumulação de juízos gera uma norma, um juízo sobre cujo fundo podem se fazer
futuros juízos, sendo este, como nos é dito no começo da Metafísica, a origem da
arte e da ciência. Seguindo tais diretrizes, Aristóteles esboça analogias entre
atividade intelectual e sensação e o faz em casos de grande relevância. “A sensação é
análoga à simples asserção ou simples apreensão pelo pensamento; o objeto pode produzir
prazer ou dor, mas quando a alma o persegue ou o evita realiza um gênero de afirmação ou
101
negação”.
95
A sensação é análoga à razão nos seus juízos, mais ainda, os juízos da
razão prática (a especulativa não pode atuar) são de certa forma análogos aos dos
sentidos. Assim, é possível que os sentidos sejam também um gênero de razão,
como afirmava São Tomás de Aquino.
Segundo Aristóteles, as coisas reais são uniões de forma e matéria; de certo modo a
mente percebe as formas das coisas, formas que são pensáveis. Com a adaptação
secular da proposta aristotélica ao platonismo, a simetria entre matéria e forma
cedeu o passo a um decidido desequilíbrio a favor da última. Quer dizer, a forma,
pensável, era associada à mente, ao mesmo tempo que o percebido seria
progressivamente espiritualizado, a modo de matéria convertida na mera hipótese
necessária da pura potencialidade. O juízo sobrevivia em ditos esquemas como
prova da atividade da alma em todos os níveis, à diferença da passividade da
matéria. Partindo do princípio que nada pode ser conhecido segundo a sua força
intrínseca, mas sim segundo a faculdade mediante a qual se conhece, Boécio passa
a reconhecer uma série crescente de gêneros de “visão”. A vista e o tato intuem e
compreendem, respectivamente. Os sentidos julgam o homem na matéria que o
constitui, a imaginação julga a sua forma. A razão pesa e aprecia as espécies
universais e a inteligência contempla aquela forma simples com o olhar puro da
95
Aristóteles. Acerca del Alma. Madrid, Gredos, 1994, 431a/8ss.
102
mente
96
. Juízo é aqui um ato distintivo da imaginação que consiste em transformar
a sensação ou, dito de outro modo, em transformar a matéria julgada pelos
sentidos. Finalmente, para Boécio “todo juízo é o ato daquele que julga
97
. Não é então
uma questão de juízo normativo, senão de gêneros de juízo, já que cada faculdade
da alma julga à sua maneira. Outros autores insistiam na atividade da sensação,
argumentando que o sensível não era uma alteração da sensação, mas a
consciência desta.
Segundo Santo Agostinho, a percepção era passiva por parte do corpo e ativa por
parte da alma. Na sensação, dizia São Boaventura, “a recepção das espécies depende do
corpo, mas o juízo depende da virtude sensível
98
. Quer dizer, podemos ver com a
matéria dos nossos olhos, mas o que chamamos ‘julgar’ é coisa da atividade da
alma, em cuja visão serve-se (o julgar) do seu órgão material. De acordo com São
Boaventura, o corpo padece a ação dos objetos externos, mas a alma reage de
imediato: tal reação é o juízo. E este juízo é conhecimento sensível.
O nosso desejo natural de saber, dizia Aristóteles, se evidencia no valor que damos
aos nossos sentidos e, se devemos nos servir destes para apreender, também eles
96
Boécio. The Consolation of Phylosophy, with the English Translation of “I.T” (1609).
Cambridge/Londres, H. F. Stewart, 1962, p. 388-391.
97
Idem.
98
San Buenaventura. Opera omnia. Madrid, Ed. Católica, 1949, vol II, p. 221, 623.
103
devem nos ensinar. A idéia pela qual a percepção é a base de todo conhecimento
dá uma nova justificativa para as artes visuais e multiplica a importância da arte
precisamente por ser visual. Não obstante, ao mesmo tempo que concede meios
educativos e edificantes potencialmente universais, esta concepção nos introduz no
que poderíamos nomear um “campo de gravidade nominalista” (área do
estruturalismo) em toda discussão. Quer dizer, se os sentidos eram um
fundamento, jamais o desenvolvimento a partir desse fundamento tinha sido tão
difícil. Dizer que a experiência sensorial do mundo permite compreender o
significado último, como o fazia Hugo de São Victor, significava atribuir uma
grande importância à fé. Mas, ainda que fosse possível adscrever um significado
último à interpretação das experiências, a relação entre sensibilidade e significado
traz consigo novos problemas e, no princípio, era necessário demonstrar a sua
conexão. Quando os autores renascentistas repetiam a máxima de Protágoras, para
quem o homem é a medida de todas as coisas, não estavam dando renda solta ao
seu otimismo no que diz respeito às possibilidades da mente humana num
universo antropomórfico; pelo contrário, faziam eco com um profundo ceticismo,
com uma penosa fé na incerteza e nas limitações do conhecimento humano. Só
conhecemos bem as coisas ás que podemos aplicar a medida da nossa própria
natureza. Na sua expressão mais extrema (a do próprio Protágoras) o mundo existe
de maneiras distintas para cada um de nós.
104
4.3.- Natureza e Espírito.
A atividade artística é uma forma de raciocínio no qual perceber e pensar são atos
que se encontram indivisivelmente mesclados. Diz Kant na primeira parte da
Teoria Elementar Transcendental, precisamente na “Estética Transcendental”:
Qualquer que seja o modo como um conhecimento possa se relacionar com os objetos,
aquele no qual a relação é imediata e serve de meio a todo pensamento se chama intuição
(Anschauung). Mas esta intuição só tem lugar na medida em que o objeto é dado a nós, o
qual só é possível, ao menos para nós homens, quando o espírito foi afetado por ele de certo
modo. Os objetos nos são dados mediante a sensibilidade, e ela unicamente é a que oferece a
nós as intuições; mas só o entendimento os concebe e forma os conceitos. O objeto
indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenômeno.
99
A discussão sobre os
princípios da estética seria muito mais fácil se tivéssemos sempre presente que a
denominação de estética não abarca um terreno científico unitário, mas sim é uma
designação coletiva para uma série de ciências absolutamente heterogêneas, as
quais porém coincidem todas em se chamar ‘estética’ pela sua relação com o objeto
estético. Mas como cada uma destas ciências que se chamam estética têm relação
de distinta ordem com o método fenomenológico, é necessário começar
orientando-nos brevemente quanto a estas diversas disciplinas da estética, para
podermos apreciar como o método fenomenológico consegue operar em cada uma
99
Kant, Imanuel. Critica de la razón pura. Buenos Aires, Losada, 1960, p. 169.
105
delas. A denominação comum de estética compreende três espécies de disciplinas:
1 - a estética como ciência particular autônoma; 2 - a estética como disciplina filosófica e 3 -
a estética como terreno de aplicação de outras ciências. Destas três modalidades da
ciência estética, a disciplina filosófica eclipsou durante muito tempo as outras
duas. Mas nós falaremos da estética como ciência autônoma, já que é justamente
ela que constitui o campo principal da aplicação do método fenomenológico. Toda
ciência particular se determina na sua unidade por um aspecto que deslinda o seu
próprio terreno diante dos das outras ciências. Assim, para as ciências naturais, o
que determina a sua unidade é o momento da interdependência com o que diz
respeito à natureza exterior e, para as ciências históricas, o que é do acontecer
histórico. Não há dúvida sobre qual é para a estética, como ciência autônoma, o
momento que deslinda o seu terreno diante dos demais: é o momento do valor
estético (incluindo o valor artístico). “Tudo aquilo que pode levar o carimbo do valor
estético pertence ao terreno da estética como ciência autônoma.
100
Porém o valor e des-
valor estético, não pode ser atribuído aos objetos reais, senão somente na medida
em que se dão como fenômenos. “Posto que o valor ou des-valor estético não reside,
pois, na condição real dum objeto, senão na sua condição fenomênica, já fica esboçada com
isso a tarefa principal da ciência estética autônoma.
101
100
Geiger, Moritz. Estética. Los problemas de la estética. La estética fenomenológica. Buenos
Aires, Argos, 1946 p. 142.
101
Idem, p. 143.
106
Muitos movimentos dentro da estética colocam no centro das suas considerações a
idéia de que o estético é aparência e ilusão. Entretanto, desde o momento em que
se introduz na estética a idéia de aparência, não se analisam simplesmente os
fenômenos estéticos, mas se introduzem também pontos de vista relacionados com
a realidade. No seu aspecto fenomênico, o objeto estético não é aparência ilusória.
No caso da ilusão atribui-se ao fenômeno uma realidade que não possui. Ao
contrário, no caso do estético, a paisagem num quadro não se concebe como
realidade, como coisa real que mais tarde resulta ser irreal, mas sim como
paisagem representada, como paisagem que se nos dá como representada. Assim
que se introduz na estética a idéia de ilusão (a idéia de oposição entre uma
realidade dada e uma efetiva realidade), abandona- se o terreno do fenomênico. O
dado em uma obra de arte não são as sensações, as associações, nem as funções; o
dado são mais bem objetos, paisagens, melodias, homens, representações. E se se
pergunta, por exemplo, pelos fundamentos do valor da representação duma
paisagem, estes poderão se encontrar na tonalidade da paisagem, no colorido, na
distribuição das massas, elementos todos que podem se encontrar, pois,
diretamente nos fenômenos. Basta voltarmo-nos em direção aos elementos que
compõem a obra de arte como fenômeno para podermos, portanto, achar solução
para os problemas da estética como ciência autônoma. Ao partir assim do objeto, a
estética se encontra com as ciências da arte, interessando-se pelas estruturas gerais
107
e pelas normas gerais dos valores estéticos. O método fenomenológico não extrai
as suas normas ou leis a partir dum princípio supremo, nem pela acumulação de
casos individuais, mas sim apreendendo no caso individual a essência geral, a lei
geral. Assim, uma primeira característica do método fenomenológico é o se deter
nos fenômenos, o importar-se pela investigação dos fenômenos. Uma segunda
característica consistia em que ele não aspira a apreender estes fenômenos na sua
condição acidental e individual, mas sim nos seus momentos essenciais. A terceira:
que esta essência, além de ser apreendida pela indução, pela dedução, também o
deve ser pela intuição. É necessário colocar o objeto em condições adequadas para
poder intuir nele uma essência geral, e é necessário também estabelecer
previamente o sujeito investigador em condições adequadas para que exercite a
intuição adequada. A questão é aprender a entre-ver realmente os elementos que
importam; não se deixar desviar por pontos de vista secundários nem por
preconceitos; ater-se efetivamente aos fenômenos e somente aos fenômenos. No
que diz respeito à estética, dizia Hegel: “(...) O seu objeto é o amplo reino do belo; de
modo mais preciso, seu âmbito é a arte, na verdade, a bela arte. O nome estética decerto não
é propriamente de todo adequado para este objeto pois estética designa mais precisamente a
ciência do sentido, da sensação (...) A autêntica expressão para nossa ciência é, porém,
filosofia da arte e, mais precisamente ‘filosofia da bela arte’.
102
A estética como ciência
102
Hegel, G.W.F. Cursos de Estética. São Paulo, EDUSP, 2001 p. 27.
108
particular não pode ir mais longe; deixa a cargo da estética como disciplina
filosófica o problema do significado e origem desses princípios. Esta estética como
disciplina filosófica guarda com a estética como ciência particular
aproximadamente a mesma relação que a filosofia da natureza com a ciência
natural. A ciência natural pressupõe a existência da natureza externa e investiga as
suas leis. Assim, a estética como ciência particular pressupõe a realidade do valor
estético e trata de investigar os seus princípios. A filosofia da natureza, por sua
parte, investiga a existência dessa natureza externa, concebe-a de forma realista ou
idealista, como aparência fenomênica de uma coisa em si ou como construção
baseada em percepções, e nas leis dessa natureza vê síntese de fatos ou ainda de
configurações de regularidades externas: concepções todas que não interessam em
absoluto à ciência natural. De modo parecido, a estética filosófica encara os
fundamentos da estética como ciência particular, o valor estético e os princípios da
valoração estética. O valor estético é para ela matéria de reflexão, ela não o
pressupõe. A fenomenologia é uma atitude mental diante das coisas, diante do
ente, qualquer que seja o registro a que pertença, assumida, e não casualmente, por
todos os espíritos que fecundaram desde meio século atrás até nossos dias os
domínios da ciência e da filosofia.
No nosso domínio, na arte do cinema, é Edgar Morin que, sob o método
109
fenomenológico de pesquisa, estudou os distintos aspectos do cinema, abordando
fenômenos mais amplos da cultura de massas. Morin parte justamente duma
análise da fotografia, sublinhando que ela tem “alma”; que possui qualidades que
nem estão nos objetos representados, nem se devem ao dispositivo técnico; essas
qualidades pertencem à subjetividade do olhar. Junto à objetividade da
reprodução mecânica da realidade, na fotografia existe uma subjetividade que
obedece à experiência psicológica, mas também à dimensão antropológica e
lingüística. A imaterialidade e o movimento da imagem cinematográfica
aumentam essa intervenção do sujeito. Por outra parte, já em Meliès são apreciadas
duas dimensões importantes do cinema: a vertente fabuladora e fantástica dos
truques que põem em cena aparições, transformações e desaparições e que
promovem o imaginário e, em segundo lugar, a existência de uma linguagem, de
uma capacidade para modelar o tempo e o espaço de forma muito afim ao que
realiza a imaginação humana. Morin estuda os procedimentos de implicação do
espectador nas suas diversas perspectivas, desde a técnica cinematográfica à
psicologia da recepção e em particular os mecanismos de projeção e identificação.
Subjetividade e objetividade não só se superpõem, senão que renascem intensamente uma
da outra, num continuo círculo de subjetividade objetivante e de objetividade subjetivante.
O irreal impregna, atravessa e transporta o real, enquanto que este último modela,
110
determina, racionaliza e interioriza o primeiro.
103
4,4.- O jogo estético
A representação da natureza, numa realização cinematográfica, não tem um
conceito específico que ilustre o naturalismo da imagem. O Realismo, como disse
anteriormente, foi uma outra corrente. Ao contrário do expressionismo, que
veremos mais adiante, o naturalismo não tem uma lista de filmes caracterizados
por críticos ou teóricos como de ‘tendência naturalista’. Não existe uma ‘corrente
naturalista de narração’ no cinema, pois trata-se uma arte que é artifício,
impossibilitado de poder ser natural. Mas ele pode se parecer à natureza na sua
forma de representação. Assim, o estilo natural da imagem torna-se evidente
quando a luz se assemelha à vida, que dizer, quando o realizador cinematográfico
fotografa o filme respeitando fielmente as fontes de luz da natureza, sem que ela
pareça um agente narrativo individual. Respeitar as fontes da luz da natureza,
também já dissemos, é se assemelhar à vida; é fazer como se fosse a luz do sol, da lua,
das estrelas, dos reflexos, a que ilumina e fotografa o filme e seus personagens.
Algumas vezes é a própria luz natural dos astros que fotografa um filme. Nestor
Almendros é o artista que mais e melhor trabalha, dentro do cinema, com a luz
natural. A sua fotografia em “A lagoa azul”, por exemplo, é quase totalmente feita
103
Sánchez Noriega, José Luis. Historia del Cine. Teoría y géneros cinematográficos, fotografía y
televisión”. Madrid, Alianza, 2002, p. 85.
111
com a luz da “natureza pura”, com o sol, a lua. Quando a luz natural não é
suficiente para fotografar o filme, basta dar um reforço com algum projetor
artificial e, ainda assim, o estilo continua sendo naturalista, pois fazer luz natural é
também representar o que e o como faz a luz de natureza humana, com os seus
artifícios, a luz do fogo, das velas, da energia elétrica, a luz digital e até a
imaginação. “A imaginação será um movimento produzido pela sensação no ato. E como a
vista é o sentido por excelência, a palavra ‘imaginação’ (phantasía) deriva da palavra ‘luz’
(pháos) posto que não é possível ver sem luz.
104
É nesse sentido que o naturalismo apela à naturalidade da imagem, entendendo o
mais natural como aquilo que diz respeito à natureza. Uma vez que estamos
escrevendo sobre uma arte, é preciso haver algum paradigma que nos permita
teorizar sobre este estilo artístico de representação; para isso utilizaremos a
intuição e o juízo do gosto. “O juízo do gosto não é um juízo de conhecimento; portanto
não é lógico, mas sim estético.
105
Já a intuição, segundo Kant, só brota na medida em
que o objeto nos for dado, o qual somente é possível quando o espírito foi afetado
por ele de certo modo. “Chama-se de sensibilidade a capacidade (receptividade) de receber
as representações segundo a maneira como os objetos nos afetam.
106
Assim, entendemos
que não há conhecimentos sem intuições, intuições sem objetos e objetos sem
104
Aristóteles. Acerca del alma. Madrid, Gredos, 1994, 429ª/ 1-5.
105
Kant, Imanuel. Crítica del Juicio. Madrid, Victoriano Suarez, 1958, p. 160.
106
Idem, p. 168.
112
fenômenos. “O objeto indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenômeno”.
107
Finalmente, para que uma obra de arte seja considerada obra de arte, deve ser bela
e boa, no dizer de Aristóteles. Bom entendido como: o melhor e belo como: o que dá
prazer.
Consideraremos o estilo naturalista como uma forma de expressão visual do
cinema, onde é a luz que fala em imagens, viajando desde o projetor ou desde o
satélite em direção aos nossos sentidos e à nossa mente. O espectador é
introduzido numa nova atmosfera e, para que ele reconheça aquilo como
verossímil na tela, o estilo naturalista prefere representar a imagem da maneira
mais fiel à sua natureza. Nesta forma de fotografar e iluminar uma cena toma-se
como referência a luz natural, acomodando-se tudo a suas fontes e respeitando as
relações entre elas; a significação que a luz dá é intrínseca e contínua, a natureza
está subordinada à liberdade, à cultura e ao espírito que a absorve, sendo que a
natureza e o espírito não se opõem, mas se complementam. O estilo naturalista
fabrica convenções arbitrárias que mudam segundo as épocas. Num certo
momento o esquema considerado “naturalista” consistia na colocação, nos
interiores, com ou sem referência ao exterior, de luzes que vinham do alto e que
marcavam fortemente as facções dos atores. Essa arbitrária colocação da luz era
107
Ibidem.
113
considerada na época de Di Venanzo como a marca do estilo naturalista, esse estilo
que se considera respeitoso da luz natural. Atualmente já não é mais assim; o estilo
naturalista considera como natural aquela luz que entra pela janela, pela porta, a
luz do céu, do sol, a luz que sai da s lâmpadas, dos postes de luz, dos cartazes
luminosos, respeitando a direção e a intensidade do que se conhece como natural
tanto para o artista quanto para o espectador. Por exemplo, se é dia e a janela se
encontra do lado direito da personagem, é desse lado que deverá entrar a luz do
sol. Mas se é noite, a luz não será do sol, mas sim da lâmpada que está sobre a
mesa do lado esquerdo da personagem. A luz não tem que vir sempre de um lado
fixo para ser natural, dependerá sempre do lugar onde se encontre a principal
fonte luminosa. Depois disso é só reforçar aquela luz principal a gosto.
Muitos diretores de fotografia têm como referente principal o estilo naturalista de
iluminação, já que este é o mais utilizado dentro da narrativa cinematográfica de
representação. Os diretores nem sempre conhecem plenamente a importância do
trabalho do diretor de fotografia e para eles dá no mesmo se estão trabalhando
com este ou aquele. São os bons diretores, os magistrais, que sabem realmente o
que significa ter um bom diretor de fotografia ao lado. Orson Welles, por exemplo,
assina o seu “Cidadão Kane” ao lado de Gregg Toland, o seu diretor de fotografia.
Esse é o último crédito do filme, os dois juntos. Um filme pode ser ou deixar de ser,
114
somente por quem fotografa o filme, sem tirar, obviamente, o crédito do
realizador. Em suma, é uma boa parceria entre ambos que faz com que um filme
dê certo ou não. Mas voltando a luz, dissemos que a maioria de fotógrafos
contemporâneos tem como referente principal o estilo naturalista de iluminação e
misturam, dependendo do tipo de cena e da sua dramaturgia, esta luz natural com
escapes fugazes de expressões artificiais. Isso, entretanto, irá depender da
qualidade do fotógrafo.
115
III,5.- O Artificial
5,1.- O Artifício
A idéia de vanguarda se propõe como profunda crítica e, ao mesmo tempo, como
uma utopia de mudança num determinado momento do moderno, marcado
basicamente pelo episódio da Primeira Grande Guerra. Ao se concluir esta guerra,
com as seqüelas que deixa na Europa, emergem claramente para a intelectualidade
desse momento, para o artista, o pensador, para aqueles que conformam o mundo
das idéias, duas visões: por um lado a visão da catástrofe cultural e espiritual e,
por outro, a morte ou pelo menos a agonia da narração da razão burguesa
ilustrada, que havia prometido a vida plena na autonomia do indivíduo,
assumindo a sua definitiva liberdade. O fim da Primeira Grande Guerra coincide
com a primeira grande revolução social na Rússia, a chegada ao poder da
vanguarda leninista. Em 1918 Lenin e Trosky estão no poder da URSS. Com o
triunfo deste novo sujeito da revolução, o bolchevique, paradigma da figura do
vanguardista, aparece um amplo campo utópico que cala muito no fundo do
espírito das vanguardas nas esferas da arte e da política. O bolchevique, um “novo
homem” vitorioso, o artífice da revolução, o homem adiantado de um mundo
renovado, o ocupante de um novo Estado prometéico, incidirá não só na cultura
das esquerdas, mas também nos âmbito das direitas, como protótipo do
imprescindível ator social que exige a época. Nas vanguardas artísticas o que
116
surge como elemento determinante e sustentador é um rechaço à tradição estética
que se herdava. A tradição em geral como mundo de valores, de condutas, de
costumes, de ideais, de metas, que o artista propõe superar e eliminar para
começar algo novo. Neste sentido as vanguardas, como afirma o teórico marxista
da cultura Perry Anderson, se coagulam como “ismos” que procuram adequar o
mundo de valores, condutas, visões da vida, práticas do mundo vital, ao grau da
própria modernização que vem sofrendo a história no seu conjunto. A vanguarda
estética propõe, assim, que não existe um gosto artístico universal, para sempre,
mas sim que cada época e cada tempo tem os seus gostos, os seus modos, as suas
formas de se expressar. “A cada tempo a sua arte, à arte a sua liberdade.
