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DOCUMENTÁRIOS PERFORMÁTICOS: a incorporação do autor como inscrição da
subjetividade
PATRICIA REBELLO DA SILVA
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação
Mestrado
Orientadora: Profa. Dra. CONSUELO LINS
Rio de Janeiro
2004
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2
DOCUMENTÁRIOS PERFORMÁTICOS: a incorporação do autor como inscrição da
subjetividade
PATRICIA REBELLO DA SILVA
Dissertação submetida ao corpo docente da
Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção
do grau de Mestre.
Aprovada por:
_______________________________
Profa. Consuelo Lins – Orientadora
Doutora
_______________________________
Profa. Andréa Molfetta
Doutora
_______________________________
Profa. Ivana Bentes
Doutora
Rio de Janeiro
2004
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3
Silva, Patricia Rebello da.
Documentários performáticos: a incorporação
do autor como inscrição da subjetividade / Patrícia
Rebello da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004,
186p.
Dissertação – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, ECO.
1. Cinema. 2. Documentário. 3. Teoria
4. Produção de sentido. 4. Dissertação (Mestr. –
UFRJ/ECO). I. Título.
4
Dedico este trabalho a minha família, que
me deu o apoio necessário para que a
pesquisa fosse realizada. Mãe, tia, avós,
irmã; essa dissertação não seria possível
sem a compreensão de todas vocês, minhas
meninas.
5
AGRADECIMENTOS
Diversas pessoas estiveram presente e foram necessárias para que a pesquisa
chegasse à forma da dissertação.
A Consuelo Lins, minha orientadora, obrigada pela compreensão, pela presença,
pela sabedoria e por uma orientação que extrapola esses dois anos de curso. Foi seu
trabalho a principal orientação e inspiração desse texto, e espero não tê-la
decepcionado.
Aos professores, pela quantidade e qualidade de sabedoria que tanto colaboraram
para que o trabalho se tornasse mais interessante. Aos senhores, Beatriz Jaguaribe,
Beatriz Resende, Heloísa Buarque de Hollanda, Ivana Bentes, Janice Caiafa e Muniz
Sodré, meu eterno obrigada.
Professora Raquel Paiva, mestra e coordenadora no Projeto Bolsista Integrado,
obrigada pelo carinho e a atenção sempre.
Nos diversos momentos deste trabalho, Amir Labaki, José Carlos Avellar, João
Moreira Salles, Karim Ainouz e Kiko Goiffman, pelos filmes, as entrevistas e as
informações preciosas para a pesquisa.
A Julio César de Miranda, da Polytheama Vídeolocadora, não apenas pela
descoberta e indicação dos filmes que foram objetos de análise, mas por ensinar a
amar o documentário não apenas como uma forma de cinema, mas como uma forma
de expressão particularmente pessoal.
Ao Dr. Fabrício Braga, que trouxe paz ao ambiente ao redor, tornando possível o
trabalho de pesquisa. Obrigada pela amizade e atenção.
À minha família, que em nenhum momento deixou de me apoiar, em todos os
sentidos para que eu pudesse me dedicar exclusivamente à pesquisa.
6
RESUMO
SILVA, Patricia Rebello da. Documentários Performáticos: a incorporação do autor como
inscrição da subjetivade.
Orientadora: Profa. Dra. Consuelo Lins. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004. Diss.
Este estudo tem como objeto principal o filme documentário –
especificamente, a descrição e análise e discussão de um tipo específico de filmes dessa forma
de cinema, o documentário performático, tal como foi identificado pelo teórico americano
professor Bill Nichols. Os documentários performáticos caracterizam-se por uma
abordagem essencialmente subjetiva, trazendo o próprio documentarista e seus
questionamentos mais particulares para o centro do filme. A ficcionalização da
objetividade, a importância da auto-representação, a incorporação do conhecimento e
processos de auto-reflexão são algumas questões tratadas. Essa dissertação procura
descrever o processo de criação da subjetividade no campo do filme documentário,
encontrando no performático um momento emblemático dessa representação.
A dissertação se divide em 2 partes. Na primeira, trata-se de
esclarecer as bases teóricas do documentário – em especial, na metodologia definida por
Bill Nichols – criando bases para a absorção do conhecimento do documentário
performático. A segunda parte concentra-se na análise de filmes, divididos de acordo com
as principais características identificadas.
O estudo do documentário performático tem por função instigar a
descoberta de novas formas de linguagem para esse tipo de cinema, complexificando um
campo teórico que vem crescendo com força.
7
ABSTRACT
SILVA, Patricia Rebello da. Performatic documentaries: the embodiment of the author as
the inscription of subjectivity.
Adviser: Profa. Dra. Consuelo Lins. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004. Diss.
These study has as its main objective the documentary film –
specifically, the analysis and description of a unique kind of film from these form of cinema,
the performative documentary, as identified by the american theorist, professor Bill
Nichols. The performative documentaries are mainly identified by an essencially subjective
approach, bringing the documentarist himself and his most inner questions to the center of the
film. The fictionalization of the objectivity, the high meaning of self-representantion, the
embodiment of knowledge and process of self-reflection are some of the issues brought about
in these research. These dissertation try to describe the methods of creation of subjectivity in
the documentary film field, finding in the performative an emblematic moment in these
representation.
The dissertation is divided in 2 parts. In the first, we will search to
clarify the theoretical bases of documentary – in special, regarding the methodology defined
by Bill Nichols – creating some kind of bases for the absorbing of the knowledge of the
performative documentary. The second part is focused in the analysis of films, separated
according the main characters identified.
The study of the performative documentary search to instigate the
discovery of new uses for language in these form of cinema, disturbing a theoretical field that
has been growing with full power.
8
SUMÁRIO
Introdução
1. Pintura Intima....................................................................................................... 11
2. Entre o autor e seu Personagem........................................................................... 16
3. Estrutura e metodologia........................................................................................ 21
Capítulo I
1. “Subjetivando” uma percepção subjetiva............................................................. 27
2. A ficção da objetividade........................................................................................ 31
3. “Prazer em conhecer”.......................................................................................... 35
4. Formas de realismo no documentário.................................................................. 37
5. A construção da ‘voz’ no documentário............................................................... 41
6. Um modo afetivo de representação...................................................................... 44
Capítulo II
1. Modos de representação no documentário: estratégias e
representações de experiências
1.1 O estabelecimento dos modos de representação.......................................... 46
2. Os modos de representação de Bill Nichols
2.1 Modo poético................................................................................................ 50
2.2 Modo expositivo............................................................................................51
2.3 Modo de observação..................................................................................... 54
2.4 Modo interativo............................................................................................ 58
2.5 Modo reflexivo.............................................................................................. 62
9
Capítulo III
Documentário performático:
nova forma, antigas questões........................................................................... 64
1. Gênese............................................................................................................. 66
2. Princípios de organização do sujeito:
o corpo do documentarista no centro.............................................................. 69
3. Princípios de organização do mundo:
a subjetividade social...................................................................................... 72
4. Princípios de organização da experiência: afetos......................................... 75
5. Principais influências e características......................................................... 76
Capítulo IV
Treyf, ou, Uma retórica da auto-etnografia................................................... 81
1. A pós-modernidade no discurso auto-etnográfico......................................... 83
2. ‘Treyf’............................................................................................................. 87
Abertura....................................................................................................... 88
1ª parte: ser ou não ser ‘treyf’?................................................................... 89
2ª parte: obssessões..................................................................................... 91
3ª parte: em Israel....................................................................................... 93
4ª parte: a grande filmagem........................................................................ 96
5ª parte: correspondência afetiva............................................................... 98
Capítulo V
A expressão do afeto aproximando distâncias:
The Mighty Civic e Porto da Minha Infância................................................ 101
1. Duas construções estimulantes..................................................................... 102
2. Escolhas de estilo, estruturas de afeto......................................................... 105
3. A lógica do afeto dominante......................................................................... 109
4. “Porto da minha infância”: focalização interna (cronotopo afetivo)......... 112
5. “Civic”: o afeto como experiência da distância.......................................... 116
10
Capítulo VI
A auto-inscrição como performance:
“33” e “Os catadores e a catadora”............................................................... 121
1. O “narrador” de Benjamin e o documentário performático........................ 124
2. Dois filmes, duas performances, dois mundos, um modo.............................. 129
3. Em busca de um tempo perdido (?): “33”.................................................... 134
4. “La Varda” borralheira: Os catadores e a catadora................................... 139
Capítulo VII
A face oculta do performático: pós-modernidade na fronteira
entre fato e ficção: Nick’s movie – Lightning over water............................... 144
1. Pós-modernidade no documentário performático......................................... 149
2. “O amigo alemão”........................................................................................ 152
3. O tempo presente de Lightning over water: Nick’s movie............................ 156
4. O tempo fictício em Nick’s movie: Lightning over water.............................. 160
5. O uso do vídeo em Nick’s movie: sintoma pós-moderno.............................. 163
Conclusão
1. Um último exemplo....................................................................................... 169
2. Por uma poética da subjetividade................................................................ 173
Bibliografia ..................................................................................................... 177
Anexos
Representações de experiências: outros modos
1. Gênese
2. Paul Rotha
3. Eric Barnouw
4. Stella Bruzzi
11
INTRODUÇÃO
“A boa notícia quanto ao documentário, é acima
de tudo, que a palavra (...) soa hoje em dia menos
rígida; perdeu seu antigo aroma tosco, seu velho
rótulo de autenticidade cem por cento verificável.
No entanto, o documentário não trocou um limite
por outro; não trocou seu perfume bruto de
Realidade por aquele mais glamouroso da Arte. Ao
contrário, mil fragrâncias se difundem (...) em
torno dele, abrindo a palavra para além dos limites
de um gênero, de um gueto propriamente dito.
Isso pode ser enunciado em uma fórmula: o
documentário prospera no presente sem unidade
nem definição a priori.”
1
1) PINTURA INTIMA
Durante toda sua história, o documentário assumiu variadas formas de
relacionamento com seu objeto de filmagem. Sejam essas formas determinadas pelas razões
fundamentais de realização do filme, das inovações tecnológicas nos equipamentos de
registro ou das experimentações, uma questão se mostrou dominante em todos esses anos:
documentários são filmes construídos em torno, ou a partir, de personagens – sejam eles de
‘carne e osso’, sejam eles produtos de uma idéia, uma teoria determinada a partir de um
discurso dominante
2
. Se nos filmes de ficção, os personagens são construções meticulosas
onde o ator procura se ‘esvaziar’ para a incorporação de um outro fictício, no documentário
essa construção parte de um processo de enriquecimento desse ator – onde ele cresce a
partir de seu próprio conteúdo, concebendo assim um método particular de invenção. A
construção se dá em uma direção diferente da ficcional: no lugar de se esvaziar, o ator do
documentário incorpora valores, virtudes e modos que estão a seu alcance: parte do seu
ambiente, do seu tempo, da sua cultura; se acomodam ao instante presente como este lhe é
percebido. A longa tradição dessa forma de escrita cinematográfica se distingue por tratar
1
La bonne nouvelle”, por Emmanuel Burdeau, em Cahiers du Cinéma (nº594), outubro de 2004
2
Me refiro aqui aos filmes sobre cidades (Berlin - sinfonia de uma cidade), monumentos (A ponte, O rio) e
eventos, como guerras (Corações e Mentes). Os filmes são estruturados ao redor desses ‘objetos’, de forma
que a organização gira sempre em torno da construção de uma representação – o que pode ser entendido como
a criação de um personagem.
12
menos de temas, e mais de sujeitos – mesmo que isso tenha acontecido de forma velada
3
.
Seja obedecendo a uma gramática de guerrilha, de reportagem, de observação, científica ou
reflexiva, o filme documentário sempre procurou discutir os grandes temas que afligem a
humanidade a partir da descoberta e representação dos sujeitos que são os ‘personagens’ da
História. Nem sempre no proscênico, sob a luz dos holofotes; quase sempre sujeitos ocultos
nas multidões, o ser humano sempre foi o tema predominante nos documentários.
Estabelecer o documentário como um filme de personagens significa, naturalmente,
proceder a um recorte específico de análise – ainda que isso não devesse restringir uma
escolha de filme porque implica na maioria das vezes em uma forma peculiar de olhar para
essas produções. Como colocado acima, mesmo os documentários que se destacaram pela
abordagem de temas maiores se concentraram sobretudo na reação esboçada por homens e
mulheres aos acontecimentos
4
. Filmar sujeitos necessariamente significa filmá-los em um
lugar, em um tempo e momento; o cruzamento dessas variantes permite uma composição
de ordem matricial: partindo do estabelecimento de uma individualidade, podemos instituir
uma localização no próprio mundo histórico, se o referencial obedecer a signos de
indexicalidade; podemos viabilizar a produção de um cronotopo, de um tempo e um
espaço ‘inventados’ que autorizam a criação de um contexto para a narrativa; ou podemos,
entre todas as possibilidades, partir para um formato que se tornou extremamente rotineiro
na produção contemporânea de documentário: os filmes-biografias – predominante nos
documentário produzidos para a televisão’
5
.
3
Eis um trecho da crítica da revista Time sobre o filme Terra Espanhola (1937), de Joris Ivens: “Desde o
filme mudo francês ‘A paixão de Joana D’Arc’ nenhum outro conseguiu fazer uso dramático da face humana.
À medida que face após face olham em direção à tela, o filme se torna um tipo de portfolio de retratos da alma
humana em presença de desastre e desarmonia. (...) Essas são faces de velhas mulheres retiradas de suas
casas em Madri por segurança, olhando para o futuro negro e incerto, faces aterrorizadas após um bombardeio
(...) e faces cheias de dor, determinação e medo” (apud BARNOUW,1993,p.136). Em Faces de Novembro
(1963), documentário sobre o funeral do presidente JF Kennedy, Robert Drew procurou uma forma de
representar a dor do povo americano e encontrou-a no silencioso registro de faces atônitas da multidão.
4
Humphrey Jennings, um dos nomes mais importantes da escola de cinema britânica – renomada por sua
preferência pelo documentário comentado, didático e impessoal – produziu documentário extraordinários ao
se concentrar nos momentos de tensão vividos pelos cidadãos britânicos em torno da entrada da Inglaterra na
2ª GM. Barnouw vai dizer que os filmes de Jennings “estão repletos de pequenos e ordinários momentos
(1993,p.145)
5
É importante entender a televisão como potência para a produção e veiculação de documentários. Mesmo
que essa informação guarde o paradoxo de que se trata de um meio absolutamente escravo de regras
formalistas (em função do volume de capital envolvido) produzindo e patrocinando um gênero rico na
experimentação e a transgressão de formas. Não é à toa que os horários de veiculação desses filmes são os
mais desprivilegiados.
13
Filmes-biografias proliferaram em resposta a uma demanda por funcionalidade:
seguindo a lógica da informação predominante nesse meio, as biografias são filmes (ou
programas) onde a informação está organizada em torno do conhecimento sobre alguém;
fica estabelecido que todas as imagens, os depoimentos, todos os elementos constitutivos
têm um ponto em comum: o referencial exterior, construindo uma estrutura de satélite.
Cada imagem, bem como a fala, não corresponde a relatos de si, não constituem
‘acontecimentos orais’, mas um olhar sobre o outro. Assim, vozes e imagens são articuladas
para a produção de uma representação sobre o mundo. Nos anos 60, o pesquisador Jean-
Claude Bernardet já identificava a presença dessa estrutura
6
nos documentários. Os filmes
que identificou como modelos sociológicos são caracterizados por uma “exterioridade do
locutor em relação à experiência” (BERNARDET,2003,p.18). A experiência (o filme) é
estruturada a partir da organização de vozes, fragmentos e dados, que são reunidos ao redor
do assunto principal. São filmes que pré-concebem uma teoria à sua execução, sendo o
trabalho no campo a contabilização de imagens, vozes e situações que confirmam o
conhecimento teórico. A interação do documentarista com o filme é pouco seminal, e a
busca por uma abordagem neutra procura eliminar qualquer traço de autoria
7
ou evocação.
Assim, esses documentários se tornam menos filmes de expressão que produtos da geração
de um conhecimento
8
. O perigo desse formato está na transformação desse conhecimento
(um amálgama de partes) no substituto de um todo muito mais complexo, fragmentado e
multifacetado, que é aquilo que percebemos como a ‘nossa realidade’.
No entanto, formatos ‘tele-biográficos’ correspondem a apenas uma das facetas na
produção contemporânea de documentários; para além dessa fórmula, percebe-se cada vez
mais o surgimento de títulos diretamente ligados à produção de filmes de inspiração
biográfica
9
. Uma olhada no catálogo do último festival “É Tudo Verdade”
10
dá uma
6
Em documentários produzidos para o cinema, uma vez que a televisão ainda era um meio relativamente
novo.
7
Em artigo publicado na Cahiers du cinéma em novembro de 1983, Pascal Bonitzer faz a seguinte
observação sobre a problemática relação do cinema de autor com o público em geral: “Não há problema de
autores, há problemas de standardização. “ (p.9). Para Bonitzer, o público busca se reconhecer nos filmes;
para isso, procura nas narrativas por determinados códigos que já estão pré-estabelecidos na gramática
cinematográfica.
8
Além de representar o conhecimento de quem fala
9
Com isso, não quero dizer que a produção de filmes biográficos é maior que qualquer outra – basta constatar
a enorme quantidade de filmes de inspiração política produzidos nos últimos 5 anos, em especial aqueles
focados sobre o incidente no WTC em 11 de setembro e suas conseqüências.
14
pequena mostra: dos cerca de 70 filmes exibidos, mais de 25 títulos podem ser tratados
como biografias, filmes cuja principal função é a produção de um registro de vida sobre o
outro e sobre si. A proliferação dos filmes-biografias está diretamente relacionada a uma
das principais discussões no campo da teoria do documentário: a idéia de que a produção de
conhecimento nestes filmes estaria impregnada de uma noção de verdade, sempre em
iminência de, pretensiosamente, abranger a parte real que lhe inspira – daí todos os debates
envolvendo questões de ética política, moral e educação que surgem a cada novo filme
11
.
A questão da informação verdadeira no documentário é talvez, a mais antiga das
discussões neste campo alcançando as primeiras análises críticas. Em 1926, escrevendo
sobre Moana, filme de Robert Flaherty, John Grierson – considerado por muitos como o
patrono da escola inglesa de documentários – utilizava pela primeira vez a palavra
documentário na qualidade de registro, prova, documento cultural; textualmente, “um
relato visual dos eventos da vida diária de um jovem polinésio e sua família” (apud
ROSENTHAL,1988,p.21). Posteriormente, a escola desenvolvida por Grierson se
solidificou em torno da produção de filmes de caráter didáticos, que buscavam construir o
retrato cultural e econômico de uma Inglaterra em expansão, atravessada pelas inovações
da Revolução Industrial, mas também atenta no aspecto da tradição e dos conflitos bélicos.
Até aqui, temos uma forma de cinema que prolifera em função do conteúdo
informativo que existe nos filmes; não por outra razão, durante os primeiros 50 anos o
documentário teve como tema grandes conflitos, questões sociais e culturas exóticas. Uma
discussão sobre a quantidade e a qualidade de ‘verdade’ nestas construções pode ser
‘formalmente’ estabelecida em torno do princípio dos anos 60, quando os filmes começam
a ser analisados a partir da constatação de uma linguagem específica, gramática e semântica
próprias
12
- nos Estados Unidos com o cinema direto e, principalmente na Europa, onde se
desenvolve a escola do cinéma verité. Já no final dos anos 80 o pensamento teórico do
documentário afirmava que discussões sobre uma pretensa verdade contida nesses filmes
10
O ‘É Tudo Verdade: festival internacional de documentários’ é considerado o maior festival de
documentários da América Latina. Desde sua última edição, em abril de 2004, acontece no Rio de Janeiro,
São Paulo e Brasília.
11
No momento da redação dessa tese, o exemplo mais óbvio e inequivocado é o novo filme do
documentarista americano Michael Moore Farenheit 9/11, um ataque fulminante ao presidente dos Estados
Unidos George Bush com pretensões de evitar a reeleição para o cargo.
15
consistiria em exercício estéril, uma vez que tanto a semiologia como o estruturalismo já
haviam estabelecido que, assim como o filme de ficção, o documentário utiliza métodos de
significância que estão prontos a inscrever qualquer representação no campo simbólico
(ROSENTHAL,1988). Buscando equilibrar interpretações objetivas e subjetivas, no início
da década de 90 o documentário começava a se distinguir pelo desenvolvimento do
pluralismo estético que é hoje uma de suas maiores características; consolidava-se uma
tendência para a produção de filmes utilizando e ao mesmo tempo desafiando a linguagem
do mundo e das pessoas que se propunha representar
13
.
Entretanto, uma discussão teórica do documentário solicita mais que uma análise da
funcionalidade destes filmes como expressão de época: uma análise dos todos de
significância, uma vez organizados e agrupados, permite enxergar não apenas “o porquê”
da existência dos filmes, mas a forma como se organizam em relação aos valores cultuados
pelo mundo onde existe. Estabelecem, assim, um modo de representação.
O desenvolvimento de modos de representação significa menos o desaparecimento
de técnicas que a incorporação de estratégias desenvolvidas em um momento histórico. De
acordo com Bill Nichols, um dos maiores pesquisadores do gênero e criador de uma das
estruturas mais bem sucedidas para a compreensão do documentário
14
, “uma vez
estabelecido através de uma série de convenções e paradigmas, um determinado modo
permanece disponível para todos os outros” (NICHOLS,2001,p.100). Ou seja, um modo
corresponde a uma apropriação de formas de relacionamento convenientes. Essas escolhas
determinam, periodicamente, o aparecimento de filmes que estabelecem e constroem uma
forma de aproximação com o sujeito e com o mundo, além de refletirem um tipo de relação
que se institui com a imagem; ambos procedentes de um acúmulo de procedimentos através
12
É preciso lembrar que, já no final dos anos 30, Paul Rotha, da escola de documentário inglesa, definia em
seu livro Documentary Film uma estrutura de classificação para os filmes – similar àquela que Nichols virá a
desenvolver cerca de 50 anos mais tarde.
13
É imprescindível lembrar aqui o cinema produzido por Dziga Vertov no começo do século. Da mesma
maneira que o movimento surrealista gerou uma enorme quantidade de filmes com uma linguagem própria –
Vertov produziu filmes altamente representativos do momento da Revolução Russa. Da mesma maneira, o
cinema de Jean Rouch – e especificamente ‘Crônica de um verão’ (1961), em parceira com Edgar Morin.
Notadamente, o cinema documentário latino americano é devidamente marcado por uma veia política e
militante, amplamente representativa dos movimentos de reação da época.
14
No início da década de 90, no livro Representing Reality, Bill Nichols estabele uma classificação para as
formas de representação da realidade nos filmes documentários, os ‘modos de representação’. Agrupados nos
modos poético, expositivo, de observação, de participação, reflexivo e, mais recentemente, performático, se
tornaram a base fundamental de compreensão para a teoria do documentário.
16
dos tempos. Assim, ressemantizando diferentes estratégias, desenvolvemos uma maneira de
pensar através do documentário. A incorporação de elementos e formas de aproximação,
provocando uma interrelação entre os modos, tem produzido filmes de difícil classificação,
tão fragmentados e incertos como a própria sociedade contemporânea
15
.
No entanto, em inúmeras ocasiões, ainda é costume o documentário se tornar fonte
de discussão a partir do conteúdo dos filmes, quando, na verdade, a forma da abordagem é
tanto ou mais fundamental. Há quem defenda, como o crítico e cineasta francês Jean-Louis
Comolli, que o que interessa na reflexão e na prática do documentário é a questão do
dispositivo de produção (a estratégia de aproximação e relacionamento que se estabelece),
e não o conteúdo. Documentários são filmes ‘ricos’ exatamente pela pluralidade de formas
oferecidas para o desenvolvimento de um mesmo tema. Um debate sobre a ética no
documentário passa diretamente pela estética escolhida para a representação, que difere
exatamente por, deslocando a atenção do conteúdo, criar um ambiente onde o próprio
público possa exercer uma função intelectual. Os modos de representação desenvolvidos
por Bill Nichols são estruturados em torno da forma de organização do material – não dos
assuntos
16
. De certa maneira, não seria errado afirmar que o documentário é uma
representação possível para a forma como o documentarista se sente e existe no
mundo.
Seguindo esse raciocínio, podemos entender o quão pouco biográficos são as tele-
biografias, e como a idéia de criar um retrato (ou seja, biografar) passa necessariamente por
uma construção do próprio auto-retrato do realizador, filtrado por uma interpretação e
organizado em torno de uma representação. Podemos, dessa forma, ressemantizar também a
idéia de Grierson, ao afirmar que o valor documental dos filmes documentários diz
respeito à produção de um documento sobre quem o realiza. Se todo filme traz a marca
do realizador, o documentário é também, de certa maneira, seja sobre que tema for, uma
espécie de ‘pintura íntima’.
2) ENTRE O AUTOR E O PERSONAGEM
15
Assunto que iremos desenvolver no capítulo 7
16
Ainda que os temas estejam ligados ao tempo do mundo – porque representam a fonte de questionamento
do documentarista.
17
O que nos interessa especificar nessa dissertação é discutir uma vertente da tradição
do documentário que foi definida a partir da constatação de uma aproximação afetiva entre
o realizador e seu objeto de filmagem, expressa necessariamente na primeira pessoa; obras
que exprimem um duplo movimento de interpretação e representação do realizador. Os
principais aspectos dessa pesquisa estão localizados na discussão de um certo tipo de filme
que surge no rastro das inovações perpetradas no documentário a partir dos anos 60, e cuja
organização temática e formal está centralizada na figura do próprio documentarista. São
filmes auto-referentes, que tratam do próprio processo de produção da reflexão.
Retomaremos aqui a noção criada por Bill Nichols a respeito dessa produção:
documentários performáticos
17
.
Bill Nichols é uma das maiores autoridades do cinema documentário e do filme
etnográfico. É professor de cinema da San Francisco State University e diretor do
Programa de Graduação de Estudos de Cinema. Sua classificação dos modos de produção
de documentário, estabelecida no livro Representing Reality, de 1991, assinala uma forma
de estudo da teoria do documentário
18
. Basicamente, Nichols impetrou uma série de
procedimentos que, juntos, funcionam hoje como uma teoria “oficial” do documentário em
relação à qual a maior parte dos pesquisadores que trabalham com esse tipo de cinema
necessariamente se refere, seja em procedimentos de retomada, negação ou discussão sobre
uma ou várias de suas características. Os modos por ele definidos procedem da seguinte
maneira: primeiro, por uma classificação de desempenho dos atores sociais, personagens
criados a partir dos procedimentos de aproximação e montagem do documentário (a forma
de representação dos sujeitos no filme); em seguida, de uma periódica revisão das formas
de representação, sempre contrastantes, que surgem a partir de uma oposição entre mundo
histórico e mundo do documentarista (o próprio filme enquanto representação do
mundo). Em todos os modos, fica claro que estamos diante de uma construção
cinematográfica.
O modo performático corresponde ao último dos modos identificados por Nichols.
Os documentários estudados nesta dissertação não cobrem, evidentemente, a totalidade do
17
Se nos lembramos do primeiro texto de Grierson, é como se estivéssemos falando de um ‘documentário
virtual’, onde a performance se refere à organização do conjunto do material, produzindo uma fala específica.
Aqui, o termo ‘performático’ se aplica na forma de organização das idéias em relação a um dado tema.
18
filmes definidos pelo teórico como ‘performáticos’, mas são amplamente representativos da
proposta de abordagem que encontra abrigo nesta definição. A razão para a delimitação do
corpus do estudo é simples: o documentário perfomático está inserido no movimento de
filmes híbridos contemporâneo, e suas características são de uma riqueza tamanha que o
campo das influências que incidem sobre ele é talvez o maior em toda a história do
documentário. Podemos citar alguns exemplos: o surrealismo dos anos 20, os movimentos
de vanguarda dos anos 70, o cinema experimental, o cinema etnográfico, o cinema de
ficção noir, os concertos musicais, as reportagens jornalísticas, entre outros
19
. Grande parte
da inspiração nos filmes performático está num desejo de explorar as potencialidades tanto
dos aparatos técnicos como das formas de representação do mundo. Com isso, quero dizer
que o documentário performático representa a criação (ou invenção) do diálogo do
documentarista consigo e com suas técnicas. É um embate particular na tentativa de criação
de sentido: a “autoreferencialidade previne a representação ilusionista da pessoa histórica
como a representação de um personagem de narrativa ou ícone mítico”
(NICHOLS,1991,p.261). Ou seja: para Nichols, a raiz do problema da representação no
documentário está na possibilidade de criação de verdades que podem vir a ser assimiladas
como imponderáveis. Procedimentos de reflexividade, escreve ele, podem amenizar o
surgimento de um senso de realidade no acesso ao ator social e à sua concepção do que
seja o mundo.
Assim, a produção de documentários que, no lugar de se concentrarem em
informações sobre um outro, trabalham a questão da reflexividade em si aproxima-se muito
de uma idéia justa sobre o documentário. Não se trata mais da realização de um filme que
objetiva refletir sobre determinado tópico
20
: no performático, o assunto é quase uma
‘desculpa’ para a realização do filme. Trata-se de uma reflexão sobre a própria necessidade
da realização, um processo que obrigatoriamente se encerra em si mesmo. Caso de filmes
como 33, do antropólogo Kiko Goiffman, que narra a busca da mãe biológica do diretor
estruturada em métodos de investigação adaptados às regras dos filmes clássicos de
18
Identifica formas de aproximação, elementos e técnicas de estrutura de pensamento, além de agrupar
fórmulas de construção para a organização de imagens e idéias do mundo.
19
Foi na constatação dessa ‘liberdade’ para misturar as estratégias dos outros modos que emerge um desejo
de indagação dos documentaristas.
20
Um dos grandes estímulos dessa pesquisa foi criar um parâmetro de delimitação entre o modo reflexivo e o
performático, na estrutura dos modos de Nichols.
19
detetive; The Mighty Civic, de Peter Wells, onde o documentarista recria uma antiga sala
de cinema de sua cidade partindo de uma construção baseada na invenção e na memória,
como um artefato onírico da infância; Os catadores e a catadora, filme onde a diretora
Agnès Varda examina uma tradição cultural concomitante à re-invenção de sua própria
imagem como catadora; Porto de minha infância, onde o diretor Manuel de Oliveira
percorre a cidade reencenando sua própria infância; entre outros que serão estudados nessa
dissertação.
Os filmes a serem trabalhados aqui envolvem especificamente aqueles narrados em
1ª pessoa, onde o processo de organização incide na construção de um corpo de
conhecimento sobre o documentarista. A função do narrador, como estabelecida pelo
filósofo alemão Walter Benjamin, é um dos recortes possíveis de aplicação na metodologia
desses filmes, na medida em que existe uma dimensão utilitária nessas narrativas. Elas são
‘tecidas na substância viva da existência’, como escreveu o filósofo alemão. Para
Benjamin, a principal característica do narrador é retirar da experiência aquilo que conta. E,
da mesma forma como o filósofo acreditava que a informação é a morte da narrativa, o
documentário performático define sua forma no resgate da experiência da auto-narração, se
distanciando de uma perspectiva informativa.
Para Bill Nichols, a estrutura do documentário performático passa pela concepção
de um conhecimento incorporado, uma assimilação de elementos facilitadores para a
compreensão dos mecanismos operacionais de uma sociedade; para o autor, existe a
possibilidade do conhecimento de forma concreta e incorporada (ou concreta porque
incorporada), baseada nas especificidades da experiência pessoal, na tradição da poesia, da
literatura e da retórica (2001,p.131). Catherine Russel, em estudo sobre a prática da
etnografia experimental, ressalta a utilização desses filmes como uma forma de inscrição
pessoal num mundo de imagens. Assim, se trata menos de uma interiorização do mundo
pelo autor (como na literatura de Clarice Lispector) e mais de uma exteriorização do
documentarista. Para Russel, cujo estudo da auto-etnografia pós-moderna está situado na
produção de filmes, a sociedade, hoje, é vista a partir de um discurso televisivo e imagético,
e toda a questão de identidade é atravessada pela determinação de um senso de localização
do self em um escopo cultural (Russel,2001). Grande parte dos filmes estudados por
Nichols, e que formam o corpo de sua definição de performático dialogam com temas
20
antropológicos, como identidade e representação cultural (ainda que a análise do teórico
não caminhe por terminologias e teorias antropológicas
21
). Nesse trabalho propomos a
descoberta dos elementos performáticos num campo mais amplo
22
, analisando filmes não
necessariamente vinculados à área.
Apontamos como a maior contribuição destes filmes a incorporação da
subjetividade como elemento mediador e integrador entre homem e mundo. Mas ao
falar de subjetividade necessariamente é preciso falar também de seu par antagônico: a
objetividade. Para Alan Rosenthal, a percepção da objetividade está diretamente
relacionada à discussão das construções de verdade no documentário. Para o autor, “não
pode haver objetividade, apenas afirmações subjetivas altamente personalizadas do
realizador” (ROSENTHAL,1988,p.13). Mesmo na qualidade de registros do mundo,
documentários são resultados de escolhas: de ângulos, seleção, interpretação, ponto de
vista, de rotinas, de evidências e formas de observação sobre o objeto da filmagem.
Documentários são, também, consequências de relacionamentos: o cinema de Robert
Flaherty só tem existência a partir do estabelecimento do forte sentimento de cumplicidade
com seus personagens; os filmes de Robert Drew e dos irmãos Albert e David Maysles só
foram possíveis com a construção de uma relação de confiança entre quem filma e quem é
filmado, o que faz com que a câmera seja incorporada no ambiente; a produção de Jean
Rouch só conheceu os incríveis patamares de invenção narrativa enquanto sintoma da
relação entre o diretor e os sujeitos que se submetiam à câmera
23
; os filmes reflexivos só
surgiram quando o documentarista decidiu criar um paralelo entre seus questionamentos e
as representações que o mundo faz de si.
Ao escolher tratar o aspecto da subjetividade no filme documentário, procuramos
evitar o estabelecimento de ligações que pudessem desvirtuar o estudo da evolução da
questão. Assim, não procuramos traçar paralelos entre o documentário e qualquer outra área
onde a subjetividade se revela um canal de interpretação (como a literatura, por exemplo).
21
Nichols é professor ativo de uma cadeira na área de antropologia. No livro em que conceitua o ‘modo
performático’, um de seus artigos, denominado ‘O conto do etnógrafo’ tem uma dimensão desconstrutiva a
respeito das práticas acadêmicas no confronto com a invenção destes novos filmes.
22
Os referidos filmes realizados no campo da antropologia têm, infelizmente, distribuição restrita e muitas
vezes ficam limitados aos circuitos de simpósios.
23
Existe uma corrente de pesquisa que opõe o cinema direto americano ao cinéma verité europeu. O vérité
surgia como uma espécie de ‘contraproposta’ à pretensa objetividade do cinema direto; a única ‘verdade’
desses filmes seria a impossibilidade da objetividade
21
No entanto, o trabalho desenvolvido por alguns teóricos, ainda que diverso do
documentário, pode acrescentar alguns elementos interessantes para a discussão do assunto.
Assim, trazer para esse debate a figura do narrador de Walter Benjamin e o estudo da
polifonia do discurso de Mikhail Bakhtin funcionaram como auxiliares no estabelecimento
de uma definição de subjetividade. Da mesma maneira, trazer a discussão de Slavoj Zizek
sobre o fim de todas as possibilidades de representação da sociedade pós-moderna criou um
espaço onde se tornou viável a existência de um tipo de documentário que encerra em sua
própria auto-referência um pouco da cultura e do mundo onde existe.
O estudo em questão compreende o documentário performático como um formato
híbrido (em função da quantidade de elementos de diversas origens), que foi conceituado
por Bill Nichols a partir de um estudo temático, mas, fundamentalmente, na reunião de
características distintivas
24
. Além da recorrência da primeira pessoa, esses documentários
apresentam uma estrutura bastante fragmentária: uso de material de arquivo (que inclui
filmes e fotos antigos, revistas, livros, recortes, anotações pessoais, objetos de uso pessoal),
justaposição de imagens em divergência a uma narração, incorporação do próprio diretor no
quadro, cartelas e legendas, reencenações, construções fictícias, trilha sonora, entrevistas e
edição videoclipada, entre outros. Todas essas características colaboram para a produção de
um filme altamente pessoal, que necessariamente é uma busca de adequação ao mundo e
uma estratégia de comunicação pessoal.
3) ESTRUTURA E METODOLOGIA
Essa dissertação procura discutir os filmes identificados por Bill Nichols como
‘documentários performáticos’ enquanto exploração das possibilidades subjetivas do
documentário para produção de conhecimento. O objetivo é identificar, a partir das
características definidas por Nichols e da eleição de um corpo de filmes específicos, as
possibilidades de organização de formas de expressão subjetivas como um sistema que
promove a expressão do documentarista: o documentário em sua forma mais íntima porque
literalmente caminhando na linha do pensamento do autor. O principal interesse em estudar
24
Os modos de representação de Nichols são amplamente reconhecidos a partir da elencagem de um certo
número de características que respondem pela designação de um ‘tipo’, possível de classificação.
22
a manifestação da subjetividade como forma dominante de organização desses filmes é
tentar entendê-los como um sistema de localização e inclusão no realizador no mundo. Se
durante boa parte de sua história, o documentário consagrou-se como representação do
mundo, o filme performático caminha no sentido oposto: ele se auto-proclama uma
representação de si para o mundo. A riqueza destes filmes encontrar-se no delineamento de
uma articulação entre tempo e espaço, onde o centro referencial é o próprio
documentarista. Assim, o documentário performático se justifica na escolha de um modelo
que mimetiza o mundo pós-moderno.
A metodologia de classificação dos documentários seguirá, conforme exposto
anteriormente, a sistematização proposta por Bill Nichols em Representing Reality (1991).
Sistemas de classificação funcionam como parâmetros de avaliação, propostas de
pensamento que auxiliam no raciocínio sobre as razões determinadas opções feitas pelo
realizador. Nestes livro, Nichols agrupa o documentário em quatro modos: expositivo,
observação, interativo e reflexivo. A definição dos modos agrupa os filmes a partir da
forma de organização do material e pelas opções de registro. Alguns anos mais tarde, em
1994, em Blurred Boundaries, Nichols acrescenta um quinto modo, o performático
25
,
estruturado a partir da organização do que designa por conhecimento incorporado’ – a
experiência de vivência de uma situação
26
. A escolha do tema da dissertação surgiu a partir
da necessidade de uma compreensão maior dos documentários performáticos; uma
curiosidade que surgiu ao tomar conhecimento da classificação feita por Nichols
27
. Paralelo
à categorização de Nichols, e no rastro das características por ele definidas, outros
25
Em 2001. Nichols publica ainda um 3º livro, Introduction to documentary, onde realiza nova modificação
no seu sistema de modos. Aqui eles aparecem divididos em poéticos, expositivos, de observação,
participativos, reflexivos e performático. Entretanto, sua primeira divisão ainda permanece a mais utilizada.
De todos os livros publicados pelo autor, é aquela que apresenta de forma mais profunda a estrutura de
organização dos filmes.
26
Além de ser reconhecidamente uma grande autoridade na teoria do documentário, Nichols também tem
trabalhos publicados na área de antropologia, cibernética, cinema de vanguarda e cultura visual no novo
cinema iraniano. Nos anos 70, organizou uma antologia em duas partes (Movies and Methods) que foi
fundamental para a definição dos parâmetros da disciplina dos film studies.
27
O texto Performing documentary me foi apresentado pela professora Consuelo Lins, minha orientadora,
durante o curso ministrado no programa de Pós-graduação da ECO/UFRJ, no final do ano 2003. Na ocasião,
trabalhamos o texto a partir do documentário Um Passaporte Húngaro (2002), de Sandra Kogut – que, ao
revelar os procedimentos burocráticos para obtenção de um passaporte revela uma forma de existência
particular à família de Kogut.
23
pensadores do documentário foram surgindo no horizonte da pesquisa, e sua incorporação
se tornou essencial para um enriquecimento da compreensão desses novos filmes
28
.
Num primeiro momento, nosso trabalho procura tratar da compreensão do papel da
subjetividade no documentário como objeto de conhecimento. Necessariamente,
estabelecemos como ponto de partida um dos temas mais delicados no estudo da teoria do
documentário: a percepção desses filmes a partir de uma premissa de formação de
conhecimento - logo, filmes assimilados como mensageiros de uma mensagem, ou uma
informação objetiva.
No capítulo 1 procuramos explicar a construção objetiva como uma criação
fundamentalmente ficcional, cuja aparência de ‘verdade’ se revela conseqüência de uma
estrutura edificada sobre técnicas realistas. Bill Nichols vai estabelecer na identificação
de formas de conhecimento realistas a possibilidade de produção de estratégias de
reconhecimento e empatia utilizadas como uma maneira de instituir um canal entre
espectador e filme. Essa concepção de realismo como forma do conhecimento vai ser
discutida e reinventada pelo filme performático; por isso acreditamos ser interessante
instituí-la como abertura do debate – método que também tem a vantagem de criar uma
entrada para o reconhecimento das características que definem os filmes em questão
29
.
Uma vez que nosso trabalho corresponde ao estudo de uma determinada estrutura de
produção fílmica (o documentário performático), acreditamos que relacionar os modos
inventariados por Nichols permite um exercício crítico de uma forma de apreensão da
teoria do filme documentário, já que eles organizam a forma de pensamento do autor
30
e
criam um panorama de estudo. Esse é o tema do capítulo 2, que procura relacionar as
28
O estudo de Michael Renov sobre as formas de auto-representação no documentário cria um interessante
contraponto com os modos de observação (notadamente, os cinemas direto e verdade); Catherine Russel
analisa a produção do filme auto-biográfico em vídeo como uma nova forma de relação do documentarista
com a imagem; Stella Bruzzi busca a caracterização do que chama de ‘novo documentário’ a partir da
influências dos meios de massa. No Brasil, Consuelo Lins realizou um estudo absolutamente esclarecedor
para Passaporte Húngaro, investigando as políticas de intimidade que regem a produção desse tipo de filme;
já Jean-Claude Bernardet encontra em 33 de Kiko Goiffman um exemplo de estrutura do que chamou de
‘documentário de busca’, apontando o caráter experimental e arriscado que envolve a empreitada. Em maior
ou menor escala, todos tiveram uma participação na elaboração do pensamento dessa dissertação.
29
Afinal, estamos na contramão de uma idéia da utilização do realismo. Ele não desaparece, mas é recriado a
partir da introdução do realizador em cena.
30
Por razões claras, optamos por não incluir o documentário performático nesse capítulo, uma vez que será
discutido em um capítulo à parte, visto ser o objeto de estudo da dissertação.
24
características de cada modo de representação
31
. O capítulo 3 trata especificamente do
documentário performático, entendido como um modo alimentado pela incorporação de
técnicas dos vários modos, privilegiando o tratamento subjetivo do tema. Mais que uma
simples acumulação, à idéia de sobreposição de técnicas de representação se agregam às
influências da vida moderna, notadamente as concepções de subjetividade e objetividade
nas formas de interação contemporâneas.
Uma vez identificado e contextualizado o modo performático a partir da exposição
contígua aos outros modos, os capítulos seguintes se dedicam à análise dos filmes
propriamente dita. A organização dos capítulos concebeu uma escolha, arbitrária, de
algumas chaves que acreditamos corresponderem aos elementos básicos da construção dos
filmes performáticos, a partir das quais se tornou possível a identificação das principais
características e sintomas estabelecidos no capítulo anterior
32
: a influência de valores e
hábitos desenvolvidos sob os auspícios da representação na cultura pós-moderna, a
subjetividade, os procedimentos de auto-inscrição e ficcionalização do realizador,
entre outros.
A experiência de Bill Nichols com os filmes provenientes do campo da
antropologia, notadamente, da prática auto-etnográfica
33
foi determinante para consolidar o
modo performático. A partir da identificação de conceitos como textualização, uma
transformação do sujeito-narrador em discurso, se tornando o próprio objeto da tese, e do
questionamento de valores culturais, o capítulo 4 reúne elementos significativos para uma
caracterização do modo, como uma narrativa fragmentada e um sentido de manifesto em
favor do estabelecimento de uma forma de existência. Para fazer isso, escolhemos o filme
Treyf (1996), das americanas Alissa Lebow e Cynthia Madanski. Treyf é o filme dessa
dissertação mais representativo do grupo escolhido por Nichols para a identificação do
novo modo
34
: é oriundo do campo da auto-etnografia e está dividido entre uma discussão
31
Adjacente aos modos do professor Nichols, também procuramos identificar outras propostas de
classificação para o documentário. Elas são anteriores e posteriores à metodologia de Nichols
31
, e a intenção
de acrescentá-las é mostrar que a escolha dos modos para essa dissertação foi a opção considerada a mais
adequada para nossos propósitos. Optamos por relacionar na seção “Anexos” algumas interessantes
experiências.
32
As características identificadas no capítulo 3 surgiram na experiência de assistir os vídeos e na própria
leitura do texto, onde Nichols também dá algumas pistas sobre as prováveis origens do performático.
33
Em especial, o filme etnográfico é uma das principais influências no modo de Bill Nichols
34
Como colocamos anteriormente, o objetivo da pesquisa não é referendar a proposta de Nichols, mas sim
mostrar o quanto ela permite de invenções numa abordagem intimista contemporânea.
25
cultural e comportamental (religião e opção sexual). Treyf procura articular pensamento e
experiência, o que faz com que se aproxime de um formato ensaístico. Estamos diante de
uma montagem que representa a própria organização interna das documentaristas – ou seja,
remete a uma idéia de exteriorização de si.
O capítulo 5 procura discutir os aspectos investidos numa abordagem afetiva
subentendidos neste tipo de documentário. Essa abordagem induz à cristalização de uma
lógica da subjetividade que se revela a lógica dominante do sistema de organização e
representação do modo performático. Escolhemos analisar dois filmes para, a partir de sua
análise, decifrar a forma como se dá esse processo: The Mighty Civic (1989), do neo-
zelandês Peter Wells e Porto da minha infância (201) do português Manoel de Oliveira.
Ambos os filmes tratam de situações e aspectos específicos da vida dos realizadores: uma
sala de cinema e a cidade natal. Ao evocar sensações e imagens que estimulam a memória,
Wells e Oliveira desencadeiam um processo de invenção que mistura passado e presente,
memória e fato, estabelecendo a produção de lembranças a partir de uma construção
afetiva. Desse caldeirão emergem figuras insólitas e oníricas, e um retrato que só é possível
na imaginação dos diretores, produto de aproximações e reflexões apaixonadas.
O capítulo 6 se concentra na questão da reinvenção do diretor a partir de sua
inclusão no relato catalizando um processo de duplicação, ao ocupar tanto o espaço do
narrador quanto o do sujeito narrado. 33 (2001), do brasileiro Kiko Goifman e Os catadores
e a catadora (2000) da francesa Agnès Varda se notabilizam pela produção de um tempo
próprio para suas experiências, o que autoriza a invenção de um cronotopo, uma situação
espaço-temporal imaginada que estabelece um contexto para a narrativa. Em ambos os
filmes, a força da narrativa provém da experiência transformada em evento. Documentários
performáticos sinalizam com a possibilidade de uma retormada da figura do narrador de
Walter Benjamin, em detrimento de uma narrativa monológica e histórica que foi
estabelecida como a metodologia ‘oficial’ de construção de conhecimento.
O capítulo 7 traz para o debate sobre os documentários performáticos um filme
definitivamente especial em inúmeros aspectos. Nick’s movie (1979-80) do alemão Wim
Wenders antecede cronologicamente
35
numerosos questionamentos e antecipa várias
35
O filme de Wenders é do começo da década de 80. A máxima classificação que arriscaríamos é a de ‘filme
de autor’.
26
estratégias e fórmulas que serão estabelecidas como princípios no documentário
performático quase 10 anos depois. Isso nos permite estabelecer que o projeto de Wenders
não está vinculado a tendências ou manifestações políticas; foi uma escolha amplamente
determinada pela relação de afeto entre o diretor e Nicholas Ray, ‘protagonista’ da estória.
Nick’s movie reforça a hipótese de que o filme performático seja um movimento
expressivo de auto-referencialidade, menos voltado para uma manifestação política e
mais concentrado na criação de uma política de auto-expressão. Wenders vai misturar, de
forma precoce, linguagem de ficção e documentário para contar a estória dos últimos dias
de vida que partilhou com o amigo doente. O processo de ficcionalização, de auto-
invenção, a forma como se inscreve no registro, a mistura de suportes sugestiva e
criadora de significados assentam Nick’s movie em sintonia com a definição de Bill
Nichols, e isso nos interessou sobremaneira no tratamento da questão. A análise desse
docu-ficção abriu espaço para que pudéssemos situar o documentário performático no
contexto da pós-modernidade, definida por Fredric Jameson como um termômetro do
presente; e onde também se verifica a proliferação de narrativas marcadas por uma erosão
de fronteiras entre conceitos de fato e ficção. Na medida em que privilegiam a
instantâneidade do registro, documentários performáticos se inscrevem como a
possibilidade de pensamento do presente, uma reflexão que, exatamente por não estabelecer
uma distância entre ela e o evento, forçosamente coloca sua própria vivência como matéria
de especulação.
Propomos como frase de abertura desta Introdução um trecho da reportagem de
Emmanuel Burdeau, que estabelece a produção de documentários contemporânea “sem
unidade nem definição”. Em meio à proliferação de formatos que privilegiam o aspecto da
intimidade, o documentário é freqüentemente definido como um formato ‘híbrido’,
misturando características pertinentes a diferentes modos de classificação. Ao optar
trabalhar com os filmes performáticos, estamos elegendo um recorte sobre essa
‘irregularidade’, tentando definir os aspectos que fundamentam uma abordagem subjetiva.
Eles não representam a totalidade do que se produz; mas definitivamente, seu principal
estímulo, a escolha da abordagem subjetiva em detrimento de uma observação distanciada,
se inscreve de forma adequada nos tempos atuais. São, por definição, documentários
afetivos.
27
28
I
“O documentário pede técnicas específicas
para dar tratamento cinematográfico a
encontros reais e eventos históricos,
experiências e reflexões, pesquisas e
argumentações. (...) demanda formas
específicas de estar em meio e à parte
daqueles; em última instância, em palavras
ou filmes. Pede éticas de responsabilidade,
uma estética de forma fílmica e uma
política de “representação” - Bill Nichols
36
1) ‘SUBJETIVANDO’ UMA PERCEPÇÃO OBJETIVA
Desde os primeiros filmes, uma das principais cobranças que incidiram sobre essa
forma de cinema diz respeito à idéia de que se tratam de filmes sobre a realidade. Em
princípio, essa é uma orientação que se estabelece a partir da forte relação de
indexicalidade que as imagens registradas mantém com o referencial. Nos momentos
iniciais da história do documentário, se agregavam idéias de ‘pureza’ e ‘autenticidade’ na
superfície da imagem. Noções de recorte, enquadramento, fragmentação e contexto
dificilmente eram consideradas nas análises. Pelo contrário: os filmes eram reconhecidos e
elogiados por sua capacidade sensível de retratação
37
. Documentários, ou pelo menos o que
se entendia como um documentário, eram paradoxalmente percebidos como um tratamento
objetivo aplicado a um tema, seja esse tema uma cidade, uma comunidade ou um povoado
distante.
Ao estabelecermos como marco simbólico do surgimento do documentário -
enquanto uma forma de cinema - o filme Nanook do Norte (1922), realizado por R.
Flaherty, percebemos que esse ‘nascimento’ localiza-se a meio caminho da criação do
cinema propriamente dito (1895) e o estabelecimento de formas narrativas determinantes –
36
Representing Reality” p. 180 – vide bibliografia para referência completa
37
O próprio conceito do documentário vai ser construído a partir de uma situação parecida, quando Grierson
escreve a crítica do filme Moana, de R. Flaherty, elogiando a sensibilidade do realizador.
29
D.W. Griffith realiza O Nascimento de uma nação em 1916; Serguei Eisenstein filma O
encouraçado Potemkin em 1925. Neste mesmo período, o som também chega às telas (O
cantor de jazz, 1927), inspirando realizadores e criando ainda maiores possibilidades e
inovações. Isto nos possibilita a seguinte afirmação: a idéia da imagem como registro
(estabelecida desde os filmes dos irmãos Lumière), a possibilidade de dramatização do
mundo e do exercício da retórica como elementos formadores da mensagem vão estar na
raiz do documentário, participando da estrutura dos primeiros filmes. Até a metade do
século XX, os documentários serão fortemente marcados por uma função de registro na
forma de imagens; que, uma vez manipuladas por técnicas e estratégias narrativas aplicadas
sobre fragmentos do mundo, desperta em incautos espectadores uma vontade de fazer
conhecer.
A percepção implicada no ato de ‘dar a conhecer’, garantida pela qualidade
indexical presente na imagem, se tornou responsável por um sentimento de ‘autenticidade’
nesses filmes. Entretanto, hoje, entender uma imagem como registro ‘puro’ da realidade já
não é mais possível
38
. Uma imagem é produto de enquadramento, iluminação e foco
escolhas e seleções que acontecem a partir de um processo extremamente particular, dentro
da cabeça do realizador. Ao longo da história do documentário, diferentes aproximações do
sujeito e estratégias de representação foram sentidas no tratamento dados às imagens: elas
foram desviadas, atravessadas, sustentadas e mediadas por estratégias e técnicas que
determinaram as relações internas aos procedimentos de montagem. Essa manipulação
criou ‘leituras’ extremamente plásticas e sensíveis – irremediavelmente ligadas ao discurso
daquele que as manipula. Assim, antes mesmo de serem um ‘registro do mundo’, imagens
são ‘registros de subjetividades’ – ‘reduções’ a juízos de valores e realidades próprios a
certos estados e atos de consciências individuais. Isso nos permite admitir a subjetividade
como elemento chave na negociação do texto dos filmes com a realidade filmada, uma
construção arbitrada e fictícia do mundo.
Discussões sobre ‘objetividade’ e ‘subjetividade’ sempre foram recorrentes nas
análises críticas do documentário. Se, por um lado, admite-se o documentário como uma
38
Em um belo artigo, Jean-Louis Comolli questiona a autenticidade do registro; para ele o sujeito filmado
constitui um ‘sujeito em camadas’: ele é encoberto por sua roupagem social (enquanto membro e
representante de uma classe) e transformado pela própria consciência da filmagem; “filmar se torna assim
30
forma de cinema cuja matéria prima são os registros do mundo histórico
39
, por outro é uma
construção que procede de manipulação, que permite criar sentido onde ele originalmente
não existe. Ao contrário do cinema de ficção, que cedo se desvinculou das origens
científicas
40
, o cinema documentário desenvolveu uma trajetória que está
irremediavelmente ligada à captação e representação da realidade. Daí, a polarização: o
cinema de ficção ganhava salvo-conduto para trabalhar a ‘subjetividade’, enquanto o
documentário deveria, por definição, ser ‘objetivo’. Uma concepção que obrigava os filmes
a terminarem quase no ponto onde começam: na superfície da imagem – confiante no grau
de ‘verdade’ das cenas e situações. Essa percepção ignora as estratégias e técnicas
narrativas, bem como conceitos de montagem e edição.
Ao estudar as novas formas de subjetividade no documentário, Michael Renov fez
uma importante observação sobre nossa compreensão dialética entre subjetividade e
objetividade. Para Renov, ocorre uma mudança substancial nesses conceitos no final do
século 19, fruto das novas formas de percepção introduzidas pela expansão da escola
positivista
41
, reorientando sentidos e percepções. Escreve ele:
“Enquanto nos séculos passados a visão escolástica predominante de subjetividade
era ‘das coisas como elas são (do sentido do tema como substância)’ e da
objetividadedas coisas apresentadas à consciência, (atiradas frente à mente’) (...)
hoje a objetividade deve ser construída como ‘factual, justa (neutra) e tornada
confiável; de forma distinta da subjetividade, (esta) baseada mais em impressões que
em fatos, e tornada mais influenciada por sentimentos pessoais relativamente não-
confiáveis.” (RENOV,2004,p.173 )
uma conjugação, uma relação, uma aproximação onde se trata de ligar ao outro – a partir da forma.” (p.154) –
vide bibliografia para referência completa
39
Por ‘mundo histórico’ estamos entendendo as qualidades concretas e reconhecíveis como parte de nossas
vidas. É, por definição, o mundo onde habitamos.
40
Ainda no século XIX, Étienne Jules-Marey e Eadweard Muybridge desenvolvem equipamentos com o
propósito de decomposição do movimento para estudos. Esses equipamentos seriam incorporados e
aprimorados pelos irmãos Lumières, que já trabalhavam com instrumentos de fotografia. O pesquisador
Michael Renov enxerga nesse antecedente a explicação para o potencial de observação e investigação de
pessoas e femenos sociais e históricos. Renov desenvolve essa idéia no artigoToward a poetics of the
documentary, no livro “Theorizing documentary” – vide bibliografia
41
Segundo Renov, que utiliza o trabalho de Raymond Williams como referência, a visão predominante de
subjetividade até então dizia respeito à essência natural do indivíduo, o sujeito como substância; assim, o
processo de objetivação se produzia a partir de uma construção formal, fundada em conceitos racionais e
difundidos na sociedade.
