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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
CONSUMO E PRODUÇÃO DE SENTIDO EM
COMUNIDADE RIBEIRINHA DO INTERIOR DO AMAPÁ
Por
MARCIA ANDRÉIA DA SILVA ALMEIDA
Rio de Janeiro
Fevereiro/2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
CONSUMO E PRODUÇÃO DE SENTIDO EM COMUNIDADE
RIBEIRINHA DO INTERIOR DO AMAPÁ
Márcia Andréia da Silva Almeida
Orientador: Profº Dr. Milton José Pinto
Co-orientadora: Profª Drª Janice Caiafa
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Cultura da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre
em Comunicação e Cultura
Rio de Janeiro, 23 de Fevereiro de 2005
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“Na minha comunidade, a televisão representa a
sobrevivência das pessoas (...) quem não tem, vai
para casa do vizinho ver o que se passa no mundo.”
Suely Mendes, 12 anos,
estudante da Escola Bosque
- Vila Progresso, Arquipélago
do Bailique - AP.
Aos descendentes
da Tribo dos Tucujus,
índios que povoaram
as terras onde nasci.
A Deus, pela paz e inspiração com que construi este trabalho.
A Paulo Coelho, com quem partilhei o sonho de ser Mestre, pelo apoio e dedica
ção
a mim, nessa trajetória.
À dedicada professora da Escola Bosque, Terezinha de Jesus da Silva Almeida,
minha mãe, pelo apoio na pesquisa de campo.
Aos demais membros de minha família, pai, irmão e irmãs, pela presença
constante.
À comunidade da Vila Progresso, pelo carinho e hospitalidade com que me
recebeu.
Ao meu orientador, professor Milton Jos
é Pinto, que mesmo sem conhecer a
Amazônia, acreditou e validou meu projeto de pesquisa.
À professora Janice Caiafa, co-orientadora desta pesquisa, que me despertou para a
responsabilidade do trabalho etnográfico.
A Paulo Coscarelli, pela amizade fraterna, apoio e incentivo aos estudos, de todos
os dia
s.
À professora Regina Lúcia Nascimento, que ainda na Faculdade de Letras, fez
nascer em mim o gosto pela pesquisa.
Aos professores da Faculdade de Comunicação da Universidade Estácio de Sá, em
especial à professora Beatriz, pelo incentivo aos alunos que desejam ir além da
graduação.
À Secretaria da Pós-Graduação da ECO, em especial a Valéria, pela presença
carinhosa e constante nas relações com a Escola.
Ao governo do meu país, pelo significativo apoio financeiro investido neste
trabalho, através da CAPES.
E à cidade do Rio de Janeiro; com suas livrarias, cinemas, escolas e eventos
culturais, que tanto contribuíram para o meu amadurecimento intelectual.
Agradecimentos
Esta dissertação trata dos sentidos produzidos, a partir do consumo dos conteúdos
transmitidos pela mídia televisiva, por membros de uma comunidade ribeirinha do
interior da Amazônia, mais especificamente do interior do Amapá.
Para chegar a esses sentidos, buscou-se desenvolver uma pr
ática de pesquisa
aliando as perspectivas metodológicas da etnografia, na construção de um mapa
do consumo televisivo local, à análise discursiva de tradição francesa, na busca do
discurso dos ribeirinhos sobre a televisão e suas implicações ideológicas. Para isso,
avaliou-se a produção discursiva de jovens estudantes de uma escola pública da
comunidade ribeira de Vila Progresso, Arquipelágo do Bailique – Macapá (AP), bem
como os sentidos produzidos a partir do consumo dos conteúdos transmitidos pela
televisão.
Com efeito, as relações entre consumo, mídia, discurso e produção de sentido
são articuladas por meio de construções simbólicas que atribuem à televisão o
significado de veículo de pertencimento. Acessá-la representa existir no espaço de
extensão planetária elaborado por ela.
Palavras-chaves: televis
ão, consumo, discurso, produção de sentido, Amazônia.
Resumo
Resumé
Cette dissertation traite des sens produits à partir de la consommation des contenus
transmis par le m
édia télévisuel dans une communauté riveraine de l`intérieur de
l`Amazonie, plus spécifiquement de la province d`Amapá (état du Brésil).
Pour arriver
à ces sens, on a cherché à développer une pratique de recherche en
alliant les perspectives m
éthodologiques de l`ethnographie, dans la construction
d`un plan de consommation t
élévisuel local, à l`analyse discursive de tradition
française, à la recherche du discours des riverains sur la télévision et ses implications
idéologiques. Pour cela, on évalue la production discursive de jeunes étudiants d`une
école publique de la communauté locale de Vila Progresso, Archipel du Bailique,
Macapá (AP), ainsi que les sens produits à partir de la consommation des contenus
transmis par la t
élévision. En effet, les relations entre consommation, média, discours,
et production de sens sont articul
ées au moyen de constructions symboliques qui
attribuent à la télévision la signification de véhicule d`appartenance. Y accéder
represente l`existence dans l`espace d`extension planétaire créé par elle-même.
Mots-clés: télévision, consommation, discours, production de sens, Amazonie.
Sumário
I - Introdução ....................................................................................................... 13
II - Aspectos históricos e teóricos ......................................................................... 20
II.1 O meio TV ...................................................................................................... 20
II.1.1 Origem ............................................................................................. 20
II.1.2 Panorama nacional ........................................................................... 22
II.2 Receptor: um conceito em construção ........................................................... 27
II.2.1 Indivíduos isolados e essencialmente iguais ..................................... 27
II.2.2 A massa manipulada por efeitos pr
é-determinados ......................... 29
II.2.3 Mensagens adequadas a fatores pessoais ........................................ 30
II.2.4 O contexto social no processo comunicativo .................................... 31
II.2.5 A m
ídia como satisfação dos indivíduos ........................................... 32
II.2.6 A perda do sujeito comunicativo ...................................................... 34
II.2.7 O pensamento p
ós-moderno ............................................................37
II.2.8 Dos meios
às mediações ................................................................... 38
II.2.9 De destinat
ário a co-produtor de sentidos ....................................... 41
II.3 Percepção e contratos de comunicação ......................................................... 44
III - Pesquisa de Campo ........................................................................................ 4
9
III.1 Contexto ....................................................................................................... 49
III.1.1 As novas configurações do local ..................................................... 49
III.1.2 A regi
ão amazônica ......................................................................... 51
III.1.3 Um lugar na maior floresta do mundo ............................................ 54
III.1.4 O cotidiano na Progresso ................................................................ 56
III.1.5 O progresso limitado da vila ............................................................ 57
III.2 Análise Etnográfica: O consumo de mídia televisiva
e a produção de sentidos ......................................................................................60
III.2.1 A dialética do consumo: sujeitos e objetos ........................................60
III.2.2 O significado das coisas .....................................................................64
III.2.3 Preliminares sobre moda ...................................................................66
III.2.3.1 Moda: um valor para a juventude ribeira .............................69
III.2.3.2 O mercado de consumo local ...............................................70
III.2.3.3 A bela vendedora de chop ...................................................73
III.2.3.4 O consumo da moda via sat
élite ..........................................76
III.2.4 A telenovela e a vida cotidiana ..........................................................81
III.2.4.1 Kubanacã: o movimento que
faltava à juventude do lugar .............................................................
83
III.2.4.2 Malhação: novos valores em
conflito
com as tradições locais ........................................................89
III.2.5 A comunicação comunitária estabelecendo vínculos .........................96
III.2.5.1 A estrutura radiofônica da RCA ...........................................100
III.2.5.2 O consumo de m
ídia como estratégia de pertencimento ....103
III.3 Análise Discursiva: A televisão no discurso dos caboclos ribeiros ...................106
III.3.1 Aspectos teóricos e metodológicos ..................................................106
III.3.2 An
álises textuais ...............................................................................108
III.3.2.1 Dimensão do texto ..............................................................108
a) Modalidade ..................................................................................108
b) Transitividade e nominaliza
ção ....................................................113
c) Met
áfora ......................................................................................119
III.3.2.2 Dimensão da práticas discursivas ........................................128
a) Interdiscursividade .......................................................................128
b) Intertextualidade manifesta .........................................................1
33
III.3.2.3 Dimensão das práticas sociais .............................................139
IV - Algumas considerações e desafios ..................................................................146
V - Bibliografia ......................................................................................................151
VI - Anexos ............................................................................................................155
A morada típica dos cablocos ribeiros do interior da Amazônia.
I - Introdução
13
E
u ainda morava na Amazônia quando vim ao Rio Janeiro pela primeira vez.
Que o Rio
é uma cidade que impressiona, isso não é novidade para ninguém,
mas a mim impressionou de uma forma diferente.
Nasci e vivi em Macapá, no Estado do Amapá, por quase toda a minha vida. Estudei
em escolas p
úblicas e minhas ambições não passavam de fazer faculdade e constituir
família. O que aliás era um pensamento comum para as meninas da minha idade,
afinal, o que mais poderia desejar algu
ém que nasce tão longe do centro onde todas
as coisas acontecem?
Rio de Janeiro e S
ão Paulo, esse é o centro. Qualquer coisa diferente se passava
por l
á. E como eu sabia disso? Pela janela do mundo que ocupava lugar de destaque
na minha sala: a televisão.
Ainda me lembro a primeira vez que a vi. Foi na casa de uma vizinha. N
ós não podí-
amos comprar um aparelho daqueles e uma generosa amiga de minha m
ãe permitia
que nos esprem
êssemos em sua sala, a fim de assistir os desenhos animados e as
novelas, que eu nem me esfor
çava para entender, tão concentrada que estava em
observar aquele mundo tão diferente do meu.
Depois de um tempo, meu pai conseguiu comprar um daqueles aparelhos enormes,
cujo sinal era p
éssimo. Às vezes, subíamos no telhado para mexer na antena capta-
dora, a fim de melhorar a imagem. Um dia, minha irm
ã varou o telhado, e não
morreu, porque caiu em cima de uma pilha pneus, amontoados na garagem.
Mas nem mesmo esse epis
ódio marcante nos impediria de subir outras dezenas de
vezes naquele telhado, pois tamanho era o desejo de ver
“nitidamente” aquele mun-
do tão perfeito, cheio de gente e lugares bonitos, onde todos os finais eram felizes.
Rapidamente o aparelho de televisão se banalizou deixando ser exclusividade de
poucos para se tornar mania nacional, e para n
ós, moradores do pedaço menos po-
voado do Brasil, a Amazônia, era sinônimo de existir.
A essa altura, eu havia acompanhado a exibição de v
árias novelas, todos os musicais
do Chacrinha e iniciava um m
ágico percurso pelo Xou da Xuxa. É! eu fui baixinha.
Mas voltando a minha primeira visita ao Rio de janeiro..... senti como se todos os
elementos do meu imagin
ário televisivo (lugares, sons e até pessoas), construído ao
Introdução
14
longo de muitas horas em frente à TV, se materializasse diante de mim.
Era impressionante passar pelos lugares e sentir que havia estado ali. E o melhor:
que não fora numa outra vida.
Cores, ruas, praças, morros, tudo me era familiar, até os artistas, que alias odeiam
ser percebidos.
Aos poucos, fui percebendo que o mundo de e o de o eram tão diferentes
quanto eu pensava e que o Rio de Janeiro n
ão passava de um cenário perfeito, explo-
rado exaustivamente pela m
ídia.
Um lugar, onde gente comum vivia como gente comum: estudava, trabalhava e anda-
va na rua sem maquiagem. Isso sem falar (e falando) nos traseiros sorridentes (de
celulite) que desfilavam pelas belas praias cariocas. Eles existiam! E eu que passei anos
acreditando que eles (os traseiros sorridentes) eram uma franqueza restrita aos mor-
tais amaz
ônicos que apreciavam tudo a distância.
E ao descobrir que o Rio Janeiro era habitado por mortais, nasceu em mim um desejo
enorme de entender o que se passava no imagin
ário social de gente como eu: que vivi
no extremo Norte Brasil vendo o mundo pela televis
ão feito torcedor fanático assistin-
do uma partida de futebol: torcendo, amando, sofrendo e vencendo (ou perdendo),
mas sabendo que jamais será uma estrela do tim
e.
Em que esse torcedor se realiza? Em que esse telespectador se realiza?
Consumo e produ
ção de sentido em comunidade ribeirinha do interior do Amapá é
um trabalho que surge da imensa vontade de conhecer melhor o meu povo e suas
relações com a mídia televisiva, considerando suas características geográficas, eco-
nômicas, sociais e culturais.
Quando participei da sele
ção para admissão no Mestrado da Escola de Comunicação
da UFRJ, um dos examinadores me perguntou qual seria a maior contribui
ção do meu
projeto para os estudos em comunicação, e eu, sem titubear, respondi: o lugar.
A Amaz
ônia é muito referenciada nos estudos antropológicos e culturais quando se
trata do índio, poucos são os estudos que abordam o cabloco ribeirinho.
Apesar de todo o aparato tecnológico disponível, a Amazônia ainda é um grande
mistério para muitos brasileiros, mistério este, que se estende a sua gente. E no elo
perdido entre o significante (o lugar) e o significado (valores, cotidiano, aspira
ções),
o imagin
ário social se manifesta (Castoriadis,1982) e infesta a mente de brasileiros
do Sul, do Leste e do Oeste, que reduzem o Norte ao índio, às matas e ao mistério.
Introdução
15
Mas quem são os ribeirinhos? Como vivem? O que pensam sobre a televisão? O que
vêem na televisão? Como consomem a televisão?
É dessa gente que falo. Não tratarei aqui dos caboclos urbanos, dos quais aliás faço
parte. Meu olhar
é direcionado ao típico morador da floresta, aquele que vive às
margens dos rios e que de lá, acreditem, vê tudo o que se passa por aqui.
Quando comecei esta pesquisa compreendi com exatidão o estranhamento de que
falava Elisangela Carlosso em sua Tese de Doutorado Identidades Negociadas: o r
ádio
e a constru
ção simbólica da Quarta Colonia/RS: “O lugar de fala é um cômodo dispo-
sitivo criado para resguardar o autor. Quando ele se torna o sujeito da enuncia
ção,
corre o risco de se perder pelos caminhos que sempre apontam algo de diferente”
1
,
dessa forma, a pesquisadora se refere aos deslizes pronominais que por ventura se
apresentem no seu trabalho, alegando a impossibilidade de se viver no singular, na
pluralidade ou na impessoalidade, se não for ao mesmo tempo, o que se agrava
quando o pesquisador é parte do universo pesquisado.
Foi dif
ícil me acomodar no lugar de pesquisador participante, sendo, assim como
Carlosso, um membro da comunidade pesquisada.
Nos momentos em que precisei me tornar sujeito da enuncia
ção, agindo com meus
interlocutores, n
ão pude deixar de perceber fragmentos meus no discurso deles. Foi
quando percebi que o que separava caboclos urbanos e ribeiros era apenas um pou
-
co mais de conforto: asfalto, energia el
étrica 24 horas e instituições públicas mais
presentes. Fora isso, eu era um deles.
Essa constata
ção aumentou minha responsabilidade de pesquisadora, confesso que
fiz um enorme esforço para me distanciar e manter firme o olhar etnográfico.
Fui a campo com pressupostos bem definidos, o que facilitou em muito a coleta de
dados para compor o corpo da pesquisa.
A seguir, um breve relato de como cheguei a eles.
O primeiro pressuposto te
órico de que faço uso batia-me à porta incessantemente,
mas por v
árias vezes fingi não ouvir, na tentativa de ocultar o óbvio: a inegável pre-
sença estruturante da mídia televisiva nas sociedades contemporâneas.
Após muitas leituras, o que inclui, obviamente, os apocalípticos e conselhos dos mais
experientes estudiosos culturais, cedi e fiz a op
ção de curvar-me à capacidade midi-
ática de influenciar e estruturar a vida em sociedade. O que acabei fazendo sem
1
MORTARI, E.C.M., 2004, p.11
Introdução
16
muitos remorsos, por entender que não subestimar o inimigo era um bom começo.
Assim, meu primeiro pressuposto se definia: a m
ídia televisiva é onipresente (e às
vezes até onisciente).
Diante de tão poderoso adversário, me restava buscar um sujeito à altura para
dialogar (ou lutar) com ele.
Assim, chegava ao meu segundo pressuposto mantido, com fé quase inabalável, at
é
o final do trabalho: a capacidade dos indiv
íduos de dialogar com a mídia, reelebo-
rando seus conteúdos e negociando sentidos (CERTEAU,1994).
Havia um diálogo possível. Acreditei.
Mas antes de chegar a ele, confesso que minha experi
ência de telespectadora me
traiu em cada uma das vezes que busquei, no ba
ú de minhas lembranças, quantas
vezes havia dialogado com o Chacrinha e, não conseguia lembrar.
Quando elaborei a primeira versão do projeto desta pesquisa, minhas hipóteses eram
as mais pessimistas possíveis.
Pressupunha, talvez por n
ão conseguir me lembrar se havia dialogado, ou não, com o
Chacrinha, que a televis
ão avançava sobre os ribeirinhos de forma avassaladora e irrever-
vel. E o havia sentido fazer uma investigão desse porte para constatar o óbvio.
Mas com o avan
ço nas pesquisas bibliográficas que fazia comecei a identificar em
mim as estrat
égias de diálogo e resistência que, a partir dos meus dispositivos cul-
turais, colocava em a
ção no ato do consumo daqueles programas, o que fazia sem
perceber.
E foi dessa forma que consegui não me convencer de que existia um diálogo possí-
vel, que se dava de uma forma silenciosa no interior da relação de consumo dos pro
-
dutos televisivos, como chegar ao meu terceiro pressuposto: a cultura é um poderoso
filtro do que a m
ídia nos transmiti.
Nossos dispositivos culturais entram em opera
ção a todo instante e são responsáveis
por aquela sensa
ção de bem - (ou mal) estar que sentimos diante do que consumi-
mos. S
ão eles que nos fazem aceitar ou recusar o que vemos e ouvimos, e para isso
não são necessários anos de escola, embora isso ajude muito. A competência cultural
se forma no cotidiano, indo além do ensino formal (BARBERO, 2001).
Esses pressupostos foram levados a campo como orientadores do processo de coleta
e an
álise do corpus da pesquisa. Para esses fins, foram utilizadas as perspectivas me-
todológicas da etnográfica e da análise discursiva de tradição francesa.
Introdução
17
A proposta metodológica de associar o olhar etnográfico à análise discursiva possibi-
litou observar e vivenciar o discurso como pr
ática social. Tais práticas são aqui enten-
didas como o contexto social, onde est
ão inseridos os discursos particulares, estando
as práticas discursivas articulando-se no seu interior. (FAIRCLOUGH, 2001)
A pr
ática etnográfica, entendida como uma atividade eminentemente interpretativa,
uma descri
ção densa, voltada para a busca de estruturas de significação (CLIFFORD,
2002), permitiu dar conta do cotidiano comunit
ário do lugar pesquisado, observan-
do como a televis
ão estrutura socialmente a vida naquela sociedade e quais as leitu-
ras possíveis desse fato, partindo da existência de um diálogo possível.
As an
álises etnográficas realizadas consideraram a cotidianeidade dos caboclos da
Vila Progresso, Arquipélago do Bailique, Macapá (AP).
O corpus para as análises foi selecionado a partir de entrevistas e observações prati-
cadas nos meses de janeiro e setembro de 2004.
Do universo das informa
ções coletadas, procurei destacar espécies de “personagens”
para ilustrar minhas histórias de significação.
As an
álises discursivas foram realizadas a partir de textos colhidos no ambiente esco-
lar. E para isso, contei com a preciosa colabora
ção dos professores da Escola Bosque,
cuja experiência relatarei mais a diante.
Os jovens estudantes tinham consci
ência da minha presença na comunidade e, talvez
por isso, nossas conversas, em alguns aspectos, n
ão eram muito produtivas, o que
fazia com me sentisse induzindo-os a confirmar minhas hipóteses.
Nesses momentos, vinha-me a mente as recomendações de meu orientador, quanto ao
perigo das indões. Todo question
ário carrega um discurso que traz no seu interior uma
resposta, alertava Milto
n.
Por isso, achei por bem continuar minhas entrevistas e observa
ções focando o coti-
diano da comunidade e deixar que os professores estimulassem os alunos a produzir
textos sobre a televisão como parte das atividades em classe.
Isso n
ão foi mais razoável como nos garantiu algumas surpresas, como a frase
que utilizei na ep
ígrafe deste trabalho. Elaborada por uma menina de 12 anos, e ela
resume o sentido social da televisão naquela comunidade.
Ao dissertar, distribui minhas id
éias dois blocos. O primeiro é composto por aspectos
históricos e teóricos, onde faço um brevíssimo relato sobre origem da TV, a perspec-
Introdução
18
tiva brasileira do meio, enfatizando o panorama atual da programação nacional e
discorrendo sobre a evolu
ção das teorias da comunicação, com foco no indivíduo
(receptor). Em rela
ção a este, interessa-me compreender como os sujeitos foram tra-
tados ao longo desses estudos.
Dediquei-me de forma um pouco mais detalhada a essa quest
ão, porque era preciso
chegar ao campo com uma id
éia bem definida do tipo de receptor que eu buscava
identificar, para n
ão correr o risco de perdê-lo.
Ainda nos aspectos te
óricos, abordo a questão dos contratos de comunicação pro-
postos por Lopes, para quem “a televis
ão é o principal veículo formador dos mais
recentes contratos de comunicação que conhecemos em nossa época”
2
.
O segundo bloco
é todo dedicado ao relato do trabalho de campo. É nesse espaço
que articulo as pr
áticas etnográficas e de análise discursiva, ambas cuidadosamente
contextualizadas, inclusive teoricamente, para garantir a fluente compreens
ão, tanto
de minhas idéias, quanto das estruturas significativas identificadas.
Ao final, registro algumas considera
ções e desafios, construídos ao longo da pesqui-
sa, longe de elucidar a quest
ão do diálogo possível entre mídia e indivíduo, reconhe-
cendo, j
á neste intróito, que para isso faz-se necessário desvendar a complexa teia de
relações sociais, onde costumes, tradições, valores, pessoas e até lugares estão em
constante movimento.
Consumo e produção de sentido em comunidade ribeirinha do interior do Amapá é um
estudo elaborado com olhar amaz
ônico visando, deste lugar de fala, contribuir com os
estudos que articulam comunicação, sociedade e cultura, desenvolvidos no Brasi
l.
2
LOPES, L., 2004, p.33
Introdução
II - Aspectos
históricos e teóricos
20
II.1 O meio TV
A idéia de trabalhar com imagens está ligada à história da civilização. Já nos tempos
primitivos, o homem deixou impress
ões, em forma de desenhos, para que gerações
posteriores pudessem aprender. Essas imagens possibilitaram a cria
ção de teorias
sobre como era a vida naquela
época. Com o desenvolvimento das técnicas, através
da pintura passou a ser poss
ível reproduzir, em tom fiel, as imagens de uma época,
favorecendo a impress
ão das emoções; o que fazia com que reis e rainhas pareces-
sem mais majestosos do realmente eram.
A fotografia fez com que a realidade fosse impressa com um tom maior de fidelida
-
de. Mas os retoques e
ângulos influenciavam e ainda influenciam o resultado final,
assim como hoje conta-se com a ajuda de programas de computador para se mani
-
pular fotos.
O cinema deu vida aos quadros parados e aproximou-nos mais da reprodução da reali-
dade. No entanto, possibilitou que ilus
ões se materializassem diante dos nossos olhos,
atrav
és dos efeitos.
A televis
ão também herdou algumas caractesticas do cinema, mas sua proximidade
com o tempo presente, tornaram esse meio o mais poderosos em termos de transmiss
ão
de informões e id
éias.
II.1.1 Origem
A televisão nasce num momento em que a realidade parece mimetizar, em muitos
aspectos, a fic
ção. Os avanços tecnológicos se sucedem, mudando as relações entre
equipamentos, cada vez mais presentes no cotidiano dos indiv
íduos. A vida do ho-
mem contempor
âneo se transforma de forma vertiginosa. Adaptar-se às novas inter-
faces, às novas interatividades e às relações com outros, tornou-se um desafio diário,
agravado pela temporalidade contemporânea, cada vez mais acelerada.
A hisria da televio começa a ser escrita no final do culo XIX, de quando datam as
primeiras transmiss
ões por ondas eletromagnéticas (ondas de rádio). Com a radiotrans-
miss
ão foi possível realizar a transmissão de voz e posteriormente de imagens e dados.
Aspectos históricos e teóricos
21
A transmissão de imagens a disncia coma a ocupar as pesquisas cientistas no icio do
Século XIX.
Em 1842, Alexander Bain realiza a primeira transmissão telegráfica de imagem a dis-
tância. Do fac-simille a descoberta do selênio, pelo sueco Jakob Berzelius (1817), pas-
sando pela invenção da c
élula fotoelétrica, por Helster & Getiel (1892), em menos de
trinta anos o ingl
ês John Logie Baird transmitiria os contornos de objetos a distância.
Em 1935, emite-se oficialmente a televis
ão na Alemanha e em novembro daquele
ano a Fran
ça também oficializa transmissão. Rússia e Estados Unidos são os próxi-
mos pa
íses a aderir ao meio e, em 1945, os primeiros aparelhos de televisão come-
çam a ser produzidos em escala industrial.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi o
único país que manteve a
televisão no ar. Os nazistas já dimensionavam o poder de massificação do meio que
tinham nas mãos.
As primeiras experi
ências com a transmissão sem fio foram realizadas no Brasil pelo
padre gaúcho Roberto Lendell de Moura, na cidade de São Paulo.
Em 1904, Landell começa a projetar a transmissão de imagens a distância. A frente de
seu tempo, o religioso queria fazer com que seu invento pudesse transmitir n
ão ima-
gens entre dist
âncias numa mesma cidade, mas entre pses. Perseguido por faticos
religiosos, teve seu laborat
ório destruído.
A transmiss
ão de imagens chegaria ao Brasil quase meio século depois pelas mãos
do ambicioso Chateaubriand.
Em 1948, Assis Chateaubriand, dono do Di
ários Associados, cadeia de jornais e emis-
soras de r
ádio, viaja aos EUA para comprar equipamentos de televisão, acompanha-
do de M
ário Alderighi e Jorge Edo, técnicos que iniciaram estágio na RCA (Radio
Corporation Of America) e na NBC, em Nova York, para aprenderam a manusear os
equipamentos que chegariam ao Brasil 2 anos depois.
Nesse mesmo ano, durante a comemora
ção do centenário da cidade de Juiz de Fora,
Minas Gerias, houve uma “transmiss
ão experimental” de televisão, mostrando cenas
do Congresso Eucarístico realizado na cidade e de um jogo de futebol.
Em setembro de 1950, inaugura no Brasil a TV Tupi de S
ão Paulo, pertencente a Assis
Chateaubriand, com sistema baseado no americano.
Na metade da década de 50, os americanos transmitiam de forma regular ima-
gens em cores. Devido ao alto custo, a transmiss
ão em cores no Brasil chegaria
Aspectos históricos e teóricos
22
em meados de 1972.
Os sinais convencionais de transmiss
ão televisiva, a chamada TV aberta, são trans-
mitidos em linha reta, tornando muito dif
ícil o acesso às áreas montanhosas, vales e
lugares cercados de pr
édios. A solução para obter a melhor recepção foi a colocação
de antenas no topo das montanhas e a distribuição de sinais através de cabos.
Esse sistema apresentou-se com um enorme potencial comercial e acabou por trans
-
formar-se na Tv por assinatura dos dias hoje. Necessitando oferecer um modelo dife
-
renciado de programa
ção a seus cliente-assinantes, a TV a cabo passou a ter canais
e uma variada programa
ção, auxiliada por uma rede de microondas. Em 1974, a
televisão começa a receber sinais via satélite.
Na Am
érica Latina, o Brasil é o segundo país em número de assinantes de TV a cabo,
perdendo somente para a Argentina.
II.1.2 Panorama Nacional
A TV brasileira chega aos 50 anos registrando dados expressivos. Segundo as estatís-
ticas oficiais, o aparelho receptor do sinal televisivo est
á presente em 98% dos lares
brasileiros. A TV é vista por todas as classes sociais. Esse quadro teve uma sens
ível
reconfiguração com a chegada da TV por assinatura, pois as classes mais abastardas
passaram a dispor de outra opção.
A TV aberta
é vista em todo território nacional e representa um fenômeno em escala
vertiginosa:
A TV está presente no modo como imaginamos, no que somos, queremos,
amamos, detestamos e para onde vamos. (...) Sua programa
ção tornou-se
um referencial obrigat
ório, cotidiano que convalida nossas crenças e dialoga
com nossas certezas e dúvidas.
(LOPES, 2004, p. 128)
E de forma alguma as afirmativas de Lopes pecam pelo exagero. As grandes redes
reproduzem seus programas por todo o pa
ís, assim como as repetidoras e associadas
locais encaixam seus programas regionais, os quais tendem, com alguma exce
ção, a
caricaturar a programação feita para as redes nacionais.
No telejornalismo, isso
é mais visível. Os telejornais locais funcionam como entrada
Aspectos históricos e teóricos
23
para o noticiário nacional, buscando seguir o padrão disponibilizado pela matrix.
De modo geral, os hor
ários de pico de audiência exibem os mesmo programas, cuja
grande maioria
é produzida no eixo Rio-São Paulo, o qual controla a produção: te-
lenovelas, programas de audit
ório e humorísticos, shows musicais e os populares
reality shows.
De Domingo a Domingo, de 18
às 24 horas, estão concentrados os programas de
maior audi
ência: os de variedades, informações jornalísticas e as telenovelas. Atual-
mente, o programa de maior audi
ência da televisão brasileira é o Jornal Nacional, da
Rede Globo de Televis
ão.
É no eixo Rio-São Paulo que também se decide qual deverá ser a programação filmo-
gráfica exibida; geralmente produção americana de sucesso, exibida nos cinemas
nacionais.
Além dos filmes, o eixo também seleciona a produção desportiva que vai ao ar em
cadeia nacional, chegando a influenciar no calendário dos eventos desportivos.
Os document
ários jornalísticos também ocupam espaço na programação dando des-
taque a temas ecológicos, policiais, científicos e etc.
Os an
úncios publicitários das empresas que vendem em todo país são repassados
para o conjunto de retransmissoras da rede, com uma ou outra exce
ção. A publici-
dade local fica a crit
ério das regionais. A propaganda eleitoral paga ou gratuita, por
força de Lei, segue a mesma lógica de produção e veiculação.
As transmiss
ões nacionais de grandes eventos (copa do mundo, carnaval, eleições
majoritárias e etc) dependem do capital econômico investido, do manejo político
interno e externo, da capacidade t
écnica e artística de seu pessoal e do esforço pu-
blicitário das empresas envolvidas.
A origem do modelo brasileiro de TV
é privado. Como vimos, nasceu e deu seus
primeiros passos a partir de um conglomerado de empresas jornal
ísticas. Apesar de
ser uma concess
ão pública, jamais a TV brasileira foi primordialmente estatal, e essa
ambigüidade (um empreendimento privado de concessão pública) é fundamental
para que entendamos alguns dos problemas da TV no Brasil; e o principal deles
é o
da “colaboração implícita e explícita com o poder estabelecido em cada contexto ou
a preparação e o auxílio na substituição do poder existente”
1
.
Fruto da engenharia eletroeletr
ônica do século passado e integrante da última revo-
1
LOPES, 2004, p. 131
Aspectos históricos e teóricos
24
lução industrial, a da microeletrônica e das máquinas digitais, a televisão possibilitou
a constru
ção de um novo negócio para o capital, caracterizado pela oferta de um
novo tipo de mercadoria: os bens simbólicos.
O maior significado da TV n
ão é de natureza técnica, pois ocorre no plano do social
e do simbólico, sendo assim um problema da cultura e das relações sociopolíticas.
O significado da TV, enquanto objeto social, vem sendo estudado desde a d
écada
de 60. No campo das teorias da comunica
ção, esse debate se desenvolveu principal-
mente entre os adeptos da emissão e os da recepção.
No come
ço desses estudos, toda a atenção estava voltada para o meio. As teorias
emissionistas cl
ássicas, sobretudo as norte-americanas, estiveram na pauta dos prin-
cipais pesquisadores, durante d
écadas. MacLuhan, o mais midiático dos teóricos
emissionistas, entendeu a televis
ão como um meio de comunicação único e principal
da extens
ão maquímica do sistema nervoso humano e viu essa mídia, “de modo
orwelliniano, acreditando em sua capacidade quase irrestrita de sedu
ção e condução
comportamental de sua audiência”
2
.
Esse pensamento come
çou a ser relativizado a partir das instituição dos estudos
culturais, onde se passou a considerar a possibilidade de exist
ência do poder da au-
diência sobre o meio.
Essas teorias, desenvolvidas principalmente na Am
érica Latina e Europa, vêm tentan-
do mapear o percurso relativo ao momento da recep
ção, na tentativa de compreen-
der como o público recebe e dialoga com os emissores televisivo.
Sem nenhuma pretens
ão de dar conta dos problemas do meio TV com esse brevís-
simo hist
órico, introduzido apenas com a intenção contextualizar as análises que
farei posteriormente, finalizo pontuando tr
ês aspectos que considero marcantes no
recorte que acabo de fazer sobre a televisão e seu contexto nacional.
O primeiro é quanto a sua origem, marcada por interesses empresariais do grupo li-
derado por Chateaubriand, para quem a televis
ão foi utilizada como meio para atingir
objetivos nem sempre t
ão nobres e, ao mesmo tempo, vinculada à dimensão pública
por seu status de concession
ária. Essa origem dual da televisão brasileira se reflete de
forma decisiva nos conte
údos transmitidos, onde, muitas vezes, o interesse público
cede lugar aos interesses do capital, estes vinculados
à audiência.
Acredita-se que os programas t
êm maior ou menor audiência quando a possibilidade
Aspectos históricos e teóricos
2
id., ibid., p. 132
25
de identificação do público é maior ou menor:
A cultura midiática é resultado da leitura das demais culturas, embaladas
e reduzidas ao formato de imagens e de sons compreens
íveis e aceitáveis
pelas multid
ões, que as recebem com suas características de classe e grupo
social. E a audi
ência, por sua vez, resulta da aceitação, por parte do público,
desses conteúdos.
(LOPES, 2004, p. 134)
Assim, a televisão enquanto concessão pública nem sempre está a serviço do pú-
blico, mas para contra argumentar essa afirma
ção vai buscar na própria sociedade
o alimento para sua manuten
ção. A televisão trabalha no domínio do simbólico,
atinge as cren
ças de seu público, auxiliando o processo e a manutenção do sistema
social de crenças do nosso tempo”
3
.
Um segundo aspecto
é o fato de que décadas o que se produz no eixo Rio-São
Paulo est
á na base do que se na televisão brasileira. É no mínimo preocupante
pensar que os brasileiros v
êem a si próprios e a suas utopias a partir do enfoque
televisivo carioca-paulista. At
é que ponto essa seleção “sulista” nos afeta enquanto
consumidores dessa m
ídia? Essa é uma das questões que nos levaram a campo e que
ao longo desse trabalho buscamos respostas.
E para finalizar, a expressiva abrang
ência nacional do meio. A televisão é quase uma
unanimidade, que de instrumento de entretenimento passou a ser um poderoso es
-
truturador social, sendo o principal referencial cultural de milhões de pessoas.
Não é possível iniciar um trabalho como este, por mais otimistas que sejamos em
relação a capacidade dos indivíduos de dialogar com os meios, repensando e co-pro-
duzindo seus conte
údos, ignorando a capacidade de penetração e influência social
da televisão, que no caso da brasileira ainda possui “pecados originais”.
Assim, ciente quanto
à influência da mídia televisiva na ordem social, partimos em
direção ao interior da Amazônia brasileira, em busca de uma ambiente propicio à
observação de como se o diálogo entre emissores globais e receptores locais,
numa sociedade ribeira impregnada pela ess
ência do consumo pregado pela mídia
televisiva.
Aspectos históricos e teóricos
3
id., ibid., p. 134
26
Antes porém, cabem algumas considerações teóricas sobre que receptor bus-
camos identificar e quais os pressupostos levados a campo na intenção mapear
esse percurso que vai do momento da recepção, passando pelo di
álogo com os
emissores, para chegar ao uso, feito pelos ribeirinhos, dos conte
údos transmiti-
dos pela m
ídia televisiva, interessando-nos ainda o discurso dos caboclos sobre
esse meio
.
Aspectos históricos e teóricos
27
1
WRIGHT, 1975, p. 79
Aspectos históricos e teóricos
II.2 Receptor: um conceito em construção
A interação entre recepção e comunicão o é nova. pelo menos um culo ela tem
estado presente nos estudos desenvolvidos a partir do meios massivos de comunicação.