108
Este tempo
da arte que quer expressar a sua época encontra-se num mundo já modernamente
reconstituído, “o mundo da grande metrópole, o das grandes massas, o das multidões, o da
máquina, o das mutações no campo da comunicação, o da aceleração técnica, o da
velocidade, o das novas formas produtivas seriadas e os novos conhecimentos científicos.”
109
A vanguarda se sente sacudida, aturdida por este mundo e corre em procura da
expressão e da constituição profunda e confusa desta nova realidade emergida do
conjunto dos acontecimentos e referências que se precipitaram sobre a história da
humanidade. Para os vanguardistas, além da realidade “comum”, legitimada que
108
Casullo, Nicolás. Itinerarios de la Modernidad. Corrientes del pensamiento y tradiciones
intelectuales desde la Ilustración hasta la posmodernidad. Buenos Aires, Ed. Universidad de
Buenos Aires, 1996, p. 97.
109
Idem, p. 98.
117
o homem vive, há outras realidades, inéditas, sem antecedentes, críticas, que o
artista sente-se chamado a tentar descobrir e manifestar. “Fragmentação, fugacidade,
precariedade, irisação do real, exposição da sensibilidade, opacidade do evidente,
transparência do secreto, desagregação da experiência (...).”
110
Nas vanguardas vai se dar
de distintas maneiras esta procura por outra realidade, redefinindo autenticamente
a subjetividade e a sensibilidade, como se por detrás das aparências do real se
percebesse uma realidade essencial, esquecida, extraviada, necessária de ser
descoberta e expressada através da arte. É com este realismo que se confronta a
vanguarda. Não há uma beleza como modo estético de representação, porque
precisamente o que põe a arte infinitamente em discussão é a representação do
mundo. A arte, mais do que discutir o mundo, discute com as linguagens que o
instituem, com os discursos que asseguram o real. O que a arte discute é a
linguagem que nos leva a enunciar ao mundo, a linguagem com que construímos o
real. A vanguarda artística também é oposição, crítica, é mal-estar com o
entrançado da cultura, com os espaços estabelecidos e dados, é questionamento
desse lugar autônomo da arte. “A vanguarda, desde a reflexão política e teórica herda o
legado romântico: a arte não é espaço exclusivamente expressivo, receptivo, gosto,
sensibilidade, relativismo. É disposição a discutir o mundo e os seus discursos, é proposta
110
Idem.
118
intransferível da obra, é problemática de enunciação criadora, não de simples recepção.
111
Habermas vai julgar duramente esta pretensão, de ambicionar a superação das
esferas racionalizadoras, de não respeitar a segurança das autonomias e contribuir
dessa forma para um niilismo do mundo aparentemente sem retorno, pelo qual a
arte de vanguarda também seria responsável. Mas as vanguardas têm vontade de
mudar o mundo. É por isso que elas se enlaçam tão fraternalmente às idéias
revolucionárias que anunciam mudar a forma da vida e as suas instituições. Para
as vanguardas, a arte burguesa como espaço autônomo dedicado a propor o belo
neutraliza a miserabilidade do mundo. A vanguarda vai dizer “devolvamos a arte à
vida
112
. A alma da arte mimetiza-se com a alma humana, convivem juntas e o
mundo de pronto começa se a ordenar através de estéticas de massas publicitárias
e televisivas, legítima herança do sonho das vanguardas de tentar estetizar o
mundo. Uma mítica noção de vida, legado daquelas vanguardas que, se bem
denunciaram as patologias e os cânceres de uma cultura, também foram sempre
presas do entusiasmo pelo “novo”, pela inovação, pelas promessas instrumentais e
comunicativas, pelas lógicas impostas como progresso graças ao bloco indústria
tecnologiamercadoaudiência. A arte de vanguarda fascinou-se pela “vida”. E é
possível que os seus atuais herdeiros no campo da arte, também fascinados pela
atual vida informatizada, “massmediatizada”, “utopizada” em términos
111
Idem, p. 102.
112
Ibidem.
119
tecnológicos, estetizada, globalizada até em seus últimos rincões, celebrem hoje o
virtual. O que a vanguarda sugere é “ ‘vamos discutir como se apresenta o real’, ‘vamos
discutir quem tem a verdade na proposta da representação do real’, ‘vamos discutir o que é
o ilusório, o que é o aparente e o que é a verdade’
113
.
5,2.- O Expressionismo
Sobre uma base de protesto e crítica, e pretendendo ser o oposto ao positivismo,
nasce o expressionismo. Trata-se de um amplo movimento que dificilmente pode se
encerrar numa definição. O expressionismo é, sem dúvida, uma arte de oposição, o
seu anti-positivismo é, conseqüentemente, anti-naturalismo e anti-impressionismo,
embora tome vários elementos tanto do naturalismo como do impressionismo. O
conceito expressionista da realidade e a forma de pensamento que o fundamenta
têm mostrado que a superação dialética da experiência vital da irrealidade (que se
expressou na necessidade da intensificação da realidade) deu à fisionomia
espiritual do movimento seus rasgos inconfundíveis. Para entender este cenário é
melhor recorrer ao idealismo de Husserl e à teoria da redução fenomenológica,
publicada no primeiro tomo das Idéias, contemporânea deste movimento artístico-
filosófico. Husserl transforma a perda da realidade experimentada em renúncia
metódica para contemplar o ente no seu caráter absoluto. “O que se apresenta sob o
nome de escola de redução ou epoche (época), como uma teoria puramente filosófica, como
113
Idem, p. 106.
120
operação especial do método fenomenológico de tipo altamente artificial (artístico), é ao
mesmo tempo um trecho de filosofia vivida que deve a sua força de convicção a uma forma
de pensamento.
114
O distanciamento da realidade só pode valer como meio
supremo para quem, ao pensar em contraposições, possui uma evidência que
ultrapassa a racionalidade discursiva e em especial a dedutiva. A forma de
pensamento da realização des-realizadora deve apoiar a contemplação da essência
absolutamente certa no que diz respeito ao conhecimento da realidade. A
fenomenologia de Husserl ameaçava crescentemente confluir com a corrente de
intuitivismo de Bérgson. Assim, é totalmente compreensível que a redução
fenomenológica substituísse paulatinamente a contemplação da essência, pois
aquela lhe era própria desde o começo do entusiasmo pela realidade
expressionista. Entre os momentos que fazem com que a redução se converta numa
forma de pensamento que explicita o conceito expressionista da realidade,
mencionaremos três. O primeiro ponto se refere à “exclusão da realidade”. A
experiência super-realista das coisas às quais tende o expressionismo repousa num
simples artifício: aquele que aproveita o isolamento do dado, a sua separação dos
respectivos contextos para obter assim uma transformação, uma intensificação do
aspeto habitual das coisas. Com o isolamento, as coisas adquirem uma concisão da
qual carecem no seu aspecto habitual, no contexto do mundo vital. As coisas em si
114
Fellman, Ferdinand. Fenomenología y Expresionismo. Barcelona, Alfa, 1984, p. 50.
121
se apresentam ao olhar de maneira que aparecem com conteúdo maior. Este
processo estético soluciona a dificuldade de se separar da realidade graças à
irrealização, que por sua vez acontece em virtude de não existir uma diferença
entre ficção e realidade com relação à “idéia” devinda visível das coisas (os objetos
imanentes também estão dados sempre apenas em matizes). Ao mesmo tempo em
que Husserl elaborava a sua teoria da redução, surgiu a sua réplica estética sob o
nome de “abstração”. O grande sucesso de Abstração e Empatia de Wilhelm
Worringer, de 1908, documenta esta figura de pensamento. Worringer encontra-se
entre os expositores da visão idealista do mundo do expressionismo. Ele eleva a
“abstração” a princípio da arte verdadeira; a força da abstração determina o querer
artístico. Worringer descreve o procedimento da abstração de tal maneira que salta
à vista a sua igualdade estrutural com o método da redução de Husserl. O estético
da configuração artística encontra-se em “tirar a coisa singular do mundo externo da
sua arbitrariedade e aparente casualidade, eternizá-la mediante a aproximação a formas
abstratas e desse modo encontrar um centro de gravidade no fluxo dos fenômenos
115
. O
seu mais importante objetivo era o de arrancar o objeto do mundo externo, do
contexto da natureza, da infinita mudança de ser. Purificá-lo de tudo o que é nele
dependente da vida, quer dizer, arbitrariedade, convertê-lo em necessário e
imutável, deixá-lo mais perto do sublime. O segundo ponto que faz da redução
115
Idem, p. 55.
122
uma forma de pensamento do expressionismo é o seu “caráter não discursivo
(linearmente)”. Com este caráter, Husserl vê solucionada a dificuldade que, após a
“exclusão” da realidade, volte-se a ela. A linguagem toma precisamente a posição
da unidade de redução e produção. Husserl defende que com a redução
desaparece a tensão entre representação do mundo e o próprio mundo, a diferença
entre representação e realidade. Nas Idéias, a demonstração desta tese é
apresentada primordialmente através da linguagem. Desta perspectiva parece
proveitoso analisar a linguagem das Idéias fazendo-se uma comparação com a
poética expressionista, tal como foi esboçada por Casimir Edschmid em O
expressionismo na poesia (1914). Edschmid faz da destruição da estrutura da
linguagem e da forma o núcleo da poética expressionista. A meta destas operações
com a linguagem é a de dar expressão à imediação da experiência interna. Como
expressão do não-comunicável, a linguagem mesma se converterá em objeto da
exposição. Esta deslocação, característica do expressionismo, dos conteúdos
enunciados na forma do próprio enunciado, encontra a sua cristalização na prosa
das Idéias. A comunhão do estilo das Idéias com o expressionismo refere-se não
somente à forma específica da expressão, mas estende-se também à concepção da
função da linguagem. Esta tem para o filósofo uma função semelhante à que tem o
poeta expressionista. Husserl rejeita o método das definições prévias elaborado
pelo positivismo e pelo racionalismo tradicional. Os conceitos devem manter-se
123
fluidos, “estar sem parar, preparados para diferenciar-se de acordo com o progresso da
análise da consciência
116
. Desta exigência especificamente expressionista de
imediatismo resulta a preferência do fenomenólogo pela expressão metafórica, que
é recomendada como o acesso privilegiado aos objetos: Toda expressão é boa e
especialmente toda expressão plástica escolhida adequadamente que possa dirigir o nosso
olhar em direção a um acontecimento fenomenológico claramente perceptível. A claridade
não exclui um certo cortejar à indeterminação.
117
A realização pela linguagem da
redução de Husserl resulta incompreensível sem o fundamento do expressionismo.
Por isso é conseqüente que a estética que Walter Meckauer (1920) desenvolve sob o
título de “arte essencial” funde-se na teoria da redução de Husserl: “Também o
artista põe entre parênteses a tese da existência quando dirige o seu olhar ao objeto em
questão (…) este ponto de vista do artista foi precisamente o sentido daquelas correntes
artísticas modernas que se designavam como expressionismo.”
118
A partir desta afinidade
com a fenomenologia, Meckauer fixa como meta do expressionismo a exclusão do
reconhecido como real e o avanço direto até o núcleo próprio do real. Mas a
essencialidade reivindicada aqui para a arte não quer ser entendida como
distanciamento da realidade, muito pelo contrário: “também a arte mais recente é
naturalista, posto que tem passado pelo naturalismo, mas já não é um naturalismo do
116
Idem, p. 60.
117
Husserl, Edmund. “Die Frage nach der Ursprung der Geometrie als intentional-historisches
Problem”. Em: Idem. Husserliana. Haia, Ed. La Haya, 1976, VI, p. 65-386.
118
Citado em Rombach, H. “Phänomenologie heute”. Em: Phänomenologische Forschungen.
Munique, E.W. Orth, 1975, I, p. 11.
124
singular, e sim um naturalismo da essência, se se permite essa paradoxal expressão.
119
O
terceiro e último ponto que mostra a teoria da redução de Husserl como figura
expressionista do pensamento se refere à precária situação do sujeito diante o
mundo. Esta se expressa quando Husserl concede ao fantasiar livre, na metódica
fenomenológica, uma posição de preferência diante das percepções. Husserl elogia
como “liberdade incomparável” a possibilidade de reconfiguração arbitrária de
figuras fingidas, como uma liberdade que inaugura pela primeira vez o acesso às
vastidões das possibilidades da essência, com os seus horizontes infinitos de
conhecimentos de essências. Isto poderia parecer indeterminação do ponto de vista
estético. Mas a liberdade que pretende Husserl, ou seja, a de utilizar representações
de coisas fantásticas como explicação da essência da “coisa”, implica um alto grau
de responsabilidade, da qual o fenomenólogo sempre teve consciência. Justamente
no afastamento do mundo da redução fenomenológica é que Husserl vê uma
decisão que converte o filosofar teórico na forma suprema da práxis. Este teor já
determina o artigo de Husserl aparecido na revista Logos em 1911, “A filosofia
como ciência rigorosa”, no qual se define o filosofar como tomar posição “sob um
dever ser”. Aqui não se apresenta uma contaminação simplesmente exterior entre
teoria e práxis, mas sim que o ímpeto é imanente à atitude fenomenológica em
virtude da redução. A atitude fenomenológica pura é, para ele, a realização ética
119
Idem, p. 30.
125
além do fazer e ou ter. Os contemporâneos de Husserl perceberam o impulso ético
da fenomenologia, que na sua fase expressionista chega até o político. Isto cabe
especialmente ao inventor do mito do “último homem”, Max Picard. Numa
conferência com o título “Expressionismo”, que Picard publicou em 1919, descreve
o expressionismo como a forma de se enfrentar com o mundo que vai além da
literatura e da arte. Recorrendo a categorias de Wilhem Worringer, Picard
contrasta o expressionismo com o impressionismo. Picard vê o caráter funesto do
impressionismo na debilitação do objeto mediante a “relacionabilidade”, que
equivale a uma perda niilista do mundo. No expressionismo, ao contrário, se
fortalece a relação entre o homem e a coisa. A “coisa” serve de categoria moral na
medida em que nela se concretiza a “responsabilidade” do homem. Assim, a
coisificação expressionista se converte na realização da auto-afirmação humana:
Desde o caos no qual as coisas mal tem nome, o novo homem expressionista chama a coisa
para si mesmo. O expressionismo é a tendência à orientação no caos, fixação do caos.
120
Picard deduz algumas características do fazer-pensar expressionista: a tipificação,
a abstração e a polaridade. Conseqüências destas formas de pensamento são o anti-
psicologismo e o giro em direção à psicanálise de Sigmund Freud.
120
Fellman, Ferdinand. Fenomenología y Expresionismo. Barcelona, Alfa, 1984, p. 63.
126
5,3.- O expressionismo na imagem
Se para os artistas naturalistas e impressionistas a realidade seguia sendo algo que
tinha que ser olhado do exterior, para o expressionista, ao contrário, era algo em
que havia que se meter, algo que precisava ser vivido a partir do interior. “Pinto o
que vejo”, costumava dizer Courbet; “é o olho que faz tudo”, repetia Rendir; “a pintura
é uma ótica”, afirmava com convicção Cézanne. Seurat não se tinha dado por
satisfeito com este “empirismo” e queria dar a este visibilismo, ainda espontâneo
demais, um fundamento cujas bases acreditou encontrar nos textos de Chevreul
sobre os contrastes simultâneos, e nas obras de Helmholtz. Em suma, Seurat tentou
colocar a ótica cientifica a serviço da visão pictórica. Na França, foram os fauves que
adotaram de Gauguin o conceito pelo qual cada obra é uma transposição, uma
caricatura, o equivalente apaixonado de uma sensação recebida. Para os fauves,
Gauguin libera a arte de todas as travas que a idéia de copiar traz ao instinto do
artista. O quadro não devia ser decoração, composição, ordem, mas sim somente
expressão. A pintura para Gauguin, Van Gogh e Vlaminck se converte num modo
de desencadear sobre a tela a violência das suas próprias emoções. A natureza se
vê avassalada pelo ardor do artista, é arrancada da sua imobilidade e restituída ao
estado de incandescência. Fauvismo significa, sobretudo, a liberação completa do
temperamento e do instinto. O autêntico fauve deveria ser somente um animal
pictórico. Por isto, nos encontramos diante de uma poética que poderia se chamar
127
de “naturalismo subjetivo”. Porém o fenômeno do expressionismo manifestou-se,
sobretudo, na Alemanha. O movimento expressionista constituiu uma das
primeiras manifestações radicais da arte do século XX e haveria que procurar pelas
suas raízes também no Romantismo alemão. Trata-se de um movimento que
abarcou a totalidade das formas artísticas. As suas origens encontram-se
vinculadas às causas que provocaram a crise que desembocou na explosão da
Primeira Grande Guerra. O alto grau de nacionalismo alcançado na Alemanha,
assim como o triunfo dos ideais da burguesia, que exaltavam a mediocridade e o
vazio, levaram uma geração de artistas jovens a se enfrentar com as condições
impostas pelo estado guilhermino. Desde o começo é possível identificar alguns
elementos característicos do expressionismo; o primeiro elemento é o
desencadeamento das potências libertadoras da natureza, da liberdade e do
instinto incapaz de sofrer as inibições de uma falsa moral contra a enfadonha
vulgaridade do filisteísmo burguês-guilhermino. Isso é o que no teatro fez um
escritor como Frank Wedekind, ao opor aos convencionalismos, às normas, à
respeitabilidade e à mentira da vida burguesa, a sinceridade das paixões e a
violência dos impulsos primitivos. Um segundo elemento é o que insiste na
exigência de se subtrair à vulgaridade e à dureza da sociedade civil, refugiando-se
no “reino inalienável do espírito”, onde nenhuma força externa pode penetrar e
levar desordem. Um terceiro elemento é, ao contrário, a oposição ativa no sentido
128
crític o e polêmico, com objetivos específicos e inclusive políticos. O sentimento
revolucionário que inspirava aos artistas expressionistas alimentou a atitude de
rejeição total ao passado imediato e, mais concretamente, ao mundo herdado dos
pais. Assim, estes jovens sentiram maior simpatia pelos períodos artísticos nos
quais a arte tinha se mostrado dum modo ingênuo, simples e elementar e pelos
momentos históricos atravessados pelos conflitos desgarradores, cujas marcas
fizeram-se sentir nas expressões torturada s do barroco e nas manifestações
místicas e sobrenaturais do gótico. O artista expressionista transfigura, assim, todo
o espaço. Ele não olha: vê, não conta: vive, não reproduz: recria, não encontra:
procura. A concatenação dos fatos é substituída pela sua transfiguração. Os fatos
adquirem importância só no momento em que a mão do artista, que se estende
através deles, ao se fechar, aferra o que está por trás deles. Tratava-se de fazer
pressão sobre a realidade para que dela manasse o seu latente segredo. Neste fazer
pressão está a origem típica da deformação expressionista, que remonta
particularmente a Van Gogh e a Munch. Edvard Munch, a propósito da sua obra
“O grito”, expressou o que poderia ser o sentimento generalizado dos artistas
expressionistas: “Uma noite andei por um caminho. Embaixo de mim estavam a cidade e o
fiorde. Fique olhando o fiorde, o sol estava se ocultando. As nuvens tornaram-se vermelhas,
como o sangue. Senti como um grito através da natureza. Pareceu-me escutar um grito.
Pintei esse quadro, pintei as nuvens como sangue verdadeiro. As cores gritavam.” É
129
evidente que seu fruto está intimamente ligado à maior força da verdade não
mistificada que o artista possa tirar ex natura rerum. Certamente nesse ato criativo o
artista expressionista sente-se envolto na própria coisa, sente-se parte dela.
Portanto, o elemento subjetivista está acentuado, mas, ao mesmo tempo, em
muitos casos tal subjetivismo também está a serviço da acentuação da verdade
contida na situação do real. No plano ideológico e cultural haveria que destacar a
incidência, no expressionismo, da filosofia fenomenológica de Edmund Husserl
(como já desenvolvemos anteriormente), das teorias psicanalíticas de Sigmund
Freud, da crítica ao racionalismo de Henri Bérgson e, sobretudo, da filosofia da
negação de Friedrich Nietzsche. O seu brilhante mas confuso niilismo neo-
romântico, do qual emergem também ásperos ataques contra os “valores” da
sociedade burguesa, sugestiona os melhores escritores, poetas e artistas da época,
de Thomas Mann até Groz. Nesse então notava -se em Nietzsche o inimigo dos
historiadores prussiano-alemães, o pensador que tinha feito burla de Birsmarck e
defendido os judeus do anti-semitismo do professor berlinense Eugen Dühring, e
ainda o escritor que arremetia contra a estúpida presunção dos arrivistas da época
guilhermina. Os paradoxos de “Zaratustra” tinham força persuasiva, sobretudo
pela violência com que viravam do avesso os conceitos e os lugares-comuns da
moral corrente. Como já dizemos, os grandes antecedentes próximos ao
expressionismo são Van Gogh e Munch. Comparado o estilo destes artistas, e em
130
forma de resumo, é possível dizer que o expressionismo seria um estilo artístico-
poético do século XX, oposto ao impressionismo e ao naturalismo precedentes,
caracterizados pela rejeição das formas agradáveis, pelo uso das distorções e das
cores discordantes, pela disposição desordenada e pela acentuação da expressão.