31
Essa reorientação na forma de lidar com as informações em textos e imagens
basicamente diz o seguinte: impressões subjetivas, fundadas nas particularidades do sujeito
são retratos da realidade menos confiáveis que impressões objetivas – essas, produções
adequadas de uma realidade compartilhada coletivamente. Esse pensamento vai se
estabelecer em uma sociedade que começava a compreender as imagens como formas de
apreensão do mundo, percebido através de um enorme aparato tecnológico. Assim,
instituía-se que olhar para imagens de forma justa significava uma eliminação do olhar
individual, ‘subjetivo’; a subjetividade se tornava, dessa maneira, um elemento não
desejável - uma vez que significa, em última instância, apenas uma visão particular
(humana e não maquínica) em um momento em que máquinas se tornavam mais
importantes que homens enquanto indivíduos
42
.
No entanto, discutir e definir o documentário simplesmente a partir das aproximações
objetivas ou subjetivas nos coloca na qualidade de espectadores passivos. Enquanto
público, interessa menos o tipo de abordagem a que se submete a tratamento um
determinado tema que a forma como somos atingidos por esse tratamento. A passividade
não encoraja questionamentos sobre as implicações da forma como interferência no ponto
de vista. Por outro lado, quando canalizamos nossos esforços na análise formal, na
identificação de personagens e temas, na consolidação do discurso, nas estratégias de
retórica que constroem e atribuem significados, nos tornamos aptos a perceber os
movimentos de evolução e reorientação das representações. E percebemos que
documentários são negociações entre o texto de uma narrativa e o referencial histórico que
é a matriz do pensamento; um discurso de domínio público refratado pela lógica de uma
voz específica - a voz do realizador.
Isso nos permite pensar o documentário como uma manifestação ligada às correntes e
contra-correntes de pensamento do tempo histórico a que pertencem. É um diálogo que ao
mesmo tempo situa e questiona, pergunta e explica. Há muito o que se cobrar de um filme
que se propõe discutir o mundo onde existe. Mas não são cobranças de uma ordem de
‘verdade’, cristalizadas em torno de uma teoria. Bons documentários se afirmam pela
coerência de sua lógica interna, por uma relação de justiça entre a representação e a ‘idéia’
42
Essa visão vai ser contestada por Dziga Vertov, cuja escola de documentário prega uma integração entre o
homem e a máquina, a máquina como prótese do olho do homem. Seu filme mais notório (O Homem com a
câmera na mão, 1929) propõe uma interação entre homem e máquina como nova forma de exercício do olhar.
32
representada. Basicamente, uma análise produtiva do documentário deve buscar a
funcionalidade de seu discurso enquanto comunicação de uma idéia singular. Essa
funcionalidade é construída através de uma série de escolhas arbitradas pelo
documentarista durante todo o processo de produção. No entanto, por mais pessoal e único
que seja o trajeto das escolhas, ele é atravessado por uma série de códigos que
necessariamente partem de um todo maior e que já está estabelecido no imaginário popular,
certas formas de organização, estratégias de discurso e instrumentos de trabalho.
2) A FICÇÃO DA OBJETIVIDADE
No documentário, assim como no cinema de ficção, a construção de uma narrativa
prevê o estabelecimento de visões do mundo. São estórias que articulam ritmos, texturas,
diálogos e referências que situam-se no imaginário do espectador como uma interpretação.
Seja ficção, seja documentário, assistimos aos filmes com uma ‘vontade de acreditar’ na
estória que está na tela – estória que está ‘incorporada’, construída em atores, cenários e
figurinos. No documentário, em função da tradição estabelecida, isso acontece mediante a
criação de uma representação realista como forma de referência e assimilação da imagem e
do texto dos filmes
43
. Entretanto, mais que justificar imagens, a função de um ‘realismo
documentário’ subentende a negociação de um pacto entre um texto e um referencial
histórico que possibilita a criação do filme como representação. Ou seja: se é preciso ser
objetivo, que se lancem instrumentos que possibilitem a simulação de uma objetividade.
Assim, uma forma de compreender o realismo no documentário é através de considerações
sobre a objetividade articulada à retórica do discurso – o que institui a produção de um
texto subjetivo, uma leitura privada do mundo feita por um autor.
Ao escrever sobre a ‘pré-história’ do cinema, Arlindo Machado aponta como a idéia
de naturalismo que se emprestava às imagens incomodava uma proposta idealmente
científica
44
. É curioso notar que, como elemento de leitura das imagens em movimento, a
43
Na história do documentário são freqüentes as produções que recorrem a uma linguagem ‘não-realista’. Em
última instância, o performático é o modo que vai ‘quebrar’ definitivamente com essa idéia de realismo como
projeto de afirmação. Entretanto, falamos aqui de uma compreensão do documentário de maneira ampla.
44
“Para Marey, a reconstituição naturalista do movimento era sentida como ‘defeito’, daí por que ele se sentia
incomodado pelo ‘realismo’ da imagem cinematográfica. Para combater essa ‘ilusão’, ele inventava
expedientes destinados a desnaturalizar a cena” (MACHADO,2002,p.16)
33
concepção de uma associação realista era intensamente rechaçada. Na verdade, os
primeiros estudos e as primeiras experiências emprestando movimento às imagens previam
a ‘decupagem’ dos movimentos, não sua restituição. Assim, o uso da imagem nos estudos
de movimento implicava em sucessivas tentativas de ‘desnaturalizar’, reduzindo ao mínimo
uma possível identificação e empatia entre a imagem móvel e o público. Se podemos falar
de ‘construção’, ‘subjetividade’ e ‘autoria’ neste momento, são qualidades que funcionam
na contramão da ordem contemporânea. Entretanto, evidencia-se um mesmo espírito na
tentativa: a manipulação de imagens com o fim de interferir na sua leitura e produzir um
resultado, até certa medida, premeditado.
Uma grande diferença separa o sentido e as implicações do uso de técnicas realistas
no documentário e na ficção. Nesta última, o realismo faz parecer real um mundo plausível,
mas totalmente criado na mente do diretor; nós, na qualidade de espectadores, fazemos um
‘pacto’ com o texto – e só podemos assistir o filme na medida em que acreditamos na
suposta ‘verdade’ (ou possibilidade) daquela estória. Para Nichols, o “realismo na ficção é
um estilo que se auto-destrói, que tira a ênfase do processo de construção. A visão ou estilo
de um diretor realista surge de (...) aspectos da mise-en-scène, movimentos de câmera, som,
edição, e outros mais (…)
45
” (NICHOLS,1991,p.165). Assim, o uso de técnicas realistas no
cinema de ficção pode ser definido como um ‘não-estilo’; paradoxalmente, é o ingrediente
fundamental da ilusão do público. Já no documentário, o realismo participa na estrutura da
argumentação, na qualidade de constatação e, não de comprovação, do mundo real.
Técnicas realistas, segundo Bill Nichols, são construídas sobre uma apresentação “de
coisas como elas nos aparecem aos olhos e aos ouvidos no dia-a-dia. (...) Realismo é
também um ponto por onde olhar e se engajar à vida” (Ibidem,p.165)
46
.
Em estudo publicado em 1997, William Rothman
47
faz uma interessante comparação
entre uma das escolas de documentário (o cinema direto americano, criado nas décadas de
50 e 60) e o cinema americano clássico de ficção dos anos 30
48
. Para Rothman, ambos os
45
É inteteressante notar que os procedimentos descritos por Nichols como características fundamentais dos
filmes de ficção vão ser reapropriados pelo modo performático – que surge quatro anos depois da primeira
configuração dos modos.
46
Da mesma forma que no cinema de ficção, a construção realista no documentário também é produto do uso
de luzes, distâncias, ângulos, lentes e posições.
47
Vide bibliografia
48
Em seu estudo, a abordagem de Rothman inside num cruzamento de tempo e modo – a comparação entre os
tipos de cinema também é feita em relação à importância que o som ganhou em cada época: na ficção a
34
cinemas dividem a atenção sobre o mesmo tema (o drama do dia-a-dia, os eventos e crises
que permeiam o cotidiano da sociedade de classe média americana), além da estrutura de
narrativa e modo de filmagem similares: acompanhamento do personagem dentro de um
período de tempo, edições de diálogos em campo e contracampo, câmera não-participativa
e desprezo pelo comentário em off). Segundo Rothman, o cinema direto americano buscou
no cinema clássico dos anos 30 sua fonte de inspiração temática e formal. Ambos tratam da
representação de existências humanas, de uma sucessão de acontecimentos que se
desenrolam cronologicamente, da representação de ambientes, situações e humores típicos
da época; “o que é ficcional nos filmes clássicos está no seu caráter de ficção que é
ficção - o que é ficcional nos filmes do direto está em seu caráter de ficção que não é ficção
totalmente” (ROTHMAN,1997,p.111). Na medida em que se quer um filme real, o cinema
direto incorpora seu lado ficção, já que não é mais que uma construção
49
. Para Rothman, o
cinema de ficção tem como meta tornar a ficção mais real, o documentário, pelo contrário,
articula sua representação ao tornar o real mais ficcional.
‘Realidade’, para Rothman, representa um mundo de possibilidades – mas nunca de
possibilidades de invenção do passado. A única forma de modificá-lo, escreve ele, é
inscrevê-lo sob uma nova perspectiva – interpretá-lo, criando possibilidades sobre o
passado. Isso permite identificar o documentário como uma forma de entrada no mundo a
partir de uma representação, a partir de uma ‘visão do mundo’, uma ‘visão de realidade’.
Pensamento que está em sintonia com Nichols, quando afirma que o realismo
documentário, mais que um estilo, um código profissional, é uma ética. Essa idéia nos
possibilita algumas definições: enquanto na ficção, o realismo se manifesta a partir de uma
estética de sensibilidades de argumentos e tons que procuram criar um mundo plausível e
crível, no documentário ele incide sobre a construção de um argumento e funda uma lógica
de pensamento. No documentário, o realismo mapeia o território da constatação e reforça a
referência indexical herdada da fotografia, que reconhece como real aquilo que está frente à
câmera pelo simples fato de lá estar.
novidade da possibilidade de sonorização dos filmes; no documentário, a possibilidade do registro do som
sincrônico.
49
“Legitimamente, o direto é apenas uma técnica, um método oferecendo novas possibilidades que alteram a
forma de filmar, e apenas de filmar, dos filmes; mas que não pode substituir a investigação e a análise. É uma
descoberta, um progresso, mas não é, em si, um outro tipo de cinema” (Michel Euvrard e Pierre Véronneau,
citado por Joan Nicks em Documenting the documentary (p.303) – vide bibliografia para referência completa
35
Da mesma forma que Rothman fez com os filmes dos anos 30, Bill Nichols vai
enxergar nas propostas do cinema neo-realista italiano um indício de vontade de
‘documentar’, fundado sobretudo em propostas éticas (mais que estéticas)
50
. Havia, escreve
Nichols, um comprometimento com a representação histórica – não se tratava aqui da
invenção de um mundo possível, mas de uma representação sobre as condições de
existência naquele mundo (notadamente, a Itália do pós-2ª GM). O neorealismo, “aceitou o
desafio do documentário de organizar-se em torno das representações do dia-a-dia não
apenas em termos de tópicos e tipos, mas na organização de imagens, cenas e estórias”
(NICHOLS,1991, p.167) . Os personagens são menos protagonistas que o universo onde
estão inseridos; eles não são símbolos de uma galeria de arquétipo, mas meras vidas que
desfilam pela tela, submetidas a uma certa realidade histórica
51
. O capital cultural do
contexto fornece as ‘chaves’ para a compreensão do comportamento dos ‘tipos’.
Entretanto, é exatamente pela insistência na caracterização do real enquanto imagem
bruta de uma realidade que tanto o neo-realismo quanto o cinema dos anos 30 acabam se
aproximando ainda mais da ficção que do documentário. Para Nichols, a fundação da
narrativa a partir das contingências externas limitou a representação à superfície do visível.
Assim, toda uma gramática de ‘signos de subjetividade’ (câmera na mão ricocheteando,
filmagem em ambientes naturais fora de estúdio) se reduz a uma proposta estética. Para
Nichols, a força desse cinema estaria justamente no uso de uma câmera que não produz
subjetividade porque está isenta de opiniões sobre seus personagens. Isso, segundo o autor,
“substitui uma alternativa centrípeta de construção de empatia entre a audiência e o
personagem” (Ibidem,p.169). A técnica de construção de planos subjetivos no neorealismo,
escreve Nichols, está fundada nessa produção de ‘efeitos de real’ – conforme atribuída por
Roland Barthes
52
. Para o teórico, isso não é suficiente para a construção de uma lógica do
documentário. O neorealismo, escreve Nichols, “demonstra como a narrativa pode ser
50
Ainda que o modo de filmagem dos diretores do movimento tenha dado origem a uma ‘estética realista’.
51
O que torna possível entender esses tipos de ficção a partir das relações que mantém com uma linguagem
‘documentária’: enquanto o cinema de ficção organiza sua narrativa em torno de temas e personagens, a
tradição do documentário constrói seu texto a partir de argumentações e diálogos que envolvem imagem, cena
e estória.
52
No texto ‘O efeito de real’, Barthes identifica nos elementos ‘menores’ das narrativas (aqueles que têm uma
função ‘supérflua’, de ilustrar a cena) como aqueles que determinam nossa relação de crença no texto.
Prevalece a identificação de signos como prova da ‘realidade’ do quadro.
36
colocada a serviço do impulso documentário ao admitir para a imagem e a filmagem um
sentido de autonomia” (NICHOLS, op. cit., p.169).
3) “PRAZER EM CONHECER”
O que diferencia as cenas iniciais dos filmes Annie Hall (1977) e Manhattan (1979)
de Woody Allen, de documentários como Roger and Me (1989) e Tiros em Columbine
(2002), de Michael Moore? Ambos os diretores começam seus filmes a partir de uma
exposição em primeira pessoa, “imprimindo-se” no corpo fílmico, criando uma
‘inquietação’ na linguagem tradicional. Nas ficções de Allen, a primeira pessoa serve como
sinalizador de uma narrativa de caráter íntimo e privado, desaparecendo (ou decrescendo
em importância) em benefício do desenrolar da trama enquanto ‘estória plausível’; o
narrador dá a conhecer sobre si nos primeiros planos e depois desaparece – a narrativa
segue a gramática do cinema de ficção. Já nos filmes de Moore, a voz da primeira pessoa é
incorporada posteriormente na figura do próprio diretor
53
, que organiza assuntos
particulares a serem articulados para a formação de uma panorama mais amplo. Ao
contrário de Allen, a narração em primeira pessoa nos filmes de Moore é onipresente. Em
parte, isso acontece por que a “crença de que um bom documentário (...) dirige atenção para
um assunto e não para ele mesmo é resultado dos fundamentos ‘epistefilísticos’ (...).”
(NICHOLS,op. cit, p.179)
Por fundamentos de epistefilia, Bill Nichols define “um prazer de saber que marca
uma forma distinta de engajamento social”(NICHOLS,op. cit.,p.178). Daí, a idéia de que
documentários são propostas alternativas de dar a saber (e vir a saber) sobre o mundo. ‘Dar
a saber’ implica uma proposta de relato, o que levou essa forma de cinema a desenvolver
uma estética que inclui a preservação da distância em relação ao seu objeto de
representação. Entretanto, a ilusão da transparência das técnicas realistas, escreve Nichols,
perturba a percepção dessa distância, justamente porque nega a existência de que existe
alguém registrando. Notadamente, esse problema foi superado pelo documentário a partir
da constatação da necessidade de incorporar os documentaristas nos filmes
54
. Por outro
53
Moore não aparece nas primeiras cenas dos seus filmes
54
Um bom exemplo sobre essa incorporação pode ser encontrado no filme dos irmãos Maysles Grey
Gardens, sobre Edith Bouvier Beale e sua filha Edie. Durante o período da filmagem, inevitavelmente os
37
lado, ‘vir a saber’ (o tal do ‘prazer em conhecer’) parte de uma relação de empatia que
surge entre o espectador e o documentário. Isso faz com que o texto destes filmes busque
uma construção que desperte dinâmicas subjetivas no espectador, sentimentos que se
manifestam como produto de uma sedução - curiosidade, compaixão, alegria, solidariedade,
riso, choro, tristeza, etc...- em relação aos temas. Todas as estratégias utilizadas para
estabelecer uma forma de conhecimento, para estimular uma ‘vontade de saber’ são, na
verdade, produtoras de subjetividade. As dinâmicas subjetivas do engajamento social são
ativadas no confronto com a representação, por excelência, o ato de sedução do espectador.
Essa relação perturbadora eleva os documentários à categoria de forma de ‘acesso’ ao
real. Entretanto, escreve Nichols, essa produção é frequentemente disfarçada sob uma
‘capa’ de objetividade, um leitmotiv que se atribui aos filmes: ao assisti-los, nos tornamos
pessoas mais cultas e ‘informadas’. Assim, documentários se cristalizaram como formas de
conhecimento onde a produção criativa, a inquietação lingüística e as inovações formais
são menos solicitadas ou questionadas que o conteúdo. Mais que formas de conhecimento
(no sentido de construção de uma visão), os sentimentos despertos “funcionam como
modos de engajamento a formas de representação do mundo que se estendem além do
momento da projeção, se incorporando à praxe social” (NICHOLS,op.cit.,p.178).
Para Bill Nichols, esses sentimentos estão na fundação das subjetividades sociais,
isto é, “subjetividade dissociada de um único indivíduo” (NICHOLS,op.cit.,p.179). Nesse
caso, a identificação é produzida em termos de coletividade – ainda que os sentimentos
possam partir de registros individuais
55
. Um exemplo desse tipo de produção pode ser
encontrado nos documentários dirigidos por Leni Riefensthal; notadamente, Triunfo da
Vontade, de 1935. Alternando planos abertos de multidão com planos fechados das faces de
soldados da SS, de civis e de crianças, a diretora consegue criar um sentido de união e
solidificação bastante próximos àquele pregado pela ideologia nazista. Outro exemplo
ilustrativo é Faces de Novembro, de Robert Drew (1963), que procura representar a
irmãos diretores desenvolveram um relacionamento com as ‘protagonistas’. Em um determinado momento da
filmagem, a personagem da ‘filha’ revela a existência de uma câmera. Nesse instante, o realizador vira a
câmera para o espelho, assumindo a artificialidade da estória – enquanto produto cinematográfico. Na edição
em DVD, ao tecer comentários sobre o filme, Maysles atenta para a inevitabilidade do relacionamento que se
estabelece entre as partes.
55
Bill Nichols vai estabelecer os princípios da ‘subjetividade social’ como as guias fundamentais do
documentário performático. Elas vão representar o ponto de contato entre o indivíduo e o mundo. Entretanto,
o que muda fundamentalmente é o referencial.
38
consternação do povo americano por ocasião do assassinato do presidente Kennedy. O
curta metragem de 12 minutos é um estudo do sentimento de perda através de imagens em
close do rosto de civis, militares e parentes da vítima. Enquanto espectadores, não nos
sentimos presos a nenhum dos ‘personagens’, mas indiscutivelmente somos levados a uma
empatia com os sentidos estéticos e rítmicos das movimentações criadas pela e para a
filmagem – produto da montagem que articula texto e imagem: “nós nos engajamos a um
realismo histórico que representa a experiência coletiva subjetivamente” (NICHOLS,op.
cit.,p179). Realismo histórico que representa a coletividade de forma coletiva; realismo
histórico criando uma representação subjetiva; realismo criando subjetividade. Na verdade,
é disto que tratam documentários.
4) FORMAS DE REALISMO NO DOCUMENTÁRIO
Ao definir o realismo como linguagem dominante na história da produção de
documentários
56
, Nichols identifica variações na forma de organização das ‘criação
realista’ a partir de mecanismos de sedução que são estabelecidos para a produção de um
relacionamento com o espectador. O teórico vai identificar três formas de criação de efeitos
realistas que se articulam na construção e organização de textos documentários
57
: 1)
realismo empírico, 2) realismo psicológico e 3) realismo histórico. Não são,
necessariamente, excludentes; assim como os modos de representação propostos por
Nichols, os tipos de realismo se incluem e complementam, estruturando a organização de
idéias do documentarista e dos filmes.
O realismo empírico foi a primeira fonte de construção das narrativas que vieram a
consolidar o documentário como uma forma de cinema: é um tipo de realismo que está
solidificado a partir da qualidade indexical da imagem fotográfica e do som gravado. Surge
como suporte da estética desenvolvida nos filmes de reportagem dos irmãos Lumière, que
enviavam seus funcionários pelo mundo, registrando novos países e paisagens, pessoas e
animais desconhecidos, situações exóticas, grandes acontecimentos. É determinante, ainda,
56
A proposta do realismo como figura predominante na produção de documentários vai continuar até muito
recentemente, quando novas formas de relação com a imagem – em parte influenciadas e atravessadas pela
influência da TV e do vídeo – vão reinserir novas percepções.
39
como sistema de compreensão nos filmes
58
realizados pela dupla de irmãos franceses, que
registravam cenas banais do cotidiano - uma estação de trem, operários saindo da fábrica,
bêbes se alimentando, jovens se divertindo. Um pouco mais tarde, surge também como
agenda política e cultural, nos filmes de Dziga Vertov, R. Flaherty e John Grierson. O
mundo real se tornava objeto de estudo, de curiosidade, de conhecimento e informação. Os
primeiros documentaristas estabeleceram para o documentário a função de ‘dar a conhecer’
especialmente a partir da eficácia da imagem.
Em todos esses filmes, o sentido de uma imagem realista diz respeito à relação de
semelhança que o objeto registrado guarda com a ‘matriz’ original. Mesmo que o aspecto
da verossimilhança não dê garantias de acuidade histórica, escreve Nichols, “assegura um
liame existencial entre a imagem e o referente” (NICHOLS,1991,p.171). Estamos falando
de certezas sobre as inscrições dos objetos no mundo. Há garantia da existência daquela
imagem fora da tela; entretanto, não do ‘como’ nem ‘de que forma’ ela existe. Construções
empíricas, assim, não separam o fato de seu ‘valor social’, o lugar que ocupa o objeto do
registro dentro de uma determinada construção. Isso é o mesmo que dizer que procuram
ocultar diferenças objetivas e subjetivas, já que fatos não aparecem como produções de
uma construção social. Assim, o realismo empírico se relaciona com o espectador na
medida em que permite identificações de inscrição entre a imagem na tela e o mundo
histórico.
O realismo psicológico convida o espectador a se identificar com situações e pessoas,
desenvolvendo uma relação de empatia que está baseada na produção de uma troca
sentimental. Por essa razão, os sentimentos que são despertados podem ser abstraídos das
situações representadas e ‘reapropriados’ pelo público, criando uma aproximação mais
intensa: Ônibus 174 (2001) e As mães da Praça de Maio(1985)
59
, são filmes que constroem
uma relação que vai além do que aparece consolidado na superfície do registro; tratam-se
de filmes que criam eventos a partir de ‘palavras’ e ‘discursos’, que se tornam
‘acontecimentos’ na medida em que podem ser produtos de estímulos provocados pela
57
Estamos considerando o realismo fora de uma perspectiva histórica, e sim em termos de construção de
verossimilhança
58
Não eram, exatamente, filmes, uma vez que não havia organização narrativa e um roteiro. Limitavam-se a
registros contínuos de cenas atuais – daí, os primeiros registros do cinema serem conhecidos como
‘atualidades’. Entretanto, a idéia de estar testemunhando um acontecimento mundano consistia no principal
motivo do registro.
40
intervenção da câmera, ou da equipe de filmagem
60
. Representar a dor do outro pode se
revelar menos como uma forma de ater ao acontecimento que à sua leitura. Bill Nichols
compreende o realismo psicológico de uma forma ampla: para o teórico, é uma estratégia
de representação que pode atravessar características naturalistas e se instaurar a partir do
que há de mais subjetivo no documentarista. Com isso, quer dizer que qualquer forma de
manifestação artística poderia se enquadrar como uma produção de realismo psicológico –
assim, técnicas como o expressionismo, o surrealismo e o naturalismo são ‘reais’ porque
expressões legítimas de um sentimento, manifestações de uma idéia. Essa concepção de
Nichols desloca a compreensão do realismo enquanto estética para justificá-lo como uma
representação expressiva do autor.
Entretanto, em sua grande maioria, o realismo psicológico é utilizado para a
construção de um sentimento de identificação entre, de um lado, situações e personagens e,
de outro, o espectador. Segundo Nichols, isso acontece de uma forma em que os laços
emocionais passam desapercebidos como construções, “eles se inserem na complexa
dinâmica de suspensão de crença, ou numa aceitação de coisas que nós sabemos que são
assim” (NICHOLS,Ibidem,p.172). A tendência é acreditar na imagem construída, e no
sentido a ela atribuido, uma vez que “o realismo psicológico se coloca como uma
transparência entre a representação e o engajamento emocional, entre o que vemos e o que
é” (NICHOLS,op.cit.,p.173). Essa técnica elimina a percepção do estilo em favor de
sentimentos de comoção, que se propõe produtos de uma identificação natural com a
imagem, provedores de um acesso imediato à realidade representada.
O realismo histórico, por sua vez, está na base da produção de ‘documentários
estruturados sobre a edição de evidências’. Não se trata mais de uma questão de fidelidade
à referência, ou de um engajamento emotivo; são filmes que estão enraizados em
circunstâncias contingenciais. O texto desses documentários conquista seu espectador a
partir de uma construção lógica na organização de idéias – uma estrutura que está inscrita
59
Dirigidos respectivamente por José Padilha e Susana Blaustein Muñoz e Lourdes Portillo.
60
O exemplo mais clássico dessa técnica está no filme Crônica de um verão de Jean Rouch e Edgar Morin
(1961), quando uma das jovens filmadas, Marceline Loridan, revive dolorosos momentos de sua vida
enquanto realiza um monólogo durante uma caminhada, acompanhada pela câmera. Em ‘Ônibus 174’, ao
realizar as entrevistas com os reféns do seqüestro, o diretor José Padilha utilizou uma técnica alternativa: ao
invés de se limitar a uma conversa formal, editou pequenos ‘filmes’ onde predominavam as situações vividas
pelos reféns. Assim, cada filme contava com um ‘protagonista’ diferente. Como resultado, conseguiu
41
sobre conhecimentos produzidos no mundo histórico. Bill Nichols define que esse tipo de
documentário tem seu argumento construído a partir da produção de subjetividades sociais,
“onde nossa própria identificação é trazida menos para com um indivíduo que para com um
senso de participação coletiva” (NICHOLS, op.cit.,p.174). A principal função das técnicas
realistas nesses documentários é a produção do desvio da atenção da estrutura formal dos
filmes, organizadora de um saber, em benefício da produção de um conjunto de
informações objetificadas.
Uma construção realista onde predomina a qualidade histórica necessariamente
concentra os elementos da sua estrutura em torno de tema, localizado fora do documentário.
São filmes organizados por diálogos, depoimentos, testemunhos e comentários
desincorporados de seus agentes e re-situados como uma ‘peça’ dentro de uma engrenagem
maior; falas esvaziadas em seus potenciais de invenção porque funcionais apenas ‘enquanto
testemunhos’ sobre um outro
61
. Esse tipo de documentário foi incorporado definitivamente
pela televisão, que utiliza o formato como parte integrante do segmento de programas
jornalísticos
62
. É predominante na TV o documentário ser reduzido a uma fórmula
empobrecida, que consiste num arremedo de edição de entrevistas, textos em off e imagens
de cobertura
63
. São filmes que constestam pouco (quando contestam), e se preocupam mais
com a construção de um conhecimento sólido do mundo a partir de arquétipos teorias pré-
definidas. Esse tipo de narrativa, completamente dissociada de um formato
cinematográfico, tem a sua continuidade garantida em função de uma “lógica de
comentário, cujas imagens ilustram, se contrapõe ou metaforicamente estendem”
(NICHOLS,op.cit.,p.174).
Para Nichols, ao insistir na criação de um ponto de vista isento de subjetividades, os
documentários que estruturam suas narrativas a partir do realismo histórico podem estender
seu comentário para além da imagem – isto porque concentram sua força de organização
em testemunhos e narrações objetivas. Comentários organizam imagens de diversos lugares
depoimentos carregados de uma emoção legítima, produto da frescura de uma declaração dada pela primeira
vez.
61
Ainda que seja possível descobrir muita coisa sobre quem fala, quando fala de alguém.
62
O exemplo mais prático é o Globo Repórter da Rede Globo. Na TV a cabo, os documentários veiculados
pelo GNT, Discovery, National Geographic, History Channel, People and Art também podem ser
enquadrados.
63
Há exceções a essa regra: notadamente, a TV à cabo vem trazendo produções bem interessantes, onde a
liberdade artística ainda é permitida – claro que desde o momento que se adeque à linha editorial.
42
e tempos em função da necessidade de articulação de um pensamento; isso faz com que
“saltos no tempo e no espaço (...) podem, no documentário que incide sobre evidências, ser
assimilados” (NICHOLS, op.cit.,p.174). Esses documentários hierarquizam diferentes falas
– por isso não estão restritos a uma localização espaço-temporal. As biografias que
proliferam na televisão são um exemplo bem acabado desse casamento entre falas
deslocadas de si.
Além das formas de realismo identificadas por Nichols, podemos citar mais algumas
formas de percepção assimiladas como ‘reais’
64
: evidência de presença (lugares, pessoas,
sons e imagens conhecidos ou relacionados) no mundo dos personagens e situações
filmados, enquadramentos imperfeitos sinalizando falta de controle sobre a situação,
silêncios e vazios inesperados, registro de entrevistas diretas e situações sem corte, planos
longos e ininterruptos, acompanhamento cronológico de uma dada situação, ruídos de
fundo e sons de ambiente, imagem granulada e som de ‘má qualidade’, câmeras na mão em
movimentos ágeis acompanhando a ação, imagens de arquivo referendando falas, inscrição
do documentarista como parte da ação que está sendo filmada, entre outros. Todas essas
técnicas vão estar na base da construção dos modos idealizada por Bill Nichols.
Correspondem a formas de criar uma representação do real a partir da necessidade do
estabelecimento de crença.
5) A CONSTRUÇÃO DA ‘VOZ’NO DOCUMENTÁRIO
Quando se trata de estabelecer processos de produção de subjetividade no
documentário, trata-se fundamentalmente de estabelecer as formas pelas quais o
documentarista procura tomar um determinado tema. Produzir subjetividade significa criar,
a partir de estratégias, técnicas e dispositivos, uma representação para o tema: única,
singular, e que existe apenas ali - na construção de ritmos, texturas e relações indexicais. A
construção dessa argumentação cria o que Bill Nichols determina como a ‘voz’ do texto;
que não é necessariamente uma voz em off ou incorporada à narrativa, mas a forma como
uma visão do mundo é manifestada.
64
Para Nichols, essas manifestações são menos sinais de evidências do mundo histórico que evidências da
filmagem – o que fica claro pela percepção que temos sobre a qualidade da gravação
43
Bill Nichols determina a voz do documentário como “algo mais estreito que estilo:
corresponde àquilo que nos traz o ponto de vista social do texto, como ele nos fala e como
está organizando o material que está nos apresentando” (apud ROSENTHAL,1988,p.50).
No limite, a voz nos informa sobre o relacionamento do documentarista e seu tempo, seu
mundo; uma mistura de influências técnicas e conjunturais – onde são variáveis
determinantes as ideologias, os equipamentos, valores e linguagens. A organização de
modos de representação diz respeito justamente a essa articulação entre o mundo e o
realizador; “novas estratégias devem ser constantemente fabricadas para re-presentar as
‘coisas como elas são’ e ainda outras para contextualizar essas mesmas representações”
(Ibidem,p.48).
No início da década de 80, antes da articulação das estratégias, instrumentos e
técnicas na forma dos “modos de representação”
65
, Bill Nichols já esboçava uma
classificação para o documentário, sistematizando um modo de produção em 3 tempos
66
que se tornariam determinantes na consolidação de uma linguagem do documentário:
Os filmes na tradição desenvolvida pelo inglês John Grierson, que se
estabelece na Inglaterra a partir dos anos 30. Correspondem a documentários marcados por
uma narração autoritária, onde está implícita uma tendência expositiva e um compromisso
didático, estabelecem um princípio de ‘manipulação criativa da realidade’ que compreende
uma certa concepção função comunicativa; se consolidaram como a forma de documentário
predominante na TV
67
;
Os cinemas direto e verdade, estabelecidos a partir de equipamentos e técnicas
desenvolvidas durante os anos50 e 60, e que compreendem um dos períodos mais
discutidos na literatura crítica do documentário. Foram os responsáveis pela incorporação
65
Que será o tema do próximo capítulo.
66
O artigo onde Nichols faz essa primeira identificação é The Voice in Documentary, publicado em New
Challenges for documentary, de Alan Rosenthal, de 1988. Originalmente, foi publicado na revista Film
Quaterly, em 1983
67
Em Documentary in American Television, Wiliam Bluem afirma que a televisão, enquanto linguagem, foi
definitiva para a consolidação de uma linguagem do documentário. No entanto, John Grierson consolidou
toda uma estética a partir da produção de filmes de propaganda do Império Britânico e sua proposta de
realizar um cinema educativo para as massas encontraria na televisão o veículo definitivo.
44
da idéia de ‘transparência’, liga a uma percepção de autenticidade, como princípio de
produção dos filmes
68
;
Os documentários-entrevistas, que começa a surgir em meados dos anos 70 e 80.
São filmes que criam uma situação de autoridade difusa nos filmes. Estes são construções
estabelecidas pela conjugação de fragmentos de vozes, produzindo uma defasagem entre a
voz do diretor e a voz dos entrevistados: não estão no mesmo plano de poder, ainda que
compartilhem um mesmo espaço.
A partir da década de 90, Nichols vai identificar uma intensificação na produção de
documentários que vai estabelecer como ‘reflexivos’, onde há uma explícita participação
do documentarista no filme. É nesse momento que são estabelecidos os modos de
representação. O principal ponto dessa organização é a constatação de uma tendência
crescente no desenvolvimento de documentários a partir de propostas que giram em torno
de processos que os ‘desautorizam’ enquanto retratos da realidade. Esses filmes têm as
narrativas construídas como um diálogo entre o documentarista e seus próprios
questionamentos. No limite, os rumos que nos trazem para a produção contemporânea
indicam que o realismo documentário justifica a existência não do mundo, mas do
documentarista como parte dele. O documentário reflexivo vai se desenvolver com grande
intensidade, se tornando um formato predominante no que diz respeito a manifestações de
auto-expressão, a tradução de ideologias e o questionamento dos próprios processos de
representação.
Uma boa forma de compreender essa trajetória pode encontrar explicação nas duras
críticas que recaíram sobre o realismo no final do século passado. Durante boa parte dos
anos 70 e o começo dos 80, escreve Nichols, a crítica pós-estruturalista coloca o realismo
em xeque. “A tentativa de representar o mundo de forma ilusionista tem a qualidade da
enganação” (NICHOLS,1991,p.175). O pós-estruturalismo pregava que o espectador não
deveria se limitar ao conteúdo dos filmes, mas sim compreender a organização a partir do
aparato que construía a representação. Assim, assistir a filmes como aqueles propostos
pelos realizadores dos anos 60, fechados e circunscritos em si, significava uma atitude
alienada em relação ao mundo. O movimento da crítica ia além, ao sugerir que se pensasse
68
É interessante pontuar que os filmes que se desenvolveram no rastro da linguagem dos cinemas direto e
verdade fomentam boa parte da produção contemporânea, sendo plenamente articulados com entrevistas e
intervenções reflexivas do documentarista.
45
a organização do texto não como uma fonte única de interpretação, mas como “exemplo e
sintoma de um mecanismo maior” (NICHOLS,op.cit.,p.175) . Isso criou a brecha para o
surgimento de um sentido de autoria nos filmes, que se diferenciavam por uma apropriação
de procedimentos gerais e de domínio comum, mas com um resultado individual, próprio à
produção de ‘voz’ de cada realizador. A partir daí, os filmes documentários começam a se
desenvolver com uma proposta mais reflexiva, onde o documentarista inscreve não só sua
palavra, mas seu próprio corpo no filme
69
.
É exatamente no momento em que as questões de auto-representação começam a
ganhar terreno no documentário que se torna importante trazer à tona questão do realismo e
da produção de subjetividade que nele toma lugar. O realismo, enquanto estilo – escreve
Bill Nichols - passa por uma inversão no documentário; “em vez de trazer as sensibilidade
e visões do documentarista para fora, ele situa o documentarista no mundo histórico”
(NICHOLS,op.cit.,p.184). Ou seja, tudo aquilo que é da ordem do acidental, da intervenção
é menos uma questão de metáfora e mais um atestado da real inscrição do realizador
tentando entender e lidar com os acontecimentos do mundo que estão fora do seu controle.
A realidade que está subentendida na personificação do realizador do filme na tela não
oferece nenhuma outra garantia histórica “que da historicidade real do registro de uma
situação ou evento” (NICHOLS,op.cit,p.184). Sinais de uma filmagem realista
testemunham tão somente a presença do aparato de registro e a realidade por ele criada.
6) UM MODO AFETIVO DE REPRESENTAÇÃO
A produção contemporânea de documentários passa por um momento onde o
questionamento do próprio documentarista torna-se um forte elemento da narrativa – tanto
no que diz respeito a suas motivações, como à sua própria interferência no objeto filmado.
Essa prática, identificada especialmente no deslocamento dos elementos dos modos
definidos por Nichols - misturados, criam uma nova categoria, designada popularmente
como ‘híbrida’. Representa um movimento importante na história do documentário. A
aposta deste trabalho está na identificação do documentário performático não apenas como
69
É também nesse momento que uma idéia de representação do corpo começa a entrar em questão, criando
uma série de filmes que se articulam a propostas políticas, culturais e raciais.
46
mais um dos modos, mas como um modo bastante representativo da produção
documentária atual. Esses filmes não apenas estão essencialmente ligados aos movimentos
da sociedade global, mas também representam um lugar de convergência, diálogo e
cruzamento de todos os modos de representação – tendo como sujeito do filme a própria
figura do documentarista, enfatizando uma aproximação mais subjetiva. Um modo que
também poderíamos designar como sendo um documentário afetivo. Formalmente, ele será
identificado por Bill Nichols como performático, no livro Blurred Boundaries em 1994.
O documentário performático se esboça a partir de meados dos anos 70, e tem suas
linhas básicas desenhadas durante os anos 80 e 90. É um formato que tem como
característica principal a intensidade emocional e a expressividade subjetiva. Seu
surgimento está fortemente enraizado em trabalhos de vídeo de grupos de minoria
(homossexuais, portadores do HIV, negros, mulheres), nos quais o crescimento da
articulação de um senso de comunidade foi significativo durante esse período
70
, em torno
do início da década de 90. Esses filmes surgem mais como manifestações que como objetos
de reflexão, reafirmando identidades políticas e deslocando o problema da marginalidade
para o canal midiático.
Na verdade, trata-se de um momento onde o deslocamento ocorre tanto na temática
social como no aspecto formal do documentário
71
. Ao estudar os filmes performáticos,
Andréa Molfetta identifica o surgimento de uma subjetividade que “desenvolve sua
performance discursiva utilizando os recursos e estratégias discursivos da representação
expositiva, observacional ou intuitiva do documentário ressemantizado”
72
. Ou seja: o que
70
Catherine Russel identifica, nos EUA, o crescimento desses filmes a partir da proliferação dos registros
feitos em vídeo, no calor da elevação das vozes dos guetos. Para Russel, da mesma forma que W. Benjamin
identificou na criação do cinema uma nova forma do homem se relacionar com a imagem, o surgimento dos
registros em vídeo também muda completamente a forma como nos relacionamos com as formas de
representação.
71
Em um interessante texto publicado na revista Sight and Sound, Jon Ronson escreve sobre um grupo de
documentaristas o qual denomina les nouvelles égotistes – são realizadores que se construíram seu estilo
colocando a busca ou a investigação do documentarista como elemento principal do filme. Além do próprio
Ronson, são citados Roger Moore, Ross McElwee e Nick Broomfield. No entender de Nichols, o tipo de filme
produzido por esses documentaristas seria o documentário reflexivo. Entretanto, entendemos que a estética
desenvolvida por esses realizadores foi fundamental para o surgimento de filmes mais introspectivos e
confessionais – o caso dos performáticos, o que coloca esses filmes numa região de fronteira. Foram essas
pessoas que criaram um ‘sub-gênero’ onde a presença do documentarista está deslocada inexoravelmente para
o primeiro plano. Alguns, inclusive, são abordados por nós a partir da perspectiva do documentário
performático.
72
Trecho de artigo publicado na Revista Sinopse nº 9, p.75. O trabalho de Molfetta será por nós amplamente
utilizado no capítulo V desta dissertação.
47
se verifica é um deslocamento vertical de técnicas elementares, convergendo para a
formação de um novo modo de expressão e representação, absolutamente vinculado ao
imaginário, e reflexo do deslocamento das fronteiras que dividem o público e o privado.
48
II
1) MODOS DE REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO: ESTRATÉGIAS E
REPRESENTAÇÕES DE EXPERIÊNCIAS
Este capítulo tem, por função, a identificação das principais características
estabelecidas por Bill Nichols para caracterização dos modos de representação. O objetivo
do texto que segue é situar o leitor no sistema do teórico, além de criar uma perspectiva
sobre o documentário performático a partir da associação com procedimentos anteriormente
estabelecidos, possibilitando, assim, uma visão de conjunto. As definições aqui
estabelecidas procuram acompanhar o pensamento mais recente de Nichols; isto é, a
classificação em 6 modos, não totalmente distintos entre si
73
. Os modos não se superpõe
cronológica nem qualitativamente. Eles existem em função da necessidade de
representação, da forma de aproximação do mundo histórico utilizada
74
.
1.1) O ESTABELECIMENTO DOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO
Sistemas de classificação são formas tanto funcionais quanto perigosas para o
estabelecimento de uma rede de conhecimento sobre determinado assunto. Funcionais
porque servem como porta de entrada: são estruturas relativamente seguras e criam uma
visibilidade de conjunto que permite uma aplicação de regras no cotidiano. Mas também
são perigosas, porque nunca definitivas; mudam de acordo com a interação que se
estabelece com o mundo; há sempre uma potência escondida nas entrelinhas. Esses
sistemas constituem formações discursivas que determinam uma comunhão de valores que
podem ser aplicados aos mais variados textos. Não foi diferente com os modos de
73
Ainda que a divisão obedeça a classificação do livro Introduction to documentary, de 2001, a referência
básica ainda será os 4 modos desenvolvidos em Representing Reality. A razão é simples: o último trabalho é
muito mais pontual, muito mais referencial, enquanto que no estudo inicial encontramos análises densas de
conteúdo fílmico.
74
Já em Representing Reality Nichols mostra um interesse bem mais denso no desenvolvimento dos modos
interativos e reflexivos. Necessariamente, estes são os dois modos que mais se tornam visíveis no formato
híbrido que é a essência do performático. Neste trabalho, o documentário performático converge todas as
influências dos métodos interativos e reflexivos para criar propriedade de pensamento.
49
representação do documentário de Bill Nichols. Ele estabeleceu seu sistema de
classificação para o documentário a partir de uma perspectiva de identificação. Para
Nichols, garantir uma identidade implica criar uma relação entre um texto e uma série de
variantes e condições, que vão das relações de tempo e espaço que configuram as condições
em que o filme é realizado às convenções que envolvem tanto o documentarista como o
objeto filmado. Identidade, nesse caso, tem menos a ver com a qualidade que distingue um
filme do outro e mais com as características que os torna semelhantes dentro de um
determinado grupo. Para Nichols, estabelecer um critério de identidade para o
documentário significa estabelecer uma comunhão de procedimentos que possibilitam o
desenvolvimento de uma teoria – que surge a partir de uma divisão de vozes. Uma vez
selecionados e agrupados, esses procedimentos se aglutinam em matrizes, que fazem as
vezes de referência para a análise e compreensão dos filmes.
Uma classificação do documentário em diferentes modos de representação tem
como finalidade o estabelecimento do que Nichols designa por estrutura de adequação
flexível, tanto para os documentaristas como para pesquisadores e estudantes. Essa
estrutura prevê a definição de convenções, relações e dispositivos que os filmes poderiam
adotar. Assim, ao criar os modos, Bill Nichols desenvolveu uma forma de organização do
pensamento para o fazer e o pensar do documentário. De certa maneira, a divisão proposta
pelo teórico se tornou uma espécie de cânone da classificação desse cinema. Hoje,
dificilmente podemos estabelecer qualquer tipo de raciocínio sobre qualquer destes filmes
sem passarmos pelas características identificadas pelo professor Nichols.
Trata-se basicamente de um processo que envolve metodologia de classificação e
agrupamento a partir das características existentes em diferentes filmes. Os modos foram
definidos através da análise de documentários pré-existentes, que, a partir de então têm
servido como referência, guia de identificação de procedimentos e formas de aproximação
com a realidade. Por trás das práticas pertinentes a cada modo, existe uma compreensão
subliminar indicativa da qualidade da representação do mundo
75
. Pensar o documentário a
partir dos modos auxilia na compreensão das razões e escolhas daquela forma de pensar o
75
Se existe a possibilidade de enquadrar os filmes a partir de uma perspectiva cronológica, essa é a maior
vantagem: através da forma de se relacionar com a imagem e com o mundo, o documentarista também mostra
um pouco a forma como a própria sociedade se relaciona com o mundo. Donde, cria uma entrada para um
50
tema. Mais que uma maneira de representação do mundo, os modos indicam a forma de
aproximação do diretor com o seu objeto de filmagem. Para Nichols, uma vez que os
modos são estipulados e determinados, se estabelecem convenções e paradigmas fílmicos
que não visam restringir a leitura de um filme; apenas indicam as estratégias de
aproximação, abordagem e representação escolhidas.
Em Representing Reality, de 1991, Bill Nichols classificou o documentário em 4
modos de representação: o modo expositivo, o modo de observação, o interativo e o
reflexivo. Alguns anos mais tarde, Nichols retoma sua classificação – e em Blurred
Boundaries, escrito em 1994, estabelece mais um modo: o performático. Nichols
reconhece que esse modo, de alguma forma, já tinha sido esboçado no modo reflexivo -
amplamente representativo dos movimentos sociais que atravessaram o mundo e
modificaram a sociedade nos últimos 30 anos. Bill Nichols enxergou a necessidade de mais
um modo a partir da constatação de que estavam sendo produzidos filmes que desviavam
sua abordagem da tradicional qualidade referencial do documentário. Segundo ele, nestes
filmes havia menos argumentação; e mais sugestão e subjetividade. Em seu último livro,
Introduction to Documentary, de 2001, é possível constatar mais uma nova ampliação nos
modos, mesmo que de uma forma mais sutil. Neste trabalho, Nichols acrescenta o modo
poético aos cinco anterioremente determinados
76
; porém, o poético não se torna o 6º modo.
Nichols optou por situá-lo antes dos os outros. Isso porque, de acordo com sua descrição,
os filmes poéticos guardam relações bastante estreitas com trabalhos desenvolvidos no
movimento da vanguarda modernista e surrealista do início do século XX. Introduction...
nos permite refletir sobre a fugacidade de um sistema de representações: se no primeiro
estudo, Nichols permanecia relativamente preso a uma classificação dos filmes de cada
modo a partir de uma perspectiva cronológica
77
, neste último trabalho a classificação
escapa de uma limitação temporal e se concentra nas estratégias utilizadas. O que lhe dá
liberdade maior para se concentrar nas qualidades estilísticas dos filmes: Rain, de Joris
Ivens (1929), San Soleil, de Chris Marker (1982) e Free Fall, de Péter Forgács (1998) são
sistema de cultura, que, por sua vez, configura uma visão de mundo – que, aí sim, pode ser admitida como um
‘documento’ do tempo onde o filme é feito.
76
Em Representing Reality, Nichols observava ‘formas poéticas de exposição’ nos filmes agrupados em torno
do modo expositivo.
77
Essa é defintivamente a maior crítica feita ao teórico - a de que seu sistema mais restringe que amplia o
conhecimento aos filmes, uma vez que seus modos estariam ligados a movimentos específicos no tempo.
51
aqui tratados como filmes cuja estrutura narrativa é forjada a partir das formas de
representação que designa sob a rubrica poética.
Embora Nichols afirme que os modos não devem ser apreendidos como uma
classificação histórica do documentário, é inegável a percepção de uma perspectiva
cronológica no sistema de classificação – eles estão eminentemente ligados ao momento do
mundo em que viviam os documentaristas, bem como às inovações técnicas que permitiram
o desenvolvimento de novas linguagens. Assim, o cinema poético liga-se ao movimento de
vanguarda que, por sua vez, liga-se ao modernismo do início do século; o cinema direto se
torna possível a partir dos novos equipamentos técnicos desenvolvidos para a televisão e a
partir de uma insatisfação com as formas de registro anteriores; o cinema verdade pode ser
compreendido como uma ‘resposta’ à pretensa ‘objetividade do registro’ do direto
americano; os filmes da cineasta alemã Leni Riefenstahl são uma ode manifesta à estética
da propaganda nazista.
Mesmo que seja pertinente afirmar que os modos estão de alguma forma conectados
com o desenvolvimento tecnológico e social do mundo, eles não se tornaram modelos
estacionados no tempo – para Bill Nichols, novas formas surgem em função de restrições e
limitações das antigas. Essa afirmação nos parece cada vez mais pertinente na observação
dos documentários produzidos atualmente, onde se observa uma reinvenção a partir do
deslocamento de dispositivos e fórmulas experimentais imbricadas. Para o teórico, o que
muda é o modo de representação, não a qualidade ou o próprio status da representação –
um novo modo carrega diferentes ênfases e implicações. Mas, o que significa esse
deslocamento de fórmulas? Como classificar a superposição dos modos? Se estes
correspondem a épocas, se épocas surgem a partir de modificações no tempo, qual a base
para a mistura de tendências e formas de construção? Para Bill Nichols,
“Novos modos sinalizam menos uma maneira melhor de representar o mundo
histórico que uma nova forma dominante de organizar o documentário, uma nova
ideologia para explicar nossa relação com a realidade e uma nova lista de questões
e desejos para perturbar a audiência” (NICHOLS,2001p.102)
52
2) OS MODOS DE REPRESENTAÇÃO DE BILL NICHOLS
2.1) Modo poético
78
No modo poético, o mundo histórico aparece apenas como um fornecedor de
matéria para o estabelecimento de idéias, que são produzidas a partir da justaposição de
imagens. Nisso, é muito parecido com o modo expositivo. Não há compromisso com o
estabelecimento de um sentido histórico; a representação construída nesse documentário vai
além: são filmes onde o documentarista associa seres humanos e objetos para estabelecer
uma relação de significação. Para Nichols, trata-se de um desvio de uma representação do
mundo histórico para uma representação do mundo criada pelo documentarista,
estabelecida apenas virtualmente, dentro de seu imaginário: “o documentário poético,
então, vai ao mundo histórico em busca de material bruto, mas transforma esse material de
formas distintas”(NICHOLS,op.cit.,p.103).
Algumas convenções são determinantes para a identificação de um filme como
poético: uma narrativa fragmentada, a utilização de material de arquivo (imagens históricas
e particulares), descontinuidade rítmica (imagens mais rápidas ou lentas) e visual (imagens
mais brilhantes ou opacas), legendas ocasionais definindo um senso de localização espaço-
temporal, narração em off cujo texto pode apresentar uma estrutura de diário, letras de
música ou poemas. Enfim, há um desprendimento dialético entre o significado destas
imagens, a meio caminho de uma compreensão geral e a compreensão do autor. O modo de
ver, a forma como um objeto é mostrado, está muito mais ligado à própria concepção do
diretor que ao significado atribuído ao objeto no mundo. Os documentários poéticos
costumam rejeitar a criação de personagens. Pessoas e objetos são apenas elementos a
serviço de uma montagem estruturada a partir de associações e padrões sensoriais derivados
do imaginário do realizador.
Nichols identifica o documentário poético como uma forma de expressão que
guarda traços e características comuns ao movimento da vanguarda modernista do início do
século. Essencialmente influenciadas pelas então recentes transformações na indústria e na
economia da época, essas formas de apresentação são construídas a partir do uso de
78
O modo poético só vai aparecer na classificação de Nichols em seu último trabalho, Introduction to
documentary (2001) e de forma bem sucinta. Compreensivelmente, é o menos desenvolvido.
53
fragmentos, impressões subjetivas, ações incoerentes e associações móveis. Bill Nichols
ressalta que essa “elasticidade da fragmentação e da ambiguidade continua uma
característica proeminente em muitos documentários poéticos” (NICHOLS,op.cit.,p.104).
Encontramos exemplos das técnicas do modo poético nos filmes de Joris Ivens, como The
Bridge (1927), o já citado Rain e Philips Radio (1931)
79
; os filmes-sinfonias de cidades
também reúnem característica que nos permite entendê-los como poéticos
80
. No Brasil,
podemos citar como exemplos de trabalhos contemporâneos desse modo os vídeos de João
Moreira Salles sobre um poema da poetisa Ana Cristina César, e alguns trabalhos de Arthur
Omar, como o que trata do processo criativo do artista plástico Eduardo Sued
81
.
Estilisticamente, o modo poético é bastante parecido com o performático;
entretanto, aqui, os filmes estão necessariamente concentrados na produção de um
conhecimento fora do realizador – são temas e objetos tratados subjetiva e poeticamente:
“Esse modo estende humores e tonalidades muito mais que expõe conhecimento ou formas
de persuasão. O elemento retórico permanece subdesenvolvido”(NICHOLS,op.cit.,p.103).
Como iremos ver no próximo capítulo, o modo poético tem ampla influência nos filmes
performáticos.
2.2) O modo expositivo
Dentre todos os modos, o expositivo é aquele que teve maior aceitação no
empreendimento do documentário como matéria didática, e é aquele que se tornou o
modelo ‘popular’ do qual se depreende o sentido da palavra documentário. Ainda hoje, é a
estrutura preferencialmente adotada por meios onde a produção de documentários segue um
procedimento de consenso, focados numa função educativa e informativa. É o caso da
televisão, que utiliza freqüentemente o formato expositivo em sua programação de
variedades e jornalística. Esquematicamente, Nichols dispõe o modo expositivo, em sua
relação com o mundo histórico, da seguinte forma:
79
Os documentários de Joris Ivens vão se deixar contaminar por um viés político após sua visita à Rússia, em
1929. Explica Michael Renov: “Com o prenúncio do levante econômico global e a elevação das tensões de
classe nos anos 1930, Ivens estabeleceu que obrigações sociais falavam mais alto que preocupações com uma
expressão artística e pessoal.” (RENOV, 2004,pp.xxi)
80
Berlin, sinfonia de uma cidade (Walter Ruttman, 1927), O Homem com a câmera na mão(Dziga
Vertov,1929) são os exemplos mais correntes.
81
Respectivamente: Poesia é uma ou duas linhas e atrás uma imensa paisagem, de 1989; e Palavras no
ateliê, de 2002.
54
qualidade expositiva engajamento evocativo e poético com o mundo
autoridade tom, estilo e voz
Ou seja: com isso, quer dizer que são filmes cuja ênfase recai no aspecto
informativo do texto, concentrando sua atenção na construção da mensagem. O principal
elemento da construção destes filmes é a voz em off, que forma a base da estrutura de
argumentação sobre o mundo
82
. Os documentários expositivos estão baseados numa lógica
de informação fundada na palavra oral, onde o uso da voz e a força das palavras na
construção narrativa constituem o principal elemento. A edição nos documentários
expositivos busca a manutenção de uma continuidade no argumento narrativo, ou da
perspectiva apresentada. Nichols chama esse procedimento de montagem de evidência,
onde a “montagem pode sacrificar a continuidade espacial e temporal para amarrar imagens
deslocadas entre si, se isso ajudar no bom andamento do argumento”
(NICHOLS,op.cit.,p.107). Ou seja, neste tipo de construção, as imagens não dialogam
necessariamente entre si. Isso porque estão inevitavelmente vinculadas à voz que lhes dá
sentido e existência na tela. O comentário em off necessariamente dá o tom de
credibilidade, produzido a partir de um distanciamento e de uma neutralidade aparentes em
relação ao assunto. Segundo Nichols, é uma lógica subordinativa, onde a retórica do
argumento do narrador é o fator dominante no texto; a “edição nesse modo (...) geralmente
é para estabilizar e manter mais uma continuidade retórica que uma continuidade espaço-
temporal” (NICHOLS,1991,p.35).