Mas é
a partir dos anos 80 que a receão ganha o status de “lugar” nas pesquisas
em comunicão, com o deslocamento do foco desses estudos dos meios
às mediões
que atravessam o processo comunicativo
.
São novos e intrigantes os enfoques e as posturas que tem suscitado o tratamento
da quest
ão ocasionando a revisão dos modos de ver e analisar o receptor em comu-
nicação. Esses novos enfoques expressam estratégias interdisciplinares colocadas em
curso para favorecer o entendimento dessa interação.
Mas considerando que o termo receptor e o conhecimento acumulado sobre ele,
ainda hoje, s
ão influenciados pelos pressupostos norte-americanos, nos quais predo-
minam a id
éia de uma supremacia dos meios sob os indivíduos, é relevante para esta
pesquisa a apresenta
ção de uma síntese da evolução do conceito de receptor com
vistas ao entendimento do perfil do receptor a ser abordado por ela.
Na aus
ência de estudos focados nos indivíduos a quem se destinam às mensagens,
considerando que essa perspectiva
é recente, percorreremos as principais teorias dos
mass media para, a partir delas, capturar o entendimento de cada uma sobre quem
é o receptor e, dessa forma, construir um mapa da evolução do conceito.
II.2.1 Indivíduos isolados e essencialmente iguais
Assim os indivíduos são entendidos pela teoria hipodérmica, que data do início do
Século XX. A posição defendida por esse modelo pode sintetizar-se na afirmativa
“cada elemento do público é pessoal e diretamente atingido pela mensagem”
1
.
Historicamente ela coincide com o per
íodo das duas guerras mundiais e com a difu-
são em larga escala das comunicações de massa.
Os principais elementos que caracterizam o contexto da teoria hipod
érmica são: a
novidade do pr
óprio fenômeno das comunicações de massa e a ligação desse às trá-
28
gicas experiências totalitárias daquele período.
Encerrada entre esses dois elementos a teoria hipod
érmica é uma abordagem global
aos mass media, indiferente à diversidade existente entre os vários meios e que res-
ponde à questão: que efeito tem os mass media numa sociedade de massa?
A presença do conceito de sociedade de massa é fundamental para a compreeno
da teoria hipod
érmica. São muitas as variantes detectadas no conceito de socieda-
de de massa, por
ém o pensamento oitocentista nos parece resumir o entendimento
do conceito naquele contexto: a sociedade de massa é sobretudo a conseência
da industrializão progressiva, da revolução dos transportes e do com
ércio, da
difus
ão de valores abstratos de igualdade e fraternidade”
2
.
De acordo com o entendimento da
época a massa é constituída por um tecido ho-
mogêneo de indivíduos, essencialmente iguais, indiferenciáveis, mesmo que venham
de ambientes distintos, heterog
êneos e de todos os grupos sociais. Essa massa é
composta por pessoas que n
ão se conhecem, que estão separadas umas das outras
no espa
ço e que têm pouca ou nenhuma possibilidade de exercer uma ação ou in-
fluência recíproca.
Essa definição reforça o elemento fundamental da teoria hipodérmica, ou seja, o
fato dos indiv
íduos estarem isolados, serem anônimos e estarem separados, ato-
mizados. O isolamento do indiv
íduo na massa é fator que explica o realce que
essa teoria atribui
às capacidades manipuladoras dos primeiros meios de comuni-
cação. Os exemplos hist
óricos dos femenos de propaganda de massa durante
o fascismo e nos per
íodos de guerra, forneciam naturalmente amplas provas a
tais modelos cognoscitivos. O entendimento da massa, pelo tradição europ
éia do
pensamento filos
ófico-político como um agregado que nasce e vive para além dos
la
ços comunitários e contra esses mesmos los, que resulta da desintegrão das
culturas locais e no qual as funções comunicativas s
ão necessariamente impessoais
e an
ônimas, também contribui para essa caracterizão.
Tendo como suporte um modelo comunicativo fundamentado na psicologia Beha
-
viorista, cujo foco
é o estudo do comportamento humano com os métodos de ex-
perimentação e observação das ciências naturais e biológicas, a teoria hipodérmica
entende as unidades est
ímulo/resposta como capazes de exprimir os elementos de
qualquer forma de comportamento e nelas apoiam suas convic
ções acerca da instan-
taneidade e da inevitabilidade dos efeitos. O est
ímulo, na sua ligação com o compor-
tamento, é a condição primária, o gente da resposta:
Aspectos históricos e teóricos
2
WOLF, 1999,.p. 24
29
Aspectos históricos e teóricos
A estreita relação entre os dois torna impossível a definição de um a não ser em
termos do outro. (...) Est
ímulos que não produzem respostas o o esmulos.
E uma resposta tem que ter sido necessariamente estimulada. Uma resposta
o estimulada é como um efeito sem causa.
(LUND, 1933, in: WOLF, 1999, p. 27)
Nesse sentido, observa Bauer, em Wolf (1999), que durante o per
íodo da teoria hi-
podérmica, os efeitos, na maior parte, não eram estudados, por serem dados como
certos. Esta certeza relegou aos indiv
íduos, durante muito tempo, um lugar de pas-
sividade total nas rela
ções comunicativas ao mesmo tempo que reforçou a idéia do
predomínio do emissor sobre o receptor, sugerindo uma relação básica de poder em
que a associação entre passividade e receptor é evidente.
Como se houvesse uma relação sempre direta, linear, unívoca e necessária de um pólo,
o emissor, sobre o receptor; uma relação que subentende um emissor gen
érico, ma-
cro, sist
êmico, rede de veículos de comunicação e um receptor específico, individual,
despojado, fraco, micro, decodificador, consumidor de sup
érfluos; como se existissem
dois p
ólos que necessariamente se opõem e não eixos de um processo mais amplo e
complexo, por isso mesmo, tamb
ém permeados por contradições (SOUZA, 1995).
II.2.2 A massa manipulada por efeitos pré-determinados
Elaborado no início dos anos 30, época em que a teoria hipodérmica encontrava-se
em seu apogeu, o modelo de Harold Lasswell introduziu a an
álise dos efeitos, consi-
derando que os meios de comunica
ção surgem como um instrumentos indispensá-
veis para a gest
ão governamental das opiniões, tanto de populações aliadas, como
inimigas. Assim, a propaganda encontra-se no foco desses estudos, constituindo-se
no único meio de suscitar as massas, sendo mais econômica que a violência, a cor-
rupção e outras técnicas de governo desse gênero (MATTERLART, 2001).
Essa visão instrumental consagra a representação da onipotência da mídia, conside-
rada ferramenta de circula
ção eficaz de símbolos. A opinião comum que prevalece
no p
ós-guerra é a de que a derrota das forças alemãs deveu-se ao trabalho de pro-
paganda dos aliados. A audi
ência é assim visada como um alvo amorfo que obedece
cegamente ao esquema est
ímulo-resposta. Supõe-se que a mídia aja segundo o mo-
delo da “agulha hipod
érmica”, termo forjado por Lesswell para designar o efeito ou
impacto direto e indiferenciado sobre os indivíduos atomizados.
30
Aspectos históricos e teóricos
Por tanto, longe de representar um avanço no sentido de entender a sociedade de
massa como capaz de apropriar-se de forma diferenciada das mensagens transmiti
-
das pela m
ídia, os estudos de Lesswell sobre os efeitos estavam mais interessado em
mapear as melhores formas de, a partir dos efeitos, produzir mensagens cada vez
mais adequadas aos fins que se destinam.
A preocupação com os efeitos nasce com a demanda por pesquisa social nos anos que
precederam a Primeira Guerra Mundial, quando, num per
íodo de reformas sociais e
para alimentar o debate p
úblico, começaram a se desenvolver pesquisas sobre a influ-
ência da mídia em crianças e jovens. O resultado dessas pesquisas acaba por colocar
em quest
ão o behaviorismo e provocar um distanciamento do postulado de Lasswell.
No relat
ório do Payne Fund (1933), psicólogos, sociólogos e educadores interrogam-
se a respeito dos efeitos do cinema no conhecimento das culturas estrangeiras, nas
atitudes em relação à viol
ência e no comportamento delinqüente. Atentando para
fatores de diferen
ças na recepção, tais como idade, sexo, meio social, experncias
passadas e influ
ência dos pais, o relatório questiona o efeito direto das mensagens
sobe os receptores, que tanto influenciou o postulado de Lesswel
l.
II.2.3 Mensagens adequadas a fatores pessoais
É com os estudos focados na psicologia experimental que ocorre a revisão do pro-
cesso comunicativo, ent
ão entendido, como uma relação mecânica e imediata entre
estímulo e resposta, que se torna evidente, pela primeira vez, nos estudos dos mass
media, a complexidade dos elementos que entram em jogo na relação emissor, men-
sagem e destinatário.
A abordagem deixa de ser global e passa a apontar, ora para o estudo de sua efic
ácia
persuasiva, ora para seus insucessos.
Assim, persuadir é entendido como um objetivo possível se a organizão da mensagem
for adequada aos fatores pessoais que o destinat
ário ativa quando a interpreta. Desde
o momento em que existem diferen
ças individuais nas caractesticas da personalidade
dos elementos que comp
õem o público, é natural que se presuma a exisncia, nos efei-
tos, de variões correspondentes a essas diferen
ças individuais (DE FLEUR, 1970).
Apesar dessa teoria das diferen
ças individuais nos efeitos apresentar uma estrutura
lógica muito semelhante ao modelo mecanicista da teoria hipodérmica: causa (isto
é, estímulo) (processos psicológicos intervenientes) efeito (isto é, resposta), a
intervenção das variáveis não somente destrói o imediatismo e a uniformidade dos
31
Aspectos históricos e teóricos
3
WOLF, 1999, p. 47
efeitos, como também, em certa medida, mede a sua amplitude pelo papel desem-
penhando pelos destinatários.
O esquema “causa
efeito” da teoria hipodérmica sobrevive, mas inserido num
quadro de análise que vai se complicando e alargando.
II.2.4 O contexto social no processo comunicativo
Paralela a abordagem psicológica experimental se desenvolve uma abordagem em-
pírica de campo, ambas, a partir dos anos 40, conduziram ao abandono da teoria
hipodérmica estando às aquisições de uma, ligadas as da outra.
A perspectiva que caracteriza o icio da pesquisa sociológica emrica sobre as
comunicões de massa diz globalmente respeito a todos os mass media do ponto
de vista da sua capacidade de influenciar o p
úblico.
Considerando a inserção da perspectiva da influência diferenciada dos meios sob os
destinatários, a problemática continua sendo a dos efeitos, sendo que abordados
sob a ótica dos seus limites.
“O r
ótulo de efeitos limitados não apenas indica uma diferente avaliação da quan-
tidade de efeitos; indica, igualmente, uma configura
ção desses efeitos qualitativa-
mente diferente”
3
.
Enquanto a teoria hipodérmica falava de manipulação ou propaganda e a psicológi-
ca-experimental tratava de persuas
ão, esta teoria enfoca a influência, incluindo não
apenas a exercida pelos mass media, mas tamb
ém aquela que perpassa as relações
comunitárias e da qual a influência das comunicações de massa é só um componen-
te, uma parte.
A teoria dos mass media ligada à pesquisa sociológica de campo consiste de fato
em associar os processos de comunicação de massa
às características do contexto
social em que esses processos se realiza
m.
Nessa teoria distingue-se duas correntes: a primeira estuda a composição diferencia-
da dos p
úblicos e dos modelos de consumo das comunicações de massa e a segunda
compreende as pesquisas sobre a media
ção social que caracteriza esse consumo.
Assim, completa-se a revisão crítica da teoria hipodérmica.
A abordagem empírica dos mass media coloca o contexto social como uma das
32
Aspectos históricos e teóricos
variantes a ser considerada no processo comunicacional. E, nesse sentido, o re-
ceptor come
ça a ser entendido, também, a partir do seu meio. Com isso, supe-
ra-se a vis
ão mecanicista, aceita-se a possibilidade de influência diferenciada e
o fato de nessa diferenciação está contida n
ão apenas a expectativa do público,
o que ele quer ver ou ouvir, mas os lugares de onde falam
às pesquisas.
II.2.5 A mídia como satisfação dos indivíduos
A teoria funcionalista dos mass media constitui uma abordagem essencialmente glo-
bal dos meios de comunica
ção de massa no seu conjunto e nela acentua-se, signifi-
cativamente, a explicita
ção das funções exercidas pelo sistema das comunicações de
massa. É este o aspecto em que mais se distancia das teorias precedentes: a questão
de fundo n
ão são mais os efeitos e, sim, as funções exercidas pela comunicação de
massa na sociedade.
Dessa forma, se completa o percurso seguido pela pesquisa dos mass media, que
começara por se concentrar nos problemas da manipulação para passar aos da per-
suasão, depois à influência e chegar precisamente às funções.
Essa mudança conceitual coincide com o abandono da idéia de um efeito inten-
cional, de um objetivo do ato comunicativo subjetivamente perseguido, para fazer
convergir a aten
ção nas conseqüências objetivamente averiguáveis da ação dos mass
media sobre a sociedade no seu conjunto ou nos seus subsistemas (WOLF, 1999).
A teoria sociológica estrutural-funcionalista se detêm, então, a ão social, e não
ao comportamento, na sua ades
ão aos modelos e valores interiorizados e institu-
cionalizados. O sistema social na sua globalidade é entendido como um organis
-
mo, cujas diferentes partes desempenham fuões de interação e manutenção do
sistema. O seu equil
íbrio e a sua estabilidade prom das relações funcionais que
os indiv
íduos e os subsistemas ativam no seu conjunto.
A sociedade deixa de ser meio para se procurar atingir os fins dos indivíduos;
são os indivíduos, na medida em que exercem uma função, que se tornam o
meio para se procurar atingir os fins da sociedade e, em primeiro lugar, da
sua sobrevivência auto-regulada.
(DE LEONARDIS, in WOLF, 1999, p. 74)
33
Nesse sentido, para a teoria estrutural-funcionalista, “os seres humanos aparecem
como “drogados culturais ”impelidos a agir segundo o est
ímulo de valores culturais
interiorizados que comandam a sua atividade”
4
.
É mérito dos funcionalistas a percepção, em termos funcionais, da satisfação das
necessidades sentidas pelos indivíduos: a hipótese dos usos e gratificações.
Se a idéia inicial da comunicação como geradora de uma influência imediata, numa
relação est
ímulo/reposta, é suplantada por uma pesquisa mais atenta aos contex-
tos e
às interações sociais dos receptores e que descreve a eficácia da comunicação
como resultado global de m
últiplos fatores, à medida que a abordagem funcional
se enra
íza nas ciências sociais, os estudos sobre os efeitos passam da pergunta o
que é que os mass media fazem
às pessoas? à o que é que as pessoas fazem com
os mass media
?
Essa mudança de perspectiva, baseia-se no pressuposto de que “normalmente, mesmo a
mensagem do mais potente dos mass media n
ão pode influenciar um indivíduo que não
fa
ça uso dela no contexto sociopsicogico em que vive
5
.
Assim, o efeito da comunicão de massa é entendido como conseqüência das satisfa-
ções
às necessidades experimentadas pelo receptor: os mass media o eficazes na me-
dida em que o receptor lhes atribui tal efic
ácia, baseando-se precisamente na satisfão
de necessidades. As mensagens s
ão captadas, interpretadas e adaptadas ao contexto
subjetivo das experi
ências, conhecimentos e motivações.
O receptor é também um iniciador, quer no sentido de originar mensagens
de retorno, quer no sentido de p
ôr em prática processos de interpretação
com um certo grau de autonomia. O receptor age sobre a informa
ção que
está a sua disposição e utiliza-a.
(MCQUAIL, in WOLF, 1999, p. 72)
Segundo esse ponto de vista, o destinatário embora continue desprovido de um
papel aut
ônomo e simétrico ao do destinador, no processo de transmissão das men-
sagens – transforma-se, porém, em sujeito comunicativo a título inteiro.
Aspectos históricos e teóricos
4
GIDDENS, 1991, p. 172
5
KATZ, in WOLF, 1999, p. 71
34
Aspectos históricos e teóricos
II.2.6 A perda do sujeito comunicativo
A concepção de um sujeito comunicativo integral vem a ser abalada pelos pressu-
postos da teoria cr
ítica que, ao incluir em suas análise a perspectiva econômica,
descortina um receptor ap
ático e atônico com as falsas possibilidades de escolha
disponibilizadas pela indústria cultural.
Historicamente, a teoria cr
ítica identifica-se com o grupo de investigadores que fre-
qüentou o Institut Für Sozialforschung, de Frankfurt, fundado em 1923.
Com o advento do Nazismo, a Escola de Frankfurt, como era conhecido o instituto,
é
fechada reabrindo em 1950 e prosseguindo na atitude te
órica que a distinguiu des-
de o seu in
ício, isto é, a tentativa de fundir o comportamento crítico nos confrontos
com a cultura e a ci
ência, com a proposta política de uma reorganização nacional da
sociedade, de modo a superar a crise da razão.
A teoria cr
ítica vem se opor a função ideológica das ciências e das disciplinas seto-
rializadas. Aquilo que, para estas, constitui “dados de fato”
é, para a teoria crítica,
produto de uma situação histórico-social específica:
Os fatos que os sentidos nos transmitem são pré-fabricados socialmente de
dois modos atrav
és do caráter histórico do objeto percebido e através do
caráter histórico do órgão perceptivo. Nem um nem outro são meramente
naturais; são, pelo contrário, formados por meio da atividade humana.
(HORKHEIMER, in WOLF, 1999, p. 52)
Denunciando a separação e a oposição do indivíduo em relação à sociedade como
resultante da divis
ão de classes, essa teoria confirma a sua tendência para a crítica
dial
ética da economia política. Consequentemente, o ponto de partida dela vai ser a
an
álise do sistema da economia de mercado:
Desemprego, crises econômicas, militarismo, terrorismo, a condição global
das massas – como
é sentida por elas – não se baseia nas possibilidades téc-
nicas reduzidas, como era poss
ível no passado, mas nas relações produtivas
já não adequadas à situação atual.
(HORKHEIMER, in WOLF, 1999, p. 53)
35
É nesse contexto que o termo “indústria cultural” é utilizado pela primeira vez por
Horkheimer e Adorno. No texto Dial
ética do Iluminismo, esses pesquisadores descre-
vem a transforma
ção do progresso cultural no seu contrário, a partir de análises de
fenômenos sociais característicos da sociedade americana, entre os anos 30 e 40.
Os investigadores fornecem explica
ções e justificativas desse sistema, denominado
indústria cultural, em termos tecnológicos: o mercado de massas impõe estandardi-
zação e organização; os gostos do público e as suas necessidades impõem estereóti-
pos e baixa qualidade. Acontece, porém, que é precisamente:
Neste círculo de manipulação e de necessidade que dela deriva, que a unidade
do sistema se reduz cada vez mais. Mas n
ão se diz qual o ambiente em que a
cnica adquire tanto poder sobre a sociedade. Atualmente, a racionalidade
cnica é a racionalidade do pprio domínio.
(HORKHEIMER – ADORNO, in ECO, 2000, p. 79)
A estratificação dos produtos culturais, segundo a sua qualidade estética ou o seu
interesse, é perfeitamente adequada à lógica de todo o sistema produtivo; “o fato
de se oferecer ao p
úblico uma hierarquia de qualidade em série serve apenas à
quantificação mais completa”
6
; sob as diferenças, permanece uma identidade de
fundo mal disfar
çada a identidade do domínio que a indústria cultural exerce sob
os indivíduos;
Aquilo que a instria cultural oferece de continuamente novo não é mais do
que a representação, sob formas sempre diferentes, de algo que é sempre igual;
a mudan
ça oculta um esqueleto, no qual muda o pouco como no próprio
conceito de lucro, desde que esse adquiriu o predom
ínio sob a cultura.
(ADORNO, 1967, in WOLF, 1999, p. 8
5)
Na era da indústria cultural, o indivíduo deixa de decidir autonomamente; o conflito
entre impulsos e consciência soluciona-se na adesão acrítica aos valores impostos:
Aspectos históricos e teóricos
6
HORKHEIMER – ADORNO, 1947, p. 131 in id., ibid.
36
Aspectos históricos e teóricos
Aquilo a que outrora os fisofos chamavam de vida, reduziu-se a esfera do
privado e, posteriormente, à do consumo puro e simples, que n
ão é mais do
que um ap
êndice do processo material da prodão, sem autonomia e essência
pr
óprias.
(ADORNO, 1951, in id., ibid.)
Assim, o homem encontra-se no poder de uma sociedade que o manipula ao seu
bel-prazer: o consumidor n
ão é soberano, como a indústria cultural queria fazer
crer, n
ão é o seu sujeito, mas o seu objeto
7
.
Da indústria cultural não escapa nem o tempo livre dos indivíduos. Os produtos de
divertimento são fabricados, assim:
Divertir-se significa estar de acordo [...]; significa sempre: não dever pensar,
esquecer a dor, mesmo onde essa dor
é exibida. Na sua base está a impo-
tência. É efetivamente, fuga; não como se pretende, fuga da feia realidade,
mas da
última idéia de resistência que a realidade pode ainda ter deixado.
A liberta
ção prometida pelo amusement é a do pensamento como negação
a falta de pudor do pedido ret
órico “olha para o que as pessoas querem!”
é o fato de se apelar para as pessoas, que se tem por missão desabituar da
subjetividade, como se tratasse de sujeitos pensantes.
(HORKHEIMER ADORNO, in ECO, 2000, p. 82
)
A individualidade é substituída pela pseudo-individualidade. O sujeito encontra-se
vinculado a uma identidade sem reservas com a sociedade, a ubiq
üidade, a repe-
titividade e a estandardizão da ind
ústria cultural fazem da moderna cultura de
massa um meio de controle psicol
ógico inaudito.
Quanto mais indistinto e difuso parece ser o p
úblico dos modernos mass, mais os
mass media tendem a conseguir a sua “integra
ção”. A influência da indústria cul-
tural, em todas as suas manifesta
ções, leva a alterar a própria individualidade do
consumidor, que
é como o prisioneiro que cede à tortura e acaba por confessar seja
o que for, mesmo aquilo que n
ão fez.
7
ADORNO, 1967, p. 6 in id., ibid.
37
II.2.7 O pensamento pós-moderno
O pensamento pós-moderno começa ainda na segunde metade do século XX em
contraposição a utopia modernista, rompendo com a história e os modelos macro-
explicativos vigentes (marxismo e freudiano). Ele assegura que a racionalidade
é o
aqui e agora da realidade, n
ão como um devir ou um projeto coletivo de mudança
no futuro, mas realidade tal qual ela se manifesta, enquanto sociedade de mercado
e de consumo.
Sob essa ótica, o receptor em comunicação pode ser visto empiricamen-
te como colocado numa zona limite e conflitiva: de um lado é o sujeito-
indiv
íduo, o apelo ao usufruto, ao valor de uso dos bens da sociedade
dispon
ível; de outro, é o sujeito-social, mas no limite do aqui e agora, na
valorização do tempo e do espa
ço em que de fato vale a pena investir e
viver intensamen
te.
(SOUZA, 1995, p. 23)
Assim, o receptor se confunde, ora com o consumidor social, ora com o observador
de si mesmo:
é um consumidor que não se resume a depositário sedento do irre-
fletido de desejos, nem uma busca desesperada de si;
é um receptor que entre o
presente e o futuro luta para n
ão ter o real como pesadelo. Teoricamente a postura
pós-moderna rompe com a primazia do objeto.
Os pensadores que compuseram esse movimento denominado pós-68, na ver-
dade, n
ão se constituem uma corrente de estudos e representam mais como
pensadores. Tourine, Bourdieu, Deleze, Foucault, Guattari s
ão alguns desse pes-
quisadores que, apesar de n
ão constituírem um grupo, seus estudos apresen-
tam tra
ços peculiares, como: atenção para o espaço do mundo cotidiano e de
pessoas e grupos sociais, lidam com fragmentações da vida social e individual,
buscam captar desigualdades, contradições e diferen
ças sociais, pesquisam o
condicionamento da relação do sujeito com o mundo, admitindo nessa busca a
interdisciplinaridade
.
Essas tend
ências situadas como um conhecimento a partir do final dos anos 70, co-
meço dos anos 80, caracterizam-se pela busca de um novo modo de compreender a
singularidade.
Aspectos históricos e teóricos
38
II.2.8 Dos meios às mediações
As inquietações dos pensadores pós-modernos dão pistas do que viria a seguir. Era
preciso mudar o foco para entender melhor o que se passava com esse indiv
íduo
aparentemente t
ão frágil e desprovido de qualquer instrumento de reação às estraté-
gias da ind
ústria cultural, como queriam fazer crer os apocalípticos. E essa mudança
viria a se caracterizar pela tentativa de entendimento do processo comunicativo n
ão
mais a partir dos meios, e sim, das media
ções que ultrapassam a noção de um deter-
minismo entre emissor e receptor ou sujeito e objeto.
E é dessa perspectiva que se ocupam, hoje, cientistas latino-americanos, pioneiros
na abordage
m.
De acordo com esse novo olhar, o receptor deixa de ser visto, mesmo empiricamen-
te, como consumidor necess
ário de supérfluos culturais ou produto massificado,
apenas porque consome, mas nele resgata-se tamb
ém um esfoo de prodão
cultural; é um receptor em situação e condão e, por isso mesmo, cada vez mais a
comunicão vai busca na cultura as formas de compreend
ê-lo, empírica e teorica-
mente. Esse receptor é melhor percebido no mundo da cultura em prodã
o.
Avançar no estudo das relações entre comunicação e cultura, representou um
grande progresso, posto que se passa a apreender o fen
ômeno da comunicação
como integrante de um processo din
âmico e de maior dimensão. Esse salto pro-
voca o abandono definitivo da posição que reduz a comunicação a um produto,
a um ve
ículo ou meio, para inseri-la no cotidiano das pessoas.
Assim, longe de ser um lugar consensual, a recep
ção passa a ser compreendida como
um espaço onde ocorrem constantes negociações e produção de sentido:
Esta nova concepção da recepção implica em estudar os conflitos. O espaço
da recep
ção é um espaço de conflito entre o hegemônico e o subalterno, as
modernidades e as tradi
ções, entre as imposições e as apropriações. Quando
falamos em recep
ção nesse sentido, não estamos falando de uma recep-
ção individual, senão da recepção como fenômeno coletivo da sociedade
da recep
ção. [...] É dizer, estudar a recepção é estudar este novo mundo de
fragmentações dos consumos e dos públicos, essa liberação das diferenças,
essa transforma
ção das sensibilidades que encontram um campo especial na
reorganização das relações entre o privado e o público.
(entrevista a MARTHA MONTOYA, 1992, p. 30 –31)
Aspectos históricos e teóricos
39
Aspectos históricos e teóricos
Para Barbero, o produtor não é onipotente, nem o receptor um mero depositário
de mensagens,
é preciso valorizar a experiência e a competência comunicativa dos
receptores, a partir das quais tem-se posicionamentos diferenciados diante dos pro
-
dutos. As media
ções é que vão implicar nas variações de posturas frente aos bens
simbólicos.
Assim, as media
ções compreenderiam o conjunto de fatores que estrutura, organiza
e reorganiza a percepção e apropriação da realidade, por parte do receptor.
Sendo o conjunto de media
ções ordenador de apropriações distintas da recepção,
ele funciona como uma lente de acordo com a qual o receptor v
ê um determinado
produto midi
ático ou um fato social. Cada mediação é uma lente que estrutura a
recepção (BRITTOS, 2001).
As media
ções são lugares de onde “provêm as constrições que delimitam e configu-
ram a materialidade social e a expressividade cultural da televis
ão”
8
de onde pode-se
concluir que as intera
ções entre receptor e produtor podem ser compreendidas a
partir das mediações.
São três os lugares de mediação propostos por Barbero, como hipótese: o cotidiano
familiar, a temporalidade social e a compet
ência cultural.
O cotidiano familiar
é onde o sujeito mostra-se como, verdadeiramente, é, e onde
pode se soltar da maioria de suas amarras. A cotidianeidade familiar est
á repleta
de tens
ões e conflitos. É um dos poucos lugares onde os indivíduos se confrontam
como pessoas.
A temporalidade social refere-se ao tempo do cotidiano que
é contrário ao tempo
produtivo. O tempo de que
é feito a cotidianeidade é repetitivo, enquanto o tempo
valorizado pelo capital
é medido. O tempo cotidiano é o próprio das culturas popu-
lares.
A media
ção cultural é aquela que não se refere a cultura formal apreendida nas
escolas e nos livros.
É toda uma identidade, onde se insere a educação formal, a
cultura dos bairros, das cidades e das tribos urbanas.
É “uma marcação cultural via-
bilizada por meio da audição e da leitura”
9
.
Para o completo entendimento desse lugar, chamado “recep
ção”, postulado por
Barbero, é necessário prosseguir no deslocamento de alguns conceitos, até então,
8
BARBERO, 1989, p. 233
9
BRITTOS, 2001, p. 4
40
muito em voga nas pesquisas em comunicação. E o primeiro deles é o de hegemonia
e imposição de sentidos.
Para tanto, Barbero vai busca numa an
álise crítica do conceito de hegemonia for-
mulado por Gramsci os argumentos para ratificar a id
éia de que os sentidos não são
impostos, mas negociados num espaço de conflito onde se situa a recepção:
O processo de dominação social não como imposição desde um exterior
e sem sujeitos, sen
ão como um processo em que uma classe hegemoniza na
medida em que representa interesses que tamb
ém reconhecem de alguma
maneira como seus, as classes subalternas. E, na medida, significa que n
ão
há hegemonia, senão que ela se faz e desfaz permanentemente em um pro-
cesso vivido, feito n
ão de força, senão também de sentido, de apropria-
ção de sentido pelo poder, de sedução e de cumplicidade.
(BARBERO, 2001, p. 116)
No jogo de mediações, cria-se e recria-se a hegemonia cultural. Isto porque o con-
ceito de hegemonia prev
ê resistências, admitindo acertos e desacertos típicos do
processo de recep
ção. Logo, hegemonia é um conceito que, no seu interior, já prevê
o receptor como ativo. Do contr
ário não admitiria a possibilidade de resistência e,
portanto, a necessidade de seduzi-lo.
É por isso que a proposta de hegemonia não
confere poderes exclusivos à classe dominante.
A cultura, ent
ão, não é vista como secundando a dimensão político-ideológica, ao
contrário, é resgatada sua autonomia como agente no processo de negociação do
poder. A intera
ção ideológica-política-cultural pode existir e coexistir por força des-
se processo de negocia
ção e não como categorias com pressuposto de dominação
de uma sobre a outra”
10
.
A concepção de poder seria um outro deslocamento conceitual necessário. O enten-
dimento de um poder com uma estrutura una e inabal
ável, sem contradições não é
compat
ível com esses estudos. O poder visto como uma fundação monolítica o
tem mais como ser sustentado neste s
éculo, onde a dispersão é uma das principais
caracter
ísticas. O poder impassível diante de virtuais rupturas internas, o se mantêm
na realidade do dia-a-dia, ele é disseminado, apresentando-se nas diversas relações
Aspectos históricos e teóricos
10
SOUZA,1999, p. 26
41
Aspectos históricos e teóricos
sociais e variando quanto à intensidade. Não é mais o poder de um sistema capaz de
impor todas as suas posições aos dominados, até porque, esses dominados tamb
ém
apresentam capacidade de reação, embora com uma for
ça inferior a do dominador
(BRITTOS, 200
1).
A perspectiva hist
órica vem para concluir os deslocamentos propostos pelos estudos
em comunica
ção na América Latina. A introdução dessa perspectiva implica na com-
preensão de que não são os meios os responsáveis direto pela massificação, pois esse
fenômeno é mais amplo, inscrevendo-se nele a necessidade de meios massivos para
atender a demanda cultural das massas, que passam a também consumir.
A massificação seria muito mais do que meios de comunicação. Ela representa o pro-
cesso que permitiu o acesso das massas
à cena e a mídia deve ser considerada como
uma das pe
ças desse processo. Nesse sentido, Brittos observa que na América Latina
o in
ício da massificação coincidiu com a vigência dos governos populistas e que a
implantação dos meios de comunicação massivos latino-americanos é concomitante
ao ingresso das massas no cen
ário de reivindicações de consumo, sendo a mídia uma
conseqüência da massificação, ou seja, de haver público massificado para produtos
culturais, e não o contrário.
Assim, a massificão deve ser entendida como um processo que envolve a socie-
dade no seu conjunto
.
Atestada a atividade do receptor, novos desafios se imp
õem. Para Brittos, o maior
deles é precisar como se a relação receptor/ indústria cultural/ bem simbólico, res-
saltando as mediações que predominam no comportamento dos consumidores.
II.2.9 De destinatário a co-produtor de sentidos
Michel de Certeau se propõe a caminhar nesse lugar de recepção proposto por Bar-
bero indo diretor aos usos que o receptor faz dos produtos transmitidos pela mídia,
enfatizando que o ato de consumir não se reduz aos objetos culturais, tornados
possíveis pela ação mediática. O consumo, para o teórico, lugar a verdadeiras prá-
ticas de criação de significados culturais, associados mais ou menos às formas e aos
conteúdos das mensagens transmitidas pelos meios de comunicação, num processo
de co-produção simbólica, no qual o ator-sujeito-receptor é chamado a se movimen-
tar numa floresta de signos e de símbolos de consumo. Movimento que enseja não
somente uma prática, mas sobretudo uma transformação do objeto que lhe chega.
O ponto central das an
álises de Certeau é a insistência em uma invenção e criativida-
42
Aspectos históricos e teóricos
des cotidianas, que aparecem nas operações que os indivíduos colocam em cena em
gestos simples e corriqueiros, como resposta às mensagens que chegam até eles.
A “fabricação” que se quer detectar é uma produção, uma poética mas
escondida, porque ela se dissemina nas regi
ões definidas e ocupadas pelos
sistemas de “produção”(televis
ão, urbanística, comercial e etc.) e porque a
extens
ão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos consumi-
dores” um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma
produção racionalizada, expansionista, al
ém de centralizadora, barulhenta
e espetacular, corresponde outra produção qualificada de “consumo”: esta
é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente,
silenciosa e quase invis
ível, pois não se faz notar com produtos próprios,
mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem eco
-
nômica dominante.
(CERTEAU, 1994, p. 39)
Certeau considera a mídia um conjunto de indistinto, na medida em que para ele o
que importa
é o ato de leitura. Para tanto, faz-se fundamental para o modelo bra-
connier, proposto por ele, a defini
ção da questão: quem são os usuários da mídia?
Definidos como consumidores culturais ou simplesmente praticantes, os indiv
íduos,
para Certeau, s
ão consumidores culturais ativos que fabricam sentido com as ima-
gens que lhes são oferecidas pelos meios de comunicação. Assim,
A análise das imagens difundidas pela televisão (suas representações) e os
tempos dedicados a assistir televisão (um comportamento) devem ser com-
pletados pelo estudos daquilo que esse consumidor cultural fabrica durante
essas horas e com essas imagens.
(CERTEAU, in Marialva Barbosa, 2002, p. 5)
Constatando a existência de uma espécie de fosso entre as representação oferecidas
pelas mensagens e aquelas das quais os utilizadores se apropriam, a posi
ção meto-
dológica de Certeau consiste precisamente em tentar descrever esse uso.
43
Aspectos históricos e teóricos
A análise das práticas de leitura constitui um dos exemplos favoritos de Certeau, se-
gundo as quais os usu
ários teriam o poder de se transformar, abandonando o que é
sugerido pela ind
ústria cultural de consumo e de comunicação. Suas descrições das
atividades dos usu
ários ilustram a maneira pela qual estes se desviam e se movimen-
tam de maneira própria nesses lugares de signos freqüentemente heterogêneos:
A atividade de leitura representa todos os traços de uma produção silen-
ciosa: derivada atrav
és das páginas, metamofoseada do texto pelo olho do
viajante, improvisa
ção de significações induzidas de algumas palavras, em-
bricamentos de espa
ços escritos, dança efêmera. O leitor insinua as rotas
de prazer e uma representa
ção no texto de um outro: ele “braconne”, se
transporta para o texto, ele se faz plural com os barulhos do corpo. Rotas,
metamorfoses, combina
ções. Esta produção é também uma invenção da
memória. O lisível muda em memorial. Um mundo diferente (aquele do lei-
tor) se introduz no lugar do autor.
(CERTEAU, in Marialva Barbosa, 2002, p. 6)
O leitor é assim reconhecido como capaz de uma atividade inventiva e criativa autô-
noma. Sua atividade n
ão se reduz àquela de simples consumidor passivo dos medias.
