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eleito pelo diretor. Das concepções estéticas (planos seqüência, utilização de grandes
angulares, flashbacks, profundidade de campo, travellings), passando pela perspicaz noção
do espaço cênico até citações diretas, com cenas nitidamente copiadas
206
, o Civic como
recordado no filme nunca existiu; trata-se da projeção de um artefato da infância,
alimentado por um amor genuíno pela arte e a citação explícita de um modo de concepção
do cinema. Ao lidar com essas particularidades, o documentário performático permite o
reenquadramento de lembranças, recontextualizando-as e “traduzindo-as para uma moldura
que se recusa a fetichizar o mistério (...)” (NICHOLS,1994,p.98).
A estrutura narrativa de Civic é fragmentada, uma costura de imagens evocativas,
sugestivas, icônicas, concebidas e poéticas
207
. Esse condensado de expressividade tem uma
provocante função excessiva, exatamente porque aspira polarizar o Civic da imaginação ao
Civic como existe hoje, uma velha sala de cinema
208
.
Internamente, a estrutura do documentário pode ser desmembrada em três
‘intervenções’. Primeiro, há o processo de tessitura, que parte de um agregamento de
fragmentos de características icônicas: imagens do velho teatro, fotos das dançarinas,
cartazes, panfletos, filipetas, ingressos, registros da cidade de Auckland, registros das obras
de construção do Civic e notícias de jornal que estão diretamente vinculadas à fala de
Wells. O texto, sugestivo e personalizado
209
, evocativo e intensamente criativo, narra a
ascensão e queda de um mito
210
. Em seguida, as entrevistas e as imagens do Civic no
presente, que correspondem a uma concessão à realidade do teatro. A porção histórica do
filme se manifesta nas imagens do teatro em ruínas, no testemunho de operários que
trabalharam na construção, de freqüentadores do período histórico e, principalmente, do
205
“Não há provavelmente qualquer outro prédio em Oakland com mais história agregada, velhas memórias,
ficção.” – narração de Peter Wells
206
Ao narrar a falência do proprietário do Civic, Wells replica a cena de Charles Kane morrendo com a bola
de vidro na mão; no lugar da casa de infância, a fachada estilizada do teatro Civic.
207
É verdade que aos elementos performáticos se misturam outras formas mais pertinentes ao documentário
tradicional – como o uso de entrevistas de caráter testemunhal. Entretanto, esse tipo de filme permite o uso de
estratégias de discurso de outros modos, ressemantizadas (Molfetta)
208
Propositalmente, as imagens do Civic atuais são filmadas sem nenhum recurso de luz ou enquadramento.
Se opõe radicalmente ao tratamente artístico que cabe à ambientação do Civic do imaginário de Wells
209
Assim como grande parte dos filmes performáticos, “Civic” está densamente calcado na estrutura oral.
Vale lembrar que Orson Welles, a referência do filme, era um diretor oriundo do teatro e do rádio – boa parte
de sua invenção cinematográfica passa pela incorporação das técnicas dos dois meios à tela grande
210
As proporções do Civic são de uma ordem faraônica. Quando relata o período de construção do teatro, a
fala de Wells nos informa que: “Assim começou o heróico período do que deve ser lembrado como a versão
de Auckland da construção das pirâmides”