Os filmes com as características do modo expositivo concentram-se particularmente
na justaposição de fragmentos do que Nichols define como mundo histórico – o mundo ao
qual nós pertencemos, a origem da representação. Documentários expositivos favorecem a
estilização em torno de um senso comum. As imagens perdem sua individualidade uma vez
que surgem apenas como referência a determinado tema. Nichols identifica nesse
dispositivo uma economia de análise, produto de uma brusca redução da identidade da
imagem; “em outras palavras, o agente autoral ou institucional é representado pelo logos
55
a palavra e sua lógica – mais que pelo corpo histórico (...)” (NICHOLS,op.cit.,p.38). Esses
filmes procuram enfatizar o aspecto de verossimilhança, criando uma impressão de
objetividade e de julgamento bem fundamentado; o “conhecimento (...) no expositivo é
sempre epistemológico no senso de Foucault de certas certezas transpessoais que estão em
cumplicidade com categorias e conceitos aceitos como definidos ou verdadeiros num tempo
e lugar específicos” (NICHOLS, 2001,p.35).
Os filmes identificados por Nichols como expositivos são aqueles aonde tudo
acontece a partir do conteúdo das vozes e legendas endereçadas ao público. Os melhores
exemplos são encontrados na escola inglesa de documentário, solidificada durante os anos
1930 ao redor do grupo liderado por Jonh Grierson (Night Mail, Drifter, The Coal Face,
Song of Ceylon)
83
. Entretanto, filmes de produção recente fazem amplo uso da retórica e do
instrumental do modo expositivo, sem necessariamente se prenderem a uma filosofia
didática
84
. Nichols aponta que, através do tempo, filmes que optam por técnicas de
exposição (a gramática inventada nos anos 30) tendem a abandonar a estrutura linear
característica dos filmes de Flaherty, Grierson e Watt, para assumir uma organização mais
dialética, desviando as estratégias em benefício da produção de questionamentos sobre o
tema. O aparato expositivo costuma ser incorporado na produção de criações paradoxais
que surgem da justaposição de imagens e textos em relações diversas entre si.
A narrativa desses documentário é dirigida ao espectador em grande parte das vezes
na forma de um comentário didático, onde as imagens têm finalidade ilustrativa. Elas são
deslocadas para uma condição de suporte, tendo por função adequar-se àquilo que está
sendo dito: ”(o comentário) serve para organizar essas imagens e dar-lhes sentido assim
como uma legenda direciona nossa atenção e enfatiza alguns dos muito significados e
interpretações de uma imagem”(NICHOLS,id.,p.107). Os elementos empregados na
construção da narrativa (cartelas, som não-sincrônico à imagem, material de arquivo,
entrevistas) têm por objetivo a criação de uma perspectiva. Documentários expositivos
82
No Brasil, durante os anos 60, Jean-Claude Bernardet escrevia sobre a voz em off no filme Viramundo: ‘É a
voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo
sociológico’ (BERNARDET,2003,p.17)
83
Os diretores e datas dos filmes são os que seguem, respectivamente: Harry Watt e Basil Wright (1936),
John Grierson (1929), Harry Watt (1936) e Basil Wright (1937).
84
Roger e eu(1989), ‘The Big One!’(1990), Tiros em Columbine (1999), de Michael Moore; Ilha das Flores
(1989), de Jorge Furtado; Supersize me! A dieta do palhaço(2003), de Morgan Spurlock. O filme de Spurlock,
56
procuram construir um ponto de vista onde não exista margens para qualquer outro tipo de
interpretação. São filmes mais preocupados em convencer, por isso, atentos para a criação
de um mecanismo de persuasão. Há uma ênfase declarada na concepção funcional de um
argumento objetivo e bem fundado. A voz em off que predomina sobre o quadro tem a
capacidade de exercer julgamentos sobre ações sem se imiscuir.
Para Nichols, os documentários onde o modo expositivo é predominante têm como
traço distintivo duas formas elementares de narrativa: a voz de Deus – nessas narrativas, o
locutor é escutado fora do quadro e nunca é visto; e a voz da autoridade – casos em que o
locutor é igualmente escutado, mas visto no campo da imagem. Essa última forma foi
incorporada de modo bastante amplo pela televisão, sendo o formato padrão dos telejornais
em geral. Essa utilização do comentário está associada a critérios de objetividade e
onisciência; o comentário, enfim, definindo a perspectiva e o argumento do filme.
O modo expositivo privilegia a transmissão de informações a partir de um ponto de
vista pré-concebido à realização do filme – que se torna tão somente um veículo para a
transmissão de uma ideologia. Isso significa uma maior preocupação com o conteúdo em
relação à forma. Ao escrever sobre o filme Roger e eu (1989), de Michael Moore, o
professor Matthew Bernstein
85
argumenta que todo o processo de construção do diretor
recorre a convenções e instrumentos do modo expositivo. Para Bernstein, Moore constrói
seu texto sobre uma estratégia de continuidade retórica, onde os argumentos são
encadeados um no outro (BERNSTEIN, apud GRANT,1998,p.397), como num processo de
empilhamento de idéias. Entretanto, como lembra a também pesquisadora Stella Bruzzi, a
voz em off não é um artifício compartimentalizado nesse modo, e se tornou um dos
instrumentos mais recorrentes na produção do documentário. Atravessando épocas, o modo
expositivo se consolidou como uma das formas mais reconhecidas do documentário
86
.
2.3) O modo de observação
no momento da redação do texto, está entre os 12 finalistas que concorrem a uma das 5 vagas para a indicação
ao prêmio Oscar na categoria melhor documentário para o ano de 2005.
85
Bernstein é professor da Universidade de Atlanta, na Geórgia e pesquisador de teoria do documentário.
86
O próprio Nichols lembra que ‘notícias de jornais de rede com seus âncoras e time de repórteres são outro
(exemplo) (...) continua sendo a forma principal de distribuir informação e persuadir a partir de uma estória
desde pelo menos os anos 20’ (NICHOLS,p.34,1991)
57
Os documentários do modo de observação em seu estado puro
87
pregam uma total
não-intervenção do documentarista no registro. Podem ser definidos como estudos
fundados na qualidade de duração do tempo (captação ‘direta’, sem cortes e com longos
planos), textura (imagem de aspecto mais sujo e granulada) e experiências de não-
intervenção na ação do sujeito filmado. São desenvolvidos em torno dos anos 60 nos EUA,
na Europa e no Canadá, e guardam influências e aproximação com o cinema neo-realista
italiano
88
. Suas principais características se estabelecem em função do desenvolvimento de
novos equipamento tecnológicos: introdução de câmeras mais leves (16mm), portáteis e de
mais fácil manuseio como as Arriflex e Auricon; além de gravadores portáteis como o
Nagra. Esses equipamentos permitiam o registro em sincronia de som e imagem, com a
vantagem de oferecerem uma mobilidade maior à equipe – essa, por sua vez, diminuía
89
.
As regras que definem o cinema de observação se caracterizam pela discrição
90
no
ato do registro: endereçamento indireto ao sujeito (os personagens estão em interação entre
si, não com a câmera); planos longos; sensação de observação relatada. São filmes que, por
princípio, rejeitam comentários em off, introdução de música ou qualquer efeito sonoro
diferente daquele do registro original, além de recusarem o uso de legendas que atribuam
nomes e funções a personagens
91
; não há lugar para reencenações, repetição de ações para a
câmera e, absolutamente, nenhuma entrevista é bem-vinda – enfim, nada que estabeleça um
contrato entre quem filma e quem é filmado. Assim, segundo Nichols, o uso dessas técnicas
permitia o registro do que estava acontecendo, enquanto estava acontecendo. A principal
manifestação desse modo aconteceu nos EUA, e ficou conhecida como cinema direto.
87
Ao contrário dos outros modos, o documentário de observação – em ‘estado puro’ – não teve continuidade.
Sua principal manifestação aconteceu nos EUA, durante os anos 60. Porém, sua forma de aproximação, bem
como a forma do registro, representaram um turning point na história do documentário Ainda hoje é possível
encontrar alguns documentaristas contemporâneos que respeitam os cânones do modo – dos quais o
americano Frederick Wiseman e a brasileira Maria Augusta Ramos são exemplos. Essa perecidade pode
encontrar explicação no relacionamento necessário que surge entre documentarista e documentado
atravessado pela própria consciência do ato de ser filmado.
88
Estabelecemos essa relação no capitulo anterior. Essa relação é estabelecida por Bill Nichols, não podendo
ser tornada geral.
89
A diminuição da equipe é essencial para um registro com perspectivas não-intervencionistas.
90
Uma das formas de se referir à técnica desses filmes é fly on the wall – literalmente, ‘mosca na parede’ –
que caracteriza uma observação sem interferência.
91
Legendar , atribuir nomes e funções é uma maneira de interfêrencia na assimilação dos personagens pelo
público. Entretanto, cabe lembrar a original abertura de Gimme Shelter, dos irmãos Maysles e Charlotte
Zwerin. Após o título do filme, surgem os ‘créditos’ do elenco: os nomes dos integrantes da banda Rolling
Stones sobrepostos à sua imagem dentro do estúdio de edição.
58
O documentário de observação "sacrificou várias formas estabelecidas de registro
documentário, como a encenação, a composição da cena e as combinações prévias entre
documentarista e documentado”(NICHOLS,2001,p.119). Com esses procedimentos, o
cinema de observação desorientava formas de representação tradicionais do documentário:
o estabelecimento de uma relação de troca entre as partes e o trabalho de pesquisa que
criava as teorias e hipóteses sobre as quais o documentarista escrevia seu roteiro.
Fundamentalmente, impossibilitava a criação de um relacionamento como aqueles que
possibilitaram as filmagens de R. Flaherty (Nanook, Moana, O homem de Aran
92
).
Entretanto, essa ideologia da observação tem certas reservas, que, em certa medida,
respondem pela curta duração dessa forma de documentário: por mais não-intervencionista
que se queira, é preciso que criar e estabelecer uma cumplicidade entre documentarista e
documentado no cinema de observação – é preciso que se autorize a filmagem. Essa
cumplicidade faz, também ela, parte da história do documentário
93
, uma vez que o relato da
entrada do diretor em cena, mostrando o processo de produção dos filmes também responde
por uma forma de fazer documentário. Uma questão que vai transbordar no documentário
participativo, especialmente presente nos filmes etnográficos: “a linguagem do corpo e o
contato do olhar, a entonação e o tom de vozes, as pausas e os tempos vazios que dão aos
encontros o senso de concretude, de realidade viva” (NICHOLS,op.cit.,p.112). Os
documentaristas de observação também rejeitavam uma construção como aquela que Joris
Ivens utilizara em filmes como Rain (1929), onde a composição de um dia de chuva foi
feita a partir da edição de tomadas realizadas ao longo de quatro meses. A idéia era
trabalhar a partir do registro de uma experiência espontânea e instantânea, em tempo
real.
92
Em How the mith was made (1976), George Stoney e James Brown retomam os passos de Robert Flaherty
na Ilha de Aran para a filmagem de O Homem de Aran (1934). Na construção do making of do filme, os
diretores do documentário atravessam a metodologia de filmagem de Flaherty, identificando os principais
procedimentos: ele morou anos na Ilha, estabeleceu laços de amizade com seus personagens, buscando sua
colaboração efetiva na criação das cenas. O que se concretiza é a idéia de que O Homem de Aran é menos um
registro documental daquele povo e mais uma descrição poética, artesanal de um estilo de vida – atemporal e
sem compromisso com o ‘mundo histórico’. Os anos das respectivas produções são 1922/26 e 34).
93
O relacionamento do documentarista com seu ‘objeto’ foi recentemente colocado à prova por ocasião do
filme Être et avoir, de Nicholas Philibert (2002). Após o inesperado sucesso de bilheteria do documentário –
que acompanha o ano escolar de uma turma multiseriada numa área rural da França – o professor,
personagem central da estória, M. Lopez, abriu um processo contra o realizador. Para Lopez, o documentário
retratava seu estilo particular de lecionar, logo, sua obra de arte. Assim, demandava lucros da bilheteria. Até o
momento da redação desta dissertação, ainda não havia ganho a causa em nenhuma instância.
59
Os documentários de observação são construídos ao redor de uma perspectiva
espaço-temporal, procurando transmitir uma sensação de duração. Isso quer dizer que a
edição privilegia a experiência e o registro em tempo real. Os filmes desse modo são
construídos ao redor de eventos (as turnês de Bob Dylan, dos Beatles, dos Rolling Stones),
de crônicas do cotidiano (um dia de gravação do pianista Horowitz, algumas semanas numa
casa em ruínas, o acompanhamento do dia-a-dia de uma pequena cidade do Maine, um dia
de julgamento num tribunal) ou uma crise (as tentativas de venda de livros Bíblia, o
desenvolvimento de uma campanha eleitoral)
94
. Os filmes estabelecem a ação central em
torno de um indivíduo, tornando-o o protagonista/personagem de sua própria estória. Tudo
vai girar em torno desse personagem e dos fatos que serão por ele vividos durante um
período de tempo. Assim, como nos filmes de ficção, aspectos da personalidade destes
sujeitos nos são revelados. Os paradigmas
95
vão surgir exatamente a partir da observação
contínua do cotidiano – importa mais a continuidade temporal-espacial que a continuidade
lógica da argumentação (caso do cinema de exposição).
Bill Nichols define os personagens do cinema direto como atores sociais
personagens a quem uma série de características são articuladas para que se possa construir
um perfil e, sobre esse perfil, desenvolve-se uma narrativa – que interagem entre si;
‘teoricamente’ ignoram a presença da câmera. Ideologicamente, a interferência do
documentarista acontece apenas na hora da montagem. Ellen Hovde, uma das editora de
Grey Gardens (1975), afirmou que “em termos de edição, significa quase sempre cortar as
seqüências de forma muito próxima àquilo que foi cortado” (HARPOLE, 1991,p.205).
Pelo fato de ter como objetivo a retratação do ambiente histórico com um efeito que
subtrai a interferência da mediação – e a conseqüente manipulação desses registros na
montagem em busca da criação de uma narrativa específica –, o documentário de
observação levanta muitas questões éticas. Desde a (questionável) transparência da câmera
e o grau de intervenção da presença do documentarista, até a legitimidade da construção
dos personagens, sobressai nas discussões teóricas o papel ambíguo de testemunha e
94
Trata-se dos seguintes filmes: Don’t look back, de D.A. Pennebacker (1966); What’s happening! The
Beatles in the USA (1964), Gimme Shelter (1970), Horowitz plays Mozart (19xx), Grey Gardens (1975) e
Salesmen (1969), de Albert e David Maysles; Belfast Maine (1999) e Domestic violence 2 (2002), de
Frederick Wiseman; e Primary (1960) e Crisis (1963), de Robert Drew.
95
É comum no documentário a articulação de relações paradigmáticas – descoberta de relações contrárias que
surgem de procedimentos básicos e funcionais da sociedade - para a construção do argumento.
60
interferência que a câmera incorpora no momento do registro
96
. É muito fácil, nestes
filmes, esquecer a existência de uma mediação; daí o risco de se esquecer que aquilo que se
assiste é uma construção, e tomar aquela imagem como o próprio real. Entretanto, uma
concepção de cinema ‘natural’ não era recente; Nichols vai justificar essa vontade de ser
neutro destes filmes nos manifestos dos anos 30, escritos por Para Vertov, que começou
editando noticiários, o cinema deveria desprezar qualquer artifício, cenário, figurino, atores,
maquiagem ou efeitos que denotasse controle das imagens; a mediação, o exercício de
controle do cineasta deveria acontecer justamente na escolha do documento, no exercício
de justaposição das seqüências e no ritmo impresso às imagens.
A definição de cinema de observação em Introduction to documentary se estende
para além do modelo direto desenvolvido nos EUA. O modo de observação, escreve
Nichols, caminha tanto para frente quanto para trás na história dessa forma de cinema. Para
o teórico, há sentido falar numa postura contemplativa em se tratando de uma cultura do
documentário. Isso o permite apontar um filme como Triunfo da Vontade, de 1935, de Leni
Riefenstahl, como uma forma de cinema de observação. Da mesma maneira, o cinema
etnográfico - que assenta sua prática a partir da observação do outro – partindo de uma
postura de observação, vai se organizar, mais recentemente, em uma estrutura mais
participativa onde a narrativa se transforma num relato da interação entre o documentarista
e o documentado.
2.4) O modo interativo (ou participativo
97
)
A maior característica do modo participativo é a produção de interatividade entre o
documentarista e seu personagem
98
. A produção da interatividade concentra-se mormente
na entrevista, uma formalização do encontro, um ritual que pode assumir diferentes formas
e espaços; pode revelar ou não a presença do realizador, pode ser um registro em tempo
real do encontro ou ser editada, entre outros. Os filmes estruturados sobre entrevistas
permitem reunir diferentes narrativas numa mesma estória – fragmentos cujo teor
96
Discussões sobre a interferência da câmera como agente de produção de comportamentos são especialmente
interessantes nos dias de hoje, onde câmeras incorporam o próprio espírito da sociedade do espetáculo, se
tornando uma garantia de existência e de inserção no mundo.
97
Em Representing Reality, Nichols se refere 2º modo como ‘interativo’. Já em Introduction to documentary,
a nomenclatura é ‘participativo’.
61
discursivo convergem para um mesmo tema. Para Nichols, a entrevista é um instrumento
formal de se dirigir a uma pessoa no filme, e evita que se lance mão dos comentários em
off: “a entrevista é uma das formas mais comuns de encontro entre o realizador e o sujeito
que ele filma no documentário participativo”(2001,p.121). Entrevistas são uma forma
distinta de encontro social, entre a conversa rotineira e as duras rotinas de interrogatório;
“em cada caso, a hierarquia é mantida e oferecida, enquanto a informação passa de um
agente social a outro’ (NICHOLS,1991,p.50). Para Consuelo Lins, fazer perguntas significa
um esforço de interferir nas idéias do outro, ‘interferir’ no sentido de orientar uma conversa
procurando evitar as programações impostas pela conjuntura social e as ‘tiranias da
intimidade’
99
.
O que caracteriza o documentário interativo é o uso da entrevista como mecanismo
catalisador de uma atividade dinâmica – aquilo que movimenta o filme, por seu caráter de
‘acontecimento’. As entrevistas nos documentários interativos representam mais do que
uma transmissão de conhecimento: representam as trocas de dinâmicas sociais entre
documentarista e personagem. Além disso, “a entrevista testemunha uma relação de poder
onde hierarquias institucional e regulamentadora pertencem ao próprio discurso”
(Ibidem.,p.50). Assim, entrevistas também sugerem o contexto cultural dominante onde
acontecem. Uma outra forma de estabelecer esse contexto nestes filmes é o estabelecimento
de justaposições de seqüências onde falas (declarações e testemunhos) e imagens
determinam confrontos e paradigmas; entre as personagens filmadas entre si, e entre o
documentarista e seu personagem
100
. Essas justaposições podem ser derivadas de um outro
material recorrente nestes documentários: os filmes de compilação, trabalhos que reúnem
material de arquivo associado a depoimentos e entrevistas.
Bill Nichols localiza a origem dos interativos nos documentários produzidos pelo
National Film Board do Canadá nos anos 50. Entre os marcos desse modo estão os
programas Candid Câmera, transmitidos pela televisão, onde um ator se submete a seu
98
Acreditamos ser mais confortável utilizar o termo ‘personagem’ que ‘objeto da filmagem’ nestes filmes,
uma vez que o processo interativo necessariamente angaria simpatias de parte a parte.
99
O conceito de tiranias da intimidade é definido por Richard Sennett, em “O declínio do homem público”, e
diz respeito à imbricação de sentido nos relacionamentos que se dão nas esferas público e privado, pessoal e
impessoal. O conflito está localizado na dialética entre existir como indivíduo ou como membro da sociedade.
100
Mais uma prova de que os modos de representação foram se desenvolvendo no tempo – não
necessariamente por força do tempo, mas sim se incorporando e se reinventando. É, também, um mecanismo
que remete ao documentário expositivo, que permitia um desenvolvimento linear.
62
próprio ambiente provocando distúrbios na ordem cotidiana
101
. O caráter de interferência,
de produção de uma realidade, torna-se o principal elemento desses filmes. Na França, os
documentários interativos formaram a base da escola do cinema verdade, movimento
encabeçado por pelo antropólogo Jean Rouch, cujos filmes são necessariamente
atravessados pela interferência do diretor no material filmado (Les Maitres Fous, 1955,
Moi, un noir, 1958, Petit à Petit, 1970, Jaguar 1967). O filme símbolo do cinema verdade é
Crônica de um verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, de 1961. Nos Estados Unidos, Nichols
cita Primary, de 1960, como principal exemplo
102
. O modo interativo foi bastante
assimilado pela área da antropologia. Assim como aconteceu com os filmes do cinema de
observação, os documentário interativos foram altamente privilegiados pelo aparecimento
dos equipamentos leves e, principalmente, pela possibilidade de sincronização de som e
imagem, o que viabilizou a produção da interatividade. O conhecimento gerado por esses
filmes transmite uma sensação de presença, de estarmos testemunhando uma
transformação. Para Nichols, “o modo introduz uma idéia de parcialidade, de presença
situada e conhecimento local que deriva do encontro do realizador com o
outro.”(1991,p.44).
“Estar lá pede participação, estar aqui permite observação”, escreveu Nichols
(2001,p.116). O modo interativo procura incorporar a proximidade que se desenvolve entre
quem filma e quem é filmado como elemento principal do filme. Uma observação
participativa compreende um esforço de compreensão do outro, manifesta uma duplicidade
na forma de olhar, que envolve estar em dois espaços simultaneamente. Ou como Consuelo
Lins identifica nos procedimentos de filmagem do documentarista Eduardo Coutinho, há
um esforço máximo para tentar ficar vazio na hora do encontro, não deixando seus
preconceitos e valores predominarem no momento da interação (Lins,2004). Na história do
documentário, esse procedimento representa uma ‘aparente’ concessão da parte do
documentarista, que permite a manifestação de seus ‘objetos’. As aspas se justificam: na
verdade, se existe alguma falta de controle nestes filmes, ela se resume ao momento do
101
O equivalente hoje das ‘pegadinhas’, típico quadro de programas populares de auditório.
102
Particularmente, não concordo com a observação de Nichols, e acredito que Primary reúna características
que o coloquem como um representante dos filmes do cinema de observação. O filme de Rouch e Morin é a
essência da interferência, colocando em igualdade a experiência da realização do filme e a experiência criada
a partir do filme (na ação dos ‘atores sociais’). Já Primary se propõe um registro de duas candidaturas para as
63
registro, onde há mais elementos em risco – a erosão de fronteiras entre quem filme e quem
é filmado, a possibilidade de eventos não programados, a impossibilidade de roteirizar as
situações. Ou seja: há um certo elemento surpresa nestes filmes que é produzido pelo
personagem. Entretanto, a articulação destes acontecimentos, ou fenômenos, no contexto da
narrativa continua nas mãos do diretor.
Os documentários participativos trazem para o espectador a sensação da vivência
da experiência, organizada no confronto entre as duas partes – quem filma e quem é
filmado; não existindo nem o antes nem o depois. Torna-se fundamental compreender a
presença da câmera como elemento de interferência na realidade filmada. Todo
acontecimento tem um caráter de evento – algo que está sendo construído naquele
momento, com um propósito definido. O documentário interativo pressupõe uma noção de
colaboração entre as partes. Ainda que dividindo certas características de produção em
comum com o documentário de observação, o cinema interativo caminha na direção oposta.
Estamos diante da produção de uma verdade fílmica – uma verdade que se constrói a partir
do encontro: “se há uma verdade aqui, é a verdade de uma forma de interação que não
existiria não fosse a presença da câmera”(NICHOLS,2001,p.118). Mas, principalmente, é a
partir dos filmes interativos que se começa a perceber uma possibilidade de criação onde o
documentarista possa ser deslocado para a condição de personagem de seu próprio filme:
“(...) a lógica do texto leva menos á produção de um argumento sobre o mundo que
uma declaração sobre a interação ela mesma e o que ela revela sobre o documentarista
e os atores sociais” (NICHOLS,1991,p.45)
Foi neste tipo de documentário que a construção do próprio diretor como elemento da
narrativa começou a ser incorporada de fato. São filmes nos quais o próprio diretor se
coloca como na condição de sujeito de um ambiente estranho; o filme é, então, produto
deste estranhamento. A ação corresponde à performance do diretor no mundo ‘real’ e, seus
esforços de compreensão do contexto; assim, ele próprio se torna um ator social. Esse
procedimento pode ser visível, como o faz Marcel Ophuls em seus filmes Le Chagrin et la
Pitié (1970) e Hotel Terminus (1988); Claude Lanzmann em Shoah (1985); ou invisível
eleições primárias do partido democrata americano, ainda que reconheça toda a artificialidade impregnada
nessa situação.
64
como nos filmes de Eduardo Coutinho, Edifício Master (2003), Babilônia 2000 (2000) e
Santo Forte (1997)
103
. Entretanto, essa incorporação ainda tem como marca determinante a
manutenção de uma diferença entre as partes - a matéria do filme é a experiência e a
compreensão de um ‘outro’; “é menos o mundo do seu assunto que muda que o seu
próprio” (NICHOLS,2001,p.118). Ainda que esteja submetendo sua imagem e voz à
câmera, o documentário interativo não é um filme sobre o diretor; este permanece como
diferente e mantém sua função de relator de um universo que não é o seu.
2.5) O modo reflexivo
Se no modo interativo o mundo histórico é retratado como o lugar do encontro,
sinalizando processos de trocas sociais e representações, no modo reflexivo o processo que
constrói a representação do mundo histórico se torna, ele mesmo, o assunto principal. No
lugar da participação do realizador, surge o metacomentário, uma sugestão de que aquilo
que se vê não corresponde ao todo da situação representada.
Bill Nichols identifica o surgimento do documentário reflexivo em torno do final dos
anos 70 e começo dos 80. Para o teórico, o modo reflexivo surge em função de duas
demandas: uma inovação formal e uma urgência política. Isso inscreve estes filmes como
parte de debates em torno de questões tanto sociais quanto formais – ou seja, eles
comentam tanto o mundo quanto sua própria forma de representação. Mais que qualquer
outro modo, o reflexivo está extremamente ligado à discussão de idéias da sociedade
contemporânea. Para Nichols, é um filme ligado a contestações e constatações;
“(...) à crítica pós-estruturalista do sistema lingüístico como agência que constitui o
sujeito individual (mais do que aquilo que lhe dá poder); o argumento de que a
representação como operação semiótica confirmava a epistemologia burguesa (e uma
patologia voyeristica); a presunção de que uma transformação radical necessita do
trabalho no significante - mais na construção do sujeito que nas subjetividades e
predisposições (de um sujeito) já constituídas; tudo convergia na certeza de que a
103
Quando nos referimos a uma ‘presença invisível’ de Coutinho, nos referimos ao que Nichols define como
uma ‘presença da ausência’, criando ‘pseudomonólogos’, ‘que parecem entregar pensamentos, impressões,
sentimentos e memórias do indivíduo que testemunha direto ao espectador’ (NICHOLS,1991,p.54). Estratégia
que diagnostica um profundo trabalho de desconstrução do próprio cineasta no momento do encontro.
65
representação da realidade deveria ser mediada por uma interrogação sobre a realidade
da representação” (NICHOLS,1991,p.63)
A primeira grande diferença introduzida por estes filmes diz respeito a uma certa
ressemantização de um conceito de reflexão. Neste modo, ele corresponde ao ato de
inscrição do documentarista na análise do problema – o que traz para o centro do filme o
desenvolvimento da linha de raciocínio como principal assunto. Assim, a reflexão é menos
sobre o conteúdo representado que sobre a forma e os motivos da representação. Todos os
modos de representação anteriores estão necessariamente voltados para o desenvolvimento
de um melhor dispositivo formalista – uma maneira de representar o mundo de forma mais
autêntica. O documentário reflexivo foi o primeiro modo a tratar a discussão da forma
como tema. Nestes filmes, o referencial ainda é o mundo, mas o mundo não como tema em
si, mas como objeto de uma reflexão (essa sim, o assunto do filme). O documentarista está
cada vez mais presente (mesmo que ausente em imagem), ao incorporar suas dúvidas no
sistema de representação.
A força do ato reflexivo permite uma ampliação na qualidade dos instrumentos de
representação utilizados até aqui. Isso fez com que realizadores se voltassem para a
utilização de ferramentas de alta reflexidade estilística. Assim, esse modo resgata e funde
formas tanto pertinentes à tradição documentária quanto a movimentos artísticos e
marginais, além de incorporar uma linguagem derivada do cinema de ficção - uso de atores,
reencenações e efeitos especiais. O documentário reflexivo começa uma caminhada se
distanciando de convenções realistas – a representação do mundo não está necessariamente
vinculada à cristalização de um retrato do real histórico, preferindo o questionamento e a
contestação. Os documentários de Erol Morris são construções típicas desse modo: em The
Thin Blue Line (1988), o diretor investiga um homicídio criando reencenações a partir de
diversos depoimentos, mostrando a mesma estória através de diferentes pontos de vista; em
The Fog of the War (2003), Morris elege 11 lições sobre os procedimentos dos EUA
durante a guerra do Vietnã
104
. Nos filmes acima, Morris não faz qualquer movimento de
104
As ‘lições’ foram compiladas do livro “Em retrospecto: a tragédia e as lições do Vietnã”, escrito por
Robert McNamara em 1995, sobre sua experiência como secretário de defesa americano. Com The Fog of the
war, Morris foi agraciado com o prêmio Oscar de melhor documentário no ano de 2004. The Thin Blue Line
foi responsável pela abertura do caso envolvendo o acusado Randall Adams. Como conseqüência direta das
‘descobertas’ do filme, Adams foi inocentado.
66
inscrição em relação aos objetos. É no espaço aberto por essa distância que se inscreve o
ato reflexivo; na separação entre o universo do documentarista daquele do personagem. Os
filmes reflexivos trazem menos a presença de um questionamento ético que outro, de ordem
formal – ao contrário do interativo, onde a força dos filmes parte exatamente de questões
éticas.
67
III
DOCUMENTÁRIO PERFORMÁTICO:NOVA FORMA , ANTIGAS
QUESTÕES
“A observação do artista pode atingir uma
profundidade quase mística. Os objetos
iluminados perdem os seus nomes: sombras e
claridades formam sistemas e problemas
particulares que não dependem de nenhuma
ciência, não aludem a nenhuma prática, mas que
recebem toda sua existência e todo o seu valor
de certas afinidades singulares entre a alma, o
olho e a mão de uma pessoa nascida para
surpreender tais afinidades em si mesmo, e para
as reproduzir” (Paul Valery)
105
A tradição da filosofia ocidental prega a apreensão do conhecimento sob forma de
narrativas lineares e racionais, baseadas em leis que sustentam relações de causa e
conseqüência como explicações que justificam nossos atos, opções e opiniões. Tecido a
partir de informações gerais e provenientes do mundo, o conhecimento é produto de uma
busca por informações e saberes que estão fora do próprio homem – enfim, um exercício de
abstração.
De maneira geral, quando pensamos a história do documentário não é difícil
encontrarmos ali um espaço de busca por informações, um local de achados reunidos, e
organizados como saberes. Documentários são feitos por pessoas que presumivelmente têm
algo a dizer (o documentarista) para pessoas que supostamente querem escutar algo
diferente da ordem comum do seu dia-a-dia
106
. Tradicionalmente, tem sido uma busca
constante por uma forma de outridade – basta uma olhada nos principais processos de
representação estudados no capítulo anterior. De R. Flaherty a Michael Moore, por vezes
mais expositivo ou mais reflexivo, o documentário atravessou sua história falando sobre o
universo alheio, buscando informações e justificativas no outro. Era menos um referencial
105
Paul Valery foi citado por Walter Benjamin no artigo “O Narrador, considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”, publicada no volume I das ‘Obras Escolhidas’, Editora Brasiliense, 1987.
68
em si que uma fonte; menos um objeto de discussão que um exemplo. Regra geral, sempre
foram filmes vistos mais pelo conteúdo do que falam que pela forma como falam
107
.
O documentário performático representa um desvio radical nessa concepção do
documentário. São filmes baseados nas especificidades da experiência pessoal, na tradição
da poesia, da literatura e da retórica – e que sublinham a complexidade do conhecimento
sobre o mundo ao privilegiar as dimensões subjetivas e afetivas da narração. Para
Nichols esse aspecto encontrou sua forma nos procedimentos de diluição das fronteiras
entre representações pessoais e políticas, entre as distinções da ficção, do documentário e
do experimental, nos múltiplos e imbricados usos de linguagens ensaística, jornalística e
poética. Esse raciocínio permitiu a produção de filmes onde o desvio de ênfase em uma
representação realista do mundo abriu caminho para maior liberdade poética, além de
estruturas narrativas não-convencionais, caracterizadas pela predominância da auto-
narração do sujeito como elemento central do filme. Uma situação de trânsito entre a
qualidade referencial (‘janela para o mundo’) e uma expressiva, que afirma-se sob uma
perspectiva pessoal, situada e incorporada em sujeitos específicos.
Nos modos estudados no capítulo anterior, procedemos a uma análise do
documentário a partir da forma de aproximação que os realizadores mantém com o seu
objeto de filmagem. Entretanto, por diversas que sejam as estratégias e propostas, todos
convergem para um ponto comum: a produção de estratégias de argumentação persuasivas
SOBRE o mundo. Do modo expositivo, que privilegia ‘perfis achatados’
108
até o reflexivo,
que traz os questionamentos do documentarista sobre o mundo, o olhar do diretor sempre
esteve voltado para fora de si, buscando convencer o espectador a enxergar o mundo de
forma diferente. Se os quatro modos anteriores foram estruturados, de um ponto de vista
geral, sob uma proposta de ação e reação – de um lado o mundo, do outro sua representação
-, o modo performático vai ser qualificado como uma ‘resposta’ à necessidade de auto-
106
A diferença da ordem comum vale também para os documentários que privilegiam o recorte sobre o
cotidiano inexoravelmente banal do dia-a-dia (como Belfast,Maine de Frederick Wiseman). Nestes, o achado
maior é justamente encontrar no ordinário elementos que passam normalmente despercebidos.
107
Discussões sobre forma e conteúdo são freqüentes no estudo acadêmico do documentário. Notavelmente,
os filmes em cartaz procuram se destacar junto ao público pelo assunto que tratam. Os exemplos são fartos.
Cito aqui alguns recentes títulos nos cinemas e emissoras de TV brasileiras: Ônibus 174 de José Padilha,
Notícias de uma guerra particular de João Moreira Salles, Farenheit 9/11 de Michael Moore, Surf Adventures
de Arthur Fontes e Futebol de João Moreira Salles e Arthur Fontes.
108
Me refiro à principal técnica do expositivo, a entrevista, utilizada na grande maioria destes filmes como
um simples ‘falar do outro’, desmerecendo o potencial de criação do orador.
69
representação do documentarista: “Ele (performático) propõe uma forma de estar-no-
mundo como se esse mundo fosse, ele mesmo, trazido à existência através do próprio ato da
compreensão, abduzido através de fragmentos” (NICHOLS,1994,p.102). Em outras
palavras, Nichols propõe para o performático a criação de uma dimensão afetiva inédita
enquanto lógica dominante da linguagem documentária entre o espectador e o filme. Uma
movimentação intensa entre lembranças e transformações, onde experiências, memória,
envolvimento emocional, questões de valor e crença, compromisso e princípios se tornam
os principais canais de mediação.
Essa dimensão afetiva do performático é também benefício do conjunto de técnicas
desenvolvidas no tempo, ao longo da história dessa forma de cinema
109
. Documentários
sempre estiveram às voltas com questões de significado e representação – fenômenos
subjetivos, carregados de afetividade – e todas as soluções encontradas refletem uma forma
específica de olhar, uma paixão, uma angústia. Daí os momentos expressivos, simbólicos e
poéticos que manifestavam os momentos subjetivos dos filmes. A subjetividade sempre
esteve presente no documentário, mas nunca como lógica dominante; a essa apreensão,
segue-se um movimento de recriação de estratégias, agora desprogramadas e ‘otimizadas’
em relação a suas funções originais
110
. Esse desvio da regra sugere a aproximação dialética
do objeto de filmagem – testemunho, de certa forma, da própria ambiguidade do mundo
moderno, da impossibilidade de definição de qualquer assunto através de uma única forma
de aproximação. O documentário performático representa, por sua vez, a própria definição
dessa impossibilidade.
1) GÊNESE
109
Fruto não apenas da passagem do tempo, mas também do processo de identificação que essas técnicas
agregam a partir dos variados meios onde foram utilizadas (televisão, cinema, instalações, etc...)
110
Em seu estudo sobre etnografia experimental, Catherine Russel atribui a linguagem desenvolvida nos
documentários contemporâneos a um movimento necessário de adequação às formas cada vez mais plurais de
existência na sociedade moderna. Isso sugere um paradoxo: no movimento de auto-representação inerente
desses filmes, o performático é ao mesmo tempo o que mais se aproxima, ideologicamente, do mundo
histórico.
70
Para Bill Nichols, o documentário contemporâneo caminha na direção da produção
de narrativas subjetivas, o que caracteriza o desvio na “lógica narrativa” tradicional
111
onde o conhecimento surge de maneira desincorporada (localizado fora do corpo de quem
produz o discurso) e abstrata
112
. Para o teórico, “filmes performáticos dão ênfase extra às
qualidades subjetivas da experiência e da memória que provém do ato de contar um fato”
(NICHOLS,2001,p.131), sublinhando a complexidade emocional da experiência a partir da
perspectiva do próprio documentarista. Isso acontece porque os performáticos remetem à
própria idéia do encontro; são acontecimentos íntimos, discretos e subjetivos, que marcam
um momento único. Enquanto que os reflexivos e participativos determinam sua estrutura a
partir do encontro, o documentário performático é determinado pelo encontro num certo
tempo e espaço na vida de quem filma e de quem (ou o que) é filmado.
A teoria do documentário performático começou a ser delineada no momento em
que Nichols coloca em xeque a construção de conhecimento
113
no documentário.
Representações são produtos de ponderações; independente do lugar onde nos encontramos
- dentro ou fora da experiência – é sempre possível reunir elementos e pontos de vista que
vão se organizar em torno de uma idéia. Partindo-se do principio de que a aquisição do
conhecimento é uma experiência subjetiva, ato de incorporação no sujeito, pode a
representação desse conhecimento ser feita através de uma linguagem impessoal e
desincorporada? A questão proposta por Nichols é justamente o valor dessa importância, e
o quanto isso influencia na proposta do documentário. Segundo o teórico, essa questão não
somente deixou de ser feita no geral, mas sua ausência também fundamentou a forma como
o documentário é compreendido: filmes cuja organização narrativa é composta por
justaposição de fragmentos do mundo. Até então, o problema vinha sendo contornado com
111
Em Representing Reality Nichols encerra o modo reflexivo sugerindo uma retomada do documentário às
origens, com a criação de filmes mais sugestivos, expressivos e poéticos. Em Blurred Boundaries, ele retoma
esse diálogo – agora em negação – sugerindo que o performático é menos um retorno às origens que uma
forma de diálogo com o ritmo do mundo atual.
112
Michael Renov, pesquisador e professor vinculado à Universidade da Califórnia, vai identificar o processo
de formação dos documentários performáticos no rastro das modificações culturais que surgem a partir dos
anos 1970. O clima cultural deste período, escreve Renov, foi “caracterizado pelo deslocamento de
movimentos de política social (...) para políticas de identidade”
112
. Contudo, os filmes performáticos – tal e
qual identificados por Nichols – vão surgir bem mais tarde, no começo dos anos 90; ainda na década de 70, o
documentário vai ser fortemente influenciado por manifestações políticas
112
. Para Renov, é extremamente
sintomático que os filmes produzidos atualmete procurem refletir essa intensidade nas mudanças de
identidade psico-sociais.
71
o desenvolvimento de estratégias que procuravam dar conta dessas representações
desincorporadas, uma elaboração de princípios gerais para ilustração de casos particulares.
Documentários são filmes tradicionalmente envolvidos em uma disputa entre
objetividade (representada por imagens e vozes como testemunhos) e subjetividade (a
tradução dos fatos em uma representação), mas somente em momentos mais recentes essa
disputa se tornou objeto de questionamento. Imagens são formas concretas, registros
materiais de momentos específicos no tempo; resíduos de realidade, frágeis testemunhas de
acontecimentos. Mas imagens são também espaços entre o objeto nela representado e sua
própria materialidade; essa ‘brecha’ é o espaço simultâneo da interpretação e da
representação. Desde os primeiros filmes, o documentário esteve subjugado pela realidade
histórica a que pertence: a ela, caberia fornecer as molduras teóricas’ que iriam sustentar
uma relação lógica e de sobriedade. Uma organização narrativa deveria privilegiar,
sobretudo, um referencial em comum entre o filme e o espectador; esse referencial,
tradicionalmente, sempre foi o mundo. Isso criava possibilidade de diálogo, uma certeza na
compreensão, uma vez que utilizavam-se os mesmos códigos. Mas, acima de tudo, uma
função didática e informativa sempre predominou, impedindo que a utilização de uma
linguagem mais subjetiva fosse a substância principal da informação e criasse uma relação
mais íntima com o espectador.
Esse raciocínio fundou e possibilitou a produção de boa parte dos documentários –
notadamente, os filmes ‘de compilação’ (onde a organização do material corresponde a
uma justaposição de imagens de arquivo)
114
e os filmes onde há o predomínio de
entrevistas. Essas estruturas produzem filmes cujo conhecimento corre por dois eixos
interligados: um que deriva das imagens de arquivo escolhidas e justapostas; outro onde
entrevistas e testemunhos fornecem informações que criam um arcabouço de interpretação
de imagens. São realidades paralelas à do diretor, cujo poder de manipulação está acima
destas instâncias; “testemunhos e comentários dão prioridade menos ao que aconteceu que
àquilo que nós agora pensamos que aconteceu, e o que isso pode significar para nós”,
113
Em artigo publicado em Theorizing Documentary em 1993, Bill Nichols desenvolve uma série de idéias
que serão concretizadas, um ano depois, ao redor de sua definição de documentário performático.
114
Em New Documentary, Stella Bruzzi apresenta interessante artigo sobre o uso de filmes de arquivo em
documentários: utilizando como exemplo o filme de Abraham Zapruder que registra o tiro no presidente
Kennedy, Bruzzi faz um comentário sobre a insuficiência de conhecimento nos registros amadores e a
necessidade de contextualização numa estrutura narrativa, como o documentário.
72
escreve Nichols (apud. RENOV,1993,p.177). Mesmo assim, os documentários que se
estruturam sobre material compilado sublinham uma corrente de pensamento realista, onde
os filmes buscam apagar a idéia de representação e deixar o espectador na superficialidade
da aparência e do comentário
115
.
O surgimento de filmes explorando as possibilidades do registro da imagem em
sincronia com o som definem uma mudança no tipo de representação
116
: no lugar de
imagens justapostas com função ilustrativa, esses novos filmes buscam o registro do
acontecimento em tempo real, trazendo à tona ambigüidades, subjetividades e relações
dialéticas que atravessam nosso cotidiano. Os documentários tinham como proposta
fundamental uma proposta de acesso ao real – um estar-e-não-estar simultâneo, onde a
câmera tanto seria a testemunha como o elemento catalisador dos fenômenos que ela
mesma registrava. Partindo de um princípio de não-intervenção, esses filmes apontavam
para a produção de documentários onde a presença do documentarista começou a ser
assumida como fator determinante na narrativa. No caminho desse desenvolvimento,
noções de partilha de autoridade, dar ou não voz ao personagem, criar ou não uma
intervenção no mundo, da autenticidade do registro, começaram a atravessar o campo
teórico. Todas elas relacionadas com os processo catalisados pela interferência, as
conseqüências implicadas no filme e o tipo de ‘saber’ relacionado que seria produzido.
Nichols identifica as origens do documentário performático nas estratégias e teias
de relações que se desenvolveram com os modos interativo e reflexivo, e numa nova
concepção de etnografia que identifica sua escrita com uma proposta pós-moderna
117
. O
teórico começa a pensar o documentário performático justamente a partir de considerações
sobre a presença do documentarista no filme como elemento principal. Presença que resulta
de uma tensão de especificidades – de uma articulação entre conhecimento, poder e
corporalidade do realizador em movimento de transposição para a tela
118
.
115
O que encerra os filmes num paradoxo: o ato de dar significado é a própria declaração da agência da
representação
116
Essa mudança não significa substituição; como nos lembra Stella Bruzzi, todas as convenções de passado
continuam tão vivas quanto antes.
117
A questão da etnografia pós-moderna merece um destaque à parte, e será abordada no próximo capítulo.
118
Quando Nichols se refere à corporalidade do diretor, muitas vezes trata-a a partir de uma perspectiva
‘abstrata’: ou seja, o ‘corpo’ tanto pode ser visível ou não.
73
2) PRINCÍPIOS DE ORGANIZAÇÃO DO SUJEITO: O CORPO DO
DOCUMENTARISTA NO CENTRO
Ao longo da história do documentário, os realizadores recorreram com freqüência a
recursos subjetivos como forma de transmissão de um efeito de dramaticidade. Filmes
como Turksib (Victor Turin/1929), Land without bread (Luis Buñuel/1932) e Três canções
para Lênin (Dziga Vertov/1934) estão repletos de momentos subjetivos; “eles nos engajam
menos com comandos imperativos ou retóricos que com uma idéia vívida de auto-
responsividade” (NICHOLS,2001,p.132). Em Representing Reality, Nichols termina sua
descrição do modo reflexivo identificando que o documentário contemporâneo estaria se
remetendo a procedimentos dos primeiros documentários. Com essa afirmação, se referia a
uma densidade poética e expressiva que vinha se tornando recorrente nas novas narrativas
onde construções se deixavam dominar por movimentos de câmera subjetivos, montagem
impressionista, iluminação dramática e utilização de trilha sonora. Sobretudo, essa
montagem chamou atenção pelo desvio da lógica de sobriedade que havia se tornado
dominante no documentário. Ela desloca elementos do cinema de ficção, do jornalismo, do
cinema experimental e dos exercícios visuais da antropologia
119
, entre outros, criando uma
forma de abordagem mais expressiva, ancorada no sujeito, onde o veio poético e o
exercício da retórica são a tônica dominante. Os documentários performáticos são
sugestivos, minunciosamente construídos a partir da própria substância do realizador, são
referenciais sem necessariamente serem reflexivos; são atravessados por uma experiência
de vida.
“A expressividade do corpo é central nessa representação, mas é um tipo de
representação que quebra com as convenções de autenticidade por se voltar para uma
performance
120
, escreve Nichols (apud RENOV,op.cit.,p.175). Entretanto, a noção de
119
Especialmente os trabalhos realizados pela corrente da antropologia denominada etnografia ‘pós-moderna’
– mais voltada para os aspectos sensoriais da escuta e da visão. Nichols cita Stephen Tyler, do artigo Post-
Modern ethongraphy: from document of the occult to occult document: “(a evocação) desfamiliariza o senso
comum da realidade num contexto de performance entre parênteses, evoca fantasias inteiras abduzidas de
fragmentos e então traz de volta os participantes para o mundo da realidade comum transformada, renovada e
sacralizada”(p.101) Esses filmes trazem a dimensão afetiva entre o texto e o autor em evidência, e a
compreensão do conteúdo passa necessariamente por uma costura de fragmentos que vai da construção
pessoal à realidade onde está inserido – um processo que envolve dar forma à memória, à lembranças e
transformações, constituindo uma forma de entender o mundo a partir do sujeito que se narra.
120
Grifos meus
74
performance entabulada pelo teórico vai além daquela do senso comum, do ato
convencional ensaiado de representação de atos e pensamentos de outras pessoas. Aqui, ele
se refere a uma performance virtual, um estilo de auto-representação onde a atuação é
mais natural, reunindo qualidades expressivas normalmente dispersas no dia-a-dia, e que
normalmente não associamos a uma prática de representação
121
. O performing que dá título
ao modo diz respeito ao movimento do próprio filme – o documentário como um exercício
performático, lugar da arte da subjetividade, do processo de auto-narração do sujeito.
Somos convidados a alinhar nossas perspectivas com aquelas do diretor; há uma sensação
de cumplicidade no ato de assistir esses filmes; enquanto espectador, somos convidados a
nos engajar na idéia exposta. Essa construção surge da tensão entre performance e
documento, íntimo e típico, incorporado e desincorporado
122
; “esses filmes alargam seus
tom e qualidades expressivas, ao mesmo tempo em que mantém uma referencialidade
histórica. Eles dizem respeito ao desafio de dar sentido a eventos históricos através da
evocação que eles emprestam a ele” (NICHOLS,1994,p.98)
“Como representamos indivíduos que podem não representar a verdade tanto
quanto a experiência subjetiva e suas diferentes interpretações?”(apud RENOV,op.cit.
p.175) . É o próprio Nichols quem responde: não é uma questão de olhar de fora e relatar a
observação da experiência, onde o EU corporal que fala se dissolve num discurso
desincorporado, despersonalizado e institucional de conhecimento e poder (Nichols:1994);
é a partir de um deslocamento do conhecimento incorporado
123
do indivíduo para o centro
do filme que se cria uma entrada para o entendimento dos processos gerais em
funcionamento na sociedade. O processo de criação no documentário performático
representa um movimento de dentro para fora: no lugar de uma internalização do mundo, o
documentarista se expõe, se coloca no contexto, articulando seu significado a partir das
situações em que se envolve, tecendo suas reflexões sobre o mundo no atravessar de suas
próprias questões de magnitude pessoal; são, necessariamente, uma referência a um
momento específico da vida do diretor. Têm uma preferência nítida pelo local, por aquilo
121
Essa performance convencional praticada no dia-a-dia pode ser entendinda como a prática dos códigos e
regras da sociedade, que desindividualizam o indivíduo para que ele possa fazer parte do todo maior que é a
comunidade e o ambiente em que ele vive.
122
Bill Nichols desenvolve a idéia de conhecimento incorporado e desincorporado no mesmo Blurred
Boundaries, no artigo Embodied knowledge and the politics of location – an evocation.
75
que é concreto mas, ao mesmo tempo, passível de evocação
124
. Nichols sugere que essa
concretude é consequência de um processo de incorporação dos temas nos sujeitos
específicos. Ao se deslocar para um ambiente ou uma situação estranha à original, isso não
significa necessariamente uma expansão moral do outro por um alargamento de fronteiras;
para Nichols, “movimentos e viagens se tornam uma experiência de deslocamento e
deslocação, de estranhamento social e cultural, de busca, de sobrevivência, de auto-
preservação” (NICHOLS,1994,p.7). Com isso, quer dizer que as variações no ambiente não
são necessariamente uma constante a influenciar o sujeito; o documentário performático
é uma narrativa onde não é o sujeito que é incorporado pelo meio, mas o meio é
incorporado no próprio sujeito, metabolizado por seus valores e crenças.
“Não é simplesmente o conhecimento possuído por testemunhas e peritos que
precisa ser transmitido por seu discurso, mas também o conhecimento não-verbal (...)
transmitido por seu próprio corpo (do documentarista)” (apud RENOV,op.cit.,p.175). Essa
idéia de incorporação do sujeito é essencial no documentário performático; para Nichols, a
compreensão desses filmes passa por articulações que envolvem relações de poder e
conhecimento situadas no corpo do próprio documentarista. Uma situação completamente
diferente dos documentários clássicos; o formato inspirado em Grierson não leva em
consideração as especificidades do sujeito.
3) PRINCÍPIOS DE ORGANIZAÇÃO DO MUNDO: A SUBJETIVIDADE
SOCIAL
Ao deslocar o documentarista para o centro da narrativa, o documentário
performático procede a uma reconfiguração do próprio juízo de mundo - agora, sob a ótica
do cineasta - na medida em que se vale das imagens de uma forma que desafia as certezas
epistemológicas inerentes a elas. “Como todas as experiências de representação, teorias e
pontos-de-vista estão implícitos no que nós vemos, mas o que nós vemos não nos é
oferecido como exemplo de ilustração de qualquer teoria”, escreve Nichols (apud
123
Conhecimento incorporado – reafirmação da própria identidade do autor, sem a criação de vínculos com o
ambiente.
124
Essa preferência pelo concreto explica a possibilidade para lidar com categorias conceituais (exílio,
racismo, homossexualismo).
76
RENOV,op.cit.,p.182). Isso acena para a possibilidade de se valer da força de uma imagem
– já codificada, referencializada, identificada com uma opinião – desviada para um discurso
pessoal. Há, aqui, uma distorção no sentido da autenticidade histórica da imagem: “essas
imagens generalizadas nos lembram do grau em que nossa percepção do real é construída
por códigos e convenções”(apud RENOV,op.cit.,p.179). Essa mudança de referencial, já
mencionada anteriormente, é responsável pela criação de um texto que explora o que
Nichols designa por subjetividade social, o sentimento responsável pela união do abstrato
ao concreto, do individual ao coletivo. Para esclarecer um pouco mais a idéia do teórico,
vamos recorrer ao conceito de subjetividade numa esfera pública estabelecido por Maria
Rita Khel.
Ao ‘performizar’ um diálogo entre textos de Adorno e Guy Debord
125
, Khel chama
atenção para a pseudo-subjetividade característica do ambiente público. No
desenvolvimento de uma indústria cultural para uma sociedade do espetáculo, as
características expressivas e particulares do indivíduo foram apreendidas e massificadas, se
tornando elementos de manipulação. A partir de então, a indústria do entretenimento dispõe
para si de um repertório de códigos que, associados, permitem a criação de espaços
‘privados’ no âmbito coletivo, gerando uma identificação que, na verdade, sublima as
verdadeiras emoções e necessidades do indivíduo. Para Khel, o indivíduo se torna refém
dessa visibilidade; ou seja, fica reduzido a determinadas imagens, as ‘chaves’ por onde
justifica sua própria existência:
“Essa subjetividade industrializada ele (o espectador) consome avidamente, de
modo a preencher o vazio da vida interior da qual ele abriu mão por força da
‘paixão da segurança’, que é a paixão de pertencer à massa, identificar-se com ela
nos termos propostos pelo espetáculo.” (KHEL,2004,p.53)
Visto a partir da perspectiva histórica do documentário, o performático coloca em
questão uma idéia do mundo como um lugar de idéias seguras, como referencial de
procedimentos e julgamentos. São filmes que contestam uma organização hegemônica da
realidade, que racionalizam ou apontam diferenças de interpretação; “a qualidade auto-
125
Os textos que fundamentam o pensamento de Khel são ‘A indústria cultural’, de Theodor Adorno, e ‘A
Socidade do espetáculo’, de Guy Debord. O texto onde a autora realiza o diálogo foi publicado no livro
‘Videologias’, em parceria com Eugenio Bucci (Boitempo,2004)
77
evidente das situações e eventos, e o lugar do documentarista dentro deles é perturbada,
eles se tornam matéria de reinterpretações inesperadas(...)” (apud RENOV,op.cit,p;181).
Esse novo relacionamento com as imagens representa uma quebra de barreiras nas
associações comuns entre imagens públicas e privadas. Para Nichols, o documentário
performático é justamente o produto desse cruzamento de contextos; uma forma de
articulação do público e do privado na produção de sentido.
O mundo, no documentário performático, aparece através de convenções subjetivas,
criadas a partir da perspectiva do diretor. Mas para colocar toda uma concepção de mundo
em dúvida e recontextualizá-la através de uma perspectiva específica, é preciso que se
mantenha um mínimo de referencialidade, que vai permitir a comunicação do filme com
seu público. À subjetividade social mencionada por Nichols corresponde, nas entrelinhas, a
criação de um espaço de comunicação possível entre o documentarista e o espectador. Mais
que uma representação, o mundo ‘desses filmes’ surge de forma evocativa; se é possível
um esboço de representação, ele é 1) um mundo adaptado ao próprio self do diretor (o texto
é auto-centrado, e por isso, não-dispersivo) e 2) fruto do esforço do espectador em
atravessar o indivíduo que fala e chegar no ambiente em que ele vive (todas as imagens e
idéias estão necessariamente atravessadas por uma corporalidade específica, donde, é um
mundo orientado, ‘não-real’).
A narrativa estruturada em torno de procedimentos de subjetividade social encerra
uma forma de consciência coletiva, que permite a mediação entre a necessidade do sujeito
que narra e as condições políticas, sociais, morais e ideológicas do universo em que habita.
Permanece uma ligação indexical com o mundo, ainda que atravessada por uma camada de
representações própria da realidade do autor. Com isso, esses filmes conseguem não se
tornar prisioneiros do sentido literal de textos e imagens, ao mesmo tempo em que evitam a
dispersão do material subjetivo. A isso, Nichols dá o nome de figurabilidade, termo
emprestado de Fredric Jameson
126
, de forma oportuna.