A no
ção de consumo toma, pois, um outro sentido, diferente da que é habitualmen-
te atribuída pelo modelo clássico de economia de mercado.
Nesse modelo, o p
úblico é investido de uma co-responsabilidade na produção das sig-
nificações culturais atribu
ídas aos meios de comunicação. Certeau reconhece, assim,
que os atores-consumidores t
êm a possibilidade de se construir, enquanto sujeitos au-
tônomos, através do processos de consumo quotidiano, seja este midiático ouo.
Dessa forma, nos apropriando da perspectiva de Certeau que entende a exist
ência
de uma criatividade nos gestos mais simples empreendidos pelos indiv
íduos, que
buscam, cada um a sua maneira, uma forma de caminhar na floresta dos produtos
impostos, apropriando-se e fazendo leituras diferenciadas desses produtos num es
-
paço de tensões, definido por Martín-Barbero como o da recepção, é que situamos
o entendimento do receptor evocado nesta pesquisa.
44
Aspectos históricos e teóricos
1
LOPES, 2004, p. 42
II.3 Percepção e contratos de comunicação
A comunicação sempre foi um contrato entre as partes envolvidas, bem mais do que
a aplica
ção esquemática da teoria da matemática da comunicação/informação de
Shannon, que serviu de base para os primeiros estudos comunicacionais, e ainda,
de algum modo os influenciam. Esse contrato, segundo Lopes, n
ão envolve neces-
sariamente a ordem de preval
ência dos emissores sobre os receptores, a não ser em
situações rígidas de poder, em que se impõe ao público determinados argumentos
e discursos, os quais n
ão podem ser apenas sinônimos da fala e da escrita, já que as
manifestações comunicacionais jamais se circunscrevem aos limites de ambas.
Restringir os atos e as situações comunicacionais à linguagem e ter como modelo
ideal a conversa entre dois falantes ou a leitura de livros e peri
ódico, para Lopes é
um equ
ívoco. A fala e o texto podem até não existir ou serem secundários diante da
gestualidade, da imagem, do som, da ambi
ência, da motricidade e do texto cênico
em que a comunicação se processa. Mesmo quando a fala e o texto s
ão centrais,
de se considerar os demais elementos n
ão lingüísticos que os acompanham.
Assim, o que caracterizaria a exist
ência do contrato “é a constatação da passagem de
mensagens entre partes envolvidas, em um quadro de cultura prévia”
1
.
Desse modo, um simples olhar ou a visão de determinada imagem gravada em algum
suporte f
ísico constróe atos comunicacionais. E esse contrato pode ser formalizado
desde a relação tradicional entre professor e aluno, padres e fi
éis, até os modernos
programas de televis
ão e suas audiências.
Lopes identifica os contratos comunicacionais a partir de crit
érios que de alguma
forma se interpenetram: 1. Meio utilizado para a emiss
ão, transmissão e recepção de
mensagens; 2. Grupo sociocultural em que
é pactuado, e 3. Contexto social, histórico
e cultural de sua existência.
Para o pesquisador, quando se fala, em contrato de leitura,
é necessário pontuar de
que época e para que grupos socioculturais, pois o mesmo meio de comunicação
gera, em
épocas distintas ou, ao mesmo tempo, contratos diferentes. Isso ocorre,
inclusive, nos atuais meio de comunica
ção de massa, que fazem uma distribuição de
45
Aspectos históricos e teóricos
mensagens de modo universal, celebrando contratos particulares para cada grupo
sociocultural. Portanto, conclui, o contrato refere-se ao ciclo da comunica
ção, indi-
cando o quadro de cultura em que se processa.
O comportamento humano tem v
árias facetas que se desenvolvem na ambiência so-
ciocultural, e uma delas
é a comunicação, que participa do processo de organização
social integrando o fato de que a sociedade se estrutura de acordo com par
âmetros
negociados, impostos ou um pouco de cada coisa. O contrato comunicacional n
ão é
natural, por isso precisa ser pensado, criado, exercitado e conduzido pelos envolvi
-
dos não se restringindo aos atos de fala ou ao texto escrito.
O conceito habermasiano de redes subjetivas ilustra, segundo Lopes, um problema,
estabelecido no fato da comunica
ção ser fundamentalmente subjetiva e representa-
cional. Ela n
ão se confunde com a materialidade objetiva do mundo da vida, apesar
de ser parte integrante dele. As redes integram e validam, separam e negam os atos
e as situa
ções comunicacionais em uma miríade infinita de possibilidades. Haveria,
assim, uma equival
ência entre os conceitos de redes subjetivas e contrato comunica-
cional, nos quais o problema que se coloca
é como as mensagens podem se susten-
tar no tecido social e suscitar os comportamentos humanos.
Se tomarmos um indiv
íduo como exemplo, diríamos que quando ele vê, sente ou
escuta algo diferente de seu sistema de cren
ças, acumulado na forma de memória,
ele buscaria validar ou negar o “novo”, com poss
íveis nuanças ou incompletudes,
conferindo a nova informa
ção, antes de armazená-la, fundindo-a com o seu self,
consultando o grupo de pessoas mais pr
óximo de sua existência. Caso contrário, a
mesma pode ser rejeitada totalmente ou parcialmente. No entanto, se essa infor
-
mação questionar elementos centrais do sistema de crenças do indivíduo o choque
pode fazer com que o mesmo repense sua participa
ção em sua rede subjetiva. Se o
que se v
ê, sente e escuta é uma repetição do que se sabe, o processo de validação é
automático, não sendo necessário operações mais complexas.
Entendendo a vida em movimento, pode-se dizer que as relações sociais, do pon-
to de vista comunicacional, consistiriam na troca constante de informões que
conformam a mesma rede subjetiva. Essas trocas seriam pautadas, na maior parte
dos casos, na repetição dos padrões de conhecimento estabelecidos de modo con-
sensual. A luta ocorreria quando aparecesse algo novo, sobre o qual a (s) rede (s)
teria de se postar, exigindo a validação, a rejeição ou algo intermedi
ário. Portanto,
o processo individual seria uma dimens
ão do coletivo, de acordo com o estabeleci-
mento das conex
ões entre os parcipes de uma mesma rede (LOPES, 2004).
46
As redes intersubjetivas do mundo atual realizam trocas similares com as mídias, o
que significa dizer que, al
ém de continuarem a trocar informações em seu interior,
elas mant
êm um diálogo silencioso com as mídias, sobretudo com a televisão. Esse
diálogo torna-se audível quando levado para o interior da rede, na forma das trocas
intersubjetivas, próprias das relações interpessoais.
Em resumo, comunicar consiste um processo intersubjetivo de validação. Subje-
tivamente, a comunicação existe quando integra nossas percepções, dialogando
com nossos padr
ões comunicacionais intrapsíquicos (LOPES, 2004). Seguindo esse
racioc
ínio podemos concluir que uma peça publicitária, por exemplo, não é um ato
comunicacional em si mesmo, funciona assim, quando exibida e percebida por sua
audi
ência.
A comunicação externa e a interna aos homens e mulheres tem fortes parâmetros
morais. E a moral, segundo os pressupostos de Habermas (1989), mesclando-os
à
teoria das representa
ções de Putman (1988), é uma das crenças que perpassam os
atos e a situa
ções comunicacionais. Ela faz parte da cultura e é lida e relida pelos
atores comunicacionais que as relacionam as suas realidades materiais e simb
ólicas.
Por isso, n
ão é universal e nem única em uma mesma sociedade, sendo o resultado
da valida
ção e da negação feitas pelas redes subjetivas que a reexaminam a todo
tempo à luz da tradição e das experiências compartilhadas.
Assim, validar ou negar algo numa situação comunicacional implica uma série de
fatores internos e externos aos agentes comunicacionais, fatores esses que passam
entre outros pela percepção.
Se comunicar
é agir (comportamental) social, como quer Habermas, ela só é possível
pelo efeito perceptivo.
Se imaginarmos um mundo em que os homens e mulheres o podem captar a
ambi
ência que os cerca (receão), também o podem reagir ao meio (emissão)
ou produzir algum efeito comunicacional, lingüístico ou extralingüístico. Nesse
sentido, a perceão, assim como a recepção e a emiss
ão, pode ser individual e
coletiv
a:
Percebemos o mundo como indivíduos e como membros de um entorno so-
cial. Se tivermos o mesmo
status social, cultura, faixa etária, etc, tenderemos
a perceber a ambi
ência externa direta e o bombardeio de mensagens midi-
áticas de modo similar. Mas (...) há diferenças na percepção dos indivíduos,
Aspectos históricos e teóricos
47
Aspectos históricos e teóricos
2
LOPES, 2004 p.63
as quais revelam especificidades da natureza fisico-biol
ógica e psicológica
da capacidade perceptiva de cada um.
(LOPES, 2004, p. 62)
Se é verdade que alguns atos comunicacionais, como a publicidade de consumo, bus-
cam reduzir os indiv
íduos a seres repetidores acríticos de mensagens, é também verda-
de que só funcionam a contento quando conseguem atingir e mediar algo previamen
-
te existente na capacidade perceptiva dos indiv
íduos, classes e grupos socioculturais.
Atualmente, a media
ção maquímica é a regra hegemônica do processo de comuni-
cação. Grande parte do que sentimos, sabemos ou dizemos relaciona-se com o que
recebemos das m
ídias eletro-eletrônicas e impressas. Embora não tenham deixado
de existir as tradicionais sociabilidades comunicacionais como a conversa, a reuni
ão
e a aula, essas n
ão estão imunes às mídias. Nem mesmo os locais mais isolados dos
grande centros escapam dessa l
ógica, considerando que as mídias funcionam como
referências básicas para a grande maioria das pessoas do mundo contemporâneo.
A escolha da percepção como ponto de passagem do processo da comunicação acon-
tece em defesa da filosofia dos sujeitos na cren
ça de que: “uma possível hermenêutica
do agir comunicacional deve estar centrada na compreens
ão da ação individual e cole-
tiva dos humanos com suas peculiaridades e inserções no contexto hist
órico”
2
.
A percepção, para Lopes, apoiado na fenomenologia de Merleau-Ponty, é uma opera
-
ção do sujeito, algo entre o objeto e o subjetivo. Esse autor deslocar o eixo tradicional
da compreens
ão do problema para o corpo e mente de quem percebe, que executaria
essa ação de determinado modo, apreens
ível pelo conhecimento mais integral do fe-
nômeno. Ele lembra que a percepção é um fenômeno da consciência. Nossos sentidos
captariam o mundo exterior, com todos os seus limites, e com eles construir
íamos
mentalmente a imagem do que vemos e ouvimos para al
ém do que sentimos.
Assim, para os efeitos dessa pesquisa a percep
ção é entendida como uma represen-
tação no sentido que Putmam (1988) confere a esta palavra, isto é, uma construção
que nos permite situar a n
ós mesmos no tempo e no espaço; aplicar critérios norma-
tivos (moral) e agir de acordo com a nossa consciência.
Essas reflex
ões sobre a percepção são necessárias para que se possa introduzir algu-
mas perspectivas sobre o consumo enfatizando a dial
ética ao qual está imerso e os
sentidos que produz no cotidiano dos indivíduos.
III - Pesquisa de
Campo
49
Pesquisa de Campo
III.1 Contexto
III.1.1 As novas configuração do local
Na tradição sociológica, o termo local e seus derivados, como localidade e localismo,
têm sido em geral associados à noção de um espaço particular delimitado, com seu
conjunto de relações sociais estreitas, baseadas em fortes la
ços familiares e tempo de
resid
ência. Presume-se, normalmente, uma identidade cultural estável, homogênea,
integrada e ao mesmo tempo duradoura e
única.
Nesse sentido, freq
üentemente, se pensou que os membros de uma localidade for-
mavam uma comunidade distinta, com sua pr
ópria cultura única característica que
tende a transformar o local de suas intera
ções cotidianas de um mero espaço físico
a um “lugar”.
Segundo Mike Featherstone
1
, boa parte da pesquisa sobre localidades desenvolvi-
da em sociologia urbana e de comunidades foi influenciada por dois pressupostos
principais. O primeiro deriva de modelos de mudan
ça social do século XIX, em que
o passado era visto como tempo de rela
ções sociais mais simples, mais diretas e
mais fortes. O segundo deriva da Antropologia e destaca a necessidade de fornecer
descrições etnologicamente ricas de particularidades de pequenas cidades ou aldeias
relativamente isoladas.
Ao tentar delimitar as fronteira das localidades, rapidamente ficou claro para os
antropólogos que até a mais remota e mais isolada localidade estava firmemente
ligada a sociedades nacionais. A ilus
ão de isolamento que levava os pesquisadores à
rica particularidade das tradi
ções locais, logo se desfazia ante a aceitação de que “a
pequena cidade estava dentro da sociedade de massa”
2
.
Se pensarmos em uma localidade, tendo em mente um lugar relativamente peque
-
no, onde todos se conhecem e onde a vida social, e a
í inclui-se a interação proporcio-
nada pelas novas tecnologias da comunica
ção e informação, tende a produzir efeitos
homogeneizantes, semelhantes aos que acontecem nas sociedades nacionais, temos
2
VIDICH e BENSMAN, in id., ibid.
1
FEATHERSTONE, M., 1997, p. 121
50
aí alguns problemas. É nesse momento, que alguns cometem o equívoco de pressu-
por que a extens
ão das várias formas sociais e culturais às diversas partes do mundo
necessariamente produz homogeneiza
ção de conteúdo. Isto é, considera-se o pro-
cesso de globalização, produtor de uma cultura comum, unificada e integrada.
Assim, encontramos teorias sobre imperalismo cultural e imperalismos dos meios de
comunicação, pressupondo que as culturas locais são necessariamente destruídas
pela prolifera
ção de mercadorias, publicidade e programas de meios de comunica-
ção nascidos no Ocidente.
Essas teorias, juntamente com as teorias da comunicação de massa, compartilham de
uma forte perspectiva da possibilidade de manipulação de audi
ências e do pressupos-
to de que os efeitos culturais negativos produzidos pela m
ídia são auto-evidentes, e
acompanhados de pouca evid
ência empírica de como as mercadorias e as informações
são adaptas e usadas na vida cotidiana, como defende Michael de Certeau.
Ao tratar da possibilidade de homogeneiza
ção das identidades nacionais ante a ame-
aça a unidade das culturas nacionais, provocada pelos movimentos globalizantes,
Stuart Hall recorrer
à observação de Kevin Robin, que afirma que ao lado da tendên-
cia de homogeneiza
ção global, também uma fascinação com a diferença e com a
mercantilização da etnia e da alteridade. Para Hall, há justamente com o impacto do
global um novo interesse pelo local:
A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia da criação
de “nichos” de mercado), na verdade, explora a diferencia
ção local. Assim,
ao inv
és de pensar no global como “substituindo” o local, seria mais acura-
do pensar numa nova articulação entre o global e o local.
(HALL, 2001, p. 37)
Assim, o local passa a ser entendido como uma moeda de troca no ambiente globalizado.
Suas caracter
ísticas específicas o trocadas por um espo na vitrine global da sociedade
de consumo. No entanto, esse local a que Hall se refere é diferente daquele conceituado
pela vio da tradição sociogica, descrito no início deste texto. Esse novo local, sem
rzes e localidades delimitadas atua, agora, no interior da lógica da globalização.
Nesse sentido, cabem aqui algumas conclusões de Bourdin sobre essa nova configura-
ção do local:
Pesquisa de Campo
51
Hoje, o território total e imutável não existe mais e qualquer tentativa de
defini-lo é suspeita ideológica, sobretudo se ela se apresenta com uma frieza
de cientificidade. Cada territ
ório local é parcial, transitório e vago, o essen-
cial é que ele funcione para os objetivos que lhes são propostos, que
satisfação e que não se prolongue quando se perde o interesse.
(BOUDIN, 2001, p. 63)
Considerando essa nova perspectiva do local, torna-se significativo tentar delinear
algumas estrat
égias de absorção, assimilação e resistência que as culturas periféricas
podem adotar diante das imagens e bens culturais de massa originados nos centros
metropolitanos, como prop
õe Certeau. A existência de tais estratégias nos parecem
representar poderosas mediações no processo de produção de sentido.
Diante do que revimos,
à luz dos estudos culturais já apresentados, podemos pensar
nessa nova perspectiva do local como um forte mediador na produ
ção de sentido, se
considerarmos que estar localizado representa, na contemporaneidade, um diferen
-
cial no mundo globalizado.
Para quem estava condenado a desaparecer na avalanche dos processos ocorrentes em
escala global, o local surpreende ao estabelecer novas relações com a sociedade em
rede, valorizando suas culturas e demonstrando estar aberto
às perspectivas globais.
Remetendo à perspectiva amazônica, campo dessa pesquisa, faz-se importante des-
tacar a relev
ância de suas caraterísticas - distanciamento dos grandes centros, isola-
mento geogr
áfico, baixa densidade demográfica e significativo grau de conexão com
o mundo, por meio das tecnologias de comunica
ção e informação - para o estudo
proposto, cuja pr
ática vai exigir um novo olhar sob o local, que agora desenvolve
estratégias de resistência capazes de garantir o seu espaço no novo mapa global.
E é olhando para o espaço amazônico com um lugar reconfigurado e integrado ao
nova mapa global que desenvolvemos este estudo.
III.1.2 O local amazônica
A Amazônia é a maior região florestal e hidrográfica do mundo. Ocupa grande parte
do hemisfério setentrional da América do Sul.
Estende-se das margens do Oceano Atl
ântico, no Leste, ao sopé da Cordilheira dos
Pesquisa de Campo
No contraste, a morada simples,
a exuberância tecnológica da
parabólica e a selva.
52
Andes, no Oeste. Espalha-se pelas Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e
Bolívia, perfazendo mais de 6 milhões de km
2
.
O vale amazonense
é, ao sul, ainda abastecido pelos rios que descem do Planalto
Central brasileiro e dos que v
êm da região das Guianas; ao norte, pelos filetes de
água gelada que se desprendem da “corcova andina”, fazendo com que termine por
assumir a forma de um leque, pelo qual escorre 1/5 da água doce do Planeta
3
.
Devido a dificuldades de acesso e consequentemente de explora
ção economicamen-
te, a Amaz
ônia é uma das áreas mais subpovoadas do globo. É uma espécie de de-
serto verde, pertencente a uma
época em que a Terra ainda amanhecia, abrigando
uma das populações mais primitivas que se conhece.
O deslumbramento com o territ
ório amazônico foi até motivo de condenação pela
Santa Inquisi
ção. O português Pedro de Hates Hanequim, que viveu na Brasil por
mais de 20 anos, no S
éculo XVIII, acreditava ter sido, a Amazônia, a morada de Adão.
A certeza de ter habitado o para
íso era tanta que ao retornar à Portugal deixou-se
processar e executar, afogado e queimado, em 1744, por ordem de um Tribunal do
Santo Ofício pelo crime de heresia e apostasia, sem jamais ter pedido clemência
4
.
Diversos governos, brasileiros e vizinhos, at
é hoje procuram integrá-la promovendo
sua ocupa
ção por garimpeiros, extrativistas, sertanejos, criadores de gado e empre-
sas de minera
ção. O resultado disso são as intensas queimadas, ou coivaras
5
, e a
exploração indiscriminada de recursos naturais, que até hoje geram
graves problemas ambientais e sociais. No Amap
á, des-
tacamos os projetos da Jari Celulose
6
e da mineradora
americana ICOMI
7
.
É por causa de projetos dessa natureza que
o ec
ólogo Robert Goodland e o botânico Ho-
ward Irwin temem que o “deserto verde torne-
se um deserto vermelho”
8
, conforme o subtítu-
lo de obra assinada por deles.
O destino da Amaz
ônia, portanto, tem preocu-
Pesquisa de Campo
3
PILLON, 2002, p. 122
4
id., ibid., p. 104
5
Antigo método indígena de limpar o terreno para a lavoura.
6
SAUTCHUK, J., 1979
7
MARTIRE, S., 2003
8
GOODLAND, R., 1989
53
pado as mais diversas instituições. Tanto a ONU, quanto organizações não-governa-
mentais ambientalistas temem por um desastre irreversível.
O governo brasileiro sofre press
ões de todos os lados para tentar coibir a ocupação
predatória, ao mesmo tempo em que é politicamente constrangido pelos interesses
internos a que propicie vantagens, isen
ções e benefícios a grupos, empresas ou clas-
ses, para acelerar a sua exploração econômica.
Nessa tens
ão, entre os apelos internacionais e a satisfação das necessidades locais de
crescimento, Brasília vai alternando suas políticas para a região.
No entanto, há quase duas décadas o mundo se voltou para a Amazônia; seja como
estratégia de poder, considerando a rica biodiversidade do local, seja por reconhecer
na sua existência e preservação elementos essenciais para o
equilíbrio da vida do
Planeta.
no Brasil, a floresta ocupa 5,2 milhões de km
2
, que corresponde a 61% de todo
o territ
ório nacional. O último grande espaço inexplorado do Planeta abriga 30% da
biodiversidade da Terra.
A extens
ão da região sempre foi fator determinante no seu processo de povoamen-
to, mas aos poucos a densidade da floresta foi cedendo espa
ço a reduzidas, porém
significativas, em termos qualitativos, concentra
ções urbanas
9
. O IBGE
10
estima que
pelo menos dois milh
ões de brasileiros vivam isolados no interior da floresta, onde,
muitas vezes, o
único contato com a vida urbana e o mundo exterior é estabelecido
através dos meios de comunicação.
Uma curta viagem pelo interior dos estados amaz
ônicos é suficiente para encontrar
vilarejos pobres, onde n
ão é fácil perceber que falta o básico para uma vida digna, no
entanto, a presença da antena parabólica nos quintais, opõe-se a pobreza evidente.
Num cen
ário onde as riquezas naturais contrastam com o subdesenvolvimento eco-
nômico, está o caboclo amazônida, mestiço de índio e negro, que predomina na
região, também ocupada por comunidades indígenas e negras.
Nesse contexto, emergem algumas queses quanto à produção de sentidos elaborada
a partir do consumo di
ário da dia televisiva, pelas comunidades locais: como esse
consumo estaria se refletindo no cotidiano do caboclos? Que sentidos estariam sendo
produzidos no confronte entre a cultura local e os conte
údos transmitidos por essa mí-
Pesquisa de Campo
9
Belém e Manaus possuem mais de um milhão de habitantes.
10
CENSO 2000
54
dia? Seriam esses consumidores o criativos e habilidosos quanto os apontados por
Certeau? Qual o discurso desses indiv
íduos sobre a televisão?
É no coração da grande floresta, às margens do maior rio do mundo, em volume
d´água, que fomos em busca do consumidor co-produtor de sentidos, anunciado
por Certeau.
III.1.3 Um lugar na maior floresta do mundo
O lugar é a Vila Progresso, localizada no Distrito do Bailique, Município de Macapá,
Estado do Amap
á. O Distrito é constituído por um arquipélado de oito ilhas e está situ-
ado na Foz do Rio Amazonas, distante 185 km, por via fluvial, da capital Macap
á. Essa
área continental também é conhecida como Região do Pacou Baixo Araguari.
As florestas e campos de v
árzea, ecossistemas típicos da região, caracterizam-se por
serem, periodicamente, inundados pelas mar
és. Igarapés cortam as ilhas em todas as
direções, levando e trazendo a água das marés.
Integram o Distrito, as ilhas de Brigue, Marinheiro, Faustino, Franco, Ilha do Meio, Para-
zinho, Curuá e Bailique, que juntas abrigam uma populão de quatro mil duzentos e
setenta e quatro habitantes
11
.
Segundo dados da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, a falta de um consenso
quanto ao n
úmero de comunidades existentes no Arquipélago, que variariam de 38
a 53, deixa margem para a suspeita de que a popula
ção local possa chegar a cinco
mil habitantes.
De acordo com os dados oficiais, as vilas Macedonia e Progresso constituem os maiores
núcleos de contração populacional do lugar, ambas com pouco mais 300 habitantes.
A Vila Progresso, campo desse estudo, foi fundada na d
écada de 70 pelos pescado-
res Cl
áudio dos Santos Barbosa e Júlio Queiroz Filho. Segundo seus descendestes, o
nome dado a vila foi a forma encontrada por eles para dimensionar a perspectiva de
desenvolvimento do lugar.
Passados 30 anos, o progresso o chegou como talvez almejassem seus fundadores,
mas na vila, distante 12 horas de barco da capital Macap
á, experimenta-se o que de
mais moderno na regi
ão.
Com seus 431 habitantes, ela representa o maior centro populacional do Distrito do
Pesquisa de Campo
11
Secretaria Estadual de Meio Ambiente - SEMA; Projeto Coleta de Lixo.
55
Bailique. Dispõe de energia elétrica 24 horas, por dia, água tratada, posto de saúde,
agente distrital, cart
ório, juizado cível e mais da metade das residências possuem
televisão e antena parabólica para captação do sinal, via satélite. Os moradores con-
tam, ainda, com uma r
ádio comunitária e as crianças têm escola pública até o Ensino
Médio. O que é considerado um privilégio para os padrões do lugar, onde habitam
comunidades que sobrevivem basicamente da pesca artesanal.
Apesar do “progresso” em rela
ção às comunidades do entorno, a vila não perdeu as
características típicas das comunidades ribeirinhas.
Na
época das marés altas, o lugar é inundado e, por isso, as casas são construídas
bem acima do n
ível do rio. No inverno, os quintais alagam, e no verão, o assoalho alto
facilita a ventilação da cas
a.
Na vila, em lugar de ruas, pontes servem de passagem para os moradores. Elas cruzam
a comunidade de ponta a ponta e como nas cidades, est
ão sempre em movimento.
Para que serve um endere
ço se não para possibilitar aos Correios a entrega de cor-
respondências? Na comunidade, o endereço supera esse fim, considerando que o
serviço da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos não chega ao Distrito. Mesmo
sem a presen
ça dos Correios, as ruas-pontes foram mapeadas e receberam nomes de
rios da região.
A energia el
étrica, rem chegada ao lugar e que movimenta e facilita a vida na vila, é
gerada por barulhentos motores movidos a
óleo que custam uma pequena fortuna aos
cofres p
úblicos. Ningm paga pelos servos de água tratada e energia elétrica, pois o
sistema banrio no lugar, ou qualquer outro sistema que possibilite a cobrança.
A ausência do sistema bancário na região faz com que os ribeirinhos tenham que se
deslocar até Macapá para receber seus proventos.
A vilao possui um centro para onde convergiria o movimento do lugar, como ocorre
na maioria das cidades, inclusive nas de pequeno porte. Esse centro, caracterizado pela
concentração de instituões sociais do tipo: igreja, clube ou centro comunit
ário, pra,
delegacia, escola e a autoridade do Poder Executivo local, o existe no lugar. uma
ponte, digamos, “principal”, que cruza a vila de um extremo ao outro, servindo de refe
-
ncia para a construção de pontes menores, estando as instituições presentes na socie-
dade dispersas ao longo dessa ponte, mas sem um lugar de concentração espefico, o
que faz com que o movimento central t
ípico das concentrões urbanas dê lugar a um ir
e ir constante em dirão a lugares dispersos ao longo da ponte principa
l.
Pesquisa de Campo
A ponte principal por onde escoa
o movimento na Progresso.
56
III.1.4 O cotidiano na Progresso
Ao chegar à vila, o movimento é o que mais chama atenção.
Ao contr
ário do que acontece na maioria das pequenas comu-
nidades do interior da floresta, onde o sil
êncio e a falta do que
fazer predominam, na Progresso tudo se move. O sil
êncio típico
do interior
é rompido pela música que toca sem parar na rádio
comunitária. Ouvintes atentos se dividem entre as músicas, o no-
ticiário local e a programação da televisão, que via satélite, capta
sinais que vão além da TV aberta.
O trânsito de pedestres na ponte principal é
constante, mas atinge picos nos hor
ários que
correspondem ao atracar das embarcações nos pequenos portos, constru
ídos pe-
los moradores que det
êm mais recursos, e à entrada e saída da escola.
A maior e mais importante escola do lugar é responsável por boa parte do intenso
movimento na vila, que acabou se tornando uma esp
écie de centro de referência edu-
cacional na regi
ão, atraindo dezenas de famílias em busca de estudos para os filhos.
A Escola Bosque, um projeto premiado pela Organiza
ção das Nações Unidas, foi ide-
alizada pelo governo do estado h
á 8 anos. Seu Projeto Político Pedagógico é baseado
na metodologia s
ócio-ambiente, que prevê o ensino a partir do meio ambiente no
qual a popula
ção está inserida. Todas as disciplinas são ensinadas a partir dos recur-
sos da floresta.
Oferecendo do Ensino Fundamental ao dio, a implantação da escola conseguiu
conter o
êxodo das famílias, que buscavam a capital para proporcionar estudo aos
filh
os.
Durante os anos em que a Bosque ofereceu o curso de magistério, dezenas de jovens fo-
ram habilitados e muitos hoje atuam como professores nas escolas p
úblicas da rego.
O desejo de estudar atrai, para a Progresso, jovens de todo o arquip
élago. Algumas
famílias chegam a se mudar para a vila, quase sempre sem o pai, que confinado na
fazenda onde trabalha como peão, provê o sustento da família.
Muitos s
ão os casos de adolescentes que moram sozinhos na Progresso. Sem con-
dições de largar o emprego, os país alugam ou até compram pequenas casas para
abrigar os filhos, e estes, por sua vez, se mant
êm caçando e pescando, pois não
emprego para todos.
Pesquisa de Campo
Pátio da Escola Bosque,
vazio nas férias escolares.
57
Para os que não podem morar na vila, o desafio é cruzar o rio. Alguns jovens chegam
a remar por horas para chegar à Bosque.
As comunidades mais distantes s
ão beneficiadas com uma embarcação pública que
percorre as mesmas, levando e trazendo os estudantes.
Nos finais de semana, quando a escola entra em recesso,
o movimento na comunidade fica por conta das ativida
-
des religiosas promovidas por cat
ólicos e evanlicos e
pelas festas dan
çantes animadas por enormes aparelha-
gens de som. O barulho é tanto que é poss
ível ouvi-lo do
outro lado do ri
o.
Outra atividade muito comum no lugar s
ão os torneios comu-
nitários de futebol. A paixão pelo esporte chegar a im-
pressionar n
ão apenas pela expressividade dos torcedores,
manifestada nas bandeiras de clubes (nacionais) e nas cole
ções de troféus, exibidas
em lugar de destaque da sala, mas pela forma indistinta como o esporte
é praticado.
Os torneios, que movimentam o arquip
élago, são disputados por times formados
por mulheres e homens, sem distinção de idade.
Devido à caraterística alagada da região, em parte do ano, áreas são cobertas de
moinha para possibilitar a prática do esporte.
Os per
íodos de competão proporcionam grande movimento nos rios, com ir e
vir de embarcações levando e trazendo competidores e torcedores, e nas comu
-
nidades que se organizam para competir.
III.1.5 O progresso limitado da vila
A descrição do cotidiano movimentado da Progresso pode deixar transparecer uma
falsa impress
ão de que tudo por é realmente progressista e que esse lugar é uma
espécie de oásis no deserto, onde tudo é solução e nada é problema. Mas não é bem
assim, e as dificuldades começam no translado de barco de Macapá até a vila.
São doze horas de uma viagem que parece não ter fim. As condições de segurança
das embarca
ções são duvidosas. Não fiscalização continua pela Capitania dos
Portos.
Nos barcos, um emaranhado de redes disputa cada cent
ímetro do espaço disponível.
Pesquisa de Campo
O amontoado de
redes na embarcação
Deus nos Guie: 12
horas até à Progresso.
58
Uma rápida contagem e a constatação: o número de salva vidas não corresponde à
quantidade de redes.
“Deus nos Guie”
é a maior e mais segura embarcação, segundo os ribeirinhos. A
passagem chega a custar vinte e cinco reais. A viagem no ver
ão é turbulenta, pois as
águas da Baia de São Pedro ficam muito agitadas nessa época do ano. No inverno,
dizem os caboclos: “a estrada é asfaltada”.
As hist
órias de naufrágios são muitas, mas ninguém comenta. A impressão que se
tem é de que falar é de mau agouro. Ninguém reclama. Afinal, as opções são tão
poucas e caras que
é melhor deixar para lá: “ruim com, pior sem”, como dizem os
caboclos.
Além do “Deus nos Guie”, outras dez embarcações menores fazem linha para o
arquipélago, alternando os dias de saída e chegada nas comunidades. Nos barcos
menores a passagem custa menos, mas em compensação os riscos são maiores.
Os dados desta pesquisa foram coletados no final do ver
ão amazônico. Época de
águas já calmas e desova dos peixes.
Por vários dias acordei com barulho de tiros. Eram os ribeirinhos em busca de alimen-
tos. Na
época da desova, a cultura local determina a redução quase que zero do con-
sumo de pescados. É um acordo entre o homem e a natureza para garantir fartura nas
pr
óximas estações.
Paralelo ao cotidiano agitado descrito anteriormente, transcorre um outro: lento e
repetitivo, como manda a tradição interiorana.
Os ribeirinhos constituem fam
ília muito cedo. É comum verificar famílias numerosas
em que mulheres, aos 19, anos já são mães de pelo menos quatro filhos.
Apesar da presen
ça do poder público, a comunidade é carente de coisas básicas
como um m
édico em tempo integral. O posto de saúde presta um atendimento limi-
tado. Emergências e doentes em estado grave têm que ser tratados na capital.
Não rede de esgoto, utiliza-se fossa, e a água
tratada é um benefício recente, assim como a
energia el
étrica, que em tempo integral
tem pouco mais de 2 anos.
Pesquisa de Campo
59
Emprego para quem não tem qualificação só como vaqueiro nas fazendas próximas
ou agente de servi
ços gerais nas escolas e outras representações de órgãos públicos.
As melhores fun
ções são ocupadas por gente da capital. A de professor é o maior
exemplo, quase todos são de Macapá.
Os jovens, sem op
ção de trabalho, dedicam-se exclusivamente à escola, sonhando
poder estudar na capital, fazer vestibular e um curso superior, quem sabe at
é fora do
estado, para um dia voltar e trabalhar no lugar onde nasceram.
Essa expectativa da juventude ribeira est
á entre as muitas observações etnográficas
analisadas no pr
óximo capítulo que demonstram a força da cultura local, mesmo
estando fortemente mediada pelos conteúdos midiáticos acessados por eles.
Pesquisa de Campo
60
Pesquisa de Campo
III.2 Análise Etnográfica: O Consumo de mídia televisiva e a
produção de sentido
III.2.1 A dialética do consumo: sujeitos e objetos
A produção em escala industrial introduziu no mundo moderno uma objetividade
sem precedentes na hist
ória. Se por um lado mais coisas são produzidas, por outro
uma parte maior da vida social passa a ser produzida como uma coisa. Nesse sentido,
a quest
ão central, segundo Slater é, como, nas condições sociais modernas, nos rela-
cionamos com as coisas e com a natureza “coisificada” de boa parte da vida social?
A pr
ópria idéia de consumo pode seguir esse mesmo raciocínio, ou seja, como os
sujeitos sociais, com suas necessidades, se relacionam com as coisas do mundo que
podem satisfazê-los?
Pensar o consumo a partir da rela
ção sujeito e objeto nos remete, ainda que a gros-
seiramente, ao cogito de Descartes que ver o mundo dividido entre sujeitos humanos
- dotados de uma mente ou consci
ência que pensa, sabe, acredita e atribui significa-
dos e valores ao mundo - e objetos.
Nesse sentido, o mundo
é visto como matéria em movimento, como um conjunto de
coisas que interagem, que podem ser observadas e compreendidas sob a forma de
fatos, mas que s
ão, em si mesmas, destituídas de subjetividade, de mente ou espíri-
to, de significação ou essência.
Considerando essa distin
ção, de que modo, então, os seres humanos assimilam o
mundo dos objetos em sua experiência subjetiva?
A filosofia ocidental tem se preocupado basicamente com a assimila
ção dos objetos
na experi
ência subjetiva por meio de uma relação de conhecimento. Slater nos diz
que quando esse conhecimento
é pensado segundo às formas (sociais) que assume:
senso comum, ci
ência, tecnologia, exploração, descoberta e invenção, vemos que a
assimilação também pode significar a apropriação dos objetos pelos sujeitos.
Os objetos, ent
ão, seriam assimilados na experiência subjetiva dos indivíduos, ou da
coletividade, sob a forma de cultura e produção sendo apropriados
às finalidades
61
Pesquisa de Campo
1
SLATER, 2002, p. 102
2
HEGEL in SLATER, 2002, p. 101
humanas. Assim, selecionamos, usamos, fabricamos, possuímos e transformamos os
objetos de acordo com metas, objetivos, desejos e necessidades por n
ós postulados.
