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FÁBIO HENRIQUE VIANA
A “COMUNICABILIDADE” NAS PEÇAS
DODECAFÔNICAS PARA FLAUTA E PIANO DE
CÉSAR GUERRA PEIXE
Artigo de Mestrado
Escola de Música
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 2005
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FÁBIO HENRIQUE VIANA
A “COMUNICABILIDADE” NAS PEÇAS
DODECAFÔNICAS PARA FLAUTA E PIANO DE
CÉSAR GUERRA PEIXE
Artigo apresentado ao Curso de Mestrado da
Escola de Música da Universidade Federal de
Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Música.
Área de concentração: Performance Musical.
Orientador: Prof. Dr. André Cavazotti e Silva.
Escola de Música
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, 2005
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V614c Viana, Fábio Henrique
A “comunicabilidade” nas peças dodecafônicas para
flauta e piano de César Guerra Peixe / Fábio Henrique
Viana. --2006.
59 fls. ; il. + 1 compact disc
Bibliografia: p.58-9
Artigo (mestrado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Escola de Música.
Orientador: Prof. Dr. André Cavazotti e Silva
1. Análise musical. 2. Dodecafonismo. 3. Música para
flauta e piano
A Nossa Senhora.
Agradecimentos:
Ao André, pela amizade e dedicação; e por mostrar que a pesquisa pode ser algo
interessante e realizador, se tivermos a coragem de implicar nela o próprio eu.
Ao Maurício, pelo incentivo e generosidade.
Ao Sérgio Barrenechea, pela atenção.
À Cecília Nazaré, Guida Borghoff, Maristela, Euridiana, Riane e Ricardo pelo apoio e
disponibilidade.
Ao Miguel e a outros caros amigos (não quero esquecer de ninguém), justamente
pela amizade.
Aos meus queridos pais e querida irmã, pela presença, apoio e paciência
incondicionais.
À Clarice, pelo amor, amizade e companhia, sem a qual o “algo mais” não seria para
mim tão concreto.
Sumário
Resumo ............................................................................................................... 4
1 – Introdução ..................................................................................................... 6
2 – Análise de Allegretto con moto (1945) .......................................................... 13
3 – Análise de Música (1944) ............................................................................. 28
4 – Conclusão ..................................................................................................... 55
5 – Bibliografia .................................................................................................... 58
Anexo: CD com gravação do Recital de Mestrado ................................. CONTRACAPA
Resumo
Este trabalho analisa as peças dodecafônicas Música (1944) e Allegretto con moto
(1945), para flauta e piano, de César Guerra Peixe, buscando identificar elementos
de “comunicabilidade”, termo definido a partir das idéias expressas pelo compositor
em seu Memorial. As peças são estruturadas, principalmente, pela repetição de
motivos e de “argumentos” e pelo dualismo repouso/tensão, sendo esses recursos
tratados de maneira análoga ao seu uso no idioma tonal. A dimensão das seções e
partes e a localização dos pontos culminantes seguem, aproximativamente, a
proporção áurea. O ritmo recebe um tratamento “pontilhista”. A série dodecafônica é
tratada de modo pouco ortodoxo e alguns conjuntos de classes de notas são
recorrentes, tratando-se de fragmentos da série ou de formações diatônicas. Nessas
peças, a “comunicabilidade” é favorecida pela combinação do idioma tonal com o
atonal.
Palavras-chave: Guerra Peixe, atonalismo, dodecafonismo, música de câmara
brasileira, flauta e piano, análise.
Abstract
This study is an analysis of two twelve-tone pieces Música (1944) and Allegretto
con moto (1945) for flute and piano, composed by the Brazilian composer César
Guerra Peixe. Its aim is to identify the presence of elements of “communicability”, as
it was defined by the composer in his Memorial. The pieces are structured, mainly,
through the repetition of motifs and “arguments” as well as the relief/tension dualism.
These devices are employed in a tonally-oriented way. The dimension of sections
and parts and the location of climactic points follow, approximately, the Golden
Section. Rhythm receives a pointillistic treatment. The twelve-tone row is used in an
unorthodox way and there is recurrence of pitch-class sets which are either
fragments of the twelve-tone row or diatonic formations. In these pieces,
“communicability” occurs through the combination of tonal and atonal idioms.
Keywords: Guerra Peixe, atonalism, twelve-tone composition, Brazilian chamber
music, flute and piano, analysis.
6
1 – Introdução
Na década de 1940, escreveu-se, no Brasil, muita música de câmara atonal-
dodecafônica, grande parte dela utilizando a flauta. Buscando redescobrir parte
desse repertório, pensou-se em estudar as peças para flauta e piano escritas por um
dos maiores expoentes do grupo Música Viva, o compositor César Guerra Peixe.
O grupo Música Viva nasceu no Rio de Janeiro, em 1939, por iniciativa do flautista,
regente e compositor alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter e
atraiu instrumentistas, compositores e críticos musicais. Aos poucos, o grupo definiu
o seu posicionamento estético em torno de duas idéias: (1) a busca do novo – apoiar
“tudo o que favorece o nascimento e crescimento do novo” (Manifesto 1946 -
Declaração de Princípios apud KATER, 2001, p. 63) e (2) o engajamento social
acreditando no “poder da música como linguagem universalmente inteligível e,
portanto, na sua contribuição para a maior compreensão e união entre os povos”
(ibidem p. 65). Essas duas linhas justificaram, em momentos diferentes, tanto a ação
do grupo e a adoção quase exclusiva da técnica dodecafônica (gerando muitas
polêmicas com os nacionalistas mais tradicionais), quanto a negação do
vanguardismo e o retorno ao nacionalismo por parte de alguns de seus membros, na
tentativa de tornar a música mais útil e inteligível para as “massas”, provocando,
assim, as rupturas internas que levariam à dissolução do grupo em 1952.
Apesar de sua existência relativamente curta (1939 1952), o grupo Música Viva
contribuiu de maneira decisiva na “revisão dos problemas relacionados com o ensino
da música (e especialmente da composição), com a atividade musical de grupo
(incentivando a formação de conjuntos de câmara) e com a organização de
concertos” (NEVES, 1981, p. 90). De fato, nota-se nos compositores do Música Viva
uma expressiva produção de música de câmara (pois havia muitos instrumentistas
entre seus membros e, na época, as orquestras estavam nas mãos dos
nacionalistas) com muitas obras escritas para flauta, que era o instrumento de
Koellreutter, professor e amigo da maior parte dos compositores do grupo.
7
O Música Viva sempre se preocupou com a formação de um público crítico e
pretendeu que a sua ação pudesse, de fato, incidir na vida da sociedade. Além da
criação musical, outro aspecto da preocupação pedagógica do grupo foi a
divulgação de obras musicais nacionais e estrangeiras de várias épocas, pouco
conhecidas ou ignoradas pelo público, através de programas de rádio, concertos,
edições de revista e de partituras, cursos, palestras, discussões etc. E é também
nessa perspectiva, de contribuir para o conhecimento de um repertório, que este
trabalho se insere, uma vez que ainda são poucas as fontes que abordam de
maneira mais ampla as peças produzidas pelo Música Viva. Com esse objetivo, esta
pesquisa se concentrará numa pequena parte daquela vasta produção: a obra
atonal-dodecafônica para flauta e piano do compositor César Guerra Peixe. Nas
fontes consultadas
1
, são mencionadas duas peças para flauta e piano escritas por
Guerra Peixe, enquanto fazia parte do grupo Música Viva. São elas: Música (1944) e
Allegretto con moto (1945). As partituras foram obtidas na Biblioteca da Escola de
Música da UFMG
2
.
Desde criança, Guerra Peixe (1914 – 1993) participara com o pai, um músico
amador, dos conjuntos de choros de Petrópolis, sua cidade natal. Naquela mesma
cidade, iniciou oficialmente seus estudos em 1925, na Escola de Música Santa
Cecília. Mais tarde, “animado com as idéias de Mário de Andrade” (GUERRA PEIXE,
1971, p. 2), estudou com Newton dua no Rio de Janeiro e em 1944 teve contato
com H. J. Koellreutter, com quem estudou, por dois anos e meio, “Análise, História,
Estética da Música, problemas de música para microfone, Harmonia Acústica e
Técnica dos doze sons” (ibidem p. 2).
Passou, então, a empregar em suas composições a técnica dodecafônica,
acreditando que “um motivo, um acorde ou um ritmo jamais deverá ser feito exata ou
1
ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 1998. KATER, 2001. NEVES, 1981. WOLTZENLOGEL,
1982.
2
LIMA (2002, p. 200) e MALAMUT (1999, p. 25) afirmam que as partituras de Música e de Allegretto
con moto foram reformuladas em 1947. Acredita-se que as cópias dos manuscritos encontradas na
Biblioteca da Escola de Música da UFMG sejam das partituras reformuladas, devido à sua
consistência rítmica, uma vez que, segundo Guerra Peixe, a obra produzida em 1944 e início de 1945
era “pronunciadamente instável quanto ao ritmo, um ritmo excessivamente complexo” (GUERRA
PEIXE, 1971, p.11), razão pela qual, em 1947, o compositor decide “reformular algumas das obras,
em especial as que acusam maior diluição rítmica” (ibidem p. 13).
8
aproximadamente duas vezes; pois toda a repetição, tal-e-qual [sic] ou semelhante,
não passaria de mero primarismo” (ibidem p. 11). Guerra Peixe ganhava, assim, em
“originalidade”, mas comprometia a compreensibilidade de sua obra. Por isso, a
partir de Música 1 (1945), para piano, o compositor começou a incorporar vários
procedimentos em suas peças, visando o que ele mesmo chamava de
“comunicabilidade”
3
(ibidem p. 13). Em seu Memorial, na seção que trata dos
Principais Traços Evolutivos da [sua] Produção Musical (ibidem p. 11-22), Guerra
Peixe menciona alguns desses procedimentos, tais como: “elaboração de uma série
construída simetricamente” (ibidem p. 11), possibilitando “uma realização harmônica
coerente e, sobretudo, acusticamente aceitável por ouvidos menos ‘avançados’”
(ibidem p. 12); “contornos melódicos que, conquanto ainda vagamente, sugerissem a
Modinha brasileira” (ibidem p. 12); “centros tonais nas melodias e (...) acordes afins
com a harmonia clássica” (ibidem p. 12); “figurações da rítmica popularesca” (ibidem
p. 12); e “objetivação de contornos melódicos ‘nacionalizados’ por meio, também, da
criação de centros tonais” (ibidem p. 13).
