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LUIZ CARLOS GEREMIAS ALVES
O CHARME DO CRIME MIDIATIZADO:
desconstruindo uma “guerra a Beira-Mar”.
Rio de Janeiro
2005
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LUIZ CARLOS GEREMIAS ALVES
O CHARME DO CRIME MIDIATIZADO:
desconstruindo uma “guerra a Beira-Mar”.
Trabalho apresentado ao Curso de Pós-
Graduação em Comunicação e Cultura da
Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Amaral Argolo.
Área de concentração: Mídia e Mediações.
Rio de Janeiro
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Luiz Carlos Geremias Alves
O charme do crime midiatizado: desconstruindo uma “guerra a Beira-Mar”
Dissertação.
ORIENTADOR: Professor José Amaral Argolo – Doutor.
Professor José Carlos Rodrigues – Doutor.
Professor Mohammed Elhajji – Doutor.
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Fevereiro de 2005
A Jorge, Emília e Claudia.
Ao Alexandre
A Patrícia.
Aos hip-hoppers.
A todos os que não estão “mortos”.
A Jorge, Emília e Claudia, pelo apoio de sempre.
Aos hip-hoppers, pelos “toques”.
A Argolo, pela parceria e pela amizade.
A Mohammed Elhajji por mostrar um caminho diferente.
Aos que não estão “mortos”, pela inspiração.
Ao Alexandre, pelo futuro.
A Patrícia, por tudo.
A justiça é igual para todos.
Aí já começa a injustiça.
Millôr Fernandes
(Livro vermelho dos
pensamentos, p. 159)
RESUMO:
Considerando que há na cidade do Rio de Janeiro um confronto histórico entre grupos e
classes sociais, nominado no texto como uma "guerra à beira-mar", é proposta uma reflexão
sobre o sentido desse conflito e uma investigação de como a sua materialização numa "guerra
a Beira-Mar" – a execração midiática do traficante Fernandinho Beira-Mar – pode ser
entendida nesse quadro. Para isso, opera-se uma análise da subjetividade ocidental,
compreendendo-se que as classes médias cariocas podem ser incluídas nesse padrão
identitário gerenciado prioritariamente pela imprensa. São propostas algumas noções de
modalidades subjetivas dessa forma de civilização e sugerido um modelo que representa um
suposto espaço de formação de discursos e identidades: a "sala de espelhos". Conclui-se que,
apesar da "guerra a Beira-Mar" poder ser inserida no contexto da "guerra à beira-mar", aquela
apresenta uma nova configuração, remetida a uma estratégia de "pára-vento" em relação a
outro confronto que vem se formalizando na contemporaneidade: o das chamadas elites
econômicas, cujas práticas lembram em muito aquilo que é condenado em "bandidos" como o
traficante citado e que se caracterizam por uma organização bastante consistente, contra as
classes médias, que assumem um novo papel na configuração sócio-econômica-cultural
contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Conflito Social. 2. Violência Urbana. 3. Midiatização. 4.
Subjetividade. 5. Classes médias.
ABSTRACT:
Considering that there is in the city of Rio de Janeiro a historical confrontation between
groups and social classes, named in the text as a "war in the seaside", a reflection is proposed
about the sense of that conflict and an investigation of as his materialization in a "war against
Seaside" – the midiatic curse of trafficker's Fernandinho Beira-Mar (Seaside Freddy) – can be
understood in this conjuncture. For that, an analysis of the western subjectivity is operated,
being understood that the carioca middle classes can be included in that pattern identitário
managed priorly by the press. Some notions of subjective modalities in that civilization are
proposed and suggested a model that represents an assumption space of formation of speeches
and identities: the "room of mirrors". It is Ended that, in spite of the "war against Seaside" to
be inserted in the context of the "war in the seaside", that presents a new configuration, sent it
a "stop-wind" strategy in relation to other confrontation that comes if formalizing in our days:
the one of the calls economical elites – whose practices remind in a lot that that is condemned
in "gangsters" as the mentioned trafficker and that are characterized by a quite solid
organization – against the middle classes, that assume a new role in the contemporary social-
economical-cultural configuration.
KEY WORDS: 1. Social conflict. 2. Urban violence. 3. Midiatization. 4. Subjectivity. 5.
Middle classes.
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................... 9
1.
Praia, Sol, Mar... e Barbárie: uma brevíssima história da cidade do
Rio de Janeiro e um histórico do confronto entre seus grupos sociais.................... 18
1.1. Ama o bárbaro como a ti mesmo............................................................... 28
2. Vivendo e Aprendendo a Jogar: dois pilares subjetivos do
ocidente e a dicotomia sociedade x comunidade.................................................... 42
2.1. Aquele mundo distante que governa este, tão próximo............................. 43
2.1.1. A razão excludente...................................................................... 43
2.1.2. A fé absolutista............................................................................ 50
2.2. Jogos de ganhar e perder e jogos de jogar.................................................. 58
2.2.1. A ilusória captura da ética pela estética...................................... 65
2.2.2. O comunitário é o que nos faz humanos: a exaltação
da brasilidade por Nelson Rodrigues.......................................... 73
2.2.3. A demonização do funk carioca................................................ 80
3. Convite a uma Sala de Espelhos: a subjetividade especular do Ocidente.............. 86
3.1. A essência e a existência como parâmetros............................................... 87
3.1.1 A essência objetiva da liberalidade.............................................. 101
3.1.2. Que sociedade? Refém de quem?................................................ 106
3.2. Bem vindo à sala de espelhos..................................................................... 110
3.2.1. Equilíbrio numa linha imaginária................................................ 113
3.2.2. A essência é a duplicação do nada............................................... 118
3.2.3. O nada é a duplicação da essência............................................... 126
4. Saqueando Túmulos: crime organizado, crime "organizado" e a
"guerra a Beira-Mar"............................................................................................... 132
4.1. Crime organizado e crime "organizado".................................................... 135
4.1.1. Crime organizado......................................................................... 141
4.1.2. Crime "organizado"...................................................................... 149
4.2. O silencioso ódio das ovelhas..................................................................... 163
Considerações Finais..................................................................................................... 177
Anexos........................................................................................................................... 184
Bibliografia.................................................................................................................... 193
INTRODUÇÃO.
Nos últimos anos, a “violência urbana” se tornou o assunto midiático por
excelência no Rio de Janeiro. Poderia se esperar que isso tivesse ocorrido por um aumento
brutal dos índices de criminalidade na cidade, porém, aparentemente, não foi isso que ocorreu.
Os índices são altos há pelo menos uma década, mas não sofreram um significativo
incremento. Logo, há algo esquisito nisso e o interesse por essa esquisitice foi o primeiro
motivo para a realização desta dissertação.
Há algo mais estranho ainda. As maiores vítimas da violência, os pobres,
principalmente os negros, são geralmente acusadas nos discursos dos jornais como causadoras
da violência. Essas vítimas-algozes foram historicamente apartados de qualquer participação
no âmbito da cidadania e, como se isso não bastasse, estigmatizados e perseguidos pelas
autoridades policiais. Mais ainda, são até hoje classificadas como “inferiores”, “sem cultura”,
“pobres”, não apenas monetária como subjetivamente. O Estado sempre lhes deu as costas e
quando se voltou para elas, foi para acusá-las pela própria condição de desvalidos e, por conta
disso, reprimi-las e castigá-las. Cremos que isso não poderia ser diferente, se levarmos em
conta que, como pontuam Mário Duayer e João Fernando Medeiros (2003, p. 242), no mundo
burguês a miséria sempre foi considerada uma “falha moral dos miseráveis”, jamais sendo
considerada conseqüência necessária das relações sociais de produção, em particular da
indústria moderna.” Cremos também que é fundamental partir desse quadro para refletir sobre
a subjetividade que o funda e justifica. Como veremos, há na sociedade ocidental muito mais
coisas estranhas do que supõe a sua secular e vã filosofia.
Entre esses “pobres” e “negros” algozes surgiu, na década de 70, uma entidade
não registrada nos cartórios públicos, mas que cada vez mais demonstra ter entre os seus fins
a inserção socioeconômica de seus membros. Trata-se do Comando Vermelho (CV), criado
nos presídios como uma proposta de proteção contra a opressão de grupos de presos que, com
a anuência das autoridades, estupravam, roubavam e matavam desafetos ou todo aquele que
resistisse aos seus ataques. Essa entidade cresceu com a ajuda da mídia, se definiu
posteriormente como uma irmandade de marginalizados e, paulatinamente, vai assumindo um
perfil comercial, representando uma inegável inserção dos seus participantes no mundo dos
“jogos finitos” da sociedade. Em detrimento disso, deixa de cumprir a função comunitária
para a qual foi criada.
Gostaríamos de esclarecer que nosso posicionamento perante esta ou qualquer
outra instituição é, em primeiro lugar, crítico, pois compreendemos as “organizações” como
cristalizações fictícias de uma proposição ética que, a partir de então, passa a ser, no interior
dessas entidades, um discurso fantasmático que se naturaliza e assombra os participantes do
enredo institucional, passando a funcionar como uma contra-mensagem que direciona o
conjunto para um sentido oposto à proposição originária, conforme sugere Jose Bleger (1978).
A história do CV não tem desmentido esse fado, como veremos. Por isso mesmo, merece ser
estudada não como um “poder paralelo”, mas como uma organização “incluída”, uma
entidade que cada vez mais funciona com uma mentalidade empresarial. Os pobres participam
dessa organização, pois alguns deixaram de ser totalmente “excluídos” do mundo graças a ela.
Muitos dos que participam podem ser considerados inseridos economicamente naquilo que
chamamos de classe média, ou, preferencialmente, de “classes médias” (definidas no final
desta introdução), e de alguns se pode dizer que conseguem ascender acima dos padrões mais
medianos das próprias classes médias. Economicamente, não exatamente a organização CV,
mas a empresa CV, é totalmente viável e “incluída”.
A entrada em cena daquele que é, hoje, o produto preferencial dessa empresa
causou um rebuliço na sociedade carioca. A cocaína já era usada há muito, mas as classes
médias somente a descobriram como um atraente prazer quase solitário na passagem das
décadas 70 e 80. A maconha, um produto ilegal com custos, preços e misturas menores do que
a cocaína, também era conhecida há muito pelos pobres, mas apenas na década de 60
expandiu significativamente seus atrativos para as classes médias. As reuniões e festas neste
período tinham costumeiramente, senão sempre, aquele grupo que de repente sumia e depois
aparecia sorridente demais. Mais tarde, o grupo que “sumia” se reduziu a, no máximo, uma
dupla, ou, mais freqüentemente, a um só indivíduo que aparecia depois não sorrindo, mas
agitado, dentes rangendo. O ritmo feérico dos “negócios” casava bem com essa agitação e a
cocaína, ou o “pó”, o “brilho” ou a “brizola” passaram a ser companheiros inseparáveis de
uma parte dos “incluídos”.
Os pobres vendem a droga, a classe média a compra. Há um conluio, um
relacionamento comercial entre classes, como ditam as regras da Sociedade Econômica.
Apenas com esse espírito pode haver algum tipo de relação humana na lógica do controle
econômico, o “capitalismo de superprodução” citado por Gilles Deleuze (2004), como uma
referência fundamental da “Sociedade de Controle”. Este conceito é utilizado neste trabalho
como uma construção social na qual o espírito comercial se naturaliza e resume
hegemonicamente as relações entre identidades, não exatamente entre pessoas, pois que este
conceito leva em consideração o “caráter particular ou original que distingue alguém
(HOUAISS, 2001). Isso não pode ser considerado na Sociedade de Controle. Seria, por assim
dizer, um espécimen em extinção.
Falar em identidades supõe remetermo-nos ao conceito de subjetividade como um
parâmetro discursivo que determina a definição daquilo que o indivíduo apreende na relação
entre si e o mundo, entre o que considera parte de seu “eu” e o que entende fora dele. Esse
conceito desconsidera a noção de sujeito, conforme compreendida tradicionalmente pela
Sociedade Ocidental na modernidade, tomando-a como superada na medida em que propõe
uma separação entre as instâncias citadas. Procuramos nos ater a essa definição sempre que
nos referimos a esse termo nesta dissertação. O parâmetro discursivo subjetivo é aquilo que
marca de forma significativa a formação daquilo que chamamos de “indivíduo” na sociedade
capitalista contemporânea. Um indivíduo de massa, não o sujeito cartesiano. Trata-se do
resultado de uma desintegração do paradigma clássico do modelo societário europeu, que
compreendia-se formado por sujeitos autônomos cuja autonomia era dada pela referência
essencial à Razão.
Compreendemos, no entanto, que a referência metafísica ao “mundo ideativo”
próprio do racionalismo se encontra no jogo de simulações da sociedade contemporânea. É,
para nós, uma referência “essencial” que sustenta como um cunhal a construção identitária,
logo subjetiva, que chamaremos neste texto de “sala de espelhos”. Propomos que uma
sociedade pautada na liberdade como a – por isso mesmo – dita liberal, engendra uma
vivência “existencial” na mesma medida em que aprisiona esta numa lógica essencial e esse
jogo reflexivo é bastante interessante para ser estudado. Aparentemente, as essências estariam
vencidas, entregues em alma à verve objetiva e operante da Sociedade Econômica, mas
poderemos entrever como ainda perpassam o construto que ampara e sustenta esta.
Se já não nutríamos um grande respeito pela grande imprensa carioca, depois da
pesquisa que empreendemos para a realização desta dissertação não podemos computar
melhores impressões do que as que tínhamos. Muito pelo contrário. Pesquisamos matérias nos
jornais O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, O Povo e Extra durante dois anos, englobando o
período de junho de 2002 a outubro de 2004. O que vimos não contribui em nada para a
compreensão dos fenômenos sociais de que tratamos. O que a imprensa carioca fez durante
todo o tempo foi julgar, condenar e “encomendar” a execução de inúmeros réus, os
“bandidos” pobres. Quanto aos bandidos ricos, a conivência foi praticamente total. Esse fator
se constituiu noutro de nossos interesses no sentido de desvendar alguns aspectos da realidade
“violenta” do Rio de Janeiro contemporâneo. No entanto, isso certamente não é “privilégio”
da imprensa carioca e, para não parecermos preconceituosos, citamos também uma matéria de
um jornal paulistano, a Folha de São Paulo, que trata dos “ataques especulativos” dos anos 90.
Esta dissertação, assim como nossa vida intelectual, não se atém a um “tonel”
teórico. Há inegáveis influências privilegiadas na construção do texto, entre as quais podemos
citar Friedrich Nietzsche, Antonio Gramsci, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Felix Guattari e
Slavoj Zizek, mas nossos interesses em pesquisas diversas trouxeram inequivocamente a
presença de muitos outros autores no texto. O pensamento psicanalítico, que estudamos
durante dez anos, está presente, assim como, cremos que proficuamente, até mesmo a cabala
judaica, à qual também dedicamos algum tempo de pesquisa.
No título deste trabalho há uma referência ao termo “desconstrução”, utilizado por
Jacques Derrida (1994) para transformar a lógica de um texto introduzindo uma outra lógica,
tomando uma concepção estabelecida para lhe descentrar o sentido, a sua inferência básica,
proporcionando um vislumbre de uma intenção dessemelhante a que projetou inicialmente.
Não se trata, aqui, de promover uma análise desconstrutiva inserida diretamente na proposta
derrideana. Tomamos por empréstimo o termo para denotar nossa intenção de desfazer uma
lógica finita e pronta, a que leva a grande imprensa carioca a condenar previamente alguns
“bandidos” e a absolver previamente outros.
A utilização de algumas das aspas deste texto obedece a alguns sentidos. Por
exemplo, resolvemos pôr entre aspas termos como “bandido”, por entender que têm sido
utilizado apenas com o sentido de nomear alguns dos que podem ser assim chamados. Em
outros momentos não há aspas, quando cremos estar tratando dos que mais apropriadamente
deveriam, pela mesma lógica, ser tratados como tal. Quando tratamos da organização
criminosa, usamos o mesmo senso, por entender que a organização pode estar presente entre
as quadrilhas e no próprio CV, mas está muito mais presente, de forma mais ordenada e
consistente, em organizações criminosas que agem “na legalidade”. Para demarcar a
essencialidade dos pólos fulcrais para a metafísica ocidental, procuramos usar as aspas
quando tratamos dos temas relacionados à ontologia, ao “ser” ou “não ser”. Como um pode
ser o outro na sala de espelhos ocidental, as aspas servem como um alerta de atenção ao
sentido proposto.
Como tratamos de um confronto envolvendo entidades e indivíduos cariocas, uma
cidade que se imortalizou por conta de sua beleza natural e por conta de um estilo de vida
muito influenciado pelo contato com a amplidão do oceano, nas praias, resolvemos tratar
desse fenômeno como “uma guerra à beira-mar”. No entanto, como o mundo midiático
cristalizou durante algum tempo o seu foco no “bandido” Fernandinho Beira-Mar, cremos que
podemos falar mais apropriadamente nessa conjuntura de “uma guerra a Beira-Mar”. Esses
termos aparecem no texto com esses sentidos.
No primeiro capítulo, apresentamos um breve histórico do confronto que marcou
o povoamento do Rio de Janeiro. Constatamos que, historicamente, esse confronto foi
promovido pelas elites políticas, econômicas e sociais, e pudemos perceber que a animosidade
que boa parte da população pobre dedica às classes médias vem da aceitação das regras do
jogo proposto por estas. Se antigamente eram os bairros das classes médias e das elites que
eram proibidos para os pobres, nos dias de hoje são os bairros destes que são interditos à
visita dos mais bem aquinhoados. É o mesmo jogo, com as mesmas regras.
O segundo capítulo é dedicado a propor uma concepção dos pilares subjetivos do
ocidente e a desvendar de que jogo estamos falando. Assim, enfocamos o estatuto da Razão e
da Fé como referentes fundamentais para a construção do discurso que define a subjetividade
ocidental, e traçamos uma “teoria dos jogos”. Tomamos a proposta de Herman Parret de
dividir os jogos entre “finitos” e “infinitos”. Os primeiros são compreendidos como “jogos de
sociedade”, e são uma necessidade; os segundos são “jogos de cultura” e são movidos pelo
prazer de jogar. Essa conceituação é instrumental e possibilita que tenhamos um vislumbre do
estreitamento essencial que o discurso da economia, hegemônico na contemporaneidade,
provoca com sua proposta de liberação existencial. Com o auxílio desses conceitos,
pensaremos brevemente sobre a situação de fatores sociais fundamentais como a comunidade
e a vida cultural, tomando dois textos de Nelson Rodrigues para ilustrar uma noção de
“brasilidade”, ou seja, de uma identidade cultural focada no “local”. Utilizaremos o mesmo
referencial para pensar a demonização do funk no Rio de Janeiro, no início da década de 90,
com a inestimável participação da imprensa.
No terceiro capítulo, traçamos um perfil da lógica Ocidental no que diz respeito às
regras de sociabilidade e de subjetivização da identidade. A imprensa é utilizada nesse
capítulo como uma ilustração do mundo essencial que continua a determinar as regras do jogo
“existencial” da Economia. A oposição entre “essência” e “existência” é, neste trabalho, bem
mais instrumental do que filosófica. Falar em “essencialização” é pôr a essência antes da
existência, ou seja, propor que o sujeito é formado por parâmetros referenciais rígidos ligados
a uma concepção metafísica como a do “mundo das idéias” platônico, ou a toda a tradição
filosófica do velho continente. Falar em “existencialização” é pôr a existência em primeiro
plano, priorizando a liberdade do sujeito com relação à manipulação das essências, como
propuseram os filósofos ditos existencialistas, no século XX, como Jean-Paul Sartre e Martin
Heidegger. Essa oposição será usada nesse capítulo como uma forma de pensar sobre a
proposta subjetiva contida no projeto civilizatório de que tratamos.
Talvez o mais importante nesse capítulo, porém, seja a percepção de que a
subjetividade ocidental é estruturada como uma sala de espelhos na qual o suposto sujeito se
encontra a mirar e perseguir reflexos, tomando-os imaginariamente como entidades concretas.
O mais grave desse construto não é exatamente essa confusão, mas a crença que essa
confusão pode ser redimida pelo acesso a um Real puro e verdadeiro que é ofuscado por um
mundo de aparências, como no filme “Matrix”. Por isso, os debates acerca de fenômenos
como o da “violência urbana”, mesmo quando movidos pelas melhores intenções, acabam
sempre girando no mesmo lugar, oscilando entre os reflexos dessa sala de espelhos. Essa
percepção, correspondente a uma exacerbação subjetiva que procura dar a ilusão de
movimento a um mundo estático, nos leva a postular uma morte subjetiva do homem
contemporâneo, ou deveríamos dizer mais precisamente, das “pessoas” das classes médias,
para quem se dirigem predominantemente as mensagens midiáticas.
Finalmente, no quarto capítulo poderemos tratar mais especificamente do tema
central desta dissertação, tomando a estrutura apresentada nos capítulos anteriores para refletir
sobre o sentido da “guerra a Beira-Mar”. Nossa compreensão caminhará no sentido de definir
que essa guerra é mais um efeito especular que denota a necessidade de dar uma forma e um
senso ao desconforto que as classes médias experimentam no modelo neoliberal, no qual
assumem o lugar prioritário da sustentação das elites através da institucionalização dos saques
que levam a uma concentração econômica jamais vista. Para nossos objetivos, será útil tratar
diretamente do tema da organização do crime que ocorre “na legalidade”, diferenciando-o da
“organização” do crime ilegal, o dos pobres. Enquanto aquele causa os maiores estragos nas
classes médias, é a este que elas temem. E a imprensa é, em boa parte, responsável por esse
engodo.
Propomos, ainda no quarto capítulo, a compreensão de que Fernandinho Beira-
Mar não é exatamente o que parece “ser”, isto é, um horror para as elites econômicas e para as
classes médias. Temos uma compreensão bastante diversa. Beira-Mar não pode ser
considerado negativo para um sistema que serve duas vezes: como agente e como “reagente”.
Do mesmo modo, não há como aceitar que o caminho oferecido pelo Beira-Mar midiático seja
tão ruim assim para os pobres, para os ditos “excluídos”, os economicamente “inviáveis”. Se
não há opções de caminhos para a inserção, a “banditização” é uma reação que consideramos
saudável. Pelo menos mostra certa vida
1
, algo que certamente causa inveja aos mortos-vivos
que zappeiam sentidos em tumulares poltronas e leitos; certo ódio, poderíamos mesmo dizer.
O problema da “vida bandida” é que ela tem se mostrado “incluída” demais. O CV mostra,
hoje, que pode estar dando sua guinada definitiva para a efetiva operacionalização de seu
aparato “organizado” em uma autêntica empresa. Aos moldes burgueses, diríamos, com certas
adaptações estratégicas, mas com os mesmos princípios, principalmente o de buscar acima de
tudo o lucro. A “guerra a Beira-Mar” seria, nesses termos, uma disputa interna, uma autêntica
concorrência no interior do sistema, uma contenda intra-civilizatória. Não haveria diversidade
ou alteridade nessa guerra.
Se começamos esta dissertação, no primeiro capítulo, postulando que a “guerra à
beira-mar” não é um problema em si a ser desvendado, concluímos sugerindo que a “guerra a
Beira-Mar”, esta sim, é o verdadeiro enigma para o trabalho acadêmico que ora apresentamos.
Ela parece nos falar de uma novidade na configuração social ocidental, no paroxismo do
modelo que se define como definitivo e que, efetivamente, tem sugado tudo para o seu centro.
Durante todo o trabalho referenciamos nosso foco no que chamamos as “classes
médias”. Usamos o termo no plural para designar a abrangência dessa enorme faixa de
“incluídos”, de “viáveis” economicamente. O lugar social ocupado por essa “classe” vai dos
limites das chamadas elites
2
aos da imensa massa de excluídos do processo econômico,
político e cultural. O termo “classes médias”, nesta dissertação, corresponde a todo o
contingente de pessoas participantes da sociedade que auferem vantagens nos planos citados
acima (político, econômico e cultural) não exatamente por serem determinantes nesse
processo, mas pela adesão ao projeto das elites. Em outras palavras, obtêm dividendos por
conta de sua participação passiva na assimilação da lógica de articulação simbólica do jogo
social, e por conta de sua participação na realimentação, na confirmação e na transmissão
dessa lógica. Por conseguinte, não detêm poder a não ser o que lhes é permitido, mas
participam de alguma forma dele da forma que Alain Touraine (1970, p. 13) definiu como
“alienada”:
1
Segundo Slavoj Zizek (2004, p. 7): “os favelados são literalmente uma coleção daqueles que formam a ‘parte
de parte alguma’, o elemento ‘excedente’ da sociedade, a parte excluída dos benefícios da cidadania, os
desenraizados e despossuídos, aqueles que, de fato, ‘não têm nada a perder exceto as correntes que os
prendem’.”
2
Aqueles que poderíamos chamar de burgueses, mas que há muito parecem ter se descolado dessa classificação
para ocupar o lugar referencial de poder político, econômico e cultural antes dedicado aos aristocratas, uma casta
absolutamente isolada dos demais membros da sociedade que, no Brasil, segundo Pochmann, Campos, Barbosa
et al (2004, p. 11) está representada por “apenas cinco mil famílias portadoras de um estoque de riqueza
equivalente a 2/5 de todo o fluxo de renda gerado pelo país no período de um ano (...)”.
O homem alienado é aquele cuja única relação com as orientações
sociais e culturais da sua sociedade é a que lhe reconhece a classe
dirigente como compatível com a manutenção do seu domínio. A
alienação é, portanto, a redução do conflito social por meio duma
participação dependente. Os comportamentos do homem alienado só
têm sentido se considerados como a contrapartida dos interesses de
quem o aliena. (...)
É preciso ainda dizer que não consideramos “classe” como um grupo específico,
delimitável e discernível a não ser como integrante de um “espaço de relações
(BOURDIEU, 2001, p. 137) no qual se dá um “trabalho de representação” (idem, p. 139) que
sustenta a “visão de mundo” proveitosa para aqueles que chamamos de elites (ver nota 2),
mas que é curiosamente assumida como vantajosa pelas próprias classes médias. Como
veremos, essa condição peculiar confere às classes médias uma certa mortificação, muito
embora com uma irônica aparência vivificante.
Constatamos, observando as matérias econômicas dos últimos dez anos,
recortando e colando noções e percepções sobre a contemporaneidade, que o eixo da luta de
classes parece efetivamente ter mudado. Simplesmente não existe, se a tomarmos do vértice
das classes médias. Nada indica que haja uma consciência de classe que abarque o enorme
contingente dessas pessoas variadas que vivem solitariamente, mesmo compartilhando da
mesma subjetividade. A identidade está no andar superior e as ameaças no porão. No entanto,
sob o ponto de vista econômico strictu sensu, o inverso é bem mais verdadeiro. Há uma
grande aproximação dos “bandidos” e um afastamento radical da periferia das elites. Nesse
vértice, Fernandinho Beira-Mar pode ser entendido como uma imagem especular das classes
médias e seus sonhos de ascensão, um autêntico “emergente”. Assim como ele, as classes
médias “perderam”. Afastam-se de seus sonhos e assumem o foco da exploração capitalista.
Não foi à toa que a mídia criou a “guerra a Beira-Mar”.
Temos a certeza de que o estudo dessa temática é fundamental para a
compreensão não apenas da lógica midiática, que tem se imposto como fulcral para a
constituição da subjetividade e das identidades na sociedade carioca. Pensar sobre o tema da
“guerra à beira-mar” e da “guerra a Beira-Mar” pode nos levar a entender mais
profundamente como se estrutura a própria subjetividade que determina a cada indivíduo, no
Rio de Janeiro ou em qualquer outra cidade marcada pela “civilização”, quem é, o que pode
ser, o que não é e o que não pode ser. Em verdade, pode nos levar a compreender a
transformação da dinâmica social que pauta na Economia o seu percurso, mas não
necessariamente faz dela o fim último de suas ações e de seu sentido.
Parece evidente que não pode ser objetivo de uma dissertação apresentar soluções
ou indicar caminhos para qualquer lugar teórico. Não nos propomos a solucionar nada, muito
menos a idealizar um percurso a ser tomado por todo aquele que pretenda “melhorar a
realidade”. O que temos em mente é apenas contribuir para a discussão do que tem sido
considerado “civilizado” e “bom” numa contraposição simulada do que tem sido entendido
como “bárbaro” e “mau”, bem como as conseqüências que essa diferenciação implica. Com
relação a isso, porém, não cremos em neutralidade ou nos fetiches da “objetividade” e da
“isenção” jornalísticas.
Escrevemos para nos posicionar frente ao mundo e é com o esclarecimento deste
objetivo que iniciamos esta dissertação.
1. PRAIA, SOL, MAR... E BARBÁRIE: uma brevíssima história
da cidade do Rio de Janeiro e um histórico do confronto entre
seus grupos sociais.
Estamos no Rio de Janeiro, uma metrópole com cerca de seis milhões de
habitantes, banhada pelo oceano Atlântico em quilômetros de praias. Estas, são o “cartão
postal” da cidade e um dos grandes atrativos naturais que encantam os visitantes. Para seus
habitantes, se constituíram tradicionalmente num espaço de encontro, em que simpatias são
desvendadas, diferenças sociais são minimizadas e o corpo, esse velho estranho da sociedade
ocidental, salta a primeiro plano, referenciando a identidade de forma peculiar em relação à
velha tradição européia de cultuar a alma em detrimento do resto.
Essas praias têm história. Foram elas que trouxeram, algumas dezenas de anos
depois do Descobrimento, os franceses – os “Mair”, segundo os Tamoios –, interessados no
pau-brasil para as suas manufaturas têxteis, e determinados a fundar aqui uma “França
Antártica”, um projeto de Nicolau Durand de Villegaignon
3
. E foi por conta da necessidade de
3
Para Claude Lévi-Strauss (1955), ele pretendia fundar um refúgio para os protestantes, perseguidos pelos
católicos, e obteve permissão e condições para a viagem pela intervenção de Gaspard de Châtillon, o almirante e
político Coligny, um dos mais dedicados defensores da reforma perante a corte e uma das primeiras vítimas da
“Noite de São Bartolomeu” (1572). Esse povoamento daria origem a um império que calvinistas e livres
pensadores católicos ergueriam, juntos. O problema de seu projeto estaria na sua compreensão estreita de militar.
Embarcou 600 homens, mas esqueceu de levar mantimentos e mulheres, combateu a justificada insatisfação de
seus comandados com tirania e conseguiu até mesmo a animosidade de seus aliados tamoios, ao gerar um
controlar essas praias que os portugueses – os “pêros” – se instalaram no local que hoje abriga
o centro urbano do Rio, então área ocupada pelos franceses e pelos Tamoios, seus aliados.
Nessas praias o carioca aprendeu a se reconhecer como carioca na medida em que,
principalmente na segunda metade do século XX, passaram a ser usadas como um ponto de
encontro coletivo no qual a exposição do corpo foi sendo priorizada em detrimento das
vestimentas, gerando uma subjetividade singular de intensa sensualidade. Trata-se, para quem
o usufrui, de um espaço principalmente de ócio, de puro lazer, desde a antiguidade até hoje.
Como afirma Alain Corbin (1989, p. 266):
“A vida das Luzes” (...) “é filha do otium”. Os homens cultos não
ignoram que as praias do mar, por mais que se mantenham desertas
e repulsivas, foram outrora lugares de meditação, de repouso, de
prazeres coletivos e de volúpia desenfreada. A imagem de Cícero
retirado em Tusculum ou em Cumanum, a de Plínio, o Jovem, em
Laurentes, perto de Óstia, a villa sorrentina de Pollius Felix
descrita por Estácio e os conselhos de Sêneca sugerem a figura de
um tempo de lazer cultivado.
É preciso salientar, porém, que o ócio, na sua acepção clássica utilizada por
Corbin não significa exatamente mandriice, indolência ou preguiça. O ócio das elites, desde a
antiguidade romana, pode ser entendido mais apropriadamente como otium cum dignitate.
Implica, para o homem antigo, a construção de si em um “lazer digno”:
Na obra de Cícero, o otium indica um lazer escolhido, reservado aos
optimates que se afastam por algum tempo da demanda das
magistraturas, um fragmento de vida privada que o indivíduo
organiza à sua maneira, evitando o duplo perigo da preguiça e do
tédio; espaço de distensão que possibilita o exercício da
inteligência e, se for o caso, prepara a ação futura; (...) Mais
tardiamente, os conselhos de Sêneca incitam a identificar otium e
vida contemplativa, à maneira estóica. (ibidem, p. 267)
Não tão distante das proposições dos pensadores romanos, a modernidade trouxe,
no conceito de “férias”, algo da referência de “ócio digno”, mas com a variante de que, fora
do mundo do trabalho, o homem deveria se dedicar efetivamente ao lazer, por exemplo, um
hobby, para, da mesma forma, escapar do vazio do tédio. A ociosidade não se identifica mais
ao “conhecimento de si”, mas se resume a atividades que deveriam ser desempenhadas
exatamente para afastar pensamentos, notadamente os “perigosos”, relacionados ao culto do
nada fazer. O mundo produtivo precisava de seus membros vívidos, prontos para encarar
todos os desafios rumo ao progresso anunciado. O lazer programado, como nos jogos, e a
ambiente tão insalubre no forte Coligny – na hoje batizada “Ilha de Villegagnon” – que contaminou os nativos
ociosidade, seriam fundamentais para o descanso do corpo, esse escravo da produção
econômica, e para a reciclagem da alma, sempre afastada do mal pelos afazeres diversos do
repouso, como exemplifica a dedicação a hobbies. A praia, como local de pleno lazer, era
assim entendida como um espaço do vazio que, exatamente por isso, devia ser recheada de
sentido, como tudo na sociedade ocidental. Nela deveria se aproveitar para atividades como a
pesca, o banho medicinal, a natação, os jogos, a coleta de conchas, a leitura de livros, etc.
Tudo dentro da ordem.
Mas, de que ordem? Tomemos como parâmetro a vida predominantemente pacata
e regrada da classe média européia, culturalmente hegemônica a partir do século XIX em todo
o ocidente. Como bem afirma Peter Gay (2002, p. 48), “A burguesia moderna {...) é, de todas
as outras classes, a que mais completamente sublima seus impulsos básicos (...)” e, levando
uma vida moderada, plena de abstenções, as classes médias fundamentaram um modo de ser
que considera o excesso um elemento indesejável para a harmonia que desejavam. O termo
apolíneo – relativo à beleza harmônica do deus grego Apolo – designa bem a lógica subjetiva
de que estamos falando. O deslocamento do mal para o dionisíaco – relativo ao espontâneo,
ao natural, ao instintivo – foi uma estratégia organizatória para essas classes, de modo
semelhante ao que ocorreu com as aristocracias gregas em sua insatisfação com a experiência
democrática. Não há uma mera coincidência nisso. Essa identificação não se dá à toa, por
alguma contingência ou improbabilidade. Cremos que a lógica de valorização do apolíneo e
da demonização do dionisíaco é a base “essencial” da sociedade ocidental no que tange à sua
proposta cultural de unificação identitária. Os atenienses mostraram o caminho, as classes
médias o seguem até hoje.
As praias cariocas, não fugiram à regra. No Rio de Janeiro do século XIX, ir à
praia significava simplesmente tomar banho de mar e este não era uma atividade de lazer, mas
uma receita médica. A natação era algo tido como “um dos maiores prazeres concedidos por
Deus” (Rosa Maria Barboza de Araújo, 1993, p. 322) e, aos poucos, já na passagem para o
século XX, a cultura física passou a ser estimulada, pois: “Educar o corpo e disciplinar
hábitos significava integrar o país no perfil do mundo moderno e civilizado” (ibidem, p.
312). A praia passou, paulatinamente a fazer parte da vida carioca como espaço privilegiado
para esse fim. Esse fator trouxe um descolamento do sentido da praia como simples
receituário para uma boa saúde e englobou o encontro para a prática de esportes, o que não
correspondia a descuidar de cuidados salutares, muito pelo contrário, mas incluía
com pestes diversas. Não era, definitivamente, alguém adequado para uma missão colonizadora.
paulatinamente a ludicidade do encontro defronte ao mar. Tudo, é claro, no mais perfeito
equilíbrio.
No decorrer do tempo, a referência medicinal do banho de mar se esvaiu quase
que por completo. Por mais que se admitisse que seria saudável mergulhar no oceano, para
simplesmente relaxar ou nadar, isso não era o mais importante para o carioca da segunda
metade do século XX. A prática de esportes se mantém até hoje como uma referência
importante do que se fazer na praia. Jogos como o vôlei e o futebol continuam a ser praticados
nas areias, mantendo o mesmo espírito de fundar um espaço de afazeres, ordem e regras no
espaço da praia e de, fundamentalmente, abranger esse espaço vazio com a estrutura de um
sistema que, como veremos mais tarde, se define pela jogatina. No entanto, a praia passou a
ser para o carioca um recanto de encontro e de vivências diversas, primeiramente para as
classes mais abastadas que se acercaram do oceano com suas moradias, e, posteriormente,
também para os moradores dos subúrbios, geralmente mais pobres, com o acesso bem mais
difícil e nem sempre ordeiros e equilibrados como desejariam as elites.
Nesse espaço eminentemente lúdico, as pessoas têm o lazer garantido e gratuito e
dir-se-ia que as diferenças entre classes sociais podem ser camufladas com maior facilidade,
notadamente com o uso de “marcas” que representam a identidade com o padrão das classes
ricas, principalmente nas parcas roupas necessárias para a fruição desse ambiente, nas práticas
de esportes típicos das elites como o surf e na imitação do comportamento comedido das
elites durante o lazer. Embora essas diferenças sejam visíveis no próprio corpo, no modo de
falar ou nas atitudes, é possível minimizar a distância que caracteriza o convívio social entre
essas diferentes “comunidades”. Caco Barcellos (2003, p. 51) desenha bem esse quadro de
inter-relações quando conta como “Juliano VP”, leia-se Marcinho VP, “bandido” da favela
Santa Marta e membro do Comando Vermelho, morto em 2003 no presídio Bangu III, fazia
para se aproximar das meninas “da sociedade”:
A fórmula de Juliano era camuflar as diferenças de classe social. A
abordagem, por exemplo, tinha que ser na praia, um raro espaço
democrático da cidade. Na areia, as diferenças desapareciam se
alguns detalhes estéticos não fossem esquecidos. Modelos e marcas
das bermudas, sungas, óculos ou qualquer outro acessório deveriam
ser, de preferência, rigorosamente iguais aos usados pela maioria.
Precisavam também reprimir qualquer comportamento mais
extravagante. Gargalhadas, brincadeiras de luta, futebol, frescobol,
ginástica, guerras de areia ou de água eram consideradas atitudes
excludentes, coisas de favelados.
Não é que o padrão cultural hegemônico se esvaia com o mar, mas é possível um
ocultamento de alguns de seus fatores importantes, como as roupas usadas em ambientes de
trabalho. Esse ocultamento se dá paralelamente a uma simulação da cultura hegemônica,
presente mesmo na praia. Há, mesmo no lazer, a necessidade de uma representação que inclua
o indivíduo num consenso harmônico e os relacionamentos se referem sempre à ordem e ao
comedimento. Em contraponto a isso, há algo, uma ameaça, exatamente a desordem e o
exagero, que bem podemos chamar de “barbárie”
4
. Esta, para o imaginário ocidental,
corresponde à negação de tudo o que preza, um atentado contra os valores que adota, a
representação de sua própria finitude. Assim sendo, é tratada como um mal, uma doença
potencialmente letal.
De forma estrita, tudo o que não corresponda à lógica ordeira burguesa ocidental
pode ser considerado bárbaro, de modo que precisa ser, como uma doença, controlado ou
curado. A história ocidental é plena de exemplos dessas ações “terapêuticas”: para alguns
males, a força bruta, como nas cruzadas dos séculos XI e XII; para outros, a força sutil, como
a colonização das almas via cristianismo jesuítico; na maior parte deles, uma conjugação
“harmônica” das duas, para garantir a eficácia curativa. No entanto, parece haver uma ameaça
privilegiada para as moderadas classes médias ocidentais: os pobres. Provavelmente foi para
enfrentar esse malefício que Gustave Le Bon (1922) estudou “as multidões” e foi, em boa
medida, para manter uma certa profilaxia em relação à aproximação excessiva dessas criaturas
que todo um arcabouço de comportamentos de pensamentos éticos e estéticos foram se
solidificando. Como afirma Gay (idem, p. 49):
Entravam em contato com a maioria proletária (sem
necessariamente chegar a conhecê-la) nos lares, com os empregados
domésticos; nos canteiros de obra, com trabalhadores da construção
civil; e nas fábricas, com operários qualificados ou não. Também os
encontravam como moradores das favelas, para não falar dos
mendigos e prostitutas errantes cuja visibilidade importuna e
detestável os fazia recordar, caso possuíssem ainda um grama de
filantropia, que a sociedade, cuja construção era tão rentável,
produzia suas baixas, incluídas as provocadas por eles mesmos.
Naturalmente, os burgueses encontravam maneiras convenientes de
segregar-se das massas que virtualmente os sufocavam.
Podiam,(...), limitar o tamanho do público político impondo ao
direito de voto qualificações de posse de propriedades. Podiam
juntar-se em bairros privilegiados e caros. Podiam marcar distância
em relação às classes mais baixas mandando os filhos para escolas
separadas, fora do alcance dos pobres. Podiam escolher um
itinerário para caminhar até seus escritórios por ruas que lhes
permitiam evitar os bairros menos favorecidos da cidade. E podem
diferenciar-se de seus “inferiores” por meio das roupas, comida,
sotaque e gostos. De diversas maneiras, davam razão a Freud a
4
Para os gregos, romanos e, posteriormente, para outros povos, que ou quem pertencesse a outra raça ou
civilização e falasse outra língua que não a deles; estrangeiro (Antonio HOUAISS, 2001).
dizer a Martha Bernays: “Existe uma psicologia do homem comum
que difere sobremaneira da nossa”.
Essa necessidade aparentemente obsessiva de “lavar as mãos” sempre que a
imagem da pobreza se apresenta leva a uma situação de forçado alheamento. O contato com o
popular se dá em situações bastante específicas, geralmente bem mais ordenadas do que as
relações estabelecidas intraclasse. Se há momentos em que essa aproximação se dá de forma
mais espontânea é em festividades como o carnaval, com a troca de papéis que,
historicamente, essa festa proporcionou. E há pessoas ou pequenos grupos intelectuais da
burguesia que se interessaram em conhecer “o outro lado”, como pontuam Chico Buarque de
Holanda e Paulo Pontes (1980). Trata-se, porém, de curtos momentos e solitárias jornadas.
Via de regra, porém, essa aproximação se dá da forma mais asséptica quanto for possível.
Além disso, bem podemos notar que, em grande parte, as festividades, como o carnaval, vão
perdendo seu caráter lúdico de alternância de papéis sociais e muitos dos “desbravadores” das
sarjetas o fizeram com objetivos semelhantes aos dos jesuítas.
Tal alheamento vai se tornando cada vez mais marcante, como podemos perceber
no Rio de Janeiro. Na década de 80, quando o personagem “Juliano” tentava se “enturmar”,
havia uma certa curiosidade no contato intercultural por parte de uma parcela da burguesia. A
aproximação de um favelado como “Juliano” podia não ser agradável, mas despertava certo
interesse, notadamente nos jovens das classes médias. Essa curiosidade não nasceu naquele
momento, já vinha de longe, principalmente relacionada à cultura, com o samba
representando uma potente e interessante mediação interclasses, ou entre uma parte dos
pobres e uma pequena parcela das classes médias. Os anos 80 já começavam a reacender os
mais profundos receios com relação ao popular e, ainda assim, “Juliano” podia ir à praia sem
necessariamente sofrer assédios e constrangimentos nas blitzen da Polícia Militar (PM) ou ser
apontado como bárbaro. Diríamos que sua barbaridade era mais aceitável. Os “90” vieram
trazer outra realidade.
Se as classes médias pouco queriam saber de comportamentos de favelados, estes
se interessavam muito pelos bens materiais e culturais daquelas. Na praia, “Juliano” queria ter
acesso à diversidade cultural, conhecer o mundo diferente e valorizado das elites, mas para
isso precisava ocultar a sua origem social, se vestir diante de um espelho que o dissesse quem
“é” para esse outro – que, assim, o controla, da mesma forma como é controlado por seu
próprio olhar reflexivo na sala de espelhos que iremos visitar mais adiante. No plano material,
é claro, gostaria também de ter a possibilidade de outros acessos, como a uma conta bancária
que lhe proporcionasse algum conforto e, ao menos, relativa fartura. No entanto, tanto num
plano como no outro, os caminhos se encontravam fechados. Isso nos traz àquela nova
realidade referida acima. Podemos compreender que a diferença dessa fase da vida de
“Juliano” para a seguinte, quando se torna um dos “bandidos” mais procurados pela polícia, é
o método. Podemos falar também de arrojo, já que é necessário muito para “encarar”
frontalmente a força policial, guardiã dos limites urbanos entre a civilização e a barbárie. Em
ambos os casos, porém, o que ele, e provavelmente a maior parte dos outros “bandidos” das
favelas cariocas deseja são esses acessos. Para reforçar essa percepção, basta examinar as
matérias que dão destaque às moradias de alguns dos “bandidos” presos. São casas típicas do
padrão e do sonho das classes médias. No anexo A, exibimos uma matéria do jornal carioca O
Dia, edição de 12 de abril de 2004, que bem ilustra o que dizemos
5
. Além disso, a biografia de
Marcinho VP, escrita por Barcellos (ibidem) demonstra isso muito bem.
As praias passaram, principalmente a partir da década de 70, a ser cada vez mais
um local de grande convívio coletivo, inicialmente com baixa freqüência das populações
faveladas e suburbanas. No meio da década de 80, porém, durante o governo de Leonel
Brizola
6
, foram criadas linhas de ônibus que ligavam São Cristóvão ao Leblon e a Ipanema
num curtíssimo espaço de tempo. Isso facilitou esse acesso e levou boa parte da população
destes bairros a abandonar as praias da região, buscando refúgio em alguns “points” da Barra
da Tijuca, Zona Oeste, preferencialmente os de difícil acesso, como a minúscula praia da
Joatinga, na localidade conhecida como Joá. Lá, não havia mistura.
Na virada dos 80 para os 90 e em toda esta década, houve o recrudescimento da
tensão social no Rio de Janeiro. Em parte, a simples presença de elementos estranhos à vida
pacata da Zona Sul incrementou essa pressão. Historicamente, os lugares de uns e de outros
sempre estiveram bem demarcados. O desenvolvimento urbano, porém, trouxe uma
aproximação das distâncias e a necessidade de trabalhar levou, já na virada dos anos 90,
populações desempregadas às ruas dos “bairros nobres” oferecendo mercadorias que a
redução das taxas de importação – uma regra de ouro da virada neoliberal da economia
mundial – vomitava por aqui. A classe média passou a conviver com aqueles que sempre
detestou. Agora eles estavam em toda parte. Mas não foi só isso.
As últimas décadas trouxeram uma enxurrada de dinheiro do narcotráfico,
aliciando cada vez mais a classe média para o uso de drogas caras como a cocaína e os pobres
5
A matéria em questão trata da descoberta, pela polícia, da casa do “bandido” Luciano Barbosa da Silva, o Lulu
da Rocinha, favela localizada em São Conrado, Zona Oeste da cidade do Rio. Lulu foi morto dois dias depois.
6
Brizola foi, por dois mandatos, governador do Estado do Rio de Janeiro. A implantação das linhas de ônibus
referidas se deram no primeiro mandato, que foi de 1983 a 1986. Foi reeleito em 1990, cumprindo mandato de
1991 a 1994.
para a venda dessas drogas. Muito embora isso tenha trazido uma aproximação no espírito
comercial, afinal os pobres passaram a ser “empresários”, houve uma separação social e
cultural mais acentuada. Os “empresários” do pó não são bem quistos, evidentemente, pois
acabam exercendo a mesma função que as prostitutas: oferecem o que o cliente quer, prazer,
mas pagam com a marginalização e a perseguição policial como uma forma de mostrar que
não está certo o que fazem. Parece que o prazer, esse monstro delicioso projetado pela
Sociedade de Controle, credita cada vez mais ao ocultamento e à repressão seus atrativos.
Além disso, a experiência do prazer proibido inclui a perspectiva da dor enquanto uma
projeção perversa de gozo, ainda que nesses casos essa dor acabe sentida pelo outro, e seja
vivida vicariamente nos meios de comunicação. Tudo, assim, parece efetivamente simulado.
O “prazer oculto” não é tão oculto assim e nem sequer é tão prazeroso. A dor, como dissemos,
está próxima, apesar de distante, pois geralmente experimentada pelos que oferecem o gozo
proibido. São estes que devem pagar pelos pecados daqueles outros, numa situação mais ou
menos parecida com a de Cristo, ídolo religioso de boa parte das classes médias. Parece que o
sofrimento do outro é redentor, não para o outro, é claro.
A convivência entre os “dois mundos” jamais foi tranqüila, bem sabemos, mas o
incômodo com a presença tão próxima do “lado B” chegou a um paroxismo. Foi um
acontecimento essencialmente midiático que selou definitivamente o divórcio inamistoso
entre morro e asfalto: o assim chamado “arrastão”, acontecido em outubro de 1992 na praia
do Arpoador, zona sul da cidade. Como relata Micael Herschmann (2000, p. 175):
O incidente foi noticiado histericamente pelos jornais e telejornais
nacionais e internacionais, como se fosse um distúrbio de grandes
proporções que colocava em xeque a “ordem urbana”. De fato, as
rápidas imagens televisivas mostrando crianças e adolescentes
brigando em bandos, correndo desarvoradamente pela praia e
dependurando-se em janelas de ônibus superlotados apresentaram
esta manifestação cultural à classe média mas também geraram um
forte temor por parte deste segmento social e do Estado. Na
realidade, pesquisadores (dentre os quais me incluo) e até agentes
de segurança pública indagam-se se aquilo que assistiram no
Arpoador, naquele dia 18 de outubro, foi mesmo um arrastão. Isto
é, alguns se perguntam: sendo aquela uma das praias preferidas
pelos funkeiros, aquilo não só parecia não ter acontecido ali pela
primeira vez, como também constituía uma tentativa frustrada das
galeras de diferentes morros cariocas, dentre eles os funkeiros, de
encenar o “ritual de embate” que esses jovens inventaram nas pistas
de dança dos inúmeros bailes realizados semanalmente no Rio.
Os jornais dirigidos para a alta classe média carioca, como o Jornal do Brasil e O
Globo, porém, não entenderam o fato com tanta complexidade e escolheram efetivamente a
histeria promotora do medo e do terror à alteridade. O jornal O Globo, em sua primeira
página, num local absolutamente nobre, ocupado por manchetes e chamadas para reportagens
de fatos de grande importância, estampou um editorial ultrajado contra os bárbaros. O seu
título não deixava dúvidas sobre o que tratava: “Hordas na praia”. Herschmann (idem)
reproduz uma parte do texto:
O que aconteceu no domingo em praias da Zona Sul não foi simples
perturbação da ordem, e seria temeridade considerá-lo episódio
isolado. As hordas que se derramaram em corrida alucinada por
toda a extensão da areia não roubaram apenas bolsas e relógios;
principalmente arrancaram do cidadão carioca e dos visitantes da
cidade o bem precioso da paz dominical. Ir à praia é direito
inalienável e histórico do morador do Rio (...) Tudo isso foi
espezinhado nos acontecimentos afrontosos do domingo (...) Vamos
agora aceitar passivamente que o prazer de ir à praia seja
substituído pelo medo de ir à praia? As famílias serão obrigadas a
se fechar em casa nas manhãs de sol – porque a praia tem novos
donos? Os turistas serão mais uma vez afugentados, desta vez
definitivamente? As cenas mostradas pela televisão não permitem
dúvidas quanto ao caráter organizado dos “arrastões”. Apenas
grupos com estrutura de comando e planos bem traçados são
capazes de tal concentração, infiltração, ação simultânea e
dispersão – e tudo isso se viu, nas praias, domingo.
O editorial é um alerta contra a “invasão bárbara”. O perigo e o ultraje tomavam
conta das classes médias, que viam, estampado nos jornais, o sentido de tudo aquilo. Para
estes, não se tratava, como afirma Herschmann (idem, p. 193), de uma encenação de rituais
para aqueles jovens que freqüentavam a praia do Arpoador, algo como uma prática “natural”
de enfrentamento:
Na ritualização da violência nos bailes funk, os grupos não visam à
eliminação propriamente do inimigo. Através de suas performances
buscam o reconhecimento de um lugar – um território – para a
galera junto à “comunidade” ou às demais turmas. Experimentam no
jogo a participação, a inclusão, compensando um cotidiano que, em
geral, os rejeita, os exclui. Nos bailes, se, por um lado, percebe-se
a impossibilidade de uma integração total, plena entre as galeras,
por outro, renova-se o sentimento de pertencimento àquele
universo. O comportamento das galeras, apesar de ser secularizado,
lembra de certa maneira a atuação das “sociedades de guerreiros”,
para os quais coragem, honra e vingança são importantes valores.
Há um ideal de virilidade bastante cultuado entre os membros das
galeras. A vingança não é uma ameaça, um terror a ser contornado
pela prática do sacrifício – as sociedades de guerreiros buscavam
através das ações violentas, rituais, o restabelecimento de um
equilíbrio para essas sociedades, isto é, os sacrifícios e mesmos as
vinganças ou outras “violências selvagens” tinham limites, não
colocando a existência dessas sociedades em risco. Aliás, com esse
tipo de conduta, esses atores sociais visavam, na verdade,
“reequilibrar” o seu mundo. Como nas sociedades de guerreiros, a
violência das galeras tem um alcance limitado (ocorrem
eventualmente “excessos”) e o objetivo não é eliminar o “alemão”
7
.
Pelo contrário, a permanência dele parece garantir o clima de
excitação, de competição que se articula com o de humor e o de
erotismo, nesse tipo de baile. Os limites, como nas “sociedades de
guerreiros”, não estão estabelecidos dentro de uma lógica mágico-
religiosa do mundo. No entanto, uma moralidade expressa-se
através das regras fixadas para o jogo.
Em vez disso, de toda essa ritualização guerreira – que, afinal, não é tão estranha assim à
verve ocidental –, o que os veículos de comunicação cariocas viram no ato foi puramente “a”
barbárie. Se a estratégia era apagar qualquer discurso que não levasse, em primeiro plano, a
injunção de “baderna”, houve sucesso. Segundo Zuenir Ventura (1994), em episódios
semelhantes ocorridos posteriormente, as pesquisas indicavam que o carioca de classe média
deixava de pensar o fenômeno como fruto de condições sociais para passar a encará-lo como
ato de barbárie, incentivando a repressão policial com barreiras nas principais entradas dos
bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon e blitzen em ônibus vindos da zona norte da cidade.
O clima de medo não era novo, mas ganhava contornos inusitados pela força midiática que
assumiu. O “Outro” das classes médias cariocas, o favelado que referencia o “não ser”
civilizatório, um dia estivera longe, ainda que convivendo em espaços urbanos muito
próximos. Aparecia aqui e ali, como serviçal ou empunhando um canivete, depois um
revólver calibre 38. “De repente”, estava ali, em “horda”, a atacar a civilização. Nas tvs e nos
jornais, pior ainda. As reportagens que mostravam pobres indicavam que estes passaram da
participação obscura nas matérias policiais e nos programas de entretenimento para uma
participação mais ativa na sociedade. Haviam se tornado “bandidos” perigosos, traficantes,
assassinos, e portavam armas de guerra. O pesadelo se tornara real. Ninguém se perguntou de
onde vinham aquelas armas, nem como o sistema da “ordem” permitia que elas chegassem até
onde chegaram. Ninguém pensou que o mercado de armas é o que movimenta mais recursos
no comércio internacional, obtendo lugar de destaque no mundo financeiro internacional.
Ninguém queria saber de nada além dos riscos que corria com a ameaça bárbara da desordem.
Provavelmente, o que levou as classes médias a confirmar a sensação da
realização de um sonho mau que se materializava foi a própria lógica sócio-econômica na
qual viviam, e ainda vivem. Nela, sempre é necessário que alguém seja a vítima e, se num
determinado momento as vítimas foram os menos aquinhoados, num outro estes podem se
tornar algozes e a nova vítima passaria a ser o antigo verdugo. É o conhecido medo da “volta
do chicote” e de uma hora para outra, os que deviam se portar como serviçais pareciam dar
7
Leia-se o “inimigo”.
sinais de querer mudar essa condição. Tornaram-se “empresários” e “soldados”, personagens
antes prezados – ainda que os soldados o fossem com certa reserva – pelas classes médias.
Se atentarmos bem para a ordem social burguesa, o caminho do crime para os
pobres bem poderia ser entendido como “natural”, assim como é “natural” a lógica bélica da
sociedade que “naturalizou” a guerra econômica como organizadora de sua subjetividade.
Afinal, “guerra é guerra” e, para sobreviver nela, todos os recursos precisam ser tentados. No
entanto, no jogo especular característico da cultura ocidental – que conheceremos melhor a
partir do segundo capítulo –, o crime ou a violência são coisas impensáveis com
“naturalidade”, muito embora sejam referências intestinas para essa ordem e podem ser
compreendidas inclusive como o que há de mais “natural” no sistema fomentado pelas classes
médias. Em outras palavras, tanto o crime como a violência devem ser simulados como
distantes, como realização do outro, quando aparentemente estão tão próximos e quem os
pratica com maior dolo não necessariamente é aquele que aparenta fazê-lo.
E, por fim, as praias passaram a ser cenário de uma nova modalidade de
manifestação, desta vez da ordeira classe média, que passou a reunir-se, vestida de branco,
para pedir “paz”. Ou, de forma mais ostensiva, “Basta”
8
. Mas, basta do quê? Quem tomou a
iniciativa do massacre, pede para que este pare, mas continua massacrando, com cada vez
maior violência
9
. Essa é a uma das principais características dessa “guerra à beira-mar”.
1.1. Ama o bárbaro como a ti mesmo.
A cidade foi fundada em 1567 por Mem de Sá e seu sobrinho, Estácio de Sá,
sendo que este morreu na batalha que marcou a posse definitiva dos portugueses na região,
travada no dia 20 de janeiro, “dia de São Sebastião” – o que rendeu à nova cidade o nome de
“São Sebastião do Rio de Janeiro” e, posteriormente, um feriado em pleno verão para seus
habitantes
10
. Mem de Sá foi sucessor de Martin Afonso de Souza e de Tomé de Sousa como
8
Ver o panfleto desse “movimento da sociedade organizada” no anexo B. A aposta é a de que há um problema
que pode ser “sanado” sem que se mexa na estrutura que lhe fomenta e lhe dá sentido. Aparentemente, haveria
uma “disfunção” que precisa ser corrigida. Cremos que essa crença caracteriza o pensamento da classe média.
9
Recomendamos a leitura do relatório da Anistia Internacional intitulado “Rio de Janeiro 2003: Candelária e
Vigário Geral 10 anos depois”, encontrável no endereço
http://Brasil.indymedia.org/media/2003/08/262219. Da
mesma forma, vale a pena ler o relatório anual do Centro de Justiça Global (2004), “Direitos humanos no Brasil:
2003”, que pode ser acessado pela internet no site:
www.global.org.br.
10
Na década de 60, logo após a implantação do regime militar, o feriado foi “cassado”. Menos de um ano após a
“cassação”, um temporal, ocorrido exatamente no dia do santo preterido, causou inúmeras mortes,
governador da colônia e já havia comandado, em 1560, a expulsão de Blois Le Comte,
sobrinho de Villegaignon. Este, retornou à França e ganhou como recompensa de sua lealdade
o cargo de governador de Lens.
Estácio de Sá se instalara, em 1º de março de 1565, pouco menos de dois anos
antes da batalha do dia de São Sebastião, num local que ficaria conhecido como “vila velha”,
localizado entre o morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, vivendo praticamente sitiado nesse
local por dois anos, cercado de inimigos. A vitória militar de Mem de Sá sobre Villegagnon e
Le Comte não havia significado a posse da área, pois os contrabandistas franceses e os
Tamoios ainda imporiam inúmeras dificuldades aos portugueses até 1567.
No Brasil, a colonização portuguesa se fundou basicamente na proposta católica
de conquistar a alma dos “bárbaros”, salvando-os, assim, da vida dissoluta que lhes
caracterizava para que pudessem fazer parte da “civilização”. Não ocorreu, como na chamada
América Espanhola ou na Nova Inglaterra (os Estados Unidos), uma iniciativa colonizadora
com a fixação de colonos de forma organizada, com a construção de centros urbanos segundo
o padrão europeu vigente desde Roma. Enquanto o Estado português se ocupava em tirar dos
corpos indígenas o que pudesse, os jesuítas tentavam lhes salvar ao menos as almas. Em
outros termos, é possível afirmar que a corte queria apenas a terra para a exploração, como
efetivamente ocorreu, enquanto os padres se ocupavam com as pessoas que nela estavam.
Tornada capital colonial em 1763, transformada de vila fortificada em entreposto
através do qual se escoavam as riquezas da colônia – notadamente o ouro extraído em Minas
Gerais – a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro cresceu substancialmente apenas no
século seguinte, quando a família real
11
aqui desembarcou, em 1808. O Rio de Janeiro, que já
era a capital da colônia, passava a ser a cidade mais importante também da metrópole,
abrigando primeiro o próprio rei de Portugal – João VI – e sua corte, e, em seguida, o príncipe
regente, Pedro I, que viria a se tornar imperador depois da declaração de independência, em
1822, além de seu sucessor, Pedro II, deposto em 1889 com a republicanização.
