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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola de Comunicação
A IMPRENSA NO RIO DE JANEIRO
DA BELLE ÉPOQUE
Izamara Bastos Machado
Rio de Janeiro - 2005
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1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Escola de Comunicação
A IMPRENSA NO RIO DE JANEIRO DA BELLE ÉPOQUE
Izamara Bastos Machado
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do título de mestre em Comunicação,
elaborada sob orientação do Prof. Dr. Milton
José Pinto.
Rio de Janeiro – 2005
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2
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Milton José Pinto
(ORIENTADOR – ECO/UFRJ)
Profa. Dra. Ana Paula Goulart Ribeiro
( ECO / UFRJ)
Profa. Dra. Ana Lucia Enne
(UFF)
JANEIRO - 2005
3
AGRADECIMENTOS
À minha mãe por ter me ajudado a ser o que sou hoje.
À professora Ana Paula Goulart que sempre me ajudou e me incentivou acreditando em
meu potencial desde o início e ocupando em minha vida um espaço grandioso.
Ao Rodrigo Coelho que com sua paciência e companheirismo não me deixou
enfraquecer mesmo nos momentos mais difíceis.
Ao professor Milton Pinto que com toda compreensão do mundo me ajudou a chegar até
aqui.
A todos os amigos que dividiram comigo todos os meus receios e preocupações durante a
realização deste trabalho.
A todos que dedicaram preciosos minutos de suas vidas para me dar atenção e incentivo
na busca deste meu sonho.
4
RESUMO
A virada do século XIX para o século XX, no Brasil, foi marcada por muitas
mudanças, tanto no que diz respeito à economia e às instituições políticas,
quanto em relação ao cotidiano da população. Pode-se observar que essas
mudanças também influenciaram o discurso jornalístico empregado na época. Os
primeiros anos da República foi o momento em que os jornais-empresas
começaram a se constituir no Brasil e onde podemos perceber uma participação
ativa da imprensa carioca na construção de um Estado-Nação e de uma
identidade nacional. Procura-se, neste trabalho, desvendar que estratégias a
imprensa carioca da "Belle Époque" utilizou para participar na construção da
identidade brasileira naquele momento de transição. A identidade brasileira,
como qualquer identidade nacional, é um discurso. E como tal, se apresenta
como uma fonte na qual os diferentes atores políticos e sociais se constroem
dialogicamente. Numa sociedade em que a maioria era não letrada, os jornais
vinham com a intenção não só de informar aos letrados, mas também traziam em
suas produções a intenção de influenciar, de alguma maneira, os excluídos.
5
ABSTRACT
The turn of century XIX for century XX, in Brazil, was marked by many
changes, as much in respect to the economy and political institutions, as in respect to the
population’s quotidian. It can be observed that these changes had also influenced the
employed journalistic discourse at the time. The company-like newspapers started
began to constitute themselves in Brazil by the first years of the Republic, where we can
realize an active participation of the press from Rio de Janeiro in the construction of a
Nation-State and of a national identity. In this work, it looks for revealing what
strategies this press, from the “Belle Époque”, used to participate in the construction of
the Brazilian identity at that moment of transition. The Brazilian identity, as any
national identity, is a discourse. And as so, it presents itself as a source in which the
different political and social people make themselves discoursely. In a society where the
majority was illiterate, the periodicals came with the intention to not only inform the
lettered, but also they brought in its productions the intention to influence, in some way,
the excluded ones.
6
SUMÁRIO
Introdução …………………………………………………………………..…07
1 Nação, Identidade Nacional e Imprensa ………………………………….. 17
1.1 Nação e Identidade Nacional ....................................................................... 18
1.2 Imprensa ........................................................................................................24
2 O Rio de Janeiro da Belle Époque ............................................................... 30
2.1 A Belle Époque Tropical – Os primeiros anos de vida da Avenida ............ 32
2.2 Contextualização .......................................................................................... 37
2.3 Os sentidos do “moderno” ............................................................................ 50
2.4 As idéias estavam fora do lugar? .................................................................. 54
3 A Imprensa Carioca da Belle Époque Jornalismo Informativo e
Mercado Jornalístico ...................................................................................... 60
3.1 Jornal do Commercio: uma visão conservadora ......................................... 71
3.2 Correio da Manhã: nasce um jornal de opinião ............................................76
4 Análise .............................................................................................................86
Conclusão ......................................................................................................... 119
Fontes Primárias ............................................................................................. 124
Bibliografia
...................................................................................................... 125
7
INTRODUÇÃO
A virada do século XIX para o século XX no Brasil foi marcada por muitas mudanças,
tanto no que diz respeito à economia e às instituições políticas, quanto em relação ao
cotidiano da população. Em 1888, foi decretada a abolição da escravidão; um ano depois foi
proclamada a República. Vivia-se um tempo em que as invenções se multiplicavam, alterando
substancialmente a vida do cidadão comum. O automóvel, o telefone, a lâmpada elétrica, o
gramofone, o cinematógrafo e o avião foram algumas das invenções que deslumbraram o
homem da Belle Époque
1
e que trouxeram um ar de novidade para o século que se iniciava.
Todas essas invenções eram lidas como sinal de progresso e civilização e, como boa parte
delas se difundiram a partir da Europa Ocidental, esta se tornou o grande modelo do “ser
civilizado”.
O progresso, entretanto, o se difundiu no Brasil como um todo; praticamente se
concentrou na cidade do Rio de Janeiro, então capital política, econômica e cultural do país. O
novo regime, implantado em 1889, tenta transformar a cidade numa espécie de "Paris
tropical", de maneira a funcionar, tanto aos olhos nacionais, quanto estrangeiros, como um
cartão postal da República, como um símbolo de seu poder e de sua pompa.
A República recém proclamada precisava mostrar que inaugurara de fato um tempo
novo, um tempo moderno. Assim, pouco a pouco, foi tomando corpo a idéia de transformar o
Rio de Janeiro num cenário capaz de mostrar o que a nova forma de governo efetivamente
trouxera de progresso para o país. A realização de um plano para reformar a cidade - no seu
traçado urbanístico, na distribuição dos habitantes e nos costumes - pertenceu ao presidente
1
Belle Époque – Período no início do século XIX, em que a cidade do Rio de Janeiro se modernizava tendo
Paris como modelo. A presença da cultura francesa foi particularmente marcante durante a belle époque carioca.
Além da cultura, o traçado urbanístico da Cidade também era baseado no modelo arquitetônico europeu.
8
Rodrigues Alves (1902-1906) e aos homens que escolheu para a prefeitura e para o comando
dos serviços de saneamento, respectivamente Pereira Passos e Oswaldo Cruz.
Para muitos, então, as novidades, o progresso, a civilização trazida pela República
nada significavam. Mal sobrevivendo nas cidades e nos campos, grande parte da população
trabalhadora encontrava-se a margem de tudo o que ocorria no país oficial. A República,
entretanto, devido às promessas democratizantes do movimento republicano, havia despertado
o entusiasmo e a expectativa de amplos setores da população. A esperança de que o novo
regime abrisse caminho para a participação popular, no entanto, foi logo frustrada. A rigidez
do sistema, sua resistência em permitir, entre outras coisas, a ampliação da cidadania fez com
que o encanto inicial rapidamente se esvaísse e desse origem a decepção e ao desânimo.
Se a elite (e alguns setores intermediários) enxergava na República o sinal dos novos
tempos de progresso e civilização, as camadas populares demonstravam forte antipatia pelo
novo regime, não pela exclusão concreta que a este lhes confinou, mas também pelo lugar
de destaque que a monarquia ainda ocupava no imaginário popular. As camadas populares do
Rio, ao contrário das elites, não se reconheciam no governo republicano, não se reconheciam
na política. Era em outras esferas, como a religião e as festas, que a população parecia
reconhecer-se como coletividade. Os cidadãos, inativos em termos de política formal,
procuravam vias alternativas de expressão e de ação.
A sociedade brasileira estava, assim, cheia de contradições e paradoxos. Se havia uma
forte separação de mundos (entre o mundo do progresso e o do atraso, entre o Brasil oficial e
o real), por outro lado, havia a “estadania” que, ao mesmo tempo em que ligava os elementos
do segundo mundo ao primeiro, dava sustentação a essa mesma clivagem. Isto tudo criava um
grave: como representar essa nação, moderna de um lado, atrasada de outro?
9
Acreditamos que a avaliação do papel da imprensa desse período, em que se dava
início a construção de uma certa identidade, para a nação que surgia, é fundamental para
percebermos a que ponto a imprensa participou na construção de uma nova proposta de
nação, que se tornaria, naquele momento, hegemônica. Para isso, em nosso primeiro capítulo
esclarecemos mais detalhadamente os conceitos de imprensa, nação e identidade nacional.
As mudanças observadas no jornalismo carioca, nesse período de transição do Império
para a República, o de suma importância para o entendimento do desenvolvimento da
sociedade dessa época. No Rio de Janeiro, capital de uma República com um simbolismo e
uma especificidade extremamente peculiar, a grande imprensa cumpria o papel indispensável
de unificar o discurso dominante, tornando-o legível para os demais grupos sociais. Neste
sentido, os jornais mais importantes, mesmo seguindo linhas editorias diversas ou sendo
claramente adversários, assemelhavam-se na difusão da ideologia do progresso.
Criava-se, no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1880 e 1890, um novo modelo de
jornalismo, no qual começava a ganhar espaço os jornais que tendiam a investir em uma linha
editorial supostamente mais neutra, imparcial, procurando informar mais do que opinar, como
até então se fazia.
A idéia de ordenar a sociedade cresceu nas produções jornalísticas que se começava a
fazer. Numa sociedade em que a grande maioria era não letrada, os jornais vinham com a
intenção não de informar aos letrados, mas também de influenciar, de alguma maneira, os
excluídos. A capacidade de a palavra escrita inserir-se, ainda que indiretamente, nos mais
diversos meios sociais, fazia dela um forte elemento para normatização da própria sociedade
2
.
BARBOSA, Marialva, Imprensa, Poder e Público. Niterói, tese de doutorado, Dep. de História/UFF, 1996,
p.30.
10
Percebe-se então, que os jornais ocupavam, aos poucos, um espaço social cada vez
maior e passavam a adquirir uma expressiva credibilidade. Acreditamos que nesse processo os
meios de comunicação (tanto através dos órgãos da grande imprensa, quanto dos órgãos
ligados a fragmentados interesses de classe) foram um dos principais locus onde se realizou o
trabalho sobre as representações referentes à idéia de nacionalidade e de identidade nacional.
É no processo de construção de identidade nacional, no momento específico da virada
do século XIX para o XX, que pretendemos nos deter. Estamos, aqui, nos propondo a
questionar e desvendar que estratégias a imprensa da “Belle Époque” utilizou para participar
na construção da identidade brasileira naquele momento de transição. A esse problema
central, somam-se outras questões: que elementos do passado a mídia utiliza para remeter a
vida do carioca a um futuro tão “promissor” e “modernizado”.
Como Mikhail Bakhtin nos esclarece, nenhum tipo discurso (nem o da mídia) é
monolítico, mas sim polifônico
3
. Assim, perceber que vozes eram mobilizadas pelos
diferentes órgãos da imprensa na construção de uma identidade de nação é, sem dúvida, uma
das principais propostas neste momento. Podemos a todo instante nos perguntar: que
construções eram feitas na mídia para criar esta sensação de auto-afirmação de uma sociedade
nova e moderna? Que fatos eram utilizados na construção de uma visão modernizadora do
presente? Numa sociedade marcada por muitas contradições internas, como se resolvia o
dilema de representar a nação, permeando-a de uma homogeneidade integradora? E como era
feita pela mídia impressa essa representação do ser moderno?
Nosso objetivo aqui é reavaliar o papel da imprensa carioca no processo de construção
de um Estado-Nação no período de transição da ordem imperial à republicana. A
modernidade que chega ao Brasil na passagem da Monarquia à República senosso foco, e
3
Cf. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem São Paulo, Haucitec,1987.
11
esperamos levantar uma boa proposta para discussões sobre diferenças e identidades num
momento em que o Brasil se espelha em modelos europeus para construção de sua própria
identidade com o auxílio da imprensa da época. Para isso, em nosso Capítulo 2, buscaremos
realizar uma viagem pelo tempo e contextualizaremos a época em que a Cidade do Rio de
Janeiro experimentou tantas mudanças.
Temos como objetivo observar detalhadamente como os periódicos tiveram influência
na construção de uma identidade nacional, num momento de diversas transformações sócio-
econômicas (passagem de uma sociedade escravista para uma sociedade baseada na mão-de-
obra livre) e políticas (passagem do sistema monárquico para o republicano), além de
procurar verificar como os diferentes projetos de nação ganhavam voz no discurso da
imprensa e como alguns sentidos hegemônicos foram se forjando. Sendo assim, nosso
objetivo é perceber quais foram os diferentes posicionamentos dos jornais frente às decisões
sócio-políticas e culturais dos governantes em relação à cidade do Rio de Janeiro (então
capital federal). É bom lembrar que o Rio era tratado como uma vitrine de toda a nação,
verdadeira síntese do que se queria para o país.
Ainda em nosso Capítulo 2, iremos discutir melhor a questão da modernidade, pois se
trata de um tema bastante pertinente para a época, já que tanto se falava em “ser moderno”.
Para que nosso estudo tenha enunciados bastante claros juntamente a um desenvolvimento
conciso e rico, acreditamos ser de suma importância aprofundarmos um pouco sobre a
temática do que é ser moderno nesse momento de transição das formas de governo no Brasil.
Entender como a modernidade faz com que o futuro – esperançosamente repleto de progresso
– instale-se no presente da população brasileira na virada do século. Pretendemos nos remeter
a perspectiva de compreender o moderno como a solução para a proposta da nação que surge.
12
Trabalhando com um período bastante expressivo para uma primeira pesquisa,
definimos como interesse analisarmos periódicos distintos e considerados de grande porte e
delimitamos um momento específico para analisarmos mais detalhadamente o comportamento
da imprensa.
Sabemos que não é possível conceber as identificações nacionais fora das linguagens
que as formulam, nem fora dos mitos, dos rituais e das ideologias que as significam. A
identidade brasileira, como qualquer identidade nacional, é um discurso. Esse discurso se
baseia na criação de um passado histórico e, como tal, se apresenta como uma fonte na qual os
diferentes atores políticos e sociais se constroem dialogicamente, num quadro de estratégias
de poder.
Acreditamos que, no contexto da Belle Époque, a identidade nacional brasileira
(entendida como o discurso) teve como locus principal a mídia. Isto se deve à forma pela qual
os meios de comunicação realizavam, sobretudo através dos discursos jornalísticos, o trabalho
sobre as representações sociais. Sendo assim, nosso objetivo é analisar as operações
discursivas que se davam no enunciar jornalístico, no processo de construção da identidade
nacional brasileira na passagem dos séculos.
Para isso, também realizamos um estudo sobre o mercado jornalístico no período
proposto de nossa pesquisa em nosso Capítulo 3. Afinal, para se entender o posicionamento
dos jornais com relação ao progresso e modernidade que se buscava para a sociedade carioca,
precisamos conhecer o perfil da imprensa da época.
Acreditamos que os discursos midiáticos contribuíram para formar uma certa
concepção de nação brasileira porque, ao selecionar e combinar referências nacionais
emblemáticas dava-lhes unidade e coerência imaginárias. Esses discursos alcançaram eficácia
social na medida em que eram partilhados e contribuíram para formar uma concepção coletiva
13
de nação. Sendo assim, nos aprofundaremos nesse tema em nosso Capítulo 3, A Imprensa
Carioca na Belle Époque”, onde iremos traçar um perfil do mercado jornalístico e
conheceremos mais a fundo o histórico de nosso objeto de estudo.
Entender o seu funcionamento, conhecer as operações discursivas através das quais o
jornalismo atribuía sentido aos fatos nos parece, assim, essencial para dar conta de como os
meios de comunicação construíam - num processo contínuo e incessante - as suas referências
nacionais.
Pretendemos utilizar para análise discursiva essencialmente jornais da época, mais
especificadamente dois dos mais importantes jornais do período: Jornal do Commercio e
Correio da Man. Para essa análise, que nos propomos realizar em nosso Capítulo 4,
fizemos uso da metodologia da Análise do Discurso, buscando utilizar um critério
comparativo, a fim de compreendermos de que forma cada um dos veículos de informações
pré-selecionados construíram sentidos para os acontecimentos e transformações que se
sucediam, assim como de que forma cada um deles mobilizou um conjunto de signos para
servir de referência na construção de projetos de nação.
A intenção é isolar modelos discursivos, tendo em vista identificar as racionalizações
construídas no período - os projetos e as teorizações sobre a realidade brasileira. Trata-se de
articular temas como progresso, modernidade, educação, saúde e saneamento às exigências
particulares do desenvolvimento capitalista do país, deixando precisas as eventuais
contradições entre as suas formulações, especialmente no sentido da aceitação ou
incorporação nas práticas das diferentes classes sociais.
A expectativa do novo é o principal desejo da modernidade, e o que nos interessa aqui
é perceber que novo foi este que tanto influenciou na construção de uma identidade para o
Brasil. Sabendo-se que o mundo moderno foi fascinado pela idéia de que tudo tem sua
14
origem, interessa-nos aqui identificar que elementos foram buscados no passado para remeter
a sociedade carioca a um futuro moderno e promissor.
Para percebermos como a modernidade influenciou no desenvolvimento de uma
identidade para a nação brasileira que acabara de ser proclamada, faz-nos atentar para a
necessidade que se tem em se espelhar no “outro” em busca de resultados positivos, ou ao
menos semelhantes, assim como fez a sociedade brasileira na virada do culo XIX para o
século XX, mirando na sociedade européia, em especial nos modelos de vida franceses, como
o verdadeiro resultado de progresso e civilização.
Através de diversos estudos podemos perceber que a modernidade chegou de maneiras
diferentes em cada local no mundo e que não existem lugares mais atrasados ou adiantados,
afinal cada lugar tem seu tempo. E o é nossa proposta avaliar em que escala o Brasil se
encontrava perante aos demais países no mundo, mas sim desejamos observar como a capital
do país, a cidade do Rio de Janeiro, se inseriu no contexto de modernização e como a
imprensa influenciou através de seus discursos. Cada cultura, afinal de contas, tem suas
hierarquias e estratificações sociais e essas diferem enormemente de acordo com
circunstâncias e histórias locais (divisões por classe, casta, religião, raça e espaço). Elas
dependem do posicionamento exato da cultura local ou nacional em relação a mitos
populares, tradições nacionais, modelos internacionais, modernidades coloniais e pós-
coloniais. Desembrulhar essas diferenciações temporais e espaciais poderia ser um bom modo
de chegar a novos tipos de comparações que iriam além dos clichês de colonial versus pós-
colonial, moderno versus pós-moderno, ocidental versus oriental, centro versus periferia,
global versus local, o Ocidente versus o resto
4
.
4
HUYSSEN, Andréas. Literatura e Cultura no Contexto Global.In: Marques, Reinaldo e Vilela, Lúcia
Helena.(Orgs). Valores: arte, mercado e política. Belo Horizonte, Editora UFMG/Abralie, 2002., p.22-23.
15
O período que vai do último quartel do culo XIX ao começo dos anos 1920, no
Brasil, é de profundas e rápidas transformações sociais e políticas. A abolição da escravatura
em 1888 e a proclamação da República em 1889 haviam aberto o sinuoso caminho para a
construção de uma nova sociedade capaz de absorver novas idéias, embora os sujeitos
responsáveis pela introdução destas idéias nem sempre tenham tido o mesmo sucesso em
termos de afirmação de sua hegemonia na disputa pelos espaços de poder. Saía-se do
escravismo e ingressava-se no processo de construção de uma sociedade de tipo capitalista
urbano-industrial. Entre 1889 e 1930, vive-se o que ficou conhecido como a República Velha,
marcada pela presença das oligarquias regionais e pela fraqueza de um poder central.
Começava-se a implementar não apenas uma nova ordem republicana, mas, sobretudo, um
novo modelo de Brasil, o modelo de um Brasil moderno
5
.
A questão que povoou a mente da elite dirigente durante os primeiros anos da
República foi a seguinte: que modelo de República implantar? O ponto crucial do debate era a
relação entre público e privado e/ou indivíduo e comunidade. Vários políticos identificavam,
como fator fundamental, a “incapacidade dos brasileiros de se organizarem coletivamente”;
faltava, segundo eles, uma certa “dosagem” de individualismo anglo-saxão.
Vale ressaltar que funcionando os jornais como uma espécie de memória escrita de
uma determinada época, a imprensa retém o excepcional, ela registra tudo o que acredita ser
interessante. E mesmo quando os fatos mais cotidianos aparecem fixados sob a forma de
notícias, há sempre um nexo da narrativa que transpõe esses mesmos acontecimentos do lugar
comum para o extraordinário. Transformando o fato em algo noticioso, aprisiona-se o
acontecimento num suporte de excepcionalidade, reproduz-se sob a forma de letras impressas
a memória do que é extraordinário.
5
HERSCHMANN, M. e PEREIRA, C. A. M. (orgs.). A Invenção do Brasil Moderno. RJ, Rocco, 1994, p.11-12.
16
O momento em que centralizamos nossa pesquisa, na passagem de um século para
outro, poderíamos dizer que constitui um verdadeiro divisor de águas no processo histórico-
social da estruturação do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro. É o período das grandes
obras de “melhoramento, saneamento e embelezamento” da capital da República, realizadas
durante a presidência de Rodrigues Alves, conjuntamente pelo governo federal e municipal.
Foi a primeira grande operação de renovação urbana que sofreu a cidade do Rio de Janeiro.
As grandes obras em curso na capital nessa época foram objeto de violentas
controvérsias, e sobre elas se manifestaram todos os fóruns da sociedade civil: os grandes
jornais e a imprensa operária, as instituições que pontificavam nos campos da engenharia, da
arquitetura e da medicina, os órgãos empresariais, as instituições manipuladas pelos altos
interesses do comércio etc.
Procuraremos no decorrer de nossa pesquisa detalharmos e apreciarmos essas
controvérsias existentes nos diferentes olhos da imprensa da época, no intuito de nos
certificarmos o quanto essas diferenças contribuíram para a construção de identidade nacional
brasileira.
17
1- NAÇÃO, IDENTIDADE NACIONAL E IMPRENSA
Neste nosso primeiro capítulo procuraremos tecer um pouco os conceitos de Nação e
Identidade Nacional e também buscaremos conhecer melhor a Imprensa no período que
propomos estudar.
Muito se discute a respeito de identidade nacional e nação, mas gostaríamos de nos
posicionarmos um pouco a respeito destes termos. O que podemos nos antecipar é que
acreditamos que os discursos para nós são peças embasadoras para a construção de uma
identidade. Através dos discursos, sejam eles homogêneos ou não, passa-se a construir e a
sedimentar pontos fundamentais e marcantes no desenvolvimento de uma sociedade. E no
Brasil, com tantas marcas de fora, podemos perceber a grandeza e a diversidade de influências
externas na construção da nossa identidade nacional.
Sob esse enfoque foi possível verificar que os textos impressos no início do século XX
investiam tanto na direção de fixar uma idéia de “cultura”, como também na valorização da
“cultura letrada”. E aqueles que ainda não faziam parte desta cultura letrada (que na verdade
era a maioria) tinham na imprensa em alguns casos o ponto e apoio e buscavam se identificar
e ganhar vozes através dos jornais.
Não pretendemos definir conceitos de Nação e Identidade Nacional ao “pé da letra”,
mas esperamos trazer reflexões a respeito de como chegar a tais conceitos. Acreditamos que
são temas bastante complexos e amplos para um esboço dentro de um de nossos capítulos, por
isso esperamos trazer à tona possibilidades de discussões mais futuras sobre estas questões, e
não esgotá-las por aqui.
18
1.1 – NAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL
Muito se tem discutido a respeito do conceito de nação e de que maneira poderíamos
trabalhar o processo de sua construção. Diversos historiadores, antropólogos e cientistas
sociais têm se deparado com esta questão bastante polêmica e muitas vezes ambígua.
A nação, mesmo possuindo suportes concretos e contínuos, é sempre uma construção
imaginária.
6
O nacional pode ser entendido se posto ao lado de sistemas culturais mais
amplos a partir dos quais ele passa a existir na mente dos indivíduos que o compõem. Não
deve ser confundido com Estado-nação - o País - que é uma entidade política concreta, bem
demarcada geograficamente.
A imaginação que constrói a nação não é, entretanto, falsa. A imaginação, neste caso
podemos dizer que se trata do sentimento de comunhão entre pessoas que jamais se viram,
que não sabem da existência concreta uma das outras, mas que se imaginam como
compatriotas, que compartilham de um pertencer comum.
Neste trabalho, nosso interesse é pensar em como a nação se constituiu em um espaço
de sociabilidade, de memória e de identificação. Se hoje considerarmos que os conceitos de
nação, Estado-nação, consciência nacional envelheceram e são insuficientes para dar conta
das realidades políticas, naquele instante que nos aprofundamos para a pesquisa, pareciam
extremamente férteis para representar a “comunidade imaginada
7
e desejada pelas elites
intelectualizadas.
A identidade nacional, não deve ser considerada uma substância, um atributo imutável.
Ela é resultado de construções e estratégias, sempre em evolução e recomposição. A
identidade não é um dado, não é algo fixo, mas sim uma dinâmica, incessante rie de
6
Cf. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo, Ática, 1989.
7
Idem., ibidem.,
19
operações de sentido. Reflexo de lutas e debates, resultado de uma construção social que está
sempre em construção e se alimentando do passado, ou melhor, de incessantes recriações do
passado.