De acordo com Jameson, figurabilidade representa “a necessidade da realidade
social e da vida diária serem desenvolvidas a ponto que sua estrutura de classe de base se
torne representável de forma tangível’ (apud NICHOLS,1985,p.719). Isto ocorre quando
126
Class and allegory in contemporary mass culture: Dog Days Afternoon as a political film, Fredric
Jameson, em Movies and Methods volume II, editado por Bill Nichols p. 715-35
78
um evento ou um acontecimento social é preenchido por regras e códigos de convívio não-
escritos mas de domínio comum de uma comunidade. São regras que administram o
convívio diário; cultura como sintoma e signo da auto-consciência. Jameson reconhece aí
um senso de consciência de classe, onde representações pessoais são ‘suspensas’, diluídas
nos elementos da construção da memória de sociedade. Os requisitos de figurabilidade
correspondem a modos de representação determinados por um conjunto de regras ‘não
escritas’ e comportamentos de uma realidade social, que se tornam passíveis de reprodução
– ou seja, sua repetição se torna um procedimento comum em um certo meio. Estão, assim,
submetidos a uma lógica de representação pré-estabelecida, que cria um ‘precedente’ na
auto-referência, articulando uma série de chaves que dão acesso ao conhecimento do filme.
Esses pontos podem estar implícitos, ou serem explicitados na própria narração
127
. O
fundamental é a criação de um repertório de códigos que funcionalizem a comunicação,
fornecendo pistas para a compreensão, criando um sentido e permitindo que se articule
forma e conteúdo do discurso.
4) PRINCÍPIOS DE ORGANIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA: AFETOS
“Documentários performáticos restauram uma idéia de magnitude ao local, ao
específico e ao incorporado. Dão vida ao pessoal de maneira que ele se torna nossa porta de
entrada para o político” (NICHOLS,2001,p.137). Já expomos acima que o documentário
performático caracteriza-se por trazer a figura do realizador para o centro da temática dos
filmes. Esse deslocamento cria, como conseqüência, uma aproximação subjetiva do mundo
que, a partir de uma ótica íntima e particular, procura restaurar um princípio de identidade
singular do realizador. Nessa união do particular ao geral, estruturada a partir da formação
de uma subjetividade social, Nichols identifica uma valorização dos predicados de
pequenas existências. Ao lidar com as particularidades da vida, o performático permite o
reenquadramento de lembranças, recontextualizando e formalizando camadas da memória,
“traduzindo-as para uma moldura que se recusa a fetichizar o mistério do que não se repete,
(...) deixando-as congeladas num momento atemporal mitológico” (NICHOLS,1994,p.98).
127
Em Treyf (1990), filme que será analisado no próximo capítulo, Alissa Lebow dialoga com o espectador
sobre sua condição de lésbica judia. Num eixo paralelo, introduz elementos da cultura judaica, que facilitam
nossa entrada nesse mundo.
79
Documentário performáticos abdicam do principio de referencialidade externa da
imagem exatamente porque esta renega questões de magnitude e foro íntimo do indivíduo.
O que reduz o texto destes filmes às dimensões do indivíduo; assim “documentários
performáticos se endereçam à questão (...) da subjetividade social, dessas ligações entre o
‘self’ e o outro (...) afetivas na mesma medida em que são conceituais”
(NICHOLS,1994,p.104).
É ao se ater ao que há de particular na experiência que documentários performáticos
priorizam a dimensão afetiva do texto. Essa dimensão da experiência é justificada por
Nichols a partir do conceito de lógica interpretativa de Charles Peirce, que privilegia a
qualidade experimental das relações individuais com os signos
128
. Para Nichols, essa lógica
ajuda a perceber os filmes como maneiras particulares de vivenciar o mundo e, que, de
alguma maneira, ‘fazem sentido’; os performáticos trabalham com imagens estilizadas,
reencenadas numa evocação de humores e tons, se aproveitando do sentido de estereótipos
e ícones:
“(a evocação) desfamiliariza a realidade do senso comum num contexto
performático entre parênteses; evoca uma fantasia completamente abduzida de
fragmentos, e então retorna os participantes para o mundo do senso comum –
transformados, renovados e sacralizados” (apud RENOV,op.cit.,,p.187)
Ao retrabalhar esses elementos do mundo sob a ótica do documentarista, para
depois retorná-los à origem, Nichols elucida as estruturas formais selecionadas para criação
da auto-representação. Nos performáticos, ocorrências verídicas são amplificadas pelas
imaginadas; a combinação livre do factual e do imaginário é a chave para o entendimento.
A criação de subjetividade, para Nichols, passa pela intercessão da ficção no mundo
histórico; ficção como forma de acesso do imaginário atravessando o real, dimensão
subjetiva que permeia a representação da História.E é nesse sentido que Nichols situa suas
referências de construção do modo:
“Documentários performáticos misturam livremente técnicas expressivas que
dão textura e densidade à ficção (tomadas de ponto de vista, trilha sonora,
interpretação de estados da mente subjetivos, flasbacks e planos congelados) com
128
Por essa lógica, cada representação criada é única em função da subjetividade inerente ao processo.
80
técnicas oratórias para tratarem de questões sociais que nem ciência nem razão
podem resolver.” (NICHOLS,2001,p.134)
5) PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS E CARACTERÍSTICAS
Os filmes que vão constituir o modo mais recente identificado por Nichols:
“(...) trazem o poder do universal, do mítico e do fetichismo para o nível da
experiência imediata e da subjetividade individual. Como um texto restaura essa
ordem de magnitude, que caracteriza a experiência vivida, quando ele só pode
representar através de evocações, o que está além de suas próprias fronteiras?
Uma parte das respostas, parece, evita evocar o poder do conhecimento
desincorporado e das conceitualizações abstratas em favor do poder concedido
provindo do conhecimento situado e das subjetividades da experiência corporal
(RENOV,1993,p.188)
A estrutura narrativa ancorada no imaginário subjetivo, a auto-referência como fio-
guia da narrativa, o mundo a partir de uma lógica não linear à formalidade histórica, a
expressividade dos afetos são organizados a partir de uma série de procedimentos que
atravessam não somente a história do documentário clássico, mas também o cinema de não-
ficção, o cinema experimental e o cinema etnográfico. Território de afetos e encontros, o
documentário performático encontra, nas diversas influências que alimentam sua narrativa,
tradução para uma proposição íntima.
No artigo em Blurred Boundaries, Nichols identifica certos procedimentos e
influências que podem ser encontrados nos filmes do modo performático:
1) o cinema soviético do começo do século XX – um cinema-manifesto, cujo
principal objetivo era a criação de um estranhamento na percepção do cotidiano, ao mesmo
tempo que em que se demandava do espectador a manutenção de uma consciência histórica.
As construções do cinema de Eisenstein, as experiências de Dovzhenko e o cinema-olho de
Dziga Vertov
129
são as melhores e mais notórias referências.
129
Em 1991, ao definir o modo reflexivo, ele também utilizou Vertov (O homem com a câmera) como um
exemplo. Já ali, comentava a necessidade que o cinema parecia apresentar de reencontrar em suas origens
forças para novas maneiras de pensar. No documentário performático, essa característica está ainda mais
visível.
81
2) os primeiros documentários
130
(os filmes fundadores) - que para Nichols, se
encaixam no modo expositivo (procuravam um equilíbrio entre a poesia e a argumentação);
são filmes sensoriais, onde o ritmo poético, as rimas visuais e a música estão ligados à
sensação de descoberta de novos mundos, das inovações tecnológicas, do progresso e da
civilização. Os filmes de Flaherty, John Grierson, Dziga Vertov, Joris Ivens e Pare Lorenz,
por exemplo
131
.
3) tradição dos cinemas de vanguarda e, especialmente, tradição vanguardista dos
filmes-autobiográficos. O cinema surrealista, o movimento da Nouvelle Vague francesa, o
neo-realismo italiano, o free cinema inglês, o cinema de vanguarda americano dos anos
70
132
foram movimentos marcados por uma descoberta do cinema como mediação artística
e polêmica do mundo; “há menos ênfase na qualidade fechada dos filmes e vídeos que à
dimensão expressiva em relação à representação que nos leva de volta ao mundo histórico
com seu significado principal.” (NICHOLS,2001,p.134)
4) os filmes de Jean Rouch. Para Nichols, o cinema de Rouch, uma ‘etno-poesia’,
não apenas combina subjetividade e objetividade mas incorpora uma apreensão da
realidade que torna cada um de seus filmes objetos únicos – na medida em que aquelas
realidades existem exclusivamente dentro dos documentários.
5) os documentários do modo reflexivo e interativo
133
(onde já podem ser
encontrados momentos ‘performáticos’), principalmente a safra de produção a partir dos
anos 1990. Segundo Nichols, a qualidade performática já podia ser observada nestes filmes
de uma perspectiva de ‘reverso de prioridades’ – a formalização do documentário como
130
Não é a primeira vez que Nichols faz referência a um retorno às origens do cinema. Isso foi explicado na
capítulo anterior, na definição do último modo. Aqui, quando se refere aos primeiros filmes, Nichols está
pensando nos filmes de uma tradição poética e argumentativa.
131
Respectivamente Nanook do Norte (1920), Drifters (1929), O Homem com a câmera (1929), The bridge
(1927) e The river (1937-8)
132
Chamamos especial atenção para a forte tendência do cinema de vanguarda americano dos anos 70, onde
foram desenvolvidos os ‘filmes diários’. O cineasta que mais se destaca neste formato é Jonas Mekas. Exilado
da Lituânia, habitante de Nova Iorque, ele faz de sua câmera seu diários particular. Walden – diaries and
sketches (1969) é uma obra-prima do gênero. Além de Mekas, nomes a considerar são Kenneth Anger, Maya
Deren e Stan Brackage.
133
Mais especificamente, Nichols cita The Thin Blue Line (1988) de Erol Morris. A contrapartida
performática desse exemplo pode ser encontrada em ‘33’ de Kiko Goiffman; “(...) o modo reflexivo, como
primeiramente concebido, parece ancorar dentro de si um modo alternativo, um modo que não dirige nossa
atenção para as qualidades formais ou o contexto político do filme diretamente tanto quanto refrata nossa
atenção da qualidade referencial.” (NICHOLS,1994,p.93)
82
uma reflexão sobre determinado assunto é atravessada por uma linguagem altamente
derivada da própria reflexão do documentarista.
6) a recente corrente de filmes desenvolvidos no campo da etnografia visual; os
filmes auto-etnográficos – documentários desenvolvidos por sujeitos até então mostrados
como objetos de estudo (mulheres, nativos, homossexuais, entre outros). Estes filmes se
aproximam do modo performático pelo estilo de linguagem. Entretanto, o referencial dos
auto-etnográficos ainda é, essencialmente, o mundo. Os próprios autores/personagens são
movidos por um sentimento de ‘comunidade’, que leva diretamente à produção de filmes
como manifestos de segmentos sociais.
A partir das influências determinadas acima, é possível estabelecer algumas
características isoladas, capitais e determinantes nestes filmes. Documentários
performáticos não existem de forma isolada: são parte integrante de uma forma de registro
que vem evoluindo no tempo. As características tanto se excedem como se acumulam, e
nessa oscilação, a narrativa enriquece. Todas esses elementos serão de importante aplicação
posteriormente, quando nos detivermos na análise dos filmes:
A) modo de evocação dispersivo, contextualizante, associativo e dialético;
B) predomínio de linguagem poética e afetiva no tom, no estilo, na textura e na voz;
C) montagem impressionista;
D) movimentos de câmera subjetivos;
E) iluminação dramática;
F) criação de um senso de duração temporal conjugado à localização espacial – a
narrativa está ancorada em fatos episódicos e não-generalistas;
G) o repertório narrativo do cinema ficção
134
;
H) interação do documentarista com seus objetos de filmagem – mas ao contrário
do que ocorre nos filmes interativos, o ponto central não é a relação produzida no encontro.
O encontro está subjugado à argumentação-base do documentarista. As entrevistas aqui
visam testemunhar (e às vezes reafirmar) o conteúdo da fala do realizador.
I) entrevistas próprias do modo interativo, onde o documentarista é parte da ação,
sendo elemento catalisador da ‘performance’ do objeto de filmagem;
134
Abrimos uma referência particular ao cinema clássico noir que, por tradição, produziu filmes com ênfase
na ação e narração em primeira pessoa
83
J) reencenções;
L) comentários em off, reinserindo a identidade do documentarista como maestro;
M) uso da primeira pessoa, caracterizando o documentarista como protagonista;
N) filmes ‘amadores’, preferencialmente, os vídeos de família e caseiros, que fixam
tanto o documentarista quanto o objeto da filmagem como parte de um ambiente, criando
um sentido de localização;
O) registros com estética intencionalmente ‘amadora’ (câmera na mão, no ombro,
sobre um móvel; enquadramento ‘mal feito’, imagem granulada);
P) efeitos especiais como uma forma de ‘materializar’ aspectos sublimes da
subjetividade
135
.
Q) imagens ‘de cobertura’ (‘aparentemente’, imagens que sustentam e preenchem o
espaço da narração, de uma reflexão). Essas imagens ficam entre o ‘vazio’ – é uma forma
do documentarista prender a atenção do espectador no texto, sem interferência da imagem
– e uma tentativa de inserção do documentarista no mundo (podem ser imagens-sínteses de
um estado ou de uma lembrança).
R) preferência de temas pessoais (família, tragédia pessoal, crise, experiência);
S) alternância e coexistência de som ora em sincronia com a imagem, ora não –
além do já referido comentário em off.
Definidos os principais modos de classificação do documentário, podemos partir
para a análise dos filmes. Na segunda parte deste trabalho, nos deteremos na análise de seis
filmes cuja forma de representação escolhida pelos autores comunga das mesmas
características identificadas por Bill Nichols nos filmes performáticos.
135
Quando Nichols faz referência a Thin Blue Line, os momentos ‘performáticos’ se encerram nessa mímesi
do documentarista: um plano onde um relógio de bolso aparece em slow-motion denotando o tempo que
passa; um plano fechado, sem som, em uma sirene de polícia que denota que devemos prestar atenção na
próxima seqüência. Apesar do referencial estar no mundo, há uma tentativa do documentarista em expor o seu
ponto de vista, duplicando a sua presença no filme.
84
IV
TREYF ou UMA RETÓRICA DA AUTO-ETNOGRAFIA
Treyf: não-kosher, impuro, sujo; em desacordo
com as regras de alimentação judaica; geralmente,
refere-se a comida, como porco e lagosta; pode
também ser utilizado para se referir a lésbicas ou a
sujeitos de comportamento não correto
136
A nota auto-biográfica que incide nos documentários performáticos é, por Bill
Nichols, considerada a principal característica do modo, sublinhando dimensões subjetivas
e afetivas. A ausência de compromissos com uma representação do mundo se reflete na
própria concepção de ‘representação’ destes filmes
137
. Estes documentários arquitetam sua
estrutura a partir de um eclético amálgama de linguagens (ficção e não-ficção), suportes
(filme, vídeo) e narrativas (linear, fragmentada). Mas qual o sentido na produção de filmes
que não querem compromissos com uma idéia fora de si? Se não há parâmetros de
referencialidade histórica, como é possível que surja um relacionamento entre o espectador
e o filme? Simples: documentários performáticos são experiências de uma escrita guiada
por afetos e sentimentos; referencialidade e indexicalidades ocultas na primeira pessoa do
filme, o próprio documentarista. Documentários performáticos, escreve Nichols, “restauram
um senso de magnitude ao local, ao específico e ao incorporado. Anima o pessoal para que,
então, ele possa ser nossa entrada para o político” (2001,p.137).
Essa forma de estar no mundo não como um observador, mas como um sujeito em
processo de construção, está relacionada a um momento de ruptura com uma proposta
antropológica tradicional – a representação do outro – que determina pontos de observação
e formas de olhar. O modo performático vai ser bastante influenciado por uma corrente que
se destaca da antropologia e incorpora a produção áudio-visual nas práticas de campo; essa
linha de pesquisa caracteriza-se por procedimentos que ‘desautorizam’ o etnógrafo como
136
Do material de arquivo utilizado no filme de mesmo nome (Board of Jewish education Rabi Avi Shuman
and Sons Monsei, NY)
137
Conforme vimos no capítulo 1, mesmo movimentos subjetivos têm uma faceta ‘objetiva’, já que são
agentes de representação de um outro.
85
relator do texto, e o inserem nas narrativas na qualidade de uma voz entre outras
138
. Esse
grupo procede dos EUA, e suas idéias podem ser encontradas na compilação editada por
James Clifford
139
- o próprio Clifford uma aguda influência no texto de Nichols em Blurred
Boundaries. Filmes etnográficos provocam uma profunda alteração nas convenções de
representação, já que localizam a construção do discurso nas mãos e na fala de sujeitos que,
ocasionalmente, são tratados na qualidade de ‘objetos do olhar’ (como mulheres,
homossexuais, negros e estrangeiros). Bill Nichols vai definir os princípios e características
do modo performático através da análise de filmes que surgem no rastro desse
conhecimento
140
.
Neste capítulo, escolhemos as idéias desenvolvidas no texto do antropólogo Stephen
Tyler
141
, que identifica estas recentes práticas etnográficas a partir da influência de
tendências ligadas à pós-modernidade. Ao desenvolver sua teoria sobre os filmes
performáticos, Nichols o faz a partir da formalização de uma série de princípios
estabelecidos no texto de Tyler
142
.
Treyf de Alissa Lebow e Cynthia Madanski (1996) é um exemplo bem acabado
tanto da teoria da etnografia pós-moderna de Tyler quanto do modo performático de Bill
Nichols. O filme é uma prova concreta da influência que as novas tendências da etnografia
tiveram sobre a classificação de documentários do professor Nichols. Sua estrutura
narrativa fragmentada, a narração em primeira pessoa, a incorporação do documentarista na
imagem do filme, o distanciamento crítico do protagonista/enunciador e a privatização de
temas políticos (religião, preconceito sexual) são características determinantes para a
compreensão dos documentários performáticos.
138
Em Blurred Boundaries, Nichols escreve um artigo especificamente sobre esse assunto: The
ethnographer’s tale, onde coloca a urgência da revisão das práticas etnográficas literárias e visuais.
139
Writing Cultures: the poetics and politics of ethnography, da University of California Press, 1986. Vide
bibliografia.
140
Alguns filmes: Forest of Bliss de Robert Gardner (1986), Looking for Langston de Isaac Julien (1991),
Tongues Untied de Marlon Riggs (1989), The body beautifu’de Ngozi Onwurah (1991) e Paris is burning de
Jennie Livingston (1990), entre outros.
141
Post-Modern Ethnography: form document the occult to occult the document, in Writing Cultures: the
poetics and politics of ethnography James Clifford (org).
142
A principio, a identificação do modo performático pode parecer paradoxal, visto que a idéia daqueles
filmes é a mesma do tipo de texto discutido por Tyler: um texto livre de regras e convenções. No entanto, a
idéia de modo torna-se possível a partir da constatação de uma necessidade coletiva que divide uma série de
códigos nessa ‘representação de uma não-representação’
86
1) A PÓS-MODERNIDADE NO DISCURSO ETNOGRÁFICO
Stephen Tyler conta com uma extensa publicação na área de antropologia cognitiva
e linguística. Procedente da Rice University, em Post-modern ethnography, escrito no
começo dos anos 1980, ele definiu os procedimentos de uma etnografia pós-moderna como
parte de um movimento maior, que questionava a produção do conhecimento através das
tradicionais ferramentas de observação da antropologia
143
. Tyler parte da premissa de que
uma retórica etnográfica é produto da incompatibilidade entre o mundo do senso comum e
o mundo teórico pregado pela ciência. Uma descrição científica, para ele, reduz as
potencialidades da experiência individual porque gera conceitos fechados em si, aplicados
de forma abstrata a situações do mundo. Assim, tornam-se indiferentes às ações que
regulam nosso cotidiano; criando uma compreensão simplificada, empobrecida e limitada.
Ao tirar conclusões e definir conceitos a partir da constatação de provas, a ciência se revela
contingencial, já que provas só têm uma existência efetiva enquanto partes de uma
situação. Para Tyler, “a linguagem da ciência se tornou o objeto da ciência, e o que
começou como percepção não-mediada por conceitos se tornou conceito não mediado por
percepção” (apud. CLIFFORD,1986,p.124). Ou seja, para Tyler, a linguagem científica se
escolhe uma comunicação, não uma representação.
Os fundamentos da etnografia pós moderna surgem como produto da tensão entre
essa ciência monopolista e o mundo como percebido cotidianamente: construído a partir de
percepções fragmentadas, evocativas, sugestivas e ambíguas. O discurso etnográfico, para
Tyler, é a própria incorporação do elemento sensorial que orienta nossa concepção de
mundo; nosso dia-a-dia é conduzido muito mais por reações instantâneas aos
acontecimentos que por um discurso pré-estabelecidos. Discursos etnográficos tendem a
desprezar sínteses e deduções, inscritas no estabelecimento de símbolos, escreve o
antropólogo, “porque seu modo de interferência é abdutivo” (apud
CLIFFORD,op.cit.,p.133). Uma abdução corresponde necessariamente a uma
fragmentação. Discursos que são movidos pelo encadear de fragmentos projetam um
143
O registro da cultura do Outro se tornando mais o registro do observador que um relato isento. Para
maiores explicações, sugere-se consulta ao livro de James Clifford (nota 2)
87
conhecimento através do acúmulo de informações e transformações. Conforme escreve
Tyler:
“Nem parte de uma busca pelo conhecimento universal nem um instrumento para a
supressão/emancipação de pessoas, nem outro modo de discurso (...), etnografia é,
pelo contrário, um discurso superordenado em relação ao qual todos os outros
discursos são relativizados, e onde encontram significado e justificativa” (apud
CLIFFORD,op.cit.,p.122)
Assim, paradoxalmente, segundo o autor, o caráter superordenado da etnografia é
produto da ‘imperfeição’ de sua forma, está ligado à quantidade de ordenações que
constroem o discurso do sujeito. Podemos perceber o narrador etnográfico como um sujeito
de várias existências – assim como qualquer um de nós
144
-, cujo maior desafio é sua
própria articulação no campo da pesquisa. Na medida em que não se quer totalizante como
um discurso político ou perfeito como um conhecimento científico, o discurso etnográfico
revela-se ‘evocativo’
145
. Para Tyler, a etnografia é a própria evocação; o discurso do
mundo pós-moderno, onde uma ciência produz mitos para serem destruídos logo em
seguida, e que se tornou uma ditadora de regras, às quais o mundo histórico e natural
devem se adequar
146
.
Stephen Tyler define a etnografia pós-moderna da seguinte forma:
“(...) é um texto desenvolvido cooperativamente, consistindo de discursos
fragmentados que pretendem evocar nas mentes tanto do leitor quanto do escritor,
uma fantasia emergente de um mundo possível (formado a partir) da realidade do
senso comum. (...) É, em uma palavra, poesia – não em sua forma textual, mas no
retorno ao contexto e funções originais da poesia, que significa uma quebra
144
Somos seres de várias existências sobre múltiplos aspectos – enquanto profissionais, enquantos cônjuges,
filhos, pais, cidadãos, amigos. No cinema, essa forma múltipla de existir é representada de forma brilhante,
entre outros exemplo, no trabalho do documentarista francês Jean Rouch. Rouch criou filmes onde seus
personagens estabelecem camadas de existências, se reinventando de inúmeras formas sobrepostas.
145
Evocação não é nem apresentação, nem representação. Não apresenta ou representa objetos, mas torna
acessível através da ausência.aquilo que pode ser concebido, mas não apresentado” (p.123) .
146
Tyler defende uma idéia de ‘ciência capitalista’, onde a ciência, assim como o capitalismo, buscam o
desenvolvimento de produtos não como uma solução, mas como uma forma de gerar mais produtos. A idéia
de adequação do mundo à ciência é extremamente ampla – revolução genética, por exemplo - , e não cabe
neste trabalho.
88
performática no discurso cotidiano, memórias evocadas do ethos da comunidade
(...)” (apud CLIFFORD,op.cit.,p.125-6)
147
A compreensão de uma leitura etnográfica do mundo é, para Tyler, a melhor
maneira de criar aproximação com uma realidade que, no lugar de deixar suas marcas, se
auto-consome. Slavoj Zizek, filósofo esloveno prolífico em teorias sobre a modernidade,
escreveu que estamos a tal ponto inundados, e adaptados a sentirmos e compreendermos o
mundo através de interpretações e representações que a experiência direta do Real é
desprezada em detrimento de um simbolismo espetacular
148
. Ao analisar o episódio do 11
de setembro nos EUA, Zizek sinaliza, no limite, a impossibilidade de representações
(enquanto tais) sob o risco de eliminação literal da ‘matriz’ (o dano intencionado pelos
terrorista não era a morte de civis americanos, mas sim a queda da matriz simbólica do
capitalismo mundial). Essa paixão pelo Real inerente às representações culmina, então,
num espetáculo; o real esvaziado de sua concretude e preenchido por camadas de
simbolismo.
Num mundo tornado refém pelo domínio simbólico da imagem, estudos
etnográficos sinalizam com uma construção possível: o que Tyler chamou de processo de
textualização, “o movimento interpretativo inicial que promove um texto negociado para a
interpretação do leitor” (CLIFFORD,1986,p.125-6). Consiste em um texto feito de
fragmentos de percepção, que parte de considerações pessoais e que se auto-constrói e se
reinventa; se textualiza no lugar de contextualizar a si. O espaço da experiência – por
extensão, o espaço do texto e o espaço do filme - é o etnógrafo. Não se trata mais de um
observador que especula ou observa: o evento passa através dele e o incorpora,
inviabilizando uma mediação passiva. Isso quer dizer que a construção do discurso
etnográfico não parte de um objeto externo, mas sim de uma série de eventos, informações
e particularidades peculiares ao etnógrafo. Há um conhecimento em jogo e a textualização
é o movimento dialético que promove a reflexão sobre o tema
149
.
147
Grifos meus
148
Em “Bem vindo ao deserto do real”, Zizek aplica essa teoria no ataque de 11 de setembro de 2001 ao WTC
em Nova Iorque.
149
O que torna a textualização diferente da reflexão: a reflexão procura criar formas de entrada que facilitem
o acesso ao tema; já a textualização é o próprio tema em movimento de auto-construção
89
Assim, pode-se dizer que uma etnografia pós-moderna captura o humor do mundo
contemporâneo: não se move para longe da vida, mas especula sobre a experiência; não é
escrita para entender a realidade objetiva – tarefa do senso comum - mas para “reassimilar,
reintegrar o self na sociedade e reestruturar a conduta na vida diária” (apud
CLIFFORD,op.cit.,p.135). Ao deslocar o espectador da ordem cotidiana, o discurso
etnográfico sugere uma nova perspectiva de aproximação, evocando fantasias que podem
ser abstraídas de fragmentos. Por isso o caráter de experiência destes discursos. Por ser
desenvolvida cooperativamente, a etnografia privilegia uma concepção de ‘discursos’ (que
surgem em função de diálogos) a ‘textos’ (produtos de monólogos)
150
. É, por isso, uma
estrutura de características polifônicas, onde “nenhum dos participantes tem a palavra final
na forma da estória ou na definição de uma síntese – um discurso do discurso” (apud
CLIFFORD,op.cit.,p.125-6)
151
.
Ao trocar um juízo de representação por outro, evocativo, a etnografia se emancipa
de uma retórica científica impregnada de compromissos com definições de verdades, fatos,
descrições e generalizações. ‘Realidades’ promovidas por estruturas etnográficas são
subjetivas, experimentadas e compartilhadas; “o texto etnográfico não apenas não é um
objeto, ele não é o objeto; é um significado, um veículo meditativo para um tempo e lugar
transcendente (...)” (apud CLIFFORD,op.cit.,p.125-6). A chave para compreender esse
delicado processo de transcendência, escreve Tyler, seria a palavra evocação, “porque uma
vez que um discurso se diz evocativo, então ele não precisa representar o que evoca, ainda
que seja uma forma de representação” (apud CLIFFORD,op.cit.,p.128). Evocação, então,
seria uma forma de não-representação, continua o autor, não devendo ser entendida como
uma significação porque não simboliza nem é símbolo de qualquer coisa. Uma estrutura
etnográfica não pode ser representada, para Tyler, simplesmente porque não há o que se
representar, mas sim um compreender implícito:
150
Quando nos referimos acima a textos etnográficos, queremos dizer a forma estrutural – mesmo diálogos
são ‘escritos’ como textos.
151
Mikhail Bakhtin, ao estudar os romances de Dostoievski, vai definir a polifonia como uma “multiplicidade
de vozes e consciências independentes e imiscíveis”, sendo que cada voz é plena de valor, mantendo com as
outras vozes do discurso uma relação de igualdade “como participantes de um grande diálogo.”
(BAKHTIN,1981,p.2). Na etnografia, a polifonia implica na anulação de uma performance monofônica do
narrador em relação ao ‘Outro’.
90
“Não é uma presença que chama por um elemento ausente; é um vir a ser daquilo que
não estava ali presente ou ausente, porque nós não devemos compreender ‘evocação’
como uma ligação entre duas coisas diferentes no tempo e no espaço (...). Evocação é
a unidade, o evento singular ou o processo.” (apud CLIFFORD,op.cit.,p.130)
Essa qualidade evocativa do discurso etnográfico significa também uma forma de
acesso à qualidade reflexiva e meditativa destes relatos; uma ‘porta de acesso’ à
singularidade do narrador. Existe um compromisso muito maior na qualidade do relato,
enquanto auto-narração, que com o conteúdo objetivo da fala. É nessa qualidade auto-
referenciável que fabrica as evocações que se cria um self além de qualquer imagem
estável (não somos nunca os mesmos, nem os mesmos para todos), que se torna
representante
152
de um EU oculto, desvinculado de uma proposta de identificação realista:
“(...) e é por isso que a etnografia pós-moderna é um documento oculto; é uma
enigmática, paradoxical e esotérica conjunção de realidade e fantasia que evoca a
simultaneidade construção que conhecemos como realismo (ingênuo)” (apud
CLIFFORD,op.cit.,p.136)
2) TREYF
Direção: Alissa Lebow e Cynthia Madanski, 54 minutos, 1996, EUA
Treyf inscreve no universo do documentário duas formas fundamentais na
compreensão de uma etnografia pós-moderna: a articulação de uma qualidade de evocação,
como sintoma da presença do sujeito enquanto problema, e um processo de textualização,
a construção de um discurso particular do narrador em relação ao mundo histórico. No
filme, as diretoras Alissa Lebow e Cynthia Madanski problematizam a marginalidade
dentro da religião judaíca, estabelecida na palavra treyf. A partir de uma constatação inicial
(a curiosidade sobre um conceito excludente dentro de uma crença que, por suas
características e valores circunscritos em relação ao mundo, é também uma excessão
153
),
Lebow e Madanski questionam uma série de representações do judaísmo. Notadamente,
152
E não representações.
91
compõe sua argumentação ao redor da seguinte opinião: há uma certa lógica de exclusão
inerente ao judaísmo, e que se manifesta num comportamento obsessivo em relação a uma
série de questões - o holocausto, a questão política de Israel, a aparência, a alimentação, os
rituais, a língua, o lugar da mulher, etc... . Enfim, em certa medida, ser judeu significa se
retirar do mundo em alguns aspectos.
Essa necessidade de exclusão com um sentido de auto-preservação é evocada numa
performance que é o fio da narrativa: Alissa e Cynthia formam um casal que atravessa o
filme nos preparativos de uma grande celebração: um encontro de mulheres homossexuais
judias que se reunirão para refletir sobre ‘o que é ser treyf’. O encontro é tratado pelas
diretoras como ‘a grande filmagem’
154
– o que deixa claro que o propósito é, antes que um
momento meditativo, uma produção de significado, uma inscrição no mundo a partir de
uma tecnologia da comunicação. Treyf assume um olhar antropológico identificado com
uma proposta pós-moderna: uma definição cultural gerada não a partir de um sentimento de
afeto, mas como uma observação sobre o mundo.
Com uma abertura e um final bem definidos, Treyf pode ser dividido em 5 partes: 1ª)
introdução da questão treyf; 2ª) obsessões da cultura religiosa; 3ª) a visita a Israel; 4ª) a
grande filmagem; e 5ª) as cartas afetivas trocadas entre Alissa e Cynthia. O nome treyf é
questionado e contestado em invocações, evocações, encenações e sugestões que não se
limitam ao simbolismo e a um discurso vinculado a um referencial externo. Na
performance da questão, está implícito uma desconstrução do sentido simbólico que se
agrega a textos que buscam decifrar códigos culturais. Essa divisão, bastante didática,
esclarece a estrutura organizacional do filme.
ABERTURA
155
O filme começa dentro de uma mercearia de produtos kosher
156
; uma seqüência de
planos mostram situações cotidianas: clientes pelos corredores (incluindo as duas diretoras,
153
“(...) é um conceito genial; é como uma questão de dentro e fora em termos: você tem que estar
suficientemente dentro (do judaísmo) para saber o que treyf significa. Mas, ser treyf significa estar de fora”
(fala de Alissa Lebow)
154
Há somente menções à filmagem, e elas acontecem quando Cynthia fala com a mãe ao telefone – uma no
começo e outra pouco depois da metade do filme.
155
Chamamos essa cena de abertura porque ela acontece antes da introdução da cartela com o título e os
créditos da direção
156
Nesse tipo de loja são vendidos produtos próprios para o consumo de judeus.
92
sem identificação), repositoras, caixas e produtos nas prateleiras. O áudio articula uma
melodia
157
e dois textos em off, discorridos alternadamente por Alissa e Cynthia
158
. Os
textos são em primeira pessoa e relatam como as duas mulheres se conheceram, evocando a
parceria no filme. As vozes se complementam, em ritmo alternado, indicando estabilidade
no relacionamento. Esse sentido de complementaridade entre discursos é fundamental na
construção da subjetividade social que articula as memórias particulares a coletivas
159
A narração do primeiro encontro é descritiva. Sabemos que ele aconteceu em um
jantar, há sete anos; durante aquela noite, Alissa relata ter descoberto uma série de
afinidades com Cynhtia
160
. Cynthia, por sua vez, relembra o pânico experimentado à
simples idéia de começar um relacionamento com uma pessoa tão parecida com ela. Os
dois textos constroem um conhecimento que permite a compreensão das imagens na
mercearia; despretenciosas e com função evocativa, aludem apenas a um momento da
estória que está sendo narrada em off. Ou seja, não há pretensões representativas ou
simbólicas implicadas no relato
161
. As imagens não estão diretamente associadas à fala (não
há uma relação indexical, nada indica que Alissa ou Cynthia são as mulheres na loja); mas
permanece a sugestão de uma relação entre aquelas mulheres. O texto alude à formação do
casal – é tempo passado. As imagens, ao contrário, estão no presente, no tempo da
narração; logo, são posteriores aos acontecimentos narrados. Assim, o descompasso entre
as informações contidas na imagem e no som se resolve na evocação, na sugestão implícita
como tradução.
1º PARTE: SER OU NÃO SER TREYF?
Até aqui, a questão treyf não foi abordada. Isso pode ser interpretado de duas
maneiras: pode ser uma conseqüência da situação exposta na abertura, ou, a abertura pode
157
É interessante apontar que a música utilizada neste plano é o mesmo tipo de música utilizado nos filmes de
Woody Allen – um diretor reconhecido por uma crítica ácida e irônica aos judeus.
158
A banda sonoro do filme é sempre uma articulação de um texto sublinhado por uma trilha sonora.
159
Para Bill Nichols (1994), a subjetividade social conrresponde a uma categoria da consciência coletiva.
160
Eram as únicas a conhecer o ritual de passagem de ano judaico; tinham ambas 4 irmãs; ambas eram as
únicas na festa que falavam hebraico.
161
Há, entretanto, um momento com aspecto ‘simbólico’: o último plano mostra embalagens de alimentos
kosher na esteira rolante do caixa. A câmera está posicionada no final da esteira; assim, os produtos vêm,
crescendo, em nossa direção. O áudio que recai sobre essas imagens é o final da fala de Cynthia, que diz “será
tudo isso muito judeu?”, se referindo a suas especulações sobre o começo do relacionamento. Esse
procedimento vai ser recorrente no filme.
93
apenas ter uma função de introduzir as personagens do filme e situar o leitor no tempo e no
espaço. Acreditamos que essas duas funções se interpenetram, completando uma à outra. A
abertura do filme apresenta as duas mulheres para o espectador na dupla condição
‘excludente’ de lésbicas e judias – mas sem deslizar para um debate político. Pelo contrário,
texto e imagem insinuam uma construção afetiva.
Logo após a cartela com o título, segue uma seqüência fotografias provenientes de um
programa didático, coberto por um texto em off. Essas imagens não têm caráter metafórico,
e aportam conhecimentos de uma tradição cultural específica. Instruem o espectador sobre
religião, lugares sagrados, tradições, alimentos permitidos e proibidos, símbolos e ícones.
Expositivo, esse material
162
- um programa de imagens compiladas em arquivo - vai ser
utilizado com recorrência no filme, pontuando quase todas as partes, como uma forma de
sabedoria institucional do judaísmo. O uso desse tipo de material é bastante representativo
de uma teoria do documentário performático, criando subvenção para uma crise entre uma
proposta de documento e outra, de performance. Nessa primeira bateria de fotos, a voz em
off (autoritária) informa que aqueles alimentos, certos tipos de carne, não se adequam à
categoria kosher; porém, o texto informa que é possível prepará-los de forma que ‘se
tornem kosher
163
. Depois da última foto, que o locutor anuncia ser “a primeira da série que
ensina a preparar uma comida kosher”, surge, enfim, o letreiro com a definição de treyf
164
.
Efetivamente, aqui começa a primeira parte, onde vamos ser apresentados à questão
treyf. Em um plano aberto, observamos Alissa e Cynthia entrando em uma delicatessem.
No plano seguinte, vemos Cynhtia no balcão de frios, conversando com o atendente,
informando que ‘só come kosher
165
. Há, aqui, uma primeira definição de opostos: Cynthia
diz que cresceu kosher e que, por hábito, não consegue ‘comer treyf’. Assim, mais que um
sistema de classificação, kosher e treyf, no filme, são conceitos evocados na qualidade de
condições de contra-discursos; formas de agir que dizem respeito a uma atitude de
individualidade frente a um sistema de regras.
162
Vide nota 13. Essas séries de fotografias, organizadas por tópicos, ditam regras de comportamento – como
um manual de boa convivência, de bom comportamento. Fala sobre tradições, instrumentos, símbolos,
alimentação, Israel, etc...
163
Esse detalhe é interessante, porque pode sugerir a idéia de que aquilo que não é kosher por natureza pode
desenvolver alguma parte de si e se tornar permitido – como mulheres judias lésbicas, talvez?
164
Esse letreiro é a definição que abre este capítulo.
165
‘(...) eu cresci kosher, mas é realmente só um hábito; mas eu não consigo comer treyf. Mas realmente não
acredito mais nisso.” (fala de Cynthia)
94
A primeira parte está quase totalmente centrada em Alissa e na exposição das
questões sobre uma atitude treyf. Uma vez que a definição original se aplica a alimentos
proibidos, estes se tornam a ‘porta de entrada’ na questão: assim, bolos e sanduíches
surgem como figuras de linguagem evocativas e sugestivas, pontuando a ação em diversos
períodos. Nesta cena, o ponto de partida de Alissa para a discussão é um sanduíche
166
:
“(...) Realmente, quem pode dizer o que é treyf? Quem é treyf? Somos todos treyf! E
não é apenas ser uma lésbica que me torna treyf. É todo o meu ponto de vista sobre o
mundo. É um ponto de vista que tem suas raízes na história judaica. Mas que está
definitivamente à margem do judaísmo tradicional.
167
Essa primeira parte tem a intenção de definir o objeto de estudo do filme. As diretoras
do documentário deliberam os respectivos pontos de vista sobre o assunto: Alissa, se
endereçando diretamente à câmera, expondo argumentos de forma narrativa; questiona a
própria definição da marginalidade. Cynthia, encenando um discurso frente ao rapaz do
balcão de frios. Essas duas formas diferentes de produção de discurso são pertinentes a esse
tipo de filme, porque põe em xeque “o que nós sabemos, e como sabemos (..) O que conta
como suficiente e necessário para constituir um conhecimento(...)”(NICHOLS,1994,p.97).
Documentários performáticos se desenvolvem na disposição do questionamento.
Ao mesmo tempo em que apresenta uma estrutura lógica que questiona o judaísmo,
Treyf vai se mostrar também como uma evocação poética a pontos da cultura judaica:
memórias do Holocausto, orgulho da educação, lembranças de uma infância comemorada em
rituais da tradição, a tristeza na visita à Jerusalém sitiada e tomada por acampamentos ilegais.
Esse questionamento é atravessado por uma grande afetividade, que contamina a narrativa do
filme e estabelece o amor por uma cultura como justificativa para debate. Assim, a atitude
treyf das diretoras se revela menos como uma forma de rebeldia, desvendando preconceitos
da cultura, que uma maneira de se tornar ainda mais imerso nela.
2ª PARTE: OBSESSÕES
166
“Bem, olhe para esse sanduíche: rosbife. Quem acreditaria que é treyf?” (fala de Alissa)
167
Fala de Alissa
95
A segunda parte do filme começa com a revelação do dispositivo imaginado por Alissa
e Cynthia para a abordagem da questão treyf: a filmagem de uma grande reunião de mulheres
judias e lésbicas, que irá acontecer em uma sinagoga desativada
168
. A primeira imagem dessa
parte mostra Cynthia ao telefone conversando com a mãe. Ela explica como será o registro, e
sobre o que é o filme que estão fazendo: “O filme é sobre Alissa e nosso relacionamento,
sobre ser judia e lésbica, sobre não ser uma judia tradicional”, diz ela. A idéia da filmagem
como um dispositivo, no entanto, vai se revelar controversa.
Após essa cena, segue um plano frontal de Alissa, encarando a câmera, sentada em um
banco de praça. Ela nos conta sobre um presente que lhe foi dado pela mãe: um livro sobre
lésbicas em Hollywood. A apresentação do presente tem por função estabelecer uma forma
de ‘acesso’ a um discurso pré-estabelecido sobre obsessões - já que ela revela que sua mãe é
completamente obsessiva com o fato da filha ser uma lésbica. A tela escurece, e ouve-se em
off a voz de Alissa: “então, de novo, obsessão não é um conceito muito distante de nós” – o
NÓS dessa fala são os judeus. Bill Nichols identifica esse procedimento nos filmes
performáticos como um desafio a dar sentido a eventos históricos através de evocações que
são emprestadas a ele. Assim, a obsessão da mãe de Alissa com a homossexulidade da filha
vai evocar uma série de obsessões relativas à cultura judaica, sem necessariamente formar
um painel expositivo. Isso fica claro na cena seguinte: Lebow e Madanski, registradas em
preto e branco, estão sentadas no chão de um quarto espartano, recortando jornais. É uma
cena poética, sublinhada por uma melodia melancólica; é também claramente encenada. Em
off, escutamos as vozes de Alissa e Cynthia que, alternadamente, discorrem sobre
obsessões
169
. Essa fala alternada na construção dos documentários performáticos vai ser
comparada por Nichols de forma análoga à função do coro na Grécia Antiga. Nichols
identifica esse coro com uma voz média, de função subordinativa – mesmo que o conteúdo
seja, historicamente, mais amplo que aquele onde está imerso. No filme, obsessões históricas
são submetidas à questão treyf, num papel de aparente coadjuvância.
168
A própria escolha do local já é sintomática, visto que a sinagoga é o templo dos judeus; nos rituais, os
homens têm uma importância superior às mulheres.
169
‘Nós crescemos obssessivas / obsessivas com judeus / com que mais é judeu / com quem não é judeu / sobre
quem falava sobre judeus / se havia judeus nos jornais / havia um judeu no governo / com Israel e seu estado
sitiado / com o Holocausto / com conquistas judias / com quem parecia judeu / com quem queria parecer menos
com judeu’ (fala das duas)
96
O texto que narra as obsessões é tipicamente performático: poético, sugestivo,
existencial; sublinhado pela música melancólica, evoca memórias particulares e eventos
históricos, alinha privacidade (Alissa teme que as sobrinhas não se identifiquem como
judias, teme o que as pessoas pensam dos judeus) a política (Cynthia se preocupa com a
situação política de Israel, com a quantidade de notícias que saem nos jornais sobre
judeus)
170
. Dispondo na mesma altura eventos menores e maiores, o resultado é um discurso
que nos informa mais sobre as duas mulheres que sobre os comportamentos obsessivos da
comunidade judaica
171
. Assim, a captação das diretoras funciona como nossa porta de
entrada para um outro mundo - despretenciosamente, já que narram em causa própria.
A ‘narrativa das obsessões’ não se esgota nos questionamentos particulares das duas
mulheres
172
. Em um segundo momento, uma longa fala de Alissa e Cynthia alinha a
tendência para comportamentos obsessivos aos acontecimentos históricos; notadamente, o
Holocausto. Segundo Alissa, judeus aprenderam a amar sua religião como uma forma de
proteção, uma forma de vingança; se há uma obsessão, ela é conseqüência direta de uma
necessidade de não esquecer (concepção recorrente entre os judeus). A narrativa volta a se
partir em dois textos alternados, fluindo num sentido de complementação – como na cena da
abertura. O tom das vozes é sombrio, as imagens ora são de comunidades supostamente
judaicas, em preto e branco, ora evocações a rituais e símbolos. Esses textos formam o que
Nichols define para os performáticos como uma situação existencial, uma pré-condição para
uma consciência de classe. O estabelecimento da situação cria um locus para a própria
questão em jogo: ser treyf’ é uma atitude compreensível quando se é judeu, pois existe todo
um conjunto de fatores que precedem o comportamento. Assim, ao justificarem o
comportamento treyf, estão criando as condições para a existência de seu questionamento.
3ª PARTE: EM ISRAEL
170
Entre as duas mulheres, Cynthia tem preocupações mais políticas, enquanto Alissa tem preocupações mais
etéreas e gerais.
171
Fosse o sujeito do discurso ‘cultura judaica’ (enquanto instituição) e teríamos uma narrativa fragmentada
superficial
172
Há diferenças notáveis na criação das duas mulheres, que justificam seu comportamento atual: Alissa foi
criada por padrões mais rigorosos (foi criada para não esquecer); Cynthia, ao contrário, não teve uma criação
tão rígida, incorporando às práticas da comunidade os hábitos da vida moderna. É uma constatação curiosa,
visto que Cynthia tem demonstra preocupações muito mais políticas que Alissa.
97
Israel é um lugar crucial para a comunidade judaica. Um símbolo das origens, retiro de
iniciações e rituais de passagem. Habitualmente, um sítio de representações com significados
mais simbólicos que indiciais, evocativos ou iconográficos. Entretanto, em Treyf a
significação simbolista é atravessada pelo elemento performático, criando uma aproximação
completamente diferente, pois Israel não é tratada à distância. É uma experiência vivida, que
vai se revelar como uma quebra: Israel surge como símbolo justamente para se mostrar
ineficiente enquanto designação simbólica. Ainda que seja possível identificar um sentido
simbólico na viagem
173
, uma representação simbólica só é possível em filmes performáticos
na medida em que é incorporada a uma vivência; o que transforma essas representações em
performances encarnadas no sujeito narrador.
É especialmente marcante a forma como os referenciais simbólicos são tratados de
maneira evocativa, criando uma percepção mais intensa e presente. Há um desejo de
contextualização que não parte de uma análise de eventos: o referencial é sempre o mundo
interior das diretoras. Aspectos da cultura são incorporados às lembranças das diretoras, que
narram no presente, iluminadas pela consciência do passado e da passagem do tempo. A
lembrança de um ritual na sinagoga, proibido a mulheres, é evocada de maneira sensorial (a
narração de Alissa é feita em um sussurro, forma adequada à reverência das mulheres) e
articulada a imagens de arquivo filmadas em preto e branco
174
; os comentários de Alissa e
Cynthia, fora do campo, recuperam impressões e desejos secretos
175
. Entretanto, na
expressão desse desejo, “o aspecto referencial da mensagem que nos remete ao mundo
histórico não é abandonado”(NICHOLS,1994,p.98); permanece uma ligação indexical.
A introdução de Israel no filme tem início com a evocação de memórias. Alissa nos
informa, em off, que o país sempre teve grande importância em sua família; rituais de
173
Se trata de um ritual de passagem que simboliza a aliança entre as duas mulheres: Cynthia está levando
Alissa para conhecer uma parte de sua vida; ela morou em Jerusalém por 10 anos, esteve envolvida com
agitações políticas durante esse tempo. É, também, onde se descobriu lésbica. Esse ritual tem sua
contrapartida ao final do filme, quando, durante uma troca de cartas, Alissa informa à namorada que agora era
a vez dela de apresentá-la ao seu mundo.
174
É especialmente intenso o contraste feito entre o preto e branco e o colorido na evocação de passado e
presente. Se tornam figuras de linguagem.
175
Elas informam que adoravam ir à sinagoga;adoravam os ritmos, sons e cheiros. Mas detestavam ficar
sentadas com as mulheres, queriam participar das danças e cantos com os homens. Há, nessa percepção, um
desejo secreto, uma curiosidade que cobre um mistério a ser descoberto. Um dos maiores desejos das duas
mulheres era participar dos ritos nas sinagogas. Essa reflexão implica em uma outra: ser mulher, então, de
certa maneira, também é ser treyf?
98
passagem, datas e momentos comemorativos são celebrados ali
176
. Começar a falar a partir
do passado é uma forma de criar um sistema de significação para o registro do presente. Em
Treyf essa retórica do passado lança as bases para a construção de um pathos de
estranhamento, a cultura vista não como parte de si, mas como uma parte do mundo. Alissa
nos informa que hoje, a idéia de ir a Israel lhe assusta, porque é uma cidade bastante
diferente daquela que conheceu através dos rituais da tradição. Essa aversão traz à tona a
discussão sobre a questão treyf, ressemantizada: uma vez tomado o mundo como referencial,
Israel seria, ele também, um país treyf; entretanto, ir a Israel faz com que Alissa se sinta treyf
em relação ao país ‘mitológico’ que aprendeu a amar (e que não é mais o mesmo, com
guardas e check-points)
177
.
A passagem por Israel estabelece uma conexão com os processos de textualização
descritos por Tyler e de figurabilidade
178
articulados por Nichols. Ao escolherem Israel
(marco simbólico) como espaço de legitimação do relacionamento, Alissa e Cynthia
estabelecem uma forma de se tornarem representáveis – legitimam sua condição de treyf por
analogia. Estão num lugar à margem, numa situação à margem, numa condição à margem. É
aqui que o filme ganha densidade, enquanto evocação da representação. Documentários
performáticos se tornam representações não em função de uma construção representativa,
mas pela incorporação de denominadores que estruturam a representação ressemantizados.
Representações pessoais (como as memórias evocadas em imagens e palavras durante o
filme) são diluídas num caldo memorialista mais amplo. Assim, o filme comporta narrações
em off deslocadas da imagem (enquanto referencial indexical); nos documentários
performáticos, personagens auto-representáveis dispensam uma relação de indexicalidade.
Podemos dividir a visita a Israel em três momentos. Primeiramente, Alissa e Cynthia
aparecem caminhando pela cidade. Um diálogo em off cobre essas imagens. Cynthia está
apresentando Alissa aos marcos afetivos na sua Jerusalém – o primeiro prédio onde morou
com uma mulher, o bairro que tinha uma ‘iluminação primorosa’, o mercado de rua. É
também um momento de descoberta e conscientização de uma ‘nova Jerusalém’ para Alissa,
176
Essa fala é coberta por imagens do arquivo pessoal da própria Alissa.
177
A própria concepção de Israel, reconhecida como país em 1948, é de ser uma comunidade exclusiva de
judeus – portanto, originalmente treyf perante o mundo. Ter Israel como marco simbólico automaticamente
insere todo judeu como deslocado em relação ao mundo dominado pela ideologia cristã.
178
Vide capítulo 3
99
não apenas a Jerusalém dos afetos da namorada, mas também a Jerusalém dos acampamentos
ilegais, dos check points e dos atentados políticos.
Em um segundo momento, o discurso das duas mulheres se desvia para a narração do
desconforto criado pela situação política do país. Israel, para elas, sempre foi um símbolo de
comunidade e união, idéia incompatível com a realidade social contemporânea. Esse
desconforto se manifesta na evocação de uma impressão de marginalidade e saudosismo, que
é sugerida tanto na melancolia da música e no tom da narração e do texto, como nas imagens
em preto e branco. Esse desconforto evoca, em Alissa, uma única palavra: TREYF. Essa
declaração surge à vista dos acampamentos ilegais em Jerusalém, produto de uma sensação
de ‘estranhamento’. A própria condição de marginalidade é questionada nesta seqüência de
claquetes, que ora surgem nas mãos de Alissa, ora surgem como ruídos em off, cobrindo as
imagens dos assentamentos. O documentário chega à impressionante conta de 149 claquetes,
o que nos faz pensar na real condição de ‘marginalidade’ em negociação com um número
dessa grandeza
179
.
O terceiro e último momento é uma construção encenada, de característica abstrata,
evocativa e poética. Observamos as duas mulheres, o registro é feito em preto e branco,
perambulando por uma construção antiga. Elas podem estar fazendo turismo, mas também
podem estar realizando uma busca; procuram tanto por uma identidade como uma orientação
cultural, religiosa ou sexual. Essa informação não é confirmada no discurso, cujo tema é a
fragilidade da comunidade judaica. Em Treyf o conteúdo dos discursos e diálogos é sempre
uma evocação de um tema maior, a problematização do sistema de texto que combina
público e privado. A fala das diretoras atribui o hermetismo dos judeus a uma necessidade de
sobrevivência, uma conseqüência histórica. Chegamos no limite da definição buscada pelas
diretoras: treyf é um conceito cuja necessidade de debate permanece por que vai contra uma
condição da própria cultura judaica; cultura que distingue na manutenção de um sentimento
de comunidade a força para sobreviver
180
. Assim, a abordagem de uma condição específica -
179
Obviamente não são todas as claquetes que são mostradas, mas a idéia das diretoras é demonstrar a
incompatibilidade de uma idéia marginal – assim, menor que a cultura dominante – e a quantidade imensa de
acampamentos em condição de ilegalidade.
180
Notadamente, toda cultura, para sobreviver, se apóia sobre a solidificação do grupo, da comunidade.
Entretanto, comunidades religiosas, mais que qualquer outra ordem, organizam a manutenção da crença na
permanência do sistema de valores dos membros.
100
o homossexualismo das diretores - se torna a chave de entrada para um aspecto maior da
cultura – a condição marginal da religião.
4ª PARTE: A GRANDE FILMAGEM
A grande reunião de mulheres judias lésbicas em uma antiga sinagoga é o eixo que
estrutura o filme, o evento que sustena o fio narrativo: todas as situações sempre retornam a
ela - desde os alimentos comprados na primeira cena até a conversa entre Cynthia e a mãe
que abre esta parte do filme. O documentário seria, então, o registro da preparação para a
filmagem: quando Cynthia fala com a mãe ao telefone, na primeira parte, se refere ao filme
que estão fazendo
181
. A grande reunião se revela um ‘falso’ dispositivo, já que não é a partir
dela que o filme vai ser construído. Ela não é um ponto de partida, mas também não é o de
chegada: corresponde a um eixo que justifica uma série de procedimentos.
O retorno à Nova Iorque é assinalado por uma cena onde Cynthia conversa com a mãe
ao telefone, exatamente como na primeira parte. Esta pode ser a mesma imagem do começo –
mas isso não nos é dado saber
182
. Ela informa à mãe, agora com mais detalhes, sobre a
reunião. Enquanto prepara os aperitivos que serão servidos na festa, diz à mãe que serão
cerca de 100 mulheres participando de um ritual de libertação de tradições machistas. O
discurso, que começa na cena em que Cynthia fala com a mãe permanece na mudança de
cena; agora, observamos ela e Alissa preparando as bandejas com entradas. Enquanto isso,
escutam na secretária eletrônica as respostas das convidadas. Cada uma delas corresponde a
um discurso sobre as razões que as levaram (ou não) a aceitar o convite. Essa cena é
particularmente interessante, e organiza questões fundamentais no filme: toda a ação está
centrada nos alimentos (a origem da definição de treyf), que estão sendo preparados por
mulheres homossexuais (uma condição associada ao conceito de treyf); para uma reunião
onde um grupo de mulheres treyf irá se reunir em torno de práticas rituais proibidas a elas
(atitudes treyf).
A reunião acontece em uma sinagoga fora de uso. A câmera está localizada no alto,
filmando todas as mulheres em torno da mesa. Essa seqüência incorpora duas situações
181
É o mesmo filme ao qual estamos assistindo; as questões que serão abordadas já as estão sendo.
182
Na verdade, é a mesma imagem do começo. Nós não sabemos quando foi feita a viagem, se no meio dos
preparativos para a festa, antes ou depois. Na verdade, sua inserção tem um caráter evocativo: são memórias
que foram incorporadas pelo espírito da festa.
101
chaves: ela envolve as cenas dos rituais (proibidos) sendo praticados por mulheres
183
e
fragmentos de entrevistas com as convidadas realizadas pelas diretoras (que são ouvidas em
off fazendo as perguntas). As entrevistas obedecem a uma estética tradicional
184
, as perguntas
giram em torno das questões que foram levantadas pelas diretoras no decorrer do filme: Qual
o lugar da mulher lésbica judia? Como você se sente sendo lésbica e judia? O que é
judeu em você? Como se sente namorando mulheres judias? entre outras. Nenhuma das
mulheres se refere à palavra ou mesmo a uma percepção do sentido de treyf.