O desenvolvimento comercial, manufatureiro e cultural se acentuou e a República
chegaria para selar o crescimento desse centro urbano, substituindo a corte pela nascente
máquina estatal republicana. O mais importante, porém, é saber que o último terço do século
principalmente na periferia e nas favelas. O motivo do desastre foi rapidamente encontrado: o descaso com São
Sebastião, que teria “declarado guerra” contra a cidade. E o feriado voltou.
11
Que havia deixado Lisboa trazendo todas as riquezas que pôde carregar, numa alucinada fuga das tropas
napoleônicas que invadiam o território português.
XIX trouxe um crescimento populacional assustador. Segundo Barboza de Araújo (idem, p.
30):
O Rio de Janeiro, ao inaugurar-se a República, atravessava uma
fase de profunda alteração demográfica que se estendeu até 1920.
Entre 1872 e 1890, a população e a densidade demográfica quase
dobraram, sendo então a maior cidade do país, com cerca de 522
mil pessoas e 409 habitantes por km2. Abaixo do Rio vinham São
Paulo e Salvador; cada uma com pouco mais de 200 mil habitantes.
Mas, quem eram essas pessoas que chegavam? Fundamentalmente, eram escravos
que, expulsos do Vale do Paraíba pelo declínio da lavoura cafeeira, das plantações de frutas
cítricas da Baixada Fluminense, e pelo fim da escravidão, acorreram para a cidade em busca
de trabalho. Como pontua José Amaral Argolo (2003):
No final do século XIX e primeiros anos do século XX, a então
diminuta população da Baixada foi impactada por um estranho
fenômeno: o inesperado e repentino fim das plantações de laranjas e
outras frutas cítricas, base da riqueza da região e principal produto
de exportação, principalmente para a Europa. Essa imensa área de
pomares e pastagens, rica e irrigada, tornou-se de repente
improdutiva devido à proliferação de um inseto originário, segundo
se diz, do continente africano
12
; inseto este que se adaptou
rapidamente ao nosso clima e aqui chegou nos porões das
embarcações utilizadas no transporte de frutas e outras mercadorias
perecíveis.
Todavia, não foi unicamente esta a causa do colapso econômico
daquela região. Bem orientada, a lavoura até poderia ter sido
redirecionada para outras culturas importantes (mandioca, batata,
milho, hortaliças, etc.), sem maiores prejuízos extensivos para a
pecuária.
Tardio ponto final de um modelo econômico perverso que matou
milhões de seres humanos, a Abolição da Escravatura contribuiu
significativamente para o abandono daquelas terras. Muitos
proprietários de fazendas e chácaras deixaram para trás o que
haviam recebido como herança e, despojados da mais-valia
representada pela força de trabalho gratuita e que muito produzia,
mudaram-se para a Capital. No seu lugar continuaram morando em
pequenas glebas arrendadas algumas famílias de escravos, cuidando
do que sobrara das plantações. De início foram estes os mais felizes
na escolha. Quanto aos demais, quer tenham sido alforriados ou
beneficiados pela leis do Sexagenário/Ventre Livre, como já
estavam desobrigados das tarefas diárias e não visualizavam
quaisquer perspectivas no que tange à melhoria do padrão de vida,
optaram, também, pela mudança para a Capital onde construíram
casas de madeira e saibro nas encostas dos morros da cidade
13
.
Aí estão postas as condições para um problema. Não o fato de migrantes irem,
premidos pelas necessidades, de um lado para outro, se instalando em regiões abandonadas
12
No imaginário ocidental, há inúmeros males vindos da África, inclusive insetos e doenças.
pelo interesse imobiliário, curiosamente o local que se esperaria ter sido povoado em primeiro
lugar, as encostas
14
. Não, isso não representa necessariamente um problema. O problema está
na significação dessas massas desvalidas para a ordem burguesa, já referida anteriormente. O
problema começou quando as classes médias formalizaram sua proposta identitária como uma
evitação obsessiva do contato com essa gente e, por conta disso, também formalizaram a
proposta de que o pobre, principalmente o negro, deveria ser tratado ora com comiseração, ora
com desprezo, mas sempre com agressividade, ora latente, ora manifesta. Afinal, para a
ordem burguesa, a ameaça está bem localizada e sempre fora de si, como no quadro
psiquiátrico conhecido como esquizofrenia paranóide, ou mais precisamente na posição
imaginária proposta por Melanie Klein (1978a), nomeada por ela de “esquizoparanóide”, cuja
característica é a projeção “para fora” de todo o mal, acompanhada por uma referência interna
de plenitude do bem.
Em outras palavras, podemos afirmar que o problema começa quando as classes
médias passam a ver essas pessoas como um saco de pancada redentor de seus pecados. E se
constitui completamente num problema quando estas pessoas descobrem que não são tão
inferiores quanto sempre lhes foi dito e que apanhar em silêncio cansa e despedaça o amor-
próprio. Assim, podem e devem lutar por um lugar ao sol, nas praias, por exemplo. Aí,
começa o terror. Aí, sim, temos um problema. Os personagens principais das matérias
jornalísticas ligadas ao tema “violência” são descendentes diretos dessa gente que chegou a
um Rio de Janeiro no qual o cosmopolitismo das elites recendia à província – recém egressos
da vida rural que eram – e as classes médias que, como demonstra Nelson Werneck Sodré
(1968), já podiam ser perceptíveis desde o século XVIII, cresciam aderindo à nascente
burocracia estatal da República. A cidade não tinha como inserir toda essa gente no mercado
econômico, e nada foi feito para isso. Pior, tudo foi feito para dificultar.
O “14 de maio”
15
foi terrível, nenhum plano foi esboçado para que o grande
contingente de escravos libertos pudesse ser aproveitado. Era como se toda essa gente fosse
invisível, ou assim se tornasse, ao menos economicamente. Há pelo menos três sentidos a ser
propostos para entender isso. Em primeiro lugar, a economia estava centrada na agricultura,
não havia qualquer projeto industrial. A vida urbana ainda era predominantemente movida
pelo dinheiro que chegava das propriedades rurais e pela máquina da corte e da República
13
Aliás, foi num desses morros, o da Providência, que ficava bem próximo às docas, onde havia empregos na
estiva, que surgiu a mais importante manifestação cultural do Rio de Janeiro: o samba.
14
Oferecem as melhores paisagens, permitem o isolamento e o controle do entorno.
15
O dia seguinte à Abolição.
recém-criada. A migração encontrou uma economia pré-capitalista, estagnada diante do
avanço tecnológico dos países europeus. Segundo, a noção de que o “mercado” resolveria
qualquer problema era a grande “novidade ideológica” da época, juntamente, é claro, à
premissa da inevitabilidade da revolução do proletariado, formulada por Karl Marx (1961).
Talvez se pensasse nisso, numa crença cega no novo mundo pregado pelos liberais europeus e
estadunidenses e num temor a investir nessas massas que um dia se rebelariam. Porém, o
sentido mais importante, o terceiro, diz respeito à não consideração desses brasileiros como
brasileiros, ou melhor, como parte da comunidade imaginada da Nação. Aí começa a guerra,
uma efetiva guerra civil
16
, ou melhor, uma guerrilha urbana “sem fim” promovida pelas elites
cariocas contra os pretos pobres. Para lidar com eles, a polícia com suas armas e sua
brutalidade. Muito antes da “violência dos traficantes”, aquela já existia com a mesma
barbaridade que é atribuída a estes na atualidade. O que há hoje, tudo indica, é um reequilíbrio
de forças. No entanto, a força policial continua fazendo seu papel, com cada vez maior
violência, o que inevitavelmente está gerando respostas mais violentas.
Não havia mercado de trabalho a não ser na estiva ou na semi-escravidão do
trabalho doméstico, no qual se trocava cama e comida pela vida nos fundos, junto ao tanque e
a lixeira. Promove-se algo que Hélio Santos (2002) chama de “barbarismo social” e que
permeou as relações sociais e, principalmente, interétnicas. Não há como deixar de considerar
isso quando pensamos a realidade da cidade do Rio nos dias de hoje. A manutenção da vida
ordeira do lado nobre gerava um mundo à parte, fato que é reconhecido inadvertidamente pela
mídia quando fala inadequadamente em “poder paralelo”. Este termo, como usado pela
imprensa, é absolutamente ideológico e cremos servir como reforço do abismo sócio-cultural
pelo fomento de uma “cultura do medo”. Trata-se, em boa parte, de um sensacionalismo
16
Jairo Santiago (2004, p. 92) compreende, tomando como referência Hans Enzenberger (1995), que “(...) há
que se considerar que a mídia entende a existência de uma guerra civil no Rio de Janeiro, em razão de uma
análise superficial dos efeitos dos ataques dos traficantes. Mas sob o ponto de vista teórico o termo não se
aplica, pois o fenômeno dos ataques dos traficantes no Rio de Janeiro não reúne elementos suficientes que
possam caracterizar uma guerra civil. A utilização do termo se constrói a partir de uma cultura do medo que
abarca toda a sociedade e que é alimentada pela mídia enquanto instituição, pela subjetividade dos jornalistas e
pelas falas de diversos atores políticos e pelo interesse econômico empresarial dos conglomerados de mídia.”
Gostaríamos de ponderar que a assertiva está absolutamente correta, considerando o ângulo da formação de uma
“cultura do medo” por parte da mídia, que utiliza o termo, assim, como sensacionalização de ações efetivamente
inadequadas para caracterizar uma guerra civil. Porém, precisamos considerar o aspecto subjetivo desse
fenômeno em sua totalidade e, ao fazer isso, descobrimos que realmente há uma guerra (chame-se de civil ou de
qualquer outro termo) histórica das elites – incluindo-se a classe média – contra as camadas mais pobres. Nesse
vértice, o que a mídia tenta fazer é ocultar isso, utilizando o mecanismo de pára-vento proposto por Ignacio
Ramonet (1999): realça o ataque de uns para ocultar o ataque de outros, ou oculta a grande participação destes
no ataque daqueles, como no caso do 11 de setembro estadunidense, como refere Slavoj Zizek (2003).
barato, típico do jornalismo marrom
17
que os “jornalões” tentam convencer-nos que não
fazem. Parece não haver, de fato, um “poder paralelo”, mas sim uma integração entre poderes:
para que as pessoas não morram de doenças ou de absoluta miséria nas favelas, o “poder
único” do Estado – o que se oporia ao paralelo – admite a participação dos traficantes, que
inegavelmente costumam prestam serviços às comunidades nas quais estão instalados,
principalmente no que diz respeito à oferta de empregos e à circulação de algum dinheiro.
Além disso, costumam contribuir para a redução da população favelada com suas disputas de
quadrilhas.
Mais que tudo, o tal “poder paralelo”, o que se refere à organização das
quadrilhas, aceitou bem o modelo proposto e se incorporou ao mercado empresarial, tendo
como produto as drogas – e quanto mais comercial for, menos prestará serviços comunitários,
como efetivamente tudo indica que vem ocorrendo. Quando a imprensa fala em um “poder
paralelo”, reconhece a existência de um “mundo paralelo” à ordem burguesa, uma legião de
discriminados que vive fora da cidadania e da legalidade, não por “pura maldade” ou escolha
entre inúmeras opções, mas por imposição lógica da guerrilha urbana “sem fim” promovida
contra o favelado, o bárbaro carioca. Trata-se do mundo dos deserdados do capital, os inúteis
para a movimentação econômica, os assim chamados “excluídos” que, porém, vão cada vez
mais se “incluindo” como comerciantes e como figuras midiáticas.
No transcorrer do século, o “mundo paralelo” já havia gerado o crescimento
rápido do mercado da malandragem, no Rio, e o da “pistolagem”, principalmente na Baixada.
No “jogo” do mundo capitalista, se há quem necessite de algum serviço “sujo”, há na mesma
proporção quem queira fazê-lo, se remunerado para isso. E se há um jogo a ser jogado,
sempre há jogadores dispostos a vencer. O malandro – um personagem com história
circunscrita principalmente na primeira metade do século XX carioca – era um jogador,
aquele que aposta, numa mesa ou na vida, todas as fichas na sorte de encontrar a quem
extorquir algum dinheiro, um “otário”. O “jogo do bicho” também ganhava nova força de
trabalho e cresceria até se tornar forte a ponto de financiar times de futebol e eleger políticos.
17
Diz H. L. Mencken (1988, p. 120):(...) muita conversa é jogada fora sobre a suposta diferença entre a
imprensa marrom e a mais respeitável. A diferença é precisamente a mesma entre um contrabandista e o
superintendente de uma escola dominical, ou seja, nenhuma. Honestamente acho até, baseado em vinte anos de
íntima observação e incessante reflexão, que a vantagem, se existe, está do lado dos jornais marrons. Tirando
um dia pelo outro, são provavelmente menos malignamente mentirosos. As coisas sobre as quais mentem não
costumam ter a menor importância – pedidos de divórcio, pequenos subornos, fofocas sociais, intimidades das
vedetes. Nesse campo, até prefiro ler mentiras do que verdades: pelo menos são mais divertidas. (...) A maneira
de mentir dos jornais mais respeitáveis é menos inocente. Seu objetivo não se limita a vender edições extras
para a gente simples; e sim o de perpetuar uma fraude deliberada, para melhor proveito dos cavalheiros que
ficam por trás do pano.
A mão-de-obra dessa e outras empresas ilegais foi, desde o final do século XIX, composta
principalmente por negros e imigrantes do Nordeste.
Os escravos libertos, principalmente estes, se tornaram imediatamente um
problema, e com isso tiveram mais problemas, pois, absolutamente marginalizados, sofriam
uma tripla perseguição: eram absolutamente pobres e tinham seu espaço social extremamente
restrito; considerados inferiores, não eram alvo de qualquer política em qualquer nível; tidos
como perigosos, eram caçados pela polícia e condenados a penas com mais rigor que os
brancos
18
. Cresciam as comunidades negras, as favelas, cada vez mais apartadas do “asfalto”,
um dos lados da “cidade partida” de Ventura (idem).
O “lado A” da “cidade partida”, porém, ganharia iluminação a gás, água encanada
e um novo e fascinante transporte urbano da era “neotécnica”
19
, os bondes elétricos. Além
disso, como referem Francisco Alencar, Lúcia Carpi e Marcos Venício Ribeiro (1979), se
construíram hotéis, jardins públicos e cafés, elementos fundamentais para o lazer dos
proprietários de terras e da “classe média” referida por Werneck Sodré (ibidem)
20
. A cidade
crescera muito, acentuadamente depois do início do novo século. De quinhentas mil almas, na
última década do século XIX, a população mais que duplicou. Como refere Barboza de
Araújo (idem):
Em 1906, a população girava em trono de 811 mil habitantes, sendo
a densidade populacional de 722 habitantes por km2. Nessa data, o
perfil demográfico revelado pelo recenseamento é o de uma cidade
receptora de imigrantes: grande proporção de população jovem, e
do sexo masculino. (...) Em 1920 o Rio já ultrapassava a faixa de
um milhão de habitantes (cerca de 1 milhão e 157 mil pessoas),
sendo a densidade populacional de 1.030 habitantes por km2.
18
Sobre esse tema, vale conferir o estudo de Carlos Antonio Costa Ribeiro (1995). Sobre a situação do negro no
Rio de Janeiro, indicamos o trabalho de L. A. Costa Pinto (1998).
19
Termo de Lewis Munford (1961, p. 509) que, conforme suas palavras, “Refere-se à nova economia que
começou a surgir nos anos de 1880, baseada no emprego da eletricidade, dos metais leves como o alumínio e o
cobre, e dos metais e terras raras, como o tungstênio, a platina, o tório e outros”.
20
Leia-se a ínfima burguesia de raiz liberal que vibrou com a republicanização, isto é, com a mudança do status
político e a criação de cargos que viria a ocupar, pois as idéias capitalistas só viriam a ter influência determinante
bem mais tarde, nos anos 30, com o fim do monopólio paulista-mineiro com seus persistentes senhores feudais
sustentados pelo café e pelas vacas leiteiras. Além disso, a quebra da economia estadunidense repercutiu na
Europa e deixou em ruínas o pacto liberal que, como o seu retorno no final dos anos 70 e implementação nas
duas décadas seguintes mostrou, é extremamente danoso para os países pobres. O crack” da bolsa nova-
iorquina, ironicamente, foi uma benção para o capitalismo brasileiro, como demonstra Omer Mont’Alegre (1972,
p. 436): “A revolução de 1930, consolidando o trabalho dos “tenentes”, destruiu parte do poder latifundiário e
fortaleceu os setores médios da sociedade, especialmente a nova burguesia industrial. Foram criadas, então,
condições institucionais para o surto industrial e seu fortalecimento. A crise de 29, gerando dificuldades para a
importação de bens de consumo, e rareando as nossas divisas com a queda do preço do café, formou condições
econômicas para o aproveitamento da capacidade da industrial nacional, então sub-utilizada.”
A mesma autora chama a atenção para o fato de que o aumento da população
trazia consigo alguns dissabores:
A intensa migração agravou os problemas sociais e econômicos já
existentes na capital. Em 1890, mais de 100 mil pessoas não tinham
ocupações definidas, sustentavam-se prestando serviços irregulares
ou viviam na fronteira da legalidade, como ocorria com prostitutas,
malandros, ladrões, desertores, ciganos, ambulantes e jogadores.
Essa massa de deserdados em 1906 crescera, superando a faixa de
200 mil pessoas. A estes, somar-se-ia um contingente de
trabalhadores regulares, porém mal remunerados, ou por vezes
trabalhando em troca de moradia e alimentação; empregados
domésticos, auxiliares de comércio (caixeiros), imigrantes recém-
chegados, aprendizes, etc. O total constituía, sem dúvida, a maioria
da população. Os empregados em serviços domésticos, por exemplo,
constituíam 25% da população, em 1900 (ibidem, p. 31).
Maurício Vinhas de Queirós (1975, p. 97) fala do mesmo cenário com diferentes e
ilustrativos relevos:
Estatísticas de 1882 demonstram que em seis das maiores
províncias do país – e justamente naquelas em que mais estavam se
desenvolvendo as atividades manufatureiras – Rio de Janeiro, Minas
Gerais, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará, mais de 50% da
população entre 13 e 45 anos era constituída de “desocupados”. É
óbvio que essa porcentagem aumentou ainda mais depois da
Abolição. Bem verdade que, excetuados os sertanejos nordestinos
expulsos pela seca – que sempre se revelaram trabalhadores
dispostos e decididos – a massa de “vadios” constituída por negros
forros ou libertos dificilmente poderia ser desde logo engajada no
processo industrial e submetida à rígida disciplina da fábrica, pois
– como antigos escravos – prezavam como um dos mais altos
valores o “ócio”, ao qual sacrificavam a possibilidade de condições
de vida um pouco melhores
21
. Entretanto, aos libertos e nordestinos,
somaram-se ainda as centenas de milhares de imigrantes italianos,
espanhóis e portugueses, etc., entre os quais – ao que tudo indica –
foram recrutados em sua maior parte os primeiros operários fabris.
Ora, se a maioria estava fora do “jogo”, como fazer para administrar a pressão?
Não havia espaços econômicos, nenhuma oportunidade para o pobre, a não ser trabalho,
21
Registre-se aqui, nesta passagem, um trecho algo infeliz de Celso Furtado (1977, p. 140), no qual Queirós se
baseou para aludir à “preguiça negra”: “A situação favorável do ponto de vista das oportunidades de trabalho,
que existia na região cafeeira, valeu aos antigos escravos liberados salários relativamente elevados. Com efeito,
tudo indica que na região do café a abolição provocou efetivamente uma redistribuição da renda em favor da
mão-de-obra. Sem embargo, essa melhora na remuneração real do trabalho parece haver tido efeitos antes
negativos que positivos sobre a utilização dos fatores. Para bem captar esse aspecto da questão é necessário ter
em conta alguns traços mais amplos da escravidão. O homem formado dentro desse sistema social está
totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos de vida
familiar, a idéia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento
mental limita extremamente suas ‘necessidades’. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem
inalcançável, a elevação de seu salário acima de suas necessidades – que estão definidas pelo nível de
subsistência de um escravo – determina de imediato uma forte preferência pelo ócio”. Surpreendente, isso.
Acabamos de descobrir, com a ajuda de Furtado, que os escravos se tornaram aristocratas com a abolição.
muito trabalho, nunca um emprego. A mentalidade liberal reforçava o massacre, com suas
aspirações ao mundo perfeito do deus Mercado. Para completar, pobres e pretos,
principalmente estes, eram massacrados pelo Estado
22
. Crescia, paulatinamente, um grande
mercado de pessoas que viviam à margem da lei, excluídos desta pela situação de
subempregados, ou se diria, em bom dialeto europeu, de sub-humanos, pessoas que viviam
em condições não consideradas civilizadas. Tome-se um mapa com as áreas que foram sendo
povoadas maciçamente durante o século XX por esses “foras-da-lei”. Lá, há áreas vazias com
nomes genéricos, de acidentes geográficos, as “novas terrae incognitae” de Jean-Christophe
Rufin (1996). Nesses locais, em tese, não há ninguém, ou não deveria haver
23
. Oficialmente,
não há. Num paralelo, são como certas regiões africanas nos mapas europeus de 1932, como o
do Atlas de Schrader et Gallouedec
24
, citado por Rufin (idem), “regiões inexploradas”, nas
quais ninguém vai, a não ser seus moradores – que não contam, pois não são considerados
“gente” – e, muito mal, a força policial, praticamente a única instituição estatal a prestar seus
(des)serviços ali.
No início do século XX, as condições desses “renegados” já não eram boas,
porém o Estado sempre conseguia piorar mais as coisas. Janine Miranda Cardoso (2002, p 19)
relata como, na área da saúde pública, isso aconteceu:
22
Essa “política” parece ter alcançado o seu ápice quando do episódio do Rio da Guarda, no governo de Carlos
Lacerda, no início dos anos 60, quando há sérias suspeitas de que moradores de rua foram lá atirados, vivos ou
mortos. Lacerda foi um político sagaz, emérito conspirador, como fica claro em seu livro, Depoimento (1978),
que defendia uma política semelhante a estabelecida posteriormente por César Maia na prefeitura da cidade em
dois mandatos cumpridos (1993-1996 e 2000-2004). Se este não parece ter chegado ao ponto de afogar
mendigos, defende uma política de extermínio e tomou como tarefa maior de sua primeira gestão como prefeito
a “limpeza” das ruas, devolvendo-a ao “povo”. Isso significou repressão feroz ao comércio de rua e o aumento
do aparato de segurança para livrar o “povo” do convívio com os pobres.
César Maia iniciou sua carreira política no Rio de Janeiro como secretário de Finanças de Leonel Brizola,
durante o primeiro governo deste, de 1983 a 1987. Era, então, filiado ao PDT. Saiu do partido para disputar a
prefeitura, em 1992, pelo PMDB. Também deixou essa agremiação para se filiar ao Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), uma espécie de “sigla de aluguel”. Ainda não feliz, trocou mais uma vez de legenda e foi,
pouco depois de perder a eleição para o governo do estado, em 1998, para o Partido da Frente Liberal (PFL).
Está nele, pelo menos até hoje. Cid Benjamin (1998, p. 79) assim o define: “Ele é daquele tipo de político que
assume tal ou qual posição não porque a considere justa, mas porque com ela pode lucrar em sua carreira. É
tudo uma questão de oportunidade ou, o que seria mais preciso, de oportunismo político. Como Maia achou que
os principais líderes da direita estavam ficando ultrapassados no Rio, dispôs-se a vestir essa camisa e ocupar o
espaço. Por ser extremamente vaidoso e gostar de mostrar um suposto caráter científico em tudo o que faz, não
escondeu as razões de sua opção pela direita (...).” Em 3 de outubro de 2004, foi reeleito para o seu terceiro
mandato na administração municipal carioca.
23
No anexo C temos dois exemplos. Vemos a área na qual está a Rocinha, provavelmente a maior favela de todo
o planeta, com aproximadamente 200 mil habitantes, vazia, e a área na qual fica a favela do Vidigal, também
sem qualquer indício de vida. Não há ruas nem, conseqüentemente, registros de pessoas vivendo lá. Essas
pessoas não existem oficialmente, a não ser como “bandidos”. O crime é praticamente a única possibilidade de
que essas áreas e essa gente sejam reconhecidas, ainda que do “lado do mal”. A fonte é o “Liatão Grande Rio
2002”, um catálogo telefônico do Rio de Janeiro, publicado pela OESP.
24
Consultar o anexo C.
Durante as três primeiras décadas do século XX, processou-se um
movimento vigoroso de controle social, em especial das camadas
populares, dentro das exigências do processo econômico de
afirmação e inserção do país na ordem capitalista, primeiro como
agro-exportador, depois viabilizando a implantação do capitalismo
industrial. Nesse período, foram também estabelecidos fortes
vínculos entre os campos da saúde e da educação, com a
interpenetração de conhecimentos, modelos e práticas, renovados
permanentemente, até os dias atuais, sempre no contexto de
determinadas conjunturas sócio-históricas, paradigmas de
conhecimento e modelos de intervenção sanitária.
Naquela época, educar, higienizar, sanear
25
estavam na ordem do
dia não apenas como intervenções técnicas, embora não
prescindissem dessa prerrogativa. Eram ações indispensáveis à
salvação nacional, oriundas do saber científico e portadoras de uma
“pedagogia civilizatória” capaz de plasmar uma nova percepção da
realidade, romper com o passado colonial e introduzir
comportamentos e atitudes conformes ao ideário de ordem e
progresso. Tais atributos não só qualificavam positivamente a
identidade de médicos e educadores, como vinculavam seu destino
ao Estado – principal interlocutor e espaço de atuação.
O alvo das medidas policiais e sanitaristas era, como demonstra Vera Malaguti
Batista (2003, p. 37) as “(...) classes perigosas. Perigosas porque pobres, por desafiarem as
políticas de controle social no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras
de doenças
26
.
A autora mostra ainda como o “medo da rebeldia negra” foi, e continua sendo, o
discurso de anteparo para a construção da ordem burguesa no país, ou, em outras palavras, o
anteparo fundamental para a implantação do modelo civilizatório europeu, essencialmente
excludente, pois se define assumindo a fala da vítima contra as vítimas de sua belicosidade. O
negro pobre funciona assim como o “bárbaro”, aquele que não fala, balbucia algum dialeto
incompreensível para a coletividade letrada, aquele que corporifica o mal, o primitivo, o sujo,
o doente, o feio, aquele que não deveria existir, mas persiste
27
. Foi essa gente que passou a
habitar predominantemente as áreas que até hoje são “manchas brancas” nos mapas, os
mesmos que formam os “bandos” que agora “aterrorizam a população carioca”. Falando em
“bandos”, por que não recordar Roland Barthes (1972, p. 86), quando empreende a tarefa de
25
Grifo da autora.
26
Nesse trecho, ela refere o livro: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril:cortiços e epidemias na Corte Imperial.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Esse trabalho trata das “operações policiais” realizadas no Rio de
Janeiro por iniciativa da Corte Imperial, na segunda metade do século XIX, para o combate às habitações
coletivas e às epidemias. Ali, com o aval dos sanitaristas, nasciam as “classes perigosas”.
27
As políticas de controle da natalidade, muito em voga entre algumas instituições médicas principalmente nos
anos 70/80 falavam da iniciativa burguesa de eliminar o problema do crescimento da população de pobres –
eminentemente negros – tentando evitar que nasçam. Logo após eleito para o seu terceiro mandato na
administração municipal do Rio, César Maia ressuscitou esse discurso, alertando que falava em “planejamento
familiar” e não em “controle da natalidade”. Um eufemismo, ao que tudo indica (ver anexo D).
dar sentido político ao “vocabulário oficial dos assuntos africanos” do Estado francês? Eis um
trecho ilustrativo, que pode ser aplicado com justeza às autoridades cariocas:
BANDO (de foras-da-lei, rebeldes ou condenados de direito
comum) – Eis um exemplo típico de uma linguagem axiomática. A
depreciação do vocabulário serve aqui, de um modo preciso, para
negar um estado de guerra, o que permite eliminar a noção de
interlocutor. “Não se discute com foras-da-lei”. A moralização da
linguagem permite assim deslocar o problema da paz para uma
mudança arbitrária de vocabulário. Se o “bando” for francês, é
sublimado sob o nome de comunidade.
Nestes termos, com essa “honestidade conceitual”, como a situação poderia ser
diferente? Como lembra Jesus Martin Barbero (2001), o que é determinante não é tanto o
desequilíbrio social, mas a absoluta falta de solidariedade dos mais aquinhoados com os
miseráveis. Foi por compreender isso que Herbert de Souza propôs, há alguns anos, um
programa de assistência social como o “Natal sem Fome”, abraçado pelo governo do
presidente Luís Inácio Lula da Silva com o nome de “Fome Zero”. No entanto, boas intenções
nem sempre compram o paraíso e ninguém melhora o caráter por assistir a um filme bíblico
ou fazer doações. A inexistência de solidariedade é estrutural, fala por seus interlocutores. É
maior que eles, maior talvez que o próprio sistema de acumulação capitalista. “Ama a teu
próximo como a ti mesmo”, aconselha o ideário cristão. Não há maior prova de
insensibilidade com o outro do que projetar a si mesmo nele. Se não houver correspondência
– o que é inevitável, pois ninguém pode corresponder ao desejo do outro sem destruir a si
mesmo –, o amor acaba junto com a proximidade do próximo. Trata-se de uma “blasfêmia”
que bem ilustra o caráter especular da cultura mediterrânea incorporada pelas classes médias:
somente amo aquilo que posso ter ou ser. Não é à toa que o rapper MV Bill fala do paradoxo
do cristão que discrimina o diferente
28
. Não há, na verdade, nenhum paradoxo. Esse foi o
espírito que animou a colonização européia. A máxima cristã lhe cai bem.
A tal “violência” não é nenhuma novidade, nem muito menos incompreensível.
Vem de longo tempo, mas apenas na última década se tornou assunto, pois ultrapassou a
limes
29
, ou seja, por ter se expandido das favelas para o asfalto, fazendo com isso a festa da
28
É muito confuso, é muito sinistro/ quem causa a miséria é quem diz ter amor à Cristo./ E com seu ar
superior não tem respeito pelo gay, pelo idoso, pelo pobre, pelo preto”. O trecho é do rap “Só + 1 maluko”, e
está no cd “KL Jay na Batida, volume III”, produzido pela 4P, uma empresa do próprio KL Jay em parceria com
outros rappers, em 2001. O mesmo rap está no cd de MV Bill, “Declaração de guerra”, produzido pela BMG
com o selo Natasha Records e lançado em 2002. Neste último, a música tem o nome de ”Camisa de Força”.
29
Designação das fronteiras do Império Romano. Fora da “limes” estavam os “bárbaros”.
imprensa com o seu fetiche do “crescimento dos índices de violência” na cidade
30
. Essa
violência sempre foi “crescida” nas favelas e periferias, principalmente quando a polícia lá
comparece para “manter a ordem
31
. A novidade é a expansão dos atos agressivos e violentos
para o asfalto, para o cotidiano da classe média, que ora é atacada pelos “bandidos”, ora é
encontrada pelas balas “perdidas” do “jogo” entre “polícia e ladrão” ou entre “ladrão e
ladrão”
32
. O saudoso Rio do bom humor e da convivência pacífica jamais existiu a não ser
para uma pequena elite e, principalmente a partir dos anos 90, os acontecimentos enfeixados
pelo conceito midiático de “Violência” vieram apenas trazer o “retorno do recalcado”
33
, o
elemento que sempre esteve ali, mas que era tratado como algo distante, como assunto de
jornal popular, de imprensa marrom. A partir de então, ganha as páginas dos jornais
“respeitáveis”, voltados para a classe média.
Para entender o que se passa no Rio de Janeiro contemporâneo talvez seja
interessante lembrar o que diz o Mefistófeles de Goethe (1987, p. 202) ao lamuriento Fausto,
que se remoía de remorsos por ver Margarida condenada à morte pelos feitos dos quais ele se
sentia mais culpado do que ela: “Ora, aí estamos de novo nos limites da nossa razão, onde
vós outros homens perdeis de todo a cabeça. Para que te associas conosco, se te falece a
necessária força? Queres voar, sendo sujeito a vertigens? Procuramos-te nós a ti, ou tu a
nós?
O que queriam os agentes ruidosos e os silenciosos cúmplices desse “massacre
civilizatório”? O que afinal se poderia esperar da reclusão do “povo preto”
34
em guetos como
as favelas, onde a violência de um sistema arrogante e excludente se reproduziu ao extremo,
até chegar aos nossos dias a um paroxismo realmente desnorteante? Gerações e gerações de
gente apanhando e sendo apenas reconhecida na humilhação, no escárnio ou, na melhor das
hipóteses, com uma bandeja e um pano de chão nas mãos, só não reagiria se não tivesse
30
Consultar o anexo E. Não há, pelos índices expostos, aumento – muito pelo contrário, há queda de homicídios
– a não ser dos “autos de resistência” policiais. E todos sabemos bem o que isso significa: execuções sumárias.
31
É claro que “manter a ordem” é um eufemismo que esconde a realidade exposta nos relatórios citados na nota
9.
32
No dia 15 de março de 2003, segundo matéria da Rádio CBN (Central Brasileira de Notícias, uma das
emissoras das “Organizações Globo”), a governadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho,
lamentava a morte de pessoas por balas perdidas no Rio de Janeiro. No entanto, ela alegava que o Estado
também perde quando morrem policiais e prometia intensificar a política de Segurança Pública. Eis aí, com uma
clareza estonteante, o desprezo do Estado por aqueles que deveria proteger. Mais que isso, um exemplo de que o
Estado não só não protege, como está contra o cidadão. Para isso, usa a polícia e lamenta mais a perda de seu
efetivo bélico do que de “civis”. Isso, para sermos generosos com uma declaração dessa natureza. A matéria foi
ao ar às 15h35m.
33
Trata-se de um termo psicanalítico usado para designar o reaparecimento de elementos “recalcados” ou
“reprimidos”, ou seja, postos para fora do “eu” de forma a não estorvar a organização deste.
34
Como preferem referir os rappers como Xis, KL Jay e outros.
qualquer dignidade, nenhum sangue nas veias, ou se tivesse à sua disposição uma explicação
lógica e convincente para esse massacre, o que não ocorre, pois o discurso democrático-liberal
garante igualdade para todos. Neste ponto, podemos lembrar a sabedoria oriental da interação
entre opostos, a constante luta entre yin e yang. Com esse instrumental, poderemos entender
que o chicote tem volta, e esta se dá no lombo de quem mandou dar.
A sociedade carioca, pelo que observamos, foi fundada sobre uma lógica
excludente, com boa parte da população – predominantemente negros e nordestinos – fora do
“jogo” a não ser como eternos figurantes de cenas que oscilaram entre o escravagismo e a
crônica policial. E tudo isso, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos ou na Europa,
sem que sequer um resquício de preconceito racial ou étnico fosse assumido. A nossa
“democracia racial”, a mistura entre classes e etnias que deslumbrou Stephan Zweig (1956) e
outros ilustres visitantes, nunca passou de um conluio entre dominantes e dominados,
agressores e agredidos, senhores e escravos, que sustentavam e mantinham uma estrutura
“alterofágica”
35
, ou seja, de fagocitação da alteridade presente nessas relações sociais, sem se
dirigir diretamente a ela a não ser em referências cruzadas, na denegação do “Não é que eu
seja racista...” ou na afirmação perversa da existência de “pretos com alma branca”.
As relações sociais traziam, embora sem a rigidez característica da europeinidade,
burguesa a mesma lógica: cada qual tem o seu lugar, e deve ser tratado como tal. Ao branco,
“berços de ouro”, esporte, bancos universitários e empregos garantidos. Ao não-branco,
manjedouras, valões, malandragem, crime, as ruas e, aos que tentavam entrar no “jogo”,
trabalho duro, muito duro, pessimamente remunerado. Enquanto as referências subjetivas
puderam se sustentar num certo feudalismo tardio, com reis fictícios e escravos reais, no qual
o questionamento da autoridade era indício de desajuste e motivo de perseguição e
encarceramento, tudo andou “bem”. Numa sociedade que se complexificou e se viu, ainda que
na periferia, numa “aldeia global”, recebendo informações sobre o que acontecia no resto do
mundo e se vendo influenciada por elas, com o acirramento do “jogo” econômico com a
chegada do bom negócio das drogas e da corrosão da civilidade iluminista pelo efeito
deletério da lógica do consumo, não havia mais como sustentar os jogos de esconde-esconde
semântico que a caracterizaram do início do século até as suas últimas décadas. De uma hora
para outra, aquilo que era fundo se tornou figura e passou a exigir tratamento adequado à sua
nova condição. O que era pré-conceito foi se formalizando enquanto conceito em movimentos
de emancipação étnica e de confronto discursivo à velha ordem, e gerou uma situação de
35
Nos termos de Muhammed Elhajji (2003).
conflito direto entre blocos de poder: de um lado, a “sociedade organizada”, com suas classes
médias de “vida comedida e equilibrada”; de outro a “sociedade desorganizada”, os pobres
que, ainda hoje, demonstram que a única “organização” que lhes resta é a que se concentra em
torno da ilegalidade, hoje bem mais lucrativa com o grande negócio das drogas ilegais. Fora
dela, resta a “gente ordeira e trabalhadora” que costuma apanhar calada.
Cremos que não há o que ponderar sobre as causas do surgimento de um ambiente
de violência tendo como foco de difusão a Baixada Fluminense e as favelas cariocas. O
pensamento causal não nos ajudará muito, simplesmente porque pondera com base no modelo
da árvore, citado por Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995), a violência, assim como o crime,
seria um dos ramos, um dos “galhos” de uma sociedade compreendida como o grosso e
nodoso caule que se expande em ramificações. Assim, procurar causas é como ficar rodeando
o problema quando o desejo é mesmo o de serrar o “galho”.
Não há causas, mas sim um sentido a ser decodificado. Este, nos salta aos olhos.
Trata-se da concentração da violência sofrida por décadas, somada aos rancores de um povo
escravizado que não conseguiu legar nenhum bem material para sua descendência, que se
difunde não de forma desordenada, como barbárie, mas exatamente como mandou o mestre.
Segue os mesmos rumos já traçados pelos colonizadores, utiliza seus instrumentos e venera os
seus deuses, aparentemente não para corroer a ordem social, mas para dela participar. O que a
violência dos pobres demonstra de mais grave é que a “civilização” se implantou
definitivamente entre nós. Este sim é o problema, o verdadeiro problema.
2. VIVENDO E APRENDENDO A JOGAR: dois pilares
subjetivos do ocidente e a dicotomia sociedade x comunidade.
Para compreender a situação de violência urbana no Rio de Janeiro não basta
saber que a configuração socioeconômica presente nessa cidade contribuiu muito para a sua
eclosão. É preciso penetrar na subjetividade que engendrou essa configuração, a mesma que a
sustenta e reproduz. Dedicados a essa tarefa, empreenderemos uma breve incursão às origens
da subjetividade ocidental. Cremos que apenas desse modo poderemos dar sustentação às
elucubrações a que nos dedicaremos no capítulo 3, dedicado a desvendar o mundo subjetivo
contemporâneo.
Neste capítulo, vamos rapidamente até a Atenas pós-democrática para pontuar os
elementos fundamentais para a estrutura da subjetividade que caracteriza uma sociedade como
a carioca. Temos claro, desde já, que vamos operar um recorte na realidade substancialmente
complexa desse tipo societário e não há qualquer intenção de esgotar o assunto. Uma
sociedade como a do Rio de Janeiro é marcada por inúmeras vertentes culturais, e se
tentássemos uma abordagem que as levasse em conta, provavelmente acabaríamos escrevendo
um tratado extenso e nos desviaríamos de nosso percurso. Vamos, assim, destacar aquela que
consideramos preponderante para compreender o modo de vida hegemônico nessa sociedade.
Falamos da cultura burguesa, característica das classes médias, tanto das suas facções mais
próximas ao poder quanto das mais distantes.
Dois tópicos são importantes para destaque. O primeiro é o da referência da razão
como organizadora subjetiva, e por isso vamos à Grécia dos filósofos, tomando Platão com
especificidade. O segundo se remete ao campo da fé, da religiosidade, focando rapidamente a
crença cristã para apreender uma de suas características mais marcantes que sustentam a
subjetividade ocidental. O monoteísmo, incorporado à tradição ocidental com a escolástica, se
constitui como um modelo subjetivo da maior importância, principalmente quando falamos do
Rio de Janeiro, colonizado pelos católicos portugueses e que teve nessa abordagem anímica a
sua iniciação para o mundo ocidental.
Para melhor situar nosso ponto de vista, em seguida vamos operar uma
diferenciação entre “Sociedade” e “Cultura”, utilizando uma atraente teorização sobre os
“jogos” de uma e de outra. Entendemos que de posse desse instrumental, estaremos aptos a
entrar na sala de espelhos na qual se dá o jogo identitário não apenas das sociedades centrais
do mundo ocidental, como também das periféricas, como o Rio de Janeiro.
2.1. Aquele mundo distante que governa este, tão próximo.
2.1.1. A razão excludente.
Pretendendo conhecer os pilares da subjetividade européia, não há como não
recuar até a antiga Grécia, mais precisamente à polis ateniense. Havia uma efervescência
intelectual nas polis gregas, notadamente na Jônia
36
, e Francis Wolf (1996, p. 68) descreve
bem a totalidade epistemológica que pontuou o aparecimento do sistema de pensamento
pautado na ordem racional que influenciou toda a história do Ocidente:
Designa-se assim o aparecimento de uma nova ordem do saber que
organiza conjuntamente novos campos de conhecimentos, que
supõem implicitamente, novos modos de validação e
reconhecimento dos discursos verdadeiros, entre os quais se contam
a demonstração matemática, que se formaliza com Tales por volta
de 600 a.C., a investigação física e cosmológica, que na mesma
época se afasta do mito entre os físicos da Jônia, a investigação
histórica, que rompe com a lenda e adquire um caráter sistemático
com Heródoto. É também a época em que se elabora um sistema de
direito civil e penal que nada mais deve aos valores religiosos,
como a pureza, ou às práticas rituais, como o ordálio
37
, e em que se
constitui igualmente uma nova economia da prova judiciária,
fundada na argumentação e na investigação dos fatos. Para o
coroamento de tudo, nasceram, como sabemos, os primeiros grandes
sistemas filosóficos.
Pode-se perceber, assim, que toda uma nova estruturação subjetiva estava sendo
instaurada no período em torno do quinto século antes de Cristo, tendo sido “coroada”, como
afirma Wolf, pelos sistemas filosóficos metafísicos que tiveram sua origem nas proposições
de Sócrates, transmitidas pelos escritos de Platão. A lógica de apreensão do mundo
repousaria, a partir dali, numa inequívoca vocação para a redução do campo da vivência ao
plano do pensamento, sendo este entendido como uma atividade absolutamente livre de
qualquer contato com a experiência terrena. Esta era admitida apenas como reflexo de um
mundo distante, o Mundo das Idéias, no qual tudo seria ordenado e essencial, perfeito e
eterno.
O quadro político no qual surgiu essa iniciativa era tenso e pleno de disputas, de
alguma forma aberto a incorporar frentes subjetivas, com os questionamentos sofísticos
alcançando um paroxismo ao afirmar a impossibilidade de se aduzir a Verdade, um conceito
que surgia enquanto referencial distante, na medida em que era uma projeção da perfeição, e
próximo, na medida em que era presa do poder político. O que os sofistas pretendiam era
relativizar esta proximidade e afastar definitivamente aquela distância. Eram representantes da
classe média ateniense e utilizavam como estratégia de pressão sobre a tirania o poder do
discurso, que poderia afirmar as verdades que bem quisesse, posto que a Verdade não podia
ser afirmada a não ser em momentos específicos, trazendo proveitos a quem a proclamasse
36
Região nas costas da chamada Ásia Menor na qual se formaram aglomerações urbanas de intensa atividade
cultural e intelectual. A cidade de Atenas, na Ática, teria sido fundada pelos jônios.
com mais habilidade retórica, e os tiranos não eram, via de regra, bons retóricos. Os sofistas
eram cria da democracia grega, um regime construído após a experiência terrível da
dominação aristocrática em Atenas que causou estragos terríveis na vida de todo aquele que
não fosse aristocrata. Com a Guerra do Peloponeso
38
, e a aliança entre esses aristocratas e os
da lacedemônia, retoma-se essa dominação, e os estragos foram todos para os cidadãos.
Vejamos, rapidamente, como se chegou à democracia em Atenas. Há algo em
torno de 3.000 anos, alguns jônios cruzaram o mar Egeu em busca de terras, se estabeleceram
em pequenas aldeias e, quase dois milênios mais tarde, fundaram Atenas – segundo a
narrativa mitológica, por exemplo a coletada por Thomas Bulfinch (1962), o herói Teseu teria
fundado a cidade ao unificar os atenienses contra a Creta do rei Minos, depois de vencer o
Minotauro no labirinto com a ajuda da filha de Minos, Ariadne. O fortalecimento de Atenas se
deu pela incorporação das diversas aldeias de colonizadores, com uma casta de proprietários,
enriquecida com os recursos obtidos com o lucrativo cultivo de uvas e oliveiras, assumindo o
controle político. Se os pequenos proprietários não tinham acesso a esse cultivo, que
demandava grande investimento, também tiveram contundentes prejuízos com a queda do
preço do trigo, por conta das importações, custeadas exatamente pelos mais ricos, e
empobreceram, ficando a mercê dos nobres, que tomavam posse não somente de seus bens,
como de suas vidas.
A revolta era iminente e as medidas adotadas para contê-la – denominadas
draconianas por terem sido ditadas pelo arconte
39
Dracon
40
– eram duras e cruéis, mais
alimentando do que arrefecendo a agitação. Estamos já no século VI a.C., e os revoltosos
conseguem um importante aliado num outro arconte, Sólon
41
, que empreendeu uma reforma
que atingiu diretamente a nobreza, instaurando o que ficaria conhecido como o sistema
democrático de governo. O Arcontado deixou de ser privilégio de poucos e todo cidadão
37
Segundo Antônio Houaiss (2001), prova judiciária feita com a concorrência de elementos da natureza e cujo
resultado era interpretado como um julgamento divino; juízo de Deus.
38
Conflito entre Atenas e Esparta que durou vinte e sete anos. A origem da guerra pode ser reportada às
divergências entre essas duas cidades, e tudo indica que eclodiu no momento em que Atenas ensejou, através da
Liga de Delfos, a união das polis gregas contra a ameaça persa. Uma desavença entre duas cidades rachou a Liga
e deu ensejo ao conflito, vencido por Esparta.
39
Os chamados “arcontes” eram a alta magistratura oligárquica de Atenas. Em número de nove, eram nomeados
pelo Areópago, o conselho dos aristocratas – os ditos eupátridas (de bom nascimento).
40
Foi o legislador que tentou, através de leis severas, “impor a ordem”.
41
Legislador ateniense que desarticulou definitivamente as leis “draconianas”. Foi o criador do Conselho dos
400, que funcionava como um senado que elaborava as leis. Estas, por sua vez, eram ratificadas em assembléias
às quais os cidadãos tinham acesso. Relegou o Areópago às funções judiciárias, enquanto o Arcontado assumiu o
poder executivo.
podia concorrer ao posto de arconte, por eleição. Esse sistema foi ampliado por Clístenes
42
e
possibilitou a idade de ouro da polis ateniense, freada pela guerra do Peloponeso e
praticamente fulminada pela aliança entre Esparta
43
e a aristocracia insatisfeita com a perda de
poder que a democracia lhe impunha.
Como já referimos, entre os defensores da democracia estavam os sofistas, que
praticavam a retórica como uma forma de disputa de idéias fundada na habilidade da
argumentação, muito prezada pelo espírito democrático ateniense. Essas figuras emblemáticas
do sistema democrático foram os alvos preferidos dos filósofos aristocratas. Sendo
representantes das camadas populacionais excluídas do poder até a institucionalização da
democracia, de nenhuma forma eram os perversos que andavam a “desencaminhar a
juventude” com algum “argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a
ilusão da verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, na
realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa”
(HOUAISS, 2001). Isso, aparentemente, quem fazia era a maiêutica, pois a sofística jamais se
propôs alcançar a Verdade, se assumindo enquanto retórica. Carl Grimberg (1967, p. 61), trata
do tema e define o sofista Protágoras:
En su acepción actual, la palabra sofista designa a un hombre que
con igual facilidad puede probar la verdad que la falsedad de la
misma afirmación. Esta definición no vale, desde luego, para los
primeros sofistas. Con el tiempo, sofista, lo mismo que tirano,
adquirió un sentido peyorativo que no tenía en su origen. En
realidad, el vocablo significa “sabio”. En la época de Pericles hubo
en Atenas y en otras ciudades griegas profesores de filosofía que se
apodaban ellos mismos sofistas. Protágoras era uno de ellos. La
significación intelectual de los sofistas fue enorme; hicieron
posible en este tiempo que la ciencia se divulgara, enseñando a
pensar al pueblo. El nuevo período iniciado por ellos es una época
de intensa vida intelectual, semejante a la corriente cultural que
hizo del siglo XVIII el siglo de las luces.
42
Clístenes democratizou ainda mais a legislação de Sólon como forma de evitar o retorno do poder aristocrático
em Atenas.
43
Esparta foi uma cidade com um governo militarista oligárquico onde a participação democrática não era o
preceito mais importante a ser considerado na ordenação sócio-política. Em vez disso, o Estado espartano
primava pela disciplina imposta pelos espaciartas – o grupo de nobres guerreiros ao qual era destinada a função
de defender a cidade, os únicos a ter direitos políticos – aos demais, isto é, aos periecos e aos hilotas. Sendo um
digno representante da aristocracia, que acumulara perdas com o jogo democrático, é possível crer que o desafio
de Platão era elaborar uma estratégia para viabilizar a retomada do poder com a sabotagem eficaz da democracia
ateniense. Sua inusitada perspicácia o possibilitou formular o que os espartanos realizavam no campo físico, do
corpo e das armas, num campo de projeção imaginária, no qual toda divergência seria impura e deveria ser
eliminada assim como os inimigos dos lacedemônios. Para Rodolfo Mondolfo (1968), se havia intensos conflitos
entre democratas e aristocratas em Atenas, a balança tendeu a favor dos segundos durante a Guerra do
Peloponeso e a ocupação espartana em Atenas. Ele percebe uma aliança entre os oligarcas militaristas de Esparta
e a “minoria filo-oligárquica” ateniense, e essa aproximação parece ter sido determinante na ascensão dos
valores da aristocracia que tinha em Platão e Xenofonte seus principais “intelectuais orgânicos”.
A estratificação social era bem marcada em Atenas, como nas demais cidades
antigas conhecidas. No entanto, a participação popular no círculo do poder era relativamente
maior do que nestas, pois uma parte da classe média conseguia acesso ao poder político.
Henry Thomas (1952) refere que o motivo do ataque persa, no século V a.C. – no qual ficou
eternizada a batalha de Maratona –, haveria sido a preocupação dos Persas com a experiência
política da democracia grega. Não era bom para os nobres saber que em algum lugar a
nobreza vinha sendo afrontada com o risco de divisão do poder político. Não era nada
satisfatório saber que havia uns sujeitos espalhando idéias estranhas, nas quais eram eles
próprios os nobres, e não os verdadeiros nobres. Agindo em outras linhas de força que não as
militares, estavam criando um novo conceito de luta: a luta política manifesta no sistema
democrático. Foi esse campo que precisou ser “tomado de assalto” pela dialética socrática.
Segundo Muniz Sodré (1999, p. 13/14),
Essa divergência [dialéticos versus sofistas] não é um mero jogo
acadêmico. É um embate em torno de posições sociais diferentes
quanto a problemas centrais na vida grega. A retórica dos começos
pretendia adequar a linguagem à reivindicação de propriedades
fundiárias (anteriormente expropriadas por tiranos). As astúcias e
dissimulações (depois condenadas por Platão como ‘má retórica’)
tinham, assim, originalmente, pleno sentido no campo judiciário e
político. No tempo de Sócrates, entretanto, mudam as condições de
sociabilidade, e surge a exigência de uma técnica do pensamento em
comum, cujo objeto é a verdade. Trata-se aí não mais de convencer
a qualquer custo, mas de formar almas pelo discurso, para integrar
o cidadão na pólis. A isto Platão chama de psicagogia – a ‘boa
retórica’, a dialética.
A democracia ateniense tinha características discriminatórias e se dirigia apenas a
uma parcela da população – os que eram considerados cidadãos – excluindo estrangeiros,
escravos e mulheres. No entanto, a lógica propagada por Platão – o fiel discípulo de Sócrates,
o “Pedro” que ergueu, pela escrita, o templo de Socrático – era ainda mais excludente e
deixava de fora toda e qualquer prática de divisão do poder, sendo este exercido pelos adeptos
da dialética, ou seja, aqueles que traziam em seus discursos a defesa de uma conjuntura
marcada pelo amor à sabedoria transcendente das formas puras, ao conhecimento puro dos
fenômenos, sem que qualquer saber sensível ou empírico tivesse lugar.
Sem essa localização histórica do campo onde nasceram os sistemas de
pensamento, como o da heurística socrática – a maiêutica –, estes jamais podem ser
compreendidos no que têm de mais fundamental, qual seja a busca de um estreitamento, não
apenas do campo do conhecimento, como de toda a ideação e percepção, em benefício da
ordem de cunho claramente político que se estabeleceu naquele momento histórico, numa
formulação geradora de uma estratificação subjetiva que deveria reproduzir a estratificação
social. A Razão, por esse vértice, aparece como um apêndice discursivo necessário para a
justificação dos procedimentos dos interesses de uma parte da polis que, através destes,
obtinha privilégios e poder e, pelo discurso racional, impunha sentido às suas práticas e as
podia estender não apenas à polis como ao conjunto do mundo grego e, como sabemos,
acabou sendo influente na formação da subjetividade ocidental.
O discurso da Razão como o absoluto do conhecimento representa uma das estrias
mais profundas do imaginário europeu, hoje dito ocidental e é o imã para o qual conflui o
sentido nesse território. Como estamos percebendo, esse marco deve ser compreendido não
somente tomando-se o sistema filosófico de Sócrates, Platão e Aristóteles, mas principalmente
contextualizando-o na ordem social instituída nas pólis gregas – principalmente, como
acreditam Bertrand Russel (1947) e Rodolfo Mondolfo (1968), em Esparta. O mundo grego se
dividia entre a democracia ateniense e o ímpeto guerreiro espartano, e a guerra do Peloponeso
foi um embate que resultou na vitória dos segundos e no fim da verve ateniense.
Atenas, que até então representava uma singularidade no mundo antigo, perde seu
encanto dionisíaco e passa ao apolíneo da tirania das armas, do poder econômico e do
racional. Obturavam-se os espaços de comunicação com o “Outro”, e o campo de batalhas
aberto pelos sofistas estava completamente anulado. Bertrand Russel percebeu a inspiração
espartana de Platão na sua obra clássica sobre a ordem social: “A República”. Gostaríamos de
citar um trecho de um texto desse autor, no qual descreve a noção de Justiça presente na
“República” de forma bastante esclarecedora para nossos propósitos de desvendar as raízes da
Razão enquanto senso subjetivo e de sua vocação discriminatória:
La palabra ‘justicia’, según es empleada aún en el derecho, se
parece más al concepto de Platón que al sentido que se le da en la
especulación política. Bajo la influencia de la teoría democrática
hemos llegado a asociar la justicia con la igualdad, mientras que
Platón no lo implica. La ‘justicia’, en el sentido de ser casi
sinónimo de ley, como cuando hablamos de ‘Cortes de justicia’, se
ocupa principalmente de los derechos de la propiedad, que nada
tienen que ver con la igualdad (RUSSEL, 1947, p. 139).
A noção platônica de justiça parece estreitamente comprometida com o poder e
sua manutenção, com um estado autoritário no qual as grandes questões devem ser lançadas
para o espaço da especulação, a fim de desmanchar as discursividades nascidas na alteridade
do jogo democrático. Para Platão, eram compatíveis privilégios e justiça, pois compreendia, a
priori, que havia homens que mereciam esses privilégios e outros que não os mereciam. Os
que os tinham, justificavam-nos exatamente por serem mais sábios, por terem, então, o
primado da Razão. Eram superiores exatamente por isso, pela excelência de possuir, ao
contrário da maioria, o direito de ser os guardiões de um mundo de formas puras e
imaculadas. Essa noção se desenvolveu com uma força inaudita na modernidade européia,
com a tentativa insistente e constante de “limpar” o espaço vivencial, a ponto de ter
produzido, ainda na primeira metade do século XX, a “Solução Final” nazista que, se como
sugere Zygmunt Bauman (1998), trazia consigo uma inegável marca estética, possivelmente
representava o paroxismo da iniciativa platônica de eliminar as “coisas fora do lugar” que
ameaçam o mundo da limpeza e da ordem. A própria imprensa, com sua “objetividade”,
mantém esse campo metafísico ativo.
A criação de uma região imaginária, cuja realidade transcende a experiência
sensível e estabelece um campo próprio de embate filosófico, inaugura um novo e inusitado
tempo em que todo aquele que não aceitasse a necessidade de pensar a natureza primacial do
ser – o inextricável fetiche não especificamente do platonismo, mas da filosofia grega desde
Tales de Mileto – ou que não reunisse condições para tal – todos, menos o criador da grande
idéia e seus seguidores – estava fora do jogo social. Em outras palavras, a aristocracia
ganhava o direito de jogar todos os jogos em casa, no seu próprio campo, com regras próprias.
O resto pode ser entendido como uma espécie de legião de mortos-vivos políticos atados aos
desmandos da vida sensível, do trabalho, sem qualquer direito a não ser o de servir aos
fidalgos. Uma “Solução Final” implícita, que poupava a vida terrena para que alguém fizesse
o trabalho “sujo”, mas matava politicamente.
Mas, afinal, o que se pode passar quando a experiência é considerada torpe,
impura, e a verdade reduzida à pureza das meditações? A resposta é óbvia: nada, a não ser o
simulacro, no real, das linhas e círculos da geometria euclidiana ou da pureza da matemática
de Pitágoras. O etéreo – que antes era apenas visualizável pela religiosidade – passa a
constituir-se como um espaço habitado por idéias puras, imutáveis e perfeitas, às quais apenas
alguns eleitos tinham acesso: os que despendiam todo o seu tempo livre para isso. Distantes
da praticidade, as proposições desses gênios jamais podem ser contestadas pela experiência.
Os poetas, os artífices da paixão, aqueles que jogam com os limites do razoável, ou todos
aqueles que professassem o valor do sensível, ou seja, todos os “diferentes”, não aristocratas,
deveriam ser banidos da República platônica. “Eu” 10 x 0 “Outro”. Não é à toa que, até hoje,
dizer que alguém “tem razão” corresponde a lhe deixar prosa, atribuindo-lhe algo como a
posse da Verdade, com todas as repercussões que isso traz.
A história da Razão não se reduz, evidentemente, ao pensamento de Sócrates,
Platão, Xenofonte ou Aristóteles – este certamente o mais prolífico dos filósofos gregos, que
se desviou da inocência do mundo das idéias platônico para a physis, sem no entanto escapar
do fetiche do ser universalista. Há, posteriormente, um desenvolvimento hipertrofiado de
discursos apensos a essa égide: a escolástica medieval personifica o “Demiurgo
44
” platônico e
o “Primeiro Motor” aristotélico na divindade judaico-cristã, a causa de tudo, o engendrador da
realidade, a Razão tornada espírito santo; o cartesianismo de Descartes desenvolve o conceito
da Razão como faculdade que dota o seu possuidor da capacidade de discernir entre o
verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o bom do mau, estabelecendo o terreno fértil para a
proposição iluminista; o kantismo estabelece o circuito da racionalidade como ordenador, a
partir de seu relacionamento com o entendimento apriorístico, dos objetos do conhecimento; o
hegelianismo procede à materialização da Razão no “Espírito do Tempo”, avassalador no seu
percurso histórico, sempre com um sentido superior ao que o indivíduo pode apreender,
controlando o conjunto de indivíduos, que levariam uma existência coartada pela pressão
dessa entidade fantástica. Além desses desenvolvimentos hiperbólicos da Razão, outros tantos
haveria a citar, como o de Hume, Leibniz, Spinoza, Fichte ou Schelling. O conjunto dessas
proposições fetichistas constitui a herança grega que se desenvolveu no pensamento europeu,
formalizando o imaginário moderno ao qual ainda parecemos imantados. Tornou-se, assim,
hegemônica a lógica restritiva desse pensamento fundado pela intenção de fechar, num mundo
despregado da experiência, a própria experiência.
Parece claro que a doutrina da Razão surge como uma reação à vivência da
alteridade, às disputas acirradas no parlamento e nas ruas. Alia-se ao poderio militar
aristocrático da antes inimiga Esparta, para fundar uma república de tiranos, com a tirania da
razão. Só que, na linguagem filosófica, tudo estava invertido, e os tiranos eram os outros.
Como refere Friedrich Nietzsche (1948, p. 16):
O dialético tem na mão um instrumento implacável; com ele, se
pode agir como tirano; compromete a vitória do adversário. O
dialético coloca seu antagonista na obrigação de provar que não é
idiota; enfurece e ao mesmo tempo impede todo socorro. O dialético
degrada a inteligência de seu adversário. Não era a dialética de
Sócrates senão uma espécie de vingança? (...) [Sócrates] descobriu
uma nova espécie de combate e foi o primeiro mestre d’armas nas
altas esferas de Atenas. Fascinava atiçando o instinto batalhador
dos gregos. (...) [Sócrates] soube penetrar nos sentimentos dos
nobres atenienses. Compreendia que seu caso, que a idiossincrasia
de seu caso, já não era mais excepcional. A mesma espécie de
degeneração ia secretamente alastrando-se por todas as partes. Os
atenienses da velha estirpe iam desaparecendo... Sócrates
44
Na precisa definição de Houaiss (ibidem), “(...) o artesão divino ou o princípio organizador do universo que,
sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos
eternos e perfeitos.”
convenceu-se de que todo o mundo tinha necessidade dele, de seu
remédio, de seu tratamento, de seu método pessoal de conservação
de si mesmo. Por todos os lados os instintos se tinham mostrado em
anarquia; estava-se a dois passos dos excessos em todas as partes; o
monstrum in animo era o perigo universal. “Os instintos querem
converter-se em tiranos; é preciso descobrir um contratirano que os
vença.”