5,4.- Simbolismo e expressão da luz
A arte expressionista foi uma exasperação da expressão, encaminhada a obter
efeitos de excessiva e exaltada emotividade. O termo Expressionismus, um
neologismo na língua alemã, relaciona-se por sua vez com o sinônimo “Ausdruck”,
do verbo ausdrücken, que além de ‘expressar’, significa no seu sentido originário
‘espremer’, ‘retorcer’. Daí que o conceito de Expressionismus não só signifique
“expressão”, mas também “expressão retorcida e dramática”. Para críticos como
Herwarth Walden, Paul Fechter e Hermann Bahr o termo expressionista poderia
ser utilizado, num sentido extenso, para aludir a todo o “moderno”, às vanguardas
dos primeiros decênios do século XX (fauvismo, cubismo, abstração, futurismo
etc.). Já para W.Georges, o expressionismo não é só uma acepção do estilo, mas sim
uma constante da arte. Se manifesta na arte pré-histórica, nas artes arcaicas, na arte
antiga tardia, na arte medieval e no século XVII. Seja como for, o termo
expressionismo converteu-se no lema de toda a vanguarda européia oposta ao
impressionismo.
131
Em Dresden, Alemanha, forma-se no ano de 1905 o primeiro grupo alemão: “Die
Brücke” (A Ponte). Os fundadores foram quatro estudantes de arquitetura:
Kichner, Heckel, Schimdt-Rottluff e Bleyl, que aspiravam a se converter na ponte
de união entre “todos os elementos agitadores e revolucionários”. Parece que o nome
tinha surgido de umas linhas do Zaratrusta de F. Nietzsche: “Eu não vou por onde
vocês vão, depreciadores do corpo. Para mim vocês não são a ponte que conduz ao
superhomem.” Possivelmente o terreno comum de entendimento deste grupo era,
sobretudo, o impulso de destruição das velhas regras e da realização da
espontaneidade da inspiração, de igual forma que os fauves, cada um através do
seu próprio temperamento. O grupo pretendia uma proximidade instintiva e vital
à natureza, cujo resultado foi uma pintura profundamente emotiva e enfática. No
seu desejo de chegar à essência das coisas e ao ser puro, deixaram-se guiar pela
forte necessidade interior que brotava do seu entusiasmo espiritual. Kichner
escreveu uma vez: “A pintura é a arte que representa num plano um fenômeno sensível
(...) O pintor transforma em obra de arte a concepção da sua experiência. Com um contínuo
exercício, aprende a usar os seus próprios meios. Não há regras fixas para isto. As regras
para uma obra formam-se durante o trabalho e através da personalidade do criador, da
maneira da sua técnica e do fim que se propõe (...) A sublimação instintiva da forma no fato
sensível se traduz impulsivamente ao plano.
121
A influência de Munch e Van Gogh nos
121
De Micheli, Mario. Las vanguardias artísticas del siglo XX. Madrid, Alianza, 1992.
132
anos iniciais do “Brücke” deve ter sido muito forte; de fato, a violência expressiva
de Van Gogh exerceu uma enorme impressão nos jovens pintores expressionistas
que veriam na sua veemente pincelada e no simbolismo das suas cores a expressão
da sua atormentada vida interior. Também sentiram-se atraídos pela xilografia
alemã medieval tardia em madeira, pela arte de Dürer, Cranach, Grünewald e
Holbein, assim como pela teoria emocional das cores de Goethe; a propósito, a
importância dada à expressividade da cor fica refletida nas declarações que Heckel
fez nesta época: “(...) as coisas e os objetos não falam através da sua forma ou desenho, e
sim através da expressão da cor, quer dizer, a própria seleção das tensões da cor”.
122
A arte
tribal foi também uma forte influência nos artistas expressionistas, o valor estético
que tinham as esculturas e máscaras primitivas da África e Oceania causaram uma
grande impressão sobre eles, assim como nos fauvistas e em Picasso. Porém, no
“Brücke” a arte negra assumiu um caráter e uma conotação antropológico-cultural,
enquanto que em Paris os artistas encontram nela as suas conotações lingüísticas.
Os primeiros sentiram-se atraídos pelo ingênuo e o primitivo, assim como pelos
estágios originais da natureza e da humanidade. Os expressionistas tentaram
recuperar o homem moderno num nível mais profundo, no plano das
manifestações inconscientes, onde as pulsões e os instintos pudessem se liberar
sem as travas da ética burguesa. A arte adquiriria, assim, o significado dum
122
Gonzáles Rodríguez, Antonio Manuel. Las Claves del Arte Expresionista. Barcelona, Planeta,
1990, p. 18.
133
instrumento de liberação na medida em que permitisse a plena realização do eu.
Assim, pois, trata-se da destruição de todo cânone que pudesse bloquear a fluida
manifestação da inspiração imediata. É um dos pontos de partida da poética do
expressionismo: não poder sofrer uma lei nem uma disciplina, obedecendo, ao
contrário, às pressões emotivas do próprio ser. Até 1910, data na qual o grupo
decide mudar-se para Berlin, a obra e o estilo destes artistas experimentaram uma
considerável evolução. As suas constantes saídas aos campos de Dresden
estimularam o seu profundo interesse pela natureza e pelo corpo humano em
liberdade. Porém, e apesar da natureza oferecer um estímulo imediato, não
pretenderam nunca imitá-la, ao menos não no sentido platônico. Na etapa
berlinense o grupo adquiriu a sua mais característica fisionomia expressionista:
formas simplificadas e deformadas, discordância brutal das cores, expressão
simbólica e apaixonada das coisas e dos seres, assim como a sua tendência à
geometrização das formas, com os seus peculiares perfis agudos e incisivos e os
arbitrários jogos de perspectivas onde as figuras e os objetos são vistos desde cima
e em escorços caprichosos. Mas a grande urbe e os contatos com outros
movimentos internacionais acabaram com a unidade e a relativa uniformidade dos
primeiros anos. Em 1913, Kichner publicou a crônica do grupo, escrita por ele
mesmo, nela sintetizava a história do “Brücke” e proclamava-se como o líder. Os
outros membros sentiram-se defraudados e resolveram se dissolver. Porém, os
134
expressionistas prosseguiram as suas respectivas trajetórias de forma
independente. E enquanto “Die Brücke” desvanecia, resistia por outro lado o
grupo “Der blaue Reiter” (O Cavaleiro Azul), fundado em 1911 por Kandinsky e
Franz Marc. O nome do grupo veio do encontro natural entre o amor de
Kandinsky pela imagem de fábula dos cavaleiros, que continuamente tinha
pintado, e a inclinação estética que Marc tinha pela beleza dos cavalos; ambos,
aliás, amavam o azul: o nome do Cavaleiro Azul tinha nascido. Assim, ele se
constitui no segundo grupo da vanguarda na Alemanha. Apesar das notáveis
diferenças de linguagem, técnica e repertório em relação ao “Brücke”, “Der blaue
Reiter” é considerado também parte do movimento expressionista. Tinham
bastantes pontos em comum, mas eram na sua maioria pontos negativos: contra o
impressionismo, contra o positivismo, contra a sociedade do seu tempo.
Os cavaleiros azuis tendiam a uma purificação dos instintos, mas ao desencadeá-
los na tela, não procuravam um contato fisiológico como o primordial, e sim um
modo de captar a essência espiritual da realidade. Se “Die Brücke” era
contemporâneo dos fauves franceses, “Der blaue Reiter” também o foi do cubismo e
dos seus movimentos afins, com os quais manteve uma certa relação. O grupo
apresenta um estilo menos brutal e mais harmonioso que o do “Brücke”,
possuindo uma orientação marcadamente especulativa e não adotando atitudes
135
bárbaras, mas sim refinadas e quase aristocráticas. Inspiram-se em Goethe, que
afirma que a pintura carece daquilo que dá base à musica, ou seja, de uma teoria
fundamental, estabelecida e aceita pela maioria. Levar, pois, a pintura ao terreno
da música será o objetivo prioritário destes artistas. A vida do grupo será efêmera,
já que a guerra de 1914 acabaria por dissolvê-lo. Kandinsky em nome de todo o
grupo: “(...) o nosso propósito é mostrar, na variedade das formas representadas, que o
desejo interior do artista dá como resultado uma multiplicidade de formas.
123
Alguns dos
elementos que se encontram na maior parte da obra do “blaue Reiter” são: a
rejeição ao naturalismo tradicional de corte impressionista, a procura pela essência
secreta das coisas, o seu lado espiritual (Marc), a forma como expressão de forças
misteriosas (Macke) ou a melodia interior da forma (Kandinsky). A tendência à
integração das diversas artes, conferir valor plástico-espacial e escultórico à cor,
lograr a síntese dos movimentos pictóricos, musicais e coreográficos, uma espécie
de Bühnenkomposition (composição espetacular). Neste sentido, cabe destacar o
projeto total de Kandinsky intitulado “Der gelbe Klang” (o som amarelo), onde o
simbolismo sinaliza o enfrentamento entre o bem e o mal, entre o espírito e a
matéria, através da contraposição criança/homem, branco/preto e luzescuridão. A
procura por uma base comum para as diferentes artes se apoiava no fenômeno da
sinestesia, isto é, nos efeitos físicos e psíquicos equivalentes. Aliás, aceitou-se a
123
Idem, p. 31.
136
primazia da música, proclamada desde o Romantismo (Schoppenhauer, Wagner,
Nietzsche). Em 1908, Kandinsky instalou-se em Murnau, uma aldeia ao sul de
Munique. Ali ele começou a desenvolver uma pintura de caráter expressionista
que paulatinamente chegaria cada vez mais perto da abstração, com formas muito
simplificadas e cores intensas. De fato, o descobrimento de que as formas coloridas
apresentam propriedades expressivas próprias, além da sua desconexão dos
objetos, constituiu um acontecimento que afiançou-lhe a crença de que a tarefa
fundamental do artista consiste em oferecer a realidade da experiência interior
antes que a da experiência sensível. A arte deve, pois, expressar o espírito, a sua
realidade interior. Para ele, a abstração e a síntese de todos os gêneros artísticos
configuram a principal via de acesso a esta nova espiritualidade. A cor é o meio
mais poderoso para levar a cabo a mudança de rumo espiritual. A cor por si
mesma é um material de contraponto que encerra infinitas possibilidades e que
criaria, em união com o desenho, o grande contraponto pictórico, com o qual
também a pintura chegaria à composição e, como arte verdadeiramente pura,
ficaria ao serviço do divino. Através dos efeitos físicos e psíquicos que provoca no
espectador, o artista poderia influir de fato na alma humana: a cor assinala
Kandinsky é um meio para exercer uma influência direta sobre a alma. A cor é a
tecla. A alma é o piano com muitas cordas. O artista é a mão que, por esta ou
aquela tecla, faz vibrar adequadamente o princípio do contato com a alma
137
humana. Dita base deve ser designada como o princípio da necessidade interior.
As cores e as formas são pois, o “aspecto exterior” do “conteúdo interior”. Curiosa
e interessante é a descrição da sua teoria da cor, onde toma como ponto de partida
as teorias psicológicas e metafísicas de Goethe e Otto Runge. A cada cor, a cada
percepção de luz corresponde um tom espiritual, uma determinada vibração
interna. Kandinsky agrupou a extensa produção pictórica desta época sob três
denominações: Impressão: uma impressão direta da natureza exterior.
Improvisação: uma expressão em grande parte inconsciente, espontânea, de
caráter interno e de natureza não-material, isto é, espiritual. Composição: uma
expressão do sentimento interior, lentamente formada, realizada largamente e
quase com pedantismo. O ideário estético do “Der blaue Reiter” foi a mudança do
centro de gravidade na arte, na literatura e na música. A diversidade de formas,
consideradas sob o aspecto da construção e da composição. A necessidade de se
voltar com intensidade em direção à natureza interior e de renunciar, em
conseqüência, a todo embelezamento das formas exteriores da natureza. Tais são,
no seu conjunto, os signos do renascimento interior. Mostrar os caracteres e as
manifestações desta transformação sublinha a continuidade desta tendência em
relação a épocas passadas. Fazer aparecer os impulsos interiores em todas as
formas que provocam uma reação íntima no espectador. O expressionismo de F.
Marc participou das mesmas teorias espiritualistas e místicas de Kandinsky, ainda
138
que com um aspecto peculiar. Para ele, as suas pinturas pretendiam se converter
em símbolos da construção místico-interior do mundo. Concebeu a arte abstrata
como o intento de fazer falar o próprio mundo, em lugar da alma humana
comovida pelo mundo. As suas pinturas vêm a ser expressão do eterno devir.
5,5.- Aparência e Transparência.
Foi na mesma Alemanha, berço destes artistas, que o cinema expressionista
constituiu um modelo de cinema como meio artístico da vanguarda para toda a
produção posterior. Provavelmente mais do que em nenhum outro país, a
generalização do longa-metragem expressionista propicia um debate entre o
cinema popular e o artístico, o urbano e o provinciano, o nacional e o internacional.
Ainda que os filmes expressionistas não sejam tantos, não cabe dúvida que a
motivação artística e plástica do expressionismo fecunda todo o cinema alemão do
período. Mostra-se a nós, este cinema expressionista, eminentemente
representativo do estado de ânimo do povo alemão no dia seguinte à sua derrota
na Primeira Grande Guerra, lacerado pela mais trágica alternativa da tirania. Os
primeiros filmes não são mais do que sintomas do acordar dos instintos primitivos
mexidos pela situação da pré-guerra e pela espantosa experiência bélica. Daí o
desejo deliberado e consciente de substituir a realidade objetiva pela visão do
sujeito. A natureza, reconstruída de forma híbrida, não será mais que o reflexo
dessa crise de realidade que chegou após a guerra e onde o “eu” parece ocupar seu
139
único centro de gravidade. A extrema miséria física e espiritual, junto com os
efeitos depressivos do espírito militarista humilhado, constituiu o mais importante
caldo de cultivo dos filmes mais representativos do movimento expressionista. A
influência do expressionismo pictórico é notória na estilização dos cenários; os
gestos e o tratamento com a luz partem da aposta dos desenhadores da Decla
124
,
Hermann Warm, Walter Reimann e Walter Röhrig, que quiseram plasmar no
cinema esta pintura. O expressionismo era o estilo que procurava a expressão dos
sentimentos e as emoções acima da representação da realidade objetiva, para o que
se valia da deformação das coisas. O mundo interior que se quer refletir está
possuído geralmente pela angústia, um sentimento trágico ou as alucinações do
artista. O cinema expressionista alemão é devedor da novela gótica e dos contos de
terror da literatura romântica alemã. A teoria da deformação da realidade que a
poética do “Die Brücke” havia alcançado ganha, no cinema, uma força inusitada
graças à facilidade das técnicas cinematográficas para criar e evocar ambientes
ilusórios e provocar distorções óticas. Para o critico Bela Balázs: “O cinema torna
plausível a deformação expressionista. O estilo expressionista nunca poderá ser tão
persuasivo e eficaz como no cinema.
125
Como assinala Paul Leni, trata-se de “criar
umas decorações o estilizadas que marginem qualquer referência à realidade. O que a
câmera percebe não é a realidade externa, mas a dos acontecimentos internos, que resulta
124
Instituto de pesquisa cientista do cinema alemão.
125
Gonzáles Rodríguez, Antonio Manuel. Las Claves del Arte Expresionista. Barcelona, Planeta,
1990, p. 32.
140
mais profunda, efetiva e comovente que a que vemos todos os dias (...) Acredito que o
cinema é capaz de captar e reproduzir esta outra realidade”.
126
A estilização da
interpretação, dos cenários e da iluminação no aspecto formal, e um tom fantástico
com valor metafórico no tema serão as chaves do expressionismo cinematográfico,
uma estética que determina o cinema alemão da República de Weimar e que
chegaria a se fazer presente em boa parte do cinema noir americano dos anos trinta
e quarenta.
Através de personagens diabólicos, perversos e poderosos, e de cenas de terror de
casas misteriosas, de laboratórios diabólicos e de vias de perdição e delito, o
cinema expressionista pretendeu subverter os valores da sociedade burguesa,
denunciando, de forma violenta e exasperada, seus aspectos negativos. Mediante
linhas, formas e volumes distorcidos, queria traduzir simbolicamente a
mentalidade e o estado de ânimo dos personagens. Nietzsche tinha realizado
anteriormente uma radiografia da alma alemã, cujos termos parecem descrever o
espírito deste cinema: “A alma alemã é um labirinto de corredores que se entrecruzam,
onde se encontram cavernas, refúgios secretos e armadilhas; como cada coisa ama o seu
símbolo, o alemão ama naturalmente as nuvens e, sob um perfil geral, tudo o que é confuso,
126
Sanchez Noriega, Jose Luis. Historia del Cine. Teoría y géneros cinematográficos, fotografía y
televisión. Madrid, Alianza, 2002, p. 214.
141
o que está em formação, o que é crepuscular, sombrio e velado.”
127
Com o cinema
expressionista alemão, os recursos estéticos da vanguarda artística puseram-se a
serviço de um meio de difusão massiva, o que deu ao mesmo uma projeção social
que não tiveram as outras artes. Os elementos fantásticos e góticos, os pesadelos e
visões se interpretaram então como sintomas psicológicos das predisposições
coletivas que dariam lugar ao nazismo, segundo as célebres teses de Kracauer e
Eisner.
No ano de 1913 estréia o filme de P. Wegener e Stellan Rye, “Der Student von
Prag” (O Estudante de Praga), que exerceria uma grande influência posterior no
cinema expressionista e onde encontramos dois dos elementos principais da
estética expressionista: o desdobramento do “eu” e o ocultismo. Em 1919, Robert
Wiene realizou “Das Cabinet des Doctor Caligari” (O Gabinete do Doutor
Caligari), com cenários de Carl Mayer, Hans Warm e Walter Reimann, cujas
distorções criam um universo em sintonia com o desequilíbrio mental do
protagonista. As linhas quebradas dos cenários, junto com as luzes e sombras que
se opõem em violentas manchas, mostram uma contínua ruptura do espaço, onde
se inserta o personagem de César, que representa o símbolo da agressividade
inconsciente, com seus perfis agudos e triangulares. Do ponto de vista formal,
127
Gonzáles Rodríguez, Antonio Manuel. Las Claves del Arte Expresionista. Barcelona, Planeta,
1990, p. 62.
142
trata-se de uma espécie de pintura em movimento, de formas e perspectiva
destorcidas (linhas oblíquas, figuras de losangos e trapézios), vestuário
extravagante, mobiliário entre exótico e vanguardista (cadeiras com respaldos
exagerados), espaços simbólicos e teatrais, com personagens muito maquiados e
movimentos coreográficos ou espasmódicos. Os personagens formam parte do
cenário, ele cumpre uma função narrativa enquanto expressão visual dum estado
de ânimo. Mal há movimentos de câmara e a filmagem se faz no estúdio. Em
palavras de Jean Mitry: Aqui as decorações não embelezam, criam um universo
incoerente que sublinha o desequilíbrio mental do herói: as ruas deformadas, as casas
oblíquas, as luzes e sombras se opondo em violentas manchas brancas e pretas que
participam da linha quebrada. Se vê quais são os objetos do expressionismo: traduzir
simbolicamente, por meio das linhas, as formas e o volume, a mentalidade dos personagens,
o seu estado anímico, também a sua intencionalidade, de tal forma que o cenário apareça
como a tradução plástica do seu drama.
128
Trata-se sem dúvida do filme mais
característico do cinema expressionista alemão, que criou toda uma estética
peculiar; a narração cinematográfica de conflitos particulares e sociais tão intensos
é levada a cabo mediante quadros particulares, ações paralelas, flashbacks e
montagem complexa, que têm como resultado produções oblíquas, muito
interpretáveis, onde a causalidade e motivação dos personagens, a sua
128
Sanchez Noriega, Jose Luis. Historia del Cine. Teoría y géneros cinematográficos, fotografía y
televisión. Madrid, Alianza, 2002, p. 215.
143
complexidade psicológica e a sua introspecção emocional, a estrutura temporal ou
a lógica da ação não estão claras e em boa medida, vão ser imaginadas pelo
espectador. O sucesso sem precedentes deste filme permitiu o fim do bloqueio
imposto ao cinema alemão pelas forças aliadas ao término da guerra. O cinema
artístico expressionista faz uma reflexão sobre o dispositivo cinematográfico. A
câmera torna-se subjetiva enquanto mostra o seu poder criador da realidade e
fascina na sua capacidade de configurá-la. Em 1922 Friedrich Wilhem Murnau
filmou “Nosferatu”, inspirado no mito de Drácula escrito por Bram Stoker.
Murnau ostentou inumeráveis recursos para criar um ambiente de terror e
pesadelo. O seu cinema está possuído por dicotomias como a sombra diante da
luz, a natureza diante da vida urbana ou o amor diante do fracasso. Na sua técnica
destaca-se a minuciosidade com que dispõe todos os elementos a serviço da sua
idéia e a montagem ágil e a câmara móvel para a captação do ambiente.