É sintomático que a questão que simula o ‘tema’ do documentário – a percepção da
religião judaica alimentada por comportamentos obssessivos
185
– revela-se superficial no
conjunto. Aqui, novamente podemos recorrer à imagem do coro grego utilizada por Nichols:
são vozes que falam sobre um tema maior (que não se referem a elas, mas sim a conceitos
gerais) mas que estão submentidas às vozes de Alissa e Cynthia, que falam de temas menores
(falam de si). A articulação destas vozes médias formam um sistema de subjetividade
social, que possibilita a união de questões individuais a coletivas.
5ª PARTE: CORRESPONDÊNCIA AFETIVA
A última parte do filme começa com uma cartela onde está escrito Judeus em Nova
Iorque – guia turístico
186
. Imagens desfilam rapidamente pela tela; aparentemente, são
referências inequívocas de lugares freqüentados por membros da comunidade. A última das
fotos é a fachada da mercearia onde o filme começa. Na cena, um plano aberto, observamos
Alissa e Cynthia retornando à loja. Há uma pequena mise-en-scéne, similar à do começo do
filme; Alissa vai até o balcão de frios e se dirige ao atendente: ”Sei exatamente o que quero”
e faz o pedido de um sanduíche treyf. Não se pode deixar de notar uma idéia de retorno ao
princípio do filme como uma declaração de princípios: o documentário não tem pretensões
de revolucionar o mundo, mas, antes, fornecer um ponto de vista sobre o mundo. Ao faze o
mesmo pedido do começo, Alissa está afirmando que nada mudou nos últimos 50 minutos.
183
Esses rituais correspondem à encenação das mesmas cenas que foram vistas em imagem de arquivo,
objetos de reflexão e desejo de Alissa e Cynthia.
184
Talkin’ head: corresponde a uma pergunta em off seguida de resposta em caráter testemunhal
185
Que é, de fato, o referencial externo, aquilo que prende o filme ao mundo.
186
Faz parte do mesmo material de arquivo que mostra seqüências de fotos cobertas por um off. Porém, não
somos informados se esse é ou não o nome do programa.
102
A última seqüência do filme nos envia de volta à primeira. Novamente, observamos
imagens dos corredores povoados da mercearia; mas os discursos que cobrem agora essa
imagem são provenientes de duas cartas (são cartas da diretorias). A primeira carta é de
Alissa, que diz a Cynthia que agora é a vez dela (Alissa) levá-la para seu mundo. O mundo
de Alissa é bem menos político que o de Cynthia, mais romântico, introspectivo e voltado
para questões existenciais:
“(...) obrigada por me levar à terra de nossos avós, para as ruas de nossas raízes, para
os antigos e assombrados laços entre nós. (...) Quero te dizer o quanto você é ‘lar’ pra
mim – de alguma forma, um lar que eu nunca tive – um apartamento alugado com
varanda, roupa pendurada na área, vizinhos discutindo sobre quem apagou a luz
durante o shabá
187
. (...) é minha melhor amiga (...)” (trechos da carta de Alissa para
Cynthia)
Já a resposta de Cynthia é mais concreta. Ela informa que os antepassados de
ambas, chegando nos EUA, não tiveram tempo para o desenvolvimento de uma geografia
afetiva. Vieram em situação de fuga tensa, e foram enviados diretamente a Chicago onde se
tornariam mão de obra barata; “como eles reagiriam ao nos ver, produtos da segunda
geração do seu relativo sucesso, romanceando suas raízes de classe trabalhadora?
188
. As
preocupações de Cynthia estão mais endereçadas a questões políticas. Isso nos diz sobre a
personalidade da própria Cynhtia: foi militância política que ela assumiu sua opção sexual -
“(...) você e eu temos um lugar na história judaica; somos treyf, mas não somos as únicas.
Há muitas de nós aí fora.”
189
. Essa, última fala do filme, cobre uma desafiadora imagem das
duas mulheres abraçadas e rindo muito, passando pela frente de um muro onde se lê a
inscrição em grafite straight
190
. Após essa imagem, uma seqüência de fotos de mulheres
191
encerra o filme.
Mais que um sinal de marginalidade, a conceituação de treyf é incorporada na
qualidade de baliza identitária para Lebow e Madanski. Entretanto, no lugar de incorporar o
187
data comemorativa judaica
188
trecho da carta de Cynthia para Alissa
189
trecho da carta de Cynthia para Alissa
190
Straight: heterossexual
191
São as mesmas mulheres que compareceram à festa e, em função de quem uma discussão sobre
homossexualismo tem uma relevância social
103
conceito e construir o questionamento a partir de alicerces reflexivos, Treyf (o filme) se
revela um grande jogo de questões dialéticas e paradoxais, que incidem sobre as
dificuldades de estabelecimento de limites e definições no mundo contemporâneo. O
próprio mundo envolvido paradoxalmente num programa econômico ‘sem fronteiras’;
todavia, mergulhado numa situação política onde se tornam cada vez mais estabelecidas e
desconfiadas as fronteiras de proteção. Uma atitude treyf é, no limite, uma forma particular
de encarar o mundo a partir de um filtro, a tradição judaica (um dispositivo de acesso ao
mundo). Na verdade, como diz Alissa, ninguém é e ao mesmo tempo todos somos um
pouco treyf.
104
V
A EXPRESSÃO DO AFETO APROXIMANDO DISTÂNCIAS:
The Mighty Civic e Porto da Minha Infância
“Recordar momentos de um passado longínquo é
viajar fora do tempo / “Só a memória de cada um é
que o pode fazer. É o que vou tentar” – Manoel de
Oliveira ( Porto da Minha Infância)
“É algo que tem a ver com o espaço do sonho.
Todos precisamos de um lugar para sonhar com
outros mundos, outros lugares, outros tempos. Esse
é o poder do Civic, essa é a lembrança do Civic” –
Peter Wells (The Migthy Civic)
Há algo de intenso nos movimentos da memória. Henri Bergson estabeleceu para
ela a articulação de duas funções como responsáveis por uma atribuição de sentido: a
imaginação e a repetição; a repetição decorre de um hábito esclarecido, uma organização
dos mecanismos de invenção da memória que cria um padrão na forma de agir. A
imaginação, irrepetitível, é um estalo de consciência, uma forma de percepção singular que
define as bases para o reconhecimento; “a lembrança espontânea é imediatamente perfeita;
o tempo não poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la; ela conservará para a
memória seu lugar e sua data.” (BERGSON,1990,p.64). Por isso, concluiu Bergson,
imaginar não é lembrar-se. Isso porque o gesto da lembrança envolve um percurso de busca
no passado, um retorno sempre sujeito a releituras, a reconstruções à medida que
acumulamos mais ‘passados’; por outro lado, a imaginação é sempre um processo novo,
uma forma de interação da consciência com o mundo. Por isso, um retrato nunca é o
mesmo mas sempre um fragmento de tempo carregado de sentidos que podem ser
desconstruídos (e reconstruídos) no segundo seguinte; “(...) a verdade, é que jamais
atingiremos o passado se não nos colocarmos nele de saída” (ibidem,p.111). A essa
definição da memória bergsoniana, ajuntemos uma bela definição de Jacques Rancière,
para quem “uma memória é um conjunto qualquer, um arranjo qualquer de signos, de
traços, de monumentos” (RANCIÈRE,2001,p.201). Isso agrega à memória um valor
105
icônico. Ela seria, então, um referencial de busca que dispensa contextualizações em
benefício de uma ligação entre presente e passado, garantindo a continuidade da existência.
Os filmes analisados neste capítulos partem de pontos de um passado extremamente
reservado aos realizadores. São flagrantes da imaginação, retratos que explodem num
determinado momento; a articulação harmônica de invenção e memória. Invenções da
memória e memórias inventadas, os objetos analisados nos dois filmes têm em comum um
único aspecto: são ambos produtos de uma leitura afetiva. Se inscrevem no campo do
documentário a partir da criação de um mundo subjetivo que estabele o afeto como forma
de relacionamento com a imagem.
1) DUAS CONSTRUÇÕES ESTIMULANTES
Porto da Minha Infância (2001), de Manoel de Oliveira, foi um projeto realizado
pelo diretor português a pedido do produtor Paulo Branco para a exposição ‘Porto 2001
Capital Européia da Cultura’. Inicialmente, o filme deveria ser um documentário sobre a
capital portuguesa, acontecendo no presente. Entretanto, por essa época, a cidade inteira
passava por obras de reestruturação; o que tornou inviável a realização do projeto ( “o que,
por outro lado, foi bom, porque me proporcionou a oportunidade de evocar o Porto da
minha infância, graças a algumas das minhas memórias, as mais simples e as mais ligadas à
cidade”
192
). Assim tem início um filme poético, extremamente evocativo, que mistura
elementos de ficção e documentário, reencenando memórias e construindo conhecimentos a
partir de lembranças. Em depoimento a Jacques Parsi, Oliveira comenta que o Porto que
decidiu filmar é um que não existe mais, e que só é possível de ser recuperado e assimilado
sob os olhos da memória. Isso porque Porto trata também de uma cidade que é anterior ao
próprio diretor, carregada de História. Parsi define o filme como um documentário de
‘procura’
193
, composto por fragmentos de lembranças, vestígios, testemunhos, marcas,
atualidades, letras de canções e fotografias (Parsi)
194
. Essa estrutura fragmentária é uma das
características do documentário performático. Entretanto, Porto da Minha Infância não
192
Notas de intenção do realizador (http://www.madragoafilmes.pt/portodaminhainfancia/#)
193
A idéia de um filme de busca vai ser trabalhada no próximo capítulo, a respeito do filme 33. Entretanto,
como já colocado anteriormente, é possível encontrar características partilhadas em todos os filmes. No
entanto, a estrutura escolhida optou por privilegiar determinadas estratégias em determinados filmes.
106
deve ser definido como filme performático necessariamente por sua característica
fragmentária, mas pelo processo de reinvenção que essa estrutura hierarquiza. Há, em Porto
uma notável duplicação da figura do diretor, que se torna presente enquanto personagem
- possibilitando a única forma de reencenação possível, aquela que compreende a
reelaboração das lembranças. Se ‘imaginar não é lembrar’, retomando Bergson, lembrar só
se torna possível como um exercício da imaginação
195
. Que se legitima somente porque não
é uma lembrança de outro, mas de si.
Porto da minha infância articula a memória particular à memória coletiva
inscreve o documentarista na cidade, ao mesmo tempo em que inscreve a cidade como
elemento formativo do documentarista. Daí, a criação de uma subjetividade social a partir
de elementos afetivos. Oliveira escolhe nos falar de suas mais puras recordações da cidade:
a confeitaria onde se deliciava com doces, os clubes noturnos onde iniciou seus primeiros
contatos políticos e literários, praças e monumentos que serviram de palco para a infância,
os espetáculos que marcaram sua personalidade, e foram determinantes para sua formação
como diretor de cinema.
The Mighty Civic (1989), de Peter Wells, é uma viagem fantástica ao ícone
inabalável da cinefilia: a sala de cinema. Inaugurado em 1929, o Civic é um verdadeiro
palácio de espetáculos localizado em Auckland, na Nova Zelândia. Foi idealizado e
construído por Thomas O’Brien, jovem visionário e perspicaz empreendedor, proprietário
de inúmeras salas de cinema na “Australândia”
196
no começo do século XX. O Civic surgiu
no rastro da inquietação comercial que se produziu com o surgimento do filme falado; o
Cinema começava a consolidar sua trajetória como produto de entretenimento, se tornando
um negócio altamente rentável. A idéia de O’Brien era criar a maior sala de espetáculos da
Oceania; para isso, buscou inspiração nos grandes teatros de cinema de Hollywood,
Chicago e Nova Iorque. Dizia-se à época que só poderia ser comparado em glamour e luxo
ao Radio City Music Hall, em NY. Entretanto, devido a uma série de complicações, em
pouco mais de 9 meses O’Brien decretou falência e, reza a lenda, fugiu de Auckland com o
lucro. Daí em diante, o Civic passou para a propriedade de bancos, amargando períodos de
194
em ‘Notas de intenção’ (vide nota 1)
195
É notável em Bergson a articulação entre a lembrança-pura, lembrança-imagem e percepção. Isso responde
por uma qualidade definitiva dos filmes performáticos: lembranças só existem enquanto produtos de uma
invenção singular.
107
altos e baixos durante quase 60 anos. Por ocasião da 2º Guerra Mundial, o desembarque de
tropas americanas revitalizou o comércio de entretenimento em Auckland, criando agitação
em torno do velho palácio. Porém, nada comparado ao frenesi do começo dos anos 30. Em
1975, o cabaré que funcionava nos subterrâneos do teatro (que sempre foi a grande atração
da casa, com seu corpo de bailarinas) foi fechado. Em 1993, a última licença de
propriedade bancária expirou e o Civic foi transformado em patrimônio cultural de
Auckland. Hoje, faz parte de um complexo de entretenimento. Depois de um período
fechado, foi reaberto no aniversário de 70 anos da inauguração, dia 20 de dezembro de
1999
197
.
Entretanto, mais que a estória de uma grandiosa sala de espetáculos, The Mighty
Civic é a mais pura expressão de afetividade de Peter Wells por um objeto de infância.
Mais que um relato histórico, The Mighty Civic é uma evocação criativa - onde uma
construção puramente fictícia, evocando sentimentos e misturando elementos de magia,
mistério, romance, terror e suspense, encena o poder da imaginação como produtora de
memórias; a memória como lugar de invenção, como um movimento de resistência a um
conhecimento mais genérico e emprestado das formas de registro tradicionais (o
documentário enquanto registro do real). Para falar da velha sala, Wells confronta duas
formas de registro no mesmo filme: a tradicional e a performática. E, se optamos por
tratar deste filme num trabalho sobre documentários performáticos, é porque,
categoricamente, o elemento performático é aquele que faz o filme ‘respirar’. Misturando
fragmentos de história, construções fantásticas e percepções da atualidade, The Mighty
Civic aposta nos mecanismos de invenção como “uma forma de estar-no-mundo como se
esse mundo fosse, ele mesmo, trazido à existência através do próprio ato da compreensão,
abduzido através de fragmentos” (NICHOLS,1994,p.102). Ao contrapor um formato mais
tradicional – fazendo uso de entrevistas e filmes de arquivo – a outro, performático, num
mesmo filme, Peter Wells sublinha o uso de uma lógica afetiva dominante como uma
declaração da impossibilidade de um olhar neutro.
196
Peter Wells se refere pelo termo australasian à uma área que envolve Austrália e Nova Zelândia
197
O filme de Wells é de 1989. As informações referentes a acontecimentos posteriores foram recolhidas no
site do Civic:
http://www.civictheatre.co.nz/home_index.html
108
2) ESCOLHAS DE ESTILO, ESTRUTURAS DE AFETO
Estabelecida uma subjetividade afetiva como lógica dominante nos filmes
performáticos, tanto Porto quanto Civic desenvolvem suas narrativas a partir de critérios e
convenções formais e estéticos estritamente pessoais. No limite, podem ser encarados como
filmes diário, encenando um encontro entre o sujeito e o mundo como um ritual de
reconhecimento. Para Andrea Molfetta, pesquisadora de documentários performáticos
198
,
eles representam um desafio a tentativas de representação e recuperação do passado –
tempos ‘mortos’ por excelência. Como resposta, a performance, encenação, evocação e
expressão como lugares de experimentação e aposta num discurso personalizado. Essa
quebra com uma proposta de documentário que, tradicionalmente, estabelece o mundo
como referência abriu precedente para uma intervenção poética, estabelecendo ligações
com outras formas que não a do documentário propriamente dito (os movimentos de
vanguarda da ficção e o cinema ‘primitivo’, por exemplo). Para Molfetta, o estilo de
representação clássica cede, “dando lugar a um processo de recriação do sujeito e seu
entorno. O distanciamento da representação faz emergir o tempo discursivo”
199
.
PORTO DA MINHA INFÂNCIA
Direção: Manoel de Oliveira, 60 minutos, 2001, Portugal
Bill Nichols determina que uma percepção do documentário tradicionalmente tem
sido estabelecida na convocação de indícios de realidade (capítulo 1). Em Porto da minha
infância, técnicas de realismo empírico, histórico e psicológico são articuladas com
recursos ficcionais, subvertendo-se para a construção de uma cidade imaginária. Se na
tradição do documentário a sedução do realismo corresponde ao estabelecimento da
verossimilhança, nos filmes performáticos esses ‘acúmulos’ convergem num movimento
espiralado (Parsi) para a criação de um núcleo: a figura do diretor. Assim, referências à
cidade, à História e à estória do vida do sujeito que narra são dispostas de forma circular,
198
O interessante estudo de Andréa Molfetta, de valor imenso para essa dissertação, está centrado na
produção dos documentários ‘diários de viagem’ no Cone Sul; notadamente, na produção apresentada em dois
festivais: o Franco-Chileno e o Franco-Latino-Americano de Vídeo Arte. Segundo Andréa, além de
proporcionarem um intercâmbio na produção latina, os diários foram uma afronta à hegemonia do
documentário militante da década de 80.
109
sua ‘verdade’ criando um amálgama de conhecimentos que giram ao redor de um ente
maior, do qual somente percebemos uma sombra.
Porto da minha infância recorre a uma mistura de convenções identificadas com os
cinemas de ficção e documentário para a recriação das memórias de Manoel de Oliveira.
Fotos e filmes de arquivo da cidade do Porto misturam-se a encenações de episódios da
infância do diretor, criando uma forma de inscrição do sujeito no mundo. Assim, é um
filme que trata não de um, mas de vários passados que se interpenetram: o passado do
diretor no Porto e o próprio passado histórico da cidade. Essa conjugação de tempo e
espaço relativiza diferenças, eliminando qualquer traço de comparação com o presente. A
constatação entre os tempos é própria de alguém que envelhece com suas memórias
200
. Há
no tom da voz e nas palavras do texto uma nostalgia de si, não do mundo como era. Isso
porque Porto não é um filme de uma cidade, mas de uma experiência vivida da cidade.
Porto se inscreve no modo performático a partir do dispositivo inventado por
Oliveira para a incorporação dos diferentes tempos na narrativa. A construção de uma
subjetividade social se escreve num movimento de apropriação da história, quando os
espaços da cidade são evocados a partir de episódios da vida do diretor. Essa evocação
acontece através reconstituições filmadas da memória – docudramas, dramatizações de
acontecimentos, reencenações filmadas representando cenas da vida de Oliveira. Além do
acúmulo de realismos produzido pelo eclético material utilizado, é também um filme
construído em diferentes camadas narrativas. Há um presente, que é incorporado na
narração em off de Oliveira
201
; há uma narração no passado, ‘virtual’, encarnada no Manoel
das encenações de cenas de infância
202
; e há ainda uma terceira narrativa, sem comunicação
com o presente onde episódios envolvendo o diretor quando jovem são observadas tanto
pelo Manoel do presente quanto pelo Manoel ‘virtual’ (são cenas que evocam as angústias e
sonhos do menino e adolescente) – enfim, uma superposição de tempos que estão
constantemente construindo um processo de reflexão, se voltando sobre si.
199
Molfetta, Andréa. Diário de Viagem: o relato do indivíduo no documentário sul-americano. Revista
Sinopse ano IV, nº 9, p.75, agosto de 2002.
200
À época da realização do filme, Oliveira contava 92 anos.
201
Uma narração no presente que fala do passado
202
Essa narração é extremamente interessante, porque ecoa as falas do presente. Assim, as lembranças que
são trazidas para o presentes o são porque lembradas ‘pelo’ passado
110
A proximidade dos conceitos de reflexão e representação num contexto
performático têm um sentido próprio e correlato: as encenação são representações e
reflexões das memórias de Manoel de Oliveira; essas memórias, por sua vez, são evocadas
para a construção de uma cidade imaginária, cuja definição só é completa para o diretor. O
Porto surge, então, como uma evocação. Da mesma forma que as mulheres em Treyf se
tornaram representáveis em Israel, Manoel de Oliveira legitima a representação de SEU
Porto na evocação de um conjunto de lembranças particulares, estabelecidas por sua
memória e imaginação. Ou melhor, pela forma como a memória resiste à sua imaginação.
THE MIGHTY CIVIC
Direção: Peter Wells, 62 minutos, 1989, EUA
André Bazin, na genial análise da obra de Orson Welles, destacava um elemento
cuja compreensão seria, segundo o crítico, inevitável para se apreender os filmes do diretor:
a obsessão, ou nostalgia, da infância
203
. Para Bazin, a autenticidade do sentimento evocado
pelo tema da infância poderia ser comprovada, em filmes como Cidadão Kane (1940), na
constatação de “detalhes significativos (...) que se impuseram à imaginação do autor apenas
pelo seu poder afetivo” (BAZIN,1991,p.44). Esses detalhes se impunham ao espectador
tanto pela repetição de elementos de valor icônico e metafórico, quanto pela forma de olhar,
manifestada em movimentos de câmera, duração de planos e abertura de lentes. Como um
discípulo fiel, Peter Wells reinventa o teatro Civic como uma espécie de Xanadu
204
de
Auckland, utilizando a obra de Welles como principal referência na criação da narrativa de
The Mighty Civic.
Civic também se inscreve no campo da nostalgia de infância – afirmação que é
declarada de forma subliminar na abertura do filme, não explícita no conteúdo da fala, mas
no tom afetivo do texto e das imagens evocando o passado
205
. Mas as referências não se
esgotam nessa constatação: há a construção cinemática de Welles, não apenas uma
inspiração, mas citação constante no filme, a ponto de poder ser considerada o dispositivo
203
Essa citação é plenamento corporificada no derradeiro plano de Cidadão Kane, quando Charles Foster
morre com a bola de vidro com a imagem de sua infância.
204
Xanadu vem a ser o palacete habitado por Charles Foster Kane no filme Cidadão Kane. O próprio Xanadu
do filme de Welles é uma memória de infância, já que em criança o diretor passou boa parte do tempo
viajando com o pai pelo oriente.
111
eleito pelo diretor. Das concepções estéticas (planos seqüência, utilização de grandes
angulares, flashbacks, profundidade de campo, travellings), passando pela perspicaz noção
do espaço cênico até citações diretas, com cenas nitidamente copiadas
206
, o Civic como
recordado no filme nunca existiu; trata-se da projeção de um artefato da infância,
alimentado por um amor genuíno pela arte e a citação explícita de um modo de concepção
do cinema. Ao lidar com essas particularidades, o documentário performático permite o
reenquadramento de lembranças, recontextualizando-as e “traduzindo-as para uma moldura
que se recusa a fetichizar o mistério (...)” (NICHOLS,1994,p.98).
A estrutura narrativa de Civic é fragmentada, uma costura de imagens evocativas,
sugestivas, icônicas, concebidas e poéticas
207
. Esse condensado de expressividade tem uma
provocante função excessiva, exatamente porque aspira polarizar o Civic da imaginação ao
Civic como existe hoje, uma velha sala de cinema
208
.
Internamente, a estrutura do documentário pode ser desmembrada em três
‘intervenções’. Primeiro, há o processo de tessitura, que parte de um agregamento de
fragmentos de características icônicas: imagens do velho teatro, fotos das dançarinas,
cartazes, panfletos, filipetas, ingressos, registros da cidade de Auckland, registros das obras
de construção do Civic e notícias de jornal que estão diretamente vinculadas à fala de
Wells. O texto, sugestivo e personalizado
209
, evocativo e intensamente criativo, narra a
ascensão e queda de um mito
210
. Em seguida, as entrevistas e as imagens do Civic no
presente, que correspondem a uma concessão à realidade do teatro. A porção histórica do
filme se manifesta nas imagens do teatro em ruínas, no testemunho de operários que
trabalharam na construção, de freqüentadores do período histórico e, principalmente, do
205
“Não há provavelmente qualquer outro prédio em Oakland com mais história agregada, velhas memórias,
ficção.” – narração de Peter Wells
206
Ao narrar a falência do proprietário do Civic, Wells replica a cena de Charles Kane morrendo com a bola
de vidro na mão; no lugar da casa de infância, a fachada estilizada do teatro Civic.
207
É verdade que aos elementos performáticos se misturam outras formas mais pertinentes ao documentário
tradicional – como o uso de entrevistas de caráter testemunhal. Entretanto, esse tipo de filme permite o uso de
estratégias de discurso de outros modos, ressemantizadas (Molfetta)
208
Propositalmente, as imagens do Civic atuais são filmadas sem nenhum recurso de luz ou enquadramento.
Se opõe radicalmente ao tratamente artístico que cabe à ambientação do Civic do imaginário de Wells
209
Assim como grande parte dos filmes performáticos, “Civic” está densamente calcado na estrutura oral.
Vale lembrar que Orson Welles, a referência do filme, era um diretor oriundo do teatro e do rádio – boa parte
de sua invenção cinematográfica passa pela incorporação das técnicas dos dois meios à tela grande
210
As proporções do Civic são de uma ordem faraônica. Quando relata o período de construção do teatro, a
fala de Wells nos informa que: “Assim começou o heróico período do que deve ser lembrado como a versão
de Auckland da construção das pirâmides
112
grupo das dançarinas que formavam o corpo de baile. Todas as entrevistas têm por função a
evocação de um sentimento passional pelo teatro; assim, são extensões do próprio
documentarista. Por último, há a construção do mito propriamente dito, o Civic tal e qual
recriado pela imaginação de Peter Wells – um ambiente repleto de magia, mistério, notas
orientais e dançarinas encantadas que povoavam a imaginação da infância do diretor. The
Mighty Civic transforma o que seria um documentário ordinário sobre uma sala de cinema
em uma estória de contos de fada das mil e uma noites. E a única maneira de sustentar essa
criação é através de uma aproximação afetiva; ou seja, performática.
3) A LÓGICA DO AFETO DOMINANTE
Ao estudar um tipo de documentário identificado como diário de viagem, Andrea
Molfetta desenvolveu um interessante trabalho sobre a inscrição do realizador no filme
enquanto proprietário e propriedade do relato. Para Molfetta:
“O documentário em primeira pessoa retoma o vínculo afetivo entre imagem,
realizador e espectador. O sujeito é desdobrado e encarnado, recluso na intimidade
do seu pensamento. Percorre a geografia do seu dominador. Organiza a narrativa de
forma tal que sua identidade é objeto, objetivo e método do filme, bússola e âncora,
narrador e referente; em soma, autobiográfico”
211
(MOLFETTA,2002, p.74)
O desenvolvimento desse tipo de filme, escreve Andrea, evoca uma noção do
indivíduo na cultura visual a partir de uma experiência sensorial, determinada por uma
quebra com uma certa tradição renascentista
212
. Assim, se estabelece que uma
representação do mundo está vinculada a um modo de percepção, não de observação – um
mundo cuja descrição só tem sentido se feita a partir d’os olhos de’ (Molfetta). Essa é,
necessariamente, a porção afetiva desses filmes.
211
Revista Sinopse nº 9, p.74
212
O sistema de representação inaugurado na Renascença coloca o sujeito que vê e o ponto do infinito numa
relação de equivalência simétrica. Ele detém o poder de controle absoluto da sua visualidade, organiza o
campo visual a partir de si, e representa nada mais, nada menos que o lugar onde as paralelas convergem: o
infinito” (Revista Sinopse nº 9, p.73)
113
Tanto Porto quanto Civic estabelecem desde o começo esse caráter sensorial. O
filme de Oliveira traz na abertura uma frase
213
e um longo plano, de cerca de 3 minutos,
onde observamos a imagem de um maestro (Peter Rundel); de costas para a câmera, sobre
um fundo negro, ele rege uma orquestra imaginária. Ao se referir a essa cena, Ruy
Gardnier, crítico de cinema, enxerga uma inequívoca evocação do fluxo histórico e
estórico: “o regente é o diretor, que se reconhece como tendo o tempo em suas mãos (...) e
uma clareza de sentimentos não do historiador de gabinete, mas daquele que viveu a
história em sua pele (...)”
214
.
Civic tem início evocando o espírito de magia que sublinha a imagem a ser
construída pelo diretor, completamente dissonante de uma tradição documentária: o título
surge tendo ao fundo um céu estrelado (que existia no teatro) e em meio a uma trilha sonora
de trombetas e rufares de tambores. Sobre um registro noturno do Civic, onde predomina
uma iluminação amarelo-ouro e a velocidade acelerada da imagem, o diretor começa a
narração, informando o valor afetivo da empreitada: “(...) Esse filme, de uma certa forma, é
sobre o poder dos sonhos; a intensidade dos desejos, que podem tornar sonhos
realidade
215
”. Wells nos apresenta, então, o seu Civic, idealizado e completamente
imaginado: um aglomerado de dançarinas exóticas, serpentes, cuspidores de fogo, lacaios,
mágicos, trapezistas; personagens caracterizados de detetives, ameaçadores vilões, casais se
beijando furtivamente; um ambiente soturno onde pairam pombos e uma chuva de pétalas
de flores, candelabros iluminados por sombras azuis, amarelas, douradas e vermelhas,
escadas, cortinas de veludo, rococós, portas gigantescas, ambientes enormes e tetos a perder
de vista. Os tipos e ambientes sugeridos neste espaço totalmente devedores de uma estética
de ficção noir
216
.
Tanto Porto da minha infância quanto The Mighty Civic circunscrevem seus objetos
de filmagem na imaginação dos realizadores. Por se tratar da análise de objetos de afeto,
213
A frase a que me refiro é a da abertura deste capítulo, creditada a Oliveira
214
Revista eletrônica Contracampo (www.contracampo.he.com.br) – vide bibliografia
215
A cena em velocidade rápida e da imagem amarelada tiram um pouco da realidade de um registro banal de
uma esquina, por onde perambulam pessoas em uma noite qualquer. O texto que nos apresenta ao filme é o
seguinte: “Essa é uma estória sobre um cinema na minha cidade natal, Aukland, Nova Zelândia. Eu sempre
tive esse sonho de fazer um filme sobre o Civic. Esse filme, de uma certa forma, é sobre o poder dos sonhos; a
intensidade dos desejos, que podem tornar sonhos realidade.”
216
Conforme vimos anteriormente, no capítulo 3, o filme noir está entre as referências do documentário
performático (capítulo 3).
114
com lugar cativo na memória, os filmes são atravessados por um conteúdo mais amplo que
a superfície das aparências e existências sociais. O caráter performático emerge não apenas
em função da primeira pessoa; na verdade, esse é mais um sintoma que uma característica
formadora: documentários não são performáticos apenas por que utilizam a primeira
pessoa, mas porque incorporam na imagem a identidade do realizador. Entretanto, essa
identidade é incorporada de maneira abstrata e paradoxal, “isto porque esses relatos não
querem ser verdadeiros nem falsos; atravessam esse eixo para direcionar sua experiência à
captura (falsa) do real” (MOLFETTA,ibidem, p.75).
Bill Nichols identifica os documentários performáticos como processos de auto-
narração que têm lugar no exercício da subjetividade como escrita. Isso inscreve esses
sujeitos, na concepção de Molfetta, como realizadores de um fazer narrativo cuja fala se
manifesta na forma como produzem as imagens. Imagens do senso comum e de domínio
público, transformadas em imagens-dispositivo (Molfetta). Imagens que inscrevem o
realizador (sujeito/personagem) no mundo via performance
217
. Antes mesmo de uma
concepção biográfica, filmes performáticos estabelecem uma marca, uma inscrição:
“O sujeito (...) é uma função a ser explorada. O sujeito é um efeito de leitura. (...)
são dois protagonistas: o sujeito detrás da câmera, e aquele diante do texto. A
densidade discursiva está a serviço do duplo vínculo afetivo com a imagem em
movimento” (MOLFETTA,op.cit., p.75)
Documentários performáticos necessariamente estabelecem a lógica afetiva da
abordagem através de ressalvas abstraídas do cotidiano – nos dois filmes, isso tende a
acontecer logo no princípio. A primeira cena de “Porto” exibe uma fotografia desbotada e
desfocada de uma casa antiga; sobre ela incide a seguinte fala: “Isto já não é senão o
fantasma da casa onde nasci. Foi nessa ruína, visão derradeira, (...), onde crescera, onde
tomara consciência de si e do mundo; fica n’ alma uma magoada saudade.”
218
. Em Civic,
Wells inscreve o desejo de ir ao teatro como uma aventura ao centro da cidade, lembrança
217
O sentido de performance identificado por Nichols (performing documentary) incide exatamente nessa
invasão, nessa interferência do sujeito no mundo.
218
“Em tempos que já lá vão, ali houve um só nascimento, o meu. Ali houve uma só morte, a do meu pai.
Decorreram os anos, mudaram os tempos. Tudo levaram. Tudo ficou esquecido. Só em minha triste memória,
tudo continua vivo”
115
comum em crianças
219
: “Eu usava as roupas da missa de domingo. Ele esperava por mim
na esquina da Queen Street. O castelo encantado, o Civic, onde tudo de ordinário era
deixado para trás”. As imagens nos introduzem na pequena Auckland dos anos 50
220
; por
enquanto, o teatro é tão ‘fetiche’ quanto os bondes, as lojas, o movimento urbano, as
pessoas elegantes e os fios elétricos que surgem em imagens antigas. Em ambos os filmes,
é prioritário o estabelecimento da primeira pessoa como fonte das informações sobre a
cidade e o cinema.
Esses filmes caracterizam-se por uma forte presença da oralidade
221
; especialmente,
por ser este o lugar onde se manifesta a característica principal da lógica afetiva: a primeira
pessoa, o EU que impregna a vivência que está sendo narrada. O predomínio de uma
linguagem poética fica estabelecido no tom, no estilo e na textura de vozes e músicas –
especificamente em Porto e Civic, a articulação de música e texto formam um conjunto
expressivo e integrado. Intensidade, altura e timbre estão em harmonia com as vozes em off
dos narradores, sublinhando os sentimentos evocados e sugeridos. Em Porto, a bela música
de Agustina Bessa-Luís, parceira de longa data do diretor, evoca na letra, na melodia e no
tom, sentimentos de saudade e nostalgia que se perdem no tempo
222
. Já em Civic, a
melodia, com notas orientais e arábes, sublinha o clima de mistério e magia. Expressões de
afetividade ganham contornos nos movimentos de travellings, em imagens vibrantes e
desfocadas e na iluminação dramática
223
, nos comentários em off, letreiros e cartelas, fusões
de cenas, justaposições e superposições de texto e imagem, além das reencenações
dramatizadas.
219
“Todos conseguem se lembrar da primeira vez que estiveram no Civic. Algumas pessoas conseguem até
lembrar o lugar onde sentaram. Minha primeira vez foi nos anos 50. E eu lembro que estava incrivelmente
excitado, porque ir ao Civic significava ir ao centro.”
220
Aparentemente, Wells morava num bairro afastado do centro, como fica estabelecido na primeira imagem,
de casas típicas de subúrbio.
221
A questão da oralidade nestes filmes vai ser discutida adiante, quando nos detivermos na análise dos filmes
de Agnès Varda e Kiko Goifman.
222
“Ai há quantos anos / qu’eu parti chorando / (...) Dei a volta ao mundo / Dei a volta à vida / só achei
enganos (...) / ó ingênua alma / tão desiludida / minha velha ama / com a voz dormida / canta-me cantigas de
me atormentare.” (fragmento da música que faz par com a narração de Manoel de Oliveira)
223
A iluminação é um capítulo à parte em The Mighty Civic – um dos produtores do filme é o diretor Kenneth
Anger, nome proeminente do cinema de vanguarda americano, notório pela utilização de uma iluminação
performática.
116
4) PORTO DA MINHA INFÂNCIA: FOCALIZAÇÃO INTERNA
(CRONOTOPO AFETIVO)
Ao estudar a estrutura dos romances literários, Mikhail Bakhtin vai definir por
cronotopo artístico uma acordo essencial das relações tempo e espaço, onde “o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (BAKHTIN,1998,p.211).
Cronotopos, então, correspondem a uma invenção temporal que permite ao realizador criar
um contexto artificial para sua narrativa. Chamamos de ‘artificial’ porque esse contexto não
é aquele do mundo, mas sim aquele que se passa no próprio interior da narrativa. Assim, ao
simular o encontro do realizador com seu projeto, Porto e Civic arquitetam seus respectivos
cronotopos
224
.
Entretanto, a invenção cronotópica no documentário tradicional sempre esteve presa
a uma concepção realista; na medida em que documentários são ‘registros do real’ todas as
formas de criação do espaço antecipam uma relação de empatia e identificação do
espectador com o omundo (capítulo 1). A utilização de táticas realistas no documentário,
conforme identificada por Nichols, corrobora o artifício da sedução como um meio que ao
inserir uma maior quantidade de real no registro, persegue o estabelecimento de um
processo de encantamento. Essa prática é desviada de forma arrebatada pelos filmes
performáticos que, acima de uma função de registro, inscrevem “o relato denso e
desdobrado do sujeito que reflete sobre o seu fazer” (MOLFETTA,op.cit.,p.76). Como
escreve Andrea Molfetta, são filmes cujo tempo discursivo não corresponde a um tempo
histórico; “a história fica suspensa para assistir ao puro desenrolar poético que combina as
imagens do registro” (MOLFETTA,op.cit,p.76). Isso gera narrativas descontínuas, que
abreviam o conhecimento ao instituirem chaves por meio das quais o sujeito se manifesta;
NÃO ao aderir ao mundo, mas se descolando dele “para recriar o mundo interior da
viagem” (MOLFETTA,op.cit.,p.77).
224
No próximo capítulo, iremos descobrir, em Benjamin, significativas diferenças entre a narrativa e o
romance – e o tipo de documentário estudado por nós está relativamente mais próximo da narrativa. Bakhtin,
quando define o cronotopo, o faz para o estudo de romances. Ainda assim, essa definição tornar-se-á bastante
importante (e aplicável, como se verá) para nós.
117
Em sua pesquisa sobre os filmes-diário, Molfetta identifica três formas através das
quais o documentário performático investe contra as convenções espaço-temporais
tradicionais: o efeito-banda, a descontinuidade espacial sem raccord, e a configuração
subjetiva da enunciação, ou focalização interna. Na análise da construção dos afetos nestes
dois filmes, vamos nos concentrar nos procedimentos da focalização interna, que
corresponde ao trabalho do texto que reúne e administra o saber proveniente do ver e do
ouvir. A focalização, escreve Andrea, pode orientar o saber sobre o sujeito ou o objeto do
filme; é a encarnação do realizador no relato e da sua relação com as imagens: “Câmeras na
mão, planos subjetivos, textos em primeira pessoa constroem a focalização interna. A
subjetividade faz meta-comentário a respeito da interação entre sujeito e mundo.”
(MOLFETTA,op.cit.,p.76). O texto descontínuo, que se desenvolve a partir de pontos
significativos
225
do percurso de vida do realizador, subjetiva-se. Para Andrea, trata-se de
uma equação onde o espaço desarticulado só ganha sentido quando apropriado pelo seu
autor na condição de protagonista – ou seja, por uma performance. Assim, podemos
localizar Porto e Civic como lugares internos aos respectivos realizadores; o que torna a
produção de reflexão o objetivo do filme. Não são apenas construções da memória, mas
também reinvenções de processos de lembrança.
Vamos eleger duas passagens em Porto como exemplos do processo de criação da
subjetividade
226
:
1) - “(...) Tudo ficou esquecido. Só em minha triste memória, tudo continua vivo”,
conta Manoel de Oliveira a respeito da imagem noturna das ruínas de sua antiga casa. A
seguir, sobre essa mesma imagem, escuta-se o diretor entoar um trecho de ópera: - “Eu sou
toureiro,/bandarilheiro;/toureador,/parteador (...)”
227
. A imagem da casa desaparece e o
plano seguinte mostra uma outra fachada, do teatro municipal – a imagem é recente, mas o
trecho de ópera é o mesmo; agora, não mais na voz do diretor e sim uma gravação original.
- “Meus pais tinham assinatura d’um camarote para ópera (...). Lembro-me desta cena da
opereta Miss Diabo, dos (...) autores portuenses Arnaldo Leite e Carvalho Barbosa.
225
Vale lembrar que estamos falando de um significado pessoal, cujo valor está diretamente relacionado com
a experiência.
226
Optamos por utilizar somente o filme de Oliveira na análise de cronotopia. A razão é porque seria
extremamente repetitivo e cansativo uma leitura das duas obras tratando dos mesmos elementos. Para o Civic
reservamos a sessão abaixo, de número 5.
227
O trecho em questão, pertence à ópera Carmem, de Bizet.
118
Lembro-me de como quando a vi, lá do camarote 16“. A sequência seguinte é a primeira
das muitas encenações dramatizadas de episódios da infância de Manoel de Oliveira:
observamos um menino no camarote assistindo o espetáculo, o qual também nós somos
presenciamos.
2) - “Guloso como era, quando aos fins de tarde me levavam às confeitarias,
escondia-me na esperança de me deixarem esquecido. (...)” (a imagem mostra imagens
antigas da praça onde fica a confeitaria).
- “A Confeitaria Oliveira era a minha preferida e era tida pela mais chique. Mas
não era o luxo que me atraia...” (essa narração é feita em off por Manoel de Oliveira)
- “(...) eram os doces (...)”, (completa um rapaz em cena, encostado numa janela
contemplando a rua. Estamos assistindo uma encenação, onde o rapaz em questão interpreta
Manoel de Oliveira jovem).
- “Eram os doces. (...) os folhados com recheio d’ovos, os pastéis (...), esses é que
eram muito bons.”, (repete, e informa um Manoel de Oliveira em off, no presente da
filmagem - a imagem mostra o interior de uma confeitaria
228
)
- “Mas a confeitaria foi-se. E com ela, os pastéis. Hoje, é isto” (imagem da
confeitaria no presente).
A construção da focalização interna em Porto surge como produto de uma discussão
interna e dialética. Essa discussão pode ser identificada no diálogo entre o material de
arquivo (o mundo) e as encenações (os meta-comentários sobre o mundo), que respondem
pela indagação existencial. Dessa maneira, Oliveira particulariza o que do Porto lhe
interessa lembrar. Pelos cânones da representação do documentário, essa escolha seria
traduzida como um retrato parcial. Tanto o teatro quanto a confeitaria são trazidos para
dentro do filme menos por seu valor histórico que por seu valor afetivo: ir à ópera com os
pais é um momento marcante para Oliveira; os doces da confeitaria são mais importantes
que a existência da confeitaria em si. Entretanto, essa característica ‘redutora’ é típica nos
performáticos – recapitulando Nichols, é afetiva na mesma medida em que conceitual – e
faz com que todas as informações não deixem de converger para o núcleo do filme. Nem os
doces nem a opereta são formas de acesso a conhecimentos maiores sobre a confeitaria e o
teatro.
228
A imagem da confeitaria é uma encenação
119
Andrea Molfetta distingue os ritmos narrativos dos filmes-diários como oscilações
entre sumários e pausas. Por sumário, podemos compreender as chaves mencionadas
anteriormente como formas de acesso ao sujeito que narra, os fragmentos de vida, as
maneiras pelas quais o realizador se dá a conhecer. Em Porto, um tempo de vida histórico
se condensa nos pequenos episódios encenados, nas lembranças de praças e monumentos
evocados. Os tempos de pausa, por sua vez, estão abreviados na “discursividade pura das
imagens movimentos” (MOLFETTA,op.cit.,p.76), a combinação dos registros. Assim, o
que poderia facilmente ser apreendido como uma narrativa que flui sobre uma oposição
entre passado e presente, se revela uma narrativa que se desenvolve por oposição de ritmos.
O conjunto de passados evocados tem menos função de memória como forma de
recuperação que como força que conspira para criação de uma imagem, a do diretor. Ao
eleger uma casa antiga, um teatro, uma confeitaria, um clube noturno ou um parque na
composição de sua fala sobre a cidade do Porto, Manoel de Oliveira está fazendo escolhas
afetivas (“as obras dos artistas são o que os revela”). Assim, o Porto imaginário que nos é
dado no documentário de Oliveira é aquele que palpita na memória do diretor porque
atravessado pela inquietação dos movimentos da lembrança. Imaginar não é lembra-se;
imaginar é construir e reconstruir-se o tempo todo a partir de um conjunto de fatos que se
instalam em nossa mente consciente.
5) CIVIC: O AFETO COMO EXPERIÊNCIA DA DISTÂNCIA
Se em Porto da minha infância, Manoel de Oliveira administra ritmos na evocação
de um passado e um presente vividos na cidade do Porto, as invocações de Wells procedem
de uma ordenação diferente. Da mesma maneira que no documentário português, The
Mighty Civic é também um filme cujo passado atravessa o próprio diretor, existindo em um
espaço entre o mundo histórico e a imaginação. Mas se o filme de Oliveira busca criar uma
conciliação entre os tempos a partir de uma série de recursos – encenações, inserção do
presente no mundo passado – o filme de Wells aborda a ‘vida e morte’ do teatro de forma
mais linear e, por vezes, mais próxima do formato tradicional do documentário
229
.
229
Essa proximidade com o documentário tradicional não compromete a qualidade performática do filme que,
por vezes, ressemantiza recursos de modalidade precedentes (Molfetta). Em Civic, o formato fragmentado
aproxima bastante o documentário de uma linguagem expositiva.
120
Entretanto, ao optar por uma caracterização que toma emprestado elementos da construção
ficcionais, Wells retira o teatro do mundo e o reconstrói como parte de seu imaginário. Isso
implica alguns deslocamentos aos quais o diretor se vê obrigado: na medida em que o Civic
é a evocação de uma lembrança de infância, é preciso localizar os resíduos dessa infância
que ainda permanecem na memória. Porém, a memória não é uma lembrança adormecida: é
um conjunto de fatos freqüentemente iluminados por acontecimentos do cotidiano. Isso os
torna passíveis de releituras que podem alterar radicalmente nossa compreensão e a forma
como o situamos em nossa estória de vida. The Mighty Civic é um filme que insiste na
persistência da preservação dessa memória (ao evocar um teatro mágico), ainda que, de
forma paralela, reconheça os mecanismos desconstrutores do tempo como lugares de
reconstrução (a reconstituição da trajetória do Civic através do material de arquivo e das
entrevistas substituindo a ilusão de infância).
Uma abordagem retroativa ao passado necessariamente insere o elemento da
distância como fator moderador. Em sua pesquisa nos diários sul-americanos, Andréa
Molfetta constatou que em nenhum deles se explicitava o tempo histórico. Esse não é
exatamente o caso de Civic, que inscreve a estória de sucessos e fracassos do teatro como
uma trama narrativa
230
. Entretanto, essa constatação levou a pesquisadora a relativizar uma
perspectiva biográfica nesses filmes, que será útil a nós:
“Esta desinformação não oferece a percepção da reconstrução do passado, (...)
frisam a experiência distanciadora da duração das imagens de uma história já
caduca, que abre seus restos representacionais a uma leitura dupla: a leitura do
passado histórico e o presente documental da leitura do discurso
(MOLFETTA,op.cit.,p.77)
231
230
Há algumas marcas temporais, porém, não delimitadas por datas que sugerem ciclos: Wells começa o filme
situando suas impressões durante a infância nos anos 50; o período do projeto e da construção insinuam tratar
dos anos 20 (pelas referências ao crescimento dos nickelodeons e o surgimento do cinema falado); a falência
do Civic é justificada, entre outras coisas, pelo baque da Depressão de 29; e o período da ressurreição começa
a partir da ilustração de um mapa que sinaliza os movimentos das tropas americanas durante a 2º Grande
Guerra na Nova Zelândia – num ilustração é bastante similar àquelas estilizadas nos filmes propaganda para a
2º GG de Frank Capra da série Why we fight, e de Jonh Ford A batalha de San Pietro (1945). São mapas
animados, narrados por locutores de rádio que simulam uma locução ‘ao vivo do campo de batalhas’,
didaticamente explicando o movimento das tropas. Pode ser considerada como mais uma citação do diretor.
231
Grifos meus
121
Ora, um conceito de biografia necessariamente está vinculado à compreensão de
uma identidade, da criação de uma representação que circunscreve um conhecimento sobre
alguém ou algo; ao contrário, filmes performáticos – como Civic – caracterizam-se pela
transformação das lembranças como consequência de uma experiência distanciadora da
duração das imagens. Isso nos possibilita crer que acontece aqui uma aposta na revelação
no ato da construção, num processo ininterrupto de re-centramento; “deste sujeito, sabemos
somente o modo que (...) molda seu discurso poético” (MOLFETTA,op.cit.,p.77). Ao abrir
mão de um caráter representativo, escreve Andrea, esses filmes se inscrevem no presente
através de uma atividade de percepção: “O presente da leitura funda o estatuto imaginário
da sua participação na imagem-movimento” (MOLFETTA,op.cit.,p.77). Assim, a
reprodução escolhida por Wells corresponde a uma performance mental, uma forma de
representação cujo referencial é a própria imaginação que se constrói no movimento das
imagens.
A intersecção do material expositivo e da evocação performática atestam a falta de
fronteiras entre o sujeito e o mundo na construção dos filmes performáticos. Uma vez que
são definidos como auto-referenciáveis, esses documentários inevitavelmente incorporam o
mundo na qualidade de espaço cênico da atuação – ao qual estão subscritos e cujo processo
de incorporação é ele também parte do filme. Para Andrea Molfetta:
“(...) a realização mostrou que o sujeito é um ser em processo, sem bordas, com um
imaginário atravessado pelos sentidos do mundo ao redor. O sujeito flui no
interior da fenda entre as palavras e as coisas, entre a captação e a contingência do
mundo. É entendido como cruzamento singular de eventos diante dos quais
produz um sentido original e arbitrário, portanto, ético
(MOLFETTA,op.cit.,p.78).
232
Em Civic, a busca dos sentidos do mundo ao redor é não apenas atravessada por
uma procura em construções imaginárias, como se inscreve na própria qualidade do
material. O que em qualquer outro documentário seria um referencial externo aqui se
revela um recuo sobre o próprio tema . O ‘mundo’ que interessa para a construção do Civic
é de uma ordem tão apaixonada quanto a do diretor pelo teatro – por ele mesmo
232
grifos meus
122
afirmado
233
- e está situado nos testemunhos do que poderíamos chamar de ‘os
sobreviventes’. Isso fica bastante claro na intervenção das bailarinas, de onde provém
grande parte do conhecimento gerado ‘externamente’.
As bailarinas do Civic tiveram uma participação definitiva na consagração da
mitologia do teatro; foram as grandes vedetes do período áureo dos anos 30 e, mais tarde,
as anfitriãs dos oficiais americanos que movimentaram o velho teatro durante os anos 40.
Elas podiam ser encontradas em todas as partes – além de dançarinas, assumiam funções de
anfitriãs e guias
234
. Mas o maior papel dessas moças – pelo menos aquele que é a razão de
suas existências no imaginário de Wells – eram as apresentações no cabaré, no subsolo do
teatro
235
. Suas vidas são emolduradas por episódios de mistério, crimes, assassinatos,
traições, sexo e luxúria. “Parte da lenda são essas mulheres, velhas dançarinas. Mulheres
que fizeram o jardim de inverno do cabaré o lugar da moda nos anos 40, quando os
americanos estiveram aqui.”, informa a narração em off de Wells, enquanto surgem em
cena um grupo de senhoras no hall do Civic. A qualidade dos depoimentos varia: ora são
dirigidos a Wells (cuja voz escutamos fora do campo), ora interpretam textos poéticos que
evocam ‘o melhor período de suas vidas’, ora são uma espécie de ‘ruído’ produzido em
uma animada conversa do grupo. Durante as falas de cada uma, Wells intervém (em off),
pontuando as imagens com informações; ele as identifica e cita algum pormenor da carreira
(‘esteve envolvida num caso de adultério seguido de homicídio’, ‘casou-se com o gerente’,
‘era aquela com a pior reputação’, etc...). Assim, elas se inscrevem na própria fantasia do
diretor
236
; são o espírito do Civic incorporado no presente – uma espécie de autenticação da
fantasia corporificada na tela. Sua presença no documentário tem um valor mais próximo
do ícone que do índice – o que as eleva à categoria de mito, tanto quanto o teatro. No final,
elas são menos uma fonte de informação que um legado do velho Civic.
233
“As pessoas falam do Civic como de um amigo antigo, quase como um amante antigo e familiar. A pessoa
pode ter passado talvez um dos melhores momentos de sua vida lá, talvez os tempos dourados. (...) Eu me dei
conta que muitas pessoas gostavam do Civic da mesma forma que eu. E todos tinham uma estória.”
234
Logo na primeira visita que fazemos ao Civic, Wells nos informa que sua guia ao mundo das ruínas
encantadas do teatro era a ‘acha’ encantada, uma espécie de anfitriã que guiava os visitantes pelo local.
235
Minha nova amiga me entregou os lugares secretos (...) descendo as escadas, onde ficava o legendário
jardim de inverno do clube noturno do cabaré. Ela me disse que era aqui que, nos tempos da guerra russa, as
mulheres da Nova Zelândia vinham encontrar seus amantes americanos, beber um pouco do vinho conseguido
no mercado negro, assistir um show com as dançarinas, nuas e pintadas de dourado.”
236
Essas dançarinas também são evocadas na construção imaginárias: a elas cabia a função de anfitriãs do
teatro
123
The Mighty Civic é uma experiência que só poderia existir a partir de uma
observação feita à distância – mas essa é uma distância diferente de uma observação
antropológica, como vimos no filme Treyf (capítulo 4). Não se trata de um processo de
análise de fora de sua própria cultura, mas uma distância que denuncia e põe em evidência
os dois lados do conhecimento: o subjetivo e o objetivo. E denuncia que esses dois lados
não necessariamente se anulam pela simples consciência um do outro. Pelo contrário: ao
contrapor objetividade e subjetividade, factualidade e afetividade, realidade e performance,
Peter Wells ecoa Bill Nichols, que enxerga nos performáticos tons e qualidade expressivas
que “ao mesmo tempo em que mantém uma referencialidade histórica (...) dizem respeito
ao desafio de dar sentido a eventos históricos através da evocação que eles emprestam a
ele” (NICHOLS,1994,p.98).
“Toda vez que o vejo, o grande mistério é que ainda está ali. Velho amigo de
infância...”; com essa frase, Wells encerra The Mighty Civic. Fecha também o arco que
traça para a existência da sala de cinema: não importa a passagem do tempo, as
informações que foram chegando, transformando e ‘objetivando’ sua compreensão – o
‘ainda está ali’ sinaliza a permanência do palácio dos sonhos. Sinaliza a vontade do diretor
em fazer um filme sobre o Civic de sua infância. Andrea Molfetta entende o distanciamento
da narrativa destes protagonistas/enunciadores como a forma possível do fazer narrativo
que permite o exercício da subjetividade, ao propor “falar dele mesmo através da forma que
produz sua imagem” (MOLFETTA,op.cit.,p.75). Não se trata de um filme reflexivo, mas
de uma invenção sobre as memórias
237
.
237
Essa é, de fato, a grande diferença dos filmes performáticos e reflexivos.
124
VI
A AUTO-INSCRIÇÃO COMO PERFORMANCE
33 e Os catadores e a catadora
“Temia encontrar um final piegas, e me vi diante
de um espelho...“ – Kiko Goifman ( 33 )
“Ou seja, o meu projeto é este: com uma mão,
filmar a outra” – Agnès Varda ( Os catadores e a
catadora / Les glaneurs et la glaneuse)
“(...) sabedoria: o lado épico da verdade” – Walter
Benjamin (Obras escolhidas – volume 1)
Ao escrever o relato da gênese de produção de seus romances considerados
‘literatura fantástica’
238
, Italo Calvino comentou a caracterização de seus três heróis
239
como uma percepção do esforço do homem em realizar-se como ser humano no contexto
canibalista das sociedades modernas. Os três heróis surgiram, informa o escritor, como
passatempos, num período em que sentia a realidade à sua volta ‘esvaziada’ de bons
personagens e contadores de estórias. Identificado até então como um escritor de contos
‘neo-realistas’, Calvino definia seu estilo da seguinte maneira:
“(...) contava histórias que aconteceram não comigo mas com os outros, ou que
imaginava terem acontecido ou poderem acontecer, e esses outros eram pessoas,
como se diz, ‘do povo’, porém sempre algo irregulares, no mínimo pessoas curiosas,
as quais fosse possível representar só pelas palavras que usam e pelos gestos que
fazem, sem se perder muito atrás de idéias e sentimentos. (...) O que me interessava
expressar era um certo élan, um certo jeito. ” (CALVINO,1999,p.7)
No entanto, escreve Calvino, a partir dos anos 50 “a música das coisas havia
mudado”, e a temporada que seguiu não demonstrava o vigor e a vitalidade desregrada do
238
Os três romances em questão são: “O visconde partido ao meio” (1951), “O barão nas árvores” (1956-7) e
“O cavaleiro inexistente” (1959). Os três foram reunidos, em 1999, pela editora Cia. das Letras no volume
“Os nossos antepassados”.
239
O visconde Medardo, o barão Cosme de Rondó e o cavaleiro Agiulfo.