O processo de construção das nações e das identidades nacionais é um forte exemplo
desse fenômeno. A história, nesse caso, funciona como legitimadora das ações e como
cimento da coesão grupal, porque fornece a coerência e a continuidade como características
ontológicas da nação. o se pode esquecer, no entanto, as relações de força e dominação
mobilizadas. A identidade nacional se apresenta como uma fonte na qual os diferentes atores
políticos e sociais se constroem dialogicamente, num quadro de estratégias de poder.
8
Enquanto uma comunidade imaginada, a nação é continuamente inventada segundo as
mais diversas modalidades discursivas. Assim não se pode falar em uma identidade autêntica,
mas em uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em
diferentes momentos históricos, através de estratégias variadas e de diferentes discursos,
alguns deles utilizados através da mídia impressa. Dizer que a identidade e a nação são
construções discursivas múltiplas não significa negar sua realidade. Não separação entre o
mundo material e os processos de significação.
A identidade brasileira resulta de uma construção social que foi se criando,
instavelmente, durante um longo processo. Um reflexo de lutas e debates sociais. Não temos a
pretensão de reconstruir aqui a sua trajetória, mesmo porque pressentimos que ela seja
irreconstituível. Pretendemos, no entanto, fazer uma breve menção de alguns discursos que se
estabilizaram nesse percurso como referência na construção da memória nacional.
Acreditamos que a imprensa teria sido uma das grandes contribuintes desta construção de
nossa identidade nacional.
8
RIBEIRO, A. P.G. Imprensa e História no Rio de Janeiro dos Anos 50. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado,
ECO/UFRJ, 2000.
20
Quando a corte portuguesa se instalou no Rio de Janeiro, em 1808, não existia
referente cultural, político ou econômico para o significante “Brasil”. Exceto talvez pelo uso
da língua, a colônia portuguesa na América não constituía uma unidade. A integração entre as
regiões era muito precária: tratava-se, na realidade, de um “arquipélago de capitanias” que
freqüentemente ignoravam umas as outras.
As próprias rebeliões coloniais do final do séc. XVIII (como a Inconfidência Mineira e
a Conjura Bahiana), exaltadas pela historiografia tradicional como exemplos de movimentos
de caráter nacional e emancipatórios, quando examinadas de perto mostram a ausência de
qualquer sentimento de identidade coletiva. Os inconfidentes falavam em “pátria mineira” (ou
em “nós americanos”) e, se buscaram unir-se a outras províncias, foi somente por motivos
estratégicos.
9
O mesmo se pode dizer do patriotismo dos revoltosos de 1817, que era mais
pernambucano e do que propriamente brasileiro.
Mesmo após a independência, a palavra pátria” ainda possuía um sentido ambíguo.
Muitas vezes era usada para denotar províncias e não o país. a idéia de Brasil, entretanto,
estava presente no horizonte mental daqueles que lideraram o processo de emancipação. Mas
a construção política de nossa unidade nacional o se deu sem confrontos e contradições. O
império - principalmente durante a Regência - foi um período muito turbulento. Tendências
centrífugas se manifestavam com força, através de motins, revoltas e guerras civis. Somente
por volta de 1850 é que se consolidou a criação do estado nacional.
Contudo, o Brasil, no entanto, ainda estava longe de se constituir uma nação. Se
existia algum sentimento próximo àquilo que chamamos identidade nacional, este se baseava
em fatores meramente negativos como, por exemplo, a oposição ao português.
10
A diferença e
a oposição são fatores fundamentais para a constituição da identidade em qualquer nível
9
Cf. CARVALHO, J. Murilo. “Brasil: nações imaginadas”.In:Revista Antropolítica, v.1, n.1, jan / jun. 1995.
10
Idem Ibidem.
21
(individual, grupal ou societário). O sentido – a semiologia já nos ensinou - é sempre
diferencial: uma posição pode ser determinada em relação a uma outra, por oposição a
ela.
11
Acontece que a oposição por si não é suficiente para definir uma identidade.
Renato Ortiz afirma que todo processo identitário possui uma dimensão externa,
negativa (que pela diferença nos diz o que não somos), e uma dimensão interna, positiva, de
identificação (que nos diz o que somos, afinal). E é através da relação dessas duas instâncias
que as identidades - ou as identificações - continuamente se constroem
12
.
Outro fator geralmente apontado como constituidor de nossa identidade nacional é o
forte sentimento monarquista da população (tanto rural quanto urbana), manifestado em
vários momentos. Havia duas posições dos grupos dominantes em relação à imagem do país:
1) os que viam o Brasil como fruto daão civilizadora de Portugal (e que, portanto,
repudiavam as repúblicas latino-americanas, marcadas pela instabilidade e pela fragmentação
geográfica) e 2) os que consideravam a dinastia dos Bragança obstáculo à formação de uma
verdadeira identidade nacional (identificavam-se com os Estado Unidos)
13
.
A literatura brasileira parece ter encontrado no Romantismo um caminho
intermediário entre essas duas posições. O indianismo buscava nos “primeiros habitantes do
país” a legitimidade da revolta contra o domínio português, mas não se apoiava no ideário
norte-americano do direito natural e sim na história, na tradição. O índio é construído como
arquétipo do herói brasileiro: sempre nobre, valente, fiel, forte, corajoso. o negro, quando
11
Cf. VERÓN, Eliseo. “L’espace du soupçon”. Cópia xerox do original do autor.
12
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional, São Paulo, Brasiliense, 1994.
13
CARVALHO, J. Murilo. Op. cit.
22
era tema literário (Castro Alves, Bernardo Guimarães), era apenas o símbolo da escravidão.
Não se chegou a pensá-lo como um eventual cidadão, constituidor da nação
14
.
A abolição da escravidão e a proclamação da república foram dois acontecimentos que
marcaram um processo de profundas mudanças na sociedade brasileira. Se é verdade que, do
ponto de vista da dinâmica interna, a sociedade continuava a mesma - permeada por lógica
extremamente excludente -, também é certo que uma nova ordem - diferente da escravista - se
constituía, alterando a forma de se construir e definir a nação. O novo sistema de governo
precisava afirma-se em oposição ao velho diante da proposta de desenvolvimento e progresso.
Se para alguns, como Bomfim, o problema da raça não era considerado empecilho à
constituição da nacionalidade, para outros, a mestiçagem era um obstáculo ao progresso.
Influenciados pelo pensamento racista europeu (Gobineau, Gustave Le Bon) e norte-
americano (Agassiz), autores como Nina Rodrigues e, mais tarde, Oliveira Viana elaboraram
a idéia de inferioridade da raça negra. O primeiro chega a afirmar que negros e mestiços
deveriam ser tratados como civilmente incapazes.
15
Admitía-se, no entanto, uma saída para a
situação. Através o progressivo branqueamento, facilitado pela baixa taxa de natalidade dos
negros
16
e pela grande imigração de europeus, a população poderia “melhorar”.
Os meios de comunicação, principalmente os jornalísticos, também podem ser
pensados como um lugar primordial de construção da realidade social e, logo, dos sentimentos
identitários nacionais. O próprio Benedict Anderson, no seu livro Nação e consciência
nacional, destacou o papel da imprensa na construção das nações.
14
RIBEIRO, ANA P. Goulart. Jornalismo, História e Identidade Nacional. Texto apresentado no VI Encontro
Anual da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação), EM São Leopoldo,
maio de 1997.
15
CARVALHO, op. cit..
16
A baixa natalidade entre a população negra deve-se, sobretudo ao desequilíbrio demográfico advindo do
tráfico. A lógica empresarial, levava o senhor a preferir os escravos de sexo masculino. Cf. FLORENTINO,
Manolo Garcia. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro (sec. XVIII e XIX). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
23
Nas modernas sociedades industriais, os meios de comunicação ocupam um lugar
privilegiado na formalização de uma memória social e, conseqüentemente, na referenciação
do nacional. Os veículos de comunicação são o lugar por excelência onde se tecem,
cotidianamente, as identificações nacionais, porque lhe fornecem coerência, homogeneidade e
continuidade no tempo. A mídia estende o seu poder para além de suas próprias fronteiras e
redimensiona quase todos os lugares de produção de significação de uma sociedade. Segundo
Muniz Sodré, mídia se torna o locus primordial de moldagem ideológica do mundo.
17
Devemos sempre atentar para o fato de que tanto a nacionalidade quanto o Estado se
constroem a partir das relações sociais que se estabelecem entre os homens, relações
marcadas pela divisão de classes.
Até os dias de hoje o processo de formação das nacionalidades tende a homogeneizar e
unificar a sociedade em torno de projetos e aspirações extremamente abrangentes, que
pretendem integrar todos os indivíduos no interior de uma determinada nação. E como não
perceber o quanto o desejo de mudanças na Cidade do Rio de Janeiro no início do século XX
poderia não cumprir este desejo de homogeneização, mas também foi causador de muitas
exclusões e discriminações. Isso poderá ser visto mais adiante nos textos extraídos dos jornais
de época que trabalharemos em nossa análise.
A construção de uma identidade nacional vem à tona com a Independência, na
perspectiva romântica do Indianismo, radicaliza-se na ótica naturalista após a abolição da
escravidão e com a República.
O fato de os Estados-Nação modernos desenvolverem-se e se definirem por oposição
uns aos outros e por isso, como em função da estabilidade interna, necessitarem gerar formas
eficientes de arregimentação social empenhadas na sua sustentação promoveu um enorme
17
SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis, Vozes, 1996.
24
estímulo à germinação das Ciências Humanas. Daí o desenvolvimento de formas de
conhecimento como a história, a filologia, a antropologia, a geografia, a arqueologia, dentre
outras, financiadas pelo Estado, para justificar a organização uniforme de uma ampla área
geográfica com se respectivo agrupamento humano, legitimado por suas características
específicas (raça, história, tradição, meio físico, ngua, religião, cultura, caráter psicológico
geral); afirmadas, aliás, como superiores às de outros grupos concorrentes. Essa agitação
nacionalista constituiria a base ideológica da formação dos Estados-Nação. Ela buscaria nas
teorias raciais, que passaram então a dominar a área cultural, a sua justificação, e encontraria
no militarismo o seu meio de auto-afirmação
18
.
Conforme nos sugere Stuart Hall, no seu livro Identidade Cultural na Pós-
modernidade: é através do processo de significação que se constrói a posição do sujeito
social, lugar no qual se constitui sua identidade social e cultural. Nesse caso, o processo de
significação implica na ação de fazer valer, de determinar significados próprios de um grupo
social sobre os significados de outros grupos o que supõe um diferencial de poder entre eles.
Entender essa posição do sujeito social nos ajuda na constituição da identidade da sociedade
como um todo.
1.2 – IMPRENSA
Não é possível conceber as identificações nacionais fora das linguagens que as
formulam, nem fora dos mitos, dos rituais e ideologias que as significam. A identidade
brasileira, como qualquer identidade nacional, é um discurso.
19
E esse discurso se ancora,
18
HOBSBAWM, E. A era das revoluções. Rio, Paz e Terra, 1977, p.275.
19
Cf. Science Humaines, p. 36.
25
como dissemos, na criação de um passado histórico, na invenção de tradições, cujo locus
principal nos parece ser, nas sociedades modernas, a mídia.
Os meios de comunicação se apresentam como o principal discurso semantizador dos
acontecimentos e das transformações da realidade social.
Entender o seu funcionamento, conhecer as operações através das quais o jornalismo
atribui sentido aos fatos nos parece, assim, essencial para dar conta de como os meios de
comunicação constroem - num processo contínuo e incessante - as suas referências nacionais.
Ao retomar a idéia bakhtiniana do discurso como arena, a análise passa a dar conta,
não do conteúdo das mensagens, mas das estratégias discursivas ligadas às relações de força
de uma dada conjuntura. Os discursos de uma determinada época histórica (principalmente os
midiáticos) são espaços privilegiados onde se travam as lutas sociais. É o campo por
excelência do ideológico, onde várias vozes disputam a hegemonia das representações. Uma
página de jornal é o reflexo vivo das contradições da realidade social no corte de um dia. E a
análise tem sentido se permite ao analista dar conta de como se tecem nos discursos a teia
dessas contradições, tem sentido quando se percebe o discurso como lugar de passagem de
coisas que estão ocorrendo fora dele.
Entendendo os dispositivos de enunciação como dispositivos modalizadores do real,
pretendemos descrever alguns dos mecanismos fundamentais através dos quais os diferentes
jornais constroem discursivamente o seu referente histórico-nacional.
26
Não se pode esquecer, afinal, as desigualdades presentes na formação e apropriação de
qualquer patrimônio cultural, que o caracteriza como um espaço de luta material e
simbólica.
20
O veículo de comunicação impresso, algumas vezes, se tornava para o leitor do início
do século XX a única possibilidade de defesa. Algumas das simbologias que os jornais
constituíram e passaram ao público era de ser um local de desabafos, discussões e até defesa
de direito do cidadão. . Muitas pessoas utilizavam os jornais para realizarem suas reclamações
de caráter privados e individuais. Ofensas sofridas dentro de estabelecimentos comerciais,
roubo no interior de residências e denúncias de arbitrariedades da polícia ocupavam mais
espaços do que as que diziam respeito, por exemplo, ao mundo do trabalho.
Assim, o produto que esse leitor consumia, como tantos outros leitores que se dirigiam
aos jornais para fazer suas queixas e reclamações, se transformava num desejo de produção.
Para além de leitores, gostaria de ser produtores das narrativas quotidianas, o que afinal
conseguiam quando se dirigiam ao jornal para relatar fatos por absoluta impossibilidade de
escrever - ou quando remetiam cartas sobre os mais variados temas.As reclamações de caráter
coletivo diziam respeito, principalmente, ao mau funcionamento dos serviços: os bondes, a
falta d’água, a higiene das ruas, o estado de conservação das vias públicas, entre dezenas de
outros assuntos.
Durante as greves era comum alguns dos periódicos da época receberem a visita de
comissões, seja para agradecer o apoio manifestado, seja para reivindicá-lo. Na visão daqueles
trabalhadores essa adesão significava um fortalecimento do movimento, por torná-lo público,
visível aos olhos do restante da população ou por explicar, através dessa opção, que as
reivindicações eram justas. No Correio da Manhã são incontáveis os exemplos: “Cerca de
20
CANCLINI, Nestor Garcia. Patrimônio Cultural e Construção Imaginária do Nacional. In Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p. 97.
27
meia-noite fomos procurados por uma numerosa comissão de condutores efetivos e reservas
(cerca de 60), que nos vieram pedir, ainda uma vez, amparássemos a sua causa”, afirmava em
9 de janeiro de 1910
21
.
Transcrevendo muitas vezes as cartas dos trabalhadores, agradecendo o apoio explícito
do jornal, os jornais mostravam também como eram visualizados por esses grupos.
“Agradecemos a ilustre redação do Correio da Manhã, o seu franco apoio, em tão justa causa,
pedindo pela vossa costumada gentileza a publicação deste pelo que nos manifestamos
agradecidos
22
.
Mesmo que alguns desses reclamantes não fossem leitores habituais dos jornais no
sentido da cotidianidade ao se dirigirem ao periódico, ao exporem suas idéias, eles
estabeleciam uma relação direta de leitura com aquele periódico. No dia seguinte verificariam
se suas queixas estavam lá, saberiam então se teria ou não adquirido vozes através do
periódico. O jornal passava a fazer, de certa maneira, parte de seus cotidianos.
Considerando os jornais como um bem simbólico, é necessário ainda analisar a relação
entre imprensa e literatura, a partir do instante em que as condições para a divulgação em
maior escala da palavra impressa institucionalizada por oposição à falada como a única
válida se concretizam. A produção em larga escala de obras como os folhetins, divulgados
por um impresso mais rápido e capaz de ser produzido mais agilmente e em maior quantidade
do que os livros, isto é, os jornais, coincide com o aumento do público, em função da
generalização do ensino elementar
23
.
Neste início deculo, o jornalismo impondo uma vigorosa padronização à linguagem
e empregando praticamente todos os homens de letras nas suas redações, acabou por vezes
21
“Greve? A Light e a Jardim, desmentidos”. In: Correio da Manhã, 9 jan. 1910, p.5.
22
Correio da Manhã, 15 jan. 1912, p.2.
23
BARBOSA, Marialva, op. cit.,p. 8.
28
exercendo efeito geral negativo sobre a criação artística. A literatura passava a construir as
identidades sociais.
O desenvolvimento do novo jornalismo” representava o fenômeno mais marcante na
área da cultura, com profundas repercussões sobre o comportamento do grupo intelectual.
Novas técnicas de impressão e edição permitiam o barateamento da imprensa. O acabamento
mais apurado e o tratamento literário e simples da matéria tendiam a tornar obrigatório o seu
consumo cotidiano por aqueles que faziam parte das camadas alfabetizadas da cidade.Já os
intelectuais vendo aumentado o seu poder de ão social, anseiam levá-lo às últimas
conseqüências. Eles passaram a pregar reiteradamente a difusão da alfabetização para que a
massa miserável fosse libertada do analfabetismo.
A nova grande força que absorveu quase toda a atividade intelectual nesse período foi
sem dúvida o jornalismo. Crescendo emparelhado com o processo de mercantilização na
cidade, o jornalismo invadiu impassíveis territórios a então intocados e zelosamente
defendidos. Os jornalistas, ditadores das novas modas e dos hábitos, chegavam a desafiar e a
vencer a própria Igreja na disputa pelo controle das consciências
24
.
As campanhas contra os velhos hábitos e pela implantação dos novos costumes, a
criação do clima geral da euforia e otimismo da Regeneração e de Modernidade foram talvez
as primeiras manifestações de um fenômeno de manipulação de consciências em massa no
Brasil.
Por outro lado, as novas técnicas possibilitavam uma maior circulação, uma
diminuição do preço e uma popularização desses periódicos, atingindo um universo simbólico
das representações e o imaginário da cultura
25
.
24
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, Brasiliense, p. 99.
25
Idem, p.. 17
29
Tratava-se de compreender o passado para transformar o presente e, para tanto,
libertar-se de um fardo, romper com as pesadas tradições que emperravam o progresso e
entrar no compasso da História. Tendo em vista produzir uma nova leitura da história
nacional, leitura esta que legitimasse suas posições políticas e ideológicas, o leque de questões
que esses intelectuais nacionalistas abriram tinha por objetivo detectar as raízes dos males que
assolavam o Brasil, entender os problemas sócio-econômicos tão violentos e gritantes da
sociedade e, principalmente, analisar o que consideravam ser incapacidade do povo brasileiro
de construir uma Nação moderna, rica e poderosa, a exemplo dos países europeus. Visava-se
perceber as linhas tendenciais de uma possível modernização transformadora, que pudesse
igualar o país ou, ao menos, aproximá-lo das fases de desenvolvimento dos povos mais
adiantados.
30
2 – O RIO DE JANEIRO DA BELLE ÉPOQUE
O primeiro ano do novo século, 1901, anunciava drásticas mudanças na sociedade
carioca. Envolvida pela ideologia do progresso que igualava a idéia do novo à civilização,
comparando-o com as atitudes européias, notadamente as francesas, a cidade vivia a febre da
modernização. Era preciso conquistar o novo. E o novo para a sociedade burguesa que se
formava no Rio de Janeiro, dede os anos de 1880, era tudo o que não fosse tradicional.
Criticava-se a sociedade hierarquizada e organizada com base no trabalho escravo. Era
necessário construir uma outra sociedade.
Para isso inúmeros discursos foram formulados: o médico-higienista, o jurídico, o
político. Referendando todos eles, o da imprensa passava a aliar também ao texto impresso a
sensação de veracidade da ilustração e, mais tarde, da fotografia.
Paralelamente, era preciso justificar a adequação dos grupos populares à nova face
urbana da cidade. A ideologia do progresso era usada também como parte desse processo de
disciplinarização. Na verdade, a República pôs em prática um projeto político cujas idéias-
chaves eram o progresso e a disciplina.
Pela primeira vez em sua história, a cidade do Rio de Janeiro sofreu o impacto de uma
política previamente concebida em todos os seus detalhes, formulada num plano sistemático,
abrangendo um amplo leque de iniciativas que repercutiram como um terremoto nas
condições de existência da população carioca. Pela primeira vez em sua história, centenas de
prédios foram rápida e implacavelmente demolidos, deixando ao desabrigo dezenas de
milhares de pessoas trabalhadores e gente pobre sobretudo para que, em lugar da secular
estrutura material herdada da colônia, mas transfigurada em suas funções desde a
31
desagregação do escravismo, surgissem largas e extensas avenidas, ladeadas de prédios
suntuosas, formando uma paisagem decalcada no ecletismo europeu, que tentava dar ao Rio
de Janeiro o aspecto imponente e opulento das metrópoles burguesas do Velho Mundo. Uma
rede de eixos de comunicação, constituída de ruas alargadas e prolongadas, estabeleceu os
nexos de circulação entre o centro da cidade que adquiria sua função moderna de núcleo
comercial, financeiro e administrativo e as zonas em expansão, ao norte e ao sul, que se
formavam ou consolidavam como áreas de moradias ou áreas industriais, deslocadas,
espacialmente dos antigos limites da Cidade Velha e sua extensão mais recente, a Cidade
Nova
26
.
Modernizar era a palavra de ordem do Rio de Janeiro na virada do século para se
igualar aos europeus. Era preciso buscar um novo ideal de civilização, construindo-se para
isso novas avenidas, novos prédios e derrubando, em contrapartida, tudo o que lembrasse o
atraso colonial.
Remodelar a cidade era tornar visível a consagração do progresso como objetivo
coletivo fundamental nessa sociedade, cujo aburguesamento era um projeto social totalizante,
que procurava impor todo um modo de vida, à força ou o.Trava-se uma luta entre dois
grandes campos ou princípios: o progresso, a civilização, a regeneração estética e sanitária da
cidade; a cidade colonial, atrasada, anti-estética, suja e doente.
Se no Império a idéia central acoplada à centralização era a unidade, na República o
progresso passava a ser a marca da nova institucionalidade. Excluía-se e hierarquizava-se e,
dessa forma, a classe dominante reafirmava a sua dominação.
26
BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Haussmann tropical: A renovação urbana da cidade do Rio de
Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro, Biblioteca CARIOCA, 1992, p.227.
32
A Avenida Central, por sua vez, constituiu o eixo de todo o elenco de melhoramentos
urbanísticos, projetados com a intenção de transformar a velha, suja e pestilenta cidade
colonial portuguesa numa metrópole moderna e cosmopolita, à semelhança dos grandes
centros urbanos da Europa e dos Estados Unidos. A literatura cronística e propagandística da
época erigiu-a no mbolo fulgurante da “cidade civilizada” que emergia dos escombros da
outra, repudiada como a materialização de um passado histórico a ser sepultado
27
.
A Proclamação da República foi o marco no processo de transformação urbana que
viria por definir a identidade cultural do Rio de Janeiro. Sua função de capital tornou-se um
dos alvos principais da ampliação do projeto político do novo regime, convergindo interesses
do governo federal com objetivos da administração municipal.
Proclamada a República, seus dirigentes se viram diante do desafio de construir um
país republicano. Não se tratava como alguns acreditaram, de apagar o passado e começar a
escrever em uma folha em branco. A tarefa seria bem mais difícil e demorada, já que um
projeto de construção de um Estado e de uma nova nação significava, antes de tudo, um
processo de seleção entre aquilo que deveria ser eliminado e quilo que poderia ser
incorporado do regime derrubado
28
.
2.1 - A BELLE ÉPOQUE TROPICAL – Os primeiros anos de vida da Avenida
“Ô Rio Civiliza-se!”, era a expressão mais corrente após a conclusão da Avenida
Central. Baniu-se do Centro da cidade a presença dos humildes e permitiu que a burguesia
27
Idem, ibidem, p..227.

MOTTA, Marly. Rio, Cidade-Capital. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004, p.18
33
ganhasse as ruas, caminhando por um novo Rio de Janeiro de rosto europeizado, de avenidas
largas, belos jardins e chafarizes com seus desfiles carnavalescos civilizados; sem os
grosseiros modos do Zé Pereira, onde grandes personalidades desfilavam e as mulheres
começavam a ganhar sua liberdade. Contudo, para alguns a grande obra não passava de uma
“mulata apertada em um vestido francês”, com seus prédios de belas fachadas, com interiores
totalmente dissociados do que apresentavam para a rua, com plantas simples e funcionais.
A nova configuração dos terrenos ao longo da Avenida permitiu a construção de
grandes edifícios, e, diferente do que aconteceu nas reformas de Paris, todos tinham cunho
estritamente comercial. A predominância de grandes lojas afastou definitivamente os
pequenos comerciantes, que não tinham como arcar com tais despesas, fazendo da avenida
lugar exclusivo das grandes corporações: bancos, grandes lojas e magazines, jornais e sedes
de grandes empresas. Definindo um status social para esta área totalmente diferente de seu
entorno, onde ainda predominava a antiga estrutura colonial.
Foi posta abaixo também toda a estrutura portuária, herdada, em parte, dos tempos
coloniais, ampliada depois pela proliferação, na segunda metade do século XIX, de
instalações que produziam, no essencial, as características da estrutura antiga. A
modernização do porto do Rio de Janeiro de certo modo o eixo do conjunto de realizações
desse período implicou a destruição de centenas de velhos trapiches e cais de madeira, a
demolição de numerosos quarteirões nos bairros proletários insalubres da orla da Saúde,
Gamboa, etc., o aterro das pequenas enseadas e sacos que o recortavam, para dar lugar a uma
extensa superfície de cais onde os navios, agora, podiam acostar diretamente e onde as cargas
passaram a ser movimentadas por guindastes elétricos, terminais rodoviários e ferroviários e
amplos armazéns
29
.