Em certa medida, esse talvez seja o único significado claro do consumo, ou seja,
o de que vemos o mundo e o assimilamos, tanto intelectualmente, quanto na
pr
ática, à luz de projetos e desejos subjetivos.
Mas essa visão de mundo que distingue sujeito e objeto tornando o primeiro pura cons-
ci
ência e razão e o segundo vazio de mente e conscncia que constitui o projeto de
desencantamento ou desmistificação da ci
ência e da razão moderna é também um pro-
jeto de subjugação:
“Destitdos de seus poderes e significados intrínsecos, os objetos
passam a ter significado exclusivamente em termos dos usos que lhes podem ser dados
pelos sujeitos humanos
1
. Dessa forma, os objetos são percebidos exclusivamente em
termos de suas propriedades
úteis, utilidade que possui para os sujeitos.
Essa perspectiva moderna aponta a cultura do consumo como a prova mais drástica de
sua superioridade, considerando que a tecnologia industrial e o planejamento racional
assimilaram de maneira t
ão eficiente o mundo objetivo dos desejos em que toda fan-
tasia conceb
ível pode ser realizada.
Mas se o mundo tornou-se objeto para os sujeitos como eles poderiam chegar a senti-
rem-se bem nel
e?
Essa quest
ão nos coloca diante da suspeita de que sujeito e objeto não podem ser
tão distintos e que há entre eles algo comum.
Hegel
2
vem consolidar essa linha de raciocínio concluindo que a relação entre sujeito
e objeto, na realidade,
é dialética e interpenetrante e não externa e mecânica. É uma
relação ou processo de constituição mútua do sujeito pelo objeto e vice-versa. No
interior dessa dial
ética, Hegel afirma que está no trabalho ou na prática, o fato de
que os sujeitos humanos se envolvem ativamente com o mundo dos objetos, trans
-
formando-os, moldando-os e criando-os com suas atividades intelectuais e práticas.
Ao atuar sobre o mundo, os indiduos e as sociedades o recriam em relão as
suas necessidades e projetos. Suas necessidades sua subjetividade, os significa
-
dos que atribuem ao mundo
são objetivados, assumem foa material nos obje-
tos que produzem
.
Para Hegel, o mundo dos objetos
é a subjetividade humana manifesta na recriação
62
Pesquisa de Campo
3
MILLER, 1987, p. 17
4
CANCLINI, 2001, p. 77
5
id., Ibid.
6
id., Ibid.
do mundo de acordo com a visão que tem dele e ao contrário das visões não-dialéti-
cas, os seres humanos n
ão transformam ou usam simplesmente os objetos segundo
suas necessidades autodefinidas. Na verdade, o mundo que constitu
íram é de fato
objetivo e transforma-se no novo meio ambiente onde vivem pelo qual suas experi
-
ências subjetivas são formadas e limitadas e onde definem e aprimoram suas neces-
sidades, desejos, projetos e planos.
Assim, o mundo que constituíram é conhecido e do qual se apropriam, mas tam-
bém é um mundo que os determina. Ao transformar o mundo transformamos a
nós mesmos.
De acordo com esse pensamento, o consumo n
ão pode ser reduzido a sujeitos que usam
objetos, porque os dois n
ão são independentes. O mundo das coisas é realmente a cultu-
ra em sua forma objetiva.
É a forma que os seres humanos deram ao mundo através de
suas pr
áticas mentais e materiais; ao mesmo tempo as necessidades humanas evoluem e
tomam forma atrav
és dos tipos de coisas que dispõem.
Nessa perspectiva, o consumo é o processo pelo qual a sociedade se reapropria
de sua forma externa isto
é, assimila sua própria cultura e a usa para se desen-
volver enquanto sujeito social
3
.
Analisemos o consumo na perspectiva de Canclini que o define como
: “o conjunto de
processos s
ócio-culturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos”
4
.
Essa caracteriza
ção ajuda a ver o consumo muito mais do que o simples exercício de
gostos, caprichos e compras irrefletidas, mas sobretudo pela sua racionalidade eco
-
nômica: “é o lugar onde se completa o processo iniciado com a gerão de produtos,
em que se realiza a expans
ão do capital e se reproduz a foa do trabalho
5
. Sob esse
enfoque n
ão são as necessidades ou os gostos individuais que determinam o que, como
e quem consome, mas a racionalidade econ
ômica. No entanto, a racionalidade definida
pelos grandes agentes econ
ômicos o é a única a modelar o consumo.
Segundo Canclini, uma teoria mais complexa sobre a interação entre produtores e
consumidores, entre emissores e receptores revela que no consumo se manifesta
também uma racionalidade sociopolítica interativa.
O consumo para Castells
6
, é um lugar onde os conflitos entre classes, originados pela
63
Pesquisa de Campo
desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade através da distri-
buição e apropriação de bens. Assim, consumir é participar do processo de disputa
por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de us
á-lo. Se algum dia o espaço
de consumo foi lugar de decis
ões unilaterais, hoje compreende um espaço de intera-
ção, no qual os produtores e emissores não devem seduzir os destinatários, mas
também justificar-se racionalmente.
Uma outra linha de estudos tem chamado aten
ção para os aspectos simbólicos e
estéticos da racionalidade consumidora, esses estudos entendem o consumo como
um lugar de diferenciação e distinção entre as classes e grupos.
Os textos de Bourdieu (1998), Appadurai (1991) e Ewen (1991), mostram que nas so
-
ciedades contempor
âneas boa parte da racionalidade das relações sociais se constrói
mais na disputa pela apropria
ção dos meios de distinção simbólica do que na luta
pelos meios de produção.
Assim, a l
ógica que rege a apropriação de bens, enquanto objetos de distião, não é a
da satisfão de necessidades, mas sim a da escassez desses bens e da impossibilidade
de que outros os possua
m.
Canclini evoca estudos antropológicos sobre rituais para relacioná-los a uma suposta
irracionalidade dos consumidores. Como diferenciar as formas de gasto que contri
-
buem para a reprodução de uma sociedade daquelas que a dissipam e desagregam
?
Por meio dos rituais, dizem mary Douglas e Baron Isherwood, os grupos sele-
cionam e fixam gra
ças a acordos coletivos os significados que regulam a
vida. Os rituais servem para
“conter o curso dos significadose tornar explí-
citas as definições p
úblicas do que o consenso geral julga valioso. Os rituais
eficazes s
ão os que utilizam objetos matemáticos para estabelecer o sentido
e as pr
áticas que os preservam. Quanto mais caros os bens, mais forte será o
envolvimento afetivo e a ritualização que fixa os significados a eles associa
-
dos. Por isso que, eles definem muitos dos bens que s
ão consumidos como
“acessórios rituais” e vêem o consumo como um processo ritual cuja função
prim
ária consiste em “dar sentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos”.
(CANCLINI, 2001, p. 82)
Assim, comprar objetos, pendur
á-los ou distribuí-los pela casa, assinalar-lhe um lugar
64
em uma ordem, atribuir-lhe funções na comunicação com os outros, são os recursos
para se pensar o pr
óprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com
os demais. Consumir, para Canclini,
é tornar mais inteligível um mundo onde o sóli-
do se evapora. Por isso, al
ém de serem úteis à expansão do mercado, à reprodução
da for
ça de trabalho e para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com
eles, “as mercadorias devem servir para pensar”
7
.
III.2.2 O significado das coisas
“Todo consumo é cultural.”
8
Para Slater, essa afirmação significa várias coisas. E a primeira delas é a de que todo
consumo é cultural, porque sempre envolve significado. Para ter uma necessidade e
agir em fun
ção dela, precisamos ser capazes de interpretar sensações, experiências
e situa
ções e de dar sentido (bem como de transformar) a vários objetos, ações e
recursos em relação a essas necessidades.
O consumo é sempre cultural, também, porque ao contrário do que pensam os uti-
litaristas liberais, os significados envolvidos s
ão, necessariamente, significados parti-
lhados, pois “as preferências individuais são formadas no interior de culturas”
9
.
Quando formulamos significativamente nossas necessidades em rela
ção aos recur-
sos dispon
íveis, tomamos por base a língua, valores, rituais, hábitos e etc, que são
de natureza social.
É importante considerar, ainda, que todas as formas de consumo são culturalmente
específicas, ou seja, são articuladas dentro ou em relação a modos de vida significa-
tivos e específicos.
Slater ilustra da seguinte forma essa reflexão:
Ningm come “comida”: come um sanduíche, um sushi, um salgadi-
nho (e nenhum desses produtos é simplesmente
“comido, mas comido
como
“almo, aperitivo”, lanche de escola”.
(SLATER, 2002, p. 131
)
Pesquisa de Campo
7
CANCLINI, 1990, p. 83
8
CANCLINI, 2001, p. 83
9
id., ibid.
65
Pesquisa de Campo
10
SLATER, 2002, p. 131
E, por fim, é través de formas de consumo culturalmente específicas que produzimos
e reproduzimos culturas, rela
ções sociais e a própria sociedade. Slater amplia essa
assertiva concluindo que ser membro de uma cultura ou de um modo de vida, em
contraposição a simplesmente manter-se vivo, implica o conhecimento dos códigos
locais de necessidades e coisas. Assim, conhecendo e usando os c
ódigos de consumo
de nossa cultura, estar
íamos reproduzindo e demonstrando nossa participação em
determinada ordem social.
A idéia de que o consumo é cultural pode ainda assumir várias formas e um dos argu-
mentos é o de que os seres humanos t
êm necessidades básicas, mas que elas assumem
necessidades diferentes em sociedades diferentes. Um outro argumento é que o con
-
sumo é influenciado pela cultura, ou seja, os indiv
íduos agiriam sempre para satisfa-
ção de desejos privados, mas
às vezes são pressionados em outras direções por forças
culturais. Em ambos os casos, a cultura é um acr
éscimo ao consumo.
Para Staler, um argumento convincente
é o que conta de que a cultura não in-
fluencia o consumo, nem d
á formas específicas a uma necessidade básica, e sim que
cultura constitui as necessidades b
ásicas, os objetos e as práticas de que se compõem
o consumo,
“não é um acréscimo, muito menos uma decoração frívola, superficial ou
luxuosa pintada pelas civilizações opulentas”
10
.
Nessa perspectiva, a cultura representaria o fato de que toda vida social
é significa-
tiva e que as necessidades e usos s
ó podem surgir no interior de um determinado
modo de vida, pois somente em virtude da natureza cultural da vida social
é que
podemos ter necessidades ou identificar objetos que possam satisfazê-las.
O problema central dos argumentos em favor das necessidades b
ásicas é o pressu-
posto de que podemos identificar necessidades b
ásicas, como a fome, independente
das formas culturais específicas que assumem.
A contrapartida da idéia de necessidades básicas é a de objetos básicos. Muitos
concordam que a sociedade de consumo
é, de certo modo, mais cultural em seu
consumo do que outras sociedades, porque a propaganda e o marketing acrescen
-
tam significados externos a objetos basicamente funcionais. Assim, o perfume n
ão
tem somente um cheio bom, mas significa ou promete sexualidade, feminilidade e
prestígio. Essa prática estabelece o significado cultural das coisas não apenas como
supérfluos, mas também mistificadores e voltados para exploração. Fazendo-nos en-
trar numa esfera de signo-mercadorias, a fim de nos induzir a comprar mais, em vez
de nos levar a uma esfera de valor de uso ou utilidade, onde usamos as propriedades
66
Pesquisa de Campo
reais dos objetos para fazer as coisas.
Nessa perspectiva, bastaria retirar os significados culturais externos dos objetos para
desmistificá-los. No entanto, ao afirmamos que todo consumo é cultural, estamos
admitindo que todos os objetos s
ão culturalmente significativos e que, na verdade,
nenhum objeto pode ser simplesmente funcional. T
ão difícil quanto encontrar um
objeto puramente funcional, sem significado, seria encontrar uma necessidade b
ási-
ca separada de sua forma cultural.
Desse modo, a diferen
ça entre cultura do consumo e outros modos de abastecimen-
to n
ão diz respeito a regimes que produzem objetos significativos e regimes que
oferecem objetos racionais ou funcionais, e sim, entre sistemas diferentes em termos
de definir, produzir, distribuir e organizar necessidades e bens significativos e suas
relações, conclui Slater:
O modo dominante através do qual essa reprodução é efetivada numa cul-
tura do consumo
é através das mercadorias. Se a cultura do consumo é
trivial, mistificadora ou voltada para a explora
ção, não é por ser cultural
(enquanto uma forma mais aut
êntica de abastecimento seria racional ou
funcional em seu uso das coisas), mas por causa do tipo de cultura e de
processos culturais, dos tipos de poder sobre a cultura e os significados que
estão envolvidos nas relações de mercadoria.
(SLATER, 2002, p. 136)
E é em busca desses significados que chegamos à Vila Progresso, onde uma juven-
tude preocupada com a apar
ência circulava apressada pelas pontes. A moda, repre-
sentada por elementos em voga na m
ídia televisiva, foi uma das primeiras coisas
que me chamou aten
ção no lugar. Por isso é a partir desse tema que começo a expor
minhas análises, precedidas por alguns relatos histórico.
III.2.3 Moda, mídia e identidade
As sociedades tradicionais tinham papéis sociais e códigos suntuários relativamente
fixos, de tal modo que o traje, a aparência, indicavam instantaneamente a classe
social, a profissão e o status da pessoa. Nessas sociedades, a identidade costumava
ser fixada pelo nascimento, pelo casamento e pela realização pessoal; o repertório
67
Pesquisa de Campo
de papeis sociais era restrito.
Os papéis sexuais eram especialmente rígidos, enquanto o status e o trabalho se cir-
cunscreviam estritamente por c
ódigos sociais estabelecidos e por um sistema obdu-
rado de atribuições e stat
us.
Na Idade M
édia, a identidade na parte ocidental da Europa era especialmente cir-
cunscrita, e as normas chegavam a ditar aquilo que os membros de diferentes classes
podiam ou não usar.
Nas sociedades modernas, foram eliminados os c
ódigos rígidos de vestuário e moda
e a partir do S
éculo XVIII começou a proliferar uma grande variedade de trajes e
aparências (WILSON, 1985).
Embora as imposi
ções do mercado capitalista permitissem a apenas certas classes so-
ciais a possibilidade de arcar com uma indument
ária mais cara, símbolo de privilégio
social e poder, como conseq
üência da revolução francesa a moda se democratizou
nos pa
íses que passaram por essa transformação democrática, de tal modo que qual-
quer um que pudesse pagar por essas roupas poderia vestir e exibir aquilo que bem
entendesse, ao passo que, antes, as leis suntu
árias proibiam os membros de certas
classes de vestir e ostentar em p
úblico os trajes destinados às elites governantes
(EWEN & EWEN,1982).
A modernidade tamb
ém ofereceu novas possibilidades de construção da identidade
permitindo que o indiv
íduo produzisse (dentro de certos limites) a sua própria iden-
tidade e passasse por uma crise de identidade.
no Século XVIII, o filósofo David Hume formulava o problema da identidade pes-
soal, daquilo que constitu
ía a verdadeira individualidade de cada um, chegando a
sugerir que não existe eu substancial ou transcendental.
Na modernidade, a moda é um componente da identidade, ajudando a determinar
de que modo cada pessoa é percebida e aceita (WILSON, 1985). Possibilita escolher
as roupas, estilos e imagens através das quais será possível produzir uma identidade
individual. Em certo sentido, a moda é uma característica da modernidade, sendo
esta interpretada como uma era da história marcada pela perpétua inovação, pela
destruição do velho e pela perpetuação do novo (BERMAM, 1982). Um dos predi-
cados da moda é a constante produção de novos gostos, estilos, trajes e práticas.
A moda perpetuaria a personalidade inquieta e moderna, sempre à procura daquilo
que é novo e admirado, enquanto foge do que é velho e ultrapassado.
Evidentemente, nas sociedades modernas, a moda foi limitada por c
ódigos sexuais,
68
Pesquisa de Campo
pela realidades econômicas e pela força do conformismo social que continuava a di-
tar aquilo que cada um deveria ou n
ão usar, aquilo que cada um deveria ou não ser.
A pr
ópria moda, nesse período, passou por estágios complexos de desenvolvimento
histórico, até que no início do Século XX, houve uma racionalização dos trajes e dos
cosméticos e o mercado começou a produzir mudanças tais que possibilitassem o
acesso das massas ao consumo (EWEN & EWEN, 1982).
No entanto, alguns c
ódigos da moda continuaram a ser relativamente fixos para
algumas classes e regiões.
Na d
écada de 50, nos EUA, os pais, professores e outros árbitros do bom gosto ten-
tavam ditar aquilo que era apropriado ou n
ão usar, policiando, assim, os códigos
de moda e identidade. A transgress
ão dos códigos sexuais em matéria de moda foi,
durante s
éculos, uma boa maneira de identificar-se como proscrito ou até ir parar na
cadeia ou no hospício.
Na d
écada de 60, assistiu-se à maciça tentativa de destruir os códigos culturais do
passados, e para isso a moda foi um elemento importante de constru
ção de novas
identidades, ao lado do sexo, das drogas e do
rock, fenômenos estes que também
fizeram parte das mudan
ças da época, estava na moda a “antimoda” em roupas, e
passaram a ser norma a subvers
ão e a derrubada dos códigos culturais. A chamada
subversão da moda continuou em voga durante as décadas seguintes, e a indústria
do setor possibilitou maior flexibilidade pondo no mercado produtos que permitiam
a constante mutação de estilo e aparência.
Nesse per
íodo, a cultura da mídia se transformou numa fonte particularmente pode-
rosa de moda cultural, pondo
à disposição modelos de aparência, comportamento
e estilo. Os astros do
rock, que usavam cabelos longos e se vestiam de modo pouco
convencional nas d
écadas de 1960 e 1970, influenciavam as mudanças nos cortes de
cabelo, no modo de vestir e no comportamento, ao mesmo tempo que suas atitu
-
des, às vezes rebeldes, serviam de sanção para a revolta social.
A associa
ção entre rock, cabelo comprido, rebeldia social e conformismo em moda
continuou por toda a d
écada de 1970 com ondas sucessivas de heavy metal, punk e
new wave.
A moda e a identidade social fazem parte de um processo de luta e conflito social
entre modelos e ideologia opostas
11
. Assim, os conservadores têm seus próprios
modelos e estilos, tanto quanto os rebeldes culturais. Por tanto, as lutas pol
íticas e
11
KELLNER, 2002, p. 339
69
ideológicas seriam travadas, em parte, no campo da moda.
A fase colegial, em especial,
é um período em que os jovens constróem sua identida-
de, tentando
“tornar-se alguém”
12
. Essa faixa etária tem construído um território de
contradições e lutas nas últimas décadas. Embora certos pais e professores tentem
instilar valores e id
éias tradicionais, a cultura da juventude muitas vezes está em opo-
sição à cultura conservadora.
III.2.3.1 Moda: um valor para a juventude ribeira
Quando cheguei a Vila Progresso para a primeira fase de coleta de dados, devo con
-
fessar que fiquei muito impressionada com o que vi.
Apesar de ter nascido na região, era a primeira vez que chegava ao Bailique.
Mesmo isolado, geograficamente, o arquip
élago é muito conhecido por causa da
experiência da Escola Bosque, sendo inclusive objeto de inúmeros documentários
nacionais e internacionais. Eu sabia que o cotidiano por l
á era diferente. Acreditava
que o lugar era progressivo e que lá vivia uma comunidade ribeira diferente.
Assim, ajustei minhas expectativas ao volume máximo, o que depois de 12 horas de via-
gem fluvial começaram a ser revistas. Era uma lonjura muito grande, como dizem por ,
para imaginar tanto progresso. Eles podem a consumir moda pela dia, por exemplo,
mas jamais realizao isso no seu cotidiano, por mais criativos que sejam, pensava eu,
entre uma chacoalhada e outra da embarcã
o.
Minhas expectativas, agora moderadas, foram todas por água abaixo ao logo da
primeira manhã na Vil
a.
Cheguei de madrugada e meu despertar foi causado pelo um intenso ir e vir de gente
em frente a casa onde me encontrava.
E foi do pátio da casa de madeira, erguida a pelo menos um metro acima do nível
do rio, e coberta com palha seca que me posicionei para observar aquele povo indo
e vindo, nos primeiros dias do ano, e sabe para onde? Para a escola. Era a rapaziada
da recuperaçã
o.
Até tudo bem, pois isso é comum nas área urbanas, se não fosse um detalhe: o
visual um tanto arrumadinho dos meninos e meninas que por ali passavam.
Para começar, o desfile de nis o deixava nada a desejar à juventude de nenhum gran-
Pesquisa de Campo
12
WEXTER, in KELLNER, 2001, p. 331
70
Pesquisa de Campo
de centro urbano: nike, adidas e reebock, estavam entre os mais usados. Tudo imitão.
Mais isso era apenas um detalhe. As meninas, de salto anabela, equilibravam-se pelas ri
-
pas da ponte. As mais velhas nem sequer olhavam para o ch
ão, digo, para a ponte, tanta
era a habilidade em circular por ali naqueles salto
s.
Para combinar com o t
ênis, bermudas ao estilo surfista: azul, amarela, floral. Havia
de tudo. Camisetas com estampas radicais, lembrando
ídolos do rock ou do cinema,
completavam o visual dos meninos, enquanto mini-saias e blusas just
íssimas ao cor-
po, compunham o traje das meninas, caprichosas também nos acessórios.
Os detalhes da vestimenta feminina variavam das pulseiras e brincos
à maquiagem e
o cabelo bem arrumado. Um verdadeiro desfile de moda que se repetiu por todos os
dias, no início da manhã e da tarde, enquanto estive na comunidade.
Mas por que? Questionava-me. N
ão nada nesse lugar que justifique esses meni-
nos e meninas t
ão bem arrumados. Não há um acontecimento especial do tipo festa,
missa, comício político, a presença de um visitante ilustre; nada que justifique.
Percebi que n
ão havia um motivo em especial, além do ir à escola, para o capricho
nas vestes. Todos os dias, os garotos passavam por aquela ponte t
ão arrumados
quanto no dia anterior.
Estar na moda, decididamente, estava na pauta de valores daquela juventude e talvez
tivesse alguma rela
ção com identidade. E segundo as reflexões de Kellner questionei-
me sobre que lutas estariam sendo travadas no imaginário social daqueles meninos
que, aparentemente, se arrumavam para o nada.
Antes de aproximar-me deles em busca de respostas, fiz um passeio pela comunida
-
de a fim de identificar quem eram os fornecedores de tanta novidade, considerando
que à primeira vista não existia no lugar o que se pode chamar de um mercado de
consumo, um centro comercial ou algo parecido. E n
ão foi preciso muita investiga-
ção para que essa suspeita se confirmasse.
III.2.3.2 O mercado de consumo local
Na Vila, realmente, n
ão havia um lugar de concentração do comércio. No varejo lo-
cal, predominam pequenas
“bacas”, que no linguajar popular significa pequeno
com
ércio de variedades, onde são comercializados de gêneros alimentícios a medi-
camentos de venda livre (doril, sonrisal, anador
).
No entanto, um passeio mais atento pela vila revela os meios pelos quais a comuni
-
Casa Andrade, ponto de referência no
consumo dos ribeirinhos.
71
Pesquisa de Campo
dade acessa produtos disseminados pela mídia.
A Casa Andrade
é o maior comércio do lugar funcionando como uma espécie de
Shopping Center, onde se encontra, al
ém de gêneros alimentícios, eletrodomésticos,
artigos de perfumaria, armarinho, material escolar, ferragens, CD musical, artigos de
pesca e vestuário.
A casa existe h
á mais de 20 anos e pertence ao dono do maior barco da região, Mil-
ton Andrade, que é nascido no arquipélago.
Segundo os vendedores da loja, à exceção dos alimentos, os artigos de perfumaria est
ão
entre os mais vendidos, a procura é tanta que a prateleira desses artigos tem que ser
organizada a cada tr
ês dias.
Nesse comércio é posvel en-
contrar produtos das marcas
mais comuns: Bombril, Su
-
crilhos, desodorante Rexo
-
na, sabonetes Dove e Lux
Luxo, sab
ão em Omo,
refrigerante Coca-Cola e
cerveja Sko
l.
A garotada
é a grande
responsável pelo expressi-
vo consumo de biscoitos, refrige
-
rantes e pequenos brinquedos propagan
-
deados pelos desenhos animados captados
via satélite.
As mercadorias, segundo a esposa do proprietário, são compradas em Belém do Pa
e trazidas em embarcação pr
ópria, o que as torna mais em conta do que as comercia-
lizadas em outros ponto
s.
A Casa Andrade emprega pelo menos quatro pessoas.
Outro ponto de referência de consumo na vila é o salão de beleza, onde Eliana
Magalh
ães, de 27 anos, aplica os conhecimentos adquiridos num curso no SENAC,
em Macap
á.
O sal
ão Liana’s Estilos é simples. Espelho, cadeira giratória, lavatório e uma ou outra
cadeira para espera se distribuem num
único cômodo, decorado com alguns pôste-
A cabeleireira Eliana em plena
atividade no Liana´s Estilos.
72
Pesquisa de Campo
res de mulheres bem maquiadas e penteadas.
Os servi
ços oferecidos vão de um simples corte de cabelo ao alisamento japonês,
passando por escovas, tinturas e reflexos. Aliás muito requisitados.
A cli
entela é variada e vem até de outras comunidades. Homens e mulheres de todas
as idades estão sempre em busca dos serviços do salão.
As meninas vêem os cortes de cabelo na televio e procuram Eliana para pleitear
um igual, conta a pr
ópria.
As luzes est
ão entres os serviços mais solicitados pelos rapazes, enquanto as jovens
procuram pela chapinha, serviços que custam de R$ 10 a R$ 35.
As escovas s
ão preferidas pelas jovens senhoras evangélicas e as tinturas pelas de
mais idade. Todos em busca da beleza prometida nos an
úncios ou vislumbrada nos
programas de televisão.
O pequeno e movimentado Liana
’s Estilos gera três empregos e garante o sustento
de Eliana e suas duas filhas.
Mas o sao de beleza não é o único responsável pela apancia dos ribeirinhos,
tamm uma loja de confecções que dita a moda local, sendo uma referência
entre os joven
s.
Dilene Santana Amanaj
ás, 48 anos, nascida na região, é dona da única loja especiali-
zada em vestuário na vila, a Natalia Modas: uma homenagem a neta.
Dilene é mãe de quatro filhos sendo o casal de caçulas (15 e 17 anos) uma espécie
de vitrine do que ela vende.
Jovens, estão sempre divulgando as mercadorias da mãe nas festas locais ou na
escola. Dilene conta que vende para todas idades, mas que os jovens s
ão seus
maiores consumidores. A pedido deles, traz da ca
-
pital produtos do tipo: a bota da Xuxa,
a sand
ália da Adriane Galisteu, o tênis
da Wanessa Camargo ou da San
-
dy, isso sem falar nos modelitos
e acess
órios ditados como
moda pelas telenovelas
.
73
Pesquisa de Campo
III.2.3.3 A bela vendedora de chop
Para come
çar, cabe aqui uma explicação bem amazônica do termo “chop”, que nada
tem a ver com aquela esp
écie de cerveja de sabor suave, muito apreciada nos dias
quentes de verão.
Chop por aqui é suco no saquinho, que levado ao refrigerador vira pico. Em outras
regi
ões eles o conhecidos como sacolé, saquinho, suquinho, enfim, por aqui é chop,
até mesmo nas
áreas urbanas.
Fui v
árias vezes à Escola Bosque observar o comportamento da meninada, que nos
horários vagos, ocupava as áreas livres com jogos de futebol e outras competições.
Naquela época do ano (janeiro), coma o período de chuvas na região e a todo momen-
to um verdadeiro aguaceiro, que Deus sabe de onde vinha, colocava o pessoal da bola
para correr em busca de abrigo. Numa dessas vezes, fui junto e foi aí que vi, pela primei
-
ra vez, aquela mo
ça, cuja beleza e o modo vestir me chamaram atenção de imediato.
Naquele dia, anotei no meu diário de pesquisa:
Era uma menina, aparentava uns 16 ou 17 anos. Morena, cabelos longos,
negros e lisos. Uma t
ípica cabocla da região. Usava uma saia jeans, muito
curta, e blusa sem al
ças, as populares “tomara-que-caia”, de cor rosa cho-
que. No colo, valorizado pelo modelo da blusa, pelo menos tr
ês cordões de
ouro tilintavam. A mini-saia valorizava as pernas bem torneadas, cujos p
êlos
dourados contrastavam com a pele escura. A descolora
ção, prática comum
entre as jovens de cidades praianas, tamb
ém podia ser percebida nos braços,
que carregavam pulseiras, que pelo menos a dist
ância, pareciam de ouro,
como os cord
ões. As unhas, pintadas de esmalte vermelho completavam o
visual, que n
ão deixava nada a desejar a mais suburbana das patricinhas.
Embora traída pelas surradas sandálias havaianas que calçava.
Estava acompanhada de um menino que aparentava ts ou quatro anos, que pen-
so ser seu filho. Apesar da apar
ência um tanto atirada, parecia tímida. Encostada
numa palho
ça, atendia a freguesia do chop, composta basicamente pela garotada
que se desgasta correndo atr
ás da bola, sem dar ateão especial a nenhum.
Essa moça se chamava Maria dos Anjos e não era tão moça assim. O que só descobri
no dia seguinte, quando retornei ao p
átio da escola em busca de novas observações.
As melhores casas
da vila. Em primeiro
plano, a casa da bela
vendedora de chop.
74
E estava ela, na mesma palhoça, vigiando a
cuba (isopor) de chop na companhia do garoto
.
O visual era o mesmo, mudavam as cores, diga-se
de passagem sempre chocantes. Aproximei-me, a pretex
-
to de comprar um chop, e iniciamos uma simp
ática conversa.
Maria tinha 28 anos e quatro filhos. Benedielson era o que
a acompanhava:
“Ele o tem com que ficar, justificava a
chopeira, sorrindo com seu dente ouro.
De perto, al
ém do dente de ouro, percebi que suas sobrancelhas eram cuidadosa-
mente bem feitas. Durante a conversa, ela me disse que era casada e que o marido
era dono de embarca
ção. Era filha de uma parteira moradora da comunidade de Ca-
pinal. Quando solteira, morava com a mãe, mas hoje não se acostumaria no lugar.
Os filhos estudavam. Nas horas vagas, fazia chop e pastel para vender aos alunos da es-
cola e assistia televis
ão. Maria assistia ao Fantástico e às novelas; era fã da personagem
Darlene, vivida por D
ébora Secco em Celebridade, em exibição pela TV Globo, à época.
A citação a Darlene não foi surpresa, a mesmo pelo visual da ma,o era difícil per-
ceber que aquela dona de casa, m
ãe de quatro, tinha muito de Darlene, mas o Fantástico
me deu uma certa aflã
o.
Era um elemento novo: não estava no meu roteiro que informações jornalísticas
pudessem ter peso significativo naquele contexto. Não sei o porquê, mas cheguei a
campo supondo que uma última coisa que eles se interessariam era pelos noticiários
- esses resquícios de estruturas apocalípticas interiozadas no meu discurso, admito,
traíram-me algumas vezes.
O fato é que o interesse de Maria pelo Fanstico era só a ponta de um iceberg de interes-
ses pelos noticiários que mais tarde constataria nas análises discursiva
s.
Mas retornando a choperia, perguntei a ela como fazia para comprar essas roupas
diferentes e saber se estavam, ou não, na moda, e a resposta me trouxe um elemento
novo relacionado ao consumo
:
A gente na televisão o que os artistas estão usando e compra. Quando
não para ir em Macapá, a gente pede para a mulher da loja de roupa
[referindo-se a dona da Natália Modas]. Às vezes também a gente nos
catálogos e faz pedido.
Pesquisa de Campo
75
Pesquisa de Campo
Os catálogos aos quais se referia Dos Anjos eram aqueles que viabilizam vendas por
reembolso postal. Segundo ela, era muito comum na comunidade o consumo de
produtos da moda por reembolso postal: Hermes, Avon e DeMillus, estavam entre
os mais comuns.
Mais aquilo n
ão fazia sentido para mim, pois os serviços dos Correios e Telégrafos
não chegavam à rego.
Maria disse-me que as vendedoras faziam os pedidos e iam
à Macapá postá-los.
Quando chegava a
época de retirá-los, retornavam à capital. Havia sempre um paren-
te ou amigo na cidade para emprestar o endereço e assim possibilitar a transação.
Mesmo assim, não era um necio vantajoso, pensei, porque a passagem de barco até a
capital custava em m
édia R$ 25 reais, o que reduziria, significativamente, a margem de
lucro das vendedora
s.
Não consegui, nas conversas com Maria, entender a lógica da prática dessa ativida
-
de, que não me parecia ser apenas econômica. Mais tarde, no entanto, conversando
com outras mulheres e analisando melhor esses fatos, entendi que o objetivo, real
-
mente, não era o lucro, mas o movimento de viabilizar o acesso à moda.
O valor não estava concentrado apenas no que se ia lucrar financeiramente - que como
mencionei já estava comprometido com as despesas de postagem em Macapá -, mas
com a atividade em si, que promovia por meio do consumo via reembolso, o acessar
ou pertencer ao mundo da moda, ao mundo de gente que usava mini-saia jeans e blu-
sa ao estilo tomara-que-cai
a.
E um aspecto que reforça essa constatação é o de que era comum entre as vendedoras
reverter suas margens de lucro no consumo de produtos do próprio cat
álogo, passan-
do de fornecedoras a consumidora
s.
Maria dos Anjos, apesar da beleza (típica) e da vestimenta caprichada, quando abria
a boca, demonstrava quem realmente era: uma jovem dona de casa de h
ábito e vida
simples, que vivia com um certo conforto ao lado do marido e dos filhos. A casa onde
morava era uma das mais belas e confortáveis da vila.
Durante nossas conversas, em nenhum momento a vi imitar os trejeitos da persona
-
gem Darlene, com quem declarava abertamente identifica
ção. E isso me confundia
um pouco, pois era estranho que isso n
ão acontecesse, num lugar onde a televisão
era um forte referencial de cultura.
Ao contrio, Maria falava dos filhos, do marido e da vida na comunidade de modo des-
preocupado e sem a pretens
ão de parecer com esse ou aquele personagem da mídia.
Nos grupos mistos, o constrangimento
de falar sobre certos temas.
76
Assim, a bela chopeira passou a representar para mim um enigma que precisava ser
decifrado, talvez nela estivesse parte da resposta de como se dava o di
álogo entre mí-
dia e indiv
íduo naquele lugar.
Mas eu n
ão conseguia enxergar esse diálogo na forma como consumia os produtos
da cultura midi
ática. A sensação que eu tinha era de que ela fazia que ia e não ia.
Vou explicar.
Era como se enganasse a m
ídia; sem se dar conta; admirava Danele, vestia-se como
Darlene, consumia Darlene, mas quando se manifestava não se portava como Darle
-
ne e tinha consciência disso.
Não sei se estou conseguindo me fazer entender, sobre o que entrevi naquele momento,
mas vou insistir por considerar esse um registro importante da pesquisa de campo
.
Sei que os indivíduos não incorporam as personagens, como no teatro; e como bem
me lembrou Janice Caiafa, mas a força daquela caracterização era tanta, que desper
-
tou em mim a expectativa de que Maria me colocaria diante de outros dispositivos
de identificação com a personagem Darlene, além do vestuário.
A negação dessa expectativa me fez entrever um uso diferenciado, apropriando-
me
dos termos de Certeau, no ato do consumo daquele produto midiático.
Um uso diferenciado que tinha como motivação algo relacionado à especificidade
daquele lugar e que, por sua vez, me dava a impressão de que a mídia estava sendo
enganada por aquela mulher, que fazia dela um uso que ia além daqueles naturali
-
zados (senso comum).
Essa impress
ão me acompanhou por todo o trabalho de campo ampliando-se con-
forme ampliados eram meus contatos na comunidade.
III.2.3.4 O consumo de moda via satélite
Quando comecei a promover rodadas de bate papo com os jo-
vens, eles estavam familiarizados com a minha pre
-
sen
ça na Vila e sabiam que eu estava pesquisando
algo que tinha a ver com eles e a televis
ão.
Inicialmente, fazíamos pequenos grupos mistos, cuja
Pesquisa de Campo
77
Pesquisa de Campo
participação era voluntária. As idades dos participantes variavam de 12 a 16 anos.
Minha estratégia era sempre a de deixá-los falar à vontade sobre o seu cotidiano na
Vila para, a partir daí, pontuar o que realmente me interessava.