No referido Memorial, Guerra Peixe não chegou a definir o que seria para ele a
“comunicabilidade”, mas, a partir daquele relato, pode-se concluir que o termo se
refere a uma preocupação do compositor com a inteligibilidade de sua música, que
consistiria, principalmente, na apreensão da forma musical por parte do ouvinte,
tornada possível graças a uma certa familiaridade com o material utilizado na
composição (melodia, harmonia e ritmo), sem cair, contudo, numa simples repetição
de modelos pré-estabelecidos
4
. Nesse contexto, a palavra forma assume um
sentido amplo. Trata-se o somente da estrutura formal da peça como um todo,
mas também da simples definição de um “argumento”, de algo proposto ao ouvinte,
e que depois será desenvolvido (motivos, frases ou até mesmo elementos menos
“palpáveis” como a variação da densidade de uma determinada região); ou seja,
3
LIMA (2002, p. 203) observa que Guerra Peixe adotou “determinados procedimentos
composicionais na busca de uma expressão particular na técnica dos doze sons guiada,
principalmente, pela intenção de ‘comunicabilidade’ e aproveitamento de ‘sugestões musicais
encontradas nas manifestações nacionais”.
4
Justamente para fugir dessa repetição, Guerra Peixe se interessou pela técnica dodecafônica:
“salvo raríssimas exceções, os compositores já se vinham repetindo de muito. As obras tinham
novos títulos mas eram repetições daquilo que haviam escrito anos; enquanto que o folclore (...)
era apontado como o responsável pelas nossas deficiências” (GUERRA PEIXE, 1971, p. 12).
9
tudo aquilo que de algum modo adquire um contorno reconhecível constitui uma
forma. Essa relação material/forma/inteligibilidade é documentada em várias
passagens, como, por exemplo, nas seguintes:
“Do exagero conceitual resultam problemas insuperáveis, em especial no que tange
ao ritmo pois torna-se evidente a impressão de falta de unidade formal” (ibidem p.
11).
“(...) [no primeiro movimento de Música N. 1 (1945), para piano] os fragmentos
melódicos são um constante vai-e-vem de linhas em oposição, linhas ascendentes e
logo descendentes, o que seria um modo de tratar a forma” (ibidem p. 11).
“É de 1947 o Duo para flauta e violino, de ritmo dinâmico, como alguns quadros de
Augusto Rodrigues, bastante unidade formal e, o que é importante, certa
comunicabilidade. Obra que o autor considera até hoje (1971) um dos seus melhores
trabalhos” (ibidem p. 13).
A busca da “comunicabilidade” levou ao abandono do dodecafonismo em 1949: “O
compositor reconhecendo que à sua obra falta o necessário sentido social a que
se refere Mário de Andrade no ‘Ensaio’ encerra aqui a estrepitosa fase
‘dodecafônica’” (ibidem p. 14). Entretanto, é interessante notar que isso ocorre pela
fidelidade a uma constante na intenção de Guerra Peixe ao longo de sua trajetória
5
:
o ideal da incidência na sociedade e, associado a ele, da “comunicabilidade” de sua
música. Nesse sentido, o abandono do dodecafonismo foi devido à impossibilidade,
na opinião do compositor, de realizar com essa técnica o ideal de uma música que
pudesse ser compreendida e ter um “sentido social” (ibidem p. 14). Ideal, no mais,
também presente no próprio grupo Música Viva.
Sendo assim, este artigo busca estudar as peças dodecafônicas para flauta e piano
de Guerra Peixe na tentativa de identificar aspectos técnicos e artísticos dessas
peças que favoreceriam essa "comunicabilidade". Considerando-se que para Guerra
Peixe “a técnica dos doze sons se restringe tão somente ao papel de garantir a
atonalidade; jamais um real valor construtivo no seu total” (ibidem p. 11), o estudo de
Música e de Allegretto con moto utilizará um método de análise eclético, mais
adequado aos vários procedimentos incorporados pelo compositor ao empregar o
dodecafonismo. As análises se concentrarão nos seguintes aspectos: elementos
5
O próprio compositor dividiu a sua produção em três fases: (1) Inicial – até 1944; (2) Dodecafônica –
de 1944 a 1949; e (3) Nacional – a partir de 1949 (GUERRA PEIXE, 1971, p. 23).
10
geradores, estrutura formal, ritmo, proporção áurea, rie e conjuntos de classes de
notas. A seguir, para favorecer a “comunicabilidade” também deste artigo, são
apresentadas as definições de termos utilizados nas análises, assim como algumas
convenções adotadas
6
:
Motivo: uma pequena idéia rítmica, melódica, harmônica ou qualquer combinação
dessas três, suficientemente bem definida para ser identificada quando elaborada
e/ou combinada com outro material.
Frase: uma unidade da sintaxe musical, em analogia com a linguagem, maior que
um motivo e menor que uma seção, que se conclui com um momento de relativa
estabilidade, ou seja, um enunciado com sentido completo. Esse enunciado pode
ser tanto uma linha melódica, quanto um trecho completo com várias vozes. Neste
trabalho é mais freqüente esse último uso.
Seção: uma articulação formal, com sentido completo, composta por uma ou mais
frases.
Parte: uma articulação da peça, também de sentido completo, formada por uma ou
mais seções.
Ponto culminante: nota mais aguda ou ponto de maior tensão de um trecho
musical.
Região culminante: região de maior tensão de um trecho musical.
Densidade: refere-se, principalmente, à quantidade de elementos distribuídos no
espaço (tessitura), num determinado período de tempo e é influenciada pela
dinâmica e pelo registro das notas. Assim, considera-se um trecho mais denso
quando houver muitas notas concentradas em pouco espaço e um trecho menos
denso, ou rarefeito, quando ocorrer o contrário, poucas notas distribuídas em muito
espaço. Uma dinâmica forte ou notas tocadas na região grave do piano tendem,
6
As definições foram baseadas nas seguintes fontes: The New Harvard Dictionary of Music (1995) e
The New Grove Dictionary of Music and Musicians (2001).
11
geralmente, a reforçar a sensação de preenchimento (maior densidade), enquanto
uma dinâmica piano e notas agudas favorecem a sensação de vazio (menor
densidade).
Exposição: indica, simplesmente, a seção que apresenta o material musical que
será desenvolvido ao longo da peça, sendo essa a única relação com o sentido
tradicional do termo na forma sonata e na fuga.
Coda: qualquer passagem que ocorre depois da conclusão estrutural de uma peça e
que serve como gesto de fechamento formal.
Teoria dos Conjuntos de Classes de Notas: teoria para análise da música atonal,
desenvolvida por Allen FORTE (1973)
7
.
Segundo essa teoria, todas as notas com o mesmo nome (incluindo as enarmonias),
independente da oitava em que se encontram, constituem uma classe. Assim, cada
um dos doze semitons em que se divide a oitava no sistema temperado constitui
uma classe de notas, que será representada por um número inteiro de 0 a 11. Por
exemplo, considerando-se a nota como a classe 0, todas as notas Dó, Si e Ré,
em qualquer oitava, pertencerão a esta classe; todas as notas e ,
constituirão a classe 1; e assim por diante.
Um conjunto é um agrupamento de classes de notas distintas (sem repetições).
Todos os conjuntos equivalentes, ou seja, todas as doze transposições possíveis e
as suas inversões (totalizando 24 conjuntos), constituem uma classe de conjuntos
(normalmente, quando se diz conjunto, subentende-se uma classe de conjuntos, da
mesma forma que, quando se diz o nome de determinada nota, já está subentendida
a classe de notas).
7
Para os termos relativos à Teoria dos Conjuntos de Allen FORTE (1973), foram utilizadas as
traduções adotadas por Ilza Nogueira, em seu artigo Ambigüidade e contextualidade: princípios
fundamentais da linguagem pós-tonal de Ernst Widmer (NOGUEIRA, 1992, p. 1-20) e para a análise
intervalar foi usado o Processador de Classes de Notas PCN2001, versão 1.0, Windows
95/98/ME/NT/2000, Copyright 1992/1998/2001, Jamary Oliveira. Disponível no site:
http://www.ufba.br/~jamary.
12
Um conjunto é apresentado na chamada forma normal, na qual os seus elementos
são ordenados de maneira crescente dentro de uma oitava (partindo dos intervalos
mais próximos até aqueles mais distantes). Quando houver conjuntos de diferentes
ordenações com a mesma estrutura intervalar, a forma normal será aquela que se
inicia pelo menor número inteiro. A forma normal que serve de modelo estrutural
para todos os 24 conjuntos de uma classe de conjuntos recebe o nome de forma
primitiva e sempre se inicia com o número 0.
Allen Forte elencou todas as classes de conjuntos possíveis, a Lista de formas
primitivas dos conjuntos de classes de notas, criando também uma
nomenclatura numérica para distingui-las, onde o primeiro número indica a
cardinalidade, ou seja, quantas classes de notas distintas formam o conjunto e o
segundo mero, a ordem do conjunto na lista de formas primitivas. Por exemplo, o
conjunto 4-3 possui cardinalidade 4, ou seja, é formado por quatro classes de notas
e é o terceiro conjunto de cardinalidade 4 que aparece na lista de Forte.
Convenções:
Dó 3
M Intervalo maior
m Intervalo menor
aum Intervalo aumentado
dim Intervalo diminuto
Intervalo ascendente
Intervalo descendente
Numeração das notas
de 1 a 12
Refere-se à ordem das notas em quaisquer das
formas de uma série (O-0, O-4, I-0 etc). Ex.: 1 =
primeira nota da série; 2 = segunda nota da série etc.