29
BENCHIMOL, J. , op. cit., p., 316-317.
34
Os critérios utilizados para o remembramento dos terrenos e o uso que acabou por dar-
se a estes, definiu três setores distintos, porém integrados, na Avenida Central. O primeiro
trecho, entre o largo da Prainha (atual Praça Mauá) até a rua Gen. Câmara (destruída com a
abertura da Av. Presidente Vargas), por sua proximidade com o Porto, foi ocupado
principalmente pelo empresariado ligado ao comércio de importação e exportação e pelos
bancos ligados a estas atividades. No trecho seguinte, que se estendia até a rua São José,
instalaram-se as principais atividades comerciais: as grandes confeitarias, lojas de vestuários,
estabelecimentos bancários e os jornais representativos da época, tornando-se o ambiente
ideal para o desfile das novidades e das ostentações da burguesia. O trecho final que se
estendia até a Avenida Beira Mar , formado por grandes lotes formados pelas áreas ganhas
com desmonte de parte do Morro do Castelo e de áreas remanescentes junto a praça Ferreira
Viana se caracterizou por seu cunho institucional, com grandes edifícios públicos como o
Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes e Palácio Monroe.
Com a morte do Barão de Rio Branco em 10 de fevereiro de 1912, passou a ser
denominada a Avenida Central de Avenida Rio Branco. Assim como seu nome original durou
pouco tempo, a estrutura da própria aos pouco também começava a sofre alterações. Os ideais
europeus que eram símbolo de modernidade a época da inauguração aos poucos eram
substituídos pelo pensamento norte americano, que ia se infiltrando no Brasil, principalmente
após a 1° Guerra Mundial.
Em seus 20 primeiros anos pouca coisa mudou, sofrendo apenas algumas intervenções
pontuais, como a inauguração do Hotel Avenida em 1911 e a demolição do convento da
Ajuda, no mesmo ano, que permitiu a criação da Praça Floriano e do que em alguns anos seria
o maior pólo de diversão da avenida.
35
Com a gradativa exclusão das habitações das cercanias do centro da cidade e a
ocupação da avenida quase exclusivamente por edifícios comerciais e empresarias ocasionou
um fenômeno, perceptível até os dias de hoje: o do esvaziamento da Avenida durante a noite e
nos finais de semana, exceto no trecho mais próximo a praça Mal. Floriano, onde
concentravam-se os prédios de atividades institucionais e culturais.
A especificidade de uma capital pode ser observada ainda pela variedade de grupos
que ocorrem ao centro de poder para lutar por seus interesses. Mas a característica mais
marcante é seu papel de formador de opinião. A capital é a autoridade para os donos dos
jornais e revistas e também para todos os que vivem nas cercanias do poder, em contato
estreito com quem toma as decisões políticas.
Ao ser representante, também, do país no cenário internacional e pelo seu papel
nacional, a capital torna-se lugar do cruzamento de informações, fazendo da cidade uma fonte
permanente de notícias.
A passagem da Monarquia para a República representou um verdadeiro surgimento de
uma nova cultura política. O movimento republicano expandiu as polêmicas para além dos
ambientes fechados, ganhando os temas controversos às ruas. Uma verdadeira cidade política
emergiu. A vitória de um certo cosmopolitismo cultural consolidou o Rio de Janeiro também
como centro político. E o eco de ressonância dessas discussões encontraria nos jornais um
lugar natural para a sua divulgação
30
.
Os temas abolicionistas e republicanos desenvolvidos nos periódicos surgidos no
decorrer da década de 1870-80 preparavam terreno para um novo jornalismo que seguirá
ainda os passos da polêmica até a primeira década do século XX, embora passasse a divulgar
cada vez mais uma idéia de imparcialidade.
30
MARIALVA, Barbosa, op. cit., p. 27.
36
As transformações econômicas, políticas e sociais, que mudariam completamente o
cenário urbano da cidade, criariam as condições indispensáveis para o desenvolvimento dessa
imprensa como um empreendimento industrial.
A necessidade de uma ão rápida decorria do enorme custo social e político da obra.
A Avenida (e o elenco de normas e proibições que acompanharam sua construção) desabrigou
milhares de pessoas e desorganizou, drasticamente, seu quadro cotidiano de existência; varreu
em seu caminho, além das casas de cômodos e cortiços, uma infinidade de pequenos
estabelecimentos comerciais, oficinas e fabriquetas.
Com o gradual declínio da cafeicultura na Província do Rio de Janeiro, a economia
urbana se modificou já que os recursos se deslocaram principalmente para as atividade
vinculadas ao setor secundário e terciário
31
.
A acumulação urbana possibilitou a própria industrialização, criando condições para as
novas áreas industriais e para que as capitais se concentrassem em setores distintos do
comércio. Nesse sentido o desenvolvimento dos sistemas de transportes e de toda uma infra-
estrutura de serviços transformaria o Rio de Janeiro na cidade com a maior rede urbana de
serviços e transportes, com recursos que a tornaria centro comercial e financeiro,
possibilitando, ao mesmo tempo, a concentração do capital industrial.
A remodelação do Rio de Janeiro envolveu uma correlação complexa de forças
sociais, o confronto do Estado com múltiplos interesses que, apesar de cindidos por
divergências ou antagonismos, chegaram a se coesionar momentaneamente contra o governo,
31
LOBO, Eulália Maria Lahymeyer. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e
financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC, 1978, p.156.
37
que usou de procedimentos draconianos, que nos limites da estrutura jurídico-política e da
ideologia liberal-burguesa que formavam o Estado oligárquico republicano
32
.
A cidade tinha, pois, todas as condições necessárias para a ampliação e o
desenvolvimento de uma nova indústria a de notícias construída em moldes inteiramente
diversos do que fora, até então, a atividade de fazer jornal.
2.2 – CONTEXTUALIZAÇÃO
O Brasil da passagem do Império para os primeiros anos da República não possui
contornos muito nítidos tudo é um pouco indefinido, como num salão esfumaçado da Belle
Époque. É comum associar os primeiros anos do século XX às invenções que encantavam a
sociedade urbana.
Vivia-se a Belle Époque. Antenada na moda e nos costumes ditados pela França, a
elite brasileira ganhava verniz de sofisticação. As cidades cresciam e influenciavam novos
hábitos. Dândis e melindrosas flanavam diante das fachadas art-nouveau. Os automóveis ,
importados, começavam a surgir
33
.
Ao contrário do período da Independência, em que as elites buscavam uma
identificação com os grupos nativos, particularmente índios e mamelucos, e manifestavam um
desejo de ser brasileiros, neste período a que nos referimos, essa relação se torna de oposição,
e que o que é manifestado podemos dizer, é um desejo de ser estrangeiros.
32
BENCHIMMOL, Jaime., op. cit., p.245.
33
Idem, ibidem, p.15.
38
Em 1902, foi indicado candidato oficial à sucessão de Campos Sales na presidência da
República o paulista Rodrigues Alves, grande fazendeiro de café Guaratinguetá, presidente do
Estado de São Paulo desde 1900, com uma longa carreira política exercida no Império. Sua
candidatura assegurava a permanência da chefia no governo republicano, pela terceira vez, em
mãos de um representante da grande burguesia cafeeira paulista. Estava em vigor a famosa
política do “café com leite”: o vice-presidente era mineiro.
Mostra-se então, o que Stuart Hall chama de uma identidade que se torna uma
“celebração móvel”
34
: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente, não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos.
Nesta busca por uma identidade para a nação recém proclamada a Capital do país, Rio
de Janeiro, passa por uma grande reforma. Essa reforma do Centro da cidade foi feita com
extrema eficácia e rapidez. Francisco Bicalho reconstruiu o cais do porto. Paulo de Frontin
executou as obras da Avenida Central, dando início às demolições, que ficaram conhecidas
como os "bota-abaixo". Quarteirões inteiros foram arrasados, cortiços derrubados, quiosques
destruídos. À população afetada diretamente pelos "bota-abaixo", forçada a abandonar suas
moradias, restava apenas três opções: ou apertavam-se nos cortiços que ficaram intocados nas
áreas próximas à Avenida Central, ou subiam os morros adjacentes ou, ainda, deslocavam-se
para os bairros mais distantes. Além dos transtornos evidentes, tais transformações afetaram
drasticamente a população assalariada de baixa renda ao elevar o preço dos aluguéis, do custo
34
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A,2001, p13.
39
da alimentação e do consumo diário. Aqueles que se deslocaram para os subúrbios tiveram a
situação agravada pelos gastos adicionais com o transporte.
35
Esses indivíduos por não se enquadrarem nos padrões europeus foram simplesmente
eliminados dos cenários que constituíam a vitrine da República. Foram juntar-se ao "resto" da
população, que por trás do cenário francês da Av. Central, formavam o Brasil real. Eles eram
aquele "resto do país" que não constava do programa de governo de Rodrigues Alves e que a
elite carioca gostaria de esquecer que existia. Aqui vale relembrar o que vimos no texto
Soberania sem Territorialidade, de Arjun Appadurai
36
: “(...) na ideologia cultural do
Estado-nação, a realidade do pensamento etnoterritorial demanda discriminação entre
diferentes categorias de cidadoas, ainda que todos ocupem o mesmo território”.
O texto que se segue abaixo, de um cronista do Jornal do Commercio, ilustra bem o
abismo existente entre as camadas pobres e o governo republicano, dando pistas para se
entender como se gerou uma consciência de divórcio entre a elite citadina, cosmopolita e
progressista, e o resto da população, ligada a grupos tradicionais. Trata-se das reflexões que o
cronista do jornal faz em torno de dois índios aculturados do interior de o Paulo, que vêm
pedir proteção e auxílio ao governo federal:
"se foi o tempo em que acolhíamos com uma certa simpatia esses
parentes que vinham descalços e mal vestidos, falar-nos de seus infortúnios
e de suas brenhas. Então a cidade era deselegante, mal calçada e escura, e
porque não possuíamos monumentos, o balouçar das palmeiras afetava
nossa vaidade. Recebíamos então sem grande constrangimento, no casarão,
à sombra das árvores, o gentio e seus pesares, e lhes manifestávamos a
35
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 53.
36
APPADURAI, Arjun. “Soberania sem Territorialidade: notas para uma geografia pós-nacional”. In: Novos
Estudos, São Paulo, CEBRAP, Novembro,1997, p.36.
40
nossa cordialidade fraternal... por clavinotes, facas de ponta, enxadas e
colarinhos velhos. Agora, porém, a cidade mudou e nós com ela e por ela.
não é a singela morada das pedras sob coqueiros; é o salão com tapetes
ricos e grandes globos de luz elétrica. E, por isso, quando o selvagem
aparece, é como um parente que nos envergonha. Em vez de reparar nas
mágoas de seu coração, olhamos com terror para a lama bravia de seus
pés. O nosso smartismo estragou a nossa fraternidade.
Lembro-me sempre, por mais que eu queira esquecer, a amargura, o
desespero com que pusemos os olhos rebrilhantes de orgulho naquele carro
fatal, atulhado de caboclos, que a mão da providência meteu em préstito
por ocasião das festas do Congresso Pan-Americano. A cabeleira de mata
virgem daquela gente funesta ensombrou toda a nossa alegria. E não era
para menos. Abríamos a nossa casa para convidados da mais rara
distinção e de todas as nações da América. Recebíamos até norte-
americanos!... Íamos mostrar-lhes a grandeza do nosso progresso, na nossa
grande Avenida recém-aberta, na Avenida à beira mar, não acabada, no
Palácio Monroe, uma tetéa de açúcar branco. No melhor da festa, como se
tivessem caído do céu ou subido do inferno, eis os selvagens medonhos, de
incultas cabeleiras metidas até os ombros, metidos com gente bem
penteada, estragando a fidalguia das homenagens, desmoralizando-nos
perante o estrangeiro, destruindo com o seu exotismo o nosso chiquismo.
Infelizmente não era mais tempo de providenciar, de tirar aquela
nódoa tupinam da nossa correção parisiense, de esconder aqueles
caboclos importunos, de, ao menos, cortar-lhes o cabelo (embora parecesse
melhor a muita gente cortar-lhes a cabeça), de atenuar com a escova e
perfumaria aquele escândalo de bugres metediços... Não houve remédio
senão aturar as feras, mas Deus sabe que força de vontade tivemos de
empregar para sorrir ao Sr. Root, responder em bom inglês ao seu inglês,
vendo o nervoso que nos sacudia a mão quando empunhávamos a taça dos
brindes solenes e engolir, de modo que não revelasse aos nossos hóspedes
que tínhamos índios atravessados na nossa garganta. Foram dias de dor
aqueles dias de glória. A figura do índio nos perseguia com tenacidade do
41
remorso. A sua cara imóvel interpunha-se à dos embaixadores e à nossa. As
suas plumas verdes e amarelas quebraram a uniformidade negra das
casacas. Broncas sílabas tupis pingavam, enodoando o primor das línguas
educadas."
37
O país estava, assim, clivado. Existia o Brasil oficial (aquele para inglês ver) e existia
o Brasil real (aquele que se queria esconder debaixo do tapete). Ao se observar esse segundo
país, por detrás da fachada de progresso e civilização, percebia-se claramente o quanto a
República (apesar de todas as mudanças) trazia de continuidade em relação a tudo o que lhe
antecedeu.
A sociedade, do ponto de vista da dinâmica interna, continuava a mesma. A lógica que
permeava a sua estruturação ainda era extremamente excludente. O mundo do trabalho
continuava de fora dos benefícios por ele gerados, mas a exclusão se fazia sentir de forma
bastante brutal também em relação outros aspectos. Excluía-se parte da população de
determinados espaços públicos, além de eliminar algumas de suas práticas.
A Constituição de 1891, por sua vez, dava corpo a permanência de uma definição de
cidadania excludente. Embora tivesse eliminado o voto censitário, manteve todas as outras
restrições. Analfabetos, menores de 21 anos, mulheres, praças de pré e frades (ou seja, 80%
da população) não podiam votar. Nas eleições diretas para presidente de 1894, apenas 1,3%
da população participou. em 1910, a porcentagem caiu para 0,9%, mas como muitos votos
eram anulados, nesse ano, apenas 0,5% da população teve seus votos apurados.
38
O processo eleitoral, além disso, era totalmente deturpado, não passando na realidade
de uma grande falácia. Fraudes, coronelismo, capangas, capoeiras eram os elementos
constitutivos dos chamados "currais eleitorais", nos quais o arbítrio era a lei. Em cada estado,
37
Jornal do Comércio. 30/03/1908, “A Semana”, Apud. SEVCENKO, op. cit., p. 35-36.
38
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo,
Companhia das Letras, 1989, p. 85.
42
uma família ou grupo de famílias de latifundiários controlava o poder. O governador, os
prefeitos, os deputados só eram eleitos se estivessem no esquema desses grupos. A escolha do
presidente da República era um jogo de cartas marcadas pelas oligarquias paulistas e
mineiras, as mais fortes do país.
Para muitos, então, as novidades, o progresso, a civilização trazida pela República
nada significavam. Mal sobrevivendo nas cidades e nos campos, grande parte da população
trabalhadora encontrava-se a margem de tudo o que ocorria no país oficial. A República,
entretanto, devido às promessas democratizantes do movimento republicano, havia despertado
o entusiasmo e a expectativa de amplos setores da população. A esperança de que o novo
regime abrisse caminho para a participação popular, no entanto, foi logo frustrada. A rigidez
do sistema, sua resistência em permitir, entre outras coisas, a ampliação da cidadania fez com
que o encanto inicial rapidamente se esvaísse e desse origem a decepção e ao desânimo.
A estratégia era simples: as reformas tornariam o Rio uma metrópole no melhor estilo
europeu mais bonita e eficiente - e atrairiam empreendedores estrangeiros, que nesse início
de século queriam distância da capital. Com eles viriam os investimentos e a o-de-obra
mais qualificada. A cafeicultura se beneficiaria.Os negócios se multiplicariam. Haveria
progresso.
Segundo José Murilo de Carvalho, a composição de um Estado-Nação modernose
tornou possível através de um tipo de cooptação, proporcionada, por um lado, pelas estruturas
e forças sociais e políticas tradicionais do interior do país (coronelismo, capanguismo) e, por
outro, pela “estadania”, ou seja, pela incorporação fisiológica tanto de elementos diretamente
ligados à máquina estatal (funcionários públicos e militares), quanto do "mundo da desordem"
(malandros, capoeiras).
43
A sociedade brasileira estava, assim, cheia de contradições e paradoxos. Se havia uma
forte separação de mundos (entre o mundo do progresso e o do atraso, entre o Brasil oficial e
o real), por outro lado, havia a “estadania” que, ao mesmo tempo que ligava os elementos do
segundo mundo ao primeiro, dava sustentação a essa mesma clivagem. Isto tudo criava um
grave dilema: como representar essa nação, moderna de um lado, atrasada de outro?
A situação era extremamente excepcional. A cidade do Rio de Janeiro abre o século
XX defrontando-se com perspectivas extremamente promissoras.
Uma verdadeira febre de consumo tomou conta da cidade, toda ela voltada para a
“novidade”, a “última moda” e os artigos dernier bateau.
Era preciso findar com a imagem da cidade insalubre e insegura, com uma enorme
população de gente rude plantada bem no seu âmago, vivendo no maior desconforto,
imundice e promiscuidade e pronta para armar em barricadas as vielas estreitas do centro ao
som do primeiro grito de motim.
39
Somente oferecendo ao mundo uma imagem de plena credibilidade era possível drenar
para o Brasil uma parcela proporcional da fartura, conforto e prosperidade em que já
chafurdava o mundo civilizado.
“E acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padrões
e o ritmo de desdobramento da economia européia, onde“nas indústrias e no comércio o
progresso do século foi assombroso, e a rapidez desse progresso miraculosa”
40
. A imagem do
progresso se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia. A alavanca capaz de
desencadeá-lo, entretanto a moeda rutilante e consolidada, mostrava-se evasiva às condições
da sociedade carioca.
39
SEVCENKO, Nicolau, op. cit.,p. 29
40
“Editorial” Jornal do Commercio, 1/1/1901
44
Estava aberto o caminho para o desfecho inadiável desse processo de substituição das
elites sociais: a remodelação da cidade e a consagração do progresso como o objetivo coletivo
fundamental.
O novo grupo social hegemônico poderá exibir os primeiros monumentos votados à
sagração de seu triunfo e de seus ideais. O primeiro deles se revela em 1904 com a
promulgação da lei da vacina obrigatória e em 1905 com a inauguração da Avenida
Central.Tais atos são o marco inicial da transfiguração urbana da cidade do Rio de Janeiro.
Era a “regeneração” da cidade, e por extensão, do país, na linguagem dos cronistas da época.
Nela o demolidos os imensos casarões coloniais e imperiais do centro da cidade,
transformados que estavam em pardieiros em que se abarrotava grande parte da população
pobre, a fim de que as ruelas acanhadas se transformassem em amplas avenidas, praças e
jardins, decorados com palácios de mármore e cristal e pontilhados de estátuas importadas da
Europa.
Assistia-se a transformação do espaço público, do modo de vida e da mentalidade
carioca, segundo padrões totalmente originais; e o havia quem se lhe pudesse opor. Quatro
princípios fundamentais regeram o transcurso dessa metamorfose, conforme veremos adiante:
a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação
de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da
sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central
da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas;
e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.
41
Enquanto transcorriam as demolições, a oposição acusava o governo de só promover a
construção dos palácios, deixando a população pobre desabrigada, ao passo que os
SEVECENKO,N., op. cit., p.30.
45
intelectuais e jornalistas subservientes ao poder celebravam cada demolição de cortiço como
mais um passo na direção ao progresso material da cidade e moral da população.
Mas não foram só as demolições ostensivas que desabrigaram trabalhadores. A
valorização e especulação com o solo (elevando o preço dos aluguéis), os novos impostos que
acompanhavam o fornecimento de serviços como iluminação elétrica, calçamentos modernos,
água, esgotos; a legislação municipal estabelecendo restrições e normas arquitetônicas para as
construções urbanas; a proibição do exercício de determinadas profissões ou práticas
econômicas (como a criação de animais domésticos, o plantio de hortas) ligadas subsistência
das famílias trabalhadoras... tudo isso atuava indiretamente, como poderosa força
segregadora, revolvendo, sobretudo, a área central da cidade, onde trabalhavam e residia a
numerosa e heterogênea plebe carioca
42
.
A expressão “regeneração” era por si esclarecedora do espírito que presidiu esse
movimento destruição da velha cidade, para complementar a dissolução da velha sociedade
imperial, e de montagem da nova estrutura urbana.
O novo cenário suntuoso exigia novos figurinos. Daí a campanha da imprensa,
vitoriosa em pouco tempo, para a condenação dos mestre-de-obras, elemento popular e
responsável por praticamente toda a edificação urbana até aquele momento, que foi
defrontado e vencido por novos arquitetos de formação acadêmica. Ao estilo do mestre-de-
obras, elaborado e transmitido de geração a geração desde os tempos coloniais, constituindo-
se ao fim em uma arte autenticamente nacional, sobrepôs-se o Art Noveau rebuscado dos fins
da Belle Époque. Também com relação à vestimenta verifica-se a passagem tradicional
sobrecasaca e cartola, ambos pretos, símbolos da austeridade da sociedade patriarcal e
aristocrática do Império, para a moda mais leve e democrática do paletó de casemira clara e
42
BENCHINMOL,, op. cit., p.288.
46
chapéu de palha. O importante agora é ser chic ou smart conforme a procedência do tecido ou
do modelo.
Na luta contra os “velhos bitos coloniais” muitos jornalistas expendiam suas
energias contra os últimos focos que resistiram ao furacão do prefeito Pereira Passos, o
“ditador” da Regeneração. Com a expulsão da população humilde da área central da cidade e
a intensificação da taxa de crescimento urbano, desenvolveram-se as favelas, que em breve
seriam alvo predileto dos “regenadores”. Campanha mais reveladora dos excessos
inimagináveis a que levava esse estado de espírito foi a criação de uma lei de obrigatoriedade
do uso do paletó e sapatos para todas as pessoas, sem distinção, no Município Neutro. O
projeto de lei chegou a passar em segunda discussão no Conselho Municipal e um cidadão,
para assombro dos mais céticos, chegou a ser preso “pelo crime de andar sem colarinho”.
(...)Na Europa ninguém, absolutamente ninguém, tem a
insolência e o depudor de vir para as ruas de Paris, Berlim, de Roma, de
Lisboa, etc., em pés no chão e desavergonhadamente em mangas de
camisa.
43
O resultado mais concreto desse processo de aburguesamento intensivo da paisagem
carioca foi a criação de um espaço blico central da cidade, completamente remodelado,
embelezado, ajardinado e europeizado, que se desejou garantir com exclusividade para o
convívio dos “argentários”. A demolição dos velhos casarões provocou uma “crise de
habitação” o que elevou brutalmente os aluguéis, pressionando as classes populares todas para
os subúrbios e para cima dos morros que circundam a cidade.
“Ça Marche”, Revista Fon Fon, 24/06/1909.
47
Desencadeia-se, simultaneamente, através de alguns setores da imprensa uma
campanha, que se prolonga por todo esse período, de “caça aos mendigos”, visando à
eliminação de esmoleres, pedintes, ébrios, prostitutas e quaisquer outros grupos marginais das
áreas centrais da cidade
44
. Há mesmo uma pressão para o confinamento de cerimônias
populares tradicionais em áreas isoladas do centro, para evitar o contato entre duas sociedades
que ninguém admitia mais ver juntas, embora fossem uma e a mesma.
Num dos últimos domingos vi passar pela Avenida Central um
carroção atulhado de romeiros da Penha: e naquele amplo boulevard
esplêndido, sobre o asfalto polido, contra a fachada rica dos prédios altos,
contra as carruagens e carros que desfilavam, o encontro do velho veículo,
em que os devotos bêbados urravam, me deu a impressão de um monstruoso
anacronismo: era a ressurreição da barbaria era uma idade selvagem
que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e
envergonhar a vida da idade civilizada... Ainda se a orgia desbragada se
confinasse ao arraial da Penha! Mas não! acabada a festa, a multidão
transborda como uma enchurrada vitoriosa para o centro da urbs...”
45
Em pouco tempo e com a ajuda de alguns jornalistas e dos correspondentes em Paris, a
burguesia carioca se adapta ao seu novo equipamento urbano, abandonando as varandas e os
salões coloniais para expandir a sua sociabilidade pelas novas avenidas, praças, palácios e
jardins. Com muita brevidade se instala uma rotina de hábitos elegantes ao longo de toda a
cidade, que ocupava todos os dias e cada minuto desses personagens, provocando uma
frenética agitação de carros, charretes e pedestres, como se todos quisessem estar em todos os
“Dia a Dia”, Jornal do Commercio, 12/11/1900.
45
Escrito por Olavo Bilac, para Revista Kosmos, outubro de 1906.
48
lugares e desfrutar de todas as atrações urbanas ao mesmo tempo. o dia não bastava para
tanta excitação; era necessário invadir a noite.
A identificação com o novo modo de vida é tal que os seus beneficiários, encabeçados
por um certo números de jornalistas, procuram organizar-se para garantir a sua manutenção,
exigir sua extensão a todos os pontos mais distantes e mais recônditos da cidade e impedir
retrocessos.
Rodrigues Alves representou a mais harmoniosa e conseqüente articulação entre a
tradição do Império, os interesses da cafeicultura paulista e a finança internacional. Rio
Branco por seu turno fechou esse círculo atraindo o grupo de intelectuais que agregados ao
Ministério das Relações Exteriores representaram a intelligentsia do novo regime, ao mesmo
tempo que consolidou toda a substância da política interna de Rodrigues Alves através de sua
integração funcional no sistema internacional de força políticas.