125
período pós-guerra; não mais se encontravam pessoas interessantes, com estórias de vida
singulares. A realidade, escreveu ele, tornava-se cada vez mais institucional. Assim,
Calvino encontrou na escrita destes livros uma maneira de rebelar-se contra o negativismo
imperante.
Não obstante as estórias serem construídas ao redor de pitorescos personagens,
Calvino superimpõe em cada uma delas a presença de um EU narrador – uma figura mais
próxima do leitor e mais lírica; para ele, o personagem típico da narrativa moderna.
Essencialmente ligados aos heróis, os narradores
240
funcionavam como canais de mediação,
possibilitando a articulação de um conhecimento, filtrado por um contexto maior: o mundo
onde aconteciam essas estórias. Dessa forma, o que se tem são narrativas aos olhos desses
sujeitos ocultos, tornados os responsáveis pela semântica do texto. Transformam-se, assim,
nos verdadeiros protagonistas. O escritor define a vitalidade desses narradores em suas
estórias dessa forma:
“A presença de um ‘eu’ narrador-comentador levou parte da minha atenção a se
deslocar da história para o próprio ato de escrever, para a relação entre a
complexidade da vida e a folha sobre a qual essa complexidade se dispõe sob a
forma de signos alfabéticos. Num certo ponto só essa relação me interessava, a
minha história tornava-se apenas a história da pena de ganso da freira que corria
sobre a folha branca” (ibidem, p.19)
241
Ao conceber um narrador cujas observações são produto de uma observação à
distância, preservadora das identidades entre quem narra e quem é narrado, Calvino se
percebe assimilado por sua obra. Ao se incorporar nos personagens, compreende que as
invenções que surgem das situações por eles (personagens) experimentadas são
responsáveis por sua própria transformação no momento da escrita. Assim, o escritor acha-
se pessoalmente envolvido no romance de forma dupla: é ao mesmo tempo o narrador que
relata a experiência testemunhada e o personagem que sucumbe às situações, cuja vivência
catalisa o processo e a construção da narrativa. Ou seja: ao ocupar o espaço do narrador
e do sujeito narrado, sintomaticamente se reinventa.
240
Os narradores das estórias são, respectivamente, um sobrinho criança, um irmão mais novo e uma freira
241
A freira escrivã é um personagem do romance “O cavaleiro inexistente”
126
Nos dois filmes que escolhemos analisar neste capítulo, essa posição dupla é
essencial para a compreensão da estrutura performática que governa a lógica dos
documentários. Narradores e personagens desdobrados se imbricam e interatuam na criação
de um processo reflexivo atípico, produzindo o que Bill Nichols compreende como um
“tipo de representação que quebra com as convenções de autenticidade por se voltar para
uma performance” (apud RENOV,1993,p.175). Tanto 33 quanto Os catadores e a catadora
incorporam a performance como exercício de uma subjetividade inseparável do processo
de auto-narração. Na qualidade de espectadores, somos cúmplices, atraídos para dois road
movies que têm como objetivo a constituição de um ‘sentimento’ de identidade. Contudo,
nenhum dos dois documentários se desenvolve em direção a uma cristalização; ao
contrário, o que interessa é o próprio percurso e as modificações que surgem no decorrer.
Se imiscuindo em contextos diversos daqueles onde estão acostumados, se descobrindo em
palavras e pessoas de origens variadas, Kiko Goifman e Agnès Varda procedem à
reinvenção de suas individualidades a partir da incorporação dupla nos filmes: ao mesmo
tempo narradores e personagens, “alargam seus tom e qualidades expressivas, ao mesmo
tempo em que mantém uma referencialidade histórica. Eles dizem respeito ao desafio de
dar sentido a eventos históricos através da evocação que eles emprestam a ele”
(NICHOLS,1994,p.98).
Ambos 33 e Os catadores estão fortemente ancorados na oralidade do relato. A
força dessas narrativas deriva tanto da organização da experiência de vida, cuja estrutura
precede de um distanciamento crítico, quanto da vontade de se entregar ao processo de
realização. Os dois documentários organizam a articulação dos diretores na função dupla de
narradores e sujeitos do relato – o que, de certa forma, é o mesmo que dizer que se trata
de uma articulação entre a experiência e a distância. E “vistos de uma certa distância, os
traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam”
(BENJAMIN,1987,p.197), nos instrui Walter Benjamin - cuja bela descrição do narrador
tomamos de empréstimo para esse capítulo
242
num ensaio de classificação dos tipos de
narração que encontramos em 33 e Os catadores e a catadora.
242
O artigo de Benjamin ao qual nos referimos é “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”, e consta do volume I da coleção ‘Obras Escolhidas’, da Editora Brasiliense
127
1) “O NARRADOR” DE BENJAMIN E O DOCUMENTÁRIO
PERFORMÁTICO
Membro proeminente da Escola de Frankfurt
243
, Walter Benjamin escreveu “O
narrador” em 1936, dentro do espírito crítico que vai alimentar o pensamento sobre a
indústria cultural
244
nos anos 40. Especificamente, “O Narrador” sinaliza “um vigoroso
protesto erudito contra a intrusão da técnica no mundo da cultura
(MATTELART,2002,p.79). Neste texto, o filósofo analisa o que considera como processo
de aniquilação do narrador e sua substituição pela figura do cronista – uma forma de
ressemantização da proposta.
“O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.”
(BENJAMIN,op.cit.,p201). Essencialmente, a palavra que define o narrador benjaminiano é
experiência. Para narrar, escreve o filósofo, é preciso que se tenha vivido uma experiência,
pois narrar é, necessariamente, um intercâmbio de vivências. Walter Benjamin
compreendia a narrativa como uma forma artesanal de comunicação que “não está
interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada como uma informação ou um
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.”
(ibidem,p205). Entretanto, a sociedade contemporânea, continua ele, se acostumou a tomar
conhecimento dos fatos através de leituras tidas como ‘objetivas’ (jornais, rádio, televisão),
não intermediadas pelo vigor da experiência. Em função de uma série de fatores – o
desenvolvimento tecnológico e o ritmo veloz do funcionamento e das trocas simbólicas e
econômicas, entre outros – perdeu-se toda uma riqueza que constituiu desde sempre o
processo narrativo. Mesmo porque, não se tratava mais de narrar, mas de (in)formar – uma
forma, para o filósofo, ‘empobrecida’ e sem invenção onde a experiência conta pouco como
autenticação do saber, já que a base do texto são as explicações. Metade da arte narrativa,
escreveu Benjamin, está em evitar explicações. Essa falta de calor no relato inibe a criação
243
A escola de Frankfurt surge a partir de propostas idealizadas no Instituto de pesquisa social, filiado à
Universidade de Frankfurt, na década de 30. Seus membros, um grupo de filósofos exilados nos EUA por
ocasião da 2ªGG, inspirados numa filosofia marxista em ruptura com a ortodoxia, vão produzir pensamentos
que se inquietam com as transformações pelas quais passa a cultura a partir dos anos 40. O grupo se notabiliza
especialmente com o desenvolvimento do conceito de ‘industria cultural’ (Adorno e Horkheimer), que analisa
a produção industrial dos bens culturais como movimento global de produção da cultura como mercadoria.
128
de um sentimento de identificação entre as partes. Assim, a principal razão da morte da
narrativa para o filósofo é o distanciamento que se cria entre o narrador e o leitor.
Walter Benjamin estabelece o desaparecimento do narrador na qualidade de fonte
proeminente do relato no aparecimento de duas figuras: o romancista e o cronista. O
romance, para o filósofo, é um diálogo de surdos, um monólogo onde não há trocas; apenas
uma fala: “Quem escuta uma história está em companhia do narrador (...). Mas o leitor de
um romance é solitário.(...)” (BENJAMIN,op.cit.,p 213). Terreno da ficção por excelência,
o romance é uma anunciação, uma proclamação de idéias sem vontade de partilha. Já o
cronista, para Benjamin, é um narrador, do ponto de vista da História. Preocupado em
representar episódios cotidianos como modelos de história do mundo, ele “(...) não se
preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua
inserção no fluxo insondável das coisas”
245
(BENJAMIN,op.cit.,p.209). Por outro lado, na
análise dos filmes de Goifman e Varda, percebemos na estrutura narrativa de ambos uma
reverência à figura do narrador, em prejuízo do cronista ou do romancista. Há tanto uma
necessidade de contato entre que narra e quem escuta, quanto um descompromisso em criar
um texto que sirva como fonte de informação sobre o mundo. O que nos leva à seguinte
constatação: documentários performáticos recuperam a figura do narrador, em detrimento a
uma narrativa monológica e histórica que foi estabelecida como a metodologia ‘oficial’ de
uma construção de conhecimento.
Vimos no capítulo anterior que os documentários performáticos são criações
cronotópicas que, propositalmente, permitem a invenção de um sentido de ‘mundo’ próprio
à leitura de seus realizadores
246
. A determinação de um cronotópo implica organização de
elementos, eventos e características em torno de uma situação. Esse procedimento vai
produzir estereótipos que atravessam a obra específica, e criam uma forma de
pertencimento mais ampla. Sobretudo, escreveu Bakhtin, o princípio condutor do cronotópo
assentar-se na organização do tempo. Em Benjamin, o tempo também tem um papel
244
vide nota acima
245
Essa forma de inclusão de episódios no fluxo dos acontecimentos é particular ao documentário,
especialmente no modo reflexivo.
246
Segundo definição de M. Bakhtin, cronotopos são métodos de assimilação artística do tempo e do espaço.
Quando escreveu sobre as funções do cronotopo na literatura, Bakhtin o faz na criação de uma teoria do
romance. Entretanto, ao se apropriar do conceito, o filme performático torce esse procedimento e, a partir de
formatos estabelecidos, cria novas redes de significação. (Questões de literatura e estética: a teoria do
romance)
129
fundamental na construção da narrativa, tendo como marco simbólico a morte. Há, na
morte, uma força de evocação que deriva da sensação inerente de conclusividade. A morte,
escreve o filósofo, inscreve uma ‘estória’ como parte da ‘História’, cristalizando no tempo
eventos menores por serem parte de um evento (uma vida) maior. “Ora, é no momento da
morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa
substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma
transmissível” (BENJAMIN,op.cit.,p.207). Em outras palavras, a morte é o momento onde
a vida alcança uma espécie de ‘síntese’, cristalizada na produção de uma experiência. E a
experiência só pode ser transmitida quando se chega nesse momento de síntese. Nos dois
filmes, ao se reinventarem como personagens, Varda e Goifman automaticamente
estabelecem um começo e um fim para o relato, se concedendo a criação de um momento-
síntese. Entretanto, diferentemente do que acontece no romance, os finais dos filmes se
assemelham aos finais dos contos de fadas
247
: não existe um FIM convencional, mas uma
terminação em aberto, uma moral episódica que não se quer entendida como um sentido de
vida
248
.
Walter Benjamin propõe duas formas de identificação do narrador, que se
desenvolveriam como dois estilos simultâneos: o narrador que vem de longe e o narrador
local, que conta sua própria estória; o primeiro é evocado na figura do marinheiro, o
segundo, como um camponês. A principal diferença entre os dois: o conteúdo das
experiências e a forma como eram percebidas pelo ouvinte. O marinheiro vinha de fora,
e trazia para o pequeno povoado de origem conhecimentos mágicos, encantados e
inteiramente desconhecidos. A narrativa do camponês compreendia um relato interno, se
referindo ao discurso da tradição, um sintoma cultural, o legado do tempo sobre famílias e
comunidades. Por serem tecidos na ‘substância viva da existência’ quer dizer também que,
necessariamente, eram inventados a partir do sujeito que lhes dava voz.
Documentários performáticos apresentam uma enorme congruência com as idéias
de Benjamin sobre o valor da experiência no ato da narração e a forma como esse narrador
247
Benjamin vai identificar no narrador do conto do fadas o mais verdadeiro narrador.
248
O filme de Kiko termina com um plano do diretor dentro do apartamento de hotel, refletido na janela com
o seguinte off: “(...) O cliente que inventei foi o tempo. A procura, se por acaso continuar, não será mais
pública”. Já Varda termina o filme com o plano de um quadro que, a seu pedido, foi localizado em um
depósito de museu por duas curadoras, Julie e Brigitte: a pintura exibe as catadoras fugindo de uma
tempestade. ”Poder vê-las à luz do dia, fugindo das trovoadas, deu-me um enorme prazer”, é o off final.
130
é incorporado no ato de narrar. Assim como o narrador ideal proposto pelo filósofo, os
performáticos são filmes fundados nas especificidades da experiência pessoal,
acompanhando uma tradição poética, literária e retórica, privilegiando as dimensões
subjetivas e afetivas da ação, tendo o espectador como um cúmplice do ato performático -
enfim, um tipo de construção que sinaliza uma retomada de diálogo entre o diretor e o
espectador. Por não manifestarem uma vontade de ‘transmissão do puro em si’ “(...) esses
relatos não querem ser verdadeiros nem falsos; atravessam esse eixo para direcionar sua
experiência à captura (falsa) do real” (MOLFETTA,2002,p.75). Dessa forma, “(...) seus
vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem
as viveu, seja na qualidade de quem as relata” (BENJAMIN,1987,p.205).
“Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós,
em sua atualidade viva. Ele é algo de distante (...)”(BENJAMIN,op.cit.,p.197), é como
Benjamin nos apresenta o narrador na primeira linha do texto. Isso nos remete, em primeira
instância, a um dado concreto tanto em 33 quanto em Os catadores: são filmes cuja
construção se organiza em função de uma distância temporal entre o presente da narração e
o passado do registro. Conforme visto no capítulo anterior, documentários performáticos
caracterizam-se por um descompasso entre o tempo histórico e o tempo do discurso, o
relato historiográfico posto em suspenso “para assistir ao puro desenrolar poético que
combina as imagens do registro” (MOLFETTA,op.cit.,p.76).
Essa narração fora do tempo de registro insere ambos os filmes numa espécie de
‘jogo’, destacando um mecanismo identificado por Paul Ricoeur como sistema dos tempos
do verbo, uma propriedade da narrativa que permite o desdobramento de um texto em
enunciado e enunciação
249
, instituindo-se uma situação de independência entre as partes,
que produzem sentido a partir de uma articulação. Isso estabelece, como princípio, uma
relação de interpretação subentendida na combinação de texto e imagem. Assim, para
Ricoeur, inseparável do ato de contar está o ato de refletir
250
, onde “o considerar
conjuntamente narrativo implica a capacidade de se distanciar de sua própria produção e
por aí se redobrar” (RICOUER,1995,p.109). Em ambos os filmes, nasce uma relação de
249
Em termos cinematográficos, vamos admitir que o enunciado corresponde à imagem, enquanto a
enunciação ao texto que a acompanha (ou não) o sentido
250
Para Ricoeur, o ato que precede um discurso é um ato judicatório, que consiste em numa ação de
julgamento que faz parte da produção do discurso
131
ambivalência da relação entre texto e imagem: são relatos de uma experiência atravessados
por uma distância que preserva o sentido crítico. Entretanto, a distância do narrador se opõe
radicalmente à do cronista ou mesmo do romancista; as tintas da narrativa são alimentadas
por um conhecimento “tecido na substância viva da existência” (BENJAMIN,op.cit.,p201),
a qual Benjamin denomina sabedoria.
Essa concepção de sabedoria – conforme a frase de abertura deste capítulo – passa
necessariamente pelo processo de invenção da atividade de narrar. Uma vez que a sabedoria
é construída a partir daquilo que se depreende da experiência, acreditá-la como ‘o lado
épico da verdade’ implica admitir narrativas como textos coloridos pelo enriquecimento
dessas experiências
251
. Ao escrever sobre a poesia épica
252
, Aristóteles identificava nessa
composição elementos de catástrofe, peripécias, belezas de pensamento e elocução. E mais:
“(...) na epopéia, porque narrativa, muitas ações contemporâneas podem ser
apresentadas, ações que, sendo conexas com a principal, virão acrescer a
majestade da poesia. Tal é a vantagem do poema épico, que o engrandece e
permite variar o interesse do ouvinte, enriquecendo a matéria (...)”
(ARISTÓTELES,1973,p.466)
253
Isso nos leva à seguinte expressão: a narrativa pode ser compreendida como um
texto colorido pelo relato da experiência em primeira pessoa; esse relato corresponde a uma
invenção particular, que se destaca de um conhecimento mais amplo e genérico – uma
regra ou um código. Essa invenção, singular e intransferível, é fundamental para a
compreensão dos filmes performáticos, que “dão ênfase extra às qualidades subjetivas da
experiência (...) que provém do ato de contar um fato’ (NICHOLS,2001,p.131). Bill
Nichols vai perceber no documentário performático essa concepção de tecitura sobre a
substância viva da existência que alimenta a figura do narrador. A erosão das fronteiras
entre representações pessoais e políticas, entre documentário e ficção, no performático vai
surgir exatamente do desvio de referencial do mundo para o narrador. Toda linguagem
(subjetiva) que se desenvolve nestes filmes sugere a incorporação do sujeito como
elemento central. O documentário performático reedita os narradores de Benjamin por um
251
Mais uma vez, relembramos Bérgson, para quem ‘imaginar não é lembrar-se’ (capítulo V)
252
A poesia épica é identificada basicamente como a narrativa de epopéias e de grandes heróis.
253
Grifos meus
132
processo de ressemantização e trucagem: 33 é uma narrativa dissimulada em romance;
Os catadores e a catadora, uma crônica disfarçando a narrativa. É o que estaremos
analisando a seguir.
2) DOIS FILMES, DUAS PERFORMANCES, DOIS MUNDOS, UM MODO
Existem inúmeras coincidências e divergências entre 33 e Os catadores, o que nos
permiteu reuni-los num mesmo capítulo. Os dois filmes dialogam com a questão do
tempo: a narrativa do filme de Kiko está situada dentro do período pré-estabelecido para o
desenvolvimento do Projeto
254
; há uma certa relação esotérica que organiza algumas
‘coincidências’
255
; o fio narrativo se desenvolve no ajuntamento das ações em períodos de
três dias
256
. Já em Os Catadores, o tempo é o leitmotif da diretora na perseguição de um
significado para a atividade de ‘catação’. Capturando e montando imagens durante toda
uma vida, Varda hoje, envelhecida, constata que a apreensão de imagens corresponde sua
forma de relacionamento com o mundo; é, também, sua forma de permanecer no mundo
257
.
Existe, acima de tudo, uma sensação legítima de prazer nessa captura, evocado na redenção
que a diretora faz à pequena câmera digital
258
.
Ambos os documentários estão centralizados na construção de um processo de
auto-narração; processo sublimado pela invenção ressemantizada de formatos e
personagens. Kiko é um detetive; Varda, uma catadora; funções que atravessam os
realizadores sem, no entanto, anular suas personalidades. O filme de Goifman é um
documentário travestido em uma estória de detetives. O de Agnès Varda, um documentário
254
“Quando as coisas estão quentes, o cliente paga o combinado e interrompe a busca. O cliente que inventei
foi o tempo.” (texto retirado do filme)
255
E por que 33? ‘Como fui adotado por uma mãe judia, não morro de amores pela
idade de Cristo quando morreu. (...) Mas o fato é que minha mãe adotiva nasceu em
1933 e eu acabei de fazer 33 anos’ ” (trecho da reportagem escrita por Ivan Finotti e
publicada no extinto diário eletrônico No Ponto (www.no.com.br) em 9 de setembro de
2001.
256
Assim, ‘micro-estórias’ são organizadas nos relatos dos dias 3, 6, 9, 12, 15, 18, 21, 24, 27, 30, 33 do
Projeto, dentro do mês de setembro do ano de 2001.
257
Para mim, que não tenho muito boa memória, quando regressamos de viagem, é o que rebuscamos que
resume toda viagem” (texto do filme)
258
A câmera utilizada por Varda (popularmente conhecida como ‘mini DV’ se tornou um equipamente
altamente notório na produção de documentário contemporâneo, muito em função do barateamento dos custos
mas, principalmente, por aumentar o acesso no momento da filmagem – por serem muito menores, discretas e
de fácil operação.
133
disfarçado em reportagem
259
. O tratamento do discurso que permite essa transformação
é o formato performático que se imiscui na proposta – especificamente, na forma de
inscrição dos realizadores na narrativa.
Para Bill Nichols, o documentário performático restabelece uma forma de estar-no-
mundo que pode ser compreendida nos fragmentos reunidos pelo sujeito-construtor. Essa
fragmentação é característica da composição dos personagens e na forma de abordagem
dos temas em ambos os filmes. Memória, envolvimento impulsivo, valores e crenças se
tornam as estratégias de mediação entre o sujeito e o mundo. Essa construção no ato da
compreensão necessariamente localiza na experiência o espaço da referência dos filmes.
Ao caracterizar a predominância da auto-narração do sujeito como elemento construtivo
dos documentários performáticos, Nichols se refere a esse processo de auto-inscrição,
instalado na estória do sujeito narrador; processo que implica diluições de fronteiras
pessoais e políticas, de ficção e documentário.
33 (2001), de Kiko Goifman, é o relato da busca do diretor por sua mãe
biológica
260
. A busca foi cumprida a partir do estabelecimento do seguinte dispositivo:
Kiko determinou um prazo (33 dias) e uma metodologia (investigativa), através dos quais
iria balizar seus procedimentos na tentativa de localização da mãe biológica. O filme
organiza a narrativa na passagem cronológica do tempo, onde se desenvolvem as
entrevistas e os processos de busca em arquivos, hospitais e prédios antigos - que decorrem
do cruzamento das informações obtidas. Essa linearidade é pontuada por imagens captadas
pelo próprio diretor da cidade de Belo Horizonte à noite; especificamente, têm a função de
ambientar o contexto, emprestando um humor noir ao documentário. A narração é feita
pelo próprio Kiko, na maior parte do tempo em off.
A primeira providência do diretor foi a incorporação de um papel: ele se tornaria
um detetive
261
– e, para isso, sua ação se concentrou na investigação das metodologias e
estratégias utilizadas por estes personagens. As outras informações são obtidas através de
259
Ficamos tentados a qualificar a atitude de Varda como a de uma ‘repórter’, visto que os procedimentos são
‘superficialmente’ os mesmos. Entretanto, chez Varda, esse nunca seria um procedimento ‘inocente’, gratuito
ou preferido.
260
Essa busca não é catalisada por um processo de descoberta. Kiko sempre soube que foi adotado (tem uma
outra irmã, Márcia, que também é adotada).
261
Escolhi um caminho torto: fui até o escritório de alguns detetives para pedir dicas.
Começava ali a minha conversão em um desconfiado compulsivo.” – texto do filme
134
entrevistas realizadas com familiares: a mãe, a irmã, a tia e uma babá
262
; o porteiro do
prédio onde aconteceu a adoção; com o médico que intermediou a adoção; o diretor da
Santa Casa de Misericórdia
263
à época da realização do filme; com a parteira que trabalhava
na Santa Casa em 1968 e, por fim, com o filho da ‘senhora espírita’ que mediou o contato
entre as mães adotiva e biológica de Kiko
264
. Houve, ainda, um jogo com a mídia: durante a
realização do “Projeto 33”, Goifman manteve um diário on-line; aconteceram também
participações em programas de entrevista e jornais eletrônicos
265
.
A principal característica de 33 é o cruzamento do processo investigativo de busca
pessoal com uma invenção narrativa ficcional de suspense noir. Ao incorporar técnicas e
estratégias de detetives inspirados na ficção, Goifman necessariamente retoma o conteúdo
de sua vida e, ressemantizando-o, recria sua própria existência, se torna, assim, ele mesmo
um personagem de ficção, incidindo sobre uma representação para além de qualquer
conceito de verdade, mas que pode ser descrita como uma experiência subjetiva.
Os catadores e a catadora (2000), de Agnès Varda, guarda uma relação afetiva
dupla no seu processo de realização, já que é tanto uma busca por uma definição conceitual
quanto um projeto de definição pessoal e profissional. Na verdade, essa procura encobre a
forma como a diretora enxerga o métier de sua profissão, e como isso se reflete na pessoa
que conta essa estória. As duas propostas giram em torno de uma só palavra: ‘catação’
266
.
Da mesma maneira que no filme de Goifman, Os Catadores também trata da busca de um
‘sentimento’ de identidade; uma vez que ser cineasta significa ser ‘catadora’, quais as
extensões e implicações desta palavra? Se definir como ‘catadora’ é a condição para que
Varda se lance estrada à fora. No que procede a essa exploração investigativa, se desloca
para o centro do documentário, reinventando-se e, no processo, transformando a própria
262
O pai de Kiko, Jayme Goifman, ‘comunista de carteirinha’, faleceu em 1998.
263
O hospital onde Kiko nasceu
264
Na verdade, houve mais contatos: com a síndica do prédio onde ele foi adotado, com enfermeiras da Santa
Casa, auxiliares de pesquisa da Memovip (onde ficam os arquivos do hospital), entre outras. Mas apenas estas
constam no filme
265
Os diários foram publicados no extinto jornal eletrônico No Ponto (www.no.com.br). O Fantástico da Rede
Globo apresentou ‘versões’ do documentário durante o processo de realização. Essas edições, com uma
estética diversa da montagem final – usam letreiros e a narração de um ator da casa (Francisco Milani) -
foram incorporadas ao filme como uma apresentação do documentário, uma vez que as inserções na mídia são
parte da estratégia do argumento narrativo. Essa estratégia se revelou produtiva, pois várias pistas surgiram de
pessoas que tomaram conhecimento do projeto pela TV ou Internet.
135
catação numa possibilidade de acesso a si mesma. Isso cria uma ligação entre o sentido
etimológico da palavra
267
e a concepção da diretora, sua busca por uma auto-definição. O
processo de criação no documentário performático - retornando a Nichols - é percebido
como esse movimento de dentro para fora realizado: Varda se expõe, se assenta no
contexto organizando um significado a partir das situações em que se envolve, traçando
observações sobre o mundo a partir de questões a respeito da própria magnitude pessoal.
Ao se inscrever no documentário como uma catadora, Varda estabelece como
regra
268
uma equivalência entre as formas de catação. Isso coloca num mesmo nível
moradores de rua, ciganos e sem teto das comunidades rurais; proprietários de plantações,
empresários e donos de vinícola; artistas plásticos, escultores, recicladores, até um chef de
cozinha e um biólogo. Mas diferentemente de 33, as informações que se acumulam sobre
os vários tipos de catação não se acrescentam ou somam prevendo uma conclusão. Os
encontro e as informações obtidas se esgotam em si
269
. É uma construção fragmentária
onde cada fragmento é elevado à potência do valor afetivo que carrega. Essa afetividade
pode ser comprovada na forma como Varda opta por se auto-inscrever - um conjunto
eclético de fragmentos movidos pelo sentimento de afeto, completamente desvinculados do
sentido original da atividade de ‘catação’: esculturas em praça pública, gatos de estimação,
lembranças de viagem, obras de arte, e sobretudo, um relógio sem ponteiros encontrado no
lixo. Isso porque Os catadores é um também um filme sobre o envelhecimento e as formas
de se lidar com as limitações do tempo. Assim, realizamos que cada descoberta da diretora
vale menos pelo seu conteúdo que pela própria experiência do prazer em descobrir e
relatar; uma certa desobrigação com o mundo como legado da velhice.
Em artigo publicado no caderno “Ilustrada” do jornal Folha de São Paulo (14/3/04),
o crítico e escritor Jean-Claude Bernardet aclamou 33 como parte de um novo modo de
266
O título original do filme, “Les glaneurs et la glaneuse”, não oferece uma tradução literal em português; a
versão utilizada é uma tradução possível. Na tradução do documentário lançado em Portugal, cuja fita foi
utilizada para essa dissertação, o título se transformou em “Os respingadores e a respingadora”.
267
De acordo com o dicionário Larousse, a atividade de ‘catação’ (glaner) significa ‘recolher as espigas (de
milho) que permanecem no solo após a colheita’
268
Não é uma regra escrita, mas perceptível no decorrer do filme
269
A título de comparação, poderíamos citar os filmes do documentarista Michael Moore, que desenvolvem
um corpo de conhecimento que se agrega a um tema central.
136
realização, uma nova linha possível: o documentário de busca
270
. Implícito neste
conceito, escreveu Bernardet, está uma idéia de experimentação e de verificação de
hipóteses, onde o que “se transforma é a própria postura do documentarista”
(BERNARDET,2004,pE6). Há no filme, continua o crítico, uma certa coincidência entre o
que seja o processo de busca, o processo de preparação e a própria realização. O
‘personagem’ Kiko Goifman surge da articulação desses procedimentos, criando uma
ficção característica do cinema documentário. Como escreveu o crítico João Carlos
Avellar, “a investigação que (Kiko) realiza só é possível no cinema, (...) o que pretende
documentar só é possível de ser documentado na fronteira entre o registro, a observação, a
pesquisa, o documento e a ficção” (AVELLAR,2004,p.89). Para Bernardet, 33 sinaliza um
momento de crise das representações; e o tipo de personagem criado por Goifman (o
diretor/personagem/narrador ) uma ‘instituição’ possível que reconhece os limites e
extensões da auto-representação.
De forma bastante semelhante, Os catadores também aponta para um sintoma da
crise de representação: a interferência do suporte na produção da mensagem
271
como fator
inexorável da exploração do tema. Para o crítico Bruno Cornellier, trata-se de um “cinema
reflexivo renovado por seu meio de expressão: a câmera digital”
272
. Acima de tudo, o filme
de Varda aponta para o equipamento digital como uma forma soberana de catação. E o
principal objeto dessa ‘colheita’, a própria diretora - imagens que têm como finalidade a
auto-inscrição e a auto-representação. Seu elogio às novas, ‘pequenas e geniais’ câmeras
digitais faz contraponto à constatação do próprio envelhecimento: facilidades de registro e
recursos de edição são empregados na apreensão do passar do tempo revelado no corpo da
diretora. Isso torna o tema principal do filme, os catadores, tão somente uma forma de
estabelecer a existência de um mundo onde há espaço para envelhecer – simulacro de um
mundo que, na verdade, descarta aquilo que envelhece. Como escreveu Walter Benjamin,
“o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado” (BENJAMIN,op.cit.,p206).
270
O documentarista parte de um projeto, porém, o filme não está dado logo de início. Depende do
desenvolvimento de um processo, que pode ser muito rico, que pode ser menos rico, levando a este ou aquele
resultado”, do caderno Ilustrada (domingo, 14 de março de 2004, p.E6)
271
Ainda que McLuhan já tenha dito que “o meio é a mensagem”, já vimos que no documentário a força da
imagem sempre fala mais alto
272
La glaneuse et sa caméra: ou la réinscription de la subjectivité par le numérique”, publicado na revista
eletrônica “Cadrage” (www.cadrage.net/films/glaneursetglaneuse/ glaneursetglaneuse.html)
137
Os documentários de busca, assim como os filmes que trazem o questionamento
da própria forma de produção, são assimilados no modo performático de Bill Nichols - na
medida em que também instituem a construção de um conhecimento a partir de dimensões
afetivas, baseado na experiência pessoal. A idéia de um conhecimento incorporado como
forma de acesso a processos mais gerais, a construção fragmentária cuja montagem
obedece uma argumentação afetiva são retomados aqui por Goifman no dispositivo da
narrativa de ficção noir
273
e por Varda, na identificação das novas formas de captação.
Documentários performáticos, escreve Nichols, dão ênfase extra às qualidades subjetivas
da experiência e da memória que se destacam do relato dos fatos.
3) EM BUSCA DE UM TEMPO PERDIDO(?)
“33” - Direção: Kiko Goifman, 75 minutos, 2001, Brasil
Ao analisar o processo narrativo de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel
Proust, Paul Ricoeur chegou à seguinte conclusão: não se trata de uma fábula sobre o
tempo ou de uma auto-biografia; tampouco importa a idéia de que o romance venha a ser
uma inscrição velada do personagem ‘real’ (o escritor) numa estrutura ficcional. Para
Ricoeur, a grande invenção de Proust está na engenhosidade da composição narrativa, que
projeta um mundo no qual o herói-narrador tenta recuperar o sentido de uma vida anterior,
ela mesma inteiramente fictícia porque produto de idas melancólicas em tempos passados.
O elogio de Ricoeur incide, então, na constatação de que “tempo perdido e tempo
redescoberto devem, portanto, ser ambos compreendidos como as características de uma
experiência fictícia desdobrada dentro do mundo fictício” (RICOEUR,1995,p.226). Ou
seja: o uso da primeira pessoa, o mecanismo de auto-inscrição, a projeção de memórias
intimas no texto, por si só não garantem, necessariamente, a construção de um
conhecimento verídico. A verdade, para Ricouer, tem uma relação essencial com o
tempo. Ela é uma repercussão do relacionamento de dois níveis de experiência distintos: o
aprendizado dos signos e a memória involuntária. Se Benjamin estabelece a morte como
a síntese obrigatória, Ricoeur reconhece o imperativo de marcos que permitam ancoragem
273
O repertório do cinema de ficção – em especial o cinema clássico noir – já foi apontado anteriormente
como uma das características formais do documentário performático.
138
de sentido. Por isso, escreve, “é preciso que se represente o ciclo de “Em busca...” como
uma elipse da qual um dos focos é a busca e o outro, a visita” (ibidem,p.227).
De maneira parecida, Kiko Goifman, em 33, vai instituir a busca a partir do
estabelecimento de um dispositivo
274
. Essa procura vai ser construída através de visitas a
marcos no tempo – os personagens que retrocedem no espaço da memória e, ao fazer isso,
revivem o episódio
275
. Necessariamente, essa ‘visita’ insinua uma reinvenção. Entretanto,
diferentemente de Proust, essa invenção aqui é assumida, e, categoricamente é o elemento
que determina a estratégia da narrativa. A partir da constatação desse dispositivo ficcional,
vamos atribuir três características fundamentais para 33 que respondem por uma
‘classificação’ performática: 1) o sentido de compromisso e cumplicidade com o
espectador; 2) a estética noir como figura de linguagem; e 3) a auto-inscrição da imagem
do diretor como elemento subjetivo.
Enquanto a câmera focaliza bustos em bronze do detetive Sherlock Holmes sobre
uma mesa, Kiko nos informa (em off) sobre sua condição de adotado, e como isso repercute
em seu imaginário
276
. A esse breve ‘prefácio’, segue o começo do filme, com o
estabelecimento de um compromisso tanto com a narrativa quanto com o espectador:
“Nove de setembro de 2001. Resolvi remexer no passado e iniciei
a busca da minha mãe biológica. (...) Criei um método, e a partir
dele, um fim: eu tinha apenas 33 dias de busca. Nas manhãs e
tardes, investigações. Nas noites, eu fui atrás de imagens; das
poucas luzes e os vazios.”
No mesmo momento em que estabelece a metodologia do trabalho na banda sonora,
Goifman o faz no plano imagético: enquanto escutamos sua fala, observamos sua imagem
no quarto do hotel – não a imagem do corpo, propriamente, mas seu reflexo na janela –
274
“...arrumei ali um pretexto para o desenvolvimento de uma estória e uma vontade de saber...”Essa fala
consta no filme e faz parte de uma entrevista de Kiko transmitida pela televisão ( no contexto, ele assiste essa
projeção, completamente constrangido, ao lado da mãe, Dona Berta)
275
Há um certo momento no filme em que Kiko, ao encontrar a parteira que trabalhava na Santa Casa à época
do seu nascimento, termina a seqüência com a seguinte reflexão: “Terminei a entrevista com um abraço e tive
a sensação fantasiosa de conhecer aquele calor. “ Não temos uma Madeleine, mas algo bastante similar.
276
“Sempre gostei de falar que sou filho adotivo nas ocasiões mais inesperadas. As
pessoas se sentem escolhidas em ouvir um segredo tão importante. Vejo uma certa
graça nisso. Tenho 33 anos e fui adotado por Berta, que nasceu em 1933. “
139
assistindo televisão, à noite. Essa forma de auto-inscrição vai se tornar o modelo pelo qual
deveremos apreendê-lo durante o filme: uma figura transparente, nebulosa, em busca de um
sentimento de plenitude
277
e cuja imagem jamais pode ser definida como algo concreto.
Tão etéreo quanto as poucas luzes e os vazios que ele informou buscar nas imagens
noturnas.
O reflexo do diretor, espelhado na janela do quarto do hotel, em portas de vidro, na
tela do computador e da televisão, em espelhos de elevadores e retrovisores
278
de carro
domina o filme; responde por uma ‘Identidade-Goifman’, e é decisiva para a compreensão
da forma de inscrição que Kiko opta no documentário. A ela, se pode atribuir a formação
de três identidades correlatas: a de 1) um ser em construção; logo, a transparência evoca a
vulnerabilidade de Goifman durante o processo; ser transparente é não se querer inteiro, é
se deixar atravessar pelo próprio mecanismo da produção
279
; 2) ao revelar seu reflexo
segurando a câmera, ele denuncia a própria investigação como produto cinematográfico (a
investigação só existe enquanto filme)
280
e; 3) ao se revelar como o ‘dono’ do olhar da
câmera, Goifman revela seu ‘duplo’: ele não apenas é o sujeito-personagem, mas aquele
que comanda a direção do olhar
281
.
José Avellar, ao analisar o documentário, comenta que o grande diferencial de 33 é
o desafio que se propõe a uma metodologia tradicional, consolidada em torno da filmagem
do outro. Ao se colocar para o centro, Goifman automaticamente assume o papel desse
outro; ao se tornar outro, revela a câmera como o instrumento dessa duplicação. Assim, a
única representação possível – característica fundamental do performático – é a
impossibilidade de uma representação onde não caiba a própria entrega dos mecanismos de
produção. Ao escolher representar-se como um reflexo de sua imagem ‘real’, Goifman
desloca não apenas o olhar sobre si, mas também o do espectador. Em 33, não apenas o
texto é uma narração em 1ª pessoa; também a câmera, em muitos momentos, funciona
como uma ‘primeira pessoa’; a sensação é a de que somos nós, espectadores, que
277
Novamente, lembramos que uma imagem de busca por plenitude faz parte da mise-en-scène do diretor.
278
A imagem do diretor tamm é vista a partir de sua sombra – uma variante do reflexo, tão etérea quanto
279
O que repercute a fala de Bernardet, que sugere a incorporação da preparação do filme como elemento
fundamental neste tipo de documentário.
280
Sobre o processo de revelação do registro, há uma passagem memorável no filme Grey Gardens, dos
irmãos Albert e David Maysles (vide nota 21 do capítulo 1)
140
incorporamos a identidade do detetive. Mas a imagem refletida, a todo instante, vem
lembrar que existe alguém por trás desse olhar
282
. Assim, estamos sempre diante de uma
perturbadora sensação de incerteza, entre uma postura de espectador câmera e a
cumplicidade com o homem câmera.
Esse deslocamento da primeira pessoa, oscilando entre movimentos de câmera e
narrações em off, responde pela estética noir da narrativa, que não apenas repercute na
construção
283
, mas no próprio sentido da investigação. Na interessante pesquisa sobre o
gênero noir
284
, Gomes de Mattos relacionou características fundamentais dos filmes
285
, que
ressoam nas escolhas estéticas de Kiko Goifman. Nas narrativas noir, o protagonista está
sempre à mercê dos caprichos do destino, vivendo situações angustiantes; freqüentemente,
se depara com uma sensação de impotência frente a essas situações
286
. Há, em 33, duas
sequências que evocam essa sensação: elas se passam em um mercado e em uma galeria,
onde Kiko, num intervalo da investigação, informa ir ‘esfriar a cabeça’. Enquanto a câmera
percorre corredores e espaços mal iluminados, produzindo imagens trêmulas e
desequilibradas
287
, ouvimos fragmentos das entrevistas feitas até aquele momento; são as
frases mais marcantes que ficam ecoando na memória do ‘detetive’, como se fossem
pedaços de um quebra-cabeça em processo de montagem.
Tramas noir se desenvolvem em seqüências de entrevistas, cujas interrogações
devem conduzir à solução do caso. Em 33, os planos das entrevistas são realizados em
close ou em ‘plano americano’
288
, circunscrevendo os personagens em estereótipos: o
detetives, a dona de casa (a mãe), a cartomante (a babá), a mulher misteriosa (a ‘espírita’
281
É uma forma de duplicação diferente daquela do filme de Manoel de Oliveira. Em ‘Porto’, a duplicação
tinha como objetivo um deslocamento temporal que possibilitava falar do Porto novo e Porto antigo. Aqui, é
uma duplicação que legitima o personagem ‘detetive’ que Kiko está encarnando.
282
Além da imagem, a presença de Kiko também se evidencia quando, durante algumas entrevistas, os
entrevistados se dirigem ao ‘Kiko’.
283
Através de tons da fotografia, iluminação, escolha de imagens e música.
284
“O Outro lado da noite: o filme noir”, de A.C. Gomes de Mattos.
285
Há uma interessante coincidência entre os filmes noir e o documentário: segundo Gomes de Mattos, ”seu
desenvolvimento completo (...) só pode se dar com os progressos técnicos feitos durante a 2º GM, com o
aparecimento de câmeras mais leves tipo Arriflex ou Cunningham, que deram aos cinegrafistas a capacidade
de filmar de posições antes consideradas impossíveis e com maior mobilidade.” (p.45). O desenvolvimento
dos cinema direto e verdade – momento de transição da história do documentário – também passa por aqui.
286
“(...) Me sentia num jogo. Quando achava que estava perto, me enganava” – fragmento de 33
287
Com mau enquadramento, desvios e paradas bruscas, closes e planos abertos rápidos.
288
A idéia é que o plano seja dominado pelo depoimento, sublinhando sua importância
141
que intermediou a adoção), a mulher que guarda um segredo (a tia), as fontes que fazem a
mediação (o porteiro do prédio), entre outros.
Os ‘cenários’ de 33 também são construídos obedecendo à cartilha noir. O ‘pano de
fundo’ da ação é a grande cidade, filmada com tons expressionistas, na maior parte do
tempo à noite e em preto e branco. Para Mattos, “a grande cidade é um lugar inquietante,
com seus becos e ruas escuras invadidas pela neblina ou molhadas pela chuva”
(MATTOS,2001,p.42); o que se enquadra nas imagens de ruas desertas sob a chuva e a
neblina, carros e pedestres solitários, luminosos piscando, panorâmicas do céu escuro ou
iluminado por relâmpagos, da vista da cidade noturna (de dentro do apartamento), becos,
pequenas ruas escuras iluminadas pelos faróis do carro, esquinas e galerias desertas. O
clima de mistério é reforçado por uma profusão de signos noir na decoração (cortinas
esvoaçantes, venezianas e luminosos), no figurino
289
e nos acessórios (cartas, mesas de bar,
cigarros, cinzeiros, copos
290
). Os ambientes (quartos de hotel, corredores, salas) são
predominantemente escuros e mal iluminados, o que cria uma forte oposição quando
surgem os planos filmados durante o dia. Aliada aos cenários lúgubres, a narração em off,
determinante na estética noir, em retrospecção, em 1ª pessoa e em tom reflexivo. Para
Mattos, ela é uma síntese da desorientação do protagonista, evocando um traçado de
estados mentais, retrospectos e pontos de vista subjetivos, “constituindo um desafio à
descrição, ‘invisibilidade’ e ilusionismo do estilo clássico.”(ibidem,p.44)
291
. A idéia de uma
narração que contesta a invisibilidade do narrador está de acordo com os princípios do
documentário performático.
Bill Nichols escreve que, nos documentários performáticos, a inscrição subjetiva do
sujeito narrador compreende a convergência de um sistema de signos codificados
292
. Em se
tratando de “33”, são estabelecidos códigos
293
que indicam o sentido das imagens, mas que
289
Aguardei por pouco tempo. Uma porta se abriu. Pelo cigarro na mão e jaqueta de
couro, tentei: “Dr. Ricardo?” Era ele. Na mosca” – fragmento de “33
290
Os planos com os acessórios noir são definitivamente influenciados pela técnica de profundidade de campo
de Welles (notadamente, lembramos do 1º plano da seqüência do suicídio de Susan). A câmera fica sobre a
mesa, filmando apenas os objetos citados. Vale lembrar que o próprio Welles é considerado um ‘precursor’ do
gênero noir (Mattos)
291
Já comentamos, anteriormente, das propriedadas da distância do relato. Especificamente em 33, essa
filosofia é aproveitada pela estética noir.
292
Em “Proust e os signos”, Gilles Deleuze relaciona os signos diretamente com a atividade do aprendizado;
“os signos são objetos de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato” (p. 4)
293
“(...) o filme noir é um gênero de filme policial, extremamente codificado quanto aos seus personagens, à
sua luz, aos seus temas” (Bernardet)
142
estão orientados para a construção do discurso pessoal. Para Nichols, isso provoca uma
distorção na autenticidade histórica dessas imagens, ressemantizadas e rearranjadas
segundo um princípio singular. Segundo Gomes de Mattos, “as histórias contadas do ponto
de vista do detetive particular (...) inclinam-se para um tom mais subjetivo e uma textura
mais complexa e febril, como reflexo da personalidade emotiva e neurótica do
protagonista.”(MATTOS,op.cit.,p.42).
Na qualidade de ‘documentário performático’, é essencial que o Projeto não chegue
a uma conclusão, que não tenha um FIM
294
concebido – isso porque 33 não é um estatuto
histórico, mas um recorte no tempo. Benjamin sinaliza essa como a grande diferença entre
o romance e a narrativa: “o romance (...) não pode dar um único passo além daquele limite
em que, escrevendo (...) a palavra FIM, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma
vida” (BENJAMIN,op.cit.,p.213). 33 é, na verdade, uma narrativa oculta sob uma
aparência de romance. Isso lhe permite ir além de qualquer fim – exatamente porque não há
possibilidade de fim
295
. Não há uma reflexão sobre o sentido da vida, mas uma moral da
estória: a frase que abre este capítulo. Exatamente, onde tudo começou.
4) ‘LA VARDA’ BORRALHEIRA
Os catadores e a catadora - Direção: Agnès Varda, 82 minutos, 2000, França
“Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das
circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir” (BENJAMIN,
op.cit.,p.205). Palavras que certamente estão na origem do filme de Agnès Varda: “G. De
glanage (catação)
296
. Ou seja, catar. Glanage significa apanhar os restos após a colheita.
294
Kiko não acha a mãe. O mais próximo que chega é de um advogado, Dr. René Bittencourt, filho da
senhora espírita que intermediou sua adoção. Este lhe informa que a mãe já morreu, e que tirou mais de 3000
crianças da rua – o que torna o processo de busca praticamente inviável.
295
O próprio diretor faz essa indicação num dado momento do filme, se endereçando à câmera; “Eu pensei
como último plano desse documentário, o seguinte: eu sentado, aí a Claudinha vai lá e fala com a mãe. Mas
fala (...) e dá um jeito que ela venha em minha direção. Só que aí eu paro. Eu paro e ela passa direto. Isso é
fundamental, ela passar direto. O encontro ia ser o extremo do melodrama, (...) pra quê o encontro? Tá nítido
que eu vou encontrar. Depois, o que eu vou fazer é problema meu. Já não interessa mais pra quem ta
assistindo
296
Vide nota 25. Uma tradução para glanage é bastante complicada, porque não há o termo em português. O
título do filme, quando apresentado nos festivais do Brasil foi o utilizado nesta dissertação. Porém, a versão
utilizada na fita assistida para a redação do texto foi uma versão lançada em Portugal, cujo título ficou sendo
“Os respigandores e a respingadora”
143
Catador, catadora é aquele ou aquela que apanhar restos”
297
. Uma imagem: o tomo do
dicionário Larousse que corresponde à letra “G”; a página da definição de ‘catação’ sendo
percorrida pela câmera em close
298
; e um gato de estimação roçando a folha. “Outrora,
eram sempre respingadoras. As mais célebres, pintadas por Millet, foram reproduzidas nos
dicionários. O original encontra-se no museu d’Orsay”. Da imagem da reprodução em
preto e branco no dicionário, segue-se uma mudança precipitada para um plano aberto do
museu; logo em seguida, a câmera enquadra a obra original, cercada por vários turistas.
Em pouco mais de 3 minutos, assim como Kiko em 33, Varda revela o objeto do
filme e sua metodologia de trabalho. Porém, diferente de Goifman – oriundo da tradição do
cinema etnográfico e da vídeo-arte – seu compromisso com o público é estabelecido na
edição lépida que coleciona fragmentos de imagem. O dicionário e o gato
299
: o tema e sua
diretora. Fica inscrito na tela que a forma como Varda se dá a conhecer é através dos signos
que a codificam. Ao longo do documentário, não teremos sua presença física
300
como um
tótem da autoridade, mas apenas uma sugestão daquilo que se pode tomar por ela: batatas
em forma de coração, gatos domésticos, lembranças de viagem, obras de arte, plantas, o
mofo no apartamento e caminhões em estradas, além da própria imagem das catadoras.
Além do sistema icônico, Varda também se revela no relacionamento que estabelece com
algumas das imagens registradas em ‘cumplicidade’ com a câmera
301
. “Os catadores” se
organiza sobre o relacionamento que Varda desenvolve com as pessoas e com o mundo a
sua volta; é também sua forma de inscrição sob os signos do tempo e do cinema.
“A alma, o olho e a mão”, escreveu Benjamin, “estão assim inscritos no mesmo
campo. Interagindo, eles definem uma prática” (ibidem,p.220). Ao instituir a morte do
297
Fragmento do filme. Todas as vezes que uma citação se encontrar entre aspas sem referência, é porque se
refere a um extrato do filme. Optamos assim em função de evitar maiores desvios para leituras de rodapé;
utilizamos o termo respingar para acompanhar as legendas da cópia (vide nota 26)
298
Kiko tamm usa um plano similar: quando vai buscar os nomes dos possíveis moradores do edifício em
que foi adotado, após mostrar a imagem que identifica o Índice Telefônico de Belo Horizonte (1968), a
câmera percorre primeiro as páginas para, logo em seguida, se deter na página e percorrer os nomes possíveis.
299
Varda adora gatos - eles estão por toda parte.
300
Varda aparece como uma autoridade apenas em um plano do filme. Enquanto come uma fruta direto do pé,
faz o seguinte comentário: “Olhem para isso, a natureza é maravilhosa. Prontinho para ser comido(...)
Ficamos divididos entre nos metermos no assunto que de fato não é da nossa conta. Eles têm o direito de
fazerem dos seus frutos o que quiserem (...)”. Esse plano é importante porque se o documentário por vezes
assume um tom de denúncia, aqui ele se assume como um procedimento ‘intrometido’, e retorna à idéia da
catação.
144
narrador, Benjamin afirma que foi exatamente essa a prática eliminada. Não apenas porque
não se contam mais boas estórias - mas sobretudo porque “na verdadeira narração, a mão
intervém decididamente com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que
sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito” (op.cit.p.221). Em Os Catadores, a
inscrição do corpo físico da diretora é marcada sobretudo pela filmagem das mãos
302
mãos que apanham batatas podres no campo sob a vigilância da câmera, mãos que brincam
de apanhar caminhões na estrada, mãos que recolhem objetos na rua, mãos que lançam
almofadas sobre cadeiras abandonadas, resgatadas das calçadas. É também a mão a
principal chave para a percepção do passar do tempo: “Entrar no horror, acho isso
extraordinário. Tenho a sensação de ser um animal. É pior que isso: sou um animal que não
conheço”, narra ela, enquanto filma sua mão em close. Com Os catadores, a diretora
resgata os dois narradores benjaminianos – o marinheiro e o camponês – e os articula numa
performance que forja o limite dessa relação: a morte. Entretanto, no filme, Varda recusa
uma idéia de morte e prefere, à ela, o confronto com o tempo que passa.
Walter Benjamin elege a morte como a única forma de encerramento de uma
narração. É o momento onde todo o conhecimento pode ser reunido e organizado como
sabedoria. Nos dois filmes estudados neste capítulo, uma morte é ‘ritualizada’ na criação
do espaço cinematográfico, onde, ao mesmo tempo, duas formas de ‘drible’ são
arquitetadas: Kiko determina a duração do Projeto (tudo o que interessa filmar deve
obedecer o limite dos 33 dias). Já Varda opta por um caminho diferente: ela não apenas não
determina o tempo de construção, mas enfrenta esse tempo. Os catadores não é um projeto
conclusivo; se a catação morre um pouco mais a cada dia em sua concepção original
303
,
novas formas reeditam a prática – renascida em moradores de rua que buscam comida nos
lixões, cidadãos que se alimentam de restos de fim de feira, um cozinheiro que busca
produtos frescos para seus pratos, pescadores que recolhem ostras em busca de pérolas,
artistas plásticos que catam matéria prima e inspiração nas calçadas. Na descoberta dessas
301
“(...) vou passear a minha câmera por entre as couves coloridas e filmar outros vegetais que me agradam”;
“(...) neste dia, filmei tesouras que podam a dançar. E esqueci-me de desligar a câmera. Acabamos por ter a
dança de uma câmara de objetiva”
302
Vide a frase da abertura
303
Para a definição da catação, vide nota 27. “Se respingar está confinado a outra época, o gesto não mudou
na nossa sociedade, que come até se saciar. Sejam rebuscadores, agrícolas ou urbanos, baixam para se
apanhar(...)”
145
novas formas de catação, a própria Varda se reencontra e se reedita
304
, comemorando a
redenção através benefícios da nova tecnologia. A partir daí, é como se todo um novo
mundo se abrisse aos seus olhos – estendendo o filme a temas sociais (pessoas que catam
para sobrevivência), econômicos (os desperdícios das grandes empresas), legais (as leis que
regem a atividade da catação e aqueles a ela submetidos), culturais (projetos com material
reciclado) e artísticos (artistas que buscam materiais e inspiração na rua).
Em Os catadores, a câmera digital é tão personagem quanto a própria Agnès Varda;
mais que um suporte do registro, se inscreve como descoberta de uma nova forma de se
relacionar com as imagem: “deixo de boa vontade as espigas de milho para pegar na
câmera. Estas novas câmeras pequeninas são digitais, fantásticas. Permitem efeitos
estroboscópicos, efeitos narcisistas e até mesmo hiper-realistas”. São esses efeitos que
fazem a leitura do tempo no corpo da própria diretora
305
. “Não, não se trata de oh, raiva;
não se trata de oh, desespero; não se trata de olh, velhice inimiga”, diz Varda enquanto a
câmera filma o topo de sua cabeça penteando as raízes brancas que surgem em meio à
negra cabeleira. “Talvez até se tratasse de velhice inimiga, mas ainda assim, tenho meus
cabelos e as minhas mãos que me dizem que o fim está próximo”, continua ela, filmando
em close sua mão; “Um relógio sem ponteiros vinha mesmo a calhar. Não vemos o tempo
passar”, diz ela, em outro momento, em off, enquanto sua imagem desliza por trás do
relógio encontrado no lixo; “Gosto de filmar coisas podres, restos, cacos; coisas com bolor
e lixo”, comenta ao filmar as batatas encontradas no começo do filme – agora envelhecidas
e podres, na cozinha de sua casa. Assim como todos os encontros registram pessoas que
praticam a catação numa solitária busca pela sobrevivência, também ela o faz,
desenvolvendo para a câmera uma performance de sua compreensão do envelhecimento.
De uma forma curiosa, Os Catadores é um documentário performático que funciona
às avessas: ao se deslocar para o centro do filme, Varda não se transforma em porta de
acesso para conhecimentos do ‘misterioso mundo’ da catação. Ao contrário: é a própria
304
“Na cidade como no campo, ontem como hoje. (...) O que reparei ao filmá-los é que cada um o faz sozinho
ao contrário das pinturas de antigamente onde se via sempre grupos e raramente alguém isolado. Em todo
caso, existe uma que ficou célebre: é a de Julles Breton que está no museu de Arras.
Chegamos à cidade de Arras, vimos a sua praça, o seu museu e “A respingadora”, de Julles Breton. A outra
respingadora, é a do título desse documentário: sou eu”
305
Varda ilustra com imagens os tipos de efeito proporcionados pela câmera; em um deles, ao virar para si
um espelho de mão, surge o reflexo é uma pintura moderna no lugar do rosto da diretora.
146
atividade da catação que revela a diretora
306
; o tipo de linguagem que daí decorre -
ensaística, poética, expressionista e pessoal - é canalizado para a construção da auto-
representação. Segundo Nichols, documentários performáticos “(...) propõe uma forma de
estar-no-mundo como se esse mundo fosse (...) trazido à existência através do próprio ato
da compreensão, abduzido através de fragmentos” (1994,p.102)
307
. Por isso, o que menos
importa em “Os catadores” são as informações objetivas do processo da catação; o
verdadeiro conteúdo é a construção do auto-retrato da diretora. Por isso também cabem no
filme estórias que nem sempre estão ligadas à catação, como o casal nas ruas de Paris que
narra o dia em que se conheceu, ou mesmo o proprietário de um vinheiro que entabula com
Varda uma conversa sobre sua concepção psicanalítica-filosófica.