Trata-se de um “cala a boca” político, mas com repercussões culturais de grande
importância. Marca a instituição de um “jogo finito”, cuja natureza vamos estudar adiante.
2.1.2. A fé absolutista.
Assim como no caso da razão, falamos de um mundo paralelo, metafísico. A
crença monoteísta funciona com o mesmo imã. Eliphas Lévi (1986, p. 49), um estudioso da
cabala, pontua a inequívoca relação entre Deus e Razão: “No princípio está a Razão, a Razão
está em Deus, e Deus é a Razão
45
.”
A referência religiosa se remete a um mundo pós-morte, ou além-da-morte, uma
realidade à qual apenas teríamos acesso depois que deixássemos este mundo, a vida, tal como
Platão com seu “mundo das idéias”. Nesses mundos, ambos para lá da vida, não há
instabilidade, não há problemas. As formas são perfeitas e a unidade garante a harmonia.
Porém, suas estruturas terrenas são rígidas demais para permitir que oscilações dinâmicas
possam reverter posições do pensamento. Cada oscilação é um problema a ser resolvido,
sempre com um agente perturbador a ser eliminado, geralmente as coisas do corpo, as coisas
da vida. Curioso é que esse sistema apolíneo perdurou por milênios, relegando às sombras
fantasmagóricas o estado dionisíaco do gozo. E mais curioso ainda é perceber que exatamente
quando o homem se achou finalmente livre dessa “praga”, é quando mais está presa dela,
como na Sociedade de Controle pautada pelo discurso econômico, que promete a liberdade no
mesmo movimento em que a delimita.
A projeção de um mundo extraterrestre já estava presente muitos anos antes da
noção grega de Razão, nos relatos mítico-religiosos de uma tribo nômade conhecida como
hebréia, cujo significado é “povo de além do Rio” (fala-se do rio Eufrates). Para os hebreus,
45
O tradutor do texto de Lévi (ibidem), Gilberto Bernardes de Oliveira, tem um esclarecimento que nos é útil:
“Nossa versão diz: ‘No princípio era o Verbo’, etc. Mas nem a leitura adequadamente feita pode propiciar o
sentido oculto da passagem. O archée é a evoluta primordial que o Único inconscientemente emana, o princípio
de todas as coisas. O logos é a Lei da Evolução, a razão de todas as coisas, a própria causa das suas complexas
haveria uma “pessoa” (BLOOM, 1992, p. 22) acima de todas as demais, não habitante deste
mundo, do qual seria a criadora e gestora. Instaura-se uma ruptura com a crença dita pagã do
culto das forças naturais, o que passou a ser, com o desenvolvimento ocidental dessa idéia
metafísica, algo absolutamente condenável, pois ultrajante da Verdade divina. O caráter
universalizante de toda e qualquer concepção monoteísta é inequívoco. Se só há um deus, só
há uma verdade, e esse Deus, operador do mecanismo que a engrendra, é, ele próprio,
identificado como o próprio mecanismo. Nada persiste fora dele e, se existe, deve ser curado
ou eliminado, pois que é impuro, mórbido, como n’ “A República”.
A existência e a persistência do monoteísmo como uma referência fulcral para a
sociedade criada pela civilização européia é sinal que, surpreendentemente, os pilares mais
firmes dessa civilização estão exatamente no terreno arenoso da transcendência, ou seja, da
metafísica. É certo que a filosofia ateniense que se impôs hegemonicamente sugeria dirigir-se
ao intelecto cognitivo, mas atirando-o para o reino das perfeições, no qual o próprio intelecto
acaba mimetizando-se em reflexo dessas formas num processo que adquiriria um caráter de
possessão anímica. No caso da religiosidade absolutista do monoteísmo, o terreno, por ser
instável, clamaria por referências sólidas, um “núcleo” no qual se lançar amarras. “O” deus
único foi a resposta encontrada pelos que demandavam essa segurança. A história dos judeus,
como aponta Paul Johnson (1995), é caracterizada pela instabilidade entre o desapego à
segurança de uma localização terrena e o apego por um pedaço de terra, como podemos notar
na dicotomia entre a diáspora e a ânsia por retomar a Judéia. O “Outro” perseguidor encontra
o “Um”, que protege da perseguição
46
.
O casamento com a razão, a outra referência do absoluto, acabou abrindo espaço
para o desenvolvimento da transcendência religiosa ocidental como um sistema articulado,
inter-relações, o Verbo, a Força da Energia que por toda parte e em todos os momentos regula e é, ao mesmo
tempo, a mola propulsora do universo.
46
O monoteísmo parece ter, historicamente, o sentido de um enclausuramento significacional para os hebreus –
John Bowle (1964), fala de uma “concha hebraica” –, na medida em que a doutrina centrada num só Deus
representou, para a consciência judaica, uma defesa contra a desintegração diaspórica e uma promoção
inequívoca de uma identidade viabilizada na referência de um “pacto” da divindade com esse povo. Contra a
iniciativa de vários hebreus de incorporar crenças e práticas mágicas de outros povos, o que traria uma inevitável
desintegração do grupo judaico, como supõe Kurt Seligmann (1948), a conclamação ao monoteísmo seria uma
tentativa de integração em torno de um logos comum. A crença judaica, assim, pode ser interpretada como uma
projeção de um devir marcado pela tradição, no qual o passado e o futuro estariam ligados numa interseção
presentificada na “aliança” com Deus. Essa aliança, segundo Victor Hellern, Henri Notaker e Jostein Gaardner
(2000, p. 99), se deu sob a liderança de Moisés que, em contato direto com Deus, foi o seu agente: “Durante a
travessia do deserto, Deus – Javé – deu a Moisés, no monte Sinai, as duas tábuas da Lei com os dez
mandamentos a que os israelitas deveriam obedecer. Dessa forma, fez-se um pacto segundo o qual os israelitas
deveriam reconhecer a existência de um só Deus, e em troca se tornariam o povo escolhido de Deus.
Receberiam sua ajuda e seu apoio, desde que cumprissem o que lhes cabia no acordo e obedecessem às leis de
Deus.
notadamente a partir da Idade Média, com a Escolástica de Tomás de Aquino. Antes disso,
fora a experiência mística das tribos hebraicas, não havia uma formalização consistente da
crença num deus único, essa projeção fantástica que se agiganta para além da própria
racionalidade, requisitando, para si, uma posição acima desta, de modo a utilizá-la para o fim
de melhor controlar o campo dos conflitos intersubjetivos, isto é, da alteridade. Tal
formalização, bem podemos sugerir, vai retirar sua energia nos “favos e caldos quentes” do
fervor da paixão sem, no entanto, jamais outorgar a esta o direito autoral. Do terreno arenoso
da paixão nasce o pilar firme da misticização absolutista, parceira inseparável da Razão.
Não podemos esquecer das condições históricas que viabilizaram esse movimento
tão engenhoso. Se no caso da Filosofia Racional de Platão pudemos perceber o quanto o
militarismo espartano foi importante, quando tomamos a Igreja Católica, podemos
definitivamente conceber que a transcendência etérea e a dureza da dominação da força
militar-estatal têm realmente mais em comum do que poderíamos imaginar. Vejamos que para
conseguir a façanha de fazer de um terreno instável uma base sólida, foi preciso usar de uma
artimanha política: a aliança da Igreja com o Estado absolutista e, posteriormente, com o
Estado burguês. Juntas, essas duas entidades tão terrenas quanto a Escola Sofística ou o
Paganismo, selaram a investida institucional que agenciou a construção da subjetividade
ocidental hegemônica. Com as máquinas de controle unindo o céu e a terra, estava fechado o
círculo do poder.
A formulação conceitual de transcendência parece identificada com o projeto
neoplatônico de consolidação de um espaço virtual posto para além da realidade sensível, da
experiência prática. Embora tenha suas raízes na racionalidade platônica, esse pensamento,
que teve Plotino como seu mais destacado representante, pretendia explorar exatamente a
potencialidade transcendentalista da proposição platônica, tentando ir bem além disso. Como
esclarece Richard Tarnas (2003, p. 103),
No pensamento de Plotino, a racionalidade do mundo e da busca do
filósofo não era mais do que o prelúdio para uma existência mais
transcendental, além da Razão. O Cosmo neoplatônico resulta de
uma divina emanação do Supremo Um, infinito em seu ser, que está
muito além de todas as descrições ou categorias. O Um, também
chamado o Bem, num transbordamento de absoluta perfeição produz
o “outro” – o Cosmo criado em toda sua diversidade – numa série
hierárquica de gradações, afastando-se do centro ontológico em
direção aos limites extremos do possível. O primeiro ato criativo é
a emanação do Um a partir do intelecto divino ou Nous, a sabedoria
difusa do Universo, na qual estão contidas as Formas ou Idéias
arquetípicas que causam e ordenam o mundo. Do Nous vem a Alma
do Mundo, que o contém e anima, é a fonte das almas de todos os
seres vivos e constitui a realidade intermediária entre o Intelecto
espiritual e o mundo da matéria (...).
Se existe o “Um”, deve existir um “Outro”, mas para ser destruído pelo primeiro,
que o criou. No mesmo ato da criação, o “Outro” gerado é pulverizado como sombra. Ora,
depois de tecidas as malhas do discurso do absolutismo – seja racional ou divino – é
compreensível que, nas mesmas fibras que compõem o tecido, seja criado o seu oposto
enquanto parte constitutiva de sua lógica pragmática. No entanto, se tivermos que aprofundar
nossos conceitos até percebermos as demandas imaginárias que constituem esses dois pólos,
teremos que admitir que é bem mais aceitável que o “Outro” tenha gerado o “Um”. Afinal,
este surge a partir de uma necessidade prática, a de resolver conflitos, e a alteridade que
perpassa a experiência conflitual é não somente o agente motivador como a primeira vítima
do sistema absolutista. Como elemento constituinte da transcendência racional-religiosa, o
“Outro” nasce num segundo momento, porém no plano da imanência do sistema, é seu
elemento fundador.
A aliança entre a divindade e a razão estava fortalecida por um construto
discursivo hábil, que sedutoramente abriria as portas para o paraíso da verdade eterna, Deus.
O transcendente seria superior à realidade sensível, um espaço idealizado no qual a perfeição
absoluta imperaria, universalizante; enquanto a nós, aqui em baixo, na terra, na vida real,
restaria a imperfeição e a picuinha mundana. Restaria o Juízo, como uma entidade anímica
que tem elasticidade suficiente para tocar os dois mundos, para separar o joio do trigo,
constando o quanto este mundo deve àquele. Como afirma Immanuel Kant (1974, p. 269):
Pois unidade da natureza no tempo e no espaço e unidade da
experiência possível a nós é o mesmo, porque aquela é um conjunto
de meros fenômenos (modos-de-representação), o qual pode ter sua
realidade objetiva unicamente na experiência, que, como sistema,
tem de ser possível também segundo leis empíricas, se se pensa
aquela (como deve ocorrer) como um sistema. Portanto, é uma
pressuposição transcendental subjetivamente necessária que aquela
inquietante disparidade sem limite de leis empíricas e aquela
heterogeneidade de formas naturais não convêm à natureza, mas,
pelo contrário, que esta, pela afinidade das leis particulares sob as
mais universais, se qualifique a uma experiência, como sistema
empírico. Ora, essa pressuposição é o princípio transcendental do
juízo. Pois este não é meramente uma faculdade de subsumir o
particular sob o universal (cujo conceito está dado), mas também,
inversamente, de encontrar, para o particular, o universal.
Logo, se o Juízo tem a propriedade de tocar os dois mundos, é apenas para
ratificar a supremacia do transcendente sobre a experiência sensível. É o próprio Kant (1983,
p. 33), quem melhor define o âmbito do transcendental como uma referência supra-sensível:
“Denomino transcendental todo aquele conhecimento que em geral se ocupa não tanto com
objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível
a priori”. A noção do apriorismo da transcendência já estava em René Descartes como o
fetiche da deidade:
(...) Toda la fuerza del argumento que me ha servido para probar la
existencia de Dios consiste en la imposibilidad de que mi
naturaleza, siendo lo que es, concibiera la idea de un Dios sin que
ese Dios existiera verdaderamente. Ese Dios de que tongo idea,
posee todas las perfecciones que nuestro espíritu puede imaginar,
aunque no le sea posible comprender al ser soberano; no tiene
ningún defecto ni nada que denote alguna imperfección: luego, no
puede engañarnos ni mentir, como nos enseña la luz natural de
nuestro espíritu; el engaño y la mentira dependen necesariamente de
algún defecto (DESCARTES, 1965. p. 70).
Ora, não é impossível nem insensato trabalhar com essa referência ainda nos dias
de hoje. Dependendo-se do que se quer conseguir ou alcançar, isso nos serve muito bem.
Porém, se queremos investigar a subjetividade contemporânea que produz monstros como o
“Império do Mal”, o terrorismo ou as facções e quadrilhas de traficantes de drogas, isso não
nos serve muito, a não ser como objeto de estudo. Afinal, se formos abordar esses temas com
o auxílio do mundo das idéias, da referência cartesiana ou do Juízo kantiano – como é de
praxe entre alguns intelectuais, entre eles os jornalistas e os especialistas em segurança –,
acabaríamos por considerá-los como “ruídos”, como elementos a ser defenestrados para a
conservação da ordem e da harmonia. O mesmo podemos dizer da referência religiosa, para a
qual tudo o que não comunga da platitude do Ser Supremo é impuro e deve ser posto para fora
do Reino, como ocorre na alegoria do Gênesis. Assim, para continuar a cerrar fileiras com os
próceres da Razão ou com os profetas da religião teríamos que aceitar girar no mesmo lugar,
como vem sendo feito há milênios no pensamento hegemônico ocidental.
Todos sabemos o quanto a aliança entre o poder político e a crença religiosa tem a
capacidade de gerar facilmente estados de ânimo exaltados, seja para “louvar” algo, seja para
amaldiçoar – e, como já dissemos, a religiosidade, apesar de cultuar desbragadamente o puro,
a racionalidade do divino, tem suas raízes mais fundas no terreno arenoso e efervescente da
paixão. A Igreja Católica da Idade Média e as seitas evangélicas que proliferam pelo Brasil
dão bons testemunhos da força dessa união. De “país católico”, cuja religião oficial era a
mesma adotada no Império Romano a partir de Constantino (273-337 d.C.), o Brasil assiste o
nascimento de um novo grupo social que tem como referência precípua o culto religioso.
Posto que as tendências católicas há muito deixaram a política – presente no passado político
nacional, inclusive nas organizações de esquerda, a participação das tendências católicas no
campo da representação política é hoje praticamente nula – o evangelismo assume a
hegemonia na aliança entre política e fé, surgindo como uma corporação que identifica o bem-
estar espiritual com o bem-estar material, assumindo de forma mais ativa a sua identidade
secular com o modelo capitalista de cultuar as riquezas materiais.
Tanto o catolicismo quanto o evangelismo têm em comum uma estrutura
autoritária, centrada na vivência de um absoluto: o logos divino. A palavra de Deus é revelada
aos integrantes dessas crenças e, sendo a do absoluto, é a única representação da Verdade.
Fora da palavra divina – manifesta no livro sagrado conhecido como Bíblia, dividido em
Velho e Novo Testamento – não há verdade e, mesmo que se possa aceitar que possa haver
alguma razão, esta é ímpia, herética, falsa em sua essência.
A crença na existência de um só Deus, onipotente, onipresente e onisciente parece
ser uma clara idealização de um poder que emana de um centro e, ele mesmo, está na
circunferência que o engloba, num contorno nirvânico que delimita as práticas narcísicas dos
monoteístas. Trata-se de um processo que podemos entender através do que a psicanalista
inglesa Melanie Klein (1978a) classificou como “identificação projetiva”, ou seja, o eu é o
ponto e o raio da circunferência de seu mundo; não há espaço para a alteridade: aquilo com o
que me identifico é aquilo que projeto como sendo real. É a vivência do absoluto.
O monoteísmo, que, como confirma Mohammed Elhajji (2003a, p. 2) “pressupõe
a exclusividade e a unicidade absoluta e absolutista da Verdade e nega, de antemão, toda
diferença, percebida como anomalia ou monstruosidade condenável e eliminável”, não é uma
idéia exclusiva dos cristãos como os católicos e evangélicos. Os hebreus foram os primeiros a
adotar essa estrutura de crenças absolutista, estabelecendo o que conhecemos como o
judaísmo, e também os muçulmanos adotaram essa mesma modalidade de cultuar o
transcendente. Ambas, porém, têm uma diferença fundamental com o cristianismo: não
pregam a catequização dos praticantes de outros sistemas de culto. O islamismo, por exemplo,
assim se refere às demais religiões no seu livro sagrado, o Corão (citado por Mohamad
Ahmad Abou Fares (1985, p 151):
Dizei-lhes: cremos em DEUS, no que nos tem sido revelado no que
foi revelado a ABRÃO, a ISMAEL, a JACOB, às doze tribos, no que
foi concedido a MOISÉS e a JESUS e no que foi dado aos
PROFETAS, não fazemos distinção entre nenhum deles e
seguiremos submissos a DEUS (2ª Surata, versículos 136 e 185).
O judaísmo, assim como o islamismo, não parece interessado em conseguir
conversões entre os não adeptos, não se estruturando de forma tão especular quanto o
cristianismo. Como afirma G. Neuburger (2004), diferenciando os conceitos de judaísmo e
sionismo,
O que é um judeu? É qualquer pessoa que tenha a mãe judia ou que
tenha se convertido ao judaísmo, de acordo com Halacha, a lei
religiosa judaica. Esta definição, por si só, exclui o racismo. O
judaísmo não procura os convertidos, mas aqueles que se convertem
são aceitos com base na igualdade.
O sionismo, para o autor, nada teria em comum com o judaísmo e seria um
movimento de guetificação que está ligado a uma noção de poder discricionário que expande
sua força para além das fronteiras do Estado que o sintetiza: Israel. Para Neuburger (idem), o
centro desse movimento está nos Estados Unidos, e não tem qualquer compromisso com o
povo judeu:
Ao invés de prestar assistência às comunidades judaicas de outros
países, os judeus americanos mobilizaram-se para se concentrar na
ajuda ao estado sionista, transformando os Estados Unidos na maior
fonte de poder e influência dos sionistas. Os sionistas, fiéis à
natureza de seu movimento, contam com superioridade técnica e
poder militar – fornecidos em grande parte pelos Estados Unidos –
para a sua segurança.
Trata-se da mesma lógica que orienta aquilo que Norman Finkelstein (2001)
identifica como “A Indústria do Holocausto”, um “golpe” engendrado pelas elites sionistas
para pilhar não apenas bancos suíços, como também países pobres como a Polônia. A
multiplicação mágica do número dos “sobreviventes do Holocausto” e o absoluto descaso
com esses sobreviventes é, para Finkelstein, a tônica desse “saque”, cujo butim é repartido por
poucos.
O cristianismo, por sua vez, tem como prática a adoção de uma postura de
discriminação a todos os que não professam a fé no Deus que se manifestou em seu filho,
Cristo. Como afirma Elhajji (idem),
O Outro, o diferente, o “anormal” (aquele que não compartilha a
mesma fé, que não adere à mesma visão do mundo; ou antes, a Fé
verdadeira e a Visão certa do mundo – já que para o sujeito
monoteísta só existe uma que é verdadeira e que cabe no círculo da
razão) representa em si uma provocação e uma interpelação –
situação perniciosa que constitui um problema existencial de difícil
resolução para o monoteísta (arquétipo do homem ocidental),
considerando a existência do Outro incompatível com a sua própria
enquanto crente (ou enquanto ser racional – sendo a racionalidade a
fé da modernidade ocidental).
O “amor ao próximo”, como afirma o mesmo autor, estaria contaminado por uma
irremediável perspectiva narcísica:
Além da xenofobia proverbial dos gregos, a recomendação
evangélica de “amar o outro como a si mesmo” contém, na verdade,
a idéia perniciosa que nega ao Outro o direito de ser e de devir fora
da visão e da consciência do sujeito ocidental, sugere a necessidade
de convertê-lo num ente idêntico a si mesmo e proclama o direito e
o dever de fazer dele um outro si mesmo para poder amá-lo e para
ele merecer este amor. Ou seja, o sentido sugerido de maneira
latente pelo dito mandamento seria “amar-se a si mesmo no outro”
ou “amar no outro a si mesmo”. O que não só significa que, nesta
relação auto-suficiente de si para si mesmo, o Outro sirva apenas de
canal ou de condutor a um amor viciosamente circular destinado a
si mesmo, mas, pior ainda, significaria o direito – senão o dever e a
obrigação moral (a moral como o bom senso é sempre moral do
mais forte, de quem monopoliza a fala e a produção de sentido) de
aniquilar a alteridade do Outro e de si mesmo no Outro e em si
mesmo. Apurar-se e apurar o Outro (purificar-se e purificar o Outro
no sentido de uma ação discursiva terrorista de purificação étnica
diária) de toda alteridade. Transformar e desfigurar o Outro para
fazer dele um segundo si mesmo ou um simples refletor de si
mesmo: um mero alter ego.
Essa concepção absolutamente egoísta tem sua raiz no fato de todo monoteísta ser
um “escolhido”, um reflexo privilegiado do além, com acesso garantido ao mundo divino,
mais ou menos o mesmo que o platônico, depois de sua morte. O problema aí é que isso
decreta uma espécie de morte em vida, ou, em outras palavras, coloca esta a serviço daquela.
Mesmo a luta, o “bom combate” recende à mortificação pois serve para extinguir
definitivamente a alteridade, transformando-a em algo conhecido e virtualmente odiado, não
merecendo sequer viver, posto que é transformado no que não é para representar o que o
narcisismo cristão julga que ele é.
2.2. Jogos de ganhar e perder e jogos de jogar.
A vitória da Razão trouxe uma nova configuração no plano sociocultural.
Podemos afirmar que esse foi o marco fundamental da divisão entre sociedade e cultura. Para
melhor entender a separação definida naquele momento, propomos tomar em conta uma
simples, interessante e atraente teorização acerca dos jogos. Também estaremos abarcando a
temática da religiosidade absolutista, pois esta se conforma ao estreitamento proposto pelos
filósofos aristocratas, o reforça e confirma atingindo diretamente o coração. A deidade
conforma, disciplina e condiciona o sujeito, como o demiurgo platônico, para um jogo, o de
sociedade, agindo com um enlaçamento da paixão, ao mesmo tempo em que reduz o cultural à
repetição incessante de ritos midiatizados pelo discurso da devoção. No caso evangélico,
como observamos na Igreja Universal do Reino de Deus, essa devoção está condicionada a
uma promessa de ascensão social, logo, um “jogo finito”, como iremos ver adiante.
Comecemos pensando que há jogos que são para ser jogados e jogos que são para
ser vencidos. Dizemos isso nos referindo aos objetivos de cada jogo. Os jogos da cultura, por
exemplo, teriam como prioridade ser jogados. Há libido investida no próprio ato de jogar,
maior do que a investida no resultado do jogo. Podemos incluir no rol de jogos culturais a
sedução, a criação artística, a poesia, a música, a dança. Há um jogo, ou essas atividades
fazem parte de um jogo, e a vitória ou a derrota – uma conquista, o sucesso de uma música,
um concurso de dança – podem representar alegrias ou tristezas, dinheiro ou falência, mas não
são o motivo principal que leva alguém a enveredar pelos jogos culturais. E todos, de uma
forma ou de outra, jogamos esses jogos. São referências comunitárias, íntimas, que envolvem
o corpo, aquele esquecido pelos dialéticos atenienses. Não apenas envolvem, como o
aconchegam e excitam. O corpo é presa desses jogos, e precisa de alguma sedução para deixá-
los. Está sempre atado a eles, como estamos a ele, por isso esses jogos são chamados de
“infinitos”. São guiados pelo prazer e não se esgotam nem têm conclusão. Não há
campeonatos ou partidas oficiais de dois tempos. Ou, quando há, não é isso que importa.
Os “jogos de sociedade” seriam finitos, pois se esgotam com o resultado, a meta
do jogo. Como exemplo desse tipo de jogos, temos os de azar e os jogos desportivos, mas
também políticos e os econômicos. São jogos finitos, entre outros, as partidas de futebol, com
seus 90 minutos, seus campeonatos com campeões; as mãos do poker, com suas apostas; as
eleições, com suas campanhas e corridas pela preferência do eleitorado, com seus deputados
eleitos, seus governadores e presidentes; os negócios, com todas as suas modalidades de
apostas, incluindo as financeiras, notadamente nas movimentações do mercado, sempre
enriquecedoras para alguns e drásticas para outros. Esses tipos de jogo tem como parâmetro a
racionalidade permeando as formalizações de limites que permitam o desenrolar das partidas.
Não é evidentemente o prazer de jogar que os sustenta. É mais importante o que se vai
conseguir com eles.
Essa divisão didática e útil para pensar o jogo subjetivo foi criada por James P.
Carse, mas a conhecemos lendo um interessante trabalho de Herman Parret (1997). Segundo
este, “Um jogo finito se joga com o propósito de ganhar, um jogo infinito com o propósito de
continuar a jogar” (PARRET, 1997, p. 19). O jogo “infinito”, conforme descrito
anteriormente, está para além do tempo, trabalha com horizontes, que nunca são alcançados,
pois são linhas e não localidades. Transcendem a finitude, o que os faz preponderantes para
que o corpo aceite participar destes.
Se podemos falar de alguma logicidade nos jogos de cultura, não podemos falar
de uma supremacia da Razão, pois esta é conclusiva, encerra o processo, remete à finitude e à
essência. Mais uma vez, acompanhando Parret (idem), é melhor falar de estratégia
coreográfica, já que o jogo da cultura seria algo como uma dança, e o jogador da cultura é o
dançarino, possivelmente aquele mesmo ao qual Nietzsche (1977) se referiu como o além-do-
homem, o “super-homem”. Para Parret (idem, p. 38) “a estratégia difere categorialmente da
norma, da regra e da restrição porquanto tem como objetivo o próprio funcionamento da
norma, da regra ou da restrição”. Ela age no interstício entre as partes do jogo social e
remete às estratégias de raiz comunitária. Fala da identidade conforme moldada no mundo
imaginário, na fantasia e, assim, tem uma radicalidade pronunciada no que diz respeito ao
“vir-a-ser”. O jogador da cultura se realiza no mesmo momento em que joga, encontra o
deleite de rearticular e reafirmar sua identidade precisamente no processo de jogar e não na
conclusão desse processo. Trata-se, acima de tudo, de experiências estéticas através das quais
um certo conhecimento tradicional se transmite e reproduz, eminentemente pela oralidade e
por ritos que envolvem o corpo.
Já as relações sociais, que não são tão lúdicas por si sós, remetem mais à vida
simbólica e estabelecem conexões rígidas e éticas entre suas atividades e o prazer. Geralmente
prometem um prazer “seguro”, ou propõem que é preciso retardar a conquista do prazer para
alcançar um prazer mais pleno, diríamos atraente metafisicamente, como fez Platão com o seu
jogo sofístico. Sigmund Freud (1974a), um digno representante de seu século, compreendeu a
necessidade de uma vinculação entre as pulsões e um objetivo alcançável socialmente, e
formulou o conceito de “Processo Secundário” do funcionamento psíquico para designar a
supremacia da civilização sobre os impulsos comumente ditos “animais”. Submeter-se à
infinitude dos jogos da cultura, conforme descritos aqui, seria perder o controle, deixar de ser
humano. No caso de Freud e seus contemporâneos, podemos dizer deixar de ser burguês.
Talvez possamos dizer o mesmo dos cariocas que nutrem a mesma ojeriza obsessiva da
pobreza, mas a contemporaneidade é um pouco mais complexa, e aparentemente mais
restritiva. Os termos norte-americanos “winner” e “loser” (os winners são os bem-sucedidos,
os losers os que ficaram à margem, os que não obtiveram status, os que não se destacaram
como diz o termo: os que perderam) são emblemáticos dessa forma de jogar marcada pela
competitividade.
Para tomar outra fonte de referência para o mesmo tema, vejamos a definição de
Houaiss (idem), que admite dois vértices básicos para o termo “jogo”. A definição 1 se refere
aos jogos “infinitos” e a 2 aos “finitos”:
1. designação genérica de certas atividades cuja natureza ou
finalidade é recreativa; diversão, entretenimento; atividade
espontânea das crianças; brincadeira.
2. essa atividade, submetida a regras que estabelecem quem vence e
quem perde; (...) Contrato aleatório entre duas ou mais partes, pelo
qual um dos parceiros ganha a soma ou a coisa arriscada, e os
demais perdem.
Roberto da Matta (1983, p. 48) também difere, por seu turno, cultura e sociedade.
Para ele, cultura remete a uma “tradição viva, conscientemente elaborada que passe de
geração para geração, que permita individualizar ou tornar singular e única uma dada
comunidade relativamente às outras (constituídas de pessoas da mesma espécie)”. Já
sociedade é entendida como uma “totalidade ordenada de indivíduos que atuam como
coletividade.” Ferdinand Tönnies (1947, p. 19) estabeleceu parâmetros bem semelhantes
quando tratou da distinção entre sociedade e comunidade. Para ele, “Toda vida de conjunto,
íntima, interior y exclusiva, deberá ser entendida, a nuestro parecer, como vida en
comunidad”. Os laços comunitários seriam originários das relações familiares, estendendo-se
seqüencialmente para a vizinhança e a amizade, um sentimento fundado na simpatia que
independe das relações anteriores, mas certamente está contaminada por elas. Nessas relações
há um acolhimento mútuo, um consenso e, como lembra Tönnies (idem, p. 43),
Vida comunal es posesión y goce mutuos, y es posesión y goce de
bienes comunes. La voluntad de poseer y gozar es voluntad de
proteger y defender. Bienes comunes e males comunes; amigos
comunes y enemigos comunes. Males y enemigos no son objeto de
posesión y goce; no son objeto de la voluntad positiva sino de la
negativa, de la indignación y del odio, es decir de la voluntad
común de aniquilamiento. Los objetos del deseo, de la apetencia, no
son lo hostil, sino que se encuentran en la posesión y goce ideados,
aun cuando su obtención esté supeditada a una actividad hostil.
Posesión es, en sí y de por sí, voluntad de conservación (...).
Já no que se refere à sociedade, não há consenso, muito menos proteção e defesa,
muito embora haja discursos para efetivar essas sensações. Os laços societários são marcados
pelo conflito interno, pela competitividade:
La teoría de la sociedad construye un círculo de hombres que, como
en la comunidad, conviven pacíficamente, pero no están
esencialmente unidos sino esencialmente separados, y mientras en
la comunidad permanecen unidos a pesar de todas las separaciones,
en la sociedad permanecen separados a pesar de todas las uniones.
Por consiguiente, no tienen lugar en ella actividades que puedan
deducirse a priori y de modo necesario de una unidad existente, y
que, en consecuencia, también en cuanto se operan por medio del
individuo, expresen en él la voluntad y espíritu de esta unidad, o
sea que tanto se llevan a cabo para él mismo como para los que con
él están unidos. Todo lo contrario: en ella cada cual está para sí
solo, y en estado de tensión contra todos los demás. Las esferas de
su actividad y de su poder están rigurosamente delimitadas, de
suerte que cada cual rechaza contactos e intromisiones de los
demás, considerándolos como actos de hostilidad. Esta actitud
negativa es la relación normal e siempre fundamental entre estos
sujetos de poder, y caracteriza a la sociedad en estado de equilibrio
(TÖNNIES, idem, p. 65).
Todas essas diferenciações são didáticas e não representam imagens perfeitas do
real, porém são representações bastante profícuas para que pensemos de modo mais dinâmico
a subjetividade ocidental. Há relações inevitáveis entre esses dois tópicos e, se por um lado
podemos afirmar que nem sempre é fácil operar essa distinção na contemporaneidade, por
outro, os limites entre uma e outra podem muitas vezes ser absolutamente fictícios. Tomemos
a Razão e a Fé, abordadas anteriormente. Poderíamos tentar distinguir o posicionamento
subjetivo de uma e outra discernindo a Razão como um padrão societário e a Fé como uma
referência comunitária ou cultural. Não estaríamos errados ao fazer isso. Poderíamos
corresponder as relações políticas que levaram Platão e seus aristocratas à vitória sobre os
sofistas estreitamente a um “jogo de sociedade” e estabelecer as relações pautadas pela
comunhão religiosa
47
como uma “ligação” afetiva posta para “re-ligar” uma pessoa ou grupo a
pessoas, grupos ou mesmo idéias não mais presentes, num autêntico espírito comunitário, um
“jogo infinito”. No entanto, as coisas não são tão simples quanto parecem.
47
Para Houaiss (ibidem), o elemento de composição “religi-“ está relacionado a: “antepositivo, do lat.
religìo,ónis (relligìo nos poetas dactílicos) 'religião, culto prestado aos deuses, prática religiosa; escrúpulo
religioso, receio religioso, sentimento religioso, superstição; santidade, caráter sagrado; objeto de um culto,
objeto sagrado; uma divindade, um oráculo; profanação, sacrilégio, impiedade; lealdade, consciência, exato
cumprimento do dever, pontualidade; cuidado minucioso, escrúpulo excessivo'; us. em todas as épocas; "o
prefixo é re-, red- (cf. relliquiae, reliquiae)", dizem Ernout e Meillet, "mas o segundo elemento é obscuro. Os
latinos ligam-no a relegere (...), etimologia defendida por Cícero (...). Outros autores [Lactâncio e Sérvio]
associam religìo a religáre: seria propriamente 'o fato de se ligar com relação aos deuses', simbolizado pela
utilização das uittae ['fitas para enfeitar as vítimas ou ornar os altares'] e dos stémmata no culto. Alega-se em
favor desse sentido a imagem de Lucrécio, 1, 931: religionum nodis animum exsoluere; (...). O sentido seria
portanto: 'obrigação assumida para com a divindade; vínculo ou escrúpulo religioso' (cf. mihi religio est 'tenho
o escrúpulo de'); depois 'culto prestado aos deuses, religião'."; der. latinos: religiósus,a,um 'religioso, piedoso;
consagrado pela religião, santo, sagrado; supersticioso; escrupuloso, consciencioso; proibido pela religião,
ímpio, sacrílego', lat.imp. religiosìtas,átis 'religiosidade, piedade', lat.imp. irreligiósus,a,um 'ímpio, irreligioso',
irreligiosìtas,átis 'impiedade' (linguagem da Igreja), lat.imp. irreligìo,ónis; a cognação port. desenvolve-se
desde as orig. do idioma: correligionário, correligionarismo, correligionarista, correligionarístico,
correligiosismo, correligiosista, correligiosístico; irreligião, irreligiosidade, irreligiosismo, irreligioso;
religião, religiomania, religiomaníaco, religiômano, religionário, religiosa, religiosidade, religioso,
religiúncula.
O “jogo finito” traz em si a infinitude e o “infinito” corresponde a uma inequívoca
finitude. Nenhum desses jogos sobrevive sem estar situado de alguma forma no universo do
outro. As relações de trabalho da modernidade burguesa, por exemplo, não podem esgotar seu
sentido em si, pois se assim fosse ninguém encontraria sentido em trabalhar. É preciso que o
“jogo finito” traga ao menos a promessa da infinitude para ser aceito e praticado. O
desenvolvimento de habilidades no mundo laboral tem seus vínculos comunitários, e a
transmissão de informações de pai para filho, nos trabalhos tradicionais como a agricultura e o
artesanato são exemplos históricos dessa vinculação. Toda tarefa laborativa tem um quê de
cultural, de infinitude, na medida em que se postula e se informa como um modo de vida
peculiar, aconchegando seus membros numa vivência que ultrapassa a finitude das relações
econômicas. São as tradições de cada ofício que mantém o sentido subjetivo mais
fundamental deste. O que tem que existir, e nesse ponto retornamos à definição precisa dos
“jogos finitos”, é a hegemonia do social sobre o cultural. Um jornalista contemporâneo, por
exemplo, pertence a uma “comunidade” de iguais que nutre os mesmos princípios e uma
identidade compartilhada em cultos como o da escrita, ou de um certo modo de escrita. Tal
comunidade tem sua religiosidade, como o culto a ídolos mortos que representam referências
para seus membros, como Nelson Rodrigues e seu irmão Mário Filho no jornalismo esportivo;
Carlos Castelo Branco e Paulo Francis, no jornalismo político; ou Ibrahim Sued e Zuzu
Angel, no “colunismo social”. No entanto, tudo isso em si não significa muito se não houver
empresas jornalísticas para empregar esses profissionais e lhes permitir a atualização perene
dessa tradição, dessa vivência comunitária. Isso significa também que pode haver “bailarinos”
no mundo societário, pessoas que manipulam as rígidas regras da finitude para dar asas à
infinitude. E é preciso lembrar que o desenvolvimento das “intervenções organizacionais”
correspondem a uma iniciativa de incorporar o jogo cultural ao árido mundo do trabalho.
Adam Smith (1979; 2002) propunha que o jogo econômico devia ser contínuo
para redundar em ganhos para todos e que o maior sentido do jogo seria a participação
comunitária, a articulação entre seus membros no objetivo comum de ganhos. Esse discurso,
muito embora seja eminentemente político, traz consigo a projeção de uma idealização
comunitária e, se percebermos com Karl Polanyi (2002) como a Europa se unificou sob o jogo
finito da economia durante o século XIX, podemos entender que estava ali também presente
uma certa infinitização do “velho continente”. Porém, o que estava por trás disso eram
objetivos tão finitos como o velho e pérfido lucro na exploração do trabalhador pelo
proprietário dos meios de produção. Nem sempre o que se diz é o que se quer dizer realmente.
No plano da cultura, da comunidade, podemos perceber que também há
interseções importantes. O religioso cristão está vinculado a uma instituição secular, bastante
comprometida com os jogos societários, a Igreja, no caso do catolicismo, ou o dito Templo,
no caso evangélico. Junto ao culto dos antepassados, Cristo, por exemplo, o fiel tem acesso a
uma organização que lhe representa não somente na ligação com o transcendente, como
também na vida social. As diversas “igrejas” evangélicas são o maior exemplo dessa
apropriação do comunitário pelo societário e se constituem cada vez mais num eficaz
instrumento de poder social para seus membros, ou para parte deles. A arte e as manifestações
artísticas têm, do mesmo modo, seu “mercado” e seus empresários e se inserem no mundo
econômico. A família, núcleo do comunitarismo, tem seus vínculos sociais e é costume um
homem e uma mulher se unir pelo matrimônio num cartório, ato que os faz não mais
parceiros, mas sócios de uma empresa informal chamada “casal”. No entanto, é preciso que o
prazer da convivência seja maior do que a obrigação de manter a empresa, ao menos na
contemporaneidade, senão é possível que tudo tenha fim. O artista precisa, por sua vez,
encontrar prazer maior exatamente no ato de produzir algo do que no de ganhar dinheiro com
sua produção. Se isso não ocorrer, provavelmente se transformará num repetidor de fórmulas
prontas, como os grupos de rock ou pagode midiáticos, esquecidos geralmente após o segundo
disco lançado. O religioso encontra mais prazer na vivência hierática do que no poder social
de sua igreja, ou é um proxeneta da própria fé ou da alheia.
A força da lógica “finita”, no entanto, tem invadido o território “infinito” com
particular incisividade. Cada vez mais parece que o comunitário, que se caracteriza por jogar
apenas para si, voltado mesmo para o próprio umbigo, tem sido capturado pela ética dos
“jogos finitos” exatamente nos seus dotes estéticos, e funcionado para reforçá-la e
fundamentá-la. Isso pode parecer um contra-senso num momento em que estudos como os
Estudos Culturais têm atribuído à cultura uma hegemonia sobre as rígidas relações pautadas
pelo poder social. Ora, a vivência cultural é efetivamente fundamental na articulação dos
poderes entre pessoas e grupos, mas a sociedade na qual estão ocorrendo essas articulações
tende a imantar tudo o que ocorre dentro dela para um discurso estrito e redutor, o econômico
e este, percebamos isso com clareza, está a serviço do poder político – não entendido
exatamente como partidário ou estatal, mas como poder de influência e mando de pessoas ou
grupos sobre a coletividade. Se isso é assim, o cultural passa a ser oprimido – ou continua a
sê-lo – muito embora salte aos olhos simuladamente como hegemônico. Não deveríamos falar
de cultura nesse caso, mas de uma “culturologia”, ou de uma cultura capturada pelas teias
socioeconômicas, o que nada tem a ver com o que definimos como cultural. Com a licença de
estudiosos sérios como Stuart Hall (1998; 2003), compreendemos que na sociedade em que
vivemos a hegemonia não é cultural, mas sim política e é a esta que precisamos nos
referenciar por todo o tempo se quisermos produzir algum efeito no campo da cultura.
O econômico, enquanto discurso a serviço do político, abarcou de tal forma todas
as relações, inclusive as comunitárias, que praticamente relegou estas ao ínfimo do familiar
nuclear, do pequeno grupamento centrado no casal, com seus filhos e agregados eventuais. O
comunitário, conforme descrito acima, praticamente não existe entre as classes médias
urbanas, e, se subsistiu durante algum tempo entre os mais pobres, que sempre alijados do
jogo econômico sobreviviam pela posse mútua de problemas e soluções, paulatinamente
desaparece, como indica a economicização das relações contida na prática do Comando
Vermelho, organização criminosa carioca voltada inicialmente para a “comunidade
carcerária” e, paulatinamente, transformada numa empresa de arrecadação de recursos não
mais simplesmente para dar apoio aos “companheiros presos”, mas para novas ações
criminosas, cada vez mais lucrativas e audazes.
2.2.1. A ilusória captura da ética pela estética.
Raquel Paiva é outra autora que opõe conceitualmente a comunidade à sociedade,
onde a hegemonia é a do Homo oeconomicus dos jogos finitos, e declara, logo na abertura de
seu livro “O Espírito Comum”, tomando partido pela necessidade de reduzir o espaço
desmedido que o jogo econômico conseguiu em nossa sociedade: “Este nosso trabalho é,
antes de mais nada, uma indagação sobre as possibilidades de resposta da sociedade civil – o
“Espírito Comum” de que fala o título – à voracidade economicista das elites
contemporâneas” (PAIVA, 1998, p. 11). Trata-se de uma postura ética que leva em
consideração a necessidade de atenção às demandas comunitárias onde a comunhão se dá em
torno de princípios e normas comuns e adequadas para o que se compreende ser melhor para o
grupo. A autora, ao propor a democratização da comunicação através do acesso ativo das
comunidades à circulação de informações, propõe também que essa democratização viabilize
um novo ethos, uma conjuntura que dê acesso aos valores comunitários, em oposição aos
societários, marcados pela jogatina financeira e pela opressão econômica bem exposta por
Viviane Forrester (1997).
Com relação à apropriação estética dos valores comunitários por parte das elites –
também abordada por Bauman (2003) – Paiva aponta para uma idealização desses valores
como viabilizadores de um resgate de um certo paraíso perdido. Esse movimento
corresponderia a uma necessidade das pessoas envolvidas no jogo societário economicista, em
que as regras competitivas conduzem a uma depauperação das relações humanas, que passam
a se resumir no interesse e na luta constante de todos contra todos. Essa necessidade seria a de
uma identificação com valores fundados na segurança das relações afetivas, expulsas da
sociedade desde a idealização da República platônica. A referência a esse “paraíso perdido
torna-se um fator de agregação para os participantes dos jogos de sociedade, sendo o território
imaginário onde esses jogadores poderiam encontrar o aconchego do regaço comunitário.
Como todo paraíso perdido, no entanto, é inalcançável e serve bem ao interesse do jogo
econômico: ele simula a vinculação comunitária na virtualidade da cultura midiática, na qual
a vicariedade das imagens acaba por substituir a experiência, e as relações afetivas são
encenadas de forma atraente por permitirem vivências afetivas – ainda que vicárias – e
controláveis pelo sujeito. No entanto, essa virtualidade é, como não poderia deixar de ser,
incompleta e potencialmente insatisfatória na medida em que apenas encena relações afetivas,
não as incentivando no mundo “real”, onde, como já afirmamos, imperam as relações
competitivas.
O Estado Nação havia, até bem poucas décadas, funcionado como uma projeção
desse mundo ideativo que traz em si uma especularização do comunitário. Platão não
pretendia outra coisa com a sua “República”, e também foi esse mesmo objetivo que levou
Smith (2002) e Jeremy Bentham (1979) a propor o estabelecimento de uma sociedade pautada
na vigilância mútua, na disciplina congênita dos laços sociais idealizados por esses
pensadores dos jogos “finitos”. Estes, como já vimos anteriormente, trazem em si uma
promessa de continuidade, uma infinitude virtual substitutiva da infinitude sensível e intuitiva
do comunitário. Na contemporaneidade, a exacerbação neoliberal tomando a potencialidade
do consumo como expressão de cidadania – reconhecida por Néstor García Canclini (1997) –
faz aderir a subjetividade ao jogo econômico como insumo, ou seja, como elemento
fundamental da produção de mercadorias e de sentidos para essas mercadorias. Sobre um
tabuleiro no qual as forças sociais são unificadas pela divindade do mercado econômico, as
relações se pautam pela belicosidade do “jogo finito”, travestidas sob um manto de integração
cultural estética: captura-se o sentido das manifestações culturais a partir de sua manifestação
estética, escamoteando os conteúdos éticos hegemônicos, e põe-se o resultado nas vitrines dos
grandes shopping centers em que se transformam as cidades.
As pessoas aderentes a essa lógica de existência vicária teriam a tendência a
procurar desesperadamente pela essência que une os indivíduos nas manifestações midiáticas,
na busca de recuperar um sentido para a vida, geralmente conseguido no seio de relações
pautadas pela experiência compartilhada. Como a comunicação de massa se dá a partir de um
emissor único que alcança múltiplos receptores, a massificação levaria a uma depauperação
da experiência em prol da profissão de fé na simulação dessa mesma experiência. Passivos, os
participantes desse mundo virtualizado encontram-se presos aos ditames do emissor, mesmo
quando tentam escapar dessa ditadura, encenando escolhas. Como estas escolhas são
condicionadas às imagens identitárias produzidas na emissão midiática, praticamente não
existem, ou limitadas às regras do discurso econômico.
A estetização midiática, compreendida nos termos acima, é uma representação
formulada por um ethos, onde a vicariedade é a tônica. Isso quer dizer que para se comunicar
com maior abrangência, incluindo mesmo uma via de acesso às periferias do mundo
econômico, o jogo social hegemônico engendra uma apropriação dos valores destas,
projetando uma realidade virtual na qual todos têm, em tese, espaço de manifestação, mas
onde, na verdade, somente alguns eleitos conseguem proveito – os “winners”. Desse modo,
opera-se um jogo onde a ambigüidade impera, na medida em que o popular é esvaziado dos
conteúdos que lhe fizeram ser o que “é” para, sendo o que “não é”, conseguir “ser” no espaço
societário. Assim, por exemplo, o samba vira o pagode que os apresentadores dos programas
das tardes de sábados e domingos exibem, a ginga do malandro é copiada pelos “playboys”,
junto com roupas e músicas como o funk, e as religiões africanas resumem-se aos jogadores
de búzios das previsões de fim de ano. O carnaval carioca se transforma numa festa midiática
e tem seu centro no desfile das escolas de samba; nas ruas, quase não se nota a festa. A
estetização controlada dos meios de comunicação se fusiona com a ética, cumprindo para as
elites econômicas e culturais a importante missão de moldar o mundo à sua imagem e
semelhança, reassegurando o poder dessas elites, que sempre viram nas manifestações
populares nada mais do que o bizarro, o prosaico e o folclórico – e elas passam a ser, no
mundo midiático, exatamente isso, capturadas pela lógica dos “jogos finitos”, como afirma
Parret (idem, p. 18):
“A principal ontologia da comunidade humana, aquela que é
endossada pelo paradigma dominante, reconstrói o ser-em-
comunidade como um sistema de interações e de transações
submetidas às regras da racionalidade econômica e,
conseqüentemente, reconstrói a comunidade como fonte e alvo de
jogos estratégicos finitos”.
Estetizados, manequinizados, com formato exportação, as manifestações
comunitárias perdem o sentido, deixam de ter raízes, passam a servir apenas para enriquecer
empresários e demais jogadores dos jogos econômicos.
Bauman é outro autor que se refere à diferenciação entre sociedade e comunidade,
focando, como já fizera Paiva (idem), sua atenção no significado desta como uma referência
do aconchego e segurança perdida no processo de social de industrialização. Ele descreve
assim o processo de captura das comunidades para o jogo econômico, transformando seus
componentes em “massa”:
Para que se adaptassem aos novos trajes, os futuros trabalhadores
tinham que ser antes transformados numa ‘massa’: despidos da
antiga roupagem dos hábitos comunitariamente sustentados. A
guerra contra a comunidade foi declarada em nome da libertação do
indivíduo da inércia da massa. Mas o verdadeiro resultado – ainda
que não dito – dessa guerra foi o oposto do objetivo declarado: a
destruição dos poderes de fixar padrões e papéis da comunidade de
tal forma que as unidades humanas privadas de sua individualidade
pudessem ser condensadas na massa trabalhadora.
A ‘preguiça’ inata das ‘massas’ não passou de uma (débil)
desculpa. (...) a ‘ética do trabalho’ do início da era industrial foi
uma tentativa desesperada de reconstituir, no ambiente frio e
impessoal da fábrica, através do regime de comando, vigilância e
punição, a mesma habilidade no trabalho que na densa rede de
interação comunitária era alcançada de modo ‘natural’ pelos
artesãos e outros trabalhadores
(BAUMAN, idem, p. 30/31).
O processo mudou de estratégia. A coerção não é mais direta e autoritária, ao
menos nos grandes centros urbanos. A lógica permanece a mesma, mas o modo de ação
transformou-se na sedução da inclusão no “jogo finito” da economia, o jogo cuja
competitividade continua sendo excludente e mediocrizante. A fluidez líquida do processo
incorpora ao seu núcleo aglutinador – como parece ser uma constante na habilidosa estratégia
do capital em trazer para si as mais diversas manifestações, mesmo as contrárias ao sentido do
jogo capitalista – tudo o que pode: da contracultura aos batuques do samba, tudo se
transforma em fichas para apostas no pano verde onde se disputa a vitória econômica: o
acúmulo de capital. Nada pode ficar de fora, e quando o faz é porque precisa ser reprimido
para se tornar marginal e, assim, encontrar o seu próprio público. Isso inclui as drogas ilícitas,
por exemplo, que se constituem num elemento inegável de inserção na economia capitalista
entre as classes populares – os mercados negros, afinal, sempre tiveram o seu espaço no jogo
econômico –, fazendo circular dinheiro entre os negociantes desse produto – os chamados
traficantes, seus vapores e olheiros –, fomentando quadrilhas mas, ao que tudo indica,
enriquecendo gente que não mora nas favelas e periferias.
Com relação aos sonhos das classes médias, Bauman (idem) acerta ao identificar a
contradição presente na sedutora idealização da comunidade operada no seio da sociedade
econômica comparando-a ao mito de Tântalo, aquele que, incapacitado de beber água, padecia
de terrível sede no meio de um rio. Essa metáfora serve para designar a fantasia do retorno
impossível a um meio comunitário inalcançável, projetado imaginariamente como um reino
de paz, aconchego e segurança, pois somente existente na memória e na fantasia – mais nesta
do que naquela. No entanto, o poder de captura econômico está exatamente aí, na promessa da
tensão como “tesão” constante, na projeção do fim da tensão pelo acirramento desta, no
reconhecimento da emoção para aplacá-la e protegê-la de seus próprios exageros.
Bauman lança mão da oposição entre segurança e liberdade, deixando claro que a
existência dessa projeção imaginária vem de encontro ao preço pago pelos membros das
sociedades contemporâneas pela liberdade prometida pelo cassino econômico: a insegurança
com relação à própria identidade. Isso nos faz compreender melhor a obsessividade com a
qual o tema “segurança” é tratado nas grandes cidades: não se fala necessariamente da
insegurança relativa à violência, aos assaltos, seqüestros e outros atos criminosos; fala-se,
principalmente, da insegurança como um vazio de sentido e de significados, quando tudo se
resume ao econômico e ao consumo, em um momento de hipertrofia do ético travestido no
estético, ou poderíamos também dizer, da essência travestida de existência. A sensação de
vazio ético parece ser estratégica na medida em que viabiliza uma prótese estética que, no fim
das contas, tem a função de reforçar alguns conteúdos da ética comercial. Enquanto julga
consumir imagens, o vicário leitor de jornais ou espectador de tv está, mais propriamente,
sendo instruído sobre os princípios éticos que deve adotar em sua vida cotidiana, desde a
intimidade até as relações sociais, se é que haja ainda alguma diferenciação entre isso. No
entanto, os vínculos manifestos, explícitos, são postos no campo estético como uma estratégia
de controle que abarca não mais os conceitos com os quais a ideologia trabalhava, mas –
como afirma Guattari (1999, p. 16):
A meu ver, essa grande fábrica, essa grande máquina capitalística
produz inclusive aquilo que acontece conosco quando sonhamos,
quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos
e assim por diante. Em todo caso, ela pretende garantir uma função
hegemônica em todos esses campos.
– em todos os campos da existência. A sociedade da disciplina se aperfeiçoou ao máximo e se
tornou absolutamente controladora, desviando sua atenção da produção de bens objetivos para
a produção de bens subjetivos que, no entanto, continuam a carregar a essencialidade das
relações pautadas no econômico.
A estetização midiática passa a ser um fenômeno tão proeminente na
subjetividade contemporânea que marca de forma indelével as identidades e produz uma nova
realidade onde a relação vicária substitui a experiência. Trata-se de um fenômeno motivado
pela rearticulação das referências sociais em termos de imagens, gerando aquilo que
Baudrillard (1991) chama apropriadamente de hiper-realidade, a simulação virtual do mundo
social, transpassado pelo simulacro dos sentimentos identitários presentes nas mensagens
midiáticas de um “mundo paralelo”. Trata-se de um mundo ideativo tão influente sobre a
mundanidade que já se tornou uma espécie de lei a máxima de que o que existe é o que
acontece na mídia – um ditame tão importante quanto a lei física da gravidade: esta servindo
para estruturar o meio físico e aquela para estruturar a metafísica da Cultura das Mídias da
qual nos falou Lucia Santaella (1996). Retomando Bauman (idem, p. 63), podemos perceber
que:
Graças à imensa capacidade advinda da tecnologia eletrônica,
podem ser criados espetáculos que oferecem uma oportunidade de
participação e um foco compartilhado de atenção a uma multidão
indeterminada de espectadores fisicamente remotos. Devido à
massividade mesma da audiência e à intensidade da atenção, o
indivíduo se acha plena e verdadeiramente ‘na presença de uma
força que é superior a ele e diante da qual ele se curva’; realiza-se
a condição posta por Durkheim para a capacidade tranqüilizadora de
orientação moral dada e imposta pela sociedade. A orientação opera
nestes dias mais pela estética do que pela ética.
A estetização, como já afirmamos, substitui em boa medida os apetrechos éticos
que formavam a consciência nos tempos da modernidade, sem que, no entanto, estes deixem
de existir, muito pelo contrário. O que muda, reafirmamos, é a estratégia, mas o jogo continua
“finito” como sempre.
A passagem do indivíduo intro-dirigido para o alter-dirigido, nos termos
propostos por David Riesman (1971) em um interessante trabalho escrito ainda nos anos 50,
se dá pela substituição de algumas referências emblemáticas de importância na formação da
identidade. Os “formadores de opinião” não são mais os líderes carismáticos que discursavam
“ao vivo e a cores”, diante de platéias em comícios, manifestações ou pregações, muito
embora estes sempre subsistam em setores da vida comunitária. Os novos líderes são, como
refere muito apropriadamente Bauman (idem), as celebridades televisivas. É em torno delas,
em suas “ficções ficcionais” como as novelas ou em suas “vidas ficcionais” nas revistas ou
nos programas televisivos dedicados a elas. São pessoas que se elevaram ao Olimpo da
veiculação ostensiva e ganham, assim o status de representantes de um modo de ser, com o
respeito à diversidade cultural encenado de várias formas. Desse modo, há espaço para todos
os gostos: dos românticos – com seu naipe de opções entre os artistas que trabalham para esse
target – aos hip-hoppers – onde figuras como Xis, Thaide e MV Bill conseguem espaço mais
estético do que ético, muito embora tentem o oposto –, passando por caipiras-cowboys
simplórios – como o vencedor de um dos Big Brothers – e homossexuais – que também
contam com um bom número de opções identitárias no mundo das celebridades. O que vale,
partindo dessas figuras emblemáticas da estetização social, não é tanto o que dizem, mas
como dizem; que expressões gestuais usam, que roupas vestem, que dialetos falam. O poder
centrípeto da comunicação em sua exuberância estética consegue unir todas as diferenças
numa só unidade semântica.
Muniz Sodré percebe a prevalência da estética no espaço público, corporificada na
midiatização. Segundo ele, esse movimento configura uma
tendência à substituição do discurso objetivista, argumentativo e
racionalista, compatível com a imprensa clássica, pela narratividade
(na forma de ‘casos’) emocionalista da midiatização, o que
significa trocar a opinião arrazoada pela percepção esteticista da
performance
(SODRÉ, 2002, p. 41).
Longe de aparentar uma integração entre os jogos de sociedade e de cultura, o
autor percebe com argúcia que o que acontece é a apropriação destes pela articulação
discursiva daqueles, com um objetivo muito específico e claro: engendrar um bios pautado
pela predominância, nos meios de comunicação, da lógica mercadológica do capitalismo.
Segundo ele,
O bios midiático implica de fato uma refiguração imaginosa da vida
tradicional pela ‘narrativa’ do mercado capitalista. Frente a ele, é
possível pensar no saber comunicacional como uma redescrição da
realidade tradicional pelo pensamento que incorpore a nova ordem
tecnológica, mas refigurando a experiência do indivíduo em seu
relacionamento com o mundo virtual, experimentando por usa vez
uma crítica da existência e buscando um sentido ético-político para
o empenho ativo de reorganização do nosso estar-no-mundo
(SODRÉ, 2002, p. 255).
A tentativa de reorganização do “estar-no-mundo”, podemos interpretar, age no
sentido de uma simulação de ampliação do campo perceptual pelo bombardeio de imagens e
sons no cotidiano. No entanto, o que se faz na realidade é estreitar esse campo, ação que
corresponde a uma tentativa de resumir a experiência a uma unidade semântica, como
dissemos acima. Essa unidade remete-se, conforme Muniz Sodré sugere, a uma racionalidade,
a do capital. Como o jogo capitalista exclui qualquer potencialidade organizativa no estilo
comunitário – que acaba por agir contra a lógica do sistema – a absorção dos conteúdos da
cultura não é tão confiável quanto a certeza da destruição destes no processo de consumo.
Bauman (idem) toca nesse tema quando descreve as “comunidades estéticas”,
fruto da tendência, já citada anteriormente, a buscar uma recuperação da vivência comunitária
numa tentativa tantálica de recuperar o que está perdido. Em vez de interagir numa ordenação
comunitária – com o compromisso com seus pares não apenas nos prazeres, mas também nos
dissabores –, aqueles que buscam essa nova modalidade de interação
48
acabam aprisionados
no simulacro comunitário, na captura estética dos traços comunitários, numa espécie de
estereotipia do comunitarismo, que não faz mais do que repetir as velhas fórmulas de reforço
da lógica de acumulação de capital. Acabam sendo reproduções mal feitas da interação
comunitária que exige participação não apenas nos interesses em temas específicos – como
esportes ou algum hobby – mas na vivência cotidiana, incluindo os dissabores da convivência,
o que se configura intolerável para os membros da comunidade estética, que prezam a cima de
tudo a liberdade da desvinculação emocional concreta – nas regras desse jogo, apenas as
vinculações virtuais, imaginárias, são bem vindas. As demandas identitárias acabam
ancorando na mesmice das mensagens midiáticas, na comunitarização via tela televisiva, na
participação da comunidade virtual dividida entre celebridades – os winners – e os cultores
das celebridades – os losers, que, no entanto, continuam jogando um outro tipo de jogo sem
fim, o de Sísifo: parecem precisar compulsivamente da vicariedade, quem sabe para escapar
do “deserto do real”.
2.2.2. O comunitário é o que nos faz humanos: a exaltação da brasilidade
por Nelson Rodrigues.
Para ilustrar o ethos comunitário e suas articulações discursivas, vamos recorrer a
um texto muito bem escrito sobre uma partida de futebol. Na edição especial da revista Fatos
e Fotos de junho de 1962, Nelson Rodrigues publicava um texto intitulado “O Escrete de
Loucos”, tendo como tema a partida final da Copa do Mundial de Futebol realizado no Chile.
No dia 17 daquele mês, em Santiago, o Brasil, após uma vitória sobre a seleção da – hoje
extinta – Tchecoslováquia por 3 a 1, conquistava o bicampeonato mundial.
Uma partida de futebol, como sabemos, está incluída no rol dos jogos finitos, pois
tem um tempo regulamentar e um resultado final, há um vencedor e um vencido. Está, além
disso, principalmente nestes últimos anos, cada vez mais incluída no jogo econômico, como
praticamente tudo na sociedade contemporânea. É, assim, um negócio como qualquer outro,
com jogadores milionários, dirigentes que chegam a postos magnos na política – como o
primeiro-ministro Berlusconi, na Itália, e, em grau mais modesto, como o ex-deputado Eurico
Miranda, no Rio de Janeiro –, e cada partida envolve interesses marcados pelo culto da
competitividade e da busca do lucro, como uma boa oportunidade de negócio.