46
O que se notava na atuação dos primeiros presidentes civis e paulistas, bem como de
todo o seu círculo político-administrativo, era o evidente esforço para forjar um Estado-Nação
moderno no Brasil, eficaz em todas as suas múltiplas atribuições diante das novas vicissitudes
históricas, como seus modelos europeus.
47
O analfabetismo quase absoluto da população reduziria a fumaças as pretensões de
manipulação da opinião pública. Ao fim, resultava que a pretendida composição de um
Estado-Nação moderno no Rio de Janeiro se tornava viável através da sustentação, por
cooptação, proporcionada pelas estruturas e forças sociais e políticas tradicionais do interior
do país (coronelismo, capanguismo, voto de cabresto, voto de bico-de-pena,etc...)mais que
SEVCENKO,N.,, op. cit.,p46.
47
Idem, ibidem,p.47
49
nunca interessados em tirar partido do volume de riquezas e oportunidades condensadas pelo
governo central.
48
Na condição de elevado índice de desemprego estrutural e permanente sob que vivia a
sociedade carioca, grande parte da população estava reduzida à situação de vadios
compulsórios, revezando-se entre as únicas práticas alternativas que lhes restavam: o
subemprego, a mendicância, a criminalidade, os expedientes eventuais e incertos.Isso quando
a penúria e o desespero não os arrastavam ao delírio alcoólico, à loucura ou ao suicídio.
49
Neste início de século, são freqüentes na imprensa os aplausos à perseguição policial
aos bêbados e ao alcoolismo em geral, tido como fator notável de insegurança social:
“assassinatos, suicídios, ferimentos, desordens, tudo produzido pelo álcool”.
Quando o Regulamento da Vacina Obrigatória passo a ser discutido e divulgado, a
simples menção da invasão e derrubada dos prédios anti-higiênicos e a manipulação dos
corpos por médicos e enfermeiros acompanhados de soldados foram o golpe da misericórdia:
“a irritação alastrava com a violência da epidemia”. A cidade foi literalmente tomada pelos
amotinados, durante três dias a população resistiu à ão conjugada da polícia, do Exército e
da Marinha por todas as formas.
50
Muitos dos intelectuais brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a
verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um
passado obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir um mundo novo, liberal, democrático,
progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas, como ele se prometia.
51
Idem, ibidem, p.51
49
Idem, ibidem, p.59
50
Idem, ibidem,. p. 66
Idem, ibidem, p. 78.
50
Os tópicos que esse intelectuais enfatizavam como as principais exigências da
realidade brasileira eram: a atualização da sociedade com o modo de vida programado da
Europa, a modernização das estruturas da nação, com a sua devida integração na grande
unidade internacional e a elevação do nível cultural e material da população. Os caminhos
para se alcançar esses horizontes seriam a aceleração da atividade nacional, a liberalização
das iniciativas (...) e a democratização, entendida como a ampliação da participação política.
52
Sem possuir propriamente uma nação e com um Estado reduzido ao servilismo
político, o Brasil carecia, portanto, de uma ação reformadora nesses dois sentidos; construir a
nação e remodelar o Estado, ou seja, modernizar a estrutura social e política do país.
53
2.3 – OS SENTIDOS DO “MODERNO”
Nesse contexto em que nos encontramos é importante buscar observar o que se
entendia por “moderno” ou por “modernidade”. A pergunta é: o que vem a ser moderno?
A partir das últimas décadas do século XIX, idéias como novo, progresso, ruptura,
revolução e outras nesta linha passam a fazer parte não apenas do cotidiano dos agentes
sociais, mas principalmente, a caracterizar o imaginário, o discurso intelectual e os projetos de
intervenção junto à sociedade
54
.
A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou jornalistas.
Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma ou de outra, para a passagem do
52
Idem, ibidem, p79
53
Idem, ibidem,p.83.
54
HERSCHMANN, M. e PEREIRA, C. A. M. (orgs.)., op. cit, p.14
51
tempo. Através do adjetivo moderno, assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma
ruptura, uma revolução do tempo. Quando as palavras “moderno”, modernização” e
“modernidade” aparecem, definimos, por contraste, um passado arcaico e estável. Além disso,
a palavra encontra-se sempre colocada em meio a uma polêmica, em uma briga onde
ganhadores e perdedores, os Antigos e os Modernos. “Moderno”, portanto, é duas vezes
assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no
qual vencedores e vencidos
55
. A modernidade é muitas vezes definida através do
humanismo, seja para saudar o nascimento do homem, seja para anunciar sua morte.
De acordo com Antony Giddens, emAs conseqüências da modernidade”(1991, p.11),
modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na
Europa a partir do século XVIII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em
sua influência.
Os modernos têm a particularidade de compreender o tempo que passa como se ele
realmente abolisse o passado antes dele. Não se sentem distantes da Idade Média por alguns
séculos, mas separados dela por evoluções copernicanas, cortes epistemológicos, rupturas
epistêmicas que são tão radicais que não sobrou nada mais deste passado dentro deles que
nada mais deste passado deve sobreviver neles. que tido aquilo que acontece é sempre
eliminado, os modernos têm realmente a sensação de uma flecha irreversível do tempo, de
uma capitalização, de um progresso. Mas como esta temporalidade é imposta a um regime
temporal que corre de forma totalmente diversa, os sintomas de um desentendimento se
multiplicam. Como Nietzsche havia observado, os modernos têm a doença da história. Quanto
55
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro, Ed.34,1994, p.15.
52
mais revoluções eles acumulam, mais eles conservam; quanto mais capitalizam, mais colocam
no museu
56
.
A modernidade emprega a Revolução como a lógica do tempo. Todas as revoluções
trazem a idéia de que o “Amanhã” será melhor. Um marco.
As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança
constante, rápida e permanente. Esta é a principal distinção entre as sociedades “tradicionais”
e as sociedades modernas”. E é exatamente neste contexto que estamos. Num período em
que a nação brasileira passa por uma rie de mudanças, revoltas, conflitos, em busca do
progresso que tanto se esbanja na Europa. Antony Giddens argumenta que nas sociedades
tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam
a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo
qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os
quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes
57
.
A modernidade, em contraste, não é definida apenas como experiência de convivência
com a mudança rápida, abrangente e contínua, mas é uma forma altamente reflexiva de vida,
na qual as práticas sócias são constantemente examinadas e reformadas à luz das
informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente,
seu caráter” (ibid,pp.37-38).
Giddens (op.cit., p.6)cita em particular, o ritmo e o alcance da mudança – à medida em
que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de
transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra – e a natureza das
instituições modernas. Mais importante são as transformações do tempo e do espaço e o que
56
Idem, ibidem,p.68.
57
GIDDENS, Anthony, 1990. Apud. HALL, Stuard, Op. Cit., p.14-15.
53
ele chama de desalojamento do sistema social” – a “extração” das relações sociais dos
contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de escalas indefinidas de espaço-
tempo.
“Os modos de vida colocados em ão pela modernidade nos livraram, de uma forma
bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em
intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a
maioria das mudanças características dos períodos anteriores”
58
.
Como vemos, moderno, modernidade, modernismo ou mesmo modernização são
categorias específicas.
Em nosso contexto, proposto para este estudo, o Estado republicano estava
preocupado em impor uma racionalidade que correspondesse às transformações sócias,
econômicas e políticas ocorridas na Europa no último quartel do século XIX. A chamada
segunda Revolução Industrial havia imposto uma dinâmica sem precedentes à economia
européia e americana, com reflexos por todo o globo terrestre. No caso do Brasil, essas
mudanças no cenário internacional foram de grande importância, pois favoreceram a
aplicação de capitais estrangeiros no país, como funding loan, em 1898,que restaurou a
situação financeira do país e viabilizou a remodelação da capital federal (reforma
empreendida pelo prefeito Pereira Passos na primeira década deste século)
59
.
Entretanto, não foram apenas as remessas de dinheiro que entraram no país. O Brasil
do século XIX viu surgir, em seu interior um conjunto de valores e modelos que a elite
dirigente desejava incorporar como referência para a sociedade. Eram inspirados no modelo
puritano, ascético e europeu e ganharam corpo nas reformas sanitárias, pedagógicas e
58
Idem, ibidem, p.16.
59
HERSCHMANN, M. Op. Cit., p.26.
54
arquitetônicas deste século. A palavra de ordem é sintonizar-se com a Europa, ou melhor,
“civilizar-se” o mais rápido possível, de modo que o país pudesse, o quanto antes, competir
num mercado internacional. Assistimos, naquele momento, à procura de inovações no campo
da ciência aplicada. A ciência técnica passava a ser considerada “crucial” para o “destino da
nação”.
Naquele momento a necessidade era de “reformar”, “regenerar”, “civilizar” a
sociedade e o país. E como referência tinha-se uma modernização “à européia”.
2.4 – AS IDÉIAS ESTAVAM FORA DO LUGAR?
As idéias de modernidade não estavam “fora de lugar”. Ao serem “importados”
modelos de condutas, ideários, padrões estéticos, eles sofriam processos de ressemantizações,
se adequando a lógica da cultura local.
O período que vai do último quartel do culo XIX ao começo dos anos 20, no Brasil,
é de profundas e pidas transformações sociais e políticas. A abolição da escravatura em
1888 e a proclamação da República em 1889 haviam aberto o sinuoso caminho para a
construção de uma nova sociedade capaz de absorver novas idéias, embora os sujeitos
responsáveis pela introdução destas idéias nem sempre tenham tido o mesmo sucesso em
termos da afirmação de usa hegemonia na disputa pelos espaços de poder. Saía-se do
escravismo e ingressava-se no processo de construção de uma sociedade de tipo capitalista
urbano-industrial
60
.
60
Idem, ibidem, p.11-12
55
O Rio de Janeiro dos primeiros anos da República era a maior cidade do país, com
mais de 500 mil habitantes. Capital política ela estava em condições de ser também, pelo
menos em tese, o melhor terreno para o desenvolvimento da cidadania.
Ainda que a modernização fosse apenas retórica, pois o significava uma
transformação das estruturas sociais, que permaneciam extremamente arcaicas e
conservadoras, ela servia como elemento de legitimação das elites. E estas legitimavam suas
formas de poder.
A proclamação da República trouxe grandes expectativas de renovação política, de
maior participação no poder por parte não de contra-elites, mas também de camadas antes
excluídas do jogo político. Por quase uma década o Rio seria a arena em que os destinos
nacionais se decidiram. Depois da independência, era o momento de maior glória, de maior
visibilidade para a capital, transformada em foco das atenções de todo o país.
Pela expectativa despertada, pelas lutas a que deram início e mesmo por razões
diretamente vinculadas à política, os primeiros anos da República foram de repetidas
agitações e de quase permanente excitação para os fluminenses. Os militares tinham provado
o poder que desde o início da Regência lhes fugira das mãos. Daí em diante julgaram-se
donos e salvadores da República, com o direito de intervir assim que lhes parecesse
conveniente
61
.
Vale salientar que a sociedade brasileira, mesmo a dos centros urbanos, não se
modificou ou aceitou as mudanças pacificamente e muito menos rapidamente. Esse Estado
que se propôs orquestrar esses indivíduos, articulando-se a um saber técnico-científico, tinha
diante de si uma sociedade eminentemente patriarcal e que ainda se comportava como tal. Era
61
CARVALHO, Op. Cit. ,p 22.
56
preciso, segundo esses especialistas/cientistas, vencer o “atraso colonial”. Era preciso
promover o trabalho assalariado, o mercado, em suma, implantar um ethos capitalista
62
.
A reformulação do espaço urbano foi uma das estratégias adotadas pelo Estado do Rio
de Janeiro, no início do século XX em busca da modernização. A cidade com sua organização
físico espacial, seus rituais de “progresso” - como no caso das exposições nacionais e
internacionais passa a ter um caráter pedagógico. Torna-se símbolo por excelência de um
tempo de aprendizagem, de internalização de modelos. Assim, quando estes
especialistas/cientistas se propunham a reformar, a organizar, mesmo que em nível
superficial, a esperança que tinham era de que essa projeção externa, pública, citadina,
pudesse atingir e orientar os indivíduos.
A sociedade, evidentemente, não respondeu homogeneamente a essas “reformas”, uma
vez que a maioria da população ainda organizava suas vidas de acordo com os valores
tradicionais, clientelistas, bem longe do modelo de estrutura social oferecido pelo Estado. Um
exemplo de tensão que havia entre os novos valores e os velhos, tradicionais, foi a Revolta da
Vacina, ocorrida em 1905. A rebelião foi a manifestação de uma população insatisfeita com
uma série de medidas autoritárias que iam desde uma política deflacionária e desapropriações
de imóveis na área central da capital aa “invasão da privacidade” efetuada pelos batalhões
sanitaristas de Oswaldo Cruz, com os quais estes segmentos sociais dificilmente poderiam se
identificar.
Contudo, é difícil de avaliar o impacto da proclamação do novo regime à nível da
mentalidades. Entre as elites, houve a sensação geral de libertação, que atingiu o o
mundo da idéias, mas também dos sentimentos e das atitudes. A mudança parece ter sido
importante, sobretudo no que se refere a padrões de moral e de honestidade.
62
Idem, ibidem, p. 22
57
A quebra de valores antigos também foi acelerada no campo da moral e dos costumes.
Os altos índices de população marginal e de imigração, o desequilíbrio entre os sexos, a baixa
nupcialidade, a alta de nascimentos ilegítimos o testemunhos seguros de costumes mais
soltos
63
.
Na virada do culo XIX para o XX a palavra de ordem é “civilizar-se”, isto é, ficar
em de igualdade com a Europa no que se refere a cotidiano, instituições, economia, idéias
liberais, etc.
A sociedade brasileira, mesmo a dos centros urbanos, como a da capital Rio de
Janeiro o se modificou ou aceitou as mudanças pacificamente, e muito menos
rapidamente. Havia uma sociedade eminentemente patriarcal e que ainda se comportava como
tal. Era preciso vencer o atraso colonial”. Era preciso promover o trabalho assalariado, o
mercado.
Trava-se uma luta entre dois grandes “campos” ou princípios: o progresso, a
civilização, a regeneração estética e sanitária da cidade; a cidade colonial, atrasada, anti-
estética, suja e doente
64
.
Somente oferecendo ao mundo uma imagem de plena credibilidade era possível drenar
para o Brasil uma parcela proporcional da fartura, conforto e prosperidade em que vivia o
mundo civilizado.
No Rio reformado circulava o mundo Belle Époque, fascinado com a Europa,
envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro. Era o mundo do
Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores do Presidente Rodrigues Alves que
63
Idem, ibidem, p.26-27.
64
BENCHIMOL, J. L., op. cit.,p.205.
58
promoveu as reformas. Foi um período marcado especialmente pelo avanço dos valores
burgueses.
O projeto de moderno era um projeto extremamente excludente. Dele estavam
excluídos todos que o pertenciam à elite carioca. Lembrando aqui que ser excluído não é
ser passivo, a implantação do projeto moderno no início do século XX se deu em meio a
vários conflitos.Conflitos estes que adquiriram duas formas: negociação (forma de se
“adequar” ao projeto moderno das elites) e a resistência.
Apesar da grande empolgação de toda a população carioca no início da implantação
dos projetos de modernização na cidade, com o passar do tempo essa expectativa inicial, de
maior participação na República, foi sendo aos poucos sistematicamente frustrada.
Desapontaram-se os intelectuais com as perseguições do governo Floriano, desapontaram-se
os operários, sobretudo sua liderança socialista, com as dificuldades de se organizarem em
partidos e de participarem do processo eleitoral; os jacobinos foram eliminados. Todos esses
grupos tiveram de aprender novas formas de inserção no sistema, mais ceis para alguns,
mais difíceis para outros. Os intelectuais desistiram da política militante e se concentraram na
literatura, aceitando postos decorativos na burocracia, especialmente no Itamaraty de Rio
Branco. Os operários cindiram-se em duas vertentes principais, a dos anarquistas, que
rejeitava radicalmente o sistema que os rejeitava, e a dos que procuravam integrar-se através
dos mecanismos de cooptação do Estado. Os jacobinos desapareceram de cena. Quanto ao
grosso da população, quase nenhum meio lhe restava de fazer ouvir sua voz
65
.
Acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padrões e
o ritmo de desdobramento da economia européia, onde “nas indústrias e no comércio o
progresso do século foi assombroso, e rapidez desse progresso miraculosa”. A imagem do
65
CARVALHO,J., op. cit., p.37.
59
progresso versão prática do conceito homólogo de civilização se transforma na obsessão
coletiva da nova burguesia. A alavanca capaz de desencadeá-la, entretanto, a moeda rutilante
e consolidada, mostrava-se evasiva às condições da sociedade carioca
66
.
66
SEVCENKO, Op. Cit.,p. 29.
60
3 - A IMPRENSA CARIOCA DA BELLE ÉPOQUE Jornalismo Informativo e
Mercado Jornalístico
A passagem do século assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande imprensa.
Muitos dos pequenos jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às
empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário
ao exercício de sua função. Se é assim afetado o plano de produção, o da circulação também o
é, alterando-se as relações do jornal com o anunciante, com a política, com ao leitores. Essa
transição começara antes do fim do século, naturalmente, quando se esboçara, mas fica bem
marcada quando se abre a nova centúria. Está naturalmente ligada às transformações do país,
em seu conjunto, e, nele, à ascensão burguesa, ao avanço das relações capitalistas: a
transformação na imprensa é um dos aspectos desse avanço; o jornal será daí em diante,
empresa capitalista, de maior ou menor porte. O jornal como empreendimento individual,
como aventura isolada, vai desaparecendo nas grandes cidades. Será relegado ao interior,
onde sobreviverá, como tal, até os nossos dias. Uma das conseqüências imediatas dessa
transição é a redução no número de periódicos. Por outro lado, as empresas jornalísticas
começam a firmar sua estrutura, de sorte que é reduzido o aparecimento de novas empresas.
Acontece ainda, particularmente nas fases de inquietação política – as sucessões presidenciais
principalmente mas em dimensões muito mais reduzidas do que no século XIX. É agora
muito mais fácil comprar um jornal do que fundar um jornal; e é ainda mais prático comprar a
opinião do jornal do que comprar o jornal
67
.
No início do século, procurava-se construir o Rio de Janeiro como capital de uma nova
institucionalidade: a República. Igualando-a a uma idéia chave de progresso, o novo
67
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed., Rio de Janeiro, Mauad, 1999, p. 275 e 276.
61
significava a reafirmação dos valores da classe dominante, onde a restauração era a palavra
chave. Negando o atraso colonial, criava-se uma polaridade que opunha Império à República
e Unidade à Progresso, identificando-se o último conceito a idéia de Ordem. Construía-se
ética positiva do trabalho, higienava-se a sociedade, urbanizava-se, para ser civilizado.
Construía-se o Rio como capital do Progresso e, dessa forma, como capital da República.
Neste Rio de Janeiro, capital de uma República com um simbolismo e uma
especificidade extremamente peculiares, a imprensa cumpria o papel indispensável de unificar
o discurso dominante, tornando-o legível para os demais grupos sociais. Nesse sentido, alguns
jornais mais importantes, mesmo seguindo linhas editoriais diversas ou sendo claramente
adversários, igualavam-se na difusão de uma ideologia a do progresso fomentando, ao
mesmo tempo, o processo de disciplinarização.
Parte da imprensa condenava o mestre de obra, a serenata, fazia eco contra as favelas,
os quiosques, desaprovava as carroças e carrinhos de mão, os restaurantes populares e os cães
vadios. Também criticava aqueles que, sem motivo, estivessem nas vias públicas, fossem
adultos ou crianças. Longas campanhas em favor da caça aos mendigos, visando a eliminação
de ébrios, pedintes, indigentes e prostitutas nas áreas centrais da cidade, tomavam conta
dessas publicações
68
.
Ao elaborar suas mensagens os jornais criavam uma auto-identidade que se percebia
como uma auto-construção. Para afirmação dessa institucionalidade era preciso criar discursos
válidos que afirmassem a nova ordem, mas também legislasse sobre ela. Aos discursos
médico-higienista, jurídico, político, deve-se agregar como básico o da imprensa, que passa a
aliar ao texto impresso à veracidade da fotografia e à crítica das caricaturas ou à “reprodução”
68
BARBOSA, M., op. cit., p.30.
62
da realidade contidas nas ilustrações. Promovendo campanhas, esses periódicos unificavam os
vários discursos da sociedade, em busca de um ideal de progresso e civilização
69
.
A imagem do poder também estava presente nos textos impressos, difundindo muitas
vezes uma idéia de eficiência. Por outro lado, fazer-se compreender era fundamental para os
grupos dominantes. E para isso não bastava a imposição de normas sociais nas ruas: era
preciso um discurso que unificasse normas, padrões e valores a serem incutidos ou
disseminados. E a imprensa buscava cumprir essa missão.
Esse sistema de comunicação – que constituíram os jornais diários da cidade – possuía
um importante papel na formação de um discurso unificado, onde se inclui a definição da
idéia de nação sob a ótica das normas urbanas. É dessa forma que devem ser entendidos os
textos dominantes nos jornais sobre modernização, higienização, nacionalismo, patriotismo,
entre outros temas, onde se interpretava o desenvolvimento sob a perspectiva da ordem e do
progresso que leva adiante o poder
70
.
Na virada do século há na sociedade uma nova forma de se fazer jornal e os periódicos
assumem um novo papel na sociedade. A imprensa busca uma nova configuração em
fórmulas editoriais e políticas e participa então do jogo de poder e prestígio necessário à
conquista de novos leitores.
Criava-se um novo jornalismo, que teve profundas repercussões junto à sociedade e
junto ao grupo que diretamente participava desse processo: os jornalistas.
Esse novo jornalismo fez mudanças no padrão editorial, onde o artigo de fundo a
então tinha o maior destaque. Agora os textos pretendiam, sobretudo, informar com isenção,
69
Idem, ibidem, p. 11.
70
Idem, ibidem, p.11
63
neutralidade, imparcialidade e veracidade, sobre a realidade construída no dia-a-dia dessas
publicações. Foi um período de transição para a imprensa também.
O processo de modernização, ocorrido nas últimas décadas do século XIX, permitiu
que novos grupos fossem introduzidos nesse verdadeiro império das letras existentes na
cidade. Com o crescimento de três setores a educação, o jornalismo e a diplomacia
assiste-se à introdução de outras formas de normatização e à inclusão de processos
ordenadores para redefinir a face urbana desses espaços. Com isso, a imprensa se constitui na
mais notória e abrangente ampliação letrada dessa modernização. Com ela, formam-se os
novos leitores, consumidores potenciais de jornais e revistas, que se disseminam a partir de
então.
A edição ganhava um novo caráter: o sentido de ordenar a sociedade. Os jornais
diários possuíam a função indispensável de disseminar normas e comportamentos
padronizados junto às camadas letradas e também junto às não letradas da população. Como
uma teia a palavra impressa traçava suas ramificações, formando conceitos, difundindo-os,
enfim, normatizando a própria sociedade.
No momento em que se dava também a efetiva ampliação da cidade letrada no
processo de modernização do Rio de Janeiro mesmo considerando-se o grande número de
analfabetos pode-se perceber que a palavra impressa era capaz de influenciar não apenas os
grupos dominantes, mas também os excluídos da sociedade. A cidade era o receptáculo das
fontes européias, a partir das quais se constituía a sociedade civilizada. Através da educação
pelas letras valorizada ao extremo transformava-se o território selvagem” em urbano e
civilizado, impondo-se novas normas. Nesse sentido, as instituições, dominadas por esses
letrados, eram os instrumentos obrigatórios para o estabelecimento e conservação da ordem.
64
Passando a ter um teor de verdade, a palavra impressa se igualava às leis, às normas,
aos regulamentos que, também impressos, eram elementos ordenadores da sociedade. Dessa
forma, o que vinha impresso nos jornais se identificava com a verdade e ganhava, em
conseqüência, muitas vezes o poder libertador.
Neste período verifica-se a formação de uma língua oficial, que reproduzia uma nova
forma de pensar a sociedade, e os jornais participavam, assim como a escola, do processo de
elaboração, legitimação, imposição e difusão de uma língua oficial, enquanto instituições.
Reforçamos aqui que o fato de produzir esse discurso confere à imprensa o exercício de um
poder sobre a língua e sobre os que a utilizam.
Da mesma forma, o corpo de profissionais que produz e monopoliza o uso legítimo da
língua onde se inserem os jornalistas de forma ampla merece uma distinção nas relações
entre as classes
71
.
Oriundo em grande número das faculdades de Direito, esse profissional que iria ocupar
cargos de prestígio ou simplesmente ser redator e repórter nos jornais diário, fazia na maioria
das vezes da profissão um patamar para alcançar posições políticas ou situações de
estabilidade financeira, participando da burocracia estatal. Ser repórter e ser redator era,
sobretudo, através do prestígio que o lugar conferia e das relações que possibilitava, “cavar”
um cargo público ou ingressar na política e na diplomacia.
Na verdade, nas redações existiam três grupos claramente distintos: os jovens
estudantes que ocupavam cargos subalternos na hierarquia dessas empresas, sendo
inicialmente revisores, repórteres policiais e passando a seguir a repórteres especializados; o
secretário, subsecretário e redatores; e os colaboradores.
71
Idem, ibidem, p.8.