Numeração das notas
de 0 a 11
Refere-se aos conjuntos de classes de notas e
considera o “Dó fixo”. Ex.: 0 = classe de Dó (Dó, Si,
); 1 = classe de Dó (Dó e Ré) etc.
13
2 – Análise de Allegretto con moto (1945)
A peça consiste em uma rie de elaborações e combinações dos motivos a e b
apresentados pelo piano nos seus três primeiros compassos (Fig. 1).
Fig. 1 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 1-3, motivos.
Divide-se em onze seções, agrupadas em duas partes. Cada seção tem como
moldura, a dinâmica, cuidadosamente assinalada (Fig. 2). A parte é composta de
duas seções de exposição e quatro seções de desenvolvimento (a flauta aparece
somente na seção B, como uma primeira elaboração do material apresentado
pelo piano na seção A) e a parte é uma reexposição variada da parte e
encerra-se com uma Coda, sintetizando todo o material apresentado (Fig. 3).
Fig. 2 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, dinâmica.
14
Fig. 3 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, esquema formal.
Com uma escrita contrapontística, as seções são construídas como se um
determinado evento desencadeasse todo o restante da seção. Um exemplo desse
modo de construção das seções pode ser visto através da seção E (Fig. 4): O
motivo do piano (a1), uma variação do motivo a (Fig. 1), é o fator que desencadeia
todos os demais eventos da seção. Após a exposição do piano (Fig. 4, a1), a flauta
imita o motivo a1 em movimento retrógrado (a2). Não se trata de uma retrogradação
exata: somente o contorno melódico é o mesmo, a proporção dos intervalos não é
mantida. Em seguida, a partir da mão direita do piano (b1), inicia-se um crescendo
não de intensidade, mas também de densidade, acompanhado de uma expansão
da tessitura: o uníssono abre-se em um contraponto imitativo. Esse segundo motivo
(b1), uma variação do motivo b (Fig. 1), é imitado pela flauta com o ritmo diminuído
(Fig. 4, b2), sendo seguido pela mão direita do piano no ritmo original (b3), pelo
stretto da o esquerda, com o ritmo diminuído (b4) e, finalmente, terminando a
seção, pela flauta, também com o ritmo diminuído (b5). Todas as seções seguem o
princípio de construção aqui exemplificado.
Fig. 4 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 14-17, seção E
15
O constante abrir-se, desenvolver-se e fechar-se das pequenas seções poderia
causar uma sensação de fragmentação, mas isso não acontece. Para o ouvinte, a
impressão é a de um grande fluxo de eventos que vão construindo a peça. O início
(Fig. 1) parece um pouco hesitante (as pausas interrompem o fluxo), mas tão logo a
pulsação é estabelecida, é dada a partida a um movimento contínuo que caracteriza
a peça. Aos poucos, a escrita se torna mais densa, com mais eventos ocorrendo
simultaneamente, e a tessitura é ampliada até atingir o ponto culminante, no
compasso 20. Em seguida, a parte, embora reproduza de maneira abreviada e
variada a 1ª parte, serve de fechamento da peça e reconduz ao repouso. Em alguns
compassos, notas longas ou pausas não explicitam o pulso, mas a regularidade
anterior faz com que este seja sentido sem maiores problemas, como ocorre no
compasso 6 (Fig. 5) e nos compassos 35 e 36 (Fig. 6).
Fig. 5 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 4-7.
Fig. 6 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 35 e 36.
16
A única exceção que quebra a regularidade do pulso é o ataque pianissimo (ppp) do
último acorde da peça, que ocorre dentro de um ritenuto e fora da parte forte do
tempo: ao atrasar o acento rítmico, esse acorde cria uma espécie de “freio” daquele
movimento contínuo que gerou toda a peça, contribuindo, assim, para a sensação
de final (Fig. 7).
Fig. 7 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 38.
A desaceleração, no entanto, inicia-se no final da seção G (compassos 32 e 33),
com um longo acorde do piano que tende a “segurar” o movimento. De fato, a
próxima seção inicia-se com o motivo a com o ritmo aumentado, numa textura
menos densa. Desta forma, embora o pulso ainda seja mantido, o tempo parece ter
sido alargado (Fig. 8).
Fig. 8 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 31-34.
17
Para a percepção do movimento contínuo descrito acima, a identificação das
figurações rítmicas (e, conseqüentemente, da pulsação), é fundamental. Porém, esta
percepção não se de imediato, por duas razões: (1) trata-se de uma peça muito
curta (dura aproximadamente 1min 30s) e, sendo assim, o ouvinte tem pouco tempo
para se familiarizar com a composição e (2) é necessária uma certa “distância” para
identificarmos essas figurações rítmicas.
Normalmente, somos habituados a ouvir e a pensar melodicamente. Identificamos
as linhas que definem os contornos da música, sejam estes contornos produzidos
por alturas ou por ritmos, e seguimos estas linhas (os acordes entram como o
terreno sobre o qual essas linhas se movimentam ou como as cores dos “desenhos”
formados). No Allegretto, entretanto, para que possamos identificar essas linhas,
devemos fazer como nas pinturas pontilhistas
8
: afastarmo-nos um pouco do quadro,
para que possamos reconhecer a figura retratada; do contrário, veremos apenas
pontos desconexos, como no exemplo da Fig. 9.
Fig. 9 – Georges Seurat (1859-1891), detalhe de Le Grande Parade.
As figurações rítmicas do Allegretto (que nos dão a linha condutora do movimento
contínuo que constrói a peça) encontram-se pulverizadas nas várias vozes da
polifonia. São ritmos simples, que utilizam uma métrica regular e tradicional, mas
que estão desmembrados em várias partes nas vozes do piano e da flauta. Cabe ao
8
O pontilhismo foi uma corrente da pintura francesa da segunda metade do século XIX, que teve
como expoente Georges Seurat (1859-1891). Seguia um princípio rigoroso de decomposição da cor
em elementos separados e complementares (pequenos toques regulares de cor pura na tela) que
depois seriam reunidos pelos olhos do observador (GOMBRICH, 1999, p. 544).
18
intérprete “reconstituir” esses ritmos, numa espécie de ritmo resultante, enriquecido
pelas cores das várias notas e pelos timbres da flauta e do piano, dando ao ouvinte
a possibilidade de perceber o movimento contínuo do Allegretto. Alguns exemplos
desse ritmo resultante são apresentados nas Fig. 10, 11 e 12.
Fig. 10 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 10 e 11, ritmo resultante.
Fig. 11 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 20 e 21, ritmo resultante.
19
Fig. 12 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 28-31, ritmo resultante.
A semelhança entre as seções, as partes e toda a peça não se restringe à sua
maneira de construção. Também as proporções são semelhantes: as dimensões das
partes e seções, assim como a localização dos pontos culminantes, seguem, ainda
que aproximativamente, o princípio da proporção áurea
9
. Aplicando-se o valor da
Seção Áurea (0,618) ao número total de pulsações () da peça (116), obtém-se 71,7
número próximo de 74, que é o número total de pulsações da parte. Fazendo-
se o mesmo com o número total de pulsações da parte (74), obtém-se 45,7
número próximo de 42, que é o número total de pulsações da parte. Da mesma
forma, os compassos onde se encontram a maioria dos pontos culminantes das
seções estão distribuídos ao longo da peça de forma proporcional e seguem,
sempre aproximativamente, a Série de Fibonacci
10
(Fig. 13).
9
Proporção áurea é uma proporção matemática encontrada com freqüência nas dimensões das
formas da natureza, onde a razão entre um segmento menor e outro maior é igual à razão entre o
segmento maior e o todo. Esta razão, expressa aproximadamente pelo número 0,618, recebe o nome
de Seção Áurea, SA (TATLOW, 2001).
10
A Série de Fibonacci é o modelo aritmético que mais se aproxima da Seção Áurea. Foi enunciado
no século XIII pelo matemático Leonardo da Pisa (filius Bonacii). Nesta série, cada número é a soma
dos dois números precedentes e é a média proporcional entre seus extremos: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13,
21, 34, 55, 89, 144... (TATLOW, 2001).
20
Fig. 13 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, semelhança entre a Série de Fibonacci
e a distribuição dos pontos culminantes
Se renumerarmos os compassos da parte, a semelhança com a Série de
Fibonacci mais uma vez se verifica (Fig. 14):
Fig. 14 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, 2ª parte, semelhança entre
a Série de Fibonacci e a distribuição dos pontos culminantes
Além do movimento contínuo e das semelhanças entre as seções e as partes, outro
fator que contribui para a unidade da peça é o tratamento das notas e dos motivos
rítmicos. Em composições dodecafônicas, tradicionalmente, uma grande importância
é dada à organização das notas. Nesta peça, porém, é atribuída às notas uma
importância muito menor do que aquela dada ao ritmo e ao contorno melódico, a
ponto destes elementos estruturarem a peça. Em uma imitação, por exemplo, é mais
importante que sejam mantidos o ritmo e o contorno melódico do motivo original do
que a proporção entre os intervalos. Este procedimento pode ser visto na Fig. 15.
21
Fig. 15 – Guerra Peixe, Allegretto con moto: 1) c. 2 e 3, Exposição; 2) c. 26 e 27, Reexposição.
Na Exposição (Fig. 15.1), os intervalos da linha melódica do motivo b são: (a partir
do 3 da mão direita do piano) 5ªJ, 3ªM, 3ªm e 2ªM. Na Reexposição (Fig.
15.2), esse motivo aparece espelhado. O ritmo e a direção melódica o mantidos,
mas os intervalos não seguem a mesma proporção, passam a ser: (mão direita do
piano, a partir do Sol3) 6ªm, 5ªaum, 6ªM e 5ªJ. O mesmo acontece com o
motivo da flauta (a). Os intervalos (Fig. 15.1), a partir do 4, são: 3ªM, 7ªM e
2ªaum. Na Reexposição (Fig. 15.2), o ritmo e a direção melódica também são
mantidos, enquanto a proporção dos intervalos é alterada: (a partir do Mi4) 5ªJ,
9ªm e 4ªdim.