No entanto, Nelson Rodrigues, apesar de estar comentando um jogo vitorioso para
a seleção brasileira de futebol, parecia nitidamente mais ocupado em apontar para o
virtuosismo dos jogadores atribuindo um inegável sentido cultural àquela vitória. Esse
virtuosismo estava, naquele momento, para Nelson, ligado a valores culturais, comunitários,
enaltecedores do modo de ser brasileiro, da “comunidade” brasileira. Se muitas vezes o
escritor tratou a seleção brasileira de futebol como “A pátria em chuteiras”, trazendo uma
imagem típica do Estado Nação, como se os jogadores fossem soldados a serviço do país
numa espécie de guerra, nesse texto o principal foco está no fato de que, para Nelson
Rodrigues, o brasileiro seria “uma nova experiência humana”.
Esse texto, apesar de comemorar uma vitória bastante definida, a de uma
importante partida de futebol, lança luz sobre como os jogos infinitos personificam-se na
exaltação do inusitado, do esforço por transcender os finitos espaços de conquista limitados
pela vitória. Esta, apesar de ter sido do time que marcou mais gols naquele “match”, está
lançada para além desse acontecimento pontual e, afinal, insignificante sob o ponto de vista
cultural. A vitória apresentada por Nelson Rodrigues é a da arte de pertencer a uma
comunidade, de criar soluções para suplantar dificuldades e cujo sentido mais contundente
está no fato de que representa uma celebração do amplo jogo da vida. O futebol é apenas um
tema, apaixonante para o autor, e o que ele visa não é apenas mostrar como o futebol,
praticado com virtuosismo, transcende o resultado. Ele parece querer nos dizer que para além
da partida e do próprio jogo futebolístico há um outro, que perpassa todas as atividades finitas
e está marcado pela infinitude: o jogo da manifestação cultural, o do desenvolvimento de um
modo de ser comunitário, pautado pela criatividade e pela afetividade em relação a um
posicionamento no mundo.
48
Cujos grupos de interesse de internautas constituem um bom exemplo, assim como as tribos de que nos fala
Maffesoli (1998), ou como os grupos que se reúnem para alguma atividade e depois se dissolvem.
Logo no primeiro parágrafo, Nelson nos põe em contato com o tema inefável da
vitória como algo maior do que o resultado, remetido à “molecagem”, à brincadeira:
Amigos, a bola foi atirada ao fogo como uma Joana d’Arc.
Garrincha apanha e dispara. Já em plena corrida, vai driblando o
inimigo. São cortes límpidos, exatos, fatais. E, de repente, estaca.
Soa o riso da multidão – riso aberto, escancarado, quase
ginecológico. Há, em torno do Mané, um marulho de tchecos.
Novamente, ele começa a cortar um, outro, mais outro. Iluminado
de molecagem, Garrincha tem nos pés uma bola encantada, ou
melhor, uma bola amestrada. O adversário pára também. O Mané
com quarenta graus de febre prende ainda o couro.
Garrincha não parece apenas representante de um time que vence uma partida e
que, segundo se compreende sob um ponto de vista racional – tão caro aos jogos de sociedade
–, deve cuidar para que o adversário não jogue, praticando um jogo estudado e comedido.
Seria temerário demais reduzir a atitude do “Mané” a uma estratégia para prender o jogo. Ele
parece querer mais: quer celebrar o jogo que transcende o resultado, quer jogar, quer brincar.
E é o encanto da brincadeira, para Nelson, que sela a vitória do “escrete”. É a celebração da
brincadeira que faz o “feio e torto” brasileiro impor sua beleza aos róseos europeus:
A partida está no fim. O juiz russo espia o relógio. E o Brasil não
precisa vencer um vencido. A Tchecoslováquia está derrotada, de
alto a baixo, da cabeça aos sapatos. Mas Garrincha levou até a
última gota o seu olé solitário e formidável. Para o adversário, pior
e mais humilhante do que a derrota, é a batalha desigual de um
contra onze. A derrota deixa de ser sóbria, severa, dura como um
claustro. Garrincha ateava gargalhadas por todo o estádio. E, então,
os tchecos não perseguiam mais a bola. Na sua desesperadora
impotência, estão quietos. Tão imóveis que pareciam empalhados.
Garrincha também não se mexe. É de arrepiar a cena. De um lado,
uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo;
de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do
brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma
briosa lavadeira. O juiz não precisava apitar. O jogo acabava ali.
Garrincha arrasara a Tchecoslováquia, não deixando pedra sobre
pedra.
Essa celebração é fundamental porque está inserida como algo para além do
resultado. É a alegria do dançarino, a estratégia que não se apega aos limites marmóreos do
jogo, que os manipula e suplanta, fazendo com que não pareçam mais do que insignificantes
detalhes. Como afirma Parret (idem, p. 50):
A sugestão é antes que, além da finitude dos jogos de sociedade,
existe a racionalidade estratégica do jogador do infinito. As
estratégias do jogador do infinito não podem ser recuperadas pelo
modelo econômico, que reduz o ser-em-comunidade a um ser-juntos
dentro da sociedade. É assim que o jogador do infinito não é de fato
um calculador nem um combatente pela vitória. O jogador do
infinito é muito mais como um dançarino.
O que Nelson Rodrigues parece querer dizer no seu texto é que Garrincha é um
representante de uma “comunidade” brasileira, não da sociedade brasileira, que, através de
suas elites econômicas e administrativas, parece sempre valorizar o modelo idealizado da
sociedade européia, registrado solenemente no dito positivista presente no pavilhão nacional:
“Ordem e Progresso”. A “comunidade” brasileira, aquela forjada no dia-a-dia das inevitáveis
dificuldades a serem vencidas pelos que não contam com subsídios estatais para tocar seus
negócios – nem sequer tendo o direito de possuir negócios –, parecia, para Nelson, encontrar
em Garrincha, naquele momento mágico, o seu mais fiel representante
49
. Aqueles que,
embora aparentemente sempre com motivos para mais chorar do que rir, encontram sempre
espaço para brincar, desprezando a lógica elitista que reza ser a vida coisa muito séria.
Nelson continua sua exaltação da “brasilidade”:
Se aparecesse, na hora, um grande poeta, havia de se arremessar
gritando: ‘O homem só é verdadeiramente homem, quando brinca!’.
Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o
Brasil. E jamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como
ao imobilizar, pela magia pessoal, os onze latagões tchecos, tão
mais sólidos, tão mais belos, tão mais louros do que os nossos. Mas
veriam como, varado de gênio, o Mané põe, num jogo de alto
patético, um traço decisivo do caráter brasileiro: - a molecagem.
O Hélio Pellegrino, que é poeta e psicanalista, dizia-me, outro dia:
- ‘O brinquedo é a liberdade!’. E para Garrincha o brinquedo, no
fim da batalha, foi a molecagem livre, inesperada, ágil e criadora.
Varou os pés adversários, as canelas, os peitos. Não tinha nenhum
efeito prático a sua jogada arrebatadora e inútil. Mas o doce na
molecagem é a alegria insopitável e gratuita. E não houve, em toda
a Copa, um momento tão lírico e tão doce.
O Garrincha do texto é aparentemente a “parteira” como protótipo do estrategista
da infinitude, citada por Parret (idem) como aquela que efetua as incisões vitais. É aquele que
faz nascer o sentido de pertencer a uma comunidade que, desvalorizada por sua feiúra e sua
pobreza econômica, resplandece em toda sua singularidade através da molecagem, da
brincadeira. A essa comunidade não importa tanto a vitória, muito embora esta pareça
49
Este trecho do texto “Uma barata seca de 250 milhões”, de Nelson Rodrigues, publicado na revista Manchete,
em 1/12/1962, é emblemático acerca da percepção que o autor tinha sobre o brio do brasileiro: “Amigos, a única
miséria orgulhosa é a brasileira. Apanhem um pau-de-arara, ou melhor: - apanhem um retirante de Portinari.
Lá está o homem, nos seus farrapos espectrais, lambendo a sua rapadura. Pois o pobre-diabo brasileiro
conserva, no meio da subnutrição mais hedionda, todas as suas potencialidades intactas. Basta que alguém
provoque a sua honra. Ele ressuscitará como um Lázaro da miséria: e, na sua ressurreição, há de ser capaz de
chupar a carótida de reis”.
indispensável para impor a importância do modo de ser dessa comunidade: o que parece valer
mais, segundo o texto de Nelson, é a própria vivência desse “estar-no-mundo”.
A oposição entre os inefáveis virtuoses brasileiros e os técnicos e previsíveis
europeus – que tomariam aqueles como também previsíveis – é marcada por Nelson
Rodrigues. A chave para o sucesso brasileiro não estaria na esquematização tática, nem
mesmo na técnica, mas na singularidade dessa experiência humana, incompreensível e
imperscrutável para a inteligência européia:
Amigos, ninguém pode imaginar a frustração dos times europeus.
Eles trouxeram, para 62, a enorme experiência de 58. Jogaram
contra o Brasil na Suécia, trataram de desmontar o nosso futebol,
peça por peça. Toda a nossa técnica e toda a nossa tática foram
estudadas, com sombrio élan. Sobre Garrincha, eis o que diziam os
técnicos do Velho Mundo: - ‘Só dribla para a direita!’. Era a falsa
verdade que se tornaria universal. O próprio Pelé parecia um
mistério dominado.
Após quatro anos de meditação sobre o nosso futebol, o europeu
desembarca no Chile. Vinha certo, certo, da vitória. Havia, porém,
em todos os seus cálculos, um equívoco pequenino e fatal. De fato,
ele viria a apurar que o forte do Brasil não é tanto o futebol, mas o
homem. Jogado por outro homem o mesmíssimo futebol seria o
desastre. Eis o patético da questão: - a Europa podia imitar o nosso
jogo e nunca a nossa qualidade humana. Jamais, em toda a
experiência do Chile, o tcheco, ou inglês, entendeu os nossos
patrícios. Para nos vencer, o alemão ou suíço teria de passar várias
encarnações aqui. Teria que nascer em Vila Isabel, ou Vaz Lobo.
Precisaria ser camelô no Largo da Carioca. Precisaria de toda uma
vivência de boteco, de gafieira, de malandragem geral.
No texto, em oposição ao outro posto no europeu, o eu comunitário brasileiro
incorpora experiências singulares, marginais em termos da formação da subjetividade
européia – aquela que referencia a discursividade dos intelectuais orgânicos das elites
econômicas até hoje. Essa definição identitária é característica do comunitarismo e não
estaremos longe da verdade ao afirmar que essa postura nos remete a uma noção mais clara e
honesta em relação à aceitação das diferenças do que aquela que apregoa a globalização à
extinção das diferenças. Estas sempre existem e existirão, e nossa visão do mundo, por mais
que pareça ou tente ser racionalizante – ou seja, redutora da experiência à verdade metafísica
– está sempre marcada pela fisicidade da afetividade comunitária, muito mais pathos do que
ethos, bem mais paixão do que razão. E é com essa paixão arrebatadora que Nelson entende a
singularidade de ser brasileiro:
Aí está: - no Velho Mundo os sujeitos se parecem como soldadinhos
de chumbo. A dessemelhança que possa existir de um tcheco para
um belga, ou um suíço, é de feitio do terno ou do nariz. Mas o
brasileiro não se parece com ninguém, nem com os sul-americanos.
Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do
Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e
criador: a molecagem. Citei a brincadeira de Garrincha num final
dramático de jogo. Era a molecagem. Aqueles quatro ou cinco
tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a
Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a
Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus
claustros, os seus rios.
Vocês assistiam, pelo vídeo-tape, todos os matches. O europeu
aparecia com uma seca, exata objetividade, sem uma concessão ao
delírio. Ele próprio se engradava dentro de um esquema irredutível.
Ao passo que o Brasil faz um futebol delirante. Numa simples ginga
de Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas. O nosso escrete
era vidência, iluminação, irresponsabilidade criadora. Só a Espanha
é que chegou a lembrar o Brasil. Seu escrete parecia passional
também. Mas logo se percebeu a falsa semelhança. Os espanhóis
têm uma paixão sem gênio, uma paixão burra. Chegaram a nos
ameaçar, por vezes. Veio, porém, um sopro da praça Sete, do Ponto
de 100 Réis, e Amarildo, o ‘Possesso’, encaçapou dois.
Percebamos que essa paixão está presente como uma pré-condição para qualquer
comunicação – mesmo nas mais sisudas, em que a paixão não está ausente, mas latente nas
entrelinhas. Também precisamos ter claro que todo e qualquer ato comunicativo traz em seu
bojo um conteúdo de caráter ético, isto é, que tem a função de orientar a compreensão,
motivando o reforço de um certo tipo de comportamento que está fundado nessa
compreensão. No entanto, a comunicação parte, a priori, da formalização estética que, em
última instância, sustenta e legitima os conteúdos éticos. Tal formalização parece sempre estar
comprometida com a veiculação de pressupostos comunitários
50
, entronizados como
proposições vinculadas a um “estar-no-mundo”, nascidas de um senso que parece estar
fundado no compartilhamento, no sensus communalis de que nos fala Parret (idem). Essas
proposições se manifestam de forma estética pois estão incorporadas num padrão discursivo
que antecede a formalização em palavras. São mais expressos em afetos do que nestas, são
como uma verdade suprema, geralmente não expostas a contradições pois aquém das falas e
dos textos. São como o marulho dentro do qual estas e estes acontecem. Em outros termos,
essas proposições parecem estar presentes nos meios comunicativos primordiais para a
formação da identidade: seus conteúdos são como mensagens que estão condicionadas pelos
meios que os manifestam, como no modelo proposto por Marshall McLuhan (1969). Também
podemos dizer que são como as manifestações do Inconsciente freudiano, já que, antecessoras
50
Sabemos que esses pressupostos estão fixados não em palavras, mas em atos, constituindo uma “memória”
fixada nesses atos ritualizados com sons e movimentos corporais, o que corresponde a mais importante função de
transmissão de informações e de preservação cultural: se fosse feita simplesmente pelas palavras, não teria a
pregnância desejada para a transmissão dos fatos da cultura. No entanto, essa função não é pensada como tal
e motivadoras das formalizações conscientes, discursam o sujeito que, na ilusão da afirmação
da identidade, acredita que ser o seu “eu” o autor de seus próprios discursos. São essas
manifestações, assim como os conteúdos inefáveis do sensus communalis, que dirigem o
filme da vida de cada um de nós, muito embora acreditemos, como protagonistas arrogantes
que costumamos ser, sermos nós os senhores autônomos de nossos pensamentos e ações.
Queremos dizer que parece haver por trás de toda comunicação uma racionalidade
ligada à verdade que a sustenta e legitima. Richard Rorty (2000) a compreende como um
consenso que só tem validade em tempo e espaço determinados, o que invalida a busca
filosófica da Verdade como uma entidade única e válida para todos os tempos e espaços,
como a empreendida pela proposição metafísica racionalista de Platão, por exemplo. Em cada
manifestação discursiva, em toda comunicação, há uma racionalidade fundadora; não a da
Razão como acesso a uma Verdade universalizante – muito embora os membros de uma
comunidade a pretendam assim – mas uma racionalidade que serve como lente de abordagem
e compreensão de tudo o que a percepção captura. Essa racionalidade é a que está posta no a
priori das comunicações. Se eu posso compreender algo é porque posso me envolver
afetivamente com esse algo.
O envolvimento afetivo de Nelson Rodrigues com a “brasilidade” – melhor seria
dizer a “cariocalidade”, já que ele trata primordialmente de valores da cultura carioca como
referência – permite que ele louve a sua aldeia de uma forma tão sagaz e poética. Nos dois
últimos parágrafos do texto, ele acentua a noção da “superioridade” do brasileiro em relação
ao europeu. Trata-se de uma verdade muito própria da razão “rodrigueana” e parece ter o
valor de enaltecer características pouco valorizadas da comunidade brasileira – ou carioca –,
elevando-as a nobres elementos constitutivos dos valores culturais forjados, a suor e sangue,
no cotidiano dos “botecos e esquinas”. Para ele, é a sua comunidade a que vive: as demais, a
européia, em particular, apenas finge que vive:
Contra a Inglaterra foi uma vitória linda. Não tínhamos rainhas,
nem Câmara de Comuns, nem lordes Nelsons. Mas tínhamos
Garrincha. E tínhamos Zagalo, o de canelas finíssimas e espectrais.
E Nilton Santos, com a sua salubérrima eternidade. E negros
ornamentais, folclóricos, como Didi, Zózimo e Djalma Santos. Logo
se viu, entre o nosso craque e o inglês, todo um abismo voraz. O
inglês apenas joga futebol, ao passo que o brasileiro ‘vive’ cada
lance e sofre cada bola na carne e na alma. Djalma Santos põe, no
seu arremesso lateral, toda a paixão de um Cristo negro.
pelos habitantes de uma sociedade oral. Para eles, o ritual é a integração com a comunidade e com sua verdade, a
única existente.
E mesmo fora do futebol, o europeu faz uma imitação da vida,
enquanto que o brasileiro vive de verdade e ferozmente. Ninguém
compreenderá que foi a nossa qualidade humana que nos deu esta
Copa tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: - foi o
mistério de nossos botecos, e a graça das nossas esquinas, e o
soluço dos nossos cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes.
Jogamos no Chile com ardente seriedade. Mas a última jogada de
Mané, no adeus aos Andes, foi uma piada, tão linda e tão plástica.
No mais patético das batalhas, o escrete soube brincar. Esse toque
de molecagem brasileira é que deu à vitória uma inconcebível luz.
Num outro texto, “Uma barata seca de 250 milhões”, publicado na revista
Manchete no dia 1/12/1962, aproximadamente seis meses após o bicampeonato, ao comentar
a recusa da oferta milionária de um time italiano pelo passe do atacante Amarildo, jogador do
Botafogo do Rio, Nelson Rodrigues produziu um texto que exprime de forma direta e franca o
sentido do jogo “infinito”, o jogo da cultura:
É certo que a morte está em nós, docemente em nós. O sujeito que
nasce já começou a morrer. O berço é a primeira experiência de
sepultura. Assim acontece com os homens e com os clubes. Todos
morrerão um dia. Mas um clube que expulsa 250 milhões – não quer
morrer e demonstra a sua vocação de eternidade.
Está posta aí a oposição entre os jogos econômicos da sociedade e os jogos da
cultura, da comunidade. A recusa da oferta milionária, para Nelson, é o compromisso com a
eternidade dos jogos infinitos, dos jogos da cultura, e a recusa a participar da mesquinhez da
finitude do jogo econômico. Como ele mesmo afirma, possivelmente o registro da finitude é
possivelmente o que faz com que as comunidades – e as pessoas que participam delas –
desenvolvam seus valores de forma tão sólida e adstringente. Possivelmente, a comunidade
representa, para cada um de seus membros, a eternidade, a única forma de transcender a
limitação da existência. Talvez seja por isso que a afirmação obsessiva desta, da existência –
ou do sentimento de “estar-entre-outros”, para Parret (idem) – seja aquilo que mais é
encenado no espetáculo midiático da contemporaneidade.
Passemos do futebol para uma atividade bem mais “séria”, a filosofia, para
endossar nossa compreensão sobre o jogo de sociedade. Percebemos que a pretensão
filosófica platônica não era a de ensejar um processo ligado aos jogos culturais, atuava contra
o espírito comum na medida em que o desprezava como estúpido, perdido em “doxas”,
iludido com o que via diante de si e denominava de realidade. O comunitário, para Platão,
deveria fazer parte do lixo da história, já que, com suas proposições, notadamente as presentes
no seu tratado político intitulado “A República”, deveria se iniciar um processo histórico de
predomínio da Razão. E a Razão não é um atributo do comunitarismo que, ao contrário, por
sua própria definição, prefere os sentidos compartilhados afetivamente na experiência
comum, às verdades puras enunciadas pelo racional.
O embate histórico entre sociedade e cultura se dá de forma direta ou indireta,
sempre mantendo as características observadas no conflito Platão x sofistas. Trata-se, bem
podemos ver, de uma oposição constantemente posta na lógica ocidental, particularmente a
sua lógica hegemônica, a européia. Rorty (1998) foi um dos que marcou bem essa
particularidade das escolas filosóficas da Europa – herdeiras diretas, em sua grande maioria,
do platonismo. Para ele, exatamente onde os filósofos do Velho Mundo acreditam estar
procurando respostas, é exatamente onde todo aquele que procura ajustar a visão ao horizonte
da cultura, não as deve procurar. A busca dos europeus é uma busca tautológica, pois sempre
encontram o que procuravam no local de onde partiram – a verdade que já estava formulada
nos seus problemas. O objetivo do “dançarino” – metáfora usada por Parret (idem), citando
Kant, para designar o jogador dos jogos infinitos – não pode estar determinada pela certeza de
achar o que já conhece. A experiência, odiada por aristocratas como Sócrates e Platão, “a
vivência dos botecos, gafieiras e esquinas” de que nos fala Nelson Rodrigues, não busca a
estreiteza do “tautismo” preconizado por Lucien Sfez (1994) quando critica o ethos midiático.
2.2.3. A demonização do funk carioca.
Já que falamos tanto na brasilidade rodrigueana, podemos aproveitar para refletir
rapidamente sobre o que aconteceu no Rio de Janeiro nas últimas duas décadas, procurando
usar uma reflexão sobre o processo conflitivo entre sociedade e comunidade constitutivo
desse período, e os jogos que abordamos.
Aquilo que Nelson Rodrigues via como uma “nova experiência humana”, o
brasileiro – leia-se o carioca pelas referências locais do autor – não mais existe. Foi sendo, aos
poucos, alijado do espaço urbano e hoje se encontra soterrado pela experiência das quadrilhas
ligadas ao tráfico de drogas, mui dignas – por que não dizer? – representantes da finitude do
jogo societário. A “molecagem” deu lugar às guerras intestinas entre grupos que controlam
pontos de vendas de tóxicos. Os “negros ornamentais” se transformaram em soldados
armados, não para defender uma causa, mas para confrontar a polícia que, quando pode, entra
nas comunidades para extorquir, espancar, humilhar e matar. A paixão, presente no “cristo
negro” Djalma Santos quando cobrava um simples lateral, perde espaço para a adesão ao jogo
finito, o jogo do homo oeconomicus, cristalizada na movimentação do livro de contabilidade
das vendas das drogas ilícitas. A brasilidade cantada por Nelson parece estar perdida e só
encontra registros em textos como o que abordamos neste ensaio.
Uma importante batalha cultural no Rio de Janeiro foi perdida no início dos anos
90. Vale lembrar da demonização que sofreu o funk – já referida no primeiro capítulo –, por
parte da mídia, nos anos 90, com a exploração dos paradigmas do preconceito social e racial
em editoriais e matérias que atribuíam aos funkeiros uma índole desordeira, além de acusá-los
de vinculação direta com o “crime organizado”
51
. Provavelmente não estaremos delirando ao
afirmar que o que se temia não era tanto a desordem. O que estava em jogo era a invasão da
cidade e, principalmente, da pauta midiática por parte de uma multidão de excluídos, que cada
vez mais seduziam os jovens da “zona nobre” da cidade, a sul, reduto das classes médias
conservadoras cariocas. E isso tinha lá as suas conseqüências na subjetividade do carioca, que
incorporou o jeito funk em gírias e comportamento, ainda dominantes principalmente nos
subúrbios mas com menos força nas áreas “nobres” da cidade, as habitadas pelos mesmos que
satanizaram o funk. Porém, como lembra Malaguti Batista (idem, p. 34), “A ocupação dos
espaços públicos pelas classes subalternas produz fantasias de pânico do ‘caos social’, que
se ancoram nas matrizes constitutivas da nossa matriz ideológica”, e a reação a essa
ocupação “caótica” tinha que ser efetiva.
Havia, naquele momento, uma interação bastante interessante principalmente
entre os jovens “do morro” e os “do asfalto”, patrocinada pelo funk – um estilo musical
importado dos Estados Unidos (o Miami Bass) que, após estar presente por décadas nos bailes
dos subúrbios e periferias, acabou sendo incorporado como manifestação cultural das
comunidades dos bairros populares, que passaram a se expressar tendo como base a cultura
que nasceu em torno desse estilo musical. Em São Paulo, o rap dava os primeiros sinais de
vida – de verve contestatória – e no Rio, muito em consonância com o que acontecia na
capital paulista, funks eram compostos para cantar a vida nas comunidades e falar das
injustiças sociais, ganhando rapidamente a aceitação de jovens das classes médias, que não
apenas ouviam e cantavam essas músicas como freqüentavam os bailes, que aconteciam
geralmente nas favelas.
Esse contato, porém não se restringia à juventude. Havia uma interessante
interação entre os membros dessas comunidades e as camadas médias da população, e as ruas
51
Parece claro que a organização do crime não se dá por conta das quadrilhas, como os meios de comunicação
nos querem fazer crer. As efetivas organizações criminosas estão encasteladas principalmente no “andar de
cima” da sociedade. A atribuição de uma pretensa organização às quadrilhas chegaria a ser cômica, se não fosse
trágica por ocultar aqueles que realmente ganham com o crime e colocar na linha de tiro pessoas que
praticamente não têm opções de sobrevivência a não ser a adesão aos negócios do tráfico de drogas ilícitas.
estavam cheias de gente que vinha das favelas e periferias para vender produtos que
chegavam com a queda das taxas de importações, mendigar, traficar, roubar ou mesmo apenas
conhecer o outro lado da cidade. O resultado foi um inevitável confronto cultural, com uma
aproximação, ainda que conflitiva (como não poderia deixar de ser) entre as camadas baixas e
médias da população carioca. A eclosão do fenômeno midiático dos “arrastões” incentivou a
eleição de César Maia, um oportunista que soube como trazer para um discurso conservador e
discriminatório – para o jogo finito do poder – o sentimento de insegurança pelo contato, nada
pacífico, entre comunidade/sociedade. Sua eleição foi decisiva para os interesses
conservadores, para quem o combate ao funk foi a porta de entrada para um discurso de
limpeza do cenário urbano – como ilustrou o projeto Rio Cidade de Maia –, criando inclusive
mais uma instituição repressiva, a guarda municipal, e uma obsessão pela expulsão dos
camelôs, mendigos e pequenos ladrões, ou seja, a cultura lumpem, para longe do visual
urbano
52
. Por ser o elo de contato cultural entre as classes, o funk foi a primeira vítima da
blitz. O instrumento de mediação estabelecido entre os jovens pobres e os de classe média
acabou relegado aos guetos, hoje quase que exclusivamente nos braços do tráfico de armas e
drogas ou, quando incorporado à cultura, nos bolsos dos empresários que lucram com os
bailes onde o “espírito comum”, o sensus communalis, foi substituído pela lucratividade da
exploração desse lucrativo negócio: os jogos da cultura foram capturados com a encenação
estética de que falamos anteriormente ou relegados aos guetos.
Antes da demonização, o que predominava era a glamourização do ritmo remetido
a uma forma de vida, uma certa “malandragem” ainda um tanto próxima da “molecagem” de
Nelson Rodrigues, mas com características espaço-temporais bastante singulares: a cultura
lumpem que o político oportunista acima citado escolheu como inimiga desde sua campanha,
capturando a sensação de medo que o contato entre as culturas proporcionava à classe média.
Não foi à toa que os incidentes batizados pela mídia como “arrastões”, acontecidos nas
vésperas das eleições para a Prefeitura do Rio, em novembro de 1992, foram imediatamente
atribuídos ao ícone cultural das comunidades pobres, o funk. Os “baderneiros” eram
funkeiros, membros de gangues que freqüentavam os bailes, diziam os jornais das classes
médias, como se isso significasse essencialmente o mal, ou seja, a barbárie.
Depois de sua demonização midiática, o funk foi empurrado para os braços das
quadrilhas que loteiam as favelas cariocas, e a polícia combate a realização dos bailes,
52
O ex-governador Anthony Garotinho, atual secretário de Segurança do Estado, criou, em 2002, a operação
“Zona Sul Legal”, que tinha como proposta básica “reduzir a sensação de insegurança” pela retirada dessas
personas non gratas do cenário das elites dessa região da cidade.
identificando-os como antro de drogas e prostituição infantil
53
. Isso demonstra que a reação
das elites cariocas à cultura funk se deu de forma efetiva, e o combate sobre a manifestação
cultural que vinha aproximando, num determinado momento histórico, os jovens das classes
médias e baixas, foi feroz e contundente.
Por que não dizer que o que houve foi uma vitória da Razão? Afinal, drogas são
aliciadoras da boa consciência da juventude, podem influenciar negativamente os cidadãos, e
o funk era a expressão da irracionalidade comunitária, maldita desde Platão. A ação sobre o
funk, como manifestação cultural comunitária, foi contundente como devia ser a ação do
poder público da República platônica sobre a irracionalidade cultural dos poetas. O que estava
em jogo naquele momento era uma nova forma de interação cultural, e o seu esmagamento foi
fruto dos interesses que marcam os “jogos finitos”, os jogos que precisam dos vencedores
como os de cultura precisam dos artistas.
Os argumentos usados para o combate ao funk foram sofismas, como eram os
usados por Platão contra os sofistas. Eram apenas sofismas aliançados com o poder, enquanto
os argumentos dos funkeiros e sofistas não o eram. Assim, podemos entender que os jogos
“finitos” são também comunitários, de uma comunidade que pretende transformar o mundo à
sua imagem e semelhança. São os jogos das regras que sempre beneficiam essa comunidade, a
“comunidade” dos winners, talvez a que Bauman (1999) identifica como sendo formada por
menos de 400 pessoas, aquelas que controlam a maior parte do capital circulante no planeta –
como diria uma personagem do romance “Arlequim”, de Morris West (1988), os “capos” de
uma quadrilha pomposamente chamada de “mercado”. Os homens aos que o pensador do
“fim da história”, Francis Fukuyama (1992, p. 367) classificou com thymus:
O thymus é a parte do homem que deliberadamente procura a luta e
o sacrifício, que tenta provar que o eu é algo melhor e mais elevado
do que um animal medroso, carente, instintivo e fisicamente
determinado. Nem todos os homens sentem essa motivação, mas,
para os que sentem, o thymos não pode ser satisfeito pelo mero
conhecimento de que têm o mesmo valor que todos os outros seres
humanos.
A oposição entre sociedade e cultura é instrumental, mas para sermos mais
honestos conosco mesmos, precisamos entender que o que chamamos de jogos de sociedade
serve aos interesses de uma pequena parcela da população mundial, e é característico do modo
de ser dessa comunidade. Retomando a tomada de posição de Raquel Paiva na introdução de
seu “O Espírito Comum”, acreditamos que a sociedade civil precisa tomar consciência de que
53
Foi numa incursão a um desses bailes que o repórter da TV Globo, Tim Lopes, foi assassinado.
a inserção no mundo dos jogos econômicos responde a uma espécie de ataque à diversidade
cultural, de adesão a um modo de vida que tem como único objetivo a globalização não da
economia – esse discurso estruturante dos interesses da comunidade promotora dos jogos
“finitos” – mas da mediocridade dos valores dessa comunidade. Quando Durkheim fundou o
conceito de fato social estava transplantando para a totalidade dos fenômenos sociais a crença
de uma classe social na sua própria onipotência. O que acontece hoje não é em nada diferente
disso.
A tendência contemporânea de aceitação da imposição da lógica de ordenação das
relações sociais pela pauta do mercado – essa entidade imaginária que designa apenas os
interesses dos que manipulam o jogo econômico – parece ser um dos fenômenos mais
pernósticos e nocivos à vida que a humanidade já experimentou. Não se trata apenas de um
movimento autoritário de absorção de mão-de-obra para uma radical concentração de capital.
Trata-se, como sugere Guattari (1999) ao abordar o tema do agenciamento da subjetividade,
de um ataque à diversidade cultural como tática para tornar mais fácil a naturalização de sua
lógica pernóstica de redução da realidade a um cassino. Representa um golpe não somente à
brasilidade, da molecagem rodrigueana, mas a toda e qualquer organização cultural e
comunitária, algo como um assalto em que o ladrão pretende roubar, junto com a nossa
carteira, também a nossa alma.
Jogando os jogos “finitos”, o indivíduo ocidental crê ser esta a única forma de
lidar com a tensão na qual a sociedade lhe envolve. Aceita a redução de sua pessoalidade à de
um jogador que sonha com a vitória para aliviar a situação desagradável em que vive, mas
somente a intensifica. A promessa do paraíso da vitória, o sucesso pessoal ou profissional, o
ganho de “pontos” rumo à conquista de um melhor posicionamento no “campeonato”
econômico-financeiro, é o que lhe move, mas também é aquilo que lhe paralisa. A estreiteza
desse jogo não lhe deixa alternativas e lhe costuma tirar mais do que lhe dar, principalmente
porque não é o indivíduo que escolhe as regras e estas podem mudar repentinamente. Sendo
assim, muitos aceitam regras que podem contrariar seus valores e desmentir a ética na qual se
julgam inseridos. Mostram, assim, extrema maleabilidade moral e pessoal, uma habilidade
indiscutível para adaptar-se a condições difíceis e incertas para continuar jogando. Esses, para
o sistema, são os melhores jogadores. São os que abandonaram definitivamente os jogos
“infinitos” e aceitaram a “finitude” da liberdade econômica.
Os “melhores” são os que aceitaram “existencializar” a vida pelo norte da
essência econômica, mas entre eles não estão apenas os que ganham. Há muito mais derrotas
do que vitórias para a maioria, principalmente porque as regras facilitam as coisas para os que
têm mais fichas para jogar, uma minoria. Estes, com sua força macro e micropolítica, não
apenas determinam o campo do jogo e as regras, mas detêm também a simpatia do juiz e a
torcida midiática. Por isso, nesse “jogo”, alguns são empresários e outros são bandidos.
3. CONVITE A UMA SALA DE ESPELHOS: a subjetividade
especular do Ocidente.
No capítulo anterior falamos de uma sociedade. Não é exatamente “a” sociedade,
mas é aquela na qual os cariocas se inserem cada vez mais. Também falamos de uma cultura,
ou melhor dizendo, de culturas, ou de manifestações culturais. Vimos que enquanto
aparentemente se costuma crer que há uma captura do social pelo cultural, com o estético
abolindo o ético ou fundando, como refere Michel Maffesoli (1996), uma “ética da estética”,
o que parece ocorrer é o oposto, com o fortalecimento da ética – de uma certa ética – em
detrimento da estética, capturada para os “jogos finitos”. E cremos ter ficado sugerido que
apenas um pensamento e uma ação política pode desvendar os engodos postos e agir
transformando a realidade.
Uma compreensão central para desvendar a situação de medo na qual a sociedade
carioca se acha também está posta no capítulo anterior. A questão da nostalgia pelo
comunitário, pelo tradicional, que ofereceria maior segurança pela vinculação com a noção de
proteção, é um sintoma interessante. Cremos que a projeção de um estado nirvânico no
comunitário e, por conseguinte, no cultural e no estético, corresponde a um anseio de sentido
diante da própria identidade no “jogo finito” da sociedade econômica. O discurso obsessivo
por segurança parece tem essa raiz imaginária e os apelos por paz podem ser compreendidos
como um apelo a um suposto espírito comunitário. No entanto, que ironia, esses apelos não
trazem consigo qualquer proposta de integração dos excluídos do jogo ou qualquer proposta
de reformulação, nem sequer tenta pensar sobre o porquê das coisas terem chegado aonde
chegaram. São simples apelos vinculados à crença de que a cultura burguesa, a adotada pelas
classes médias que se identificam com esse ideal societário, é não apenas a melhor, como a
única que pode ser levada a sério. Assim, nada muda, nada sai do lugar, e os “bandidos” vão
aprendendo que só há um caminho possível e é este que vêm trilhando.
A proposta de adesão aos “jogos de sociedade” regrados pelo estatuto econômico
parece ser atraente pela promessa de liberdade que traz consigo. O comunitário significa
proteção, mas também, sob o vértice econômico, oprime, pois controla. Os conhecimentos
tradicionais trazem tudo pronto e ao sujeito nada resta a não ser aceitá-los e segui-los sem
pestanejar. Isso não é desejado para o Homo oeconomicus. Ele precisa de liberdade, de
escolher os próprios caminhos sem peias de qualquer ordem. Sua noção de “Mercado”, por
exemplo, representa bem esse espírito: o mercado deve se regular a si mesmo, ser livre, o
mais absolutamente livre possível. Todos sabemos, no entanto, que isso não funciona assim, e
Antonio Gramsci (1978) denuncia o fato de que qualquer atividade econômica deve ter como
condição preliminar a intervenção estatal. A tese central desta dissertação está relacionada a
esse engodo denunciado por Gramsci, porém não se atém especificamente às relações
incestuosas entre economia e Estado. Nossa compreensão é a de que há uma inversão
deliberada na projeção de sentido da sociedade ocidental. Não somente é falaciosa a noção de
“Mercado”, como toda a proposta de liberalização, seja ela econômica ou existencial.
Seguindo a trilha de investigação sobre o “medo carioca”, pudemos entender que este é em
grande parte um elemento fundamental do construto proposto pelo discurso hegemônico no
ocidente contemporâneo. A questão é que esse medo, que deve existir efetivamente, pois há
ameaças explícitas à pacata vida das classes médias, é desviado de seu objeto ameaçador para
outro, historicamente conhecido e, por isso, facilmente utilizável: o medo dos pobres, ou,
como melhor define Malaguti Batista (2003) da “rebeldia negra”.
3.1. A essência e a existência como parâmetros.
Como vimos, foram Sócrates e Platão quem deu início à perspectiva essencial da
vida. Foi com a dialética que nasceu a concepção de uma categoria filosófica que expressa a
característica fundamental e a natureza intrínseca a todo ser ou objeto. A essência de algo é
como a sua identidade interna, o seu resumo metafísico, aquilo ao qual todo ser rende
obediência, aquilo que diz ao ser o que ele efetivamente “é”, delimita a sua “verdade”. Platão
a chamava “idéia”, enquanto Aristóteles a tratou como “forma”. Esse elemento de digressão
filosófica foi investido e reinvestido por toda a tradição filosófica européia e até hoje se
mantém como a base referencial para a subjetividade ocidental. Há uma ligação inequívoca
entre “Essência” e “Verdade”, sendo a “Razão” o instrumento platônico para alcançar tanto
uma, quanto outra. Nessa lógica, não apenas há uma diferenciação fulcral entre essência e
existência, como aquela precede esta. Enquanto a essência é universal, a existência seria
singular, individual. Nesse caso, podemos dizer que o único caso no qual essência a existência
coincidem é o do deus monoteísta. Nele, há identidade entre o universal e o particular.
Roland Corbisier (1987, p. 85) descreve bem a diferenciação entre essência e
existência:
A distinção entre essência existência corresponde à distinção entre
conhecimento intelectual e conhecimento sensível. Os sentidos nos
põem em contato com os seres particulares e contingentes, únicos
que realmente existem, ao passo que a inteligência nos permite
apreender as idéias ou essências, gêneros e espécies universais,
meras possibilidades de ser, em si mesmas inexistentes. Sabe-se, no
entanto, desde Sócrates, que o objeto da ciência é o universal e não
o particular, quer dizer, a essência e não a existência. Platão tenta
resolver essa contradição hipostasiando as idéias, atribuindo-lhes
realidade, no mundo supra-sensível ou tópos uranos. Poder-se-ia
dizer que é em nome da existência que Aristóteles critica a teoria
platônica das idéias, sustentando que as idéias, ou essências, não
estão fora mas dentro das próprias coisas, as quais, feitas de
matéria e de forma, contêm, em si mesmas, o universal e o
particular; a essência e a existência.
A noção de “Essência” traz em si uma amarra do “Ser”. Alguém “é”
necessariamente algo de acordo com o que lhe é essencial. Desse modo, as classes médias
cariocas podem ter uma identidade “essencial”, isto é, a noção de seu lugar social existe antes
de suas existências. O mesmo ocorre com os “bandidos”. No entanto, essa forma de perceber
a realidade, de definir identidades e verdades não pode ser, ao menos explicitamente, adotada
em uma sociedade econômica. Esta representa o rompimento com a lógica essencial, ainda
que um rompimento simulado.
Tal ruptura se dá pelo que chamamos “existencialização” da experiência. O
Existencialismo foi uma doutrina filosófica do século XX que propunha exatamente o
rompimento com a doutrina essencialista, denunciando o caráter imobilizador desta em
relação ao sujeito. Teve como expoentes Sören Kierkegaard, Karl Jaspers, Martin Heidegger e
Jean Paul Sartre, no entanto muitos outros autores podem ser citados como próceres dessa
transformação de perspectivas em relação à existência, que rompeu com a tradição filosófica
do ocidente, entre eles Nietzsche e também os fundadores e membros da escola estadunidense
do Pragmatismo. Vejamos o que diz Rorty (1998, p. 17) sobre a noção de “Verdade”:
(...) Uma vez considerado que “verdadeiro” é um termo absoluto,
suas condições de aplicação serão sempre relativas. Pois não há
algo como uma crença que seja justificada sans phrase – justificada
de uma vez por todas – pela mesma razão que não há uma crença
que possa ser, para todo o sempre, indubitável. Há um grande
número de crenças (e.g., “Dois mais dois são quatro”, “O
Holocausto aconteceu”) sobre as quais ninguém com quem nos
importa discutir terá qualquer dúvida. Mas não há nenhuma crença
que possamos conhecer que seja imune a toda e qualquer dúvida
possível.
Para essa concepção, a noção de “Verdade” tem correspondência com a de
realidade e não haveria possibilidade de uma universalização. Como compreende Martin
Heidegger (1991), o ser é projeto e não está dado a priori. Logo, a essência deve ser
descartada pois representa um esgotamento das potencialidades da existência e Jean-Paul
Sartre (1967) destacou a inerência da liberdade e da angústia que ela traz com essa
perspectiva. Esse posicionamento filosófico adquire uma praticidade no discurso econômico
liberal. Vejamos como.
Tomemos as essências do bem e do mal. De um lado está aquele, do outro este. A
princípio, um não tem qualquer relação com o outro, pois são essências opostas. Até o
surgimento das Ciências Humanas burguesas, entre elas a Economia de Adam Smith e a
Sociologia de Émile Durkheim, efetivamente não tinha. A partir desse momento, essas
essências foram relativizadas e tornadas orgânicas, ou seja, inseridas em um todo que as rege,
a “consciência coletiva”, para Émile Durkheim (1988) e o “mercado”, para Adam Smith
(1979). Se tomarmos o “mundo das idéias” platônico como uma referência subjetiva
estruturante para a subjetividade ocidental, podemos dizer que ele “desceu” do plano
metafísico para o plano físico. Tornando-se “carne”, passou a supostamente habitar entre os
mortais, que teriam alcançado a plenitude da vivência conceitual, como era a proposta
aristocrática platônica, sem, no entanto, estar submissos a elas.
Podemos dizer que o humano, até a hegemonia burguesa, estava entre dois pólos
estáticos ontogenicamente separados, e passou, a partir de então, a uma vivência existencial
da realidade com a possibilidade de manipular essas essências a seu favor. Assim, Durkheim
(idem) pode considerar o crime – o mal – como potencialmente orgânico, já que tem uma
função social a desempenhar na medida em que pode apontar para a necessidade de
transformação da “consciência coletiva” e aprimorar a ordem social – o bem. Da mesma
forma, a Economia considera que a recessão e o desemprego – o mal – são partes integrantes
do sistema de mercado e até mesmo, na implementação do neoliberalismo
54
, passam a ser
54
Trata-se da retomada do ideário liberal derrocado com o fim da “paz dos cem anos” (Karl Polanyi, 2002). A
insatisfação das elites com os seus ganhos no sistema capitalista keynesiano necessitava de uma base para a
mudança do jogo a partir da crise dos anos 70. Obter um instrumento teórico foi importante – com grupos como
o de Mont Pèlerin suprindo os administradores liberais com estratégias e táticas de ação –, mas isso não bastava.
Era preciso, para a liberalização da circulação do capital, quebrar as resistências dos governos nacionais, não
servindo mais a estratégia da promoção de ditaduras militares, como na América do Sul na década de 60 e parte
da de 70. Os Estados Unidos, a locomotiva do processo, precisavam engendrar uma nova modalidade de ação
sobre o resto do mundo e a formação de “tecnopolíticos” (“technopols”), com o patrocínio adequado para a
consideradas “estruturais”, ou seja inseridas como condição de sucesso do sistema econômico
– o bem. O bem e o mal se tocam, mas, de forma diferente do que acontece nas filosofias
orientais – nas quais eles se entrelaçam, como no Tao –, o primeiro deve sobrepujar o
segundo.
Dizemos que se trata de uma “existencialização” da experiência na medida em
que compreendemos que discursivamente, o pensamento burguês desloca a essência de sua
condição imanente para a de transitoriedade, com o sistema adquirindo um inequívoco feitio
dinâmico. A lógica comercial das classes médias projeta uma perspectiva de libertação das
amarras da Verdade platônica. Trata-se de um suposto rompimento com a tradição estática da
essencialização da existência, um dasein
55
, um devir posto em movimento pela angústia do
não movimento. A burguesia põe sobre o Ser um ponto de interrogação e se compraz em
perquirir respostas que trazem a sensação de uma potencial liberdade. Porém, como dizia
Marx (1961), e muito já se repetiu, “tudo que é sólido, desmancha no ar” nesse mundo
aparentemente imprevisível. O Homo oeconomicus tem como parâmetro a liberdade, no
entanto a observação dessa subjetividade libertária indica que nem tudo é como parece e a
amplidão dessa perspectiva parece ser apenas um efeito projetado dentro de uma redoma
especular. Todos sabemos o quanto uma sala espelhada produz a sensação do aumento de sua
extensão.
elevação destes ao estrelato do poder, principalmente nas nações subdesenvolvidas, fato registrado por José Luís
Fiori (1994, p. 6):Entre os dias 14 e 16 de janeiro de 1993, o Institute for International Economics, destacado
‘think tank’ de Washington, tendo à frente Fred Bergsten, reuniu cerca de cem especialistas em torno do
documento escrito por John Williamson, ‘In Search of a Manual for Technopols’ (Em Busca de um Manual de
'Tecnopolíticos'), num seminário internacional cujo tema foi: ‘The Political Economy of Policy Reform’ (A
Política Econômica da Reforma Política). Durante dois dias de debates, executivos de governo, dos bancos
multilaterais e de empresas privadas, junto com alguns acadêmicos, discutiram com representantes de 11 países
da Ásia, África e América Latina ‘as circunstâncias mais favoráveis e as regras de ação que poderiam ajudar
um technopol a obter o apoio político que lhe permitisse levar a cabo com sucesso’ o programa de estabilização
e reforma econômica, que o próprio Williamson, alguns anos antes, havia chamado de ‘Washington Consensus’
(Consenso de Washington).
Tratava-se de um projeto para implementar aquilo que passou a se chamar eufemisticamente de “ajustes” nas
economias dos países “de segunda linha”, os que, também de forma eufemística, começaram a ser tratados como
“emergentes”. Fiori (idem) deixa claro que a pauta era a homogeneização desses países num só projeto, tarefa a
ser realizada pelos "technopols" que Williamson idealizara: “economistas capazes de somar ao perfeito manejo
do seu ‘mainstream’ (evidentemente neoclássico e ortodoxo) à capacidade política de implementar nos seus
países a mesma agenda e as mesmas políticas do ‘Consensus’(...).”
O Plano Real, instrumento de estabilização econômica implantado no Brasil no segundo semestre de 1994,
pouco antes das eleições que levaram o então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, responsável pela
implementação do Plano, ao posto de presidente do Brasil, foi mais um dos planos econômicos que o
“Consenso” espalhou pelo mundo, elaborados pelos technopols. Nesse sentido, como garante Fiori (idem), “O
real não foi criado para eleger FHC, FHC é que foi concebido para viabilizar no Brasil as teses do Consenso de
Washington.”
55
Termo de Heidegger, que significa aproximadamente “ser-aí”, referindo o “vir-a-ser” existencial.
Via de regra, tudo nessa lógica parece ser exatamente o oposto do que aparenta,
ou, ao menos, cumpre função oposta à que declara. A uma construção ideativa com essas
características, Marx (1984) batizou de Ideologia, denunciando a inversão do sentido das
condições determinantes da realidade nos discursos das classes dominantes. Ele acertou em
cheio no que viu, mas não previa que o que não pôde ver se tornaria a válvula de escape por
onde essa inversão se concretizaria da forma mais engenhosa, a cultura. A construção
ideológica se refere a um plano conceitual e, assim, trabalha com noções essenciais. Somente
nesse caso pode ser utilizada, ao menos se lhe tomarmos na perspectiva do pensamento
marxista clássico. Gramsci (1968; 1978; 1985) foi o pensador dessa corrente que alertou para
essa deficiência da ortodoxia, ressaltando exatamente a ação cultural como fundamental para
o sucesso da principal premissa do capitalismo, a acumulação de riquezas. Em vez de
Ideologia, poderíamos falar de uma “culturologia” para designar essa construção. Não se trata
exatamente de cultura, um conceito amplo demais para ser abarcado pela hegemonia de um
padrão, mas de um discurso articulado sobre o que vem a ser “a” cultura.
A conceituação do que seja ideológico partiu da necessidade de nomear algo que é
produzido a partir de uma praxis, ou seja, de uma operação sobre a realidade que produz
efeitos sobre esta, mas está oculto por uma ordenação discursiva que oculta os interesses
contidos nessa praxis. Nesse sentido, se descortina um sentido “existencial”, pois determina
que a construção do real não se dá conceitualmente, mas pela prática, sempre política, que
admite a liberdade de opção. Porém, assim como a proposta econômica capitalista, à qual se
dirige criticamente, também padece do mal de tornar-se presa de ser aquilo que não é. É um
construto conceitual, de essências, mas se remete obscuramente à existência. Esta, assim, se
mantém precedida por uma essência, o fato de ser falsa ou verdadeira. Tão essencial quanto a
essência que critica, a noção de ideologia nega a possibilidade de pluralidade, determinando
que o sujeito não tem mais que duas opções: ser verdadeiro, científico, marxista, ou falso,
ideológico, capitalista.
O debate político calcado em noções clássicas como a de Ideologia tende a se
tornar descontextualizado, uma engrenagem posta para ser admirada como parte da história.
Por mais que levemos em conta essa construção, reconhecendo-lhe principalmente o valor de
apontar claramente a inversão da produção de sentidos, não temos como ir além desse ponto.
A conceituação no seio dos parâmetros postulados pelo pensamento marxista parece cada vez
mais intangível. Vejamos, por exemplo, que a expressão “exploração do homem pelo homem”
se encaixava no discurso marxista como uma conceituação que trazia em si uma realidade
essencial. Tratava-se de uma crítica ao modelo societário capitalista, mas também ao pré-
capitalista e trazia uma força essencialmente negativa. Isso, enquanto “exploração” era
inequivocamente compreendida como algo ruim. Na medida em que se configura uma cultura
na qual não apenas as pessoas acreditam ser natural ser “exploradas”, como descobrem o
prazer existencial de “explorar” uns aos outros, não há como sustentar qualquer projeto de
transformação socioeconômica através de noções que exortem o moral ou o racional. Assim,
não houve revolta do proletariado europeu, ao contrário, este se tornou tão burguês quanto a
burguesia. É, desse modo, um tipo de conceituação que pode ser descartado para nosso uso no
momento, pois se encontra inserida na lógica bipolar. Apesar de lhe ter reconhecido a
natureza especular, não conseguiu sair da sala de espelhos e simplesmente nos deixará a rodar
no mesmo lugar, na “báscula do desejo” referida por Jacques Lacan (1986). Pode ser útil,
porém, para nos mostrar como a sociedade “capitalística” é suficientemente engenhosa para
gerar críticas que apenas lhe confirmam a lógica estrutural. Tudo indica que estamos numa
potente máquina de produzir delírios e temos que ter muito cuidado para não perder o rumo.
O capitalismo liberal, com seu discurso de liberdade, é, como dissemos,
engenhoso, bem mais que a crítica marxista, por isso venceu o duelo e denunciou o caráter
ontológico desta, bem como sua ontologia especular. A instituição de uma “burguesia estatal”
concentradora de poder político e econômico na antiga União Soviética bem o prova.
Vitorioso, o capitalismo, que oscilou entre a proposição original do liberalismo e a proposta
keynesiana de hegemonia estatal, assumiu nos últimos anos sua vertente discursiva
existencial. É a essa liberalização que assistimos na sociedade contemporânea
56
, a hipertrofia
do discurso econômico como o campo de batalha no qual se dão os embates de toda a ordem.
Mais uma vez, não podemos corresponder à noção marxista clássica da hegemonia do
econômico sobre os demais campos da subjetividade humana. Não cremos que a economia
seja o preponderante. Tendemos a entender que o funil discursivo econômico é apenas mais
uma das aparências projetadas na sala de espelhos burguesa, tão engenhosa a ponto de iludir
seus próprios criadores. Não é exatamente o território da ação política, social e cultural como
aparenta. Ter dinheiro não adiantaria nada se não houvesse um bom número de pessoas que
não apenas acredita no valor de uma cédula ou de uma moeda, como principalmente acredita
56
Esta, pode ser tomada como pós-moderna, como propõem Jean-François Lyotard (1986) e Fredric Jameson
(2002), pois representa o rompimento com alguns dos princípios estritos da modernidade, é, do mesmo modo,
uma exacerbação de alguns aspectos estruturais da modernidade, como a proposição de liberdade plena, de uma
vida na qual a existência precede a essência e deve, inclusive, manipulá-la. Nesse sentido, pode também ser
chamada de hiper-moderna, como sugere Gilles Lipovestky (2004). Em outro vértice, pode ser considerada como
reflexivamente moderna, como postula Anthony Giddens (1991). Não é nosso objetivo discutir aqui qual dessas
vertentes deve ser considerada “a” verdadeira, ou a mais “adequada”. Como aparentemente estamos em um
que precisa dele para viver. Aparentemente, o que essa lógica deseja não é exatamente o
dinheiro, mas os que o querem possuir, ou, melhor dizendo, suas almas. O econômico nos
parece mais instrumental do que teleológico. Como afirmam Michael Hardt e Antonio Negri
(2001, p. 14), o Império – do qual evidentemente nem toda a burguesia usufrui – quer mais:
O conceito de Império caracteriza-se fundamentalmente pela
ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem
limites. Antes e acima de tudo, portanto, o conceito de Império
postula um regime que efetivamente abrange a totalidade do espaço,
ou que de fato governa todo o mundo “civilizado”. Nenhuma
fronteira territorial confina o seu reinado. Em segundo lugar, o
conceito de Império apresenta-se não como um regime histórico
nascido da conquista, e sim como uma ordem que na realidade
suspende a história e dessa forma determina, pela eternidade, o
estado de coisas existente. Do ponto de vista do Império, é assim
que as coisas serão hoje e sempre – e assim sempre deveriam ter
sido. Dito de outra forma, o Império se apresenta, em seu modo de
governo, não como um momento transitório no desenrolar da
História, mas como um regime sem fronteiras temporais, e, nesse
sentido, fora da História ou no fim da História. Em terceiro lugar,
o poder de mando do Império funciona em todos os registros da
ordem social, descendo às profundezas do mundo social. O Império
só não administra um território com sua população mas também cria
o próprio mundo que ele habita. Não apenas regula as interações
humanas, como procura reger diretamente a natureza humana. O
objeto do seu governo é a vida social como um todo, e assim o
Império se apresenta como forma paradigmática de biopoder.
Finalmente, apesar de a prática do Império banhar-se continuamente
em sangue, o conceito de Império é sempre dedicado à paz – uma
paz perpétua e universal fora da História.
O império capitalista é presa de uma tensão imanente. É o fim da História, a
condenação ao “sempre”, a ausência de perspectivas criativas, a prisão num circuito
semântico estreito e nada cordial
57
- e, mais adiante, quando nos referirmos a alguns conceitos
básicos da sabedoria judaica da cabala, poderemos entender melhor essa noção, notadamente
quando abordarmos a noção de “filtro cósmico”. Esse estado de permanente tensão é
característico da matriz européia de sedimentação das relações sociais. Como vimos acima,
essa tensão é tida como o equilíbrio desejável para que o sistema funcione. No entanto, no
mesmo movimento, o discurso imperial também promete a paz duradoura, ou, em outras
palavras, a conquista do espaço metafísico de um mundo ideativo, puro e perfeito, como
aquele de Platão. A tensão traria a promessa de seu próprio fim como êxtase.
ambiente especular, no qual nada é o que parece ser, podemos compreender que cada um desses vértices podem
ser considerados como componentes dessa sala de espelhos que é a discursividade ocidental.
57
Cordialidade aqui engloba o seu sentido hoje pouco usado, o da referência calorosa, do sentimento advindo
diretamente do coração, com seus significados correlatos advindo desse senso.
O econômico, ao invés de infraestrutura, nos parece mais uma superestrutura, o
discurso universalizante, a grande narrativa contemporânea, o meta-relato que a modernidade
desenvolveu e que não se esboroa – pelo contrário, acentua-se como “o” discurso universal a
galvanizar boa parte da humanidade. Tudo passa pelo viés da valoração e da negociação.
Cada cidadão é um pequeno comerciante que vende sua força de trabalho, isso para os
“incluídos” no jogo “finito”
58
da Economia, pois há os excluídos que não têm nada para
vender e, assim, estão fora do jogo. Graças à Economia, a lógica filosófica da pureza
conceitual bipolar – o “núcleo duro” da racionalidade ocidental – abre-se para o mundo e
instala-se entre os viventes, permitindo que seja atualizada como vida cotidiana, como
permanente exercício de representação de valores. Ainda que trabalhe perenemente com a
bipolaridade ontológica, há que se considerar que o pensamento econômico impõe uma certa
dinâmica ao processo enfadonho. Permite que o percurso entre um pólo e outro seja
quantificado e relativizado, desfazendo a rigidez conceitual do racionalismo metafísico.
Assim, alguém pode medir o seu acesso ao valor “Saúde”, por exemplo, pagando um plano de
assistência médica, tendo “mais” hábitos saudáveis e “subtraindo” investimentos em coisas
que podem levar à perda do “capital” saúde. Pode reduzir a “taxa” de calorias ingeridas,
aumentar a massa muscular em tantos por cento, etc. Há sempre algo a fazer para diminuir o
percurso entre o sujeito e a essência que persegue, basta que se quantifique esse percurso e se
estabeleçam metas, pequenos jogos, com vitórias e eventuais derrotas, cuidando que os
procedimentos adequados para a aproximação sejam tomados de acordo com as condições
existentes. Tudo como num negócio comercial, numa empresa. A forma de pensar burguesa
conseguiu trazer o mundo essencial até nós e tem redobrado cada vez mais seus esforços para
que ele more definitivamente por aqui.
A quantificação, a decodificação da realidade em números, é uma característica da
subjetividade da sociedade ocidental contemporânea, uma sociedade que Deleuze (2004)
qualifica como “de Controle”, uma reformulação da subjetividade disciplinar:
Les sociétés disciplinaires ont deux pôles : la signature qui indique
l’individu, et le nombre ou numéro matricule qui indique sa
position dans une masse. C’est que les disciplines n’ont jamais vu
d’incompatibilité entre les deux, et c’est en même temps que le
pouvoir est massifiant et individuant, c’est-à-dire constitue em
corps ceux sur lesquels il s’exerce et moule l’individualité de
chaque membre du corps (...) Dans les sociétés de contrôle, au
contraire, l’essentiel n’est plus une signature ni un nombre, mais
58
A designação jogo “finito” se refere a um jogo em que o que se busca é a vitória. Há os jogos “infinitos”, nos
quais o que se pretende é jogar. Os primeiros são os “jogos de sociedade”, os segundos os “de cultura”. Esse
tema será abordado adiante.
um chiffre : le chiffre est un mot de passe, tandis que les sociétés
disciplinaires sont réglées par des mots d’ordre (aussi bien du point
de vue de l’intégration que de la résistance).
Tudo deve ser numerado e as definições identitárias têm sempre uma inequívoca
expressão quantificável de acordo com o relacionamento entre fatores. Impõe-se uma
virtualidade pautada em possibilidades numéricas potencialmente infinitas; a maioria bem
definida e finita. A essência não é mais um elemento fixo, definido a priori por algum
demiurgo. Ela pode ser relativizada e, de algum modo, existencializada. Depende daquele que
a mede, do modo como a utiliza na sua vida de “negócios” existenciais. Tudo é comércio,
como desejou a burguesia quando desbancou o leviatã. Dois séculos depois, ao que tudo
indica, atingimos o paroxismo desse modelo. Como afirma Fredric Jameson (2002, p. 412):
(...) nunca houve um momento da história do capitalismo em que
este tenha tido maior liberdade de ação ou espaço de manobra:
todas as forças ameaçadoras que ele havia gerado contra si mesmo
no passado – os movimentos trabalhistas e as insurreições, os
partidos socialistas de massa, e até os Estados socialistas – parecem
hoje em completo desarranjo, quando não efetivamente
neutralizadas
59
; por ora, o capital global parece capaz de seguir sua
própria natureza, sem as precauções tradicionais. Temos, então,
aqui, ainda mais uma definição de pós-modernismo, bastante
proveitosa, que somente uma ostra iria querer qualificar de
“pessimista”. O pós-moderno pode muito bem ser, nesse sentido,
pouco mais do que um período de transição entre dois estágios do
capitalismo, no qual as antigas formas do econômico estão em
processo de reestruturação em escala global, incluindo as antigas
formas de trabalho, suas instituições organizativas e seus conceitos.