Considerado um clássico do cinema de terror, a capacidade de “Nosferatu” é a de
horrorizar graças ao trabalho da câmara e da fotografia, não de artifícios nem
truculências, eis aí a genialidade do realizador. Finalmente, em 1924, Murnau
realiza uma produção que tem sido considerada como o ponto de transição entre a
estética expressionista e as novas correntes da chamada “Neue Sachlichkeit” (Nova
Objetividade), estilo obcecado pela apresentação crua e descarnada da realidade
social, o filme “Der lezte Mann” (O Último Homem). Com esta obra assistimos ao
144
desenvolvimento de uma tendência cinematográfica dentro do cinema
expressionista alemão denominada Kammerspiel (jogo da câmara), que consiste na
utilização móvel e dinâmica da câmera para criar grandes efeitos psicológicos. O
grande ciclo expressionista alemão seria fecundo em conseqüências. À
contemplação naturalista e de neutra realidade, se opõe um subjetivismo violento e radical
que distorce as imagens do mundo e transmite ao espectador a sua interpretação ética e
intelectual da realidade mediante um código de“signos” técnicos deformadores.
129
Duas
estéticas, a natural e a artificial, o naturalismo e o expressionismo, duas atitudes
criadoras antagônicas se enfrentam enquanto se complementam.
129
Gubern, Roman. Historia del Cine. Barcelona, Baber, 1989, p. 240.
145
Capítulo IV
A Análise da amostra.
A presente análise será realizada sob os critérios do método fenomenológico, que
dá preferência à estética transcendental (ciência de todos os princípios a priori),
sendo que a luz (assim como o tempo e o espaço) é um princípio que tem lugar a
priori no espírito humano como uma forma pura. A realização desta análise partiu
da intuição de que a luz, como objeto dado, provocou o nosso espírito em forma de
sensibilidade e a nossa faculdade representativa em forma de sensação. Para conceber
e formar conceitos, que é o fim desta pesquisa, devemos nos referir a estas duas
(sensibilidade e sensação) e assim a intuição torna-se empírica. O objeto de uma
intuição empírica chama-se fenômeno. A luz, como princípio a priori, é fenômeno
de uma forma particular, posto que é um real absoluto-relativo. Portanto, o objeto
da intuição é, ao mesmo tempo, determinado (physis, o que a luz nos mostra) e
indeterminado (logos, a luz que olhamos), gêneros de um mesmo ente: a luz (a
linguagem do transcendente).
Até agora, numa espécie de resumo, poderíamos definir que o objeto a analisar
nesta pesquisa é a luz, um fenômeno entendido como forma de linguagem, ou
146
melhor dizendo: como forma de comunicação. Na nossa reflexão temos
reconhecido na luz o que ela é: matéria e energia. Assim como o como ela é: natural
e/ou artificial. Como comunicólogos, a nossa preocupação está dirigida às formas
de representação humanas; por isso se fez necessário achar um meio de representação
humana que nos permitisse analisar a luz. A nossa ruptura epistemológica está na
hipótese de considerar a arte, entendida como poiésis, como o meio no qual a
comunicação se dá da melhor e mais bela maneira. Assim, a forma humana de
representação artística que escolhemos para analisar a luz é a arte do cinema.
Falamos também da imagem e da sua importância para a nossa pesquisa, a
imagem da arte do cinema como o objeto a ser observado fenomenologicamente,
posto que a imagem é o único objeto completamente feito de luz, elemento que
torna real esta arte. Uma imagem que como forma de representação é também uma
linguagem, pela imediata comunicação que gera ao ser olhada. A luz na imagem é
bios (relação constante, modo de ser) que se vê representado como atmosfera na
arte do cinema. Desta maneira deixamos claro o nosso ponto de vista; o olhar e o
sentido da visão que são o principal referente desta análise. Para utilizar termos
conhecidos, como pesquisadores nós somos o ponto médio entre o texto (a luz e a
fotografia) e o espectador, encontrando-nos numa posição de observadores
científicos. Dentro do texto que é a imagem, o contexto (lugar que ocupa o filme) é
147
sumamente importante, já que o texto sempre depende do contexto, enquanto o
primeiro dá forma ao segundo. E é através da imagem que o artista da luz se
comunica, com uma luz que foi feita para os olhos mais do que para os outros
sentidos. Assim então consideraremos a imagem do filme como obra de arte, posto
que é na obra de arte, como diz Heidegger, que “a arte é como é”.
A nossa obra de arte será então a imagem de um filme. Daí vem a pergunta sobre
nosso objeto de estudo: qual filme? A producão “Contos de Nova York”
130
, (“New
York Stories”), realizada nos EUA no ano de 1989. Sobre ela conta a pré-produção
que Woody Allen procurava financiamento para um média-metragem, mas não
encontrava. Então um produtor amigo recomendou-lhe se juntar com mais dois
diretores que tinham projetos de média-metragem e fazer com eles um filme só.
Assim nasceram três histórias; todas na cidade de Nova York. A primeira leva o
nome de “Live Lessons” (“Lições de Vida”), dirigida por Martin Scorcese e
fotografada por Néstor Almendros, a segunda é “Live without Zoe” (“A vida sem
Zoe”), realizada por Francis Ford Coppola e fotografada por Vittorio Storaro. A
terceira e última é “Oedipus Wrecks” (“Édipo Arrasado”) dirigida por Woody
Allen e fotografada pelo Sven Nykvist. Juntando as três histórias realiza-se este
filme, que foi um experimento na sua época, com características de gênero híbrido:
130
O filme é anexo da tese, recomendamos assisti-lo.
148
drama-comédia, o filme foi muito querido pela crítica e pelo publico cinéfilo.
Para entender o fenômeno é necessário “entender a sua essência”, diz Aristóteles. Se
o fenômeno é a luz na obra de arte, então a obra de arte é parte da essência do
fenômeno, mas de onde provém a obra de arte? Diz Heidegger: “o artista é a origem
da obra, e a obra... a origem do artista”. Quer dizer que para entender a essência do
fenômeno da luz na arte do cinema devemos procurar pelas suas origens: o artista
e a obra. Mas, numa obra de arte como um filme, onde há muitos artistas
trabalhando para um diretor, qual artista será a origem da nossa essência? Como o
fenômeno a se analisar nesta pesquisa é a luz, deverão ser os artistas da luz a
origem da nossa essência, aliás, da obra de arte.
A partir da afirmação de que o cinema é luz, entendemos que dela depende boa
parte dos sentimentos e sentidos plasmados em determinadas seqüências. Desde
1910 se utiliza luz artificial e desde poucos anos depois se assume na linguagem do
cinema que a iluminação tem um valor expressivo. O estilo de fotografia e
iluminação tem variado ao longo da história do cinema e em determinados gêneros
tem alcançado um notável desenvolvimento. Considerando que a melhor
fotografia é aquela capaz de criar uma atmosfera e comunicar através do
cromatismo e da luz, cada gênero, cada filme e, dentro dele, cada seqüência requer
149
um tratamento especial da luz e da câmera. Por exemplo, no drama se acentuam os
contrastes de luzes e sombras, enquanto que na comédia a iluminação geralmente
sublinha o colorido. Não poucas vezes os diretores têm se inspirado em obras de
arte pictóricas para re-criar com a luz e a câmera histórias de época ou personagens
do passado. Algumas vezes a fotografia parece muito irreal, com o fim de
sublinhar o barroco da ação, outras vezes se utiliza o branco e preto, sempre a luz
vai depender do que o realizador quer comunicar.
Existem importantes nomes na fotografia cinematográfica, por exemplo Greg
Toland (“Cidadão Kane”), G. R. Aldo (“Umberto D”), Gordon Willis (“O Poderoso
Chefão”), Sven Nykvist (“Pretty Baby”), Michael Chapman (“Taxi Driver”), Janus
Kaminski (“A Lista de Shindler”), entre muitos outros diretores de fotografia
contemporâneos. Cada um tem o seu estilo particular, cada um é mestre no que lhe
corresponde. Aliás, os diretores de fotografia se retro-alimentam deles mesmos,
um aprende do outro, por isso é que resulta audaz propor estilos de iluminação
dentro do cinema contemporâneo, embora seja claro que existem tantos estilos
como diretores de fotografia. Mas o estilo naturalista e o estilo expressionista são,
desde muito antes do cinema, estilos artísticos. Por isso ele (o cinema) não pode
fugir da sua gênese (estes estilos) e, se existem dois diretores de fotografia que
representam estas formas de arte de uma maneira boa e bela, por sua definição de
150
estilo, eles são: Néstor Almendros e Vittorio Storaro.
No particular filme escolhido para análise, “Contos de Nova York”, juntam-se
numa atmosfera só, por única e feliz vez, os trabalhos destes dois mestres da
fotografia cinematográfica contemporânea. O episódio fotografado por Almendros
é “Lições de Vida” e o de Storaro é “A vida sem Zoe”. (O terceiro fotógrafo do
filme, não menos importante, é Sven Nykvist, “Édipo Arrasado”, o qual não será
objeto desta análise).
A primeira parte da análise trata sobre os dois diretores de fotografia, se
descrevem as experiências particulares de vida e de trabalho, que são as que
dirigem a narração, tentando-se transmitir por meio da linguagem escrita a
essência dos artistas. Apreendemos suas poéticas e simulamos suas retóricas,
tentando construir através das palavras uma possível representação do bios de
cada cinegrafista. Faz-se necessário, numa análise fenomenológica da arte, o
conhecimento da história do artista, tanto ao nível pessoal como ao nível
profissional. A observação dos seus trabalhos anteriores e posteriores á amostra é
imprescindível para a fundamentação da proposta do estilo, e a história de vida
revela subtextos e explica muitos porquês.
151
Por outro lado na segunda parte, na análise do filme, mantivemos uma ordem
cronológica da obra de arte e separamos as atmosferas por cenas e cenários. A
percepção, a observação, a minuciosa análise de contemplação e o ponto de vista
como cientistas comunicólogos nos levou à livre descrição do fenômeno da luz nas
representações cinematográficas, a utilizar uma linguagem técnico-poética e a
tentar transmitir o fenômeno em si, respeitando a essência dos fotógrafos e dos
seus trabalhos. Cruzamos dois paradigmas, o primeiro que descreve: a seqüência
(dia e noite), a ação (espaço e tempo) e a câmera (movimentos e planos), e um
segundo perfil que se desenvolve entre: a cena (interior exterior), a atmosfera
(cores e texturas) e a iluminação (claros e escuros).
Assim mesmo pretendeu-se estabelecer certos padrões de iluminação como: a
relação do real-simbólico no trabalho da luz e a fotografia, as fontes de luz e a sua
justificativa ou não e a utilização de perspectivas e linhas. Com esses padrões
definimos constantes e pudemos perceber o tratamento diferente que ambos
fotógrafos têm no momento da sua realização.
152
IV, 1.- Os Fotógrafos
1,1.- Néstor Almendros.
Para que serve um diretor de fotografia? “Para quase tudo e para quase nada...”, diz
Almendros no seu livro “Dias de uma câmera”; no prefácio do mesmo François
Truffaut agrega: “Néstor Almendros é consciente de exercer uma arte ao mesmo tempo
que pratica um ofício. Fervente enamorado do cinema, ele nos faz participar da sua vocação
e nos demonstra que se pode falar da luz com palavras.” Néstor Almendros vem da
tradição cinematográfica do documentário, mas também de uma vida política de
ação e revolução. Talvez seja por isso que ele gosta de respeitar a natureza e sua
forma de ser livre.
Na sua fotografia, Almendros tenta manter uma relação entre a luz e a sua fonte
procurando que a narração seja o mais verossímil para o espectador. Ele sempre
mostra no quadro de onde poderia vir a luz que faz a cena, seja do próprio sol num
exterior ou por entre as janelas num interior, do teto, da lâmpada, da vela etc. Isso
significa justificar a luz, mas o fato de justificar a luz não quer dizer que este
fotógrafo só ilumine a cena o melhor possível, ele quer sempre, utilizando as
palavras de Dettlef: “parecer a realidade sem deixar de ser simbólico. Surge então um
153
simbolismo que parte da realidade
131
. Almendros se define como um diretor de
fotografia vanguardista, que aspira ao “novo realismo”. Admirador do fotógrafo
G. R. Aldo, pela sua verdade em cena, ele procura a sua inspiração na natureza,
que lhe oferece uma infinidade de formas. É assim que Néstor, como toda a
nouvelle vague”, parte do princípio do neo-realismo italiano para romper com tudo
e começar de novo.
Nos seus filmes Almendros tende a utilizar uma fonte única e principal de luz, tal
como acontece na natureza. Ele rejeita para o cinema a cores aquela iluminação
típica dos anos 40 e 50, que compreendia uma luz principal (key light), compensada
por uma luz de recheio (fill-light), com outra luz por trás (contraluz ou back light)
com o objetivo de separar os atores do fundo, uma luz para as paredes, outra para
a decoração e assim por diante, porque para ele isso não tinha nada de verdade.
Almendros não utiliza luzes a menos que elas estejam justificadas. Acontece o
mesmo com as cores, ele respeita as cores da natureza e aproveita a luz do sol nas
suas horas mágicas para compor enquadramentos que são uma obra de arte,
recurso que é fácil de constatar em filmes como “Dias de Paraíso” ou “A lagoa
azul”.
131
Entrevista com o Prof. Dr. James Dettlef, do curso de Fotografia e Iluminação de Cinema e
Vídeo da Faculdade de Comunicações da Universidade de Lima. Setembro, Un. de Lima, Peru.
2003.
154
O cinegrafista espanhol não tem reparos em utilizar a luz da natureza e recorre ao
uso de espelhos, por exemplo, para refleti-la nos interiores. Gosta das linhas,
horizontais sobre tudo, mas também das verticais e até curvas no quadro, sempre e
quando façam parte do natural. Nos exteriores gosta das sombras que a natureza
provoca e, por observação, chega a fotografar o horário do sol no qual aquela
sombra é apreciada da melhor e mais bela maneira. Almendros conhece a luz
natural e a sua reação, que se representa em atmosferas. Assim, ele sabe que o pôr
de sol em Paris, por exemplo, é muito distinto do pôr de sol do Rio de Janeiro,
porque a luz reage de formas diferentes, provocando atmosferas distintas em cada
lugar. A luz do verão será muito distinta da luz do inverno, pela variação do clima,
a temperatura das cores, o horário do sol, a vida é diferente e isso provoca formas
diferentes, reações do olho à luz que dependem do espaço e do tempo. A
atmosfera é sempre distinta, ela muda, nunca é igual, mesmo que sempre
represente o mesmo bios.
Almendros, muito consciente disso, faze vários ensaios antes do dia de filmagem.
Confronta a luz com o filme, procura o melhor e mais belo enquadramento e
espera pelo sol ou pela lua. Estuda o sol desde o amanhecer para perceber as suas
cores e como aquela luz reagia no filme, nesse quadro, nessa atmosfera; a lua para
saber a que hora ela aparece, quanta luz ela reflete e se é suficiente ou não para
155
representar a atmosfera que ele deseja. As paisagens do Néstor Almendros sempre
são uma obra de arte. Como todo artista, ele precisa definir os limites. Ele equilibra
as suas luzes observando a cena através da câmera, ele necessita do quadro, da
moldura. “Na arte, sem limites não há transposição artística
132
, dizia. ”Quanto mais
complexo o filme, mais necessidade se tem de estar no visor da câmera, posto que o que
conta nas artes de duas dimensões não é somente o que se vê, mas sim o que não se vê, o que
se deixa de ver.
133
Realista e purista, tanto em exteriores como nos interiores, Almendros tenta
sempre obter uma boa composição dentro do quadro cinematográfico. Os fundos
geralmente estão no foco, mas sem subtrair importância aos personagens nos
primeiros termos. Nos seus filmes sempre veremos a paisagem através das janelas,
de forma clara e limpa. Organiza os seus distintos elementos visuais de maneira
que tudo seja inteligível, útil à narração e, portanto, agradável à vista. Como ele
mesmo conta: “Na arte cinematográfica, a habilidade do diretor de fotografia se mede pela
sua capacidade de aclarar uma imagem, de limpá-la, como diz Truffaut, separando bem cada
figura pessoa ou objeto em relação a um fundo ou decoração
134
. Quer dizer, o talento
se mede pela sua capacidade de organizar visualmente uma cena diante da lente,
evitando a confusão, destacando os elementos que interessarão a nós como
132
Almendros, Néstor. Dias de uma camara. Barcelona, Seix Barral, 1983, p. 21.
133
Idem, p. 20.
134
Ibid.
156
espectadores. Para ele as qualidades principais de um diretor de fotografia são a
sensibilidade plástica e uma sólida cultura
135
, a técnica cinematográfica se consegue
com a prática. “Cada plano deve ser concebido, idealmente, duma maneira. A forma do
filme derivará deste conceito. Senão não há conceito para começar, não há estilo. Na arte eu
acredito na disciplina.
136
Almendros gostava muito do cinema mudo, fascinava-se com a magia do silêncio,
aqueles filmes tinham algo de onírico e delicioso que o seduzia. Alguns dos
recursos do cinema mudo se vêm refletidos em vários dos seus trabalhos. A sua
inspiração também provém das realizações de diretores de fotografia
hollywoodianos tais como: Greg Toland (“Cidadão Kane” de Orson Welles,
embora já fosse o diretor de fotografia de John Ford). Stanley Cortez (“The
Magnificent Ambersons” de Charles Laughton), Joseph Walker (diretor de
fotografia de Frank Capra) e, finalmente, Rudolph Mate (fotógrafo de “Gilda” de
Charles Vidor). “Estou convencido de que assistir aos clássicos do cinema nas filmotecas é
a melhor escola. Para aprender iluminação é também útil freqüentar os museus de pinturas,
examinar ilustrações nos livros de reproduções, desenvolver uma apreciação das artes.
137
Dos fotógrafos contemporâneos ele gostava muito do trabalho de Vittorio Storaro,
Gordon Willis, Michael Chapman, Guiseppe Rotunno, entre outros.
135
Idem, p. 19.
136
Idem, p. 28.
137
Ibid.
157
Vale a pena levar em conta as raízes cinematográficas de Almendros já que elas são
toda uma aventura que condicionam indiretamente seu estilo. Nasceu na Espanha,
de pai republicano exilado depois do triunfo do fascismo e de mãe cinéfila nos
tempos pós guerra civil. Quando o pai se instalou em Cuba, mandou chamar pela
família e Néstor chegou a Havana no ano de 1948. Lá ele fundou o primeiro
cineclube da América Latina junto com outros cinéfilos, Tomas Gutiérrez Alea
entre eles. O grupo achou uma câmera 8mm e começaram a experimentar, fazendo
pequenos curtas-metragens. Quando veio o golpe de estado do ditador Batista,
Néstor foi para Nova York. Lá ele estudou no Institute of Film Techniques do City
College e em 1956 foi para Itália, ao Centro Sperimentale di Cinematografia de
Roma. Ao terminar os cursos em Roma e não conseguindo trabalho por lá, ele volta
para Nova York, nessa cidade dá aulas de espanhol como professor numa
faculdade e consegue dinheiro para comprar uma câmera 16mm. Nos EUA ele
filma um documentário: “58-59”, sobre a véspera do ano novo em Nova York. Esse
documentário lhe abrirá as portas dos festivais. Em 1959 Castro triunfa em Cuba e
Néstor decide voltar para Havana e viver a revolução. Aí ele fez seus primeiros
filmes profissionais, sobretudo documentários, mas também ficções com Gutiérrez
Alea e outros. No Caribe Almendros faz outro documentário titulado “Gente na
praia”, trabalho que facilitou a sua entrada no cinema comercial, anos depois.
Quando a revolução castrista perde o sentido e a burocracia interessada se faz
158
intolerável, um terceiro exílio para Néstor significa a única saída. Ele vai para a
França e conhece pessoas de cinema, mostra-lhes os seus trabalhos anteriores e a
nouvelle vague, apaixonada, qualifica-os como do “cinema vérité”. Vai para muitos
festivais e conhece muita gente, mas ainda não faz o seu próprio trabalho. Até que
em 1964 conhece a Eric Romher e torna-se o seu operador de câmera.
A partir de então, o cinegrafista espanhol não ia mais se deter; fotografa quase
todos os filmes de Romher, mas também de muitos outros, como os de Truffaut e
Schroeder. A França dá para Almendros um estilo de suave contraste, tendendo a
utilizar luz de reflexão sem sombras marcadas. Isso será uma constante na sua
cinematografia, um padrão na sua história profissional. “Da primeira experiência da
nouvelle vague fica a utilização da luz indireta ou difusa, mas fazendo-a chegar não
somente do teto, de uma maneira uniforme, mas dos lados, das janelas ou das lâmpadas, das
fontes luminosas reais dum lugar. Há que se aspirar a descobrir uma atmosfera visual
diferente e original para cada filme, e mesmo para cada cena, tentar obter variedade, riqueza
e textura na luz, sem renunciar por isso a certas técnicas atuais.
138
Foi a partir dos
trabalhos com Romher e Truffaut que Almendros veio à luz no mundo
cinematográfico internacional. Também fotografou muitos filmes de Hollywood,
todos trabalhos de qualidade, e no final da sua carreira podia dar-se ao luxo de
138
Almendros, Néstor. Dias de uma câmera. Barcelona, Seix Barral, 1983, p. 16.
159
escolher os filmes e diretores com os quais tinha vontade de trabalhar. Já com
vários prêmios na sua carreira, ele consegue ganhar um Oscar pela sua arte em
Dias de céu” (1978). A lista dos 37 filmes de Almendros é muito longa, mas
nomearemos a seguir os mais significativos:
-La collectionneuse”,
-More”,
-A minha noite com Maud”,
-L’Enfant sauvage”,
- Domicílio conjugal”,
- O joelho de Clara”,
- O amor depois do meio-dia”,
- Idi Amin Dada”,
- O diário intimo de Adèle H.”,
- A marquesa de O”,
- O homem que amava as mulheres”,
- Perceval le Gallois”,
- O quarto verde”,
- Kramer vs. Kramer”,
- A lagoa azul”,
- O ultimo metrô”,
160
- Sob suspeita”,
- A decisão de Sophie”,
- Pauline na praia”,
- Um lugar no coração”,
- Nadine”,
- Lições de Vida” (episódio de “Contos de Nova York”) etc.