“A curiosidade inesgotável, o gosto por tudo que fosse novidade e extravagante, e a
vontade de apoderar-se daquilo que deve pintar são traços característicos de toda a
carreira
308
. Essa frase poderia ser um epíteto de Agnès Varda, mas foi escrita por Stefano
Zulfi em referência a Rembrandt, cuja obra é marcada por uma busca da expressividade
através das obras. Para o Rembrandt, a arte era, por excelência, o campo da figuração. Em
suas obras, destaca-se um precioso incorporar de detalhes nos corpos dos modelos e nas
situações. Retornando de uma viagem ao Japão (“para mim, que não tenho muito boa
memória, quando regressamos de viagem, é o que rebuscamos que resume toda viagem”),
Varda conta ao espectador ter adquirido vários cartões- postais de um dos auto-retratos do
artista, juntamente com outros de Saskia, esposa de Rembrandt. Diz ela, enquanto
observamos suas mãos manusearem os cartões: “numa grande loja em Tóquio, havia
Rembrandts verdadeiros (...) Saskia, em pormenor. E a minha mão em pormenor ”. Essa
poderia ser uma espécie de síntese do projeto de Varda: ao filmar uma mão com a outra,
produz intensa reflexão sobre os pormenores que respondem pela construção fragmentada
de cada um. Especificamente, a dela mesma.
“E aqui, temos o auto-retrato de Rembrandt. E, de fato, é isso mesmo: um auto-
retrato”.
306
“Para rebuscar imagens, sensações, emoções, não há legislação. E no dicionário, rebuscar, no sentido
figurado, é utilizado nas coisas do espírito: rebuscar fatos. Rebuscar fatos e gestos, rebuscar informações.”
307
“(...) para mim, que não tenho muito boa memória, quando regressamos de viagem, é o que rebuscamos
que resume toda viagem”, fala Varda. “Quando regressei do Japão, rebusquei minhas lembranças na minha
mala”
308
“Rembrandt: o mais importante herege da pintura”, de Stefano Zulfi
147
VII
A FACE OCULTA DO PERFORMÁTICO: PÓS-MODERNIDADE NA FRONTEIRA
ENTRE FATO E A FICÇÃO
Nick’s Movie – Lightning over water
“Eu estava ficando muito confuso; alguma coisa
estava acontecendo; a cada vez que apontávamos
uma câmera para Nick, alguma coisa que eu não
podia controlar acontecia. A própria câmera
refletia isso quando olhávamos através dela.
Como um instrumento de precisão, a câmera
mostrava claramente e sem piedade que a vida
lhe estava a fugir. Não se via a olho nu, onde
havia sempre esperança – mas não com a
câmera. Não sabia o que fazer, estava
aterrorizado” – Wim Wenders (Nick’s Movie)
“(...) eu olhei para o meu rosto e o que vi:
nenhuma rocha granítica de identidade. Uma
pele de um azul desmaiado, lábios enrugados, e
tristeza. E uma vontade enorme de reconhecer e
aceitar o rosto da minha mãe: Nick, Nick, oh
Nick” – Nicholas Ray (Nick’s Movie)
“Quase sempre, quando falamos de filmes, não é
deles que falamos, e sim dos andaimes
representativos que erguemos em volta deles” –
Jean-Claude Bernardet
309
O crítico Emmanuel Burdeau, em artigo escrito para a revista Cahiers du cinéma
310
,
assinala que, desde o começo, o documentário esteve cercado por dois impasses: ou se
concentrava na produção de um relato justo, que seria o empenho em encontrar a forma
mais adequada de apreender e representar o ‘real’; ou se concentrava na descoberta do
outro, procedimento que inevitavelmente levaria à descoberta de si através desse outro.
Disso resulta a necessidade de optar ou pela forma ou pelo conteúdo. Entretanto, informa
ele, a produção contemporânea de documentários parece correr por fora desse drama. Ou
seja, são filmes que não se distinguem pela defesa das regras formalistas, nem simulam
309
“Caminhos de Kiarostami”, página 16 – vide bibliografia
148
uma distância entre o realizador e o objeto da filmagem. Ao contrário: são filmes que
constroem suas próprias regras no espaço desta distância. Criam, assim, seu próprio
conceito de real; não como referência indexical e inquestionável, mas como um produto da
fricção entre as duas formas de aproximação. Para o crítico, esses filmes concebem uma
diferença fundamental entre realidade (aquilo que está fixado nos registros em película,
fita magnética ou bits e conhecido desde os tempos das primeiras imagens dos irmãos
Lumière) e real (o que se constrói como uma forma de autenticidade do realizador); o
trabalho do filme se cumprindo no questionamento do trabalho filmado. A concepção da
criação de um real não é recente; Hegel já se referia a isso quando afirmava que “uma
verdadeira realidade se situa entre o objeto que vemos diariamente e a sensação
imediata”
311
produzida por essa visão.
Em um dos documentários brasileiros mais discutidos nos anos que decorrem do
período de retomada do cinema brasileiro, onde o documentário ressurgiu despertando um
interesse renovado no público
312
, o filme Ônibus 174 de 2001 se situa numa zona
‘perigosa’, e extremamente representativa dos debates em torno da produção do
documentário contemporâneo: diz respeito à tenuidade das fronteiras entre fato e ficção
na construção de um filme. Por fato, aqui, entenderemos o ‘valor de verdade’ que se agrega
a uma imagens como um ‘saldo’ da superfície enquadrada; por ficção, o processo de
manipulação dos fatos na organização da narrativa. Em depoimento publicado na revista
Cinemais
313
, o diretor José Padilha explica dessa maneira a realização do filme:
“No dia 12 de junho de 2000, a televisão começou a mostrar imagens ao vivo de
um ônibus cercado por policiais numa rua perto de minha casa. Seqüestros
costumam acontecer em locais onde não é possível filmar. Um ônibus, ao contrário,
tem janelas e as câmeras de televisão estavam ali mostrando o seqüestrador com
310
La bonne nouvelle” – Cahiers du cinéma, nº 594 – outubro de 2004
311
Hegel é citado por Linda Nochlin, em seu estudo sobre o Realismo (vide bibliografia): “(...) a arte cava um
abismo entre a aparência e a ilusão desse mundo (...), por um lado; e o conteúdo verdadeiro dos eventos por
outro, para re-vestir esses eventos e fenômenos com uma realidade maior, nascida da mente. .. Longe de
significarem apenas aparência e ilustração da realidade ordinária, a manifestação da arte possui uma realidade
maior e uma existência verdadeira.” (p.14)
312
Em artigo publicado na coluna semana do jornal ‘Valor’ em 31 de outubro de 2002, o jornalista e crítico
Amir Labaki – diretor do festival de documentários ‘É Tudo Verdade’– escrevia que “enquanto o
documentário toma o pulso do Brasil (...) o próprio país aos poucos parece descobrir o gênero”. Labaki
comemorava os bons resultados alcançados por documentários lançados em salas de cinema (‘Ônibus 174’,
"Edifício Master", "Rocha que Voa", "Viva São João", "A Cobra Fumou")
149
um revólver na cabeça das vítimas (...). Quando tudo terminou, o ônibus 174 se
tornou, como o massacre de meninos de rua da Candelária, em 1993, um símbolo
da violência no Rio. Logo, a imprensa descobriu que Sandro, o seqüestrador, era
um dos sobreviventes do massacre da Candelária. Ou seja, uma mesma pessoa
havia vivido duas das mais trágicas histórias da violência urbana no Brasil. Este foi
o meu ponto de partida. Queria contar a história da vida do seqüestrador
paralelamente à história do seqüestro do ônibus. Minha hipótese de trabalho era a
de que estas duas histórias contadas em paralelo iriam mostrar porque e como
meninos de rua se transformam em indivíduos violentos.”
Duas observações de José Padilha são importantes para nós: primeiro, a formulação
de uma hipótese de trabalho
314
e, segundo, a eleição de um ponto de partida, uma
unidade referencial. Necessariamente, tratam-se ambos de procedimentos e escolhas
subjetivas que determinam a organização de uma lógica de pensamento, que podemos
denominar a verdade pessoal do realizador, “(...) que entendo como a correspondência
entre o que o filme diz (as informações objetivas que ele contém) e a realidade que ele
pretende documentar” (PADILHA,2003,p.60). Entretanto, por escolhas de estilo e
aproximação, “Ônibus 174” não se identifica com os documentários performáticos. A
organização do filme estabelece a construção de uma memória fora do diretor, partindo da
justaposição de imagens e vozes que privilegiam uma relação de indexicalidade com a
origem do registro
315
; assim a lógica subjetiva - típica dos procedimentos de montagem -
permanece encoberta. Por isso, enquanto espectadores, somos induzidos a assimilar a lógica
do diretor na qualidade de conhecimento objetivo. Ou seja, estabelecemos nossa visão do
mundo, ou de determinado acontecimento, a partir da versão da estória que está sendo
apresentada. De forma geral, o documentário vem funcionando assim durante décadas.
Ao conceber o livro Blurred Boundaries, onde consolida a identidade do modo
performático, Bill Nichols distingue como conseqüência da enorme quantidade de notícias
que chega até nós diariamente, o aumento exagerado de uma fome de informação sobre o
mundo. A cada dia, desenvolvemos um desejo ainda mais intenso em saber mais sobre o
mundo onde habitamos. Diante dessa constatação, somos bombardeados incansavelmente
313
Revista Cinemais nº36 (‘Objetivo Subjetivo), p.69
314
Além de documentarista, José Padilha é formado em física, o que explica o uso de uma terminologia típica.
150
por um incomparável e veloz fluxo de imagens e informações. No rastro desse processo,
uma série de questões, até então consideradas estáveis e fundadoras – a distinção entre fato
e ficção, o estabelecimento de marcas referenciais, formas históricas de conhecimento -
começam a incorporar um feitio híbrido e fluido. Isso porque, explica Nichols, nós
queremos, sim, notícias sobre o mundo que nos cerca, mas “nós as desejamos na forma de
narrativas, de estórias que façam sentido” (NICHOLS,1994,p.ix). Seja no cinema, na
televisão, no vídeo, no rádio ou na Internet; nos programas jornalísticos ou nos reality
shows; é preciso narrativizar o real, criar uma possibilidade de identificação que funcione
como uma chave ou uma entrada.
“Estórias oferecem estruturas; elas organizam e ordenam o fluxo dos eventos; elas
conferem significado e valor. Mas estórias não são fenômenos que acontecem
naturalmente” (ibidem,p.ix). Para Nichols, estórias são produtos culturais e históricos.
Narrativas são, assim, organizações de fenômenos que se constatam em espaços da História
e nos tempos da Cultura. Mas, sobretudo, estórias são produtos de sujeitos e suas
experiências, localizados no tempo e no espaço – são produtos de uma ficção particular.
Essa diferença, sutil, se torna importante na medida em que o desvio produzido pela
interpretação particular se aproxima de uma questão pertinente aos filmes performáticos:
não é apenas a cultura, nem a história, que produzem narrativas envolventes, mas a idéia de
que essa narrativa é produto de uma vivência histórica, uma apropriação do mundo sob
determinado olhar, faz toda diferença. Filmes performáticos, como viemos estabelecendo
através dos textos, rejeitam fórmulas de representação do mundo e se concentram nas
peculiaridade da interpretação, extraindo relevância das experiências em si.
O processo de escrita de estórias envolve escolhas que, de forma resumida,
recorrem a dois tipos de invenção: a ficção (fantástica) e a não-ficção (realista). As ficções
nos amparam com a criação de soluções e respostas imaginárias; as não-ficções
supostamente agregam um valor de autenticidade àquilo que o filme informa. Por um lado,
é como se colocássemos lado a lado Cidade de Deus (2001) de Fernando Meirelles, e
Notícias de uma guerra particular(1999), de João Moreira Salles, como propostas para a
construção de um conhecimento (no caso, o crescimento e consolidação da violência
315
Segundo Roland Barthes, ‘o referente adere’, “uma foto é sempre invisível, não é ela que nós vemos”
(Barthes, 1980,p.20)
151
urbana na cidade do Rio de Janeiro). Por outro lado, essa polarização nos coloca no núcleo
de uma discussão já antiga no documentário: a distinção da distância entre essas duas
formas de cinema medida pelo coeficiente de realidade ou realismo. Os documentários
performáticos, ao se concentrarem na produção da auto-expressão, não se deixam abreviar
em rótulos de ficção ou não-ficção. Isso abre caminho para uma simbiose de recursos das
duas formas como matéria-prima da produção de auto-retratos. E é exatamente quando a
realidade é chamada à narrativa, informa Nichols, que as fronteiras entre fato e ficção se
diluem. Bill Nichols desenvolveu sua teoria do documentário performático, na qualidade de
modo de ‘representação’, como um exame dessa nova maneira de se relacionar com as
imagens – de uma forma que privilegia o conhecimento que é retirado de dentro da
experiência e organizado como uma estória
316
, criando uma ficção particular.
Além disso, Nichols também identificou nestes filmes uma relação muito forte com
o momento presente
317
. Para o autor, isso facilita a determinação do caráter evocativo em
formas dispersas, associativas, contextualizantes, sociais e dialéticas; “eles invocam uma
epistemologia do momento, da memória e do lugar, mais que de história e época”
(NICHOLS,op.cit.,p.105). Como visto no capítulo 4, há uma influência determinante da
filosofia pós-moderna nos documentários performáticos. Aqui, o texto de Jameson vai ser
útil fundamentalmente em dois aspectos: primeiro, porque estabelece como sintoma do
pensamento pós-moderno uma perda de historicidade - ou seja, é uma medida do
tempo presente (princípio caro e particular aos filmes performáticos)
318
como
possibilidade de registro; em seguida, porque estabelece a linguagem desenvolvida pelo
vídeo como a linguagem pós-moderna, por definição. Grande parte da produção de
316
“Mais notavelmente, esses trabalhos deslocam a ênfase do referencial histórico, e os levam em direção a
elementos de expressividade sem, no entanto construir filmes que seriam normalmente considerados ficções”
(NICHOLS, 1994,p.xiv)
317
Foi o que vimos quando trouxemos a noção de figurabilidade de Fredric Jameson no capítulo 3, sugerindo
a criação de um repertório de códigos que funcionalizam a comunicação, fornecendo pistas e permitindo a
articulação da forma e do conteúdo do discurso particular com o mundo histórico.
318
Apesar de termos tratado de um tipo de influência pós-moderna anteriormente, me parece propicia
utilização dos princípios identificados por Fredric Jameson na qualidade de uma complementação do
conhecimento: se em Treyf estabelecemos a pós-modernidade como uma possível análise do sujeito com o seu
presente, aqui, pretendemos uma reflexão no lado oposto da questão, que são as implicações da perda de um
sentimento de historicidade. Em Nick’s movie, a idéia da construção de uma identidade sem recorrer a marcos
históricos é atravessada por essa idéia.
152
documentários diagnosticados como performático foi realizada em vídeo, ainda que haja
exceções
319
.
Nick’s movie, de Wim Wenders e Nicholas Ray foi realizado entre 1979 e 1980
320
.
É um filme que leva ao limite o confronto entre a ficção e o documentário, entre registro do
presente e construção da memória - em acordo mútuo com a produção e as discussões
contemporâneas. Meio documentário e meio ficção
321
, meio vídeo e meio cinema, o filme
propõe um diálogo entre duas formas de registro e de suporte que obedecem a diferentes
cartilhas – que se revelam intercambiáveis (mas não ‘permutáveis’), num processo que
desmascara qualquer tentativa de objetivação do registro. É, fundamentalmente, uma
discussão, um embate entre cinema e vídeo e as respectivas funções que se lhe atribuem.
Para o pesquisador francês Philipe Dubois, o filme é um fenômeno que autentica a
impossibilidade de mistura dos dois tipos de suporte, ao vídeo cabendo a função de revelar
a parte ‘suja’ do cinema – a quebra com a ilusão do realismo da ficção. Neste trabalho, não
procuramos reafirmar essa impossibilidade, mas encontrar neste diálogo um processo que
ativa o que se pode considerar o dispositivo do filme: através da justaposição de vídeo e
cinema, evidenciar a permeabilidade dos dois suportes, que faz com que um se revele no
outro. Para além da impossibilidade de uma mistura de suportes, Nick’s movie é o processo
de erosão de fronteiras entre realidade e ficção encarnado, a essência do filme performático.
1) PÓS-MODERNIDADE NO DOCUMENTÁRIO PERFORMÁTICO
322
319
Como por exemplo o filme The Mighty Civic, utilizado neste trabalho. Entretanto, como já mencionada
anteriormente, o produtor desse filme, Kenneth Anger, é um nome de destaque no cinema de vanguarda
americano, e a estética do filme é essencialmente performática. Vale também lembrar que a linguagem
desenvolvida no vídeo tem um caráter tão ‘marginal’ quanto os filmes desenvolvidos pelos movimentos de
vanguarda
320
Nicholas Ray não esteve presente na edição, uma vez que falece ao final das filmagens
321
Para Philipe Dubois, pesquisador francês que escreveu sobre o filme em “Cinema, vídeo e Godard” (vide
bibliografia), o cruzamento dos suportes em Nick’s movie leva a uma ‘desaparição completa de todo traço
distintivo’.
322
No capítulo 4, estudamos a influência da pós-mdernidade da pesquisa etnográfica – em virtude da
influência que esse campo acadêmico determinou na consolidação do modo por Bill Nichols. Entretanto, a
análise de Jameson sobre a pós-modernidade, de uma maneira mais ampla, traz importantes observações para
a análise do filme de Wim Wenders. Sobretudo, a forma como o filme se situa numa região periférica do
documentário – tanto por sua mistura com a ficção, quanto na sua forma não convencional de representação
(o filme foi realizado em meados dos ano 80, quando o documentário performático ainda não se consolidara
sequer como uma prática usual entre realizadores).
153
Fredric Jameson vai estabelecer um conceito de pós-modernismo como uma
influência cultural dominante da era capitalista. A partir da constatação de um mundo
representado pelo que consagrou como um modelo de superfícies múltiplas, Jameson vai
identificar na circulação de idéias contemporânea uma perda de profundidade reflexiva -
característica do modernismo - em benefício do surgimento de uma ilusão de
conhecimento, conseqüência do veloz fluxo de imagens. Assim, sua teoria celebra “a
apoteose do espaço em relação ao tempo e o desaparecimento do referente histórico (...)
com os fluxos de imagens simultaneamente universais e fragmentados” (apud
MATTELART, 2002,p.176).
Para Fredric Jameson, a cultura pós-moderna é escrita a partir da forma como o
mundo procura compreender suas fatalidades instantâneas, num tempo onde não existe
mais tempo para revisões históricas. Em um mundo onde o fluxo de informação e imagem é
tamanho que não nos permite a formação de memórias, o pós-modernismo representa, para
o teórico, a medida da tentativa de construção de um senso de pertencimento: “o esforço de
tirar a temperatura do tempo sem instrumentos e numa situação em que nós não temos nem
mesmo certeza de uma unidade coerente como ‘tempo’” (JAMESON,1991,p.xi). Assim, as
representações culturais surgem mais como sintomas do contexto que como características
próprias; são reflexos de modificações, valores adquiridos que se situam para além da
esfera tradicional, circunscrita por um espaço geográfico.
Assim, para Jameson, “a pós-modernidade procura por (...) eventos no lugar de
novos mundos, pelo relato instantâneo que desaparece no momento seguinte, (...) por
mudanças irrevogáveis na representação das coisas e na forma como elas mudam”
(ibidem,p.ix). O teórico aponta como principal característica da pós-modernidade um
desvio radical nos tradicionais pontos de referência - inventados pelo modernismo – até
então, balizas oficiais de sociedade e cultura. No pós-modernismo, escreve ele, a cultura
incorpora um valor de mercado, se torna um commodity (um artigo de troca simbólica). Ou
seja, valores adquiridos se transformam em capitais pessoais. Isso significa que não somos
mais identificados a partir do lugar de origem e dos valores herdados com ele, mas pela
forma como esses valores renascem em nós, seres expostos a uma quantidade de
conhecimento muito mais ampla. Assim como as diretoras do filme Treyf, nos tornamos
154
representáveis porque assimilamos os valores de uma cultura como uma forma de
percepção do mundo e não como forma particular de revelação para o mundo.
Essa capitalização de valor de mercado significa a sustentação de uma idéia (ou,
uma hipótese) articulada a conjunturas de tempo e espaço. Quando José Padilha se refere a
uma hipótese de trabalho para Ônibus 174, não faz nada além do que a tradução de sua
forma exclusiva de compreender o mundo
323
. Uma teoria da pós-modernidade, para
Jameson, é necessariamente dialética, já que parte da articulação de incertezas para a
formação de uma possibilidade (que pede um mínimo de certeza). A essa possibilidade
podemos dar o nome de verdade particular de cada um em sintonia com o mundo – ou, o
que Bill Nichols chama de subjetividade social. Conforme visto no capítulo 3, Nichols vai
defender uma idéia de subjetividade social na qualidade de categoria de consciência
coletiva
324
, uma forma de nos articularmos a códigos e referências pré-estabelecidos.
Dialeticamente, da mesma forma que pretendemos criar histórias (as nossas), Nichols nos
aponta que “essas imagens generalizadas nos lembram do grau em que nossa percepção do
real é construída por códigos e convenções”(apud RENOV,1993,p.179). Contudo, os filmes
performáticos propõe deixar em suspenso o viés político destes códigos, fazendo com que
não se tornem o assunto dominante. Isso é feito, escreve Nichols, num processo de
restauração de “um senso de localização, especificidade e incorporação como locus da
subjetividade social” (NICHOLS,1994,p.106). Em larga escala, isso implica diretamente no
deslocamento do diretor para o centro do filme.
Ao escrever sobre as tendências pós-modernas no documentário performático, Bill
Nichols identifica nas características deste modo o desenvolvimento de um texto que desvia
seu objetivo da produção de narrativas que identificam um sentido nobre da História. Isso
porque, escreve Nichols, documentários performáticos são filmes transformadores DE
realidades, não DA realidade; afetam tão somente aqueles envolvidos no processo – o
realizador e o espectador, enquanto cúmplice. São filmes que não enxergam como parte do
seu processo narrativo uma modificação do mundo. Não obstante, ao mesmo tempo em que
323
Essa observação nos permite compreender que um conceito evocativo de auto-representação faz parte da
cultura do documentário; os filmes que viemos estudando neste capítulo mostram que há uma tendência que
converge para a abordagem direta dessa auto-representação.
324
“(...) essa forma de subjetividade dá corpo físico ao poder de ações coletivas de auto-transformação”
(NICHOLS,1994,p105)
155
o documentário perfomático rejeita a concepção de formatos épicos
325
, reapropria destes
textos o valor da experiência como matéria da produção de mensagem. Para Jameson, “o
apelo da experiência (...) recupera uma certa autoridade” na medida em que sugere solidez,
capaz de criar um sentido. Entretanto, não existe uma perspectiva de acúmulo de saberes;
isso implica em valor qualitativo, não quantivo da vivência. Dessa maneira, Mas no lugar
de uma hierarquização de idéias e pensamentos acumulados, a experiência se coloca ela
mesma em campo; na impossibilidade de uma tradução – uma vez que não há tempo para
tal – não há outra saída que não se expor sem ressalvas e fazer da própria análise o tema.
Essa auto-transformação em texto (textualização, capítulo 4) permite “reassimilar,
reintegrar o self na sociedade e reestruturar a conduta na vida diária” (apud
CLIFFORD,1986,p.135). Entretanto, em Nick’s movie o valor da experiência é percebido
como a única forma de representação possível. Ray está morrendo – e em um mundo que
não cria memórias, a única forma de construir uma identidade é a partir da matéria dada no
instante presente.
A seguir, iremos proceder uma análise de Nick’s movie tendo por princípio as
seguintes perspectivas: a relação que se mantém com o tempo como fator determinante para
o estabelecimento da subjetividade; a forma como se cria a ficção como afirmação de uma
identidade; e o papel que o vídeo assume, enquanto suporte de uma linguagem pós-
moderna (como identificado por Jameson). Antes, porém, faremos uma breve introdução do
conteúdo temático do filme.
2) ‘O AMIGO ALEMÃO
Nick’s Movie – Lightning over Water
Direção: Wim Wenders (e Nicholas Ray), 90 minutos, 1979-80, EUA
Nick’s movie surgiu, como informa Wim Wenders numa narração em off no começo
do filme, durante uma conversa por telefone com Nicholas Ray em algum momento no
início de 1979. “Eu não tinha a menor idéia do que iria acontecer”, informa Wenders. Na
verdade, o que Wenders informa que surgiu durante essa conversa foi a idéia dele ir a NY
325
Ainda hoje, é possível encontrar grandes narrativas no documentário – um exemplo palpável são as séries
produzidas por Ken Burns, como The Civil War (1990) ou Jazz (1999), que se propõe ‘épicos’ do tema.
156
encontrar seu amigo enfermo – ele não menciona a concepção do filme. Lightning over
Water, o projeto concebido por Ray a ser escrito a dois, aparentemente surge após sua
chegada, durante uma conversa na mesma manhã
326
. Assim, fica estabelecido de princípio
que Nick’s movie é a estória sobre... o filme de Nick, o filme que Nick – talentoso diretor de
cinema - propõe a seu jovem, e também talentoso, amigo Wim (“Ei, Wim, acho que
deveríamos fazer um filme juntos!”, grita Ray de sua cama). Nesse filme, o protagonista é
um “homem que quer se reencontrar antes de morrer, reencontrar sua auto-estima”
327
e,
acima de tudo, esboçar para si e para o público uma identidade. O filme se chamará
Lightning over Water; teoricamente, jamais será terminado uma vez que Ray morre antes
do fim das gravações. Assim, Nick’s movie se revela um grande mosaico do processo de
produção de Lightning, um filme sobre um filme. Mas também podemos compreender isso
de outra forma: Nick’s pode ser um frankenstein de Lightning, revelando que o projeto sai
do controle dos diretores, produz a si próprio e se auto-consome no processo. Nick’s movie
ainda pode ser compreendido como a única forma possível para a finalização de Lightning:
um filme sobre a tentativa de Wenders terminá-lo.
Há ainda uma segunda (ou terceira) ‘especificidade’, que atende pelo nome de Tom
Farrel – ou simplesmente, ‘o homem câmera’. Farrel foi o último assistente de edição de
Nicholas Ray. Quando começam as filmagens de Nick’s/Lightning, ambos estavam
envolvidos no processo de montagem de We can’t go home again (1971-73), filme auto-
biográfico e essencialmente subjetivo de Nicholas Ray, desenvolvido em conjunto com o
grupo de alunos do curso ministrado por Ray no Harpur College
328
. Algumas semanas
antes da chegada de Wenders, Farrel começara a registrar o cotidiano de Nicholas Ray,
eternizando os últimos dias do mestre. Assim, em Nick’s ele aparece durante quase todo
tempo ‘acoplado’ a uma câmera de vídeo, filmando todos os momentos do dia, terminando
por incorporar também a filmagem de Lightining (vindo a se tornar, assim, o making of).
Farrel cria, dessa forma, Wenders e Nick como terceiros personagens – não são os atores
de Lightning over Waters nem os diretores de Nick’s movie.
326
Na verdade, a seqüência que mostra o surgimento da proposta faz parte do filme de ficção. Assim, nada
impede que a idéia de filmarem juntos tenha realmente aparecido antes.
327
Palavras de Nicholas Ray durante uma palestra na Vassar University. Na verdade, ele aqui se refere ao
personagem de Robert Mitchun no filme Lusty Man, apresentado naquela noite.
328
O roteiro de We can’t go home foi escrito a partir do esboço de uma das alunas do curso, Suzanne
Schwarz, que se tornou sua última esposa – em Nick’s movie, Susan aparece nos créditos como ‘Susan Ray’.
157
Ao escrever sobre o filme, Philipe Dubois revela que, no projeto original de Nick’s
movie, Wenders e Ray não previam a inclusão das imagens em vídeo registradas por Tom
Farrel. Isso porque o filme deveria ser uma ficção (seria apenas Lightning), cuja sinopse
explicava se tratar da estória de um homem que buscava “readquirir sua identidade antes de
morrer”
329
. Seria uma espécie de docudrama, encenado pelos próprios personagens
envolvidos – o que aproximaria Nick’s movie” dos filmes desenvolvidos pelo grupo do
cinéma verité. Com a morte de Ray, Wenders assumiu a direção e, provavelmente
acreditando que a inclusão das imagens em vídeo poderia criar um novo significado, optou
por essa escolha.
Por conta dessas imagens, o documentário passou por um processo de montagem
completo duas vezes – a primeira vez com Peter Przygoda, montador habitual dos filmes de
Wenders, e a segunda, definitiva, pelo próprio Wenders. Quem nos informa é Dubois, que
narra o seguinte episódio: logo após a morte de Ray, Wim Wenders preferiu entregar o
filme a uma terceira pessoa, não envolvida diretamente; acreditava que dar continuidade à
montagem sozinho seria como uma ‘traição’ ao amigo. Essa primeira montagem foi exibida
no Festival de Cannes de 1980. Ao assisti-la, Wenders não se sentiu confortável com o
resultado. Para ele, a versão de Przygoda havia feito de Nick’s movie exatamente aquilo que
Ray rejeitara desde o princípio: uma imagem nostálgica e reverenciadora do grande diretor,
uma contagem regressiva rumo à inexorabilidade da morte. Então, decidiu retomar o filme
e remontá-lo. Assim, o problema dessa segunda montagem, informa Dubois, consistiu em
“encontrar um bom equilíbrio entre dois olhares, ou, dito de outro modo, entre dois
suportes, o cinema e o vídeo” (DUBOIS,2004,p.219)
O filme se desenvolve em duas etapas. A primeira, com duração estimada entre 1 e
2 semanas; e uma segunda, sem duração estabelecida (mas presume-se que seja pequena).
Entre as duas, um intervalo de 4 semanas – essa interrupção foi forçada pela convocação de
Wenders nos trabalhos de pré-produção do filme que rodava à época, Hammet. Essa divisão
do filme não tem qualquer significado para o desenrolar da narrativa
330
, não implicando em
acréscimos e desvios na atuação, ou em modificações de comportamento e cenário. Grande
329
Ray profere essas palavras ao ler a sinopse para Wenders.
330
Evidentemente, um intervalo de 4 semanas nas condições de Nick representa um salto enorme,
especialmente porque Wenders nos informa, num off que retoma a segunda parte do filme, que Ray não se
158
parte da ação do filme acontece na primeira parte: é quando somos apresentados aos
principais personagens – Wim Wenders, Nicholas e Susan Ray e Tom Farrel; quando Ray e
Wenders encenam a ‘concepção’ do projeto; quando Wenders começa a acompanhar Ray
em suas atividades e recolher material para a ‘pesquisa’ do filme (o acompanha a uma
palestra na universidade de Vassar, durante a sessão caseira de We can’t go home again,
lendo trechos do diário de Ray) e efetivamente procedendo com os trabalhos de filmagem
de Lightning. Na segunda parte, a ação se concentra em um ensaio de uma peça de Kafka
que está sendo dirigida por Nicholas Ray – e que marca o retorno de Wenders à Nova
Iorque, para dar continuidade às filmagens – e na gravação de uma cena baseada na peça
‘Rei Lear’ de Shakeaspeare – esta, para Lightning. Essa cena gerou enorme polêmica: em
um plano de 6 minutos sem corte, observamos Nicholas Ray sentir fortes dores, prester a
desfalecer, enquanto Wenders se abdicar de sua ‘voz de comando’ para interromper a
filmagem: ele informa a Nick que ELE é quem deve dar o comando de ‘CORTA’ para a
câmera. Foi a última cena de Ray; ele viria a falecer duas semanas depois. Segue-se um
epílogo, com a equipe reunida pensando em uma forma de finalizar o filme, uma vez que o
protagonista já não existe mais. Em ambas as partes, os registros em vídeo de Tom Farrel
performam uma ‘incisão no corpo fílmico’ (Dubois), permitindo que o espectador enxergue
além da onde o cinema poderia mostrar.
Essa intervenção do vídeo é uma das duas marcas que criam possibilidades de
entradas e propostas diferentes entre Lightning e Nick’s. Os registros em vídeos se
encaixam na brecha da fissura entre fato e ficção, estabelecendo uma ligação entre as
partes. Fredric Jameson vai identificar o vídeo como instrumento característico de uma
experiência temporal – com isso, quer dizer que o vídeo tem propriedades que permitem
experiências com o tempo presente
331
. A outra marca fica estabelecida pelo retorno
constante de uma determinada imagem durante o documentário: a de um junco
332
chinês,
recuperara rapidamente desde o último encontro. Ele somente estava sendo liberado para os ensaios da peça
que dirigia.
331
O estudo sobre o vídeo de Jameson caminha em direção oposta à nossa. Ao estudar a vídeo arte como
manifestação, vai identificar no vídeo tanto propostas ligadas à idéia do registro em tempo real, quanto um
desafio aos valores a partir de uma reinvenção temporal. Para maiores detalhes, sugiro o artigo Surrealism
without unconscious, em Postmodernism (vide bibliografia). Ainda assim, suas idéias vão ser bastante úteis
quando nos referirmos ao uso da câmera de vídeo em Nick’s movie.
332
Segundo a enciclopédia Larousse, o junco é um “barco de fundo chato, desprovido de quilha, munido de
dois ou três mastros com velas de lona ou palha trançada, reforçadas por tiras de bambu, que é utilizado para
transporte ou para pesca no Extremo Oriente”, sendo comum em países como a China e a India. Nicholas Ray
159
em cuja superfície se encontra uma câmera e uma urna funerária
333
, e que navega pelo rio
Hudson, em NY. A performance do filme remete a uma disputa entre esses dois suportes,
que se entrelaçam durante os cerca de 90 minutos da projeção. Um complementa o outro,
um dilacera o outro, um expõe o outro; e assim, enquanto espectadores, somos sempre
surpreendidos por uma ‘sombra’ (seja o vídeo, seja o junco) que não nos permite o conforto
da certeza do que estamos assistindo. Se pode-se falar num dispositivo para Nick’s movie é
a justaposição dialética de dois tipos de suportes convergendo para um fim comum: o filme
de Wenders de/sobre/para/com Nick
334
.
Bill Nichols identifica nos documentários performáticos a articulação entre
experiência e memória, próprias do ato do relato. Em Nick’s movie, Wenders cria um
interstício entre essas duas esferas - a memória como uma construção ficcional, e a
experiência como a sua própria vivência afetiva do episódio. Performance e reflexão se
encontram separadas em diferentes formas de narrativa. Nick’s movie evoca a própria
construção do encontro no presente: o ‘amigo alemão’ em visita a ‘o amigo americano’
335
.
3) O TEMPO PRESENTE DE LIGHTNING OVER WATER: NICK’S MOVIE
“8 de abril de 1979”. Uma data. Essa é primeira informação concreta que recebemos
em Nick’s movie – e que especifica uma localização temporal para um plano de uma
esquina em uma cidade; a imobilidade do quadro é quebrada por um táxi que invade a cena
e encosta em frente a um prédio. De dentro dele, sai um homem de sobretudo escuro,
carregando uma mala. É Wim Wenders, que, em seguida, entra no prédio. Em off,
escutamos um texto, narrado pelo próprio Wenders, sublinhado por uma trilha sonora
característica de filmes de suspense
336
:
“Um vôo noturno de Los Angeles me trouxe a Nova Iorque num dia quente e claro.
Ainda era de manhã cedo, quando eu cheguei ao Soho, na esquina da Spring Street
havia dito a Wim que o filme terminaria dessa forma (“Como é que vai acabar o nosso filme, Nick?” “Vou
por um junco chinês a zarpar, todo engalanado de flores vermelhas”)
333
Simbolicamente, é a urna que contém as cinzas de Nicholas Ray.
334
Gostaria de registrar meu apreço pelo subtítulo que o filme ganhou na versão lançada em Portugal: ‘um ato
de amor’. Para mim, a definição irretocável do espírito do documentário.
335
O jogo de palavras aqui diz respeito ao filme “O amigo americano”, de Wim Wenders, com Nicholas Ray.
160
com West Broadway. Eu havia tirado duas semanas de férias dos trabalhos de pré-
produção do meu próximo filme. Eu estava aqui para ver Nick.”
O plano seguinte mostra Wenders entrando no prédio (só que agora, visto de dentro
do prédio, a câmera no topo do segundo pavimento) e subindo as escadas. Bate na porta e
entra. O texto, em off, que acompanha esse plano é o seguinte:
“Nicholas Ray. Diretor de ‘Rebelde sem causa’, “Jonhy Guitar’ e mais alguns
outros filmes que têm seu lugar cativo na história do cinema. Eu subi essas escadas
pela primeira vez havia dois anos, quando Nick havia concordado em fazer um
papel em um filme meu, ‘O amigo americano. O papel não estava no script, então
nós o escrevemos juntos. Jogamos muito gamão e nos tornamos bons amigos.”
Ao entrar, Wenders é recebido por Tom Farrel (o ponto de vista da câmera é de
dentro do apartamento), que informa que Nick está dormindo. Wenders passeia pela sala,
retorna para o extremo oposto do corredor do loft e deita em um sofá. Enquanto desliza
pelo corredor retangular que liga os extremos do aposento, presta atenção nas diversas
câmeras que estão espalhadas pelo apartamento. Um texto em off informa sobre as
conjunturas do último encontro entre os dois, quando Ray estava internado após a terceira
cirurgia desde que recebera o diagnóstico do câncer, se encontrando bastante fragilizado.
Os médicos haviam implantado células radioativas em seu peito; assim, suas chances de
sobrevida aumentariam. O plano se encerra com Wenders, no sofá, fechando os olhos,
descansando.
Essas primeiras cenas trazem como marca um dos principais pontos do filme: trata-
se de uma construção ficcional atravessada, ou mesmo perfurada, por um contexto retirado
da realidade, do mundo histórico. Planos cuidadosamente encenados (ficcionais) são
articulados a um o texto cujo teor está essencialmente ligado a uma situação real. Sobre a
produção de uma ficção, falaremos em seguida. Por agora, vamos nos deter no aspecto da
temporalidade.
Nick’s movie não prevê a escrita de uma identidade para Nicholas Ray a partir do
estabelecimento de memórias. Ao contrário: a imagem que deverá permanecer é aquela que
336
Da mesma maneira que em ‘33’, ressalvamos que filmes de suspense primam pela narração em off em
primeira pessoa, indicando que o que se vê e o que se escuta trata-se de uma experiência pessoal intransferível
161
mostra o diretor em estado físico abatido, e que tenta construir sua identidade a partir dos
‘restos’ mortais, daquilo que se encontra incorporado na imagem registrada em película.
Em certo momento do documentário, Ray lê para Wenders a sinopse do filme que irão
filmar (Lightning). O texto diz o seguinte:
“Esse filme é sobre um tipo que é artista. Tem 60 anos de idade. Fez muito
dinheiro no mundo da arte com os primeiros quadros. Não tem conseguido vender
sua produção atual e tem outra necessidade para além do dinheiro, que é a de
readquirir sua identidade antes de morrer. Sofre de câncer em fase terminal e está
consciente disso. (...) Vive com uma mulher há cinco anos. É mais velho que ela 40
anos e no momento vivem muito felizes num loft entre a Spring e a Broadway. Lá,
o seu amigo mais chegado é o chinês da lavanderia que se tornou muito amigo de
Nick e lhe empresta dinheiro de tempos em tempos, do pouco que fica disponível
de um ordenado de miséria. Também sofre de câncer.Tentam encarar isso com
humor, nem sempre conseguindo.”
337
Percebemos que a identidade que Ray se permite é uma que está completamente
vinculada a sua existência no presente – nenhuma referência aos grandes sucessos, aos
grandes amores, aos prêmios. Apenas um recorte que incide no ‘agora’, agregando mais
fragilidades que virtudes. Esse ‘compromisso’ com o tempo repercute na forma da obra
ficcional: em diversos momentos, Wenders dá uma ‘deixa’
338
para Ray, ou mesmo pede
que uma dada fala seja repetida, indicando que algumas cenas foram descaradamente
dirigidas. O filme simula a construção de um presente contínuo, oferece a sensação de que
as coisas se desenvolvem aos nossos olhos. Wim Wenders nos proporciona, no filme, o
tempo como experiência em suas diversas aproximações.
Lightning over water se estabelece como uma invenção no tempo: não está inscrito
no momento histórico (sabemos apenas que se trata do mês de abril, mas isso não tem
qualquer influência
339
), seu espaço físico corresponde a um universo particular a Nicholas
Ray (o loft, a universidade, o teatro). Da mesma forma que estabelecemos nos filmes de
337
Wenders vai perguntar, em seguida, porque Ray se esconde por trás de um personagem na 3ª pessoa, já que
aquela sinopse é sua própria estória. “Porque não fazer um filme a teu respeito?”, pergunta Wenders, logo
após a leitura da sinopse. “Só se for a teu respeito também”, condiciona Ray.
338
Diz o texto de Ray para ele.
162
Varda e Goifman (capítulo 6), aqui também existe uma limitação que permite a criação de
uma narrativa
340
. Os eventos se sucedem sem um determinado compromisso com uma
ordem temporal: a palestra poderia vir depois da sessão do vídeo, isso não alteraria
qualquer sentido. As cenas são filmadas de acordo com uma cartilha do cinema de
ficção
341
. Na estrutura do filme, prevalece aquilo que Ricoeur chamou de empilhamento
dos fatos, quando inúmeros acontecimentos se sucedem sem que haja relações causais ou
temporais entre as cenas. Isso porque cada um dos planos se extingue em si, a unidade do
tempo tem o valor da duração do plano (ou da seqüência de planos). O ponto em questão é:
nenhum dos personagens envolvidos se desenvolve de modo a obedecer um arco narrativo
típico das estórias de ficção clássica - especialmente o de Wenders
342
.
Nick’s movie, por outro lado, englobando a estrutura ficcional descrita acima, vai
desenvolver o fio narrativo no estabelecimento de uma estória que tem lugar na mente
angustiada do realizador, Wim Wenders. Seu texto assume a forma de um relato em off, que
organiza as cenas do filme de ficção e os registros em vídeo como uma escrita subjetiva.
Esse relato tem temporalidade própria – o filme abre com uma legenda que indica a data da
chegada de Wenders a NY; ainda no começo, Wenders informa que tirou duas semanas de
folga; quando retorna a NY, informa que 4 semanas se passaram; Ray morre 2 semanas
depois da filmagem da cena baseada em ‘Rei Lear’. Está situado no espaço – cada lugar é
decisivo para a construção de uma identidade para Ray; a palestra na universidade, o ensaio
no teatro, a sessão de cinema no loft têm uma razão: foram escolhidas para construir o olhar
de Wenders sobre Nick. Entretanto, essas não são representações clássicas (não são
substitutas de Ray), mas formas de acesso a uma personalidade que reluta até o último
momento em se dobrar à realidade da doença. Juntamente ao texto em off, Wenders se
permite a reencenação de sonhos evocativos e sugestivos de seu estado de espírito. Neles,
339
Lembramos que o filme que não está inscrito no tempo é a ficção dentro de Nick’s movie. O documentário,
como já foi estabelecido por nós, corre contra o tempo.
340
A idéia da morte como o momento de plenitude da narrativa é aqui desafiada por Wenders e Ray, ao
rejeitarem uma proposta grandiosa e optarem pelo registro momentâneo.
341
Iluminação, plano e contraplano, cenas com profundidade, closes.
342
Se considerarmos que: Nicholas Ray morre, Susan fica viúva e Farrel não tem mais um chefe, podemos
admitir que Wenders é o único que não vai de um ponto a outro. Ainda assim, é atravessado por uma
experiência.
163
se misturam imagens em vídeo, imagens de Nick, em tons e texturas que sugerem um
ambiente etéreo
343
.
Nick’s movie simula um limite do documentário performático, uma vez que
radicaliza a proposta de auto-representação. “Como representamos indivíduos que podem
não representar a verdade tanto quanto a experiência subjetiva e suas diferentes
interpretações?”
344
. Na verdade, o filme é a evocação de uma experiência subjetiva: desde a
forma como incorpora Wenders (um personagem de ficção, o amigo/admirador que vai até
o mestre) até o estabelecimento da forma de representação (a separação da ficção como
memória). Do documentário, em si, não há imagens; ele ‘brota’ da costura do filme de
ficção, dos relatos em vídeos e das inserções em off de Wenders.
4) O TEMPO FICTICIO EM NICK’S MOVIE: LIGHTNING OVER WATER
Em A rosa púrpura do Cairo, de 1985, Woody Allen conta a estória da (provável)
maior aventura da vida da protagonista Cecília (Mia Farrow) para expressar a seguinte
idéia: nada é tão fundamental quanto o cinema quando se quer bater em retirada do mundo
histórico. Não apenas fisicamente – onde a sala escura simula um esconderijo – mas
também espiritualmente: afinal, é cinema, onde tudo é possível! Em síntese, a sinopse é a
seguinte: Cecília, um tipo oprimido pelas condições sócio-econômicas da época – mulher
americana nos anos 30, depressão econômica, classe média baixa, submissa a um marido
jogador e beberrão – sentindo-se frustrada e solitária, encontra no cinema parcos momentos
de felicidade. Ela vai ao teatro todos os dias e assiste inúmeras vezes os mesmos filmes.
Em uma dessas sessões, durante a exibição do filme ‘A Rosa púrpura do Cairo’, o
protagonista Tom Baxter (Jeff Daniels), charmoso aventureiro, movido pela curiosidade em
conhecer a reincidente espectadora e pelo desejo de ‘novas aventuras’, decide sair do filme
e fugir com Cecília. Segue-se uma série de peripécias, envolvendo o marido, o ator que
vive o protagonista, agentes e patrocinadores, entre outros.
343
É especialmente sugestivo um sonho onde Wim Wenders está deitado em uma cama de hospital e, quando
acorda, Tom Farrel, sentado na cadeira ao lado, vai em sua direção querendo enforcá-lo. É a típica cena que
proporciona milhares de interpretações. Uma, entre outras, pode ser o profundo medo que Wenders sentia de
que seu filme estivesse acelerando o processo da doença de Ray e Tom, o registro-ponte entre os dois, estaria
ali para acabar com tudo.
344
apud RENOV,1993,p.175 – vide bibliografia
164
Entretanto, um detalhe em particular sempre me chamou atenção neste filme, e que
acredito bastante pertinente para este trabalho: o que acontece com o resto do elenco do
‘filme do filme’ quando Baxter ‘foge da tela’. Na ausência do protagonista (em torno de
quem gira o enredo), sem uma narrativa à qual obedecer, sem um ponto de referência para
a continuidade do texto, os personagens se percebem sem saber para onde ir: não é apenas
Tom Baxter que muda de mundo; também eles se tornam estranhos a uma realidade que se
revela ‘capenga’. Assim, se deixam ficar, apenas ‘existindo’, realizando atividades banais:
jogam conversa fora, discutem, fumam, bebem e perambulam pelo cenário. A platéia,
contudo, continua ali; contudo, aquilo que está na tela deixa de ser ‘assistido’ para ser
‘observado’
345
. O que move essa improvável narrativa é menos o interesse por uma estória
que uma curiosidade mórbida em relação às peculiaridades daqueles atores/personagens.
Ou seja: na ausência de uma narrativa, não há estória – sobram ‘fragmentos pró-fílmicos’.
Ao escolher a construção de uma identidade por um filme de ficção, Nicholas Ray
se desloca para dentro de uma narrativa e evita o risco de se tornar objeto de exibição –
coisa que, fatalmente, colocaria em primeiro plano sua doença e as fragilidades
decorrentes. Esse deslocamento entre ficção e realidade produz, em Nick’s movie, os dois
filmes
346
, assim como no filme de Allen. Contudo, se em A rosa púrpura Tom Baxter
termina seus dias retornando para os confins da tela, Nick’s movie faz o movimento
contrário: há uma realidade inescapável que chama por Nicholas Ray
347
. No final, ele sai da
ficção e retorna para o filme da vida. Entretanto, esse retorno é documentado por Wenders
e incorporado à ficção – na última cena, quando Ray começa a passar mal, ele e Wenders
são parte de um ‘sonho’ (do último): Wenders está deitado na cama, refém de Ray, que está
sentado ao lado da cama. E é no momento em torno dessa chamada que Nick’s movie
cristaliza seu fio narrativo, criando uma perspectiva ‘indecifrável’ entre ficção e realidade.
A maior autenticidade em Nick’s movie (o documentário) é a que se imprime na
ficção como força de criação. Uma força que fica exposta na intervenção dos registros em
vídeo, que expõe equipamentos, equipe técnica, roteiros, atores e diretores passando o
texto. Não fosse isso e o filme poderia existir ou como um docudrama (um filme de ficção
345
Uma espécie de embrião dos reality shows
346
Woody Allen chamou ambos os filmes de “A rosa púrpura do Cairo”. Já Wenders separa os projetos.
347
Ou, como escreveu certa vez o pesquisador Jean-Louis Comolli, “o real resiste. Ele ainda resiste às
representações que tentam o reduzir” (COMOLLI,2004,p.7)
165
baseado em fatos e estórias verídicas) ou um documentário da escola do cinema direto
americano (onde a estrutura da narrativa e a montagem são francamente inspiradas no
modelo do cinema clássico de ficção). O documentário surge na justaposição entre a
criação e seu desvendamento; como uma breve concessão que se outorga à realidade para
se auto-representar.
Em Nick’s movie, o filme de ficção Lightning over water foi eleito como mediador
de uma realidade – o suporte escolhido por Ray e Wenders para “recuperar a imagem que
tenho de mim mesmo e que de mim tem o resto do mundo” (Nicholas Ray
348
). Com isso,
ambos procedem à construção de uma memória bastante não-convencional na tradição do
documentário, mas que foi apropriada na construção dos filmes performáticos. A memória,
aqui, pode ser entendida como a matéria que cria a ligação entre o sujeito-narrador e o
presente imediato de forma fabular, evocando “(..) uma fantasia abduzida de fragmentos, e
então (retornando) os participantes para o mundo do senso comum – transformados,
renovados e sacralizados” (apud RENOV,1993,p.187). Jacques Rancière, professor de
estética e política, vai identificar no documentário uma construção ficcional partindo do
princípio de que toda construção envolve um ponto de vista, e que todo ponto de vista
envolve um senso de julgamento particular e único; portanto, uma forma de ficção. É na
constatação dessa porção fictícia inseparável de todo documentário que o modo
performático se emancipa de um referencial externo e se concentra no rearranjo da auto-
invenção.
Ao escrever sobre o filme do documentarista Chris Marker consagrado ao diretor
russo Alexandre Medvedkin
349
, Rancière estabelece a memória como um arranjo de signos,
uma articulação de ícones, símbolos e arquétipos com diferentes significados e
significantes, que têm por função a criação de um argumento. Logo, uma construção
intimamente ligada à forma como cada um vive sua experiência de mundo. Documentários
performáticos, marcados que são por uma quebra com um sistema de referências externo a
si, também estabelecem o rearranjo de signos pré-codificados como instrumentos de
trabalho. Ora, se a memória é uma combinação de signos que obedecem a uma lógica
interna, ela caminha na contramão da cultura contemporânea – a pós moderna - , uma vez
348
Trecho extraído do filme.
349
‘Le tombeau d’Alexandre’, 1993
166
que o que a interessa não é tanto a quantidade de informações que se acumula, mas sim a
qualidade. A memória, escreveu Rancière, deve ser estruturada na contramão do acúmulo
de informações; “ela deve ser construída como uma ligação entre os fatos, entre os
testemunhos dos fatos e dos traços de ação” (RANCIÈRE,2001,p.202). Da mesma forma
como Ricoeur escreveu sobre Proust (capítulo 6), ‘tempo redescoberto’ e ‘tempo perdido’
são também aqui unidades criadas pela memória – buscas inventadas, e não recuperadas.
Assim, ao propor criar uma identidade a partir de um instrumento de ficção, Wenders
reinventa Ray. E se reinventa também, na medida em que forja um movimento de auto-
inscrição. O ‘Wim Wenders’ do filme é uma tentativa de criação de um alter-ego – mas, da
mesma forma que o personagem ‘Ray’ não consegue escapar da realidade, o de Wenders
também se percebe ‘invadido pelo real’: “me interessava o que filme estava fazendo com a
nossa amizade. Eu sentia cada vez mais a pressão de fazer um filme e vi-me absorvido pelo
trabalho em si, e pela mecânica de fazer os planos e decidir os horários em vez de me
preocupar com Nick”, diz ele, em off. Mesmo essa angústia é incorporada como parte do
personagem – por instrução do próprio Ray
350
.
5) O USO DO VÍDEO EM NICK’S MOVIE: SINTOMA PÓS-MODERNO
Fredric Jameson verifica na utilização do vídeo como registro um sintoma da
qualidade materialista da cultura pós-moderna. Por qualidade materialista não nos
referimos a impulsos de consumo, mas de uma necessidade compulsiva do registro, que
se manifesta através do acúmulo de imagens e informações. Isso implica numa relação
proporcionalmente inversa na atividade de reflexão como forma de escrita da História.
Jameson vai apontar esse materialismo como uma conseqüência da invenção da mídia
como manifestação da cultura pós-moderna; um bios, uma ambiência; forma de
expressão que reúne e converge expressão estética, aparato técnico e instituição social.
Entretanto, essa manifestação incorporou o próprio sentido da cultura, que diz respeito às
formas de representação de uma sociedade. Isso explica nos referirmos a uma cultura
midiatizada; ou seja, uma cultura tanto atravessada quanto manifestada através da mídia.
350
Há uma cena onde Ray informa a Wenders que ele deverá descobrir quais as necessidades que tem seu
personagem. É quando Wenders responde que as ações de seu personagem serão definidas pelas ações de
Ray. Em larga escala, as ações do personagem de Wenders são uma reação à degeneração física de Nick
167
A ascensão da mídia como principal canal de manifestação da cultura implica num
progressivo desenvolvimento de formas de compreensão que incluem o aspecto não-verbal
da informação. Isso quer dizer que uma maior quantidade de atenção começa a ser desviada
para o campo da imagem. Jameson vai apontar que, nesse caso, a principal referência seria
encontrada no vasto campo das teorias desenvolvidas para o cinema. No entanto, o próprio
teórico aponta a ineficácia desta saída, uma vez que, segundo ele, as teorias do cinema
foram desenvolvidas a partir das invenções concebidas pelo movimento modernista
351
,
ainda muito presas a uma função de representação e reflexão históricas. No lugar do
cinema, Jameson prefere se concentrar na linguagem desenvolvida para a televisão,
influenciada pela oralidade do rádio e nas soluções técnicas inventadas pelos movimentos
marginais. O vídeo, informa ele, é descendente direto dessas inovações.
Há, no vídeo, para Jameson, menos um sentido de incorporação histórica e mais
uma perspectiva de ‘janela para o mundo’
352
, naturalmente fragmentária e superficial. Num
primeiro instante, essa qualidade pode bloquear em nós o exercício de uma
responsabilidade de reflexão, já que a realidade colocada corresponde a um amontoado de
fragmentos que, no conjunto, acabam por dizer pouco de específico sobre indivíduos. Por
isso, revelamos assistir (sobretudo à TV) como uma maneira de tomar conhecimento, algo
muito diferente de uma atividade reflexiva sobre imagem e texto. Assim, isso nos permite
pensar o vídeo como um registro de instantâneos já que não tem por função a criação de
uma distância crítica que interceda em favor da produção de memórias. O que levou
Jameson a constatar que a possibilidade de uma exclusão estrutural da memória e da
distância crítica pode levar à impossibilidade da teoria do vídeo, “como a coisa bloqueia
sua própria teorização se tornando ela mesma uma teoria” (JAMESON,op.cit.,p.71).
Comercialmente, o vídeo instaurou uma distância entre o indivíduo e a experiência.
Entretanto, Jameson identifica os vídeos como uma forma de registro do presente produzida
a partir de uma inscrição subjetiva do realizador. Isso vai acontecer na forma de uma
metabolização do indivíduo no fluxo de informações – como o vídeo de Tom Farrel em
Nick’s movie. Em duas palavras, agora já bastante familiares ao leitor, Jameson acredita que
351
Jameson vai apontar o pós-modernismo como uma transformação irremediável do modernismo.
Entretanto, ele reconhece a existência de propostas pós-modernistas no cinema contemporâneo. Entretanto,
essas propostas são elas também bastante influenciadas pela linguagem desenvolvida na televisão e no vídeo.
352
Nos documentários performáticos, Nichols vai identificar também essa convergência para o presente.
168
vídeos são veículos para um registro que incorpora experiências e, como conseqüência, são
produtores de subjetividades da vivência dessa experiência. Procedimentos de
incorporação são caros ao documentário performático, na medida que estabelecem o
vínculo entre os processos de produção e a própria idéia do filme, a partir de onde são
catalizados os processos de produção de subjetividade, deslocamento do sujeito, etc...
Em Nick’s movie, o vídeo feito por Tom Farrel não tem qualquer perspectiva de
reflexão
353
; não existe o aspecto da produção de um memorial de Ray como monumento
cinematográfico, apenas a força indexical da imagem que sinaliza sua existência física.