Se é verdade que o pós-moderno lyotardiano desatualizou grandes narrativas
como a científica, pôs outras em circulação contínua, como essa de que estamos tratando. O
econômico fechou o circuito de significação semântica e se impõe em todos os níveis:
político, social, cultural e, conseqüentemente, subjetivo, ou seja, da definição do sujeito e sua
identidade. Não há mais nenhum Deus nem idéia pura, nem sequer nenhuma ciência a
estorvar o seu caminho. O econômico é o próprio Deus personificado no “mercado” e a
Economia é o discurso “científico” por excelência, o grande meta-relato contemporâneo. Não
é, repitamos, a base material da significação, conforme cria o marxismo clássico, mas o
discurso a imantar toda a significação que emana da base material. Esta, como estamos
percebendo, é, na verdade, imaterial, ou seja, significacional, dependente, é verdade, de uma
decodificação material para que possa ser pensada e manipulada. Marx (1973) nos deu um
59
Esse texto foi publicado em 1991, dois anos depois da “queda do muro”.
instrumental absolutamente fenomenal de análise do impalpável, exatamente quando falava
do palpável.
Dissemos que o discurso econômico é existencialista em sua proposta, e também
dissemos que nem tudo é o que parece ser nessa narrativa. Logo, podemos entender que sua
lógica subjetiva está pautada sobre o oposto do que advoga. Enquanto se discursa sobre a
libertação das amarras da essência, é nelas que está amarrada essa discursividade. Não haveria
como ocultar isso se não fosse uma engenhosa estratégia, a de simular o sentido através de
significações especulares. A fundação das ciências do Homem corresponde, conforme
havíamos dito, a uma captura do mundo essencial – o das idéias –, que é dado de presente ao
próprio Homem, tornando-o livre dos ditames ontogenéticos. Porém – e sempre há um porém
nesse mundo especular –, o que aparentemente se operou foi o oposto, isto é, o
aprisionamento no saber criado para libertar. O campo existencial que lhe foi prometido tem
limites, e estes estão circunscritos pelas mesmas essências que haveriam sido destronadas.
Estas formam a redoma subjetiva desse construto, como espelhos a reproduzir perenemente
outros espelhos.
Tomemos o conceito de liberdade. Entre as diversas possibilidades de definição,
podemos compreendê-la como uma “posse”. Alguém conquista a liberdade e a mantém como
sua, como uma propriedade. É, convenhamos, uma lógica bastante adequada para o sistema
capitalista. Essa liberdade, evidentemente, tem limites, e estes estão “onde começa a liberdade
do outro”, como se costuma dizer. Mas, para que serve uma liberdade cerceada?
Vejamos um diagrama explicativo. Temos o sujeito “A”:
A
Ele é livre, como convém ao Homo oeconomicus. Encontra um outro sujeito, “B”:
A B
Desse contato, com os parâmetros da liberdade sob ponto de vista que estamos
considerando, cria-se uma barreira entre “A e “B”, o limite da liberdade de um e outro:
A B
Um terceiro sujeito é posto em cena, C. Há uma nova barreira imposta pela posse
da liberdade:
A B
C
O mesmo ocorre com relação a D:
D A B
C
E com relação a E:
E
D A B
C
Se considerarmos que todos os cinco sujeitos “possuem” a sua liberdade, então o
diagrama assume a seguinte forma:
E
D A B
C
Se incluirmos “f”, “g”, “h” e “i” como outros agentes sociais, encontramos uma
cadeia do tipo:
i
E
F
D
A
B
h
C
G
Temos, assim, cada sujeito preso à sua liberdade, aquela mesma que a lógica
existencial do discurso econômico prometeu dar de presente a ele. O diagrama acabou se
assemelhando à paisagem de um prédio de apartamentos, uma habitação típica das classes
médias. Cada qual no seu espaço circunscrito pelas paredes que selam o pacto da liberdade
compartilhada na lógica burguesa. Não há, efetivamente, nenhuma libertação, apenas
simulação. A maior liberdade que pode haver está posta na tensão entre os sujeitos. “A” pode
forçar os limites de “B” e aumentar o seu “campo livre”, mas estará sempre dependente
desses limites para ter noção de seu espaço, ou, em outras palavras, noção de quem é na
referência sócio-econômica. Pode fazer o mesmo com “C”, “D” e “E”, mas se manterá do
mesmo modo. Se há alguma “existencialização”, alguma liberdade, isso está vinculado ao
confronto entre os sujeitos. A liberdade de oprimir o outro a ponto de fazer com que ele
diminua o seu território livre para que possamos aumentar o nosso. A liberdade capitalista é,
assim, a de combater o outro de modo a “adquirir” mais liberdade. É uma lógica bélica, que
parece encontrar sentido exatamente nisso, que ganha o nome de “concorrência” no idioma
“economês”.
Não há, assim, uma existência precedente à essência. A essência das relações
sociais está determinada, assim como a essência do sujeito, posta na simulação de
subjetividade. Não há sujeito nem subjetividade, apenas simulações, como bem compreendeu
Baudrillard (1991). O mundo ideativo se mantém ativo enquanto projeção e amparo de
referências. Permanece intocado, como determinante das ações. Se nos mantivermos presas da
lógica econômica, estaremos, assim como faz o “essencialismo” marxista, a especular sobre
outra especulação, o que redunda numa tautologia. Precisamos, assim, tomar outra referência
de ordenação subjetiva para escapar do imã do economicismo. Busquemos no político, isto é,
na relação de forças em conflito por “poder”, um contraponto. Marx (1984) também o tomou,
mas, cremos, o manteve por demais atado à lógica econômica e suas análises se mostraram
incapazes de apreender toda a amplitude política das relações sociais no sistema capitalista.
Gramsci (1968, 1978, 1985), como já dito, foi um dos que ousaram se aventurar em outros
campos, como o da subjetividade, e é uma inspiração que perpassa esta dissertação.
A relação entre o político e o econômico sempre foi próxima. Os aristocratas
atenienses já sabiam disso, e faliram os pequenos proprietários para adquirir total poder sobre
eles. Os falidos proprietários se insurgiram e fundaram a experiência da democracia ateniense.
A Santa Igreja, na Idade Média, apesar de seus liames imateriais, gozava de riquezas que
seduziam a nobreza para alianças políticas de interesse material para ambos. O Terceiro Reich
nasceu de uma revolta do povo alemão com a espoliação econômica que sofria por conta do
Tratado de Versailles, após a Primeira Guerra.
No entanto, em nossa contemporaneidade, jamais o político e o econômico
andaram tão próximos, a ponto de obter, com essa parceria, um quase absoluto
condicionamento sobre a identidade. Dominando o acesso ao “mundo das idéias” e simulando
o controle do indivíduo sobre sua própria existência, o poder fecha sua redoma e engolfa
praticamente todo o planeta. Por um vértice, controla a circulação de informações já,
inclusive, no ex-livre ciberespaço, e o entretenimento, o lazer – tanto o “digno” quanto o não
digno. Por outro, tem completo domínio sobre a liberdade, pois o “terreno livre” que cada um
pode ter está limitado sobremaneira pela condição econômica de que goza. Essa parceria tem
o controle dos bens materiais, públicos e privados, da cognição – através, aí sim, de algo que
podemos chamar de ideológico, mas que não dá conta, por si só, da aderência do poder – e,
principalmente, tem uma influência cabal em comportamentos, pensamentos, sentimentos,
devaneios e terrores através de um amplo controle sobre a experiência cultural.
O cultural, compreendido como vivência de raízes comunitárias, que sobreviva
sob essa tempestade. Na verdade, não sobrevive facilmente e é acusado pelos
“existencialistas” de fomentar a essência, quando, na verdade, parte desta para a existência,
enquanto o existencialismo burguês faz o percurso oposto. No entanto, é o caudal ao qual os
discursos políticos e econômicos se lançam para efetivar suas hegemonias. O vínculo entre o
econômico e o político se encontra, na contemporaneidade, atado pelo barbante da
comunicação, que resume a vida cultural como simulação. A aliança entre os poderes
hegemônicos nos campos da política e da economia opera uma intervenção sobre o mundo
cultural, tomando-o naquilo que tem de mais importante para a formação da identidade, sua
capacidade comunicacional. Constitui-se, assim, uma cultura sem cultura, uma comunicação
sem comunicação, isto é, uma simulação da vida cultural através da monopolização da
capacidade de comunicar. Os frankfurtianos dedicaram boa parte de seu tempo a estudar esse
processo, mas infelizmente mantiveram seu foco por demais ancorado na lógica essencial, e,
se acertaram ao formular o aprisionamento da cultura pela indústria, não puderam entender
que em vez de se referir a conceitos ideológicos, precisavam, para melhor formular a
dinâmica do processo, entender a proposta existencial contida na “Indústria Cultural” de
Theodor Adorno e Max Horkheimer (1978). O mundo havia mudado, mas os marxistas ainda
tentavam crer que o proletariado desejava “aprofundar” a própria essência. Esta, porém, lhe
havia sido dada por Marx, e não pelo próprio proletariado.
A sociedade ocidental se apropria do mundo comunicacional, resumindo-o à
informação, como idealizou Norbert Wiener (1984) e como bem denunciou Philippe Breton
(1997), destruindo-o, acabando com a comunicação, ou seja, com a possibilidade de
compartilhamento de sentido. É possível que esteja nascendo uma nova comunicação sem
comunicação, ou pode ser que isso mude de nome, pois não tem a ver com comunicação:
simula-se que somente há sentido na redoma subjetiva de matriz ocidental; que tudo o que
ocorre dentro dessa redoma deve ter apenas esse sentido, a Verdade, e que; eis aqui a
simulação dentro da simulação, o indivíduo é livre para escolher o seu destino, formar a sua
identidade, pensar o que bem entender. Isso não é comunicar nada, o que é diferente de
comunicar o nada, que é o que muitas das manifestações culturais que sobrevivem à
tempestade tentam fazer.
Nessa união, o econômico é o código e o político é o decodificador. Mas o
econômico também decodifica a codificação do político. Trata-se de uma relação especular,
uma troca de afagos na qual cada participante está pensando unicamente no próprio umbigo.
Um serve ao outro para que o outro o sirva. Um ataca o outro para que o outro o ataque, e o
jogo continue. Isso, aparentemente, sempre foi assim na história do ocidente, mas atinge na
contemporaneidade a sua plenitude. E, como já referimos, a aliança que os une está centrada
em um campo de batalha: o da comunicação, ou o da simulação da comunicação. É nesse
espaço que o poder é repartido entre essas duas instâncias da civilização ocidental.
3.1.1 A essência objetiva da liberalidade.
O discurso econômico não é um enunciador de verdades, além da sua própria e
definitiva Verdade ontogênica, é claro. Ele quantifica-as, lhes impõe valores, mas não define
o que é verdadeiro ou falso. Não é do interesse da discursividade econômica fazer isso. Mas,
por quê? Pelo simples fato de que abarcando toda a realidade, torna-a, toda ela, verdade. Tudo
o que está em sua redoma é real e como tal deve ser tratado.
O homem econômico-liberal não é, aparentemente, um homem de certezas
preestabelecidas. Quando discorre sobre o real, o faz por projeções baseadas na quantificação,
não na essencialidade deste. Não importa ao economista o que é verdadeiro ou não, mas o que
pode ser tido como proveitoso para ser computado e conquistado. No plano desse discurso, é
um ser cuja existência precede a essência. Para ele, assim como para Heidegger (1991, p.
127), “a essência da verdade é a liberdade”. No entanto, tudo o que faz recende ao “ser”, à
essência. E isso pode ser bem percebido nas suas instituições, dignos remanescentes da
rigidez do construto do “mundo das idéias”, como o jornalismo na sua vertente estadunidense.
O mundo abarcado pelo discurso dos jornais é o das essências atualizadas na
existencialização econômica. Diferentemente do discurso econômico, o jornalístico não tem a
liberdade existencial como parâmetro. Não basta ao jornalista saber o que acontece e por que
acontece, é preciso “saber certo”, ter acesso à essência do fato, como consta do Manual de
Redação e Estilo do jornal O Globo: “O repórter é um curioso movido permanentemente pelo
desejo de saber o que acontece e de entender por que aconteceu. Se não for assim, está na
profissão errada. E não basta querer saber: é preciso saber tudo, e ter a obstinação de saber
certo” (LUIZ GARCIA, 2000, p. 16). Outro manual de jornalismo, o do Estado de São Paulo,
é igualmente taxativo: “O Estado considera sua obrigação publicar apenas notícias corretas
e precisas; por isso, espera de seus repórteres o máximo de esforço, empenho e exatidão na
apuração dos fatos, na divulgação de declarações e na descrição dos acontecimentos
(EDUARDO MARTINS, 1990, p. 63). .
Essa compreensão do fazer jornalístico é geradora do fetiche mais pernóstico
dessa discursividade: a “Objetividade”. Trata-se, num lance genial, de uma absoluta
subjetivização da comunicação, travestida sob a aparência do “saber certo”, das “notícias
corretas e precisas”. Um sofisma, sem dúvida, da mesma natureza daquele que Platão usou ao
formular a supremacia da dialética, também uma mensageira da Verdade. De todas as
instituições ocidentais, o jornalismo possivelmente é uma das que guardam fidelidade aos
velhos princípios ocidentais da Razão e da Universalidade, manifestos nas origens platônicas
e monoteístas dessa civilização e presentes na ânsia imperial desde Roma. Se a economia é o
suposto aprisionamento desses princípios ao relativismo valorativo, o jornalismo é o bastião
que as mantém vivas e atuantes como fundamento de uma dominação política e de um
agenciamento subjetivo de amplo alcance.
De alguma forma, o jornalismo, uma instituição eminentemente mundana, tem,
assim, algo de sagrado. Remete às formas puras da Verdade, funciona num registro de “centro
emissor” desta, como ocorre na prática do deus único, o Deus dos monoteístas. Um jornal é
como um pequeno templo diante do qual o homem ocidental se debruça para ter acesso não
simplesmente ao mundo dos fatos, mas ao mundo dos fatos “reais”. Da mesma forma, a
televisão e o rádio, veículos do que se convencionou chamar de “Meios de Comunicação de
Massa”. Neles, a emissão é impessoal, para todos, como faz o Deus onipresente. Como afirma
o manual do O Estado de São Paulo, “A notícia deve ser redigida de forma impessoal, sem
que o jornalista se inclua nela ou adote a primeira pessoa do plural em frases que a
dispensam” (MARTINS, idem, p. 40). Nenhum “contato exclusivo” entre emissor e receptor.
O veículo jornal, o templo divino da Verdade, deve falar a todos sem distinção e o jornalista,
o acólito desse templo, deve passar despercebido diante da magnificência da Palavra. Esta, o
Verbo, o suplanta.
Como nas religiões monoteístas, o jornalismo está centrado na vivência de um
absoluto, o Logos, a manifestação do poder e do saber absoluto da razão divina. Com sua
objetividade, seus esforços de registrar a vida “como ela é”, o meta-relato jornalístico
pretende ser “a” representação da Verdade, “la conformité de la pensée avec la realité
(EDMOND GOBLOT, 1912, p. 485). O jornalista deve ser assim como um super-homem
que, apesar de mergulhado na instabilidade da existência, deve se abstrair para captar a
essência dos acontecimentos, relatá-los de forma impessoal e isenta para “tornar
transparentes coisas que estavam opacas” (OTÁVIO FRIAS FILHO apud GERALDINHO
VIEIRA, 1991, p. 19). Geralmente, quando questionados sobre a viabilidade de uma postura
como essa, os jornalistas saem pela tangente da “Isenção”, como Augusto Nunes, chefe de
redação do Estado de São Paulo à época em que deu a seguinte declaração:
Sou um obcecado pela busca da imparcialidade, que não se
confunde com a objetividade absoluta... essa é que não existe. (...)
Sou tão obcecado pela busca da imparcialidade que vou implantar
aqui no “Estadão” a saudável medida que alguns jornais norte-
americanos já implantaram, ou seja, proibir qualquer tipo de
militância em outras organizações, ainda que esta militância
expresse o senso comum – por exemplo a militância ecológica. (...)
O jornal já lhe dá condições de agir sobre a sociedade, não há
porque ser de um partido político. Não há como servir a dois
patrões.
Talvez Nunes devesse ter citado a Bíblia, possivelmente deveria ter
complementado o seu pensamento com um anátema a todos os que crêem que tal isenção é
falaciosa, que as condições que o repórter tem de agir sobre a sociedade através do jornal são
dadas pela submissão ao Verbo ditado por este, o que significa que na sua redação somente
fiéis podem ser admitidos. Como a palavra de Deus, a verdade do jornal em questão é
revelada como absoluto, “a” representação da Verdade, a única aceita. Fora dela, não há nada
a não ser aparências, os compromissos deste mundo, e, mesmo que se aceite que possa haver
alguma razão, esta é aparente, ímpia, herética, falsa em sua essência. Uma clara idealização de
um poder que emana de um centro e, ele mesmo, está na circunferência que o engloba, num
contorno nirvânico que delimita as práticas narcísicas dos monoteístas e dos “bons”
jornalistas.
A potencialidade perversa do jornalismo da grande imprensa pode ser medido por
esses parâmetros. Ainda mais que, como afirma Muniz Sodré (2002, p. 23): “O ‘espelho’
midiático não é simples cópia, reprodução ou reflexo, porque implica uma nova forma de
vida, com um novo espaço e modo de interpelação coletiva dos indivíduos, portanto, outros
parâmetros para a constituição das identidades pessoais.” Sodré percebe a potencialidade
dessa retradução da Verdade pela via da tecnicização da mensagem jornalística centrada na
produção de um discurso “protético” que visa transmitir a versão “real” dos acontecimentos.
A objetividade e a isenção fazem parte de um discurso técnico que pretende transmitir uma
certa pureza conceitual na apuração do fato. São como formas de alcançar o absoluto, mas,
como sempre, esse absoluto esconde algo:
A astúcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na
tentativa de deixar visível apenas o aspecto técnico do dispositivo
midiático, da “prótese”, ocultando a sua dimensão societal
comprometida com uma forma específica de hegemonia, onde a
articulação entre democracia e mercadoria é parte vital de
estratégias corporativas. Essas ideologias costumam permear
discursos e ações de conglomerados transnacionais e de ideólogos
dos novos formatos de Estado (IBIDEM, p. 22).
Há, assim, uma interação bastante próxima entre o discurso jornalístico, com sua
técnica objetivista, e os interesses traduzidos pelo meta-relato econômico, muitas vezes
diretamente identificável como poder político. Isso Augusto Nunes não disse na sua
declaração transcrita acima. O jornalista tem, então, apesar de sua castidade conceitual – ou
graças a ela –, ligações incestuosas como o poder, principalmente os que comungam do
sacerdócio exigido pelo ex-diretor de redação do Estadão. Afinal, não é isso que Nunes exige
de seus comandados? Se, cada vez mais a grande imprensa corresponde a interesses
comerciais, como tudo na Sociedade de Controle, está posto o patrão ao qual se deve seguir.
Como afirmam Noham Chomsky e Edward Herman (2003, p. 13),
(...) a centralização da mídia em um número cada vez menor de
grandes empresas tem aumentado praticamente sem oposição por
parte de governos republicanos e democratas, bem como de
autoridades regulamentadoras. Ben Bagdikian observa que quando a
primeira edição de seu livro O monopólio da mídia foi publicada,
em 1983, 50 empresas gigantes dominavam quase todas as mídias de
massa; mas apenas sete anos depois, em 1990, apenas 23 empresas
ocupavam a mesma posição de comando.
Segundo esses autores, desde 1990 uma onda de grandes negócios e a rápida
globalização deixaram setores da mídia ainda mais centralizados em nove conglomerados
transnacionais – Disney, AOL-Time Warner, Viacom (proprietária da CBS), News
Corporation, Bertelsmann, General Eletric (proprietária da NBC), Sony, AT&T-Liberty
Media e Vivendi Universal. Esses gigantes são proprietários de todos os grandes estúdios
cinematográficos, redes de televisão e empresas fonográficas do mundo, bem como uma
considerável parcela dos mais importantes canais e sistemas a cabo, revistas, estações de
televisão de grandes mercados e editoras de livros. Há uma centralização radical e cada vez
mais poucos comandam a opinião e a consciência de milhões, ou melhor, lhes agenciam a
identidade. Os jornais estão nesse mundo e não podem, apesar do discurso puro que os
caracteriza, escapar de agir como os mestres mandam. Como afirma Nilson Lage (1982, p.
107). ''A imparcialidade, a objetividade e a veracidade nos veículos de comunicação
efetivamente são mitos (...) só os ingênuos acreditam que não têm interesses capazes de levá-
los a deturpar os fatos''. Ou, como pontuou Frantz Fanon (2002, p. 59) acerca de sua
experiência com a chamada “grande imprensa”:
Os dirigentes nacionalistas sabem que a opinião internacional é
forjada unicamente pela imprensa ocidental. Ora, quando um
jornalista ocidental nos interroga, raramente o faz para nos prestar
um obséquio. Na guerra da Argélia, por exemplo, os repórteres
franceses mais liberais não cessaram de empregar epítetos ambíguos
para caracterizar nossa luta. Quando lhes reprovam a atitude
respondem com toda a franqueza que são objetivos. Para o
colonizado, a objetividade é sempre dirigida contra ele.
O jornalista, como Augusto Nunes já disse, não pode servir a dois senhores. O
jornalismo das grandes empresas de “comunicação” também não. Trata-se de uma instituição
com data de nascimento e registro muito bem definidos. É uma das máquinas de guerra da
burguesia, um aparelho a serviço do poder de controle da sociedade econômica. Como afirma
Paul Virilio (1996, p. 20),
Abater um adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, o campo
de batalha econômico não tardará a se confundir com o campo da
percepção militar e o projeto do complexo informacional americano
tornar-se-á então explícito: terá como objetivo a midiatização
mundial.
Cremos que o campo econômico sempre esteve associado ao militar, com o
objetivo de estabelecer uma nova ordem de conflitos entre as grandes potências européias,
como no “Concerto da Europa”, referido por Polanyi (2002). Desde o século XIX há essa
identificação explícita, e a “paz dos cem anos” só foi possível, como compreende o mesmo
autor, pela introdução da economia em forma de haute finance, substituindo o campo de
batalha militar intraeuropa e lançando-o na projeção de sua expansão. O jornalismo, como
fica bem pontuado por Virilio, funciona nesse campo de batalha como a voz colonizadora
que, como lembra Sylvia Moretzsohn (2003)
(...) é tributária do projeto iluminista de “esclarecer os cidadãos”.
Trata-se, portanto, de tarefa eminentemente política, cujo caráter é
freqüentemente escamoteado através de uma interpretação
propositalmente restritiva do princípio do “dever de informar”, que
daí conclui pela necessidade de uma postura imparcial e
distanciada, como se não houvesse intencionalidades no ato de
selecionar os fatos que se tornarão notícia, ou como se a própria
apreensão dos fatos já não fosse também uma interpretação.
Trata-se, assim, também de uma estratégia militar, a de mediatização:
Até o século XX, estar MEDIATIZADO significava literalmente
estar privado de seus DIREITOS IMEDIATOS. Dessa forma, o
imperador Napoleão I mediatizava, no nível de suas conquistas
militares, certos príncipes hereditários, privando-os de suas
liberdades de ação e de decisão ao lhes deixar as aparências de um
poder que eles não estavam mais aptos a exercer. Nos dias
seguintes ao segundo conflito mundial, a “satelitização” dos países
do Leste pela União Soviética renovava ainda este procedimento
particularmente perverso. Napoleão, esse grande “mediatizador/
midiatizador” a quem o tempo no fim faria falta, era o homem das
vitórias rápidas, das campanhas militares fundadas na velocidade e
na surpresa. Quase que logicamente, ele foi também o pai
desconhecido da imprensa industrial na França, o autor indireto
daquilo que se tornaria um complexo informacional moderno
(VIRILIO, idem, p. 14)
60
.
O mundo ocidental se assemelha muito a um jogo, e se nele a essência é a vitória,
a estratégia para esta parece ser a simulação, a ilusão especular da existência de uma suposta
liberdade. Geralmente, quando se diz algo, se está querendo dizer o contrário. Essa é a sua
principal estratégia para vencer. O discurso da objetividade corresponde a uma hipertrofia da
subjetivização, levando a um paroxismo de sentidos que sufoca não apenas o sujeito, como a
própria noção de subjetividade.
3.1.2. Que sociedade? Refém de quem?
Termos como “violência”, “terror” e “medo” estão sendo muito utilizados na
retórica jornalística carioca. Todos os dias há algum acontecimento posto nesse
enquadramento semântico que identifica a relação da sociedade com o crime como uma
guerra. O crime dos pobres, diga-se bem. É em relação à “violência” destes que a sociedade
encontra-se “refém da violência”, “aterrorizada”, “afrontada”. Uma ocasião emblemática para
o uso de expressões desse tipo foi a do dia 30 de setembro de 2002, quando boa parte do
comércio carioca fechou, em parte por ameaças vindas de não se sabe até hoje bem de quem e
de onde, em parte por boatos e pelo medo dos comerciantes de sofrer “violências” caso
abrissem as portas de aço. O jornal O Globo, em sua edição do dia 1º de outubro, não perdeu a
oportunidade de faturar uma boa manchete: “Rio refém do medo”.
Sobre a impactante sentença, uma questão importante: “Guerra do tráfico ou
exploração eleitoral?”. Abaixo da manchete, um esclarecimento: “Ação de grupos e onda de
boatos põem cidade em clima de estado de sítio; Benedita
61
vê razão política”. A razão
política seria a desestabilização do governo de Benedita da Silva em prol de dois de seus
concorrentes diretos: Rosinha Matheus – ou Rosinha Garotinho, em referência ao nome
60
Os grifos são do autor.
61
Benedita da Silva, vice-governadora eleita, em 1998, na chapa encabeçada por Anthony Garotinho. Assumiu o
governo em abril de 2003 quando o titular saiu para disputar a presidência. Ela é do Partido dos Trabalhadores
(PT) e ele, à época de sua eleição, era do Partido Democrático Brasileiro (PDT), o qual deixou para se filiar ao
Partido Socialista Brasileiro (PSB) no ano seguinte, agremiação que representou na disputa presidencial e, em
2003, passou ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), no qual, ao menos no tempo em que
estas linhas estão sendo escritas, está até hoje.
político do marido – e Solange Amaral, a candidata apadrinhada pelo prefeito do Rio, César
Maia
62
.
Com seu discurso moralista, com o uniforme de defensor da “lei e da ordem”,
certamente Maia tentou alçar sua candidata na preferência dos eleitores. Ninguém pode
afirmar, pois essas estratégias são felizes porque não deixam provas, que ele ou Rosinha
tenham tramado e executado o plano. O mais provável, nos parece, é que tenha havido uma
interseção de vetores, com a “organização” do crime fazendo sua pequena parte, tendo como
parceria os tais “interesses políticos” e, de forma preponderante, o medo. O mesmo medo que
Malagutti Batista (2003) identifica como existente desde os tempos de colônia, o “medo da
rebeldia negra”, das “classes perigosas”, e que alimentou o discurso da então candidata
Solange Amaral. O mesmo Maia, em 1992, quando se elegeu prefeito derrotando Benedita da
Silva no segundo turno da eleição, já havia tirado bastante proveito do fenômeno midiático do
“arrastão”, ocorrido na praia do Arpoador, zona sul da cidade, já referido no primeiro
capítulo. Aterrorizada, a classe média carioca se impressionou bastante e descarregou votos
em Maia, mas isso não deu certo com Solange.
O questionamento quanto à boataria que esvaziou o Rio no dia 30 de setembro de
2002, se foi guerra – os bárbaros a fazem – ou política – uma estratégia do jogo democrático –
é um bom exemplo de como a imprensa contribui para a formação de uma consciência cidadã.
O fato é que simplesmente não contribui. Restringe-se ao banal, a estereótipos tão simplórios
e maniqueístas que fazem corar. Não estimula ao pensamento, não apresenta mais do que duas
opções semânticas para tudo o que noticia: ou é certo ou é errado, ou é preto ou é branco. Ora,
todo ato tem um sentido político, e no que o jornalismo deveria se empenhar é em decodificá-
lo para seus leitores, não apresentar a questão como uma alternativa do tipo “coluna 1 x
coluna 2”. Poder-se-ia afirmar rápida e inadvertidamente que isso é resultado da mídia se
dirigir à emoção, não à razão. Cremos que a coisa não é tão simples assim, e este ponto é
fulcral para que compreendamos como se dá a manipulação identitária do jornalismo.
Como já referimos, o mundo capitalista contém uma tensão imanente. Impõe sua
univocidade essencial, seu discurso universal, como uma Verdade. Esse estreitamento
subjetivo exacerba a belicosidade ao instituir o funil dos “jogos finitos”. A “concorrência” é a
tônica. Ao mesmo tempo, como um contrafactum, promete que aquele que passar pelo
“buraco da agulha”, alcançará a plenitude, que ganha o nome de “sucesso”, em economês.
Com o recurso dessa estratégia, o discurso da razão é a isca que captura a emoção no seu
62
Ver nota de rodapé nº 22.
estado mais puro. Emoção é uma palavra que deriva do termo latino motio, que significa
movimento. Tem, assim, o sentido de pôr em ação, de mover, mas também da perturbação
que leva ao movimento. A captura da emoção se dá, na contemporaneidade, não pela
contenção, mas pelo cadenciamento da perturbação com uma promessa sedutora: a da
plenitude. Ora, essa poderia ser a melhor descrição de aquilo que a maior parte das pessoas
busca emocionalmente, ao menos na lógica que conhecemos como significante da
subjetividade ocidental. Freud (1974c) mostrou como a dureza civilizatória européia trouxe
em si essa promessa como fulcral para sua perpetuação. Em troca do afastamento de uma fatia
importante da vida: a agressividade, representada como a ameaça ao mundo de porcelana da
perfeição ontológica. A emoção deve, assim, como tudo no ocidente, se cindir em duas partes
opostas, uma boa e outra má. A boa é aquela que aceita a razão, como devem fazer os loucos
em seus tratamentos – você pode achar que é Napoleão, só não pode atacar ninguém por isso.
A má deve ser banida para longe, como a poesia na República de Platão. As boas emoções,
como o amor, a compaixão ou a candura, são divinas, aliadas da razão. As más, como a ira, o
ódio, o ressentimento, são disruptivas, ofendem a Deus e ao mundo perfeito do puro ser. Em
ambos os casos, a emoção é evocada para receber um carimbo na testa.
Quando o jornal O Globo trata um tema de forma tão simplória e pouco criativa,
não está exatamente se dirigindo à emoção, mas está subordinando esta a uma estrutura
bipolar de sentido, podando-lhe as ramificações simbólicas possíveis. Dirige-se, assim, como
a tola concepção de mundo ideal do platonismo, a tolos que crêem não sê-los apenas porque
são racionais. Essa compreensão pode ser complementada pela noção de Christopher Lasch
(1987) de que se opera, na contemporaneidade urbana ocidental, um processo de demolição
do “Eu” soberano da modernidade, engendrando um individualismo marcado pelo que o autor
chama de “minimal self”, uma espécie de eu sitiado por uma realidade sempre em crise,
estofada por discursos de alarme em todos os níveis: econômico, político, ecológico, social,
etc. Ora é a recessão econômica no Terceiro Mundo, ora a ameaça de retorno do nazismo na
Europa, a catacombe nuclear, os “ataques especulativos”, a destruição da natureza, a violência
urbana, e por aí segue o cardápio de catástrofes sempre presentes, embora a maioria das
pessoas possa nunca ter passado por qualquer uma delas, nem corra tal risco. Embora Lasch
demonstre uma certa nostalgia do eu iluminista
63
– a velha consciência autônoma destronada
63
Diz Lasch (1987, p. 239): “Na história da civilização, o surgimento da consciência pode ser relacionado,
entre outras coisas, à mudança das atitudes em relação à morte. A idéia de que a morte reclama a vingança, de
que seus vingativos espíritos perseguem os viventes e de que os vivos não conhecem a paz enquanto não
aplacam tais fantasmas de seus ancestrais, dá lugar a uma atitude de genuíno pesar. Ao mesmo tempo, os
deuses da vingança dão lugar aos deuses que também oferecem a compaixão e sustentam a moral do amor ao
por Freud em toda a sua obra –, ou talvez por isso, seu pensamento nos é muito útil para
examinarmos a estrutura subjetiva da sociedade carioca contemporânea. Afinal, trata-se de um
“descontente” com a deterioração da civilização ocidental, que pôde formular de modo
bastante sensível a sensação de asfixia experimentada pelas populações urbanas, as camadas
médias da sociedade.
O Globo, ainda na primeira página, resumia dessa forma os acontecimentos de 30
de setembro:
Não era final de Copa do Mundo, nem greve geral e muito menos
feriado. Mas, refém do medo e sitiado, o Grande Rio parou ontem,
vítima da ação de grupos armados que ordenaram o fechamento do
comércio e até de algumas indústrias em pelo menos 40 bairros.
Quase 250 escolas não funcionaram e dois mil ônibus sequer saíram
das garagens, deixando de transportar 800 mil pessoas. No toque de
recolher, nem camelôs montaram suas barracas. Na Avenida
Presidente Vargas, as fachadas de dois prédios comerciais foram
pichadas com as mensagens “guerra sem fim” e “poder paralelo”.
Às ameaças reais se somaram boatos que terminaram por deixar as
ruas desertas. O fato de a maioria dos 19 agitadores presos ser de
favelas do Comando Vermelho, assim como a ausência de ameaças
em áreas próximas a morros comandados por facções rivais, indica
que a ação teria relação com o tráfico, mais diretamente com
Fernandinho Beira-Mar. Mas a proximidade das eleições levou
algumas autoridades a não descartar outras motivações. Para a
governadora Benedita da Silva, houve exploração política: “Não
estamos afirmando que tenha sido uma manobra direta de outro
grupo político. Mas não existe nenhum fato que levasse, por
exemplo, as escolas municipais a fechar às 7h.” A prefeitura [leia-
se César Maia] disse que as escolas têm autonomia e assegurou que
apenas 22% delas fecharam. Com todo o contingente policial nas
ruas, a governadora garantiu que lojas e escolas terão segurança
para reabrir hoje.
Se na primeira página, os termos usados eram de “indícios”, na página 6, o
editorial do jornal tinha como certa a participação dos “bandidos”:
Mais do que refletir o poder real do crime organizado, o
fechamento do comércio e de escolas em vários bairros do Rio e de
Niterói deu a dimensão do medo que toma conta da população.
Mesmo que quadrilhas de traficantes não tivessem condições
efetivas de impor uma espécie de toque de recolher em bairros de
várias regiões das duas cidades, de Ipanema a Itaipu, a ordem dada
em alguns pontos localizados se alastrou de tal forma, e embalada
inimigo. Essa moral nunca conseguiu aproximar-se da popularidade geral, mas sobrevive, mesmo em nossa
época esclarecida, como uma lembrança tanto de nosso estado cativo como de nossa surpreendente capacidade
para a gratidão, o remorso e o perdão, por meio da qual podemos ocasionalmente superá-lo.
Apaixonadamente moderno, Lasch ilustra, com apreciável ênfase retórica, como um homem do século XVIII
percebe – e condena – a algaravia da pós-modernidade, com sua fragmentação rizomática. Para ele, a
característica do individualismo ocidental – judaico-cristão – é a tensão, a divisão e o conflito, não entre razão e
emoção, mas da própria natureza dividida do homem entre suas aspirações e suas limitações, entre a boa e a má
consciência, ou poderíamos dizer das pulsões de vida e de morte de Freud.
por tantos boatos, que durante parte do dia de ontem viveu-se um
clima de meio feriado. Mas com muita tensão.
A questão do medo é, como afirma o editorial, fundamental para entender o que
ocorreu e o que ocorre no Rio. O que o editorialista não confessa é que o jornal para o qual
escreve é um dos fomentadores dessa “Cultura do Medo”, referida por Barry Glassner (2003,
p. 330), definida como um fenômeno eminentemente midiático no qual Os arautos do medo
eliminaram o otimismo de dentro de nós aos nos encher de presunções negativas sobre
nossos concidadãos e instituições sociais.” E não é isso exatamente o que o jornal O Globo,
bem como outros três jornais dirigidos à classe média carioca vêm fazendo? Se, como
reconhece o jornal, os “bandidos” não tinham condições efetivas de parar a cidade, não foram
eles que o fizeram. O Globo foi bem mais responsável por essa façanha do que os traficantes.
No caso da criminalidade urbana, quando se fala do “crime organizado”, se está
falando do domínio de uma força, a do mal, que deve ser alijada do convívio social, para que
este tenha harmonia. Já quando se fala no “homem de bem” a referência é ao pólo da virtude,
da inclusão na harmonia. Essas forças estão presentes desde o mundo grego a permear a
subjetividade ocidental. Platão as utilizou para vencer os sofistas, que passaram a ser
conhecidos como ilusionistas, agentes da perversidade retórica. Essa forma societária é, para a
imprensa e os planejadores da segurança pública, “a” sociedade, a “boa” sociedade. Aquela
que estão construindo com empenho. Esse é o modelo que implantaram e sustentam como a
forma possível de relacionamento entre agentes sociais. A má sociedade é a dos “bandidos”,
dos “traficantes”, ou de todos aqueles que ofendem a “harmonia” desse padrão de
relacionamento social, por terem um outro modelo social “na cabeça”. A “boa” sociedade é a
dos burgueses, a “má” é a de todos os outros. Aquela “é”, a outra “não é”. No entanto, não
podemos esquecer que nada é o que parece neste mundo virtual.
Para o jornal, quem é o “Rio” que está refém? Certamente a sociedade equilibrada
descrita por Tönnies, a dos “homens de bem”. Concordamos nisso. Mas, refém de quem?
Nesse ponto, o jornal erra em muito o diagnóstico. Com toda certeza, ela está refém de si
mesma. E é de si que tem medo.
3.2. Bem vindo à sala de espelhos.
Em última instância, a polaridade entre “ser” e “não ser” permeia a redoma
subjetiva da civilização ocidental e a necessária primazia do “ser” sobre o “não ser” induz
essa forma de vida a unificar-se e lançar-se, a partir da crença na sua superioridade enquanto
“ser”
64
, à penetração em todas as demais – que “não são” – tendendo a isolá-las, destruí-las ou
a anular nelas o que têm de singular – ou de bárbaro – e se estabelecer como hegemônica.
O Império Romano representa, para a modernidade européia, um ícone
referencial, “um arquétipo ideológico simbólico de sua neurose excludente”, como bem
lembra Elhajji (2003a). Foi a primeira experiência expansionista de uma forma civilizatória
fundada na Europa e Elhajji (idem, p. 5) assinala que a expansão romana se deu tendo como
referência ameaças externas:
A força de Roma, enquanto exemplo fundador universal da
síndrome da abominação do Outro como imperativo filosófico e
estratégia organizacional para garantir a sua unidade e a sua
sobrevivência, como bem observou Maquiavel, não era “apesar” das
ameaças externas que a rodeavam, mas sim “graças” a elas.
Isso é bastante interessante e nos convida a refletir sobre esse modelo subjetivo
com o auxílio da interessante vertente britânica do pensamento psicanalítico já referida
anteriormente em Melanie Klein. No caso de Roma, a chave para a coesão interna parecia
estar fora dela, como na noção de “posição esquizoparanóide” proposta por Klein (1978b),
aquela na qual o sujeito ou grupo tem como instrumento fundamental de comunicação com a
alteridade a “identificação projetiva”, já citada anteriormente. Trata-se, relembremos, de uma
referência subjetiva fechada em si, na qual o “eu” é, assim como o Deus absolutista do
monoteísmo, o centro e a medida de todas as coisas e, assim, se identifica apenas com o que
projeta para fora de si. Não há, assim, possibilidade de percepção de alteridade. Quando isso
se prenuncia, esta é vivenciada como “estranha” – nos termos de Sigmund Freud (1974b) – ou
ameaçadora, para Melanie Klein (idem), pois ameaça o controle que o sujeito estabelece com
esse modelo subjetivo.
A posição esquizoparanóide expõe uma forma de organização na qual a busca de
um abrigo de segurança subjetiva – idealizado, como o Deus monoteísta ou o parâmetro da
Razão platônica – é a referência da formação da identidade, estando sempre relacionado a
ameaças externas que, por si sós, são a razão e o sentido da formação do abrigo. Trata-se de
uma forma de pensar eminentemente maniqueísta, pois o eu se cinde em duas partes: uma boa
– leia-se idealizada, livre de todo o mal, imaculada – e outra má – eminentemente
desagregadora, portadora de um potencial destrutivo contra o qual o eu se defende projetando
essa maldade em algum(ns) objeto(s) do mundo.
64
Ou pelo horror de seu “não ser”?
Essa forma de compreensão da subjetividade ocidental é bastante rica e pode nos
ajudar a entender a xenofobia desse modelo civilizacional. Wilfred Bion (1975), um
psicanalista inglês que teorizou sobre a dinâmica subjetiva dos grupos terapêuticos, chegou a
algumas concepções bastante interessantes sobre os grupamentos humanos – leia-se
ocidentais. Entre eles, é bastante freqüente a reunião com o objetivo precípuo da preservação
do grupo (sua “suposição básica”, segundo o autor) e as duas técnicas utilizadas para isso são
o ataque ou a fuga. Esse objetivo e essas técnicas levam a um estreitamento do campo da
experiência, como afirma Bion (idem, p. 55): “A preocupação com a luta-fuga leva o grupo a
ignorar outras atividades ou, se não puder fazê-lo, a suprimi-las ou a fugir delas.” A reunião
do grupo se daria para a sobrevivência, uma “suposição básica” posta acima das vontades
individuais, sempre numa intensidade proporcional à fantasia de ameaça, que posta do lado de
fora, no “estranho”, é mais facilmente controlável. Algumas vezes, é preciso atacar. Isso
corresponde à tentativa de confirmar a ameaça, já que, atacada, poderá também atacar e se
confirmará enquanto tal. Assim se unifica o grupo, assim, sugeria Maquiavel (1983), se
unifica um reino. Fora dele, a barbárie, a desrazão. A melhor fórmula, desse modo, era voltar
para elementos externos ao grupo a ameaça. Assim parece ter agido o Império Romano e
assim age a civilização que o sucedeu, utilizando a noção da ordem idealizada da urbe contra
a desordem – também idealizada, porém negativada – da barbárie. Assim se formou a “limes
que, segundo Elhajji (idem, p. 6) era “(...) um limite ideológico entre o mundo civilizado e a
terra ‘incógnita’, entre o conhecido e o conjurado, o domínio da ordem e o início da
confusão, onde acabava o interesse de Roma e começava a miséria do mundo abandonado
pelo império.
Aquilo que não é possível dominar se torna o signo da morte, com todo o terror
que traz, do vazio terrível que a representa. Uma outra forma – na verdade, complementar –
de defesa subjetiva contra esse signo é a idealização, ou seja, a criação de uma estrutura
perfeita que impede a entrada do mal, a experiência da ameaça de destruição dessa frágil
estrutura subjetiva. Vejamos como é ilustrativa disso a descrição de Rufin (1996, p. 21) sobre
o pensamento de Políbio
65
diante da angústia que assaltou Roma após a destruição de Cartago,
no ano de 146 a.C., a vitória sobre o seu mais forte inimigo no domínio do Mediterrâneo:
A imagem angustiosa de Roma sozinha em face do vazio, Políbio a
substitui pela idéia glorificante de uma responsabilidade imperial,
de uma missão universal. Por causa disso, ele reinventa uma “massa
65
Políbio, segundo Betty Radice (1980), foi um estadista e historiador grego, aliado dos romanos depois da
derrota grega na batalha de Pydna, em 168 a.C. Foi o mais importante formulador da “grandeza” de Roma.
dupla”: o império em face dos bárbaros. Claro está que a visão de
Políbio é uma construção ideológica que em nada corresponde à
realidade da situação que ele descreve. As virtudes que atribui a
Roma através dos séculos são precisamente aquelas que ela vai
adquirindo, de modo laborioso, no contato com o mundo grego – o
ano da destruição de Cartago é também o do saque a Corinto.
Quanto aos bárbaros, sua civilização é por vezes bastante avançada,
e sua desordem, a conseqüência da conquista romana...
Diante do vazio, da angústia, da sensação de morte que assalta a Roma
conquistadora depois da vitória sobre os cartagineses, resta ao império a idealização de sua
força não apenas no plano militar, mas no espiritual, no cultural. Políbio era grego, não
podemos esquecer disso, e tinha os instrumentos subjetivos para elevar o moral dos
angustiados romanos após a queda de Cartago.
Recorrendo ainda ao conceito de identificação projetiva, teremos que entender,
então, que tudo aquilo que a insolência dos saberes europeus criou para designar os
“diferentes” certamente era o que incomodava no interior dessa mesma cultura. O “lado
ruim”, a corrupção, a maldade, o terrorismo, são sempre do Outro. Em outras palavras, diriam
os arrogantes membros dessa tradição de exclusão: “Nós” somos ótimos, democratas,
queremos o bem, procuramos a virtude; “Eles”, os bárbaros, são feios, involuídos, atrasados,
“bandidos”. Porém, estamos em uma sala de espelhos.
3.2.1. Equilíbrio numa linha imaginária.
Temos aqui o edifício da sala de espelhos ocidental. Sua pedra fundamental foi
posta por Platão, em idos tempos. Outro alicerce foi posto com a integração entre a metafísica
platônica e o desenvolvimento de um discurso religioso, o monoteísmo na sua vertente
judaico-cristã. Como ápice, o anseio imperial, a elevar a construção rumo às esferas. Em seu
interior, está a sociedade descrita por Tönnies. Para compreendermos como funciona o
mecanismo que projeta imagens e as duplica como verdades e mentiras, precisamos entrar
nesse ambiente especular. Para isso, contaremos com uma ajuda inesperada, mas inestimável,
de um dos mais habilidosos sistemas do pensamento humano para estabelecer essa linguagem
especular, a cabala judaica.
Temos, de um lado, o reflexo do mundo celestial, com seu demiurgo, o “Um”, “o”
deus, Deus, a reinar como detentor de algo que podemos entender facilmente com a ajuda de
uma doutrina monoteísta, a Cabala. Como afirma Dion Fortune (1990, p. 93), quando
descreve a sephirah Kether, o topo da “árvore” cabalística, falamos de uma “(...) Inteligência
Admirável, ou Oculta, pois é a luz que concede o poder da compreensão do Primeiro
Princípio, que não tem começo. É a Glória Primordial, pois nenhum ser criado pode
alcançar-lhe a essência.” Nesse plano especular, a “fonte pura de toda energia” conflui para
essa figura central no imaginário ocidental, que assim pode se postular como universal, acima
do secular, eterno. Trata-se de algo semelhante a uma vida parasitária que suga sua força deste
mundo, mas descuidadamente, define-se num vértice oposto, como a força deste mundo. Nos
termos cabalísticos de Fortune (idem, p. 98), trata-se de um “Homem Celestial ou
Macrocosmo” ao qual a natureza – a physis de Aristóteles – rende homenagens, notadamente
a de agir segundo seus desígnios.
Do outro lado, na oposição a essa força extraordinária, a essa “cegante luz branca
[que surge] anulando por completo o pensamento” (FORTUNE, idem, p. 94), temos o nosso
mundo, este daqui, no qual somos carne – corrupta, segundo São Paulo – e sombras. É apenas
um reflexo material, pesado, daquele outro mundo, o das idéias, etéreo e leve. Não há nada
neste mundo “de cá” que não tenha sido projetado pelo “de lá” e que a este não retorne um
dia. Nesse denso mundo especular projetado sobre a experiência, a tônica é a seletividade,
algo como um “filtro cósmico”, a sephirah Malkuth, para Dion Fortune, na qual há a “descida
da Divindade na humanidade” (ibidem, p. 241) ou, onde “todas as coisas se resumem (...)
vistas num cristal turvo, por reflexo, e não face a face” (ibidem, p. 243). Nessa lógica, tal
mundo existe para que haja discriminação – entre o que é bom e o que é mau –, e a sua
correspondência corporal para os cabalistas seria nada menos do que o ânus, pois tudo o que é
mau deve ser excretado para ser definitivamente excluído do sistema – cair no reino nefasto
das qliphoth, “as sephiroth malignas e adversas; (...) “forças terríveis, havendo perigo até
mesmo em pensar nelas” (ibidem, p. 246), o lado negro das sephiroth, algo como o inferno
cristão –, ou passar pelo purgatório, “um reservatório de forças desorganizadas emanadas de
formas destruídas e expulsas pela evolução” que devem ser equilibradas para retornar “aos
planos da forma organizada” (ibidem, p. 241).
Essa explicação cabalística é muito instrutiva e representa de forma bastante feliz
a estrutura do pensamento que encontrou seu apogeu na modernidade e fermentou até se
tornar hegemônico em todo o planeta. De um lado, o mundo das idéias, do outro o das
representações; o perfeito em oposição ao imperfeito, o bem oposto ao mal, o puro ao impuro,
etc. De um lado, há a razão, o libelo da indestrutibilidade das boas intenções aristocráticas, do
outro, o irracional, o bárbaro, exilado para algum inferno, como o quiphótico. No meio, entre
essa polaridade, está o sujeito cartesiano, aquele que “pensa, logo é” reflexo de Kether, ou
seja, é tocado pelo universal e sabe, ou deveria saber, que “(...) o visível é a manifestação do
invisível, ou, em outros termos, o verbo perfeito está nas coisas apreciáveis e visíveis, em
proporção exata com as coisas inapreciáveis aos nossos sentidos e invisíveis aos nossos
olhos” (LÉVI, 1974, p. 79). Reflexo do universal, mas reflexo, não podemos esquecer disso.
A chave para sairmos da sala de espelhos é saber que tudo nela é fake, nada se materializa
como o que aparenta ser. Se tomarmos as imagens como reais, provavelmente jamais
sairemos dela. Sabemos que corremos esse risco.
A postura do habitante dessa sala de espelhos não pode, em nenhum momento, ser
de passividade. Para vislumbrar o invisível no visível há que se ter muito trabalho e muita
disciplina. Como diz o ditado, “a cabeça da mulher é o homem, a do homem é Deus”, e com
esse espírito se formulou o modelo do homem ocidental, vinculado ao reino celestial no que
este tem de positividade – em fuga, sempre, da negatividade. Eis aqui o modelo de “luta-fuga”
de Bion, citado anteriormente. O homem, assim entendido, sempre disposto a enfrentar
desafios, seja da guerra com armas ou com números econômicos, é puro yang, pura
masculinidade, com tudo o que isso significa em termos de uma ação determinada pelo
lingam – algo como o falo lacaniano, o princípio ativo cuja natureza é “espalhar”, fazer a
guerra, destruir para criar, como define o cabalista cristão Levi (ibidem). O outro princípio, o
do yoni, o princípio feminino, também está presente, mas como um elemento secundário,
resultante do masculino, como explica Levi (ibidem, p. 84):
Quando o ente princípio se fez criador, erigiu um jod ou um
phallus, e, para lhe dar lugar no cheio da luz incriada, teve de cavar
um cteis, ou um fosso de profundidade igual à dimensão
determinada pela seu desejo criador, e destinado por ele ao jod na
luz irradiante.
Pelo princípio fálico, a ação é mais importante do que o pensamento e este, se
estiver solto, livre das amarras da bipolaridade especular, torna-se um empecilho para a ação.
Para tudo funcionar melhor, para que o pensamento não “atrapalhe” o ato, foram necessários
discursos que o condicionassem maquinicamente, como o faz o da técnica. Para a difusão
dessas falas organizativas, os veículos midiáticos foram e continuam sendo fundamentais.
Para essa estrutura, não há rupturas, como a atribuída à pós-modernidade por Jean-François
Lyotard (1986, p. xvi), com “a incredulidade em relação aos meta-relatos”. As regras
continuam as mesmas, o mesmo circuito fechado de projeções fantásticas de pureza e
estroinice, ordem e barbárie, certo e errado, tudo com um tom universalizante que só um
veículo com alcance hoje ilimitado pode proporcionar.
O modelo de Descartes, o “cogito, ergo sum” pode ser interpretado da seguinte
forma: posto em movimento pelo princípio fálico – que abrangeria referencialmente tanto o
masculino como o feminino, aquele como presença, este como falta – sou constante
movimento, perquirição, juízo, discriminação e potencial agressividade voltada para a
conquista que, por sua vez, inicia outro ciclo no qual tudo se repete como antes. Daí vem a
propalada “insatisfação” humana, a perene busca de algo que sempre está para além do
alcance, como pontua Hélio Pelegrino (1987) se referindo à “castração simbólica”, a
referência que faz com que aquele que é presença tema a ausência e o que é esta busque
aquela, num ciclo interminável de alucinações que movem a realidade, para que o sujeito
escape do “Real”, a ausência de significação. Nesse circuito de insatisfações permeado pela
angústia da incompletude – simbolizada como o reverso da completude – há sempre algo a
conquistar por dois motivos: fazendo-o, iludimo-nos crendo que há algo a conquistar que nos
fará completos e plenos como o “Um” e, por outro lado, obturamos a percepção de nosso
devir, relacionado inequivocamente à angústia da castração, isto é, a ameaça da perda total
dessa ilusão.
O sujeito cartesiano é ainda a base identitária – em afirmação e negação –
presente na contemporaneidade “pós” ou “hiper” moderna. Está, irrevogavelmente, num
ambiente essencialmente polarizado, e, por sua condição mortal, por sua presença num mundo
de aparências e reflexos, pode apenas lidar com estes, tendo que decidir, o que é apenas
aparência ou o que traz por trás de si a eternidade da forma essencial. É uma dura tarefa e
grande parte do pensamento intelectual do ocidente ainda se dedica, incessantemente, a operar
essa obra de separação, de “filtro cósmico”, aparando arestas e endireitando vias tortas para
nelas descobrir o sopro da divindade chamada Verdade. Fórmulas são recicladas, novidades
requentadas surgem, permanentemente imantadas pela imanência do Ser. Empreende-se a
busca pela essência, mas o fato de que, essencialmente, essa busca se dá num circuito bipolar,
não é percebido, e não se sai do lugar. A oscilação entre dois pontos, duas referências ou duas
imagens, é perene e inglória. Mas, como ser diferente? Em outras palavras, toma-se a
essência, mas é esquecido o fato de que se está num ambiente especular, no qual há dois
espelhos contrapostos, duas imagens a ser contempladas a fim de que alguém possa, posto
entre essas duas imagens e com o auxílio do “juízo” kantiano, discernir ativamente entre o
bem e o mal, o bom e o mau, o certo e o errado, o belo e o feio, etc. Vista em foco, a escolha
redunda em alguma alteração microscópica, mas num plano aberto, nada se move, embora a
ilusão de movimento seja dada constantemente pela reflexão monótona entre dois opostos.
Tudo, assim, é essência, tudo “é”, mesmo quando “não é”. Aparentemente, os sofistas é que
“tinham a razão”.
É possível pensar que pela exacerbação dessa discursividade, se produz uma
imobilização generalizada, uma contradição que o sistema se esforça por resolver pela
simulação de movimento feérico da mídia, dando a impressão de que a mobilidade é
constante, quando não existe. Pode se tratar de um bom exemplo de um criador dominado
pela criatura, na medida em que a burguesia, que julgou ter se libertado pela Economia, se vê
embrenhada na sala de espelhos, sem conseguir efetivar uma construção que efetivamente
ponha em marcha as transformações concretas de que o capitalismo necessitaria para escapar
de seus próprios efeitos autofágicos, dando a aparência de que chegamos a um paroxismo, a
definitiva vitória da lógica do capital, descrita por Fukuyama (1992) como o “fim da história”.
Parece ser um momento em que o projeto burguês se congelou na realização plena do mundo
anímico posto na terra, e passa a se auto-devorar.
Esse fato aparentemente surpreendente não traz grandes mistérios. O modelo da
sala de espelhos pode ser esclarecedor de toda a dinâmica subjetiva da ocidentalidade,
contanto que não fiquemos na sala de espelhos a nos iludir também. Nele, são exatamente as
hipertrofias de um sentido que trazem, sorrateiramente, a predominância de outro, o que
habita no pólo oposto. Assim, a obsessão pela segurança engendra uma insegurança
generalizada, ao mesmo tempo que podemos captar que há uma insegurança generalizada –
não necessariamente por conta dos “bandidos” – que demanda um discurso “de” segurança e
“como” segurança. A captação desse discurso pelo jornalismo tende a decodificar a
insegurança como algo material e é aí que produz a ilusão. A sensação de insegurança é algo
absolutamente subjetivo e está determinado pelas condições da tensão “existencial” – leia-se o
oposto – da sociedade econômica. Entre essas condições “existenciais” está o risco de ser
objeto do crime dos pobres, mas está principalmente, apesar de oculto pela exacerbação do
discurso da “cidade aterrorizada”, a certeza “essencial” de ser vítima do crime dos ricos. Se
ambos podem ser tidos especularmente como “materiais”, pois visam à propriedade, este não
é exatamente o sentido que podemos depreender se quisermos sair da sala de espelhos.
Na aliança entre o econômico e o político, geram-se compromissos e se
estabelecem prioridades no que diz respeito ao que importa e ao que não importa.
Aparentemente, o que importa é a riqueza material e o poder político, aquilo que a agenda
setting midiática nos faz crer. O que não importa é a vida do cidadão, sua subjetividade.
Afinal, ele é livre para escolher, para consumir o que bem quiser, votar em quem preferir e
acumular riqueza. Isso, no espelho, é claro.
O que tem sido importante para as “elites orgânicas”
66
não é tanto a riqueza
material. Esta, o dinheiro, por exemplo, não importa diretamente. Para “fazer dinheiro” é
preciso estabelecer as condições favoráveis para tal e “fazer dinheiro” não é imprimi-lo. A
fórmula mágica para um grupo conseguir manter o equilíbrio estrutural a seu favor está
exatamente na atenção ostensiva e extensiva a todos os cidadãos, são eles que têm
importância. Se a direção da “consciência coletiva” – leia-se “opinião pública” – estiver a
favor, o dinheiro também estará. A tática é fingir que esse fluxo não existe, ou melhor,
“naturalizá-lo”. Enquanto a natureza age, as elites, que sabem bem o que importa, gozam sua
vida civilizada.
Alguns setores da elite, entre eles as altas camadas médias conseguem
existencializar as essências, outros, a maior parte da classe média urbana, incluindo
“emergentes” como Beira-Mar, não conseguem. Ou quedam essencializados, marginalizados
e proscritos, ou mantêm-se como malabaristas tentando encontrar sentido em uma linha
imaginária, aquela que amarra as imagens especulares.
3.2.2. A essência é a duplicação do nada.
É possível sugerir a hipótese que já passamos dos aperitivos de um banquete
autofágico. A hipermídia representa uma revolução comunicacional que traz consigo a
percepção do absoluto. É a representação mais próxima do “mundo de idéias”, a mais perfeita
que o humano já pôde inventar. A celeridade na troca de informações e imagens diversas, a
participação em grupos de discussão nos quais há não mais apenas palavras, mas a própria
imagem, em cor e som – a pessoa, enfim – são sinais evidentes de uma ruptura com as noções
de tempo e espaço. Trata-se de um sintoma de hipertrofia do sistema midiático, do sistema
comunicacional. Se o objetivo era aproximar pessoas, teve êxito. O problema é que ficaram
todos tão próximos que viraram massa. Um dos motivos para se preparar uma massa é comê-
la. E se falamos de uma massa de carne, entre esses preparativos está a morte dos possuidores
da carne. Se estivessem vivos, resistiriam – ao menos com mais inteligência.
A urbanização e a midiatização progressiva dos espaços produziu um efeito
aparentemente imprevisto. Como esperavam os iluministas e como temiam os frankfurtianos,
a dialética do esclarecimento trouxe seus frutos, mas ninguém podia prever quais seriam.
66
Esse termo será definido no capítulo 4.
Como um “mundo das idéias” portátil, que se pode levar debaixo do braço, no bolso, ou pôr
na sala, na cozinha, no banheiro ou ao ar livre, o medium trouxe a possibilidade de cada um de
seus receptores ter acesso à sala de espelhos identitária que até então só tinha sido freqüentada
por alguns eleitos. Os mistérios do mundo paulatinamente foram sendo desvendados até o
ponto de não sobrar nada além do que se pode enxergar, ouvir ou sentir. O mundo distante
que governava este aqui, tão próximo, finalmente descia até os mortais e mesmo a Ciência
passou a ser assunto dominical. Tudo estava posto para a felicidade terrena.
O mapa que guiava até essa felicidade, porém, tornou-se tão detalhado, tão
meticuloso na produção da realidade, tão mais real do que a própria realidade, que acabou por
substituí-la. A corporeidade das representações assumiu proporções tão dantescas que
praticamente se pode trocar o seu estatuto de imagem pela de objeto. Baudrillard (1991),
assim define o processo de fases por que passa a imagem:
- o reflexo de uma realidade profunda, quando é uma boa aparência, logo do domínio do
sacramento, adequada e consoante para a proximidade com o bom caminho ideativo;
- a máscara e a deformação de uma realidade profunda, quando é do domínio do
maléfico, sendo uma má aparência e servindo como referencial oposto ao caminho do
bem;
- a máscara da ausência de realidade profunda, caso em que é da ordem do sortilégio,
pois finge ser uma aparência;
- a ausência de relação com qualquer realidade, passando a ser o simulacro puro, saindo
assim do domínio da aparência, estando no domínio da simulação.
Para Baudrillard, a passagem fundamental se dá quando se vai dos signos que
dissimulam algo aos que dissimulam não haver nada:
Os primeiros referem-se a uma teologia da verdade e do segredo (de
que ainda faz parte a ideologia). Os segundos inauguram a era dos
simulacros e da simulação, onde já não existe Deus para reconhecer
os seus, onde já não existe Juízo Final para separar o falso do
verdadeiro, o real da sua ressurreição artificial, pois tudo está
antecipadamente morto e ressuscitado. (IBIDEM, p. 14).