A série dodecafônica utilizada no Allegretto con moto (Fig. 16) nos é dada por
Guerra Peixe no documento Relação cronológica de composições desde 1944
(LIMA, 2002, p. 233) e, possivelmente, é tida apenas como uma referência teórica
para o compositor, pois, de fato, não aparece nesta ordem nenhuma vez na peça
11
.
Fig. 16 – série dodecafônica.
11
Glaura Lucas, em seu artigo Características dodecafônicas do Allegretto con moto de C. Guerra
Peixe (LUCAS, 1992, p. 84-96), parte de outros pressupostos: ao que parece, a autora não conhecia
o referido documento e assumiu como série original a primeira seqüência de doze notas que aparece
na partitura (as dez primeiras notas da voz mais aguda do piano até o compasso 3, mais as duas
primeiras notas da flauta, no compasso 3; ver Fig. 17).
22
Melodicamente, a série aparece completa e sem repetições apenas três vezes (Fig.
17, 18 e 19), não sendo, porém, mantida a ordem original das notas, como indicada
por Guerra Peixe (Fig. 16). Em somente um desses casos a série se encontra toda
na mesma seção (Fig. 18). A série poderia, também, ser resumida em apenas seis
notas, uma vez que a sua segunda metade é a inversão da primeira transposta um
semitom acima. Isso faz com que as duas metades sejam capazes de produzir
conjuntos idênticos usando notas diferentes, todas pertencentes à mesma série
dodecafônica. Esse recurso é muito explorado por Guerra Peixe e os conjuntos mais
usados são 3-3, 3-4, 4-3, 5-1, 5-3 e 6-1
12
. Todos têm características cromáticas e
são encontrados nas variações da série (principalmente o 4-3), mesmo quando esta
aparece incompleta. As figuras seguintes (Fig. 17, 18 e 19) apresentam alguns
desses conjuntos.
Fig. 17 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 1-3, série e conjuntos.
12
Conteúdo dos conjuntos (FORTE, 1973, p. 179-181):
3-3 0,1,4
3-4 0,1,5
4-3 0,1,3,4
5-1 0,1,2,3,4
5-3 0,1,2,4,5
6-1 0,1,2,3,4,5
23
Fig. 18 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 7-9, série e conjuntos.
Fig. 19 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 10-13, série e conjuntos.
Além dos conjuntos formados por fragmentos da série, que, geralmente, são
formações cromáticas, Guerra Peixe utiliza muitos conjuntos com formações
diatônicas (escalas, acordes e fragmentos de escalas e acordes), principalmente na
parte do piano, como, por exemplo, 4-20, 6-33, 7-23, 7-35, entre outros
13
. As Fig. 20
e 21 apresentam alguns exemplos de conjuntos com formações diatônicas.
13
Conteúdo dos conjuntos (FORTE, 1973, p. 179-181):
4-20 0,1,5,8
6-33 0,2,3,5,7,9
7-23 0,2,3,4,5,7,9
7-35 0,1,3,5,6,8,10
24
Fig. 20 – Guerra Peixe, Allegretto con moto: 1) c. 5 e 6, conjunto 7-23 (seis primeiras notas de Fá
maior, com 3ª maior e 3ª menor); 2) c. 7, conjunto 7-35 (escala de Si maior).
Fig. 21 – Guerra Peixe, Allegretto con moto: 1) c. 18, conjuntos 4-20 (acorde de Mi maior, com 7ª
maior) e 6-33 (seis primeiras notas da escala de Sol Dórico), respectivamente; 2) c. 35, conjunto 7-35
(escala de Mi maior).
Ainda sobre o uso da série, observa-se a preferência do compositor por uma forma
ordenada do conjunto 4-3: [Ré, Si, Ré, Dó]. Ela ocorre diversas vezes, sendo usada
como um motivo isolado, como parte da série melódica ou como parte do
acompanhamento em construções com maior ou menor destaque. Este conjunto
ordenado tem uma importância particular por ser o único fragmento da rie que
aparece inalterado ao longo da peça. É associado tanto ao motivo a, quanto ao
motivo b. A Fig. 22 mostra o conjunto sendo utilizado com o motivo a.
25
Fig. 22 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 8, 18 e 36, motivo a, conjunto 4-3 [Ré, Si, Ré, Dó].
Entretanto, a associação ao motivo b parece ser mais relevante. O conjunto é
apresentado pelo piano na primeira exposição dos elementos, sendo, em seguida,
repetido pela flauta (Fig. 23). Aparece, depois, outras duas vezes na flauta (Fig. 24)
a última delas é uma reexposição exata dos compassos 3 e 4 (com o
acompanhamento do piano modificado e o acréscimo de um no final da frase da
flauta).
Fig. 23 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 2-5, motivo b, conjunto 4-3 [Ré, Si, Ré, Dó].
Fig. 24 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c.16, 34 e 35, mot. b, conj. 4-3 [Ré, Si, Ré, Dó].
26
Todas essas repetições e a reexposição exata do motivo nos compassos 34 e 35
tendem a sugerir uma identificação do conjunto ordenado [Ré, Si, Ré, Dó] ao
motivo b, mesmo que ele apareça também associado ao motivo a (o que poderia
ser entendido como uma troca de papéis), a fragmentos de motivos, ou esteja pouco
evidente em meio à textura polifônica. Esta identificação é comum em finalizações
de frases (às vezes sem a primeira nota, ), talvez porque tanto o ritmo do motivo
b, quanto o contorno melódico do conjunto [Ré, Si, Ré, Dó] contribuem para a
sensação de fechamento. O ritmo do motivo b (  . ), Fig. 1, porque sugere uma
retenção do movimento e o fragmento [Si, Ré, Dó], por evocar a resolução
Dominante/Tônica, à qual estamos habituados (mesmo que esta resolução não
seja percebida com clareza, devido ao contexto atonal). A Fig. 25 apresenta duas
ocorrências menos evidentes do conjunto e as Fig. 26 e 27 apresentam algumas
finalizações de frases ou semi-frases que utilizam o conjunto [Ré, Si, Ré, Dó] e o
fragmento [Si, Ré, Dó], respectivamente.
Fig. 25 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 21, 22, 28 e 29, conjunto 4-3 [Ré, Si, Ré, Dó].
Fig. 26 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 4 e 5, conjunto 4-3 [Ré, Si, Ré, Dó].
27
Fig. 27 – Guerra Peixe, Allegretto con moto, c. 10, 11 e 38, conjunto [Si, Ré, Dó].
Os dados obtidos na análise de Allegretto con moto podem ser resumidos nos
seguintes itens:
Elementos geradores: motivos rítmicos e contorno melódico;
Estrutura formal: EXPOSIÇÃO / DESENVOLVIMENTO // REEXPOSIÇÃO / DESENVOLVIMENTO / CODA;
Ritmo: métrica regular, motivos recorrentes, frase rítmica desmembrada nas
vozes do piano e da flauta;
Proporção áurea: dimensão das partes e localização dos pontos culminantes
(semelhança com a Série de Fibonacci);
Série: forma O-0, usada apenas como referência;
Conjuntos recorrentes: fragmentos da série 3-3, 3-4, 4-3 (principalmente), 5-1,
5-3, 6-1; formações diatônicas 4-20, 7-23, 7-35.
28
3 – Análise de Música (1944)
I. Largo
O primeiro movimento desenvolve a idéia que encontra-se condensada na frase
geradora mostrada na Fig. 28. Essa frase inicia-se num crescendo com um grupo de
três fusas e uma pausa (a) e, aos poucos, vai adensando-se aparece uma tercina
(b), um grupo de quatro fusas (c), notas simultâneas, colcheia pontuada (d) até
culminar no forte. Em seguida, a frase é “fechada” pelo decrescendo natural do
acorde sustentado pelo piano, ao qual são sobrepostos E e F na região aguda. Os
elementos da frase descrita acima (densidade
14
, figuração rítmica e dinâmica) e a
sua estrutura como um todo serão reproduzidos em todas as seções do Largo.
Fig. 28 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 6, frase geradora.
Quanto à forma, este primeiro movimento divide-se em duas partes, separadas por
um pequeno interlúdio (Fig. 29). Cada uma dessas partes é composta de duas
seções e cada seção elabora variadamente os mesmos elementos mencionados
acima.
14
Ver definição na p. 10.
29
Fig. 29 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, esquema formal.
Sendo que utilizam o mesmo material, o que caracteriza cada seção é a função que
aquele material assume dentro da parte. Normalmente, nas sonatas tonais
monotemáticas, as seções são diferenciadas pelas funções tonais: o material
temático é conduzido do repouso para a tensão (Tônica/Dominante) e depois faz-se
o caminho inverso, ou seja, da tensão para o repouso (Dominante/Tônica). Neste
Largo esse jogo (repouso/tensão/repouso) também acontece e é conseguido graças
à variação de densidade da escrita
15
. A seção A conduz o material temático do
repouso à tensão: começa com uma escrita menos densa, que corresponderia à
região de Tônica no sistema tonal, e vai se adensando até o final da seção, que
corresponderia à região de Dominante no sistema tonal
16
(Fig. 30). Por sua vez, a
seção B, após uma rápida passagem por uma região de menor densidade
(repouso), conduz o material temático da tensão (região mais densa) para o repouso
(região menos densa), como acontece com o tradicional encadeamento
Dominante/Tônica no sistema tonal (Fig. 31). A linha melódica, principalmente da
flauta, e a dinâmica também evidenciam o arco repouso/tensão/repouso, sendo o
ponto de maior tensão também o ponto mais agudo e mais forte da frase, como pode
ser visto nas Fig. 30 e 31.
15
De fato, Guerra Peixe afirma que, em suas composições dodecafônicas, o termo Música tem “o
sentido mais ou menos equivalente ao de ‘Sonata’” (GUERRA PEIXE, 1971, p.11).