65
Os que ocupavam cargos superiores nessa hierarquia secretários e redatores eram
geralmente ao mais experientes na profissão. Já os colaboradores podiam ser políticos ou
profissionais liberais que, através dos artigos publicados, procuravam alcançar a notoriedade
almejada. Assim, era comum nas empresas jornalísticas a colaboração gratuita de deputados,
senadores, médicos, advogados, juízes e outros, que faziam do jornal um meio de divulgação
pessoal. Não se pode esquecer também os literatos mais famosos.
A figura do repórter é produto das mudanças que ocorreram nos jornais a partir de
1880. Com a separação do trabalho, tanto a nível industrial, quanto intelectual nas redações,
a delimitação de tarefas, criando-se uma divisão entre redatores e repórteres. Tanto no
primeiro caso, quanto no segundo há uma especialização.
De 1900 em diante, os jornais tomaram um caráter menos doutrinário, sacrificando os
artigos em favor do noticiário e da reportagem. Facultando trabalho aos intelectuais, aos
escritores, pediam cada vez menos colaboração literária crônicas, contos e versos e cada
vez mais reportagem, noticiário, trabalho de redação.
Outra questão que precisa ser mais bem compreendida é a da absorção dos homens de
letras pelos jornais. Esses literatos, se por um lado, pretendiam assim aumentar o seu poder de
ação social sobre as camadas urbanas, por outro lado, ao vender o produto de seu trabalho ao
periódico, ganhavam notoriedade e participavam igualmente do jogo de manipulação e poder
que esses jornais ofereciam.
Na verdade, ao fazerem da pena um meio de vida, de projeção e de conquista do
poder, utilizando muitas das vezes em proveito próprio, esse grupo, que constituía o circuito
literário da cidade, instituía instrumentos essenciais para estabelecer a ordem e conservá-la,
através da normatização dos comportamentos.
66
O desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos, onde se inclui o
jornalismo – área de atuação de intelectuais que ainda não encontraram seu lugar na política e
nas profissões liberais ou que acharam em função do prestígio que conferia trabalhar nesta
profissão – é paralelo ao processo de diversidade do público.
Ser jornalista era, pois, uma marca distintiva emblemática que, ao mesmo tempo,
conferia a esses agentes o poder da nomeação, imposição de uma visão de mundo, que atua
conferindo poder
72
.
Assim, os estudantes ou jovens recém-saídos das escolas superiores, a maioria das
vezes a Faculdade de Direito, buscavam se tornar jornalistas. Essa aspiração era, na verdade,
uma estratégia prática e simbólica, cujo ganho era a própria nomeação. Muitos desses
profissionais – os que exerciam com distinção profissões liberais – chegavam mesmo a
trabalhar sem qualquer remuneração nesses periódicos, em nome de ocupar uma posição de
prestígio.
Com a função de normatizar, de divulgar as idéias dominantes, os jornalistas criavam
e desenvolviam as necessidades do público, transformado filosoficamente em leitores e vistos,
a partir do estabelecimento dos jornais como empresas, também como elementos de natureza
econômica.
Cooptados pelas classes dominantes, esses intelectuais produziam uma mensagem
visando a criação de um consenso, cujo fim último era perpetuar a dominação da classe.
Exemplares, nesse sentido, são as campanhas e as mensagens veiculadas pelos diferentes
jornais. Muitas vezes com linhas editoriais diferentes e públicos aparentemente diversos, os
diários possuíam uma identidade de conteúdo de suas mensagens.
.Cf. BOURDIE, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 146-153.
67
É possível distinguir, em relação a esses produtores de bens simbólicos, dois tipos
distintos: o jornalista que buscava no jornal a possibilidade de ascensão na escala social de
forma a conquistar o seu lugar na política ou que dividia a profissão com uma outra liberal,
fazendo do jornalismo o lugar do reconhecimento e uma boêmia literária, onde se incluem os
escritores consagrados ou não, e que virão na profissão a possibilidade de alcançar
notoriedade, se afirmando enquanto literatos. que considerar ainda o grupo dos dirigentes
desses jornais.
Mas o era apenas a capacidade de informar que se passava no mundo que dava a
esses veículos o seu poder. O fato de ser capaz de transmitir a informação, ou seja, uma
capacidade de saber, ao mesmo tempo em que produzia uma língua legítima, no sentido de
reconhecida, conferia igualmente essa aura simbólica. Produzindo um discurso digno de ser
aplicado, isto é, oficializado, aumentavam ainda mais sua área de atuação de poder.
Na virada do século, a imagem transformada em letras impressas nos jornais oferecia
ao meio social uma representação adequada da verdade. As diferenças entre ficção impressa e
as suas relações com o acontecimento passam a ser extremamente tênues. Para que a narrativa
fosse acreditada como verídica multiplicavam-se as provas de sua autenticidade. Nos diários
eram os boletins fixados à porta ou à própria notícia transformada em letras impressas. Nas
revistas eram, sobretudo, as imagens transfiguradas em fotografias.
O jornal passa a ser usado como arma polêmica e também através das novas técnicas
tentava se popularizar. Popularizar significava valorizar o grotesco, o violento, as matérias
policiais. Essa valorização, muitas vezes levada ao extremo, fazia com que os fatos policiais,
as tragédias do cotidiano, as catástrofes fossem, de fato, o assunto principal. Popularizar
significava se transformar também no intermediário entre público leitor e o poder.
68
Cria-se um novo jornalismo, com profundas repercussões na sociedade e junto aos
grupos que participavam mais diretamente desse processo. Essa nova fórmula editorial incluía
edições de notícias policiais, que passavam a tomar mais e mais os espaços dos periódicos, até
mesmo na primeira página, a então destinada aos assuntos políticos, de reportagens, de
entrevistas. O artigo de fundo perde terreno para as crônicas e para a crítica literária que
ocupam lugar de destaque nas primeiras ginas dos diários. A cnica introduziu novas
máquinas de compor, de imprimir e, posteriormente, de escrever e fotografar.
Os jornais mudam o seu conteúdo, a forma como editavam as notícias e o teor das
informações. A foto publicada ao lado do texto procurava dar tom de veracidade e, ao mesmo
tempo, construir uma das representações possíveis dessa sociedade.
As novas técnicas de impressão e edição tinham permitido o barateamento extremo da
imprensa. O acabamento mais apurado e o tratamento literário e simples das matérias fizeram
com que seu consumo cotidiano pelas camadas alfabetizadas se tornasse obrigatório. Cria-se
uma verdadeira “opinião pública” urbana, que ansiava pela orientação dos homens de letras
que preenchiam as redações.
Esses intelectuais, por outro lado, vendo seu poder de ação social aumentado,
ansiavam por levá-lo às últimas conseqüências, desejando exercer uma tutela sobre extensa
faixa de público, o que se traduziria em poder de fato
73
.
A imagem mitificada que a imprensa passou a ter para o público leitor, fazia com que
a profissão de jornalista se transformasse em um verdadeiro mito social. Nesse contexto, o
jornalista era associado a múltiplas interpretações: podia ser o interlocutor privilegiado, o
intermediário eficaz, o polemista demolidor, assumindo ora a faceta de conspirador, ora
imagem de salvador. Independente da posição de classe que ocupavam muitos eram
73
BARBOSA, M.. op. cit.,p. 85.
69
advogados –esses jornalistas que estavam no comando das empresas jornalísticas havia
identidades entre eles no que se refere à condição de classe eram praticamente todos
originários de famílias bem sucedidas economicamente, de origem agrária ou urbana.
A imagem construída do jornalismo e dos jornalistas ganha, pois, o contorno de um
verdadeiro mito político. A introdução de um novo jornalismo significou a conquista de um
público mais amplo.
As mudanças desses periódicos devem ser também entendidas como uma fórmula
adotada para participar de um processo mais amplo de modernização da sociedade, com todas
as suas decorrências. Ao inserir e ao difundir esses mitos, os veículos aumentavam a sua
identidade com os grupos que pretendiam ou efetivamente representavam.
Ao pensar as mudanças gráficas e editoriais desses jornais – onde se destaca a inclusão
de grandes ilustrações e fotografias, a criação das manchetes de página, a diminuição das
entrevistas, os destaques às reportagens, notadamente as de caráter sensacionalista; o
isolamento dos textos opinativos dos informativos, entre outros – tentaremos buscar entender,
ao mesmo tempo, o sentido dessas inovações. Era o momento em que os diários cariocas se
constituíam como empresas jornalísticas.
Expressar opiniões e formular conceitos era possuir, de fato, um poder. Através das
letras impressas transformadas em verdades inquestionáveis, esses veículos eram
propagadores de idéias, formadores de consenso em torno dessas mesmas idéias.
Tal como o advogado, o jornalista procura agir como árbitro das questões políticas.
Para isso assumia o papel de denunciador. A sua tribuna era o jornal e a audiência o público
leitor.
70
Os jornais se constituem em verdadeiras fábricas de notícias e passam, junto com
outras instituições da sociedade civil, a formular e sedimentar ideologias. Entre essas
construções destacam-se as próprias considerações em torno da visão do jornalismo na
sociedade carioca e da imprensa.
Construindo-se como lugar da imparcialidade, da neutralidade, os jornais serão a
própria extensão da verdade, na medida em que representavam a sociedade. O que vinha
impresso em suas páginas se transformava, a priori, em documento
74
.
No Rio de Janeiro, o jornalismo passou, pois, por um momento de muita
transformação. Do ponto de vista da impressão, as inovações cnicas permitiram a
reprodução de ilustrações e fotos e uma maior rapidez no processo de produção. Do ponto de
vista editorial, os jornais mudaram o teor das notícias publicadas e a forma como estas eram
distribuídas nas páginas. A valorização do caráter imparcial do periódico levou a criação de
colunas fixas para a informação e para a opinião, ao mesmo tempo em que se privilegiou a
edição de notícias informativas, em detrimento da opinião. O artigo de fundo passou a ter um
lugar determinado, não se confundindo com as colunas informativas.
O que vinha escrito nos jornais passava a ser identificado com a verdade, servindo
como prova. Mas não era apenas essa a representação simbólica da palavra impressa. A
imagem transformada em letras oferecia ao meio social uma identificação com a
imparcialidade, com a objetividade, com a neutralidade. Por outro lado, esses periódicos se
autoconstruíam como uma instância de intermediação entre o público leitor e a sociedade
política.
74
BARBOSA, M.. op. cit., p. 34.
71
Através da técnica, o jornal procurava atingir um maior número de leitores. Passaram
então a valorizar o grotesco, o violento, as notícias policiais. Essa valorização, levada ao
extremo, fazia com que esses temas fossem os assuntos principais.
Paralelamente, que se considerar a representatividade que essa imprensa passou a
ter no imaginário popular. Expressar conceitos e opiniões era, de fato, possuir poder. Assim,
através do que imprimiam transformando em verdade inquestionável esses veículos
seriam, sobretudo, propagadores de idéias e formadores de consenso em torno dessas mesmas
idéias.
Ficção e realidade se misturaram no início da República. Tanto num domínio, como
no outro, a evidência de que os jornalistas fossem eles dirigentes ou o possuíam um
capital simbólico suficientemente expressivo para participar do jogo de poder, permitiam a
imprensa ocupar esse lugar de criadora de uma realidade.
O jornalista como um produtor de bens simbólicos encarnava a pessoa do “criador”,
produzindo uma originalidade que enfocava principalmente a vida social. Produtor de
mensagens para a “pessoa do leitor”, transformava-se num verdadeiro formador de conceitos,
normas e padrões permitidos e cuja vulgarização era necessária.
3.1 - JORNAL DO COMMERCIO: UMA VISÃO CONSERVADORA
Jornal carioca, diário, fundado em de Outubro de 1827 por Pierre René François
Plancher de La Noé. Mantendo em seu título a grafia original Jornal do Commercio, é um dos
mais antigos órgãos de imprensa da América Latina ainda em atividade. Durante toda sua
72
existência, pautou-se por uma orientação conservadora tendo como traço marcante o apoio a
todos os governos (do Império à República).
No início, mesmo sendo uma empresa sólida e de prestígio, tinha uma tiragem
pequena, em torno de 15 mil exemplares. Era lido apenas pela elite econômica e cultural:
comerciantes, alta administração, aristocracia cafeeira etc.
Quando do lançamento do Jornal do Commercio, Plancher restringiu-se aos assuntos
comerciais, econômicos e marítimos (noticiando as chegadas e saídas de navios, compras e
vendas de escravos etc.). Com quatro páginas de 21cm de largura por 30cm de altura em nota
de 17 linhas, o novo órgão informava na primeira página:
“Esta folha exclusivamente dedicada aos senhores negociantes conterá
diariamente tudo o que diz respeito ao comércio, tanto em anúncios, como
em preços correntes exatos de importação e exportação, entrada e saída de
embarcações etc.”
Pierre Plancher – um bonapartista fervoroso exilara-se da França, fugindo da
Restauração. Em Paris, tinha sido dono de uma editora, que publicava as obras de Benjamin
Constant, Voltaire, Chateaubriand de Talleyrand e outros. No Brasil, abriu uma livraria na
Rua do Ouvidor e começou a editar algumas obras. Em 1824, fundou um pequeno jornal, o
Spectador Brasileiro, que durou até 1827, ano do aparecimento do Jornal do Commercio
75
.
Um ano após seu aparecimento, entretanto, Plancher resolveu imprimir ao JC uma
orientação mais ampla, incluindo na sua cobertura os assuntos de política e literatura.
Plancher trouxe de seu país a técnica e a experiência jornalística, fixando padrões de
75
RIBEIRO, Ana Paula Goulart, op. cit., p. 86.
73
qualidade a serem adotados por toda a imprensa. O jornal foi mais de 60 anos dirigido por
franceses, que experimentavam aqui, quase simultaneamente, todos os processos inventados
em Paris
76
.
O Jornal do Commercio passou por algumas administrações até que em 1890 o jornal
foi vendido a José Carlos Rodrigues, considerado um dos homens mais poderosos no início
da República. Nova orientação foi dada ao jornal: as seções foram ampliadas, dilatou-se o
noticiário, com o intuito de torná-lo mais abrangente, sem deixar de ser “o verdadeiro
defensor das classes conservadoras do Brasil”
77
. Após 25 anos, J. C. Rodrigues vendeu o
jornal a um antigo auxiliar da empresa, o comendador Antônio F. Botelho.
As inovações técnicas também foram marcantes a partir de então. Ainda na década de
1890 é o primeiro jornal no Brasil a importar máquinas linotipos e um dos pioneiros da
América do Sul a utilizar uma rotativa, o que representou uma maior rapidez o processo de
produção.
No início do século possuíam três quinas impressoras Marinoni, capazes de
imprimir de uma única vez entre oito e 16 páginas, num total de 10 mil exemplares por hora.
Havia ainda duas máquinas menores que podiam imprimir duas ou quatro páginas, com
tiragem de 12 mil exemplares por hora. A oficina de obras possuía sete quinas. O jornal
tinha ainda uma oficina para fundir, uma para laminar o fio, outra para laminar entrelinhas e a
última para cortar espaços de corpo 5 a 14
78
.
Nas primeiras cadas do culo XX, embora se modernizasse em termos de
equipamento gráfico e estrutura empresarial, o jornal não mudou seu conteúdo e não adotou
76
BARROS, Antônio T. M. A contribuição da Ciência da Administração no desenvolvimento do jornal-
empresa. Niterói, Tese de livre docência, IACS,/UFF,1975, p.10.
77
Jornal do Commercio. Edição comemorativa do primeiro centenário do Jornal do Commercio. Rio de
Janeiro,1928, p.632.
78
BARBOSA, M. Op. cit., p.56.
74
as inovações de outros impressos, como o uso de gravuras ou o noticiário de esportes. Ao
iniciar-se os anos 1900, o Jornal do Commercio havia introduzido algumas modificações,
sem, entretanto, abandonar o estilo eminentemente opinativo, com uma mancha gráfica que
ocupava toda a sua extensão, sem a valorização da ilustração ou outros recursos gráficos. Era
editado em 8 colunas, com 272 linhas em cada uma e invariavelmente em corpo 7.
Sem a pretensão de ser um jornal popular, o Jornal do Commercio fazendo questão de
acentuar o seu trânsito entre a classe dominante orgulhava-se de ser “o jornal das classes
conservadoras, lido pelos políticos, pelos homens de negócios, pelos funcionários graduados”
era o periódico mais caro do Rio de Janeiro
79
.Isso, entretanto, não invalidava a estratégia
empresarial de fornecer brindes aos seus assinantes.
Na primeira página publicavam, habitualmente, os Telegramas, reproduzindo as
notícias divulgadas pela Agência Havas e por seus correspondentes nacionais e
internacionais (possuíam correspondentes em Paris, Lisboa, Roma, Buenos Aires, além de
outros locais da Europa e da América); a Gazetilha, coletânea das notícias mais
importantes do dia, e o Folhetim, que ocupava todo o rodapé desta página. Na Gazetilha
dava igual destaque às notícias nacionais as mais diversas, enviadas pelos correspondentes,
às notas teatrais e a um ou outro caso de polícia. Ao contrário dos periódicos mais
populares da cidade, não destacava os dramas cotidianos, os crimes passionais, as
tragédias diárias. O noticiário policial era introduzido invariavelmente com um pequeno
título em corpo 12, onde resumia em uma palavra, o tema principal da notícia.
Em 1900, passaram a editar pequenos anúncios na primeira página, sob o título
Avisos Especiais. Introduziram também uma nova coluna Hontem, onde reproduziam o
79
Ao considerarmos o Jornal do Commercio como um periódico conservador, estamos nos referindo não apenas
a sua recusa em adotar inovações gráficas e editoriais, revolucionárias na época, como as caricaturas e
fotografias, a ênfase ao texto mais informativo, entre tantas outras, mas também ao fato de estar sempre alinhado
com os grupos que estavam no poder, jamais abandonando essa postura.
75
resumo das principais notícias internacionais e nacionais, que podiam ou não ser
complementadas na Gazetilha ou nos Telegramas.
As habituais 10 páginas do jornal eram compostas ainda pelas seguintes seções:
Várias Notícias, seção onde se destacavam pequenas notas de cunho político e de grande
popularidade, as Notas de Sciencia, de Arte e de Lazer, de Teatro e Música, o Sport,
Associações, Notícias Religiosas, Revista dos Estados, Parte Judiciária, Conselho
Municipal e os Atos Oficiais da Prefeitura e da Brigada Policial. Publicavam ainda as
notícias e notas de interesse do poder ou que eram pagas previamente na sua coluna mais
polêmica: Publicações a Pedido.
Propriedade da firma Rodrigues & Cia., o Jornal do Commercio cresceu, mas
manteve seu estilo vindo do Império, conservando o grande formato cm dez a 12 páginas
de 73cm de altura por 54cm de largura maior que a altura de alguns jornais de hoje -,
colunas bem mais largas do que as atuais matérias de grande extensão. Lido por homens
de negócio, políticos, altos funcionários e a elite carioca, tratava-se então de empresa
sólida, prestigiosa, com redação à Rua do Ouvidor, número 95. A influência do jornal
cresceu ainda mais durante o governo de Campos Sales. Neste período, o jornalista Tobias
Monteiro, que representou o jornal na viagem que o presidente da República fez à Europa,
acabou por tornar-se seu secretário.
Quando da abertura da Avenida Central em 1904, o prefeito Pereira Passos insistiu
com José Carlos Rodrigues, então na direção do jornal, para que o Jornal do Commercio
mudasse de endereço, que fosse para a “nova artéria” assim chamada a Avenida Central
quando da inauguração. O prefeito então reservou para a empresa um terreno na esquina
da rua do Ouvidor, onde Rodrigues ergueu um imponente prédio de seis andares,
inaugurado a 1º de outubro de 1908.
76
Em 1909 a empresa lançou uma edição vespertina, o Jornal da Tarde.
Se por um lado, não houve grandes mudanças editoriais no mais tradicional
periódico, as seções e colunas, introduzidas em profusão, permitiram a explosão das
pequenas notícias, tornando-o mais cil de ser lido. Por outro lado, o jornal passou tal
como os seus concorrentes – a valorizar as reportagens
80
.
3.2 - CORREIO DA MANHÃ: NASCE UM JORNAL DE OPOSIÇÃO
O primeiro número do Correio da Manhã circulou em 15 de Junho de 1901, um
sábado. O mais novo matutino carioca surgiu num momento em que o Brasil encontrava-se
mergulhado em problemas herdados de um passado colonial, com uma economia incipiente e
a maior parte da sua renda no exterior. Ele surge embalado pela febre da modernização e de
mudanças de natureza empresarial e editorial que tomavam conta do jornalismo. Fundado por
Edmundo Bittencourt, caracterizou-se, desde o início, como um jornal de oposição
extremamente virulento.
A galeria das personalidades mais conhecidas no jornalismo era, de modo geral, a
mesma das personalidades mais conhecidas da política e da literatura. Companheiro de
escritório de Rui Barbosa, seu colaborador em A IMPRENSA e correligionário da Campanha
Civilista, Edmundo Bittencourt levou para o Correio da Manhã nomes como Medeiros e
Albuquerque, Carlos de Laet, José Veríssimo, Alberto de Oliveira, Leão Veloso, Afonso
Celso, Coelho Neto, Evaristo de Morais e Artur Azevedo. Na época, governava o país o
Presidente Campos Sales.
80
BARBOSA, M., op. cit., p.60.
77
O Correio da Manhã surgia num momento em que o jornalismo carioca era acusado
de estar, quase todo, a serviço do governo, sem independência e sem voz. Freqüentes
denúncias de suborno, além de uma subvenção regular, paga com dinheiro blico, afetavam
e comprometiam grandes jornais. A posição do Correio da Manhã era contra as oligarquias,
contra as forças governamentais que se distanciavam dos direitos do povo. Naquele 15 de
junho DE 1901 o editorial de Edmundo Bittencourt : Compromisso com a verdade / Um
jornal de opinião” , dizia a que vinha:
“Poucas palavras e muita sinceridade, porque desta coluna estamos
escrevendo para o povo.
O Correio da Manhã não tem nem terá jamais ligação alguma com partidos
políticos.
(...) jornal que propõe, e quer deveras defender a causa do povo, do
comercio e da lavoura, entre nós, o pode ser um jornal neutro. de,
forçosamente, ser um jornal de opinião e, neste sentido, uma folha política.
(...) Mas desta política, desapaixonada e nobre, uma imprensa
francamente independente pode se ocupar.
(...) O povo está cansado, o povo sente que lhe ocultam a verdade, e que
transformam até seus clamores em uma antífona sacrílega de aplausos. O
povo quer a verdade, ele compreende que ela salva e redime, embora às
vezes fira. E hoje. Mágoa é dizê-lo, todo o programa de um jornal, sincero e
independente, pelo qual o povo anela, se pode resumir nestas palavras:
dizer a verdade.
É para dizê-la que aqui estamos”.
78
De fato, declarando-se isento de qualquer tipo de compromisso partidário, o Correio
da Man apresentou-se como o defensor “da causa da justiça, da lavoura e do comércio, isto
é, do direito do povo, de seu bem-estar e de suas liberdades”. Em outro nível, o jornal causou
grande impacto por sua independência da situação, vindo “romper com os louvores de
Campos Sales”, então presidente da República. Finalmente outra característica do Correio da
Manhã no momento de sua fundação foi a sua aproximação com as camadas menos
favorecidas da sociedade
81
.
A primeira campanha levada a efeito pelo jornal foi contra o aumento no preço das
passagens dos bondes da Companhia São Cristóvão, o que traduzia esse interesse pelo direito
da população menos favorecida. Desde o primeiro número, o Correio fez também campanha
contra os jogos de azar e denunciou os funcionários públicos que extorquiam dinheiro dos
comerciantes. Além disso, o jornal também dava destaque em suas ginas às passeatas e
movimentos coletivos.
O oposicionismo do Correio da Manhã foi visto pelo próprio jornal em edições
comemorativas posteriores como o “Combate ao controle do poder pelas oligarquias que
tentaram durante a Primeira República deter o país num estágio agrícola de produtor e
exportador de matérias-primas e importador de manufaturas”
82
.
O Correio revolucionou o jornalismo ao valorizar a informação em detrimento da
opinião. As notícias policiais, o cotidiano dos grupos populares, as reportagens, as entrevistas
assumem um lugar de destaque. Por outro lado passou, a valorizar mais a crônica, ligada a
temas do cotidiano, do que o próprio folhetim - romance em forma de fragmentos -, impresso
no rodapé de uma página de seu interior.
81
ABREU, Alzira A. de (coordenação)... (et al.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-30.Ed.
FGV;CPDOC, RJ,2001,p.1625.
82
Idem, ibidem, p. 1626.
79
Seu primeiro número tinha seis páginas: três de notícias e três de anúncios. Com uma
tiragem de cerca de 30 mil exemplares e grande popularidade entre seus leitores, o Correio da
Manhã firmou-se como um dos maiores matutinos cariocas do início do século. Seu público,
no início, era composto por representantes da pequena burguesia urbana, basicamente pelo
escalão médio da administração, por militares, comerciantes, professores e donos de pequenas
empresas.
A redação era na antiga Rua Moreira César 117 (a atual Rua do Ouvidor), no Centro
do Rio. Passou depois pelo Largo da Carioca 13, até chegar a seu endereço definitivo, na
Gomes Freire 471.
O novo matutino era impresso inicialmente em oito páginas, com oito colunas em cada
uma. A primeira continha sempre o artigo de fundo, de cunho opinativo, sobre política,
literatura ou economia. As outras colunas eram A Política, assinada por Gil Vidal, o
pseudônimo do advogado Leão Veloso Filho, ex-redator do Jornal do Brasil e agora, redator-
chefe do novo periódico; Hontem, tratando do dia-a-dia do presidente da República, além de
reportagens-denúncias. A segunda gina trazia os artigos policiais, os telegramas com o
noticiário internacional e o Correio do Theatro. A terceira era dividida entre as informações
sociais, militares e acadêmicas (na coluna Vida Acadêmica). a quarta página trazia
informações sobre o comércio, as finanças e o esporte. Enquanto que as outras quatro páginas
restantes eram ocupadas por anúncios.