Logo nas primeiras conversas, percebi que a presença de jovens de sexos opostos no
mesmo grupo era motivo de intimida
ção para ambas as partes e que, talvez por isso,
o di
álogo não avançasse. Foi então que passei a promover rodas menores, ouvindo
meninos e meninas em separando.
Quando falávamos de moda, sem dúvida a televisão era apontada como a grande
responsável pela definição do que se vai vestir entre os jovens, o que afetava em es-
pecial as meninas. Nos grupos que conversei, quase todas portavam algum item da
moda naquele momento. O modelo de mini-saia utilizado pela big brother Sabrina
Sato estava entre os itens mais usados, mesmo entre aquelas que optavam por vestir
a camisa do uniforme escolar.
Entre os meninos, me chamou a aten
ção a presença de tatuagem em alguns e o uso
comum de bonés, imitando marcas famosas, do tipo Nike.
Essas refer
ências, segundo os jovens, eram consumidas principalmente das telenove-
las, com destaque para a Malhação:
Às vezes, eu deixo de assistir as aulas do final da tarde para não perder um
capítulo de Malhação (...) depois eu converso com o professor, digo que
estava doente, com dor de barriga, e aí fica tudo certo.
(Francin
úbia, 14 anos)
São muitas as aulas perdidas nos períodos em que os conflitos da novelinha global
vespertina, destinada aos adolescentes brasileiros, começam a ser desenrolados.
Às vezes, a gente se combina e falta muita gente. Desse jeito, a gente
consegue fazer o professor passar a mat
éria novamente. Nem sempre
certo, mas tem dias dá.
(Adriele, 15 anos)
Os adolescentes: interesse
por filmes e conteúdos que os
posicionem como membros de
uma juventude planetária.
78
Pesquisa de Campo
Os meninos não vêem nenhum aspecto negativo no consumo da moda por meio
dos programas de televis
ão, ao contrário, sentem-se participantes de um movimen-
to juvenil global.
“Não nada de errado em querer se vestir como todo mundo se
veste”, disse-me Elivam, de 15 anos.
Desconfiava que qualquer tentativa minha de explorar as conseq
üências desse con-
sumo junto a eles seria in
útil, pois jamais me diriam o resultado disso, até porque
talvez não se dessem conta.
E foi no discurso dos professores da Bosque que encontrei elementos importantes do
impacto desse consumo na vida social do lugar.
O depoimento mais comovente entre os professores foi o de Cl
áudio Barbosa, pro-
fessor licenciado em Letras pela Universidade Federal do Amap
á. Cláudio é nascido
na Regi
ão do Bailique. Saiu de para estudar e retornou a comunidade para di-
vidir o que aprendeu.
Sobre a relação dos alunos com a moda, ele disse:
Fico chateado com essa coisa de moda. Meus alunos me observam o tempo
inteiro: eles sabem quando estou usando uma roupa nova. Percebo que os
mais humildes n
ão têm condições de se vestir como gostariam ou como
vêem na televisão. É fácil distingui-los. Um jovem que tem mais condições
jamais aparece na Bosque com uma roupa remendada. Os que t
êm menos
recursos n
ão, são menos preocupados, chegam rasgadinhos e até de sandá-
lia, talvez porque n
ão haja luz na comunidade de onde vêm, eles não sejam
tão influenciados pela moda propagada pela mídia. Os mais fiéis à mídia
usam muito perfume e se comparam uns com os outros o tempo inteiro.
O professor Cláudio leciona sobre os valores tradicionais e diz sentir na pele
a dificuldade de abord
á-los, devido aos novos valores dissemina-
dos pelos programas de televis
ão e consumi-
dos em larga escala na comunidade, entre
os quais os ditames da moda estavam
79
Pesquisa de Campo
entre os mais expressivos.
As diferen
ças sociais manifestadas através do consumo, ou não, da moda também
foram comentadas pela professora Tatiana Reis:
Cheguei aqui menos de um ano e fiquei muito impressionada com os
alunos. Os que moram em comunidades onde há uma concentração maior
de recursos como as vilas Maced
ônia, Paraíso e a ppria Progresso, onde
os pais s
ão donos de fazendas ou construtores de embarcações, os jovens
são diferentes: as meninas usam fichários e mochila e os meninos utilizam
bon
és de marcas famosas originais e adiscman. Às vezes o garoto nem
está
tão bem vestido, mas o discman funciona.
Também ouvi dos professores, com certo pesar, que algumas crianças têm vergonha
quando professor resolve fazer uma visita de surpresa para saber, por exemplo, por
-
que no horário da Malhação eles possuem faltas consecutivas.
Quem leciona
à noite já sabe que nos dias em que aquele conflito vai se resolver nas
novelas, o quorum das aulas vai cair expressivamente.
Como n
ão podia ser diferente, a mídia televisiva parecia seguir em movimento linear
estruturando a vida naquela sociedade, pelo menos no que se referia a moda.
A essa altura, minhas quest
ões aumentavam e o que mais me incomodava era per-
ceber que apesar da forte influ
ência da TV no modo como os jovens ribeinhos se ves-
tiam, existia um sentido diferenciado na a
ção de estar na moda, que co-existia com
aquele que pressupunha o mero consumo dos produtos veiculados pela televisão.
Esse sentido co-existente n
ão era perceptivo quando os jovens falavam como se sen-
tiam ao apropriar-se dessa ou daquele moda. Por
ém, havia no discurso deles algo
mais, que preenchia as entrelinhas, n
ão era verbalizado, mas estava presente nas
expressões e gestos durante os relatos.
A sensação que eu tinha era a de que eles não sabiam explicar esse algo mais, daí
a aus
ência de verbalização.
Isso me remeteu
à possibilidade da existência de uma fabricação própria, um sentido
só deles para o consumo da moda. E era lá que eu precisava chegar.
Comecei a construir esse caminho refletindo esses fatos à luz do que vimos no
80
Pesquisa de Campo
item moda, mídia e identidade.
Desde o seu surgimento, nas sociedades tradicionais, a moda sempre foi sin
ônimo de
diferenciação e status. Séculos se passaram e a diferença daqueles tempos para cá é
de que a m
ídia assumiu o lugar de definidora dos códigos suntuários, tomando para
si o papel de nos dizer o que vestir, sendo a ades
ão a esses códigos uma espécie de
porta de entrada para um grupo prestigiado socialmente. No entanto, essa porta
é
constantemente fechada e fechada pelo poder econ
ômico, que de certa forma sele-
ciona quem pode vestir isso ou aquilo.
Se para ser cultural o consumo envolve significados partilhados e específicos e que
para ser membro de uma comunidade consumidora é preciso conhecer os c
ódigos lo-
cais e as necessidades b
ásicas (Slater), quais seriam as necessidades ou “a necessidade
básica dos jovens ribeiros da Vila Progresso? consumir moda era óbvio demais.
Se avan
çarmos nas iias de Slater, para quem a cultura representaria o fato de que toda
vida social é significativa e que as necessidades e usos só podem surgir no interior de um
determinado modo de vida, permiti-me concluir que a necessidade b
ásica dos jovens da
Progresso, do ponto de vista simb
ólico, poderia estar no aspecto mais marcante da vida
social do lugar: o isolamento geogr
áfico.
Estar na moda, mais do que simplesmente imitar o modo de vestir do astro da te-
levis
ão, significava para aquela gente uma espécie de saída do isolamento. Daí a
supervalorização no ato de possuir um discman e, nada mai
s.
Não era preciso ter todos os acessórios, o mais importante era possuir algo que ga-
rantisse o acesso ao mundo apreciado via satélite.
A adoção dessa hipótese, que não estava prevista no projeto da pesquisa, represen-
tou um avan
ço significativo na fase de coleta de dados e permitiu que, ao longo das
análises, eu pudesse chegar a outras inferências sobre a relação daquela comunidade
com a mídia televisiva e os significados produzidos a partir dessa relação.
E é entendendo o consumo da mídia televisiva, pelos ribeirinhos, como uma estraté-
gia de pertencimento ao lugar que Muniz Sodré (2002) chamou de bios midi
ático
13
,
que avan
ço na descrição das análises etnográficas feitas na comunidade. Antes, po-
rém, cabem aqui algumas considerações sobre esse novo ambiente.
Sodré vai buscar na distinção de Aristóteles sobre a existência
(bios) fundamentos
para esse espaço de vida criado pela mídia.
13
SODRÉ, M., 2002, p. 25
81
Pesquisa de Campo
Aristóteles define os bios: theoretikos (vida contemplativa), politikos (vida potica) e apo-
laustikos (vida prazerosa, vida do corpo), como os ts gêneros de existência na Poli
s.
Segundo Sodré, cada um desses
bios é um gênero qualitativo onde se desenrola a
existência humana. E é a partir dessa classificação aristotélica que a midiatização é
pensada pelo pesquisador como uma tecnologia de sociabilidade ou um novo
bios,
uma espécie de quarto âmbito existencial, onde predomina a esfera dos negócios,
com uma qualificação cultural própria denominada por ele de tecnocultura.
III.2.4 A telenovela e a vida cotidiana
Como as novelas conseguem penetrar tão fundo e intensamente no tecido de nossa
vida di
ária? E como permanecem? As repostas a essas perguntas podem estar na
forma como entendemos a vida cotidiana (ANDRADE, 2003).
Todos os dias, pessoas criam e recriam significados. N
ão importa se estão trabalhan-
do, conversando com crian
ças, assistindo televisão, planejando uma refeição ou ou-
vindo música. As pessoas, rotineiramente dão sentido às circunstâncias.
O cotidiano nos escapa e com ele o consumo de telenovelas. A telenovela acompa
-
nha as pessoas na hora das refei
ções, as conforta, lhes dão prazer, as aborrece e às
vezes at
é as questiona. Ela nos parece natural como a vida cotidiana. Mas o que é
este cotidiano? Em que se baseia?
A resposta pode estar em Giddens (1991) e sua discuso sobre a “segurança on-
tol
ógica”.
Esta segurança revela a que temos na continuidade de nossa auto-consciência
e na const
ância dos meios circundantes de ação social e material. Uma crença na
confiabilidade de pessoas e coisas
é fundamental para os sentimentos de segurança.
Trata-se, pois, de um fen
ômeno emocional radicado no inconsciente, produto de
um compromisso ativo e f
ísico que pede presença corporal, interações, cara-a-cara,
comunicação e linguagem. É um engajamento cognitivo que exige compreensão,
memória, reflexão, uma consciência da posição que se ocupa no tempo e no espaço.
É, por último, um compromisso afetivo: nossas relações com pessoas e coisas se ba-
seiam em processos inconscientes, mas tamb
ém só podem manter-se em virtude de
uma f
é, nascida da experiência, na certeza do mundo. Essa implica a capacidade
de afrontar, contestar ou reduzir ao m
ínimo os diversos perigos e ameaças que pare-
cem nos desafiar, tanto em nossa condi
ção de indivíduos quanto de coletividade.
82
Pesquisa de Campo
A formação dessa confiança básica se apreende em uma série de rotinas, mas também
no dom
ínio de uma metodologia prática, artificio protetor frente às angústias que o
mais casual encontro pode potencialmente provocar. O modelo de Giddens do mundo
social consiste, ent
ão, em uma dialética do tempo e espaço, de presença e ausência.
Essa dial
ética se baseia em uma série de rotinas criadas e sustentadas para manter uni-
dos esses diferentes elementos. Rotinas que existem para proteger os indiv
íduos e as
sociedades das ang
ústias ingovernáveis que acompanham situações de crise. O papel
da rotina, do h
ábito, das coisas em série, do enquadramento é, assim, o de definir e
manter esse mosaico cotidiano. Dessa forma, a vida cotidiana perdura e se sustenta
pelas continuidades ordenadas da linguagem e do h
ábito que nos auxiliam a manter
os fundamentos de seguran
ça necessários à vida social. Essa noção é fundamental
para compreender o papel das telenovelas na configuração dessas rotinas
.
A seguran
ça se sustenta pelo familiar e pelo previsível. Nossas atitudes e crenças ex-
pressam e apoiam nossa compreens
ão prática do mundo, sem a qual a vida pareceria
intoler
ável (ANDRADE, 2003).
O senso comum, por sua vez, se baseia em conhecimentos pr
áticos que se expressam
e se mant
êm por toda uma série de formulações simbólicas: os sons e ruídos diários da
cultura familiar, os ritos p
úblicos e privados, os textos midiáticos (MORLEY, 1996).
Defensivos ou ofensivos, esses mbolos constituiriam para nós, como seres social, as in-
tenções de dominar a natureza, os demais e a n
ós mesmos (ANDRADE, 2003). Eles têm
suas ra
ízes na experncia que o indivíduo adquire a partir das contradões básicas da
vida social, o problema da singularidade-diferen
ça, da experiência coletiva da sociedade,
das experi
ências de interão cara-a-cara e dos requisitos que se expressam em todas as
formas culturais, cujos prot
ótipos o os mitos e o rito.
As telenovelas representam os espa
ços previsíveis e manejáveis como os aniversários,
as bodas, os nascimentos, as mortes que constituem o foco dos ritos dom
ésticos,
mais ou menos agrad
áveis. Neles, revela-se o caráter mítico das telenovelas, nas for-
mas orais de contar suas hist
órias que narram condições endêmicas e irresolúveis da
vida, tamb
ém denotam o caráter ideológico das imagens e dos relatos que naturali-
zam e disfarçam a relação da narrativa com o tempo histórico.
As origens da telenovela est
ão nas lendas e contos populares que se baseavam na
circularidade das fofocas sobre crimes sensacionais, guerras e batalhas, os casos so
-
brenaturais. Assim, essa narrativa ficcional seriada
é catalogada numa linguagem de
símbolos familiares, recheada de alusões que não precisam ser explicadas, porque
são dadas como naturais, o que as constitui em:
83
Pesquisa de Campo
Um ritual coletivo que se concretiza no esfor
ço para expressar, refletir e cele-
brar as cren
ças compartilhadas de uma cultura, numa narrativa que focaliza
a dramatiza
ção repetitiva a ritualizada de símbolos, normas e valores que
nos inspiram para os desafios do dia-a-dia.
Trata-se de fornecer mapas comportamentais para um mundo em constante
mudan
ça cultural.
Ela transforma o n
ão familiar em familiar, afastando o nosso medo do caos, es-
tabelecendo as solidariedades sociais e criando um sentido fora do p
ânico cau-
sado pelo desconhecido, pelo risco, pela ansiedade e pelo questionament
o.
(ANDRADE, 2003, p. 96)
Assim, a telenovela é entendida nesta pesquisa como um elemento integrado ao
cotidiano comunit
ário pesquisado, que lhe dedica certas horas do dia, organiza, em
parte, suas rela
ções, os tópicos de conversa, as concepções de prazer e a maneira
como se divertem, educam e ocupam as crianças.
A fidelidade às telenovelas foi o segundo aspecto de me chamou atenção na rotina
comunitária, sendo ela tomada como referência em quase todas as entrevistas rea-
lizadas. J
á no item e que tratamos das questões relacionadas à moda vimos a forte
presença do gênero como elemento mediador nesse tipo de consumo.
A partir das entrevistas e observa
ções realizadas durante a pesquisa, no que se refere
aos sentidos produzidos a partir do seu consumo ou uso social da telenovela, foquei
nas duas dimensões propostas por Andrade (2003): a estrutural e a relacional.
Na dimeno estrutural, interessa-me o aspecto regulador do gênero no ato de parti-
cularizar o tempo, as atividades e as conversas comunit
árias. Na dimensão relacional,
dedico-me a analisar aspectos relacionados à aprendizagem de pap
éis, modelos, valores
e informa
ções; e na demonstração de compencias (culturais), enfatizando sua função
no refor
ço, manutenção e transformação de valores.
III.2.4.1 Kubanacã: o movimento que faltava à juventude do lugar
Os primeiros sinais da presença do aspecto regulador da dimensão estrutural do uso
e/ou consumo social da telenovela come
çaram a ser revelados nos depoimentos dos
professores sobre o alto
índice de evasão nas aulas que ocorrem nos horários das no-
84
Pesquisa de Campo
velas, principalmente nos períodos de dissolução de conflitos entre os personagens.
Mas n
ão as atividades escolares estão à mercê dos conflitos novelescos, outras
também aconteciam em função deles.
Durante uma de minhas entrevistas com o grupo de meninas em que fal
ávamos so-
bre a chegada da energia elétrica na vila, ouvi o seguinte comentário:
Hoje, as coisas são muito melhores. Já temos luz quase a noite toda. Antes,
logo que a luz chegou na vila, a gente s
ó tinha quatro horas diárias de ener-
gia el
étrica. E era nessa hora que a gente procurava fazer tudo que precisa,
como: produzir gelo para gelar a água; ver o jornal e é claro, as novelas.
(CRISTIANE, 15anos)
Quando perguntei em que momento do dia se localizavam essas quatro horas de energia
el
étrica e se o mesmo era fixo ou mudava conforme o gosto dos operadores do motor,
fui informada que era sempre de 18
às 22 horas, religiosamente, como um ritual. Coinci-
dência ou não, esse é o horário de maior audncia da televisão brasileira em todo país; é
o hor
ário das telenovelas e telejornais. A energia que deveria trazer o movimento a comu-
nidade, ao contr
ário, provocava uma espécie de toque de recolher:
Quando dava seis horas, todo mundo estava em casa de banho tomado
e pronto para a seção de TV que encerrava
às 10 horas, em ponto. Depois
disso, é que a gente saia para conversar na ponte, namorar e comentar
not
ícias ou as fofocas da novela. Era bem legal. Todos os encontros eram
sempre marcados depois da luz.
(ANGELICA, 16 anos
)
O ritual de assistir a programação televisiva era sempre partilhado, representando
uma espécie de ritual coletivo de audiência:
Na época, eram poucas as pessoas que tinham aparelho de televisão. Tinha
gente que nunca tinha assistido. Eu tenho uns parentes que moram l
á para
A estrutura da
Escola Bosque vista
de outro ângulo.
85
Pesquisa de Campo
os lados da comunidade do Franco Grande que nunca tinham visto TV. Um
dia, meu pai chamou todo mundo de l
á para vê.... e a casa ficou cheia ...
tinha gente pendurada na janela e outros olhando pelas gretas da parede. A
casa ficou mais cheia, porque, al
ém dos parentes, ainda tinha o pessoal que
toda noite se junta para assistir com gente.
(RUTE, 15 anos)
Quando encerra o período letivo na Bosque, o cotidiano da Vila muda radicalmente.
O movimento da ponte principal se reduz a menos da metade e a comunidade entra
naquele t
ípico estado de acomodação das sociedades interioranas. As pessoas lite-
ralmente somem.
Fiquei intrigada com o sumi
ço dos jovens, que deduzi: devem aproveitar as férias
para ir à capital visitar parentes e respirar um pouco dos ares urbanos.
Nada disso.
Uma breve caminhada pela vila foi suficiente para encontr
á-los em clareiras abertas na
floresta, forradas com restos de madeira serrada (moinha), jogando futebol, brincando de
pega-pega ou simulando lutas
.
Os jogos eram comuns, mas e as lutas? De onde vinha esse disposi
ção para a simu-
lação desses confrontos corporais?
Relembrando minhas incurs
ões aotio da escola, lembrei que realmente era comum
ver, num canto ou outro, um aglomerado de meninos praticando o esporte, o que na
hora n
ão me chamou atenção, mas que agora surgia como um elemento novo, con-
siderando que a pr
ática não era esporádica, como eu imaginava, ocupando um lugar
significativo nas atividades cotidianas dos jovens
.
Observei que esse tipo de
pr
ática era comum entre
os meninos de 11 a 13
anos. Os menores n
ão da-
vam conta, mas participa
-
86
Pesquisa de Campo
vam como atentos espectadores.
As lutas eram engra
çadas, meio que caricaturadas. Era como se ninguém quisesse
ganhar, mas apenas ser divertir (ou se exibir).
Assisti várias exibições dos meninos, que fora do período letivo se intensificaram, e no-
tei que n
ão havia nenhuma intenção de violência. A atitude era pacifica. O valor estava
no movimento que essas simulações davam àqueles dias de f
érias. Era como se as lutas
substitu
íssem o movimento perdido com a suspensão das atividades escolares.
me faltava descobrir de onde vinha essa referência, considerando que na escola
eu havia constatado que as atividades de educa
ção física não passavam pelo culto às
lutas. Por quest
ões metodológicas e com vistas à valorização de atividades recreati-
vas historicamente comum no lugar, os professores davam prefer
ências a atividades
do tipo a natação em rio aberto - as crianças crescem tomando banho de rio.
Revendo minhas anotações relativas às entrevistas que fiz com grupos de meninos
nesse faixa et
ária, percebi várias citações a telenovela Kubanacam, na época transmi-
tida pela TV Globo, diariamente, às 19h.
O folhetim era quase uma unanimidade entre os meninos dessa idade, o que j
á não
acontecia com os meninos mais velhos, nem com as meninas, cujos olhares estavam
voltados para Malhação e Celebridade, exibidas, respectivamente, às 17h e 21h.
Antes de avançar, creio que vale a pena relembrar as características de Kubanacam.
A hist
ória se passava num tempo/espaço que não era muito claro. Por vezes, parecia
se passar numa fict
ícia Cuba da década de 50, no entanto, a linguagem e os costu-
mes n
ão condiziam com aquele lugar e tempo. O enredo girava em torno da história
de um valente pescador, sem mem
ória, que deixava a vila em busca da mulher, que
o abandonara. Nessa busca, Esteban travaria intensas lutas para descobrir quem re
-
almente era; mistério que sustentou a trama até o final.
Esteban, o pescador parrudo, era do bem, mas temia descobrir que nem sempre
fora, pois dominava t
écnicas de guerrilha e luta corporal como nenhum pescador po-
deria. A novela, que se estendeu al
ém do previsto pela produção devido à significa-
tiva audi
ência no horário, tinha sua trama dividida entre os amores de Esteban: pela
mulher Marisol, pela casada Lola, pela irm
ã dela ou por qualquer outra que pudesse
representar audi
ência, e as aventuras do moço, sobrevivendo a seqüestros, atenta-
dos, tiros, brigas de vale-tudo, enfim, a novela era um movimento s
ó, que lembrava
em muito histórias em quadrinhos.
Os meninos mais jovens: luta
livre para dar movimento ao
cotidiano.
87
Pesquisa de Campo
1
ANDRADE, 2003, p. 177
Considerando a preferência dos meninos mais jovens por Kubanacam, não foi difícil
deduzir de onde vinha o referente para as simula
ções de luta: o personagem Esteban
era o elo que unia consumo e sentido.
Mas ainda haviam algumas perguntas sem respostas: Por que os jovens mais velhos
e as meninas n
ão se interessavam pela novela a ponto de produzir e manifestar
significados no seu cotidiano? E qual o verdadeiro sentido fabricado por aquelas
crianças, a partir do consumo de Kubanacam? Suspeitava que não seria apenas o de
promover a pr
ática de lutas. Havia um outro sentido que partia de uma necessidade
comunitária, mas que se realizava de forma expressiva através das práticas dos me-
ninos daquela faixa etária.
Considerando que Esteban representava o fio condutor de minhas primeiras conclu
-
sões sobre o porqda prática das lutas, fiz a opção de buscar responder essas per-
guntas a partir da compreens
ão das personagens, como uma estratégia narrativa de
uni
ão entre audiências (pessoas) e textos.
A vis
ão que os indivíduos têm de quem são é que vai determinar como interpretam
as tramas. E nesse contexto, s
ão as personagens que carregam a narrativa, represen-
tando a possibilidade de engajamento emocional do p
úblico: “Quando as pessoas
“olham” as personagens de uma telenovela, as “v
êem” como outros significativos,
extensão de suas redes sociais de amigos, vizinhos colegas de trabalho e membros
da família”
1
.
Assim, assistir a telenovelas
é compartilhar emoções com as personagens, é discutir
suas motiva
ções psicológicas e suas condutas, decidindo o que é certo ou errado,
tomando partido, elaborando juízo de valor, construindo visões de mundo.
Nota-se que quando os indiduos referem-se às personagens, eles pensam nos
problemas em que est
ão imersos, refletem sobre sua visão de mundo e sobre os
significados e valores que cultuam. Como se pode constatar nesse depoi
-
mento de uma jovem estudante da Bosque sobre a persona
-
gem principal de Celebridade, interpretada pela
atriz Malu Made
r:
88
Pesquisa de Campo
Eu gosto muito da Maria Clara. Ela é honesta e bonita ........ as pessoas
têm muita inveja de gente que é assim. Tem gente que tem inveja de tudo,
até de quem n
ão tem grandes coisas..... Às vezes, só porque você aparece
com um caderno novo o pessoal fica de olho. Eu n
ão tenho olho grande,
acho bonito quem tem as coisas que eu n
ão tenho e penso que vou estu-
dar e trabalhar para conseguir.
(MAURIANE, 15 anos
)
Assim, as personagens s
ão a base do processo de interpretação, posto que é a partir
deles que os dispositivos culturais dos indivíduos são colocados em ação.
O sentido de um texto, para determinados indiv
íduos, deve ser considerado aten-
dendo ao conjunto dos discursos com os quais esse texto se encontra em certas
circunstâncias e o modo como esse encontro reestrutura a mensagem primeira. Se
acreditamos que as audi
ências são diferenciadas considerando a competência cul-
tural que os indiv
íduos acrescentam ao texto, podemos considerar que o resultado
desse encontro
é o que de concreto ficará no indivíduo, ou seja, o que resta da fusão
entre conteúdo midiático, consumo e competência cultural.
Andrade ilustra bem essa idéia esclarecendo que:
Os indivíduos estabelecem relações diferentes com os conjuntos dos dis-
cursos, porque a posição que ocupam na formação social, o posicionamen
-
to que t
êm no real, determinam qual conjunto tem mais probabilidade de
encontrar um sujeito e o modo como faz.
(ANDRADE, 2003, 11
9)
E lembra, apoiada em Bourdieu, que as categorias de percepção do mundo social são,
essencialmente, produto da incorporação das estruturas objetivas do espa
ço social.
É desse ponto que retomo a queso das lutas praticadas pelos meninos de 11 a
13 anos, cujo posicionamento real a partir do qual interpretam as aventuras de
Esteban é a de vida em uma comunidade, cuja rotina de ões diferenciadas parte
unicamente das atividades realizadas no período letivo. Fora dele, nada mais de
diferente aconte
ce.
89
Pesquisa de Campo
A queda no movimento da vila no período de férias escolares é sentida principalmen-
te pelos pr
é-adolescentes que pela condição intermediária, ou seja, não sendo nem
crianças, nem adolescentes, ficam sem ter o que fazer.
As lutas inspiradas nas aventuras do personagem Esteban preenchem o lugar de
movimento deixado pela aus
ência de atividades na escola, tanto que se intensifi-
cam quando encerra o ano letiv
o.
Os jovens mais velhos, por sua vez, tinham outras ocupações: namorar, viajar à
capital, participar dos torneiros no arquip
élago, o que justifica o pouco interesse
pelas lutas. Isso sem falar que n
ão lhes agradava a sujeira deixada pelo corpo-a-
corpo, posto que a vaidade, nessa idade, lhes é laten
te.
Conversando com as meninas, descobri que o pouco interesse pela novela estava
relacionado a aspectos de consumo.
Acho muito brega o jeito que eles se vestem ....... as mulheres, então, são
horríveis. Você já viu o penteado da Lola?
(MARILUCIA, 14 anos)
Além das pouquíssimas vestes de Esteban e dos chiliques de Lola, nada mais cha-
mava a aten
ção das meninas. Assim, tempo e espaço mal definidos no ambiente da
trama eram os principais motivos da falta de atrativos.
Não havia um penteado para imitar ou uma roupa diferente para ser consumida,
tudo era estranho ao tempo das mo
ças do lugar, que assim dedicavam suas audiên-
cias a novelas mais atualizadas do ponto de vista do tempo e do espaço.
III.2.4.2 Malhação: novos valores em conflito com as tradições
O consumo da novela de fim de tarde Malha
ção é o que melhor ilustra a dimensão
relacional da produção de sentidos.
Dessa dimens
ão, reforço, trataremos apenas dos aspectos relativos à aprendizagem
de pap
éis, modelos, valores e informação e da demonstração das competências (cul-
turais) dos ribeirinhos, onde enfatizaremos sua fun
ção no reforço, manutenção e
transformação de valores.
Rosa Amanajás, 74 anos, guardiã da memória do seu
povo. Aderiu à TV por causa dos netos.
90
Pesquisa de Campo
A chegada da energia elétrica na comunidade e com ela a televisão, mudou radical-
mente a dinâmica da pacata Progresso.
Rosa Amanaj
ás, de 74 anos, nasceu e sempre viveu no arquipélago. Mora na vila
desde sua fundação e relembra como era a vida antes da chegada da TV:
Sem televisão, as crianças viviam brincando no rio. Quando não era isso,
eles estavam no mato com os pais catando seringa para fazer borracha, co
-
lhendo andiroba ou a
çaí e juntando caroço de muru-muru para vender. .....
Eu n
ão sinto falta de televisão. comprei por causa dos meus netos que
viviam pela casa dos outros .....
A vida com televisão não só mudou a forma como as pessoas ocupavam seu tempo,
mas os tipos de laser existentes.
As festas, à luz da lamparina, eram nossa grande divero. Os tocadores vinham
e a gente dan
çava marcha, mazuga e valsa, a noite toda.... o tinha confuo,
nem bebida. Hoje, esses meninos fazem essas festas barulhentas que é uma
bebedeira s
ó. Ai tem aquelas danças que a gente na TV ....... Aqui perto, tem
um sal
ão de festa que toda vez vai um preso. Isso me incomoda.
(ROSA AMANAJ
ÁS, 74 anos)
As festas às quais se refere dona Rosa, cada vez mais têm
provocado o esvaziamento dos festejos populares da
regi
ão. As festas de santo, como são conhecidas. Ge-
ralmente promovidas por comunidades cat
ólicas, esses
festejos tradicionalmente costumam ser um ponto de
encontro entre as pessoas do lugar. Cada comunidade
doa parte do necessário para a realização do evento e
no dia marcado todos se re
únem para orar e depois
festejar o santo. Essa pr
ática, apesar de ainda bem co-
91
Pesquisa de Campo
mum é considerada enfraquecida pelos mais velhos, devido ao desinteresse dos jovens
pela ativida
de.
Nessas festas, sempre depois da parte religiosa tem leilão de bichos, bingo,
música e outras coisas para entreter o pessoal...... Os jovens participam mais
do baile do que da ladainha. No levantamento do mastro quase n
ão se
os meninos....
(CLÁUDIO, professor)
Outra tradição que aos poucos vem sendo substituída pela audiência da televi-
são é a prática de contar histórias.
Antes, era mais comum ver pessoas reunidas em frente as casas ou na pon-
te, no come
ço da noite, para contar histórias.... Quando eu era pequeno,
lembro que meus pais e av
ós nos contavam histórias de assombração e ou-
tras que explicavam certos fen
ômenos da região como o da pororoca, as tro-
voadas e tamb
ém sobre os animais que a agente mais temia.... Dormíamos
cedo naquela época.
Hoje, 9 horas da noite e o movimento na ponte é quase nenhum. Mas
as pessoas n
ão estão dormindo, estão vendo televisão.
(CESAR, professo
r)
Os mais antigos se queixam que o contato com a televisão mexeu com a cabeça dos
jovens. Aos poucos, o
álcool e as drogas ilícitas começam a deixar suas marcas. As
brigas nos bailes, que acontecem semanalmente, são cada vez mais freqüentes.
A gravidez precoce tamb
ém está entre as preocupações dos pais e professores, pois
apesar da orienta
ção sexual ser um tema tratado na escola, o índice de adolescentes
grávidas é alto.
Com rela
ção a sexualidade, cabe-nos esclarecer que o fato das meninas engravida-
rem cedo n
ão tem o mesmo significado que nas áreas urbanas. Aqui, as jovens são
criadas para o casamento, por isso
é comum ver jovens de 15 anos mãe de pelo
92
Pesquisa de Campo
menos três filhos. No entanto, segundo os professores, quando se falar em gravidez
precoce na comunidade, entenda-se: gravidez fora de uma relação estável.
A sexualidade aflora muito cedo neles. Até aí não vejo muito problema, por-
que o pessoal por aqui sempre casou cedo, mas o que temos percebido
é
que o contato com a televis
ão meio que banalizou o fato de se ter um filho,
que antes era vinculado a uma situa
ção de vida estável ao lado de alguém.
Eu tenho alunas de 14 anos que têm dois filhos, cada um de um pai, e isso
é preocupante ...... elas sempre largam a escola.
(LUIZ ASSUN
ÇÃO, professor)
Apesar dos relatos contrários à cultura da mídia televisiva, tanto professores quanto
idosos admitem que o ve
ículo trouxe muitos benefícios para a comunidade. E o co-
nhecimento, está entre os principais.
Devido à captação do sinal ser possível apenas via satélite, a audiência, na vila, vai
além da TV aberta, possibilitando o acesso a canais educativos como TV Futura e TV
Cultura, que figuram entre as mais assistidas pelos jovens.
Várias atividades desenvolvidas no ambiente escolar são baseadas no que es em
pauta na televis
ão.
No período em que estive na vila, o assunto mais comum nas aulas era a guerra do
Iraque. A legalidade da invas
ão e a posição imperialista dos Estados Unidos eram os
assuntos mais com
entados.
Acho que o Bush não está certo em invadir o Iraque desse jeito. Não é a casa
dele, por que, então, tem que ser assim?
(JOSUEL, 11 anos)
Temos procurado fazer da televis
ão uma aliada no processo educativo. Pedi-
mos para que eles assistam ao Jornal e comentem as not
ícias ou que anali-
sem as dimens
ões de ficção e realidade das novelas (...) quando a ficção toca
a realidade, por exemplo. Essas atividades costumam ser prazerosas porque
93
eles se divertem aprendendo.
(GEORGE AMARAL, professor)
Apesar do isolamento geográfico e do intenso contato com a televisão, a juventude
tem clareza do duplo papel desempenhado por essa m
ídia, ou seja, de informadora a
formadora, o que é administrado por eles de forma despreocupada. É como deixar-se
levar por ela, consumindo seus valores e estilos de vida, fosse uma estrat
égia, um meio
de chegar a um lugar, que para mim ainda n
ão estava claro. O certo era que a televisão
representava para eles a porta de entrada para um mundo onde: ricos, pobres, intelec
-
tuais, marginais, velhos, jovens, mocinhos e bandidos circulavam freneticamente num
espa
ço de múltiplos saberes. E Malhação representava um desses espaços.
Numa de minhas conversas com as meninas, ouvi:
- Televisão é bom, porque nos ensina de tudo.
Então pedi que me esclarecessem o que era esse “tudo”.
- São coisas boas.
- Podem me dar exemplos, perguntei:
- Beijar. Eu aprendi na Malhação [risos] ....... e a ficar também.
- Como assim “ficar”?
- Ficar é quando você fica um dia com o menino ou dá um beijo na
boca
.
- O que mais vocês aprendem por lá?
- Eu aprendi uma coisa de cozinha na Ana Maria [Braga]... fazer comida com
sobras e também com aquelas cascas de frutas que a gente joga fora.
- E você fez? Ficou bom?
- Ficou. Meu pai comeu toda a casca da banana sem saber o que era.
- (...)
Pesquisa de Campo
94
- Outro dia, eu aprendi a fazer o auto-exame.... aquele que preveni o câncer
de mama.
- E como é que se faz esse exame?
- Sempre depois da mestruação a gente faz uma massagem nos seios para
ver se tem algum caroço, se tiver, pode ser câncer.
- Quais outras informões sobre saúde vocês aprenderam com na televisão?
- Eu aprendi que fumar faz mal. câncer. O pulmão fica preto, a gente
tosse muito, fica magra e depois morre.
- (...)
- A gente aprende também como se vestir e se pintar.
- E a roupa da personagem que não tem para vender aqui, como é que fica?
- Eu peço para minha mãe costurar igual. Fico assistindo para desenhar o
modelo e dar para el
a.
- Então, nem precisa mais estudar e só assistir Malhação?
[risos]
- Não! [uníssonas]
- A gente tem que estudar, porque é mais importante.
- Porque é mais importante?
- A televisão não dá diploma.... [risos]
- (...)
- Existe algum personagem da Malhação que vocês gostariam de ser?
[pensativas]
- Não!
Esse é um dos diálogos com a juventude que mais gosto, pois retrata bem o que
realmente importa para eles.
Beijar e vestir-se de acordo com os padr
ões midiáticos é tão importante, quanto
aprender a fazer o auto-exame ou a reaproveitar alimentos. A primeira n
ão se sobre-
Pesquisa de Campo
O acesso a WEB é uma prática comum
entre os jovens da vila.