16
Note-se que, o decrescendo do acorde do piano e as notas agudas da frase geradora da Fig. 1,
quando analisados no contexto da seção A, não interferem na sensação de preenchimento dada pelo
forte anterior. Por se tratar de um trecho muito breve, a diminuição da densidade funciona como um
“arredondamento das quinas” no fechamento da seção A.
30
Fig. 30 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 1-6, seção A.
Fig. 31 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 7-14, seção B.
A monofonia do Interlúdio (Fig. 32) introduz um contraste de textura, suspendendo,
por um breve instante, o discurso
17
.
Fig. 32 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 14 e 15, Interlúdio.
17
No Allegretto con moto, por sua vez, a utilização de pequenos trechos em oitavas no piano é
somente um recurso tímbrico, como pode ser visto no exemplo da p. 14, Fig. 4.
31
Em seguida, a parte retoma o mesmo esquema da 1ª parte, ampliando-o, com a
diferença de que a seção B’ inicia-se diretamente numa região de maior densidade,
sem a rápida passagem por uma região menos densa, como ocorreu na seção B. A
ampliação do esquema formal da 2ª parte se dá através da variação livre dos
elementos temáticos e do prolongamento da região de tensão (Fig. 33 e 34) esta
última utilizando também outros recursos, além do aumento de densidade, como a
criação de expectativa e a tensão intervalar. A frase do piano que fecha a seção A’
é uma variação da frase que fecha a seção A. Em A’, porém, o motivo a é
reiniciado várias vezes (compassos 22 e 23), após pequenas retenções do fluxo,
valorizadas por acordes. Esses novos inícios após as retenções do fluxo vão
acumulando tensão através do aumento da densidade e da criação de expectativa
18
até explodir no fortissimo do compasso 24, o qual leva ao acorde de Dominante com
13ª e sustentado nos compassos 25 e 26 (Fig. 34). A tensão acumulada é tão
grande que dispensa o recurso de manter uma maior densidade no trecho seguinte:
a flauta inicia uma linha melódica piano, numa região menos densa, mas sobre o
“tapete” tenso deixado pelo piano (compasso 25, Fig. 34) – o material utilizado nessa
linha melódica é o mesmo do final da seção A: grupo de três fusas e uma pausa (a),
tercina (b), grupo de quatro fusas (c), colcheia pontuada (d); sendo o motivo d o
primeiro a aparecer na seção A’ (Fig. 33 e 34).
Piano e flauta, um de cada vez, como solistas, fazem o fechamento da seção A'
sem que a tensão seja perdida (Fig. 34) e, como mencionado acima, a seção B'
inicia-se diretamente na região de maior tensão. A ligação das duas seções é feita
pela linha da flauta que atinge o seu ponto culminante no compasso 28, na
seção B' (Fig. 34). Desta forma, o ponto de máxima tensão, que na seção A
acontecia apenas em um compasso, fechando aquela seção, na 2ª parte é ampliado
para sete compassos, ligando a parte de maior tensão da seção A' à parte de maior
tensão da seção B'. Note-se que a precipitação rítmica que acontece no compasso
27, culminando no forte do compasso 28 (Fig. 34) é uma variação do que ocorre nos
compassos 9 e 10 (Fig. 33), com as quatro fusas se transformando em sextina. A
Fig. 35 apresenta o esquema de repouso e tensão de todo o movimento.
18
A cada novo início, espera-se que o motivo seja finalmente completado e a frase continue. A
repetição desse procedimento, que deixa a frase suspensa, gera a expectativa de que a frase seja
concluída, contribuindo, assim, para o aumento da tensão.
32
Fig. 33 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 6-10, final da seção A e início da seção B.
Fig. 34 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 22-28, final da seção A’ e início da seção B’.
33
Fig. 35 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, esquema repouso/tensão.
O tratamento rítmico do Largo inicial é semelhante àquele do Allegretto con moto:
figurações rítmicas simples formam frases que se encontram desmembradas nas
vozes da flauta e do piano. Um exemplo deste procedimento pode ser visto na
Fig.36.
Fig. 36 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 28-30, ritmo resultante.
As dimensões do Largo, de suas partes e a localização de seus pontos culminantes
seguem, aproximativamente, a proporção áurea. Aplicando-se o valor da Seção
Áurea (0,618) ao número total de pulsações () do movimento (121), obtém-se 74,8 –
número próximo de 73 que é o número total de pulsações da 2
a
parte. Fazendo-se o
mesmo com este número (73), obtém-se 45,1 número próximo de 41, que é o
número total de pulsações da 1
a
parte.
34
O ponto culminante da 1ª parte ocorre na sua 29ª pulsação (1ª pulsação do
compasso 10). Calculando-se a Seção Áurea da parte (formada por 41
pulsações), obtém-se 25,3 número não muito próximo de 29; porém,
considerando-se também os dois compassos do Interlúdio, ou seja, 41 + 7 = 48, o
resultado passa a ser 29,7 – valor bem mais próximo de 29. Calculando-se a Seção
Áurea da parte (formada por 73 pulsações), obtém-se 45,1 valor que
praticamente coincide com o ponto culminante da flauta na parte, que ocorre na
45ª pulsação (1ª pulsação do compasso 28). o ponto culminante do piano na
parte (1ª pulsação do compasso 24), que ocorre na 79ª pulsação do movimento,
aproxima-se do valor da Seção Áurea para todo o Largo. A Tabela 1 resume os
dados aqui apresentados.
Tabela 1
Total de pulsações (
)
SA Resultado
Largo: 121 x 0,618 74,8
Número próximo de 73 = total de pulsações da
2ª parte;
Ponto culminante do piano no movimento (e na
2ª parte) ocorre na 79ª pulsação
(1ª pulsação, c. 24)
2ª parte: 73 x 0,618 45,1
Número próximo de 41 = total de pulsações da
1ª parte;
Ponto culminante da flauta na 2ª parte (e no
movimento) ocorre na 45ª pulsação
(1ª pulsação, c. 28)
1ª parte +
Interlúdio:
41+7
x 0,618 29,7
Ponto culminante da 1ª parte ocorre na 29ª
pulsação (1ª pulsação, c. 10)
No citado documento Relação cronológica de composições desde 1944 (LIMA,
2002, p. 232), encontra-se a rie utilizada por Guerra Peixe na composição de
Música. Ela é apresentada na forma original e na forma invertida (Fig. 37). A Fig. 38
apresenta a sua matriz dodecafônica.
35
Fig. 37 – série dodecafônica.
I-0 I-3 I-2 I-7 I-6 I-11 I-1 I-4 I-5 I-8 I-10 I-9
O-
0
Mi Sol
Si
Mi Sol
Si
R-0
O-9
Mi
Sol
Si
Mi
Sol
Si
R-9
O-10
Mi
Mi
Sol
Si
Si R-10
O-5
Si
Si Mi
Sol
Mi
R-5
O-6
Si Mi
Mi Si
Sol
Sol
R-6
O-1
Mi Sol
Si
Si Mi
R-1
O-11
Mi
Mi Sol
Sol
Si
Si
R-11
O-8
Si
Sol
Si
Mi
Mi Sol
R-8
O-7
Si
Mi Si
Mi Sol
Sol
R-7
O-4
Sol
Si
Sol
Si
Mi
Mi
R-4
O-2
Sol Si Mi
Si Mi
R-2
O-3
Sol
Si
Si Mi
Mi R-3
RI-0 RI-3 RI-2 RI-7 RI-6 RI-11 RI-1 RI-4 RI-5 RI-8 RI-10 RI-9
Fig. 38 – matriz dodecafônica.
Em Música, o tratamento da série é mais tradicional que no Allegretto: a maioria das
notas da composição aparece ordenada de acordo com algum fragmento da série.
No primeiro movimento, Guerra Peixe usa a forma original (O-0) e algumas de suas
transposições (O-1, O-4, O-7 e O-10). Cada uma dessas formas ocorre em regiões
36
distintas, não chegando, porém, a determinar a forma do movimento. Os dois
instrumentos são tratados separadamente na distribuição das séries (Tabela 2).
Tabela 2
1ª parte
2ª parte
Seção A + Seção B
Interlúdio
Seção A’ Seção B’
Flauta
O-0 - O-0, O-10 O-7, O-1, O-4
Piano O-1 O-1 O-1, O-0 O-0
Freqüentemente, nesse movimento, a rie não é apresentada inteira, ocorrendo
repetições, mudanças de posição e omissão de notas. Em alguns casos, pequenos
fragmentos da série são encadeados (Fig. 39, 40, e 41). A única aparição da rie
completa e sem repetições ou mudanças na ordem das notas ocorre no início da 2
a
parte, na linha da flauta, compassos 16 e 17 (Fig. 40). Como no Allegretto, pode-se
identificar a utilização de conjuntos de classes de notas, alguns reincidentes como o
3-2, 3-3, 3-7, 4-Z15, entre outros
19
. Geralmente, esses conjuntos são fragmentos da
série, como mostra a Tabela 3, não sendo empregados de forma a estruturar o
movimento. Alguns exemplos podem ser vistos nas Fig. 39, 40 e 41.
19
Conteúdo dos conjuntos (FORTE, 1973, p. 179-181):
3-1 0,1,2
3-2 0,1,3
3-3 0,1,4
3-4 0,1,5
3-7 0,2,5
3-9 0,2,7
3-10 0,3,6
4-4 0,1,2,5
4-14 0,2,3,7
4-Z15 0,1,4,6
37
Tabela 3
Conjuntos mais
freqüentes
Fragmento da série
considerando-se O-0, notas:
3-1 10, 11 e 12
3-2 1, 2 e 3 ou 11, 12 e 1
3-3 7, 8 e 9 ou 8, 9 e 10
3-4 2, 3 e 4 ou 3, 4 e 5 ou 4, 5 e 6
3-7 6, 7 e 8 ou 9, 10 e 11
3-9 5, 6 e 7
3-10 12, 1 e 2
4-4 9, 10, 11 e 12
4-14 1, 2, 3 e 4
4-Z15 6, 7, 8 e 9 ou 8, 9, 10 e 11
Fig. 39 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 1-5, série e conjuntos.