Em todos estes filmes, com exceção de Perceval (que é a única exceção à sua regra),
Almendros tem mantido sempre uma iluminacão marcada pela forma naturalista.
Ele não gosta muito dos filtros nas câmaras, nem mesmo nas luzes. No caso de
utilizar filtros, seria geralmente só para corrigir as cores, visando fotografar a cena
da maneira mais natural. De olhar cinematográfico, os movimentos dos seus
planos costumam ser suaves, limpos e precisos. Definindo-se como realista na
forma de fotografar e de ver, ele observa no local da cena onde a luz cai
normalmente e tenta limitar-se a captá-la ou reforçá-la, já que para ele a fonte de
luz sempre tem que estar justificada. Esse é o seu método. Como já sabemos, o
mais importante no seu trabalho é o tratamento da luz natural, mas o fotógrafo
também gostava de pensar o quadro e a lente do plano junto com o diretor. Assim,
uma das suas condições era a absoluta autoridade no momento de escolher o tipo
de filme a utilizar durante a filmagem, assim como também o laboratório que iria
revelar o material.
161
Vale a pena lembrar que infelizmente o mestre Almendros morre no ano de 1992,
quando o cinema digital ainda não tinha chegado aos níveis atuais, mas ele já
reconhecia que essa ia ser a tendência na imagem cinematográfica. A esse respeito
ele escreve: “A gravação de imagens em movimento será, dentro de pouco, não o privilegio
de alguns, e sim a possibilidade de um grande número de pessoas. Não me desagradaria que
as experiências recolhidas neste livro possam ser de alguma maneira úteis tanto ao
profissional como ao leigo, ao que se serve tanto de uma câmera cinematográfica, como de
uma câmera de vídeo. Afinal de contas, para mim foram muito úteis as experiências dos
homens que trabalharam nas artes plásticas anteriormente ao invento do cinema. A
civilização da imagem de que tanto se fala agora começou na realidade há muito tempo.
139
Entretanto, ele fica apreensivo com a conservação do material filmado em todos
estes anos de cinema, transmite a sua preocupação pela conservação da arte
cinematográfica, que é tão significativa como todas as outras, pois também forma
parte importante do documento da criatividade e da vida humanas, como uma
sublime representação.
139
Idem, p. 292.
162
1,2.- Vittorio Storaro
O encontro deste fotógrafo italiano com a luz foi, segundo ele mesmo conta, um 24
de junho de 1940 em Roma, quando olhou para ela pela primeira vez. No caminho
com a luz, Vittorio brincava com a sua sombra; amigo inevitável e parceiro
escondido, produto daquela energia luminosa em combinação com ele. Se há luz e
um objeto interrompe o seu caminho, também há sombra.
De uma câmera escura, sobre uma grande tela branca, um halo luminoso projeta
uma feliz luta entre formas de luz e sombras: é o cinema. E da penumbra emergiu
uma mulher, que fez com que Vittorio se sentisse completo. Com ela, ele conheceu
as emoções da paixão entre o claro e o obscuro. Já feito todo um homem e, como
ele costuma a dizer, pai das três cores básicas: o vermelho, o verde e o azul,
Vittorio se detém e pensa. Entre um poema: “...a Energia é igual à massa vezes a
constante ao quadrado...” e um prisma, percebe que: “...o vermelho é como a expressão
da força vital; o laranja é como um abraço da paixão; o amarelo é como a indicação da
intuição; o verde como o símbolo da vida interior; o azul como a energia espiritual; o índigo
como a qualidade da sofisticação material e o violeta como a cor sacra da introspecção
140
.
Assim ele entende as cores.
140
Storaro, Vittorio. Writing with Light; 1.- The Light. Venezia, Apperture, 2001, p. 16.
163
E sobre a criação da sombra Vittorio estuda com George de la Tour e Rembrandt,
entendendo-a como toda a expressão da consciência e da inconsciência, da
escuridão e da claridade, duas condições da qual uma é a ausência, a negação da
outra
141
. Nas muitas formas de expressão figurativa, sempre a sombra tem sido
utilizada para visualizar dramas, ansiedades e enigmas do homem. O filme “O
conformista” é um bom exemplo para se entender o conceito que Storaro tem a
respeito da sombra. Para poder representar melhor a penumbra, aquele espaço
intermédio entre a vida e a morte, Storaro marca um encontro reflexivo com Jan
Vermeer; nele ambos concordam que a penumbra “é o percurso da existência que nós
tentamos alcançar, o trâmite da vida, do conhecimento, da maturidade; a luz do supra-
consciente
142
. Sob esse conceito, a penumbra transforma-se numa luz de natureza
difratada, que se dissemina em milhões de pontos luminosos, todos em harmonia
procurando um equilíbrio. Para entender a penumbra do ponto de vista do
Storaro, o filme “Novecento”, apesar da sua variedade visual, pode servir como
referente.
Sobre a pura luz, o fotógrafo pergunta a da Vinci se é verdade que “ela é uma
sensação consciente nascida e perpetuada graças ao movimento da energia que estimula os
141
Grimaldi, Francesco Maria (cientista italiano, 1618-1663). Idem, p. 26.
142
Idem, p. 32.
164
corpos que ela encontra no seu contínuo andar?
143
. Segundo ele, o pintor lhe responde
que sim... Luca Signorelli intervém neste diálogo e, concluindo, afirma que a luz é
a iniciadora de tudo, da iniciação à conclusão. Como afirma São Boaventura: “A
forma fundamental comum a todos os corpos... é a luz.
144
Uma clara mostra da
percepção da luz no trabalho deste fotógrafo pode se achar no filme: “O ultimo
imperador”.
Caravaggio, um dos seus pintores favoritos, ensina para Storaro a penetração
máxima no mais oculto, no mais intimo, profundo e recôndito aspecto da
escuridão: a luz puntiforme. “Ela representa individualidade, a divisão, a não-união
145
(O filme Dick Tracy” utiliza luz puntiforme), enquanto Van Eyck e Van der
Weyden lhe apresentam à justa ampliação e evolução da luz puntiforme, a mãe da
penumbra: a luz multiforme. De natureza feminina, esta luz abriga e seduz com a
sua luminosidade cálida tudo ao seu redor (“O Ultimo tango em Paris” dá a idéia
deste tipo de luz).
Involuntariamente sustentando a nossa pesquisa, Storaro entende a luz natural
como a energianascida do devir
146
; como a representação visual da luz que cresce
143
Idem, p. 42.
144
São Boaventura (filosofo e teólogo italiano, 1221 1274). Idem, p. 47.
145
Idem, p. 53.
146
Idem, p. 72.
165
diante dos nossos olhos no universo todo. A luz natural alimenta de energia vital o
microcosmo que a forma e o macrocosmo que a contém. “A vida segundo a luz
natural, branca, solar é sem dúvida aquela que melhor representa a esfera da consciência do
homem: desde a aurora até o ocaso.
147
A luz artificial é definida pelo cinegrafista
como a “renascida”, a luz que nunca morre. Ela tem se estendido ao longo da
evolução humana e representa, segundo Storaro, a esfera do inconsciente humano,
ao ligar esta luz fica acesa também a reflexão, a introspecção... o sonho. “Criou-se
uma nova natureza luminosa não mais limitada pela real matéria solar, mas livre para se
expressar através da fantasia de novas energias (...) A luz artificial representa o “eu”
inconsciente do homem moderno, ela simboliza sobretudo a possibilidade de evolução da
matéria do dia, na energia da noite. Uma reivindicação de uma meta que ainda se persegue,
a manifestação da atividade inconsciente que é parte do homem e do seu devir.
148
Sobre as
duas luzes, natural e artificial, ele conclui: “Assim como a luz natural representa a
filosofia dos fenômenos naturais, a luz artificial representa a filosofia luminosa da
inteligência e da fantasia do homem.
149
Apocalipse Now” é um bom exemplo para
entender estes tipos de luz, sob o ponto de vista de Storaro.
A luz do sol, ele a sente em della Francesca, em Van Gogh, em Pemlibhnkof e em
Rabuzin. O sol ilumina o homem no seu percurso pela vida. “O sol determina o
147
Ibidem.
148
Idem, p. 82.
149
Idem, p. 73.
166
mundo no nível consciente, ele representa os ideais do “eu”, da consciência individual; a
vontade, o sentido moral-ético-religioso da vida.
150
Ele diferencia a qualidade da luz do
sol segundo o percurso do astro lá no céu; assim, há uma luz da aurora, do
amanhecer, outra da manhã, do dia, da tarde, do pôr-do-sol e do anoitecer. O sol é
o mais poderoso e radiante símbolo de energia, sendo que o primeiro conceito que
o homem faz do sol é a luz.
Storaro é um apaixonado pela luz da lua; tanto pelo seu motor quanto pela sua
constituição e sua origem. Tenta entendê-la nas suas diferentes faces: “ela cresce e
decresce, aparece e desaparece enquanto sujeito duma lei universal
151
, e ainda com céus
cobertos de nuvens, o fotógrafo consegue olhar para a única cara que ela mostra, à
luz de um sol dormente que a faz brilhar. O "quarto crescente da lua" de René
Magritte, "a luz de lua" de Kopanebur, "o eclipse" do Gino Covili e "a lua cheia" de
Mijo Kovacic, ilustram o conceito que o artista percebe da deusa do céu na noite.
Inspirado na pintura e procurando entender a expressão da imagem por meio do
cinema, o fotógrafo, filosofo, pensador e poeta italiano Vittorio Storaro é filho de
Fabrizio, um projetor de filmes da Lux Films que encorajou sua criança a estudar
no Instituto Técnico de Fotografia Duca D´Acosta; desta escola o jovem romano
diploma-se como “Mestre Fotográfico”. A partir desse momento Vittorio não
150
Idem, p. 95.
151
Idem, p. 104.
167
parou nunca de estudar. Obteve o grau de “Assistente e Operador de Câmera para
Filmes a Cor” do Centro Italiano de Adestramento Fotográfico em 1958, ano no
qual ingressou no Centro Experimental de Cinematografia em Roma. Trabalhou
primeiro como assistente de câmera, logo depois ascendeu ao posto de operador
de câmera e finalmente estréia como diretor de fotografia no filme “Giovinezza,
Giovinezza” (1968).
Pela sua arte diferente, Vittorio Storaro é possuidor de um currículo que
demonstra uma carreira de sucesso, a qual inclui três Oscars da Academia de
Ciências e Artes de Hollywood pela melhor fotografia com os filmes: “Apocalipse
Now” em 1979, Reds” em 1981 e, finalmente, Ultimo Imperador” em 1990. É
Storaro o realizador das inesquecíveis imagens de:
-Novecento”,
-O ultimo tango em Paris”,
-O conformista”,
-A lua”,
-A estratégia da aranha”,
-O pequeno Buda”,
-Malizia”,
-Giordano Bruno”,
168
-Identikit”,
-A Eneida”,
-Táxi”,
-Tango”,
-Flamenco”,
-Goya”,
-Dick Tracy”,
-Wagner”,
-Tosca”,
-Tucker: o homem e seu sonho”,
-A vida sem Zoe”(Episódio de "Contos de Nova York"), entre outras muitas obras
de arte.
Para Storaro, o trabalho do diretor de fotografia vai muito além das imagens
bonitas. Segundo ele, para atingir um bom resultado, o profissional da luz deve
estar envolvido na produção do filme tanto quanto o seu diretor, conhecendo
desde a idéia original antes da captação das imagens, até os planos de exibição da
produção. É admirador dos seus predecessores: Aldo Graziati, Greg Toland,
Gianni di Venanzo, e dos seus contemporâneos Vilmos Zsigmond, Néstor
Almendros, Billy Williams entre outros. Storaro confirma que a sua figura, como
169
autor da foto-grafia cinematográfica e co-autor da realização, foi educada e afinada
pela visão que ele tem da linguagem do filme, que influencia sempre o seu caminho
como criador de imagens.
A necessidade de se expressar figurativamente (cinematograficamente), tem feito
que em cada filme se confirme parte do seu próprio ser, resultado da meditação,
contemplação e reflexão antes, durante e depois da obra, assim como de uma
atitude de pesquisa constante no conceito da iluminação. No trabalho deste
fotógrafo, também encontramos padrões de iluminação que fundamentam um
estilo próprio. Para ele a sua luz é livre, não precisa justificar nada, mas mesmo
assim, tudo deve ter sentido. Ele procura e se preocupa pela expressão do homem,
da natureza, da tecnologia e dos astros. Sua fotografia é natural quando sente que
deve sê-lo, mas, ainda assim, continua sendo um expressionista. A sua imagem é a
representação do seu ponto de vista invadida pelo logos, ele sente as emoções da
physis, elas se transformam em pensamento no seu logos, para finalmente acabar
representando a luz numa linguagem da arte da melhor e mais bela maneira. Como
padrões-chave no trabalho de fotografia de Storaro, podemos enumerar algumas
constantes:
- a utilização das cores,
- a sobreexposição da luz nas janelas quando representam o dia,
170
- o jogo com as sombras e as suas texturas,
- a permanente procura pela profundidade do campo no quadro,
- a experimentação com o material e, finalmente,
- a busca pela a inspiração na arte da pintura.
Vittorio é conhecido e respeitado no meio cinematográfico pela intensidade, paixão
e amor que entrega nos seus trabalhos. “Eu leio o roteiro, falo com o autor principal do
filme, com o diretor e recebo as primeiras indicações do sentido do filme, tento encontrar a
forma de conceber a imagem da história de um ponto de vista fotográfico. Tento dar com a
idéia central e com o modo em que ela pode se representar de forma simbólica, emocional,
psicológica, real e física. Esse é o meu método.
152
152
Vittorio Storaro na entrevista concedida a Shaefer, Dennis e Salvato, Larry em: Maestros de la
luz. Conversaciones con directores de fotografía. Madrid, Plot, 1998, p. 192.
171
IV,2.- As Fotografias
2,1.- Sobre o filme: “Contos de Nova York
A partir da postura de três diretores nova-iorquinos, e sob o ponto de vista de três
diretores de fotografia estrangeiros, “Contos de Nova York” compreende três média-
metragens, todos eles feitos na mesma cidade. Martin Scorcese dirige “Lições de
Vida”, no qual um pintor, interpretado pelo Nick Nolte, vive a inspiração de uma
musa, representada por Roxanna Arquette. Francis Ford Coppola nos apresenta “A
vida sem Zoe”, segundo episódio do filme, que conta a aventura de Zoe, uma
pequena menina (Heather McComb) que mora sozinha, sob os cuidados do seu
mordomo dentro do Hotel Sherry-Netherland, enquanto seus pais (Talia Shire e
Giancarlo Giannini) viajam pelo mundo trabalhando. O terceiro filme é “Édipo
Arrasado”, uma das maiores peças do Woody Allen, na qual se conta a situação
dum advogado judeu que não pode deixar de ser o filho da mamãe. São três contos
cinematográficos sobre uma cidade que tem mais 10 milhões de histórias para
contar. As três atmosferas representam um tipo de olhar particular sobre Nova
York: a primeira, criada pelo Néstor Almendros, é a atmosfera da natureza que
envolve a selva de pedra do personagem Lionel, a segunda é a representacão
colorida da Nova York percebida pela protagonista Zoe, e a terceira é a atmosfera
criada sob os efeitos de uma gama do marrom, do sueco Sven Nykvist, que faz
companhia ao complexo de Allen.
172
2,2.- Análise foto-gráfica do filme: "Lições de Vida" (Néstor Almendros)
Desde o primeiro take deste filme podemos constatar a mão de Almendros
fotografando uma realização do Martin Scorcese. Este primeiro plano é uma paleta
de cores de um pintor, apresentada de maneira muito cinematográfica por meio de
um íris
153
, recurso utilizado por Almendros em filmes anteriores como “L´Enfant
sauvage”. Esta paleta, uma vez aberto completamente o íris, mostra a mistura de
restos de cores apagados, sob uma luz branca que a ilumina com muita delicadeza,
evidencia um ambiente de dia. A narração em primeiros planos continua
descrevendo a atmosfera de um artista pintor. Aproveitando o primeiro plano do
rosto do ator Nick Nolte, que interpreta o papel de Lionel, Almendros mostra as
janelas para conferir que efetivamente é de dia. A luz, como já dissemos, é branca,
difusa, muito suave e provoca pouco contraste, no caso, um contraste muito sutil,
parecem ser as primeiras horas do dia. Sentimos Lionel tenso. Alguém toca a
campainha. Novamente o íris aparece no quadro e observamos pela primeira vez o
corpo inteiro de Lionel. Enquanto se abre o íris, uma panorâmica em plano geral
mostra o ateliê do pintor. Vê-se um espaço grande, de tetos muito altos, envoltos
por enormes janelas, um lugar muito iluminado e claro.
153
Néstor Almendros explica no seu livro que além do íris ou diafragma que se encontra no interior
de uma lente objetiva, no cinema mudo utilizava-se um tipo de íris de efeito, de grande tamanho,
que se colocava diante da lente, com a função de que suas bordas se fizessem visíveis e
permitissem terminar ou começar uma cena rodeando uma personagem com um círculo preto. Op.
cit. p. 299.
173
O agente de Lionel sobe pelo elevador, um elevador de metal com uma rede que o
rodeia, ele tem uma única fonte de luz na parte de cima, luz branca direta e forte. O
contraste no rosto do representante se compensa um pouco com a luz do ateliê,
mas ainda assim ele é forte, à diferença de Lionel, cuja luz contrastada no rosto é
muito suave. A sombra da rede pousa-se no rosto do artista. Trata-se claramente
de duas qualidades de luz distintas, uma mais intensa que a outra. A personagem
do agente representa a pressão sobre Lionel, o pintor deve terminar um trabalho,
mas parece que ainda não está inspirado.
Num traveling lateral em primeiro plano contrapicado, vemos ao Lionel
aguardando alguém num aeroporto. A composição nesta cena também é artística.
Num plano inteiro da porta de saída dos passageiros que acabaram de chegar, uma
luz intensa, como a luz do dia, banha a cena entrando da direita para a esquerda.
Do lado direito do quadro, temos os passageiros saindo pela porta num
movimento de tons quentes de luz e cores que se complementa com o figurino.
Compensando do lado esquerdo, através de uma janela de vidro, seguramente
polarizado, vemos um avião parado sob um tom azul. Equilíbrio artístico da
imagem, graças a uma compensação de cores, movimento e luz. Diante dessa cena,
num primeiro plano, percebemos a fumaça azul cinza que sai da boca de Lionel
enquanto aguarda, a atmosfera está construida. Novamente por meio dum íris
174
num plano inteiro, observamos uma garota loira (Roxana Arkette) chegando com
uma mala na mão. Lionel joga seu cigarro no chão e em primeiros planos vai ao
encontro da garota. O tapete do aeroporto é vermelho-laranja. Os dois personagens
se encontram no meio do caminho. O contraste em ambos rostos é muito sutil,
novamente é a luz do sol a fonte principal, uma luz de uma qualidade diferente da
luz do ateliê, posto que o dia vai passando e o sol muda de posição, porém a luz se
transforma também. A pesar que o branco do teto difrata a luz interior, nesta cena
temos uma luz de natureza quente, quer dizer de baixa temperatura, reforçada
cromaticamente pela cor do tapete no interior do aeroporto. Tons quentes que são
esfriados, pela cor azul das janelas que gera o vidro polarizado. A conversação dos
personagens se dá em planos médios, num traveling que segue o seu caminho
pelas suas costas. Por meio de outro traveling, agora descendente numa grua em
plano geral, deixamos o interior do aeroporto para sair ao estacionamento. Trata-se
da mesma cena, portanto, tem a mesma luz. Porém, do lado de fora, a luz antes de
temperatura menor agora é mais clara, de tons mais frios, quer dizer de maior
temperatura que no interior. No exterior do aeroporto, o fotógrafo marca esta
iluminação colocando no quadro cores frias como: azuis, verdes e cinzas no fundo.
O vestuário de Lionel e o cabelo loiro da moça são os únicos elementos de cores
quentes. A conversação aqui afora também se dá num traveling lateral desta vez,
semicircular, quando eles chegam à camioneta azul de Lionel.
175
Novamente em casa, pela primeira vez observamos claramente a tela enorme que
ocupa o centro do ateliê do pintor. No quadro da câmera pode-se ver que no teto,
diante da tela, existe uma barra de metal com luzes apontando em sua direção.
Seguramente isso justificará a potencial iluminação noturna da pintura. Toda a
casa, até o dormitório da moça, tem tons claros de iluminação, nesse quarto a
janela é a principal fonte de luz o que justifica um contraste marcado de luz difusa,
a janela é coberta por uma cortina branca que a esfuma. A luz é muito delicada,
parecida aos filmes franceses da nouvelle vague. Nessa habitação, eles têm uma
conversação, ela senta de costas para a janela, isso justifica o contraluz na moça,
que será uma constante.