95
Pesquisa de Campo
punha a segunda, como cheguei a pensar que seria, quando me deparei com aquela
moçada arrumadinha subindo e descendo a ponte principal.
É clara e legítima, socialmente, a função de difusora de conhecimento exercida pela
TV na comunidade, mas mesmo assim o futuro é representado pela escola.
Essa conversa me foi reveladora, pois foi a partir dela que compreendi que a televi-
são se configura no imaginário social daquele povo o como um fim em si, mas
um meio de se chegar a algum lugar.
O que me fez lembrar a bela vendedora de chop, que apesar da fantasia de Darlene,
não tinha, no discurso, nada da personagem. E era exatamente isso que faziam as
jovens entrevistadas: vestiam-se, pintavam-se, beijavam, ficavam e cozinhavam como
Darlene, digo, como a televis
ão, mas não queriam ser ela (ou viver em função dela),
porque havia algo maior as esperando que simplesmente ser uma personagem. Havia
um futuro, cuja escola era o grande referencial: uma vida no aq
ui.
Cada uma daquelas meninas produzia um sentido para suas existências a partir do que
viam em Malhão, mas o significado apropriado estava tanto dentro, quanto fora da no
-
vela, ou seja, tanto no aprender como se beija, quanto na necessidade objetiva de reapro
-
veitar comida. E esse movimento faz do processo de recepção, como diria Barbero (1995),
muito mais do que uma etapa do processo comunicacional, seu ponto de chegada, mas
um ponto de partida para a produção dos sentido sociais.
O acesso à m
ídia televisiva coloca a juventude, a todo momento, diante de novos
valores e pap
éis a serem desempenhados, isso porque à medida que interpretam os
conteúdos ou as tramas novelescas eles também se transformam.
Ocorre que esse processo de transforma
ção passa por complexos dispositivos de me-
diações colocados em ação pelos próprios. No caso dos ribeirinhos, isolados dupla-
mente, pela regi
ão mais distante do centro midiático brasileiro e pelas condições de
localização geográfica da vila, isso assume uma proporção extrema, pois os laços (ou
nós) comunitários que os envolvem são “apertados” por
ausências que os obrigam a buscar alternativas para
continuar vivendo ali.
Alternativas materializadas nas crianças que
remam duas horas rio acima, em busca de
96
Pesquisa de Campo
estudo; em gente que busca na floresta o remédio para suas dores e nos jovens que
repetem de ano para n
ão deixar de estudar.
Comecei a estudar com 10 anos de idade. em casa nos somos 16 filhos.
Na comunidade onde eu morava, no Igarap
é Grande, lá só tinha até a quar-
ta s
érie do primário (...) quando eu cheguei nessa série foi me dando uma
tristeza, porque eu sabia que n
ão tinha mais para onde correr, então eu
tive a id
éia de repetir a quarta série só para não deixar de ir a escola. (...) eu
aprendi até outras coisas nesse ano.
(AMARIUDO BARBOSA, 21 anos)
Aos 21 anos, Amariudo estava cursando o ano do Ensino Médio, na Bosque. De-
pois que repetiu a 4
a
série do Ensino Fundamental, teve que esperar mais dois anos
até que seus pais pudessem enviá-lo à Vila Progresso para continuar os estudos.
Vivendo nessas condições é realmente dif
ícil desejar ser um personagem de TV, pensei.
Os conflitos envolvendo os novos valores e pap
éis a desempenhar propostos pela
mídia e as tradições locais existem e não têm dia marcado para terminar, mas para-
lelo a eles o esp
írito comum, que dá unidade a vila, articula-se de forma não menos
criativa que a televis
ão, e ainda com uma vantagem: as personagens são os próprios
moradores.
III.2.5 A comunicação comunitária vinculando pessoas e lugares
Dissertar sobre como se a comunicação comunitária na vila não estava previsto
no projeto desta pesquisa. No entanto, ao conhecer a experi
ência da RCA - Rádio
Comunitária do Arquipélago e, por conseguinte, as possibilidades de produção de
sentido que se davam atrav
és dela, não tive dúvidas de que relatar essa experiência
só agregaria valor às reflexões a que me proponho.
A RCA, 88.1 (FM), existe h
á quatro anos, dos quais dois ficou parada por questões
políticas.
A atividade da emissora me chamou atenção pelo prestígio e audiência que goza
dentro e fora da Vila Progresso. A r
ádio é amplamente ouvida em todo o arquipéla-
go, chegando a disputar audi
ência com a televisão. Notei que era comum, em deter-
97
Pesquisa de Campo
minados horários, os ribeirinhos assistirem televisão com o rádio ligado.
Devido ao dif
ícil acesso, a região não capta sinais de outras rádios, às vezes, de ma-
drugada, é possível capitar o sinal da Rádio Difusora de Macapá (AM), administrada
pelo governo estadual, ou de algumas emissoras de Bel
ém do Pará, mas sempre com
baixa qualidade de áudio.
Antes de visitar os estúdios da RCA, ouvi a sua programação.
Fora os intermin
áveis momentos de música, observei que a grade de progra-
mação seguia uma lógica baseada nas necessidades comunicativas do lugar. Havia,
por exemplo, um hor
ário somente para a transmissão de mensagens. O programa
“mensagens do interior” funcionava como um meio de comunica
ção entre as comu-
nidades .
A seguir transcrevo algumas:
De Maria Cleonice
Para Jo
ão Pereira, na Bosque
Professor, aviso que meu filho Maike est
á com malária, por isso não tem ido
à escola para fazer a recuperação. Assim que ele tiver melhora vou ai conver-
sar com o senhor sobre a situação dele.
De Joana Pinto
Para Ana Pinto, na comunidade de Franco Grande
Mamãe, estou indo para Macapá levar o Josiel para fazer exame no hospital
geral. Ele n
ão melhorou da quentura. Peço que venha para ficar com os me-
ninos para mim. Vou no Deus me Guie, que sai na quarta-feira.
De Maciel
Para Juraci, na comunidade do Lim
ão do Curuá
Jura, arrumei um servi
ço na carpintaria do Tinoco. Avisa a mamãe. Aqui
estamos todos bem gra
ças a Deus. Avisa o papai que no fim da semana vou
levar as ferramentas dele.
98
De Sival
Para Rui Tur
é, na comunidade de Ilha do Meio
Rui, avisa o Cipó que já consegui o boi e o porco para o torneio de fute-
bol na Moinha. Só vai dá para premiar o primeiro e o segundo lug
ar.
Como se pode constatar elas versam sobre os mais variados temas da vida coti-
diana do Arquip
élago, o que faz com que a rádio exerça um papel fundamental
na circulação das informações que integram vida comunit
ária. É como se estivés-
semos diante de um telefone p
úblico utilizado no viva-voz: todos sabem tudo de
todo mundo
.
Além das mensagens, a rádio também transmite um programa esportivo, onde
o relatados os resultados do Campeonato Bailiquense de Futebol e da Copa da
Moinha. O programa tamb
ém faz um resumo do noticiário esportivo nacional,
que mais tarde fiquei sabendo que era baixado da Internet, quando poss
ível, por
isso n
ão era freente.
Diariamente, de 12
às 13 horas, é exibido um programa de notícias, cuja existência
estava vinculada ao movimento comunit
ário de levar as informações até a rádio,
o que acontecia sem nenhuma organiza
ção preestabelecida. A produção sobrevive
dessas contribui
ções que são recebidas a todo instante pelo pessoal que dirige a
emissora.
As religi
ões católica e protestante também têm espaço garantido na rádio. Diaria-
mente, das 18 às 19 horas, cada uma têm meia hora para levar a palavra aos fiéis.
ainda um programa semanal produzido e apresentado pelos jovens da Escola
Bosque e um programa sobre educa
ção ambiental produzido e apresentado por
professores da escola.
Aos domingos, de 6
às 9 da manhã, vai ao ar um dos programas de maior audiência
na região: Mundico & Mundoca.
A dupla apresenta um programa de humor que tem como proposta promover o
resgate das tradições ribeiras
.
Os personagens Mundico & Mundoca, representados por jovens bailiquenses,
o dois típicos caboclos da região que apresentam um programa de dio como
se estivessem em casa conversando com o vizinho, da janela. O sotaque, o lin
-
Pesquisa de Campo
DJ João e Sabá (de pé), que dirige a RCA
e interpreta o personagem Mundoca no
programa Regatão da Cabocada.
99
guajar e as histórias contadas pela dupla
remontam a tempos em que o isolamento
era maior, no entanto, tais tipos ainda so
-
brevivem nas comunidades mais isoladas
e nos mais velhos, o que torna o programa
um espelho do passado e do presente co-
munit
ário.
Mundico & Mundoca vai ao ar contando com
rios quadros, entre eles, um que satiriza o pro-
grama de mensagens, que falamos a pouc
o.
Pesquisa de Campo
A seguir, algumas transcrições das
mensagens criadas pelos produtores:
De Maria Justina
Para Raimundo, na Comunidade do Parazinho
Mundicu, meu fiu, tua irm
ã, Creci, tá buchuda di nuvu. Eu não sei cumu vu
cunta isso pru teu pai, que vai quere d
á otra pisa nela. Pelu amur de Deus,
vem cá dá uns cunselhu pra ela e aperparar teu velhu pra nutícia.
De Furenzio
Para Tio Lorico, na comunidade Vila dos Porcos
Titio, avisa a titia que o Lenilson quase murreu afugadu esta semana, mas
que j
á tudo bem. Inquantu ili num largar a cachaça vai ser assim. Fura
issu, tudu bem per aqui, lembrança pra Fatica.]
Nesse mesmo ritmo é apresentada uma radionovela, o Remanso do Marreteiro; qua-
dro que coloca uma s
érie de produtos típicos da região à venda e o Jornal da Beirada;
que veicula notícias do lugar, na perspectiva satírica dos produtores.
Tendo energia, a r
ádio fica no ar 24h por dia e é coordenada por uma equipe de vo-
luntários que se dedica à operação dos equipamentos e à produção e apresentação
dos programas.
100
Uma gente simples, mas profundamente criativa. Foi o que encontrei nas visitas que
fiz aos estúdios da Rádio Comunitária do Arquipélago.
III.2.5.1 A Estrutura Radiofônica da RCA
Não foi difícil encontrar a RCA, até as crianças sabiam o caminho para encontrá-la.
Ao chegar, fui recebida por Sab
á, diretor da emissora, e apresentada aos voluntários
de plantão naquele dia.
A r
ádio funcionava num quarto improvisado de uma residência familiar. Duas mesas,
dispostas frente a frente, davam lugar ao locutor e ao operador. Um banco de ma
-
deira comprido oferecia assento aos entrevistados e curiosos e algumas cordas, do
tipo varal, cruzavam o teto do quarto. O c
ômodo possuía duas grandes janelas que
davam vista para a rua, digo, para a ponte, de onde tive impress
ão que a vizinhança
acompanhava tudo o que acontecia nos estúdios.
Os equipamentos foram doados
à associação de moradores pelo poder público esta-
dual. A situa
ção da rádio era instável, pois como todas dessa natureza são conside-
radas clandestinas, embora o movimento pela legaliza
ção das mesmas, encabeçados
por organizações não-governamentais, seja atuante.
Algumas pilhas de CD sobre a mesa compunha o acervo musical da Rádio que,
segundo o diretor, tocava de tudo, por
ém com algumas preferências: o brega e o
zuque love
1
, este último nascido nas Guianas e muito consumido em todo o esta-
do. A seleção musical era composta basicamente pelos pedidos dos ouvintes, que
vinham de longe deixar suas cartas e oferecimentos musicais
.
Naquele dia, al
ém de Sába estavam na rádio os jovens João Amanajás, Waldez dos
Santos e Benedito Santana ou DJ Ben
é, como ficou conhecido na comunidade devido
ao trabalho como locutor.
Aos 23 anos, Bené é professor de uma escola p
ública na localidade do Limão do
Curuá. Leciona para alunos de 1
a
série.
Bené e João são os programadores musicais da rádio e a eles pertence o acervo musical
dispon
ível. Tal acervo foi montado à base de solidariedade e alguma ilegalidade:
Pesquisa de Campo
1
O brega é uma dança muito comum no Norte do país e consiste numa espé-
cie de dança de salão semelhante à lambada. O zuque love nasce no Platô das Guianas e chega ao
estado através da fronteira com a Guiana Francesa. A dança também é de salão, mas carregada de
sensualidade, lembra em muito as baladas francesas dos anos 70, um pouco mais ritmadas.
DJ Bené, entre Sabá e Waldez: rotina dividida entre
a sala de aula e a locução na RCA.
101
Sempre que dá agente vai em Macapá ouvir as rádios de lá para saber o que
está em sucesso. N
ão posso comprar CD na loja (....) compro o pirata que é
mais barato. Outra alternativa tamb
ém e baixar músicas da Internet. O pesso-
al da Bosque é bem legal com agente e deixa a gente usar o computador.
(DJ BENÉ)
Bené foi sonoplasta na Rádio do Porto, que fica no segundo maior município do Es-
tado, Santana, mas nunca teve oportunidade como locutor. Aqui na RCA ele
é uma
referência para a juventude.
Mais tarde, voltaria a encontr
á-lo, que desta vez no Lianas Estilo, fazendo luzes
nos cabelos.
João, de 21 anos, acabou de concluir o Ensino Médio e Waldez, de 20, estava finalizando
o 2º ano. Ap
ós os estudos, para o primeiro a oão de ocupação foi a dio, o segundo
não via muita perspectiva:
Quando existia o curso de formação de professor, era mais cil porque
a gente sabia que ia se formar em alguma coisa e que podia arrumar um
contrato de professor e ficar por aqui mesmo, mas com o fim do curso eu
não sei (...) o queria ir para a Macapá.
(WALDEZ, 20 ano
s)
Notei que o trabalho volunrio na rádio
tamb
ém era uma forma de ocupação,
principalmente para os jovens, cujas
perspectivas n
ão ia além de termi-
nar o Ensino M
édio. Am disso, ha-
via um certo glamour em trabalhar
no
único veículo de comunicação do
lugar. Por isso, Waldez estava sempre
por ali. Observei que ele n
ão tinha uma fuão
Pesquisa de Campo
102
certa, mas sempre que aparecia alguma coisa, estava ele disposto a executar.
Eu havia registrado em outras conversas com os habitantes da Vila o desejo
de n
ão sair do lugar. E a iminência de precisar ir para a cidade em busca de es-
tudo e emprego era a grande ang
ústia juvenil naquele momento.
As referências de Waldez sobre o fim do curso de formação de professor têm muito
a ver com isso.
Quando a Bosque foi fundada, com ela foi instituído um curso de formação
de professor de 1
a
a 4
a
séries. Os professores formados na comunidade eram
quase que imediatamente aproveitados pelas esferas municipal e estadual,
considerando a car
ência de professores na região. Devido a distância e vida
sem o conforto urbano, poucos s
ão os profissionais que se aventuram a dar
aulas por
lá.
Viabilizar a formação de professores na própria comunidade foi uma ação que
mudou radicalmente a vida da população que passou a ter perspectiva n
ão de
estudo, mas tamb
ém de trabalho.
No entanto, a nova Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Brasileiro transformou o
Curso Normal, ministrado no
âmbito do extinto 2º Grau, em curso superior, o que
inviabilizou a exist
ência do Curso Normal da Bosque, que foi extinto devido à falta
de corpo docente capacitado para cumprir a L
ei.
DJ Ben
é, um bailiquense que morou na capital e formou-se professor pela Bosque,
sendo hoje um contratado do Estado, diz que a vida é melhor aqui:
A vida é melhor aqui por causa do clima, do trabalho e da comunidade
que, apesar de carente, é amiga e solid
ária. Aqui, todo mundo se ajuda
(...) No Lim
ão [do Curuá], onde eu trabalho, o pessoal é hospitaleiro,
chama os professores para as festas, os torneios de montaria [canoa] (...)
é muito bo
m.
No Arquipélago, a profissão de professor é muito respeitada. Esse profissional é
tratado com formalidade e admiração por todos e, quando nascido na comunida
-
de, isso se torna muito mais representativo. Professor e DJ da RCA, Be é um
ícone
para os jovens da comunidade que hoje podem ser D
J.
Pesquisa de Campo
103
III.2.5.2 O consumo de mídia como estratégia de pertencimento
Quando iniciei esse cap
ítulo deixei clara minha intenção de tratar a experiência da
RCA considerando as possibilidades de produ
ção de sentido que ela viabiliza e o ra-
cha na audiência televisiva que mobiliza.
Ao me dar conta de que a rádio comunitária disputava com a televisão a audiên-
cia dos ribeirinhos, vislumbrei um caminho para tentar compreender como esses
dois meios, aparentemente desiguais na sua ess
ência, figurativos da dicotomia
global versus local, poderiam estar t
ão fortemente apropriados, chegando ao
ponto de que fazer com que os moradores ouvissem r
ádio assistindo TV.
Começo essa reflexão discutindo o pressuposto de histerização da mídia, defendido
por Raquel Paiva, em contraposi
ção ao conceito de comunicação comunitária.
Apropriando-se do conceito de histeria, desenvolvido pela psicanálise, a pesquisadora
busca compreender os discursos difundidos pelos mass media. Nessa perspectiva, os
discursos midi
áticos estariam marcados pela “excessiva necessidade de expressão, do
falar, da agressividade e do exibicionismo”
1
, estando, dessa forma, fadados a um fim
em si, tornando percept
ível apenas o entendimento do mundo do espetáculo”
2
.
Articulando os conceitos de histeria, elaborados por Freud, e apoiando-se em Goux,
para quem
é possível reconhecer estruturas neuróticas fora do nível privado, a pes-
quisadora considera que apesar dos discursos produzidos pela m
ídia carregarem
fortes marcas dos indiv
íduos, caracterizam-se “pela apropriação do real, do cotidia-
no e de suas quest
ões”
3
, essa apropriação não se dá através do pertencimento e da
vinculação real entre indivíduos e, sim, através de uma irradiação, que toma a repre-
sentação exacerbada como possibilidade de apreensão do real.
Nesse contexto, os canais alternativos de comunica
ção surgem como possibilidade
de revers
ão “capaz de propiciar o comprometimento e a produção de uma fala que
seja a expressão de vivência real e de experienciação concreta”
4
.
E é nesse contexto que a Rádio Comunitário do Arquipélago do Bailique está inse-
rida, de onde emerge como o lugar de express
ão da vida real experimentada nas
comunidades que comp
õem o conjunto de ilhas e que participam ativamente do
processo de produção e consumo do que é transmitido por ela.
Pesquisa de Campo
1
PAIVA, 2001, p. 51
2
id., ibid
3
id, ibid, p. 53
4
id., ibid, p. 54
104
A estrutura comunicacional de um veículo de comunicação inscrito na ordem comu-
nit
ária segue padrões distintos dos veículos existentes, ao mesmo tempo em que são
alteradas as bases respons
áveis pela articulação discursiva. Para Paiva, a histeria midiá-
tica estaria ausente da mensagem produzida na comunicação comunit
ária, pois o que
é dito ali possui efeito direto sobre a vida das pessoas, n
ão tendo nenhuma semelhan-
ça com o fenômeno do falatório, característico da estrutura histérica.
Os conte
údos transmitidos pela RCA têm uma relação direta com o interesse comu-
nitário, e isso ocorre de tal modo que mesmo as mensagens de caráter individual,
assumem uma perspectiva coletiva. Isso ocorre, por exemplo, quando um morador
toma conhecimento de que um conhecido est
á doente e vai ao seu auxílio, mesmo
sem ter sido a ele direcionada a mensagem.
Quando n
ão há assunto de interesse coletivo a emissora limita-se a oferecer músicas
aos ouvinte, sele
ção esta que como já foi mencionado é feita a partir das sugestões
enviadas pelos pr
óprios - isso explica as intermináveis seções musicais. Assim, mes-
mo quando limita-se
à reprodução musical a rádio opera como agente do interesse
comunitário.
Nessa perspectiva, n
ão espaço para o falatório característico da histérica mídiatica.
Para Heidegger, o falat
ório caracteriza-se:
Pela possibilidade de se compreender tudo sem se ter apropriado previa-
mente da coisa. O falat
ório que qualquer um pode sorver sofregamente não
apenas dispersa a tarefa de uma compreens
ão autêntica, como também
elabora uma compreensibilidade indiferente, da qual nada é excluído.
(HEIDEGGER, in PAIVA, 2001, p. 54)
Paiva entende que essa visão comunicacional de Heidegger é importante a compreeno
do discurso como partilha, pois estando este inserido no cotidiano pressup
õe a coexisn-
cia do ser com os outro
s.
Assim, o falatório exclui o outro considerando que reprime a troca.
Penso que eis, então, o motivo pelo qual a audncia dos ribeiros se divida entre a
TV (global) e a R
ádio (local).
A RCA, ao permitir a troca, instituindo os entes comunitários como produtores do seu
Pesquisa de Campo
105
discurso, fortalece os vínculos locais funcionando como uma espécie de canalizadora
das experimentações cotidianas que irriga a vida comunit
ária; cabendo a televisão a
função socializadora em escala globa
l.
A necessidade de socialização em escala local se manifesta, entre outros, porque a mí-
dia globalizada cada vez mais trata os assuntos de forma gen
érica, fato que se agrava
na regi
ão, tendo em vista a não captura da programação regional existente.
O local e/ou regional só são iluminados pela dia quando enquadrados em cririos
do tipo: originalidade, repercuss
ão, conflito e raridade (PAIVA,2003). A experiência da
Escola Bosque é maior exemplo disso, considerando que a mesma foi motivo de repor
-
tagens nacionais e internaciona
is.
Por outro lado, a necessidade de socializa
ção global emerge como possibilidade de
existência no espaço virtual criado pela mídia. Existir no âmbito do bios midiático é
pertencer a uma din
âmica de extensão planetária para a qual estar do lado de fora,
isolado pelo Rio, a Floresta e o n
ão acesso aos veículos que o disseminam, significa
não existir, numa perspectiva simbólica.
Quero com isso dizer que ao longo das observações etnográficas relacionada à audiência
dos ribeiros ao dio e a TV, concluí que existir em nível local não bastava, assim como existir
em escala global, também não. Era preciso que essas existências estivessem articuladas.
Entendo que o meio encontrado para isso foi a partilha da audiência entre os dois
veículos.
Ao contr
ário do que inicialmente me parecia, ou seja, a existência apenas de uma
super valorização da televisão, evidenciada ao longo de todo esse capítulo, havia
também uma super valorização do discurso comunitário transmitido pela rádio.
Assim, entre os muitos sentidos produzidos pelo consumo da m
ídia televisiva, está
o de pertencimento à esfera midiática como estratégia de fuga do isolamento; uma
suspeita que começou a me acompanhar no contato com a bela vendedora de chop
e que se fortaleceu ao ver manifesto no discurso dos jovens a ausência do desejo de
ir embora e da sensação de isolamento, pois o acesso ao bios midiático espantava
esses fantasmas, sendo que o primeiro só voltaria a assombrá-los quando a possibili-
dade de formação profissional e emprego se foi com fim do curso de magistério.
Na pr
óxima seção, tratarei dessa perspectiva, do consumo televisivo como estratégia
de pertencimento, a partir dos pressupostos metodológicos da análise de discurso,
por meio dos quais verificaremos outras instancias mediadoras do discurso dos ca-
boclos sobre a televisão.
Pesquisa de Campo
106
III.3 Análise Discursiva: A televisão no discurso dos caboclos
ribeiros
III.3.1 Aspectos teóricos e metodológicos
O corpus desta análise é composto por textos produzidos por alunos do Ensino Funda-
mental da Escola Bosque. Os textos foram colhidos na rotina das atividades em sala de
aula e, para isso, contei com a preciosa colaboração dos professores da Bosqu
e.
Os textos analisados foram elaborados por jovens com m
édia de idade de 12 a 14
anos. Os estudantes foram orientados pelos professores a produzirem um texto livre;
sem o estabelecimento de um n
úmero mínimo ou máximo de linhas, sobre a televi-
são: preferências, pontos fortes e fracos, importância na comunidade e o cotidiano
antes e depois dela.
Para desenvolver as análises apropriei-me do conceito de discurso como o “uso da
linguagem como forma de pr
ática social e não como atividade puramente individual
ou reflexo de variáveis situacionais”, apontado Fairclough
1
.
Pensar o discurso nessa perspectiva implica entend
ê-lo como um modo de ação,
um meio pelo qual as pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros, assim
como um meio de representa
ção do mundo. Implica, ainda, visualizar uma relação
dialética existente entre o discurso e a estrutura social, sendo esta condição e efeito
das práticas sociais.
Desse modo, entende-se, a partir das reflex
ões de Foucault sobre a formação discur-
siva de objetos, sujeitos e conceitos, que o discurso
é socialmente constitutivo. E isso
implica dizer que:
O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura
social que direta ou indiretamente o moldam e o restringem: suas pr
óprias
normas e conven
ções, como também relações, identidades e instituições
que lhes s
ão subjacentes. O discurso é uma prática não apenas de represen-
1
FAIRCLOUGH, N., 2001, p. 90
Pesquisa de Campo
TEXTO
PRÁTICA SOCIAL
PRÁTICA DISCURSIV
A
(produção, distribuição, consumo)
107
Pesquisa de Campo
tação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo
o mundo em significado.
(FAIRCLOUGH: 2001, p.91)
Fairclough distingue tr
ês aspectos dos efeitos construtivos do discurso: a construção
das identidades sociais e posi
ções de sujeitos para os sujeitos sociais e os tipos de
eu; a constru
ção das relações sociais entre as pessoas, e; a construção de sistemas de
conhecimentos e crenças.
Esses aspectos correspondem as tr
ês funções da linguagem e à dimensão de sentidos
que coexistem e interagem em todo discurso: identitária, relacional e ideacional.
Assim sendo, para efeito da an
álise discursiva proposta tomo de Fairclough a con-
cepção tridimensional do discurso, que representa a reunião das três tradições ana-
líticas indispensáveis no processo de AD: a análise textual e lingüística; detalhada na
lingüística, a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às
estruturas sociais, e; a tradi
ção interpretativa ou microssociológica de considerar a
prática social como algo que os indivíduos produzem e entendem com base em pro-
cedimentos de senso comum partilhado.
No contexto do quadro de an
álise proposto (ver quadro acima), as práticas discur-
sivas s
ão entendidas como os procedimentos que utilizamos para nos enquadrar às
convenções dos gêneros de discursos - cujo conjunto é denominador por Foucault de
ordens de discurso - e est
ão inseridas nas práticas sociais, funcionando como práti-
cas (sociais) de produção de textos (PINTO, 1999).
Assim, seguindo a proposta de Fairclough, dividimos a an
álise em três etapas: práti-
108
Pesquisa de Campo
cas discursivas, no nível de macroanálise; análise de textos, no nível da microanálise
da pr
ática discursiva e a análise da prática social, da qual o discurso faz parte, corres-
pondendo estas à concepção tridimensional do discurso.
Por queses de foco, foram selecionadas apenas alguns aspectos de cada uma
das dimens
ões para alise.
Na dimens
ão textual, são analisados os aspectos gramaticais de transitividade e modali-
dade, nominalização e o uso de met
áforas. Na dimensão das pticas discursivas, a inter-
textualidade e interdiscursividade. Na Pr
ática Social, matriz social do discurso, ordens de
discurso e efeitos ideol
ógicos do discurso.
Dessa forma, as an
álises efetuadas mostram o discurso enquanto uma prática não
constituída pelas estruturas, mas também constituintes delas.
A análise do discurso dos caboclos sobre a televisão e suas implicações ideológicas
permite o estabelecimento de um olhar relativisador em rela
ção ao poder estruturan-
te da m
ídia televisiva, que pudemos constatar nas análises etnográficas. Interessa-
nos mostrar, com base no discurso da comunidade pesquisada, outros significados
construídos para o consumo de televisão, nos quais as condições socioculturais exer-
cem um papel decisivo.
III.3.2 Análises textuais
Os textos utilizados nas análises estão transcritos no início de cada seção e corres-
pondem fielmente à composição elaborada pelos alunos (ver anexos).
III.3.2.1 Dimensão do texto
a) Modalidade
Texto I
Eu gosto muito de televisão porque passa as novelas
como: Kubanacam, malha
ção e celebridade também
gosto de assistir os jornais, filmes, desenhos e alguns
programas que ensinam algumas coisas importantes.
(5) A televisão ensina muitas coisa boa: como: não fumar
não vender bebidas para menores de 18 anos de idade.
Porque
é crime.
109
Pesquisa de Campo
A televisão é muito importante é bom assistir a TV
por que se não tivesse televisão não sabia-mos o que
(10) acontecia fora do Brasil.
Eu gosto de assistir mais o jornal porque nele a gente
descobre muita coisa diferente. O jornal mostra as
guerras que acontecem fora do Brasil como no Iraque e
nos Estados Unido
s.
(15) A televisão até hoje é um meio de comunicação
muito importante para muitas pessoas por que se essas
pessoas não tivessem televisão elas não se comunicavam.
(autor n
ão identificado)
Texto II
A televisão é um meio de comunicação muito importante
se não estivesse a televisão não iriamos fazer nada a
noite, só iriamos jantar e dormir.
As coisa que eu gosto na televis
ão o de desenhos e
(5) novelas, e as que eu n
ão gosto, são de programas
de politicos e programas sem agito sem mostrar alguma
coisa interessant
e.
A televisão representa muita coisa para quem não tem
informação de outros paises e a coisas que o jornal
(10) nacional mostra que não sabemos pro Bailique.
Os programas que me chamam atenção são os jornais
de informação e programas que falam coisas de outras
cidades como o programa Futura, que tem muito
conhecimento e que já ensinou muita coisa a gente que
(15) asiste esse canal. Os programas ruis é aqueles
chatos como: o passa ou repassa, ele é muito chato.
E os programas muitos bons são o Mais você que
ensinam muitas receitas de colinárias.
Na minha opinião o Bailique seria sem informação é
(20) seria esquecido porque sem informação de nada
ele seria calmo sem nenhum visitante para lhe admirar
110
Pesquisa de Campo
2
FAIRCLOUGH, 2004, p. 201
3
FARACO & MOURA, 1998, p. 345
por sua beleza natural porque o Arquipélago do
Bailique tem muito pra se olhar.
Eriane Cordeiro, 6
a
série
Na dimens
ão do texto, o aspecto modalidade está relacionado ao grau de afinidade
do enunciador com as proposi
ções que articula no texto. Considerando-a como “um
ponto de interse
ção, no discurso, entre a significação da realidade e a representa-
ção das relações sociais ou, nos termos da lingüística sistêmica, entre as funções
ideacional e interpessoal da linguagem
2
, buscaremos, a partir dos textos acima,
identificar as marcas modais dispon
íveis, analisando seu significado para as relações
sociais no discurso e de que forma o enunciador controla as representa
ções que faz
da realidade.
Nas amostras textuais predominam o uso do tempo verbal no presente do modo
indicativo, sendo utilizado, entre outros, para expressar verdade, Lei, um fato real
passado; mas que deve durar por tempo indefinido, uma a
ção habitual, podendo
ainda substituir o futuro e o imperativo, este
último, expressando de forma delicada
um pedido ou ordem
3
.
Assim, vejamos:
A televisão é um meio de comunicação muito importante...
(T2, L1)
A televisão representa muita coisa para quem não tem informação...
(T2, L 8-
9)
Os exemplos acima ilustram a dimensão de verdade do modo indicativo expressa nas
proposições do enunciador do T2. Assim, podemos dizer que duas verdades na
superf
ície das proposições, sendo ambas relativas ao significado da televisão para o
enunciador que a afirma, categoricamente, como
“um meio de comunicação impor-
111
Pesquisa de Campo
4
FAIRCLOUGH, N., 2001, p. 202
tante, cuja função básica é comunicar; prover informação para “...quemo tem...”
O uso do presente do indicativo (
é/representa/tem) realiza uma modalidade categóri-
ca que denota alto grau de afinidade do enunciador com as proposi
ções. Vale ressal-
tar que
“a modalidade categórica é importante pela natureza abreviativa e resumida
de certas proposições”
4
.
Na segunda proposição, observa-se o reconhecimento da realidade comunit
ária que,
bem pouco tempo, era a de não ter acesso a informações que ultrapassassem as
fronteiras do arquip
élago.
As m
últiplas possibilidades que se estabelecem a partir do acesso a televisão e, con-
sequentemente, do que se passa no mundo,
é expressa nos exemplos abaixo, extra-
ídos do T1:
O jornal mostra as guerras que acontecem fora do Brasil como no Iraque...
(T1, 12-14)
A televis
ão ensina muitas coisa boa como: não fumar, vender bebidas para
menores de 18 anos de idade. Porque
é crime.
(T1, 5-7)
Nesses exemplos, a marcação modal continua sendo feita pela disposição dos verbos
no presente do modo indicativo (mostra/ensina) e o alto grau de afinidade com as
proposições agora é expresso em relação às ações/funções de informar e educar que
a televisão parece desempenhar na comunidade.
Assim, ao afirmar categoricamente que a TV mostra fatos importantes e que ensina
coisas boas, o enunciador faz a fus
ão das funções da linguagem: ideacional, a TV
informa e educa; e interpessoal, comprometendo-se com essas proposições.
Trazendo essas reflexões para a dimensão do discurso, ao tomar conhecimento de que
fumar faz mal à sa
úde e vender bebida a menores é crime, ou seja, ao acessar informa-
ções sobre sa
úde e legislação, o enunciador se habilita para partilhá-las socialmente.
Considerando que tais informações s
ão para ele coisas boas, úteis, e que certamente
112
serão utilizadas na prevenção de doenças e de práticas ilegais, no ambiente comunitá-
rio. Foi o que constatei, por exemplo, no relato da adolescente que disse ter aprendido
a fazer o exame de prevenção do c
âncer de mama pela televisão
5
.
... gosto de assistir mais o jornal porque nele a gente descobre muita coisa
diferente.
(T1, 11-12)
As coisas que eu não gosto são programas de políticos...
(T2, 4-6)
Nos textos em análise nessa seção, uma predominância da modalidade subjeti-
va. Nos exemplos acima, podemos constatar que a base subjetiva para o grau de
afinidade está explicita (gosto/n
ão gosto).
Esses exemplos, produzidos por enunciadores diferentes, n
ão enfatizam a prefe-
rência pelo noticiário, o que confirma a importância da televisão como o meio que
possibilita o acesso a tudo que est
á fora das fronteiras comunitárias, como demons-
tram a exist
ência de uma dinâmica de seleção do que deve ser visto, cujo critério
maior nos parece ser aquilo que leva ao conhecimento de fatos variados do cotidiano
global. Esse crit
ério exclui os programas políticos do que o enunciador gosta de ver
na televis
ão. Em ambas as situações, os marcadores modais citados servem para de-
monstrar n
ão só o significativo grau de afinidade dos enunciadores, mas também o
comprometimento dos mesmos com as proposições.
Outro aspecto que enfatiza a dinâmica seletiva do que se vai assistir pela TV é a presença do
adv
érbio de modo como. Em quase todo os textos submetidos à análise, neste capítulo,
verifica-se a presen
ça desse modalizador quando se trata das preferências televisivas.
Me chamam ateão (...) os jornais de informão e programas que falam coi-
sas de outras cidades como o programa Futura...
(T2, 11-13
)
Pesquisa de Campo
5
Ver capítulo 3.2, p. 93-94.
113
Pesquisa de Campo
No trecho acima, ele aparece modalizando os programas que chamam a atenção
do enunciador. O programa Futura, que entendo como a programão do Canal
Futura, está para enunciador do mesmo modo que os
“jornais informativos”. Ou
seja, t
êm o mesmo peso significativo e, por isso, integram a seleção.
Considerando que a proposição es modalizando de forma subjetiva, verifica-se o com-
promisso do enunciador com o valor atribu
ído aos aspectos informativo e educativo da
televis
ão, no contexto dado. O que nos faz deduzir que os programas que estiverem fora
desse enquadramento (informar/educar) est
ão fora da selão que orienta a audncia.
É o que acontece com os programas políticos, freqüentadores assíduos da lista dos
não assistidos.
b) Transitividade e nominaliza
ção
Texto I
A televisão é um meio de comunicação muito usado no
Brasil e no mundo. Da televisão eu gosto de filmes e
desenhos, eu não gosto de propaganda, novelas.
Na minha vida a televisão é um meio de que traz coisas
(5) importantes, alegria e outras.
Na minha comunidade é um objeto muito usado ela
traz notícias, novidades e outras coisas. Ela me chama
mais atenção de coisas perigosas como drogas, bebidas
alcóolicas, roubo, tem muitos programas bons e muitos
(10) também ruim que não traz nada de bom.