As estratégias editoriais, redacionais e administrativas do Correio da Manhã para se
tornar um jornal popular atravessaram toda a primeira cada do culo e revolucionaram o
jornalismo de até então. Ainda no primeiro mês de funcionamento, adicionaram às seções
existentes, Vida Acadêmica, uma coluna destinada a dar informações mais completas sobre o
movimento da academia, e Vida Operária, tratando de fatos das associações de trabalhadores.
80
Nesse mesmo mês já haviam iniciado Pelos Subúrbios, publicando notas diversas sobre os
bairros servidos pela Estação Ferroviária Central do Brasil e arredores e seus moradores,
iniciando uma prática que será também comum no periódico: inserir as reclamações dos
leitores
83
.
A coluna Pelos Desprotegidos, iniciada em 13 de agosto de 1901, trazia além de cartas
avulsas de leitores, algumas assinadas e outras o, editava-se as queixas dos habitantes da
cidade, recebidas pessoalmente ou por carta, intermediando assim pedidos ao poder público.
O Correio da Manhã procurava noticiar o apenas os fatos políticos e policiais de
última hora, mas também as grandes festas populares e os acontecimentos cotidianos da
cidade, como por exemplos: durante todo o mês de fevereiro abria a coluna Momo para
descrever amplamente o carnaval carioca; as freqüentes inundações causadas pelas chuvas de
verão; as pequenas e grandes tragédias eram valorizadas em seu noticiário; no mês de outubro
publicava com detalhes informações sobre a Festa da Penha; em novembro abria espaço nas
primeiras páginas para noticiar a “romaria” aos cemitérios da cidade, entre outros eventos.
Mas o era a vida da cidade do Rio de Janeiro que ganhava espaço em suas
páginas. Em dezembro de 1901 foi inaugurada a seção Pelo Telégrafo, para publicar
informações do Brasil e do mundo. E anunciavam que as informações telegráficas e
internacionais iam ser “da mais completa perfeição”. Com isso, “(...)os nosso leitores ficarão
assim a par de todo movimento nas grandes capitais e conhecedores das modificações que se
dão na política internacional”
84
.
Não só no ponto de vista redacional pode-se perceber as inovações introduzidas com a
intenção de se conquistar novos leitores e aumentar a comercialização dos espaços
83
BARBOSA, M. , op.cit.,p.39.
84
Correio da Manhã, 2 jan.1902, p.1.
81
publicitários, mas também no que diz respeito ao aspecto gráfico as mudanças se tornam
evidentes já no primeiro ano do jornal.
“O material tipográfico será completamente transformado à fim de que o
Correio da Manhã em todos os pontos corresponda às exigências de um
jornal moderno, cuidando também com apuro da parte estética”
85
.
Essas inovações não foram observadas no uso de uma tipologia mais rebuscada,
mas ainda no ano de 1902, o Correio da Manhã começara a publicar as primeiras fotos na
capa e em seu interior. A ilustração passava a integrar a própria notícia com a publicação de
fotografias retratando ainda melhor as matérias. A primeira fotografia fora publicada na
coluna Correio dos Teatros, em 30 de novembro.
Anunciando cada uma dessas transformações que o levaria a ser “um órgão de
publicidade eminentemente moderno, leve, atraente, interessado e variado”, o jornal não
poupava esforços no sentido de conquistar mais leitores.
“Recentemente nosso diretor esteve na Europa estudando progressos da
imprensa do velho continente(...)recebemos material tipográfico, artístico
completo, que rivaliza com a das melhores folhas parisienses (...) e assim
vai o público pela primeira vez no Rio de Janeiro ver na imprensa diária,
ao mais lindos espécimes de caracteres ‘art noveau’, a última palavra em
material tipográfico europeu”
86
.
85
Correio da Manhã, 2 jan. 1902, p.1.
86
Correio da Manhã, 14 jun. 1901, p.1.
82
Todas essas transformações são ainda maiores a partir de 1905. Nesse ano, além de
publicar extensas reportagens, verdadeiras crônicas do cotidiano da cidade, abusava da
transcrição integral de documentos e deslocava a crônica literária para o lugar do artigo de
fundo. O Correio da Manhã passava a ser fundamentalmente um jornal informativo nos dias
de semana e literário aos domingo
87
.
Se as estratégias redacionais e editoriais introduzidas pelo mais novo matutino carioca
foram inúmeras, o menos numerosos foram os recursos administrativos e empresariais
utilizados para conquistar um público cada vez mais amplo e heterogêneo. Afinal, desde o
seu primeiro número o Correio da Manhã pretendia ser:
(...) uma folha livre que vai se consagrar com todo o ardor e
independência à causa da justiça, da lavoura e do comércio isto é, a
defesa dos direitos do povo, do seu bem estar e das suas liberdades”
88
.
O Correio da Manhã, fundado pelo advogado e ex-colaborador de Rui Barbosa,
Edmundo Bittencourt fora desde o início caracterizado como um jornal de oposição ao
Governo. E como jornal de oposição empreendeu uma virulenta campanha contra Campos
Sales - que esteve na presidência até 1902. Em função disso, teve sua publicação suspensa em
19 de novembro de 1904, só voltando a funcionar em 15 de dezembro do mesmo ano, mesmo
assim tendo que conviver diariamente com um censor na sua redação.
No que diz respeito a custos, o jornal era considerado um dos mais baratos da cidade,
custando o exemplar avulso 100 réis, e como o objetivo era conquistar cada vez mais leitores,
deveria ser um produto de venda cil. À política de venda barata do periódico, ao lado dos
87
BARBOSA, M., op. cit., p.40.
88
Correio da Manhã, 15 jun. 1901, p.1.
83
anúncios a preços reduzidos, somavam-se os brindes oferecidos pelo jornal em datas
especiais, como um livro no final do ano.
Assim, o Correio da Manhã que naquele 15 de junho de 1901 tirava três mil
exemplares da sua primeira edição numa velha máquina impressora, orgulhava-se, já em
1903, de imprimir 30 mil exemplares, que eram distribuídos pela Cidade, pelo Estado e por
outras unidades da federação.
O Correio era liberal, inovador e posicionava-se quase sempre a favor das medidas
em prol do saneamento e da modernização da Cidade do Rio de Janeiro, porém discordava
com freqüência das medidas adotadas pelos governantes para a realização das da
modernização. Em 1904, foi contra a vacinação obrigatória, “o monstruoso projeto” de
Oswaldo Cruz no governo de Rodrigues Alves. Reportagens, editoriais e charges
comparavam a medida sanitária a um meio de esmagar a liberdade individual.
“O governo arma-se desde agora para o golpe decisivo que pretende
desferir contra os direitos e liberdade dos cidadãos do país. A vacinação e
revacinação vão ser lei dentro em breve, não obstante o clamor levantado
de todos os pontos e que foi ecoar na Câmara dos Deputados através de
diversas representações assinadas por milhares de pessoas.
89
Essa atitude do Correio da Manhã diante da vacinação obrigatória refletia a posição
do jornal frente a um fenômeno mais amplo, o do desenvolvimento urbano-industrial do Rio
de Janeiro verificado sob o governo Rodrigues Alves. Assim como as medidas de
saneamento, a remodelação da cidade, iniciada em 1903 tendeu a atingir, sobretudo os setores
mais desfavorecidos da sociedade. Um artigo assinado por Gil Vidal chamava a atenção para
o fato de que, embora a vacinação conta à varíola fosse obrigatória para todos, “(...)o todo é
89
Correio da Manhã, 07 out. 1904.
84
composto por partes diferentes... Criado ou empregado de residência particular, empregado
de negociante, operário de fábrica, operário de oficina, são os casos em que a admissão no
emprego está condicionada à apresentação do atestado de vacina... Para os poderosos e
para os amigos do governo não haverá, entretanto, vacinação obrigatória.”.
Não se empolgou também com as solenidade comemorativas da inauguração da
Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, como mostra o editorial Luxo e Miséria”
90
, de
16 de novembro de 1905:
“(...) A inauguração, apesar do número de pessoas presentes, esteve fria.
(...) O povo, divorciado por completo das festanças e pagodes oficiais, não
teve uma aclamação, não teve um viva, para o presidente da República(...).
(...) O dinheiro do contribuinte foi esbanjado, foi desperdiçado em
indenizações vergonhosas em que abarrotou a advocacia administrativa,
foi distribuído em negociatas e arranjos. (...)”
Aproximadamente 10 anos após o aparecimento da sua primeira edição, o Correio da
Manhã havia mudado quase que por completo. Nos dias de semana, o artigo de fundo, crítico
e que colocava em destaque a campanha oposicionista do jornal no momento, ainda era
assinado por Leão Veloso Filho (redator-chefe que usava o pseudônimo Gil Vidal), mas era
por vezes substituído pelo Registro Literário, de Osório Duque Estrada. A política dominava
outras colunas, ao lado de Pingos e Respingos, escrita por Bastos Tigre, em substituição a
Antonio Sales, desde 1904. Na página dois, Pelo Telégrafo ocupava agora quatro colunas e
destacava as notícias de o Paulo ao lado de outras do exterior. N página três, notas do
90
Estaremos nos detendo ainda mais neste tipo de texto, para uma análise mais minuciosa, no capítulo 4 deste
nosso trabalho.
85
cotidiano, a Crônica Policial, que substituíra Pela Polícia e nas Ruas e o Correio dos Teatros.
Pelos Subúrbios passou a se chamar Correio Suburbano, ao lado de Reclamações, que não
sofrera alterações. Na página quatro a coluna Terra e Mar, com notícias do Exército, da
Marinha, do Corpo de Bombeiros e da Força Policial, dividia o espaço com as notas das
Associações e do Dia Social. Na seguinte, o Comércio, Vida Mineira, Notícias de Portugal e
Vida Acadêmica, que não havia mudado muito. Na sexta, os Avisos o Indicador, foi criado em
1903, e a Biblioteca do Correio da Manhã, onde reproduzia, sob a forma de livro, duas páginas
a serem recortadas de um romance/folhetim e que, ao final, se encadernadas, virariam uma
brochura tradicional. As quatro seguintes eram ocupadas com pequenos e grandes anúncios.
Invariavelmente, o jornal era editado com 10 páginas. Ressaltando que aos domingos ela era
impresso em 14 páginas e assumia uma feição mais literária
91
.
91
BARBOSA, M., op. cit.,p.43.
86
4- ANÁLISE
Neste momento nosso objetivo se volta para a análise dos textos publicados nos dois
grandes jornais que nos propomos a estudar, o Jornal do Commercio e o Correio da Manhã.
A análise podenos fazer perceber melhor o quanto a estrutura dos discursos e o contexto
pelo qual estavam sendo produzidos tais discurso estariam refletindo a realidade que cada um
dos jornais optou por construir.
Realizaremos a análise comparativa de dados, ou melhor, de textos, a fim de
identificarmos as diferentes posições que os dois jornais - propostos para estudos nesta
pesquisa - tomaram durante a inauguração da Avenida Central, no Rio de Janeiro em
novembro de 1905. Por serem jornais de grandes nomes no mercado jornalístico do período e
por adotarem posturas distintas diante do mesmo episódio (a inauguração da Avenida),
esperamos assim dar uma visão mais ampla de como a imprensa estaria contribuindo para a
construção de uma identidade para a sociedade da época.
Nessa direção, essa pesquisa nos aponta para uma centralidade que o papel da
linguagem e do discurso nos permitem a construção do social. Sendo assim, a linguagem não
é mais concebida como um meio transparente e neutro de representação da realidade mas, está
também articulada com nossos conhecimentos e compreensões do mundo social que,
necessariamente, se vinculam à própria forma como nomeamos esse mundo. Esse processo de
nomeação não significa mero reflexo da realidade que existiria “lá fora”; esse processo
produz, constitui e conforma o que chamamos de realidade. O discurso, nesse caso, constitui-
se em uma das formas de luta social em torno da construção e da imposição de significados
sobre o mundo.
87
Sob esse enfoque, seguindo Hall
92
, foi preocupação deste estudo mostrar que a
identidade nacional e social resulta e depende da carga de investimento e de identificação com
um ou outro conceito sobre o que pertence ao patrimônio cultural nacional do que seja ser
brasileiro/a nesta nação. Com isso, tivemos através das pesquisas feitas, nos jornais propostos
neste nosso estudo, a oportunidade de percebermos como os discursos conseguem transpor os
embates sociais. Sob esse enfoque, o significado constitui-se através do discurso
compreendido como um “lugar” de embates entre as formas de organização social e os
sistemas de signos para a produção desses, ou melhor, o significado constitui-se a partir da
interação entre os enunciados presentes em um determinado discurso e o contexto onde tal
enunciado fora produzido.
Buscamos com a análise dos discursos investir também na realização de uma análise
histórica das condições políticas de possibilidade dos discursos produzidos e postos em
circulação pela mídia imprensa.
Assim, é possível pensar que para que esses saberes postos em circulação pela
imprensa possam funcionar boas formas de descrever o Brasil, os brasileiros e as brasileiras, é
indispensável a adoção de algumas práticas de linguagem que os fazem operar positivamente
ou que os apresentam de determinado modo para que possam fazer sentido estando de acordo
com os valores de uma determinada época; bem como, são indispensáveis alguns processos de
legitimação social, para que eles atuem na formação de um consenso que, desse modo,
funcione como “verdade”.
Como já vimos, os dois jornais aqui propostos para estudos Jornal do Commercio e
Correio da Manhã seguiam linhas editoriais distintas. Enquanto o Jornal do Commercio
adotava um apoio ao governo o Correio da Manhã dizia-se o defensor dos mais fracos e
HALL, Stuard. Op. Cit, p.38.
88
oprimidos, dando voz à classe menos favorecida da sociedade. Partindo dessas premissas é
previsto então que encontremos discursos bem diferentes em cada um deles.
Acreditamos que a análise do discurso tem sentido se permite ao analista dar conta
de como se tece nos discursos a teia das contradições da realidade social onde se travam as
lutas sociais diárias, e tem sentido quando nos ajuda a perceber o discurso como lugar de
passagem de coisas que estão acontecendo fora dele.
A intenção é perceber como tais jornais noticiaram a inauguração da Avenida Central.
Esperamos que com o uso da metodologia da Análise de Discursos possamos avaliar os
processos de produção e divulgação dos discursos no interior da sociedade.
A análise de discursos procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos
de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados aos produtos culturais empíricos
criados por eventos comunicacionais na sociedade. A análise de um texto jornalístico
impresso, por exemplo, toma como ponto de partida o texto publicado, associando-o, a
partir de certas pistas materiais que podem ser encontradas em sua superfície mesma, isto é,
na mistura de linguagem verbal, imagens e padrões gráficos que o constitui, às práticas
socioculturais no interior das quais surgiu e costumam ser chamadas de contexto. Como
sinônimo de contexto, emprega-se com freqüência a expressão condições sociais de produção
ou apenas condições de produção
93
.
Levar em consideração o momento que a sociedade brasileira vivia é de suma
importância para a compreensão do texto a ser analisado, por isso optamos inicialmente por
uma contextualização, antes de iniciarmos nossa análise. Costuma-se dizer que a relação entre
os textos e a sociedade/cultura deve ser pensada dialeticamente. A produção, a circulação e o
93
PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos. -2º ed.- São Paulo,
Hackeer Editores, 2002, p.7-8.
89
consumo dos textos também constituem a sociedade e a cultura, de um modo que pode ser
tanto transformativo como reprodutivo, e a análise não pode separá-los. Esta relação, ou este
controle, o são nunca mecânicos. Não se pode pensar a causalidade em ciências humanas e
sociais da mesma forma como é pensada pelas ciências da natureza
94
.
Devemos estar atentos na análise do discurso também a diversos fatores externos ao
corpo do texto. Como neste trabalho a nossa preocupação está voltada, em especial, ao papel
da imprensa na construção de uma identidade (ou de múltiplas identidades) numa sociedade
que estava participando da reconstrução da cidade do Rio de Janeiro, não devemos nos afastar
das ideologias e formas de poderes que eram vigentes na época. Segundo Norman
Fairclough
95
, a análise de discurso preocupa-se não apenas com relações de poder no discurso,
mas também com a maneira como as relações de poder e a luta de poder moldam e
transformam as práticas discursivas de uma sociedade ou instituição.
A linguagem essendo entendida como um lugar de atualização das forças sociais,
onde através de rituais de luta, o sentido se produz e se desloca constantemente na dinâmica
de funcionamento discursivo. Analisar os processos através dos quais o jornalismo seleciona e
semantiza os acontecimentos é, portanto, também analisar a dinâmica através da qual ele se
instituiu em relação a outros campos (como o literário e o político)
96
.
O que se busca é uma análise de discurso que focalize a variabilidade, a mudança e a
luta: variabilidade entre as práticas e heterogeneidade entre elas como reflexo sincrônico de
processos de mudança histórica que são moldados pela luta entre as forças sociais
97
.
94
Idem, ibidem, p.44.
95
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília, UnB, 2001.
96
RIBEIRO, Ana P..G.,op. cit., p.17.
97
FAIRCLOUGH, Norman. Op. cit, p.58.
90
O que nos propomos aqui realizar é analisar comparativamente textos dos jornais do
período que estamos estudando, no intuito realmente de comprovar o quanto os discursos
empregados na imprensa refletiam o perfil que se criava para a sociedade da época, que
construía então a sua identidade nacional. Os textos escolhidos visam mostrar os diferentes
posicionamentos da imprensa perante o mesmo evento: a inauguração da Avenida Central no
Rio de Janeiro em novembro de 1905. Propositalmente, até para que pudéssemos realizar uma
análise comparativa entre os textos, delimitamos o mesmo período para análise das matérias –
de 13 à 20 de novembro – publicadas no Jornal do Commercio e no Correio da Manhã.
É importante também ressaltar que mantivemos a grafia original das palavras, na
época empregadas, para respeitarmos a originalidade dos textos.
Assim como já mencionado anteriormente, o Jornal do Commercio era considerado
um jornal conservador e que dava apoio ao governo vigente, aprovando os projetos de
modernização da Cidade e difundindo a idéia de progresso. o Correio da Manhã era tido
como um jornal que dava voz à parte menos favorecida da população, considerado um jornal
de oposição ao governo. Com base nestas considerações analisaremos os textos abaixo,
pesquisados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
O texto a seguir foi publicado pelo Jornal do Commercio em 14 de Novembro de
1905, uma terça-feira. Foi publicado numa seção chamada Avenida Central”, na quinta
coluna, (dentre as nove que constituem a diagramação), na parte inferior da segunda página
do jornal.
“Conforme estava annunciado, realizar-se-há amanhã a
inauguração official da Avenida Central. O acto revestir-se-há de toda a
solenidade, assistindo a elle o Chefe da Nação, os Secretários de Estado, as
altas autoridade civis e militares.
91
Para maior brilho dessa festa muito concorrerá o facto de coincidir
com a inauguração o anniversario da proclamação da Republica; a parada
das forças de mar e terra, em commemoração da festiva data, realizar-se-
há este anno na nova via publica.
Desde hontem que alli se trabalha activamente com o fim de serem
ultimados os preparativos da festa de amanhã.(...)
A impressão geral das pessoas que hontem concorreram á Avenida
foi muito contraria do que cada um esperava ter. Nos últimos dias, á rota
dos aparelhos de iluminação collocados, não faltou quem dissesse que a luz
seria demais; muito ao contrario se notou hontem que são de pouca
intensidade as lâmpadas electricas collocadas nos postes centraes, o que
apenas os candelabros de gaz satisfazem as necessidades e as espectativas
do publico.(...)
A hora em que se realizou hontem a experiência da luz, era
extraordinário o numero de pessoas que percorriam a Avenida do Passeio
Publico á Prainha. A festa de amanhã obedeceo seguinte programma:
...”
Ainda no mesmo dia e no mesmo jornal, em uma outra seção, agora na seção Varias
Noticias também encontramos uma nota a respeito na inauguração que estava prevista. O
texto encontrava-se localizado na terceira coluna, agora no meio da terceira página, com mais
destaque. É importante levar em consideração, inclusive, que nesta seção era onde se
destacavam pequenas notas de cunho político e de grande popularidade, e isso faz-nos
salientar que chamaria mais a atenção de quem possuísse o hábito de fazer a leitura do Jornal
do Commercio já que ocupava um lugar de maior destaque.
“Hontem uma parte considerável da população desta capital
percorreu a Avenida Central, cujo calçamento ficara concluído (salvo nos
passeos lateraes) e de cuja iluminação se fez á noite experiência.
92
É justo que consignemos aqui a excelente impressão que todos
tiveram dessa visita á nova rua, desatravancada dos materiaes de
construção que alli se amontoavam, limpa e em condições de ser
entregue ao transito.
Da rua de Santa Luzia á Prainha, durante as primeiras horas da
noite, houve um movimento, que não se podia presumir e uma alegre
animação que em, raros dias de festa temos visto nas nossas ruas.
É com verdadeiro prazer que em tão curto prazo, vemos coroados
de êxito os intelligentes esforços com que os Srs. Drs. Lauro Muller e Paulo
de Frontin contribuíram para dar á idéia do embellezamento da cidade,
consignada no programma do actual Presidente da Republica.”
Neste segundo texto podemos observar um número bastante expressivo de
qualificação à obra na Avenida Central, tais como: “excelente impressão”, “alegre animação
que em, raros dias de festa temos visto”, “É com verdadeiro prazer que em tão curto prazo”,
“intelligentes esforços”, “embellezamento da cidade. Esse tipo de adjetivação reforça a
aprovação do JC com relação aos governantes e suas atitudes, o que naturalmente viria a
refletir nas considerações feitas por seus leitores. Construindo assim uma idéia de aprovação
pelas iniciativas do governo com relação à construção da Avenida Central.
O termo embellezamento”, ainda neste segundo texto publicado pelo Jornal do
Commercio, tem enorme ressonância no discurso propagandístico da época. Designa mais do
que a imposição de novos valores estéticos, a criação de uma nova fisionomia arquitetônica
para a cidade. Encobre, por assim dizer, múltiplas “estratégias”
98
. A erradicação da
população trabalhadora que residia na área central, projeto debatido desde meados do século
passado; a mudança de função do centro, atendendo – num plano mais imediato – aos
BENCHIMOL, J. L., op. cit.,p.228
93
interesses especulativos que cobiçavam essa área altamente valorizada e num plano mais
geral às exigências da acumulação e circulação do capital comercial e financeiro; razões
ideológicas ligadas ao “desfrute” das camadas privilegiadas; razões políticas decorrentes de
exigências específicas do Estado republicano em relação àquela cidade que era a sede do
poder político nacional.
no Correio da Manhã, na mesma data, 14 de novembro, encontramos na seção
“Luxo e Misérialocalizada na primeira página, na terceira coluna (dentre as sete existentes
na primeira página do Correio da Manhã), o seguinte texto:
“A gente pobre, a gente que trabalha e que fórma quase toda a
população desta cidade, por ahi caminha a pé, muitas vezes sem o nickel
cobrado pela Light and Power, que a serve mal e fora de horas. A lucta
diária mal dá para a subsistência e pagamento dos impostos.
Ao lado, porém, dessa multidão de sofredores, aparecce o grupo dos
felizes, dos que gozam. Enquanto uns arrastam a miséria pelas sargetas
outros ostentam o luxo e a riqueza.
A commissão da Avenida Central ainda agora mandou buscar no
estrangeiro um automóvel para correr a nova artéria no dia 15 de
Novembro. Deviam embarcal-o no Cordillère, que chega hoje a esta
capital. A carga, porém, desse paquete estava completa e o automóvel
parecia condemnado a não assistir á festa da Republica.
O nosso dinheiro é, porém, largo e a fartura com que os despendem
bem para os mais requintados caprichos de um nababo. Foi alugado um
Sud Express especial, que levou o automóvel a Lisboa, onde o embarcaram
no Clyde, que deve também entrar hoje no nosso porto.
Imagina-se agora quanto vae sair do nosso bolso para a
commissão da Avenida ter o prazer de percorrel-a em automóvel.
94
E para que não haja dificuldade alguma na Alfandega, hontem
mesmo o ministro da fazenda concedeu a isenção de impostos que lhe foi
solicitado.
Que belleza!”
Neste texto publicado pelo Correio da Manhã podemos observar a intenção de um
protesto pelos gastos gerados pela obra da Avenida Central inicialmente pela seção onde fora
publicado o texto: “Luxo e Miséria”. O contraste no nome da seção já transcreve a
necessidade de expor a indignação pelas diferenças sociais dentro de uma mesma sociedade.
Em diversos momentos do texto fica clara a intenção de protesto com os gastos realizados nos
preparativos da inauguração que aconteceria no dia seguinte à esta publicação em
contrapartida ao sofrimento vivido por grande parte da população. Exemplos: “A gente pobre,
a gente que trabalha e que fórma quase toda a população desta cidade, por ahi caminha a
pé...”, “Ao lado, porém, dessa multidão de sofredores, aparecce o grupo dos felizes, dos que
gozam. Enquanto uns arrastam a miséria pelas sargetas outros ostentam o luxo e a riqueza”,
“O nosso dinheiro é, porém, largo e a fartura com que os despendem dá bem para os mais
requintados caprichos de um nababo”, e ainda utilizando os pronomes na primeira pessoa do
plural: Imagina-se agora quanto vae sair do nosso bolso...”; o que vem reforçar a idéia de
ser um jornal feito para o povo e pelo povo. Essa utilização da terceira pessoa do singular é
marca forte para se dizer participante da mesma classe, aqui em especial à classe menos
favorecida, aquela que ganha pouco e não usufruiu dos prazeres e luxo que a riqueza pode
proporcionar.