A luz de noite no ateliê está justificada, como dissemos anteriormente, por aquela
barra de metal com lâmpadas ao longo do teto, diante da tela do pintor. Essa é a
principal fonte de luz, que, além de iluminar a pintura, dá uma luz de separação ao
personagem de Lionel. Lâmpadas ao redor do ateliê, justificam a iluminação dos
outros pontos. Os contrastes e as sombras, agora que é de noite, são muito mais
marcados. A luz branca está predominantemente diante da tela, o resto tem em
alguns pontos uma iluminação mais quente, justificada pelo tipo de luz que
provocam as lâmpadas incandescentes comuns nas casas. Almendros utiliza as
colunas para jogar com a perspectiva, as sombras para gerar volumeis e os outros
176
objetos do cenário para encontrar o equilíbrio no plano. Observamos que na
habitação da moça, as luzes do teto e da lâmpada sobre a mesinha estão acesas. O
abajur da lâmpada pinta o espaço dum delicado laranja. Um indiscreto íris no pé
da moça inspira o pintor.
Em traveling lateral e em plano americano, vemos que a “obra-prima” de Lionel
finalmente começou. Vinda do lado esquerdo do quadro, uma potente luz fria
entra pela janela e marca no seu passo as sombras dos objetos que compõem o
quadro, dando muito volume e textura à cena. Lionel aparece num segundo plano
mais perto da câmera, no mesmo traveling, pintando a tela com cores quentes que
nascem desde o preto: laranjas e vermelhos, marrons e amarelos. A brancura da
sua camisa contrasta com esse calor e esfria o quadro, iluminando o personagem.
Ao final do traveling, do lado direito, o espaço se libera. Vê-se no fundo um
andaime, iluminado pela janela, que provoca com a sua sombra uma textura na
parede, encontrando-nos no primeiro termo com as calorosas mesas ocupadas
pelos pincéis e as tintas, iluminadas por uma lâmpada também de luz branca,
numa bela desordem. Na paleta do artista as cores começam a aparecer.
Necessitado de inspiração, o pintor acorda a moça, que estava deitanda no seu
dormitório. Ao entrar, deixa passar um halo de luz amarela pela porta. A sombra
177
dele se joga na cama dela, ele entra, ela acorda e acende a sua lâmpada da mesinha
de cabeceira e a luz do leve laranja emerge. A combinação de ambas luzes provoca
um belo contraste, laranja de um lado, amarelo do outro. Os olhos do pintor
agradecem a inspiração num primeiro plano, com um íris no pezinho dela. Para
mostrar o desejo de Lionel, Almendros utiliza um recurso que já experimentou
antes, sobretudo nos filmes franceses, por exemplo em “O Homem que amava as
mulheres”. Nas lembranças ou sonhos, ele passa a cena para alguma cor, azul
geralmente. A luz da cena em que Lionel imagina ou lembra da garota tem uma
cor azul brilhante de alto contraste, dificilmente luz natural. Essa é a única cena
cuja justificativa não está dada, não interessa, já que ela está além da realidade e
rompe conscientemente com a luz do resto da história. Numa bela composição em
plano conjunto, Lionel é rejeitado e sai do quarto da moça. Continua pintando até o
amanhecer. Os raios do sol re-criam novas sobras, novas texturas, novos contrastes
e novas temperaturas.
Uma luz fria, como das cinco horas da manhã, entra pelas janelas do ateliê de
Lionel, representando as primeiras horas do dia na Nova York descrita por
Almendros. A luz rebatida do sol provoca nas nuvens um efeito que esfuma a luz,
fazendo dela uma luz suave, sem muito contraste, de cores frias, azuis, cinzas,
celestes. Essa é a principal fonte luminosa, mas sobre a mesa das tintas podemos
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observar uma lâmpada ainda acessa. A luz da lâmpada não rompe com o quadro
porque também é uma luz branca-azul, de sensação fria. O mais quente desse
plano é a pintura, o rosto e o corpo de Lionel, que podemos ver por entre a sua
camisa aberta, assim como também a paleta de cores com a qual está pintando
naquele momento, marcada por um amarelo intenso, alguns outros pontos dos da
decoração também rompem com a brancura iluminação. A luz difusa continua no
transcurso do filme, respeitando o horário do sol, pelo qual a qualidade de luz vai
se modificando. Os travelings para desenvolver os diálogos, assim como a
justificativa da iluminação por meio das janelas, continuam sendo uma constante.
Almendros também utiliza cores escuras para ressaltar os objetos, como o preto, ou
o marrom, azuis de várias gamas. Neste filme em particular, Almendros deleitou-
se com a cor á sua maneira, como por exemplo na paleta do pintor, onde joga com
o branco, o amarelo, o azul e o vermelho, e as suas combinações. As cores têm
uma textura que parecem sair da tela, dão vontade de apalpá-las. Vê-se a maestria
do cinegrafista, que neste caso é também o operador de câmara, ao seguir com a
lente os rápidos movimentos do pintor de uma maneira limpa e segura. Numa bela
montagem de Scorcese, a partir dos planos feitos pelo olho e a mão de Almendros,
a garota lembra porque Lionel é o rei da selva. Fechando a cena, num traveling
diagonal em marcha a ré feito sobre uma grua, mostra-se Lionel pintando em seu
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espaço, desde um plano médio até um plano geral, observamos todo o ateliê. A luz
que entra pelas janelas é uma luz amarela intensamente clara, como de meio-dia e
meio. A composição do quadro durante todo o trajeto do traveling é perfeita. Vale
a pena fazer um parêntese aqui e ressaltar a extraordinária interpretação dos atores
dirigidos pelo diretor nova -iorquino do bairro do Queens, Martin Scorcese, que
antes deste filme já tinha feito “Táxi driver” e “Raging Bull”, e depois dele fez outros
tantos que viraram mitos da cinematografia hollywoodiana, como: “Goodfellas”,
Age of Innocence”, “Casino”, “Gangues de Nova York” etc.
Noite, o pintor e a sua musa saem da casa em traje de gala, de cor preta. A luz do
banheiro, onde ele termina de se arrumar e ela de se maquilar, é branca e difusa;
ela como sempre com um suave brilho de contraluz. Para esfriar o ambiente, o
fotografo utiliza no chão do amplo banheiro uma cor verde agua. A tina e os
demais acessórios do quarto também são brancos. A noite exterior da Nova York
de Almendros é fria e azul, com pontos quentes de luz amarela difusa nas casas da
rua e pontos brancos nas paredes. A luz principal entra no quadro pela direita dos
personagens e é muito intensa, tão intensa que parece mais uma luz de contra. Pelo
outro lado, a compensação luminosa não é muito forte, o que faz com que os rostos
de Lionel e da moça apareçam escuros. Para equilibrar aquela escuridão
Almendros aproveita os flasches brancos que as câmeras fotográficas provocam, as
180
quais iluminam o percurso do casal em direção à porta da casa, pequenos
momentos de luz azul recheiam as sombras. Esse é o detalhe.
Já no interior da galeria, a luz é obviamente artificial, branca/amarelo-clara,
procurando ter o menor contraste, porém Lionel brilha, enquanto a moça tenta se
esconder entre as sombras. Até que um pretendente, tão-somente com olhar para
ela, a faz brilhar. Lionel observa a cena e perde o brilho. Para separar os
personagens do fundo, Almendros marca pontos de luz nas paredes, com cores ou
texturas, luzes e sombras sobre o cenário. A maioria dos participantes da cena
utiliza roupa de cor preta, sendo por isso que os fundos se destacam pelas suas
cores, o que quebra a sobriedade da reunião. Os elementos, como as taças de
champanhe e pinturas ao redor da galeria, têm cores muito intensas: verde,
vermelho, azul, laranja, assim como texturas, pontos, linhas, esculturas, brilhos e
luzes. O salão de dança tem paredes vermelhas, o que contrasta com a cor creme
claro das outras paredes da galeria.
A luz nesta parte da casa é mais quente e laranja, de uma intensidade menor que o
resto do local. A musa está dançando. O pintor a pega pelo braço e a leva até o
banheiro. Num lindo plano contraplano, Almendros utiliza o reflexo dos espelhos
para nos mostrar a cena de ciúmes que o pintor faz diante da garota. Além da luz
181
branca da lâmpada do teto do banheiro, Almendros pinta a cena com luzes e uma
decoração de cores verde, vermelho e laranja. No momento do bolo de aniversário,
as luzes descem de intensidade e Almendros justifica a iluminação “em contre-
plongée” com a luz das velas do bolo, um amarelo cor do fogo vem de baixo em
direção aos rostos dos personagens. Lionel vê que ela vai embora, acompanhada.
Essa noite, no interior da casa de Lionel, a moça leva o rapaz para dormir. As
cortinas do dormitório dela estão fechadas, vemos que elas têm uma cor laranja.
Iluminadas a partir de dentro, as sombras dos amantes se desenham na tela da
cortina, diante os olhos de Lionel. Mostrando-nos mais uma fonte de luz no teto,
atrás da primeira linha de luzes que Lionel tem apontando a pintura, Almendros
justifica uma iluminação de noite no ateliê de Lionel, com uma atmosfera um
pouco mais intensa que a primeira. A luz da cozinha pela primeira vez está acesa e
isso muda a atmosfera, justificando a maior intensidade de luz da cena. A noite
transcorre devagar, as luzes também vão se apagando, Lionel pinta e pinta até ficar
esgotado. No repouso, uma luminária em pé, de luz quente e difusa, ilumina
devagar o cansaço do pintor, que contempla com devoção a janela do quarto da
moça.
A garota vai ver o show do seu ex-namorado. Numa linda locação, numa via do
182
trem, um comediante faz a moça suspirar. O lugar tem uma iluminação principal
gerada por dois refletores de luz branca azulada intensa que banham as duas vias
do trem, as luzes pegam o personagem de frente, provocando uma única sombra.
Essa luz tem um apoio que consta de várias luzes inteligentes (de movimento
próprio), como canhões que emitem raios luminosos de muita intensidade uma
poeira no ambiente permite-nos perceber a formação daqueles halos azuis que
provocam uma luz branco-azulada fria, com exceção de uma que produz uma luz
vermelha e de outra verde, muito sutis. No meio do cenário, há um foco azul
pendurado. Como único personagem dentro das vias do trem, o comediante, veste
com cores frias. O público que assiste ao espetáculo traja cores escuras, pretos,
cinzas e blue jeans. A luz que ilumina os espectadores vem de cima, sendo intensa e
branca, um brilho sobre a parede separa o fundo. A luz desta cena é dura,
contrastada, de sombras marcadas e de luminosidade intensa. Já no after-party, as
cores de outras luzes inteligentes se misturam nos rostos e corpos dos
personagens. Um tom magenta forte predomina na festa. A moça deixa o local
chorando por causa do ex-namorado, Lionel vai trás ela.
No exterior chove. A noite fria e azul da cidade contrasta com o interior intenso de
cores do pub. Algo na rua queima e o fogo é sossegado pela água caindo. Um
traveling acompanha o percurso do casal no meio do quadro, que equilibra uma
183
parede vermelha dum lado do plano, com o vazio escuro e azul da rua chovendo
do outro lado. A noite continua, mas a chuva pára, a água no chão deixa um brilho
que reflete o azul da noite construída por Almendros. Como sempre, pontos de luz
de outras cores, como o vermelho-laranja no fundo, e um azul mais claro e intenso,
afastam os personagens do cenário detrás deles. Apesar da noite, o contraste dos
personagens não é muito forte, há contraste nos rostos, mas é de uma luz difusa e
branca, dando a sensação de uma noite clara na cidade.
Na cozinha, ela prepara um chá para si, uma luz quente provoca um leve contraste
em ambos personagens. No fundo do plano dela há uma janela que reflete uma
pintura, o fundo dele é vestido com escadas que recebem uma luz azul direta que
provoca texturas e sombras. Ele se sente como o homem invisível e uma transição
de luz marca a cena. Quando ela deixa a cozinha, voltamos a um plano meio
fechado do pintor composto, do lado esquerdo do quadro, pelo reflexo da pintura
que observávamos no plano da moça anteriormente. Num traveling em direção a
Lionel, o reflexo vai desaparecendo, assim como a luz do seu rosto, no mesmo
instante uma outra luz vai ficando acesa e a pintura que provocava o reflexo
aparece, está nas costas do pintor. A silhueta de Lionel vai se marcando e saindo
do quadro. Finalmente, termina o traveling com um primeiro plano da pintura
totalmente iluminada. Este plano se enlaça com um traveling em reversão muito
184
devagar da garota no seu quarto observando uma outra pintura. Novamente o íris
entra em cena, fechando-se nela. Notável transição, que mostra mais um detalhe
do artista da luz, em parceria com um excelente diretor.
Num bar, ela toma um drink com a amiga, o pub tem uma fotografia de cores
quentes, o vestuário e cenografia variam dos tons marrons, vermelhos e laranjas.
Utiliza-se uma ou outra cor muito pontual para pintar a cena: verdes, azuis, lilases.
Uma luz amarela bastante difusa e de suave contraste invade o lugar, a moça
sempre tem aquele brilho de contraluz.
Novamente em casa, ela empacota suas coisas para ir embora, encontramo-nos
agora na parte do ateliê no qual ela trabalha. A luz é difusa e multiforme. Desde
que Lionel abre a porta, Almendros justifica esta iluminação com uma lâmpada
que produz um tipo de luz branca, a qual entra através do vidro esfumado do
ateliê da moça. Com uma panorâmica nós a seguimos, ela joga a suas obras no
chão, a luz branca ilumina todo o lugar como luz principal, ao mesmo tempo em
que uma luz azul pinta uma coluna no fundo do quarto. No meio do espaço, uma
luminária em pé de cor verde chama a nossa atenção, dando equilíbrio e cor ao
quadro, junto com um sofá verde e laranja do seu lado. Quando a panorâmica
termina, vemos mais uma lâmpada de luz quente pendurada na sua estante de
185
coisas. Com isso Almendros justificou já a sua iluminação. Durante o diálogo que
se dá entre os dois personagens, vemos que ele está acompanhado de fundos claros
e frios/brancos, ela, pelo contrário, tem muita cor quente na decoração provocada
tanto por lâmpadas como por objetos.
Na cena da separação final ele está pintando sua obra, a luz da sala é intensa e
branca, mais intensa do que tínhamos sentido antes durante todo o filme. É de
noite, mas a luz é muito intensa. A posição da câmera faz com que a luz que
ilumina a pintura de Lionel pareça como uma espécie de contra sobre o lado
direito do personagem. O contraste no seu rosto é mais marcado que antes, a luz é
branca e brilhante. Quando se dá o último diálogo entre os dois (ele e a moça), a
câmera volta para o seu eixo original e notamos novamente um contraste suave,
sempre constante na luz dessa locação. Nesta cena ela já não tem o contra que
costumava ter. Ela vai embora.
Finalmente, na cena do vernissage do pintor, os flashes das câmeras congelam os
momentos dos parabéns para Lionel, tornando as imagens em preto e branco. A
luz da galeria é muito clara, difusa e suave; o espaço tem janelas ao redor pelas
quais pode ingressar muita luz. É de dia, portanto a luz do sol é a principal fonte
de iluminação; Almendros nos mostrará depois o tamanho das janelas. A luz é
186
branca e fria sem contraste, muito clara para apreciar as obras. Os quadros
pendurados têm uma iluminação especial que os ressalta da parede. Há pontos de
fuga iluminados com muita sobriedade e sutileza, como por exemplo a parede que
leva o nome de Lionel, a iluminação é o trabalho de um artista para a exposição de
outro artista. O refletor de uma câmera de vídeo segue ao pintor por todo o
caminho provocando nele uma luz de temperatura mais fria, portanto mais clara.
Quando chega à mesa do champanhe, a luz daquela câmera se apaga. Lionel
observa a sua obra de arte sobre a parede, atrás da mesa onde se servem os
drinques. Ele pede uma taça à moça que atende e a cor da bebida abre caminho
para planos com uma luz mais lida, ainda com contrastes muito suaves, mas
agora de uma cor laranja esfumado, como o champagne. Os primeiros planos
denotam o interesse de Lionel pela tímida garota. Ela é a nova musa que aparece
na vida do pintor. Numa panorâmica em plano geral, vemos o pessoal da galeria
curtindo a arte. Ao terminar o movimento o efeito de íris aparece pela última vez,
mostrando-nos, lá no fundo do espaço, Lionel e a moça do champanhe
conversando. O pessoal que assistiu à exposição vai saindo do lugar, mas o casal
continua conversando. O tempo passa, a luz do dia desaparece e a luz azul da
noite acompanha agora o casal que continua no mesmo lugar, só os dois, fazem um
brinde e o íris se fecha.
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2,3.- Análise foto-gráfica do filme: "A vida sem Zoe" (Vittorio Storaro)
De uma obscuridade sempre desconcertante, por meio de um traveling lateral
semicircular, aparece atrás de uma textura a figura de uma menina sentada junto a
uma mesa, pintando. Uma lâmpada pendurada sobre o meio do tabuleiro é a
principal fonte luminosa, estrelas azuis no caminho da luz esfriam o plano até se
encontrar com os objetos de cores quentes que ocupam o centro da mesa. Do lado
direito do quadro, aparece e desaparece mais um ponto azul produzido por algum
adorno. Do lado esquerdo, terminando o traveling, o sutil reflexo da lâmpada
sobre o vidro de um poster compõe a imagem que mostra Zoe enquanto pinta,
pensa e conta uma história. A luz é branca, suave, difusa, mas pontual. A imagem
se dissolve numa estatueta branca que gira lentamente em direção à câmera.
Embora seja difícil iluminar uma escultura, Storaro o faz muito bem, aliás gosta
muito de fazê-lo. Por isso vale a pena falar deste plano em particular. A estatueta
está iluminada por duas luzes, uma principal que vem do lado direito do quadro e
outra que compensa o contraste da figura pelo lado esquerdo. Assim, no início do
plano vemos uma estátua de porcelana representando um flautista que aparenta
tocar uma melodia para alguém no escuro; enquanto o objeto gira sobre si mesmo,
a câmera desce no mesmo plano e aparece uma moça de porcelana, que, vinda das
sombras, ingressa na luz extasiada pelo aparente som da flauta.
188
Voltamos com Zoe e a sua luz clara, a câmera chega mais perto dela e notamos que
uma luz rebatida ilumina o seu rosto, banhando-o quase sem contraste. Num
traveling semicircular ingressamos em suas lembranças filtrando sua imagem
através de um frasco vermelho. Nos seus pensamentos estão seus pais. No quadro
que ela pinta, a mãe é azul como a luz da lua, e o pai laranja como a luz do pôr-do-
sol... Ela é como a luz do dia, clara e feliz.
São quase oito horas da amanhã nesta Nova York criada por Storaro, a luz do sol
tem um leve tom laranja das primeiras horas do dia que abraça tudo à sua
passagem. As luces artificias ainda estão acesas. Um traveling sobre uma grua nos
faz ingressar no hotel onde Zoe mora, de tons marcadamente calidos. Num
corredor, um plano americano sobre um traveling acompanha a Héctor, mordomo
da menina. A luz sobre ele é de um laranja mais intenso, uma janela no seu
caminho dá textura sobre o personagem vestido de preto, que entra e sai da luz no
seu transcurso até o dormitório de Zoe. Nesse quarto a atmosfera é de um laranja
escuro, as cortinas estão fechadas, Héctor as abre e uma luz mais amarela clareia a
cena. O cachorrinho de estimação da garota sobe à cama, ele é de cor preta como o
cabelo da menina. O contraste nesta cena é particular; na figura de Héctor o
contraste de luz é alto, posto que recebe a luz da janela como fonte principal e não
tem muita compensação. Por outro lado, a menina que recém-acorda está
189
iluminada também pela luz da janela, mas no seu caso esta cumpre a função de
contraluz. Enquanto o seu rosto fica iluminado pelo reflexo daquela luz provocado
pelo seu edredom branco. Ela não tem sombras marcadas, o seu rosto não tem
contrastes. As paredes do quarto são da cor verde agua e esfriam o laranja da
atmosfera. Por fim ela se levanta da cama e caminha em direção ao banheiro, que a
acolhe com uma luz mais branca e difusa. O seu vestuário é de cores pastéis e com
textura quadriculada. Ao sair do quarto rumo à escola, um halo laranja-amarelo de
luz ilumina a sua partida. Com preguiça Zoe desce do elevador. O hotel tem uma
decoração de cores cálidas e não é muito iluminado no seu interior. Trata-se de um
hotel antigo, mas muito bem conservado, com acabamentos de madeira e fontes
pontuais de luz quase sempre quentes. Porém, entre as plantas e o uniforme dos
empregados do lugar (que é uma combinação de verde com preto), alguns pontos
esfriam-se. Num traveling com panorâmica, vemos Zoe ir para o caixa do hotel. No
fundo, através das janelas, uma luz amarela de aparência solar pinta o corredor.
No caixa do hotel a luz é quente, o encarregado está levemente iluminado por uma
fonte colocada por cima do lado esquerdo do quadro, que vai direta até o rosto da
criança, reflexos no vidro desenham linhas no plano (curvas pelo chapéu da Zoe e
diagonais pelas lâmpadas que iluminam o posto de revistas do hotel em frente ao
caixa). As letras luminosas do cashier”, com a sua luz branca, esfriam e
compensam o plano, assim como o chapéu de Zoe.
190
O dia vai avançando e a luz vai esquentando a temperatura da cor, tornando-a
mais clara, mas ainda assim, essa leve cor laranja predomina na atmosfera. Zoe
veste jeans e cores pastéis que esfriam o quadro. Pontos vermelhos e amarelos
pintam a rua. A luz do sol ilumina a entrada das meninas na escola.