Na minha opinião se o Bailique não tivesse televisão ia
ser triste porque nos não íamos saber que os objetos
abaixou ou aumentou, se o dinheiro diminuiu ou subiu,
tudo isso nós não ia saber. Os objetos oferecidos muitas
(15) pessoas não ia comprar. Lançamentos novos tudo
isso ia passar.
Jaldecy Barbosa, 6
a
série
Texto II
A televisão ela é um objeto que ela pra mim é muito
importante porque ela me traz alegria ela me faz ri. Quando
114
Pesquisa de Campo
a eu tou triste eu ligo a televisão é a minha tristeza acaba
e é por isso que a televis
ão é muito importante para s
(5) quando a gente quer saber das not
ícias que acontece em
Maca e só ligar a televis
ão e assistir o Jornal do Amapá.
O Jornal Nacional passa tamb
ém muitas informações dos
outros lugares que a gente n
ão conhece, na televisão
passa tudo que a gente gosta
.
(10) Eu gosto de novelas porque passa novidades como
roupas, causados, j
óias, etc. Tudo que a gente gosta [.]
quando a gente vê passar na televis
ão uma coisa legal a
gente quer comprar. Eu gosto de filmes propagandas e etc
.
Eu não gosto é filmes que terminam em violência porque
(15) tudo que passa na televisão as pessoas aprendem
e tem muitos filmes violentos e tem muitas crianças que
assiste que aprende violência. Filmes que tem drogas que
tem bebida alcóolica, etc.
Ela [TV] representa muitas coisas boas ela me tras alegria
(20) felisidade ela me faz rir faz eu aprender um pouco
de cada coisa etc.
[Na comunidade] Ela representa alegria, divertimento,
enducação e outras coisas importantes.
[me chama atenção] Os jornais como o Jornal Nacional que
(25)
traz notícias de todos os lugares distante. O Fantástico
passa muita coisa interesante fala sobre os animais e de
muitas coisas que chama a nossa atens
ão linha direta passa
muita viol
ência eu o gosto muito de acistir a linha direta por
causa disso e tem fiomes violento, tem propagandas e et
c.
(30) O Bailique ficaria triste não ficaram informados das
coisas importantes.
Josete da Silva, 6
ª série
No aspecto transitividade ou dimensão ideacional da gramática da oração, verificaremos
os tipo de processos codificados nas orações e os tipos de participantes envolvido
s.
115
Pesquisa de Campo
6
FAIRGLOUGH, N., 2001, p. 221
7
Id., Ibid.
8
Ibid., p.223
Destacaremos os processos relacionais, “onde o verbo marca uma relação (ser, ter e
tornar-se) entre os participantes
6
, aqui entendidos como elementos da oração; os
processos de a
ção dirigida e não-dirigida - no primeiro o agente age em direção a
um objetivo e no segundo n
ão um objetivo explícito -, os processos de evento,
que envolvem evento e objetivo, e os mentais, que s
ão cognitivos (pensar, saber),
perceptivos (ouvir, notar) e afetivos (gostar, temer)
7
.
Analisando a transitividade objetiva-se formular que fatores sociais, culturais, ideológi-
cos, pol
íticos ou teóricos determinam como um processo é significado nos textos
8
.
A nominalização, que transforma processos e atividades em estados e objetos e
ações concretas em abstratas, também será analisada neste item com vistas à identi-
ficação de omissões (de agentes), motivações e abstrações.
Uma coisa a se notar sobre os tipos de processos existentes nos textos
é que há uma
predominância de processos relacionais.
A televisão é muito importante para nós/ quando a gente quer saber das
notícias...
(T2, L 4-5)
A televisão é um meio de comunicação que traz coisas importantes.
(T1, L 4-5)
Os exemplos acima registram a importância da televisão na vida comunitária como
agente respons
ável pelo acesso as informações. A escolha dos processos relacionais
para representar o processo real de ter acesso a televis
ão está significativamente
relacionado a aspectos socioculturais da comunidade. Nota-se que, tanto o ve
ículo
televisão, quanto o conteúdo transmitido (as notícias), são qualificados pelo adjetivo
“importante”, o que implica dizer que não acessar a televisão, por conta de restrições
técnicas (energia) ou financeiras (custo da parabólica), representa para eles estar fora
do que acontece de “importante” no mundo.
116
Pesquisa de Campo
outras significações socioculturais associadas ao uso dos processos relacionais
nos textos que t
êm estreita relação com a utilidade do meio no ambiente comuni-
tário e com a perspectiva do lugar sem ele.
É um objeto muito usado traz notícias, novidades e outras coisas.
(T1, L 6-7)
O Bailique seria triste não ficavam informados das coisas importantes.
(T2, L 30-31)
Observa-se que no primeiro exemplo a utilidade da televio vai além do consumo
das not
ícias, o bem marcadas nos discursos particulares analisados, chegando
às novidades, que aqui interpreto, com base na pesquisa etnogr
áfica realizada,
como informações que n
ão eso presentes no cotidiano da Vila, mas que podem
ser apropriadas e traduzidas. Um exemplo desse movimento é a simulação de luta
livre pelos pr
é-adolescentes, inspirada nas aventuras do personagem Esteban da
telenovela Kubanacam, cujo objetivo estava longe de ser o de promover a viol
ên-
cia, mas apenas de dar movimento ao cotidiano dos meninos daquele faixa et
ária,
ocupando o espa
ço deixado pelo recesso escolar.
No segundo exemplo, o verbo
“ser” estabelece uma relação de transformação entre
os termos da ora
ção. A inexistência do agente (televisão) tornaria o ambiente comu-
nitário triste, para o enunciador do T2, estando o qualificativo triste funcionando
como uma esp
écie de metáfora do processo de desinformação, pois sem o meio os
ribeirinhos estariam tristemente desenformados sobre as
“coisas importantes” que
acontecem. Observe que o qualificativo
“importante” reaparece, marcando a neces-
sidade de se estar por dentro do que se passa pelo mundo.
Esse aspecto, dentro de um processo relacional, nos remete a seguinte ideológica: a de-
sinformão é triste e excludente, é preciso estar conectado para saber e para existir.
Nos processos de a
ção identificados, a televisão se apresenta como agente de ações,
predominantemente, dirigidas (sujeito-verbo-objeto).
117
Pesquisa de Campo
9
HALLIDAY, in FAIRCLOUGH, N., 2001, p. 224
Ela me chama atenção de coisas perigosa/ como = drogas, bebidas alcóo-
licas, roubos..
(T1, 7-9)
Ela me traz alegria/ ela me faz rir.
(T2, L 2)
A presença de ações dirigidas reforça a impressão de ações com propósitos bem
definidos; a televis
ão chama a atenção do enunciador do T1 para os perigos que
rondam a vida em sociedade, como o das drogas l
ícitas e ilícitas; a televisão traz e
faz felicidade ao enunciador do T2.
Esses exemplos denotam que por trás da op
ção por processos de ação, para repre-
sentar processos reais de consumo dos conte
údos televisivos, estão significações
sociais que d
ão conta da televisão como agente de informação, entretenimento e
regulação social. O que é reforçado pelo predomínio da voz passiva, que coloca os
enunciadores dos T1 e 2 na condi
ção de agentes pacientes das ações do meio (me
chama/me faz/me traz).
A presen
ça hegemônica do discurso televisivo como agente nos processos de ação é
rompida quando entram em a
ção os processos mentais, que também aparecem nos
textos com freqüência.
Os processos mentais, que estão relacionados com “aquele que sente”
9
, e consequen-
temente com a forma como percebe, conhece e se afetua
às coisas do mundo, traz
à superf
ície do texto marcas da necessidade e importância do conhecimento para os
enunciadores; conhecimentos que muitas vezes nem fariam diferen
ça no seu contexto,
mas como pertencem a uma esfera global, s
ão requeridos como importantes:
Se (...) não tivesse televisão (...) não ia saber se os objetos abaixou ou au-
mentou/, se o dinheiro diminuiu ou subiu/, tudo nós não ia saber.
(T1, L 11-14)
118
O trecho acima expressa bem a necessidade à qual me referi, o aumento no preço dos
alimentos e a alta, ou baixa, do d
ólar, certamente, não tem uma influência direta na
vida comunit
ária, principalmente se considerarmos que o mercado de consumo local
é pequeno e muitas vezes baseado na troca. Mesmo assim, ter acesso a informações
econ
ômicas é um valor para o enunciador, por pertencer a uma escala global de conhe-
cimento, diariamente mencionadas no discurso televisivo
.
Os processos mentais relacionados à manifestação de afeto por esse ou aquele progra-
ma s
ão muito comuns em todos os textos que compõem a amostra. Os trechos abaixo,
expressam que a escolha desses processos de significação está vinculada a id
éia de
que: gosto do que é bom para mi
m.
Na televisão passa tudo/ que a gente gosta
(T2, L 8-9)
Tem
muitos programas bons e muitos também ruins.
(T1, L 9-10)
O jornal nacional passa também muitas informações dos outros lugares/
que a gente n
ão conhece.
(T2, L 7-8)
A essa idéia (gosto do que é bom para mim) está vinculada à capacidade de selecio-
nar o que
é bom ou ruim, que por sua vez é fortemente mediada por aspectos da cul-
tura local. J
á vimos em exemplos anteriores que programas bons estão relacionados
à educação, cultura geral e a informações de outros lugares e que programas ruins
estão associados à violência e à exploração sexual. Essa capacidade seletiva é explici-
tada no segundo exemplo, enquanto no terceiro, refor
ça-se o desejo de conhecer o
espaço do outro, propiciado pelo Jornal Nacional.
Assim, a escolha de processos mentais para representar o que sentem os ribeiros no
ato do consumo da televis
ão demonstra que mesmo exercendo um significativo pa-
pel de agente que informa, diverte e regula algumas pr
áticas sociais, enquadrando
Pesquisa de Campo
119
sua audiência no papel de agentes passivos, a televisão também é submetida a um
processo mental que, ora lhe aceita e ora lhe imp
õe sérias restrições, tornando o seu
consumo um espaço de luta.
Nesse lugar, valores, cren
ças e necessidades estão em constante conflito com o dis-
curso hegemônico da mídia televisiva.
Finalizo este item registrando um baixo grau de nominaliza
ções, o que representa
que os discursos particulares analisados n
ão estão representando um outro discurso.
Mesmo assim, registro uma nominalização que me chamou atenção no T2:
Quando a gente quer saber das notícias que acontece em Macapá é só ligar
a televisão...
(T2, 5-6)
Reduzir o processo de consumir informações via televisão ao ato de ligar o aparelho
é simplificação, se considerarmos que implícito ao processo estão questões como a
seleção dos programas, a aceitação ou recusa dos conteúdos e etc. No entanto, essa
nominalização chama atenção para o significado da televisão para o enunciador,
para quem saber do que se passa na capital implica apenas ligar o aparelho. Portan-
to, conhecer é simples e prático.
c) Metáfora
Tratei das met
áforas identificadas nos textos selecionados como meios de constru-
ção da realidade dos enunciadores. Através delas, verificaremos como se estruturam
seus modos de pensar e agir, bem como, seus sistemas de conhecimento e crença.
Considerando o n
ível de domínio da língua escrita, pelos produtores dos textos, e
que o recurso da metáfora exige um certo grau de elaboração intelectual, lançarei
mão de fragmentos de diversos textos, e não apenas de dois, como venho fazendo
até o momento. As marcações em colchetes na mostra textual foram feitas pela pes-
quisadora a fim de facilitar a compreensão.
Trabalhar com um número maior de enunciadores proporcionou não apenas um le-
que maior de amostras, mas também a comparação entre elas, ou seja, como enun-
ciadores diferentes metaforizam os mesmo temas.
Pesquisa de Campo
120
Texto I
A televisão ensino bons modos, para as pessoas, que
gostão dela, mais é bom um jornal.
Eu gosto mais de jornal, que eu fico sabendo das notícias
do mundo, e de outros países, do Brasil.
(5) O jornal, faz com que nós termos bons modos,
sabermos a previsão do tempo.
Ela não existia, na minha casa antes, eu só assistia na
casa da vizinha, mais mas agora eu já tenho. Ante só
tinha uma televisão na minha comunidade e dava muitas
(10) pessoas na casa de quem tinha.
Eu gosto de assistir televisão, mais não todas, as coisas
que tem, umas são demais feia e eu não gosto, porque
só acontece coisas mais [más] e ensina maus modos para
as crianças que assistem.
Leandro Rocha, 6
a
série
Texto II
Bom, no meu ponto de vista os jornais o os mais
importante na televis
ão, é através deles que nos informamos
de tudo o que acontece no mundo todo, as not
ícias no faz
conhecer cada vez mais e mais o nosso pa
ís, os fatos que
(5) acontecem o que aconteceu de bom e de rui
m.
Os melhores momentos de vermos o que acontece no
cotidiano das pessoas e o momento em que começa
o jornal. Gosto muito da novela, mais isso é um laser,
quando comecei morar aqui já tinha televisão, e não
(10) passou muito tempo para o energia ser 24 horas no
Bailique.
Tudo o que me traz informações e o que me faz aprender
mais.
Gosto mais do jornal nacional é 100%.
Edicleuma, 7
a
série
Pesquisa de Campo
121
Texto III
Eu gosto da televisão: porque é nela ques ser
comunicamos sobre, o que acontece com v
ários países do
mundo, principalmente aqui no Bailique, que acontece
várias coisas e a gente nem ficar sabendo, poriso que é
(5) bom ter uma televis
ão para ser comunicar.
Eu gosto de novelas, filmes, e desenhos, da Globo.
Eu não gosto de assistir o jornal nacional: porque fica
passando muitas coisas que acontece em vários países do
mundo.
(10) [TV na minha vida] Representa que nela, eu vejo as
roupas novas que passam e eu mando logo minha mãe
comprar, os novos sapatos da Xuxa, da Sandy eu fico
logo com vontade de ter um desses, sapatos.
[TV na minha comunidade] Representa as notícias,
(15) informações, recados para as pessoas.
Me chama atenção os atores, e atrizes do jeito que eles
se vestem, modo de falar.
Seria muito ruim [o Bailique sem TV]: porque nós não
poderíamos comunicar com as pessoas.
Franciane Cordeiro, 6
a
série
Texto IV
A televis
ão é muito importante para o dia-a-dia das pessoas,
a televis
ão educa, traz notícias para agente e as notícias para
melhorar nossa comunidade a televis
ão e importante para nós
é um meio de maternos informados sobre o mundo inteiro
.
(5) Eu gosto das novelas da Globo de filmes e programas
comediantes.
Eu gosto das novelas do SBT elas são enjoadas, são sem
ação, assim não cola.
Bom o que ela representa na minha comunidade é
(10) curiosidade e passa-tempo.
Pesquisa de Campo
122
Bom nos programas bons que é engraçado é as piadas.
Nos programas ruins como linha direta as tragédias que
acontece.
O Bailique seria muito triste nós não íamos está
(15) globalizado sobre o mundo há fora.
Alessandro, 6
a
série
Texto V
A televisão é um meio de comunicação falada e visual,
que é bastante útil as pessoas, e assim os jornais como o
Jornal Nacional que está sempre mantendo informados
as pessoas do Brasil e faz noticiário do Brasil e do
(5) mundo. Bom! Voltando a TV, ela é útil tanto para
cidade quanto para o campo e interiores.
O que eu gosto na TV,
é os programas interessante,
jornais, desenhos animados, filmes, novelas, seriados,
Globo Esporte, Vídeo Show, etc.
(10) O que eu não gosto é de programas enjoados, horio
pol
ítico, alguns comerciais ridículos que aparecem na TV.
Bem! O que ela representa na minha vida é noticiários
importantes e em jornais, que nos mantém bem
informados etc.
(15) Na minha comunidade representa boas ações e com
certeza tudo de bom.
No caso de programas bons ou ruis eu preferia
programas bons e educativos e outros como eu já falei.
O Bailique com certeza seria triste, todas as pessoas
(20) desenformadas.
É tamb
ém existe a Rádio Comunitária do Bailique (RCA), uma
rádio que traz muitas informações, e também programas bons.
A sua sintonia é de 88,1 FM.
A r
ádio tem programas que fala sobre: Amor, Futebol,
Pesquisa de Campo
123
(25) sicas do passado e que sobre Horóscopo.
Bom! Termino por aqui. Fui galera.
Max Willian Sarges, 6
a
série
Texto VI
A televisão é um meio de comunicação. As pessoas não
conversam através da televisão, mas podemos ficar
informados de tudo que ao redor do mundo inteiro, e
também podemos nos distrair assistindo novela, desenho
(5) animado, filmes, jornais e outras programações.
Eu gosto da televisão porque ela é educativa. Pois ajuda
na educação das pessoas, e também eu gosto porque é
divertido; ficamos por dentro de todos os assuntos.
Eu não gosto da televisão porque existem muitas
(10) propagandas enganosas.
A televisão representa na minha comunidade várias
coisas como a troca de informações.
O que me chama atenção nos programas bons é que a
gente se surpreende com o talento dos artistas.
(15) O que me chama mais atenção nos programas ruins
é que as pessoas não tem respeito, e também colocam
muitas propagandas enganosas.
Na minha opinião o Bailique sem televisão seria triste
porque a televisão é muito divertida.
Gabriel barbosa, 6
a
série
Texto VII
Eu gosto porque ela ensina sobre o mundo, sobre a
geografia do mundo. As notícias enteresantes e as
engraçadas como a do Jornal Nacional que passa o Lula.
Eu gosto, das novelas porque tem os atores mas gato e
(5) mais
enteresante como o jeca que era do Beijo do
Vampiro o Kaike Brito. Os romances das novelas que
Pesquisa de Campo
124
faz ficar emocionada.
Eu não gosto de filmes de sexo porque, são muito
endecente e é uma grande falta de consideração apesar de
(10) passa de madrugada
.
Aqueles jornais da Record são os que eu mais gosto
porque são os mais verdadeiro são realista.
No SBT eu gosto mais dos desenhos eu também gosto do
desenhos da Globo como: pica-pau, bleibleide, etc...
Mariane Brito, 7
a
série
construções metafóricas que se constituem como verdadeiras chaves para a com-
preensão do discurso dos ribeiros sobre a televisão. Nesta análise, vou focalizar qua-
tro met
áforas que aparecem com freqüência nos textos produzidos pelos jovens es-
tudantes.
A primeira delas é a metáfora do acesso ao mundo.
Analisemos os trechos transcritos:
É um meio de manter nós informado sobre o mundo inteiro.
(T4, L4
)
As pessoas n
ão conversam através da televisão, mas podemos ficar informa-
dos de tudo.
(T6, L 1-3)
Nesses exemplos, os enunciadores tomam a TV como um meio de acesso ao que se
passa no mundo. Ver televis
ão representa estar por dentro de todas as coisas que acon-
tecem, sejam elas boas ou ruins, n
ão importa, o valor es em fazer parte da rede de
acesso. N
ão há nessa mefora uma preocupão com a qualidade do que se consome
ou com a veracidade do que é transmitido, o que importa é a garantia de rompimento
com o isolamento e a possibilidade de conex
ão com o mundo.
Pesquisa de Campo
125
Nos próximos exemplos verificamos a importância atribuída ao telejornais, cujas no-
tícias trazem um carga de significação muito além do relatar fatos do cotidiano:
Os jornais são os mais importante na televisão, é através deles que nos infor-
mamos de tudo
.
(T2, L 1-2)
As notícias para melhorar nossa comunidade
(T4, L 2-3)
A notícia é metaforizada como a informação que vai trazer benefícios para a vida
comunit
ária. Nesse aspecto, retomo uma entrevista que fiz com os estudantes sobre
quest
ões de saúde pública e eles me informaram, entre outras coisas, que aprenderam
a prevenir a dengue vendo as reportagens que eram veiculadas no Jornal Nacional
.
Os telejornais funcionam como verdadeiras portas de entrada para acesso a esses e
outros conteúdos que são apropriados e traduzidos para a vida comum.
A segunda metáfora que quero tratar é a do consumo.
Nela eu vejo as roupas novas que passam e mando logo minhae com-
prar... eu fico logo com vontade de ter um desses, sapatos.
(T3, L 10-1
3)
Vejamos que nesse exemplo o discurso do marketing está fortemente apropriado
pelo enunciador, o que atribui a televis
ão um outro sentido, não mais aquele rela-
cionado ao acesso ao mundo. Agora o sentido
é o de vitrine, mercado de consumo,
lugar onde vou buscar minhas refer
ências de vestuário, estilo e até de modos de fala
e comportamento:
Me chama atenção os atores, as atrizes do jeito que eles ser vestem,
Pesquisa de Campo
126
modo de falar”.
(T3, L 16-17)
Outra metáfora que também compõe esse quadro de significação subjetiva da tele-
visão é aquela relacionada à educação e ao conhecimento.
Fortemente imbricada no discurso dos caboclos, ela aponta a televis
ão como um
meio de aprendizagem, de aquisi
ção de conhecimento e de possibilidade de acesso
a múltiplos saberes, que de outro modo não seriam acessados.
A televisão ensina bons modos para as pessoas.
(T1, L1)
Ela ensina sobre o mundo
(T1)
No primeiro exemplo, podemos interpretar bons modos como formas de comportamen
-
to socialmente aceit
áveis e tamm como estilos de vida que tornam o cotidiano comu-
nit
ário mais agravel e de certa forma enquadrado na ordem do discurso midiático.
No segundo exemplo chamo ateão para o fato da palavra mundo ter um signi
-
ficado diferenciado no contexto dado, pois está relacionada a um mundo exterior
à comunidade; é como se o mundo comunit
ário não estivesse incluído na pers-
pectiva de mundo como um todo global. Vale ressaltar que essa resignificação da
palavra mundo acontece em outros textos da amostr
a.
A televis
ão como metáfora de educação e conhecimento, nos leva a entender o
consumo n
ão como algo inevitável, considerando o poder estruturante da mídia
televisiva, mas também como um modo consciente de acesso ao saber.
Gosto de assistir televisão, mais não todas as coisas que tem, umas são de-
mais feias... ensina maus modos, para as crianças que assistem.
(T1, L 11-14)
Pesquisa de Campo
127
Por fim, a metáfora da desinformação que junto com as demais fecha um quadro de
mudança discursiva com implicações culturais e sociais significativas. Analisemos os
enunciados seguintes que est
ão relacionados à possibilidade de ausência da televi-
são na comunidade:
O Bailique com certeza seria triste, todas as pessoas desenformadas.
(T5, L 10-20)
O Bailique sem televis
ão seria muito tristes não íamos estar globaliza-
dos sobre o mundo lá fora
.
(T4, L 14-15)
Seria muito ruim: porque nós não poderíamos comunicar com as pessoas
(T3, L 19-20)
O mundo comunitário sem televisão seria triste, ruim, desinformado. Arrisco-me a
pressupor qu
e dificilmente a ausência da televisão seria significada dessa forma em
algum outro lugar,
à exceção daqueles com as mesmas características da comunida-
de pesquisada.
O meio televis
ão ao possibilitar a integração ao mundo globalizado desterritorializa a
comunidade, apaga suas fronteiras e derruba tudo aquilo que os impede de conhe
-
cer o mundo do outro.
Entrevejo um significado mais profundo para a desinforma
ção de que trata essa
metáfora, penso não estar ela relacionada apenas ao fato de não se ter acesso a in-
formações e acontecimentos, além dos limites comunitários; mas também à negação
do conhecimento e à decretação do isolamento total.
Por isso, entendo que a met
áfora da desinformação aliada a outras mencionadas
formam um quadro de mudan
ça discursiva; o que Fairclough chama de mudança na
metaforização da realidade
10
, por representar uma mudança no pensamento (sem
ela n
ão existe conhecimento) e nas práticas (reproduzem de modo consciente o que
Pesquisa de Campo
10
FAIRGLOUGH, N., 2001, p. 168
128
aprendem no seu cotidiano), relativas ao consumo de televisão.
III.3.2.2 Dimensão das práticas discursivas
a) Interdiscursividade
Texto I
A televis
ão é um meio de comunicação muito importante,
pois nos mostra os acontecimentos de toda parte do
mundo nos faz com que estejamos sempre informados
com as notícias boas e ruins que ocorrem diariamente.
(5) O que eu mais gosto da televisão são das notícias,
por exemplo os jornais, algumas novelas, programas de
humores e alguns filmes, principalmente filmes, que são
feito na mata e desenho animados.
Não gosto são de algumas novelas que mostra, muita
(10) violência, sexo livre, filhos não respeitando mais
os pais, filmes de terror, alguns programas violentos
como linha direta etc.
Bom, a televisão tanto pode ensinar coisas boas, mas
também, pode influenciar negativamente.
(15) Na minha vida ela só representa como um meio de
comunicação importante. Cabe cada um saber, usá-la ou
não, para não se contaminar com as coisas ruins.
Na minha comunidade, ela já trouxe mais influências
negativas, do que positivas. Por exemplo, antes da
(20) televis
ão chegar na comunidade, as crianças dormiam
cedo n
ão se via tantas violências por elas. Os filhos acordavam
cedo pra ajudar aos pais, nos servi
ços que lhes pediam.
Hoje já é tudo contrário. As crianças vão até a
madrugada assistindo, para as suas vida.
(25) Um outro caso que acontece com a influência dos
valores, são os valores morais que já não se vê. Filhos
não tomam mais bença dos pais, a questão de andar
Pesquisa de Campo
129
nem já não é vergonhado a virgindade é colocada como
um coisa cafona, que as moças tem que manter relações
(30) sexual antes do casamento.
O namoro não é mais como antes, os namorados já dormem
juntos. Tudo isso, a televis
ão trouxe e continua trazendo.
Na minha opinião, o Bailique seria sem televisão uma
sociedade menos corrompida por tantas violências,
(35) prostituições de toda as partes e outras coisas mais.
Mas tudo depende de sabermos usar o aparelho
Stéphany Dayane, 6
a
série
Texto II
Eu gosto de assistir desenhos, mas desenhos que
incentivam as pessoas à uma educão bem legal, a uma
especial que levem a um bom caminho. Um caminho de
respeito, alegria, dedicação e tamm honrar e respeitar
(5) seus pais e pessoas de mais idades. Um exemplo de
desenho educativo é o das trig
êmeas, é um desenho que
onde as trig
êmeas sempre ajudam as pessoas nas histórias.
E uma das emissoras de TV que estão de parabéns são: a
Rede Globo e a Paran
á Educativa, são ótimas, só passam
(10) coisas interessantes, menos algumas novelas da
rede Globo que transmitem fortes cenas e cenas muito
ousadas, cenas com autores semi-nus, autores que
influenciam à besteiras e as doidices.
Eu gosto de assistir o jornal da Globo, gosto de ver sempre
(15) como está o Iraque, como andam as coisas pelo mundo
afora, adorei a reportagem do jornal onde passou sobre as
imagens claras de Marte e estão vendo se existe agora vida
em Marte, eu também gosto de ver com anda o lar, ou a
subida do dólar. Ontem por exemplo o dólar estava em
(20) média de R$ 2,80, hoje pode estar mais alto ou então
baixar. Gosto tamm de ver as notícias sobre como anda
o tempo sobre todo o país. Gosto de ver o tempo sobre
Macap
á, Pará, São Paulo, Rio, Santa Catarina e outros.
Pesquisa de Campo
130
Uma coisa que me deixa muito triste é a fome, não só no
(25) Brasil, mas como em Bagdá, em São Paulo e quase
em todo o mundo.
Assisti uma pessoa em uma reportagem que estava muito
desnutrida, estava toda suja, doente e muito triste, ent
ão
eu fiquei muito triste, eu fiquei pensando no
(30) mundo como tem gente passando fome e sentindo frio
.
Gosto também de novelas, mas não gosto muito de
Kubanacam, as vezes passam coisas absurdas, mas eu
gosto mesmo e da novela Celebridade, passam coisas
interessantes e legais.
Manuela Pires, 7
a
série
Nesta análise, focalizarei os aspectos relativos à interdiscursividade ou intertex-
tualidade constitutiva, a fim de identificar por meio das convenções discursivas
que se configuram na prodão dos textos caminhos poss
íveis para a compreensão
do discurso dos caboclos ribeiros sobre a m
ídia televisiva.
O conjunto de tipos de elementos textuais que comp
õe T1 e T2 apontam para o gê-
nero reda
ção escolar. O tipo de atividade (escolar) estabelece os seguintes posiciona-
mentos dos participantes da intera
ção: o aluno como sujeito enunciador de um texto
de car
áter dissertativo, cuja temática é preestabelecida, e o professor como receptor
avaliador.
Em termos de estilo, predominam o modo escrito de retórica descritiva argumenta-
tiva e tenor informal.
No momento da leitura para a seleção das amostras incorporadas à pesquisa, notei
que a maioria dos estudantes ao se referir ao meio de comunicação televis
ão se
posicionam como coletividade
.
Essa caracter
ística pode ser observada no T1, quando o enunciador, ao se posicio-
nar como ente comunit
ário, faz com que a voz do relator, ao longo do texto, oscile
entre a primeira e terceira pessoa do discurso. Essa oscila
ção divide o texto em dois
momentos. No ato de relatar o significado do meio para a sua comunidade o relator
assumi uma identidade coletiva, posicionando-se como uma esp
écie porta-voz do
grupo comunit
ário que integra (T1, L 1-5), retornando à primeira pessoa para relatar
Pesquisa de Campo
131
suas preferências (T1, L 5, 9, 15).
Na abertura do T1, como ente coletivo, o enunciador ressalta as qualidade do meio,
destacando sua importante fun
ção de manter o grupo informado, no entanto, a
certa altura do texto, acusa o meio de ter trazido mais coisas ruins do que boas
para a comunidade, o que faz posicionado na primeira pessoa do discurso. Assim,
percebesse que estamos diante de uma ambival
ência de vozes, o que Bakhtin (1981)
chama de “dupla voz”.
Essa dupla voz manifesta no T1 nos permite entrever aspectos de car
áter dialógicos,
ou seja, h
á um embate dos dois textos: um representado pelo senso comum de que a
TV é indispensável para manter o grupo informado sobre o que se passa no mundo,
considerando as condi
ções comunitárias de isolamento, e outro pelo discurso parti-
cular, baseado nas pr
áticas sociais vivenciadas pelo enunciador, de que o meio trouxe
preguiça, alterou a moralidade e os costumes locais, como o de tomar a benção dos
pais ou namorar de porta (T1, L 18-30).
O consumo das telenovelas se manifesta de forma bem complexa em ambos os tex-
tos, onde seus enunciadores ao mesmo tempo que admitem apreciar o programa,
imp
õem a ele uma rie de restrições.
Em T1, por exemplo, o enunciador classifica
“algumas novelas” como promotoras da
violência, do sexo livre e de filhos que não respeitam os pais (L 9-14), mesmo tendo
admitido anteriormente gostar “de algumas” (L 6).
O mesmo acontece em T2, onde o enunciador diz não gostar de “algumas nove-
las
”, utilizando o mesmo termo do enunciador de T1, por transmitirem cenas fortes
e muito ousadas, como de atores seminus; essa ousadia é estendida aos atores, no
caso os personagens interpretados por eles, que induziriam a
“besteiras e doidices”
(L 10-13), segundo o enunciador, que finaliza o texto dizen
do:
Gosto também de novelas, mas o gosto muito de Kubanacam, as vezes pas-
sam coisas absurdas, mas eu gosto mesmo e da novela Celebridade, passam
coisas interessantes e legais
.
(T2, L 31-34)
Esse consumo complexo da novela nos coloca diante de uma importante quest
ão,
Pesquisa de Campo
132
considerando o lugar onde queremos chegar: no discurso dos ribeiros sobre a tele-
vis
ão. O fato dos enunciadores dos T1 e 2 expressarem uma complexa relação de
aceitação e recusa dos conte
údos transmitidos pela televisão, reforça não apenas o
dialogismo existente nos textos, que quando submetidos
às práticas sociais da comu-
nidade, fazem emergir discursos que colocam a TV, ora como bandida; desarticuladora
da cultura local, ora como mocinha; veiculadora de
“coisas interessantes e legais”, mas
nos coloca diante de int
érpretes resistentes ao discurso hegemônico da televisão.
A co-exist
ência de elementos contraditórios também pode significar um processo de
mudança discursiva em andamento.
Nesse ponto, cabem algumas considerões de Fairclough sobre o aspecto coen-
cia na interdiscursividad
e.
A coer
ência, para o pesquisador, não é uma propriedade dos textos, mas uma “pro-
priedade que os interpretes imp
õem a eles, e diferentes interpretes geram diferentes
leituras coerentes do mesmo texto
11
. Esse conceito passa a nos interessar quando
Fairclough estende a categoria de interprete ao produtor do texto. Assim sendo,
ao olharmos os enunciadores dos T1 e 2 como
produtores-intérpretes de um tex-
to sobre a televis
ão, percebemos seu posicionamento de intérpretes resistentes aos
conteúdos televisivos, ou seja, interpretes que não se ajustam às posições que são
estabelecidas para eles nos textos veiculados.
Essa luta, travada na articula
ção dos elementos intratextuais, leva os enunciadores à
constituição de um discurso crítico particular que se contrapõe ao discurso hegemô-
nico da TV.
A produção dos T1 e 2 é marcada por fortes restrições sociais que estabelecem uma
estreita relação entre a natureza dos processos discursivos particulares e a natureza
das pr
áticas sociais de que faz parte.
Como fator ilustrativo observemos este trecho do T2:
Eu gosto de assistir desenhos, mas que incentivam as pessoas a uma edu-
cação bem legal (...) que levem a um bom caminho (...) de respeito, alegria,
dedicação e também honrar e respeitar seus pais e pessoas de mais idade.
(L 1-5)
Pesquisa de Campo
11
FAIRGLOUGH, N., 2001, p. 171
133
Ao argumentar sobre os tipos de desenho animado que aprecia, o enunciador do T2
traz à superfície do texto valores cultuados, certamente, no seu ambiente familiar que
definem o bom caminho como aquele marcado pelo respeito em fam
ília; honrando
pai e mãe, e fora dela; respeitando os mais velhos, outros entes comunitários.
No T1, a insist
ência no saber usar o meio, pode ser uma marca das práticas sociais
desenvolvidas nas atividades escolares.
Na minha vida ela só representa como um meio de comunicação importan-
te. Cabe a cada um saber us
á-la ou não, para não se contaminar com as
coisas ruins.
(L 15-17)
O Bailique seria sem televis
ão, uma sociedade menos corrompida por tantas
violências, prostituições de toda as partes e outras coisas mais. Mas tudo
depende de saber usar o aparelho.
(L 33-36)
No item III.2, onde dissertamos sobre as observa
ções e análises etnográficas, falamos
sobre o esfor
ço dos professores em desenvolver uma visão crítica do meio, utilizan-
do-o como aliado no processo ensino-aprendizagem. E o resultado desse trabalho
pode ser visto nos trechos transcritos acima. Neles, o enunciador do T1, por exemplo,
não insiste no saber usar o meio, a fim de retirar dele apenas o que tem de melhor,
como deixa bem marcada sua condi
ção de “aparelho”, que aqui interpreto com algo
exterior ao humano e, portanto, controlável, de preferência sem sair da poltrona.
Assim, analisando a textura dos textos em questão verificamos a presença de
estruturas sociais interiorizadas nos enunciadores: como a escola e a fam
ília, me-
diando e restringindo seu discurso sobre a televis
ão.
b) Intertextualidade manifesta
Texto I
A televisão ela informa muitas coisas boas e coisas ruins,
também propagandas que as pessoas aprendem como
Pesquisa de Campo
134
viver, e como saber. Nas novelas que passa na televisão
as pessoas ver as coisas que os ator ou atriz, até mesmo
(5) os apresentadores de programas, usam e a gente
compra para viver e também para usar como: blusas,
calças compridas, sapatos, brincos, etc.
Eu gosto de várias programas [.] as pessoas aprendem como
escrever as palavras certas e v
árias receitas de culinárias.
(10) Eu não gosto é quando passa aquelas pessoas
matando, pessoas inocentes, roubos.
Na minha comunidade representa a sobreviv
ência das
pessoas, tem pessoas que n
ão tem televisão mais vai para a
casa do vizinho assistir o que está acontecendo no mundo
.
(15) Na minha vida representa muitas coisas, ela faz como eu
viver e representar como importa para a vida das pessoa
s.
Me chama mais atenção nos programas bons e nos
programas ruins e para você ficar mais informado sobre
o nosso país e outros lugares distante, mostrando como
(20) cuidar dos animais, das plantações, como não pegar
doenças e outras informações.