E ainda na finalização deste mesmo texto o jornal ainda reforça a crítica às atitudes do
governo ao mencionar a isenção de impostos concedida pelo governo na entrada de um
automóvel importado em nosso País para o desfile na inauguração da avenida. Finaliza o texto
com uma exclamação que exprime, no contexto, um certo ar de ironia: “Que belleza!”.
95
Ainda no Correio da Manhã, da mesma data, nos deparamos na mesma primeira
página, agora na sexta coluna, com a seguinte nota:
“Há nesta capital duas escolas-modelo; uma chama-se Tiradentes e
a outra Rodrigues Alves. Estes dois patronos foram escolhidos por um
critério de amor aos contrastes.
- O Tiradentes sacrificou a vida por amor á Republica; e o
Rodrigues Alves sacrifica a vida da Republica por amor a si próprio.
Para o civismo dominante nesta época que ocorre a escola
Rodrigues Alves é a verdadeira escola-modelo”.
Como pode-se observar exatamente neste segundo texto a crítica ao governo de
Rodrigues Alves. Como o próprio jornal já menciona pregar desde seu discurso da primeira
edição em 15 de junho de 1901:
“O Correio da Manhã não tem nem terá jamais ligação alguma com
partidos políticos.
(...) jornal que propõe, e quer deveras defender a causa do povo, do
comercio e da lavoura, entre nós, não pode ser um jornal neutro. Há de,
forçosamente, ser um jornal de opinião e, neste sentido, uma folha política...”
Fazendo aí mais uma vez uma crítica ao governante e dando a entender que esta não
seria a melhor maneira de se governar uma República, ou seja, sacrificando-a.
Apesar de ser uma breve nota, a mesma ocupando espaço de destaque na primeira
página do jornal, possivelmente reforçaria ainda mais o quanto o Correio da Manhã se
colocava de oposição. O jornal que se colocava como defensor dos direitos do povo não
96
aceitava que a República viesse a ser “sacrificada” por caprichos de seus governantes. E ainda
nesta mesma edição lança a seguinte nota, sem título, na primeira página:
A Avenida Central vae ser feericamente iluminada; é o que póde
suppor vendo a profusão de candelabros que estendem os braços de um
extremo a outro da grande arteria.
Mas o dr, Theophilo de Almeida tira nos desta doce illusão, apenas
a quinta parte dos bicos da Avenida será accesa nos dias communs; o resto
servirá apenas para fazer figuração.
Não resta duvida que é uma luminosa idéa, luminosa.
Continua, nesta nota, o Correio da Manhã a realizar suas críticas às atividades em
torno da inauguração, agora criticando o fato de que todo o dinheiro gasto com a iluminação
da avenida o seria, na verdade, visto por quem passasse pelo local, tendo em vista que
apenas a quinta parte dos bicos da Avenida será accesa nos dias communs; o resto servirá
apenas para fazer figuração”.
O que também observamos é o número de notas que o Correio da Manhã publica em
torno do mesmo fato para realmente reforçar ao máximo sua oposição. O que não podemos
esquecer é que este jornal não se diz contra à inauguração da Avenida Central”, como
destacaremos num texto um pouco mais adiante, mas se coloca contrário aos gastos realizados
para tal obra uma vez que grande parte da população seria excluída desta “grande festa de
inauguração”. Segundo o Correio da Manhã esta seria uma festa de uma parte da sociedade
detentora de bens e luxo e que essa não seria toda a população da Cidade do Rio de Janeiro:
Enquanto uns arrastam a miséria pelas sargetas outros ostentam o luxo e a riqueza”.
97
Já na data da inauguração da Avenida Central o Jornal do Commercio lança na
segunda coluna da segunda página, na parte inferior da página, na seção “Criança roubada,
hoje – Na Avenida” a seguinte matéria:
“Se não for impossível arranjar uma meia dúzia de homens com as
rudimentares noções do que seja um serviço de policia: (a bella cavalhada
da dita militar deve ser dispensada na grande artéria, salvo quando os
Pratas-Preta quizerem fazer cá fora a sua Republica).
- Para os beccos! Para as ruas sujas!
- Fora da Avenida!...os immundos doceiros de tabuleiro; as
quadrilhas de molecotes, com os seus inoffensivos brinquedos; as
<<camisetas>> de meia sem manga e mesmo com manga, embora limpas;
<<os no chão>> e todos os mãos hábitos e costumes que o Rio
supporta. Vejam se também roda o deprimente <<burro sem rabo>>,
mesmo calçado. E os vendedores de jornaes, que alli estão junto aos postes
com os seus sujos barbantes e bancos de taboas de caixão de kerosene!
Mas tudo isso feito sem escândalo, sem provocar o carioca <<não
póde>>, disfarçadamente, como quem não quer a cousa.
Completem a obra, benmeritos da Avenida.”
Neste discurso, texto, apresentado pelo Jornal do Commercio fica bastante clara a
intenção de “limpar” a cidade para República. Excluir àqueles que não deveriam participar do
evento da inauguração mas sem que se chamasse muito a atenção. Inclusive pede-se cautela
se for necessário usar da força policial para expulsar os doceiros de tabuleiro, que são
definidos como immundos”, as crianças das ruas, aqui denominados: as quadrilhas de
molecotes, com os seus inoffensivos brinquedos”, inclusive aqueles que o estivessem de
sobrecasacas que era a moda de Paris as <<camisetas>> de meia sem manga e mesmo
98
com manga, embora limpas; e completa generalizando que os demais excluídos da burguesia
que também fosse deixados à distância : e todos os mãos hábitos e costumes que o Rio
supporta. Vejam se também roda o deprimente <<burro sem rabo>>, mesmo calçado. E os
vendedores de jornaes, que alli estão junto aos postes com os seus sujos barbantes e bancos
de taboas de caixão de kerosene”. Reflete a ideologia de que o era uma festa para todos e
que aqueles que não fossem bem-vindos, mas que insistissem em permanecer na Avenida, que
fossem retirados pela polícia, sem causar tumultos, para não chamar muito a atenção.
Enquanto isso, o Correio da Manhã na data de 15 de novembro lança ainda suas
críticas ao modo como foi feita a reforma na avenida. Até elogia a melhora que a nova
avenida trará à Cidade do Rio, porém faz suas críticas a forma como o poder público fez para
realizar tamanha obra. O texto a seguir foi publicado na primeira página do jornal, na seção
“A Avenida”, na sexta coluna da página.
“Ao povo carioca vae ser hoje franqueada officialmente a Avenida
Central, depois de cortadas as fitas do ceremonial pelo presidente da
Republica.
Não resta duvida que a nova artéria representa um grande
melhoramento para esta cidade que, longo annos, vivia suffocada nas
estreitas viellas de casas acaçapadas e anti-estheticas. A Avenida vae
franquear a ventilação ao grande centro commercial ao mesmo tempo que
dar uma nota de progresso.
O modo, porém, por que foi levado a effeito esse emprehendimento,
há de merecer eternamente a condemnação dos espíritos sensatos, que,
acima da satisfação de vaidades, collocam o bem estar geral e mais do que
isso, o respeito e a moralidade que devem presidir os negócios públicos.
Si é certo, que as nossas condições não permitiam sacrifícios de tal
monta, feito que foi elle, deveria ser aproveitado com o amor e o escrúpulo
imposto pelo compromisso que se representavam. Isso porem, não
99
aconteceu. O dinheiro do contribuinte foi esbanjado, foi desperdiçado em
indenisações vergonhosas, em que se abarrotou a advocacia administrativa,
foi distribuído em negociatas e arranjos.
Em todo o caso a Avenida está prompta, depois de corrigidos os
erros apontados e cuja emenda não custou poucas parcellas ao Thesouro.
O povo que sofre e calcula o quanto terá ainda que pagar, pelo
melhoramento inaugurado, não poderá gozar todo o esplendor da Avenida
Central, mas em compensação, o governo e a comissão constructora
mandaram alugar, á custa do erário publico, os carros existentes no Rio de
Janeiro, para, percorrendo a nova artéria, dar mostras de uma grandeza
que não existe.”
O texto que se segue, foi publicado em 16 de novembro no Jornal do Commercio.
Iniciando na primeira página, exatamente na nona coluna ao lado direito do jornal e
continuando na página dois nas duas primeiras colunas.
"Raras vezes um acontecimento publico terá attrahido a uma
extensa área da cidade mais gente do que a inauguração da Avenida
Central attrahio hontem desde pela manhã á zona urbana, vulgarmente
conhecida pelo nome de“centro”. É evidente que a affluencia maior se
localizou na nova via de comunicação, mas todas as transversaes entre o
largo de S. Francisco e o Rocio, de um lado, o largo do Paço e a rua
Direita, do outro, foram, desde as 7 horas da manhã, outros tantos
carreiros por onde se agitou num fluxo continuo e animado um dos mais
vastos formigueiros humanos que a actual geração será dado presenciar.
O facto demonstra o grande interesse da população pelo importante
melhoramento que o actual Governo lega á Capital do paiz. Esse interesse
apressamo-nos em dizel-o, é de todo justificado. O extrangeiro que visitar
agora a nossa Capital ja tem na Avenida um bello exemplo do progresso
material que o Rio de Janeiro se sente resolvido a realizar. Está de vez
100
morta a exclusividade de seducção que a naturaleza, e ella, exercia
sobre quantos extranhos nos visitavam. Subsistirá sempre a seducção das
bahias, das arvores e dos morros, mas a Avenida prova que estamos
resolvidos a construir outras joias que nós mesmos fabriquemos sem nos
limitarmos tão sómente a exhibir aquellas em que de modo algum
trabalhamos.
Foi porque o animava esta mesma convicção, que o povo durante
toda a manhã e parte da noite se escoou constantemente entre os dous
flancos da Avenida em ondas compactas que só cessaram depois das dez da
noite, ante a necessidade imperativa do descanso.
O tempo não quiz collaborar com a população na consagração do
melhoramento novo, mas, considerada a verdadeira avalanche humana que
com dia feio encheu a Avenida, quasi se pode abençoar o acaso do tempo,
pois sem elle o estadio na nova arteria principal da cidade se teria tornado
intoleravel. Ao demais, ante a vontade do tempo, os cariocas souberam
encolher desdenhosamente os hombros. As senhoras, ás janellas dos
prédios concluidos, em palanques improvisados no arcabouço dos em
construção, ou pelas ruas chapinhando na lama aristocratica da grande
rua elegante, pareciam affirmar que esse documento de progresso valia
bem o holocausto de um vestido, de elevado preço que fosse. Do lado dos
homens, uma ou outra cartola foi naturalmente votada á perdição, como
tributo expontaneo á commemoração grandiosa. Os proprios soldados,
marcises e serenos, pareciam elles proprios indifferentes ao gottejar da
chuva sobre ou dourados e alamares das fardas e deram á Avenida a nota
sympathica da sua presença (...)
As famílias em bando percorreram constantemente a Avenida e por
sob os guarda-chuvas abertos era incessante diálogo deste genero:<<Para
que será isto? De quem será aquillo? O que é aquell outro?>> Sentia-se a
trabalhar sem trégua, o acicate da curiosidade, persistente e tenaz. E sob
essa impressão de curiosidade se agitavam todos e mais do que todos os
photographos profissioneis e amadores, cujas detectives se armavam e
101
desarmavam a cada momento, na anciã de tudo documentarem ad eternum.
Se os aspectos e assumptos eram tantos...
Effectivamente hontem na Avenida Central foram vistas, além das
pessoas com quem na labuta diária nós cruzamos todos os dias, outras,
milhares de outras, que nunca foram vistas por ninguém em lugar publico;
vindas talvez, Deus sabe de que remotos confins, para assistir á
inauguração.
A festa esteve bella: bella em si pela impressão de intima satisfação,
de imensa alegria que punha em todos os semblantes. Ninguém se queixou
demais da hostilidade do tempo, do incomodo da lama, do martyrio, do
calor.Havia alguma coisa que tudo isso dominava, que tudo isso fazia
esquecer: a Avenida Central, objeto da descrença de tantos, da certesa de
tão raros, das esperanças de alguns, alli estava patente e bella, na pompa
de todos os seus attractivos e confortos. Tal era o facto que aos espiritas
não concedia tempo para attentar em nenhum outro, e por elle se
desvaneciam todos, almejando tão somente que após o de hontem outros
dias viessem trazendo novos elementos dessa corrente de progresso de que
a 15 de Novembro de 1905 se batera com a Avenida Central o primeiro elo
grandioso e rutilante
O Sr. Presidente da Republica inaugurou hontem com toda a
solemnidade a Avenida Central (...)
Ás 8 horas da noite com a primeira estiada da chuva começou de
novo a affluir á Avenida grande parte da população urbana, que, num
demorado exame ou todos os edifícios, a percorria de um extremo a outro,
cheia de interesse.
Era belíssimo o aspecto que apresentava a essa hora a nova rua,
onde se cruzavam a cada momento carruagens e automóveis conduzindo
famílias e cavalheiros.”.
102
Levando-se em conta todas as considerações feitas no transcorrer deste trabalho sobre
a sociedade da época (principalmente no quis diz respeito ao fato da grande maioria da
população era iletrada e que quem realmente estava se enquadrando no processo de
modernização da sociedade era a burguesia), nada traz de espanto que parte da imprensa da
época trouxesse marcas nítidas em seus textos publicados do desejo de progresso. O texto
acima revela um desejo forte de se buscar cada vez mais a beleza da Cidade como forma de
progresso, de modernização. Faz-se minuciosamente a reprodução de um evento a
inauguração da Avenida Central - que nada traria a possibilidade de se tirar o brilho da festa,
nem mesmo o mau tempo e as chuvas poderiam diminuir o desejo das comemorações num
momento que marcaria mais um passo no crescimento da sociedade carioca.
Sabendo-se que quem teria acesso ao meio de informação (jornal) eram, em especial,
as pessoas letradas que também buscavam a modernidade e o progresso para a cidade do Rio,
deixando para trás marcas do império que vigorou no país antes da Proclamação da
República, a postura do Jornal do Commercio neste momento era de exaltar a obra realizada
como algo extremamente necessário à cidade do Rio de Janeiro dando apoio incondicional ao
Governo que financiava toda a obra da Avenida.
No que diz respeito aos sentimentos desta população mencionada, que estaria toda ela
comemorando incessantemente a inauguração da Avenida que passaria a ser mais um ponto
de beleza da cidade e que faria com que os estrangeiros admirassem ainda mais as belezas do
Rio de Janeiro, estes são focalizados de dentro, pois seus sentimentos e pensamentos são
expostos, como se pudéssemos, nós leitores, atingirmos os mesmos sentimentos de quem
presencia a inauguração. Aliás, nada se menciona com relação às conseqüências que as
chuvas trouxeram àquele dia à cidade do Rio: “O tempo não quiz collaborar com a população
na consagração do melhoramento novo, mas, considerada a verdadeira avalanche humana
103
que com dia feio encheu a Avenida, quasi se pode abençoar o acaso do tempo, pois sem elle o
estadio na nova arteria principal da cidade se teria tornado intoleravel. Ao demais, ante a
má vontade do tempo, os cariocas souberam encolher desdenhosamente os hombros”.
Certas palavras, expressões ou frases do texto - como: “...fluxo continuo e animado um
dos mais vastos formigueiros humanos que a actual geração se dado presenciar.; ... o
grande interesse da população pelo importante melhoramento que o actual Governo lega á
Capital do paiz.; O extrangeiro que visitar agora a nossa Capital ja tem na Avenida um bello
exemplo do progresso,... um bello exemplo de progresso material que o Rio de Janeiro se
sente resolvido em realizar. ; ...jóias...; grande rua elegante...; A festa esteve bella: bella em
si e bella pela impressão de intima satisfação, da imensa alegria que punha em todos os seus
semblantes. Ninguém se queixou demais da hostilidade do tempo, do incomodo da lama, do
martyrio, do calos.;...attractivos e confortos...; ...corrente de progresso... Era belíssimo o
aspecto que apresentava a essa hora a nova rua, ...carruagens e automóveis conduzindo
famílias e cavalheiros.”– reforçaram a idéia de que o progresso, a beleza, o moderno
significavam exatamente a alegria e a realização da população, que tanto se discutia no
período estudado, reforçando a cada linha o processo de aburguesamento da sociedade.
O resultado mais concreto desse processo de aburguesamento intensivo da paisagem
carioca foi à criação de um espaço blico central na cidade, completamente remodelado,
embelezado, ajardinado e europeizado, que se desejou garantir com exclusividade para o
convívio dos “argentários”. A demolição dos velhos casarões, a essa altura já quase todos
transformados em pensões baratas, provocou uma verdadeira crise de habitação. Desencadeia-
se simultaneamente pela imprensa uma campanha, que se prolonga por todo esse período, de
“caça aos mendigos”, visando a eliminação de esmoleres, pedintes, indigentes, ébrios,
104
prostitutas e quaisquer outros grupos marginais das áreas centrais da cidade
99
. mesmo
uma pressão para o confinamento de cerimônias populares tradicionais em áreas isoladas do
centro, para evitar o contato entre as duas sociedades que ninguém admitia mais ver juntas,
embora fossem uma e a mesma.
Por trás dessas recriminações , estava o anseio de reservar a porção mais central da
cidade, ao redor da nova avenida, para a concorrência elegante e chic, ou pelo menos modelar
por esse padrão todos ou tudo que passasse por ali ou se instalasse
100
.
De acordo com a linha editorial seguida pelo Jornal do Commercio a importância
naquele momento certamente estava voltada para o acontecimento, que por muitos teria sido
esperado, e que se tornou um marco na história da cidade do Rio de Janeiro. Ressalta-se aqui
que é um texto até poético, reforçando os belos sentimentos que tal acontecimento traria a
tona.
Ao finalizarmos a leitura do texto podemos perceber que nenhum imprevisto
metereológico teria causado problema a situação e que havia na cidade como se nos
quatro cantos dela – motivos para comemoração.
Neste momento nos deparamos com o texto publicado no jornal Correio da Manhã
(também em 16/11/1905). O artigo nos revela que a beleza que tanto se almejava para a
Cidade do Rio na época, inspirada nos moldes europeus, não atingia realmente a toda
sociedade (como vimos), e que nem toda a população teria motivos para comemorar a
inauguração da Avenida Central.
99
SEVCENKO, N., op. cit., p. 34.
100
Revista Fon-Fon. 28.07.1913, “Diário das Ruas

Apud. SEVCENKO, op. cit., p.34.
105
O texto que veremos em seguida foi publicado também na primeira gina do jornal,
sob o título de: “Luxo e miséria”, no mesmo dia 16 de novembro, disposto na segunda coluna.
Diagramado ligeiramente na parte superior do lado direito do jornal.
A chuva interrupta que cae sobre a cidade desde ante-hontem, á
noite, não permitiu que a inauguração da Avenida Central tivesse o
brilhantismo anunciado.
É realmente doloroso que tal acontecesse e somos os primeiros a sentir
que as despesas feitas pelo Thesouro não produzissem o effeito desejado.
A inauguração apesar do número de pessoas presentes esteve fria. O
conselheiro Rodrigues Alves foi durante longo tempo, acompanhado por
uma enormidade de garotos, que pulavam de um lado para outro lado,
formando um séqüito incomodo e alverecido. O povo divorciado por
completo das festanças e pagodes officiaes, não teve uma acclamação, não
teve um viva para o presidente da Republica. E que na sua intelligencia,
enxerga bem não só a face brilhante do melhoramento inaugurado, mas
também a face repulsiva representada pelas immoralidades, pelas
negociatas, pelas patifarias que acompanharam os progressos da Avenida.
O povo comprehende que em centenas de desapropiações o não
apparecimento de uma reclamação, quando se tratava de defender um
dos direitos mais sagrados, o direito de propriedade, representa alguma
cousa mais que o esbanjamento dos dinheiros públicos.
De nada serviram os Vivas! Pintados nos escudos de madeira. O
povo não os quis repetir por entender, e com justiça, que há, em todo esse
negocio, um fundo negro para mergulhar nas trevas os nomes dos que o
affectuaram.
Entremos, porém, a descrever as festas de hontem:
Nas sacadas e janelas dos prédios, construídos, por concluir,
em alguns dos quais foram improvizados pavilhões viam-se muitas
famílias.(...)
106
Hontem, emquanto ao espoucar do champagne festivo e ao mastigar
das festivas empadas, a gente do governo inaugurava a Avenida, sob o
hospitaleiro tecto dos felizardos Guinle, centenas de famílias abandonavam
os lares nos carros dos benemeritos bombeiros buscando abrigo onde se
refugiar da massa d’agua que lhes invadiu as casas.
Era um espetáculo de cortar o coração: nas ruas da Cidade Nova,
de S. Christovão, do Catumby, de Andarahy, de todos os bairros em summa,
a gente pobre, trepada em mesas e cadeiras, contemplava tristemente os
desastres da inundação; as casas commerciaes fechadas; nas casas de
família, invadidas pela torrente, os moveis adquiridos á custa do trabalho
perseverante e honesto boiando sobre a enxurrada barrenta.
Ruas houve, como as de Mariz e Barros, Matadouro, S. Christovão,
Barão de Ubá, Senador Furtado, S. Valentin, Mattoso e cem outras que a
água chegava acima dos joelhos dos transeuntes.Um pavor e uma
desolação. Mas o governo banqueteava-se na casa Guinle...
Que importa ao governo a desgraça do povo? Inaugurava-se a
Avenida Central, um luxo de quarenta mil contos que nos ainda custar
muito mais, primeiro e glorioso producto de fabrica de fazer engenharia
montada pelo Sr. Lauro Muller e movida pelo suor do povo.
Por que razão o Sr. presidente da Republica e seu séqüito, depois de
inaugurada a Avenida, não foram dar um passeio pela cidade? Teriam
occasião de gozar um deliciosos contraste.
Mas parece que é uma suprema verdade o velho dito popular – Deus
escreve direito por linhas tortas...
Este formidável aguaceiro que hontem inundou a cidade parecia
murmurar em seu monótono ruído: ‘-Insensatos! Antes do luxo bem caro
das modernas avenidas, cuidae das necessidades urgentes da população:
vae água! Onde as galerias de esgotos que a hão de conduzir? vae mais
água; inundem-se!
Isto é o que parecia dizer o aguaceiro de hontem.
107
Neste texto podemos perceber um sentimento bem distante da busca pelo luxo e
beleza. O autor transcreve um sentimento de revolta pela maneira como as autoridades
exultaram e comemoraram a inauguração da Avenida Central enquanto a forte chuva
desabrigava muitas famílias que não teriam então, nenhum motivo naquele momento para
estar comemorando. O discurso revela uma grande distância entre os governantes e parte da
população carioca.
A narrativa esfocada nos sentimentos distintos de uns que comemoravam e outros
que necessitavam tentar salvar suas casas e móveis durante a forte chuva que atingiu a cidade.
Os principais personagens são os governantes que comemoravam, regados a champagne e
empadas, e o povo que tentava escapar da destruição das chuvas.
O desejo de progresso é substituído por um sentimento de descontentamento. O que se
observa neste texto do Correio da Manhã é uma vontade de mostrar que nem todos estavam
tão empolgados com a inauguração durante as fortes chuvas: “Hontem, emquanto ao espoucar
do champagne festivo e ao mastigar das festivas empadas, a gente do governo inaugurava a
Avenida, sob o hospitaleiro tecto dos felizardos Guinle, centenas de famílias abandonavam os
lares nos carros dos benemeritos bombeiros buscando abrigo onde se refugiar da massa
d’agua que lhes invadiu as casas.”.
No decorrer do texto observa-se que para o Correio da Manhã os governantes estariam
pouco preocupados com as condições de vida de parte da população naquele momento tão
esperado, que fora a inauguração da avenida. A identidade da população naquele momento
não seria, para este jornal, a de uma população envolvida por completo com a modernização
da Cidade do Rio. Segundo o texto, se o Presidente da República tivesse a oportunidade de
visitar durante as fortes chuvas a cidade por completo, o mesmo teria observado que muitas
108
famílias não estariam participando da festa de inauguração devido às inundações causadas
pelas chuvas: Por que razão o Sr. presidente da Republica e seu qüito, depois de
inaugurada a Avenida, não foram dar um passeio pela cidade? Teriam occasião de gozar um
deliciosos contraste”
Para deixar claro que não era contra a inauguração da Avenida, pois essa obra
significaria um desenvolvimento da Capital do Brasil e melhoria na imagem da Cidade, mas
que estivera contra os gastos gerados para tal obra, ainda no dia 16 de novembro, quinta-feira,
o Correio da Manhã traz na capa um editorial assinado por Gil Vidal sob o título “Lição
Aproveitável”, na primeira coluna. Segue o texto:
Não quem de coração, não deseje ver seu paiz em constante
melhoramento emulando com os mais adeantados em progresso e cultura,
ávido de attingir a culminância da perfeição, mediante grande extensão de
kilometros de linhas férreas, excelentes estradas de rodagem, canaes e vias
navegáveis, vasta rede telegraphica, portos com todos os melhoramentos
que lhes facilitem o acesso a todos os navios e a sua prompta carga e
descarga, e tudo mais que a civilização moderna exige. Não quem não
anhele ver a cidade onde reside, com ruas largas, avenidas, praças
arborizadas, jardins públicos, iluminação profusa e mais melhoramentos
propiciadores de todas as comodidades e gozos.