Fig. 40 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 16-18, série e conjuntos.
38
Fig. 41 – Guerra Peixe, sica, I. Largo, c. 22 e 23, série e conjuntos.
II. Allegro
O segundo movimento, Allegro, é uma seqüência de variações do material
apresentado na Exposição, intercaladas por intervenções solo do piano e
agrupadas em duas partes (Fig. 42).
Fig. 42 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, esquema formal.
A Exposição é composta por pequenos motivos, formados pela combinação de
células rítmicas, gerando uma grande diversidade a partir de, basicamente, uma
única idéia: ársis/tésis
20
. A diversidade é obtida com a variação da métrica e da
acentuação das células rítmicas. Assim, a seção que origina as variações possui
20
Segundo KIEFER (1973, p. 26), as unidades rítmicas, do ponto de vista da dinâmica, possuem dois
momentos, designados com os termos que os gregos usavam referindo-se às batidas dos pés na
marcação rítmica: “ársis levantar, com o sentido de esforço; tésis pousar, com o sentido de
relaxamento”.
39
na própria estruturação dos motivos que a compõem o princípio da variação (Fig. 43
e 44). Além dos motivos, a Exposição também apresenta um acompanhamento de
acordes do piano, cuja particularidade está no compasso 3, onde as colcheias são
agrupadas de três em três, resultando num compasso  (Fig. 43).
Fig. 43 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 1-5, Exposição e motivos.
Fig. 44 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, classificação dos motivos pela ársis.
40
Os três últimos motivos têm uma importância particular: o motivo d apresenta um
deslocamento da acentuação; o motivo e traz somente a ársis da idéia geradora,
reforçando, assim, o contratempo; e o motivo f, iniciando-se em tésis, contrasta com
a idéia original. Todos os motivos induzem ao movimento: ou porque se iniciam em
ársis ou porque, quando se iniciam em sis, há uma subdivisão da pulsação, que
gera impulso rítmico. A única exceção é o motivo d que, como acontece no
Allegretto con moto, ao deslocar o acento para a parte fraca do tempo, sugere uma
desaceleração do ritmo, que contribui para a sensação de final. De fato, esse motivo
caracteriza quase todos os finais de frase, como pode ser visto na Fig. 45.
Fig. 45 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, motivo d, finais de frase: 1) Exposição; 2) 1ª variação;
3) 2ª intervenção solo do piano; 4) 2ª variação; 5) 4ª intervenção solo do piano; 6) 4ª variação.
41
Entretanto, o que define a Exposição não são os motivos, que funcionam como
“palavras”, mas o próprio “argumento” a ser dito (Fig. 46): um diálogo entre a flauta e
o piano (1) apresenta a idéia geradora (ársis/tésis), iniciando uma frase que vai se
adensando até atingir o ponto de maior tensão (2) que, em seguida, será conduzido
ao repouso (3). É esse “argumento” que será sempre reproposto nas variações. Os
elementos da Exposição (motivos e acordes) continuarão sendo variados e
combinados entre si (dificilmente um motivo é reapresentado de maneira idêntica
21
),
mas é mantida, em linhas gerais, a estrutura da frase da Exposição, como pode ser
visto comparando-se a Exposição com a variação (Fig. 46 e 47).
Fig. 46 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 1-5, Exposição, “argumento”.
Fig. 47 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 10-15, 1ª variação, “argumento”.
21
Sobre suas primeiras composições dodecafônicas, GUERRA PEIXE (1971, p. 11) comenta em seu
Memorial que “(...) um motivo, um acorde ou um ritmo jamais deverá ser feito exata ou
aproximadamente duas vezes; pois toda a repetição, tal-e-qual [sic] ou semelhante, não passaria de
mero primarismo”.
42
A e a variações apresentam características especiais. Na variação, além
do diálogo inicial entre a flauta e o piano ser acompanhado por uma nota longa do
piano, o que mais chama a atenção é que o “argumento” da Exposição só é
concluído no final da intervenção solo do piano, que segue essa variação (Fig.
48): a frase da flauta termina em crescendo e não utiliza o motivo d (ligado às
finalizações de frase), mas motivos que aludem a movimento (1). Assim, liga-se com
bastante continuidade à frase do piano que, por sua vez, chega ao fortíssimo,
utilizando motivos semelhantes àqueles do final da frase da flauta (2), e conclui-se
com o motivo d (3).
Fig. 48 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 33-36, final da 3ª variação e 4ª intervenção do piano.
A 4ª variação é muito mais longa que as demais e explora todos os motivos
utilizados nas outras seções. É como uma grande recapitulação, onde o “argumento”
original é explicitado da forma mais contundente de todo o movimento. Na sua
grande frase também encontra-se o ponto culminante do Allegro (compasso 44) e a
única aparição da série completa, sem repetições e mudanças na ordem das notas.
As intervenções solo do piano vão diminuindo de tamanho e perdendo a autonomia
ao longo do movimento: a primeira delas evidencia alguns elementos da Exposição
que serão utilizados nas variações seguintes; a segunda, tem a função de coda,
retomando brevemente quase todos os motivos da exposição e encerrando a
parte do movimento; a terceira, é uma simples transição e se liga à 3ª variação por
sobreposição; e a quarta e última intervenção é incorporada à frase da 3ª variação.
43
O tratamento rítmico segue o mesmo procedimento do primeiro movimento de
desmembrar frases rítmicas simples e distribuí-las entre as vozes do piano e da
flauta (Fig. 49 e 50).
Fig. 49 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 21-23, ritmo resultante.
Fig. 50 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 46-48, ritmo resultante.
A dimensão das partes e das seções e a localização dos pontos culminantes
seguem, aproximativamente, a proporção áurea. Aplicando-se o valor da Seção
Áurea ao número total de pulsações () do movimento, da e 2ª partes e das
seções, obtém-se os resultados apresentados na Tabela 4:
44
Tabela 4
Total de pulsações (
)
SA Resultado
Allegro: 189 x 0,618 116,8
Número próximo de 117 > total de pulsações
da 2ª parte
2ª parte: 117 x 0,618 72,3
Número próximo de 72 > total de pulsações
da 1ª parte
1ª parte: 72 x 0,618 44,5
Número próximo de 42 > total de pulsações
que a flauta toca na 1ª parte;
e próximo de 49 > pulsação onde ocorre o
ponto culminante da flauta na 1ª parte
(2ª pulsação, c. 13)
Exposição: 18 x 0,618 11,1
Ponto culminante da flauta ocorre na 10ª
pulsação (2ª pulsação, c. 3)
1ª variação: 24 x 0,618 14,8
Ponto culminante da flauta ocorre na 14ª
pulsação (2ª pulsação, c. 13)
2ª variação: 24 x 0,618 14,8
Ponto culminante da flauta ocorre na 14ª
pulsação (2ª pulsação, c. 23)
3ª variação +
4ª int. piano:
20+6
x 0,618 16
Ponto culminante da flauta ocorre na 17ª
pulsação (1ª pulsação, c. 34)
4ª variação: 59 x 0,618 36,5
Ponto culminante da flauta ocorre na 27ª
pulsação (3ª pulsação, c. 44)
2ª parte: 117 x 0,618 72,3
Ponto culminante da flauta ocorre na 85ª
pulsação (3ª pulsação, c. 44)
Novamente, a variação merece destaque: formada por 59 pulsações (), o seu
ponto culminante ocorre na sua 27ª pulsação (3ª pulsação do compasso 44).
Comparando-se este número (27) com o valor obtido com o cálculo da Seção Áurea
dessa variação (36,5), nota-se que, de acordo com a Seção Áurea, o ponto
culminante parece ter sido antecipado. Por outro lado, a 3ª pulsação do compasso
44 também é o ponto culminante de toda a 2ª parte (que tem 117 pulsações) e a sua
localização (85ª pulsação), comparada com a Seção Áurea, sugere que ele tenha
sido atrasado (como visto na Tabela 4: 117 x 0,618 = 72,3 número menor que 85).
Ou seja, Guerra Peixe faz um compromisso entre a localização do ponto culminante
da variação e a localização do ponto culminante de toda a 2ª parte: utiliza
apenas um ponto culminante que atende aos dois casos, seguindo,
aproximativamente, a Seção Áurea em ambos.
45
A série dodecafônica (apresentada na Fig. 37, p. 35) é usada nas formas invertidas
I-0, I-2, I-4, I-5, I-6, I-8 e I-9, que ocorrem em regiões distintas, como mostra a
Tabela 5.
Tabela 5
1ª Parte 2ª Parte
Exp. 1ª Int. 1ª Var. Int. Var. 3ª Int. 3ª Var. 4ª Int. 4ª Var.
Flauta I-0 - I-2 - I-4 - I-9, I-8 - I-6, I-9, I-5
Piano I-0 I-0 I-2 I-6 I-4 I-9 I-9, I-8 I-8 I-9, I-5
Como mencionado, a rie é apresentada inteira somente uma vez. Em cada
região, vários fragmentos são combinados ao redor de uma exposição mais
consistente da série, que, todavia, apresenta repetições, mudanças na ordem e
omissão de notas. A única exposição completa e sem repetições ou mudanças na
ordem das notas ocorre na 4ª variação, na linha da flauta (compassos 38-40). Os
fragmentos da série, como no primeiro movimento, também podem ser vistos como
conjuntos de classes de notas (ver Tabela 3 p. 37). A seguir são apresentados
exemplos da utilização da série e de alguns conjuntos recorrentes (Fig. 51 e 52).
Fig. 51 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 1-3, série e conjuntos.
46
Fig. 52 – Guerra Peixe, sica, II. Allegro, c. 38-41, série e conjuntos.