O Bailique seria muito desenformado e sem importância
para essas pessoas ricas, a escola Bosque ela já foi vista
na internet, não vinha pessoas para filmar a escola e
(25) muito menos o Bailique. No Bailique já tem uma
rádio comunitária porque deveria ser alguma pessoa
que se importou com o Bailique e sabe que as pessoas
precisam ter informações.
Maria do Socorro, 6 s
érie
Texto II
A televisão é um meio de comunicação muito legal,
porque as pessoas aprendem mais, ela mostra o que é
bom e o que é ruim, a televisão é muito boa.
Tem gente que gosta de assistir novelas, filmes, desenhos
Pesquisa de Campo
135
(5) e outros...
O que eu mais gosto na televisão é das novelas, dos
filmes que tenham finais felizes. E o que eu não gosto é
dos filmes de terror, com muito viol
ência.
A televisão representa na minha vida uma alegria imensa,
(10) assim como representa na minha comunidade.
É muito legal ter uma televisão em casa pra assistir
todos os programas bons, as novelas, enfim o que nós
quisermos assistir.
Ela é algo maravilhoso, porque sem ela nós não sabíamos
(15) tanta coisa como sabemos agora.
O que me chama atenção nos programas bons é aquelas
pessoas ensinando muitas crianças a ler, ajudando
muitas crianças a estudar, a ter uma vida melhor. E dos
programas ruins são aquelas pessoas que maltratam as
(20) crianças, que não querem bem para as crianças.
O Bailique sem televisão seria muito ruim, porque se
não tivesse televisão não tinham aprendido quase nada.
E também quando a gente fosse fazer algum trabalho
sobre a televisão a gente não ia saber de nada porque
não tinha televisão.
Flaviane Alves, 6
a
série
Tratarei da intertextualidade manifesta, ou seja, da identifica
ção de outros textos
na composi
ção da amostra selecionada, a partir de características que se manifestam
na superf
ície dos textos e que dizem respeito à representação discursiva e a pressu-
posições.
No aspecto representa
ção de discursiva, tanto no T1, quanto no T2 não marcas
formais dessa representação - aspas ou orações relatadas.
No entanto, um olhar mais atento nos permite perceber em T1 o relato de uma voz
que não é a do enunciador.
Vejamos que em:
Pesquisa de Campo
136
“...também há propagandas que as pessoas aprendem como viver e saber..”
(L 1-2)
Não há nenhuma marca formal de representação discursiva, porém no ponto de vista gra-
matical o vocabul
ário pessoas leva a uma generalização que nos permitir questionar que
pessoas aprendem como viver e saber? Que pessoas o enunciador estaria representando
discursivamente de forma indireta
?
O termo
“pessoas” é utilizado repetidas vezes no texto, sendo que em determinada
altura o enunciador confundi-se com as pessoas
às quais se refere. Observando o
trecho:
... nas novelas que passa na televisão as pessoas ver as coisa que os ator ou
atriz, at
é mesmo os apresentadores de programas usam e a gente compra
para viver...
(L 3-5)
É possível inferir que um representação indireta do discurso comunitário por
trás da fala do enunciador.
As pressuposições também aparecem no T1 de forma significativa:
“... o Bailique seria muito desinformado e sem importância para as pessoas
ricas, a escola Bosque j
á foi vista na internet, não vinha pessoas e muito
menos o Bailique...”
(L 22-25)
Apesar da construção um pouco confusa, o enunciador claramente pressupõe que
a import
ância ou visibilidade da Escola Bosque é atribuída a sua inserção no mundo
virtual da comunica
ção, o que faz utilizando o artigo definido “a” em “a escola Bos-
que j
á foi vista na internet”, logo ela existe no bios midiático e por isso é importante,
do contrário não seria.
Pesquisa de Campo
137
Outro exemplo interessante de pressuposição no T1 está em:
“...na minha comunidade representa a sobrevivência das pessoas...”
(L 22-24)
Ao descrever o significado da televio para sua comunidade, o enunciador, defi-
nindo o substantivo sobreviv
ência com o artigo “a”, pressupõe que fora da TV não
vida.
Nesse sentido, o espa
ço criado pela mídia televisiva assume uma dimensão de exis-
tência, mas não uma existência corpórea e, sim, virtual e necessária socialmente.
Acessar o mundo via televis
ão é existir como membro de uma comunidade planetá-
ria, onde a informa
ção encurta as distâncias, fazendo desaparecer as fronteiras do
isolamento geográfico.
No T2, verificamos algumas formas de pressuposição atrav
és da constrão de orações
negativas. Em
,
“...se não tivesse televisão não tinham aprendido quase nada.
(L 21-22)
Sem ela nós não sabíamos tanta coisa como sabemos agora.
(L 14-15
)
O enunciador pressupõe, pela negação, que a ausência da televisão na comunida-
de teria como conseq
üência a ausência do conhecimento que se tem hoje, o que é
questionável, num primeiro momento, considerando a riqueza dos saberes locais, no
entanto, o conhecimento ao qual se refere o enunciador nos parece ser aquele que
está fora dos limites comunitários e que se faz tão necessário, quanto o conhecimen-
to tradicional.
O discurso da televis
ão que ensina através da informação é freqüente em quase to-
dos os textos analisados e está ligado ao discurso da escola.
Pesquisa de Campo
138
“Eu não gosto de filmes de terror, com muita violência.”
(L 6-7)
O trecho acima pressupõe, também pela negação, que a televisão, através dos fil-
mes, amplia a viol
ência ao ponto de incomodar o enunciador. Pressupõe, ainda, que
os conteúdos transmitidos nem sempre são agradáveis ou apropriados.
Pressuposições como essas se articulam no texto como contradições ao discurso que
de que a televis
ão é sinônimo do conhecimento apenas de coisas boas, o que de-
monstra uma vis
ão crítica, baseada em experimentações cotidianas do consumo des-
sa mídia.
As nega
ções polemizam os textos: a TV só ensina coisas boas? Sem ela não se apren-
de quase nada? Aprecia-se filmes de terror com baixo nível de violência?
As pressuposições identificadas n
ão são manipulativas, são sinceras, ligadas a
textos principais, como o da escola, e a textos anteriores do enunciador, como
aqueles referentes a sua experi
ência cotidiana de consumidor do meio, e têm,
em comum, a concepção de um discurso sobre a televis
ão que a entende como
um meio de aprendizagem e rompimento do isolamento
.
Observa-se ainda, nos textos analisados, a utilização do metadiscurso como um
modo de representação de outros textos.
Vejamos nos exemplos retirados do T2:
(...) programas bons é aquelas pessoas ensinando muitas crianças a ler,
ajudando muitas crian
ças a estudar, a ter uma vida melhor.
(L 16-18
)
(...) programas ruins s
ão aquelas pessoas que maltratam as crianças, que
não querem bem para as crianças.
(L 18-20)
O uso do metadiscurso nesses exemplos se dá por meio de paráfrases ou reformu-
Pesquisa de Campo
139
lações de expressões, nesse caso as expressões são relativas à definição “programas
bons” e “programas ruins” transmitidos pela televisão.
O enunciador do T2 utiliza v
árias formas verbais para definir o que no seu discurso
representa a id
éia de um programa bom, estando o sentido de bom vinculado a um
outro texto: o educacional. O que define o bom programa para o enunciador
é seu
caráter educativo, que por sua vez está ligado a convenção de que a educação é o
meio de ser obter uma vida melhor.
A reformula
ção da expressão “programas ruins” segue a mesma lógica, mas pressu-
pondo que o mal trato de crian
ças existe e que por não ser algo socialmente aceitá-
vel, quando aparece representado na m
ídia faz com que ela deixe de ser interessante
e educativa.
É muito legal ter uma televisão em casa para a gente assistir todos os
programas bons, as novelas, enfim o que n
ós quisermos assistir.
(L 11-1
3)
Esse terceiro exemplo, também extraído do T2, mostra uma segunda reformulação de
“programas bons”, cuja idéia agora é representada por tudo aquilo que ele quer, ou
gosta de ver, o que pressup
õe um dispositivo de seleção desses programas fortemente
mediado por pr
áticas e convenções sociais, mas que não os impede de contestar e re-
estruturar ordens de discursos que os posicionam. Ou seja, “é muito legal ter televis
ão
em casa” (T2, L 11), mas para assistir o que eu quiser
.
Essa pressuposi
ção reforça o diálogo possível que falamos na introdução deste tra-
balho, que se d
á de forma silenciosa e desinteressada - quase sem perceber. Tal diálo-
go, que implica num constante movimento de negocia
ção entre emissor e receptor é
o que faz com que o enunciador do T2, al
ém de definir que “programas bons” quer,
ou gosta de assistir, tamb
ém reformule a expressão “o que gosta de assistir”, no caso
programas educativos.
III.3.2.3 Dimensão das Práticas Sociais
Na matriz social da inst
ância particular de discurso em análise, identifica-se pelo
menos tr
ês estruturas sociais hegemônicas, cujos discursos articulando-se, a todo
Pesquisa de Campo
140
instante, com o discurso também hegemônico da mídia televisiva.
Para efeito dessas an
álises, tomarei como base os textos analisados nas seções III.3.2.1
e III.3.2.2.
12
A família é a instituição social que primeiro salta aos olhos na análise dos textos. Sua
presença pode ser constatada nos aspectos relacionados aos valores e crenças que os
enunciadores manifestam em suas pr
áticas discursivas. Guardiã dos conhecimentos
populares passados de pai para filho e dos costumes e tradi
ções cultuados na comu-
nidade, a fam
ília tem forte influência na formação ideológica dos enunciadores. Os
conhecimentos apreendidos no ambiente familiar aparecem nos textos, em maior
escala, quando se trata de expor uma vis
ão crítica dos conteúdos transmitidos pela
televisão.
Costumes familiares como o de tomar a bên
ção, mencionado em análises anteriores,
o culto a um ambiente de tranq
üilidade nas relações entre os entes familiares, o res-
peito aos mais velhos e a valores como o matrim
ônio, a virgindade e o namoro com
permissão dos pais, são freqüentemente confrontados com os valores disseminados
pela televis
ão. Quando isso ocorre, os enunciadores vão buscar na ordem discursiva
familiar os argumentos necess
ários para recusar este ou aquele conteúdo, ou aceitá-
lo, no todo ou em parte.
A oposi
ção ao discurso midiático, muitas vezes avança no sentido de reestruturá-lo.
Vejamos no exemplo abaixo:
O Bailique seria, sem televisão, uma sociedade menos corrompida por tanta
violência (...) mas tudo depende de sabermos usar o aparelho.
(III.3.2.2./a: T1, 33-36)
Nele, o enunciador não apenas se opõe ao discurso midiático, com a assertiva de que
sua comunidade seria menos violenta sem a televis
ão; o que pressupõe a transmissão
de conte
údos que estimulem a prática da violência, como sugere uma reestruturação
desse discurso pelo que propõe a utilização apenas do que há de melhor na TV.
Essa visão, transforma o modo de consumir adia televisiva. Ao propor uma audiên-
cia atenta e respons
ável, o enunciador atribui um sentido diferenciado para o efeito de
12
Na seção III.3.2.1 ver textos no “c” e na seção III.3.2.2
ver textos nos itens “a” e “b”
Pesquisa de Campo
141
reprodução da violência na esfera comunitária, o que em outras palavras significa dizer
que, se ela existe é porque foi aceita, passivamente, pelos telespectadore
s.
A escola tamb
ém integra a matriz social do discurso analisado, sendo responsável
por refor
çar a idéia de que a TV é um veículo de informação e educação, tão impor-
tante, que chega a ser apropriado por ela, quando esta se utiliza da TV como meio
ou apoio a transmiss
ão de conhecimento. Isso faz com que seja considerável a prefe-
rência por programas que ensinem práticas que possam ser aplicadas no dia a dia:
Eu gosto de vários programas as pessoas aprendem como escrever as pala-
vras certas e várias receitas de culinária.
(III.3.2.2/b: T1, L 8-9)
O discurso da institui
ção escola também possui um papel decisivo na visão crítica
que os enunciadores demonstram ter sobre alguns aspectos do consumo da m
ídia
televisiva, sendo respons
ável, inclusive, por distinções que se encontram de certa for-
ma naturalizadas no discurso dos caboclos, como aquela que d
á conta da existência
de programas educativos, que possibilitam o acesso a informa
ções que vão agregar
valor a sua existência e, de outros, que servem apenas para fazer rir:
A televisão (...) ajuda na educação das pessoas, e também eu gosto porque
é divertida.
(III.3.2.2/c: T6, L 6-7)
A distinção desses gêneros televisivos é responsável pela preferência por conteúdos
que disseminem o discurso educacional e pela rejei
ção ou aceitação, em menor grau,
aqueles que não estão imbuídos dessa finalidade:
Eu não gosto da televisão porque existem muitas propagandas enganosas.
(III.3.2.2/c: T6, L 9-10)
Pesquisa de Campo
142
Eu não gosto de filmes de sexo são endecentes e é uma grande falta de
consideração.
(III.3.2.2/c: T7, L 8-9)
Eu não gosto (...) do horário político.
(III.3.2.2./c: T5, L 10-11)
Propaganda enganosa, programa político e filmes que expõem a sexualidade sem co-
notações educativas est
ão na lista dos conteúdos mais rejeitados pelos enunciadores.
Assim, o discurso hegem
ônico da instituição escola molda as práticas discursivas
dos enunciadores, sendo amplamente reproduzido no ambiente comunit
ário e mo-
tivador de um posicionamento, ora passivo, ora ativo, frente ao discurso midi
ático
televisivo.
A r
ádio comunitária do arquipélago, fecha as principais estruturas sociais identifica-
das na matriz social do discurso em análise.
A RCA, agente discursivo autorizado na comunidade, funciona como reprodutora
do discurso comunit
ário, sendo considerada pelos enunciadores como um meio de
suprir as necessidades comunicativas locais:
O Bailique já tem uma rádio comunitária, porque deveria ser alguma pessoa
que se importou com o Bailique e sabe que as pessoas precisam ter infor
-
mações.
(III.3.2.2/b: T1, L 25-28)
A RCA, que como vimos no capítulo anterior disputa a audiência dos ribeiros com a
televisão, aparece no discurso dos enunciadores como uma alternativa de instrumen-
to de comunica
ção localizado, um meio de fazer circular e tornar comum informa-
ções relativas ao dia-a-dia comunitário. Compreendendo a importância dada à RCA,
no discurso em an
álise, como um modo de luta contra o discurso hegemônico da TV,
que at
é bem pouco circulava absoluto, pois o discurso localizado da rádio é, para os
ribeiros, tão necessário, quanto o discurso globalizado da tevê.
Pesquisa de Campo
143
Assim, entre as principais ordens de discursos delineadas pelas práticas sociais e
discursivas est
ão a educacional, a familiar, a midiática e a comunitária, sendo cada
uma reproduzida ou transformada, em maior ou menor grau, pelas lutas travadas no
interior das práticas discursivas integradas às práticas sociais.
Cabe destacar que as mudan
ças discursivas decorrentes de articulações e rearticu-
lações nas ordens discursivas têm sua origem na problematização das convenções
pelos produtores ou intérpretes e podem ocorrer de várias formas.
13
As transformações na ordem discursiva familiar, no que se refere às concepções de
namoro e casamento, que mencionamos anteriormente,
é um exemplo disso, con-
frontados com discurso hegem
ônico de TV essas concepções foram sendo recombi-
nadas. Essa rearticula
ção no interior da ordem discursiva familiar implica mudanças
na ordem discursiva comunit
ária, onde novos valores, os capitaneados pela mídia,
colonizam as relações sociais de modo a instituir novas práticas.
Mas gostaria de concentrar-me na transforma
ção, ou pelo menos tentativa de, que
considero mais significativa e que está relacionada à ordem discursiva midiática.
Nesse ponto, retorno à pesquisa etnográfica, onde falei sobre aquela sensação que
tive de que os ribeirinhos enganavam a m
ídia
14
, ao participar de um jogo, onde prá-
ticas como o consumo intenso dos programas televisivos; que os faziam caracterizar-
se como personagens ou promover determinadas atividades a partir de est
ímulos
televisivos, eram mediadas por uma atividade seletiva, cujo crit
ério primeiro era o
desejo de conhecer e/ou aprender o que se faz fora do universo comunitário.
Essa atividade, silenciosa e, por vezes, inconsciente, é responvel pelo que eu cha-
maria de uma resignificação da ordem do discurso midi
ático, cujo senso comum
tende a naturalizar como avassalador.
Não quero aqui negar a poder da TV de reestruturar a vida social, als essa foi uma pre-
ocupação que externei logo na introdução deste trabalho, mas sim chamar atenção para
o significado atribu
ído, no discurso dos ribeirinhos, à TV; que para eles significa um meio
de acesso ao mundo, a partir do qual sentem-se integrados à sociedade global, mesmo
com toda a carga de isolamento que pesa sobre eles. O impacto nas relações sociais e
interpessoais por ocaso do consumo dessadia é inegável, assim como é impossível
o deixar de perceber o desejo ou a necessidade de estar integrado ao mundo, muito
mais pela possibilidade de existir nesse novo espa
ço criado pela mídia, do que pela opor-
13
FAIRCLOUGH, N., 2001, p. 127
14
Ver capítulo III.2, p. 79-80
Pesquisa de Campo
144
tunidade de consumir ou se divertir. E isso amplia o significado de consumir televisão
que de informação e entretenimento estende-se a integrão e conhecimento
.
Eu fico sabendo das notícias do mundo, de outros países, do Brasil.
(III.3.2.1/c: T1, L 3-4)
Os melhores momentos de vermos o que acontece no cotidiano das pessoas
é quando começa o jornal.
(III.3.2.1/c, L6-7)
Eu gosto da televis
ão: porque nela é que nós ser comunicamos sobre, o que
acontece com v
ários países do mundo, principalmente aqui no Bailique, que
acontece várias coisas que a gente nem fica sabendo.
(III.3.2.1/c: L 1-4)
O consumo, diante desse quadro, se torna secundário, pois uma razão maior para
dedicar audiência à TV.
Ao adaptarem as convenções relativas ao consumo dessa mídia a novas maneiras, identifi-
co uma tentativa de mudan
ça na ordem discursiva midtica, pelo menos em modo local.
Ao resignificarem o consumo da TV, concebendo-a como uma estrat
égia de perten-
cimento a esse novo espa
ço da mídia, eles estão contribuindo de modo criativo para
a mudança discursiva.
Além de divertir, a tevê mostra: acontecimentos de toda parte do mundo/ notícias
boas e ruins (T1) e at
é ensina como viver (T2). Mas viver onde? Para mim só há uma
resposta: no
bios midiático. Essa mídia ensina como vivem os membros dessa comu-
nidade virtual e globalizada.
Assim, compreendo a resignifica
ção do consumo de televisão presente nos textos
analisados como luta ideol
ógica dos caboclos contra a discurso hegemônico da te-
levisão. Essa tentativa de rearticulação da ordem discursiva midiática representa um
marco delimitador de luta hegem
ônica; uma luta desigual, mas que sobrevive no
interior das práticas discursivas dos caboclos.
Pesquisa de Campo
IV - Algumas
Considerações e
Desafios
146
“Entre dois grãos, por mais juntos que estejam, sempre haverá um espaço.”
Clarice Lispector
Queria come
çar a finalização desta dissertação por onde tudo começou. Essa refe-
rência a Clarice Lispector foi uma das muitas que ilustraram meu trabalho monográ-
fico de conclus
ão do curso (Letras), na Universidade Federal do Amapá, sete anos.
Foi o primeiro trabalho de pesquisa que fiz na vida.
Clarice sempre me fascinou pela aura de mist
ério que envolve sua escrita. Decifrando
seus textos, “aprendi o valor das entrelinhas, do explorar o inexplor
ável, do tocar o
intocável”.
E foi acreditando na exist
ência de minúsculos espaços entre as menores coisas, por
mais justas que possam estar, que apostei na exist
ência de um diálogo possível entre
a m
ídia televisiva e indivíduos tão significativamente expostos a ela, vislumbrando
caminhos alternativos para interpretar os dados que coletava em campo.
Decifrar os textos dos jovens estudantes, muitas vezes elaborados com dificuldade
por conta do dom
ínio parco da língua portuguesa, foi como tocar o intocável; inter-
pretar nossas conversas, valorizando suas entrelinhas, foi como explorar o inexplo
-
rável.
Assim, finalizo por onde comecei; reafirmando o poder da m
ídia como agente estru-
turador e mediador da vida em sociedade; no entanto, com uma ressalva: a rec
íproca
é verdadeira. Isso significa dizer que assim como ela estrutura e media a vida social
é estruturada e mediada pelos agentes sociais. Esse movimento dialético pode va-
riar de sociedade para sociedade e de indiv
íduo para indivíduo, mas sempre existirá
- consciente ou não.
E a maior prova disso est
á no fato de que os conteúdos transmitidos por ela nada
mais s
ão do que um reflexo da vida social. É como se estivéssemos diante de um
espelho capaz de reproduzir tudo o que se passa em nossas vidas e na vida dos ou
-
tros: o telejornal
é o recorte do dia a dia; a colcha de retalhos que mostra tudo o que
acontece nas dimens
ões local e mundial. A telenovela é a vida reproduzida no bios
midiático, com seus personagens tão parecidos com o vizinho ou com aquilo que
Algumas Considerações e Desafios
147
gostaríamos de ser ou ter.
As pesquisas de opini
ão pública definem o perfil dos programas e os novos rumos
das tramas novelescas. Nada se realiza sem antes consultar o big brother.
O Ibope, certamente, jamais consultou os ribeirinhos da Vila Progresso sobre os rumos
de Senhora do Destino ou sobre a nova temporada de Malhão, mas nem por isso eles
deixaram de se negar a assistir os programas que consideram violentos e agressivos aos
valores cultuados em comunidade
.
Já na introdução deste trabalho, relatei sobre as dificuldades que tive de reconhecer
em mim as estratégias de diálogo e resistência ao discurso midiático.
Ao ler os argumentos de Certeau para a exist
ência da co-produção de sentidos, por
vezes tive a sensa
ção de ser isso muito mais um desejo do que algo concreto. Mesmo
assim, a op
ção por acreditar num diálogo possível me acompanhou de maneira qua-
se inabal
ável, não fossem os momentos de passividade que o grupo pesquisado por
vezes demonstrou; atitude que s
ó mais tarde compreenderia como parte importante
do jogo do di
álogo possível que eu buscava identificar, posto que tal passividade era
alternada por a
ções de contestação e reposicionamento discursivo, onde pude entre-
ver a co-produ
ção de sentidos (CERTEAU) em plena atividade e sendo articulada pela
competência cultural (BARBERO) dos indivíduos.
Antes de chegar
à comunidade, apesar de acreditar no pressuposto da competência
cultural como mediadora de um di
álogo com a mídia, estava pronta para ver pelo
menos algumas de minhas hipóteses ir por terra, pois tamanho era o isolamento.
Nas primeiras entrevistas e observa
ções que fiz ficou clara a ação esmagadora da mí-
dia sobre aquelas pessoas, tanto que cheguei a pensar que compet
ência cultural ne-
nhuma seria suficiente para provocar sequer um debate sobre aqueles conteúdos.
Enquanto a pesquisa etnogr
áfica, por vezes, confirmava a força do discurso hegemô-
nico midi
ático, apesar de demonstrar, também, usos diferenciados e reelaborações
significativas, a an
álise discursiva foi fundo nas instituições interiorizadas nas práti-
cas discursivas dos caboclos, demonstrando como se articulam os dispositivos que
fazem com que eles se reposicionem diante do discurso da mídia.
Não poderia haver lugar mais apropriado para se observar e analisar a competência
cultural das pessoas do que comunidades marcadas pelo isolamento, pois o que seus
membros t
êm de mais precioso é o saber construído nas relações comunitárias - que
entendo como compet
ência cultural - considerando que o acesso ao ensino formal
não chega a todos.
Algumas Considerações e Desafios
148
Por mais significativo que seja o trabalho realizado na Escola Bosque, dificul-
dades ineg
áveis, como a de preparar os jovens que moram fora da Progresso - em
outras comunidades do arquip
élago.
Quando esses jovens chegam
à Bosque para continuar o Ensino Fundamental (5ª sé-
rie) trazem grandes dificuldades em sua forma
ção, porque o ensino em seus lugares
de origem
é precário; geralmente ministrado por professores leigos, para quem o
processo de formação, por parte do poder público, é algo incipiente.
Nesse contexto, a compet
ência cultural é importantíssima, pois cabe a ela a função
de motivar o embate com os textos midi
áticos, o que por sua vez é uma marcação
de luta hegem
ônica que se na esfera discursiva e que coloca em xeque a ordem
discursiva da mídia, a todo momento.
O resultado desse embate
é a co-produção de sentidos que Certeau descreve com
tanta f
é. E ela não só existe como faz com que os ribeirinhos resignifiquem o consu-
mo da m
ídia televisiva, fazendo dela muito mais do que um meio de olhar o mundo
exterior a eles, mas acima de tudo um meio de participar e existir na esfera de vida
criada pela mídia.
E nesse sentido, mais uma vez, recorro
à bela vendedora de chop. Maria dos Anjos
exteriorizava a personagem Darlene apenas no modo de vestir, “usando” isso como
uma estrat
égia de pertencimento à esfera do bios midiático (SODRÉ), que naquele
momento iluminava a personagem vivida pela atriz Debora Secco.
Não quero aqui minimizar o significado que o consumo de bens materiais e, princi-
palmente, simb
ólicos, proporcionado pelo acesso a televisão, tem, mas sim chamar
atenção para um outro sentido de consumir essa mídia: como estratégia de perten-
cimento.
Assim, chego ao final desta pesquisa com uma s
érie de evidências que me levam a
pressupor que o consumo de m
ídia televisiva em comunidades isoladas, como são as
ribeirinhas do interior amaz
ônico, assume um significado que vai além do consumo
pelo consumo e da aceitação da força estruturante da mídia como algo absoluto.
Partindo da pesquisa realizada na Progresso, reafirmo que o ato de consumir tele
-
visão naquele lugar representa a possibilidade de existir na esfera midiática; neces-
sidade que nasce com perspectiva da sociedade global - e at
é não nenhuma
novidade -, mas tamb
ém da condição de entes isolados. E é para esta última que
chamo aten
ção, pois ela não qualifica, como especifica o lugar, deixando no ar
questões do tipo: será que em comunidades com as mesmas características de isola-
Algumas Considerações e Desafios
149
mento o consumo de mídia televisiva assume esse mesmo significado? E qual o grau
de consciência dos indivíduos em relação a isso?
Sinceramente, n
ão esperava concluir este trabalho com perguntas, porém as inter-
preto como novos desafios que se colocam diante dos pesquisadores da comunica
-
ção e da cultura como possibilidades de compreensão da dinâmica dos processos
sociais.
Algumas Considerações e Desafios
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O Espírito Comum: Comunidade, Mídia e Globalismo. Rio de Janeiro:
MAUAD, 2003.
PILLON, J. J.
Amazônia: O Último Paraíso Terrestre - Estudos Amazônicos. Rio
Grande do Sul: Pallotti, 2002.
PINTO, M. J.
Comunicação & Discurso. São Paulo: Hacker, 1999.
PUTMAM, H. Representation et Realité. Paris: Gallimard, 1988.
SLATER, D.
Cultura do Consumo e Modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.
SODRÉ, M. Antropológica do Espelho. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
SOUZA, M. W. (org).
Sujeito, O Lado Oculto do Receptor. São Paulo: Brasiliense,
1995.
SAUTCHUK, J.
A Invasão Americana: As multinacionais estão saqueando a
Amazônia. São Paulo: Brasil Debates, 1979.
WHIGHT, C. R.
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WOLF, M.
Teorias da Comunicação: Mass media: contextos e paradigmas, novas
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Bibliografia
VI - Anexos
155
História de Macapá AP
O Amapá recebe seus primeiros colonos
Apesar dos primeiros contatos entre o índio e
o europeu terem ocorrido no in
ício do século
XV com espanh
óis, a colonização do Ama
inicia somente a partir do s
éculo XVIII com os
portugueses. Macap
á, a atual capital, se origi-
nou de um destacamento militar que se fixou
no mesmo local das ru
ínas da antiga Fortale-
za de Santo Ant
ônio, a partir de 1740. (1) Este
destacamento surgiu em raz
ão de constantes pedi-
dos feitos pelo governo da Prov
íncia do Pará (a quem
as terras do Amapá estavam juridicamente anexadas), na pessoa de Jo
ão de Abreu Cas-
telo Branco que, desde 1738, sentindo o estado de abandono em que se encontrava a
fortaleza, solicitava à Coroa portuguesa provid
ências urgentes. Assim, os insulares dos
Açores colonizaram Macapá, e os do Marrocos Mazagão, entre 1740 e 1772.
Chegam os colonos dos Açores
Depois que o rei D. José I assume o trono português, o Marquês de Pombal fica com o
Minist
ério Real. A primeira providência do novo “Richelieu luso” é nomear seu irmão,
Francisco Xavier de Mendon
ça Furtado para o comando das Armas do Pará e direção
da Capitania do Maranh
ão e Grão-Pará, gozando de plenos poderes para promover a
fundação e colonização de vilas na Amaz
ônia Setentrional. É nesta época que Macapá
assiste à chegada de colonos oriundos das Ilhas dos A
çores, sob o comando do coronel
Jo
ão Batista do Livramento e do padre jesuíta Miguel Ângelo de Morais.
Mas as dependências e imposões geográficas do povoado, assim como a malária e
outros males tropicais, al
ém da inadaptabilidade dos açorianos aliada aos constantes de-
sentendimentos entre o jesu
íta Miguel Ângelo e o coronel Livramento, contribram para
que os primeiros colonos de Maca
o conseguissem sucesso em seu trabalho (2).
Anexos
156
O arquipélago dos Açores, de onde vieram esses colonos, ainda constitui parte do ter-
rit
ório insular de Portugal. Em 1580 sua população lutou bravamente contra os espa-
nh
óis, apesar da derrota e instauração da Península Ibérica (Domínio Espanhol, 1580
a 1640). As ilhas tornaram-se ponto de reuni
ão das armadas que traziam riquezas das
Índias, bem como palco da guerra marítima entre os ingleses e as potências ibéricas.
Como parte da estrat
égia de expansão e colonização das posses portuguesas no
Novo Mundo, o governo luso promove uma ampla campanha de remanejamento
em Cabo Verde e A
çores, culminando com o envio de centenas de famílias, com seus
escravos, para povoar núcleos coloniais ao Norte e Sul do Brasil.
Assim chegaram, em Macap
á, os açorianos entre 1730 e 1750. Apesar de não terem
se adaptado ao clima e
à insalubridade da região, eles passam para a história de Ma-
capá como seus primeiros desbravadores.
Marroquinos em Mazagão
O município de Mazagão teve sua origem de Mazagão Velho, no Mutuacá, em 1770,
quando foi fundada a vila, pelo tenente-coronel In
ácio de Alencar Moraes Sarmento.
A funda
ção se deu em cumprimento às ordens da Coroa portuguesa de abrigar 163
famílias de colonos portugueses cristãos, oriundos do Castelo de Mazagran (hoje El
Djadidá), no Marrocos, que se desentendiam historicamente com os mouros (maza-
ganenses convertidos ao islamismo).
Neste local do Marrocos, os mouros passaram a reprimir quem não se adaptasse às
leis isl
âmicas, resultando em inúmeros conflitos, alguns com vitórias e derrotas de
um lado e de outro, culminando com a saída dos cristãos da região.
Assim chegaram os marroquinos a Mazagão, por volta de 1771, fixando-se na vila
que passou tamb
ém a se denominar Mazagão,
em homenagem à terra african
a.
Entre v
árias contribuições marroquinas,
existe a Festa de S
ão Tiago que, realizada
todos os anos em Mazag
ão Velho (a 30
quilômetros de Mazagão Novo)
Reportagem de EDGAR RODRIGUES
Anexos
157
Amapá
Sigla: AP
Habitante: Amapaense
O Amalocaliza-se na Regi
ão Norte do país. O extremo norte do litoral brasileiro
tem in
ício onde termina o Rio Oiapoque, que separa o estado da Guiana Francesa. O
Amapá tem 24,2% de sua
área protegida por lei, onde se encontram regiões de con-
servação ambiental e reservas ind
ígenas.
Somente 1% de sua área de 143.453,7 km2 foi desmatada. Assim, a floresta de mata vir-
gem, que ocupa 70% do territ
ório, conserva sua biodiversidade praticamente intacta.
De acordo com o IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estat
ística, a população do
Amapá vem crescendo, principalmente com a chegada de imigrantes do Pará e do
Nordeste. Por isso, o Estado vem implementando a
ções que associam crescimento
e preserva
ção: em 1995, foi criado o Programa de Desenvolvimento Sustentável do
Amapá; desde 1997, está em vigor uma lei que regula o acesso à biodiversidade,
o uso de recursos gen
éticos e o emprego da biotecnologia e bioprospecção e, em
1999, foi criada a Universidade Estadual do Meio Ambiente e do Desenvolvimento
Sustentável.
Investimento estrangeiro
- O estado encontra-se em situação de isolamento do res-
to do pa
ís, por conta dos sérios problemas de infra-estrutura nas áreas de energia,
comunicação e transporte. Mas instituições francesas, dada a proximidade da Guia-
na Francesa, v
êm investindo em financiamento de projetos no Amapá. Em 2000, os
acordos assinados com institui
ções estrangeiras atingiram 25 milhões de dólares. Os
principais projetos desenvolvidos s
ão a construção de Pequenas Centrais Hidrelétri-
cas (PCHs), programas de tratamento de
água, controle da malária na fronteira com
o Brasil e intercâmbios culturais e tecnológicos.
Agropecuária e extrativismo - Na agricultura, a produção concentra-se no cultivo
de mandioca, arroz e feij
ão, e na fruticultura. Na indústria, destacam-se o setor de
Anexos
158
alimentos - sobretudo pescados - e de celulose. Os principais produtos de exportação
do Amap
á são arcos e estacas de madeira, palmito, camarão, cromita, cavacos de
pinus e castanha-do-par
á. O manganês, que foi a base da economia do estado,
perde import
ância com o esgotamento das jazidas. Ainda assim, o Amapá é o segun-
do produtor do mineral do pa
ís e o sexto de ouro - a mineração equivale a 12% da ar-
recadação estadual. A economia do estado, porém, está centrada no extrativismo.
A maior parte da receita, quase 75%, vem do governo federal, por meio de conv
ênios
com os minist
érios. Os principais projetos financiados com essas verbas são na área
do ensino profissionalizante, da segurança e da saúde pública.
Aspectos sociais
- O Amapá tem duas universidades públicas que oferecem 650
vagas.
As rela
ções com a França, via Guiana Francesa, levam o governo estadual a instituir
o idioma francês como língua obrigatória na rede pública escolar.
A rede p
ública hospitalar possui 1,95 leito por mil habitantes. O déficit é de pou-
co mais de mil leitos, conforme os par
âmetros da Organização Mundial de Saúde
(OMS), que recomenda 4,5 por mil habitantes.
Fatos Históricos
A área do atual Amapá, pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia aos espanhóis. Du-
rante a Uni
ão Ibérica entre Portugal e Espanha, a região foi doada ao português
Bento Manuel Parente, com o nome de capitania da Costa do Cabo Norte. Ap
ós a
assinatura do Tratado de Madri, em 1750, Portugal come
çou a se preocupar com a
exploração e a defesa da região. Imigrantes açorianos e marroquinos iniciaram sua
ocupação. Com a construção da Fortaleza de São José de Macapá, os portugueses
dificultavam os ataques dos franceses, estabelecidos na vizinha Guiana. Com a inde
-
pendência, em 1822, o Amapá permaneceu ligado à província do Pará e continuou
a enfrentar problemas de fronteira com a Fran
ça. A disputa territorial continuou até
1900, quando a quest
ão foi levada à Comissão de Arbitragem, em Genebra, que deu
a posse ao Brasil. Em 1943, a
área tornou-se território federal e, em 1988, foi elevado
à categoria de Estado pela Constituição Federal.
Anexos
159
Dados Gerais
Localização: extremo norte do país
Área: 142.815,81 km2
Popula
ção: 477.032
Relevo: planície com mangues e lagos no litoral; depressões na maior parte, inter-
rompidas por planaltos residuais.
Ponto mais elevado: serra Tumucumaque (701 m).
Rios principais: Amazonas, Jari, Oiapoque, Araguari, Maracá.
Vegeta
ção: mangues litorâneos, campos gerais, floresta Amazônica.
Clima: equatorial
Hora local: horário de Brasília
Capital: Macapá.
Habitante: macapaense
Popula
ção: 283.308
Data de fundação: 4/2/1758
Anexos
160
Anexos
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Anexos
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Anexos
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