Entretanto, tudo isso exige muito dinheiro que tem que ser
arrancado ao cidadão, que nem sempre o pode fornecer sem privações e
soffrimentos a fruição de todo aquelle progresso não compensa, o que lhe
torna dolorosa a lucta pela própria subsistencia.
No Brasil, o que estamos agora observando é uma verdadeira
neurose de dissipação luxuosa, sobretudo na transformação e
aformosamento do Rio de Janeiro.
Para o conseguir, todos os meios parecem lícitos. Não
consideração de ordem financeira que detenham o governo e seus
109
auxiliares nessa arrojada empresa. De rotineiros catarrudos são taxados os
que deauneram os perigos dessa vertiginosa progressão nas despesas
publicas, e que lembram a necessidade de accomodar taes despezas ás
circunstancias do paiz ou pautal-as pelas forças da riqueza publica e
individual.
Ao mesmo tempo, porém que se dependem assim largamente com
melhoramentos materiaes perfeitamente adiáveis, é indispensável prover a
segurança publica e á defesa do território nacional por meio do exército e
da marinha de guerra capazes de desempenhar-se de sua missão.
Mas isso também exige dinheiro, e muito dinheiro que o imposto
e o empréstimo podem fornecer, mas um e outro, quando não são utilizados
cautelosamente, prejudicam a expansão econômica da Nação e a
prosperidade interna. Os paises onerados de empréstimos e carregados de
impostos estacam na sua marcha progressiva quando não retrogradam.”
Neste editorial o que vemos é uma espécie de “desabafo” que reforça o desejo de
progresso, porém a insatisfação pela forma utilizada pelo governo de se atingir tal progresso.
Gil Vidal destaca a importância de se ter o progresso em parceria com o bem estar da
população como um todo e também com a cautela em angariar fundos para tal
desenvolvimento. Não quem não anhele ver a cidade onde reside, com ruas largas,
avenidas, praças arborizadas, jardins públicos, iluminação profusa e mais melhoramentos
propiciadores de todas as comodidades e gozos. Entretanto, tudo isso exige muito dinheiro
que tem que ser arrancado ao cidadão, que nem sempre o pode fornecer sem privações e
soffrimentos a fruição de todo aquelle progresso não compensa, o que lhe torna dolorosa a
lucta pela própria subsistência.”
Podemos então notar que os jornais assumem Jornal do Commercio e o Correio da
Manhã - posturas de caráter pedagógicos bem distintos. Criam expectativas e reações opostas
110
no transcorrer das narrativas. Os dois jornais dirigem suas matérias a destinatários
diferentemente construídos e eles se diferenciavam também quanto seu posicionamento
ideológico e por pertencerem a formações discursivas diferentes.
O Jornal do Commercio por meio de um discurso fortemente pedagógico e dirigido
àqueles que apóiam a postura governamental não estabelece nenhum sentimento de
preocupação com relação às conseqüências que as fortes chuvas poderiam vir a causar as
famílias mal alojadas na Cidade. Seu texto está voltado para exaltar a beleza da festa da
inauguração da Avenida Central e para reforçar que nenhum imprevisto metereológico
poderia ser capaz de tirar a alegria do povo numa festa tão esperada. Ressalta ainda o
comportamento dos governantes durante a inauguração. O texto aqui referido o levaria a
questões a serem pensadas e analisado por seus receptores, a intenção seria mais de mostrar
que a inauguração simplesmente deveria ser comemorada, isso sim seria mais importante
naquele momento. Pressupõe-se que os leitores do Jornal do Commercio seriam bem
informados sobre as circunstâncias da atualidade e, que, provavelmente, não precisavam ser
convencidos nem questionados sobre a inauguração da Avenida, o objetivo seria apenas
reforçar que ações como estas somente agregariam mais valores de modernidade ao Rio de
Janeiro da Belle Époque. Para o Jornal do Commercio o brilhantismo da inauguração seria
realmente o mais importante e que deveria vir exposto nas páginas do jornal de maneira
bastante motivadora e alegre.
O Correio da Manhã, em contra-partida, preocupa-se em criticar a postura dos
governantes em fazer tamanha comemoração na cidade enquanto o povo tentava evitar
maiores destruições da chuva. Inclusive levando aos “leitores” a pensarem mais a fundo sobre
atitudes e comportamentos dos governantes. No decorrer do texto chega-se a fazer perguntas
com relação à postura do governo. Este veículo buscava reforçar um sentimento de revolta
111
pelas ações dos governantes em gastar valores altos para embelezar e enfeitar a cidade
enquanto grande parte da população sentia-se excluída a todo luxo e progresso que se buscava
naquele momento. Seu texto é rico em ironias e metáforas com intenções sarcásticas de
mostrar-se um jornal voltado para defender os direitos da população que não se sentia incluída
neste processo de modernização. E uma contextualização clara, descrevendo as condições
financeiras em que o Brasil vivia.
O sentido de um objeto significante é sempre dependente do contexto e diferencial:
qualquer pequena diferença entre as condições de produção de dois discursos resulta em
diferenças de sentido e, portanto, também, numa oposição entre alguns dos traços
detectáveis num e noutro. Esse fato justifica uma metodologia comparativa para a análise
semiológica, que sem resolvê-lo, permite que se coloque num parênteses o espinhoso
problema teórico da não necessidade das relações de causalidade nas Ciências Humanas e
Sociais: qualquer diferença de sentido entre dois discursos pode ser creditada às diferenças
existentes nas condições de produção.
101
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que projetavam uma representação adequada
sobre si mesmos, os jornais criavam toda uma identidade para a construção da idéia de Nação.
Graças a seu papel e sua missão estariam com a instauração da República construindo a
verdadeira nação brasileira. Essa idéia de Nação, como podemos observar, segue premissas
bastante distintas nos discurso até aqui apresentados.
Faz-se realmente necessário não perdermos de vista as condições que tais publicações
estavam sendo produzidas. Além da linha editorial dos jornais, todo o contexto deve sempre
ser levado em consideração. Esse desejo do novo, do progresso, da modernidade a todo custo
101
PINTO, Milton José. As marcas lingüísticas da enunciação: esboço de uma gramática enunciativa do
português. Rio de Janeiro, Numem Ed., 1994, p.17.
112
gerava dentro da sociedade como um todo inúmeros sentimentos, e isso permite-nos analisar e
creditar a cada produção jornalística as diferenças existentes.
No dia 17 de novembro, o assunto ainda seria mencionado apenas no Jornal do
Commercio, onde encontramos novamente na seção “Varias Noticias”, na segunda página,
disposto na oitava coluna, o seguinte texto:
“Toda a população tem a esperança de que a Avenida concorra
para modificar certos costumes; mas se não evitar desde que elles
penetrem, será depois muito difficil corrigil-os.
hontem os vendedores fixos de jornaes assentaram acampamento
ao dos postes da illuminação á guisa de tamborete. Amanhã ou depois o
poste estará amarrado de cordas e cordões e enfeitado de todos os jornaes
da cidade. Os postes vão ser centros desse mercado original.
Ora, os passeios da Avenida são muito largos, um pouco mais que
os dos boulevards de Pariz. Não haveria, pois, incoveniente em permitir
que, como naquelles, houvesse na Avenida Kioskes destinados á venda de
flores e jornaes. Aqui faz medo pregar uma idea boa, mas que é capaz de
ser estragada pela elasticidade. Fallar de Kiosque, faz logo pensar em
horror na hypothese de surgurem nas esquinas, principalmente para os
lados de Santa Luzia e da Prainha, esses monstros meio-cafés, meio-
tabacarias, onde não cessa a freguezia ruidosa, que bem poderia estar
obrigada em botequins, debaixo de um tecto.
Tudo depende de limitares a flores e jornaes o commercio dos
Kiosques, cuja construção devia se obedecer a typos elegantes, que não
enfeiem a rua. Se tudo o que tem de ser posto sobre os passeios da Avenida
for no gênero das caixas do Correio hontem inauguradas, não há muito que
esperar. É pena que a administração das cidades nem sempre consulte e
siga a opinião dos artistas em certas cousas que lhes sabe resolver.”
113
Neste discurso do Jornal do Commercio observa-se o que inicialmente havíamos
mencionado em nossa pesquisa, a idéia era transformar a Cidade do Rio de Janeiro em uma
“Paris tropical”, onde fosse possível evitar a circulação de “quaisquer” vendedores pelo
Centro da Cidade. Era necessário normatizar para não deixar que todo esforço da reforma
fosse perdido. As ruas o poderiam ser “enfeiadas”, seria importante manter a determinadas
classes distantes da Avenida para não deixar virar hábito, pois como dizia o texto: ...mas se
não evitar desde já que elles lá penetrem, será depois muito difficil corrigil-os”.
O texto ainda sugere que o governo inclusive siga orientações de quem é habilitado
para manter a beleza, como por exemplo consultar os artistas.
Em 18 de novembro de 1905, sábado, o Jornal do Commercio nada trouxe publicado
em suas páginas sobre a Avenida Central, enquanto o Correio da Manhã traz a seguinte nota
na seção “Pingos e Gotas”, que era uma seção de cunho político, na primeira página na sexta
coluna:
“A medicina indígena abriu lucta cerrada contra as cartolas e as
sobrecasacas.
Muito bem: enquanto não se restabelece a saúde publica destruída
pelo fogo, é preciso fazer guerra a alguma cousa.
Chegou a vez das sobrecasacas e das cartolas: um medico laponio,
o dr. Desfructopoff, achou que ellas são micróbios da deselegância; e nós
devemos andar sempre na vanguarda do progresso.”
A palavra indígena aqui tem um sentido pejorativo, trazendo idéia de atraso, de sem
recurso. Enquanto as cartolas e as sobrecasacas são exatamente o moderno, o belo. A crítica
114
do texto se faz a medicina que encontra visões opostas dentro do mesmo contexto. O que
reforça-nos os sentimentos de diversos ângulos que a temática “progresso” envolveu. Não
no campo estético esse assunto fora discutido, mas inclusive no que diz respeito à medicina
exigia-se um desenvolvimento e luxo maior nesta área. Deveria também a medicina
modernizar-se, e neste ponto mais uma vez o Correio da Manhã fez suas críticas ironizadas.
Talvez um dos exemplos mais significativos dessa intervenção junto à sociedade seja o
da medicina da Belle Époque que, aliando-se à estratégia desse Estado “modernizador”,
esbarrou nos hábitos e condutas dos que repetiam a tradição familiar herdada do tempo do
Império.
Em 19 de novembro o Jornal do Commercio continua a não publicar nada a respeito
da Avenida Central, contudo o Correio da Manhã lança duas notas a respeito da avenida
recém inaugurada.
A primeira nota foi publicada na capa do jornal, na seção A Avenida”, na quarta
coluna e que traz um “certo ar de neutralidade”. Sem críticas, nem elogios, o Correio da
Manhã traz a notícia sobre o movimento previsto na Avenida:
“Continua a affluir principalmente, á noite, grande concorrência á
Avenida Central.
No coreto, em fórma de corbeille, levantado á esquina da rua do
Ouvidor, tocou hontem, durante a tarde, a banda Musical da força policial
do Estado do Rio de Janeiro.
-A commissão constructora da Avenida mandou hontem realizar os
reparos de que carecia a ornamentação na nova via publica e que havia
sido estragada pelas ultimas chuvas.
- No escriptorio do primeiro districto da Avenida, será levada á effeito
uma soirée.
115
Em companhia de seus ministros, Paulo de Frontin, e de outros
engenheiros da commissão constructora da Avenida, o dr. Rodrigues Alves
assistirá hoje, no edifício Light and Power, ao fechamento dos circuitos da
corrente elétrica, por ocasião de ser dada a luz á Avenida. (...)
A solennidade dessa entrega será realisada festivammente em dia de
gala nacional . (...)
Os carros que transitarem pela nova via deverão descer por um lado e
subir por outro.
O transito de carroças poderá ser feito até às 9 horas da manhã ou
então até as 10 da noite em diante.”
Já a segunda nota, que segue abaixo, foi publicada na sexta coluna desta mesma capa de 19 de
novembro.
“O senador Anízio está indignado com a propaganda contra as
sobrecasacas; hontem numa mesa de “Pariz” bradava elle com uma
indignação comparável a que fez explodir em doestos contra os
philosophos francezes e a manteiga de Minas: que acabar com as
sobrecasacas? Mas isto um absurdo, uma ignomínia, uma torpeza sem
nome! Imaginem a Câmara toda tojardo, á modo do Eduardo Ramos, uns
pufios paletots de brim sem gosto e feitio!...
Felizmente uma franceza que passava moderou-lhe a
indignação e o Anízio chamou o Sagasta para pedir informações...”
As próprias vestimentas era tema de discussões entre políticos da época. Observa-se neste
texto que havia espaço nos jornais para todos os assuntos, inclusive para se discutir as roupas
que deveriam predominar. E se o “moderno” era ser “chic” como assim já se fazia em Paris, o
desejo de se vestir sobrecasacas virava motivo até de discussões e críticas. Além disso, o que
116
podemos observar também neste texto é que apesar do Correio da Manhã utilizar com mais
freqüência vocabulário menos rebuscado, neste texto vemos uma certa preferência por
palavras mais “coloridas” – exemplos: uma ignomínia, uma torpeza”, “tojardo” , talvez até
para haver uma identificação maior com o tema abordado.
No último dia de nossa pesquisa, 20 de novembro de 1905, somente o Jornal do
Commercio publicou um texto falando sobre a Avenida recém inaugurada. O texto foi
publicado na seção “Gazetilha”, começando na primeira página e terminando na segunda.
(...) Felizes os povos que podem assistir, em tão breve decurso de
tempo, a trabalhos que vêem transformar pelas armas santificadas da paz, as suas condições
essenciaes de vida.
O largo planos de melhoramentos, tão ousada quão rapidamente
posto em pratica, não vem senhores, somente transfigurar a physionomia
desta cidade: ao par da nova belleza que lhe ajunta, da magestade desta
Avenida Central, que é como que a nossa via-triumphalis onde se
apresentarão á benemerência publica os pro homens a quem tenho honra
de dirigir-me; ao par dos novos attractivos que esta amada Capital
apresentará á todos nós que aqui vivemos e lutamos, como a todos que nos
visitarem, póde-se affoitamente dizer que vem abrir para o nosso paiz novos
caminhos e novos horizontes.
Todos os povos precizam de alguma cousa que o concretise o seu
orgulho e justifique a confiança que lhes inspira os seus destinos; se para
os Francezes é proposição axiomática de que o povo jamais houve ou de
futuro possa haver que lhe exceda no brilho, na graça e no talento, é que
elles se revêm nos prismas fulgurantes de Pariz e no orgulho da sua Urbs
assentam a confiança em seus destinos.
O Rio de Janeiro transformado virá de alguma fórma transformar o
nosso caracter nativo, tirando-lhe a timidez que dava cunho aos nossos
emprehendimentos, insulfando-nos novas energias e são audácias de povo
117
intelligente e trabalhador. por ahi quem diga que o embelezamento da
Capital só aproveita a seus próprios habitantes.
Nada mais estreito e errôneo como discortino social.
Julgo, meus senhores, que enormes serão as vanatgens a colher pelo
nosso paiz, quando pudermos apresentar ao extrangeiro nossa Capital sob
um aspecto que lhe prenda a attenção e lhe estimule o estudo. Então, para a
nossa terra, volverá incessante o concurso de capitães, de intelligencias, de
energias, que com esforços se debatem na carência de horizontes largos,
que não offerece o Velho Mundo. E o que representam, como
coefficiente, todas essas capacidades e energias. Edil-o de uma rma
inequívoca a surpreendente e astupendo progresso da América do
Norte
102
.
O texto acima fora publicado na seção “Gazetilha” , que era no Jornal do Commercio
uma das principais seções onde se reproduziam notícias internacionais e nacionais, e apesar
de ser um discurso que fora proferido na Associação dos Empregados do Comércio do Rio de
Janeiro, fora publicado na íntegra e reforçando ainda mais o quanto o progresso era bem-
vindo através das medidas adotadas pelo governo. O texto reforça o quanto a sociedade estaria
desenvolvendo-se e tornando-se inteligente com o desenvolvimento do espaço urbano da
Capital.
Apesar de não ser um texto especialmente voltado para a Avenida Central, o mesmo
cita a Avenida Central como sendo uma grande iniciativa para o país. O emprego dos diversos
termos sempre muito adjetivos traz à tona a idéia do moderno, do desenvolvimento e das
melhorias trazidas para a Capital que iriam se refletir por toda a nação, como vemos no trecho
destacado abaixo:
102
Discurso da Associação dos Empregados no Comercio do Rio de Janeiro ao Presidente da República
agradecendo pela construção da sede definitiva desta Associação,publicado no Jornal do Commercio, em
20/11/1905.
118
“(...)O largo planos de melhoramentos, tão ousada quão
rapidamente posto em pratica, não vem senhores, somente transfigurar a
physionomia desta cidade: ao par da nova belleza que lhe ajunta, da
magestade desta Avenida Central, que é como que a nossa via-triumphalis
onde se apresentarão á benemerência publica os pro homens a quem tenho
honra de dirigir-me; ao par dos novos attractivos que esta amada Capital
apresentará á todos nós que aqui vivemos e lutamos, como a todos que nos
visitarem, póde-se affoitamente dizer que vem abrir para o nosso paiz novos
caminhos e novos horizontes(...)”.
119
CONCLUSÃO
No início do culo XX, a cidade do Rio de Janeiro sofreu drástica intervenção que
alterou profundamente sua fisionomia e estrutura. Para se ter idéia do impacto e da magnitude
do processo de renovação urbana, executado com implacável rigor, o devemos nos
referenciar pela realidade contemporânea da cidade que hoje existe, onde tais operações
ocorrem com extrema freqüência, pondo abaixo bairros inteiros para satisfazer ao apetite do
grande capital imobiliário e às necessidades imperiosas da cidade capitalista, com todas as
suas contradições.
Não podíamos perder de vista o contexto, no qual se deu a primeira grande operação
de renovação urbana na cidade do Rio de Janeiro, para analisarmos o papel da imprensa neste
momento de transformações para a sociedade carioca.
Como entender que a questão da “verdade”, da imparcialidade” e da neutralidade
seja preocupação tão presente e tão diária na imprensa, a não ser vendo o processo de
construção dessas premissas na própria configuração do jornalismo?
As profundas mudanças estruturais que passaram os jornais diários do Rio de Janeiro,
a partir de 1880, buscavam não apenas novos leitores o que afinal conseguiram mas,
sobretudo introduzir uma nova leitura que atendia a expectativa cultural de um público mais
amplo para quem, até então, aqueles jornais não eram familiares.
Assim sendo, as modificações técnicas e editoriais e da própria natureza das empresas,
que se organizaram em moldes capitalistas, não podem ser explicadas – como muitas vezes
o foram exclusivamente como uma decorrência “natural da importação de padrões
estrangeiros ou ainda em função de uma necessidade exclusivamente de natureza econômica.
120
Os acontecimentos, as desavenças e lutas dos periódicos eram apresentados em
capítulos. A par disso, solicitavam a todo o instante a participação do leitor no processo da
comunicação. Os jornais passaram a ser feito também para o público. Levando-se em
consideração que este público ainda era muito restrito. Repetidas vezes argumentou-se que o
fato de existir na cidade do Rio de Janeiro uma maioria analfabeta justificava a afirmação de
que esses periódicos tinham uma circulação restrita. Contudo, a briga pelo espaço no mercado
jornalístico já começava existir.
A leitura era comentada por aqueles que sabiam ler e dividida com aqueles que o
eram alfabetizados, trazia-se vários sentimentos. Podiam visualizar naquelas páginas a alegria,
a emoção, a dor, a repulsa, a revolta, a raiva, a pena, a compaixão. Os personagens agora
transfigurados em notícias eram pessoas, como ele, o leitor.
Lia-se nos bondes, nos trens, lia-se em voz alta em torno de ambientes fechados do lar,
lia-se em voz alta nos ambientes de trabalho, lia-se nas horas roubadas do dia. Lia-se também
porque aquelas notícias eram comentadas, repetidas, recontadas. Lia-se no instante em que se
recortava o folhetim para guardar. Lia-se no alto dos talados da construção civil, a um canto,
solitário, na hora do almoço. Em grupo no meio da praça. Nas portas dos jornais, onde se
afixavam as notícias com as últimas informações. E leitura era uma forma de estar no mundo.
Um mundo que mudava, com uma velocidade nunca vista até aqueles dias.
Lia-se também nos hospícios e nos presídios. Variadas leituras e variadas apropriações
de mensagens. Para muitos, o jornal era o único intermediário possível entre o seu cotidiano
de lutas e misérias e aqueles que poderiam, se assim quisessem, mudar a realidade.
O crescimento de audiência significava para esses jornais não apenas a possibilidade
de aumentar a sua receita, mas também de ter maior ingerência junto à sociedade política.
Participando do jogo de dominação e de poder existente na sociedade carioca, alguns desses
121
jornalistas os que ocupavam os postos dirigentes se constituíram em verdadeiros porta-
vozes dos grupos dominantes, divulgando suas mensagens, suas visões de mundo e suas
idéias. Por outro lado, ao se reafirmarem como o único intermediário entre leitor e a sociedade
política, confirmavam a seu domínio e participavam do jogo de poder que atingia ltiplas
esferas da vida quotidiana.
Os jornalistas, como produtores de mensagens, donos do poder de nomeação e
reprodutores de uma língua legítima, aquinhoados com o capital simbólico indispensável para
cumprir esse papel, reafirmavam sua importância também em função da representatividade
que adquiriram na sociedade.
E isso nós tivemos a oportunidade de observar nas transcrições que fizemos dos textos
originais dos jornais Correio da Man e Jornal do Commercio. Em alguns momentos
parecíamos ler os sentimentos não de quem escreviam, mas também como se fosse um
sentimento coletivo de parte da sociedade. Os pronomes em alguns casos eram utilizados na
primeira pessoa do plural, reafirmando o desejo de ser um jornal preocupado em ser a voz do
povo, como se dizia ser o Correio da Manhã. o Jornal do Commercio, com seu apoio
contínuo ao governo, usava suas páginas para exaltar as decisões e iniciativas dos
governantes, fazendo valer um desejo incansável pelo moderno, pelo progresso à qualquer
custas, já que isso significaria uma melhora para toda a Nação.
À imprensa cabia difundir um discurso unificado e havia, ao mesmo tempo, a
transformação do uso das letras num verdadeiro mito social, tornando a escrita alavanca para
a ascensão, para a respeitabilidade pública, para ser incorporado ao centro do poder.
O que tivemos aqui foi a oportunidade de perceber durante nossas análises como a
imprensa apresentou comportamentos diferentes perante a idéia de progresso e modernidade.
De um modo geral aprovava-se a intenção de crescimento e desenvolvimento da Cidade do
122
Rio de Janeiro, mas nem sempre se aprovava as iniciativas governamentais como publicava
em suas páginas o Correio da Manhã. Diferente do Jornal do Commercio, o Correio da
Manhã se mostrou bastante receioso perante as atitudes do governo. Fortes críticas o Correio
da Manhã fez através de suas matérias e artigos a idéia do progresso que tanto se pregava na
época. Enquanto o Jornal do Commercio reforçava a necessidade de mudanças para o
crescimento e amadurecimento da Nação. A busca pela tal modernidade se fazia dia e noite,
fosse através das reformas na Cidade do Rio, fosse através de orientações comportamentais
para a população como um todo.
O que procuramos realizar durante nossas análises dos textos dos jornais foi buscar
pistas que nos levasse a função social do texto com relação ao poder e a ideologia exercidos
sobre as identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento vigentes na
sociedade.
É claro que não podemos desconsiderar o fato do Correio da Manhã adotar uma
postura de oposição ao governo. Entretanto, é importante ressaltar em nossa pesquisa, que
grande parte da imprensa apoiou a reforma da capital do Brasil como sendo uma iniciativa
para a construção de uma identidade nacional. O que o podemos desconsiderar foi a forma
como este apoio se manifestou. Se por completo ou não o apoio dado às reformas, o que
devemos destacar é que de acordo com as condições de produção de cada jornal, e de cada
linha editorial adotada, nem sempre esse desejo de progresso esteve nítido nas ginas dos
jornais. Muitas vezes deparamo-nos com sentimentos de desgosto e desaprovação pelo modo
como as decisões afetavam a população menos favorecida. Como vimos, críticas e
descontentamentos também tinham espaço, entretanto o desejo pelo novo e pelo moderno era
comum entre aqueles que na mais nova República residiam.
123
O contexto, ao qual tais discursos foram criados, certamente influenciou na construção
da identidade que se criava desta nova Nação. Analisar cada uma das formas discursivas aqui
transcritas, dos jornais estudados possibilitou-nos identificar o quanto a imprensa participa
ativamente da criação de conceitos e padronizações dentro das sociedades.
Esperamos que este tema possa ser ainda mais aprofundado daqui a diante, visto que
assuntos que nos permitem conhecer melhor a nossa sociedade atual não devem nunca ser
deixados de lado. A Comunicação em si não pode abandonar jamais as mãos da História, pois
certamente uma complementa e reconta a outra. Fazendo com que os discursos que tanto
marcaram épocas jamais venham a ser esquecidos. E a imprensa certamente conhece seu
poder de influenciar, criar, criticar, defender, etc., as classes sociais que constituem constroem
as identidades de uma Nação.
124
FONTES PRIMÁRIAS
JORNAIS ANALISADOS NA BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO
JORNAL DO COMMERCIO – Novembro de 1905.
CORREIO DA MANHÃ – Novembro 1905.
125
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