Os meios de comunicação tornaram a realidade “hiper-real”, o mais perfeito
simulacro do que antes se compreendia ser o mundo. O sagrado tornou-se banal, pois se pode
acessá-lo numa rápida mudança de canal, durante um zapping, podendo ser experimentado
num ato religioso simulado por uma emissora evangélica ou católica ou na presença
desnorteante de um ídolo pop, ali, na sua frente, tocando, cantando ou falando de sua vida. O
terrível pode ser acessado em qualquer telejornal, e os “bandidos” e “traficantes” estão aí para
isso. Não há mistérios nem algo a fazer além do que já foi desvendado e feito.
O mundo perfeito, pleno sentido da subjetividade, torna-se excessivamente
objetivo. Toda a opressão da dialética racional, da densidade imaterial desse mundo, desce até
nós e se apresenta finalmente como “a” realidade, a própria aparência à qual negava
existência. Não há, como afirma Zizek (2003a, p. 105), nenhum prejuízo da materialidade:
O resultado último da subjetivização global não é o
desaparecimento da “realidade objetiva”, mas o desaparecimento de
nossa própria subjetividade, que se transforma num capricho fútil,
enquanto a realidade social continua seu curso. (...) a resposta
correta às dúvidas pós-modernas acerca da existência do grande
Outro é que é o próprio sujeito que não existe...
O jogo intersubjetivo se transformou em uma espécie de quebra-cabeças
semântico, ou um “faça-você-mesmo” identitário. A liberdade em primeiro lugar, eis o lema
do consumidor, que monta o puzzle ou que vai ao supermercado. Ali ele encontra coisas que
lhe dizem quem são, o que faz, do que gosta, quem é. Porém, ele é livre, e escolhe o que quer
ser. Em casa, transforma-se num controle remoto
67
. Eis o sujeito, finalmente senhor do mundo
das idéias, morto, como já sabia Nietzsche (1948). Uma alma descarnada, com sua “vida sem
vida”.
Para a montagem do quebra-cabeças a mídia fornece o essencial. Na sua edição de
15 de setembro, quatro dias depois do motim na penitenciária de Bangu 1, no qual um dos
desafetos do Comando Vermelho, Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi morto, o jornal
carioca O Dia dá destaque especial a Fernandinho Beira-Mar, distribuidor de drogas para
vários morros do Rio, líder do Comando Vermelho e figura midiática desde muito antes. Esse
destaque é dedicado exatamente a “desvendar” a “essência bandida” de Beira-Mar. Logo na
primeira página, em sua metade superior, uma manchete chama a atenção do leitor: “Beira-
Mar foi bom aluno”. O texto-chamada era o seguinte:
Incrível: o bandido que comandou a matança em Bangu 1 e fez toda
a cidade de refém esta semana não levava bomba na escola. No
primário, Luiz Fernando da Costa tinha média 7 em todas as
matérias. Inquieto e inteligente, era apaixonado por filmes
violentos. Aos amigos, não cansava de afirmar que um dia seria
famoso. Gostava de colocar duas ripas de madeira na cintura, como
se estivesse armado, e desfilar com a mesma arrogância com que
circulou entre as galerias do presídio na quarta-feira, em meio às
67
Como afirma Derrick de Kerkhove (1997, p. 44) “ Você não vê TV, a TV vê-o a si”.
suas vítimas. Ele desprezou o esforço da mãe, que fazia questão de
ver o filho estudando, para usar sua astúcia a serviço do mal.
Não é preciso reiterar a “maldade” desse personagem. Essencialmente, sem
qualquer alternativa, ele é mau, e muito mau, a ponto de “desprezar o esforço da mãe”,
coitada, uma provável gentil senhora que nada tem a ver com o destino perverso do filho, ou
que pelo menos tentou consertá-lo. O que chama a atenção é que apesar de “existencial”,
promotor da liberdade, o mundo pautado pela economia não pode admitir que um “bandido”
escolha ser bandido. Isso, na duplicação especular do “ser” ou “não ser”, significa o oposto.
Não só admite, como incentiva. Beira-Mar, o de essência criminosa, está bem integrado ao
mundo econômico. Apenas por isso é notícia, e vivo.
A chamada de primeira página é acompanhada por uma antiga foto de Beira-Mar
– quando devia ter em torno dos 7 anos citados – e cópia de seu boletim escolar (figura 1). A
página 22, inteiramente dedicada a historiar a vida do “superstar do crime”, há um título ao
menos espirituoso: “Doutorado na escola do mal”. O subtítulo é mais detalhado quanto ao
tema tratado: “Fernandinho só tirava notas altas no primário. Mais de 20 anos depois, seu
currículo é uma coleção de atrocidades e covardia”. Dada sua essência malévola, não há
mesmo salvação para o “bandido”. Desse modo se pode defender a pena capital sem
remorsos, ou pedir a eliminação deste e de outros “entraves” para que o paraíso terrestre se
materialize, ou para “um melhor uso de recursos” econômicos, conforme pensa a leitora
Márcia Cabral Medeiros em missiva ao jornal O Globo, publicada no dia 12 de setembro de
2002, na página 6, um dia depois da investida de Fernandinho Beira-Mar para matar Uê:
Enquanto não houver um projeto de lei implantando a pena de morte
para quem for declarado culpado em juízo e condenação a mais de
50 anos de prisão a situação de violência no país não vai melhorar.
Não adianta encher os presídios. Fernandinho Beira-Mar seria
exterminado se houvesse pena de morte. Vemos hoje o criminoso
comandando uma rebelião no presídio com quatro carcereiros e
quatro operários feitos reféns. Isso tem de mudar. Não podemos
gastar o dinheiro do povo com gente desse tipo.
Ou como “pensa” outro leitor, Simon Zelenoy, cuja carta foi publicada no dia 13,
dois dias depois do motim em Bangu 1, também na página 6:
O cumprimento de penas em prisões deveria servir para que o
condenado seja punido, reflita sobre seus atos e saia da prisão
pronto para levar uma vida honesta. Mas alguém acha que figuras
como Fernandinho Beira-Mar têm alguma chance de sair da prisão
como um cidadão honesto que tentará levar uma vida normal? Com
certeza esse milagre não acontecerá. Logo, a única solução para
casos como o dele é a pena de morte.
Podemos perceber duas identidades na carta de Zelenoy. Na primeira ele é algo
como um liberal convicto, já que efetivamente parece acreditar no que escreveu com relação
aos objetivos das prisões e, é claro, crê na necessidade delas para algo como a “recuperação
para uma “vida normal”. A segunda faria com que o tomássemos no mesmo nível de Adolf
Hitler, que pensava algo semelhante dos judeus. Apesar de aparentemente opostas, as duas
personalidades têm incestuosos vínculos entre si, assim como as identidades do liberal e do
nazista. Já na carta da leitora Márcia Medeiros, além de planejadora pública ela, por alguns
instantes, pôs o colete da polícia e posou de exterminadora de bandidos. É realmente uma
festa identitária que faz com que as pessoas se esqueçam que são, no fim de tudo, pessoas que
não conseguem saber o que são, a não ser com os antolhos especulares midiáticos, assim
como nas tribos de Maffesoli (1998), por si só midiáticas. A tribalização não nos parece
indício de qualquer transformação para além do capitalismo. O leitor Zelenoy pode vestir uma
roupa de liberal durante o dia e envergar a farda fascista à noite e isso não trará qualquer
novidade em relação ao que temos hoje.
Voltando ao jornal O Dia de 15 de setembro, há, ainda, na página 22, várias fotos,
como num álbum de família: Fernandinho Beira-Mar jovem, com crianças, diante de um
armário de metal – desses que há nos vestiários –, dando entrevistas – com três microfones à
sua frente, um da TV Globo, e legenda: “Celebridade do crime” –, sendo conduzido por um
soldado do exército – vestido para combate – quando preso, a escola onde estudou, escondido
num sítio no Paraguai, a vila onde passou a infância e, finalmente, quando foi depor na
Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional. Várias identidades expostas.
Perceba-se que estão ali para reforçar a essência malvada do “bandido”.
Transcrevemos, abaixo, o lead e o sub-lead da matéria:
Aos 10 anos de idade, quando não estava em sala de aula,
Fernandinho desfilava com ripas de madeira na cintura – armas
imaginárias – pelas ruas do Parque Beira-Mar, bairro pobre perto do
Centro de Duque de Caxias. Na escola Municipal Joaquim da Silva
Peçanha, perto de casa, onde cursou o primário, ele era um dos
melhores alunos e costumava dizer aos amigos que queria ser
famoso.
O que nenhum dos colegas imaginava, porém, é que, 25 anos
depois, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, se
tornaria o mais cruel dos criminosos do Rio – o bandido que,
quarta-feira, comandou um banho de sangue no presídio de Bangu 1
e circulava desenvolto pelos corredores da cadeia, enquanto os
cidadãos do Rio se encarceravam em casa, durante as 23 horas de
duração do motim. Feita refém sem saber, a população já temia as
conseqüências de ataques de traficantes que, nas favelas, estavam
prontos para acatar as ordens que o chefe dava pelo celular na
frente de autoridades: descer os morros e espalhar o terror pela
cidade, caso a polícia tocasse nele.
Além de bom aluno, a mesma matéria, não assinada, afirma que Beira-Mar seria,
desde pequeno, perigoso. Usando os supostos depoimentos de dois supostos “antigos colegas”
do bandido – não identificados –, o jornal deixa claro que ninguém gostava de provar sua ira:
(...) O problema era quando se aborrecia. Aí ninguém chegava
perto. (...) Alternava traquinagem com momentos de timidez. Mas,
quando o viam enfezado, todos tratavam de deixá-lo em paz.
Além disso, ainda há a sugestão sutil de que haveria relação entre a “maldade” de
Beira-Mar e o seu hábito de assistir a thrillers de ação: “Garoto era viciado em assistir a
filmes violentos na televisão” (desses “com cenas de perseguição, lutas e tiros”, segundo a
matéria).
A essência “beira-mareana” está desvendada: apesar de ter tido “tudo” na vida,
casa, comida, uma mãe esforçada, estudo, boas notas, acabou demonstrando quem é na
realidade, essencialmente um facínora. Definitivamente, é um monstro, não faz parte da
sociedade porque seu caráter não condiz com a harmonia necessária para a vida social. Não há
mistérios, apenas o desconhecido entre espelhos, o leitor dos jornais. O mundo está
desvendado para ele, assim como o caráter de Beira-Mar, só que ele não tem como saber
quem afinal é ele próprio, a não ser que alguém lhe diga. Como todos lhe dizem, ele fica na
mesma. Resta-lhe a escolha do velho jogo bipolar, bem e mal, preto e branco, os antolhos
jornalísticos. Sabendo o que “não é”, sabe o que “é”. Circe Navarro Vital Brasil (1988, p. 9),
utilizando como base a teoria lacaniana do sujeito, pode explicar bem como se dá a
duplicação especular que transforma dois “não” em um “sim”, e vice-versa:
Segundo a lei da reflexividade da lógica da identidade, pela qual
toda entidade é igual a si mesma, o zero enquanto atribuído ao
conceito não idêntico a si mesmo é idêntico ao não idêntico ao si
mesmo. Ao duplicar-se a negação, obtém-se uma afirmação. A
estrutura da repetição será, assim, o processo de identificação do
idêntico. Vai-se do não idêntico para a identidade. A negação da
negação vai resultar na passagem do zero a um.
A tragédia aqui é que a denegação faz voltar ao sujeito aquilo que projetou. Em
termos especulares, as “pessoas de bem” que escreveram as cartas citadas anteriormente são
tão “más” quanto julgam ser Beira-Mar. Porém, a especularidade identitária permite que elas
despejem sua maldade de forma “civilizada”.
Mas, há um problema. Havendo somente zero e um, não há desejo, pois o desejo é
desejo de algo que não se tem, e nesse esquema, tudo se tem, inclusive o zero. A única coisa
que não se tem é a “si” mesmo, bem ao contrário do que prometia a fantasia iluminista. Se há,
então, desejo, só pode ser por “si” mesmo, o que Freud (1974d) chamou de narcisismo.
Creditar ao zero algum tipo de desejo é o que faz o tempo todo o ocidente,
confundindo o signo com o objeto, fazendo daquele – que não é mais que uma imagem
especular deste – a realidade deste, quando seria mais adequado admitir que há um “vão”, um
espaço virtualmente vazio, entre signo e objeto: a alteridade. Assim age a imprensa, como nos
exemplos acima citados e, como afirma Lúcia Santaella (1996, p. 64):
(...) não é senão ocultando a fratura da diferença, ocultamento
desse vão entre signo e realidade, que se alimentam todas as
ideologias deformantes e todas as mentiras que, escondendo,
disfarçando ou mistificando seu caráter de signo, fazem-se passar
por realidade. (...) O signo não é e nem pode ser aquilo que ele
representa. O objeto da representação, o real, só é parcialmente
capturado pelo signo. O real na sua verdade, portanto, é sempre
algo inatingível, mas, em menos ou maior medida, sempre
aproximável pela mediação do signo. É nessa aproximação como
meta que reside nossa responsabilidade ética para com a linguagem.
Caberia um questionamento acerca da responsabilidade ética de uma matéria
como a do jornal O Dia, parcialmente transcrita acima. Trata-se de um bom exemplo de como
se estrutura o discurso jornalístico nesse veículo e em todos os outros da chamada “grande
imprensa”
68
brasileira. E demonstra de forma emblemática como se funda a subjetividade
ocidental. De um lado o conhecido “desconhecido”; de outro, o desconhecido “conhecido”.
Em outras palavras, de um lado o que conhece a essência do bem, por isso chamado “pessoa
de bem”, ou “do bem”; de outro lado, esse “desconhecido”, Beira-Mar com sua essência
criminosa – em outros tempos se usava “sua mente criminosa”, que deveria ser estudada pela
ciência para prevenir a eclosão dessa essência maléfica, mas hoje se projeta esse poder no
genoma, a raiz essencial do ser. Ambos, no entanto, tornam-se desvendáveis pela oposição
zero e um. A alteridade, assim, está no ponto entre os opostos binários, a tese. Como nesse
ponto está o sujeito a perquirir definições do que, afinal, é no meio dos reflexos, podemos
dizer que a alteridade está aí, no sujeito. Como este não existe a não ser como referência a
esses opostos, podemos afirmar com certeza que não há sujeito nesse construto, logo não há
alteridade. Há, isso sim, a perda total da noção de “diferença”.
68
Na definição de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1978, p. 235): “Conjunto dos principais órgãos de
imprensa, editados por grandes empresas jornalísticas, solidamente estabelecidas no contexto empresarial.
Possuem tiragens elevadas, vasta penetração, exercem significativa influência política, econômica e social junto
à comunidade”.
Assim, do mesmo modo, a máxima cristã do “ama ao outro como a ti mesmo” é
inviável, uma frase sem sentido. Se não há o “ti mesmo”, a não ser como duplicação da
negação, não há como reconhecer o outro, uma duplicação da afirmação. São duas linhas
paralelas. Sempre que tenta, o “sujeito” (sujeito às imagens especulares, diga-se bem)
encontra a imagem de si mesmo – não, é claro, a si mesmo – e não tem como cumprir o que a
pregação recomenda a não ser projetando essa imagem no “Outro”. Mesmo que levemos em
consideração alguma boa intenção contida nessa máxima, não há como levá-la a sério. Trata-
se de mais uma boa intenção a povoar o inferno que bem pode ser definido como a realidade
numa sociedade ocidental – a Malkuth cabalística. Como já dizia Artur Schopenhauer (1958,
p. 11), “O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos
atormentadores.”
A essência é o arauto da exclusão da poesia prevista n’ A República. Trata-se do
ser verdadeiro, apenas cognoscível quando o espírito supera o sensível – estrategicamente tido
como o ilusório – e vai contemplar a harmonia das formas perfeitas. Veja-se o corpo, essa
coisa tão próxima. Dir-se-ia que deve morrer para que seu possuidor alcance a essência. Está
como preso nessa realidade sobrenatural à qual, muito provavelmente, só temos acesso após a
morte. Trata-se, realmente, como já disse Nietzsche (1985) de uma “vingança” contra a vida.
O corpo torna-se distante, ou melhor dizendo, projeta-se para o íntimo e se distancia de tudo,
esconde-se, cobre-se, para desnudar-se apenas sob a presença do essencial. A intimidade é
também um mundo de idéias a subjugar a experiência sensível. Nela, é preciso que tudo esteja
em ordem, que não haja intrometidos, interrupções, desarmonia. No ato sexual, ícone máximo
da intimidade, essa platitude é uma característica da ocidentalidade. Mesmo quando se escapa
dela, como na orgia, tende-se a mantê-la com regras predeterminadas, combinações,
marcações de hora e local e convenções diversas. Nas modalidades do ménage a trois, ou na
“troca de casais”, por exemplo, é preciso que todos estejam de acordo com o que vai
acontecer, que garantam discrição e outras regras mais, muitos assinam termos de
responsabilidade que garantam o cumprimento dessas regras sob penas legais. E tudo isso
para usar o corpo, que deve obedecer a padrões que correspondem a uma estrutura que
certamente não lhe diz respeito. Suas manifestações só podem ser aceitas nesse mundo
ideativo da intimidade, no escuro, no isolamento, com a suspensão do contato com outros
corpos. De preferência, deve se manifestar no banheiro, para algumas atividades, ou no
quarto, para outras – sem que seja aconselhável confundir as coisas. Na civilização isso é
seguido à risca, e mesmo quando algumas dessas regras se quebram, essa quebra passa a ser a
norma, no mesmo esquema, com adaptações estruturais, como nas diversas modalidades de
orgias citadas acima. O corpo está sempre próximo, mas surpreendentemente distante num
mundo esquematizado, puro, desinfetado de todo o inesperado, como devem ser cozinhas,
banheiros e centros cirúrgicos. Mas, como esperar que haja vida num espaço “extremamente
pessoal, que diz respeito aos atos, sentimentos ou pensamentos mais íntimos de alguém
69
?
Como, se não há ninguém ali? “Será possível que este santo ancião ainda não percebeu no
seu bosque que Deus já morreu?”, falou o Zaratustra de Nietzsche (1977, p. 9) para si mesmo
após encerrar uma conversa com um “velhote de cabelos alvos que saíra de sua cabana a fim
de procurar raízes na mata” e compunha cânticos para louvar o seu Deus. Será possível que
ninguém percebeu que o homem está morto?, poderíamos perguntar na contemporaneidade.
3.2.3. O nada é a duplicação da essência.
Trata-se de um momento em que tudo é midiático. A exacerbação comunicacional
alastrou seus tentáculos para locais inauditos. A intimidade, como vimos, está entre eles. A
sala de espelhos produz a sensação de profundidade graças ao efeito especular, mas a
compressão é cada vez maior. A causa da morte do homem é o sufocamento existencial, com
a exacerbação da realidade patrocinada pela apostasia da realidade servindo como instrumento
letal. Tudo é comunicação, tudo é midiático: da roupa íntima ao automóvel, da gíria do
malandro ao poema. Tudo é midiatizado não por que tudo seja mídia, como se crê, mas
porque todos estão privados de seus direitos imediatos, da liberdade de ação e de decisão,
conforme vimos com Virilio (idem). Todos são mídias porque estão midiatizados. “Medium is
message”, disse McLuhan (1969). Então, como bem compreende Baudrillard (1991, p. 108),
Numa palavra, Medium is message não significa apenas o fim da
mensagem mas também o fim do medium. Já não há media no
sentido literal do termo (refiro-me sobretudo aos media eletrônicos
de massas) – isto é, instância mediadora de uma realidade para uma
outra, de um estado do real para outro. Nem nos conteúdos nem na
forma. É esse o significado rigoroso da implosão
70
. Absorção dos
pólos um no outro, curto-circuito entre os pólos de todo o sistema
diferencial de sentido, esmagamento dos termos e das oposições
distintas, entre as quais a do medium e do real – impossibilidade,
portanto, de toda a mediação, de toda a intervenção dialética entre
os dois ou de um para o outro. Circularidade de todos os efeitos
media. Impossibilidade de um sentido, no sentido literal de um
vetor unilateral que conduz de um pólo a outro. Há que considerar
até ao fim esta situação crítica mas original: é a única que nos
69
Definição de “intimidade” dada por Houaiss (2001).
70
Implosão do sentido, tanto social quanto ao nível microscópico do signo.
resta. É inútil sonhar com uma revolução pela forma, já que medium
e real são a partir de agora uma única nebulosa indecifrável na sua
verdade.
Não há sujeito, não há medium. Ou há, e tudo se entrelaça formando uma massa
só, compacta e indiferenciada, dissociada entre seus pontos e, no entanto, ainda massa, como
nos meios de comunicação dirigidos a ela. Mas, como aceitar essa noção em um momento de
implosão do “sentido unívoco” – ou de sua rearticulação – e da dualidade que produz? O
sujeito esvanece, tornando-se puramente um medium de uma ordem universal, “natural”. Isso
significa que o medium, como o conhecemos tradicionalmente, se torna, ele próprio, o real.
Não é, nessas condições um contra-senso falar em comunicação? O sujeito é um medium, mas
este é o real e, como tal, o sujeito também é, na forma de “indivíduo”, tão pleno de
subjetividade que esta, duplicada por sua plenitude ôntica, abarca o “ser” e o “não ser”, se
extinguindo enquanto produção imaginária. Nesse nível, isso que chamamos comunicação
está mais próxima do que George H. Mead (apud RENÉ SPITZ, 1979, p. 126) percebeu como
sendo a comunicação animal:
(...) quando o cão A late e, à distância, o cão B responde latindo, o
cão B não sabe se seu latido tem algum significado para o cão A,
não leva em conta qual significado ele possa ter. Nós, como
observadores, sabemos que o latido do cão B é um estímulo para o
cão A e que o cão A responderá, expressando seus sentimentos pelo
fato de ter sido assim estimulado. Mas isso é exatamente o que o
cão B não sabe, pois seu latido é egocêntrico e não alocêntrico,
como seria a linguagem humana.
A noção acima é ideal para a pretensão civilizatória de possuir um “algo mais”,
um diferencial não apenas dos animais, como dos “Outros”, dos bárbaros, uma essência
privilegiada. A contemporaneidade tem nos mostrado que o alocentrismo citado por Mead e
Spitz não é mais do que um egocentrismo projetado para além de si, engolfando todo o
mundo, como o centro de um mundo ideativo ou uma divindade. Quando a pessoa A fala, a
pessoa B responde falando, e a modernidade supunha que havia algo a dizer entre as duas,
dois sujeitos, dois indivíduos. Hoje, podemos entender que se há fala, há um medium suposto,
que, para McLuhan, é a própria mensagem, e, assim, há uma realidade que prescinde de
sujeitos falantes e mesmo de um medium. Logo, o cão A e o cão B se comunicam
aparentemente tanto como os humanos A e B. Seja lá o que Mead e Spitz imaginavam haver
que fizesse os cães conversar não conversando, é o mesmo que se pode observar entre os tais
“comunicadores alocêntricos”, os humanos. Com quem se conversa num mundo ideativo,
puro, imaculado, harmônico, pleno de essência? Como haver indivíduos com algo a dizer num
mundo em que Deus – seja na forma religiosa “stricto sensu”, seja na de um “grande irmão”
midiático – está em toda parte, onisciente e onipresente, sendo ainda por cima, onipotente? O
modelo do homem – mantido o gênero – ocidental moderno continua a ser o do panopticon de
Bentham, uma idéia que Foucault (1984, p. 209), identificava como um zeitgeist:
(...) eu havia pensado em fazer um estudo sobre a arquitetura
hospitalar na segunda metade do século XVIII, época do grande
movimento de reforma das instituições médicas. Eu queria saber
como o olhar médico havia se institucionalizado; como ele se havia
inscrito efetivamente no espaço social; como a nova forma
hospitalar era ao mesmo tempo o efeito e o suporte de um novo tipo
de olhar. E, examinando os diferentes projetos arquitetônicos
elaborados depois do segundo incêndio do Hôtel-Dieu, em 1772,
percebi até que ponto o problema da visibilidade total dos corpos,
dos indivíduos e das coisas para um olhar centralizado havia sido
um dos princípios diretores mais constantes. (...) Durante muito
tempo acreditei que estes eram problemas específicos da medicina
do século XVIII e de suas crenças. (...) Mas é impressionante
constatar que, muito antes de Bentham, já existia a mesma
preocupação. (...) Bentham contou que foi seu irmão que, visitando
a Escola Militar, teve a idéia do panopticon. De qualquer forma, o
tema está no ar.
Estava no ar mesmo. Adam Smith (2002) também pensava sobre a visibilidade e o
controle, através de uma teoria do julgamento moral. Para ele, o fundador da Economia, o
sujeito estaria permanentemente diante de um espelho, em busca constante de aprovação e
reconhecimento. As paixões, admitidas por Smith como componentes fundamentais do
sujeito, não teriam tanto que ser combatidas como domadas, canalizadas para a vida social,
educadas. Seu livro Teoria dos Sentimentos Morais é como um manifesto de transição do
homem prudente do mundo hobbesiano, com sua ênfase subjetiva no autocontrole, para o
homem econômico, tido como virtuoso, aquele que transcende a prudência na medida em que
se arrebata para a ação, senhor de si não tanto por se controlar, mas por saber valorizar e
educar suas emoções para o seu bem e o bem comum, obtendo reconhecimento por isso e re-
intensificando seus esforços nesse sentido. O foco não estaria mais na repressão
simplesmente, mas na injeção de ânimo para a vida social com a canalização das paixões e o
reconhecimento por isto, não pelo simples autocontrole, gerando uma estrutura subjetiva
básica que fundamentaria o jogo econômico. A economia seria a canalização dessas coisas
estranhas e temíveis chamadas paixões para o bem comum. A partir de então, o humano A e o
humano B podiam não apenas falar, como fazer todas as coisas que quisessem, inclusive latir
contanto que fosse com essa condição. Os olhares de reconhecimento ou de condenação, o
panopticon especular da vida social, garantiriam o equilíbrio, como o mercado o faria com o
todo econômico. Um problema está em que essas palavras poderiam ser aplicadas aos
“humanos”, não aos “cães” ou a qualquer “Outro”. Mais um problema está na constatação de
que essa “existencialização” sempre depende de aprovação de uma essência, o Mercado, por
exemplo, ligada umbilicalmente aos antigos conceitos filosóficos de Razão e Verdade. É essa
essência que os humanos “latem”.
A percepção especular, eminentemente visual, do mundo ocidental tem suas
peculiaridades. Delimita pela aparência, exatamente de forma oposta ao que deveria fazer
quando fala em essência. No entanto, o aparente bem pode ser compreendido como uma
imanência, e isso serve para facilitar as coisas, ainda mais quando o que se quer dizer não é o
que se diz. Os estigmatizados foram, tradicionalmente, apontados como marcados por Deus,
criaturas especiais para o bem ou, mais geralmente, para o mal, como bem lembra Ervin
Goffman (1978). O aparente, aquilo que o olhar apreende, não passa, hoje sabemos, de um
reflexo propiciado pelo brilho desse olhar, no entanto, naquele momento histórico, e até bem
recentemente, era simplesmente tudo, o essencial. Ainda o é, para quem habita nessa sala de
espelhos. Não aquela que Platão identificou como uma caverna da qual a fuga seria
imprescindível para o conhecimento da verdade, mas exatamente o que o fugitivo encontra ao
sair da caverna.
Suprema perversidade de um especulador: fazer alguém mergulhar no poço para
pegar a lua
71
. Desse modo, só se pode encontrar a verdade, mesmo. O “terrível” Beira-Mar
está refletido na mídia como a lua no poço. Inadvertidamente ou por má-fé, os jornalistas
estão nos transmitindo a verdade ao manter o “pára-vento” que permite que o reflexo seja tão
perfeito quanto o objeto. Apostando na versão da imprensa, as classes-médias consumidoras
desses folhetins de narratividade medíocre, acabarão descobrindo que, por mais dolorosa que
seja, a “Verdade” não é aquilo que pensavam. Aliás, já vêm descobrindo há tempos; apenas
não perceberam isso, e o pior é que insistem em não perceber. Coisas dessa gente essencial
em demasia.
Com a cadência especular midiática, a sociedade ocidental duplica sua essência
abrindo um abismo existencial sob si. Fechada num circuito de retroalimentação, toda ação é
controlada por seus próprios efeitos. A formação de uma “opinião pública” é um bom
exemplo desse processo autofágico, expressão de um sistema que não tem mais o que o que
explorar fora de si, como a antiga Roma vitoriosa diante de Cartago, mas também não tem
mais ideais a professar para encher o vazio causado pela definitiva conquista do mundo no
processo que ficou fetichizado como “globalização”, uma “narrativa auto-referente
(ELHADJI, 2003) que leva ao nada da significação na forma da plenitude significacional.
Roma tinha a limes, mas o ocidente contemporâneo não tem mais limites a serem transpostos.
Não que não existam bárbaros, mas estes simplesmente não estão no jogo, pois não servem à
lógica econômica e são dispensáveis, já mesmo como negatividade.
Não há conquistas para a civilização, não há a quem vencer. A não ser, é claro, a
si própria. Beira-Mar faz parte desse mundo, por isso pode e deve ser vencido, ou melhor,
pode e deve jogar para ser vencido. Como concorrente, não como bárbaro. A barbaridade não
lhe permitiria, apesar de malvado, se constituir num empresário de sucesso. Ele só merece o
ódio da classe média porque, da mesma forma, é uma referência amorosamente perversa para
esta, uma imagem narcísica posta de ponta-cabeça. É como o reverso da “Morte do Caixeiro
Viajante”, a perversão sadomasoquista do homem medíocre que se esconde nos escritórios a
sonhar com o que o “bandido” conseguiu e com a punição que a sua “vida bandida” impõe a
ele, homem de classe média, por todo o mal que seus descendentes e ele próprio fizeram a
gente como Beira-Mar. Esses, possivelmente são a maior virtude e o maior crime de
Fernandinho Beira-Mar, não necessariamente nesta ordem. Por isso, a sociedade que lhe
patrocina, admira e odeia, lhe oferece, como prêmio, a exposição midiática e, como castigo, a
privação do bem que considera mais precioso, a liberdade. Esse é, nos parece, o sentido da
“guerra a Beira-Mar”.
Infelizmente, cremos que Beira-Mar representa a vitória da civilização sobre a
barbárie, a prova de que um bárbaro pode se tornar “civilizado”, isto é, ganhar dinheiro e
comandar um esquema empresarial complexo. No fundo, então, a matéria do jornal O Dia,
apresentada como sendo manifestamente uma condenação, a constatação da maldade
essencial desse “bandido”, traz, de forma latente, um enaltecimento. Milhares de cidadãos da
classe média carioca estudaram, concluíram cursos superiores mas não alcançaram a posição
de Beira-Mar, que conseguiu espaço até no New York Times, como “Seaside Freddy
72
. Os
mesmos milhares põem os filhos na escola para que “sejam alguém na vida”, mas sabem que
estudando muito dificilmente se consegue chegar aonde esse “bandido” chegou. Trata-se,
então, de um “cidadão” dotado de um senso especial de oportunidade, atributo valorizado no
meio empresarial dos “white collar”, que soube encontrar, ao contrário do que diz
manifestamente o texto do jornal, o caminho do bem, do seu bem, como prezam os mesmos
71
Fazemos referência ao ditado popular que afirma que aquele que olha a lua refletida no poço e mergulha nele
para alcançar a lua, não consegue seu intento, mas descobre “a verdade”.
72
Não somente do New York Times, como de outros jornais, conforme matéria da Folha de São Paulo, colhida
no site do jornal em 13 de setembro de 2002, publicada no dia seguinte na edição impressa. Ver anexo F.
“colarinhos brancos”. Trata-se, então, de um homem com rara argúcia empresarial, que bem
poderia constar – quem sabe um dia constará – de uma dessas revistas dedicadas a auxiliar o
“sujeito de classe-média” a promover a sua mentalidade mercadológica para obter sucesso
nesse mundo resumido na lógica econômica. Estudar, para quê? O mal tem suas vantagens
competitivas, os números as provam. A essência do mal se duplica e se torna o bem.
Bem, mal, quem se importa? Os estadunidenses certamente não se importaram
com as vítimas de Hiroshima e Nagazaki, nem muito menos com os milhares de perseguidos,
torturados e mortos nas ditaduras sul-americanas que criaram e ajudaram a manter, inclusive a
brasileira. Não ligaram a mínima para os vietcongs, os afegãos ou os iraquianos que morreram
para que George Bush filho e seus sócios pudessem fazer bons negócios no ramo do petróleo.
Não querem nem saber dos palestinos massacrados pela máquina mortífera sionista nem das
vítimas do estranho atentado de 11 de setembro de 2001. Beira-Mar também não se importa
com coisas como essa. As regras, ele bem sabe, não são essas para quem quer “vencer na
vida”. Ele aprendeu a lição e é um herói da civilização que o idolatra especularmente. Aí está
o caminho para descobrir o sentido de seu irresistível charme midiático. Nessa sala de
espelhos tudo está onde não está, inclusive, os bandidos mais perigosos.
4. SAQUEANDO TÚMULOS: crime organizado, crime
“organizado” e a “guerra a Beira-Mar”.
Temos uma sociedade em permanente conflito, na qual, como no inferno
schopenhaueriano, há os diabos atormentadores e as almas atormentadas. Se no plano
micropolítico podemos dizer que são todos contra todos, e é difícil discernir exatamente
quem é o atormentador ou o atormentado da vez, num plano aberto podemos identificar
mais facilmente uns e outros. Em primeiro lugar, seguindo a ordem de aparição nesta
dissertação, temos a classe média infernizando os pobres. Essa é a “guerra à beira-mar”,
um conflito explícito entre “a” sociedade – leia-se as classes médias – e os diferentes,
com a mesma matriz cultural “alterofágica” do ocidente. No caso do Rio de Janeiro, os
pobres, em geral, e os negros, em particular, foram postos historicamente no lugar do
diferente, mas vimos com Gay (2002) que a pobreza já horrorizava e aturdia as classes
médias européias do século XIX, possivelmente com fervor semelhante ao
experimentado pelas classes médias cariocas.
Esse enfrentamento, que vem de longe, se intensificou na última década do
século XX, com a adesão de boa parte dos antigos atormentados ao ofício de
atormentadores. Cremos que isso pode ser entendido por diversos ângulos culturais, nos
quais poderemos nos surpreender aos nos deparar com uma interessante hibridação que
mescla fatores “societários” e “comunitários” na formação da identidade tantos dos
“incluídos” como dos “excluídos” do “jogo finito” da economia neoliberal. Nosso
vértice, porém, procura tomar o político como foco principal, elaborando um mapa no
qual estão expostos movimentos traçados sob matrizes subjetivas. Nesse ângulo, como
estamos percebendo, o acirramento do confronto se dá não por um distanciamento entre
esses grupos, mas pela aproximação destes da mesma proposta de sociedade. Uma
matéria publicada na revista Época, em sua edição nº 302, de 01/03/04
73
, ilustra a
ascensão de uma “classe média emergente”, ou seja, uma parte de “excluídos” que vem
se inserindo no “mundo encantado” do consumo. Trata-se de uma entrevista com um
consultor de empresas, Ricardo Neves, que enxergava uma integração da população das
favelas à vida “civilizada”. Vejamos um trecho da entrevista:
ÉPOCA - Onde está a classe média emergente do Brasil?
Ricardo Neves – Bem diante de nós. Existem certas obsessões que nos
impedem de ver alguns fenômenos sociais. O que a gente chama de classe
carente é um imenso mercado emergente. As favelas do Rio de Janeiro ainda
são vistas como algo negativo, tendo quem acredite que devam ser erradicadas.
Mas nos últimos 30 anos ocorreu ali uma melhoria em penetração de serviços
e bens de consumo. Graças a isso, nos últimos 20 anos, começamos a produzir
uma classe média mais robusta, que não é mais apenas 14% da população,
como na década de 70. É preciso desfazer o mito da pobreza. Será que não
estamos pessimistas demais com nosso passivo social e incapazes de perceber
que já demos um salto para a frente? O grande desenvolvimento de uma nação
ocorre quando ela consolida uma classe média abrangente, formando um
enorme mercado interno. E parece que estamos nesse caminho.
ÉPOCA - Quais são os indicadores desse fenômeno?
Neves - Uma pesquisa revela que muitas favelas se transformaram em bairros
populares. Entre 1969 e 2001, a proporção de casas de alvenaria cresceu de
37% para 97%. Esse pessoal passou a pagar contas e comprar também. No
mesmo período, a quantidade de residências populares com aparelho de som
saltou de 25% para 79%. A presença da geladeira foi de 58% para 98%. E a da
televisão cresceu de 64% para 95%. Agora, estão buscando itens mais
sofisticados. Pesquisas feitas por empresas mostram que entre a classe C 18%
das famílias têm freezer, 32% têm aparelho de CD e 47% têm videocassete.
73
Acessível no endereço eletrônico: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT687074-1666,00.html.
O que Neves não disse é que boa parte do dinheiro que financia essa
“emergência” vem provavelmente do comércio ilegal de drogas, que emprega muita
gente nas favelas.
Há um interesse inequívoco das elites – a burguesia propriamente dita e as
altas classes médias – em integrar o maior número de pessoas à vida pacata dos “mortos-
vivos” midiáticos, seja por que via for, tanto é assim que dos cinco eletrodomésticos
citados pelo consultor, três são de acesso comunicacional/cultural e representam algo
como uma credencial que distingue “incluídos” e “excluídos”. Ana Lúcia Fugulin (2001,
p. 18) também identifica um aumento significativo da participação das classes menos
aquinhoadas no processo de consumo:
Quando se analisam os dados de concentração de renda no Brasil, onde os 32%
mais ricos detêm 75% da renda nacional (dados do PNAD 1999), a primeira
conclusão a que se chega é que o mercado de consumo está localizado apenas
nas classes AB (31% da população, segundo critério Brasil, do Ibope PNT).
Mas, ao analisar cuidadosamente o quadro da demanda, é possível observar
que as classes médias e baixas estão consumindo cada vez mais e sendo vetor
de crescimento de marcas e produtos até então destinados a estratos mais altos.
(...) Nesse sentido, é legítimo afirmar que o Brasil está caminhando
rapidamente para um contexto de consumo de massa, haja vista a expansão das
atividades das empresas brasileiras e multinacionais com base em portfólio de
produtos com claro enfoque no fator preço. Parte dessa expansão pode ser
explicada com o sucesso do Plano Real, que, ao eliminar o processo
inflacionário e aumentar a renda global da população, possibilitou a
reprogramação do orçamento familiar, expandindo o consumo de bens
duráveis através de linhas de financiamento prefixadas.
Segundo o Ibope Nacional PNT (considera a seguinte área para pesquisa:
Grande São Paulo, Grande Rio de Janeiro, Grande Porto Alegre, Grande Belo
Horizonte, Grande Curitiba, Interior Sudeste – Uberaba, Uberlândia,
Governador Valadares, Juiz de Fora, Campos, Petrópolis e Volta Redonda -,
Grande Recife, Grande Salvador, outras – Belém, Grande Fortaleza, Distrito
Federal, Florianópolis e Goiânia), as classes C, D e E representam 69% da
população, ou seja, projetando para o mercado total, cerca de 110 milhões de
pessoas.
Essa integração não é nada mais do que a realização do projeto originalmente
proposto por Adam Smith (1979), a tão sonhada inclusão do maior número de pessoas
sob o guarda-chuva da economia, passando a ser consideradas como “classes médias”, o
que significa aparentemente ascensão social e, principalmente, aceitação da simulação
de “infinitude” dos “jogos finitos”. Porém, em um sistema cuja lógica é a da
desapropriação de bens de uma classe por outra, tudo indica que essa integração é um
convite para o saque, a pilhagem econômica. Não exatamente para que todos possam
saquear igualmente uns aos outros, mas para que, mantendo a lógica infernal de
Schopenhauer, uns sejam mais atormentadores e outros sejam mais atormentados. De
alguma forma, a sociedade da neoliberalidade se desvenda como essencialmente
criminosa, isto é, cuja ordem reflete o espírito ética e socialmente condenável de ataque
a bens e valores alheios. Não que esse espírito destoe significativamente daquele que foi
estabelecido pelo capitalismo em sua história. Não é o caso. Simplesmente, esse novo
modo de praticar a pilhagem econômica é mais selvagem, como refere Pierre Salama
(1995), e se estrutura de forma diferente, tendo tornado supérfluo o recurso aos pobres
como “baterias” do sistema. Estes, a partir do neoliberalismo, precisam, para ter a
“honra” de servir como as “pilhas”, se incorporar às classes médias e ao novo estatuto
consumista. Os que não fizerem isso, são simplesmente dispensáveis. E, para essa
“honra”, o caminho não é fácil: o funil é estreito e somente alguns conseguem alcançá-
la. Trata-se de uma ironia provavelmente sem par na história: é preciso muito esforço e
suor para conseguir o “direito” de sofrer a ação do verdadeiro crime organizado. Como
vimos, parece ser preciso, em primeiro lugar, aceitar a morte subjetiva da vida vicária da
“mediatização midiática”. Assim, em seu túmulo virtual, o sujeito oferece menos
resistência enquanto se distrai com a brincadeira especular. Em seu fascinante jogo
identitário, o cidadão das classes médias, que praticamente tudo pode na imaginação, se
assemelha a um gigante, mas não passa de um anão... morto.
4.1. Crime organizado e crime “organizado”.
Para jogar um “jogo finito” é preciso organização, assim como podemos
dizer que é preciso essencializar uma “proposta” que una os participantes em torno de si
de forma coesa. Há que se delimitar bem qual o jogo, onde será jogado, com que
instrumentais, definir as regras, etc. Não se joga um “jogo finito” sem regras, assim
como não se pode jogar um jogo para o qual haja previamente um campo ou um
instrumental. Invenções são bem vindas no jogo “infinito”, mas na finitude da ambição
dos jogos de sociedade, invenções não costumam dar certo. É o mundo do “é” ou “não
é”, do “dá-ou-desce”, do “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”, e é preciso
jogar sério, sem inventar. Disso, depende a vitória.
Não há como esperar, então, que os jogadores desses jogos esqueçam dessas
regras básicas e aceitem deliberadamente a derrota. O traficante de drogas do Rio de
Janeiro foi escolado por anos de ofensas e pancadas dadas pelos senhores e doutores que
cruzaram o seu caminho. Quando não as davam pessoalmente, mandavam a polícia, o
que tornava a coisa bem mais séria. Foram pelo menos cem anos de confrontos desde o
povoamento da cidade na passagem do século XIX para o XX. A vitória sempre esteve
acompanhando os mais aquinhoados e ninguém quer perder sempre. A arregimentação
de jovens pobres para um comércio ilegal não é nada de novo, e bem se poderia esperar
que nesse ramo de negócios alguns deles prosperassem. Segundo cifras expostas pelo
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) e por Osvaldo Caggiola (2004), o
lucro com o comércio de drogas ilegais está em torno de US$ 500 bilhões anuais. É, sem
dúvida, um dos mais rentosos negócios de toda a história econômica. É muito dinheiro
circulando nos becos e sarjetas do mundo capitalista. Dinheiro que tem donos, que
alimenta aplicações financeiras no “cassino global”. Pela graça de algum deus maroto,
uma parte desse dinheiro circula entre as valas e vielas das favelas. É a salvação de boa
parte das pessoas que lá vivem. Fora de qualquer plano capitalista, são os que os anos 90
postularam como “excluídos”, pessoas dispensáveis para o mundo dos negócios.
Segundo Forrester (1997), aproximadamente 80% da população mundial está “incluída”
nesse rol de “inúteis” e, dentre eles, estão os favelados cariocas. Se alguns conseguiram
vencer nesse “jogo finito” e de estreita criatividade, devem ser reconhecidos como
heróis, pelo menos por seus iguais. E é em torno deles que se dá a organização, como
nas empresas capitalistas.
Não há por que estacarmos a discussão na questão especular sobre se há ou
não “crime organizado”. A própria discussão já indica a sua existência, e as definições
podem variar, mas tenderão sempre a repetir a definição que seria mais apropriada para
a empresa capitalista. Por que não definir que o “crime organizado” é uma empresa que
atua no ramo da ilegalidade? Poupa-se, assim, muitos esforços inúteis. Se alguém quiser
descobrir como funciona a organização criminosa, a sua estrutura, basta observar uma
empresa qualquer. Tudo funciona da mesma forma. São reflexos do mesmo espelho.
A jornalista Fernanda Mena, em duas matérias publicadas no jornal
paulistano Folha de São Paulo, nos dias 9 e 10 de março de 2003, ilustra bem a situação
desse “ramo de mercado”. Pelo que ela apurou, há um crescimento assombroso de
adolescentes atuando no mercado da droga: “Em 1991, apenas 7,7% das infrações
cometidas por adolescentes na capital carioca eram relativas a entorpecentes. Em 1998,
esse percentual já havia saltado para 53,4%, de acordo com dados da 2
a
Vara da
Infância e da Adolescência do Rio”. Não se trata exatamente de jovens alistados para um
exército que pretende conquistar algum território inimigo, trata-se de pessoas em busca
de emprego, status, prestígio social, a mesma coisa que a gente do asfalto pretende. Isso
também foi apurado por Mena (idem):
Quem imagina o tamanho da roubada que é trabalhar para o tráfico de drogas
deve pensar que esses jovens só entram nessa obrigados por alguém. Engano.
O envolvimento deles é espontâneo e farto – induzido pela curiosidade e pela
promessa de status e de dinheiro fácil –, negligenciado pela sociedade e pelo
Estado. Ninguém obriga diretamente ninguém a entrar nessa, a não ser as
circunstâncias em que se encontra a vida de cada um.
Não há mistérios. Há uma oportunidade de conseguir aquilo tudo que o
pessoal do asfalto tem, de “curtir uma” de classe média, nada muito além. A questão do
crime organizado entre os pobres das favelas cariocas poderia se resumir a isso, não
fosse o seu negócio ser ilegal e, por isso, atrair a polícia, que precisa do crime e dos
pobres para justificar a sua existência e todo o dinheiro público que nela é investido. Aí
a coisa se complica realmente para os pobres, pois para enfrentar as batidas policiais é
preciso muito dinheiro e armas. A sociedade não costuma ir pelas comunidades a não ser
para fazer correr sangue, e quanto mais pesadas forem as armas melhor para a
segurança. A lógica do capital fala mais alto, inclusive entre os “excluídos” e, se há
armas, por que não patrocinar alguns “ganhos” extras, como assaltos? Estes, no mundo
do tráfico de drogas, servem para “fazer caixa” em momentos de dificuldades, quando a
polícia ou quer receber muito dinheiro “extra” ou “atrapalha os negócios” com
ocupações nos pontos de venda de drogas, geralmente por motivos fúteis, como a
exposição midiática de Marcinho VP quando deu uma entrevista a alguns repórteres no
dia da gravação do clip de Michael Jackson na comunidade da favela Santa Marta. A
entrevista, um dos temas importantes tratados em sua biografia, escrita por Barcellos
(2003), foi deliberadamente deturpada pelos repórteres e por seus editores para maior
sensacionalização e atiçou a libido das autoridades policiais que acorreram ao morro
para prender o bandido que ousou aparecer nas páginas dos jornais. Se levarmos em
consideração a lógica presente e atuante nas relações “bandidos”-polícia-sociedade-
imprensa, bastante ilustrada nessa biografia, o que essas autoridades aparentemente
queriam, nesse caso e em inúmeros outros, era, não necessariamente nessa ordem:
1. justificar a própria existência e importância perante a “sociedade ultrajada” dos
jornais;
2. ganhar o mesmo espaço midiático;
3. se fracassassem as intenções anteriores, justificar, para os traficantes, “ganhos
extras” através das propinas mais volumosas.
A organização comercial dos pobres vai crescendo, e com ela a repressão. E
como a repressão vai crescendo, e se tornando cada vez mais sangrenta, aumenta o
rancor centenário que esses “excluídos” nutrem por seus agressores, e se recrudesce não
apenas o ódio, como a organização se torna cada vez mais voltada para os seus
objetivos, e se tornando mais empresarial, ou seja, mais cruel.
Para jogar um “jogo finito”, sabemos bem, é preciso organização. Esta, se
cristaliza nas suas propostas e nas suas metas de acordo com as dificuldades que
encontra. No caso do duelo “crime organizado” x repressão no Rio de Janeiro, ambos
crescem na mesma proporção num movimento de retroalimentação perverso que ilustra
um ângulo da loucura que tomou conta do ocidente nos últimos anos. É um movimento
especular que ilustra outro, mais abrangente e pernicioso, oculto sob as manchetes
jornalísticas. Falamos de uma criminalidade que age de acordo com a lei, mas saqueia o
erário e as contas bancárias com uma voracidade nunca antes vista, e usa pára-ventos
midiáticos como o “terrorismo” e o “tráfico” como ocultamento. Certamente é a esta que
os leitores de jornais deveriam temer com mais fervor. Basta pensar sobre o que
escreveu John Taylor, citado por Wright Mills (1976, p. 35):
Há duas maneiras de invadir a propriedade privada: a primeira, pela qual os
pobre espoliam os ricos, súbita e violentamente; a segunda, pela qual o rico
espolia o pobre, lenta e legalmente... Quer a lei transfira gradualmente a
propriedade de muitos para poucos, ou a insurreição divida rapidamente a
propriedade de poucos entre muitos, será igualmente uma invasão da
propriedade privada e igualmente contrário às nossas constituições.
Tomemos, por exemplo, o quadro descrito por Altamiro Borges (2004) com
relação ao paraíso capitalista instituído pelo governo de Fernando Henrique Cardoso,
que teve dois mandatos para viabilizar um dos maiores saques realizados ao patrimônio
público e privado de toda a nossa história:
O sistema tributário brasileiro é um retrato da tragédia social que dilacera o
país. Em certo sentido, ajuda a entender porque o Brasil, a 12
a
economia
produtora de riquezas do planeta, ocupa o quarto lugar no ranking mundial de
concentração de renda – segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
da ONU ele só perde para Serra Leoa, República Centro-Africana e
Suazilândia. Em decorrência do histórico desequilíbrio das forças políticas no
país, a tributação sempre foi utilizada como um perverso instrumento de
concentração de riqueza e renda, onerando os bolsos dos mais pobres e
aliviando os dos mais ricos.
Segundo minucioso estudo da Unafisco (Sindicato Nacional dos Auditores
Fiscais da Receita Federal) entre outros crimes, FHC promoveu o desmonte da
máquina fiscal; criou amarras burocticas ao trabalho de fiscalização;
concedeu anistias fiscais às empresas; congelou a tabela de desconto do IRPF
[Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas] e diminuiu as deduções
permitidas; elevou a alíquota do IRPF dos assalariados; aumentou a Cofins em
50%; criou a CPMF [Contribuição Provisória sobre a Movimentação
Financeira], hoje com uma taxa de 0,38%. Em decorrência deste violento
aperto, entre 1990/98, a carga global média de tributação sobre os rendimentos
foi de 27,5%, bem superior à média de 24,8% nos anos 80.
A lista de medidas para garantir ao mercado financeiro as maiores liberdades,
enquanto ao trabalhador era destinado o fisco, é estonteante. E o trabalhador de quem
estamos falando, tenhamos clareza disso, é o das classes médias, históricas aliadas da
proposta de inserção do país no primeiro mundo capitalista. Vejamos, a seguir, apenas
algumas das medidas adotadas, em consonância não apenas com o Consenso de
Washington
74
, mas com o consenso de transformação da Economia num discurso
encobridor de ações criminosas, que veio liberalmente à tona nas duas últimas décadas
do século XX. Sigamos com Borges (idem):
O trabalhador foi duplamente penalizado: com o aumento do desconto na fonte
(imposto direto) e com a ação regressiva dos tributos sobre o consumo
(indiretos). De 1995 a 2001, a taxação na fonte cresceu, em termos reais, em
27%. Já a Cofins e a CPMF subiram 66% e 5.546%. (...) Somando os impostos
diretos e indiretos, a carga tributária sobre o trabalho beira os 40%,
considerando o consumo, a renda e os salários. Para os funcionários públicos,
alvo novamente da cólera das elites, ela chega a 58%.
(...)
Enquanto os mais necessitados foram penalizados com o aumento da
tributação, os capitalistas foram amplamente beneficiados nos últimos anos.
Desde 1995, o governo alterou a legislação tributária através de leis ordinárias,
decretos e medidas provisórias com o único objetivo de aumentar a
arrecadação para atender os credores internacionais e de beneficiar as grandes
corporações empresariais. (...) vale ressaltar algumas mais aberrantes:
- Privilégio dos juros sobre o capital próprio. Através da lei 9.249, de
dezembro de 1995, as empresas passaram a ter a possibilidade inédita de
distribuir juros aos seus sócios ou acionistas, reduzindo sua carga tributária
(...). Com isso, reduziram seus lucros tributáveis através de uma despesa
fictícia denominada de juros sobre capital próprio. Os sócios e os acionistas
que recebem esse rendimento, geralmente de valores expressivos, pagam
apenas 15% de IR. Os maiores beneficiários são as mega-corporações, já que a
maioria das empresas está descapitalizada e não tem como se beneficiar desse
incentivo. Essa renúncia fiscal é, hoje, superior a R$ 32 bilhões ao ano.
- Isenção da distribuição de lucros e dividendos e da remessa de lucros ao
exterior. Desde 1996, os rendimentos de pessoas físicas provenientes de lucros
ou dividendos não pagam mais Imposto de Renda, independentemente de
serem residentes no país ou no exterior. As remessas de lucros ao exterior
estão hoje totalmente isentas. Essa renúncia fiscal é de, aproximadamente, R$
6,4 bilhões ao ano.
74
Vide nota de rodapé nº 54.
E por aí segue o crime organizado, o que vale a pena temer e, com certeza,
odiar. Aquele que efetivamente assola as classes médias cariocas, as leitoras dos jornais
que atribuem ao crime “organizado” dos pobres cariocas o poder de criar um “poder
paralelo” ou de promover uma “guerra civil”. Essa é a objetividade que não se esboroa e
que patrocina a estagnação subjetiva que vimos no capítulo anterior. Essa é a
objetividade que jaz sob a “objetividade” dos jornalistas.
O jogo de espelhos midiático produz realmente efeitos alucinógenos.
Consegue, com a utilização de um simples recurso de justaposição de imagens sobre
outras imagens, desviar a atenção do mais vigilante paranóico. Este, sente que lhe estão
roubando, mas não sabe quem e suspeita de todos. A mídia, sempre essencialmente
presente, lhe mostra o caminho da compreensão de sua angústia, e eis que surge o
traficante em pessoa. Nesse jogo de espelhos, tudo pode acontecer, inclusive o traficante
centralizar todas as imagens. Aí, o paranóico pequeno-burguês chama a polícia contra o
ladrão errado, contra aquele que nunca entrou em sua casa armado para lhe vender
drogas. Trata-se de uma comédia sinistra.
Se formos falar dos negócios com drogas, os altos negócios, a comédia torna-
se declarada farsa. Tudo indica que os Estados Unidos, a “polícia do mundo”, estão
corrompidos até as entranhas de seus próprios bancos. Como afirma Caggiola (idem):
(...) o narcotráfico é de grande utilidade para os EUA, chegando a gerar lucros,
pois com a venda dos componentes químicos das drogas, a economia
americana recebe em torno de US$ 240 bilhões, uma parte dos quais é
investida em diversos setores da economia ou vai para os bancos. Os bancos
da Flórida são especializados em “lavar” o dinheiro dos narcotraficantes e
neles circula mais dinheiro em efetivo do que nos bancos de todos os demais
estados juntos.
Os EUA recorrem ao protecionismo para resguardar seus “narcoprodutores” da
competição externa. Utiliza desfolhantes contra o cultivo de marijuana no
México, para favorecer seu desenvolvimento na Califórnia; destrói
laboratórios de drogas proibidas no Peru e na Bolívia para reforçar o
envenenamento legalizado que realizam os monopólios farmacêuticos com
estupefacientes substitutivos; luta contra as drogas naturais e processadas em
defesa das sintéticas patenteadas e comercializadas pelos grandes laboratórios;
guerreia contra os cultivadores latino-americanos auxiliando seus velhos
sócios do sudeste asiático. A repressão extra-econômica ao tráfico é a forma
de regular os preços de um mercado potencialmente estável pelo caráter
viciante do produto. Com a “guerra ao narcotráfico”, os EUA tratam de
salvaguardar suas companhias químicas provedoras de insumos para o
processamento, propiciando, em geral, uma “substituição de importações” no
grande negócio de destruir a saúde e a integridade de uma parte da população.
Mesmo com toda essa realidade um tanto objetiva, os jornais cariocas e os
seus leitores fingem que acreditam na velha história de que é possível combater o tráfico
combatendo o vendedor. E mais, acusam o usuário de drogas de sustentar o sistema. Não
é bem o usuário que o sustenta, mas a própria lógica do sistema capitalista, que mantém
drogas proibidas como fonte de um excelente negócio. Se a polícia quisesse realmente
combater o tráfico, bastava fazer uma “ocupação” em Wall Street, ou, para não irmos tão
longe, rastrear os investimentos que financiam o mercado de narcóticos. No entanto,
como seus objetivos são outros, continua subindo os morros cariocas... e matando cada
vez mais. Se consultarmos os índices de violência no Rio de Janeiro
75
, veremos que o
único que teve um aumento significativo foi a de “Vítimas de Autos de Resistência”: de
355, no ano de 1998, para assombrosos 1.195 no ano de 2003, o que significam 367% a
mais de gente sendo fuzilada sem julgamento nesse período – mortes absolutamente
“legais”. Enquanto isso, os criminosos continuam vivos e sempre tramando novos golpes
sinistros. Este é o tipo da objetividade que não cabe no mundo das idéias midiático.
4.1.1. Crime organizado.
Uma mente sem trabalho é uma tenda satânica, diz o ditado. Se isso é
verdade, os ricos não correm riscos de assédio diabólico. Afinal, dá muito trabalho
administrar 23% de seus gastos simplesmente com o aumento do seu patrimônio
76
. É
tanto trabalho que não conseguem fazer isso sozinhos. Há toda uma trupe de
planejamento e de execução, que deve criar condições para facilitar a dura tarefa dos
bem aquinhoados. São o que chamamos de “elites orgânicas”, termo utilizado por René
Dreifuss (1987) com inspiração no conceito de “intelectual orgânico” de Gramsci (1985,
p. 7), que tinha clara a função de uma parte do empresariado na administração do poder:
Os empresários – se não todos, pelo menos uma elite deles – devem possuir a
capacidade de organizar a sociedade em geral, em todo o seu complexo
organismo de serviços, inclusive no organismo estatal, em vista da necessidade
de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe; ou, pelo
menos, devem possuir a capacidade de escolher os “prepostos” (empregados
especializados) a quem confiar essa atividade organizativa das relações gerais
exteriores à fábrica. Pode-se observar que os intelectuais “orgânicos” que cada
nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo, são,
no mais das vezes, “especializações” de aspectos parciais da atividade
primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz.
75
Ver anexo E.
76
Segundo levantamento feito por Marcio Pochman et al (2003, p. 190).
Francisco Carlos Garisto, à época presidente da Federação Nacional dos
Policiais Federais, fez, em 2002, uma denúncia importante para o desvendamento da
articulação orgânica do grande empresariado brasileiro, de algo que efetivamente
podemos chamar crime organizado, e muito bem organizado, tanto que não apenas
obtém seus lucros “legais” como ultrapassa a lei, elege e depõe presidentes. Trata-se de
um tal “Comando Delta”:
É o nome que se deu (batizado por eles mesmos) às pessoas que
verdadeiramente governam esse país desde 1500. são grande e mega
empresários nacionais e internacionais de todas as áreas, são funcionários do
executivo, judiciário e legislativo, além de organismos internacionais de
investigações governamentais, que se unem para ditar as regras de tudo e para
todos, principalmente na escolha do presidente da República. Foram eles que
decidiram que Sarney tinha que tomar posse, e não Ulisses Guimarães, como
mandava a Constituição Federal. Foram eles que decretaram que Collor tinha
que sair pela porta dos fundos, investigando e achando a corrupção praticada
por eles mesmos que financiaram a campanha de Collor e depois denunciaram
o fato. Foram eles que decretaram que FHC seria o candidato e não o deixaram
apoiar Collor como queria. Agora eles se unem desesperados para fazer o
sucessor de FHC.
Queriam Aécio como candidato, mas o teimoso Serra atrapalhou e deixou
muita gente nervosa. A imprensa noticiou reuniões “secretas” de banqueiros,
empresários e empreiteiros com Aécio, Serra e FHC bem antes do início das
disputas. Agora contam também com especuladores internacionais que ditam
normas para nossa economia com aumentos injustificáveis do dólar e de
pressões de acordos antecipados. Se não bastasse, o Comando recebeu como
membros os mais novos interessados, que são os empresários internacionais
que ganharam as Teles de presente de FHC. Esse pessoal do Comando Delta
fatura 90% do que se lucra no país e não irão abrir mão de continuar a faturar
como querem e bem entendem, em detrimento da sofrida população brasileira
(GARISTO, 2003).
O mesmo Garisto, em entrevista concedida à revista Caros Amigos de janeiro
de 2000
77
, já havia denunciado a existência desse “Comando” que, em suas próprias
palavras, seria comandado pela imprensa, por um suposto “representante maior” dela:
(...) Uma vez dei uma entrevista na televisão e falei: “O Comando Delta acaba
elegendo um presidente aí”. Só falei isso, e a entrevistadora, na hora: “Quem é
o Comando Delta?” Eu: “As pessoas ‘de bem’ do país, pessoas que comandam
a economia, o mercado”. Rapaz, deu um bode desgraçado! Ela me ligou depois
de dois dias e disse: “Garisto, o que tem de gente ligando querendo saber do
Comando Delta”. Falei: “Isso é coisa do Chuck Norris, Comando Delta 2, 3,
pára com isso! Tô fora, porque eles são muito fortes”. São unidos, ricos e
inteligentes. Aquela operação toda feita no seqüestro do Dinis, organizado,
bonitinho, vocês da mídia são os donos dela através do representante maior de
vocês (...) (GARISTO, 2002).