Dentro da sala de aula, numa mesa retangular, o grupo de garotas lideradas por
Zoe pensa em como entrevistar o novo aluno da escola para a revista da classe. A
cena tem uma luz muito particular. A luz principal que ilumina o rosto das
crianças é cálida, difrata e vem da mesa de trabalho na qual elas estão. A mesa é
luminosa. O resto da sala é banhado por uma intensa luz branca que entra por uma
enorme janela, aparentemente luz solar. Assim, o fundo da sala adquire uma cor
azul, mais para fria, que serve de contraluz nas garotas. A atmosfera é carregada
como se houvesse um pó que desenha o espaço, seguindo o caminho da luz branca
e intensa que pinta o lugar. Muito movimento nos planos secundários às garotas,
tanto dentro da sala como nos exteriores, ao mesmo tempo que os variados objetos
angulosos, mesas, estantes, cadeiras etc. desenham texturas no fundo do plano e no
plano geral. As linhas do teto, iluminadas pela luz do exterior, dão brilho e
profundidade à cena.
De novo no exterior, um guarda-sol vermelho se abre no meio do quadro e quebra
191
com o celeste do céu, num dia de sol na Nova York de Storaro. Numa caminhada
pelo verde campo do Central Park, com as garotas e o novo menino da escola, o
fotógrafo brinca com a luz do sol e as suas cores, como numa pintura
impressionista e assim a tarde vai passando. Num quadro de gamas mais para
claras, os pontos de cor vermelha, amarela e até azul clara, quebram-se com o
verde do fundo e as cores pastéis dos vestidos das garotas. O menino e o seu
guarda-costas levam roupas da cor preta, além disso o homem tem um turbante
branco sobre a cabeça. A cor laranja se mantém o tempo todo, incrementando-se
com a passagem das horas, inclusive invadindo a tarde. Nesta cena os quadros do
Storaro parecem certamente tirados de alguma exposição de pintura, pelas cores,
pela luz e pela composição. Seguramente inspirado na arte da pintura, o fotógrafo
realiza imagens que só podem ser produto de um artista.
Às onze horas da noite, Zoe chega em casa, a luz laranja do sol descansa e agora é a
luz artificial que domina a cena, o tom azul frio é mais marcado. A qualidade da
luz é branca e difratada, uma iluminação vagarosa, produto das lâmpadas de
textura esfumada. No interior do hotel, luzes muito pontuais iluminam a cena,
lembrando o cine noir americano, a iluminação de dentro é puntiforme, escura e
precisa, com sombras e contrastes marcados, compensados com delicadeza pela
luz azul da noite que entra pela janela. Um assalto acontece enquanto Zoe entra ao
192
hotel, a luz dos ladrões e muito contrastada, os enquadramentos nesta cena são
aberrantes e em câmara baixa, os ladrões abrem a caixa forte, na fuga deixam cair
um envelope que pertence ao pai de Zoe, ela consegue guardá -lo consigo. Já em
casa, no seu quarto do hotel, a fotografia conserva a mesma lógica de lâmpadas
que produzem uma luz branca e difusa, Zoe continua assustada, estado que se
mostra mantendo-se ainda o enquadramento aberrante. Segura em casa, ela abre o
envelope que guardou. Uma luz azul ilumina o rosto da garota, quando nos
mostra um enorme diamante em forma de brinco. O diamante é a fonte luminosa
desse azul.
Zoe entra no quarto de Hector, que está dormindo. A televisão ainda está acesa
mas sem programação, a imagem que ela emite provoca um tom azul na cena. Zoe
chega apressada até a cama do mordomo, onde um mapa-múndi redondo e
luminoso de cor azul torna a luz principal do quadro num celeste astral. Quando
Hector acorda, acende a sua lâmpada, cuja luz amarela mostra-se mais potente,
banhando a cena com uma iluminação mais quente, esfumada pelo abajur.
No quarto de Zoe conserva-se sempre uma fotografia pontual ainda que difusa e
clara, com um baixo contraste. As fontes principais de iluminação são a lâmpada
em cima da mesa e outra luminária em pé, tipo chinesa, de forma circular, que fica
193
junto ao sofá sob a janela. A qualidade da luz que estas lâmpadas produzem é
muito delicada e sutil.
Na tarde do dia seguinte, Zoe brinca com as amigas no quarto da sua mãe.
Novamente o laranja do sol de Nova York transforma-se na fonte principal de luz
que entra pelas janelas, a mãe de Zoe chega a casa e conversam. Mantêm-se a
iluminação quente da tarde, o movimento das personagens durante a cena faz com
que elas variem os seus pontos e intensidades de luz, dando profundidade e
volume à cena. Antes do pôr-do-sol, chega ao quarto de Zoe o pai da menina,
enquanto ela pinta a sua imagem. Ambos se abraçam, ele senta-se ao lado da mesa
e ela sobre suas pernas, formando um quadro compensado de cores e linhas. A
garota e o pai recebem uma luz branca que provém da lâmpada sobre a mesa, em
último plano a luz laranja intensa do sol pinta o fundo e, em primeiro plano, uma
tela meio transparente de cor lilás esfria com sutileza o lado direito do quadro. No
sofá diante da janela a luz da lâmpada é a fonte principal, que provoca um
marcado, mas delicado contraste. No fundo, a luz através das cortinas desgruda os
personagens do fundo.
As meninas vão a uma festa à fantasia, procuram um táxi num dia nublado de
chuva fina. A iluminação é mais fria, de céus cinzas. Zoe e as garotas chegam ao
194
palácio do Abu (o menino novo da escola), a festa já começou e a atmosfera nos
lembra as Mil e Uma Noites. Com um cenário mourisco, a gama da cena é de cores
quentes: vermelho, laranja, amarelo. A base desta iluminação é feita basicamente
por lâmpadas circulares no teto do salão de dança. Elementos dourados e
prateados ressaltam na decoração, transmitindo uma sensação de muita riqueza
material. A luz, respeitando a lógica do filme, continua sendo de pouco contraste e
qualidade esfumada, com pontos brilhantes que dão textura aos quadros como:
raios de luz mais potentes que entram pelas janelas, o fogo nos pratos, lâmpadas
sobre as mesas das crianças etc. As cores frias, mas intensas, como o verde ou o
azul, até o neutro branco, compensam a luz quente do salão. A direção de arte
caprichou nos detalhes. Na fantasia das crianças, muita cor.
A festa avança e Zoe quer conhecer a princesa para dar a ela o brilhante, que quase
fica perdido. Seu amigo Abu a leva até o quarto da tia. Já é de noite e as escadas,
antes pintadas de amarelo, agora vestem um azul de lua. Numa sala de estar, um
azul de tons "fundo do mar" invade a cena, uma lâmpada parece uma medusa,
globos dourados em forma de estrela flutuam no ambiente, umas senhoras de
roupas escuras conversam e, no meio delas, sob um halo de luz amarela e cálida,
vemos a princesa Soroia deitada como uma sereia. No fundo do plano texturas
laranjas, lâmpadas de formas marinhas e uma luz azul brilhante, que se move
195
como onda de mar refletida pelo sol, dão a impressão duma atmosfera netuniana.
Em casa, o pai e a mãe de Zoe conversam sobre eles. A luz quente de sempre
continua presente. De contraste marcado, o quadro do beijo é a síntese do casal.
Ambos personagens têm uma luz principal direta que define os seus perfis, na
frente do plano forma-se uma linha curva com o abraço deles. Ao fundo, do lado
esquerdo (o dele), a cor é laranja, no lado direito (o dela), a cor é azul. Fotografia
expressionista que transgride o natural e apresenta o ponto de vista do realizador.
Zoe pega seus pais beijando-se, a sua iluminação é branca, a luz da lâmpada sobre
o escritório dá à cena uma nova cor, uma luz clara, como Zoe.
A família sai do Russiam Tea Room numa noite de luz clara e contrastada. Ainda
que a qualida de da luz seja difratada e esfumada, existe um alto contraste nos
rostos dos personagens. Já em casa, antes de Zoe dormir, o pai despede-se dela
tocando uma música na flauta. Em planos, contracampos e um traveling
semicircular, observamos a luz dessa cena e percebemos que ela é dada pela
lâmpada ao lado da cama da menina (única fonte de iluminação) e a apesar da
iluminação ser direta, não perde a sua delicadeza. O ato de esfumar a luz das
lâmpadas com o abajur é uma constante tanto no filme como no trabalho de
fotografia do Storaro. A luz desta cena é uma luz puntiforme que não se preocupa
196
pelo restante do quadro, do preto profundo emergem figuras luminosas. O
contraste nos rostos é muito delicado.
Dia de sol em Nova York, Zoe passeia com a sua mãe pela rua, o laranja
permanente se compensou e a imagem é agora mais fria, mais azul, com verdes,
celestes e cinzas, brancos e amarelos. Alguns pontos vermelhos no figurino dão
calor à imagem. Mãe e filha conversam com uma luz muito delicada que acaricia
os seus rostos, quase sem contraste, muito clara e de aparência natural, difratada
pelas nuvens e pelas sombras. Elas decidem ir pra a Europa. Um cartão de convite
iluminado por um halo de luz quente, direta e esfumada, nos apresenta o concerto
do pai de Zoe em Atenas.
Na Acrópole, por meio de um traveling que começa no plano meio fechado de
Claudio tocando a flauta, observamos atrás dele uma orquestra sinfônica. No
fundo do plano o ocaso do sol reflete no Partenon, parece uma pintura em
movimento. O plano vai se abrindo e a passagem do sol é sentida em cada quadro.
As colunas e paredes adquirem um tom laranja pastel provocado pela luz cálida do
ocaso sob um céu celeste e claro. No mesmo traveling vemos Zoe com sua mãe
curtindo a atmosfera. Uma luz que vem da esquerda do quadro reforça o desenho
das figuras, dando um brilho que destaca os personagens. Num outro plano, agora
197
fixo, vemos Claudio concluindo a sua peça ao mesmo tempo em que o sol se
despede do dia. A mudança de temperatura é vista no processo, e do laranja pastel
passamos ao azul brilhante, reflexo puro da luz solar no céu ateniense, uma vez
que o astro já dorme.
Os aplausos não se fazem esperar ante tanta beleza. Um traveling lateral nos
mostra o publico de costas e a magnificência do evento. Finalmente, num último
traveling, agora com uma grua, voltamos de novo a Claudio, que continua
agradecendo as palmas. O plano é inteiro, a orquestra continua tocando enquanto
uma luz branca artificial vinda da direita do quadro os ilumina. No fundo, o
Partenon se impõe na parte superior do plano, desta vez pintado pelo azul
brilhante que invade a cena, a câmera vai deixando-o sozinho no quadro e
enquanto se aproxima (primeiro em traveling, depois com um zoom-in) a luz azul
nas colunas vai virando a amarelo. A imagem se congela e torna-se um cartão
postal e assim, com este pôr-do-sol espetacular, Storaro, Coppola e Zoe se
despedem mandando beijos e abraços.
198
IV,3.- A Síntese
Uma vez feita a análise, cabe fazer uma última reflexão utilizando os termos
propostos no transcurso da pesquisa, que são basicamente os estilos de
representação artística dos conceitos filosóficos de physis, logos e ente, tendo o
artista e a obra de arte como o nosso referente de análise que mostra a luz como
um fenômeno real desde a perspectiva do espectador.
No primeiro capítulo dissemos que o ente seria entendido como a luz, que é a
linguagem do transcendente que se manifesta como bios: relação em constante
tensão entre a substância e a qualidade que geram a physis e o logos, numa
atmosfera.
A representação da physis na arte cinematográfica foi por nós denominada
naturalismo (bios x), o qual, segundo postulamos, era o tipo de atmosfera que
transmitia da melhor e mais bela maneira a sensação do vigor dominante que brota
e permanece, do ente natural, do que surge para a luz. Certamente no filme do
primeiro fotógrafo (Néstor Almendros) pudemos observar e constatar a sua relação
com a luz natural, que respeita as fontes naturais de luz e o seu devir no tempo e
no espaço. A atmosfera geral do filme faz com que o espectador não se pergunte
pela natureza da luz, posto que ela aparece de forma natural.
199
Como luz incidente entrando pelo nosso olho, o fotógrafo sensualista deixa que a
luz natural entre da maneira mais livre. Ele permite que a luz fale para nós na sua
própria língua natural. O primeiro estilo é naturalista pela sua filosofia de ser, e
realista pela sua forma de estar no mundo. Utiliza a natureza como referente,
estendendo a sensação sobre a sensibilidade. Imita a natureza, no sentido de
respeitar as suas normas, enquanto o seu espírito desabrocha-se na luz,
manifestando-se na imagem. O valor da técnica se percebe nos tipos de quadros e
na escolha do melhor diafragma para fotografar cada cena, transmitindo da melhor
e mais bela maneira a atmosfera do filme.
Por outra parte, a representação do logos na linguagem da foto-grafia
cinematográfica foi chamada de expressionismo (bios y): forma de atmosfera que
transmite o como que corrige a verdade, é a forma de dizer uma coisa sobre outra
coisa, a unidade de reunião constante e em si mesma imperante, o lugar da
verdade no sentido da correção.
154
Entendido como retenção, continua Heidegger,
o logos tem o caráter do vigor que domina penetrando da physis e mantem, numa
correspondência, o que tende a desprender-se e contrapor-se.
154
Resumo das frases de Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1969, p. 153 159.
200
Como luz refletida que viaja desde o nosso olho até nossa mente e além, o segundo
modo de fotografar em movimento transmite a sensibilidade do logos, que se
impõe ao natural como uma meta-linguagem. Vanguardista e revolucionário é o
artifício que se expressa com uma liberdade incomparável, pessoal. Este estilo
conhece a physis e é por isso que a transgride, dando prioridade à pura expressão
sobre a narração. Vittorio Storaro expõe através da luz e da sua linguagem em
cores os sentimentos, pensamentos, desejos, sonhos, fantasias e artifícios dos
personagens, criando atmosferas oníricas, feitas com imagens reais. Inspira-se nos
artistas mais do que na natureza, gerando em cada uma das suas imagens efeitos
de emotividade. Expressionista em aparência e transparência, acha nas formas de
representação artística seu referente principal, entendendo a representação como a
expressão de sensibilidade.
Eis a essência do fenômeno da luz, procurada como ordenamento do método
desde as suas origens, que são o artista e a obra de arte. Por ‘luz’ entendemos um
fenômeno que é substância e forma separada das coisas sensíveis, mas ao mesmo
tempo imanente a elas, a luz é um fenômeno que é ente universal.
O ente pode ser em ato e em potência, quando num ponto do espaço (onde) e do
tempo (quando), uma relação constante (limitada por intermediários: quanto e
201
qual) entre a physis (que) e o logos (como) se dá por uma ou mais de uma razão (por
quê). A relação constante entre a physis e o logos se chama de bios, unidade da alma
humana que numa representação feita por um artista pode se traduzir como a
tensão geradora da poiésis entre a matéria e a forma, entre a natureza e o artifício, e
que utilizando como mediação cada pessoa (quem) e uma dada linguagem
evoluciona através da comunicação.
202
Capitulo V
Conclusões à luz da tecno logia.
- Nesta pesquisa estudamos a luz como fenômeno e como essência da imagem
visual, assim como a sua relação com a realidade, a linguagem, a arte, o cinema e a
tecnologia, entendendo as formas da expressão visual do homem contemporâneo
como um encontro da experiência humana. A relação entre a physis e o logos é o bios
dessa experiência, podendo ser representada nos estilos naturalista e
expressionista da linguagem da luz na imagem cinematográfica. Nesta era pós-
moderna essa relação tem transcendido o advento da tecno-logia e tenta sobre-
viver na era digital, a tecno-logia digital ingressou na vida cotidiana criando novas
formas de relação entre a sociedade e a cultura, alterando a percepção do mundo,
provocando exclusões espantosas para alguns e atualizando o verdadeiro sentido
da democracia para outros. Com relação à comunicação, a tecno-logia digital muda
os papéis entre destinatário e emissor graças à interatividade e à interação entre os
consumidores (usuários) que, no entanto se possuem maior liberdade para
interpretar as mensagens, também gozam de menor autonomia no que diz respeito
aos valores dominantes. A tecno-logia digital é uma produção cultural que
evidencia hoje a complexidade cada vez maior do pensamento e da vida.
203
- Seguindo-se a perspectiva aristotélica como método para entender um
sistema de pensamento, foi necessário estabelecer uma ordem e um ponto de
partida, ou seja, um princípio, que para o próprio Aristóteles significa “o bom e o
belo”. Porém, para esta pesquisa, o princípio, a causa primeira, única e material, o
ponto de partida foi a luz na medida em que é boa e bela. E ela é bela e boa na
natureza e na arte, o nosso gênero foi o da arte porque procuramos pelas
representações humanas. Entendemos a arte como aquilo feito por um artista,
como a gênese do artista e da obra de arte. O cinema foi a nossa arte referente, pois
é nele que todas as artes pré-cinematográficas se conjugam e a quem todas as artes
pós-cinematográficas devem a sua origem. Da arte do cinema, ficamos com a sua
imagem e percebemos que nesta nova era estamos diante de uma nova crise da
imagem, caracterizada pela ruptura com a linha de universo que prolongava uns
acontecimentos em outros, a qual não assegura já a concordância de espaço-tempo.
Hoje a ação e a situação sensório-motora tem sido transformada pelo fluir da
imagem digital e pelo ir e vir contínuo de sentidos. Desse ponto de vista é a luz da
imagem dessa tecnologia o conceito a se analisar, porque a tecnologia não afeta só
os objetos do mundo, mas também a nossa própria situação espaço-temporal e a
nossa maneira de percebê-la. A imagem contemporânea da tecnologia é uma
imagem digital. Uma imagem auto-referente de si mesma, que rompe com os
modelos clássicos de representação, posto que se trata também, ao mesmo tempo,
204
de uma simulação. Neste início do novo milênio o acelerado consumo de bens
audiovisuais, junto com o progresso das telecomunicações, estreitam o tempo e o
espaço em que se movem o homem e a mulher contemporâneos. Assim,
detectamos novas sensibilidades, novos problemas de representação, novos
conceitos estéticos e novas formas de compreender o mundo. Neste sentido,
fenômenos como: mídias digitais (articuladas pelo ciberespaço), multimídia,
realidade virtual, interatividade, síntese, aceleração, simultaneidade,
fragmentação, saturação, superexposição, reciclagem, heterogeneidade,
multiplicação, desintegração e fotografia digital, longe de configurar enunciados
neutros e inocentes, transformam-se em dispositivos que desenvolvem mutações
sensoriais, perceptivas e expressivas que são o motor das grandes transformações
da comunicação humana.
- No meio do acelerado desenvolvimento das tecnologias e dos meios de
expressão, o cinema, enquanto fenômeno, define-se a partir da decorrência dos
condicionamentos sociais, econômicos e políticos contemporâneos, assim como na
diversificação das demandas do imaginário. Na nossa pesquisa evidenciamos a
importância ético-estética da luz na imagem cinematográfica contemporânea,
considerando-a como representação das relações entre cultura e tecnologia, como
fundamento do local dentro do global e como referente na criação do espaço e do
205
tempo, sempre a partir da posição do artista fotográfico como criador realizador,
diante das conseqüências culturais de uma imagem real-virtual. A imagem digital
desta era é produzida através de um computador onde zeros e uns simulam
(fazendo) o fenômeno da luz. A lógica da imagem digital é o binômio “luz
sombra”, que está presente em todo gênero artístico visual, tal como o cinema,
revelando-se por meio da cor. Tanto a luz como a sombra são dois fenômenos que
participam ativamente, não apenas da criação de formas, mas também da
disposição cênica dos elementos que a constituem, limitando geralmente os
diferentes planos de composição. A superfície iluminada de um objeto atende a
uma série de premissas e circunstâncias da ordem física, como se pode especificar
numa prática infográfica, sobretudo nas criações tridimensionais da ordem
vetorial. A conseqüência de todo este processo foi o desenvolvimento de uma
tenaz corrida em busca de um objetivo: o avanço das técnicas digitais para a
produção de um suposto “realismo”. Resulta irônico saber que esta luz puramente
artificial quer desesperadamente se parecer com a maior fidelidade à luz natural,
simular a natureza com a maior verossimilhança. A idéia de “realismo” tem
presidido a pesquisa e os trabalhos de produção de imagens por computador,
entendendo-se o “realismo” como o mais acreditável para a percepção do
espectador, já que o “real” produzido pelo computador não é real quando não é,
ou seja que é real quando é: nas salas do cinema (nos vídeos ou dvd´s) e não é real
206
quando não é, porque na “realidade” fora da ficção (da representação), muitas
dessas imagens não são possíveis, nem atuais, nem reais por natureza, mas com
certeza podem ser verossímeis numa representação da realidade para um
espectador que as goza. Por isso temos preferido mudar o termo “real” ou
“realista” por “o mais natural”, para utilizar termos de forma e não de conteúdo,
sabendo que se trata do puro artifício, o qual, imitando a luz, tenta simular a
natureza humana, tão natural quanto artificial.
- Toda nova técnica origina mudanças de caráter essencialmente prático, mas
também rupturas epistemológicas e novos sentidos de produção/percepção. Assim,
o digital significa no campo cinematográfico não só a superação de uma técnica
tradicional analógica, mas também e principalmente uma ruptura com as formas
de representar, a qual insere novas exigências no plano da linguagem e dos
sentidos da imagem. No cinema, as novas tecnologias digitais afetaram também a
materialidade da imagem e a organização do trabalho da realização. A luz natural
da imagem do cinema se hibridiza e aceita como par a luz digital feita no artifício
do computador. Os estilos cinematográficos evoluem com a possibilidade das
novas formas de linguagem que as imagens digitais permitem. Novas tendências
nascem a partir de uma crise de representação, elas são sempre uma questão de
possibilidades e necessidades na produção do novo. O novo é o que escapa à
207
representação do mundo como dado, como cópia.