Farrel registra Ray compulsivamente: enquanto dorme, fuma, conversa, no carro,
passeando, trabalhando. E fez isso por iniciativa própria, sem que o diretor houvesse
solicitado
354
; originalmente, não havia nenhuma relação entre as tomadas em vídeo com o
filme de Wenders. São, em larga escala, registros sem compromissos com propostas
estéticas
355
. Segundo Philippe Dubois, uma vez que não se previa a inclusão das imagens de
Farrel no documentário, elas nasceram livres de pressões ou pretensões estilística. Assim,
Tom não se preocupava com luzes, atores, ângulos ou enquadramentos. Interessava menos
a qualidade do material filmado que a quantidade – quanto mais de Ray, melhor. São
registros ‘puros’, na medida em que o valor se mede pela força da inscrição, não pela
forma. Se reportam, assim, a uma filosofia de filmes caseiros, “feitos para ser utilizados em
circuito fechado por um pequeno grupo de pessoas, os membros da família”
356
. Na maioria
das vezes, esses filmes são compostos de fragmentos do cotidiano e não demandarm de
seus protagonistas grandes revelações ou a invenção de uma narrativa. São tão somente
registros de uma tentativa ingênua de se agarrar ao tempo. Essa dimensão afetiva que se
empresta ao registro é apontada por Jameson como uma das característica do vídeo, e que
são assimiladas nos filmes performáticos.
Ao mesmo tempo em que identifica o vídeo como instrumento de registro do
presente, Jameson aponta uma segunda característica. O vídeo, continua ele, estabelece o
353
O filme de Tom Farrel não é uma narrativa. São fragmentos que encerram em si um acontecimento. As
falas e os personagens estão todos quase sempre dentro do mesmo quadro. As ações começam e terminam ali.
354
Tom vai revelar isso a Wenders, durante uma conversa que está no filme.
355
Há que se fazer uma ressalva: o interessante artigo de Odin identifica nos filmes caseiros uma reafirmação
das instituições sociais, uma vez que as cenas registradas representam uma forma de ‘encenação inconsciente’
dos valores defendidos pela cultura.
356
“As produções familiares de cinema e vídeo na era do vídeo e da televisão”, de Roger Odin. Publicado nos
‘Cadernos de Antropologia e Imagem” nº 17, p.159.
169
lugar “da assimilação do sujeito humano ao (maquinário) tecnológico”
(JAMESON,op.cit.,p.74). Essa assimilação é produto do deslocamento do diretor – não
apenas para o centro do filme, mas para uma região onde se anulam suas diferenças com o
público; não conseguimos atravessar o filme sem experimentar a sensação de vivência do
diretor
357
. Basta pensarmos na imagem de Tom Farrel com a câmera na mão para
identificarmos como esse postulado repercute em “Nick’s movie”. Ali, especialmente, o
vídeo é uma dimensão do enorme afeto que atravessa o documentário – de Tom, na medida
em que é o ‘homem câmera’, e de Wenders, que reconhece naquelas imagens a única forma
de registro justa: o presente como uma experiência dos dois lados
358
.
No loft, transformado em estúdio, câmeras, luzes, mesas de edição e todo o
equipamento técnico são incorporados como próteses, extensões dos realizadores; ao
mesmo tempo, ao ‘despersonalizar’ a ficção (porque reveladores do processo de produção),
colocam em evidência “o relacionamento entre a mediação da máquina fílmica e a
construção da subjetividade” (ibidem,p.74)
359
. Isso porque, explica Jameson, ao assumir seu
‘papel’ de registro, o vídeo desloca a figura do realizador de seu lugar atrás das câmeras.
Assim, em Nick’s movie os realizadores Tom, Wim e Ray são desestabilizados
‘duplamente’ durante a narrativa: são deslocados de sua disposição de diretor (enquanto
portadores da câmera, observadores) para uma de espectador; mas, uma vez identificados
em sua posição ‘externa’ à criação da narrativa, são convocados a assumirem as funções de
personagens (descobertos pela própria câmera). Retomando o texto de Bill Nichols, “a
expressividade do corpo é central nessa representação (performático), mas é um tipo de
representação que quebra com as convenções de autenticidade por se voltar para uma
performance
360
(apud RENOV,op.cit.,p.175). Essa performance é a produção do próprio
filme, a maneira como cada um opta por se contar. Nick’s movie, então, se inscreve como
um documentário performático na medida em que revela as opções de inscrição e auto-
construção de Wenders e Ray.
357
A critério simbólico: na cena onde Nick está ensaiando a peça de Kafka, o ator do teste lhe faz a seguinte
pergunta, após ser interrompido pelo desvio de atenção de Ray para Wenders, que acabar de chegar: “ mas,
você sente como se fosse da primeira vez? Como se houvesse uma novidade?”
358
Câmeras, aliás, são traços icônicos no filme – elas estão espalhadas pelo loft de Ray, registradas pelo vídeo
de Farrel, presentes na palestra em Vassar, no palco de ensaios do teatro e na proa do junco chinês.
359
Fica claro que uma idéia de ‘despersonalização’ não significa necessariamente uma objetivação do
registro.
360
grifos meus
170
Uma das estratégias mais criativas do filme é o estabelecimento do diálogo entre a
ficção (Lightning over water) e o vídeo (os registros de Tom Farrel). Para Philippe Dubois,
“Associados um ao outro pela montagem dos suportes, o cinema (refugiado na
ficção por incapacidade de apreender a realidade em si mesma) e o vídeo (instância
da hipervisibilidade) encontram cada um, no seu respectivo parceiro, o contraponto
indispensável para dar ao filme seu tom justo e seu equilíbrio”
(DUBOIS,op.cit,p.224)
Definir o vídeo como um instrumento de hipervisibilidade é defini-lo sobretudo em
relação ao cinema. Em Nick’s movie, o vídeo sinaliza a possibilidade de criar ficção sob o
risco do real. Um real que se mostra fora de controle – Ray falta a um dos dias da filmagem
porque passa mal e precisa ir ao hospital; não vai terminar o filme porque a morte o alcança
primeiro
361
. A contrapartida do filme de ficção não é um documentário – porque este
também compreende procedimentos de montagem e manipulação como um filme de ficção
– mas o registro fragmentário em vídeo. Nick’s movie evoca um processo de canibalização
entre os suportes e só existe enquanto documentário sobre Nicholas Ray como produto
deste ‘casamento’, ao optar pelo vídeo, pela imagem-presente como o outro lado da ficção.
Essa hipervisibilidade é a principal característica do vídeo em Nick’s movie: para
Dubois, ela representa aquilo que o cinema não consegue ser – o registro de seu processo
de produção. Entretanto, o pesquisador identifica nas imagens do vídeo um ‘aspecto sujo’ -
um registro que desfaz o pacto da ficção com o espectador
362
. De fato, o vídeo incide sobre
a ficção com a força do desvendamento
363
; os registros de Tom são muito mais perversos,
duros e chocantes que aqueles realizados por Wenders. No entanto, essas imagens são
também capazes de alavancar sentimentos de afeto e revelar o afeto entre os realizadores.
Se admitimos uma ‘função documentária’ para as imagens de Farrel, elas não o são apenas
por mostrarem ‘aquilo que o cinema não pode mostrar’; seria desconsiderar o documentário
como uma forma de cinema, como resultado de um processo de montagem. “Não é
simplesmente o conhecimento possuído por testemunhas (...) que precisa ser transmitido
361
Essas cenas vão ser devidamente aproveitadas pelo documentário.
362
Na verdade, o making of trata exatamente do desaparecimento da ilusão cinematográfica.
363
Lightning over water tem uma estrutura que se assimila à gramática do cinema direto (plano e contraplano,
registro sem interferência do realizador). O uso dos registros em vídeo colabora, também, para uma
desconstrução dessa fórmula, mostrando a possibilidade de criação de um ‘relato autêntico’.
171
por seu discurso, mas também o conhecimento não-verbal (...) transmitido por seu próprio
corpo”, escreve Nichols (apud RENOV,op.cit.,p.175).
Ao não conceder a esses fragmentos um tratamento ficcional (luzes, ângulos,
maquiagem, roteiro), os registros em vídeo ganham uma textura que os aproxima de um
tipo de linguagem do documentário contemporâneo. Junte-se a isso o fato de que as
sequências em vídeo captam momentos produzidos em situações tensas; como quando Ray
está acordando, no primeiro dia da filmagem
364
; ou no hospital e Wenders vai ao seu
encontro. As imagens são precárias: câmera no ombro oscilando entre o teto e o chão,
pouca iluminação e fora de foco. Em tom sussurrante, Wenders diz a Ray que teme que o
filme encerre um ‘complexo de Édipo’, já que acredita que as filmagens podem vir a
acelerar a morte. “Comecei por me mostrar forte, mas depois tive um grande alívio, quando
comecei a depender cada vez mais de ti. E foi ótimo, sentia-me bem nestes dias”, diz Ray,
informando estar disposto a continuar com as filmagens. O ato da inserção do vídeo
equivale a uma produção subjetiva, uma demonstração de afeto que está além tanto do
cinema quanto do próprio vídeo; não representa a inscrição do registro, mas uma
desestabilizadora inscrição do próprio realizador. Ao optar pelo registro duplo (em vídeo e
película), Wenders encontra uma espécie de medida da ‘eternidade’: se o vídeo representa a
possibilidade do registro instantâneo sem reflexão, e o cinema, a possibilidade de
construção de tumbas monumentais da memória, Nick’s movie fica exatamente a meio
termo das duas propostas.
Acima de tudo, Nick’s movie é um diálogo com várias formas de cinema; mais até,
com várias formas de registro e relações com a imagem. É tipicamente pós-moderno porque
não prevê uma análise da vida, mas sim a criação de uma História no próprio presente. E
como qualquer história no presente, ela explode em sua própria durabilidade etérea – não
existe nada como como o sentimento de iminência da morte. Se Benjamin proclamava a
morte como princípio de síntese que justifica uma narrativa, a pós-modernidade revela a
morte não apenas como um momento síntese, mas um momento onde a síntese repercute na
urgência do registro do momento-já, revelando-se como a única saída possível. Não há
364
Essa primeira imagem revela bastante da intimidade que o vídeo registra no filme. Em um movimento de
travelling bastante lento, a câmera se aproxima de Ray – que está acordando. Seu corpo frágil, magro é
filmado nu, de costas. Ray geme muito, sente dores, registra seus sonhos em um pequeno gravador ao lado da
cama.
172
outra forma de se enxergar a não ser no presente, não há outra imagem a ser construída a
não ser esta – que, no momento em que se escreve, já deixou de existir como a duas linhas
atrás.
“Quanto mais perto eu chego do final, mais perto eu estou chegando
ao ponto onde comecei. E, certamente, ao final, na última página, o
clímax vai influenciar o começo. E o começo normalmente muda”
(Nicholas Ray)
173
CONCLUSÃO
1) UM ÚLTIMO EXEMPLO
Um dos filmes mais comentados na última edição do Festival do Rio 2004 foi
Tarnation (EUA/2003), documentário de Jonathan Caouette. O filme, selecionado para a
Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2004, chamou atenção por conta de
uma série de fatores: é o primeiro filme de Caouette, apresentou orçamento de produção
‘oficial’ baixíssimo (U$ 218,32)
365
, os créditos exibiam nomes de produtores prestigiados
na indústria do filme independente (Gus Van Sant e John Cameron Mitchell), entre outros.
No documentário, declaradamente auto-biográfico, Caouette retoma sua história de vida
desde a infância, criando uma conturbada narrativa reveladora de inúmeros conflitos que
culminam no momento presente: aos 31 anos, mora em Nova Iorque com o namorado,
David. Certo dia, recebe uma ligação e é informado de que sua a mãe, Renné Caouette, está
internada em estado grave, após uma overdose de lítio. Renné sofre de esquizofrenia,
diagnosticada após anos de tratamentos de choque recebidos durante a adolescência.
Jonathan decide, então, retornar ao Texas, seu estado natal, e trazer a mãe para morar com
ele. Durante a viagem de trem que o leva de Nova Iorque a Houston, ele adormece e sonha;
Tarnation
366
é o filme-sonho que traz de volta lembranças, imagens, sons e formas que
ilustram e criam sua vida-cinematográfica.
Tarnation traz como tema a construção de um retrato de família nada convencional,
completamente distorcido dos retratos tradicionais; em oposição a uma estrutura que reúne
e organiza personagens e situações, o documentário é uma composição tão desorganizada
quanto a própria vida do diretor. Entretanto, essa desorganização narrativa é proposital. Em
meio ao caos, se estabelece uma linha que nos leva da infância ao presente de Caouette,
devidamente inserida no tempo cronológico; o que sugerimos como senso de desorientação
evoca a personalidade perturbada do diretor, e quanto mais o filme avança, mais difícil fica
365
A edição da Cahiers du Cinéma de novembro de 2004 traz uma resenha sobre o documentário. Nela,
menciona um tipo de filme que vem se tornando freqüente nos festivais, como uma espécie de ‘Síndrome de
Bruxa de Blair”: baixo orçamento, ‘padrinhos’ de prestígio, produção amadora
366
Em entrevista à ‘Cahiers’ (a mesma da nota anterior), Caouette explica o título da seguinte forma: “Uma
palavra pouco utilizada, algo equivalente a ‘inferno e danação’, e também o nome de um dos meus grupos
preferidos”.
174
para o espectador compreender a complexa e neurótica identidade de Jonathan. Crescendo
em meio a complexas referências familiares (é criado com os pais, os avós, em instituições
do estado e orfanatos), ele atravessa a vida se inspirando em tendências, costumes e hábitos
cultivados pela sociedade (assim, assimila comportamentos de comunidades punk, grunge,
new wave e dark, entre outras.), trocando de ‘identidade’
367
como se troca de roupa. Além
das imagens e sons registrados pelo próprio Jonathan – em sua maioria, uma colagem feita
a partir de imagens do arquivo pessoal que reúne cerca de 160 horas de material gravado
368
- o documentário incorpora fotografias antigas, emissões de programas e filmes de TV,
pedaços de filmes de ficção, cartelas e legendas eletrônicas, performances encenadas,
registros de experiências com o equipamento digital
369
e entrevistas com familiares. E
música, muita música (“Há tanta coisa que não se pode dizer apenas com imagens. Eu
gostaria de ser capaz de pegar uma canção e, literalmente, a montar e incorporar a uma
totalidade (imagens, textos) que possa fazer sentido e emocionar”
370
).
A narrativa desenvolvida por Caouette é relevante para nosso trabalho pela seguinte
propriedade: no princípio do filme, o autor, que também é o protagonista, inscrito na
imagem, explica para o espectador que sofre problemas de personalidade em função das
dificuldades que atravessou durante a vida. Essa consciência faz com que Jonathan atribua
para si um predicado de despersonalidade. O nos leva à seguinte pergunta: como realizar
um filme biográfico - uma escrita de vida - quando não há uma biografia estabelecida?
Como instituir parâmetros de definição de um personagem que não tem uma
“personalidade”? Enfim, como organizar uma identidade a partir de um vazio? A resposta é
precisamente aquilo que viemos estudando até aqui: nada no filme é objeto de
recuperação, nada é memória ou lembrança; trata-se tão somente de uma invenção de
si, uma construção narrativa que organiza os dados biográficos de forma a estabelecer
367
Não é de admirar que Caouette se refira a ele mesmo como ‘despersonalizado’; seus valores de identidades
são assimilados da mesma forma como os valores adotados por tendências de moda da temporada:
descartáveis.
368
Caouette vem realizando filmagens de si desde os 11 anos de idade, nos mais diferentes suportes: HI-8, S-
8, Beta, VHS, DV. Todos eles são incorporados no filme. A primeira versão, apresentada no Festival de Filme
e Vídeo Experimental Gay/Lésbico de Nova Iorque tinha mais de 2 horas. Mitchell, um dos produtores
associados, convenceu o autor a reduzir o filme para 90 minutos. Alcançou o formato atual, de 88 minutos.
369
Há um momento onde Caouette reproduz sua fotografia inúmeras vezes na tela, criando um efeito similar
aos ‘Auto-retratos’ de Andy Wharwol.
370
Entrevista à revista Cahiers du cinéma, novembro de 2004 – vide bibliografia. Uma curiosidade: foi Gus
Van Sant, um dos produtores associados, quem conseguiu que os direitos das músicas utilizadas por Caouette
fossem liberados para o filme.
175
uma estória: “Tarnation me revelou tudo aquilo que eu queria ser”, revelou Caouette em
entrevista à revista Cahiers du cinéma. Mesmo que o filme seja construído a partir de
imagens registradas pelo próprio autor, ou por imagens por ele recuperadas e que atingem
sua sensibilidade, o documentário se revela não mais que uma invenção de ficção, uma
vida que se realiza como existência na cabeça do próprio Jonathan, e a partir dos
procedimentos de montagem. O filme, então, é construído como uma invenção de si, em
torno de si e, finalmente, sobre si.
No livro Blurred Boundaries, Bill Nichols faz uma detalhada análise do caso
envolvendo o cidadão americano Rodney King, que se tornou notório pelas questões sociais
e raciais que envolveram seus protagonistas
371
. Nichols se atém a um ponto específico: para
o teórico, toda a polêmica se explica em função da simbologia que se agregara a King; na
verdade, seu registro em vídeo incorporava uma história de conflitos e guerrilhas, valores,
preconceitos, leis e princípios seculares nos EUA. O desenvolvimento do caso foi
amplamente acompanhado e discutido pela mídia, formando-se um autêntico júri popular;
“os julgamentos e tribulações de Rodney King nos colocam exatamente numa arena social
onde uma luta pela hegemonia de interpretação se desenvolve”, escreveu Nichols
372
.
Efetivamente, a partir do momento em que a máquina da mídia entrou em campo, o que
entrou em julgamento foi algo muito maior que a pessoa física de King: o que estava em
jogo correspondia a todo um sistema de valores e crenças que sustentam a organização de
pensamento de uma sociedade. Ou seja: entre advogados, jurados, juízes, organizações
sociais, manifestações e vozes populares, o episódio se transformou em um momento
especial e histórico, quando questões fundamentais da estrutura de uma comunidade foram
desdobradas e discutidas. A essas questões – pertinentes a todos e a cada indivíduo - Bill
Nichols assinala como questões de magnitude, aquilo que é essencial na estrutura
psicológica de cada um. Para nós, é essencial uma idéia de que essas questões de magnitude
só podem ser percebidas a partir de um deslocamento do sujeito, sua movimentação em
direção ao centro da temática – no caso, King enquanto vítima e enquanto símbolo.
371
Em 3 de março de 1991, Rodney King, cidadão americano negro, foi espancado por oficiais (brancos). A
cena foi registrada em vídeo por um cineasta amador e foi a prova principal durante o julgamento. Em uma
primeira instância, os policiais foram inocentados – o que gerou uma enorme polêmica racial.
372
Nichols,1994,p.18 (vide bibliografia)
176
Assim como no episódio Rodney King, Tarnation também traz para o centro o tema
do deslocamento do sujeito como forma de discussão da construção de uma identidade
373
.
Entretanto, Caouette não procede a uma auto-representação que o estabeleça como símbolo
de uma causa. Aqui, acontece o contrário: o jovem texano é um devorador de símbolos,
modismos e alegorias. Ao se expor da forma como o faz, ele não se torna um referencial
simbólico mas um locus da manifestação de inúmeros símbolos que fundam a forma de
pensar de uma sociedade. É menos uma identidade singular que uma identidade social. Isso
fica abertamente claro na utilização do desdobramento do autor-personagem como um
efeito narrativo, instituído no texto narrado na 3ª pessoa. Dessa forma, Caouette se organiza
em planos distintos, concebendo uma divisão entre personagem e autor, evocada na própria
estrutura do filme (“Falar de mim em terceira pessoa é uma maneira de exprimir esse (...)
sentimento de se destacar de si próprio. O texto materializa essa distância”
374
). Em sua
resenha sobre o filme, o crítico Jean Tessé, da Cahiers du Cinéma, identifica nesse método
o seguinte mecanismo duplo:
“Essa narrativa é vista de muito perto – Caouette se filma desde os 11 anos de
idade – e recontada de mais longe, via um texto em terceira pessoa (...) que propõe
uma distância a ser definida. Ela (a distância) será (...) aquela da desordem interior,
ou uma precaução necessária face à escritura, contra a qual a terceira pessoa valerá
como garantia deo se deixar desaparecer por ela, de não se dissolver. Ou, outra
coisa, ela é o índice de que não há empatia possível a não ser através desse tipo de
alongamento desregulado, sem instância de controle – gesto perverso da
autobiografia que parece fabricar uma carapaça quando (na verdade) tece uma teia
de aranha”
375
Assim, Caoeutte lança mão da terceira pessoa como a possibilidade de estrutura
para a construção de sua identidade; uma duplicação que também tem a função de
373
Ainda que não se coloque como símbolo de uma causa, apela para inúmeras construções simbólicas na
tentativa de encontrar a sua própria.
374
Fragmento de entrevista à Cahiers. “Falar de mim em terceira pessoa é uma maneira de exprimir esse
problema da personalidade que existe em mim, esse sentimento de se destacar de si próprio. O texto
materializa essa distância. A música também. Eu precisava dizer tanta coisa a dizer, a única maneira de fazer
isso era comprimir tudo em texto, imagem e música. O texto funciona quase como legendas, como nos filmes
mudos, é também uma voz.”
375
Frankenstein et moi”, crítica publicada na revista ‘Cahiers du Cinéma’ nº 595, novembro de 2004, p. 18 e
19.
177
incorporar o elemento da ficção de forma livre – nos advertindo, assim, da qualidade
ficcional em toda biografia, mecanismo de despersonalização porque um transformismo,
uma construção monumental feita de fragmentos de imagem interpretados a partir de um
determinado ponto de vista: o sujeito biografado.
2) POR UMA POÉTICA DA SUBJETIVIDADE
A última edição do Festival Internacional de Documentários de Amster
(novembro de 2004) trazia como um dos temas dos debates realizados em torno da
produção recente a questão do filmes cujo foco é o documentarista em si;
“O realizador está aparecendo cada vez mais em seu próprio trabalho, se
deslocando para o centro e desafiando as fronteiras da decência. Até que ponto
pode ele ir ao abusar da desorientação ou do choque causado em sua audiência ou
em seu tema?”
376
Essencialmente, ao estudar o documentário performático, estamos deslocando nosso
olhar para a constatação de uma transformação profunda na forma de perceber esse tipo de
filme. Inaugurado a partir de uma perspectiva de forma de acesso ao desconhecido
377
, o
documentário evoluiu para a condição de uma manifestação do mundo a partir de um ponto
de vista (o do realizador) – ainda que a referência indexical da imagem seja extremamente
impactante, atenuando uma ‘realidade fantasmagórica’ inegável. Recentemente, é cada vez
mais vultoso o número de filmes que buscam manifestar não a opinião do sujeito, mas sim
o próprio indivíduo através do questionamento do lugar por ele ocupado no mundo.
Segundo Renov, os filmes atuais são marcados por aquilo que chama de política do
indivíduo. Em seu estudo sobre o sujeito no documentário, o teórico vai identificar nos
documentários auto-biográficos que proliferaram especialmente a partir dos últimos 20
anos uma espécie de discurso de resistência, uma materialização da expressividade do
realizador tornada o assunto principal. O panorama que hoje contemplamos é conseqüência
376
Esse é o princípio do texto que define os temas presentes no IDFA (Internacional documentary festival of
Amsterdan). Pode ser encontrado em:
www.idfa.nl/idfa_en.asp.
377
Não objetivamos diminuir a importância dos primeiros filmes; já apontamos que a estética desenvolvida
nesta época é absolutamente fundamental para a manifestação subjetiva contemporânea.
178
das diversas manifestações do sujeito desenvolvidas e aprimoradas no transcurso da
construção de uma tradição histórica que sempre esteve voltada para o exercício da
representação.
No artigo Toward a poetics of documentary
378
, escrito no início da década de 90,
Michael Renov desenvolveu o que chamou de teoria poética para o documentário
correspondem a princípios de construção, finalidade e efeito que respondem pelo conjunto
da mensagem a ser transmitida. Segundo Renov, seria possível identificar as propostas de
um filme a partir das funções que se atribuem à narrativa. Ele identificou quatro tendências
fundamentais no documentário
379
. As propostas da poética por ele concebidas se cristalizam
em função de uma predileção pelo real a qualquer custo que se desenvolve a partir da
observação de imagens
380
. Diferente de Bill Nichols, que organizou seus modos a partir da
identificação da matéria-prima das formas de representação, a análise de Renov privilegia a
produção dos efeitos que a articulação dessas estratégias produz. Como a tradição do
documentário automaticamente vincula essa forma de cinema a uma representação do
mundo, toda expressão necessariamente reflete uma forma específica de percepção; o que
não incorreria em erro relacionar essa ‘inteligência’ com os humores e contingências da
época. O problema, escreve Renov, é que humores e contingências passam a ser percebidos
não como uma interpretação, mas confundidos com o próprio referencial. Como já
colocamos anteriormente, é a partir dessa confiança que se deposita na imagem que a
polarização ficção x documentário estabelecida acima se estrutura.
Passados 10 anos, no livro The subject of documentary
381
(2004), Michael Renov
assinala o crescimento de filmes com uma proposta auto-biográfica como sintoma de uma
forma de reposicionamento do sujeito na sua maneira de se relacionar com o mundo.
Essa nova maneira vai ser predominantemente manifestada pela escrita subjetiva como
filtro de percepção e forma representação, ainda que a subjetividade nunca tenha sido
378
Publicado em “Theorizing documentary” em 1993, coletânea organizada pelo próprio Renov – vide
bibliografia
379
Registrar/revelar/preservar, persuadir/promover, analizar/interrogar e expressar
380
Não iremos enveredar por esse caminho, mas Renov estabelece sua poética a partir do texto de André
Bazin, Antologia da imagem fotográfica. Neste texto, Bazin discorre sobre a consciência de um autenticidade
documental que se difunde nas imagens a partir dos registros da 1ª Guerra Mundial.
381
O livro faz parte da série Visible Evidence. A série vem a reunir trabalhos apresentados originalmente no
seminário anual, de mesmo nome, dedicado ao estudo do documentário. É um dos mais importantes
simpósios do mundo sobre o assunto. Este ano, acontecerá em Montreal. Em 2006, a previsão é que seja
realizado no Brasil.
179
totalmente banida do documentário, escreve Renov. Alguns títulos do princípio da história
do filme de não-ficção testemunham em favor dessa afirmação: Rien que les heures, de
Alberto Cavalcanti (1926), O homem com a câmera na mão de Dziga Vertov (1929), The
bridge e Rain de Joris Ivens (1928/1929) e À propôs de Nice de Jean Vigo (1930) são
alguns exemplos de documentários onde o olhar subjetivo representou a ferramenta de
trabalho principal dos diretores. Entretanto, continua ele, alguma coisa aconteceu entre
essas abordagens poéticas dos anos 20 e o desenvolvimento da escrita subjetiva expresso
nas abordagens auto-biográficas contemporâneas. Ainda no princípio, quando o
documentário ainda buscava meios de se consolidar como uma forma escrita
cinematográfica, aproximações e tratamentos subjetivos foram sacrificados em função de
imperativos históricos: tornava-se mais importante falar de guerras, serviços do correio,
exércitos e instituições públicas que de pontes, dias de chuva e situações onde não
acontecia, à rigor, nenhuma ação. Isso deixa claro que a lógica da informação, à qual o
documentário seria submetido pelos próximos anos, foi muito cedo agregada a esse tipo de
cinema. Escolas e instituições foram fundadas em nome da produção de filmes educativos,
o cinema se edificando como entretenimento e, marginalmente, como forma de manifesto; a
televisão como meio de atingir a população em escala massificada colaboraram para a
intensificação de uma proposta informativa. Desde então, as abordagens subjetivas foram
ficando cada vez mais deslocadas e desprezadas em função de um posicionamento político.
Compreender o mundo pelo discurso de um sujeito significa compreender um
mundo na contramão da História escrita com H maiúsculo e desapropriada dos sujeitos
anônimos que são os verdadeiros atores dessa narrativa, assinala Renov. Ao estudar filmes
performáticos, nosso objetivo foi exatamente reencontrar nesses discursos o
estabelecimento de um deslocamento do autor como premissa fundamental da auto-
escrita. Um deslocamento que é promovido às custas de uma construção que privilegia a
abordagem subjetiva como princípio norteador. O que nos interessou mais na
investigação do modo diagnosticado por Nichols, e na análise dos filmes, foi a invenção de
dispositivos caracterizados pela imbricação de ferramentas clássicas da construção
narrativa da ficção e do documentário tendo em vista a criação de um ponto de
contato entre o realizador e o mundo.
180
Através de sua história, o documentário veio se firmando cada vez mais como um
tipo de filme com uma vocação para representação das evidências visíveis do mundo,
enquanto que à ficção caberia responder à necessidade de evocação onírica e fantástica de
nossas vidas. Seja por sua apropriação pela televisão, seja pela crescente utilização dessa
forma de cinema pelas instituições científicas e educativas, seja pelo caráter institucional e
militante que determina a fundação de inúmeras escolas, movimentos e projetos – e ainda
que, no decorrer da história, vários filmes e tendências tenham se imposto como um contra-
discurso – a polarização entre documentário e ficção sempre pareceu responder a boa parte
das indagações éticas e estéticas de ambas as formas. Essencialmente, os documentários
performáticos surgiram para perturbar uma forma de conhecimento que parecia cristalizada
e engessada. Ao mesmo tempo, mostram o vigor de uma forma de cinema que se recusa a
estabelecer parâmetros e solidificar cânones; subentendido no significado de ‘modo de
representação’ está um pacto maior que aquele que se firma com o mundo ou mesmo o
sujeito que dá a voz da interpretação: isso porque trata-se aqui de um compromisso com o
tempo e a forma como se articula o processo de envelhecimento. Documentários são filmes
que se notabilizam por transformarem-se na mesma medida em que o mundo e o homem se
modificam; isso nos aponta para a seguinte afirmação: em última instância, modos de
representação, mais do que formas de aproximação e interpretação de um sujeito, de um
tema ou de um tempo, sinalizam as formas como o próprio homem vive sua experiência de
mundo, a partir das modificações que atravessam e são atravessadas pelo tempo.
Documentários performáticos, no limite, representam a constatação dessa incrível e virtual
realidade que chamamos de VIDA.
181
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191
ANEXO
192
ANEXO
REPRESENTAÇÕES DE EXPERIÊNCIAS: outros “modos”
1) Gênese
Bill Nichols não foi o único, nem o primeiro, teórico a admitir formas de
classificação para o documentário. Nem o último: quanto mais variado se torna o campo do
documentário e maior a quantidade de material teórico disponível, mais interpretações
sobre os procedimentos, os códigos éticos e as estratégias de aproximação/representação se
multiplicam. É possível identificar em seu sistema de árvore genealógica
382
ecos de outros
trabalhos, anteriores. Formas de sistematização de um fazer para o documentário
naturalmente se inscrevem a partir do quadro social onde surgem; reflexo ou conseqüência,
fato é que a manifestação de um esquema de classificação compreende uma revisão do
tempo onde o filme é produzido, incluindo seus vícios e virtudes. Da mesma maneira como
Nichols desenvolve seus modos (um dando origem ao outro), cada revisão dos sistemas de
classificação é feita sob uma retomada de situações anteriores. Um processo que prevê a
acumulação positiva de técnicas de aproximação e representação.
Os sistemas de classificação discutidos a seguir, de alguma forma, estão em diálogo
com o pensamento de Bill Nichols, o teórico eleito por nós para o fundamento desta
dissertação. Ressaltamos que essa escolha tem caráter arbitrário e afetivo, e diz respeito,
primeiro, à funcionalidade no processo dessa pesquisa, e, depois, ao predomínio dos modos
de Nichols no universo da teoria do documentária
383
. Neste trabalho, optamos por
comenatar, de forma breve, as idéias de dois teóricos cujos sistema de classificação e
percepção da narrativa do documentário encontram repercução e diálogo nos modos
estabelecidos por Nichols. Eles são Paul Rotha e Eric Barnouw
384
. De igual relevância,
382
‘Ávore genealógica’ é a terminologia utilizada por Bruzzi em ferrenha crítica aos modos de Nichols, que
será explicada ainda nesse capítulo.
383
Existem muito poucas publicações sobre teoria do documentário no Brasil. Bill Nichols foi escolhido por
ser 1) o teórico que apresentou a teoria para a pesquisadora da dissertação, e 2) seus modos de representação
são extremamente importantes na próprio compreensão do documentário desta que escreve.
384
A principal razão para a escolha de Rotha e Barnouw está ligada ao fato de que ambos concentraram seus
estudos num esforço de classificação dos documentários similar ao de Nichols – a partir do agrupamento de
filmes que dividem características e técnicas de aproximação/representação semelhantes.
193
comentaremos o trabalho de Stella Bruzzi, que se coloca em oposição aberta à teoria
desenvolvida por Nichols. Bruzzi questiona os modos porque não acredita que as
características definidas por Nichols sejam suficientes para confinar um filme em um
determinado modo. Para ela, documentários são estruturas cada vez mais ricas e delimitá-
los em modos de representação mais limita seus potenciais que enriquece sua compreensão.
A principal razão de trazermos estes outros conhecimentos para o trabalho é desobrigar
uma leitura dos modos nicholsonianos como um cânone. Os três teóricos escolhidos o
foram de forma árbitrária – outras pessoas também criaram seus sistemas de compreensão
do documentário
385
. Uma vez que essa dissertação trata da análise de filmes por um recorte
específico, acreditamos que seja eficiente lembrar que existem outras formas de leituras. É,
também, uma forma de introduzir o leitor em teorias importantes na história do
documentário, mas que poucas vezes são mencionadas nos textos à disposição no país.
Nosso interesse no método de Nichols está em sua percepção de uma nova forma de filme
em diálogo com determinadas conjunturas e necessidades do mundo contemporâneo.
2) Paul Rotha
Paul Rotha se aproximou do cinema primeiro como acadêmico, e teve uma
participação ativa na consolidação da escola inglesa de documentários – cujo principal
membro é John Grierson. Seu primeiro contato com o documentário aconteceu através das
projeções realizadas pela London Film Society – uma sociedade de tendências esquerdistas
e ideológicas, lugar de onde saiu boa parte do grupo que se solidificou ao redor de John
Grierson no Empire Marketing Board (EMB) no começo dos anos 30. O EMB tinha como
principal função a solidificação dos valores do Império Britânico através de ações que
deveriam promover trocas entre as diferentes regiões, além de cristalizar uma consciência
de unidade pátria. Essa perspectiva ia exatamente ao encontro das idéias de Grierson
sobre o documentário. Em 1938, ao prefaciar o livro de Paul Rotha, Documentary Film,
Grierson deixava claro sua intenção ao integrar o EMB:
385
Michael Renov, por exemplo, define o documentário a partir da proposta de uma poética. Para Renov, o
documentário não pode ser absorvido a partir de suas formas de aproximação ou de representação, mas sim de
suas funções: 1) recordar, registrar e preservar; 2) persuadir e promover; 3) analisar e interrogar; 4) expressar
(vide bibliografia)
194
“Houve um tempo em que dizíamos que a virtude especial do filme documentário
estava em sua capacidade de cruzar brechas. Nós queremos dizer as brechas entre o
cidadão e a comunidade: em termos mais específicos, algumas brechas como as
existentes entre a sala de aula e a comunidade, o escritório de pesquisa e a fazenda, a
organização moderna e seus membros ou mesmo a organização moderna e as pessoas
às quais ela serve. Como muitos, nós estávamos conscientes de uma sensação de
falha: a falha em ‘compreender’ o movimento veloz, ainda mais complexo, das forças
da sociedade moderna.” (Apud: ROTHA,1939,pp.7)
Mais adiante, ele revela especificamente sua idéia sobre o documentário, e que vai se
solidificar durante os próximos anos como a escola de documentário inglesa:
“Nós tínhamos a idéia de que os princípios de educação deveriam ser modificados
para ir ao encontro de uma necessidade urgente de desenvolvimento de novos
instrumentos de compreensão. Nós sugerimos que esses instrumentos deveriam
ser, necessariamente, instrumentos dramáticos – uma vez que as medidas
acadêmicas e racionais estavam, por sua natureza, falhando em acompanhar o
alcance e o comportamento das forças corporativas e vitais em nosso meio. Na
utilização documentária do rádio e do filme, nós víamos novas formas de
educação da opinião pública em uma democracia”(Ibidem,pp.7-8).
386
Para entender o livro de Rotha, é fundamental que se entenda o tipo de documentário
que se produzia na época. Grierson dizia aos jovens cineastas que trabalhavam no EMB
que eles eram antes de qualquer coisa, propagandistas do Império, só depois, cineastas.
“Arte é um martelo, não um espelho” dizia ele (Apud:BARNOUW,1993,p.90). A
orientação do fazer documentário de Grierson desenvolvia-se sob essa premissa; entretanto,
o conceito de propaganda era desvinculado de uma concepção consumista: os filmes
deveriam transmitir mensagens para a formação de uma educação cidadã. O primeiro filme
de Grierson, realizado já no EMB em 1929 é Drifters, um retrato poético do cotidiano em
386
O cinema direto, que surgiu como uma resposta ao modo de fazer documentário consolidado por Grierson
– e que até meados dos anos 60 era a forma ‘oficial’ – se opunha especialmente quanto a esse aspecto. O
documentarista e professor João Moreira Salles conta a seguinte estória: Robert Drew, um dos principais
nomes do cinema direto – descobriu que deveria criar uma nova forma de fazer documentários a partir da
constatação de que os filmes desenvolvidos por Grierson eram uma espécie de ‘rádio na TV’ – era possível
assisti-los sem olhar para a TV. Drew é um jornalista e essa ainda é uma das características mais criticadas e
195
mar de um barco de pesca de arenque. A estrutura narrativa do documentário atende menos
a uma função poética da representação que à funcionalidade da mensagem: o filme é
prolífico em cenas que mostram o funcionamento mecânico do barco, enaltecendo uma
potencialidade escondida no movimento de roldanas, motores e hélices
387
; ao mesmo
tempo, a força poética cria uma representação bucólica e rústica da vila dos pescadores
situada beira-mar – claramente, o filme procura transmitir uma idéia de conjugação de
tradição e progresso. Os filmes do EMB também eram atravessados por um espírito
‘esquerdista’, presente na ideologia política que formava o grupo; segundo Harry Watt,
“todos os filmes que fazíamos tinham isso, nós estávamos tentando dar uma imagem do
trabalhador, distante do tipo ‘eduardiano ou vitoriano’, das atitudes capitalistas”
(Apud:BARNOUW,1993,p.90). Watt foi um dos nomes mais importantes da escola inglesa,
diretor de filmes com lugar estabelecido na história, como Night Mail e North Sea
(1936/38). O ponto de vista do trabalhador também está inscrito em obras importantes,
como Housing Problems, de 1935 e Coal Face, de 1936, onde se percebe também a
vitalidade no que diz respeito à utilização de filmes como manifestos. A escola de cinema
inglesa se esforçava em direção à produção de uma subjetividade coletiva e social,
baseada em pequenos fragmentos da sociedade. O EMB termina oficialmente em 1934, e o
grupo se transfere para o General Post Office (a agência oficial dos Correios), criando uma
unidade responsável pela produção de filmes de propaganda. Os documentários ali são
produzidos a partir de um único tema pré-estabelecido: a exploração do papel da
comunicação na vida moderna.
Paul Rotha surge como produtor e diretor no rastro do crescimento do grupo de
documentaristas ligados à Grierson. Toda essa rica experiência pode ser percebida em
Documentary Film, escrito em 1939, que se concentra no estabelecimento de uma
identificação das origens e procedimentos da realização do filme documentário – além
disso, há todo um capítulo reservado para o que podemos considerar uma primeira
classificação para essa forma de cinema.
debatidas no jornalismo. O documentário inventado pelo cinema direto procurava equiparar a importância do
som e da imagem. Os grifos do texto são da pesquisadora que assina a dissertação.
387
Filmes como O Homem com a câmera de Vertov, The bridge de Ivens (já mencionados) apontam para um
enaltecimento das potencialidades inerentes ao desenvolvimento tecnológico. No caso do filme de Grierson,
não sé se pretende uma ode ao progresso, mas também criar uma conexão entre estes e o Império.
196
Rotha vai estabelecer um conceito para o documentário a partir de um contraponto
dessa forma narrativa em relação àquilo que chamou de plain pictures of everyday life.
Esses consistem nas formas de registro próprias dos filmes de viagem, da natureza,
educacionais e noticiários. Isso diz respeito, escreveu ele, a uma idéia de que o conceito do
documentário está fundamentado na forma, pressupondo uma organização de um
‘material natural’, “onde a espontaneidade do comportamento natural tem sido reconhecida
como uma qualidade cinemática e o som é utilizado mais criativamente que como uma
função reprodutiva”(ROTHA,op.cit.,p.77). Decerto, uma leitura desse texto hoje soa
datada; mas é de uma beleza ‘ingênua’, derivada do frescor daqueles tempos: quando Paul
Rotha escreveu esse livro, o documentário ainda era um tipo de cinema bastante novo
388
Nanook do Norte, de Robert Flaherty, reconhecido como filme inaugural, fôra exibido em
1922. Toda a produção de documentário analisada é contemporânea do escritor – não
existiu um distanciamento crítico, um elemento temporal que separasse a produção dos
filmes da escrita do livro. Ele foi escrito sobre e a partir de algo próximo, identificado com
o contexto. Rotha reuniu os documentários a partir do estabelecimento de 4 tradições
389
:
naturalista/romântica, realista/continental, noticiário e propagandista. Em vez de
formas de representação do mundo, inscrições do tempo e do espaço nas narrativas. Acima
de tudo, o texto de Rotha não deixa de enfatizar a idéia de que o documentário é o produto
da manipulação do diretor, e um produto de características amplamente pessoais e por
isso, complexas – um produto que não cabia nas dimensões da produção de massa.
3) Eric Barnouw
Da mesma forma que Nichols e Rotha, Barnouw também estruturou seu estudo sobre
o documentário em torno de formas de representação/apresentação do filme. Entretanto, seu
trabalho está mais direcionado para a escrita de uma historiografia do documentário – e o
resultado é verticalizado como o sistema de Nichols. O estudo de Eric Barnouw envolve
388
Quando afirmamos o caráter de novidade, estamos estabelecendo que o período para maturação de um
conceito é ainda muito pequeno. O próprio Flaherty, cujo estilo de documentário diverge bastante daquele
idealizado por Grierson, tem participação em alguns trabalhos. Era natural que as metodologias se misturasse.
Na verdade, a evolução dos sistemas de classificação passa muito por essa experimentação paralela.
Entretanto, esse curto período é riquíssimo na produção de filmes.
389
Uma hipótese para entender a classificação dos documentários em ‘tradições’ está no reconhecimento da
proximidade da escrita de Rotha: assim, a produção dessa sistematização pode ser encarada como a criação de
197
uma quantidade de filmes extremamente maior
390
que a de Rotha; envolve também um
período muito maior
391
, o que possibilita a criação de aproximações e diálogos mais densos
que aqueles que encontramos no livro escrito em 1939. Durante muito tempo, Barnouw,
falecido em 2001, foi chefe da seção de filmes da Biblioteca do Congresso americano
392
;
durante um bom período, encabeçou a divisão de filmes da Universidade de Columbia.
Documentary: a history of the non-fiction film é resultado de um trabalho realizado nos
anos de 1971-72, patrocinado por uma editora e um fundo de pesquisa
393
. Durante esse
tempo, Barnouw e sua esposa viajaram por 20 países, visitando arquivos de filmes, estúdios
e realizando entrevistas com realizadores. Essa pesquisa coincide as origens do
documentário àquela do cinema, propriamente dito. Se Rotha estabeleceu como ponto de
partida aquele que é tido como o primeiro documentário (Nanook do Norte) para delinear as
especificidades que vão confeccionar um tipo particular de filme em meio ao crescimento
voraz da indústria do cinema de ficção, Barnouw estabeleceu as origens dessa forma de
cinema compreendidas nas concepções de análise de movimentos de Muybridge e Marey e
no registro instantâneo dos Lumière. Partindo desse ponto, em uma escala descendente,
Barnouw escalonou um histórico do gênero a partir das características encontradas e
relacionadas a determinados filmes. Documentary: a history of the non-fiction film é uma
referência clássica; seu trabalho de classificação data de um período mais próximo ao
presente, o que necessariamente torna o final do século XX a referência que ilumina a
análise de todos os filmes
394
.
A classificação proposta por Eric Barnouw busca explicar o documentário a partir das
diferentes maneiras de engajamento do realizador com seu objeto de filmagem – tratam-se
de estratégias, aproximações e interferências, formas polidas de experimentar o mundo com
padrões. Futuramente, Nichols desenvolveria seu trabalho a partir das observações definidas nesses padrões –
possivelmente, a idéia de Rotha era organizar o novo gênero.
390
No posfácio, Barnouw informa ter assistido cerca de 700 filmes documentários para a escrita do livro.
391
Enquanto Rotha analisou uma produção de pouco mais de 20 anos, Barnouw estende sua pesquisa por uma
cobertura sobre quase toda a década.
392
Mais especificamente, ‘chief of the Library of Congress’s Motion Picture, Broadcasting, and Recorded
Sound Division
393
A viagem de Barnouw foi possível devido ao patrocínio da Oxford University Press, uma licença da
Universidade de Columbia e uma bolsa do JDR 3rd Fund. Sua visita incluiu conversas com arquivistas,
projecionistas e intérpretes. Assistiu uma quantidade monstruosa de documentários, leu scripts e examinou
fotos em still.
394
O que não diminui em nada a importância do livro de Rotha; este está inscrito na história do documentário
de uma forma que, dificilmente, Barnouw chegará um dia a estar.
198
a câmera. Formas que, uma vez sintetizadas em procedimentos, são rotuladas de maneira a
ilustrarem a forma de trabalho do realizador. O que facilita a criação de uma identificação
dos documentaristas com bravos exploradores, repórteres militantes e cronista do cotidiano,
entre outros; todas essas, formas de classificar os modos de aproximação e representação.
Em 1974, ano em que Barnouw escreve Documentary, são as seguintes características que
resumem a forma do documentário para o pesquisador: o explorador, o repórter, o pintor,
o advogado, o bisbilhoteiro, o promotor, o poeta, o cronista, o divulgador, o
observador, o fatalista e o guerrilheiro.
4) Stella Bruzzi
Stella Bruzzi é professora de Filme e Televisão no Royal Holloway College, em
Londres. Em New Documentary: a critical introduction, de 2000, ela realiza uma análise
crítica do documentário a partir das influências no campo da imagem contemporânea.
Bruzzi se contrapõe abertamente à linha teórica que se cristalizou em torno da história do
documentário. Sua pesquisa parte de duras críticas aos trabalhos de alguns dos principais
nomes responsáveis pela criação da teoria do filme documentário – entre eles, Michael
Renov, Bill Nichols, Brian Winston e Barry Grant. A introdução de New Documentary diz
o seguinte:
“(...) esse livro estabelece o desenvolvimento de um relacionamento dialético entre
filmes de não-ficção mais inovadores e o cânone estabelecido do documentário, e
considera as muitas formas onde rígidas classificações do documentário têm sido
repetidamente problematizadas.”(BRUZZI,2000,p.2)
Bruzzi parte do princípio de que o conhecimento teórico do documentário ainda está
excessivamente voltado para uma problemática do registro como uma forma de
autenticação da realidade. Segundo a autora, escapa a esse pensamento uma abordagem
que identifique os sentidos e origens da tensão que sublinha a negociação entre o real e a
representação; grande parte da produção contemporânea está direcionada para essa questão.
Essa tensão corresponde, explica ela, à porosidade de fronteiras que têm surgido cada vez
com mais força entre a ficção e o documentário.
199
O estudo desenvolvido pela pesquisadora procura identificar na produção de
documentários não apenas os reflexos e os dispositivos inventandos por elaborações
teóricas passadas, mas traços dos cruzamento de características e influências na maneira
como a imagem contemporânea foi, e tem sido, produzida e assimilada. Para a autora, esse
tipo de cinema não se desenvolve de forma verticalizada – não é apenas uma questão de
‘modos’ que se acumulam e influenciam. O documentário também se desenvolve
horizontalmente, uma vez que é atravessado pelas formas de relações e elementos que se
desenvolvem no próprio mundo. Assim, a produção de documentários, especialmente no
que diz respeito à produção contemporânea, é mais que uma síntese de técnicas ou uma
questão de autenticidade: é produto do desenvolvimento dos registros em câmeras digitais,
transmissões de TV, linguagens de vídeo, das câmeras escondidas e dos realities shows.
A opção por trazer o pensamento de Stella Bruzzi para essa dissertação incide sobre
suas críticas tecidas ao método de Bill Nichols – dentre todos os citados anteriormente, o
mais comentado pela autora. Ela considera a estrutura da árvore genealógica dos modos de
documentário exclusiva e conservadora, argumentando que essa hierarquia sugere que o
documentário contemporâneo é resultado de uma busca crescente pela criação de filme
introspectivos, subjetivos e personalizados
395
. Segundo ela, os modos de Nichols caminham
em direção a uma utopia onde, no limite, o último modo representaria um colapso entre a
realidade e sua representação. Bruzzi afirma que os documentários não se desenvolveram
de forma rígida, num movimento cumulativo-descendente. As inovações formais nesse tipo
de cinema estão não apenas expostas a influências dentro de sua própria linha histórica,
mas também são atravessadas pelas transformações na forma como a sociedade se relaciona
e produz imagens. Os modos de Nichols, para Stella Bruzzi, “impõe um falso
desenvolvimento cronológico no que é essencialmente um paradigma teórico” (2000,p.2).
Ou seja, a identificação de um filme a partir do conjunto de regras pautado pelos modos é,
para Stella, mais uma limitação que uma iluminação na compreensão da proposta do
documentário.
Uma das principais oposições que Bruzzi faz à metodologia de Nichols é um
estreitamento na compreensão dos filmes em função da compartimentalização de
395
A crítica de Bruzzi aqui incide especialmente no último modo: o documentário performático é,
essencialmente, um modo onde a subjetividade é a lógica dominante do conteúdo
200
características em determinados modos. Para ela, isso leva a documentários heterogêneos
serem forçados a coexistirem dentro de uma mesma estrutura. Entretanto, a própria
pesquisadora lembra que, em trabalhos mais recentes, o discurso de Bill Nichols sobre os
modos reconhece os limites impostos pelo escalonamento de sua metodologia. Ele afirma
que os modos determinam a maneira como os filmes representam o mundo, mas não
funcionam como uma prisão; “as características de um modo funcionam como dominantes
num filme: elas dão estrutura ao conjunto.”(NICHOLS,2001,p.100). Nos parece óbvio o
reconhecimento de que a estrutura se desenvolveu junto com o tempo, e que o que Nichols
chama de acumulação corresponde ao somatório de experiências que, por sua vez, leva ao
desenvolvimento de novos modos.
Outra ferrrenha crítica de Bruzzi sobre a metodologia de Bill Nichols concerne o
estabelecimento do documentário como uma forma narrativa derivada da ficção; o que
explicaria a estrutura dos modos a partir de um modelo de ficção
396
: “como se o real nunca
pudesse ser autenticamente representado e que qualquer filme, ficção ou documentário, que
tentasse capturá-lo estaria fadado a falhar” (Ibidem,p.2). Com isso, Bruzzi não quer
estabelecer uma dimensão polar entre as duas formas, mas sim identificar o imbricamento
de uma na outra. Há um sentido legítimo nas representações, escreve ela, que não devem
ser consideradas apenas como uma versão do real – ao contrário, elas jamais vão apagá-lo,
ou mesmo se invalidar enquanto representação. Para a pesquisadora, documentários são
filmes predicados entre aspiração e potencial; são ao mesmo tempo uma autêntica forma
de representação do mundo, e a constatação da impossibilidade dessa representação como
uma síntese do conjunto. Bruzzi procura afastar-se de uma relação dialética baziniana
(onde a realidade é compreendida como matéria passível de registro) e baudrillana (a
realidade compreendida apenas como mais uma imagem) e estabelecer o centro de sua
pesquisa nos níveis de porosidade entre imagem e realidade.
Ao definir o documentário performático, a argumentação de Bill Nichols privilegia a
evidência do recorte subjetivo no texto como principal forma de identificação. O uso da
subjetividade traz, como principal característica, uma maior liberdade na criação da
argumentação – em grande parte, essa criação fica evidenciada no uso de um repertório de
396
Em ‘Introduction to documentary’, Nichols começa sua classificação dos modos a partir do modelo de
ficção de Hollywood, onde a principal característica é a ‘ausência de realidade’. Podemos supor que o teórico
está trabalhando a partir de considerações sobre propostas narrativas.
201
técnicas e elementos emprestados da ficção. O que levou Nichols a identificar a corrosão de
fronteiras entre o documentário e a ficção como característica nesse modo de representação.
Assim, encontramos nessa porosidade o principal sintoma da subjetividade na qualidade de
figura de estilo da linguagem narrativa – um tratamento subjetivo da realidade. Bruzzi,
por sua vez, aponta essa diluição menos como uma forma de aproximação subjetiva, e mais
como uma necessidade de relativização frente às tantas formas como a imagem está
presente em nosso cotidiano. Assim, a um tratamento subjetivo, define os novos
documentários como um tratamento fictício da realidade.
Para Bill Nichols, a criação dos novos modos corresponde a uma revisão essencial em
procedimentos que se auto-desgastam através do tempo, criando uma continuidade coerente
entre práticas e propostas, articulando uma ligação entre o universo de produção
documentária e o mundo. Já para Stella Bruzzi, novos formatos são menos um resultado do
acúmulo de métodos que uma forma de contra-discurso que se estabelece em relação ao
momento anterior. O que defendemos neste trabalho é que a definição de Nichols está tão
relacionada com o desenvolvimento de uma perceção sobre as imagens do mundo quanto a
de Bruzzi; entretanto, a forma de descrição dos filmes a partir de suas características (como
o faz Nichols) define-se por como uma abordagem formal da teoria. Stella Bruzzi, por sua
vez, acredita que o estudo das formas do documentário só tem sentido quando analisado de
maneira conjuntural – ou seja, a partir das condições espaço-temporais onde existe.
O que nos levou especificamente à teoria estabelecida por Stella Bruzzi foi um ensaio
específico no livro New Documentary, chamado Documentário performático: Barker,
Dineen, Broomfield. Nesse ensaio, Bruzzi analisa a obra desses 3 documentaristas
397
a
partir de um ponto de vista particular do que julga ser um modelo performático. Entretanto,
sua concepção de documentário performático é radicalmente diferente daquela pregada por
Nichols. Para Bruzzi, o sentido da performance está ligado ao movimento da incorporação
do documentarista na situação filmada, e à auto-consciência da artificialidade na construção
de conceitos de verdade. Existe nestes filmes, escreve ela, uma relação inversa entre estilo
e autenticidade: quanto mais amadores, mais credibilidades têm enquanto registro pessoal.
O documentário performático, para Bruzzi, está ligado a uma concepção de registro do
improviso, do momento, da ocasião; “o papel que a performance adquire (...) se tornou, em
397
Os documentaristas são Nicholas Barker, Molly Dean e Nick Broomfield .
202
inúmeras instâncias, não a morte do documentário, mas uma forma crucial de estabelecer
credibilidade”(BRUZZI,2000,p.7) . Sua compreensão de subjetividade está diretamente
ligada à invenção do diretor enquanto um personagem frente à tela – é a maneira como se
refere a Nick Broomfield
398
ao comentar sua falsa engenharia de ‘ingenuidade’ como
mecanismo de auto-representação do diretor. A questão da autoridade e da existência de
uma mediação entre o relacionamento de quem filma e quem é filmado seriam fatores
intrínsecos a esses filmes.
Evidentemente, existem diferenças nas concepções de ‘performático’ dos dois
pensadores – a começar pelo próprio sentido da palavra. Para Bruzzi, a questão da
‘performance’ está diretamente relacionada à atuação do documentarista frente à câmera –
sua própria auto-representação enquanto personagem. Assim, a auto-inscrição substitui um
ato de reflexão; os filmes inexoravelmente são construídos a partir de uma teoria; forma e
conteúdo não estão necessariamente conectados; pode-se definir este tipo de filme como
um ensaio sem muitos prejuízos. Por outro lado, para Nichols, a articulação de um conceito
de ‘performance’ corresponde ao próprio documentário enquanto criador da situação auto-
referenciada. Não somente a incorporação do diretor é fundamental (mesmo que seja uma
incorporação ‘evocada’, expressa a partir do uso de elementos fantásticos), mas linguagem,
conteúdo, estratégias e ferramentas estão todas em um mesmo nível.
398
A filmografia de Broomfield é marcada por documentários ‘investigativos’, onde a busca do diretor –
registrada em primeira pessoa – constitui o assunto principal do filme. Em New Documentary, Bruzzi analisa
o filme Driving me crazy (1988) e Heidi Fleiss: Hollywood Madam (1995)
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