77
Também publicada no site www.tognoli.com/html/mid_gaga.htm.
A imprensa é certamente parte dessa engrenagem e a invenção de uma
“guerra à Beira-Mar” cumpre a função pára-vento de deixar de fora não somente das
páginas policiais essa criminalidade grã-fina, como da consciência da população,
principalmente das classes médias a quem ela prioritariamente esfola economicamente.
Entidades como o “Comando Delta” é uma das “dignas” representantes das “elites
orgânicas”, conceituadas por Dreifuss (idem, p. 27) como um
verdadeiro ‘estado-maior’ da classe dominante, (...) se ocupa não só do
preparo e do planejamento estratégico de classe – a partir de uma apreciação
sintético-analítica das relações de poder entre os diversos sujeitos coletivos
num momento/movimento em particular – mas da formulação dos principais
lineamentos de ação, frente às outras forças sociais, além da direção de toda
essa ação. Cabe ao estado-maior estabelecer a estratégia, à luz da razão fria,
organizando a paixão social e classista em forma de reflexão deliberada e de
racionalidade política. Neste contexto, (...) um plano de ação não pode ser
trabalhado e finalizado nas suas minúcias em cada particular, mas somente no
seu núcleo e desenho tendencial, já que os detalhes da ação dependem
justamente da seqüência no confronto e, portanto, dos movimentos do
adversário.
A integração dessa elite no projeto capitalista do grande empresariado
nacional e internacional já foi citada anteriormente. Podemos resumir esse projeto com o
título de um artigo de Christa Berger (2002, p. 273): “Do jornalismo: toda notícia que
couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar, a gente publica”. O boom midiático
não corresponde a um fenômeno ligado a um agenciamento da subjetividade, mas torna-
a evanescente na sua concretude semântica, na essencialização de um campo que cabe à
existência, à construção de uma estratégia perante todos os tipos de jogos, “finitos” ou
“infinitos”. Na redução de tudo à disputa econômica, à vitória a qualquer custo, num
jogo de sociedade opressivo, sem descanso ou tempo para ir ao banheiro
78
. Uma pequena
classe é hoje detentora não somente dos modos de produção de riqueza material, como
dantes se resumia, mas, principalmente hoje, dos modos de produção de subjetividade,
como compreendem Guattari e Rolnik (1999). Podemos entender, então, que o discurso
existencialista da Economia, que desloca a essencialização para a técnica “que tudo diz”,
vale apenas para uma pequena parcela de toda a população. Todo o resto, até mesmo os
“excluídos” e principalmente a classe média com seus intelectuais orgânicos
“integrados”, “de sucesso” ou “cooptados”, como preferem Buarque e Pontes (1976),
está fora desse discurso, vive com a essência precedendo a existência, ainda atada a um
78
É interessante ler o trabalho de Janice Caiafa (2002) sobre a vida nos ônibus, os “coletivos” da cidade.
Motoristas e cobradores têm a sua vida absolutamente resumida ao esquema comercial dos proprietários das
empresas. Descansar ou ir ao banheiro, por exemplo, não está na pauta desse esquema.
mundo ideativo, cognitivo e cultural que não lhe deixa trajetos subjetivos a não ser
anular a própria subjetividade em nome “dos fatos”. A “objetividade” midiática é a
essência da estupefação nirvânica em que se acha essa enorme faixa populacional que
englobamos nas classes médias urbanas. A existência é simulada, vicária, com a emoção
do cigarro sem nicotina ou do café sem cafeína, e tudo está sobre controle,
essencialmente controlado.
Para existir é preciso o referencial da liberdade e da náusea que ela
necessariamente provoca, como brilhantemente ilustra Sartre (1967) em um de seus
romances. No mundo midiático ocidental a náusea está barrada, a não ser como efeito
espetacular, mais um “fato ônibus” como todos na grande imprensa. Não há liberdade
quando não há a possibilidade de, pelo menos, pretender regurgitar boa parte do que o
outro faz de nós, e, num mundo especular como este que estamos abordando, o vômito
tende a voltar como alimento. A lógica existencialista que sugere que o “importante não
é o que o outro faz de nós, mas o que fazemos com o que o outro faz de nós” não chegou
às classes médias urbanas. E o jornalismo, por conta disso, pode falar sobejamente sobre
a sua própria suposta qualidade objetiva. O grande empresário do ramo de comunicações
está entre a elite orgânica que
(...) se diferencia do conjunto das classes dominantes e mesmo dos interesses
representados no bloco de poder do qual faz parte, lidera e viabiliza, operando
assim como fator de poder num nível especificamente político. Embora
organicamente vinculada ao seu universo sócio-econômico e cultural, esta
diferenciação é imprescindível para uma intervenção política eficaz e
eficiente, na medida em que a classe dominante é uma na sua diversidade de
unidades de acumulação competitivas (...) (DREIFUSS, idem, p. 24).
Isso significa um enorme poder dessas empresas no sentido de patrocinar
uma realidade adequada aos seus interesses e de seus “anunciantes”. O jogo é fechado,
as versões do fato são as versões que chegam fechadas dos controladores do tráfego de
informações. Quem manda são as regras que norteiam o jogo econômico financeiro – o
estatuto do cassino global a que se refere Robert Kurz (1987), ou o do “capitalismo de
cassino”, como prefere Ralf Dahendorf (1992). Elas ditam a verdade no plano que lhes
interessa: o dos valores, sejam eles monetários ou morais, a essência de que tanto
falamos. Os grandes investidores e os banqueiros de investimentos têm não apenas as
cartas nas mãos, além de algumas na manga: são os donos do cassino e determinam
quem ganha e quem perde entre o “rebotalho” dos investidores de menor expressão. No
plano da subjetividade dos losers, forjam-se cidadãos coartados na sua capacidade de
reflexão sobre as forças que os governam ou, principalmente, sobre aqueles que
movimentam essas forças.
Assim, o estatuto do “cassino global” tem pelo menos duas versões: a que
circula entre os “insiders” e a que é vendida aos “outsiders” pela grande imprensa.
Tomemos, por exemplo, a série de reportagens publicadas no jornal Folha de São Paulo,
tendo como foco a crise asiática de outubro de 1997. O cidadão que recorreu a esses
veículos para compreender a crise, pôde saber um pouco mais do que aconteceu do que
outro, que se restringisse ao noticiário televisivo, por exemplo, sendo este muito mais
superficial – pautado mais em imagens dramáticas de operadores desesperados,
narrações trágicas e comentários cronometrados do que em propostas de interpretação
dos acontecimentos. No entanto, para melhor entender o fato, necessitava ler muitas
informações nas entrelinhas, como faziam vários brasileiros durante os tempos da
ditadura militar. Há, nesses jornais, uma clara tendência a noticiar a “crise” com o
código ditado pelos seus promotores, ou seja, ressaltando os prejuízos e omitindo os
lucros. Sob outro vértice, focam-se os problemas, globalizando-os, e se mantêm em
segredo os resultados lucrativos de alguns agentes financeiros, que agem como os
ladrões, no breu da noite midiática.
Vejamos alguns breves trechos de um texto, retirado do jornal Folha de São
Paulo, sobre o “ataque especulativo”
79
de 97. Poderemos perceber como se referem a
algo vago, usando termos que não passam de palavras-ônibus, a começar pelo termo
“ataque especulativo”. O que é isso? Um ataque de especulação financeira, movido por
especuladores, podemos depreender. Mas, afinal, quem são esses especuladores? Como
atacam? Tomemos a matéria publicada no dia 29
de outubro de 1997, no caderno
Dinheiro, p. 10. É bem didática, tenta desvendar, para o neófito, as noções básicas dos
movimentos das bolsas de valores: explica o que é, o que são ações, quais os seus tipos,
etc.. E expõe, na versão oficial, no “dialeto do mercado”, o que é o ataque especulativo:
O ataque especulativo começa quando um investidor (ou um grupo de investidores)
79
O mecanismo básico do “ataque” é produzido quando papéis são comprados e logo vendidos com rapidez e
com lucratividade – com o apoio dos bancos de investimentos, que indicam a compra num determinado
momento e revertem a tendência após a venda. Os que ficam com o “mico”, isto é, com os papéis – títulos ou
moedas nacionais – que perdem valor rapidamente, vendem com menor lucratividade, sem ela ou, simplesmente
com prejuízos aos que antes venderam e causaram a baixa. Estes lucram duas vezes e, se há espaço, ou seja, se o
“ataque” é eficaz, vão mais longe e triplicam ou quadruplicam suas posições anteriores. As perdas são
globalizadas: milhões de investidores pequenos e médios, os que não participam do seleto grupo dos que podem
influenciar o “mercado” – que funciona como um sistema de pilhagens – não conseguem deter o prejuízo,
enquanto os “influentes” – os que agem na obscuridade midiática – lucram. As economias nacionais cambaleiam
percebe que a economia do país-alvo não é capaz de arcar com a remuneração que tem
atraído o capital. Isso pode acontecer, por exemplo, quando o país apresenta resultados
negativos nas contas externas, o que pode levar à desvalorização da moeda local”.
É interessante tratar o tema assim. Trata-se de um saque – no sentido
bancário e no de apropriação de bem alheio
80
–, mas o texto trata-o como um fato do
“mundo dos negócios”. Dada sua natureza, poderíamos, recorrendo a temas de outra
editoria, a policial, tratá-lo de outra forma. Quem sabe, assim o leitor entendesse melhor
o fato, menos “objetivado” e, dessa forma, com maior isenção. Por exemplo, uma
metáfora como a de um assaltante ou uma malta de desordeiros que elege uma vítima,
um “otário-alvo” que “anda dando mole” no “mercado”. Descobre seu endereço e
vistoria portas e janelas, a procura de uma entrada fácil. Pelo lido no texto, fica
implícito o fato de que esses bandidos fazem dessa atividade o seu “ofício”, o seu
“ganha-pão”. .
Prossigamos com outro trecho do texto da Folha: “O investidor começa então
a vender ações e títulos. Com o dinheiro obtido, passa a usar a moeda para comprar
uma grande quantidade de dólares. O aumento pela demanda de dólares valoriza a
moeda estrangeira, o que pode levar a uma desvalorização da moeda local (o caso da
Tailândia) ou o aumento da taxa de juros (Hong Kong)”. Dito assim, parece um
divertido jogo. No entanto, podemos contar a história de outra forma: O bando invade a
casa, vasculha e saqueia tudo o que acha, fazendo com que o “otário-alvo” ainda pague
pelo que lhe foi roubado. São atividades com a mesma natureza, com o mesmo fim, mas
não são tratadas de forma igual pela mídia. O investidor que pratica esse tipo de
rapinagem financeira e o bandido urbano jogam sob as mesmas regras, mas só um deles
tem o nome divulgado nos jornais.
O texto da Folha vai mais além: “Com medo da desvalorização de suas
ações, que são negociadas na moeda local, outros investidores correm para vendê-las.
Essa corrida aumenta ainda mais a demanda por moeda forte”. A quadrilha chamou
outros comparsas, e todos fazem a festa com a desgraça do “otário-alvo”, o “país-alvo”.
e ficam mais vulneráveis, elevam juros e atraem mais especuladores, correndo sempre o risco de novos
“ataques”. Eis uma boa fórmula de globalizar prejuízos e concentrar lucros.
80
Quanto ao argumento que dispõe ser o investimento em bolsas de valores sujeitos a essas “variações do
mercado”, e que todo aquele que entrar nessa selva sabe as feras que pode encontrar, lembramos que o “ataque
especulativo” tem repercussões sobre toda a economia. Quando “crises” como essa ocorrem, aqueles que nada
têm a ver com ela podem ser as maiores vítimas, pois a “perda de credibilidade” do país implica menos
investimentos e empregos e os “saques” dos especuladores retiram recursos que poderiam estar disponíveis para
programas sociais. Mas, não foi exatamente para isso que o neoliberalismo “liberou geral”?
Ou, numa outra metáfora, poderíamos falar de um ataque de desordeiros contra uma
mocinha indefesa na madrugada feroz do “cassino global”. Como o “ataque” se dá
sempre contra países de baixo desenvolvimento econômico, a metáfora da mocinha é
perfeita: são jovens e geralmente quentes. Ela “satisfaz” a todos, e ainda tem que pagar
pelo estupro.
O texto da folha fala de “Velocidade”: “Um investidor demora dois dias para
receber o dinheiro de ações vendidas na Bolsa de São Paulo. Se realizou a venda ontem,
pode comprar dólares hoje para pagar amanhã. Amanhã mesmo, o dólar pode ser
remetido eletronicamente para o exterior.” Ou seja, os desordeiros têm máquinas
possantes para fugir. Nem seria necessário, pois como o movimento de capitais é
desregulamentado, ou seja, não pode ter limites para que seja feliz e realize a utopia
malsã da “mão invisível”, não há polícia, pois tudo corre “legal”. Em outras palavras, o
mercado financeiro é um território livre para o roubo e o estupro: “A notícia se espalha.
Investidores de outros países ‘emergentes’ temem ataques especulativos fora do lugar
em que começou a crise, e buscam vender também suas ações. Nos países
desenvolvidos, as ações das multinacionais instaladas nos países emergentes também
caem”. Mas a imprensa continua tratando como bandidos apenas os “bandidos” pobres.
Vejamos um exemplo disso. Em 6 de maio de 2003, um dia depois de uma
estudante de enfermagem ter sido atingida por uma bala de pistola na Universidade
Estácio de Sá, no bairro do Estácio, um locutor da rádio CBN (sigla de “Central
Brasileira de Notícias”, AM, 860 KHz) chamado Sidnei Resende, que apresenta um
programa local que começa às 9h30m e termina ao meio-dia, ilustrou de forma brilhante
como a mídia – e boa parte da sociedade – trata os crimes de ricos e de pobres.
Resende, na chamada para o seu programa, aproximadamente quinze minutos
antes de seu início, anunciava dois dos assuntos que seriam abordados: o chamado
“Propinoduto” – a descoberta e prisão dos participantes de um “esquema” de desvio de
recursos advindos de multas a grandes empresas por parte de bem remunerados fiscais
estaduais – e o incidente na faculdade. Com relação a este, o locutor afirmava ter provas
de que o tiro teria sido dado por traficantes do morro do Turano: uma gravação
telefônica entre dois “bandidos” da localidade. Quanto ao primeiro, Resende noticiava
que os fiscais haviam sido transferidos para uma delegacia no Leblon. O curioso é que,
ao tratar dos fiscais, Resende inicialmente se referiu a eles como “bandidos”, mas
imediatamente se corrigiu e tratou-os como “suspeitos”, com um certo ar respeitoso na
voz.
No programa, Resende pôs no ar a gravação da chamada telefônica entre os
“bandidos” – estes, sempre tratados por bandidos. Na gravação, os “bandidos” falavam
algo como “barbarizar o asfalto”, pois a polícia estava subindo o morro não para
prender, mas para matar. Efetivamente, pouco antes da jovem estudante ter sido atingida
enquanto fazia um lanche na faculdade, a polícia havia, como costumeiramente ainda
faz
81
, invadido o morro e matado dois “traficantes” – não dois “suspeitos” de fazer parte
do esquema do tráfico de drogas, compreendamos bem. A ligação de um fato a outro
parecia, para o “sagaz” Sidnei Resende, a comprovação de que estávamos diante de mais
uma “violência do tráfico”. Tudo bem, mas havia um porém que, surpreendentemente,
foi mencionado: a gravação era de oito meses antes. E, mesmo assim, foi usada como
“prova” no julgamento sumário do “magistrado” Sidnei Resende.
Parece incrível que uma gravação feita quase um ano antes de um incidente
como aquele possa ser usada como prova de algo. Resende, porém, não satisfeito, ainda
torceu as palavras dos “bandidos”: enquanto eles falavam que a polícia ia ao morro para
matar, e nada mais que isso, o perspicaz locutor dizia, ultrajado, que eles reclamavam,
“vejam só!” – bradava –, da polícia que “atrapalhava os seus negócios” subindo o morro.
Francamente, seria difícil encontrar um exemplo melhor do cinismo com o qual a mídia
trata esse assunto. Certamente, o locutor da rádio “que toca notícias” não é estúpido nem
tampouco deve ter interesses diretos na criminalização dos sujeitos que falavam ao
telefone ou na descriminalização dos fiscais. Com certeza, apenas reproduz o discurso
da empresa que sua voz representa. Aliás, de que voz falamos? Ao menos nesse
episódio, a voz de Resende não foi mais que um playback dos interesses dessa empresa e
de uma parte da sociedade em que estão inseridos ele e as Organizações Globo,
proprietárias da CBN.
Posturas como essa levam a um inequívoco prejuízo da possibilidade de
pensar a totalidade da conjuntura na qual vivemos. Provavelmente, como dissemos com
relação a Sidnei Resende, isso não acontece por estupidez ou más intenções explícitas. O
enfoque dado à realidade de uma cidade como o Rio de Janeiro – inserida no grande
conjunto das cidades do Terceiro Mundo colonizadas pelo espírito mediterrâneo –
depende do ângulo em que se dá. Se acreditarmos que, efetivamente, há pessoas boas,
“de bem” ou “do bem”, e pessoas más, os “bandidos”, gente “do mal”, vamos acabar
facilmente sendo iludidos pela localização apressada dessas qualificações em uns ou
81
Vide nota de rodapé nº 9..
outros. Estaremos, nesse caso, presas do mesmo discurso excludente que norteou os
gregos a considerar “bárbaro” todo aquele que não falasse como eles, ou que
determinava a “limes” romana, com o propósito de delimitar a ordem do caos. Em outras
palavras, não estaremos falando, estaremos sendo falados, não exatamente pelo “Outro”,
enquanto alteridade, mas pelo “Um”, o magnético demiurgo midiático que dita o que
devemos pensar, dizer, sentir e mesmo sonhar.
Essa impressão nos ficou mais forte quando, no dia 12 de julho deste ano de
2004, assistimos estupefatos a uma entrevista com David Zylbersztajn, ex-secretário de
Energia de São Paulo, meio parente do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e
diretamente envolvido na submissão do país diante do Consenso de Washington, afirmar
em público, em programa na emissora Globo News, no meio da tarde de um domingo,
que o ato de baixar o pedágio – acontecido no Paraná – é uma medida populista. Isso
dito de forma ultrajada, é claro. Disse mais, que as contas de serviços públicos nacionais
teriam que subir muito acima do índice inflacionário e bem mais acima do que a
capacidade de negociação salarial de qualquer categoria simplesmente porque seria
imperativo “cumprir os contratos” estabelecidos anteriormente – pelo governo de seu
sogro, ele esqueceu de dizer.
Não houve qualquer editorial ultrajado, nenhuma manifestação das
autoridades indignadas, nenhuma passeata com roupas brancas na Avenida Vieira Souto
repudiando a declaração infeliz. Alguém chama de “populistas” medidas tomadas para
reduzir os encargos sobre o escoamento da produção, corrigindo contratos que davam
lucros astronômicos para as empresas que venceram as licitações dos pedágios e, de
quebra, deixa claro que todos devemos pagar reajustes irreais nos serviços que nos são
oferecidos pelo monopólio extorsivo garantido pelas privatizações, e nada acontece. Se
fosse Fernandinho Beira-Mar, objeto de nossa dissertação, a dizer algo semelhante, nas
palavras e termos que ele e sua classe social conhecem e proferem, haveria uma semana
de declarações indignadas de todas as autoridades na imprensa e revolta da classe média
“aterrorizada”. Tudo acontece como afirma Stephen Pfhol (1985, p. 4),
Consider the burglar. Late at night he may sneak into your house, rip off your
stereo, and self it for a fraction of this worth to a “fence” who deals in stolen
menchandise. If caught the burglar runs the risk of being incarcerated as a
hard-core criminal deviant. But what about the respectable corporate executive
who participates in decisions to manipulate gasoline prices or build unsafe
automobiles? The executive may cause society far more damage than any
burglar. Yet, if caught, the executive is far less likely to be viewed as a serious
deviant.
Será esse o “deserto do real”?
4.1.2. Crime “organizado”.
Bem sabemos que o conflito social carioca se acirrou com a entrada em cena
de um componente novo: o incremento da fervura desse caldeirão pelo que chamamos de
“crime organizado”, que é, como estamos percebendo, um termo geralmente adequado
para enfeixar uma certa volumosa movimentação econômica que se dá entranhada na
oficialidade, mas que, porém, não aparece no fisco. Coisa de “gente bem”, não de
favelados. Porém, quando a mídia carioca fala em “crime organizado”, usa o termo para
designar apenas as quadrilhas de pobres, e, atribuindo-lhes organização está, à parte a
idealização perversa contida nesse pré-conceito, tecendo mesmo um elogio. Jairo
Santiago (2004) mostrou como as definições dadas para o “crime organizado” carioca
são falhas e tendenciosas, servindo mais para o assédio da mídia à emoção do que
propriamente para informar ou permitir algum tipo de reflexão. Como afirma Cid
Benjamin (1998, p. 111):
(...) para Hélio [Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de
Janeiro entre os anos de 1995/1997] a organização dos traficantes muitas vezes
tem sido superestimada pela imprensa. Grupos como o Comando Vermelho
foram mitificados. Algumas quadrilhas têm articulação entre si, o que é
normal. Podem emprestar dinheiro ou armas umas às outras. Podem, em certos
momentos, unir forças contra um inimigo comum ou fazer uma “caixinha”
para ajudar antigos chefes presos. Mas, segundo ele, considerar esses laços
como característicos de uma grande organização criminosa é exagero. E
comparar esses grupos com a Máfia é mais do que exagero, é deturpação
grosseira da realidade. Para Hélio, essa história de Comando Vermelho é algo
que foi estimulado pela imprensa, de um lado, e por policiais corruptos, de
outro.
A questão parece ser mais de uma aliança entre a vontade de comer de
grandes comerciantes internacionais e a fome de alguns pobres que percebem na vida
dita criminosa a oportunidade de ascender socialmente. O caso do tráfico de armas é
emblemático:
Veja só, a Líbia não consegue comprar armas. Se o Kadhafi (governante da
Líbia) não consegue comprar, por que os traficantes do Rio conseguem?
Acaba, então, acontecendo o seguinte: a concentração de renda e o desemprego
repõem os bandidos que a polícia prende e o comércio internacional repõe as
armas que ela apreende (HÉLIO LUZ apud BENJAMIN, idem).
Não há como crer que negócios, como o de narcóticos e de armamentos
militares, que arregimentam uma incomensurável quantidade de dinheiro, possam estar
nas mãos de gente como Fernandinho Beira-Mar, o ícone midiático do “crime
organizado”. O negócio de drogas, por exemplo, tem vários níveis de estratificação, com
relação à tarefa desempenhada. Há o plantio, o processamento, o transporte, a
distribuição e a venda. A maior parte dos “líderes do crime organizado” apontados pelos
jornais cariocas está na ponta desse processo, na venda, o negócio menos lucrativo e o
mais perigoso. São, poderíamos sem sombra de dúvida dizer, os peões da empresa, os
office-boys da corporação. Beira-Mar, por sua vez, conseguiu ascender um pouco mais
na vida bandida, e era, ou é, distribuidor, uma espécie de “gerente de filial”. Ainda
pouco para poder desfrutar do status de liderança a não ser sobre os peões. Num plano
social mais abrangente, pode ser considerado um “emergente”, assim como Jair “rei das
quentinhas” Coelho ou Vera Loyola. Assim como eles, Beira-Mar “desemergiu”.
A maior organização coletiva que se pode perceber nos grupos de venda de
droga nas favelas cariocas está projetada na identidade com um ideal, uma espécie de
referência imaginária a um estado idílico no qual há não somente um espírito de
proteção a seus membros – motivo pelo qual nasceu – mas também uma projeção
norteadora de um “quadro revolucionário” semelhante ao idealizado pelos
revolucionários marxistas, o Comando Vermelho Rogério Lemgruber, o CVRL.
Diferencia-se, assim, das outras facções nomeadas pela mídia, o Terceiro Comando (TC)
e a Amigos dos Amigos (ADA), diretamente voltadas para os negócios, sem grandes
pretensões além disso. Os membros do CV tem esse diferencial e a criação dessa
“organização” se deu exatamente por pessoas politizadas e escoladas na vida bandida,
que compreendiam esta como um revés patrocinado pelo massacre social das elites. Os
membros do Comando Vermelho são como irmãos, o que não impede que haja eventuais
e sangrentas rusgas fraternais. A história de sua formação é emblemática num ponto
crucial: a relação de seus fundadores com presos políticos no Presídio da Ilha Grande,
litoral carioca.
Carlos Amorim (1993 e 2004), afirma ter havido não apenas um contato na
Galeria de Segurança Nacional, cujos prontuários eram marcados com uma tarja
vermelha, daí o nome Falange Vermelha, inicialmente, e, depois, Comando Vermelho –
como veremos mais tarde, aparentemente de autoria do diretor do presídio à época. Para
Amorim, os “bandidos” presos aprenderam a importância da organização e inúmeras
táticas de guerrilha urbana, que viriam a ser utilizadas para assaltos a bancos. O motivo
de se reunir assaltantes de banco aos militantes políticos tinha sido exatamente a
identidade entre os dois grupos no que dizia respeito ao alvo de suas ações, as agências
bancárias. A estratégia para arrecadar fundos dos grupos de ação política como a
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária
Palmares (VAR Palmares) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) era a
mesma dos bandidos que com eles conviviam no pavilhão separado dos demais. Como
relata William da Silva Lima (1991, p. 39), um dos fundadores do Comando
82
, num dos
assaltos que fez para levantar algum dinheiro para si próprio, foi preso e torturado, como
se pertencesse à guerrilha urbana:
Embora já tivesse consciência da situação política do país, não pensava em me
ligar a nenhuma organização revolucionária. Tampouco me interessava
acumular propriedades: o negócio era viver melhor, enquanto fosse possível.
Bater carteiras na rua, fazer pequenos furtos, assaltar transeuntes – isso nunca
mais. Saí da prisão [ele se refere à Casa de Detenção de São Paulo, o antigo
presídio do Carandiru, no qual esteve preso no início da década de 70], na qual
resolvido a buscar nos bancos, à mão armada, os recursos que não tinha e que
não obteria por meio de trabalho comum, meramente escravizante. Havia
riscos, é claro, mas me dispunha a enfrentá-los. A prisão me profissionalizara
no crime. Com quase 30 anos de vida e mais de dez na cadeia, não via como
voltar atrás.
Não tardei a ser preso de novo, na fuga de uma ação. Ironia: enviaram-me para
o DOI-CODI, organismo do Exército encarregado da repressão política, na rua
Barão de Mesquita, onde fui torturado – choques, pau-de-arara – para
confessar a que organização política pertencia. Quatro dias levaram para se
convencer que eu não era um “subversivo”.
Pelo que Silva Lima relata nessas e em outras linhas, já havia nele uma certa
noção da realidade brasileira e o encontro com presos de organizações da ação armada
revolucionária apenas veio a pô-lo em contato mais próximo com uma nova
“subjetividade”, um novo sentido para os seus atos:
Cheguei na Ilha, moído de pau, direto para o lado B da segunda galeria. Era a
mesma que, anos antes, recebera os marinheiros e outros presos políticos da
velha geração, depois da fuga da Lemos de Brito [uma fuga comandada por um
grupo armado que libertou presos políticos dessa penitenciária, em 1969, o que
levou ao isolamento desses presos]. Gradativamente libertados, a partir de
1971 foram substituídos pelo grupo ao qual me integrei. Assaltáramos bancos,
mas sem vinculação com as organizações armadas, que faziam o mesmo num
contexto de luta contra o regime de exceção. Mesmo assim, para preservar o
que os juristas chamam de isonomia – mesmo tratamento jurídico para os
mesmos crimes –, estávamos entregues a foros militares e submetidos a todos
os rigores da Lei de Segurança Nacional, instrumento de clara inspiração
política. Essa ambigüidade tornou-se nossa marca registrada, inclusive do
ponto de vista subjetivo. (SILVA LIMA, idem, p. 45).
82
Trata-se do “Professor”, que, segundo Carlos Amorim (ibidem) teria sido o idealizador da organização inicial
da Falange Vermelha, que teve como líder mais ativo e destacado o assaltante Rogério Lengruber, o “Bagulhão”,
ao qual a agremiação citada teria homenageado no seu nome.
O estabelecimento desse estado ambíguo, foi fundamental para a organização
da Falange e do Comando. Se tomarmos o relato do “Professor”, não foi tanto o contato
com os demais presos da galeria, os políticos, mas a condição de isolamento e de
integração que adveio disso, somados a uma consciência política que já se desenvolvia
em outros tempos e em outras cadeias:
Presos comuns têm, em todo o mundo, certa tradição de adesão a movimentos
revolucionários. Aqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiu
muitas lições do contato havido na década de 1930 com os membros da
Aliança Revolucionária Libertadora, encarcerados na Ilha Grande. Quando os
presos políticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do Estado Novo,
deixaram nas cadeias presos comuns politizados, questionadores das causas da
delinqüência e conhecedores dos ideais do socialismo. Essas pessoas, por sua
vez, de alguma forma permaneceram estudando e passando suas informações
adiante. Sua influência não foi desprezível. Na década de 1960 ainda se
encontravam presos assim, que passavam de mão em mão, entre si, artigos e
livros que falavam de revolução. De vez em quando apareciam publicações do
Partido Comunista, então na ilegalidade. Lembro-me, por exemplo, do velho
João Batista, que, na rua, batia carteiras e, na prisão, ficava lendo e escrevendo
pelos cantos do pátio, sempre disposto a orientar e ajudar os demais. Lembro-
me também de Mardoqueu, que desde a época do Estado Novo freqüentava a
cadeia, onde alternava as atividades de encadernador de livros e divulgador de
idéias de esquerda. (SILVA LIMA, idem, p. 27)
Havia, pelo menos por parte de Silva Lima, já uma consciência política,
envolvendo uma adesão ao projeto revolucionário marxista, que viria a ser importante na
Ilha Grande dos anos 70. Segundo ele, ao contrário do que Amorim (idem) afirma, não
houve tanta participação dos presos políticos da Galeria de Segurança Nacional na
organização dos “presos comuns”:
Nossa marca objetiva era a situação de isolamento. Depois de permanecerem
algum tempo em quartéis militares, a maioria dos presos oriundos das
organizações armadas dos anos 70 também tinha regressado à Ilha Grande.
Alegando incompatibilidade de hábitos e de ideologias, eles pediram que a
galeria fosse dividida, o que foi feito, cabendo a nós a parte conhecida como
Fundão. Eram vinte cubículos individuais, ocupados porém por quatro a cinco
pessoas, em regime de tranca dura, com direito de circulação pela galeria
apenas nos instantes que antecediam o café da manhã e o almoço, servidos em
grandes panelas. Abertos os cubículos, fazíamos filas para encher nossos
pratos com a combinação quase invariável: feijão-com-arroz e carne-com-
batata. Além desses parcos minutos, meia hora de banho de sol e curtas visitas
quinzenais era o tempo disponível fora das celas. Quase 90 homens assim
permaneciam, isolados duplamente – da comunidade em geral e dos demais
presos – e com identidade social e jurídica pouco definida: apesar de
submetidos a tribunais de exceção e combatidos pela máquina repressiva do
regime, não éramos considerados presos políticos. (SILVA LIMA, idem, p. 45)
Tendemos a crer na versão de Silva Lima, pois incorpora diretamente um
histórico de integração entre ideais de organização política à consciência difusa de
“bandidos comuns” sem clareza do significado político de suas ações. Talvez a versão
de Carlos Amorim seja “chapa branca” demais para admitir que “bandidos” pudessem
pensar por si próprios. De todo modo, se a convivência com os presos políticos da Ilha
era parca, havia experiências anteriores que parecem ter sido aproveitadas para reforçar
a estratégia de sobrevivência pautada pela união, pela disciplina e pela organização de
ações planejadas, que começaram contra o grupo que dominava, com extrema violência,
o “Caldeirão do Diabo”, o presídio da Ilha Grande, onde, como reza a tradição e como
canta Bezerra da Silva no samba intitulado “Ilha Grande”, “o filho chora e a mãe não
vê”. Além disso, há o fato de que outro “bandido”, este muito conhecido nos anos 70,
Lúcio Flávio Vilar Lírio, também tinha, segundo José Louzeiro, citado por Amorim
(1993, p. 52), uma aproximação com grupos armados de orientação política:
Lúcio era meu amigo – conta Louzeiro. Eu era um repórter policial conhecido
e ele sempre me procurava nos raros momentos de liberdade que tinha. Foi
assim que soube dos detalhes da história dele e pude escrever o livro e o
roteiro do Passageiro da Agonia para o cinema. Foi assim também que soube
da cooperação com Lamarca [Carlos Lamarca, um capitão do exército que se
engajou na guerrilha urbana nos anos 60, líder da VPR]. Não posso precisar
como isto aconteceu, mas parece que envolveu dinheiro e armas. Lúcio era
muito consciente. Sabia que era bandido por desajuste social.
Várias condições, entre elas o contato com os presos políticos da galeria da
Lei de Segurança Nacional, parecem ter influenciado a formação do Comando
Vermelho. A condição peculiar de estar num campo de ambigüidade, isolados dos outros
presos muito embora não houvesse diferenças fundamentais entre eles, viabilizou a
organização e a união necessárias para o enfrentamento de boa parte das dificuldades
encontradas, principalmente a cruel ditadura interna exercida pela Falange Zona Norte
ou Falange Jacaré, segundo Amorim (idem) a precursora do Terceiro Comando. O
isolamento, se era ruim por um lado, trouxe maior integração entre os membros do
Fundão. Some-se às condições anteriormente citadas a iniciação política de presos como
William da Silva Lima. E é este quem afirma que a designação Comando Vermelho
surgiu não do grupo, mas do diretor do presídio:
Na prisão, “falange” quer dizer um grupo de presos organizados em torno de
qualquer interesse comum. Daí o apelido de “falange da LSN”, logo
transformada pela imprensa em “Comando Vermelho”. Que eu saiba, essa
denominação apareceu pela primeira vez num relatório de fins de 1979,
dirigido ao Desipe pelo Capitão PM Nélson Bastos Salmon, então diretor do
presídio da Ilha Grande: “Após os assassinatos de setembro de 1979, quando
foi quase totalmente exterminada a Falange do Jacaré, a Falange da LSN, ou
Comando Vermelho passou a imperar no presídio da Ilha Grande e a comandar
o crime organizado intramuros em todo o sistema penitenciário do Rio. Com
isso, as outras falanges ficaram oprimidas, passando a acatar as ordens da
LSN, sob pena de morte”.
Estava aberta a temporada de caça contra nós, completamente demonizados.
As palavras não são inocentes: éramos um comando, o que em linguagem
militar denomina o centro ativo, cuja destruição paralisa o inimigo; como se
isso não bastasse, éramos também “vermelho”, adjetivo que desperta velhos e
mortais reflexos em policiais e militares. Coincidência ou não, vivera-se o
ocaso da guerrilha urbana, fenômeno que deixara na orfandade um aparato
repressivo ainda cheio de vigor, desejoso de exibições de força e utilidade.
(SILVA LIMA, idem, p. 83)
O diagnóstico parece correto. Como bem ilustra Zizek (2003a), não é correto
falar em “choque de civilizações” – se referindo ao suposto confronto entre o mundo
ocidental, leia-se Europa e Estados Unidos, e o fundamentalismo islâmico – mas de
“cismas” no interior delas, sendo que uma das partes do “racha” ocidental veio a gerar a
facção contrária contra a qual peleja, formada por agentes de um terror que mais têm
afinidades do que divergências com o terror do ocidente, eminentemente estatal –, tendo
sido inventados e financiados por este, como ocorreu com Osama bin Laden durante a
ocupação soviética no Afeganistão. A mesma compreensão se aplica no caso carioca. O
maior incentivo à formação do tal “Comando” veio, como bem se pode perceber, das
próprias autoridades que o viabilizaram e, inclusive, batizaram. Fomentando a violência
nas cadeias e fora delas, participando ativamente dela – com a polícia sendo usada quase
que exclusivamente para combater não exatamente o crime, mas toda uma população
pobre que, desde o inchamento urbano do Rio de Janeiro, foi pré-classificada como
potencialmente criminosa – o Estado criou as condições e alimentou as circunstâncias
que geraram o problema que hoje se apresenta incontornável. A sua parceira nessa
empreitada foi, inegavelmente, a imprensa. Foi esta que passou a divulgar para a
população versões irreais sobre a organização que surgira no Fundão da Ilha Grande:
De volta à rua depois de longos anos de sofrimento, eu e alguns companheiros
sentimos necessidade de ajudar quem havia ficado na cadeia. Mais uma vez,
um gesto normal de solidariedade não tardou a ser apresentado à opinião
pública de forma distorcida: segundo os jornais, formara-se um pacto, pelo
qual se destinavam 10% dos assaltos para o financiamento de fugas. Não era
essa a única fantasia: falava-se em guerra na Ilha Grande para obter o controle
do jogo e do tráfico dentro dos presídios. Ora, todos sabem que comércio
algum pode gerar grandes lucros abastecendo uma freguesia miserável. Por
que correr riscos imensos, traficando produtos ilegais para dentro das cadeias,
se o poder aquisitivo da massa é tão baixo? Alguma droga que entra é agrado,
e não comércio atacadista. Nem vale a pena morrer por isso.
Nunca houve tal guerra, nem tal tipo de pacto, nem a anunciada “falange”, sua
patrocinadora. O que se fez foi completamente espontâneo. A ajuda recebida
na cadeia nunca ultrapassou aquele mínimo necessário para diminuir a miséria.
Infelizmente, nunca contamos com montanhas de dinheiro para financiar
fugas. Aliás, é bom lembrar que assaltar bancos é menos rendoso do que se
diz, pois os montantes divulgados são sempre maiores do que os reais. Quem
mais rouba, não sei. Os bancários talvez roubem do banco. Ou – quem sabe? –
o banco rouba do fisco ou do seguro tudo o que perde para nós. Os riscos é que
são todos nossos, coadjuvantes na indústria do crime. (SILVA LIMA, idem, p.
82)
A entrada em cena de uma verdadeira organização com interesses
econômicos precisos, o narcotráfico, trouxe a certeza de que, se não eram reais as
perorações midiáticas, os “bandidos” as incorporaram e, a partir de então fechados no
“jogo finito” da economia, aparentemente morderam a isca para lucrar. Entraram na
vida, romperam a barreira que os fazia ser sempre o lixo da história. Se era para ser
bandido, então que se fosse. Se há um jogo, é preciso jogá-lo, com audácia e virilidade.
É um jogo masculino, um “jogo finito” em sensibilidade, mas infinito em inteligência,
no qual a posse do linguam – o dinheiro – é o prêmio que dá acesso a uma vida
“existencializada”. Há dois fatores a considerar nesse ponto:
1. a opção pela “vida bandida” é um ato de vida, a instituição de um dasein, abrindo
o campo experiencial, existencializando-o;
2. essa mesma opção, na medida em que se torna eminentemente comercial, é
essencializada como “a” realidade possível.
Cremos que ambos podem ser pensados a partir de um trecho de Henri Miller
no seu brilhante Trópico de Câncer:
Por uma razão qualquer, a compreensão de que nada havia a esperar teve
salutar efeito sobre mim. Durante semanas e meses, durante, na realidade, toda
a minha vida, eu tinha esperado que acontecesse algo, algum fato extrínseco
que alterasse minha vida; e agora, de repente, inspirado pela absoluta
desesperança de tudo, sentia-me aliviado, sentia como se tivesse arrancado um
grande peso de meus ombros. (...) Caminhando em direção a Montparnasse,
decidi deixar-me arrastar pela maré, não opor a menor resistência ao destino,
fosse qual fosse a forma sob a qual se apresentasse. Nada do que me
acontecera até então fora suficiente para destruir-me; nada fora destruído,
exceto minhas ilusões. Eu mesmo estava intacto. O mundo estava intacto.
Amanhã talvez houvesse uma revolução, uma epidemia, um terremoto; amanhã
talvez não restasse uma única alma a quem se pudesse recorrer para obter
simpatia, auxílio, fé. Pareceu-me que a grande calamidade já se manifestara,
que eu não poderia ficar mais verdadeiramente sozinho do que naquele próprio
momento. Decidi que não me apegaria a nada, que não esperaria mais nada,
que a partir de então viveria como um animal, como uma fera carnívora, um
nômade, um rapinante. Mesmo que declarassem a guerra e fosse meu destino
partir, eu agarraria a baioneta e a enterraria até o punho. E se o estupro for a
ordem do dia, então estuprarei, e pra valer. Nesse próprio momento, no quieto
alvorecer de um novo dia, não estava a terra tonta com crime e miséria?
Algum único elemento da natureza do homem teria sido alterado, vitalmente,
fundamentalmente alterado, pela incessante marcha da história? Pelo que ele
chama de melhor parte de sua natureza, o homem foi traído, só isso. Nos
extremos limites de seu ser espiritual, o homem se encontra de novo nu como
um selvagem. Quando encontra Deus, por assim dizer, ele está bem arrumado:
é um esqueleto. A gente precisa afundar-se de novo na vida a fim de ganhar
carne. O verbo precisa fazer-se carne; a alma tem sede. Qualquer migalha em
que meus olhos pousem, agarrarei e devorarei. Se viver é a coisa suprema,
então viverei, mesmo que precise tornar-me um canibal. Até agora eu vinha
tentando salvar meu precioso couro, preservar os poucos pedaços de carne que
escondem meus ossos. Estou cheio disso. Atingi os limites da resistência.
Minhas costas estão contra a parede; não posso recuar mais. No que tange à
história, estou morto. Se existe algo além terei de saltar para trás. Encontrei
Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é que estou morto.
Fisicamente estou vivo. Moralmente estou livre. O mundo que abandonei é
uma jaula. A aurora está nascendo sobre o mundo novo, um mundo de selva no
qual os espíritos descarnados rondam com garras afiadas. Se sou uma hiena,
sou uma hiena descarnada e faminta: avanço para engordar-me (MILLER,
1987, p. 98).
A proposta do narcotráfico é, em boa medida, a do abandono do mundo-jaula
da pobreza e da exclusão. Embora se possa compreender que esta última se acirre, o jogo
especular nos mostra que há uma diferenciação, a midiatização. Pode ser compreendida,
num primeiro momento, como o estabelecimento de um “ser-aí”, o rompimento com as
expectativas essenciais que amarram o destino. Se é para ser excluído, que seja, pois,
como em Henri Miller, nada há a esperar, as costas já estão na parede. Esse aspecto do
“mundo paralelo”, da assunção da sigla midiática CV, das ostensivas e intensivas
aparições midiáticas, pode nos remeter à estratégia do bailarino dos “jogos infinitos”.
Algo como uma “comunicação negativa”, uma assunção do estigma como fórmula para
furar o bloqueio da limes.
Num segundo momento, porém, há que se considerar que há um
aprisionamento, uma “essencialização” exatamente onde deveria haver uma
“existencialização”. As intenções podem ser boas, como o confronto com as inertes
classes médias, sacudindo um pouco as suas vidas insossas. E enquanto manifestação
cultural, o funk trazia embutida essa proposta criativa. No entanto, as vias são estreitas e
há um estreitamento cultural. As classes médias rejeitaram o funk, assim como rejeitam
qualquer aproximação com a pobreza que não seja na clássica pantomima do senhor-
escravo, ou na calada da noite, em encontros furtivos para comprar pó. Então, como
queria Miller, se é para engordar-se, que se avance para isso. O preço é a redução das
perspectivas possíveis a apenas uma, a do sucesso econômico. Morre o dasein e renasce
o cogito.
Não é mais ou menos esse o percurso esperado para um empreendedor de
sucesso? O jovem empresário precisa perder as ilusões, mas não o ímpeto. O que leva
alguém a entrar no “jogo finito” não é unicamente a vontade de vencer, mas também a
possibilidade de estar tentando vencer. Numa realidade competitiva, é preciso primeiro
estar no jogo, para depois vencê-lo. E entrar nele não é tão fácil quanto possa parecer.
Essa lógica, aliada à sedução de “ser”, ou, em outras palavras, de “estar” na mídia,
mesmo que, ou principalmente como, animais peçonhentos, foi a deixa para a
“existencialização essencial” de alguns pobres. Assim – se o mundo midiático insiste em
transmitir uma imagem irreal e pernóstica de uma organização de presos que nasceu para
defender a dignidade destes, combatendo os que assaltavam, estupravam e assassinavam
dentro das cadeias com a anuência do Estado –, por que não fazer como no mundo
artístico e aceitar o papel? Se há um caminho para vencer, que se use esse caminho,
ainda mais quando a vitória passa a ser entendida como a única alternativa.
A imagem midiática do Comando Vermelho foi uma boa inspiração para
quando a oportunidade surgiu: com a chegada de drogas ilegais e grandes somas de
dinheiro decorrentes da aliança com o crime de alta patente, a “vida bandida” se tornou
mais atraente, mas isso trouxe mais desorganização do que organização, recrudescendo o
espírito empreendedor dos novos líderes do já assumido Comando Vermelho, os
narcotraficantes que mostram cada vez mais que aprenderam bem as lições do
capitalismo, tornando-se rapidamente dignos representantes de seu ideário –
lucratividade acima de tudo, custe o que custar, mesmo que vidas em profusão. Para
estes, conhecidos internamente como “funkeiros”, o “espírito comunitário” que gerou o
CV vai aparentemente ficando em segundo plano. Os princípios que nortearam o
surgimento da solidariedade entre os presos do Fundão, foram paulatinamente
substituídos por uma lógica competitiva que nada fica a dever ao mundo empresarial. O
espírito inicial, descrito por Silva Lima (idem, p. 82), praticamente não existe mais, com
a profissionalização desses novos pequenos empresários:
O que eles chamavam de “Comando Vermelho” não poderia ser destruído
facilmente: não era uma organização, mas, antes de tudo, um comportamento,
uma forma de sobreviver na adversidade. O que nos mantinha vivos e unidos
não era nem uma hierarquia, nem uma estrutura material, mas sim a
afetividade que desenvolvemos uns com os outros nos períodos mais duros das
nossas vidas. Como fazer nossos carcereiros (ou mesmo a sociedade)
acreditarem nisso?
Ninguém acreditou nas boas intenções dos “bandidos”, e o que temos hoje
diante de nós é uma realidade inteiramente criada a partir dessa descrença, que
alimentou o surgimento de novas lideranças e de um novo rumo para a organização da
qual falamos. Como afirmamos, esta não tem, hoje, tantas afinidades com o
comportamento citado por Silva Lima do que com os procedimentos empresariais que
predominam no mundo “capitalístico
83
”. No entanto, ainda guarda certas identidades,
como a referência numa suposta irmandade que cuidaria e defenderia seus integrantes,
protegendo-os das adversidades relacionadas ao contato com outras facções e com o
poder discricionário do Estado. Essa é a maior organização que se lhe pode atribuir. A
outra, a sempre reiterada pela imprensa, é bem mais fantasiosa do que real, pois não se
compara àquela alcançada pelo mundo empresarial que financia esses negócios. Se a tal
organização existisse, poderíamos acreditar efetivamente na “guerra civil” citada pela
imprensa, pois há gente, armas e rancor acumulado suficientes para que o confronto
fosse mais direto e mais sangrento, visando a uma tomada de poder. No entanto, não é
isso que os “bandidos” parecem querer e conseguir com sua parca organização.
Os traficantes cariocas, por mais que façam parte de um esquema bilionário,
são apenas os peões, com a organização possível e compatível para essa escala de poder,
a menor na “empresa”. Esse ramo de negócios, se possibilita uma vida com menores
dificuldades financeiras para alguns moradores das favelas cariocas, leva-os a uma
situação na qual os freqüentes conflitos por espaços comerciais resultam em
extermínios. Como afirma MV Bill no rap “Soldado do Morro”, nessas condições “o
papo não faz curva, (...) o papo é reto”
84
. Qualquer sinuosidade, por mais leve que seja,
acaba em morte, e para tomar o lugar de um concorrente nesse mundo de lógica cada vez
mais individualista e comercial, que tem desprezado frontalmente a solidariedade
referida por Silva Lima, muitos conflitos e assassinatos ocorrem pelo forjamento de
“curvas” acentuadas no comportamento de um ou outro “soldado” a quem seus inimigos
querem eliminar, muitas vezes por ter alguém para pôr no lugar, como acontece nas
empresas e no preenchimento de cargos políticos. No fim das contas, como na Sociedade
de Controle capitalista, na organização criada como um “comportamento solidário”,
todos acabam se tornando inimigos de todos.
Um trecho do livro “CV-PCC
85
: a irmandade do crime”, de Carlos Amorim, é
ilustrativa da lógica comercial que passou a predominar nessa “irmandade”. O tema
abordado é o motim ocorrido na penitenciária Bangu 1, quando o líder do Terceiro
83
Guattari (1999, p. 23) compreende que a adição do sufixo “ístico” é importante para designar não apenas as
sociedades propriamente capitalistas, como as do Terceiro Mundo e as socialistas – ainda existentes quando o
autor formulou o termo. Segundo ele, por exemplo, o conceito de cultura seria capitalístico, ou seja, abrange um
universo estreito de significações que se espraiam “e permeiam todos os campos de expressão simbólica.” A
cultura seria, assim, “um conceito reacionário.”
84
Trecho do rap “Soldado do Morro”, de MV Bill, gravado no CD Traficando Informação, produzido pela BMG
em 1999.
Comando, Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, foi executado por homens comandados por
Fernandinho Beira-Mar, do Comando Vermelho, no dia 11 de setembro de 2002, um ano
após o atentado contra os Estados Unidos:
A “batalha das duas torres” [uma referência aos dois bandidos que deveriam
morrer: Uê e Celsinho da Vila Vintém, ambos do TC – este teria se unido ao
CV depois de ter sido ameaçado e sobreviveu] envolveu menos de 50 pessoas,
incluindo os reféns. Mas ali se travava uma disputa cujo alcance estratégico
está além das aparências. Se não fosse assim, Celsinho da Vila Vintém não
teria sido poupado. O bando dele fatura quatro milhões de reais com a venda
de drogas e é um dos mais bem armados da cidade, contando com ex-militares
das forças especiais. Outro traficante importante, Marcelo Soares Medeiros, o
Marcelo PQD, tido como um desertor do Comando Vermelho, também
sobreviveu. Após o massacre, a polícia esperava uma guerra entre as facções,
com a invasão das áreas controladas por Uê. Os delegados trocavam
telefonemas preocupados e havia a informação de que sete ônibus e alguns
caminhões tinham sido roubados no Rio, sinal de que grandes “bondes” iriam
se deslocar, levando homens e armas para as favelas do Terceiro Comando. E
nada aconteceu. Nos territórios controlados pela ADA tudo estava calmo
também. O motim comandado por Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP
86
fez
parte de um processo de unificação das organizações ligadas ao tráfico. Mais
um passo na construção da Federação do Crime Organizado. O velho sonho de
Pablo Escobar – a unificação do tráfico sob uma mesma bandeira – pairou
sobre o tiroteio dentro do presídio. (AMORIM, 2003, p. 434)
Parece óbvio que o assunto tem raízes comerciais, como praticamente tudo o
que ocorre na sociedade ocidental, inclusive boa parte dos casamentos, mas não parece
ter havido apenas isso. Parece óbvio também que, como já afirmamos, baseados em
fontes de um dos presídios de Bangu, os novos líderes do CV, os chamados “funkeiros”
têm um tino comercial acima do normal e aparentemente muito menos fraternidade do
que os “antigos”, incluindo Beira-Mar. No entanto a versão de Barcellos (2003)
incorpora um elemento ligado ao cumprimento da palavra, fator fundamental do “papo
reto” citado acima. Para ele, em primeiro lugar estava a palavra empenhada por Beira-
Mar na vingança da morte de Orlando Conceição, o Orlando Jogador, um dos líderes do
CV – enquanto vivo, um dos “bandidos” mais “considerados” entre os “irmãos” –, traído
e assassinado a mando de Uê em 1994. Desde aquele tempo, este estaria jurado de morte
pelo CV. Um plano do próprio Uê para matar Beira-Mar, que contaria com a
participação de um agente penitenciário, foi o estopim para a ação de 11 de setembro,
quando “duas torres” – o TC e a ADA – foram derrubadas, uma por perder seu líder e a
85
Sigla de Primeiro Comando da Capital, uma articulação criminosa que surgiu nos presídios paulistas nos anos
90.
86
O Marcinho VP a que o texto se refere não é o retratado na biografia escrita por Caco Barcellos (2003), mas
Márcio dos Santos Nepomuceno, do Morro do Alemão, também membro do CV como Márcio Amaro de
Oliveira, o Marcinho VP da favela Santa Marta.
outra por ter sido absorvida pelo CV. Celsinho da Vila Vintém teria denunciado o plano
a Beira-Mar, que teria, por sua vez, dobrado a oferta ao agente penitenciário,
conseguindo a sua prestimosa ajuda. Se o caso fosse apenas de concorrência
empresarial, muito provavelmente Celsinho estaria morto a esta hora. Parece ter havido
o que muitos “civilizados” não levam em conta, o cumprimento da palavra dada.
Celsinho foi poupado não apenas porque “avermelhou”, mas porque salvou a vida de
Beira-Mar. Se há algo contra ele – e certamente não há algo tão grave quanto havia
contra Uê – essas contas serão ajustadas num outro momento.
Se for verdade que a lógica empresarial estaria tomando conta do Comando,
isso demonstra que a lógica capitalística efetivamente venceu e que o “salve-se quem
puder” é cada vez mais eminente, com o acirramento das disputas por pontos de venda
de drogas e o assassinato a sangue frio de rivais, sendo que todos são rivais num negócio
que envolve muito dinheiro, até os “irmãos”. Se isso efetivamente estiver ocorrendo, os
habitantes das favelas que picham os muros com as inscrições “CV”, “CVRL”, “RL” ou
“Paz, Justiça e Liberdade”, imbuídos da crença numa revolução futura, descobrirão que
este não é mais um lema em que possam confiar. Se isso for verdade, será a vitória
completa do “sistema” a que o CV se definiu originariamente como inimigo. Significará
mais uma “guerra-sem-fim” a produzir pesadelos. Uma guerra inglória, na qual não se
combate por qualquer ideal, mas apenas pelo butim, do mesmo modo como fazem os
grandes empresários. E, pelas informações que colhemos em alguns contatos no sistema
prisional carioca, infelizmente isso está efetivamente acontecendo, sendo a maior
façanha desse novo grupo a chacina ocorrida entre os dias 29 de maio e 1º de junho de
2004, na Casa de Custória de Benfica, Zona Norte do Rio, quando 31 presos não ligados
ao CV foram assassinados para “fazer mídia”, como um instrumento publicitário terrível
de “fixar a marca” do Comando Vermelho. Bem podemos ver como certas lições estão
sendo aprendidas rapidamente pelos “bandidos”. Certamente o incremento de novos
ataques com objetivos midiáticos serão postos em prática para prejuízo de todos. A
lógica comercial venceu, mais uma vez e o Ocidente pode comemorar a “canonização”
desses bárbaros.
Amorim fala, no final do trecho citado, de um sonho distante – o da
“unificação do tráfico sob uma bandeira” – que provavelmente agracia o sono de muitos
desses bandidos pobres, ou seria melhor dizer desses bandidos “novos ricos”. No
entanto, Amorim comete, nos seus dois livros sobre o tema, o pecado de considerar
esses personagens como aqueles que devem ser enfocados quando se fala de uma
organização do crime. Sua visão, como referido anteriormente, torna-se um tanto “chapa
branca”, uma certa manifestação de assombro e temor em relação à parca, mas crescente,
organização desses até pouco tempo pobres habitantes de favelas cariocas, sem em
nenhum momento aventar a lógica hipótese de que essa é apenas a ponta do iceberg
quando se trata de falar de crime, organização e violência. Caso Amorim quisesse
realmente falar de uma portentosa “irmandade do crime”, realmente lesiva para a
sociedade, o cidadão e a cidadania, poderia escrever sobre os lobbies empresariais, as
negociações que envolvem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em todos os níveis
de poder, com entidades privadas. Ou poderia penetrar nos meandros da imprensa que
acoberta os grandes crimes de uma minoria sensacionalizando os pequenos crimes de
uma maioria. Podemos mesmo hipotetizar que o seu olhar jornalístico do fato traz
consigo a distorção que o discurso da objetividade busca ocultar: sempre há um ângulo
de descrição de algo. E tanto as intenções quanto o caráter se desnudam nessa escolha.
Cremos ser um exemplo de posicionamento que muito pouco acrescenta para a
compreensão do tema. Não traz nada de novo, é tão “objetivo” e “elucidativo” como as
matérias dos jornais cariocas. Não se refere em nenhum momento ao grande negócio que
movimenta quinhentos bilhões de dólares ao ano. Para ele, o tráfico é o problema e o
traficante pobre a sua encarnação. Trata-se de um bom exemplo de um discurso que
parece comprometido com tudo o que parece criticar, como a maioria dos publicados nos
jornais cariocas.
Reiteramos que a organização à qual devemos temer com mais ardor não está
nas favelas ou nos presídios, podemos garantir. Ela está em outros círculos. Como
ilustra José Carlos Blat, promotor público do Grupo de Atuação Especial de Repressão
ao Crime Organizado (Gaeco) em entrevista à revista Caros Amigos (Ano VI, número
70, janeiro de 2003, p. 37):
Eles são até colunáveis, não é? Outro dia, fui a um Estado fazer uma palestra
para promotores e havia lá umas mil e tantas pessoas, foi um evento aberto, e
de repente anunciaram um cidadão que tinha um título nobiliárquico, conde
não sei das quantas, que foi aplaudido de pé ao entrar no salão. Comentei com
um promotor: “Esse cidadão é importante, não?” E o promotor: “Ele não só
tem um título nobiliárquico, como controla o jogo do bicho, o tráfico de
entorpecentes e financia campanhas. Dá um milhão para o candidato A, um
milhão para o candidato B e um milhão para o candidato C. E recebe como
contrapartida, no mínimo, três milhões em concessões, então nunca perde. É
um cidadão respeitado”.
Se existe crime realmente organizado, que planeja e executa ações lesivas ao
cidadão, ele definitivamente não é o dos pobres. O curioso é que, a imprensa insiste em
nos fazer crer que são os pobres os criminosos organizados que devemos temer. Mesmo
que tentemos considerar a parca organização destes, nos chama a atenção o fato desta
ser tratada como algo consistente e que represente o maior risco de violência a que os
cariocas se julguem expostos. Mesmo que consideremos a aliança entre facções e
comandos, como parece ocorrer entre membros do Comando Vermelho carioca e do
Primeiro Comando da Capital paulista, o mal que essas entidades podem fazer à
sociedade ainda está ainda muito aquém do que supõe a idealização que delas se faz.
Que ele existe, é claro que existe – e os “funkeiros” do CV ainda acabarão, com sua
estrita consciência empresarial, nos mostrando que esse mal pode ser grande –, mas é
muito menor do que outros “bandidos” causam. E, queira ou não queira, é a estes que os
jornalistas protegem com o silêncio. E é neles que os não tão organizados “bandidos”
cariocas se inspiram para uma maior organização.
4.2. O silencioso ódio das ovelhas.
As classes médias têm ódio e se remexem em seus sagrados lares-túmulos,
nos quais somente há espaço para o zapping de suas ficções de personalidade. A “guerra
a Beira-Mar” parece ser um dos sinais do quão grande é esse ódio. No entanto, os
adeptos do “Partido da Ordem” crêem na polaridade essencial do Ser. Comungam, ao
largo de todas as suas perversões, sempre mais vicárias que reais, do ideal de que a
justiça vencerá, pois há o bem e o mal, e os filmes e novelas sempre terminam com a
vitória daquele. Mesmo nas noites atormentadas pela perspectiva da falta de recursos
para manter os sonhos agenciados, o sujeito mediano sempre tenta encontrar o melhor
caminho entre os dois oferecidos. Como ambos levam ao mesmo lugar, acaba no meio
da estrada, exposto aos mais diversos salteadores.
Como se não bastassem suas péssimas condições psicológicas, sua
necessidade de aportes constantes de imagens para lhe referenciar a identidade, seu
terror de tudo o que não é familiar e controlável, o sujeito de ideais medianos está
cercado e sem alternativas a não ser o pânico. De um lado, os peixes grandes, os
criminosos de grosso calibre financeiro; do outro, os de grosso calibre bélico. Aqueles
são seus aliados tradicionais, embora sejam quem mais lhes tira o sono. Estes são seus
inimigos há tempos, embora seus ataques lhe causem menores danos do que o dos
primeiros. Os ricos os “cooptam”, os pobres os afugentam.
Há várias maneiras de se saquear as classes médias: os impostos estão entre
as mais diretas, mas também há as drogas, as tarifas públicas, as aplicações financeiras e
o próprio trabalho. Os bancos, as operadoras de telefonia, os fornecedores de energia, os
grandes traficantes de drogas ilícitas e o poderoso Estado neoliberal
87
parecem saber
bem disso. Como há uma morte subjetiva, todas são bem aceitas, contanto que façam
parte do Real, principalmente se delimitarem seus contornos.
O último século culminou com a rearticulação da lógica da produção. Bens
simbólicos e bens imaginários substituem os bens de produção clássicos. A indústria
cultural em seu formato informacional domina as ações e iniciativas do circuito em que
antes predominava a transformação de matéria prima natural em bens de consumo. Isso
correspondeu ao nó górdio
88
que, ao ser desatado, abriu caminho para a invasão
“definitiva” da lógica capitalística, o “fim da história”. Se antes era necessário um certo
tipo de escravo, o proletário, este simplesmente deixa de existir, como num passe de
mágica, como a realização concreta de um cenário há muito projetado como ideal pelas
classes médias. Um mundo sem pobreza sempre foi o sonho do homem mediano, pois à
sua simples visão há a perspectiva do pensamento soturno de que um dia ele poderia
passar por isso. Ou, mais precisamente, esse pensamento é necessário para representar o
seu nojo pelo diferente. As condições estão dadas para isso, mas, como num conto
macabro, eis que o fado vem cobrar os seus tributos. E, consoante à prática dualista
dessa gente que escolheu a mediocridade, a cobrança vem em duas frentes.