III. Largo
O terceiro movimento, Largo, é o mais curto dos três movimentos. Possui o mesmo
andamento e caráter do primeiro movimento e é dividido em duas partes: a parte,
mais fragmentada, é formada por pequenas seções não conclusivas e se separa da
parte com uma fermata (como ocorre no segundo movimento); a parte, mais
unitária, é formada por apenas uma seção e conclui-se com uma pequena Coda
(Fig. 53).
Fig. 53 – Guerra Peixe, sica, III. Largo, esquema formal.
47
A Introdução monofônica do piano (Fig. 54) é semelhante ao Interlúdio do primeiro
movimento, sugerindo que depois da suspensão que ele provoca, virá uma
retomada (como ocorre na parte do Largo inicial). A sensação de suspensão se
deve, principalmente, ao ritmo: o impulso da tercina em anacruse, tão logo chega ao
apoio com a colcheia, fica suspenso pela nota longa do contratempo. Esse
movimento apoio/contratempo ( ) é repetido várias vezes na Introdução e no
compasso 4 tem seu ritmo aumentado ( .).
Fig. 54 – Guerra Peixe, sica, III. Largo, c. 1-4, Introdução.
Após a Introdução, as seções seguintes retomam o material do primeiro movimento
e alguns elementos do segundo movimento em pequenas frases que sugerem
recordações, como se o terceiro movimento procurasse reconstruir o primeiro
movimento a partir de lembranças. Como foi visto, no primeiro movimento, as frases
fazem um arco: começam piano, crescem aumentando a densidade, aatingirem o
ponto de maior tensão (que é também o ponto mais forte e mais agudo), e depois
decrescem, sendo reconduzidas ao repouso. A seção A (Fig. 55.3) inicia-se piano
(semelhante à seção A do primeiro movimento, Fig. 55.1), desenvolve-se até o
ponto de maior tensão (semelhante à região mais densa da seção B do primeiro
movimento, Fig. 55.2) e é deixada em suspenso
22
, como se a lembrança fugisse da
memória (Fig. 55.3).
22
O decrescendo no final da frase da flauta é um trecho muito breve e não chega a interferir na
sensação de preenchimento dada pelo acorde do piano.
48
Fig. 55 – Guerra Peixe, sica: 1) I. Largo, c. 1 e 2, início da seção A; 2) I. Largo, c. 8 e 9, região
mais densa da seção B; 3) III. Largo, c. 4-8, seção A.
A seção B procura retomar a idéia interrompida e continuá-la; acrescenta um
elemento do segundo movimento (appoggiatura, Fig. 56.1), mas não chega a
concluir a frase, que embora termine com uma densidade menor (notas mais
espaçadas e registro agudo), é deixada suspensa na região aguda sem fechar o
arco melódico iniciado na seção A (Fig. 56.2).
Fig. 56 – Guerra Peixe, sica: 1) II. Allegro, c. 5 e 6; 2) III. Largo, c. 10-11.
49
Uma outra frase é iniciada na seção C (desta vez semelhante à seção A do
primeiro movimento, Fig. 57.1), e, na tentativa de dar continuidade à idéia original,
mistura-se mais um elemento do segundo movimento (variação do motivo c, Fig.
57.2). De repente, duas notas graves do piano, fortissimo, interrompem bruscamente
essas recordações um pouco desconexas (Fig. 57.3).
Fig. 57 – Guerra Peixe, sica: 1) I. Largo, c. 16 e 17, início da seção A’;
2) II. Allegro, c. 1 e 2, motivo c; 3) III. Largo, c. 12-14, seção C.
A parte parece conciliar as “recordações” dos dois movimentos anteriores:
apresenta o material do segundo movimento, mas com o andamento e a forma
original da série do primeiro movimento (sobre a série se falará posteriormente). Na
seção D (Fig. 58.2), a linha da flauta contém motivos do segundo movimento (Fig.
58.1) e o piano apresenta elementos do início da e variações do segundo
50
movimento (Fig. 58.3 e 58.4), que, aliás, são semelhantes ao início da seção A’ do
primeiro movimento (Fig. 58.5).
Fig. 58 – Guerra Peixe, sica: 1) II. Allegro, c. 1 e 2, motivos; 2) III.Largo, c. 14-18, fragmento da
seção D; 3) II. Allegro, c. 20 e 21, início da 2ª variação; 4) II. Allegro, c. 37 e 38, início da 4ª variação;
5) I. Largo, c. 16-18, início seção A’.
51
Uma pequena Coda (Fig. 59), sobreposta à última nota da flauta na seção D,
conclui o Largo retomando fragmentos do primeiro movimento e usando, mais uma
vez, o deslocamento de acentuação para reforçar a sensação de final (ver p. 16 e
40).
Fig. 59 – Guerra Peixe, sica, III. Largo, c. 22-24, Coda.
O recurso de desmembrar a frase rítmica nas vozes do piano e da flauta ocorre
nesse movimento (Fig. 60), porém, é utilizado com menor freqüência que nos
movimentos anteriores.
Fig. 60 – Guerra Peixe, sica, III. Largo, c. 13-16, ritmo resultante.
52
A proporção áurea, sempre aproximativamente, também aparece neste último
movimento nas dimensões das partes e na localização dos pontos culminantes da
parte e das seções B, C
23
e D, como é apresentado na Tabela 6.
Tabela 6
Total de pulsações (
)
SA Resultado
Largo: 78 x 0,618 48,2
Número próximo de 47 = total de pulsações da
1ª parte
1ª parte: 47 x 0,618 29,0
Número próximo de 31 = total de pulsações da
2ª parte;
Nota mais aguda do movimento ocorre na 33ª
pulsação (2ª pulsação, c. 10)
Seção B 9 x 0,618 5,6
Ponto culminante da seção ocorre na 5ª
pulsação (2ª pulsação, c. 10)
Seção C 11 x 0,618 6,8
Ponto culminante da seção ocorre na 7ª
pulsação (4ª pulsação, c. 13)
Seção D 24 x 0,618 14,8
Ponto culminante da seção ocorre na 15ª
pulsação (2ª pulsação, c. 20)
A série, como mencionado anteriormente, é utilizada consistentemente nas formas
originais O-0, O-3 e O-4, que são distribuídas ao longo do movimento conforme é
apresentado na Tabela 7. Embora haja também omissões e/ou mudanças na ordem
de notas, essas formas são encontradas em trechos relativamente longos,
principalmente nas linhas melódicas. De qualquer forma, a série aparece completa,
sem repetições e mudanças na posição das notas somente uma vez (compassos 18-
20). Alguns conjuntos reincidentes também o encontrados no último movimento,
por exemplo: 3-2, 3-3, 3-9, entre outros; trata-se, como visto, de fragmentos da
série, sem uma maior função estrutural dentro do movimento (ver Tabela 3, p. 37).
As Fig. 61 e 62 apresentam exemplos do emprego da série e a utilização do
conjunto 3-3.
23
Na seção C, o ponto culminante é entendido como ponto de chegada do gesto melódico.
53
Tabela 7
1ª parte
2ª parte
Introdução Seção A Seção B Seção C Seção D + Coda
Flauta - O-4 - O-0 O-0
Piano O-3 O-3 O-3 O-0 O-0
Fig. 61 – Guerra Peixe, sica, III. Largo, c. 1-4, série e conjunto 3-3.
Fig. 62 – Guerra Peixe, sica, III. Largo, c. 17-21, série e conjunto 3-3.
54
O resumo dos dados obtidos na análise de Música é apresentado a seguir:
I. Largo
Elementos geradores: frase rítmica e variação de densidade;
Estrutura formal: A / B / INTERLÚDIO // A’ / B’;
Ritmo: métrica regular, motivos recorrentes, frase rítmica desmembrada nas
vozes do piano e da flauta;
Proporção áurea: dimensão das partes e localização dos pontos culminantes;
Série: formas O-0, O-1, O-4, O-7 e O-10;
Conjuntos recorrentes: fragmentos da série 3-2, 3-3, 3-7, 4-Z15.
II. Allegro
Elementos geradores: motivo “ársis/tésis” e “argumento”;
Estrutura formal: EXPOSIÇÃO / 1ª INT. SOLO PIANO / 1ª VARIAÇÃO / 2ª INT. SOLO PIANO // 2ª
VARIAÇÃO / 3ª INT. SOLO PIANO / 3ª VARIAÇÃO / 4ª INT. SOLO PIANO / 4ª VARIAÇÃO;
Ritmo: métrica regular, combinação de células rítmicas, frase rítmica
desmembrada nas vozes do piano e da flauta;
Proporção áurea: dimensão das partes e localização dos pontos culminantes;
Série: formas I-0, I-2, I-4, I-5, I-6, I-8 e I-9;
Conjuntos recorrentes: fragmentos da série 3-2, 3-3, 3-4, 4-14.
III. Largo
Elementos geradores: citação de elementos do I e II movimentos;
Estrutura formal: INTRODUÇÃO / SEÇÃO A / SEÇÃO B / SEÇÃO C // SEÇÃO D / CODA;
Ritmo: métrica regular, motivos recorrentes, frase rítmica desmembrada nas
vozes do piano e da flauta (menos freqüente que nos outros movimentos);
Proporção áurea: dimensão das partes e localização dos pontos culminantes;
Série: formas O-0, O-3 e O-4;
Conjuntos recorrentes: fragmentos da série 3-2, 3-3, 3-9.
55
4 – Conclusão
Em Música e em Allegretto con moto, o uso da técnica dodecafônica, embora pouco
ortodoxo, tem o “papel de garantir a atonalidade” (GUERRA PEIXE, 1971, p. 11),
enquanto a estrutura das peças é construída, principalmente, com dois recursos:
repetição e dualismo repouso/tensão. A partir da análise das partituras, é possível
identificar elementos que favorecem a “comunicabilidade” dessas peças. A idéia de
“comunicabilidade” para Guerra Peixe está associada à clareza da forma, percebida
graças a uma familiaridade do ouvinte com o material utilizado na composição (ver
Introdução, p. 8). Assim, para ser compreendido nessas peças, o compositor procura
mostrar o contorno da forma de uma maneira que seja familiar ao ouvinte brasileiro
da década de 1940, habituado ao idioma tonal
24
. Nesse sentido, Música e Allegretto
con moto são escritas num idioma atonal, mas, os recursos da linguagem musical
que as estruturam são usados de maneira análoga ao uso que tradicionalmente se
faz desses recursos no idioma tonal.