155
Significa a emergência da
imaginação no mundo da razão e conseqüentemente implica uma libertação dos
modelos disciplinares. É por isso que o que interessa hoje é atingir uma “imagem
de criação” que remeta à expressão do real enquanto atual e possível ao mesmo
tempo, assim o cinema rompe com os modelos modernos de representação, com os
antigos ideais de verdade e com os determinismos da indústria cultural. É preciso
pensar o cinema contemporâneo numa única operação que relacione a estética, a
linguagem e a cultura, eixos definidos hoje pelo lugar que a reflexão sobre a
imagem cinematográfica tem na sociedade e na cultura a partir das suas formas.
Na nossa perspectiva, trata-se de analisar a mistura e a hibridação de uma estética
transcendental que pode ser entendida desde a partir de um “naturalismo”, capaz
de extrair imagens verdadeiras da “farsa” do mundo real, até a partir de um
“expressionismo” que, da submissão ao artifício das tecnologias pós-modernas,
extrai realidade e verdade. Assim, a luz, que para alguns parece ter apenas uma
função técnica (ou física) de revelação dos objetos e pessoas incluídos no quadro,
no cinema contemporâneo é posta a serviço da representação, tornando-se o
elemento de linguagem e oferecendo ao artista novas possibilidades de escolha.
155
Parente, André. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro, Pazulin, 1999, p. 24.
208
- Definida desse modo, afirmamos que a luz gerada pela natureza ou pelo
artifício, e percebida pelos sujeitos, transforma-se numa arte quando um artista a
plasma na imagem cinematográfica e tenta permanentemente representá-la da
melhor e mais bela maneira. Demonstramos que existem duas formas básicas na
estética da foto-grafia da imagem para realizar esta representação:
- Natural: que vem do naturalismo, aquela forma que tenta representar a
natureza “de fora” e
- Artificial: que vem do expressionismo, aquela que transmite a natureza “de
dentro”.
Essas duas formas são separadas porém complementares, a relação entre ambas
existe como bios e na arte uma das tendências sempre será mais marcada do que a
outra, ainda que dependa do estilo do artista e da própria obra de arte a forma
natural ou artificial de se expressar. Ambos estilos vêem representada essa relação
de síntese na nova era do digital, surpreendendo-nos permanentemente pela
felicidade em que convivem. No cinema contemporâneo a natureza e o artifício se
fundem como uma amalgama e respeitando as suas diferencias, nos representam
uma real-maravilhosa atmosfera virtual. A luz no cinema é análoga à vida, ela se
transforma, se hibridiza, se altera, se mistura, tem um começo e goza de um final.
Nossa pesquisa, justamente, procurou fazer uma análise dessa arte da luz realizada
pelos diretores de fotografia, determinando as relações e mudanças que se
209
estabelecem entre as tradicionais formas estéticas de representação da luz e as
atuais formas de percepção da imagem.
- A imagem contemporânea não depende mais dos cânones da
reprodutibilidade analógica que tentava reproduzir a realidade com a mesma
quantidade de informação que tinha o referente produzido. Hoje é possível acessar
a imagem de maneira informática e construir, reconstruir, desintegrar e devolver,
repartir, alterar, compor e decompor a luz, as cores e as sombras através de zeros e
uns, criando o realismo mais maravilhoso ou a abstração quase absoluta. A
computação gráfica tem oscilado, em sua breve história, entre duas alternativas distintas:
ou ela é solicitada para simular o mundo “natural” (que inclui também o mundo
“artificial” criado pelo homem), ou então para simular a própria imagem.
156
- Para falar da natureza e do artifício através da arte, procuramos nas suas
origens e achamos duas tendências artísticas que traduziam estes conceitos: o
naturalismo e o expressionismo. O naturalismo constitui de fato um tipo de imitação,
na qual a analogia artificial representa uma relação virtual de luz, escuridão e cor
determinada pela ótica e pela geometria da nossa visão. Assim, o naturalismo
deriva de impressões particulares, eticamente aceitas pelo juízo do sentido comum,
156
Machado, Arlindo. Maquina e Imaginário. São Paulo, EDUSP, 1993, p. 59.
210
sendo este o meio decisivo pelo qual se efetua esta transformação, visível apenas
como contraste do claro-obscuro. A linguagem da ótica que versa sobre a relação
visão / objeto fica formulada em termos de luz. O naturalismo, com a invenção da
perspectiva, converte o ponto de vista do espectador em parte integral da estrutura
básica da percepção. O expressionismo, ao contrário, define-se como um estilo que
procura a expressão dos sentimentos e as emoções por cima da representação da
realidade objetiva, para o que se vale da deformação das coisas, porém, o conceito
não apenas significa expressão, mas “expressão retorcida e dramática”. No plano
ideológico e cultural destaca-se a incidência do expressionismo na filosofia
fenomenológica de Husserl e na filosofia da negação de Nietzsche. Em síntese, se
para o artista naturalista a realidade segue sendo algo que tem que ser olhado a
partir do exterior, para o expressionista, ao contrário, será algo em que haveria que
se meter, algo que se tenha que viver a partir do interior. Eis a diferencia
substancial entre ambos conceitos.
- A fim de entender a luz nas suas duas formas (natureza e artifício),
analisamos aqui o trabalho de dois artistas cinematográficos de nível mundial que
se converteram no melhor exemplo para explicar as hipóteses desta pesquisa:
Néstor Almendros e Vittorio Storaro. Com eles conseguimos demonstrar que ao
longo da história do cinema os estilos de iluminação tem variado em função de
211
determinadas estéticas e gêneros específicos. O princípio de que a luz deve estar
justificada pelos elementos da decoração, pelo espaço e tempo da ação dramática, é
hoje relativo e só se justifica dentro de determinados estilos. Hoje é muito mais
importante que a iluminação seja coerente ao longo do filme e que a criatividade se
aplique a cada plano. Entendemos que o diretor de fotografia é aquele capaz de
criar um clima e transmitir uma mensagem através do cromatismo e da luz, o mais
importante para o fotógrafo seria então transformar o texto em emoção, com a
iluminação e a câmera, através duma atmosfera. A luz não existe somente para se
ver, a luz é parte das pessoas. É por isso que neste novo milênio o convívio da
natureza com o artifício da luz, na nova imagem contemporânea vem se
convertendo possivelmente na forma de expressão mais transparente da
linguagem humana. A luz é um ser, que por sua vez é uma linguagem, que se
comunica através da sua representação em imagens e que faz isso da melhor e
mais bela maneira na arte. Pela nossa formação comunicológica, o referente de
análise da luz na imagem contemporânea não poderia ser qualquer arte, por isso o
cinema foi o escolhido, por se tratar de uma arte que é ao mesmo tempo um meio
de comunicação. Para a análise da mostra escolhemos um filme e o trabalho de
dois artistas fotógrafos (os melhores representantes de cada estilo), consideramos
que a melhor foto-grafia na arte do cinema é aquela capaz de criar e transmitir uma
atmosfera, comunicando através da luz e definimos uma metodologia de análise da
212
luz na arte da cinematografia que procurou estabelecer, a partir da observação
fenomenológica, certos padrões e constantes no tratamento e estilo que ambos os
fotógrafos, Almendros e Storaro, têm no momento de realizar a sua arte, que
também é uma técnica.
- Deixando em claro a postura fenomenológica desta pesquisa, tentamos
entender o método fenomenológico como um estilo que começou por ser uma
meditação acerca do conhecimento, para se converter no conhecimento do
conhecimento. A fenomenologia se entende aqui como “uma meditação lógica que
visa ultrapassar as próprias incertezas da lógica
157
, trata-se de estudar aos fenômenos
que nos são dados e descrevê-los apenas tal como se nos apresentam. Procura-se
pela verdade, entendendo este conceito como movimento, gênese, renovação,
aletheia. A fenomenologia não procura a definição absoluta posto que contrariaria a
sua própria ética de liberdade, é por isso que ela não tem intenções materialistas
nem dialéticas, não é subjetiva nem objetiva, ela pode ser as duas no mesmo
tempo. A fenomenologia tenta não substituir as ciências do homem, mas afinar a
sua problemática selecionando os seus resultados e reorientando a pesquisa. Nesta
em particular, interpretamos a luz como fenômeno, postulamos a ela como
principio e começo radical e finalmente fundamentamos a nossa fé no método dum
157
Lyotard, Jean François. A fenomenologia. Lisboa, 70, 1986. Pag 10.
213
sistema de pensamento (“conjunto de regras, ou valores, que decidem do que pode e do
que não pode ser, dizer, fazer, pensar”
158
) de validade comum.
- Na nossa análise, Néstor Almendros (Espanha) representa o estilo da
natureza, posto que toma como referência a luz “naturalista”, procura acomodar-se
às fontes dessa luz natural e respeita as relações entre as diferentes fontes. De outra
maneira, Vittorio Storaro (Itália) é um paradigma do estilo do artifício, na medida
em que assume uma sensibilidade “expressionista”, despreocupando-se de toda
referência à luz natural e construindo um esquema próprio de luz, particular,
fabricado, arbitrário.
- A modo de conclusão, tivemos a intenção de projetar no presente futuro a
relação entre estes estilos. No cinema, as novas tecnologias digitais afetaram
também a materialidade da imagem e a organização do trabalho da rea lização. A
luz natural da imagem vai se hibridizando com a luz artificial feita no computador.
Da mesma maneira, os estilos cinematográficos de foto-grafia evoluem com a
possibilidade das novas formas de linguagem que permitem às imagens digitais
ser as representantes atuais de um mundo virtual. Tanto no domínio da tecnologia
quanto no da arte, o virtual é um conceito que admite definições contraditórias e
158
D`Amaral, Márcio. “Filosofia, História, Religião: para um novo olhar sobre a verdade”. Em:
Tempo Brasileiro 151. Rio de Janeiro, 2002, p.82
214
antagônicas, ele não remete a um ‘para além do real’, mas a uma vontade (ou não)
de constituição de um real que responde ao possível, enquanto o atual responde ao
virtual. Entendamos o virtual como uma função da imaginação criadora, fruto de
agenciamentos variados entre a arte, a tecnologia e a ciência, capaz de criar
condições atuais de modelagem do sujeito e do mundo. “O virtual não se opõe ao
real, mas sim aos ideais de verdade que são a mais pura ficção.
159
O virtual possui uma
plena realidade, enquanto virtual.
160
- O mundo virtual é um novo ponto de vista criado pela dialética humana,
que abre, sempre de uma forma diferente, um segundo mundo “que nasce e renasce
sem cessar, sempre no estado nascente (e sempre como um outro, ainda um outro mundo)
de um processo inumerável de desdobramento, de remissão e de correspondência
161
. A
realidade virtual, produzida pela computação gráfica tem apresentado para o
cinema uma quarta dimensão. “O sistema numérico binário significa uma mudança
radical nas formas de representação, a imagem não é mais só o visto, mas também o
construído. A imagem numérica é a nova episteme contemporânea.
162
Onde a luz da
natureza é o puro referente. Como ocorre na própria natureza na imagem digital, a
cor se subordina à fonte luminosa: sem luz não há cor e sem cor não podemos
159
Parente, André. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro, Pazulin, 1999, p. 14.
160
Deleuze, Gilles. Em: "Différence et répétition". Citado por Lévy, Pierre. O que é o virtual. São
Paulo, Ed. 34, 1996, p. 11.
161
Lévy, Pierre. O que é o virtual. São Paulo, Ed. 34, 1996, p. 94.
162
Gutiérrez, Mario. Proyectos experimentales en TV y video. Lima, Universidad de Lima, 2002, p.
17.
215
definir visualmente uma forma. O grau de complexidade presente na qualidade do
detalhe numa cena infográfica composta principalmente por formas
tridimensionais vem marcando, em parte pelo tratamento cromático, que se
procure pelas superfícies que conformam cada um dos modelos da composição em
relação com as fontes de luz projetadas sobre as mesmas. No momento atual, o mais
completo e poderoso modelo de iluminação conhecido chama-se traçado de raios (ray
tracing).
163
Este argumento aplicado à iluminação de superfícies para gerar
imagens sintéticas é utilizado nos diferentes métodos de sombreado poligonal. “A
criação de imagens no computador é talvez o primeiro sistema expressivo de natureza
“visual” a prescindir inteiramente da luz, pois os objetos são nela enunciados através de
equações matemáticas ou conjuntos de matrizes. Isso quer dizer que para obter um efeito
visual semelhante àquele que a luz forja nos objetos do mundo físico, a iluminação precisa
também ser simulada.
164
- O digital é uma realidade puramente conceitual que faz com que a imagem,
através da luz, caminhe em direção à síntese. Com a realidade virtual, feita por
algoritmos, aparece uma ponte que nos permite cruzar um mundo cheio de novas
possibilidades da imagem, onde não se tem que passar necessariamente pelo
processo de captação da realidade analogicamente, fotograficamente, “realmente”.
163
Machado, Arlindo. Máquina e Imaginário. São Paulo, EDUSP, 1996, p.79.
164
Idem, p. 74.
216
Agora nós podemos fazê-lo de maneira virtual, misturando e compondo elementos
que podem passar da idéia e do sentimento à realização sem ter que se deter no
talvez. A explosão social das novas tecnologias da imagem tem feito com que
muitos analistas afirmassem que o cinema está morto, aniquilado pela expansão da
imagem eletrônica. É possível que o cinema já não seja o que foi. Mas ele vive, ele
se transforma, se hibridiza, se acelera, se fragmenta, muda, se multiplica, se recicla,
se desintegra e se sintetiza. O cinema torna-se pós-moderno. Por outro lado, a
influência do discurso televisivo no cinema atual é um fato; os telefilmes criaram e
difundiram um “verdadeiro esperanto audiovisual transnacional” (Roman Gubern). A
narração fragmentária dos videoclipes, assim como tratamentos baseados nessa
narração, presentes em espaços promocionais e em musicais, levaram-nos, ao
longo dos últimos 20 anos, a um novo barroquismo no cinema que se caracteriza
pela montagem que fragmenta a ação em numerosos planos de curta duração, pelo
predomínio do movimento (tanto dentro do plano como da câmera), pela
composição de quadros rebuscados e desequilibrados. Também pelas distorções
geradas pelas angulações e os objetivos de focal curta, pela amálgama de imagens
de tratamento fotográfico diverso (filtros, qualidades e cromatismos), pela luz
artificial representando efeitos especiais e personagens virtuais e inclusive pela
trilha sonora que se afasta do realismo e propicia a espetacularidade.
217
- O tempo e o espaço são os operadores que põem em crise a verdade e o
mundo, a significação e a comunicação, já que o tempo e o espaço da verdade foi
substituído pela verdade do tempo e do espaço entendidos como produção de
simulacros, ou seja, do virtual como processo. Trata-se de um curto-circuito que
rompe com a imagem enquanto sistema de representação de verdades
preestabelecidas. “As imagens se tornam auto-referentes, de forma que a verdade será
fruto de uma fabulação criadora
165
, aquela que mostra e ao mesmo tempo oculta.
Hoje, o homem e a mulher re-nascem mais uma vez procurando a “objetividade”
das suas idéias, materializando os seus conceitos com uma ilusão que para eles tem
tudo de real. A imagem contemporânea, síntese de natureza e artifício, força o
criador a trabalhar fenomenologicamente, sem diferença nenhuma entre a imagem
técnica e artesanal, objetiva e subjetiva, interna e externa. Ela é agora um híbrido
de alternativas. Uma hibridação que implica talvez uma atual maneira de pensar e
praticar a arte da imagem em movimento. Trata-se de uma síntese na produção, de
uma integração da percepção que anula as diferenças e produz uma engrenagem
entre o digital e o foto-químico, entre a matéria e a ilusão, entre o aristotélico e o
platônico.
165
Ibid.
218
- Seja com o for, nada ainda é definitivo sobre este tema e tudo é lentamente
refletido. O digital é agora. Ato e potência. E a sua potência de ser e/ou de não ser
depende dos cidadãos planetários, interconectados e fragmentados, originais e
clonados... Daí o que pode acontecer? Como pode acontecer? O futuro do mundo
está incerto, a responsabilidade é muita e a sabedoria, talvez não tanto. Mas a
nossa postura fenomenológica para a realização desta pesquisa é aquela da fé, não
da fé na moral que clama pela obediência, mas da fé na ética que clama pela
liberdade
166
. Posto que estar na fé inclui estar na verdade, e numa verdade
originária. O mundo brilha numa outra luz
167
. Apelamos, assim, à fé perceptiva que em
comunhão com o real representa os indivíduos, as coisas e os fenômenos. À
poética que, graças a uma estética transcendental, faz que suspendamos no ar a
nossa capacidade de questionar a virtualidade ou atualidade do que julgamos
como a arte. À fé cultural por parte do espectador que abre o caminho a uma nova
forma de entender a verdade. E, finalmente, à fé no espírito que é sensível e sente, e
que intuitivamente fundamenta a luz como ente, como bios e como sistema de
pensamento. Posto que “todo sistema de pensamento está, na verdade, baseado em um
conjunto de verdades, no qual se crê
168
acreditamos que a luz é uma partícula de
energia, a forma da matéria que é matéria (por ser partícula) e que aliás é a “forma
das formas”, aquela que se postula como particular e universal no mesmo tempo. É
166
Termos de Pierre Lévy em O Fogo Liberador. São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 146.
167
Carneiro Leão, Emmanuel. Aprendendo a Pensar. Petrópolis, Vozes, 2000, vol. II, p. 17.
168
D´Amaral, Márcio. Entrevista publicada no Jornal do Brasil no dia 26-06-02.
219
a luz o princípio real e não hipotético que fundamenta esta análise filosófica-
metafísica-comunicacional realizado com o fim de entender alguns dos fenômenos
que dela provém.
- Finalmente, se “a luz é tudo o que aparece e tudo o que aparece é luz
169
, torna-se
impensável uma época de florescimento cultural como a que vivemos sem uma
reflexão correspondente sobre o progresso das suas condições técnicas e
expressivas, assim como, também, torna-se inconcebível uma época de avanços
tecnológicos sem conseqüências no plano humano-cultural. Somente uma
verdadeira atitude criadora pode dar forma sensível àquelas mudanças de luz que
a sociedade pós-industrial tem produzido. Uma atitude que torna explícitas as
novas relações geradas pelas novas técnicas da imagem, questionando ao mesmo
tempo uma sociedade sobre-excitada pelo advento da tecno-logia. “O advento da
Tecno-logia pode ter abolido o Fora (...) Num mundo que vigora maximamente na sua
própria e exclusiva imanência eficaz, o Fora aponta para uma dimensão tornada obsoleta: a
transcendência. Manter a verdade em vista pode ser, então, uma recuperação do ponto de
vista da transcendência.
170
Somente esse ponto de vista pode garantir a recuperação
de toda essa energia própria da era pós-moderna, que corre o risco de se diluir no
marasmo do incessante trafico cotidiano de imagens, narrações e informação. A
169
Lévy, Pierre. O Fogo Liberador. São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 214.
170
D`Amaral, Márcio. “Filosofia, História, Religião: para um novo olhar sobre a verdade”. Em:
Tempo Brasileiro 151. Rio de Janeiro, 2002, p. 77.
220
única coisa que importa é que por trás da imagem artístico-cinematográfica
contemporânea esteja sempre o olho livre de preconceitos e um artista, com a
capacidade para jogar nessas imagens todo o peso singular do próprio universo
irrepetível. Em compensação, é importante que no complexo dos fenômenos da luz
se introduza uma ação consciente, um estar presente, posto que o valor supremo
de uma qualidade ou de uma emoção não é só a sua natureza intrínseca, mas o que
fazemos dela. Hoje, quando temos a consciência cada vez mais ampla do lugar
ocupado pela luz, que como imagem na nossa vida exerce sobre nós uma influência
cada vez mais forte, é necessário estender ao máximo esta ação cultural para que a
luz como linguagem não se torne um instrumento de pressão psicológica ou de
opressão social a serviço de poucos, mas para que ela, pelo contrário, se torne um
instrumento de civilização a serviço de toda a humanidade. Os seres sensíveis
somos feitos de luz, cada um de nós é um raio da mesma luz. “Tocamos todos o seu
centro. Somos o centro... Todos os recônditos do mundo, interior ou exterior, quaisquer que
sejam sua forma, sua cor e sua textura, são feitos do mesmo tecido luminoso...
171
A
felicidade é sentir o prazer da existência da luz, aqui e agora, portanto todos temos
a potência de ser felizes. “Se há algum dom que os deuses concedem ao homem [e à
mulher] é provável que a felicidade seja o dom divino, posto que é o mais elevado entre todos
171
Lévy, Pierre. O Fogo Liberador. São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 216 - 219.
221
os bens humanos.
172
E mesmo sem o artifício dos deuses, será a ética, a virtude
perfeita, o veiculo para a felicidade. A potencia de partilharmos todos igualmente
desta felicidade sem duvida é. Mas a miséria e a pena jogadas pelo mundo todo
nos lembram continuamente da imanência do ser, então como alcançar a
felicidade?, o que é a felicidade?. A resposta a estas questões, não serão
encontradas aqui, mas já a própria ética nos demonstra a sua potencia de ser (da
felicidade). Essa potencia de ser, da qual o Nietzsche falava, que se percebe no
virtual, converte-se na nossa esperança. E neste tempo de inúmeros espaços,
fenomenologicamente a esperança venceu o medo
173
, porém se faz possível
acreditar que a vida tem ainda a potencia de ser boa e bela e que talvez dependa da
quantidade e qualidade de luz, da coragem e da fé de cada quem.
172
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Barcelona, Océano, 2001, p. 41.
173
Lula da Silva, Luis Inácio. Presidente do Brasil. Discurso de posse. Brasília, 01 Janeiro de 2003.
222
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