No plano simbólico ocidental, alguém sempre tem que ocupar o local do
“não-saber”. Isso não significa afirmar que os demais saibam de algo, mas simplesmente
que há uma região remetida à coordenação do plano imaginário que serve como
termostato do processo civilizatório por trazer em si uma significação voltada para a
demanda de preenchimento de sentido. Essa região concentra a ação do organismo social
projetado pelos “jogos finitos”. Trata-se do núcleo de onde parte o equilíbrio do sistema
e, por isso, deve ser monitorado. As massas trabalhadoras das indústrias ocuparam esse
87
No jogo especular, porém, o neoliberalismo postula o enfraquecimento do Estado.
88
Para Houaiss (ibidem): “Segundo a lenda, nó que prendia ao timão o jugo da carreta do rei Górdios,
depositada no templo de Zeus, em Górdios, capital da Frígia, sobre o qual existia a profecia de que quem o
desatasse tomaria para si a Ásia; nó gordiano. Pela tradição, o conquistador Alexandre da Macedônia cortou
tal nó com sua espada e invadiu a Ásia”.
espaço durante bastante tempo, mas a transformação do estatuto regido pela lógica de
acumulação de capital traz uma nova proposta axial.
O proletariado era a região do “não-saber” na medida em que o trabalho
braçal se mostrava a solução para a arregimentação das forças produtivas. O operário
precisava estar estofado de sentido para se portar adequadamente na linha de produção e
assumir o seu lugar no mercado consumidor, “mediatizando-se” pela crescente mídia de
massas. Na medida em que isso ocorria, demonstra-se como era necessário fundar uma
cultura peculiar para essa “massa” que, na simulação da conformidade, perdia seu
caráter informe obtendo as informações adequadas para a integração perfeita ao todo
através dos meios de comunicação e o conhecido trabalho de Richard Hoggart (1958)
sobre a literacia voltada para os trabalhadores ingleses parece apoiar nosso pensamento.
Ele bem demonstrou como a iniciativa da literatura midiática era, naquele momento,
coordenada pela tentativa de “cooptar” os velhos e sólidos hábitos comunitários
tradicionais para uma nova linguagem e uma nova estrutura de sentido. Tratava-se da
aparentemente bem sucedida implementação da vontade burguesa como fechamento
semântico de todo o senso cultural. O popular, “tradicionalmente tradicional”, precisava
ser “cooptado” e as diferenças que o marcavam singularmente apagadas. Assim foi.
O cultural foi, assim, trazido para primeiro plano numa estratégia de
hegemonia de um padrão universal, que aparentemente obteve sucesso mesmo que
consideremos o caráter híbrido de toda e qualquer interação no plano da cultura. No
entanto, é possível considerar que se tratou de uma simulação na qual a dita cultura teve
espaço instrumental, sempre com uma articulação de cunho político a lhe sustentar o
sentido e comandar formatos e conteúdos. O proletariado adquiria uma nova cultura,
uma sofisticação do tradicional recondicionado em “moderno”. E não é possível
esquecer que sofisticar significa fraudar, enganar, falsificar. Não há dúvidas de que há
uma proximidade muito grande entre Hoggart e os frankfurtianos.
Esse ponto é fundamental para compreender a evolução do processo de
articulação do sistema “capitalístico” da contemporaneidade. O chamado fake, a trapaça
assumida pelo discurso da pós-modernidade, nesse sentido, tem tudo de moderno. Se
posto numa proporção adequada no percurso de falsificação da experiência comunitária
proposto por Hoggart, redunda no que temos hoje proposto como realidade, formatando
o “bios midiático” pensado por Muniz Sodré (2002). Este bem pode ser entendido como
o paroxismo do fake modulado pelas linhas editoriais dos veículos de cultura de massa
do século XX. E é no olho desse furacão, cuja perda do senso ancorado na ordem
racional stricto sensu engendra uma ordem algo heterodoxa para a ordenação do sistema,
que as classes médias, elas próprias, passam ao foco das atenções, assumindo o lugar do
“não-saber”, ou seja, na linguagem “capitalística”, o lugar do investimento do saber.
Assume, desse modo, o papel daquele que necessariamente precisa de alguém que lhe
diga quem é. E, se por um lado, podemos afirmar que em sociedade todos precisam
disso, é na configuração de valores caracterizados como adequados a uma determinada
classe social que essa necessidade de saber toma forma num determinado momento
histórico. Logo, “saber quem se é” para os tempos do proletariado parece ser muito
diferente nos tempos de foco concentrado na projeção do que seja a classe média.
Naqueles tempos, a configuração estava calcada, como bem mostrou Hoggart (idem), na
literacia, no discurso de acesso de uma comunidade iletrada ao mundo da literacia, para
que melhor pudesse ser incorporada e, conseqüentemente, controlada, em nossos tempos
isso é diferente.
A atenção pela classe média não é tão nova. Essa antes obscura fatia da
população que se avolumou até tomar totalmente o foco do sistema, cresceu em
importância exatamente na seqüência da realidade exposta por Hoggart e pelos
frankfurtianos. O “ponto de mutação” parece ter se materializado na metade do século
passado, com a rearticulação do poder em torno do neoliberalismo, nas últimas duas
décadas desse mesmo século, selando uma transformação da lógica de produção e de
acumulação de riquezas. A partir de então, com o eixo da produção voltado para o
subjetivo – com as coisas deixando de ser fixas e passando a circular livremente,
enquanto as pessoas passam a se fixar cada vez mais em parâmetros predefinidos
midiaticamente que lhes dão, porém, a ilusão de vertiginoso movimento –, as classes
médias, tradicionais trabalhadoras do ramo de serviços, saltam a primeiro plano, e o
olho do “grande irmão” midiático se voltou para elas. Se até um tempo a política era um
terreno de oposição entre elites e proletários, de um momento para outro passou a ser um
confronto fictício entre ideais medianos: os bons administradores e os maus
administradores, os “técnicos” e os “políticos”
89
. Enquanto as classes médias se distraem
no debate simulado, lhe esvaziam os bolsos. Se não há mais proletários para tirar o
sangue em forma de lucratividade, é preciso muito circo para agitar os mortos enquanto
alguém lhes tunga a carteira. Não há bem um mercado mundial a ser alimentado e
satisfeito, mas um exíguo grupo de piratas a saquear o que pode. E, na situação atual,
somente há um grupo populacional a ser saqueado, as classes médias. Duplamente: pelo
trabalho e pela tributação (direta e indireta).
Temos diante de nós um quadro bastante preocupante. Há que se pensar na
participação da imprensa na construção dessa conjuntura terrível. Como vemos nas
matérias jornalísticas enxertadas neste texto, há uma inequívoca tendência para o
fomento do medo direcionado para uma entidade que ora recebe o nome de “Crime
Organizado”, ora de “Poder Paralelo”, ora, genericamente, de “Tráfico”. Essa entidade
abstrata e essencializada como “o” mal guarda semelhanças com a outra entidade
demonizada no início dos anos 90, o Funk. Dela fazem parte negros e pobres, aqueles
que historicamente são acusados pela ocorrência de crimes na cidade.
Cabe pensarmos o que é o crime. Trata-se da transgressão de uma lei. Comete
o crime quem infringe a lei propositalmente, quando é crime doloso, ou não
propositalmente, quando é crime culposo. Perceba-se, aqui, que se parte de uma
referência legal que, conforme pensava Durkheim (1977) representava a organicidade da
“consciência coletiva” dirigida para um padrão que, necessariamente, gerava o crime
como oposição a ele. Haveria uma oposição entre individualidade e coletividade, pois,
como crê Durkheim, “uma vez que não pode haver sociedade em que os indivíduos não
divirjam mais ou menos do tipo coletivo, é inevitável também que, entre estas
divergências, existam algumas que apresentem caráter criminoso” (ibidem, p. 60). Essa
noção é estruturante para a sociedade ocidental. Assim, ela pode se pensar como
homogênea, como um organismo a funcionar harmonicamente que, via de regra, gera
insatisfeitos estatisticamente menos significativos que os satisfeitos. Quando ocorre o
contrário, para Durkheim (ibidem) há a necessidade de transformação do padrão ditado
pela “consciência coletiva”, pois marca um momento em que a antiga conformidade não
é mais adequada para a maioria. No pensamento organicista, a transformação se daria
por uma contradição considerada como
disfunção efetiva, que tende à readaptação, ao reequilíbrio desejado; o
“conflito” aparece mais como competição, onde métodos ilegítimos mas
racionalmente eficazes substituem os emperramentos que atrapalham muitos
indivíduos de alcançar o êxito; e a “mudança” aparece, finalmente, como a
forma da “sociedade humana em geral” reencontrar-se na sua unidade
homogênea originária, necessária e eterna (DÍLSON MOTA e MICHEL
MISSE, 1979, p. 23).
89
Ver, no anexo G, matéria do Jornal do Brasil, edição de 26 de setembro de 2004, intitulada “Voto pragmático
mostra mudança no perfil do eleitor”.
Logo, há uma noção de que a sociedade é um todo orgânico,
um sistema social já dado, “funcionando”. A harmonia e o equilíbrio, a partir
daí, surgem automaticamente. Existe uma fase hipotética, inicial, quando o
sistema está “funcionando normalmente”. O processo de mudança social pode
ocasionar desequilíbrios e conflitos, mas a tendência “natural” será o retorno a
um estado de equilíbrio e harmonia. Mesmo que surjam modificações na
estrutura social, haverá um momento em que as coisas se encaixarão nos
respectivos lugares e os níveis social e cultural voltarão a se ajustar. Uma nova
ordem poderá até ter sido instaurada (GILBERTO VELHO, 1979, p. 15).
O desvio teria, assim, um caráter “benéfico”, pois estabeleceria a necessidade de
mudanças na ordem social. Não há brechas, não há vácuo. Tudo está integrado, mesmo o
crime.
A imprensa carioca, porém, não pensa assim. O crime, nas suas páginas, é,
prioritariamente, objeto de opróbrio. Como bem afirma Moretsohn (2003), assume o
papel do Poder Judiciário, julga, condena e promove execuções públicas. Há uma
identificação com a função do Estado autoritário, de julgar e executar pessoas, boa parte
das vezes, senão sempre, cometendo, por conta disso, o crime da calúnia. A única
solução para o desvio, na linha editorial dos jornais da grande imprensa carioca, é o
castigo: penas mais duras, incremento da repressão, mais prisões, etc. No século XIX, há
mais de cem anos, Durkheim escrevia:
É preciso que a autoridade de que goza a consciência moral não seja
excessiva; d’outra maneira, ninguém ousaria levantar a mão contra ela e ela se
cristalizaria facilmente numa forma imutável. Para que evolua, é preciso que a
originalidade individual possa vir a lume; ora, para a originalidade do
idealista, que sonha ultrapassar seu século, se manifeste, é necessário que a do
criminoso, que está abaixo do seu tempo, seja possível (ibidem, p. 61).
Ou os jornalistas não leram Durkheim ou preferem uma solução rápida, a
condenação do criminoso como essencialmente hediondo, como um “doente”, um
“degenerado”, um “bandido”. Neste caso, obtura-se a compreensão do sentido do crime
que, mesmo no organicismo estreito de Durkheim, pode ser reconhecido como algo que
indica uma transformação da tal “consciência coletiva”. Não há sequer a profundidade
durkheimeana nos textos jornalísticos do Rio de Janeiro. Para a grande imprensa, o
castigo é o único remédio pois há um pré-juízo, ou um pré-conceito, no qual o criminoso
é codificado como um “ser” patológico. A questão é fechada numa captura do sentido no
esquema dos “jogos finitos”. O criminoso já perdeu, pois ganhou a essência do “ser”
patológico, ou seja, do “não ser” platônico. Na sala de espelhos da subjetividade
ocidental, duplicações como essa são explosivas. Não exatamente pelos conflitos que
trazem, mas pela natureza autofágica desses conflitos.
Retornando ao tema do “choque de civilizações” de Samuel Huntington
(1998), cremos que não há como sustentar essa nova modalidade esquizoparanóide de
subjetivação. O que efetivamente tem se afigurado é um choque intracivilizacional, o
velho “bem” contra o “mal” dos filmes estadunidenses se consubstancia nos monstros
que se voltam contra o próprio criador. Baudrillard (2004, p. 38) ilustra com sagacidade
o drama do Império: “Já se disse: ‘Deus não pode declarar guerra a si mesmo’. Pois
pode! O Ocidente, na posição de Deus (de potência total divina e de legitimidade moral
absoluta) torna-se suicida e declara guerra a si mesmo”. Percebemos, nas palavras de
ordem bélicas que se alastram pela imprensa um envolvimento direto da mídia nesse
confronto insano, porém inevitável, o de Deus contra si próprio. Tudo indica que o
Ocidente se encontra em uma daquelas “sinucas de bico” cujo qualquer movimento leva
ao “suicídio”.
“A guerra à beira-mar” carioca, tão perto do oceano que banhou a fama da
cidade como linda em relevo e em espírito, personifica-se no redobramento do massacre
quinhentão promovido pelos exploradores europeus e por seus descendentes em carne e
alma. Transforma-se, simbolicamente, num momento estratégico, numa “guerra a Beira-
Mar”, como forma de essencializar o mal que atormenta a já tão atormentadas classes
médias cariocas. É uma guerra inglória, um movimento suicida de uma lógica
civilizacional que não aprendeu com os próprios erros, tendo esgotado praticamente
todas as artimanhas para ocultar suas atrocidades. Eis que a lógica mágica do “inimigo
externo”, da alterofagia e da guerra santa, utilizada com sucesso durante tanto tempo,
vem cobrar os seus tributos ilógicos. O velho jogo de atirar para fora todo o mal,
fazendo do outro o algoz de todos os martírios chegou ao paroxismo que prenuncia o seu
declínio. E é aí que ele se torna mais cruento e doloroso.
A representação carioca da “luta contra o terror” é, assim como a matriz de
onde tirou sua inspiração, uma falácia perigosa para a própria “civilização”. Trata-se de
uma corruptela provinciana da bravata estadunidense de “polícia do mundo”. E, como
todo poder de província, o jornalismo carioca quer mais, quer não apenas ser polícia,
mas ser magistrado. Tomar a “organização” pela organização chega a ser ridículo, se não
fosse trágico para tanta gente. Mais uma vez, porém, está fiel ao “modelo americano”.
Os jornais estadunidenses também suspenderam qualquer rigor crítico e promovem, até
hoje, um julgamento e uma condenação sumária dos “terroristas” que alimentaram.
Durante décadas, os assassinatos das torres foram encomendados pelo Estado e pela
mídia que o reafirma, quando ocorreram, foram cobertos pela mesma mídia e
aproveitados pelo redobramento do discurso insano do Estado. O mundo capitalista lucra
mesmo quando decepa o próprio braço.
No dia 28 de setembro de 2004, há poucos meses atrás, o jornal carioca O
Dia noticiou, em sua primeira página, a execução de dois suspeitos de ter atirado contra
um helicóptero da polícia civil com fuzis. Foi um fuzilamento sumário de dois rapazes
que, não se pode afirmar com exatidão, trabalhariam para a quadrilha local. Nada de
anormal nisso, pensa “objetivamente” o jornalismo de mídias como O Dia. Se é uma
guerra e se o inimigo é o mal, nada de estranho em que seja exterminado. O cinismo da
grande imprensa é, no entanto, absolutamente ilimitado. A notícia dava conta de uma
execução apenas porque havia um fotógrafo e uma repórter do jornal no helicóptero.
Logo, era um “furo”. Não a morte dos rapazes, mas a presença da mídia. Noticiar mortes
de traficantes “em confronto”, como “vítimas de auto de resistência” é banal e aceitável,
faz parte da “objetividade”, não merece maiores questionamentos. O que o fotógrafo
registrou e o que a repórter descreveu, no entanto, era o banal duplicado pelo
testemunho essencial da imprensa, pela mesma “objetividade” que Nelson Rodrigues
inúmeras vezes classificou como um atributo dos idiotas. Assim, precisava “ser”, muito
embora tais execuções sumárias “não fossem”, pois constam “objetivamente” nas
páginas do mesmo jornal no rol das “mortes em confronto”. Diariamente o mesmo jornal
fala de “Terror”, “Guerra”, que brada que “O Rio não merece”, repete em praticamente
todas as edições as palavras “medo” e “violência” incessantemente.
Eis um exemplo de um dos efeitos mais fascinantes da sala de espelhos: a
negatividade dos “bandidos” encontra a negatividade da objetividade camufladora de
assassinatos, tudo se torna positivo e há o furo jornalístico. As mortes encomendadas
pela imprensa carioca são os furos da imprensa carioca. Trata-se, sem qualquer dúvida,
de um jogo que só admite vitórias, mesmo que isso signifique massacres ou execuções
sumárias rotineiras. Mesmo que isso signifique estar destruindo boa parte dos jovens que
têm tanto direito de sonhar com uma vida de classe média quanto os jovens da classe
média têm de sonhar com suas futilidades. É um jogo perdido, pois traz em si um
elemento muito mais perverso do que este, que já tem perversidade de sobra. Um jogo
“finito” na natureza e na inteligência.
A “guerra à Beira-Mar” é uma guerra do sistema contra si próprio, contra
uma parte de si próprio. Uma guerra travada não dos incluídos na limes contra os
excluídos dela, mas entre os incluídos, pois que dos excluídos nada se pode tirar além da
vida, e o butim é fundamental nessa guerra. Fernandinho Beira-Mar está incluído, assim
como todos os “bandidos” que conseguem um “lugar ao sol”. Fosse Beira-Mar um
ladrão de galinhas, um perfeito excluído, jamais teria destaque na mídia. Esta não teria
como positivar uma negatividade absoluta. Mas, quando esta se redobra na intenção do
“bandido” em negar a sua negatividade, positivando-a como participação efetiva no
mundo econômico, eis que surge o charme essencial que assegura sua presença
midiática. Fernandinho Beira-Mar é um ídolo ao qual as elites rendem as maiores
homenagens. É aquele que abre as portas para a captura das classes médias no espelho
de suas almas, no recôndito de seu ódio.
Para as elites, então, ao negativar a sua negatividade, Beira-Mar torna-se
positivo, pois sua existência erige loas ao sistema que aquelas comandam e este integra.
Já para os excluídos, a positividade duplicada do “bandido”, um “excluído” que se
“incluiu” pelo confronto com as elites e que, por conta disso, consegue uma inaudita
projeção midiática, inclusive no exterior, se torna negatividade. Discursa que não há
opções fora do jogo econômico civilizatório, logo não deixa alternativas subjetivas. O
“excluído” continua excluído, mesmo “incluído”. Não contribui com seus valores, ou
contribui e não obtém sucesso, logo estes precisam ser abandonados. A ascensão das
“alas jovens” do CV, o já extinto “CV Jovem” e os “funkeiros”, mostra que isso vem
ocorrendo.
Para as classes médias, Beira-Mar é, conjunturalmente, o preenchimento
entre a negatividade e a positividade especular. O “bandido” é a própria imagem da
classe média, o dançarino solista de uma pantomima que tem como coro a própria classe
média. O destino de Beira-Mar, preso, isolado, execrado publicamente, com os bens
arrestados, é a metáfora da vida medíocre a quem Wright Mills (1976, p. 14) chamou de
white collar:
Num mundo povoado de grandes forças ameaçadoras atribui-se logo ao
homem de colarinho branco todas as supostas virtudes da criatura modesta.
Pode ser que ele esteja no nível mais baixo da escala social, mas tem, ao
mesmo tempo, o aspecto tranqüilizador de classe média. É fácil e seguro
compartilhar seus problemas; pode fazer muito pouco, ou nada, por eles.
Outros atores sociais ameaçam tornar-se poderosos e agressivos, defender
exclusivamente seus interesses e fazer política. O grande negociante mantém a
nação em suspenso com um simples arquear de suas espessas sobrancelhas, até
que todas as reivindicações sejam atendidas; o grande fazendeiro cultiva o
Senado para que os latifundiários consigam o que querem. Mas os colarinhos-
brancos não podem fazer isso. Coletivamente, são mais lastimáveis do que
trágicos, lutando contra uma inflação anônima, sustentando até mesmo na
miséria a esperança de uma rápida ascensão à americana. Eles são impelidos
por forças que não podem controlar, arrastados para movimentos que não
compreendem; metem-se em situações nas quais a sua posição é a mais
desamparada. O homem de colarinho branco é o herói-vítima, a criatura
modesta que sofre a ação, mas não age, que trabalha despercebida num
escritório ou numa loja, que jamais levanta a voz, jamais retruca, jamais toma
uma posição.
Transforme-se um ponto ou outro tomando em consideração a nova
conjuntura, e a definição continua válida. A classe média é como o rebanho que aguarda
silencioso o abate, todas as manhãs, até que ele chega, geralmente no início do mês
seguinte, quando tem que pagar suas contas e tributos. Não opina, pois repete somente
aquilo que lhe foi ensinado pela objetividade essencial da imprensa. Continua a não ter
nenhum controle sobre seus problemas, nenhum poder político. A do Rio de Janeiro, dá
ensejo a um “populismo de direita” ressuscitado do túmulo de Carlos Lacerda, que um
dia sonhou lavar a cidade com as águas de um rio da baixada fluminense, ainda sem
contar, naquela época, com a Guarda Municipal com seu aparato para-militar e seu spray
de pimenta. As classes médias mantêm-se como medíocres “heróis-vítimas” que sofrem
o ataque de poderosas e rapinantes forças econômicas, mas, orientados pelo “tautismo”
jornalístico, odeiam os pobres pelo pouco que estes lhes roubam.
O Fernandinho Beira-Mar da imprensa é como um reflexo revelador, aquele a
que temos dar mais atenção na sala de espelhos midiática do Rio de Janeiro
contemporâneo. Sob o ponto de vista comercial, Beira-Mar é um dos “melhores” entre
os “excluídos”, por isso foi capaz de se positivar, assim como ocorre com os “melhores”
entre a classe média brasileira desde o “milagre econômico”
90
da década de 70. Buarque
e Pontes (1980), num texto escrito ainda sob o efeito da eclosão do “milagre” – pois foi
escrito em 1975, quando do lançamento da peça “Gota d’Água –, mas que ainda traz
uma atualidade impressionante, ilustram bem como se deu a cooptação da classe média
para o sistema capitalista que “enfim” se implantava no país pela imobilização política e
cultural das chamadas “classes subalternas”, o “povo”, como ocorreu na bem mais
recente demonização do funk no Rio, sempre contando com o prestimoso da classe
média:
(...) a experiência capitalista que se vem implantado aqui – radical,
violentamente predatória, impiedosamente seletiva – adquiriu um trágico
dinamismo. O santo que produziu o milagre é conhecido por todas as pessoas
de boa-fé e bom nível de informação: a brutal concentração da riqueza elevou,
90
Processo de crescimento econômico artificial, fomentado pela entrada de capital estrangeiro, principalmente
através de empréstimos, ocorrida durante a década de 70, na ditadura militar que se instalou em 1964 e só deixou
o poder em 1985.
ao paroxismo, a capacidade de consumo de bens duráveis de uma parte da
população, enquanto a maioria ficou no ora-veja. Forçar a acumulação de
capital através da drenagem de renda das classes subalternas não é novidade
nenhuma. Novidade é o grau, nunca ousado antes, de transferência de renda,
de baixo para cima. (...) No futuro, quando se puder medir o nível de desgaste
a que foram submetidas as classes subalternas, nós vamos descobrir que a
revolução industrial inglesa foi um movimento filantrópico, comparado com o
que se fez para acumular o capital do milagre. (...) No movimento que
redundou num avanço tão grande dos interesses das classes dominantes sobre
os das classes subalternas, as camadas médias têm desempenhado um papel
fundamental. Elas, ao lado do autoritarismo, e de forma mais profunda, têm
legitimado o milagre. Seria ingênuo, a partir daí, fazer qualquer julgamento
moral da classe média brasileira. Se a raiz desse problema fosse moral, viver
não dava trabalho nenhum. A verdade é que o capitalismo caboclo atribuiu
uma função, no tecido produtivo, aos setores mais qualificados das camadas
médias. Não apenas como compradores, beneficiários do desvario consumista,
mas, sobretudo, como agentes da atividade econômica. Em outras palavras, o
capitalismo caboclo começou a ser capaz de cooptar os melhores quadros que
a sociedade vai formando. E isso, de certa forma, é inédito no Brasil
(BUARQUE e PONTES, idem, p. xi).
Da histórica tradição de rebeldia dos intelectuais da pequena burguesia
brasileira citada pelos autores – Gregório de Matos, Graciliano Ramos, Oswald de
Andrade, Plínio Marcos, Cinema Novo, Teatro Oficina, etc. – restou o conformismo com
um bom pagamento e o sucesso midiático:
A ironia, o deboche, a boêmia, a indagação desesperada, a anarquia, o fascínio
pela utopia, um certo orgulho da própria marginalidade, o apetite pelo novo
são algumas marcas dessa nossa tradição de rebeldia pequeno-burguesa. Hoje é
possível perceber que essa rebeldia era fruto da incapacidade que os diversos
projetos colonizadores sempre tiveram em assimilar amplos setores das
camadas médias e dar-lhes uma função dinâmica no processo social. O que
estava reservado ao intelectual pequeno burguês antes do período a que
estamos nos referindo? O jornalismo mal pago, o funcionalismo público, uma
cadeira de professor de liceu, o botequim, a utopia, a rebeldia. Por falta de
função ele era posto à margem. (...) O que acontece agora, inversamente, é que
a radical experiência capitalista que se faz aqui começa a dar sentido produtivo
à atividade dos setores intelectualizados da pequena burguesia: na tecnocracia,
no planejamento, nos meios de comunicação, na propaganda, nas carreiras
técnicas qualificadas, na vida acadêmica orientada num sentido cada vez mais
pragmático, etc. O disco, o livro, o filme, a dramaturgia, começam a ser
produtos industriais. O sistema não coopta todos porque o capitalismo é, por
natureza, seletivo. Mas atrai os mais capazes (PONTES e DE HOLANDA,
idem, p. xiii)
O “milagre econômico” promovido pela ditadura militar, viável pela “entrada
de cabeça” no mundo econômico capitalista a partir da década de 70 e pelo conseqüente
endividamento do país, foi sustentado principalmente pela classe média que, um pouco
mais tarde, viria a ocupar o espaço dedicado ao proletariado na história do capitalismo.
O sistema capitalista transformou suas estratégias e, ao contrário do que poderiam
esperar os marxistas, tornaram o proletariado dispensável. Pelo menos se considerarmos
o proletário como o trabalhador que apenas vende o seu trabalho, para que outros
consumam as mercadorias que ele produz.
A condição da sustentação do sistema está cada vez mais na classe média, o
que deixa entrever uma auto-fagocitose do sistema, o que não significa sua ruína. A
reorganização coloca esses “incluídos” no olho do furacão. São as vítimas preferenciais
de ambas as criminalidades. É com a poupança dessas classes médias que vivem as elites
e é com a sua gana por drogas ilegais que vivem os pobres. Está, efetivamente, no centro
da sala de espelhos identitária e midiática. Eis aí o grande Estranho da Sociedade de
Controle. Essa classe mediana economicamente e rasa culturalmente constitui-se, neste
momento histórico, como a referência a ser pensada para a compreensão do futuro do
capitalismo. É nas vielas de seus relacionamentos com o terror que vem de ambos os
lados, que pode surgir efetivamente o “pulo-do-gato” para entendermos o que será feito
com relação ao exposto nesta dissertação.
O “novo proletariado” parece estar entre as classes médias, produtoras de
riquezas e consumidoras de simulacros de riquezas. Aqueles que foram um dia
cooptados para servir ao sistema têm agora que o sustentar com a própria carne e
sangue. A chave não está mais na hora trabalhada, muito embora o capitalismo
mantenha essa fonte de lucro. O novo foco dos ganhos de capital se concentra cada vez
mais na circulação financeira e nos saques à poupança e não há excluídos que apliquem
no mercado financeiro nem que reúnam poupança considerável para ser saqueada.
O sistema começa a mastigar a si próprio, pois se esgotaram os recursos à
limes. Esta, foi mantida como simulação da divisão entre dois mundos que, na
extremidade da simulação, torna-se inexistente. Os “excluídos” se descobriram no
direito de fazer parte da festa e transpõem a limes alavancados por um grande negócio
capitalista. Uma parte deles, é claro, mas que representam, para a outra parte, o reflexo
de uma realização antes tida como impossível. Há uma “inclusão excludente”, mas há
uma “inclusão”.
A classe média, porém, necessita da limes simulada pela imprensa para que
se sinta segura quanto à própria identidade, afinal, ela não sabe bem exatamente onde,
no mar revolto de seu drama econômico, termina o seu devaneio de ascender à elite e
onde termina o seu risco de “exclusão” do sistema, com a falência ou o desemprego.
Assim, ao entrar em contato com a imagem midiática de Beira-Mar, o sujeito de classe
média pode sentir-se seguro, pois “sabe” que tudo está no lugar essencial de sempre. O
problema, pensa, é a falta de autoridade, a “impunidade” – uma das palavras mais
repetidas no noticiário. Se a ordem for restabelecida, tudo voltará ao normal. Isso é
simplesmente uma alucinação, devaneios de mortos-vivos.
Nada é como antes e a vítima é, a partir de agora, o próprio cidadão “médio”,
aquele que sempre quis se esconder por trás de seus sonhos de sucesso imediato, que
passa as noites diante da televisão a engolir toda a densidade especular das essências do
mundo ocidental. Não é à toa que os antigos zoológicos humanos
91
do século XIX, e
mesmo os mais atuais, das favelas e seus bailes funks cobertos por “heróis” como Tim
Lopes, foram substituídos pelo “Reality Show” dos Big Brothers. O estranho, o bizarro,
está entre as classes médias, que desnudam a sua barbaridade e o seu “primitivismo” na
exibição de algumas pessoas que se digladiam moral e emocionalmente por alguns
milhares de reais. O que acontece quando alguém absolutamente ególatra, alguém que
controla magicamente – através de uma folha impressa ou de um controle remoto – uma
sala de espelhos identitária, descobre a sua própria degeneração? A resposta é fácil.
Precisa de um outro que possa acusar, de um espelho para culpar por suas rugas. O
“velho truque” de acusar o outro pelas próprias faltas.
Beira-Mar é apenas o reflexo de um sistema que a tudo tem abarcado, engoliu
os antigos rebeldes pequeno-burgueses e imobilizou as antigas “forças populares” no
crime. Os grandes anunciantes precisam de seu charme para suavizar a dor da classe
média e, de reflexo, o “bandido” passa a espelho, e é o culpado não apenas pelas rugas,
como também pelas espinhas e pelas olheiras matutinas.
Trata-se, no entanto, por identificação direta, da imagem de uma entidade
que chamamos as “classes médias”, posta no reflexo especular midiático. Assim como o
detento “Beira-Mar”, transferido, em fevereiro de 2003, da cadeia carioca Bangu 1 –
onde gozava da companhia dos amigos e parceiros e provavelmente tinha outras regalias
– para a penitenciária de Presidente Prudente, cidade do interior do Estado de São Paulo,
isolado e sem amigos, as tais “classes médias” “perderam”. Perderam a chance de
entender que as elites que as exploram forjaram, através da imprensa, uma imagem da
lua no poço, e mergulharam no poço. Perderam a oportunidade de entender de forma
“global” a sinuca em que se encontram não apenas elas, as classes médias, mas toda a
91
Os chamados “Zoológicos Humanos” eram “exposições etnológicas” que exibiam principalmente “as raças
humanas inferiores”. Segundo Nicolas Blancel, Pascal Blanchard e Sandrine Lemaire (2000, p. 16): "Les zoos
humains, expositions ethonologiques ou villages nègres restent des sujets complexes à aborder pour des pays qui
mettent en exergue l’égalité de tous les étres humains. De fait, ces zoos, où des individus « exotiques » mêlés à
des bêtes sauvages étaient montrés en spetacle derrière des grilles ou des enclos à un public avide de distraction,
civilização ocidental à qual ainda tentam se agarrar. Perderam também a chance de
evitar uma tragédia maior para si próprias, isolando-se no seu mundinho murmurante,
cheio de ressentimentos e rancores indissociados, provavelmente como se encontra
Fernandinho Beira-Mar no interior paulista.
A festa acabou, juntamente com os milagres econômicos de antanho. Quando
o sistema chega a um paroxismo de seu poder, derrubando praticamente todos os limites
possíveis para a sua invasão, quando efetivamente se torna Império onipresente, resta
alimentar-se da própria carne, e, ao menos economicamente, não há carne nos
“excluídos” do sistema produtivo. E, assim, todos sabemos bem quem está sendo servido
nesse churrasco. Enquanto a classe média se distrai com o charme midiático, ainda que
nefasto, de Beira-Mar, enquanto se mantém no pedestal do “herói-vítima”, alguém lhe
tempera para o banquete. E o que é pior, agindo “dentro da lei”.
Ilude-se, porém, quem pensa que as classes médias acreditam inteiramente no
que lhe conta a mídia. Porém, sua vingança contra o opressor econômico é, como tudo
na sua vida, mesquinha e cínica, comedida, quase silenciosa. Um golpe aqui, um “se dar
bem” ali, coisas do mundo dos “jogos finitos”. Mas, dentro de si, cada cidadão mediano
traz o gozo da tragédia. O mesmo gozo que viabilizou o ataque de 11 de setembro de
2001, pois como afirma Baudrillard (2002, p. 11),
À la limite, c’est eux qui l’ont fait, mais c’est nous qui l’avons voulu. Se l’on
ne tient pas compte de cela, l’événement perd toute dimension symbolique,
c’est un accident pur, un acte purement arbitraire, la fantasmagorie meurtriére
de quelques fanatiques, qu’il suffirait alors de supprimer. Or nous savons bien
qu’il n’en est pas ainsi. De là tout le délire contre-phobique d’exorcisme du
mal : c’est qu’il est là, partout, tel un obscur objet de désir. Sans cette
complicité profonde, l’événement n’aurait pas le retentissement qu’il a eu, et
dans leur stratégie sumbolique, les terroristes savent san doute qu’ils peuvent
compter sur cette complicité inavouable.
É esse mesmo sentimento de cumplicidade que alimenta o charme que a
imprensa evoca em Fernandinho Beira-Mar e outros “heróis midiáticos” do crime. É por
esse mesmo senso suicida que a classe média pode se odiar nos terroristas, nos
pedófilos, nos “bandidos” ou em qualquer outro “maldito”. E é por esses mesmos meios
que pode se premiar e se punir, se orgulhar de ter expulsado Beira-Mar do Rio de
Janeiro – assim como expulsou os demais “emergentes” da cena midiática – e se infligir
o castigo do silêncio de sua condição de rebanho. Nesse jogo infernal de espelhos no
constituent la preuve la plus évidente du décalage existant entre discours et pratique au temps de l’édification des
empires coloniaux.”
qual nada é bem o que é, tudo se volta contra si, o charme de Beira-Mar é apenas mais
um dos reflexos que fascinam e aterrorizam a classe média urbana carioca. Mais um dos
fantasmas, porém não o único ou o mais assustador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A guerra no Rio de Janeiro já existe há muito. Não foram os escravos libertos que
a foram inventar atacando as elites, muito menos seus descendentes. Não foram nem mesmo
os “bandidos” dos jornais que a criaram. Estes já pegaram “o bonde andando”, e cresceram
em grande parte exatamente no rastro de rancor patrocinado pelo massacre promovido
historicamente pelas elites. Na estrutura subjetiva da ocidentalidade é sempre necessário
haver um pólo negativo para que haja positividade. Não para que convivam, não para que se
completem, mas para que o positivo vença o negativo. Se este vence, há uma representação
maléfica do caos. Mas, note-se bem, apenas uma representação, parte de uma simulação.
Entendemos que esse é o fetiche que organiza toda a subjetividade ocidental. Porém, se
lembrarmos que tudo isso se dá num ambiente especular, podemos suspeitar que a
negatividade está sempre presente e é o pólo dominante. Mas isso não importa muito, pois não
temos mais tempo a perder com jogos especulares.
Essa constatação nos obriga a assumir a compreensão de que não há, assim, algo
nessa redoma subjetiva que possa ser considerado “o” Real a não ser todo o seu conjunto. Isso
exclui, como já dito, noções como a de ideologia, pois não há como considerar que há um
Real por trás do Real. Essa promessa, porém, é um dos venenos que mantém as classes
médias mortas subjetivamente. Enquanto brincam de manipular essências, com meta-relatos
como o científico e o econômico, e julgam desvendar o que há por trás das aparências da
caverna platônica, os assim chamados “sujeitos” são essencializados e não descobrem nada
além da própria nulidade enquanto sujeitos. Em termos diretos, se sujeitam no mesmo
movimento em que se pretendem donos de sua subjetividade. No entanto, se pretendem assim,
e assim se percebem no jogo especular. O que crêem desconhecer lhes é conhecido, todos os
mistérios são desvendados pelo mundo da comunicação, esse “mundo das idéias” portátil,
onipotente, onipresente e onisciente. O que efetivamente desconhecem é exatamente o que
crêem conhecer, isto é, a si próprios. Essa posição, na psicanálise, é denunciante de uma
alienação e, conseqüentemente, de uma sujeição. Nesse sentido, podemos afirmar que se trata
de uma morte subjetiva, um estado semelhante ao que vemos nas histórias de vampiros,
quando estes vivem uma existência crepuscular, nem morta, nem viva. Os negros africanos
costumavam chamar isso de “zumbi” ou “cazumbi”, algo como um fantasma. Há uma relação
entre o mergulhar no “fantasma”, isto é, na fantasia de realização de todos os desejos, e ser
um “fantasma”. O fantasista é necessariamente “midiatizado”, vive presa de um “Outro” que
o define e discursa sua identidade, e assim Lacan (1979) compreendeu hegelianamente o jogo
alienante que configura o que chamamos de “sujeito”: a coisa não é a coisa, mas o sujeito
“coisificado”.
O fantasista midiático de nossa contemporaneidade leva uma vida vicária, vive
através de um outro que, por sua vez, é o fantasma do “Outro”, a coisa em si por excelência, o
resumo essencial de toda e qualquer coisa. O outro é a própria experiência e, especularmente,
o sujeito só tem acesso a esta se remetendo à imagem que o outro faz de si, ou mais
precisamente, que o “Outro”, que poderíamos chamar de “Matrix”, utilizando o termo do
filme dos irmãos Wachowsky, constrói. Esse “Outro”, conforme estamos percebendo, porém,
é o próprio Real, não uma imagem produzida dele, como o filme citado sugere. O Real,
referido a essa alteridade, estaria marcado por um caráter anamorfótico, no qual, como na arte
minimalista ou a ready-art, se distorcem ou retiram os conteúdos da realidade para
formalizar-se o vazio de significação que é exatamente preenchido pelos conteúdos, como
refere Zizek (2003b, p. 273), ao traçar a referência da tríade psicanalítica do Imaginário-
Simbólico-Real na arte contemporânea:
O Real está presente, em primeiro lugar, como a mancha
anamorfótica, ou a distorção anamorfótica da imagem direta da
realidade – como uma imagem distorcida, uma pura semelhança que
“subjetiva” a realidade objetiva. Em segundo lugar, o Real está
presente como o local vazio, como uma estrutura, uma construção
que nunca está presente, mas só pode ser construída retroativamente
e assim deve ser pressuposta – é o Real como construção simbólica.
E, finalmente, o Real é o Objeto obsceno para a excreção,
deslocado, o Real “em si”. Esse último Real, se isolado, é um mero
fetiche cuja presença fascinante ou cativante mascara o Real
estrutural, do mesmo modo que, no anti-semitismo nazista o judeu
como objeto para excreção é o Real que mascara o insuportável
Real “estrutural” do antagonismo social.
Essas três dimensões do Real resultam dos três modos de
determinar a distância da realidade “comum”: submete-se essa
realidade à distorção anamorfótica; nela é introduzido um objeto
que não tem lugar ali; ou todos os conteúdos (objetos) da realidade
são subtraídos ou apagados, e tudo o que sobra é o próprio lugar
vazio preenchido por esses objetos.
Parece claro que no jogo midiático essa anamorfose tem o objetivo de realçar
esses conteúdos, naturalizando-os na categoria de hiper-realidade – e sob esta paira o espectro
do abismo, a completa falta de sentido. O jogo especular brinca com o “morto-vivo”, fazendo
com que se entenda “muito-vivo” enquanto manipula imagens especulares em sua fantasia.
Dessa forma, se produz um fenômeno fantástico: o “morto-vivo” se crê ameaçado de morte,
sendo esta a representação do fim da possibilidade de “brincar” com essas imagens, e se volta
contra o alvo que lhe é apresentado pelo seu algoz, enquanto outros algozes agem livremente.
Não é à toa que proliferam os sites que divulgam inúmeras “teorias conspiratórias”. Trata-se
de um jogo dentro do jogo, da artimanha de imaginar um “Outro” do outro, manipulador,
agindo sorrateiramente nas sombras, tramando contra o “Um”. Ora, tudo está claro e não há a
necessidade de imaginar conspirações. O problema é que o jogo especular jamais perde o
prumo e mesmo quando parece denunciar algo, não o faz. Não há exatamente uma
conspiração, assim como não precisamos ficar rodando no mesmo lugar a imaginar qual o
construto ideológico em voga. O que há é uma forma particular de entender o mundo na qual
não há enganos a não ser a própria idéia de que há enganos. A suposta “Matrix” é o próprio
engano e a idéia do engano. O círculo se fecha e lá estão os mortos-vivos no redemoinho,
gozando a “finitude” de seus jogos. Para eles, resta a ilusão como meio de sobrevivência.
Mas, haverá outra forma de vida? Certamente não, se estivermos na sala de espelhos. Ou,
talvez haja, mas não no imbróglio pendular da identidade ocidental. Nela, sempre há dois
lados em tudo, porém qualquer dos lados redunda na mesma coisa. Não há real a não ser
algum “orifício topológico” que permite a projeção para além da polaridade. O telefone de
Matrix ou o vaso sanitário de Zizek (2003b, p. 275):
O real, portanto, não é primariamente aquela coisa hedionda e
nojenta emergindo novamente do vaso sanitário, mas sim a própria
abertura, o espaço que serve de passagem para uma diferente
realidade ontológica – o orifício topológico que “curva” o espaço
de nossa realidade, de modo que percebemos/imaginamos os
excrementos desaparecendo numa dimensão alternativa, que não faz
parte de nossa realidade diária.
As classes médias, porém, acreditam na polaridade que leva as fezes e ameaça
trazê-las de volta. Para elas, o mundo “é” ou “não é”, embora apostem no discurso econômico
que interpõe quantidades entre as categorias do ser. O paraíso, para essa grande faixa de
mortos-vivos, é a descarga do vaso sanitário funcionando para ejetar o mal – incluindo os
“bandidos” –, e o inferno é a permanência ou a volta desse mal, com sua aparência nojenta e
seu cheiro nauseabundo. Entre esses pólos, tudo se move, embora fique no mesmo lugar. Essa
polaridade é a matéria prima da Matrix midiática. Se um ou outro prevalecesse, como nos
sonhos e pesadelos dos medianos, não haveria a experiência do Real. É exatamente a
inconstância que faz a realidade midiática parecer “real” e é ela que aprisiona, no mesmo
movimento em que promete a liberdade.
Quanto à vivência da alteridade, percebemos que o vazio está exatamente onde
deveria haver o “enchimento iluminista”, o sujeito. Neste, não somente está a ignorância,
como a projeção disto como mal, no “outro”, que recebendo sua forma maléfica, pode ser
amado à moda cristã, ser “salvo”, catequizado, anulado. Numa explicação rápida e cínica,
poder-se-ia dizer que isso ocorre para que se possa representar o diferente. No entanto, há
uma anulação completa da diferença e uma anulação do pensamento, ou, em outras palavras,
os estranhos, os bárbaros ou os “bandidos” são o que o saber quer para si, o que o saber é para
si mesmo na tentativa de se definir enquanto uno, identificando a representação do vazio com
o nada, com a falta (de sentido), hipertrofiando seu caráter fictício, conforme refere Alain
Badiou (1996, p. 80): “O efeito-de-um fictício se revela quando, por uma comodidade (...), eu
me autorizo a dizer que Ø é ‘o vazio’, atribuindo assim o predicado do um à sutura-ao-ser
que é o nome, e apresentando o inapresentável tal qual.” Não há o vazio, todo o universo é
povoado por elementos que correspondem a algo, ao “Um” demiúrgico. Daí a extrema ilusão
a que essa crença nos remete. Não há vácuo na vida simbólica ocidental; se há, não há o ser,
logo não há nada, pois nela o ser tudo abarca. A alteridade, nessa realidade é o risco, o perigo,
o sintoma do desmoronamento do sistema no qual tudo tem lógica, exceto ele próprio, como
lembram Deleuze e Guattari (2000).
Fernandinho Beira-Mar não é um estranho. Sua essência está descortinada e
somente por isso é um personagem midiático. É um comerciante como outro qualquer, com a
diferença em que atua num dos ramos mais lucrativos do mundo mercantil, o de drogas, que
movimenta anualmente algo em torno de U$ 500 bilhões, sendo menos rentável apenas que o
de armas. Como afirma Coggiola (2004): “Estes são índices objetivos da decomposição das
relações de produção imperantes: o mercado mundial, expressão mais elevada da produção
capitalista, está dominado, primeiro, por um comércio da destruição e, segundo, por um
tráfico declaradamente ilegal.” Cremos que Coggiola é, apesar de sua postura crítica, muito
complacente com a lógica capitalista. A decomposição parece, a nosso ver, absolutamente
prevista e adequada ao sistema. Para escapar da percepção dessa realidade, há a simulação da
decomposição na caça aos “bandidos”. No entanto, essa caça, apesar de estar custando muitas
vidas, não passa de uma farsa.
A sociedade que afirma o “ser” apenas nos negócios consentidos, “legais”,
engendra o “não ser” do ilegal como duplicação e pratica, desde o seu surgimento, a
ilegalidade consentida pela reflexão de conceitos. No entanto, encena ter controle sobre essas
atividades que a compõem de forma denegada, como “não ser” que “é”. Falando de Beira-
Mar, estamos nos referindo, então, a alguém que domina uma especialidade comercial que,
pelo volume de dinheiro envolvido, é fulcral para o funcionamento do sistema do capital.
Segundo fontes do United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), algo em torno da
metade da cifra citada anteriormente circula no mercado financeiro mundial. Trata-se,
inequivocamente, de uma fonte de recursos inestimável para o sistema.
O que chama a atenção é o descortinamento essencial desse personagem midiático
como “mal”. Numa reflexão especular simples, podemos aceitar que essa “maldade”, esse
“não ser” objetivado como “ser”, é apenas algo que a identidade ocidental postula como
própria na negatividade. No mundo midiático isso fica patente, pois é a materialização da sala
de espelhos identitária. Beira-Mar é o “mal” por uma escolha feita há muito tempo, muito
antes dele próprio existir ou mesmo desse comércio tão lucrativo se tornar a fulgurante
realidade que hoje “é” para o mundo capitalista. Como afirma Malaguti Batista (2003, p. 29),
é no nível do imaginário que se desenvolvem as principais batalhas pela hegemonia
política” e, nesse caso, como pontua a mesma autora, tomando como referência Tzvetan
Todorov (1992), “o encontro da civilização européia com o “outro” exterior se dá no
momento em que a Espanha repudia seu “outro” interior, na vitória sobre os mouros e na
expulsão dos judeus”. O Rio de Janeiro, como já relatamos no primeiro capítulo, se
caracterizou, a partir do “14 de maio de 1888”, como uma sociedade que gerou a sua
identidade pela execração da maior parte de sua população: “o projeto de construção da
ordem burguesa no país se deparou sempre como o medo da rebeldia negra” (MALAGUTI
BATISTA, idem, p. 36). Beira-Mar é um desses temíveis negros que assolam o imaginário
das classes médias cariocas. Nesse nível, sua essência já está traçada desde que nasceu. Trata-
se, então, de um jogo de cartas marcadas, um “jogo de sociedade”, no qual Beira-Mar nasceu
com a marca do “perdedor”.
O Ocidente é um mundo fechado nas suas próprias formas, na simulação de uma
existencialidade plena de essências embutidas. Um mundo convulso, tenso, principalmente
porque representa, para si próprio, ser o fim, a definitiva manifestação do humano. Até a
ocidentalização do mundo, cada tribo podia se considerar o centro do mundo e estabelecer
uma guerra contra quem não aceitasse o fato. Com a ocidentalização, não há mais quem não
aceite o fato de sua supremacia. Até mesmo seus inimigos mais ferozes são familiares – o
marxismo com sua redução à economia política; Osama bin Laden e os talibãs, patrocinados
para se opor à ocupação soviética no Afeganistão; Saddam Hussein, inventado para combater
os xiitas iranianos; os “bandidos” dos morros cariocas, muito apropriados para dar vazão aos
caros produtos do extremamente lucrativo mercado das drogas ilegais. Aparentemente, não há
inimigos externos a ser considerados pelo Ocidente, só os criados pela própria civilização.
Que, convenhamos, nem sequer são inimigos, mas representam o papel. Assim, o que
assistimos no Rio de Janeiro, assim como no conflito Estados Unidos x “Terror”, é um jogo
de compadres. Não há coluna um ou dois a ser cravada. Acertou quem marcou a do meio, o
empate. Um zero a zero que castiga quem aposta na seriedade deste mundo “tautista”.
O econômico a tudo determina, codifica e decodifica todos os sentidos, manda no
jogo, abre e fecha portas, cria e destrói mitos, simula a liberdade enquanto essencializa todas
as relações, num processo de controle que assume contornos sufocantes. Afinal, quando é que
a grande imprensa vai começar a achar estranho que o “aumento da criminalidade” de que fala
ocorreu exatamente quando o neoliberalismo se ergueu como a nova ordem? Será que se trata
de alguma coincidência? Quando será que os jornalistas vão se interessar pelas grandes somas
de dinheiro movimentadas pelos “crimes” oficiais, que espoliam uma grande parcela da
população? A resposta é: nunca. Em parte porque são simplórios demais para isso, em parte
porque os que não o são não conseguem espaço na grande imprensa.
A grande imprensa está fechada no seu mundinho de essências boas e más, seus
heróis e vilões, seu “mundo das idéias” portátil e acessível nas leituras matutinas e nos
zappings. Sua objetividade é pura subjetividade de agenciamento, mas os jornalistas,
notadamente os “moguls” e seus editores “castos”, continuam a repetir a mesma ladainha
sobre ser “objetivo” e “isento”. Fernandinho Beira-Mar é, assim como, por exemplo,
Romário, o jogador de futebol, um ícone a ser explorado e uma “existência” a ser
essencializada. Diria-se, um “homem público”, uma personalidade exposta no supermercado
identitário, pronta para ser consumida e subsumida no velho jogo de montar pensamentos, ou
de simulá-los, do mundo ideativo que distrai as classes médias enquanto lhe são esvaziadas as
parcas economias. Em outras palavras, enquanto o cidadão mediano – econômica e
culturalmente – se preocupa com os Beira-Mar, os Celsinho da Vila Vintém ou os Gangan da
vida, há quem esteja lhes “passando a mão” na poupança.
O jogo é finito e a cultura padece no funil do sentido. A infinitude não pode
conviver com as limitações do jogo jogado unicamente pela vitória. O funk poderia ter
promovido uma integração maior entre as classes por essa via, pelo jogo que se joga por
prazer, fator que, como lembra Hermano Vianna (1988) é exatamente a característica mais
marcante dessa manifestação cultural: o êxtase do momento, a infinitude do gozo da vida
sobrepujando a finitude do tempo de duração do baile. No entanto, nada pode ser assim na
sociedade econômica. Tudo tem que estar amarrado pela quantificação e nela encerrar o seu
sentido. Trata-se, repetimos, de uma aparente objetividade que, no entanto, é plena
subjetividade agenciada e agenciadora. A imprensa que o diga. É ela que amarra o sentido e o
dissimula.
Contrariando o que dissemos anteriormente, pode-se dizer que não há charme em
Beira-Mar, a não ser para as elites que usam a imprensa para forjar o mundo das aparências
essenciais. Estas, como já sugerimos, precisam desses personagens para confirmar que o
mundo que propõem é, senão o melhor, o único possível. Os “excluídos” nada ganham
atribuindo alguma graça ao “bandido”. Assim fazendo, confirmam que a única alternativa é o
econômico e nesse campo estão marcados para a derrota, e o rap tem discursado bem contra
esse destino cruel. Para as classes médias, a consumidora prioritária da informação midiática,
a que mais crê na simulação, vivendo-a intensamente, Beira-Mar é mais do que bom ou mau,
é a própria imagem da falta de senso de suas vidas. Nesse sentido, até há algum charme no
“bandido”. Um charme mórbido, é claro. Mas o que esperar desses que precisam da farsa
consentida para definir a própria identidade? O que esperar dos que aceitam não somente
jogar como ajudar a promover um jogo “finito”, mesmo sabendo que serão inapelavelmente
derrotados? Somente uma coisa se pode esperar, a derrota. Mas, será que poderia ser
diferente?
Fernandinho Beira-Mar preso e isolado no interior de São Paulo é a encenação da
tragédia de cada indivíduo das classes médias. Tanto um com o outro “perderam”.
A N E X O S
ANEXO 1
ANEXO 2
ANEXO C
ANEXO D
Anexo E.
ANEXO F
13/09/2002 - 06h00
Jornais americanos noticiam em sites fim do motim de presos de
Bangu 1
da Folha de S.Paulo
Os principais jornais norte-americanos publicaram nos seus sites a notícia do fim
da rebelião em Bangu 1.
Os diários "Washington Post", "The New York Times" e "The Wall Street
Journal", assim como o canal de TV a cabo CNN, noticiaram a rendição dos presos rebelados
na seção de últimas notícias pela manhã, logo após o término do motim. Já o texto no site da
BBC destacou a morte de quatro detentos.
Além da notícia do fim do motim, com a liberação dos reféns ilesos e a entrega de
armas de fogo, a reportagem da agência Associated Press destaca o confronto ocorrido entre
traficantes.
"Seaside Freddy"
Luiz Fernando da Costa, conhecido como Fernandinho Beira-Mar ("Seaside
Freddy" na verão em inglês), um dos líderes da rebelião, foi citado no texto, que lembrou sua
prisão na selva da Colômbia, no ano passado, onde fornecia a guerrilheiros armas em troca de
cocaína, que ele vendia no Brasil.
"O Comando Vermelho, de Beira-Mar, atacou líderes do rival Terceiro
Comando", explica o texto.
"O objetivo não era a fuga. Era unificar a liderança [dos traficantes de drogas]",
afirmou o secretário da Segurança Pública do Rio, Roberto Aguiar, no texto. "Todos que se
opunham [a isso] foram eliminados."
Em junho, promotores apresentaram fitas com gravações de conversas por
telefone, nas quais Fernandinho Beira-Mar negociava a aquisição de um míssil antiaéreo
Stinger de dentro da prisão, relata o texto.
Rebeliões freqüentes
A reportagem da agência conclui com a observação de que rebeliões em presídios
são frequentes no país e geralmente são causadas por baixas condições de vida e superlotação.
Mas o complexo de Bangu seria uma exceção e o número de prisioneiros não
excedia a capacidade, segundo o texto.
ANEXO G
Voto pragmático mostra mudança no perfil do eleitor
Ideologia é desprezada na escolha dos candidatos.
Nas capitais o que decide é a capacidade administrativa.
Israel Tabak
À direita ou à esquerda, as eleições para prefeito em algumas das principais
capitais do país têm revelado nos últimos anos uma característica suficiente para chamar a
atenção dos especialistas. Candidatos ou correntes com passados ideológicos distintos se
firmam no poder à medida que a população se convence de sua capacidade administrativa.
Não é um fenômeno carioca, mas nacional, com uma importante exceção: São Paulo, onde o
eleitor parece querer experimentar novas fórmulas a cada votação.
No Rio, como em Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte ou
Salvador, a qualidade da gestão tem sido fator determinante na preferência do eleitor, como
constataram cientistas políticos do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(Iuperj), que participaram de seminários internos para analisar a atual campanha. O Rio, que
já foi a “caixa de ressonância nacional”, onde, no início dos anos 60, lacerdistas e brizolistas
se engalfinhavam a cada pleito, hoje vê reduzida a importância dos espectros ideológicos
polarizados.
O cientista político Marcus Figueiredo, do Iuperj, aponta uma pista para quem
quiser detectar a origem da tendência: a Constituição de 1988, que melhorou substancialmente
a arrecadação dos municípios, fortalecendo a posição dos gestores eficientes:
– No Rio, como em outros lugares, houve o fortalecimento da gestão pública
municipal. As boas avaliações administrativas que a população fez das administrações
Marcello Alencar, Cesar Maia e Luiz Paulo Conde confirmam essa evolução – diz Figueiredo.
Não há nenhuma dúvida de que o perfil do eleitor carioca mudou – confirma outro
cientista político, Geraldo Tadeu, coordenador do Programa de Estudos Políticos da Uerj. Cita
uma pesquisa que dirigiu no Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), na qual a
característica mais citada por moradores do Rio para definir um bom prefeito foi a
competência técnica (40%). Depois aparece a sensibilidade social (19,9%) e em terceiro lugar
a experiência administrativa (12%).
– Juntando a competência técnica com a experiência administrativa, que são duas
faces da mesma moeda, vemos que a capacidade de gestão predominou como preocupação
dos entrevistados. E esse bom gestor, na visão do eleitor, precisa se preocupar com políticas
sociais que combatam a pobreza e a miséria– observa Tadeu.
A principal queixa, no entanto, continua sendo a violência, e o eleitor culpa todos
os governantes, municipais e estaduais, à direita e à esquerda, entendendo que os políticos em
geral não são competentes para combatê-la, conforme relata o professor da Uerj.
Quando se chega mais perto das estratégias e dos bastidores de campanha de cada
um dos principais candidatos, é possível entender melhor o momento evidenciado pelas
pesquisas de intenção de voto.
A larga vantagem obtida, segundo as pesquisas, pelo prefeito Cesar Maia, pode
ser explicada a partir do perfil do eleitor, construído pela pesquisa do IBPS.
– É o que melhor se encaixa nessa ótica do eleitor, que permeia classes e regiões.
O atual prefeito vence em praticamente todas as áreas da cidade, em todas as faixas etárias e
em todas as faixas de renda – observa Tadeu.
A vantagem folgada do prefeito se dá numa campanha “essencialmente
burocrática”, que se caracteriza pela inexistência de qualquer divergência ideológica de fundo,
como ressalta Marcus Figueiredo.
– Talvez só uma candidatura como a de Denise Frossard, que questionasse, por
exemplo, os costumes políticos, a corrupção e a incompetência para lidar com o problema da
segurança poderia provocar uma certa marola. O debate central da campanha foi sobre a
qualidade da gestão Cesar Maia. Era exatamente isso que o prefeito queria – analisa
Figueiredo.
Nesse contexto – o da comparação administrativa – Luiz Paulo Conde (PMDB)
leva desvantagem:
– Como Conde começou como filhote político de Cesar Maia, o eleitor, segundo
as pesquisas, está preferindo o original – avalia o cientista político do Iuperj.
Marcelo Crivella (PL), que largou bem nas pesquisas, sofre os efeitos da
associação de sua candidatura com a Igreja Universal. Se pertencer a uma igreja populosa tem
ajudado candidatos nas eleições proporcionais, funciona como entrave nas majoritárias, pois
acarreta desconfiança das outras confissões, observa Figueiredo.
Geraldo Tadeu complementa que os evangélicos marcham rachados nas eleições
do Rio. Parte da Assembléia de Deus, que tem quatro vezes mais seguidores que a Universal,
apoiou formalmente Conde, cedendo o candidato a vice, e há dissidências engajadas em
campanhas de outros candidatos.
O erro estratégico de Jandira Feghali (PCdoB) foi insistir em jogar no campo do
adversário, discutindo a qualidade da gestão Cesar Maia, bem avaliada em pesquisas de
opinião:
– A crítica aos serviços de saúde perde força na medida em que todos os
governos, tanto estaduais quanto os municipais, incluindo os que tiveram a adesão do partido
da candidata, fracassaram em lidar com o problema. Com a crise dos transportes e a tardia
crítica de que há corrupção no setor, ocorre exatamente a mesma coisa – aponta Marcus
Figueiredo.
O problema de Jorge Bittar (PT) – opina Tadeu – é que no Rio o partido se
apresenta debilitado, cheio de fraturas internas, com a área mais à esquerda desiludida com os
rumos do governo Lula, e os que se aglutinavam em torno da Benedita da Silva também
desmobilizados, em razão da discreta participação política atual da ex-governadora. Marcus
Figueiredo comenta que aparentemente “não colou” a promessa do candidato de transplantar
para o Rio a proposta do bilhete único, vigente em São Paulo, assim, como também não
parece ter rendido votos o “ônibus a R$ 1”, de Conde.
– Para o eleitor, ficou a impressão de que tudo é “promessa de campanha”. Nilo
Batista (PDT), que mal pontua nas pesquisas de intenção de voto, representa, segundo os
especialistas, mais uma etapa da derrocada histórica do brizolismo na cidade. Isso, apesar de,
durante quase toda a década de 80 e no início da década de 90, o brizolismo ter centralizado a
herança da esquerda no Rio. Chegou a gerar, a partir de sucessivos rachas, os principais
líderes que hoje, em outros partidos, dominam o cenário político do Rio.
[ 26/09/2004 - 05:10 ]
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