A repetição, nunca exata, é suficientemente semelhante ao original para ser
reconhecida como repetição. No Allegretto e no primeiro e terceiro movimentos de
Música, são repetidos motivos, cuja semelhança está, principalmente, no ritmo e no
contorno melódico. As figurações rítmicas são repetidas literalmente ou são variadas
com aumentações e diminuições
25
. O contorno melódico é reconhecível, apesar de
não ser mantida uma proporção entre os intervalos repetidos. no segundo
movimento de Música, é mantida toda a estrutura geral da Exposição (o diálogo
entre flauta e piano e o esquema repouso/tensão/repouso), variando-se
24
“Modinha, embolada, côco, samba, desafio, congado, cantigas de roda, martelo, batuque, chôro,
toada, seresta, bumba-meu-boi, maracatú, e tantas outras formas já se tornaram comuns, com seus
caracteristicos melodicos e ritmicos, e com sua significação determinada no nosso processo musical.
As tentativas e realisações dos musicos novos brasileiros já começam a fazer evoluir aquele material:
Villa Lobos, Lorenzo Fernandes, Camargo Guarnieri, Garritano, Octaviano e outros buscam aquela
méta.” (GALLET, Luciano. A missão dos músicos brasileiros de agora. WECO, Ano II, n. 1, Fev./1930,
p. 15-17 apud KATER, 2001, p. 207-208). A ortografia original do texto foi mantida.
25
A esse respeito LIMA (2002, p. 203) conclui que Guerra Peixe adota “determinados procedimentos
composicionais, na busca de uma expressão particular na técnica dos doze sons guiada,
principalmente, pela intenção de ‘comunicabilidade’ e aproveitamento de ‘sugestões musicais
encontradas nas manifestações nacionais”. Dentre esses “procedimentos composicionais”, o ritmo é
identificado como o “gerador de motivos e unidade”, através do qual Guerra Peixe “procura assegurar
sua intenção de ‘comunicabilidade’.” (LIMA, 2002, p. 208)
56
constantemente a figuração rítmica e o contorno melódico dos motivos. Como no
idioma tonal, essas repetições (dos motivos e de todo um “argumento”) definem
frases, seções e partes da estrutura formal nas duas peças.
O dualismo repouso/tensão ocorre na maioria das frases das duas peças e
também contribui para a definição da estrutura formal. O material temático é
conduzido do repouso à tensão, e vice-versa, principalmente, pela variação de
densidade da escrita (uma região de menor densidade corresponde ao repouso e
uma região de maior densidade, à tensão). Esse dualismo menor densidade/maior
densidade pode ser associado ao dualismo Tônica/Dominante do sistema tonal. O
exemplo mais evidente é o primeiro movimento de Música.
Esses dois recursos estruturais (repetição e dualismo repouso/tensão) são
reforçados pelo equilíbrio formal e pela “cor” harmônica. O primeiro, é garantido
pelo princípio da proporção áurea (seguido, aproximativamente, nas dimensões das
partes e na localização dos pontos culminantes das duas peças), conferindo à
estrutura formal um sentido de ordem e harmonia, princípios que, historicamente,
sempre atraíram o homem. O segundo, a “cor” harmônica, não tem função
estrutural e se refere ao uso, na parte do piano do Allegretto, de conjuntos de
classes de notas com formações diatônicas (escalas, arpejos e fragmentos de
escalas e arpejos), que trazem à partitura cores tonais e modais.
Todos esses elementos (repetição, dualismo repouso/tensão, equilíbrio formal e
“cor” harmônica) são utilizados de um modo familiar ao ouvinte brasileiro da época,
facilitando, assim, a apreensão da forma. Contudo, é interessante observar que no
início de sua Fase Dodecafônica (quando foram escritas as peças aqui analisadas),
Guerra Peixe não se preocupava com a “comunicabilidade”, sendo a presença dos
elementos apontados acima uma antecipação, de certo modo, do direcionamento
que levou o compositor, no final da década de 1940, ao abandono da técnica
dodecafônica e ao retorno ao nacionalismo
26
.
26
Em entrevista a Luiz Paulo Horta, Guerra Peixe afirma: (...) meus primeiros trabalhos
dodecafônicos não revelam intenção nacionalizante, digamos assim, porque o meu objetivo inicial era
dominar a técnica; mas uma vez que consegui isso, no segundo movimento lento, de um Trio de
Cordas de 1945 introduzi um tema, uma melodia torturada, que tem caráter modinheiro.” (HORTA,
1983, p. 258 apud MALAMUT, 1999, p. 19)
57
Como última consideração, entra uma questão de mérito. Afinal de contas, o que é
mais evidentemente “comunicável” em Música e em Allegretto con moto?
Certamente a forma: Guerra Peixe nos fornece elementos suficientes para que
possamos identificar motivos, frases e a estrutura como um todo, com seus pontos
culminantes, mudanças de caráter etc. É muito interessante observar a beleza da
arquitetura dessas peças, assim como a fusão que o compositor faz dos idiomas
atonal e tonal. Entretanto, essas peças carecem de um respiro mais amplo, de uma
abertura. São excessivamente medidas e controladas, gastando todos os seus
recursos na definição dos parâmetros que nos permitem identificar a sua estrutura.
Não quero com isso negar que sejam obras de arte. De fato, de acordo com
HEIDEGGER (2004, p. 38), os dois traços essenciais da obra de arte são “a
instituição de um mundo e a produção da terra” e essas composições, justamente ao
nos chamar a atenção para a extrema organização dos sons, para as estruturas,
para a forma (e, nesse sentido, “produzir a terra”, ou seja, evidenciar algo que existe
ali naquelas peças musicais), tornam presente para nós um mundo” aquele da
mentalidade cientificista do século XX, com a sua pretensão de medir e controlar
tudo. No entanto, falta um “algo mais”. Algo que o próprio Guerra Peixe buscava e
que ainda não tinha encontrado, como fica evidente em seu comentário sobre a
Peça pra dois minutos, para piano, de 1947: “As obras ficam gradativamente mais
accessíveis [sic], pelo menos em termos relativos. (...) Contudo, a insatisfação
persiste” (GUERRA PEIXE, 1971, p. 13). Essa insatisfação persistente o levará, em
1949, a desistir do dodecafonismo para procurar esse “algo mais” na tradição
popular: é o início de sua Fase Nacionalista.
Permanece, porém, o valor da obra dodecafônica de Guerra Peixe e, especialmente,
das peças aqui analisadas: Música e Allegretto con moto representam, além de um
passo importante na trajetória pessoal do compositor, um exemplo particular e bem
sucedido da mistura dos idiomas atonal e tonal e nos ajudam a compreender um
pouco mais a mentalidade cientificista daquela época.
58
5 – Bibliografia
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1973.
2 GOMBRICH, Ernst Hans Josef. A História da Arte. Tradução de Álvaro Cabral.
16. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999. Original inglês.
3 GUERRA PEIXE, César. Allegretto con moto (1945). Rio de Janeiro: manuscrito,
1945. 1 partitura (4 p.). Flauta e piano.
4 GUERRA PEIXE, César. Memorial. Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG,
1971.
5 GUERRA PEIXE, sar. Música (1944). [S.l.]: manuscrito, [s.d.]. 1 partitura (12
p.). Flauta e piano.
6 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Maria da
Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, 2004. Original alemão.
7 KATER, Carlos. Música Viva e H.J. Koellreutter: movimentos em direção à
modernidade. São Paulo: Musa Editora/Atravez, 2001.
8 KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. 4. ed. Porto Alegre:
Movimento, 1984.
9 LIMA, Cecília Nazaré de. A fase dodecafônica de Guerra-Peixe; à luz das
impressões do compositor. 2002. 245 f. Dissertação (Mestrado em Artes
Música) Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2002.
10 LUCAS, Glaura. Análise do Allegretto con moto, de C. Guerra Peixe. Cadernos
de Estudo – Análise Musical, Belo Horizonte, n. 5, p. 84-96, fev – ago, 1992.
11 MALAMUT, Stael Viegas. A flauta na música de câmara de Guerra Peixe. 1999.
153 f. Dissertação (Mestrado em Música Brasileira) Centro de Letras e Artes,
Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
12 MARCONDES, Marco Antônio. Enciclopédia da Música Brasileira: popular,
erudita e folclórica. 2. ed. São Paulo: Art Editora/Publifolha, 1998.
13 NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi
Brasileira, 1981.
14 NOGUEIRA, Ilza. Ambigüidade e contextualidade: princípios fundamentais da
linguagem pós-tonal de Ernst Widmer. Cadernos de Estudo Análise Musical,
Belo Horizonte, n. 5, p. 1-20, fev – ago, 1992.
59
15 PERLE, George. Serial composition and atonality: an introduction to the music of
Schoenberg, Berg, and Webern. 6nd ed. Berkeley: University of California Press,
1991.
16 RANDEL, Don Michael. The New Harvard Dictionary of Music. 7nd ed.
Cambridge and London: The Belknap Press of Harvard University Press, 1995.
17 SADIE, Stanley; TYRRELL, John. The New Grove Dictionary of Music and
Musicians. 2nd ed. London: MacMillan, 2001.
18 TATLOW, Ruth. In: SADIE, Stanley; TYRRELL, John. The New Grove Dictionary
of Music and Musicians. 2nd ed. London: MacMillan, 2001.
19 WOLTZENLOGEL,Celso. Método Ilustrado de Flauta. Rio de Janeiro: Irmãos
Vitale Editores, 1982.
20 WUORINEN, Charles. Simple composition. New York: Longman, 1979.
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